UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA
FACULDADE DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM CIÊNCIAS SOCIAIS
ISRAEL DE JESUS ROCHA
AGINDO COMO EXPERTS: A atuação dos cientistas na audiência pública sobre a constitucionalidade do
artigo 5º da lei de biossegurança
Salvador
2013
ISRAEL DE JESUS ROCHA
AGINDO COMO EXPERTS: A atuação dos cientistas na audiência pública sobre a constitucionalidade do
artigo 5º da lei de biossegurança
Dissertação apresentada ao Programa de Pós-
graduação em Ciências Sociais da Faculdade de
Filosofia e Ciências Humanas da Universidade
Federal da Bahia como requisito para obtenção do
título de mestre.
Orientadora
Prof.ª Dr.ª Iara Maria de Almeida Souza
Salvador
2013
À Ceição,
e seus exageros de mãe.
AGRADECIMENTOS
Como sempre sou esquecido, espero que me perdoem. Vamos aos costumes.
Quero muito agradecer:
A Iara Maria de Almeida Souza, que mais do que orientadora e interlocutora, tem sido uma
mentora desde os tempos remotos da graduação. Agradeço o estímulo e constante disposição
nas leituras deste texto.
Aos amigos e colegas da turma de mestrado que tanto contribuíram com todo tipo de apoio
possível na construção deste texto.
A Rosanita Baptista, amiga de angústias acadêmicas, pela solidariedade nos momentos em
que “jogar para cima” significa tudo.
Aos queridos professores, pois sem eles, por bem ou mal, as coisas não teriam acontecido
dessa forma.
Aos finais de tarde das sextas-feiras conversando sobre fenomenologia, filosofia e teoria
social com o povo do ECSAS/UFBA. Tardes que tanto contribuíram, e ainda contribuem,
para a minha formação.
Aos sempre solícitos Dora e Reinaldo, dispostos sempre a resolver os problemas dos
desesperados pós-graduandos.
E por fim, mas não menos importante, ao meu computador, que além de andar nas nuvens em
nenhum momento resolveu desviar o curso de nossas ações na produção deste trabalho.
RESUMO
A Lei de Biossegurança brasileira, após aprovação, iniciou um longo percurso pelo judiciário
que se encerraria três anos mais tarde com a audiência pública e a votação sobre a
constitucionalidade da referida lei. Entre uma e outra, uma série de mobilizações em torno da
questão envolvendo o uso de embriões para obtenção de células-tronco ganhou os espaços
midiáticos, políticos e jurídicos. O objetivo deste trabalho é analisar a controvérsia
envolvendo a lei de biossegurança a partir da audiência pública, convocada a partir da ação
direta de inconstitucionalidade 3510, no Supremo Tribunal Federal, descrevendo os modos de
ação dos cientistas envolvidos com o tema. Para isso, procura recompor a partir de materiais
audiovisuais e rastros documentais os traços deixados desde a votação no Congresso até a
audiência, ao passo que tenta mostrar como as apresentações dos cientistas são pontualizações
que evidenciam e mobilizam uma série de redes sociotécnicas formadas por atores humanos e
não-humanos. Nosso ponto de partida considera que as relações entre a ciência e o direito não
podem ser concebidas como esferas desarticuladas. Antes, elas são parte do esforço de
composição de um mundo em comum para o qual escolhemos aqueles que farão parte ou não
de tais arranjos. Conclui-se, então, que os vínculos estabelecidos pela ciência a partir da
mobilização dos atores que a sustentam não podem ser vistos de maneira isolada da
sociedade, pois há neste processo um esforço de mobilização de outros atores, como o sistema
jurídico, que atuam diretamente no sentido de lançar perspectivas de significação e contextos
de uso sobre os resultados alcançados pela ciência, sobretudo quando os objetos oferecem
riscos e afetam diretamente um número significativo de pessoas.
Palavras-chave: expertise; experts; células-tronco; Supremo Tribunal Federal;
biossegurança.
ABSTRACT
After approval The Biosafety Bill Law in Brazil began a long journey for judiciary that would
end three years later with a public hearing and vote on the constitutionality of that law.
Between them, a series of demonstrations around the issue involving the use of embryos to
obtain stem cells gained the media, political and legal spaces. The objective of this study is to
analyze the controversy surrounding the law biosecurity from the public hearing, requested
from the direct action of unconstitutionality 3510, in Brazil’s Federal Supreme Court,
describing the modes of action of the scientists involved with the topic. For this, demand
recover from audiovisual and documentary materialsthe traces left from the vote in Congress
by the audience, while trying to show how scientists are punctualizations presentations that
highlight and mobilize a range of socio-technical networks formed by human and non-human
actors. In this case we consider that the relationship between science and law can not be
conceived as disjointed spheres. Rather, they are part of the effort of composing a common
world in which we choose those who will be part or not of such arrangements. We conclude
that the bonds established by science from the mobilization of actors that support can not be
seen in isolation from society, because this process is an effort to mobilize other actors such
as the legal system, which act directly to launch perspectives of meaning and contexts of use
on the achievements of science, especially when objects pose risks and directly affect a
significant number of people.
Keywords: expertise; experts; stem cells; Federal Supreme Court; Biosafety
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO 10
CAPITULO 01: Traços teórico-metodológicos 16
CAPÍTULO 02: A expertise e seus delineamentos na audiência pública 23
2.1 - As abordagens sobre a audiência pública 3510-0. 24
2.2 - A noção de pessoa revisada e o problema do embrião como indivíduo. 27
2.3 - Expertise em ação. 29
2.4 - Autoridade científica e democracia liberal. 31
2.5 - Expertise, experiência e core set. 36
2.6 - Expertise, participação pública e concernimento nos debates sobre a ciência
e tecnologia.
41
CAPÍTULO 03: rastreando os percursos da ação direta de inconstitucionalidade 3510-0 46
3.1 - O Supremo Tribunal Federal e sua primeira audiência pública. 47
3.2 - Passos para ação direta de inconstitucionalidade 3510. 52
3.3 - A ação direta de inconstitucionalidade 3510 e seus procedimentos. 62
3.4 - A disposição dos blocos. 68
CAPÍTULO 04: construindo (dis)cursos em oposição: mobilizando atores humanos e
não-humanos numa audiência pública.
77
4.1 - O embrião como massa celular 81
4.2 - O descarte do embrião e um possível destino nobre 86
4.3 - O embrião mobilizado: sua autonomia a partir daperformance químico-
biológica
97
FECHAMENTOS PRECÁRIOS: quando ciência e lei estabilizam arranjos
sociotécnicos.
115
REFERÊNCIAS 121
ANEXOS 125
10
INTRODUÇÃO
Minhas palavras vão no sentido de agradecer à comunidade científica, que
vem trazer a este tribunal o aporte de seu conhecimento acumulado ao longo
do tempo sobre uma matéria tão difícil quanto esta que constitui o objeto, e
dizer lhes que o ato de julgar é antes de mais nada um grande exercício de
humildade.E é por isso que o Supremo tribunal Federal se reúne para ouvir a
opinião dos especialistas. Acrescentar conhecimentos e aprofundar esses
conhecimentos... para que possa, conhecendo as limitações que são próprias
do ser humano tentar encontrar a melhor solução...
(Ellen Grace, Ministra do Supremo)
Gostaria muito de aplaudir essa iniciativa... eu venho defendendo a muito
tempo a importância dos cientistas conversarem com a população, com a
sociedade... eu acho que essa interação é extremamente importante.
(Maiana Zatz, Professora de genética da Universidade de São Paulo)
Aquilo que parecia ser o final de um longo processo de construção de uma lei no
Congresso Nacional, envolvendo atores heterogêneos interessados na questão, a votação da lei
de Biossegurança1 em 2005, contudo, sua aprovação marcou o início, ou o prolongamento, de
uma longa controvérsia envolvendo as células-tronco embrionárias (CTe) e as células-tronco
adultas (CTa).Este processo culminou, três anos depois, com uma audiência e posterior
votação da ação direta de inconstitucionalidade, impetrada pelo então Procurador da Geral da
Republica, Claudio Fonteles.
O texto da lei buscava regulamentar inicialmente os organismos geneticamente
modificados com o objetivo de resolver um problema criado com a plantação da soja
transgênica na região sul do país. Entre as idas e vindas nas duas casas do Congresso, o texto
passou a incorporar um artigo elaborado para disciplinar o uso dos embriões supranumerários
para a obtenção de células tronco embrionárias.
1 Biossegurança, segundo a definição usada pela Comissão Técnica Nacional de Biossegurança (CTNBIO), é o
conjunto de medidas relacionadas à segurança, controle e diminuição dos riscos que emergem com as
biotecnologias. Em termos conceituais a biossegurança começou a ser elaborada na conferência de Asilomar, em
1975, nos Estados Unidos, quando especialistas se reuniram para elaborar propostas que minimizassem os
efeitos do progresso científico até aquele momento. O termo não foi cunhado nesta conferência e a participação
se limitou aos especialistas.
11
Estes embriões extra uterinos não são um problema recente constituído pela
ciência. Há mais de 20 anos, quando a técnica de fertilização in vitro começou a ser
estabilizada como procedimento para resolver casos de casais que não podem ter filhos por
fertilização natural, a ciência passou a procurar delimitações para o que viria a ser chamado
de pré-embrião. Convencionou-se que essa nova entidade formada nas bancadas dos
laboratórios seria aquela desenvolvida até o 14º dia. Assim como definiu que a morte
encefálica seria uma definição precária para a morte, diante da consolidação dos transplantes
de órgãos, o desenvolvimento do sistema nervoso central seria o marco do início da vida. O
pré-embrião, como uma definição, está distante de ser uma caixa preta sem muitas
mobilizações, e perceberemos como na audiência ela será questionada por cientistas que
formaram o grupo contrário à liberação.
Se, por um lado, a lei de biossegurança tratou de colocar dois assuntos que
provocaram polêmica em um único texto, o mesmo não aconteceu com a petição inicial da
ação direta de inconstitucionalidade. Objetiva em seus interesses, a ação procurou questionar
todo o artigo que permitia o uso de embriões para obtenção de células-tronco. Sugeriu, ainda,
que o Supremo Tribunal Federal convocasse uma audiência pública com caráter instrutório
com o objetivo de ouvir pessoas com notório saber relacionado ao tema para ajudar a fornecer
subsídios para a posterior votação dos ministros, sobretudo aqueles especialistas mencionados
por ela.
À luz do disposto na parte final, do parágrafo 1º, artigo 9, da lei nº
9869/99, solicito a realização da audiência pública a que deponham,
sobre o tema, as pessoas que apresento, e que comparecerão a
audiência independentemente de intimação, tão só bastando a este
Procurador-Geral da República a intimação pessoal da data aprazada à
realização da audiência pública.2
Este notório saber esteve presente no período de constituição da lei no Congresso.
Os especialistas formaram as comissões que auxiliaram a elaboração e os arranjos políticos
que colocaram o texto sobre as células-tronco na ordem do dia da lei de biossegurança. E
alguns deles tornaram a participar da audiência no Supremo.
2 Petição Inicial da ADIN 3510-0
12
O ponto de partida de descrição da controvérsia começa, então, pela atuação
desses cientistas na audiência. A escolha desse evento parte de um pressuposto adotado pelos
teóricos da teoria do ator-rede, sobretudo Latour (2005), segundo o qual precisamos seguir os
atores em seu trabalho de construção de um mundo em comum. Neste processo, alguns atores
ganham status de entidades privilegiadas e outros são deixados de fora no curso da ação.
A escolha pelas apresentações dos cientistas faz parte desse esforço de percebê-los
como pontualizações de redes sociotécnicas heterogêneas formadas por atores humanos e não
humanos. Algumas objeções podem surgir destacando que a audiência apenas marca o poder
discricionário do judiciário em julgar e, com de seus procedimentos, legitimar entidades que
poderão compor o mundo através das leis. No entanto, um olhar mais detido nos modos como
os cientistas foram mobilizados perceberá os diversos atores que perpassam seus discursos e
ações durante a audiência. E estes extrapolam os limites dos dados técnicos, apropriando-se
de linguagens comuns aos que assistiram e aos próprios ministros do Supremo.
O interesse pela atuação desses experts em espaços que não são usuais para os
mesmos tem sido desenvolvido em meu percurso acadêmico desde a graduação, momento em
que estudava a cobertura da mídia sobre as células-tronco. A partir desses trabalhos a ideia de
estudar como a ciência ocupa espaços fora do laboratório surgiu da tentativa de perceber que
as distinções institucionais que marcam a modernidade, ciência de um lado, sistema judiciário
de outro, podem melhor ser compreendidas quando pensamos em suas interseções e no
trabalho de proliferação de atores no mundo. Diante disso, partimos do suposto que considera
tais instituições como espaços essenciais de estabilização de atores no mundo moderno.
A emergência de objetos que surgem do trabalho científico tecnológico tem
demandado do sistema jurídico atuações no sentido de nomeá-los e discipliná-los de acordo
com as leis vigentes. Não apenas as células-tronco, assunto dessa dissertação, mas os crimes
digitais, as biotecnologias, técnicas de clonagem, mapeamento de genomas, coletas de
material genético biológico, todas estas questões têm mobilizado o direito em seus aspectos
disciplinadores.
Neste sentido, como afirma Jasanoff (1995), e veremos mais adiante, o sistema
judiciário lança bases nas quais a ciência e seus constructos podem ter um significado e
sobretudo um sentido de utilidade. Não podemos pensar então como esferas distintas de
13
atuação. Elas permeiam uma a outra. Bruno Latour (2004) proporciona considerações
razoáveis sobre esse fazer da ciência, do direito e da política, concebendo em alguma medida
esses dois últimos como trabalhos cujo processo consiste em selecionar, classificar e agenciar,
fazendo com que isso ou aquilo faça parte do real, ou o que o autor chamou de composição
progressiva de um mundo comum. Assim, a ciência, a despeito de seus almejos em manter
clara a distinção e seu espaço imaculados, é uma atividade cuja prática de proliferação de
híbridos pelo mundo é política.
Como já antecipamos, o objeto dessa dissertação é o modo como os cientistas
atuaram na audiência sobre a ação direta de inconstitucionalidade promovida pelo Supremo
Tribunal Federal. Os modos de atuação dos cientistas, considerando os pressupostos teóricos
metodológicos adotados, são compreendidos menos como uma tentativa da ciência em definir
o seu espaço, e o direito no lado oposto definindo o que é seu, e sim como um esforço de
estabilização de uma série de redes sociotécnicas que se tornam visíveis pela ação de tais
cientistas. Essas redes mobilizam uma série de atores humanos e não humanos que transitam
pelas apresentações no decorrer da audiência. Em alguns momentos, atores, como os
embriões, são relevantes nos relatos, mobilizam e sugerem ações. Agem como verdadeiros
mediadores. Em outros, apenas são espécies de intermediários que conduzem sem modificar
sentidos e significados.
Desse modo, o texto aqui elaborado visa seguir os passos dados por esses
cientistas em suas apresentações na audiência. Algumas questões também o norteiam. Como
compreender os modos como a ciência e o direito se entrecruzam na contemporaneidade,
permeada por objetos que proporcionam riscos e incertezas? Que critérios de validade são
mobilizados pelos cientistas para justificar suas pesquisas e, sobretudo, legitimá-las diante de
públicos mais amplos? Como os cursos de ação que envolvem a controvérsia são a todo
instante negociados e refeitos pelos atores, seja humanos ou não-humanos? Estas questões
perpassam a dissertação que segue.
Seguindo a sugestão de descrever os modos como os cientistas atuaram na
audiência estruturamos a dissertação considerando os seguintes passos. O leitor encontrará
alguns traços teóricos e metodológicos adotados para compor nosso trabalho. Neste primeiro
momento vamos apresentar como desenvolvemos um interesse pela audiência e como autores
mais alinhados com a teoria do ator-rede nos orientam no sentido de pensar a audiência como
14
um espaço no qual podemos perceber o fluxo de diversas agências. Em seguida, descrevemos
os materiais coletados e usados para recompor a controvérsia desde o momento em que foi
debatida e aprovada no Congresso.
Posteriormente, tentamos dar conta de algumas discussões envolvendo a questão
da expertise. A ciência e os especialistas têm assumido um contorno preponderante nas
explicações sobre os fenômenos naturais e sociais ao mesmo tempo em que tem demandado
dos mesmos uma maior interação e participação com públicos formados tanto por outros
especialistas, nosso caso com a audiência, como públicos leigos em tais assuntos. Isso porque
uma das características dos objetos que emergem dos arranjos científicos e tecnológicos diz
respeito ao concernimento que os públicos desenvolvem em relação às consequências que tais
objetos podem provocar.
No capítulo dois, delineamos uma discussão sobre a noção de expertise como ela
nos ajuda a pensar as articulações presentes na audiência, perpassando o debate envolvendo a
participação de especialistas no âmbito politico até os contornos que a noção assume com os
estudos sociais sobre a ciência e a tecnologia. Além de uma discussão sobre expertise,
apontamos alguns limites presentes nos trabalhos anteriores que debateram pontos em comum
com nosso texto. A pretensão nesta parte é mostrar como estes trabalhos centraram em
aspectos que deixaremos de lado no debate proposto pela dissertação, como a questão da
noção de pessoa e a definição do que é embrião e como os juristas trataram o tema.
No terceiro capítulo traçamos os fios que ligam a controvérsia na audiência aos
seus vínculos iniciais com a votação da lei de biossegurança em 2005. Essa recomposição
considerou aspectos que conduziram à audiência e como a própria constituição da lei oscilou
entre a inclusão e retirada do tema das células-tronco da pauta. O que seria parte de outra
legislação, com defenderam alguns, acabou tornando-se parte de uma discussão elaborada
para desviar os holofotes televisivos da questão envolvendo os organismos geneticamente
modificados. Além desses vínculos com a votação no Congresso, articula-se o modo como a
audiência foi construída, a maneira como os blocos se consolidaram e os arranjos
improvisados nos procedimentos da audiência, pois se tratou da primeira realizada pelo
Supremo Tribunal Federal.
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O último capítulo é um desdobramento do anterior e tem como objetivo colocar os
relatos dos cientistas em temas que predominaram nas apresentações. Neste sentido,
falaremos da maneira como os blocos organizaram estratégias a fim de colocar o embrião
como um objeto criado fora de uma relação com seus genitores e, por isso, passível de
manipulação como um produto da prática científica. De outro modo, temos a tentativa de
proporcionar uma autonomia do embrião por parte dos cientistas contrários às pesquisas com
células tronco embrionárias. Neste percurso atores emergem e são mobilizados na sustentação
das performances na audiência. Transitamos entre embriões, artigos científicos, crianças com
doenças degenerativas, pacientes curados, o mercado capitalista ávido por novos produtos, a
prática médica revisitada, bem como uma sorte de atores que em alguns momentos são
intermediários e em outros mediadores.
Ao final, retomamos a discussão no sentido de consolidar a perspectiva
desenvolvida durante o texto. Aquela que procura perceber a audiência mais como um
processo no qual uma série de redes sociotécnicas estão sendo mobilizadas a fim de
possibilitar a composição de um mundo em comum. Se neste mundo teremos ou não
participação de células embrionárias, de embriões supranumerários, cabe seguir os fios que
nos conduzem à audiência.
16
CAPÍTULO 01
Traços teóricos e metodológicos
17
Analisar um material que em alguma medida se revela desgastado por diversas
abordagens apresenta-se sempre como uma tarefa difícil e cautelosa. Aqui coloco-me diante
de tal problema. Inicialmente concebida como projeto para tratar da cobertura da mídia entre
o período da votação da Lei de Biossegurança em 2005 e o debate que envolveu o artigo 5º de
tal lei, sobre a liberação do uso de embriões supranumerários para obtenção de células-tronco
embrionárias, no Supremo Tribunal Federal, este texto tomou rumos outros por alguns
obstáculos ocorridos durante seu desenvolvimento. Trabalhar com a cobertura da mídia sobre
o caso tinha sido um tema pouco discutido nas fases iniciais na tentativa de estudar as
relações entre a ciência e a sociedade. Objeto este que dialogo desde a graduação com as
pesquisas desenvolvidas sobre a organização e a cooperação em um laboratório de terapia
celular.
Após descobrir que uma tese de doutorado (BROTAS, 2011) em comunicação tratou
de muitos aspectos que pretendia discutir, resolvi retomar os objetivos do projeto e deslocá-
los de uma análise da cobertura midiática para uma observação da maneira como a expertise
tinha sido delineada na controvérsia que ocasionou a audiência pública. Não desprezando os
materiais empíricos coletados ainda quando a pesquisa dizia respeito a cobertura da mídia,
tomei os mesmos como tentativa de recomposição da controvérsia na audiência, seguindo os
rastros deixados pelos atores em suas tarefas de construção de um mundo em comum
(LATOUR, 2004).
As matérias veiculadas pela imprensa revelaram algumas pistas sobre a dinâmica dos
atores envolvidos: cientistas, juristas, associações de pacientes, advogados interessados,
leituras e ilustrações que demonstravam uma certa movimentação em torno do evento. Não
apenas este movimento, mas uma série de redes mobilizadas em torno da defesa dos embriões
e de seu uso para os fins de pesquisa.
Deslocando os objetivos, o primeiro passo foi coletar os dados referentes à audiência.
Passei a trabalhar com os dados audiovisuais da audiência e julgamento. Todas as
apresentações ocorridas na audiência foram registradas em audiovisual e disponibilizadas para
qualquer interessado no material. Ao todo, os registros audiovisuais somam quase 5 horas de
apresentações e sessão de perguntas e respostas. Outra parte do registro consta as leituras dos
votos dos ministros, que somam cerca de 6 horas de material audiovisual. Parte do material
usado foi transcrito para fins de uso na pesquisa.
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Além do material audiovisual, uma busca por documentos foi realizada com o
objetivo de obter mais detalhes sobre a controvérsia e a audiência. Os documentos do trâmite
jurídico da mesma foram encontrados em sites especializados em direito. Por ter sido a
primeira audiência pública no Supremo, muitos estudos relacionados ao Direito foram
elaborados com o objetivo de entender o processo. Assim, a literatura dos estudos jurídicos
sobre o debate e a organização da audiência ajudou-me a seguir os rastros, em alguns
momentos não identificados a partir do material audiovisual. Todo o processo, desde as
petições até os despachos estão disponíveis no site do Supremo Tribunal Federal3. Estão entre
esses documentos: os votos dos Ministros disponíveis tanto no site do Supremo como em sites
especializados. As petições iniciais do processo, as convocações dos cientistas, os convites
enviados pelas partes interessadas e os documentos que solicitavam inclusão de membros
antes não convidados para o certame. Todos fazem parte dos materiais coletados e compõem
o quadro de materiais empíricos usados nesta pesquisa.
Adotando como premissas deste trabalho os pressupostos da teoria-ator-rede, procuro
recuperar a controvérsia seguindo o maior número de rastros deixados pelos atores envolvidos
nela. Sigo, então, uma premissa fundamental de simetria ontológica entre os atores envolvidos
no debate, não privilegiando, a priori, nenhum ator como ponto de partida (LATOUR, 1989,
2000, 2005; LAW, 2005; JASANOFF, 1993, 2002, 2005, CALLON et al. 2010). Mesmo que
nosso objetivo seja a ação dos experts, a compreensão que segue este objetivo é que, ao
considerá-la, tomamos tal ação como pontualizações de redes sociotécnicas (LAW, 2005). Há
diversos pontos que nos direcionam para análise da ação dos experts considerando-os a partir
da noção apresentada por John Law (2005). As pontualizações se apresentam tanto como uma
maneira de as redes sociotécnicas se fecharem, assim aparecendo como um recurso que pode
ser mobilizado e se apresentam também como uma simplificação da heterogeneidade da rede.
Neste sentido, por mais que consideremos que o sistema jurídico e seus representantes na
audiência tenham um peso relevante na controvérsia, reconhece-se que é mediante o agir dos
especialistas que nos é permitido rastrear os diversos fios que desenrolam a controvérsia.
3www.stf.gov.br. Basta inserir o nome a referência da ADIN nos motores de busca do site que será visualizada a
página que consta os documentos produzidos pelo processo. Não há com identificar que se trata de todo o trâmite
envolvendo a ADIN, mas o material oferece informações substanciais para o rastreamento de pontos discutidos
na audiência.
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Seguindo o argumento, poderíamos pensar no que levou os Ministros a convocarem
os especialistas em pesquisas com células-tronco a falarem em nome delas, se os mesmos
poderiam mobilizar a rede de uma forma mais dilatada, como a ação de um dos Ministros
sugere quando faz uma visita ao laboratório? A simplificação, neste argumento, aponta apenas
para os recursos pontualizados nos quais as redes podem ser mobilizadas e utilizadas
rapidamente sem o envolvimento direto com complexidades intermináveis (LAW, 2005). A
audiência não seria nada curta se os cientistas detalhassem e recuperassem todas as
complexidades que estão sendo mobilizadas em torno de suas apresentações. E eu como
pesquisador já teria, em alguma medida, desistido de descrevê-los. E os ministros já teriam
julgado antes da conclusão dos trabalhos.
Mas esta proposição não advém de uma postura teórico-metodológica de
considerar a análise dos especialistas, a priori. Parte da consideração sobre os diferentes
modos como a controvérsia é performada a partir das apresentações dos experts na audiência.
Seguindo os rastros deixados pelos cientistas ao longo de suas exposições, registramos os
diversos atores concernidos a agir com, entre e por eles. Por serem porta-vozes tanto de
humanos como de não-humanos, resolvi, com o risco que se corre ao delimitar, torná-los
atores chave na compreensão da controvérsia. A própria Teoria-Ator-Rede não se fecha sobre
este ponto. Seria difícil tocar uma descrição dos modos como uma controvérsia se desenrola
sem escolhermos traços que consideramos mais interessantes, ou que os atores no seu trabalho
de construir mundos sugiram como importantes a serem considerados.
A indeterminação (Latour, 2005) nos pontos de partida permite, neste sentido, ao
pesquisador rastrear a multiplicidade de atores envolvidos com a controvérsia, e a escolha dos
caminhos segue muito mais trilhas abertas e fechadas por eles do que uma seleção prévia,
realizada pelo investigador. Seguir os atores é seguir escolhas que os mesmos fazem sobre a
questão em análise. A controvérsia pode ser constantemente aberta devido ao seu caráter de
estabilização precária (LAW, 2005). Alguns atores sucumbiram no decorrer do processo de
coleta e acompanhamento de suas atribuições na controvérsia. Outros seguirão mesmo quando
o pesquisador colocar um ponto final no trabalho.
Outra premissa importante levantada pelos estudos sociais sobre a ciência é a
quebra dos privilégios epistemológicos dados aos cientistas, procurando compreender como a
audiência faz parte de um processo de estabilização de uma nova tecnologia que relaciona
20
experts, jornalistas, um público mais amplo e aqueles diretamente interessados nos resultados
das pesquisas como potenciais usuários de tais tecnologias. Nesta perspectiva, a análise dos
processos de estabilização privilegia menos o trabalho dos cientistas, no sentido tradicional de
descoberta de fatos já dados no mundo, e abre margem para os diversos atores envolvidos na
controvérsia.
As sociedades contemporâneas caracterizadas por incertezas e riscos têm gerado
controvérsias que envolvem os desenvolvimentos científicos e tecnológicos. A própria
conformação desses objetos já produzem mobilizações de atores heterogêneos e argumentos
que não são puros em termos científicos. Sugerem que as fronteiras e delimitações que
usualmente mobilizamos para descrever nossos objetos são pouco profícuas em termos
práticos, mas que geram grandes divisões como as apontadas por Latour em Jamais fomos
modernos (2011). A separação operada pela modernidade entre regiões nas quais transitam
fatos e outras valores nos remete aos processos em que criamos mundos nos quais os não-
humanos parecem desvinculados do mundo dos humanos. Este processo contínuo que Latour
chamou de separação das esferas. O debate na audiência pública sugere que o embrião
congelado está seguindo este curso de ação ao romper vínculos direto com os humanos e
sofrendo o processo de transformação em objeto (CESARINO, 2006).
No mesmo sentido, os riscos e incertezas que são oferecidos por esses objetos
controversos e ambivalentes mobilizam e interessam um público mais amplo, solicitam novos
espaços de decisão, ainda em fases de mobilização de uma pluralidade de atores. Tais
espaços, apresentados por Callon et al. (2010), são considerados fóruns híbridos por que
permitem uma multiplicidade de performances que envolvem a abertura e o fechamento de
uma controvérsia. Por mais que na audiência possamos não considerar a participação explícita
desses atores mobilizados, eles em diversos momentos da controvérsia são solicitados e
arregimentados.
Considerando as observações feitas por Latour (2004) sobre a questão da
formação dos coletivos, o constante trabalho de proliferação e inserção de novos atores no
mundo em comum, tais inserções envolvem um processo exaustivo de concernir aos atores
atribuições nestes coletivos. A noção de matters of concern nos ajuda a pensar a controvérsia
em questão como uma boa ilustração de como a ciência se apresenta como uma prática de
produzir híbridos de fatos e artefatos que produzem diferenças nos coletivos. As células-
21
tronco (embrionárias ou adultas), em jogo na audiência, convocam atores heterogêneos a
falarem em nome delas. Solicitam atenção, provocam dúvidas, até mesmo descrença em suas
potencialidades. Colocam em xeque a sua própria existência no mundo comum. Definem e se
redefinem de acordo com os atores que são afetados por elas. Reivindicam esperança,
mobilizam pacientes. Solicitam deles mobilizações diante do Congresso. Se trata não apenas
de especialistas em ciência e direito a definirem limites de uso de uma determinada
tecnologia. O que está em jogo, podemos sugerir, é como essa tecnologia (células-tronco) será
disposta em um mundo comum entre humanos e não humanos.
Kristin Asdal (2008) apresenta um caso interessante sobre a ciência nos caminhos de
espaços considerados políticos. Adotando a perspectiva de Michael Lynch (1998, apud
ASDAL, 2008), que explorou como o corpo do animal se transformou em objeto científico no
laboratório, Asdal procurou perceber como em alguma medida o uso do animal se tornou algo
não só cientificamente, como também cultural e politicamente aceito. Seu argumento então se
desloca do laboratório como o lugar privilegiado para a compreensão dos usos de animais, o
que aqui poderia ser estendido para os embriões, como uma questão que precisa ser
performada fora dos muros que cercam o laboratório. É nos espaços políticos, como o
Parlamento, o Congresso Nacional, o Supremo Tribunal Federal, que são performados, aceitos
ou excluídos e delimitados como objetos possíveis de atuarem no mundo em comum.
Asdal (1998) aponta que entre o fim do século 19 e inicio do século 20 inúmeros
países introduziram leis que regulavam e proibiam os maus tratos com animais. Tais
regulamentações não apenas discutiam normas para animais domésticos como também
aqueles que eram utilizados em laboratório. No mesmo período, considerando o caso
Norueguês, a comunidade médica tomou para si o trabalho de performar como a medicina
experimental estava ligada à sociedade através de suas descobertas, que seriam em última
instancia para resolver os problemas da própria sociedade. Assim sendo, o uso dos animais
como objetos não se prestava apenas para os propósitos da ciência, para descobrir mais sobre
a natureza ou desvendar os caminhos da verdade. Tratou-se de uma benéfica ligação entre o
laboratório e o alívio da dor e sofrimento fora de seu espaço. (ASDAL, 2008. p. 903).
Se compararmos os argumentos e recursos utilizados pelos experts na audiência, em
muitas articulações mobilizadas por eles, a sociedade aparece como um recurso que produz
efeitos sobre a maneira como os ministros poderiam ou não incorporar em seus votos. O voto
22
da Ministra Ellen Grace aponta para as possibilidades que os embriões supranumerários
poderiam oferecer à sociedade em seu uso para a obtenção das células-tronco.
Na mesma audiência, ainda podemos perceber como os argumentos levantados por
um dos ministros, Lewandowski, apresentam certa desconfiança no papel da expertise em
definir o que pode ou não ser feito com os embriões. Essa desconfiança Asdal (2008) também
identificou no caso dos animais, quando o parlamento norueguês colocou limites à autonomia
da comunidade científica, bem como o direito da mesma em regular suas próprias atividades.
Tal perspectiva e interesse do Parlamento estavam ligados não apenas a uma critica à falta de
limites dos cientistas, mas também um certo desapontamento sobre os experimentos médicos,
aponta Asdal (2008).
Em certa medida, como veremos no próximo capítulo, a tônica de alguns votos,
principalmente os contrários à constitucionalidade do artigo, seguiram estes aspectos
apresentados na discussão de Asdal. Muito mais do que agir apenas no laboratório, cabia aos
cientistas performar e mobilizar diversos atores em torno da constitucionalidade do 5º artigo
da lei de biossegurança. Em muitos casos, na audiência, assim como as comissões à época da
votação no Congresso, tais performances precisaram extrapolar o universo do laboratório e
serem atuadas em espaços políticos4.
Seguiremos adiante os rastros deixados pelos ministros, cientistas, associações de
pacientes, organizações religiosas deixaram no desenrolar da controvérsia.
4A leitora, ou leitor, já deve ter percebido que a menção aos espaços como científico, sociedade ou político em
muitas ocasiões do texto estão mais de acordo como adoto uma certa leitura do autor(a) que no momento discuto,
do que como uma posição explicita de quem escreve. Preciso, então, deixar mais uma vez claro que se
desvincular desses recursos mais alinhados a uma sociologia do social (LATOUR, 2005) em alguns momentos
se torna uma tarefa difícil. A maneira como manuseio aqui não cria abismos e fronteiras entre tais espaços, como
coisas bem distintas e delimitadas. Aqui estou mais alinhado com uma Sociologia das associações (LATOUR,
2005; LAW, 2005 e CALLON, 2010) em que tais usos aparecem muito mais como recursos para facilitar a
compreensão do que como uma certa diferenciação ontológica dos mesmos. Latour (2004) usou a expressão
coletivos com o objetivo de minimizar as confusões entre uma sociologia que toma a sociedade como objeto
externalizado e outra sociologia que considera o próprio uso do termo sociedade inapropriado para dar conta das
inúmeras associações que envolvem o trabalho constante de estabilização precária do mundo.
23
CAPÍTULO 02
A expertise e seus delineamentos na audiência pública.
24
2.1 - As abordagens sobre a audiência pública 3510-0.
Durante o intervalo entre a votação da lei de Biossegurança em março de 2005 e a
audiência pública em 2008, diversas pesquisas sobre o caso das células-tronco no Brasil
foram desenvolvidas. As principais abordagens sociológicas e antropológicas sobre o tema
procuraram destacar o papel dos atores na dinâmica do trâmite na Câmara e no Senado,
discutindo o processo de construção da lei de Biossegurança (CESARINO, 2006), o embrião
a partir de uma noção de pessoa como categoria explicativa chave para a questão do embrião,
tanto na construção dos artigos relacionados às Células-tronco na Lei, como em sua votação
por constitucionalidade no Supremo Tribunal Federal (LUNA, 2009). Em outro trabalho,
Naara Luna (2007) discutiu o conceito de ‘vida’ nos debates que envolveram os ministros do
Supremo.
Além das abordagens mais diretamente relacionadas ao debate e a forma como
categorias como “pessoa” e “embrião” foram manuseadas pelos atores envolvidos na
audiência pública e na sessão de votos dos Ministros, outras perspectivas elaboraram
comparações entre o debate brasileiro e o debate britânico na definição dos limites do embrião
humano (CESARINO, 2007).
Outra questão que ecoou como desdobramento, principalmente a partir de uma
discussão mais antropológica, procurou destacar a pertinência de se considerar certas
categorias como elemento explicativo para a controvérsia envolvendo as células-tronco
(ALMEIDA; PEREIRA, 2010). Para estes autores, considerar o embrião como uma categoria
explicativa centrada em numa ideia de unicidade seria um problema trazido pela perspectiva
usada nos trabalhos de Salem (1997) e Luna (2007). Neste sentido, as perspectivas que
consideraram o embrião a partir de uma noção de pessoa pouco elucidariam o debate já que
desconsiderariam a hibridicidade e os diversos atores envolvidos nas constantes definições e
redefinições do embrião na controvérsia.
O embrião extracorpóreo, traço das tecnologias de reprodução assistida, seria um
adensamento das características da individualidade moderna e o consequente velamento dos
vínculos de parentesco. Um dado interessante trazido por Salem (1997) é que este embrião
que vive fora do útero está inserido numa rede mais complexa que outrora. Além dos seus
25
genitores, outros a partir de então poderiam agir com e falar em seu nome. Dizer sobre sua
natureza e resistência [depoimento de Patrícia Pranke], defender suas relações químicas com a
futura mãe [depoimento de Elizabeth], convocar atores que dependem de sua condição
favorável para pesquisas e minorar seu peso enquanto vida [depoimento de Maiana Zatz], ser
meramente um aglomerado de células, um blastocisto [depoimento de Ricardo Ribeiro].
Todos estes vínculos precários multiplicados com a possibilidade extracorpórea tornam o
embrião um ente que concerne a muitos atores, liga grandes mercados e empresas a
associações de pacientes e genitores a possíveis beneficiários da tecnologia de células-tronco.
Outra questão que precisamos destacar desses trabalhos é a adoção de uma
perspectiva de análise baseada no pressuposto segundo o qual o debate brasileiro estava
centrado, tanto no Congresso como no debate jurídico do Supremo, numa ideologia moderna
do individualismo, discutida extensivamente por Louis Dumont (1985), considerando como
consequência que o embrião seria um indivíduo dotado de autonomia. Em linhas gerais, o
argumento de Dumont (1985) centra-se na distinção entre o sujeito empírico e o sujeito com
valor moral. Tal distinção parte de um suposto que o individualismo moderno teve sua
semente ainda entre os primeiros cristãos e o mundo que os cercam. O sujeito empírico é
aquele que fala e pensa, a amostra individual da espécie humana. O ser moral, aquele
autônomo, não-social e portador dos nossos valores supremos, e que se encontra em primeiro
lugar em nossa ideologia moderna do homem e da sociedade. Tendo como base essa
distinção, Dumont argumenta que há duas espécies de sociedade. Uma centrada na ideia de
indivíduo como valor supremo, por consequência o individualismo; e outra, um caso oposto,
em que o valor está na sociedade, então que se tem o holismo. (DUMONT, 1985. p. 36-37).
Os indivíduos nas sociedades tradicionais não têm o valor moral como nas
sociedades modernas. Como estas sociedades, do ponto de vista histórico, partem das
sociedades tradicionais, a questão colocada por Dumont é compreender como ocorreu tal
mudança, já que o autor supõe que ocorreu de maneira natural que o individualismo surgiu em
oposição à sociedade holista. Uma tese sugerida pelo autor encontra-se na sociedade indiana.
A figura do renunciante sugere pistas para o entendimento das origens do individualismo. O
renunciante indiano é aquele que,
basta-se a si mesmo, só se preocupa consigo mesmo. O pensamento
dele é semelhante ao do indivíduo moderno, mas com uma diferença
essencial: nós vivemos no mundo social, ele vive fora deste [...] um
26
‘indivíduo-fora-do-mundo’. Comparativamente, nós somos
‘indivíduos-no-mundo’ (DUMONT, 1985. p. 38)
Para Dumont (1985), o individualismo surge como um suplemento nas sociedades
tradicionais, mas não como o conhecemos na forma moderna. Por isso a comparação entre o
‘indivíduo-fora-do-mundo’ e ‘indivíduo-no-mundo’.
Considerando a abordagem de Dumont (1985), Luna e Salem traçaram uma
leitura do debate envolvendo a questão das células-tronco como uma possível leitura e reflexo
desse individualismo das sociedades modernas, proposto pelo autor. Ao considerar em linhas
gerais os argumentos essenciais da perspectiva dumontiana, para Almeida e Ferreira (2010), o
problema desta abordagem (LUNA, 2007, 2009 e SALEM, 1997) da controvérsia reside na
persistência em analisá-la com referência a uma noção de pessoa assentada em pressupostos
exclusivamente ocidentais, desconsiderando os desdobramentos que a mesma implicaria se
mudássemos a perspectiva. Quando analisada em outros termos, afirmam Almeida e Ferreira
(2010), a controvérsia deixa ser considerada como apenas uma alegoria de uma suposta
ideologia moderna e o embrião passa a ser colocado em termos de relações que são
estabelecidas em diversas situações apresentadas pelos cientistas e magistrados em seus
argumentos.
De tais situações emergem possibilidades nas quais o embrião tem suas definições
avaliadas e reconfiguradas a todo instante. Elas podem dizer respeito em alguns momentos ao
desenvolvimento do país num ranking de pesquisa; podem estar associadas às imagens de
crianças portadoras de doenças degenerativas, como na apresentação de Maiana Zatz; em
alguns momentos está em relação de autonomia com a genitora, quando já pode enviar para a
genitora informações sobre o seu desenvolvimento, que independe de sua relação de
dependência química com a mesma; em outros momentos pode ser apenas algo que não pode
ser destruído em nome de pesquisas que ainda não produziram resultados satisfatórios, entre
outras situações que podem ser vistas no quadro de distribuição dos argumentos das
apresentações no quarto capítulo. O embrião extracorpóreo, dessa maneira, seria visto como
um ente que ultrapassa as fronteiras usuais como cultura/natureza, na medida em que se
estabelece múltiplos vínculos em sua definição, vínculos esses incapazes de serem discernidos
entre culturais e naturais (ALMEIDA; PEREIRA, 2010).
27
Neste sentido, veremos na próxima seção como se desenvolveu algumas
abordagens envolvendo a controvérsia, sobretudo a questão do embrião como tema central da
controvérsia.
2.2 - A noção de pessoa revisada e o problema do embrião como indivíduo.
O debate em torno do embrião e as células-tronco no Brasil, de acordo com as
análises elaboradas e resumidas na seção anterior, girou em torno do pressuposto segundo o
qual o embrião é um indivíduo. Ao considerar o debate uma alegoria da ideologia moderna,
tais abordagens deixaram de considerar pontos que serão levados em conta aqui. A questão do
embrião, então, foi abordada dentro de características que dizem respeito a tal suposta
ideologia e os dados levantados por Salem e Luna corresponderam às características que
sugeriram os caminhos da controvérsia alinhados no sentido de demonstrar tal
correspondência no debate brasileiro.
No sentido empregado tanto por Salem (1997) como por Luna (2007) o debate
brasileiro envolveu o embrião com uma certa definição de vida vinculada à concepção de
pessoa, o que marca parte dos relatos dos participantes da controvérsia. Além disso, o
conceito de vida, como destacado por Luna (2007), foi vinculado a uma definição religiosa e
uma noção mais ligada à biopolítica, que estaria mais identificada com as atividades
científicas, pouco foi mobilizada no julgamento, ponto este que foi polarizado em alguns
momentos das exposições da audiência. A ideia de vida interpretada como bem jurídico
apresentada pelos ministros se aproximou da linguagem religiosa da vida como “dom de
Deus”.
Para Luna (2007), tanto a petição inicial da Ação Direta de Inconstitucionalidade
3510, como a Campanha da Fraternidade, organizada pela CNBB no ano de 2008, afirmaram
em seus argumentos uma ideia de que a vida começava na concepção e que, portanto, o uso
dos embriões para a produção de células-tronco feria preceitos fundamentais garantidos pela
Constituição Brasileira, como a dignidade da pessoa e o direito à vida. Ambos os textos
fundamentaram-se em dados biológicos para garantir que o embrião extracorpóreo seria um
depositário dos direitos, garantindo assim sua dignidade enquanto pessoa. Assim, Luna afirma
28
que nos dois espaços em que a controvérsia foi performada figurou uma representação de
pessoa apenas como indivíduo, destacando o pressuposto já discutido por Almeida e Ferreira
(2010) que tais análises colocaram o prisma do individualismo como uma ideologia moderna
e presente em todo debate.
Deslocando o debate de tal pressuposto, o que se pode rastrear da controvérsia,
segundo Almeida e Pereira (2010: 11) é uma certa ideia a qual o embrião extracorpóreo seria
dotado de uma visível fractalidade. Neste sentido, no calor dos ânimos elevados pela poeira
não assentada da controvérsia, o embrião estaria envolvido num conjunto de vínculos
implicados que em um dado momento presta-se a uma definição que o considera um humano,
o que garante uma proteção por parte do Estado, ou em outros momentos apenas como um
conjunto de células que serão lançadas diretamente nas bancadas dos laboratórios Brasil afora.
Quando deslocado o debate em torno do embrião de uma concepção que o trata
em seu pressuposto como um indivíduo para uma noção que o redesenha em redes de
definições, o embrião extracorpóreo deixa de estar implicado nas variações dos discursos que
supostamente estão simplesmente baseados em uma ideologia moderna do individualismo, de
acordo com os discursos proferidos pelos atores que se posicionam na controvérsia, e passa a
ser compreendido ao largo pelas relações que são estabelecidas e que o redefine a todo
momento. Neste sentido, o embrião extracorpóreo para alguns dos cientistas que defendem a
constitucionalidade da Lei de Biossegurança é diferente em termos relacionais dos cientistas
que garantem que o artigo 5º da lei fere os princípios constitucionais e sua garantia como ser
humano. Ele pode ser o ator que vai posicionar o Brasil no ranking mundial dos países que
desenvolvem pesquisas biomédicas de alto nível. Vai estar envolvido nas redefinições do que
é ser paciente portador de doença degenerativa, inserindo expectativa e esperança em novas
relações. Noutras situações será o ente que já estabelece um contato intimo com o ser que o
abriga por nove meses (a mulher), através da troca de elementos químicos.
Em todo debate, segundo o deslocamento produzido por Almeida e Pereira, os
embriões extracorpóreos passíveis de serem utilizados nas bancadas para a produção de
células-tronco, têm seus limites e contornos negociados constantemente. No capítulo 4,
quando nos deteremos mais nos detalhes das apresentações, as fronteiras de tal embrião são
recolocadas a cada 15 minutos, espaço este dado entre uma apresentação e outra. Ainda que as
apresentações figurassem em mesmo bloco, favorável ou contrário, a negociação em torno das
29
definições apresentavam variações nítidas de relações implicadas que o embrião estabelece
com seus porta-vozes. Estas relações pouco deixam claras em quais aspectos o embrião está
implicado, se em termos culturais ou naturais. A oposição, neste sentido, pouca diferença
produz nas relações que são performadas pelos embriões, cientistas, pacientes, juristas e
atores envolvidos na controvérsia.
2.3 - Expertise em ação
A expertise passou a ser encarada como objeto de estudo entre autores dos estudos
sociais sobre a ciência e tecnologia (ESCT) a partir da percepção do envolvimento dos
cientistas em debates públicos relacionados as decisões sobre o uso e o impacto de
tecnologias no cotidiano das pessoas. Tais debates públicos em sua maioria estavam imersos
em controvérsias acerca do uso de tais tecnologias, controvérsias que extrapolavam os limites
laboratoriais e envolviam diversos atores em sua dinâmica de estabilização.
A expertise, à maneira dos autores dos ESCT, não assume um sentido
homogêneo. As abordagens foram diversas e procuraram tanto seguir um programa de
pesquisa relacionado ao Programa Forte de David Bloor (2009)5, como é o caso da
perspectiva de Collins e Evans (2002; 2010), até perspectivas que incialmente surgiram como
reação à concepção daqueles, sobre a terceira onda nos estudos sobre ciência e tecnologia.
Esta onda foi marcada pela criação de uma teoria normativa da expertise e da experiência na
ciência, e as suas críticas apontam para uma abordagem do problema da expertise em termos
de heterogeneidade de agenciamentos e pontualizações.
Parte dos argumentos em reação a teoria da expertise surge dos trabalhos de
Sheila Jasanoff (2003a; 2003b), Arie Tip (2003), Brian Wynne (2003), Anne Kerret al (2007).
5 O Programa Forte de David Bloor desenrolou um novo impulso nos estudos sociais sobre a ciência, retomando
alguns argumentos apresentados por Thomas Kuhn em seu livro: A estrutura das revoluções científicas. O
impulso do Programa, no entanto, se deu diante da ideia de simetria proposta por Bloor, ideia até então
marginalizada na sociologia do conhecimento do período. Em termos gerais a simetria proposta por Bloor
procurava tratar de maneira simétrica tanto os erros como os acertos da ciência. Até então, os sociólogos do
conhecimento procuravam apenas os fatores extracientíficos, sociais e psicológicos, para a explicação dos erros
na ciência. Os acertos pouco interessavam pois se tratavam de curso normal da racionalidade científica. Questão
que será ainda mais radicalizada com os estudos que sucederam o Programa Forte, como as etnografias dos
trabalhos científicos.
30
Além desses trabalhos, que discutem o argumento apresentado por Collins e Evans, nos
aproximaremos das perspectivas de Bruno Latour (2000; 2005); Michel Callon et al (2011) e
Sheila Jasanoff (2003a) que ajudam a pensar o argumento no qual a audiência pública em
discussão neste texto precisa ser entendida a partir da ação dos especialistas como uma forma
de estabilização de redes que envolvem diversos atores. Neste sentido, cabe menos considerar
que os discursos, tanto das ciências como do direito, estão ocupando espaços distintos e bem
delimitados na controvérsia. Trata-se de perceber como o próprio sistema legal (a questão
jurídica) tem tido um importante papel no desenvolvimento de uma percepção pública da
ciência e que o papel dessa não pode ser entendido sem uma vinculação com os seus diversos
trânsitos com o âmbito da justiça (JASANOFF, 1995).
Como sugere Jasanoff (1995), a lei não apenas interpreta os impactos sociais da
ciência e da tecnologia, mas também constrói regiões virtuais e materiais pelas quais tanto
uma como a outra passam a ter sentido, utilidade e peso nos processos e dinâmicas sociais. Os
limites que poderíamos sugerir para uma separação entre essas duas instituições acabam por
se revelarem frágeis diante de objetos e temas híbridos que exigem tanto da ciência como do
direito mobilizações a fim de produzir significados e sentidos para arranjos científicos
tecnológicos que não estão devidamente estabilizados, em termos de lei ou procedimentos de
pesquisa.
A audiência pública mobilizada em torno do uso dos embriões considerados
inviáveis insere-se nestes processos em que tanto a ciência como o regime jurídico precisam
estar distribuídos em espaços comuns no sentido de procurar novas formas de configuração
sobre essas novas entidades, frutos de desenvolvimento de tecnologias e pesquisa nas áreas
científicas. Neste sentido, o sistema jurídico não dispondo de uma legislação que discipline
essas tecnologias, a ciência precisa participar não apenas com o objetivo de legitimar seus
experimentos, como também fornecendo visões sobre tais tecnologias que ajudam a
conformar uma realidade sobre os experimentos, o andamento das pesquisas no país, as
possibilidades de tratamento. Estas visões se sustentam na medida em que os cientistas
trabalham produzindo fatos que reivindicam como verdadeiros assim como os trâmites
jurídicos também trabalham com regimes discursivos baseados numa autoridade presente na
lei. Este pressuposto está presente na audiência nas diversas intervenções feitas pelo ministro
relator, primeiro sobre a manifestação da plateia com palmas e, segundo, com a afirmação de
31
que a audiência tem caráter instrutório e por isso os cientistas não poderiam fazer afirmações
de cunho jurídico nem levantar ofensas aos cientistas que apresentaram argumentos
contrários.
2.4 - Autoridade científica e democracia liberal
A participação crescente dos especialistas em debates públicos gerou dois
problemas do ponto de vista teórico (TURNER, 2001). Os problemas da igualdade e da
neutralidade. O primeiro problema diz respeito às relações entre o fenômeno da expertise e o
princípio que sustenta as democracias liberais, segundo o qual todos têm igualdade nas
decisões políticas. Tal problema é colocado diante da relação desigual em que é situado o
envolvimento entre experts que detém um determinado conhecimento sobre uma controvérsia
e um público mais abrangente formado por pessoas não especializadas (lay-people). As
desigualdades pautadas com base no conhecimento provocariam uma assimetria da
participação no debate envolvendo as controvérsias, conferindo um poder que extrapola os
limites e a capacidade de participação dos cidadãos. Supõe-se, então, que o público não
dispõe de capacidade para compreender assuntos relacionados à ciência, e que por isso não
saberia inferir as consequências dos mesmos.
O outro problema gerado pela participação dos cientistas em debates públicos,
segundo Turner (2001), está relacionado ao privilégio concedido pelo Estado à figura do
especialista. Ao conferir um status privilegiado aos experts, o Estado estaria violando o
principio da neutralidade que fundamenta as democracias liberais, acentuando o argumento
segundo o qual os públicos não especializados pouco têm a contribuir em debates que
envolvem decisões sobre ciência e tecnologia. Caberia apenas aos especialistas a tarefa de
definir o que deve ser feito ou não, já que pouco conhecimento científico e especializado
detém os públicos não especializados. Esta “violação” do principio da neutralidade apresenta-
se na mediação que o Estado faz fornecendo investimentos na produção da ciência.
Estes dois problemas, quando colocados separadamente, poderiam ser resolvidos
pelos meandros da política. Com base na literatura que discute a popularização da ciência, a
solução estaria numa resposta sistêmica: a educação. Esta seria o caminho para resolver os
32
problemas relacionados à falta de compreensão do público não especializado sobre as
decisões que envolvem ciência e tecnologia.
O modelo do déficit (Wynne, 1993), muito difundido na literatura sobre a
popularização, preconizava que a simples exposição dos cidadãos aos conteúdos produzidos
pela ciência seria capaz de produzir um letramento sobre tais assuntos, tornando possível a
participação daqueles cidadãos em tais decisões. Tempos depois, alguns trabalhos, como os
desenvolvidos pelo próprio Wynne, mostraram que o modelo do déficit não pontuava a
maneira como os experts e o público leigo tinham leituras diferentes sobre os mesmos
problemas que emergiam das pesquisas científicas.
Ainda na direção do modelo do déficit, o conhecimento é tratado como algo que
pode ser quantificado e a questão passa a ser deslocada para a relação entre aqueles que o
possuem e os que não possuem. O conhecimento é tratado, neste caso, como um bem que
deve ser possuído. Para equilibrar a assimetria entre experts e públicos que não o possuem, o
Estado seria o provedor da produção de expertise e proporcionaria a popularização dos
conhecimentos produzidos pelos experts (TURNER, 2001: 124). No entanto, o problema pode
ser tratado apenas como uma questão de mudança de ponto de vista, e não como algo
quantitativo. Partindo desse suposto, a educação científica seria meramente uma propaganda
de um grupo limitado, o grupo dos experts. Deste modo, seria uma outra “violação” do
principio da neutralidade do Estado.
Se pensarmos ambos problemas articulados uma outra questão emerge: o público
estaria sob controle cultural e intelectual dos experts na medida que estes são a fonte de
produção de tal conhecimento e o público seria, desse modo, menos competente que os
experts nas tomadas de decisão sobre assuntos científicos e tecnológicos (TURNER, 2001:
125)6. Tal problema suscitado por Turner emerge da relação que os cientistas estabelecem na
criação do discurso científico e na criação de um discurso público sobre a ciência, justificando
o uso e apropriação social de tal discurso, todos eles baseados numa ideia de autoridade que
permeia a expertise.
6 If experts are the source of the public’s knowledge, and this knowledge is not essentially superior to unaided
public opinion, not genuinely expert, the ‘public’ itself is presently not merely less competent than the experts
but is more or less under the cultural or intellectual control of the experts. (TURNER, 2001: 125)
33
Este tipo de autoridade, que Turner chama de autoridade cognitiva, se manifesta
direta e indiretamente. A autoridade científica reveste muitas das decisões tomadas no
cotidiano da política, sem que nenhum cientista apareça para justificar os usos de argumentos
utilizados para tal decisão. Turner se baseia no argumento de Habermas segundo o qual o
mundo da vida em parte é fruto de controles externos operados por experts cuja maneira de
pensar é incompreensível para as tradições que são parte e ajudam a constituir o mundo da
vida. (TURNER, 2001: 128)7. Existiria um lapso cultural entre a compreensão que os públicos
têm da ciência e da expertise e o que acontece nos ambientes e espaços de produção da
expertise e a maneira como a mesma influencia o cotidiano das pessoas. A autoridade que
fundamenta as decisões a partir da ideia de “cultura expert” de Habermas não passa em
muitos casos por processos de legitimação democrática. O expert, neste sentido, não seria
aquele que temos um contato face a face, mas aquele que está imerso na dinâmica da
burocracia do Estado.
A maneira direta pela qual opera a autoridade científica baseia-se na persuasão do
contato direto que os cientistas estabelecem entre seus pares e o público não especializado. E
esta autoridade se reveste de um caráter corporativo, segundo Turner. O público julga os
cientistas como porta-vozes legítimos para falar sobre a ciência, quando eles falam sobre a
ciência. Este julgamento fundamenta-se na medida que o público percebe que os cientistas
falam em nome da Ciência. Este tipo de manifestação da autoridade também é construída
pelos meandros da legitimação democrática quando os cientistas submetem seus trabalhos
para obtenção de financiamentos, avaliação pelos pares, nas publicações e apresentações em
congressos. Nesta relação, a autoridade está relacionada aos critérios de validação pelo outro
que está envolvido na situação.
No interior das duas lógicas de autoridade exercida pelo expert, Turner (2001)
propõe a existência de cinco tipos de processos de legitimação que estão relacionados com a
construção de uma autoridade política. Estes, entretanto, tipos propostos por Turner não
tratam de uma classificação, segundo o próprio autor coloca, mas de perceber como se dão os
processos de legitimação e suas implicações políticas.
7 The life-world is the product, at least in part, of external controls, which he calls ‘steering mechanisms’,
operates by experts whose thinking is not comprehensible within the traditions that are partof, and help to
constitute, the life-world.
34
Os experts do tipo I apresentado por Turner (2001: 131) são aqueles que a
legitimação permeia todo o coletivo social e uma audiência limitada. Esta legitimação
acontece de uma maneira diferente a qual concebe uma leitura da expertise no sentido
colocado por Habermas. Ela tem sua garantia numa aceitação geral dos resultados práticos
que uma expertise proporciona. Tomemos como exemplo a questão da bomba atômica.
Qualquer indivíduo direta ou indiretamente sabe que tal bomba é produto das descobertas
feitas pelos físicos em seus laboratórios. Além de ter uma ampla aceitação, aqui no sentido de
percepção da origem das descobertas, a legitimação da autoridade dos físicos fundamenta-se
numa crença que os achados têm consequências que podem ser percebidas como fruto do
trabalho dos físicos. Estes reivindicam tal autoridade e a incorporam através da ideia de
comunidade dos físicos. Este tipo de expertise tem o seu processo de legitimação muito
parecido com os de aceitação e rejeição pelos quais passam a autoridade política.
O segundo tipo de expert apresentado por Turner são aqueles que apresentam uma
legitimidade decorrente de uma audiência restrita. Mesmo possuindo uma autoridade restrita,
os físicos são pensados como experts do tipo 1 por que seus achados extrapolam a esfera de
legitimação da audiência formada apenas pela comunidade científica dos físicos. Os experts
tipo 2 apenas possuem uma legitimidade aceita por uma audiência específica. O exemplo dos
teólogos, usado por Turner (2001: 131), que tem sua autoridade como especialista em leitura
de textos religiosos limitada a determinados grupos sociais. Tal tipo de legitimação da
autoridade está restrito e possui uma audiência que é pré-estabelecida, como o caso dos físicos
e sua comunidade.
Os experts do tipo 3 não possuem uma comunidade pré-estabelecida e seus
achados não são considerados como possuindo uma relação direta e causal com os seus
produtores. Tal tipo de expertise tem como característica a formação de uma audiência. Este
tipo de expertise é formada por pessoas que são pagas para performar algum tipo de serviço.
Fiquemos ainda com o exemplo de Turner. O massagista terapêutico é pago pelo
conhecimento que possui em massagem, e pelo exercício de tal conhecimento, mas o
pagamento está relacionado ao julgamento que os consumidores do serviço fazem da relação
entre o conhecimento e o efeito proporcionado pela terapia. O testemunho dos consumidores
permite que os terapeutas reivindiquem uma expertise em relação a uma audiência mais
aberta, mas ao mesmo tempo algumas pessoas não se beneficiam dos resultados alcançados
35
pela massagem terapêutica e não percebem, ou possuem uma crença, as suas promessas como
um tratamento. Por isso, Turner considera que os terapeutas massagistas criam uma audiência.
Um grupo de pessoas para as quais o terapeuta é um especialista que suas ações são
comprovadas na prestação do serviço.
Os dois tipos finais estão direta ou indiretamente relacionados com a atuação do
Estado. Esses experts são convocados a falar em nome de algo e usam a expertise na
esperança que suas perspectivas convençam um público mais amplo e assim conduzam-nos a
seguir certas escolhas diante de uma situação de definição política. Para Turner (2001), este
tipo desenvolveu-se no final do século XIX nos Estados Unidos a partir do desenvolvimento
de fundações e organizações que tinham como objetivo causas filantrópicas e ações de
mobilização coletiva. Tal tipo de expert falhou em muitos casos nos quais a expertise não foi
amplamente aceita como esperavam os seus fundadores.
O quinto tipo seria um desenvolvimento histórico do tipo 4 e está diretamente
relacionado a administração pública. São os experts que agem como consultores para assuntos
de interesse público, mas que raramente são vistos. As relações estabelecidas entre esses
técnicos para assuntos científicos, os gestores públicos e os diversos tipos de interesses
envolvidos nessas relações pouco são divulgados e explicitados, para Turner (2001:136).
Diversas decisões políticas são tomadas a partir dessas relações entre tais experts e os
gestores. Uma rápida observação do trâmite da lei de biossegurança no Congresso Nacional
amplia as associações que envolvem experts do tipo 5, pois em casos como das Células-
tronco, muitos experts foram solicitados a falar em espaços midiáticos a falar sobre a
controvérsia. (ver Cesarino, 2006).8
Mesmo que Turner trate do contexto americano, podemos perceber estes aspectos
relacionados à cultura política brasileira. O auxílio de experts em questões relacionadas à
elaboração de políticas públicas é visível, por exemplo, se considerarmos os trabalhos
desenvolvidos pelos cientistas no processo de discussão e elaboração da lei de biossegurança
no Congresso, bem descrito por Letícia Cesarino (2006). Neste sentido, os dois últimos tipos
apontados por Turner (2001) estão muito relacionados ao que ocorreu na audiência pública,
8 Cabe notar que este tipo de expertise é diferente da noção de expert cultures de Habermas. Os experts no
sentido de Habermas atuam muito mais na burocracia através de um poder discricionário, como descreve Turner
(2001: 141). Este suposto poder discricionário tem relação com a possibilidade que os experts têm de lançar mão
de uma forma de dominação de forma indireta, já que a burocracia parte do suposto que a autoridade exercida é
difusa, como já havia notado Max Weber em seus relatos sobre a dominação racional.
36
em que muitos dos cientistas presentes também fizeram parte de comissões no Congresso com
o objetivo de auxiliar os deputados e senadores na composição do texto da lei.
O quarto e quinto tipos de expertise, por terem apoio direto e indireto do Estado, e
se situarem no âmbito das decisões políticas são o que Turner (2001) julga mais
problemáticos no caminho de uma democracia liberal. Estes experts, no sentido da tipologia
de Turner, não passam por um controle de audiência de legitimação por parte de um público
ou de seus pares, perdendo assim seu caráter democrático9. Em nosso caso, as provocações
colocadas por Turner nos conduzem a pensar a participação desses experts e os limites que
são estabelecidos pelas próprias regras do jogo, seja ele no Congresso ou no Supremo. Sugere
também que pensemos o lugar de atuação e as interseções entre as esferas do direito e da
ciência, por isso os diversos elogios dos cientistas, sobretudo porque o caso que tratamos
neste texto foi o primeiro em que o Supremo Tribunal Federal convocou uma audiência para
discutir o tema. Mas ainda parecerá limitado considerar que a atuação dos cientistas foi de
considerável mobilização para os votos dos ministros, sendo apenas de caráter instrutório
como o ministro relator considerou em diversos momentos da audiência.
2.5 - Expertise, experiência e core set.
Collins e Evans (2002; 2010) passaram a tratar os experts do tipo 1, como dos
físicos no exemplo situado por Turner, como uma categoria analítica real e a partir disso
construíram uma tipologia de diferenciação de diversas expertises. Diferente de Turner, para
Collins e Evans se tratava de estabelecer diferenças reais, diria os autores que também
ontológicas, de tais expertises. Estas diferenças reais seriam fronteiras bem delimitadas de
ação dos cientistas, que deixariam claras os limites da participação de não experts em
questões envolvendo a ciência.
A tentativa de estabelecer uma teoria normativa da expertise e da experiência
conduziram os autores a criarem três categorias de expertise: não expertise, expertise
interacional e expertise contributiva. Ao elaborarem tais categorias, Collins e Evans passaram
9The fourth and fifth type present more serious problems. Both typically are subsidized by the state, indirectly
[…](TURNER, 2001:141)
37
a criticar diretamente os estudos sociais sobre a ciência, demarcando a proposta da teoria
normativa como a terceira onda em tais estudos. A terceira onda iria devolver o caráter
normativo retirado com as duas ondas anteriores.
As duas primeiras ondas10
dos estudos sobre a ciência, para Collins e Evans,
foram satisfatórias na resolução do problema de legitimação ao mostrarem que tal problema
seria resolvido com a ampliação das decisões envolvendo ciência e tecnologia além de um
núcleo de experts, provocando uma maior aceitação dos resultados práticos da ciência na
sociedade. A questão de partida colocada por eles é saber se a legitimidade política das
decisões técnicas no domínio público poderiam ser maximizadas apenas com referência a um
processo de debate democrático ou deveriam apenas ser baseadas sobre as melhores opiniões
especializadas?11
Por decisões politicas que envolvem ciência e tecnologia Collins e Evans
consideram as interseções em que ambas são de considerável relevância para o público e nas
quais tanto os especialistas como o público de uma maneira geral têm importantes
contribuições a fazer. A questão destina-se, assim, a entender até que ponto a participação do
público não especializado poderia se estender, não rompendo com a fronteira entre a expertise
e o conhecimento leigo. O problema de extensão, dessa maneira, pouco foi resolvido com os
trabalhos desenvolvidos pelos teóricos das primeira e segunda ondas. Especialmente os
sociólogos da segunda onda, ao mostrarem toda a amplitude de fatores sociais que interferem
nas produções científicas e como o conhecimento científico é semelhante a outras formas de
conhecimento, tornaram-se imprecisos sobre o que demarca tais fronteiras (COLLINS &
EVANS, 2002: 239).
Para resolver estes problemas deixados pelas duas primeiras ondas Collins e
Evans cunham a ideia de um núcleo duro (core set) formado no interior da comunidade
científica por cientistas que estão profundamente envolvidos em experimentos e teorizações
10
A primeira onda nos estudos de expertise foi formada pelos estudos que procuraram explicações para o
sucesso da ciência e a parir disso considerar conclusões sobre a manutenção desse sucesso. Com uma perspectiva
externa, tal onda tinha o sucesso da ciência como premissa, dado os avanços permitidos por ela na sociedade. A
autoridade exercida pelos experts pouco questionamento enfrentava em espaços públicos. É claro que este
momento vivido pela ciência foi marcado pelos avanços médicos e tecnológicos proporcionados por ela. A
segunda onda, também chamada de construcionismo social, apareceu na década de 60 como uma reação à
primeira, colocando o conhecimento científico em posições que seus privilégios epistemológicos fossem
questionados. 11
Should the political legitimacy of the technical decisions in the public domain be maximized by referring them
to the widest democratic processes, or should such decisions be based on the best expert advice?
38
que são diretamente relevantes para as controvérsias e debates sobre a ciência. Na audiência
pública, ambos os lados parecem desdobrar pesquisadores que, nas palavras de Collins e
Evans, formariam um core set na discussão sobre a liberação dos embriões. Eles estão
dispostos nas apresentações de uma maneira proposital com objetivos de proporcionar
impacto diante dos ministros e convidados presentes no certame da audiência (ver capítulo 4).
No entanto, uma observação mais detida da audiência, coloca as oposições em espaços que
dialogam em todos os âmbitos e revelam interseções. Este ponto é sugerido quando os
cientistas argumentam que pesquisar células-tronco embrionárias não anula as pesquisas com
as células-tronco adultas
As categorias de expertise elaboradas por Collins e Evans consideram uma escala
que parte do core set como centro de expertise e, à medida que se afasta, considera-se a
possibilidade de baixa ou ausência de expertise. O exemplo usado por Turner para demonstrar
a expertise do tipo 3, a teologia e astrologia, para Collins e Evans, conferem uma expertise
descontinua em relação ao núcleo duro da comunidade científica que está envolvida num
determinado debate, caracterizando assim, uma não-expertise. O fato de não ter tal expertise
produz uma razão para uma ausência de participação num debate de interesse público por
parte do cidadão.
Entretanto, a expertise de pessoas não certificadas (aquelas que não portam um
certificado ou diploma) pode ser considerada em alguns casos contínua. Wynne (1989) relatou
a experiência dos fazendeiros de carneiro que participaram ativamente das determinações de
medidas que foram tomadas pós-acidente de Chernobyl. Para Collins e Evans, este caso revela
que os criadores de carneiro, não possuindo certificações e diplomas, possuíam uma expertise
contributiva, pois contribuíram de maneira decisiva e mais precisa na determinação do tempo
para que o ambiente estivesse livre da contaminação provocada pelo acidente, elaborada pelos
técnicos do governo.
A terceira classificação proposta por Collins e Evans (2002), a expertise
interacional, é atribuída aos experts que dominam uma cultura linguística de um grupo social
ao qual não pertencem. Ao se conviver com determinados grupos de cientistas, certas
habilidades podem ser adquiridas ao ponto de tal indivíduo ser considerado expert na área por
uma outra pessoa que tenha pouco domínio da linguagem usada pelos cientistas da área de
estudo. Para sustentar o argumento os autores usam os exemplos dos jornalistas
39
especializados em coberturas da ciência, os meios de comunicação de validação pelos pares,
como revisão de projetos e pareceres, em que técnicos nem sempre formados numa área
avaliam projetos. Os métodos de pesquisa das ciências sociais também estão incluídos neste
tipo de expertise e Collins e Evans afirmam que muitos trabalhos elaborados na segunda onda
dos estudos sobre a ciência e tecnologia baseiam-se neste tipo de expertise, como a
experiência de Latour em A vida de laboratório (LATOUR, 1989; LAW, 2005).
O experimento proposto pelos autores para comprovar este tipo de expertise
procurou colocar dois experts, um com formação na própria área e outro com expertise
interacional, para serem avaliados por outro especialista experiente, e este deveria apontar
qual deles seria o “impostor” (aquele que não possui formação na área). A conclusão de
Collins e Evans é que o desempenho linguístico dos que são bem socializados na cultura
linguística de um grupo pouco, ou nada, se distingue daqueles que passaram por uma
formação prática na área. A habilidade que está em jogo nestes exemplos é a capacidade de
tradução que o expert que possui uma expertise interacional desenvolve. Esta habilidade, para
Collins e Evans (2002: 257), é fundamental para a participação em decisões que envolvem
assuntos científicos e tecnológicos. Como este tipo de especialista não é treinado na área ele
não perde sua condição de “leigo” e a capacidade de relação direta com o público não
especializado.
Collins e Evans (2002: 258) procuram estabelecer critérios de legitimação para as
participações em decisões que envolvem ciência e tecnologia e a partir dos tipos de expertises
demarcam duas possibilidades de julgamento. O primeiro tipo de julgamento diz respeito a
que tipo de experiências são relevantes para determinadas decisões. A segunda relaciona-se
com a capacidade de discrição. Saber distinguir as reais contribuições que um ator social
(expert) dispõe para a controvérsia em discussão. Seguindo os argumentos de Collins e Evans,
portanto, a não-expertise pouco poderia contribuir em debates públicos envolvendo ciência e
tecnologia. A categoria de não expertise seria então a ausência de um conhecimento
especializado capaz de tornar a ação de um ator social suficiente em determinada área de
conhecimento. Por isso, se um ator não possui nenhuma expertise que o habilite para
participar nos debates e questões públicas, de forma a contribuir ou manter a interação entre
os atores envolvidos na controvérsia, tal ator não deve participar de tais decisões técnicas.
40
Mesmo marcando distinções reais entre as expertises, diferente do que Turner
apresenta, Collins e Evans parecem ainda limitados quando tentamos pensar a questão da
participação dos experts na audiência pública envolvendo as células-tronco e os embriões no
Brasil. Se, por um lado, as categorias criadas pelos autores demarcam uma fronteira entre
aqueles que podem dizer e falar em nome da ciência e aqueles que não podem, pouco
podemos compreender quando a expertise científica está relacionada com um julgamento no
qual os atores que julgarão são, eles mesmos, leigos, na própria definição utilizada pelo então
presidente do Supremo Tribunal Federal, quando o assunto técnico em questão é uma
expertise em biomedicina, bioética, medicina e biologia celular. Estariam então os Ministros
do Supremo inabilitados a discutir qualquer questão que envolva o debate sobre a ciência?
Além disso, como o próprio Ministro relator do caso, caberia apenas aos experts exercer esta
possibilidade de participação no certame? E o que dizer sobre a possibilidade de participação
de outros atores que não representavam grupos de interesse.
Outra questão relevante que precisamos pontuar a respeito do trabalho de Collins
e Evans (2002) é um relativo retrocesso em relação a segunda onda. Mesmo que ambos
afirmem que em muitos casos sua teoria normativa da expertise e experiência tenha como
base os estudos de tal onda. Ao delimitar fronteiras entre os que podem ou não participar das
decisões técnicas, Collins e Evans acabam retomando premissas presentes nos estudos da
primeira onda. Basta lembrarmos que na primeira onda a ciência era tratada a partir de uma
perspectiva externalista, que considerava seu êxito como premissa, sobretudo pelo impacto
positivo produzido por ela durante as primeiras décadas do século 20.
A premissa da primeira onda retomada por Collins e Evans considerava então que
não havia espaço possível para uma crítica dos produtos criados pela ciência devido ao caráter
externalista dos trabalhos que envolveram tal onda. Não se tratava de perceber as produções
da ciência em seu making science (LATOUR, 2000), mas apenas avaliar os erros procurando
os fatores sociais e psicológicos que o tenham provocado, ponto este diagnosticado por Bloor
(2010).
Todos estes trabalhos alinhados com o que Collins e Evans chamam de primeira
onda consideravam apenas como materiais bons para pensar a ciência questões relacionadas à
valores, erros advindos de problemas sociais e individuais, falta de competência do cientista,
uso não racional dos resultados oferecidos pela Ciência. Revelam assim, uma dimensão de
41
crença no trabalho institucional da Ciência no mundo moderno. Os domínios permaneciam
delimitados segundo essas análises, pois só consideravam poucas zonas de interseção entre
elas.
Em certo sentido, ao delimitar as fronteiras do trabalho dos cientistas, os autores
colocam a possibilidade de avaliação da ciência apenas ser realizada por pares, delimitando
também fronteiras do que pertence ao social e ao campo da ciência12
. A dissolução dessas
fronteiras parece pouco interessar aos autores. Faço observar que a ausência de preocupação
com tal dissolução não torna o trabalho de Collins e Evans menos importante. Mesmo
colocando a questão do limite da participação nas decisões técnicas e respondê-la a partir de
restrições ao público formado por atores que não possuem expertise, fundamento de sua
noção de core set, os limites ainda parecem permanecer mesmo diante de uma descrição que
privilegie a dissolução das fronteiras entre públicos com autoridade para participar e outros
não.
Colocando dessa maneira, sugere-se que há uma defesa da extensão das decisões
para públicos que não estão diretamente envolvidos com a controvérsia. Neste sentido, a
questão colocada por Collins e Evans pouco tem haver com a capacidade e habilidade
adquiridas com um certo treinamento, mas com uma certa maneira de estar concernido com
questões ligadas à controvérsia. No caso das Células-tronco, elas concernem, afetam,
solicitam e mobilizam envolvimento de diversos atores que não apenas os especialistas. Estes
falam por elas, mas os pacientes são mobilizados em torno da possibilidade de tratamento (o
cientista Ricardo Ribeiro menciona o número de ligações que recebe de pessoas desejando
participar das fases experimentais em humanos). Sendo assim, a noção de core set empregada
por Collins e Evans (2002) apresenta tal limite relacionado à participação. A dimensão do
concernimento ficará mais clara na próxima seção, quando discutiremos as possibilidades de
participação e arregimentação de aliados e seus envolvimentos no debate.
2.6 – Expertise, participação pública e concernimento nos debates sobre a ciência e
tecnologia
12
The romantic and reckless extension of expertise has many well-known dangers – the public can be wrong.
(COLLINS & EVANS, 2002: 171)
42
Esta compreensão pode ser concebida a partir das críticas geradas pelo trabalho
dos autores (JASANOFF, 2002; WYNNE, 2002 RIP, 2003 e KERR, 2007). Um dos primeiros
pontos discutidos sobre a teoria normativa da expertise foi debatido por Wynne (2002), sobre
a participação do público nas decisões técnicas. Os limites estabelecidos pela teoria normativa
da expertise e experiência conduzem a um imaginário de aceitação não critica de um
cientificismo ocidental, segundo Wynne.
As instituições científicas há décadas têm reproduzido uma ideia segundo a qual
as suposições sobre as descobertas científicas como coisas que são “valiosas” e “seguras” são
causadas por uma ignorância do público na compreensão do conhecimento. O modelo do
déficit estaria no fundamento desta compreensão. A ideia de ignorância ou desconhecimento
nas refutações de propostas baseadas no conhecimento científico é um argumento que parece
flexível, para Wynne. Isto por que tal visão é crucial para a compreensão das falhas nas
políticas científicas em obter uma legitimação pública para seus argumentos baseados em
dados técnicos.
Os primeiros problemas relacionados a este modelo demonstram seu limite em
compreender o papel do público leigo nas questões que envolvem ciência e tecnologia, por
falta de evidências que relacionem a legitimidade das decisões técnicas e a visão do público
sobre tais decisões. Outro problema é a qualidade e a quantidade de conhecimentos que o
público leigo deveria obter para fazer parte das decisões. O modelo do déficit torna essas
questões limitadas e a relação que o público leigo estabelece com o conhecimento científico
pouco é debatida em termos políticos.
Se considerarmos as pesquisas sobre a compreensão dos conhecimentos
produzidos pela ciência, diz Wynne (1993), o público é considerado pouco capaz de
estabelecer relações causais entre questões epistemológicas e a produção do conhecimento.
Não se trata de um dado inerente ao público, mas uma certa inflexibilidade das construções da
ciência sobre o modo como o público lida com o conhecimento científico. Neste sentido,
Wynne discute a noção de reflexividade como uma capacidade de identificação, exame crítico
e suposições pré-analíticas que estão na base da construção do conhecimento cientifico,
diferente do sentido utilizado por David Blorr em seu Programa Forte para o qual a noção de
43
reflexividade estava relacionada ao emprego dos modelos explicativos dos estudos
sociológicos sobre a ciência deveriam ser aplicados à própria Sociologia do Conhecimento.
A capacidade reflexiva do público sobre o conhecimento científico tem sido
subestimado pelo modelo do déficit, que se revela mais uma compreensão com poucos
elementos empíricos sobre a relação que aquele estabelece com o conhecimento. Nos
desenhos metodológicos e pesquisas propostos por Wynne, o público se mostrou muito mais
reflexivo acerca dos conhecimentos produzidos pela ciência, se pensarmos sobre o caso dos
criadores de carneiro e a questão nuclear em Chernobyl.
Neste sentido, os estudos sociais sobre a ciência e a tecnologia mais alinhados à
segunda onda têm reiterado que os conhecimentos científicos são resultados de arranjos
sociotécnicos que em determinados momentos produzem pontualizações. Tal maneira de
conceber os conhecimentos científicos permite percebê-los também como possíveis de serem
desconstruídos. Para Sheila Jasanoff (2003), uma das críticas dos limites estabelecidos pela
teoria normativa da experiência e expertise, as desconstruções do conhecimento ocorrem nos
processos de participação pública nas decisões que envolvem a ciência e a política. Estes
conhecimentos passam a ser reelaborados por aqueles que não são os experts e dominam o
conhecimento em questão. Estas reelaborações podem encontrar respaldo tanto nas
racionalidades científicas como em outros tipos de racionalidade, como no nosso estudo aqui
proposto, o direito. Se considerarmos parte dos relatos dos Ministros em seus votos,
perceberemos como em muitas situações pouca referência há às apresentações dos cientistas.
Esta dimensão não explicita uma negação da autoridade e expertise científica em alguns
casos, mas em outros, como do voto do Ministro Lewandowski há uma declarada tentativa de
negar a possibilidade da ciência como um discurso que fecha as controvérsias.
Os limites entre a ciência e a sociedade, nessa perspectiva, pouco interessa para
Jasanoff (2003). E aqui adotamos a mesma premissa. Pareceu não haver um limite como
proposto por Collins e Evans ao enfatizarem a noção de core set nas decisões que envolvem a
ciência na medida que muitas questões colocadas por ela não poderiam ser respondidas
através dela, mas em sua ampliação e envolvimento nos debates por parte de públicos que
estão direta ou indiretamente implicados em seus resultados. Muitos arranjos sociotécnicos
modernos envolvem não-humanos e humanos com características híbridas que solicitam
participação e concernem a um público amplo, seja pelos seus resultados promissores, no caso
44
das células-tronco, ou por sua possibilidade de catástrofe eminente, como são tratadas as
tecnologias nucleares. O argumento de Jasanoff (2003) parte do suposto que este processo
implica em mais abertura do que fechamento para novas racionalidades. Os fazendeiros de
Wynne (1993) não eram especialistas portadores de diploma formados em instituições
certificadas. Conheciam aspectos locais que a prática possibilitou desenvolver.
A proposta de Jasanoff (2003) em tomar as relações entre ciência e participação
pública, bem como os argumentos apresentados por Bruno Latour (2000; 2005) e Michel
Callon (2010) ajudam-nos a pensar os dados da audiência pública sobre os usos de embriões
para obtenção de células-tronco. A região cinzenta (JASANOFF, 2002), formada pelas
relações entre a ciência e a participação de públicos mais heterogêneos nas decisões, e a
noção de fóruns híbridos proposta por Michel Callon et al. (2010) e as noções de porta-vozes
e formação de grupos, usadas por Bruno Latour (2000; 2005), colocam algumas questões
sobre a audiência pública. Frequentemente quando as questões colocadas pela ciência
apontam consequências como as células-tronco, fatos e valores revelam a linha tênue que os
separa no mundo moderno e a consequente proliferação dos híbridos pela prática da ciência
(LATOUR, 1989)
Como podemos, num primeiro momento, deslocar o debate sobre a audiência de
uma ideia colocada por Luna e Cesarino (2008), na qual o debate envolvendo o embrião seria
apenas o reflexo de uma ideologia moderna, quando baseiam-se no trabalho dumontiano
(1985)? A questão que se coloca diante dos dados é como pensar a ação dos cientistas e
ministros envolvidos no debate como pontualizações (LAW, 2005) de redes sociotécnicas
envolvidas na questão das células-tronco e embriões no Brasil. Tais pontualizações dizem
respeito mais as possibilidades engendradas e as diferenças sensíveis produzidas pelos atores
envolvidos na controvérsia e menos a uma leitura do debate apenas como uma alegoria de
uma ideologia moderna.
Os problemas gerados por temas que produzem incertezas como as Células-tronco
têm suscitado reflexões em torno do papel da expertise nas sociedades modernas. Ao
considerar que tanto os leigos quando os cientistas podem contribuir para o avanço em torno
destes temas, podemos levar em conta um ponto muito discutido por Jasanoff (1993) sobre a
ideia de contingência ou dependência em relação ao contexto. Ambos estão ligados à maneira
como a ciência não pode prescindir de um conjunto de fatores que envolvem as experiências
45
individuais e institucionais, e mesmo a maneira como a controvérsia está inserida em cenários
mais amplos, como a política científica do país. Basta considerarmos que as pesquisas com
células-tronco no país, antes mesmo de ser aprovada a lei de biossegurança, já dispunham de
um farto fundo de investimento estatal para a pesquisa, anunciado rapidamente após a votação
da lei.
Não podemos desprezar as dimensões e zonas pelas quais as instituições científica
e judiciária se interconectam no mundo moderno. Essas interações dispõem de um conjunto
complexo de arranjos que envolvem a participação dos cientistas como testemunhas
privilegiadas quando provas envolvem dados científicos; coloca-nos questões de como o
processo legal afeta a ciência de uma maneira que o oposto acontece de forma assimétrica.
Mais uma vez o posicionamento do Ministro Levandowski sobre o papel da ciência
demonstra a dinâmica. Outro aspecto relevante que trata esse texto tem relação com a
formação do consenso legal e o científico e o papel do cientista como testemunha em que
pode-se haver uma distinção clara entre decidir um caso e ajudar a confirmar os fatos do caso.
Está distinção fica clara na audiência quando o ministro relator pontua o lugar que os
cientistas ocupam na audiência. Tanto os caminhos percorridos pela ciência como os tramites
do judiciário, neste sentido, contribuem para a estabilização de entidades no mundo comum,
delimitando espaços de atuação e lançando no mundo atores que antes poderiam estar
circunscritos apenas ao ambiente do laboratório.
46
CAPÍTULO 03
Rastreando os percursos da ação direta de inconstitucionalidade 3510
47
3.1 - O Supremo Tribunal Federal e sua primeira audiência pública.
“A função essencial do STF é a guarda da Constituição Federal.” Este texto abre a
autodescrição que o Supremo Tribunal Federal apresenta nos documentos e em seu endereço
eletrônico13
. Diferentemente de outras instâncias do sistema judiciário brasileiro, o Supremo
apenas tem como objetivo salvaguardar os princípios transcritos na Constituição, contando
para isso com alguns dispositivos. Em sua competência cabe julgar a ação direta de
inconstitucionalidade de lei (ADIN); a ação declaratória de constitucionalidade (ADC), a
arguição de descumprimento de preceito fundamental (ADPF) decorrente da própria
Constituição e a extradição solicitada por Estado estrangeiro. Basta lembramos do caso de
Cesare Battisti. Cabe também ao STF julgar, na área penal, as infrações penais comuns do
Presidente da República, do Vice-Presidente, dos membros do Congresso Nacional, seus
próprios Ministros e o Procurador-Geral da República, concedendo a estes o foro privilegiado
de julgamento em casos de tais crimes. Além disso, outros tipos de julgamentos são
competidos ao Supremo, mediante grau de recurso, sendo eles o habeas corpus14
, o mandado
de segurança15
, o habeas data16
e o mandado de injunção17
decididos em única instância pelos
Tribunais Superiores.
Formado por duas turmas, cada uma composta por 5 Ministros, cabendo a essas
turmas todos os julgamentos, exceto a ação direta de inconstitucionalidade, que compete à
corte como um todo. Além das duas turmas, o Supremo é formado por quatro comissões,
13
Site do Supremo Tribunal Federal www.stf.gov.br 14
Habeas Corpus tem o objetivo de garantir os direitos de ir e vir dos indivíduos sempre que os mesmos tenham
sido feridos ilegalmente ou estão ameaçados. 15
Mandado de segurança concede-se sempre que há ferimento dos direitos que não são contemplados pelo
habeas data e habeas corpus. Está previsto na lei 12.106 de setembro de 2009, na qual se disciplina os mandados
de segurança individual e coletivo. 16
Habeas data trata-se de uma ação constitucional de proteção ao direito individual de informação e está previsto
no artigo 5º, inciso LXXII da Constituição. Parte-se do pressuposto que qualquer indivíduo que impetre (aquele
que aciona o judiciário) tenha acesso aos dados relacionados. 17
Mandado de Injunção também está previsto pelo artigo 5º da Constituição e diz respeito a uma consecução
sempre que a ausência de uma norma regulamentadora torne inviável o exercício dos direitos e liberdades
constitucionais, e das prerrogativas relacionadas à nacionalidade, a soberania e a cidadania.
48
organizadas de acordo com as atribuições e formada por três a quatro membros, todos
Ministros. As comissões são: jurisprudência18
, regimento19
, coordenação20
e documentação21
.
A denominação “Supremo Tribunal Federal” começou a ser usada no decreto nº
520 de 22 de junho de 1890, que lançava a Constituição provisória de 1890 e permaneceu no
decreto nº 848 de 11 de outubro que organizava a justiça federal brasileira ainda no mesmo
ano. Organizado formalmente em 1891 o Supremo passou a contar com 15 Ministros
escolhidos pelo presidente da república. Apenas em 1930, por força de decreto, o número de
Ministros foi reduzido para 11, configuração que, exceto durante o regime militar (que
aumentou o número de ministros para dezesseis) permanece até os dias atuais.
Sua organização atual conta com 11 Ministros indicados pelo Presidente da
Republica e submetidos à aprovação no Senado. Na composição de 2008, ano da audiência da
ADIN, faziam parte: Ellen Grace (presidente), Celso de Mello, Marco Aurélio, Gilmar
Mendes, Cezar Peluso, Ayres Britto, Joaquim Barbosa, Eros Grau, Ricardo Lewandowski,
Cármen Lúcia e Menezes Direito.
A Audiência Pública sobre o artigo 5º da lei de Biossegurança consagrou-se como
a primeira audiência realizada pelo Supremo. Mesmo com o dispositivo disponível em lei
desde 1999, o que permitia em teoria que em qualquer julgamento considerado de notória
relevância pública pudesse ser acionado uma audiência, o Supremo só realizou sua primeira
audiência nove anos mais tarde. Tal audiência não marcou apenas o inicio de uma sequência
de outras que foram acionadas para resolução de outras matérias. Marcou a inexperiência de
lidar com tais sessões diante da ausência, em regimento interno, de procedimentos que
regulassem e organizassem estes eventos.
Ao mesmo tempo, marca, para os Ministros que se manifestaram sobre o assunto,
um tempo em que o Supremo deixa de voltar-se para si e abre suas portas para a sociedade,
18
Comissão responsável pela seleção dos acordãos que vão ser publicados pela revista do STF, publicar resumos
das decisões e circular um boletim interno antes das publicações dos acordões e serviços de sistematização e
divulgação da jurisprudência do STF. 19
Comissão responsável por zelar e manter o regimento interno do STF atualizado de acordo com as solicitações
e exigências das outras comissões. 20
Comissão responsável por sugerir medidas destinadas a prevenir medidas discrepantes, aumentar o
desempenho das sessões e facilitar as tarefas dos advogados. 21
Comissão responsável pela orientação dos serviços de documentação e arquivamento dos processos, livros e
documentos do STF.
49
sugerindo o quão democrático o Supremo pode chegar a ser. Tal característica parecerá
contraditória e indicará caminhos e contornos que a controvérsia assumiu diante dos inúmeros
atores envolvidos na consolidação dessa tecnologia. O judiciário, ao passo que possibilita o
fluxo da ciência no sentido de legitimar seus achados e descobertas, limita-a determinando
suas fronteiras e maneiras de agir (JASANOFF,1995). Então, se por um lado alguns ministros
destacam a participação dos cientistas na audiência, outros apresentam desconfianças sobre o
papel da mesma no mundo moderno. De como a mesma se tornou um dogma em si. Três
ministros realizaram pronunciamentos em ambos sentidos. Vejamos as observações realizadas
pelos ministros.
O ato de julgar é antes de mais nada um grande exercício de
humildade intelectual. Por isso, o Supremo Tribunal Federal se reúne
para ouvir a opinião dos especialistas, acrescentar e aprofundar
conhecimentos, para que possa, ciente das limitações que são próprias
do ser humano, tentar encontrar a solução neste, como nos outros
casos (trecho da audiência pública - Ministra Ellen Grace)
Conforme realçou a Ministra Ellen Grace, o Supremo experimenta, no
dia de hoje, pela primeira vez, um mecanismo de democracia
participativa ou democracia direta, que é essa possibilidade de um
segmento, muito bem organizado, científico, da população contribuir
para a formatação de um julgado que lhe diz imediato respeito e
repercute na vida de toda a população. Metaforicamente, democracia é
isso mesmo, é prestigiar as bases, deslocando quem está na plateia,
habitualmente, para o palco das decisões coletivas. (trecho da
audiência – Carlos Ayres Brito)
Outro destaque ocorreu não na audiência, mas no voto do ministro Gilmar
Mendes,
O Supremo Tribunal Federal demonstra, com este julgamento, que
pode, sim, ser uma Casa do povo, tal qual o Parlamento. Um lugar
onde os diversos anseios sociais e o pluralismo político, ético e
religioso encontram guarida nos debates procedimental e
argumentativamente organizados em normas previamente
estabelecidas. As audiências públicas, nas quais são ouvidos os
expertos sobre a matéria em debate, a intervenção dos amici curiae,
com suas contribuições jurídica e socialmente relevantes, assim como
a intervenção do Ministério Público, como representante de toda a
sociedade perante o Tribunal, e das advocacias pública e privada, na
defesa de seus interesses, fazem desta Corte também um espaço
democrático. Um espaço aberto à reflexão e à argumentação jurídica e
moral, com ampla repercussão na coletividade e nas instituições
democráticas (trecho do voto de Gilmar Mendes)
50
Mas isto não ocorreu com outros ministros, alguns deles não fizeram referências
em seus textos sobre a atitude de convocação dos cientistas para audiência. Em outros casos,
como o do Ministro Eros Grau, houve uma relativa rejeição diante da iniciativa do Relator,
como podemos observar no próprio texto de voto do Ministro,
Forças sociais manifestaram-se intensamente - de modo mesmo
impertinente, algumas delas -em relação à matéria objeto da presente
ação direta de inconstitucionalidade. Estou convencido de que, ao
contrário do que se afirmou mais de uma vez, o debate instalado ao
redor do que dispõe a Lei n. 11.105 não opõe ciência e religião, porém
religião e religião. Alguns dos que assumem o lugar de quem fala e
diz pela Ciência são portadores de mais certezas do que os líderes
religiosos mais conspícuos. Portam-se, alguns deles, com arrogância
que nega a própria Ciência, como que supondo que todos, inclusive os
que cá estão, fossemos parvos. Como todas as academias de ciência
são favoráveis às pesquisas de que ora se cuida, já está decidido. Nada
mais teríamos nós a deliberar. Mesmo porque, a imaginar que as
impedíssemos, estaríamos a opor obstáculo à cura imediata de
doenças. A promessa é de que, declarada a constitucionalidade dos
preceitos ora sindicados, algumas semanas ou meses após todas as
curas serão logradas. Típica indução a erro mediante artifício retórico.
(trecho retirado do voto do Ministro Eros Grau, p.02)
A relação que os Ministros estabeleceram com a audiência não pode ser analisada
com profundidade a partir das exposições dos cientistas. Muitos deles não compareceram à
sessão para as exposições. Outros acompanharam à distância o julgamento e encaminharam
questões. No entanto, cabe ressaltar a maneira como a audiência foi destacada por ambas as
partes envolvidas, ministros e cientistas, muitos deles acentuando a importância da audiência
e a abertura do Supremo para escutar a comunidade científica, que em alguns discursos
marcavam o lugar da representação de grupos sociais e organizações como associação de
pacientes, hospitais, centros universitários e grupos de pesquisa distribuídos pelo país.
Depois da realização da primeira audiência pública no Supremo, outras foram
convocadas. Um ano mais tarde, em junho de 2008, a Ministra Cármen Lúcia convocara
audiência em torno do ADPF/10122
, que envolvia as questões ambientais relacionadas à
22
Arguição de descumprimento de preceito fundamental
51
importação de pneus usados. Outra audiência foi convocada pelo Ministro Marco Aurélio
Mello para discutir sobre a ADPF/54, que tratou do aborto de anencéfalo.
Já em 2009 o então presidente, Ministro Gilmar Mendes, convocou outra
audiência para tratar do Sistema Único de Saúde. O objetivo da audiência foi o de coletar
subsídios para o julgamento de vários processos relacionados à distribuição de medicamentos,
suplementos alimentares, próteses, criação de vagas em UTIs e a realização de cirurgias.
Em 2010 foi convocada e realizada outra audiência pública, dessa vez para tratar
das cotas raciais. O relator Ricardo Lewandowski pronunciou-se destacando a importância do
tema para a sociedade brasileira e para as politicas públicas que visam diminuir a
desigualdade e acesso ao ensino superior no Brasil. No ano de 2012 já foram realizadas duas
audiências. Sobre o caso do uso de produtos contendo Amianto em todo território de São
Paulo (ADIN 3937) e a proibição de venda de bebidas alcoólicas em rodovias e estradas
brasileiras, pela Lei Seca (ADIN 4103)23
.
Aqui não trataremos em detalhes de todas as audiências realizadas pelo Supremo.
Porém, há de se perguntar os motivos pelos quais até a audiência sobre o uso de embriões
para pesquisas com células-tronco a Corte não tenha usado tal mecanismo previsto na lei que
regulamenta as ADINs, ADPFs e outros dispositivos usados pelo Supremo para julgar
matérias em relação com a Constituição. E porque logo depois da audiência sobre as células-
tronco tornou-se comum o uso do dispositivo pelo Supremo. De todo modo, destaco que estes
aspectos que envolvem os trâmites do sistema judiciário poderão ser mais detidamente
informados a partir da literatura jurídica que desenvolveu o tema com mais detalhes.
23
Disponível em http://www.stf.jus.br/portal/peticaoInicial/pesquisarPeticaoInicial.asp acesso em junho 20 de
2012.
52
3.2 - Passos para ação direta de inconstitucionalidade 3510
Quando, em 1998, a equipe do Professor James A. Thompson24
, da universidade
de Wisconsin, nos Estados Unidos, publicou o pioneiro trabalho mostrando os resultados com
o isolamento de células-tronco embrionárias, o mundo, ali, começara a assistir uma jornada
das biotecnologias que marcaria toda a primeira década do século XXI. Depois dele, diversas
pesquisas foram produzidas em diversos países, conduzindo a uma reflexão que extrapolaria
os limites dos laboratórios onde eram desenvolvidas. Quando divulgados os resultados
naquele ano, as células-tronco não eram meros atores desconhecidos da comunidade
científica. Estudos com células-tronco vinham sendo desenvolvidos desde o final da década
de 60 com pesquisas voltadas para o seu uso em transplantes de medula óssea. A novidade
residia não no uso das células-tronco adultas, estabilizadas em diversas práticas médicas e de
pesquisa, mas no uso de embriões para a obtenção de linhagens de célula.
O problema do embrião não parece ter sido levantado exclusivamente pelas
células-tronco embrionárias. Durante a década de oitenta um amplo debate mobilizou o
Parlamento Britânico em torno de um novo estatuto para o embrião emergente das novas
tecnologias de reprodução assistida (MULKAY, 1995; SALEM, 1997). Na controvérsia
venceu o pré-embrião, tendo como marco o décimo quarto dia, marcado pelo aparecimento do
sistema nervoso central.
Assim como o surgimento do embrião extra corporal exigiu esforços de definição
de seu estatuto em si mesmo e a hierarquização dos interesses e direitos relacionados a ele e a
mulher que o abriga (SALEM, 1997), o uso de embriões para a obtenção de linhagens de
células-tronco embrionárias desencadeou e reacendeu uma série questões éticas, morais,
políticas e controvérsias sobre a definição do que seria o início da vida nos países em que as
pesquisas prosseguiam. Não apenas a definição do início da vida entrou em jogo como
também uma série de questões que envolviam desde o desenvolvimento do país até o descarte
automático dos embriões excedentes nas clínicas. As fronteiras entre a ciência e a política já
24
Thomson, Itskovitz-Eldor, Shapiro et al. “Embryonic cell lines derived from human Blastocysts.Science no
282, 1998. Apesar de Tompson ter isolado as células-tronco embrionárias em 1998, outros trabalhos como dos
ingleses da Universidade de Cambridge Martin Evans e Matthwew Kaufman foram responsáveis pela geração da
primeira linhagem de células-tronco de embriões em camundongos.
53
não pareciam ser mais delimitadas e rígidas, assegurando à primeira o domínio do natural e à
segunda o domínio dos valores.
Em março de 2005 o Congresso Nacional aprovou o novo texto da Lei de
Biossegurança (11.105/2005)25
, encerrando provisoriamente uma controvérsia e abrindo outra
que já estava tomando espaço na mídia e nas agendas do próprio Congresso desde outubro de
2003, quando foi enviado o esboço do projeto de lei com objetivo de legislar sobre a matéria.
Inicialmente o projeto girava em torno das discussões sobre os organismos
geneticamente modificados, diante da grande repercussão da soja geneticamente modificada
plantada no Rio Grande do Sul desde o final da década de 90. Não figurava no texto da lei
pontos que tratavam diretamente da questão dos embriões extranumerários e a possibilidade
de uso dos mesmos para obtenção de células-tronco embrionárias (CTEs). Só num segundo
momento as pressões pela liberação das pesquisas envolvendo as CTEs ganharam forma,
sendo incorporado através do artigo 5º, que legislava sobre o uso dos embriões acima
mencionados.
Mesmo com os arranjos no Senado as duas matérias, as CTEs e os OGMs foram
para a Câmara dos Deputados em um único texto. A aprovação de nova lei de Biossegurança
em 2005 incorporou em seu texto o artigo 5º, que autorizava o uso dos embriões
supranumerários ou inviáveis para fins de pesquisa e terapia.
Art. 5º É permitida, para fins de pesquisa e terapia, a utilização de células-
tronco embrionárias obtidas de embriões humanos produzidos por fertilização
in vitro e não utilizados no respectivo procedimento, atendidas as seguintes
condições:
I – sejam embriões inviáveis; ou
II – sejam embriões congelados há 3 (três) anos ou mais, na data da publicação
desta Lei, ou que, já congelados na data da publicação desta Lei, depois de
completarem 3 (três) anos, contados a partir da data de congelamento.
§ 1o Em qualquer caso, é necessário o consentimento dos genitores.
§ 2o Instituições de pesquisa e serviços de saúde que realizem pesquisa ou
terapia com células-tronco embrionárias humanas deverão submeter seus
projetos à apreciação e aprovação dos respectivos comitês de ética em
pesquisa.
25
A lei de biossegurança tem com objetivo regulamentar as práticas relacionadas ao uso dos transgênicos e
células-tronco no Brasil.
54
§ 3o É vedada a comercialização do material biológico a que se refere este
artigo e sua prática implica o crime tipificado no art. 15 da Lei no 9.434, de 4
de fevereiro de 1997.
A Lei de Biossegurança, vigente na época e aprovada em 1995, não fazia
nenhuma menção aos embriões produzidos em laboratório, para fins de uso na Reprodução
assistida. Glaci Zancan, professora da Universidade Federal do Paraná e ex-presidenta da
Sociedade Brasileira de Pesquisa Científica (SBPC), que trabalhou na elaboração do texto do
projeto de lei em 2003, mediante solicitação do poder executivo, explicou que naquele
momento não havia conhecimento suficiente que permitisse vislumbrar a manipulação com
vistas a obtenção de células-tronco a partir dos embriões congelados nas clínicas de
fertilização. Afirmou, então, que a proibição ocorreu por falta de conhecimento disponível e,
subsequentemente, numa audiência no Senado, pontuou que as matérias (os transgênicos e as
células-tronco) tramitassem em textos separados, sugerindo que o texto sobre as células-
tronco fosse incluído no debate dos projetos de regulamentação da Reprodução Assistida
(CESARINO, 2006). A pesquisadora se referiu ao inciso IV do artigo 6º do projeto de lei
2.401/2003 que tinha como objetivo a produção, armazenamento ou manipulação de
embriões humanos destinados a servir como material biológico disponível.
Neste período, tramitava pela Câmara um projeto de lei sobre a Reprodução
Assistida (PL nº 1.184/2003)26
elaborado no mesmo ano do texto da primeira lei de
Biossegurança. No texto do projeto não fica explicito a possibilidade de armazenamento dos
embriões. No artigo 13 afirma-se que só poderá ser produzido e transferido para a mulher
apenas dois embriões. Também não apresenta clareza sobre a possibilidade de descarte dos
embriões, fazendo menção apenas aos gametas dos doadores, caso os mesmos decidam pelo
descarte. Outro ponto que o texto não menciona, e deixa passível de interpretação, está no
paragrafo dois do artigo 13: a redução embrionária27
. Por não haver uma legislação especifica
26
Este projeto de lei tramita no Congresso até os dias atuais. Quando realizei a ultima revisão dessa passagem do
texto tive a curiosidade de consultar o tramite do projeto no site da Câmara. Atualmente, a última atualização do
processo data de julho de 2012, o deputado João Campos recomendava uma audiência pública para
esclarecimentos sobre o projeto. Ver em:
http://www.camara.gov.br/proposicoesWeb/fichadetramitacao?idProposicao=118275 27
A prática de reprodução assistida considera que é preciso implantar vários embriões para que se obtenha êxito
no processo. Quando há nidação (fixação do óvulo fecundado na parede do endométrio) de mais de um embrião
a prática seguia o caminho da retirada, evitando assim riscos da gravidez múltipla. Não há nenhuma lei
específica que legisle sobre o tema. Havia apenas uma resolução, a mencionada no texto, sobre a qual se
55
à época os embriões extranumerários armazenados nas clínicas de fertilização in vitro (FIV)
deveriam ficar criopreservados até a decisão dos pais, pois uma resolução (nº 1.358/92)28
do
Conselho Federal de Medicina proibia o descarte dos embriões.
Não havia nenhuma indicação por parte dos Poderes Legislativo e Executivo em
regular mediante uma legislação específica (e ainda hoje não há tal legislação) o uso das
pesquisas com células-tronco. Diante dos desenvolvimentos das pesquisas no circuito
acadêmico internacional e com a preocupação de atraso em relação aos países que já estavam
desenvolvendo pesquisas com embriões, diversos grupos de pressão se organizaram em torno
da matéria, solicitando de tais poderes um posicionamento a respeito. Além dos grupos de
pressão formados por especialistas que já pesquisavam células-tronco adultas29
(CTa) e
empregavam com certos resultados positivos em tratamentos de doenças como cardiopatias
(doença de Chagas e insuficiência cardíaca), de doenças autoimunes como o Diabetes tipo 1,
além do Acidente vascular cerebral (AVC), havia grupos formados por pessoas que percebiam
no tratamento a esperança para a cura das doenças.
Diante da pressão exercida pelos grupos, um projeto de lei que inicialmente foi
elaborado para resolver o problema dos organismos geneticamente modificados ganhou status
de uma lei elaborada para liberar o uso de pesquisas com células-tronco embrionárias em boa
parte da opinião pública nacional. Internamente, o projeto não seguiu coeso nas duas matérias.
Tanto os organismos geneticamente modificados quanto as células-tronco embrionárias
mobilizaram atores que divergiam em opinião e estratégias. No caso das CTEs os arranjos
parlamentares mobilizaram a bancada “cristã” (evangélicos e católicos) em torno da retirada
dos artigos que liberavam as pesquisas com embriões. Em oposição estavam aqueles que
regulava os procedimentos de reprodução assistida. Nesta resolução, havia uma menção ao número máximo de
embriões que poderia ser implantado, um total de quatro. Esta resolução foi revogada e outra, CFMnº
1.957/2010, mudou o teor da limitação de embriões propondo uma gradação: a) mulheres com até 35 anos: até
dois embriões); b) mulheres entre 36 e 39 anos: até três embriões; c) mulheres com 40 anos ou mais: até quatro
embriões, baseado na possibilidade de sucesso no processo de nidação dos embriões. 28
Foi substituída pela resolução CFM nº 1.957/2010. 29
Desde as primeiras publicações especializadas sobre as células-tronco e suas possibilidades que podemos
observar um espaço aberto para o desenvolvimento de uma controvérsia. Essas células possuem várias
aplicações no campo da pesquisa básica, desde o entendimento do desenvolvimento biológico humano até a
viabilidade terapêutica de alguns medicamentos. O uso mais controverso está na terapia gênica, quando elas são
utilizadas como vetores na modificação de outras células do corpo. Elas são classificadas como: totipotentes,
capazes de diferenciação em qualquer tecido dos 216 do corpo humano; pluripotentes ou multipotentes,
capazes de se diferenciarem em quase todos os tecidos; as oligopotentes, capazes apenas de diferenciação em
poucos tecidos e as onipotentes, que se diferenciam apenas em um tecido. Os dois primeiros tipos são apenas
encontrados nos embriões, as totipotentes entre o terceiro e quarto dias, enquanto as pluripotentes surgem no
interior do embrião quando este atinge a fase de blastocisto.
56
desejavam a liberação. A controvérsia no parlamento mobilizou estes dois blocos, mas não se
limitou a eles. Outros atores foram mobilizados em torno do projeto e envolveu as associações
de pacientes diretamente interessados nos futuros tratamentos e os porta-vozes das inúmeras
pesquisas que envolviam estudos com células-tronco, os especialistas.
Em meados de 2004 foi retirado do texto do projeto de lei, depois de amplas
modificações feitas pelas tramitações e audiências públicas realizadas na Câmara dos
Deputados, o artigo que proibia a produção e o armazenamento de embriões sob declaração de
que limitava a pesquisa com células-tronco embrionárias no país. Ao passo que o dispositivo
que substituía não explicitava o que poderia ou não ser feito, possibilitando assim que
embriões fossem produzidos para os fins de pesquisa, tanto pela FIV como pelos
procedimentos de clonagem disponíveis na época (CESARINO, 2006).
Com todos os holofotes e microfones da opinião pública direcionados ainda para a
matéria dos organismos geneticamente modificados, os pontos relacionados à liberação das
pesquisas com embriões foi meticulosamente recuperado pela bancada cristã, ameaçando o
governo tanto na oposição em votações próximas como utilizando do argumento que a
opinião da bancada expressava a vontade de boa parte da população brasileira.
As articulações fizeram com que o relator Renildo Calheiros, a fim de aprovar o
texto de seu Parecer sem muito debate, pois foi apresentado como uma contraproposta ao
texto de Aldo Rebelo30
, incluísse novamente o dispositivo que proibia a produção de embriões
para fins de pesquisa, além de criminalizar a prática. O que agradou as bancadas católica e
evangélica na Câmara. Desde então, a matéria que envolvia as células-tronco passou a ocupar
o cenário da opinião pública brasileira, ultrapassando os transgênicos e agendando a pauta do
Congresso Nacional. Este deslocamento indicou caminhos da controvérsia relacionados à
posição estratégica que os transgênicos ocupam no cenário nacional. O lobby pela aprovação
da lei que autorizava e disciplinava o uso dos organismos exerceu pressão sobretudo
envolvendo a bancada ruralista e empresas com capital direto na produção de sementes
transgênicas. Neste sentido, a inclusão do texto sobre as células-tronco pareceu uma saída
30
No dia da votação não se sabia ao certo qual texto seria votado. Se o texto de Aldo Rebelo, já apresentado e
amplamente apoiado por setores do governo e da oposição, ou seria o texto Parecer de Renildo Calheiros,
articulado na sessão com o objetivo de ser votado. Na sessão ambos foram encaminhados para votação depois de
mais de 2 horas de atraso.
57
para aprovação dos itens do texto que diziam respeito à produção dos organismos
geneticamente modificados.
Aprovado e encaminhado para o Senado o texto passou por um amplo debate que
incluiu mais algumas comissões e audiências públicas com representantes de organizações da
sociedade civil. Das comissões e audiências elaboradas, apenas uma tratava diretamente das
células-tronco embrionárias e envolviam os especialistas: Maiana Zatz (Diretora do Centro de
Estudos do Genoma Humano da USP); a professora Patrícia Pranke (UFRGS); André Soares
(professor de Bioética da PUC/SP); Dráuzio Varella (Oncologista) e Marco Antônio Zago
(Diretor científico do Hemocentro da USP). Desses, Maiana Zatz, Patrícia Pranke e Marco
Antônio Zago participaram também da audiência pública da ADIN 3510, no bloco dos
cientistas favoráveis às pesquisas. Neste momento os especialistas se posicionaram sobre a
questão e defenderam a liberação das pesquisas, que não deixaram de mencionar a sua
conquista na audiência, basta vermos no capítulo quatro o depoimento de Zatz durante sua
exposição.
No Senado intensificou-se o debate em torno da separação dos temas,
transgênicos e células-tronco embrionárias, que até então figuravam no mesmo texto. Alguns
deputados defenderam a prerrogativa legal que nenhum projeto de lei pode tratar de dois
assuntos e outros defenderam que as duas matérias poderiam fazer parte de um único texto,
argumentando que apenas deveria ser mencionados no primeiro artigo da lei (CESARINO,
2006).
Os substitutivos elaborados para a matéria células-tronco mudou diversos pontos.
Entre os que foram modificados estavam a permissão da clonagem terapêutica como técnica
de obtenção de células-tronco para fins de tratamento; utilização dos embriões armazenados
nas clínicas de fertilização in vitro que tivessem no máximo 5 dias e que não fossem
utilizados nos procedimentos e autorizados pelos genitores, além de criminalizar a prática de
venda desse material. Ainda foram utilizados de alguns recursos retóricos a fim de evitar
problemas conceituais como a substituição do termo “embriões humanos” por “conjunto
celulares embrionários humanos”, explicando se tratar de células e não um ser humano
formado ainda. Como afirma Cesarino (2006),
a inserção do blastocisto em uma nova categoria, diferente da de
“embrião” (como, por exemplo, a britânica “pré-embrião”), é uma das
58
estratégias dos lobbies pró-pesquisa em todo o mundo para convencer
os políticos a liberarem a pesquisa. No caso brasileiro, a mudança
incluída no parecer de Dias baseia-se em uma definição funcional das
células embrionárias, que, no entanto, é parcial: não se menciona que
tais “conjuntos celulares embrionários humanos” também podem
transformar-se num ser humano formado.
Na comissão de educação, onde ocorreu a audiência sobre as células-tronco, a
novidade foi a presença dos argumentos polarizados entre o lixo como o destino já usual dos
embriões ou a nobreza que envolve o uso para a pesquisa. O argumento provou-se útil diante
da celeuma formada em torno da definição do início da vida e apresentou-se como uma
tentativa de apaziguar os ânimos entre os cientistas e religiosos em torno da questão. Ao tratar
do tema nestes termos sugeriu-se que fossem destinados à pesquisa os embriões excedentes
produzidos nas clínicas de FIV, protelando assim o assunto já que os cientistas disporiam de
um material para início das pesquisas e deixando o aprofundamento da discussão para um
momento posterior, incluindo a necessidade de criação de uma Comissão Nacional de
Bioética (CESARINO, 2006).
O argumento da polaridade entre a pesquisa e o lixo adiou o debate sobre o uso
dos embriões ao convencer os senadores dedicados à questão das células-tronco31
, a
Confederação Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) e a Frente Parlamentar Evangélica
(FPE). Os pesquisadores que foram à audiência no Senado centralizaram suas argumentações
em torno do excessivo número de embriões disponíveis nas clínicas. Aceitaram os dados
disponibilizados pelos cientistas a respeito do número de embriões que possivelmente
estariam descartados nas clínicas de fertilização, cerca de 20 a 30 mil embriões. O que seria
suficiente para proporcionar material de pesquisa para os cinco anos posteriores à aprovação
da lei.
Mesmo com discursos de reprovação por parte de alguns parlamentares, a matéria
foi aprovada no Senado, procurando contemplar interesses nacionais relacionados ao
desenvolvimento das pesquisas. Tentando agradar os parlamentares evangélicos, fixou-se
como limite de uso os embriões congelados há mais de 3 anos, ou que completariam tal
período na data de aprovação da lei. Após a aprovação da lei um levantamento realizado pela
31
Esta especialização ocorreu por uma divisão dos trabalhos no Senado, ficando alguns senadores responsáveis
pela resolução da matéria. (para mais detalhes ver Cesarino, 2006)
59
Associação Brasileira de Reprodução Assistida mostrou que o número de embriões
disponíveis não passava dos 10 mil nas 15 maiores clínicas de reprodução do país, e desses
apenas 3 mil estavam congelados há mais de 3 anos (CESARINO, 2006).
Os dois pareceres sobre o texto que envolvia a matéria das células-tronco
debateram-se em torno da definição de alguns conceitos como a clonagem terapêutica32
. Os
embates na Câmara deixaram mal resolvidos o que seria tal técnica e coube ao Parecer do
Senador Suassuna uma dedicação ao tema, optando por sua supressão do texto. A medida
agradou a bancada evangélica, mas desagradou muito os interessados na manutenção da
definição no texto. O curioso neste caso é que meses depois veio à tona as redes que
sustentavam as técnicas e procedimentos envolvidos no que foi um dos maiores casos de
fraude na comunidade científica nos últimos anos, o caso Hwang. (SOUZA, 2011),
envolvendo a técnica de clonagem terapêutica. No texto, sugerido pelo Parecer de Suassuna,
ficou clara então a disposição em proibir tanto a clonagem terapêutica como a reprodutiva.
O retorno do texto à Câmara foi marcado pelo caráter de urgência em sua
aprovação. Não obstante o desejo de muitos deputados em colocar imediatamente em pauta as
matérias, o texto foi arquivado a espera de um melhor momento para a votação. O que tornou
a matéria passível de aguardar uma oportunidade para a aprovação foi a Medida Provisória
que permitia e legalizava a nova safra de soja transgênica no Sul do país. Com tal medida, o
texto pode esfriar nas gavetas até que pudesse ser mencionado novamente em votação. A
chegada do projeto na Câmara ocorreu ainda nos meses finais de 2004 e só tornou a se
apreciado para votação em março de 2005, período no qual ocorreu a sua aprovação na
mesma Casa.
Com os arranjos dos parlamentares, a pressão exercida por associações de
pacientes e a presença de muitos cientistas na votação, o texto foi votado em separado e
aprovado com ampla maioria, 366 a 59, a favor da manutenção do artigo 5º da lei. Os
argumentos apresentados insistiam na potencialidade dos tratamentos e no apelo aos
familiares e pessoas diretamente implicadas. Via-se pessoas, pais e mães, crianças em cadeira
32
A clonagem terapêutica é uma técnica associada a clonagem reprodutiva. Nesta, há a transferência do núcleo
de uma célula somática de um tecido, seja de animal ou humano, para um óvulo sem núcleo. Depois disso, o
óvulo é implantado, ocasionando assim a produção do clone. Na clonagem terapêutica a diferença está no uso
final do processo. Não há o implante no útero e o óvulo segue as fases de divisão e formação do blastocisto ainda
no laboratório, possibilitando assim o uso de suas células.
60
de rodas, artistas ilustres, levantando bandeiras e apoiando os votos favoráveis à manutenção
do artigo na lei. Os parlamentares evangélicos tentaram, mesmo com todos os arranjos feitos
anteriormente, marcar o posicionamento sobre o artigo da lei na plenária, exigindo práticas
presentes no regimento interno como a presença da bíblia na bancada até ameaças de punição
divina aos presentes (CESARINO, 2006).
Com a aprovação em separado da maioria dos artigos que envolviam os
transgênicos e as células-tronco coube ao executivo apenas fazer um acabamento superficial
no texto, mas sem substanciais mudanças no grosso do que foi aprovado. A lei de
biossegurança estava aprovada e a partir de então oferecendo parâmetros de ação em relação
às duas matérias.
Dois meses depois, mais exatamente no dia 30 de maio daquele ano, o que parecia
estar longe do clima acalorado dos debates em torno dos temas, voltou à tona, dessa vez não
pelo poder legislativo, mas mediante executivo, que acionou o judiciário. O que inicialmente
estava resolvido, neste momento tornou-se alvo de questionamentos por parte Procuradoria
Geral da República, através de seu procurador Claudio Fonteles.
Inicialmente o questionamento do artigo 5º da lei, que legislava o uso dos
embriões para fins de pesquisa, foi elaborado por meio da ADIN 3510, objeto de nosso
presente estudo. Aproximadamente 20 dias depois, o Procurador, Claudio Fonteles, acionou o
Supremo com uma Adin questionando mais 20 dispositivos da lei, envolvendo principalmente
as prerrogativas que a CTNBio33
tinha de decidir sobre questões envolvendo os transgênicos,
tema este que não trataremos aqui.
A Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADIN 3510-0) e a Campanha da
Fraternidade da CNBB34
foram duas mobilizações relacionadas diretamente com o
questionamento do artigo 5º da lei. Dentre as duas reações a Campanha teve um impacto
menor do ponto de vista de mobilização da opinião pública sobre a questão.
Já a primeira, a ADIN 3510-0, gerou uma forte mobilização da opinião pública e
foi proposta pela Procuradoria Geral da República, através do Procurador Cláudio Fonteles,
33
Comissão Técnica Nacional de Biossegurança 34
A Campanha da Fraternidade de 2008 considerou o tema: Fraternidade e defesa da vida. Em seu texto base a
Campanha declarou apoio às pesquisas com células-tronco adultas e criticou o uso de qualquer forma de vida
para fins utilitários como a pesquisa.
61
que entrou com ação no Ministério Público em 16 de maio de 2005 alegando a
inconstitucionalidade do artigo 5º da Lei de Biossegurança, entendendo que o artigo feria os
direitos e garantias fundamentais, a inviolabilidade do direito à vida e a preservação da
dignidade humana (LUNA, 2008). Para fundamentar a justificativa foi utilizada a tese na qual
os embriões precisariam ser destruídos para a extração das CTEs.
Logo que entrou com a Ação, o Procurador sugeriu ao relator Carlos Ayres Britto
que fosse convocada uma audiência pública com cientistas que representassem as duas partes
envolvidas na matéria, sendo metade destinado aos favoráveis à lei e a outra com
posicionamentos contrários ao artigo 5º da lei. O julgamento foi iniciado em março de 2007,
mas logo suspenso pelo pedido de vistas do processo pelo Ministro Menezes Direito e só foi
retomado em maio de 2008 com uma votação apertada de 6 a 5 favorável à
constitucionalidade da lei. Para a audiência pública foram convidados pesquisadores de
diversos centros de pesquisa e instituições federais e estaduais de ensino situados em algumas
cidades brasileiras como Salvador, Rio de Janeiro, São Paulo, Ribeirão Preto e Belo
Horizonte.
Desde 1999 instrumentos como a audiência pública são possibilitados em casos de
Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADIN) e Ação Declaratória de Constitucionalidade
(ADC). No entanto, e aqui figura uma das curiosidades deste tema, foi a primeira vez que o
Supremo Tribunal Federal (STF) dispôs deste dispositivo para análise da constitucionalidade
de um artigo de uma lei ou uma lei como um todo. O dispositivo prevê a convocação de
autoridades competentes numa determinada matéria para tratar de assuntos para os quais não
dispõem, os ministros, de suficientes informações que permitam julgar o tema.
Diferente do que aconteceu durante a tramitação da lei no Senado e na Câmara
dos Deputados, com a participação não apenas de cientistas, mas também de associações de
pacientes, representantes de clínicas de fertilização, a audiência da ADIN foi apenas uma ação
instrutória para o acúmulo de conhecimentos sobre o tema, sem possibilidade de manifestação
para os que apenas assistiam as apresentações.
62
3.3 - A ação direta de inconstitucionalidade 3510 e seus procedimentos
Com dissemos, depois de quase dois meses de votada a Lei de Biossegurança na
Câmara dos Deputados, o texto elaborado para dar conta das matérias envolvendo os
transgênicos e as células-tronco, volta a ser o centro das atenções na mídia e no judiciário. No
dia 30 de maio de 2005 o então Procurador Geral da República, Claudio Fonteles, impetrou
uma Ação Direta de Inconstitucionalidade, identificada como 3510-0, no Supremo Tribunal
Federal. O Objetivo da ação foi o de questionar o dispositivo do artigo 5º da lei de
Biossegurança, argumentando que foram inobservados o inciso III do artigo 1º e o artigo 5º da
Constituição Federal Brasileira, que garante o direito e a proteção a vida humana. Sua
fundamentação baseou-se no principio de que a vida humana começa com a fecundação.
Longe de oferecer apenas uma argumentação jurídica para a defesa da
inconstitucionalidade e a impetração da Ação, o Procurador Claudio Fonteles procurou
fundamentar sua petição baseando-se em argumentos científicos que permearão todo processo
da audiência pública, inclusive solicitando do Supremo a convocação do evento e indicando a
disponibilidade dos experts, ponto que trataremos com detalhes mais adiante. Sua
fundamentação levou em conta as considerações sobre o tema de quatro especialistas que
defenderam a fecundação como início da vida e mais um que defendeu os avanços obtidos
pelas células-tronco adultas35
. Dos cinco especialistas acionados pelo Procurador, três
compuseram o bloco dos pesquisadores contrários às pesquisas com embriões, como veremos
mais adiante.
A tese central desta petição afirma que a vida humana acontece na, e a
partir da, fecundação. [citando Dernival Brandão, sem data] ‘O
embrião é o ser humano na fase inicial de sua vida. É um ser humano
em virtude de sua constituição genética específica própria e de ser
gerado por um casal humano através de gametas humanos –
espermatozoide e óvulo. Compreende a fase de desenvolvimento que
vai desde a concepção, com a formação do zigoto na união dos
gametas, até completar a oitava semana de vida. Desde o primeiro
momento de sua existência esse novo ser já tem determinado as suas
características pessoais fundamentais como sexo, grupo sanguíneo, cor
da pele e dos olhos, etc. É o agente de seu próprio desenvolvimento,
35
Alice Teixeira Ferreira, Elizabeth Kipman Cerqueira, Dalton Luiz de Paula Ramos, Dernival Brandão e
Damian Garcia-Olmo.
63
coordenado de acordo com o seu próprio código genético. (Texto da
petição inicial da ADIN 3510)
Do ponto de vista do requerido, que neste caso era a Presidência da República,
coube a defesa da constitucionalidade baseada no princípio segundo o qual há dois valores
que a constituição ampara: o direito à saúde e o direito de livre expressão da atividade
científica. A mesma manifestação foi alinhada com a do segundo requerido, o Congresso
Nacional. Ambos se manifestaram também na sessão plenária anterior à votação dos
ministros. Diante das indagações levantadas pela petição coube ao Ministro Carlos Ayres
Britto atender a solicitação de realizar uma audiência pública para obter os esclarecimentos
necessários sobre o tema, como podemos observar na decisão monocrática exercida pelo
Ministro Relator.
(...) a matéria veiculada nesta ação se torna de saliente importância,
por suscitar numerosos questionamentos e múltiplos entendimentos a
respeito da tutela do direito à vida. Tudo a justificar a realização de
audiência pública, a teor do § 1º do artigo 9º da Lei nº 9.868/99.
Audiência que, além de subsidiar os Ministros deste Supremo
Tribunal Federal, também possibilitará uma maior participação da
sociedade civil no enfrentamento da controvérsia constitucional, o que
certamente legitimará ainda mais a decisão a ser tomada pelo Plenário
desta nossa Corte.
4. Esse o quadro, determino:
a) a realização de audiência pública, em data a ser oportunamente
fixada (§ 1º do art. 9º da Lei nº 9.868/99);
b) a intimação do autor para apresentação, no prazo de 15 (quinze)
dias, do endereço completo dos expertos relacionados às fls. 14;
c) a intimação dos requeridos e dos interessados para indicação, no
prazo de 15 (quinze) dias, de pessoas com autoridade e experiência na
matéria, a fim de que sejam ouvidas na precitada sessão pública.
Indicação, essa, que deverá ser acompanhada da qualificação completa
dos expertos.36
A Lei 9.868/99 que dispõe sobre os processos de ação direta de
inconstitucionalidade e ação declaratória de constitucionalidade. Especificamente o parágrafo
1º em seu artigo 9º afirma que em caso de necessidade de esclarecimento de matéria ou
36
Decisão publicada no Diário de Justiça da União em 01.02.2007
64
circunstancia de fato ou de notória insuficiência de informações existentes o Tribunal pode
solicitar por parte de peritos emissão de parecer sobre o assunto ou estabelecer datas para uma
audiência pública de instrução e recebimento de depoimentos. No entanto, o Supremo não tem
em seu regimento nenhum dispositivo que regule tal procedimento.
Apesar de na ADIN ter ocorrido a audiência pública como já indicava a petição de
Fonteles cabia ao relator Ayres Brito adotá-la ou não como procedimento de instrução na
decisão (pergunta: porque ele então resolveu manter?). Em sua explicação, o relator afirmou o
compromisso da audiência em possibilitar além de um maior subsídio para as decisões dos
ministros, uma maior participação da sociedade. Neste sentido, uma curiosidade sobre a
formação da audiência é que não houve apenas a solicitação de especialistas ligados às
organizações e associações de pesquisa e em defesa dos direitos de pacientes, como se tratava
da maioria presente.
Em 28 de novembro de 2005, o Ministro Ayres Britto, acatou o pedido do
Movimento em Prol da Vida (MOVITAE) para integrar o processo como amicus curiae37
. Em
breve decisão, o Relator considerou a importância da matéria e a representatividade da
interessada. Mais tarde, foram deferidas iguais participações ao Instituto de Bioética, Direitos
Humanos e Gênero (ANIS) e à Confederação Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB). As
entidades MOVITAE e a ANIS tornaram-se protagonistas da reivindicação pela liberdade de
pesquisa com células-tronco, posicionando-se pela constitucionalidade do art. 5º da lei de
biossegurança, em nome do direito à saúde e, por extensão, à própria vida. Diferentemente, a
CNBB acrescentou ingredientes religiosos à matéria, defendendo a inconstitucionalidade da
norma, em nome do direito à vida e da dignidade do embrião humano.
Como mencionei antes, não apenas representantes de organizações solicitaram a
participação na audiência. Uma pessoa de nome Reginaldo da Luz Ghisolfi requereu
participação como amicus curiae. No entanto, em 3 de maio de 2006, seu pedido foi
indeferido pelo Ministro Relator, precisamente por faltar a ele a representatividade necessária
para a intervenção como interessado. Embora o cidadão tenha sustentado ser um conhecedor
da matéria, portanto, passível de ser um argumentador, segundo requer o dispositivo da lei, o
37
Os Amicus Curiae(amigo da corte) é uma espécie de intervenção assistencial em processos que envolvem
constitucionalidade por parte de entidades interessadas e que têm representatividade para se manifestar durante o
processo. O curioso é que elas não são partes do processo e atuam apenas como interessados na causa em
questão. (ver mais detalhes no site do Supremo Tribunal Federal)
65
Relator, interpretando o art. 7º, § 2º, da Lei n. 9.868/99, não considerou suficiente a condição
individual do requerente, sendo necessária sua qualidade de representante de um grupo de
interesse (TORRONTEGUY, Marco; RAUPP, Luciane, 2008).
A convocação dos especialistas ocorreu pelo autor da petição, pelas partes
interessadas e pelos requeridos. A lista de especialistas sugerida pela petição inicial contou
com os nomes: Alice Teixeira Ferreira; Claudia Maria de Castro Batista; Eliane Elisa de
Souza e Azevedo; Elizabeth Kipman Cerqueira; Lilian Piñero Eça; Dalton Luiz de Paula
Ramos; Dernival da Silva Brandão; Herbeth Praxedes; Rogério Pazetti.
Nesta ocasião, mesmo com a possibilidade de envio simples pelo próprio autor da
petição, o relator solicitou que fossem enviados para os nomes os comunicados como convites
para os participantes. A ANIS (Instituto de Bioética, Direitos Humanos e Gênero) tentou a
indicação de especialistas por duas vezes antes de ter nomes sugeridos para a participação. A
organização só foi admitida como amicus curiae depois da emissão dos convites para os
especialistas indicados. A CNBB requereu também, após a emissão dos convites, a indicação
de dois especialistas para participação na audiência. Argumentos em diversas teses do direito
sugerem que se isso não tivesse ocorrido o número de participantes que solicitariam
participação como amicus curiae seria difícil de precisar, e portanto inviabilizaria a realização
da audiência.
O Supremo emitiu os convites, inicialmente para 17 especialistas indicados pela
presidência da república, pela mesa do congresso nacional e pela Procuradoria. Ao final
compareceram ao certame da audiência 22 especialistas.
O Bloco favorável à realização das pesquisas foi composto por: Mayana Zatz
(Coordenadora do Centro de Estudos do Genoma Humano da USP); Patrícia Helena Lucas
Pranke (Professora da UFRGS e representante do Ministério da Saúde); Lúcia Willadino
Braga (Presidente e Diretora da Rede de Hospital Sarah); Stevens Rehen (Presidente da
Sociedade Brasileira de Neurociências); Rosália Mendes Otero (Professora de Biofisica da
UFRJ); Júlio Voltarelli (Coordenador da Unidade de Transplante de Medula Óssea da USP);
Ricardo Ribeiro dos Santos (Pesquisador da Fiocruz); Lygia V. Pereira (Professor do Dep. De
genética e biologia da USP); Luiz Eugênio Araújo de Moraes Mello (Doutor em biologia
66
molecular); Antônio Carlos Campos de Carvalho (Doutor em biofísica UFRJ); Débora Diniz
(Diretora executiva da ANIS).
O Bloco contrário à realização das pesquisas foi formado por: Lenise Aparecida
Martins Garcia (Professora do Departamento de Biologia Celular da UNB); Cláudia Maria de
Castro Batista (PHD em Neurociências); Lilian Piñero Eça (Doutora em biologia molecular);
Alice Teixeira Ferreira (Professora de biologia celular e molecular da UNIFESP); Marcelo
Vaccari (Vice-presidente do Instituto de Pesquisa Células-tronco); Antônio José Eça (Médico
psiquiatra forense); Elizabeth Kipman Cerqueira (Coordenadora do Centro de Bioética
Jacareí/SP); Rodolfo Acatauassú Nunes (Doutor em Cirurgia Geral/UFRJ); Herberth Praxedes
(Coordenador do Comitê de ética da UFF); Dalton Luiz de Paula Ramos (Professor de
bioética da USP); Rogério Pazetti (Doutor em Ciências Faculdade de Medicina da USP).
Destes 22 especialistas4 não constavam da lista de convidados da relação
apresentada pela Procuradoria da República na petição inicial, nem do requerimento
apresentado pela CNBB. São eles: Lúcia Willadino Braga e Júlio Voltarelli, favoráveis às
pesquisas e Marcelo Vaccari e Antônio José Eça, contrários às pesquisas.
A forma como os especialistas foram indicados para participar da audiência
pública mereceu críticas de Cláudia Maria de Castro Batista, que integrou o bloco contrário às
pesquisas com células-tronco embrionárias humanas. Para a pesquisadora, a centralização da
escolha dos participantes e da organização do bloco expositor contrário às pesquisas nas mãos
da Procuradoria Geral da República resultou em um grupo menos ligado à área científica do
que aquele que era favorável às pesquisas com células-tronco embrionárias humanas. O
resultado, segundo a pesquisadora, foi uma disparidade muito grande na representação das
posições, que poderia ser minimizada caso fossem indicadas para compor o bloco contrário às
pesquisas pessoas mais preparadas, articuladas e envolvidas com pesquisa científica. Essa
possibilidade existiria, caso organizasse um grupo de pessoas do seu conhecimento, o que a
princípio, entendeu que ocorreria. (LIMA, 2008)
Não houve tempo também, por parte da Procuradoria, de organizar
uma coisa bem feita. Eu não vi isso. A princípio eu achei que eu iria
organizar e colocar pessoas que seguissem uma linha de pensamento e
acabou que foram pessoas que não se conheciam, de nada, eu não
conhecia ninguém do lado da Procuradoria e algumas prestaram
depoimentos que foram lamentáveis. [...] Teve um que era totalmente
fora da área acadêmica, científica. Eu não sei o que ele estava fazendo
67
lá, como ele foi parar lá, eu nunca tinha ouvido ele falar em público,
por isso, para mim, foi um choque. [...] E o outro lado estava muito
mais preparado, porque eram pessoas que, aí sim, eu conheço todo
mundo há muitos anos, são pessoas todas da área acadêmica, cientistas
e pesquisadores. Eu sabia o que cada um iria falar, iram apresentar
muito bem. Falam muito bem e têm uma linha coerente. Então ficou
uma coisa meio disparatada. (Claudia Batista, trecho da entrevista)
[...]
O Fonteles entrou em contato comigo, disse que haveria uma reunião,
eu fui e aí eu vi algumas pessoas, não todas, enfim, subentendi que eu
iria organizar a coisa, com um grupo do meu conhecimento. Mas aí eu
vi iriam só dois ou três, três pessoas além de mim que estavam
preparadas. Eram mal preparadas por não serem da área científica,
mais ligadas à área da saúde pública, não científica, com pesquisa em
si. Algumas tinham a melhor da boa vontade em defender o lado ético;
não tinham preparação para isso, eu acho que foi mais por aí: Pessoas
com muita boa vontade, sem preparação.”38
(Claudia Batista, trecho da
entrevista)
As mesmas críticas foram apontadas por Antônio Carlos Campos de Carvalho,
A primeira coisa que chama a atenção da gente é que os pesquisadores
que eram favoráveis, se você for olhar os currículos desses
pesquisadores, eles têm inúmeros trabalhos publicados, têm uma vida
acadêmica bastante ativa e são pesquisadores produtivos, que
publicam em revistas conceituadas internacionais indexadas e quanto
ao currículo do pessoal que estava falando contra, é uma pobreza
geral, na maioria dos casos. Com raras e honrosas exceções, a maioria
daquelas pessoas não tem nenhuma, digamos, tradição acadêmica,
nem história de pesquisa na área. Isso é o que contrasta. (trecho da
entrevista)
Além dos dois pesquisadores já mencionados, a pesquisadora Lygia Pereira
destacou a importância dos argumentos científicos na defesa do bloco contra as pesquisas. Os
pesquisadores revelaram-se limitados em suas defesas. Se observarmos, como detalharei mais
adiante, os vídeos da audiência, muitos dos apresentadores do bloco contrário às pesquisas
levavam um tempo de exposição bem menor se compararmos o tempo usado pelos
38
Os trechos dessas entrevistas estão disponíveis na pesquisa realizada por Rafael Scavone Bellem de Lima
(2008), sobre a organização e o aproveitamento da primeira audiência pública do Supremo para o Direito. Em
contato com o autor, solicitei cópias das entrevistas para tentar recompor a controvérsia. Em resposta, o mesmo
afirmou ter perdido as transcrições e gravações do material. A recomposição aqui baseia-se nos trechos que ele
publicou no trabalho, não sendo possível acessar outras partes das entrevistas. Os trechos aqui usados foram
importantes peças para a reconstrução dos rastros deixados pela audiência.
68
pesquisadores favoráveis às pesquisas. Além da variável tempo, as apresentações destacavam
pontos repetitivos entre os participantes. A questão genética e a vida a partir da fecundação
foram temas que perpassaram todas as apresentações do bloco contrário às pesquisas.
Veremos isso mais adiante no quadro comparativo dos tempos usados nas apresentações.
Agora o que foi pena é que eles [se refere à Procuradoria] chamaram
pessoas – enfim, as pessoas que eram contra, como não existe um
argumento científico contra as células tronco embrionárias, você pode
usar argumentos religiosos, esses têm que ser respeitados, agora não
existe um argumento científico, você não pode dizer que a célula
tronco adulta é melhor que a embrionária, que estava no texto da ação
de inconstitucionalidade. Então o pessoal que era do contra, usando os
argumentos científicos, eram muito fracos. Muito fracos. Mas enfim,
as partes, eles não acharam ninguém para falar do ponto de vista
científico, para ter argumentos contra. (Lygia Pereira, trecho da
entrevista)
Se confrontarmos as posições tanto de Claudia Maria com a da pesquisadora
Lygia Pereira percebemos que todo o arranjo desenvolvido para a audiência provocou um
certo desconforto aos membros do bloco contrário à pesquisa. Neste sentido, sugere que
poucos são os pesquisadores contrários envolvidos diretamente na controvérsia, como
podemos observar no comentário de Lygia Pereira,
[...] eu não conheço, a turma que estava lá que era do contra é o único
pessoal do contra que eu conheço, nesses anos todos de debate, a
gente vem debatendo isso no mínimo desde 2002. E são sempre
aquelas mesmas pessoas, eu não conheço nenhum outro membro da
comunidade científica que tenha se levantado para falar contra essas
pesquisas. Mas se existe, eu sinto muito que não pôde ter a sua
participação naquele evento.(trecho da entrevista)
3.4 - A disposição dos blocos
O relator do processo indicou a realização da Audiência apenas para o dia 24 de
abril de 2007 com uma duração prevista de 7 horas, entre 9 e 19 horas no auditório da
primeira turma do STF. Como não havia uma regulamentação no regimento interno do STF o
Relator acabou aplicando as normas disponíveis do Capítulo III do regimento interno da
69
Câmara dos Deputados39
, que disciplinam as audiências públicas. De acordo com tal
regimento cada expositor dispõe de um período de 20 minutos para apresentação. Para a
ADIN o tempo fixado pelo regimento não foi seguido, cabendo ao Relator a definição do
tempo para os participantes envolvidos na audiência. As apresentações não seguiram limites
bem definidos, variando entre os expositores.
O tempo da audiência foi dividido em dois blocos no turno matutino e dois blocos
no turno vespertino, respectivamente de 3 horas para o turno da manhã e 4 horas para o turno
da tarde. Pela manhã foram distribuídas 1 hora e meia para cada bloco de expositores. Pela
tarde o período correspondeu a 2 horas. Coube aos expositores dos blocos organizarem o
tempo das exposições de acordo com a disponibilidade dada.
A ordem de apresentação foi definida em sorteio e o início dos turnos se deu de
modo alternado entre os blocos. No período matutino os especialistas listados como
favoráveis às pesquisas iniciaram as apresentações. A ausência de normas claras sobre a
participação e organização de uma audiência pública no âmbito do STF tornou os argumentos
do Relator um ponto preponderante de organização das apresentações. A alternância entre os
blocos, contudo, não foi para acentuar o caráter antagônico dos conteúdos. O intuito não foi o
de promover o debate e a contraposição de ideias, como afirmou o Relator durante os breves
intervalos da audiência. As regras estabelecidas pelo Relator tiveram o intuito de evitar a
contraposição e proporcionar o que Ayres afirmou na abertura não se tratar de estabelecer um
contraditório, mas sim de um processo de coleta de dados para o futuro julgamento pelos
Ministros.
Apesar de transcorrido dentro das regras estabelecidas, nas quais o contraditório
não poderia ser exposto pelos especialistas, o Ministro Carlos Ayres Britto interviu nas
apresentações de dois participantes, Antônio José Eça e Herberth Praxedes, ambos do bloco
de pesquisadores contrários às pesquisas, solicitando que os mesmos evitassem o debate e o
confronto com as apresentações dos expositores favoráveis às pesquisas.
Primeiro na exposição de Antônio José Eça, quando o mesmo afirma,
Vamos gastar dinheiro com aventuras ética e tecnicamente
discutíveis? [...] Porque não se pensa, num país como o nosso, em
39
Regimento interno da Câmara dos deputados, artigos 256 e 257.
70
melhorar as condições de vida do povo, dando-lhe saneamento básico,
atendimento médico, exatamente o que falta a essas mulheres, isso se
estiverem preocupados com a mulher brasileira. [...]. Isso sim é saúde
pública, que deveria preocupar quem está querendo fazer alguma coisa
de bem para a mulher brasileira.40
Mais adiante com Herberth Praxedes,
A ciência é um método sistemático para se desenvolver e testar
hipóteses sobre o mundo físico. Não promete curas miraculosas com
provas inconsistentes – os Senhores viram hoje, desde de manhã até
agora, que é exatamente isso que os expositores que me antecederam
fizeram. Quando cientistas fazem tais asserções – de curas milagrosas
-, eles estão agindo individualmente, por suas convicções e esperanças
individuais, e não como a voz da ciência. Se tais cientistas permitem
que sua crença pessoal, no futuro da pesquisa com células-tronco
embrionárias humanas, seja interpretada como uma predição plausível
do resultado dessas pesquisas, eles estarão agindo
irresponsavelmente.41
Michael Mulkay e Nigel Gilbert (1982) observaram que em disputas envolvendo
diferentes teorias os cientistas constroem argumentos procurando o descrédito das explicações
apresentadas por cientistas com teorias opostas. Em muitos casos, não há argumentos
pautados na referência direta ao conteúdo das teorias. Quando parece haver uma certeza sobre
os conteúdos da teoria os argumentos são exclusivamente tratados como um fenômeno
cognitivo. Quando não há tais certezas e que os trabalhos apontam para possíveis erros,parece
haver a introdução de fatores sociais e psicológicos que distorcem o domínio cognitivo.
Este argumento desenvolvido por Mulkay e Gilbert (1982) também aparece no
Programa forte de David Bloor (2009) a partir da noção de simetria proposta pelo mesmo.
Tanto os argumentos de Eça como de Praxedes sugerem que os pesquisadores do bloco
contrário manuseiam informações e argumentos na direção apontada pelos autores42
.Não só
40
Trecho da audiência pública. 41
Trecho da audiência pública. 42
Whereas correct belief is portrayed as exclusively a congnitive phenomenon, as arising unproblematically out
of rational assessments of experimental evidence, incorrect belief is viewed as involving the intrusion of
distorting social and psychological factors into the cognitive domain. […] actors and beliefs generated in this
social network are extremely diverse and that the accounts offered by particular members appear to alter
significantly from occasion to another. (MULKAY, M; GILBERT,G.N. 1982, p.181)
71
os especialistas do bloco contrário à pesquisa mostraram como manusear os argumentos do
grupo em oposição. Os especialistas do bloco favorável às pesquisas construíram argumentos
que procuraram desprezar as posições do bloco contrário.
Existem várias coisas que são colocadas, por exemplo, que célula-
tronco embrionária tem potencial de produzir tumor. Isso é uma
falácia. Ela produz tumor quando colocada em um animal que tem
uma deficiência genética muito significante e, em altas doses de
célula, dará um tipo de tumor que vamos mostrar. Mas em condições
normais ela não produz.43
Mesmo afirmando no intervalo entre os blocos, ainda no primeiro turno, sobre o
clima amistoso e de respeito entre os expositores favoráveis à pesquisa, estes não fazendo
nenhuma menção aos argumentos dos especialistas do bloco contrário às pesquisas, não foi
possível ao Relator evitar que trechos das apresentações de expositores como Ricardo Ribeiro
dos Santos fizessem referências aos apresentadores do bloco contrário às pesquisas.
O mesmo aconteceu com o expositor Antônio José Eça, quando afirma que
alguém disse que a formação de tumores é falácia, não é. Está por aí para publicação, talvez
falte ler, há formação de tumores com célula embrionária [referindo-se à exposição de
Ricardo Ribeiro dos Santos].
Nas duas situações não houve intervenções do relator, desdobrando uma dimensão
das apresentações que escapam às definições usuais que remetem a argumentos contrários e
favoráveis. A intuitiva organização das exposições em dois blocos bem delimitados e com
objetivo de coleta de informações para os julgamentos dos magistrados não limitou as
referências com desqualificações moderadas entre os participantes. Tal modo de organização
inibiu em certa medida também uma pluralidade de manifestações que de alguma maneira não
se enquadravam nos blocos organizados. Como mencionei mais acima, apenas foi permitido
para audiência representantes de organizações sociais que estivessem diretamente envolvidas
com a questão tratada na audiência, que tinham interesse direto na questão das pesquisas com
células-tronco.
43
Trecho da audiência pública: exposição de Ricardo Ribeiro.
72
Os conteúdos das apresentações não foram fixados previamente pela Relatoria.
Coube aos blocos a melhor organização dos conteúdos e das exposições, incluindo a
administração do tempo. Afirmou o próprio relator no final do turno vespertino que não havia
nenhuma “predeterminação do tema”44
, desde que não tratasse de aportes jurídicos sobre o
assunto. O que seria tratado mais adiante na votação dos ministros.
Mesmo colocando que cabia aos expositores não ocuparem-se de comentários
jurídicos sobre a questão, alguns articularam intervenções que diziam respeito diretamente ao
Direito, como o Antônio José Eça.
Estou aqui como docente de Medicina Legal, para discutir até mesmo
os problemas legais que dizem respeito à área médica relativa a esse
problema. Claro que terei de misturar Medicina e legalidade, puxando
para o lado da Medicina [...] A minha especialidade é a Medicina
Legal e também, talvez, os eventuais problemas éticos que existam,
mas passa primordialmente – junto com o Professor Genival França,
um dos maiores médicos legistas do país – pela discussão sobre vida e
morte. Essa discussão passará pela consideração de que anteriormente,
os meios disponíveis pela Medicina Legal para precisar a morte,
principalmente quando surgiu o interesse pelos transplantes de órgãos
eram muito precários.45
Os comentários do Médico legista proporcionaram momentos de intervenção por
parte da Relatoria, reafirmando mais uma vez o propósito da audiência, no sentido de coletar
apenas informações úteis para os Ministros no momento do julgamento de mérito da questão.
Vossa Excelência, porém, poderá falar sobre o aspecto médico, que é de seu conhecimento, e
não fazer uma análise de dispositivos jurídicos.46
A reafirmação do Relator também ocorreu
no final do período matutino ao considerar que as apresentações foram louváveis em não
mencionar aspectos de cunho jurídico, pontuando que cabia aos ministros em outro momento
do processo.
Quero louvar, nos expositores, esse apego fiel e irrestrito ao tema da
exposição, sem descambar, por exemplo, para a área jurídica. Este não
é o momento de falar juridicamente, de fazer sustentação oral do
44
Trecho da audiência pública. 45
Trecho da audiência pública. 46
Trecho da audiência pública.
73
ponto de vista jurídico. Teremos uma audiência para isto, com
sustentações orais de parte a parte.47
Após conclusão das apresentações o Ministro Relator começou a solicitar dos
ministros presentes as perguntas para os expositores. Além disso, mencionou a importância do
evento para o judiciário brasileiro e elogiou as apresentações dos expositores. Em seguida,
afirmou ter ao menos 10 perguntas sobre o assunto que em sua maioria foi resolvida pelas
apresentações, só restando apenas três. As perguntas do Relator tocaram em aspectos
relevantes da discussão envolvendo as apresentações. Vejamos:
A primeira pergunta pode parecer aos Senhores sem importância, do
ponto de vista científico, mas para nós, do ponto de vista jurídico, é
importante em atenção ao Código Civil: Que é nascituro para as
ciências médicas e biológicas? É possível dar essa resposta? Essas
duas ciências trabalham com o termo nascituro? Há um conceito
médico e biológico de nascituro?
Segunda: Qual a importância médica e biológica do marco dos três
anos de congelamento? Porque a lei se refere, exatamente, a esse
período para o congelamento de embriões fertilizados in vitro?
Terceira, já houve um comentário lúcido, procedente, sobre o que vou
perguntar, mas eu queria uma retomada dessa resposta ou dessa
investigação. O que é mesmo embrião inviável? 48
As perguntas do Relator foram direcionadas para todos os membros dos dois
blocos, mas dizem respeito apenas a algumas dúvidas suscitadas por apresentações
específicas, sobretudo as relacionadas aos aspectos técnicos do desenvolvimento do embrião.
A expositora que tratou do tema foi Patrícia Pranke e a ela foi designada, por escolha do
próprio bloco dos favoráveis às pesquisas envolvendo os embriões supranumerários, elaborar
uma resposta, a qual será apresentada e discutida em capítulo adiante.
Além das perguntas do Relator, outros ministros participaram, mesmo à distância,
enviando outros questionamentos. É o caso do Ministro Ricardo Lewandowski e outro
questionamento enviado pelo gabinete do Ministro Eros Grau.
47
Trecho da audiência pública. 48
Trecho da audiência pública.
74
Tendo em vista que a legislação brasileira permite a fertilização in
vitro, qual a melhor destinação para os embriões extranumerários,
atualmente congelados nas clínicas de fertilização? [pergunta realizada
pelo Ministro Ricardo Lewandowski]
O grupo expôs a respeito das células germinativas. Porque tais células
não são amplamente utilizadas? Elas podem gerar resultados ou
resultar em doenças degenerativas? O alcance dessas células demanda
um procedimento de alto custo? [pergunta realizada pelo Ministro
Eros Grau].
Assim como foi para a organização do tempo de exposições o mesmo ocorreu
com a administração do tempo para as respostas. Não havia nenhuma regulação do uso e ficou
acordado, após uma pausa e conversas entre os expositores e Ministros, na própria sessão, que
cada bloco teria dez minutos para responder ao conjunto de questões apresentado pelos
Ministros. As questões sugeridas pelos ministros que não estavam presentes à sessão apenas
mencionavam o bloco 01, mas diante da incerteza de qual bloco deveria responder tais
questões, o Ministro Relator direcionou para ambos os blocos. O Ministro solicitou dos
participantes que mantivessem o espírito amistoso e de respeito que ocorreu durante as
exposições. A estes foi dado um período para organização das exposições de resposta. No
momento dessa organização foi solicitado por parte do Relator que argumentos de cunho
jurídico fossem deixados de lado pelo momento oportuno que os Ministros teriam para julgar
o mérito da questão. Nota-se que mesmo com tal solicitação o advogado Luis Roberto
Barroso se reuniu com os expositores do bloco favorável às pesquisas. Este advogado ainda
sustentou oralmente na sessão de julgamento de mérito argumentos favoráveis e em defesa
dos amici curiae que defendiam a constitucionalidade do dispositivo da lei de biossegurança
(LIMA, 2008).
Não há na audiência manifestações de crítica à ausência da maioria dos ministros
do STF. Apenas o Relator da questão Ministro Carlos Ayres Britto, a presidente do Supremo
à época, Ministra Ellen Gracie, que abriu a sessão de trabalho, além dos ministros Gilmar
Mendes e Joaquim Barbosa, estiveram presentes à sessão. Os outros Ministros não expuseram
motivos para ausência. Entretanto, o Relator afirmou em sessão que todas as apresentações e
depoimentos coletados seriam transcritos e gravados em vídeo, e futuramente disponibilizados
para os Ministros ausentes na audiência.
75
Não fica explicito na audiência a obrigatoriedade da presença dos Ministros na
sessão. O Ministro Ricardo Lewandowski acompanhou a audiência à distância, pois estava em
São Paulo. Não há como afirmar a partir da audiência que os outros Ministros acompanharam
à distância, como o fez Lewandowski. O Ministro Carlos Alberto procurou em momento
posterior à audiência os pesquisadores Claudia Maria de Castro Batista, Lygia Pereira e
Stevens Rehen para organizar visitas aos centros e laboratórios que desenvolviam as
pesquisas. Assim Claudia Batista o mencionou,
O Carlos Alberto Direito pediu para que eu organizasse a visita dele à
UFRJ. Eu falei: “Tudo bem, eu espero o senhor.” Ele conheceu vários
laboratórios, várias pessoas. Bom, ele é impressionantemente
inteligente. [...] Esse senhor, você não tem ideia de como ele
trabalhou, passou dias e dias inteiros em clínicas de fertilização, dias
inteiros querendo ver com os próprios olhos os protocolos de morte
encefálica, protocolos de todo o procedimento de fertilização in vitro,
protocolos de todas as pesquisas e projetos de pesquisas com células
tronco-adultas na universidade. (trecho da entrevista)
O mesmo com a pesquisadora Lygia Pereira, [...] ele chamou uma reunião, eu fui
ao gabinete dele, e conversamos, ele tinha uma série de perguntas técnicas, depois eles me
pediram referências por email, mandei uma quantidade enorme de material para eles. E foi
isso. (trecho da entrevista)
As observações realizadas pelos pesquisadores após a audiência demonstram que
o pedido de vistas do processo da audiência realizado pelo Ministro Carlos Alberto Menezes
Direito estava relacionado a falta de esclarecimento sobre as pesquisas que envolvem células-
tronco embrionárias. Não há, portanto, uma relação direta entre a ausência dos Ministros e a
possibilidade de pouco esclarecimento por parte da audiência pública (LIMA, 2008). Apesar
de apenas a presidente do Supremo à época e o relator do processo terem comparecido à
audiência e outros acompanharem à distância pelos instrumentos tecnológicos como a tv
justiça, não há indicações e manifestações nos votos dos ministros que a audiência não
forneceu material suficiente para o julgamento. Muitos deles, se acompanharmos os votos,
fizeram referência explícita às apresentações dos cientistas.
Os contornos que a audiência pública e a controvérsia assumiram no decorrer do
processo desde a votação da lei de biossegurança assumiram uma forma que pouco nos diz
76
sobre uma oposição entre dois blocos claramente delineados. Se em alguns momentos os
cientistas estavam alinhados com uma certa perspectiva que os colocavam em blocos
antagônicos, em outros essa oposição pouco parecia clara. Muitos defendiam claramente que
pesquisar com células-tronco embrionárias seria um avanço das pesquisas com tal técnica,
pois já pesquisavam com células-tronco adultas. Em outras situações afirmavam que as
pesquisas com CTa precisam ser mais desenvolvidas e que a justificativa para a pesquisas
com CTe não se sustenta pois as possibilidades não foram esgotadas. Todas as maneiras
tratadas pelos especialistas colocavam seus posicionamentos em relações que não se
excluíam, como a organização da audiência sugere inicialmente.
Outro aspecto a ser considerado foi o modo como a audiência foi organizada. Os
especialistas sugerem em seus relatos que os blocos não foram claramente organizados a
partir de critérios mais “justos” de preparação. Cientistas do bloco que se opôs a
constitucionalidade da lei em alguns momentos afirmaram a maneira precipitada como o
bloco foi formado. Consideraram que o outro bloco havia coerência nos argumentos e força
pelo currículo dos especialistas. Ao mesmo tempo afirmaram que os currículos dos
especialistas de seu grupo foram selecionados de maneira arbitrária e desorganizada, um dos
motivos para a ausência de uma articulação sistemática na defesa da inconstitucionalidade.
Outros aspectos relacionados à maneira como os argumentos e os recursos foram
mobilizados pelos especialistas e manuseados ou não pelos ministros serão tratados no
terceiro capítulo. Na próxima seção será discutido os pontos relacionados ao desenvolvimento
dos argumentos na audiência. Veremos como os argumentos transitam em torno da
transformação do embrião em um ser autônomo ou uma massa celular que precisa de um
destino nobre diferente do atual nas clínicas de fertilização in vitro. Estes dois pontos
preponderantes são acompanhados de aspectos secundários que fortalecem a controvérsia. A
questão do mercado como o principal interessado no desenvolvimento dessas técnicas. O
aspecto utilitário dado ao embrião, em detrimento de sua natureza humana. São pontos que
perpassam as apresentações dos cientistas durante a audiência. Trataremos com mais detalhes
estes pontos no próximo capítulo.
77
CAPÍTULO 04
Construindo (dis)cursos em oposição: mobilizando atores humanos e não-
humanos na audiência pública.
78
O nosso percurso pelo debate envolvendo as pesquisas com células-tronco no Brasil
desde a votação da Lei de Biossegurança até o julgamento da constitucionalidade do artigo
quinto da referida lei, fato este que ocasionou na primeira audiência pública do Supremo
Tribunal Federal, nos conduz neste momento para uma tentativa de traçar os fios através dos
quais os cientistas arregimentaram aliados em alguns momentos e abriram mão de alguns
deles, num processo contínuo de construção e reconstrução de definições e performances do
que é ser embrião e do que é pesquisas envolvendo células-tronco embrionárias e adultas; do
que é ser expert em algo que produz diferenças sensíveis em torno de novas entidades que
compõem o mundo em comum, mobilizando recursos técnicos, pessoais e emotivos.
Redefinições também dos enquadramentos que os cientistas usaram para explicar os usos de
embriões na obtenção de células, na formação e sustentação de grupos em torno da defesa de
argumentos favoráveis e contrários às pesquisas.
Não considerando como dada a vitória dos argumentos favoráveis à pesquisa, como
poderia sugerir uma interpretação que considera o peso das forças do mercado influenciando o
processo de decisão sobre a constitucionalidade da lei, cabe aqui entender que tais forças
compuseram o processo como ingredientes na circulação de definições e performances dos
cientistas. Em alguns casos, veremos mais adiante, o mercado foi relevante na formação de
rede de discursos; em outros, pouco peso ganhou. Por isso, aqui não seguiremos na tentativa
de mostrar que forças ocultas pareciam manipular e orientar os argumentos dos cientistas e
ministros envolvidos no debate. Alguns até revelaram essa dimensão da controvérsia,
pontuando os interesses de empresas de biotecnologia na continuidade das pesquisas. Antes,
procuramos perceber que foi através da ação dos cientistas na defesa de seus argumentos que
diversos atores foram mobilizados para o que Bruno Latour (1997) chamou de composição de
um mundo comum.
Seguindo os rastros deixados por nossos privilegiados informantes procuramos
compor uma ideia segunda a qual a ação dos cientistas pode ser compreendida como uma
pontualização (LAW, 2005) de uma série de redes sociotécnicas precárias compostas em
torno da manutenção das pesquisas, ou de sua proibição. Neste sentido, o que parece apenas
79
simples referências nos emaranhados de atores mobilizados que perpassam as ações dos
cientistas, aqui surgirá como recursos através dos quais as ações dos cientistas na audiência
foram concretizadas, realizadas e sustentadas enquanto posicionamentos dos blocos.
Neste capítulo, seguimos numa tentativa de organizar os dados empíricos da
audiência, as exposições dos cientistas, a partir de temas nos quais a mobilização de certos
atores surgiram como relevantes para os próprios cientistas. Diante disso, alguns temas são
indicados como caminho para a compreensão da controvérsia. A primeira pontualização diz
respeito ao modo como o embrião foi comparado, reprogramado, disposto nas apresentações
como uma massa celular.
A possibilidade de comparação do embrião como uma célula que pode ser
manuseada foi objeto de reflexão de alguns dos cientistas nas exposições e abriu o que até
então parecia ser uma caixa preta. Diante da possibilidade de manipulação que sua fabricação
fora do útero proporcionou, emergiram situações para as quais as práticas científicas
necessitaram de novas categorias, assim como o próprio campo do direito para classificar esse
novo ente que surgiu nas bancadas dos laboratórios. Definições como o pré-embrião
compõem os cenários dos favoráveis e contrários, seja para legitimar seu uso como fonte de
obtenção de células, seja para criticar, sugerindo-a como um limite artificial criado apenas
para justificar a manipulação dos embriões.
Outro caminho percorrido pelas cientistas tratou de considerar o embrião como algo
que na prática já sofre um processo de descarte. O uso de informações baseadas na dinâmica
das clínicas de fertilização fundamenta este ponto dos argumentos dos cientistas. O descarte
automático de parte dos embriões produzidos nas clínicas é sugerido como caminho aberto
para o seu uso nas pesquisas. A impossibilidade de implantação (demonstrada a partir de
dados estatísticos) desses embriões e a ausência de uma legislação que discipline a prática
foram colocados como espaços abertos para a aceitação inevitável de que os mesmos jamais
poderão continuar seu desenvolvimento. Os procedimentos clínicos de obtenção dos embriões
para a fertilização é que precisa ser colocado como problema, discute Patrícia Pranke, uma
das cientistas envolvidas com a audiência. A solução, para a cientista, aparece com a
possibilidade de doação para pesquisa, a partir do número efetivo de embriões disponíveis nas
clínicas.
80
A performance bioquímica dos embriões sugere um caminho no qual a suposta
necessidade do útero para o desenvolvimento parece não ser um aspecto central a ser
mobilizado. Os cientistas favoráveis às pesquisas mobilizaram o papel que a vinculação do
embrião ao útero tem para o desenvolvimento de um novo ser. Sem esta vinculação não há
desenvolvimento e, por isso, se torna difícil falar em aborto, como destaca Patrícia Pranke,
por exemplo. Ao mesmo tempo, este ponto é desenvolvido a partir do momento em que a
autonomia do embrião ganha forma como uma das pontualizações das apresentações. Nela,
uma série de atores até então invisíveis ganham marcadores florescentes e gráficos animados
que indicam os caminhos que as substâncias percorrem entre o embrião e o corpo de sua
genitora, sugerindo desde então o modo como o primeiro envia mensagens de preparação para
a segunda. Os cientistas contrários às pesquisas demonstraram com gráficos como os aspectos
químicos e biológicos, quando mapeados por marcadores, atuam no sentido de vincular o
embrião à mulher logo após a fecundação. O aspecto curioso dessas pontualizações está na
ausência de atores que mobilizem o embrião extracorpóreo, além daquele que desfaz a
associação direta entre uso para pesquisa e aborto. A ausência de atores mobilizados em torno
da relação do embrião extracorpóreo e a genitora nos discursos dos cientistas contrários
fortalece o argumento dos cientistas favoráveis pois só sustenta, ponto este colocado por um
dos cientistas, que precisa haver uma preparação do corpo da mulher para a implantação.
Por fim, as escolhas metodológicas tomadas neste capítulo levam em consideração
como os relatos dos cientistas mobilizaram uma série de atores diante dos três principais
temas selecionados para compor a escrita. Seguimos assim, trilhas desenhadas pelos próprios
cientistas nas apresentações de seus argumentos em defesa de suas pesquisas ou seus
embriões. Alguns ficaram de fora e a lógica de apresentação não foi seguida. Por isso,
parecerá em alguns momentos repetitiva a circulação dos cientistas entre os temas, o que
reforça uma discussão que apresentamos nos capítulos anteriores, na qual sugere que é mais
proveitoso pensar os cientistas envolvidos em debates que estão além da formação dos blocos.
Antes de agrupá-los em blocos e sugerir contornos nítidos da controvérsia, pareceu mais
interessante coloca-los diante de temas que mobilizam atores heterogêneos sobre a questão.
81
4.1 - O embrião como massa celular
A primeira estratégia foi deslocar o interesse pelo embrião colocando-o na condição
de uma massa celular. Em quatro das apresentações desenvolvidas pelos cientistas
considerados do bloco dos favoráveis, o embrião como massa celular assumiu contornos
diferentes à medida que se desenrolava as apresentações. O estatuto do embrião
extracorpóreo, fruto da fertilização in vitro, começou a ser discutido em finais da década de
70 e início de 80. Se tratando de uma nova entidade no mundo, produzia diferenças, sobretudo
na maneira como concebíamos as relações de parentesco, por exemplo, e sobre a propriedade
relacionada ao casal como doadores dos gametas e portadores do embrião. No debate
britânico a categoria do pré-embrião venceu e convencionou-se que até o 14º dia, como marco
da formação do sistema nervoso central, ainda não se poderia considerar que aquela entidade
seria um embrião.
Na audiência, a primeira cientista a adotar a estratégia do embrião como massa
celular foi Maiana Zatz. Em sua apresentação há duas fontes de agências que perpassam suas
colocações. Antes, a cientista enfatiza o papel das pesquisas que envolvem células-tronco
embrionárias na possibilidade de cura para uma série de doenças genéticas que afetam cerca
de 3 por cento das crianças que nascem de pais normais, em torno de 5 milhões de brasileiros.
Além das doenças que afetam as crianças, Zatz exibe os números relacionados às doenças que
envolvem adultos e que têm um componente genético importante. Lista uma série de doenças
como Câncer, Diabetes, Mal de Alzheimer para no final afirmar, usando imagens, que
ninguém escapa! Continua afirmando que além dessas pessoas, incluindo aí as vitimas de
acidentes, poderão futuramente ser tratadas com células-tronco49
.
Das duas fontes que a cientista mobiliza em sua apresentação a primeira é o seu
envolvimento com os pacientes a partir dos quais a mesma se propõe a falar. O caminho
adotado por Zatz considera os aspectos relacionados à esperança dos pais e mães de pacientes
que possuem doenças neuromusculares, que afetam um a cada mil indivíduos e são em torno
de 50 doenças diferentes. Uma das características que Zatz afirma ter estas doenças é a
degeneração progressiva da musculatura esquelética. Entre as cinquenta, as mais frequentes
49
Trecho da audiência pública.
82
são aquelas que atingem as crianças. A distrofia muscular e atrofia espinhal progressiva. Em
suas formas mais graves as crianças nem chegam a andar. As imagens de crianças com tais
doenças degenerativas compõem o quadro que a cientista utiliza para apresentar o interesse
dos cientistas que são favoráveis à continuação das pesquisas.
“essas duas meninas do lado esquerdo [exibe imagem de duas meninas
em cadeira de rodas em uma projeção] elas nos acompanharam
quando a gente votou a lei de biossegurança e os pais estavam juntos
conosco, apesar de os pais serem extremamente religiosos,
evangélicos eles estão defendendo essas pesquisas e uma coisa que
nos emocionou muito é que a pequenininha, que na época tinha 3 anos
nos disse: porque vocês não fazem um buraco nas minhas costas e põe
uma pilha para eu poder andar como minhas bonecas” (Zatz, trecho da
audiência)
No mesmo sentido que mobiliza as imagens de pacientes que sofrem com as doenças
estudadas por ela, Zatz desenvolve um diálogo não apenas com o seu texto. Desenvolve um
diálogo com os ministros e com a plateia. O recurso à pausas de média duração (cerca de 2
segundos) e um tom dramático que exibe em sua face, ajuda a cientista a compor um ambiente
dramático relacionado às imagens das meninas. Ao colocar as imagens de duas crianças
portadoras de distrofia muscular e destacar a citação de uma delas sobre as pilhas e as
bonecas, Zatz mobiliza não apenas características relacionadas à esperança, como as crianças,
mas também seus pais, que por serem de formação religiosa, sugere a cientista, tenderiam a
ser contrários à pesquisa envolvendo os embriões.
A partir deste momento começa a enfatizar a esperança que envolve tais pesquisas,
destacando que as células-tronco podem um dia substituir o tecido muscular ou os neurônios
motores. Seria então o “futuro da medicina regenerativa” (Zatz, trecho da audiência). A
mobilização de pacientes e pessoas que possivelmente poderão ser tratadas pela terapia
celular também são apresentadas por Ricardo Ribeiro. Diferente de Zatz, Ribeiro usa um
vídeo de um agricultor que no momento da audiência apresenta um quadro estável e consegue
ter uma vida normal com sua família.
Houve num grupo que recebeu células uma melhora muito
significativa... esse paciente [exibe o vídeo] por exemplo, internou
morrendo no hospital, ele tinha no máximo pelas leis naturais menos
de seis meses de vida e ele tinha falta de ar a mínimos esforços, ele
recebeu células tronco adultas por quase três anos, ele voltou para
83
roça, está trabalhando, está sustentando a família, voltou para o
convívio da família e no ultimo ambulatório ele veio me falar que a
mulher dele está grávida de novo... um efeito colateral das células-
tronco... (Ricardo Ribeiro, trecho da audiência)
A câmera que grava as cenas da audiência alterna entre imagens dramáticas dos
traços da cientista com as imagens das crianças exibidas por ela numa projeção. Há uma
inclinação da filmagem em considerar o tom dramático disposto por Zatz e as imagens das
meninas na apresentação. A própria cientista parece acionar de maneira minuciosa recursos
discursivos para demonstrar que o embrião não se apresenta com algo que possa ser
considerado independente, ou mesmo que um conjunto de células seja considerado um
embrião. Ao falar da fecundação, Zatz aponta a mesma como uma condição necessária, mas
não suficiente, para que o embrião se desenvolva.
só para vocês terem uma ideia, qual o tamanho desse embrião de oito
células se a gente comprar com um buraco de agulha de injeção na
microscopia eletrônica vocês podem ver então essa bolinha laranja
[imagem que mostra a ponta da agulha e um esfera laranja] que é do
tamanho da ponta de uma agulha (Zatz, trecho da audiência)
A exposição das imagens relacionadas ao conteúdo envolvendo as crianças passa a
ser deslocada para uma exibição dos limites que as células-tronco adultas estão enfrentando
em seu processo de estabilização como uma tecnologia que pode ser alternativa ao uso de
embriões para a produção de células-tronco.
o que mais está sendo feito em tentativas terapêuticas nós chamamos
de auto transplante ou transplante autólogo, onde se tira células-tronco
do próprio individuo da medula óssea e se injeta em outros órgãos [...]
mas as más notícias é que essas tentativas não servem para doenças
genéticas por que todas as células têm a mesma mutação ou erro
genético [...] então, o que estamos pesquisando outras fontes de
células-tronco. Meu grupo e eu tentamos extrair células-tronco de
outros tecidos e elas conseguem se diferenciar em vários tecidos e
depois injetamos em modelos animais. Mas os resultados preliminares
mesmo indicando existir a diferenciação os resultados são muito
pequenos. Está muito longe de ter uma aplicação terapêutica. (Zatz,
trecho da audiência)
84
A descrição das células-tronco embrionárias como células totipotentes é apresentada
de uma maneira que revela o seu potencial de diferenciação a partir dos mecanismos que
identificam as fases nas quais tais células produzem diferenciações. Zatz enfatiza que a
identificação dos mecanismos genéticos só podem ser descobertos através de pesquisas que
envolvem células-tronco embrionárias, e não adultas, por sua limitada capacidade de se
diferenciarem.
Como podemos aprender como genes precisam ser ativados ou
silenciados para formar o tecido que queremos? Pesquisando células-
tronco embrionárias, não há outra maneira e nós queremos estudar
essas células que são derivadas de embriões excedentes obtidos por
fertilização in vitro, e que estão congeladas há mais de três anos ou
são inviáveis para a implantação, como a lei [art. 5º] permite. (Zatz,
trecho da audiência)
Este aspecto do discurso de Zatz sugere uma mudança, que a mesma fará em sua
apresentação, apontando para o avanço do Brasil em aprovar a lei de biossegurança em 2005.
Neste sentido, começa a adotar um posicionamento que se desloca dos trabalhos de bancada,
as experiências que dizem até que ponto pesquisar com células-tronco adultas pode ser mais
favorável do que as embrionárias, para um discurso pautado pelas diferenças em relação aos
países que já aprovaram as pesquisas envolvendo células-tronco embrionárias e o Brasil.
As academias de ciências de 66 países assinaram um documento
defendendo essas pesquisas para fins terapêuticos e pesquisas com
células-tronco derivadas de embriões de até 14 dias foram aprovadas
pela Inglaterra e maioria dos países da Europa, Austrália, Canadá,
Coreia, Japão, Israel, China, pela Califórnia, que doou 3 bilhões de
dólares para essas pesquisas com células-tronco. (Zatz, trecho da
audiência)
Sua ênfase na aprovação da lei que assegura as pesquisas não se limita apenas a
mostrar como o Brasil não ficou atrás em relação aos outros países. Mostrou também que há
uma preocupação por parte da cientista em garantir que os brasileiros possam contar com
resultados obtidos no seu próprio país, desenvolvidos por cientistas como a própria Zatz. Este
componente da apresentação da cientista solicita não somente um elemento comparativo para
85
a ciência nacional, mas uma relação direta com as crianças que marcou o início de sua
apresentação.
As pausas e os usos de palavras que não estão diretamente relacionadas a um
discurso técnico, a descrição de marcadores e números de células que cada fase do blastocisto
contém, sugere uma mobilização emotiva em torno das escolhas as quais aparentemente os
ministros poderiam ser mobilizados, mesmo se tratando de julgar apenas o mérito da
constitucionalidade do artigo ou não.
Em 2005 tivemos a aprovação da lei de biossegurança com a maioria
expressiva dos deputados votando a favor... e foi um dos momentos
mais emocionantes da minha vida poder festejar a aprovação dessa
lei... e que foi também matéria de revistas internacionais elogiando
essa nossa iniciativa [...] a votação da lei de biossegurança nos deu o
direito de fazer as mesmas pesquisas que se faz no exterior, de não
sermos só espectadores, de garantir para a família de afetados que nós
estamos tentando o melhor e que elas não precisam correr para o
exterior para tratar seus filhos, que a gente aqui está fazendo as
mesmas pesquisas. (longa pausa) Nós não podemos retroceder. (Zatz,
trecho da audiência)
O aspecto chave da compreensão dos argumentos de Zatz como uma tentativa de
deslocar a autonomia do embrião como algo que tem vida e, portanto, passível de ter garantias
de proteção pela lei, está na ênfase dada ao caráter não abortivo que significa o uso dos
embriões até certo estágio de desenvolvimento. Este caráter parte do suposto que não pode
haver aborto se não há ligação direta com útero, sobretudo de uma entidade criada nas
bancadas das clínicas e laboratórios.
Pesquisar células-tronco embrionárias não é aborto. É muito
importante que isso fique bem claro. No aborto, nós temos uma vida
no útero que será interrompida com intervenção humana, enquanto
que no embrião congelado não há vida se não houver intervenção
humana. Nós temos que ter intervenção humana para a formação do
embrião por que aquele casal não conseguiu por fertilização natural e
também para inserir no útero. Esses embriões nunca serão inseridos no
útero, então é muito importante que se entenda a diferença. (Zatz,
trecho da audiência).
86
A ênfase dada ao caráter não autônomo do embrião congelado acentua o argumento
de que o mesmo pode ser considerado material de pesquisa sem prejuízos éticos ou morais.
Assim como Zatz, outros pesquisadores, como veremos adiante, também adotaram como
linha discursiva a possibilidade de uso dos embriões como material de pesquisa em
decorrência de sua já prevista descartabilidade.
4.2 - O descarte inevitável do embrião e um possível destino nobre
O descarte é um dos componentes mais presentes na apresentação da cientista Patrícia
Pranke, que, ao contrário da linha discursiva de Zatz, adotou uma estratégia técnica de
descrição dos modos como os embriões passam por um processo de seleção antes mesmo de
se tornarem viáveis para a implantação.
Como já discutido anteriormente, no Brasil não há uma legislação específica que
discipline a produção de embriões nas clínicas de fertilização. O projeto de lei sobre a
reprodução assistida está em tramitação no congresso e uma resolução do Conselho de
medicina sugere procedimentos para tal. Esses procedimentos são destacados por Patrícia a
ponto de enfatizar, ao final de sua exposição, um destino nobre para os embriões que serão
necessariamente descartados ou ficarão congelados sem possibilidade de uso por seus
portadores. A pergunta que norteia sua apresentação diz respeito ao ponto lógico, para a
cientista, da audiência: o que será feito com os embriões que ficarão congelados ou vão para o
lixo algum dia?
O mesmo argumento do destino nobre é retomado por Zatz em contornos dramáticos
sobre a possibilidade de uso dos embriões em pesquisas. Neste momento, os atores humanos,
como as crianças e a esperança de seus pais volta a compor a cena na apresentação de Zatz.
O que a gente está defendendo é que da mesma maneira que um
indivíduo em morte cerebral doa órgãos, um embrião congelado possa
doar suas células. Então o que é eticamente correto? Preservar esses
embriões congelados mesmo sabendo que a probabilidade de gerar um
ser humano é praticamente zero, ou doá-los para pesquisa que poderão
resultar em futuros tratamentos? [pausa longa e olha para a plateia e
ministros. Apresenta um tom de voz sempre baixo e o aumenta
87
quando enfatiza os pontos]. Eu venho há muito tempo lutando pela
qualidade de vida de pacientes com doenças muito graves [...] e hoje
conseguimos com algumas técnicas prolongar a vida deles em pelo
menos mais dez anos, talvez tempo necessário para que nós possamos
transformar essas pesquisas em tratamento. Será que podemos
comparar a vida dessas crianças, desses jovens com embriões
congelados? [...] Não podemos mais perder tempo (Zatz, trecho da
audiência)
O embrião como massa celular tem a sua acentuação a partir das apresentações de
Patrícia Pranke. Os aspectos técnicos relacionados ao desenvolvimento do embrião são
destacados pela cientista. Diferente de Zatz, a exposição de Pranke detalha aspectos
relacionados à técnica de fertilização in vitro e todo procedimento de implantação no útero.
Seus argumentos começam destacando os limites que o blastocisto enfrenta em relação aos
procedimentos in vitro.
o útero é uma barreira intransponível [pausa curta] se este blastocisto
não estiver em contato com o útero ele vai naturalmente morrer [tom
de desdém] ele não vai naturalmente conseguir se diferenciar em
embrião e continuar seu desenvolvimento. [...] nós estamos falando de
células que foram produzidas em laboratório e nunca serão
implantadas em útero materno. (Pranke, trecho da audiência)
As categorias embrião e blastocisto nos argumentos de Pranke se misturam e se
confundem. Diferente da emoção mobilizada por Zatz, Pranke descreve os procedimentos nas
clínicas de modo a produzir um efeito de aceitação inevitável do fato de que normalmente
muitos embriões já são descartados em tais procedimentos. Além do descarte, muitos, pela
própria lógica de produção dos embriões in vitro, são considerados impróprios para o
implante e serão congelados ou descartados de acordo com critérios estatísticos.
[...] quando ele chega no estágio do dia 3, 4 ou 5, só existe três
possibilidades para aquele embrião. Nós, pela interferência humana
implantamos ele no útero materno, ou nós pela interferência humana
congelamos esse embrião, ou nós deixamos ele na placa e não tem
outro destino, ele vai naturalmente morrer. Então, o que a interferência
humana está fazendo nas clínicas de fertilização: ou faz a implantação,
porque o casal deseja ter o filho, ou congela. E a nossa questão é
exatamente isso: o que nós vamos fazer com esses embriões após o
congelamento? [neste momento Pranke mostra uma imagem de um
blastocisto (embrião de 5 dias): de um lado ele aberto e do outro
88
fechado. só para termos uma comparação, se olharmos para uma
folha de jornal, a letra menor, ele corresponderá ao pingo do ‘i’ de
uma folha de jornal. [grifo meu] (Pranke, trecho da audiência)
A descrição das categorias de embriões é esmiuçada por Pranke numa tentativa de
demonstrar que o problema com a questão das pesquisas usando-os como material não está
diretamente ligada a sua produção para este fim. Pranke enfatiza que é preciso pensar no uso
daqueles supranumerários que já estão disponíveis nos bancos das clínicas e que não serão
utilizados nos procedimentos de reprodução assistida. Tal ênfase se destaca pela maneira
como a cientista descreve as categorias e os usos na prática das clínicas.
Quando o clínico que trabalha com essa fertilização assistida faz essa
fecundação in vitro é possível se obter quatro categorias de embriões,
digamos assim. Essas são as classificações [exibição de imagens] que
os especialistas na área conseguem identificar para poder saber o
embrião que vai poder ser implantado na mãe... naquela mulher que
deseja ser mãe. Temos quatro categorias de embriões que são
categorizados morfologicamente, de acordo com a forma, de acordo
com sua simetria, fragmentação [...] é importante a gente compreender
o seguinte: o que quer dizer o embrião A? é o embrião ideal, o que
tem a maior chance de nidar e poder desenvolver um novo ser. E o
embrião D é praticamente aquele que não tem chance nenhuma. Então
o embrião de categoria A e B podem ser transferidos, mas o C e o D
evita-se transferir. (Pranke, trecho da audiência)
Os procedimentos utilizados pelas clínicas na produção de embriões abrem margem
para o uso de seu excedente pelos cientistas que desejam pesquisar células-tronco
embrionárias. As próprias taxas de implantação exibidas e usadas por Pranke fortalece seu
argumento que as clínicas já tratam os embriões como um conjunto de células que passam por
critérios de classificação e poderão ser ou não implantados, e que seu descarte é algo
naturalizado pelos procedimentos.
Os embriões de categorias A e B, aqueles que podem ser implantados, se revelam
com taxas médias quando frescos ou congelados. Todos os dados apresentados por Pranke
conduzem-na a afirmação que o congelamento em si já diminui em larga proporção a
probabilidade de implantação dos embriões no útero. Além desse aspecto relacionado ao
congelamento, Pranke destaca ainda que os embriões categorizados como C e D têm taxas
89
elevadas de mal formação fetal e que, por isso, não há indicações de implantação de embriões
nessas categorias.
Os argumentos técnicos de Pranke mobilizam a viabilidade do uso das células desses
embriões inviáveis. Assim, diferente de outros cientistas que não apresentam dados
relacionados a este aspecto do processo de fecundação do embrião, Pranke destaca que,
[...] muitos trabalhos contra-indicam a transferência de embriões C e
D e a maioria das clínicas de fertilização nem congelam embriões de
má qualidade, descartando-os antes ainda do congelamento, são os
chamados embriões inviáveis [longa pausa e deslocamento da câmera
para os ministros]. Ora, se esse embrião tem quase zero por cento de
chance de gerar um ser humano após o seu congelamento e se tem
uma grande chance de ter mal formação [...] já vão ser descartados em
grande parte das clínicas antes do congelamento [...] por que não doá-
los para a pesquisa antes de congelá-los, os embriões inviáveis, como
a lei prevê... (Patrícia Pranke, trecho da audiência)
A fim de finalizar seu argumento do embrião como uma massa celular Pranke
compara duas outras tecnologias usadas como métodos contraceptivos: o DIU e a Pílula do
dia seguinte. Segundo Pranke, estes métodos também provocam aborto (e uma das questões
que a cientista considera que está sendo discutida na audiência é se o uso de embriões para
extração de células-tronco embrionárias provocam aborto) já que não permitem que o embrião
fixe na parede uterina.
Estes dois procedimentos [DIU e pílula do dia seguinte] nós estamos
falando de procedimentos em que o embrião está no útero da mãe e
eles simplesmente impedem a nidação. Então, ora isso é permitido
dentro do útero da mãe porque então nós não podemos trabalhar com
células [substitui o nome embrião] que estão congeladas que jamais
foram e que jamais serão colocadas em organismo materno. [pausa
longa] Este é um procedimento autorizado no Brasil hoje. E nós
estamos falando de algo que também é autorizado no Brasil hoje que é
usar essas células congeladas que não tem e nunca terão um acesso a
esse útero materno. (Patrícia Pranke, trecho da audiência) [grifo meu]
Na mesma direção de Zatz, Pranke começa a traçar contornos dramáticos em sua
apresentação ao falar da doação de órgãos como um ato de altruísmo no mundo ocidental, e
90
que no Brasil há muitas campanhas que incentivam a doação. Seguindo nesta direção aponta
que
se consideramos que um critério para a doação de órgãos é a morte
encefálica, porque não definir que o marco zero da vida é quando as
células do sistema nervoso começam a se desenvolver? Nós não
estamos aqui para definir quando a vida começa por que levaria dias,
mas são questões que estamos trabalhando, questão de doação de
órgãos com o conceito: a morte encefálica é o fim da vida. O embrião
congelado nunca tem e nunca terá as células do sistema nervoso
central. Por que o pré-embrião, até 14 dias, ele não tem essas células e
só a partir da segunda semana que essas células começam a se
desenvolver. (Pranke, trecho da audiência)
A morte encefálica e a ideia de um marco zero a partir do surgimento do sistema
nervoso são mobilizados por alguns dos cientistas presentes na audiência, como veremos mais
adiante. Ao mobilizar a ideia que considera a paralisação do cérebro como um critério para a
doação de órgãos, Pranke usa como recurso tecnologias que em outros momentos foram alvos
de controvérsias em torno de sua estabilização. Este processo de mobilização de caixas-pretas
ajuda a cientista a consolidar seus argumentos em torno do fechamento do uso de embriões já
pressupõe uma associação direta entre o fim e o início do sistema nervoso do ser humano. Ao
mesmo tempo, a cientista descarta a possibilidade de uma discussão sobre o início da vida,
fortalecendo a perspectiva pragmática em torno da liberação dos embriões para uso em
pesquisas.
A frieza como os aspectos técnicos são considerados na parte inicial da apresentação
dão lugar para uma exposição dramática da cientista na conclusão, quando a mesma começa a
considerar outros fins para os embriões. Outros critérios de comparação são usados no sentido
de provocar um certo destino sem saída, como o fim prático para o uso dos embriões. Para
construir este argumento, Pranke apresentou uma pesquisa elaborada para coletar informações
sobre o que fazer com os embriões congelados no Brasil. As opções sugeridas pela pesquisa
apontam para o que a cientista solicita ser um destino nobre para os embriões. A solução
prática apresentada pela cientista contrasta com as soluções apontadas pela pesquisa. Doá-los
para os casais que desejam ter filhos; implantá-los em mulheres ‘barrigas de aluguel’ e
depois de nascidos adotá-los; destruí-los, proibir o congelamento; mantê-los congelados
‘para sempre’(Pranke, trecho da audiência) foram as soluções levantadas a fim de comparar
91
qual o fim mais interessante do ponto de vista das pesquisas com células-tronco embrionárias.
Os comentários apresentados pela cientista para as soluções transitam entre o desdém quando
menciona as mulheres ‘barrigas de aluguel’, até uma elaboração sobre a possibilidade de se
proibir o congelamento, afirmando que ainda que isso seja decidido no país, os embriões
congelados não deixariam de ser um problema, o que demandaria uma solução imediata sobre
o artigo 5º da lei de biossegurança.
Assim como na apresentação de Zatz, há uma inclinação de Pranke em tornar o
embrião um instrumento de uso para obtenção de células. Este fim prático, como última saída,
já que as soluções listadas pelos participantes das pesquisas parecem, no sentido que Pranke
os desenvolve, soluções incabíveis, se apresenta como o fim único e último e, associado a ele,
um destino nobre, o qual servirá no futuro para resolver doenças que acometem as crianças de
Zatz, do Hospital Sarah, da doutora Lucia Braga, uma das expositoras na audiência.
O contorno dramático da exposição da cientista alinha-se com este destino fatalista
gerado pela própria dinâmica e procedimentos da fertilização in vitro. Assim, a pesquisa passa
a ser um caminho não só para solucionar problemas relacionados às doenças degenerativas,
mas resolve uma questão imediata que é o que fazer com esses embriões congelados(Pranke)
e a ausência de legislações que disciplinem a reprodução assistida no Brasil.
Se Maiana Zatz e Patrícia Pranke enfatizaram o caráter prático da solução encontrada
pela lei brasileira, deslocando o status do embrião como um ser autônomo para uma massa
celular que só passaria a existir enquanto vida depois da formação do sistema nervoso central,
o mesmo não acontece com a apresentação de Ricardo Ribeiro. O embrião deixa de ser o foco
da discussão e as possibilidades das células-tronco embrionárias são destacadas como o eixo
da questão. Não há apenas um foco nas possibilidades, há uma separação radical entre essas
duas entidades. Além dessa separação, que na apresentação de Pranke foi em muitos casos
fundidos, o cientista Ricardo Ribeiro desenvolve os aspectos relacionados ao congelamento já
apontados por Pranke.
Se nós formos falar de congelados, por que... por que nós não
atingimos o mérito técnico no congelamento. A técnica de
congelamento degrada os embriões [pausa longa e exibição das
variações entre os embriões] ela não qualifica esses embriões para um
implante para dar um ser vivo completo. A maioria das clínicas de
fertilidade não gostam de usar embriões congelados e sabe-se que a
viabilidade de embriões congelados há mais de 3 anos é muito baixa, é
92
praticamente nula e a maioria rejeita implante desses embriões.
(Ricardo Ribeiro, trecho da audiência)
Os limites do congelamento apontados por Ribeiro engrossam a lista das
possibilidades que um destino mais nobre para os embriões pode ter. Além desse limite
imposto pela imprecisão da técnica, Ribeiro aponta o que até então nenhum dos cientistas que
apresentou antes dele fez. Uma delimitação entre o que é o embrião e o que é uma célula e o
difícil trabalho de bancada para se produzir uma linhagem celular estabilizada.
Que seriam os que vão gerar, essas células da camada interna vão
passar para a cultura, deixam de ser embrião e passa a ser uma
linhagem celular, uma cultura de célula... e não tem mais nada a ver
com embrião. Célula tronco embrionária é totalmente diferente de
embrião... célula tronco embrionária é uma cultura celular, uma
linhagem de célula difícil de se obter... nós nunca seremos tachados de
exterminadores do futuro uma vez que a gente usa linhagem celulares
e não embriões para tratamento... os extratos de embriões que estão
por aí é na ‘cosmetologia’ não tem nada a ver com terapia celular... o
que nós vamos usar são linhagens derivadas e com uma dificuldade
muito grande... de cada 20 embriões 1 a gente consegue derivar uma
linhagem para ser usada em terapia ou pesquisa e os outros não são
aproveitados... isso se tratando de embriões frescos. (Ricardo Ribeiro,
trecho da audiência)
A ênfase dada ao processo de estabilização das células como tecnologia sugerida por
Ribeiro nos remete ao esforço dispendido por cientistas desde o inicio do século 20 para
estabilizar linhagens de células, descritos por Hannah Landecker (2007). A padronização de
linhagens no laboratório, e seu precário esforço de manutenção no tempo e espaço provocou
revisões conceituais relacionados à autonomia, à ideia de imortalidade e ao que Latour (2004)
chama de composição constante de híbridos pelo trabalho das ciências. Além de mudanças na
maneira como aqueles conceitos foram concebidos, Landecker aponta a possibilidade de
reprodução em massa a partir do caso HeLa, quando as novas possibilidades para a
experimentação, padronização e técnicas fizeram das células de Henrietta Lacks uma presença
constante em laboratórios de muitos países onde ocorresse pesquisas biomédicas. Ao lado
dessas células estavam as novas técnicas de congelamento e clonagem que possibilitaram o
seu transito no tempo e espaço.
93
[...] então a dificuldade é grande, uma vez que nós tenhamos as
linhagens, elas são estáveis e são imortais praticamente. E a gente
atinge o patamar de ter uma fonte de tratamento para varias doenças e
varias coisas sem precisar usar novos embriões [...] o mais importante
das células tronco embrionárias nessa massa assim [exibe um vídeo de
um processo de transformação da célula tronco embrionária em um
tecido específico] a gente já vê células formando coração, batendo,
participando. (Ricardo Ribeiro, trecho da audiência)
Além da discussão envolvendo a distinção entre o que é o embrião e as células-
tronco, Ribeiro destaca detalhes das técnicas relacionadas ao caminho que as células
percorrem de transformação em tecidos específicos.
O mais importante... o que que a gente quer das células tronco
embrionárias, eu vou usar células tronco embrionárias? Não. Eu pego
essas células-tronco, eu coloco uma série de hormônios celulares,
transformo ela em neurônio usando fatores, hormônios certos e essas
células diferenciadas é que serão usadas no tratamento. (Ricardo
Ribeiro, trecho da audiência)
A ênfase na técnica conduz Ribeiro a apontar que o problema em questão na
audiência não está na liberação dos embriões, e sim na maneira como esses procedimentos
serão regulamentados. Este caminho percorrido pelo cientista sugere um alinhamento com o
argumento apresentado por Pranke sobre a relação instrumental a qual está imbuída a prática
das clinicas de fertilização in vitro. Segundo a cientista, a prática de descarte de embriões
inviáveis é comum nas clínicas e as respostas dadas pelos cientistas favoráveis às pesquisas
estão relacionadas a um fim mais humano diante da instrumentalidade dos procedimentos
médicos nas clínicas.
os problemas que a células-tronco embrionárias apresentam, como
tumores, também com as células-tronco adultas podem ocorrer...
precisamos do controle genético. Mais do que a lei, podendo ou não
usar embriões, é a lei que vai regulamentar a utilização disso. (Ricardo
Ribeiro, trecho da audiência)
Uma das características do bloco que defendeu a constitucionalidade de lei de
biossegurança é a vinculação com pesquisas que já trabalham com células tronco adultas.
94
Assim com Ricardo Ribeiro mobilizou resultados relacionados ao uso dessas células em
terapia, como o caso do agricultor, Júlio Voltarelli também debate os limites dessas células e a
possibilidade futura de tratamentos com terapia celular com células embrionárias. Os
resultados apresentados fazem parte de procedimentos que o mesmo chama de convencional
(estabilizados). Tanto o transplante autólogo como o transplante alogênico50
já produzem
resultados estáveis, mas apresentam limites para o futuro desenvolvimento da técnica de
terapia celular.
As esperanças com o uso de células tronco adultas foram reforçadas com a
publicação do trabalho de Catherine Verfaillie sobre a pluripotência de uma célula da medula,
com características semelhantes às embrionárias. Os argumentos técnicos apresentados por
Voltarelli se articulam com a limitação das células tronco adultas para os tratamentos. Os
resultados são limitados e a pesquisa com embrionárias se apresenta como uma alternativa
para elevar os resultados das pesquisas. Neste sentido, Voltarelli demonstra que as tentativas
de Verfaille passaram a ser alvo de críticas sobre a autenticidade de seus resultados.
Então a ideia de que as células mesenquimais da medula óssea fossem
regenerar o tecido como as embrionárias na prática não funcionou. E
tem um grande problema com os dados da Dra. Verfaille que eles
estão sendo questionados... como a maioria dos laboratórios não
conseguem reproduzir esses dados... que existe uma célula na medula
óssea adulta que dá origem a todos os tecidos que se comporta como
uma célula pluripotencial, esse dado não é repetido na maioria dos
trabalhos e atualmente os trabalhos dela estão sob investigação para
ver se é real ou não... é possível que não seja real. (Voltarelli, trecho
da audiência)
Esta mesma linha de argumentação dos usos das células tronco adultas também é
conduzido pela cientista Rosália Mendes. Os resultados encontrados por Voltarelli em
pesquisas envolvendo tratamento para o diabetes são também encontrados por Mendes nas
pesquisas envolvendo problemas neurológicos, levando-a a concluir que os usos e a defesa
das células tronco embrionárias apontam para avanços mais consistentes. Um detalhe das
observações de Mendes está relacionado ao uso que o mercado já faz e pode fazer em relação
a pesquisa e a produção de medicamentos.
50
No transplante autólogo os tecidos que serão transplantados têm origem no próprio paciente. Diferente do
transplante alogênico, no qual o doador é um terceiro com características genéticas semelhantes.
95
Esses resultados [com células tronco adultas] mostram que é possível
pensar um cenário onde neurônios possam ser injetados e esses
neurônios podem funcionar e substituir aqueles que foram perdidos e
com isso realmente curar a doença neurológica, por que o que temos
até agora são medicamentos que tratam os sintomas mas não temos
medicamentos que tem nenhuma possibilidade de cura na medicina
atual. [pausa] isso parece muito longe para nós mas isso é um cenário
bastante próximo nos EUA onde é possível patentear essas células e
várias empresas que estão iniciando estudos já em pacientes onde se
chegaria a um medicamento que seria uma célula dopaminérgica,
moto neurônio e o único problema que isso por ser patenteado isso é
vendido, então é possível que num futuro próximo, se nós não
tivermos as nossas próprias células embrionárias para tratar doentes
neurológicos os doentes brasileiros tenham que comprar essa terapia
de outros países... (Rosália Mendes, trecho da entrevista)
Mendes não discute as implicações da liberação das pesquisas no Brasil e nem
aponta diferenças entre os dois sistemas, o brasileiro e americano. No desenvolvimento de seu
argumento parece não haver uma clara delimitação do uso que essas células terão no Brasil
em casos de estabilização e padronização de sua reprodução. O mesmo acontece com os
outros cientistas mobilizados nesse texto.
A ênfase no caráter mercadológico parece ser apontada mais especificamente pelos
cientistas contrários às pesquisas. Estes vincularam não apenas a autorização da pesquisa
relacionada aos interesses de mercado, da produção em massa e desejo de vender linhagens
celulares derivadas de embriões, como também contrapuseram com argumentos que priorizam
a autonomia do embrião desde a fecundação.
Além desses aspectos, os cientistas ligados ao bloco contrário mobilizaram recursos
que ocorreram no momento da audiência para provocar dramaticidade à questão. É preciso
destacar que o recurso a tons dramáticos, pausas longas, e direcionamentos do olhar,
alternando entre a plateia e os ministros, ajudaram a compor um ambiente dramático em torno
da morte, ou completo desdém em relação ao descarte do embrião e frieza demonstrada por
cientistas do bloco favorável à pesquisa. Se por um lado falar em embriões como células que
são descartadas rotineiramente nas clínicas sugeriu desdém, por outro esses mesmos embriões
pareciam ter vida, falavam a partir de marcadores, substâncias, proteínas e mobilizavam em
torno de sua ação uma rede complexa formada também pelos cientistas que defenderam a sua
proteção enquanto ser.
96
Um olhar mais detido sugere que os aspectos técnicos relacionados ao tratamento do
embrião como uma massa celular se contrapôs aos argumentos, em muitos casos envolvendo
filosofia, ética e prática médica aliado com os cientistas que privilegiavam o embrião como
um ser humano dotado de direitos e que deveria ser assegurada sua proteção.
Por que deixar claro isso... e eu fiz questão de colocar em minha
apresentação [mostra imagem de um embrião] um embrião, por que eu
não perdi um montinho de células [pausa longa] ele tinha seis semanas
apenas, não sei se ele ou ela, não foi possível verificar isso ainda...
geneticamente seria possível comprovar... mas já era meu filho... já
era um filho... não era uma coisa que estava ali dentro da minha
esposa, nós fizemos ultrassom e ele estava lá... (Rogério Pazetti,
trecho da audiência)
O cientista Rogério Pazetti mencionou em sua apresentação que a perda de seu filho,
ainda em fase embrionária, o faria em alguns momentos ter de parar sua exposição. Estes
recursos são mobilizados, mesmo não intencionalmente, a fim de tocar os ministros e a plateia
diante da relação utilitária estabelecida com a questão. Numa audiência em que cientistas
colocam o embrião em horizontes práticos opostos, de um lado a manipulação, no outro sua
preservação a qualquer custo, falar da morte de um filho em estágio embrionário procura
mobilizar emoções tanto dos cientistas presentes com dos próprios ministros. Numa plateia já
silenciada pelos apelos da organização do Supremo, reafirmadas constantemente pelo
Ministro relator Ayres Brito, poucos sussurros poderiam ser escutados através do vídeo. O
momento oportuno, quase final da audiência e com a maioria das exposições do bloco
contrário às pesquisas já realizadas, no qual Pazetti comunica a morte de seu filho, ainda
embrião, o faz estabelecer relações envolvendo, sobretudo, aspectos emotivos sobre o uso de
embriões para obtenção células para pesquisas.
O embrião humano é um amontoado de células? [...] portanto o
embrião humano não é um amontoado de células. São células ligadas
umas as outras com informações precisas, como a Dra. Claudia
mostrou, desde a primeira divisão, cada qual com a sua informação
para que diferenciação ela vai seguir desde o primeiro instante.
Também não são células como também foi colocado a analogia com
uma cultura de células. Ali sim devemos ter um amontoado de
células... (Rogério Pazetti, trecho da audiência)
97
Pazetti não se limita a fazer referência à maneira como o bloco favorável à pesquisa
trata os embriões, compara argumentos que consideram o embrião como amontoado de
células com argumentos que não o consideram e apresentam as informações que já são
desenvolvidas desde o momento da fecundação como uma questão de relevante importância
para a caracterização da espécie humana, segundo o cientista. Destaca então o trabalho
coordenado de substâncias, aspectos genéticos, ênfase dada aos muitos cientistas que
formaram o bloco dos cientistas contrários às pesquisas.
Os argumentos de Pazetti sugerem que o trabalho de expertise não apenas está
relacionado com a mobilização de recursos técnicos originados de pesquisas científicas e suas
aplicações. Sugere que em espaços onde as ciências precisam performar suas ações com
objetivos de obter legitimidade, os argumentos técnicos precisam ser permeados de
afirmações não técnicas. Se os argumentos técnicos em alguns momentos são usados para
demarcar a posição de expertise, o uso de argumentos não técnicos sugerem uma aproximação
do próprio expert daqueles que não dominam as extensas explicações dos dados científicos. E
os enunciados adquirem além da força dos dados que sustentam as afirmações, tonalidades
que dramatizam e solicitam do público uma compreensão além do envolvimento técnico.
4.3 - O embrião mobilizado: sua autonomia a partir da performance químico-biológica
Um dos primeiros aspectos relacionados à autonomia são as definições genéticas que
o embrião já desenvolve desde a fecundação. A genética mobilizada pelos cientistas
favoráveis à pesquisa pouco dizia sobre sua real mobilização e diferença na composição dos
argumentos desenvolvidos por aquele grupo. Em alguns momentos ela aparecia apenas como
um componente que precisa ser controlado, sobretudo nas apresentações de Ricardo Ribeiro e
Pranke. Em Zatz, a relação com as respostas da genética estavam relacionadas às doenças que
a cientista pesquisa.
Ao contrário desses argumentos pontuais, os cientistas do grupo que reúne os
contrários à pesquisa fortaleceram a ideia de linha genética e herança para estabelecer uma
relação de autonomia do embrião, de vínculo autônomo do embrião com sua genitora. Este
98
vínculo está relacionado com a necessidade do útero para a sobrevivência do embrião, que
desde já possui uma autonomia em seu processo de formação devido sua carga genética. Os
cientistas contrários ao mesmo tempo que enfatizaram as relações e trocas bioquímicas
desenvolvidas entre o embrião e a mulher, acentuaram por outro lado a autonomia imposta
pelo mesmo ao solicitar da mulher que o abriga uma adaptação às novas condições. Tal
autonomia é acentuada quando a relação que o embrião estabelece com a mulher que o tem
em seu ventre é estabelecida desde as primeiras horas através de ligações e trocas químicas.
Tudo isso está programado no DNA de cada um... cada espécie tem o
seu DNA e vai se expressar, vai se desenvolver conforme aquele
código, aquilo que está gravado no seu DNA... então, o projeto
Genoma Humano ele vem fazendo com que nós possamos conhecer
profundamente nosso próprio genoma [...] então ele caracterizou e
vem caracterizando o programa de nossa espécie... (Lenise Garcia,
trecho da audiência)
A relação da autonomia do embrião com a genética é apresentada pela cientista desde
o momento em que há a fecundação. A partir disso há um ligação entre os trinta mil genes
relacionados ao homem e os outros trinta mil provenientes da mulher, que quando juntos,
formam um ser único e irrepetível (Lenise Garcia, trecho da audiência).
Essa imensa combinação que pode existir entre conjuntos diferentes
de trinta mil genes [...] e que, no entanto, cabe inteiro aqui [mostra
imagem microscópica] nessa primeira célula que se forma na junção
do espermatozoide e do óvulo. E aí já está definido as características
genéticas desse indivíduo... já está definido se é homem ou mulher por
exemplo... então a gente poderia dizer que nesse montinho de célula é
um montinho de células masculinas ou um montinho de células
femininas... (Lenise Garcia, trecho da audiência)
Quando menciona aspectos relacionados à possibilidade de identificação de doenças
genéticas a partir desse montinho de células, Lenise faz uma referência às cientistas Zatz e
Pranke e destaca que neste ponto caberia a sociedade estabelecer critérios quando
identificadas doenças que são prejudiciais à população e que colocaria em questão a possível
eliminação desses embriões com doenças genéticas. Lenise não se limita em fazer sobre a
eliminação dos embriões a partir das pesquisas. Ela acentua as possibilidade que a eliminação
e o descarte podem provocar de prejuízo moral para a sociedade.
99
Se eu tirar uma célula e for examinar se tem uma doença genética,
eventualmente você já pode detectar se a doença genética está ali.
Agora, nós temos que pensar enquanto sociedade se eu detecto uma
doença genética num embrião eu vou eliminar esse embrião? Se eu
detecto que um embrião tem hemofilia eu vou eliminar? Então
Betinho teria sido eliminado, se ele tivesse sido gerado numa clinica
de fertilização in vitro... porque o Betinho era hemofílico... então nós
começamos a classificar as pessoas entre aquelas que são normais,
aquelas que são adequadas para a nossa sociedade e aquelas que são
inadequadas... (Lenise Garcia, trecho da audiência)
A comparação entre o embrião e a célula não é descartada pela cientista. A diferença
entre sua equiparação e a elaborada pelos cientistas favoráveis é a ideia de um padrão
genético já presente desde o momento da fecundação, aspecto este não descartado pelos
cientistas favoráveis, mas minorado a fim de considerar apenas o embrião como uma massa
celular.
A relação de autonomia que o embrião estabelece com seu ambiente desde a
fecundação tem consequências diretas na maneira como concebemos a questão de sua
dignidade e, por conseguinte, seus direitos. Em que ponto o ser humano deve já possuir
direitos. Essas questões são colocadas pela cientista Claudia Batista são acentuadas pela
relação de projeto que é estabelecida com seu desenvolvimento. É na consideração da
fertilização como um processo que conduz a individuação que a cientista pontua que a partir
desses estágios biológicos que a vida chega ao seu termo. Se tem vida durante o processo e
não no final do mesmo (Claudia Batista, trecho da entrevista). A autonomia do embrião é
dimensionada a partir da perspectiva de um projeto, como destaca Claudia Batista,
Gostaria de fazer uma comparação agora entre vida humana e vida
celular, à esquerda eu tenho uma foto de um embrião de três dias e à
direita de um conjunto de células com as quais eu trabalho. O embrião
de três dias é aparentemente um montinho de células como as
neuroesferas também [...] qual a diferença, então, se
morfologicamente eles são assemelhados? A diferença entre a vida
humana e a vida celular está na autonomia, unidade, projeto. O
embrião de 3 dias ele já tem uma autonomia funcional, autonomia que
dá uma unidade a todo um organismo como um todo... esse montinho
é um todo que se comporta funcionalmente, metabolicamente com um
único ser[...] e que se auto-direciona no sentido de gerar um novo
indivíduo... (Claudia Batista, trecho da audiência)
100
Esta autonomia não vai se destacar apenas em relação a vida do próprio embrião
como algo que pode e deve ser protegido mesmo que tenha sido criado fora do útero, mas
sobretudo em relação de autonomia relativa com sua genitora. Esta autonomia relativa que é
estabelecida foi amplamente desenvolvida por Lilia Piñero Eça e está marcada pelo contato
químico que o embrião desenvolve com a sua genitora.
Nós falamos até agora sobre esse zigoto onde realmente temos todo
esse programa genético e todas as nossas características até o fim de
nossas vidas. Mas uma coisa que eu acho muito importante a gente
falar aqui hoje é de que não só já temos o programa desde a primeira
divisão do zigoto como é muito importante lembrar também que além
de já termos essa programação esse embrião já se comunica com a
própria mãe, através daquilo que a gente não enxerga
macroscopicamente, mas nós enxergamos isso através de nossas
moléculas marcadas (Eça, trecho da audiência)
Poucas horas depois do contato entre os zigotos na fecundação, os processos de
trocas químicas mobilizadas pelo embrião já são desenvolvidos e sugerem que o organismo da
mãe comece a produzir um ambiente adaptado a sua chegada. Até este momento das
apresentações, os cientistas, sobretudo os favoráveis à pesquisa, não relacionavam nenhum
aspecto envolvendo participação de atores químicos no processo. Um dos pontos curiosos dos
atores mobilizados pelo grupo que é contrário às pesquisas está então diretamente envolvido
com as relações que esses embriões desenvolvem com sua mãe ainda nos primeiros momentos
após a fecundação. Esta relação não só é de dependência como de controle hormonal
estabelecido pelo embrião, neste momento um ser autônomo, sobre a mulher. Neste sentido,
não há quase referência relacionada com o desenvolvimento do embrião criado in vitro,
apenas aspectos pontuais como a discussão de Claudia Batista sobre os desenvolvimentos e o
padrão genético do embrião.
A ênfase no caráter técnico relacionado à morte encefálica para justificar e marcar
que o embrião nasce apenas quando as células do sistema nervoso central começam a se
desenvolver parece sugerir que os cientistas favoráveis às pesquisas apenas procuram critérios
que resolvam um problema prático colocado pelas clínicas de fertilização. A questão dos
excedentes. Diferente desse posicionamento, os cientistas contrários às pesquisas destacaram
aspectos relacionados à relação do embrião com a mãe. Ao passo que colocaram a relação do
embrião com a genitora como um dos aspectos relevantes na audiência, consideraram que o
101
uso de conceitos como a morte encefálica, por parte dos favoráveis, apenas demarcava a
possibilidade de uso dos embriões sem implicações éticas e morais.
A mobilização dos agentes químicos através do estudo dos sinais de células
desenvolvida por Eça para compor sua apresentação mostra como aquele conjunto de massa
celular, como descrito pelos cientistas favoráveis, pode envolver uma série de agências
relacionadas à mudança do corpo da mãe, sugerida não como algo que a define e pertence,
mas como uma ação direta e implicada com o desenvolvimento de um ser autônomo.
...através dos vasos sanguíneos dessa mãe temos substâncias que são
secretadas e essa... esse futuro... toda essa vida humana... todo esse
programa humano já manda toda essa mensagem desse corpo para a
mãe [longa pausa] a mãe recebendo essas substâncias ela vai ter
substâncias, ela vai ter mudanças hormonais, que substâncias seriam
essas? Aqui é o vaso sanguíneo onde a mãe vai estar recebendo as
substâncias desse filho que seria a conversa molecular entre embrião e
mãe e essas substâncias elas vão agir dentro dessa célula... por que
uma mulher é feita... nós todas... por 75 trilhões de células... então já
duas a três horas após o encontro do espermatozoide com o óvulo essa
conversa do embrião através das moléculas [...] elas já vão começar a
acionar esses 75 trilhões ..(Eça, trecho da audiência).
A condição de relativa autonomia nos argumentos apresentados por Eça indica que
através das ligações químicas estabelecidas com a mãe este embrião passa a agir em seu
corpo, sugerindo estados biológicos que a encaminham para a gestação. Este componente do
embrião intrauterino como um ser que possui uma autonomia, só requerendo da mãe suas
condições de desenvolvimento sustenta não apenas o argumento de Eça. Ele ancora os
argumentos de Claudia e de Lenise, quando as mesmas destacam a formação do embrião e
suas fases como processos que iniciam desde o primeiro momento com a fecundação.
Toda mulher já se prepara com essas substâncias nessas duas a três
horas após para o ninho [ênfase tonal] para poder receber esse embrião
que vai ser nidado até o 14º dia em seu útero, mas desde o primeiro
momento ela prepara seu ninho... isso então realmente é a
comunicação humana [...] então veja quantas moléculas ele já manda
para a mãe para mandar informações e ela preparar seu ninho... ela
fica com sono, ela fica com uma série de manifestações para entrar em
repouso para poder se preparar e receber esse feto... (Eça. Trecho da
audiência)
102
Essas alterações químicas provocadas pela presença do embrião no útero da mãe são
sugeridas por Eça como uma ligação na qual não pode haver desde então uma interrupção.
Para Eça, este corte do embrião retirado do corpo da mãe é o mesmo que se desligar um
computador puxando o fio da tomada produzindo um ‘black out’. Os efeitos colaterais que
essa interrupção provoca estão ligados também a fatores envolvendo substâncias. Este
argumento é desdobrado por outra cientista quando analisa como os embriões mantêm uma
relação com a mãe na qual a mesma se sente “obrigada” quimicamente ao transporte do
mesmo em seu ventre.
O que a fecundação in vitro nos mostrou? Que a mãe que vai receber,
implantado o embrião tem de ser preparada e receber as mesmas
influências que o embrião daria a ela se o embrião estivesse dentro
dela... isso é a prova que o embrião que o filho manda na mãe desde o
começo [...] ou seja, para receber o embrião implantado ela precisa ser
preparada como se o embrião estivesse dentro dela. (Elizabeth
Cerqueira, trecho da audiência)
Continuando a discussão de Eça, a cientista Elizabeth Cerqueira ampliou a relação de
autonomia que o embrião desenvolve com a progenitora e a estende até a fertilização in vitro.
Não se trataria de pensar os embriões congelados nas clínicas apenas como passíveis de uso
em pesquisas, mas de perceber como e sua própria forma de vida já solicita da mulher
possivelmente o abrigará depois, que ela seja preparada para seu recebimento, preparo este
que precisa ser muito similar àquele dispensado se o embrião estivesse presente em seu útero.
Dessa maneira, o grupo dos pesquisadores que são contrários às pesquisas não
apenas minimizam os argumentos pautados no descarte e uso em pesquisa como um único
destino para aqueles embriões excedentes, mas que este novo ente precisa ser considerado em
seu grau de autonomia, sobretudo em relação à mulher.
Um aspecto curioso levantado por Elizabeth Cerqueira se trata da identidade do
embrião proveniente de um processo de construção desenvolvido por ele. Que essa identidade
não surge de um observador e que não pode ser definido apenas por suas propriedades
funcionais e estruturais, admitindo os limites colocados pelos cientistas favoráveis às
pesquisas quando partiram de diversos critérios para a definição de quando a vida do embrião
começa.
103
A sua ontogênese [do embrião] pertence a ele mesmo. Se eu procurar
definir o embrião pelas propriedades funcionais ou estruturais então eu
admito que o embrião ele se torna vida humana e começa como ser
humano quando [pausa] começa a bater o coração, ou então quando o
sistema nervoso está formado, ou então, ou então... qualquer coisa
assim... [...] se eu colocar assim eu estou tendo uma concepção
‘fixista’. Que é contraria a biologia... a biologia define o ser humano
como um processo dinâmico, aquele que ontologicamente tem um
movimento que lhe é próprio, que sai dele mesmo um movimento de
desenvolvimento [...] o ‘si’ do embrião não pode se reduzir a um
suporte, mesmo o suporte genético... o suporte genético inicia um
desenvolvimento mas não é o embrião. (Elizabeth Cerqueira, trecho da
entrevista)
Só a partir da possibilidade de se ter o embrião como objeto que os questionamentos
suscitados pelos cientistas favoráveis à pesquisa foram possíveis e a mobilização em torno das
pesquisas envolveu, sobretudo, o aspecto prático da questão. A cientista Elizabeth Cerqueira
enfatiza as soluções que este embrião produzido in vitro solicitou dos cientistas para tentar
classificar este nova entidade que vive fora do útero. O problema que a mesma pontua em
contraponto às soluções mobilizadas é que as mesmas não tratam o embrião como um ser
humano desde a fecundação e apenas como uma massa celular.
Interessante que a FIV nos trouxe muito conhecimento sobre a
fecundação, mas ao mesmo tempo nos trouxe questionamentos porque
nunca, até então, nós tínhamos na mão um embrião humano vivo
passível de manipulação. A partir da fecundação in vitro nós passamos
a ter todas essas possibilidades que nos trazem todos esses
problemas... então, o que se faz com esses embriões excedentes, nós
vamos fecundar mais de um, vamos implantar diversos, vamos
reduzir, ou seja, tirar alguns que foram... todos... de repente quatro...
não tem possibilidade de chegar ao final... então quantos vamos tirar
do útero... é... barriga de aluguel... implantar em útero que não seja
humano... enfim... todos esses questionamentos apareceram depois
que foi possível ter o embrião como objeto em laboratório... (Elizabeth
Cerqueira, trecho da entrevista)
As definições elaboradas pelos cientistas diante daquela entidade criada fora do útero
sugerem, para Elizabeth Cerqueira, apenas uma tentativa de justificar o uso desse embrião
como objeto no laboratório. As definições propostas no relatório de Warnock (1982-84) na
qual o embrião passa a ser um ser humano em potencial e a definição de pré-embrião
(cunhado pela Federação Europeia de Ciência em 1985) surgiram com um esforço de
104
estabilização precária da emergência de novas relações demandadas pelo embrião criado nas
bancadas dos laboratórios.
Essas definições manuseadas pelos cientistas favoráveis às pesquisas sugeriram não
apenas uma solução para o problema do embrião fora do útero, correspondeu, diante das
apresentações de Pranke e Zatz, como soluções que resolveram, assim como a decisão de se
usar os embriões extranumerários em pesquisas, de maneira prática a questão colocada pelos
novos problemas de pesquisa.
O que seria o pré-embrião? Será que existe o pré-embrião e por isso
nós podemos manipulá-lo, será que existe o pré-embrião e por isso eu
posso usar célula-tronco embrionária, posso congelá-lo, ou porque que
eu quero usar célula tronco embrionária e quero congelá-lo eu criei o
pré-embrião [...] porque como nós dissemos por que que se definiu até
a linha primitiva, porque não um pouco antes ou depois, por que não
um mês antes ou um mês depois [...] porque esse questionamento? Por
que a linha primitiva também não se forma em um ato, um segundo
que você possa dizer um segundo antes, um segundo depois tinha a
linha primitiva ou não... (Elizabeth Cerqueira, trecho da entrevista)
O questionamento dos interesses relacionados as pesquisas envolve não apenas a
autonomia relativa que o embrião desenvolve em relação a sua genitora. Envolve também, por
parte dos cientistas contrários, uma mobilização de agências relacionadas ao fracasso até
então das pesquisas envolvendo células tronco embrionárias. Os esforços, para alguns
cientistas ligados ao bloco contrário deveria se concentrar em desenvolver técnicas já
existentes, sobretudo envolvendo as células tronco adultas. Neste sentido, diversas
apresentações seguiram uma lógica de mostrar como os resultados envolvendo células tronco
adultas têm obtido êxitos que podem se consolidar futuramente.
Alguns elementos apresentados durante a audiência deslocam a questão diretamente
ligada ao embrião, seja ele mobilizado como uma massa celular ou um ser com uma
autonomia relativa desde o momento da fecundação, e mobilizam questões envolvidas com
certas práticas, como a médica, por exemplo. Se observarmos os critérios de formação inicial
e composição da audiência, poderia se colocado como alguns cientistas foram escolhidos para
compor o quadro e apresentação nos blocos.
105
A mobilização de manuais da literatura médica para mostrar como a aprovação das
pesquisas poderia alterar a formação de uma prática sugere que a audiência não está
estritamente relacionada a uma definição do embrião ou uma finalidade prática para os
excedentes. A leitura de trechos de livros sobre o que ensina a prática médica sobre o que é o
embrião ou o zigoto coloca o Professor Rodolfo Nunes diante de possível impacto sobre a
própria prática.
O momento do inicio da vida é um fato biologicamente consumado. A
manipulação conceitual desse fato traz consequências para a prática
médica. Seja na área de formação dos recursos humanos, seja na
pesquisa, seja na assistência... de uma certa forma é prejudicial uma
discussão apenas conceitual ignorando um importante fato [...] no
ensino médico fica flagrante uma perplexidade no confronto com a
literatura médica estabelecida e determinados conceitos novos sem
sustentação. Introduz uma incerteza quanto ao valor da dignidade
humana e um desenvolvimento de reservas ante ao ensinamento de
uma postura de zelo em relação ao embrião ou feto como paciente
(Rodolfo Nunes, trecho da audiência)
Os elementos que apontam as possíveis mudanças e possível desdém pelo qual se
orientam os cientistas favoráveis às pesquisas, ignorando o que seria o embrião e por isso o
desrespeitando, faz o Professor Nunes desenvolver sua apresentação em torno dos limites
estabelecidos pela própria biologia, as quais se alinham com as apresentações de Lenise e
Claudia sobre a formação do embrião ainda na fecundação. Esta delimitação biológica, para
Nunes, não pode ser violada por definições arbitrárias elaboradas de acordo com os interesses
colocados diante de desenvolvimentos das pesquisas. A literatura médica mobilizada por
Nunes sustenta sua afirmação da complexidade do processo que envolve a formação do
embrião e a ausência de uma base consolidada de conceitos sem sustentação que poderiam
prejudicar a prática dos médicos, bem como o desenvolvimento de uma relação mais
objetivada com o embrião criado no laboratório, como destacou também a cientista Elizabeth
Cerqueira.
As apresentações que destacam os avanços das células tronco adultas em relação as
células tronco embrionárias apontam sobretudo os problemas que foram encontrados nas
pesquisas. Os casos de tumor foram destacados como um fator relevante para se desconsiderar
que é preciso avançar com pesquisas envolvendo as células tronco embrionárias. Ao mesmo
106
tempo, os pesquisadores que consideram que é preciso continuar pesquisando, destacam que
as próprias células adultas também desenvolvem tumor. Neste sentido, os recursos
mobilizados em torno das consequências que tanto uma como a outra podem produzir se
neutralizam nos argumentos.
Claro que estamos todos interessados na busca de terapêuticas que
possam resolver os males que afligem a nos mesmos e a nossos
irmãos. O que se coloca nessa audiência são dois aspectos. Primeiro,
existe terapêuticas que são eficazes, ou melhor dizendo... existe
indícios científicos que existe terapêuticas que podem ser eficazes
para a solução de uma série de problemas de saúde. [pausa longa]
Portanto, o segundo aspecto, o reconhecimento do embrião como vida
humana não se contrapõe a essas exigências éticas que dizem respeito
a busca dessas terapêuticas. Hoje durante todo dia se falou que o uso
de células tronco adultas oferecem os resultados terapêuticos que a
sociedade exige e precisa... (Dalton Ramos, trecho da audiência).
As células tronco adultas são destacadas quando alguns cientistas colocam em suas
apresentações os limites envolvendo as pesquisas com as embrionárias. Pazetti levanta uma
série de questionamentos apontados pelos cientistas favoráveis sobre os limites das células
tronco adultas, mostrando que em muitos casos a afirmação daqueles cientistas não eram
comprovadas com artigos e experimentos, mostrando os limites dessas células. Ao mesmo
tempo usa afirmações utilizadas pelos cientistas contrários para mostrar como as células
adultas têm produzido resultados satisfatórios para uso em terapias. Mais do que os outros
cientistas, e mesmo com as constantes reafirmações do Ministro Relator da audiência de que
as referências aos próprios cientistas presentes na audiência, Pazetti usou como recurso as
citações colocadas pelos próprios cientistas presentes no dia.
Uma das apresentações que procurou destacar tanto os avanços das células adultas
como as embrionárias foi desenvolvida pela pesquisadora Lygia Pereira. A origem das
pesquisas com células adultas a partir de sua plasticidade gerou diversos campos de pesquisa
e no Brasil há diversos testes clínicos envolvendo tais células.
Nós temos aqui sentado alguns dos principais pesquisadores
brasileiros que exploram esse potencial da célula tronco adulta para
ver se isso é realmente uma realidade. E por que que a gente tem tanto
teste clinico em andamento com as células tronco adultas? Por que a
gente faz transplante de células tronco adulta há décadas e a gente
sabe com a experiência adquirida e com a possibilidade de fazer
107
pesquisa com essas células tronco adultas desde a década de 50, a
gente adquiriu confiança para saber que não existe grandes riscos
associados e isso justifica então essa batelada de testes clínicos [...] é
importante também aqui saber que por mais que se tenha dito que elas
são usadas para mais de 70 terapias, transplante de células tronco seu
medico só pode receitar para os casos de medula óssea para um
numero limitado de doenças que envolve a regeneração do sangue [...]
qualquer outra aplicação ainda está no âmbito da pesquisa (Lygia
Pereira, trecho da audiência)
O trabalho de relativização dos resultados apontados pelos cientistas que defendem
apenas pesquisas usando células adultas foi considerado por Lygia Ferreira, demonstrando
como artigos científicos que parecem causar um excesso de notoriedade podem apresentar
equívocos em seus resultados. A cientista coloca que o trabalho da ciência não pode ser
avaliado e tomado como verdade absoluta sem que seja reproduzido exaustivamente por
outros laboratórios. Esta mesma observação foi feita por Voltarelli quando criticou os
trabalhos da pesquisadora americana sobre o uso de células mesenquimais para a criação de
células tronco embrionárias. Essa ciência mencionada por Lygia ainda aparece como incerta,
insegura e aberta em que a cada dia novidades surgem e afirmações absolutas são desfeitas a
cada novo experimento.
Esses desdobramentos apontados por Lygia em sua exposição sugere como os fatos
na ciência percorrem um caminho de afirmação enquanto tal a partir da possibilidade de não
enfrentar, mais adiante, questionamentos, sobretudo técnicos, que o torne fraco em sua
manutenção (LATOUR, 2000). Apontar como as células-tronco adultas depois de décadas de
pesquisa ainda não se consolidaram como uma via segura para tratamentos envolvendo
regeneração por terapia celular sugere um enfraquecimento dos argumentos dos cientistas
contrários às pesquisas e o fortalecimento de abertura para a continuidade das pesquisas,
mesmo se tratando de argumentos que não são técnicos, diante do incipiente desenvolvimento
de pesquisas e resultados das células embrionárias.
Uma coisa que eu queria chamar atenção é foi muitas vezes mostrado
aqui artigos científicos de grande impacto como se fossem verdades
absolutas e a gente tem que tomar muito cuidado por que na ciência
para um resultado ser tido como uma verdade absoluta ele tem de ser
reproduzido por vários grupos para ele ser então consolidado e nós
estamos aqui trabalhando numa ciência que está em franco
desenvolvimento, então todo dia aparece uma novidade. Se cada uma
108
dessas novidades vão sobreviver ao crivo de outros grupos a gente
precisa ter paciência e seriedade para ver se esses trabalhos são
reproduzidos e ao longo de minha apresentação eu vou mostrar alguns
exemplos. (Lygia Pereira, trecho da audiência).
A ciência como uma rede que mobiliza diversos atores humanos e não-humanos nos
argumentos de Lygia Pereira aparece a partir de uma reflexão sobre a plasticidade das células
tronco adultas. O que parecia uma caixa preta no sentido colocado por Latour (2000) aparece
como uma controvérsia mesmo que se desenvolva pesquisas há muitas décadas. Ao contrário
da estabilidade que os transplantes envolvendo células da medula óssea sugerem, as pesquisas
ainda provocam diversas controvérsias indicadas por Lygia Pereira.
Esse aqui foi um trabalho de 200251
publicado numa revista de maior
impacto científico em que esse grupo identificou células na medula
óssea, em camundongo, em que eles conseguiram mostrar que essas
células tinham uma capacidade, uma plasticidade de se transformar
em vários tecidos equivalentes aquelas células embrionárias. E esse
seria o melhor dos mundos. Esse trabalho foi utilizado por vários
grupos que são contra a utilização das células tronco embrionárias
como uma justificativa de porque que a gente não precisa uma célula
tronco embrionária porque a partir de julho de 2002 as células da
medula óssea passaram então a ser capazes de fazer isso tudo... (Lygia
Pereira, trecho da audiência)
O dinamismo e abertura na qual se desenvolve a controvérsia entre as células tronco
embrionária e adultas transita entre o uso, em ambos os grupos, de artigos que produziram
impactos no campo. Se por um lado, os cientistas que são contrários às pesquisas mobilizaram
a mesma pesquisa para afirmar como não há mais a necessidade para os investimentos por
parte dos países para as pesquisas com embrionárias, o grupo favorável às pesquisas
desqualificou estes mesmos artigos mostrando como as falhas nos métodos, a incapacidade de
ser reproduzido em outros laboratórios, ou resultados obtidos por outros experimentos fazem
parte do processo de obtenção de notoriedade em um campo de pesquisas ainda incipiente e
aberto.
51
VERFAILLIE, C. M. et al. Pluripotency of mesenchymal stem cells derived from adult marrow. Publicado no
volume 418 da Nature em julho de 2002.
109
Pouco tempo depois foi publicado em uma outra revista do mesmo
impacto um grupo sério dizendo que eles não tinham encontrado
nenhuma evidencia para essa plasticidade, essa versatilidade das
células da medula óssea... com isso eu não quero dizer que elas não
tenham essa plasticidade [...] e que a gente não pode tomar trabalhos
publicados mais recentemente como verdades absolutas. Eles são
indicações de caminhos mas que precisa ser confirmados e
consolidados por outros grupos... então isso ainda é uma questão em
aberto. A plasticidade das células tronco adultas... a verdade, os
pesquisadores que aqui estão e usam essas células em pacientes, em
testes clínicos eles estão vendo que elas exercem algum efeito
terapêutico maior ou menos em alguns casos... mas a verdade é que a
gente ainda não sabe qual é o modo de ação que elas estão usando esse
efeito terapêutico, nós não sabemos a extensão desse efeito terapêutico
e essa medula fosse ainda é... e os mecanismos por traz disso ainda
são uma grande caixa preta. (Lygia Pereira, trecho da audiência)
Ao mesmo tempo que aponta as controvérsias relacionadas às células adultas Lygia
Pereira também aponta limitações técnicas que precisam ser superadas nas células
embrionárias. A imensa plasticidade dessas células coloca como barreira a condução exata
para a diferenciação aos tecidos que se deseja obter. Nos camundongos esse controle da
plasticidade já foi estabilizado e se consegue produzir os tecidos que se desejam, obtendo
assim o efeito terapêutico desejado. Em ambas, tanto a plasticidade das adultas como
embrionárias há uma relação direta com a ação das mesmas no sentido de torná-las estáveis.
A procura por protocolos e redes estabilizadas envolvendo essas células já datam da primeira
publicação em 1998 dos trabalhos envolvendo células tronco embrionárias de humanos.
Nesses anos todos de pesquisa [desde 1981 em células de
camundongos, e 1998 em células de humanos] os cientistas vêm
preparando diferentes coquetéis de fatores de crescimento e elementos
do cultivo dessas células e hoje nós somos capazes de induzir a
diferenciação dessas células em vários tipos celulares específicos [...]
essas células, esses tecidos derivados das células tronco embrionárias
em modelos animais quando transplantados para os mais diferentes
modelos animais de doenças eles são capazes de exercer um efeito
terapêutico [...] então no camundongo está muito bem estabelecido os
efeitos terapêuticos das células embrionárias. Nós somos capazes de
controlar a diferenciação dessas células no laboratório e induzir a
formação de tecidos específicos [...] a gente já está trabalhando com
esse camundongo já há tempo suficiente para ter conseguido domá-las
e fazer com que esse potencial terapêutico nos modelos animais se
seja uma realidade... (Lygia Pereira, trecho da audiência)
110
Ao mobilizar tanto as células adultas e embrionárias Lygia também solicita atores
que até então não tinham sido convocados de maneira explicita e direta nas apresentações. As
agências financiadoras de pesquisa brasileiras entram em cena para compor o que a cientista
chamou de maior financiamento na busca de resultados tão empolgantes quanto os obtidos
pelas células embrionárias com as células adultas.
A ênfase no financiamento está associada, para Lygia, ao desenvolvimento não
apenas de pesquisas direcionadas para as aplicações clínicas dessas células embrionárias. O
estímulo à pesquisa básica e suas possíveis aplicações na bancada em nenhuma das
apresentações precedentes à de Lygia foi mencionada e valorizada como um caminho para a
compreensão da formação de um ser humano.
A cientista enfatiza que se pode não apenas obter resultados que proporcionem cura
para doenças, mas que é possível descobrir mecanismos complexos de diferenciação de uma
célula que conduz a forma um ser humano. A maneira como as células mobilizam uma série
de atores envolvidos com a ciência, a economia e a política e como esses mundos dependem
da maneira como essas células vão estabelecer um padrão de diferenciação ao ponto de
produzir uma linhagem capaz de produzir novas terapias nos faz pensar como Landecker
(2007) sobre a célula contemporânea como uma importante entidade econômica, produtiva e,
sobretudo, patenteável.
Acho que uma das perguntas mais fascinantes em biologia é como um
organismo passa de uma célula até um individuo complexo como é o
ser humano. Eu posso querer ser menos pretensiosa e tentar entender
como essa célula se multiplica e se diferencia em um individuo
complexo como esse feto [exibição de imagens de uma célula, um feto
e uma criança]. Isso já é extremamente complexo... ou vou um passo
atrás. Como é que essa célula decide ser um neurônio? Quais são os
mecanismos que estão por traz da diferenciação dessa célula em um
neurônio, uma célula de músculo ou uma célula sanguínea e assim por
diante... como é que eu posso estudar o desenvolvimento embrionário
do ser humano de forma ética? Uma forma que a gente tem é
utilizando as células tronco embrionárias humanas [...] a gente no
laboratório consegue que elas reproduzam alguns desses eventos do
desenvolvimento embrionário e se diferenciem nessas células e isso é
uma oportunidade preciosa de a gente entender esses mecanismos [...]
então elas antes de cumprirem uma promessa terapêutica as células
tronco embrionárias já estão nos ensinando muito sobre a biologia
básica [...] esses conhecimentos básicos por sua vez podem ser
traduzidos um dia em terapias... (Lygia Pereira, trecho da audiência)
111
Ao passo que mobiliza uma série de atores numa composição favorável às pesquisas,
a cientista Lygia mobiliza agências pouco tocadas pelos próprios cientistas favoráveis. Se
observarmos como este bloco organizou suas exposições poderíamos perceber que uma ênfase
é dada às agências humanas e não humanas ligadas às potencialidades terapêuticas que as
células-tronco mobilizam além de uma solução imediata e prática para um problema criado
pelos procedimentos da fertilização in vitro.
Os resultados que os cientistas podem obter a partir da compreensão do modo como
as células tronco embrionárias agem e suas escolhas por diferenciações em tecidos diferentes
constituem para a cientista um lição que as pesquisas com essas células têm proporcionado. E
este aspecto está diretamente relacionado aos arranjos que poderão permitir as células
informarem suas escolhas e caminhos, através de seus mecanismos de diferenciação. Para a
cientista, não se trata apenas de fazer pesquisa, é preciso domar as células, saber seus modos
de ação, fazê-las agir da maneira que se deseja. Estas metáforas e formas de dialogar com a
tecnologia apontam a dimensão de agências que perpassam as apresentações dos cientistas.
Através delas, acessamos dados do mundo dos cientistas que dizem mais sobre o trabalho da
ciência e como esta opera no sentido de estabilização precárias de redes e arranjos
sociotécnicos.
Outro ator mobilizado pela própria Lygia é o uso de trabalhos que produzem uma
certa comoção nos humanos. Se entre os outros expositores o uso desses recursos ocorreu de
uma forma vaga, em Lygia, ele extrapola a ligação direta apenas com os artigos científicos e
passa a se ter como fonte os sites que indexam pesquisas e resultados sobre o uso de tais
células. A cientista mostra uma pesquisa realizada em um dos sites e os dados coletados
indicam por parte dos estudos uma busca por doadores de embriões para o estabelecimento de
novas linhagens de células tronco embrionárias e não fases relacionadas à terapia e
implantação de células em humanos. Neste sentido, pontua Lygia, o que está sendo
desenvolvido ainda tem muito de trabalho nas bancadas e a esperança ainda precisa ser
condicionada a esta fase. Ao mesmo tempo a cientista mobiliza novamente os atores ligados
ao financiamento de pesquisa para reforçar o argumento que as pesquisas precisam continuar
a fim de obter resultados mais satisfatórios.
O esforço de estabilização das células embrionárias parece ser o caminho o qual os
cientistas favoráveis às pesquisas têm enfrentado no sentido de consolidar um campo e uma
112
prática de pesquisa. A estabilização ainda enfrenta diversos problemas oriundos dos modos
como essas células se comportam e a necessidade de vincular os financiamentos para as
pesquisas estão diretamente associados aos resultados obtidos a partir desse processo de
padronização de linhagens.
Além disso, há um esforço de procura por doadores disponíveis para a padronização
de novas linhagens celulares que sugerem não uma busca dos cientistas para estabelecer
terapias, mas sim linhagens estabilizadas que proporcione material seguro para pesquisa.
Como a própria Lygia coloca, mesmo estabilizando protocolos e linhagens celulares de
camundongos, ainda não há uma comoção no sentido de manter as pesquisas com células
embrionárias humanas.
A estabilização precária das células faz com que os cientistas comentem ou tratem as
mesmas com certo tom de imprevisibilidade. Por ainda não conhecerem os mecanismos que
as células usam para se diferenciarem e ainda ser um enigma os modos de ação dessas células,
as perspectivas das exposições dos cientistas que falaram no turno vespertino assumiram
contornos mais limitados pelos caminhos percorridos pela pesquisa até aquele momento. Ao
contrário dos expositores do turno matutino, as células solicitam e mobilizam muito da
participação dos cientistas que apresentam dados no turno vespertino. Essas mobilizações
envolvem mais dados técnicos e limites relacionados às células, tanto embrionárias como
adultas, do que uma ênfase no embrião.
Esses aspectos centrais, eu vou colocar três aspectos centrais aqui, não
é possível nós pedirmos para as células tronco que ela resolva um
problema sem de fato conhecermos qual é esse problema. Nós
queremos que a célula injetada substitua a célula lesada e queremos
que ela nutra as remanescentes e será que só havia um tipo celular a
ser substituído? Então é fundamental que nós conheçamos a doença
[...] não é possível a nós pedirmos a essas células tronco que elas
resolvam sem de fato conhecermos o potencial biológico daquela
célula [...] tem uma série de células e nenhuma é igual a outra. (Luis
Eugênio Melo – trecho da audiência)
As metáforas com as quais os cientistas estabelecem analogias sobre as células
evocam cenários de guerra e combate nos quais as células parecem enfrentar uma região para
qual não estão preparadas. Geralmente são células puras, imaculadas com origens adequadas
113
e que são implantadas em regiões complexas e arranjos metabólicos amplos (Luis Eugênio
Melo, trecho da audiência). Neste sentido, essas células precisam enfrentar um ambiente
hostil para o seu desenvolvimento. Saem de um ambiente no qual tem suas ações de acordo
com os programas de ação estabelecidos pelos cientistas, as culturas preparadas e nutridas de
acordo com os tecidos desejados, agem como programado, para um ambiente onde esses
programas são incertos e inesperados.
Ainda neste caminho as células parecem não seguir os programas de ação delineados
pelos cientistas, solicitando dos mesmos protocolos e procedimentos mais precisos. Elas
mobilizam também relações com os programas das clinicas de fertilização in vitro. As
ligações entre atores microscópicos, como as células, são estabelecidas não apenas por que os
cientistas têm um interesse em manter uma reflexão que os permitam continuar pesquisando.
Não é apenas por eles que elas falam, mobilizam, articulam uma série de outros atores
humanos e não humanos neste processo de estabilização de uma terapia, de um conhecimento
de bancada ou um parâmetro para financiamento de pesquisa. A maneira como são
estabelecidas as relações com as clínicas mostra como o judiciário, início da vida humana,
procedimentos médicos e participação de cientistas numa audiência sobre uso de embriões
estão envolvidos uma série de atores neste processo de estabilização de uma tecnologia.
Estes esforços de estabilização de uma controvérsia que começa com a discussão
envolvendo a construção da lei de biossegurança brasileira envolve uma série de atores que
imediatamente não são convocados a participar. Se dois atores preponderam na audiência, a
atuação dos cientistas e a autoridade do poder judiciário em legitimar ou não uma lei que
pretende utilizar embriões para a obtenção de células tronco para uso em pesquisas, outros
atuam mediante a ação desses cientistas e ministros. Através deles e muitas vezes interferindo
diretamente em seus modos de ação, células embrionárias ou adultas, embriões em seus
diversos estágios e programas, seus diversos modos de autonomia e controle sobre a mulher
que o abriga, pacientes que desejam uma cura para as doenças que os acometem, diversos
estudos clínicos e científicos que comprovam os limites das células tronco adultas e solicitam
mais participação e financiamento para as pesquisas com células tronco embrionárias, clínicas
de fertilização, procedimentos da fertilização in vitro questionados e associações de pacientes.
Estes atores são mobilizados e circulam, ora estabilizando precariamente redes sociotécnicas,
ora abrindo controvérsias sobre a questão das células tronco e uso de embriões.
114
Como vimos acima, os modos de ação desses diversos atores poderiam passar
despercebidos se considerássemos apenas os esforços de mercado ou o poder do judiciário
como uma autoridade que define as regras e as colocam no mundo. Definir que a partir da
legitimação constitucional de uma lei as células seguirão os programas desejados pelos
cientistas parece ser um caminho ainda não claro sobre a estabilização dessa tecnologia. Estes
caminhos percorridos pelas células, cientistas, laboratórios, pacientes sugerem menos clareza
e fechamento do que abertura e toda sorte de possibilidades e perspectivas. O próprio
desenvolvimento da audiência sugere caminhos pelos quais a controvérsia não caminha para
seu fechamento, tornando-se uma caixa preta. Amplia ainda mais os horizontes pelos quais as
pontualizações em alguns momentos transitarão entre um caminho favorável à proibição ou
uso dos embriões. E este aspecto da controvérsia fica claro no momento em que algumas
perguntas são elaboradas pelos ministros, a partir das quais os cientistas retomam seus
argumentos arregimentando não apenas dados, células, pacientes, mas também o
posicionamento dos demais cientistas presentes na audiência.
115
FECHAMENTOS PRECÁRIOS
Quando ciência e lei estabilizam arranjos sociotécnicos.
116
Chegamos ao final de nosso percurso pelos fios que nos conduziram a uma
compreensão precária da maneira como o debate sobre a lei de biossegurança se deu no
Brasil, a partir da Ação Direta de Inconstitucionalidade. Para o nosso leitor ou leitora, a
palavra “precário”, que tanto figurou ao longo desse texto, parecerá com mais sentido neste
momento. A precariedade das redes sociotécnicas formadas em torno das pesquisas com
células tronco embrionárias tem seu caráter aberto enquanto tecnologia ainda em
desenvolvimento. Não apenas neste ponto. A própria possibilidade de questionamento e
abertura de tecnologias que eram consideradas caixas pretas como os procedimentos
envolvendo as pesquisas com células-tronco adultas, indica um percurso no qual não podemos
certificar que um determinado arranjo sempre seguirá um curso de ação. Os programas desses
cursos mudam e há sempre negociações em torno dessas mudanças. E este aspecto ocorreu
com as células tronco, tanto embrionárias como adultas.
O que parecia um arranjo em fechamento pela aprovação da lei de biossegurança
tornou-se algo problemático que gerou consequências mais adiante como a audiência pública.
O estudo de nosso material empírico, neste sentido, seguiu os caminhos dados pelos atores
inseridos na controvérsia de maneira que a audiência fosse nosso ponto de partida. Como
sugere os passos teórico-metodológicos da Teoria-Ator-Rede, escolher um ponto de partida
não significa fechar os atores envolvidos nos desencadeamentos. Sugere, antes que tomemos
um ponto e a partir de então desenrolemos os fios que atam a controvérsia. Escolhemos a
audiência como material de curiosidade sociológica para nos determos. E seguirmos a partir
dela o difícil trabalho dos atores sociais em produzir, manter e desmantelar associações.
A escolha do material audiovisual nos possibilitou acesso ao que os elementos
textuais produzidos no decorrer dos processos de votação não nos foi oferecido: a
possibilidade de perceber as performances dos cientistas em apresentação, os ritmos de
exposição e os arranjos dos blocos, quem dispôs de mais tempo, quem falou pouco; aqueles
mais objetivos; aqueles que adotaram como estratégia direcionar seus argumentos para outros
cientistas presentes. Assim, como recurso metodológico, ainda que produzido pela TV
Justiça, o material revelou-se rico em detalhes que envolvem escolhas e dinâmicas de
apresentação durante a audiência. Escolhas entre mostrar a plateia em momentos estratégicos
117
na qual a presença de pessoas diretamente interessadas nos tratamentos possíveis futuramente
é notável.
Se por um lado o material audiovisual nos ajudou a captar as dinâmicas e disposições
dos blocos formados pelos cientistas, por outro, os rastros deixados em forma de processos,
petições, requerimentos, acordões, transcrições e toda sorte de materiais impressos
encontrados foram fundamentais para a reconstrução da controvérsia. Ainda que o foco não
tenha sido a análise exaustiva desse material, sua disponibilidade tornou o trabalho de
acompanhamento dos atores, em sentido retrospectivo, fundamental. Este é um dos aspectos
interessantes quando se trabalha com controvérsias que produzem passos rastreáveis. A
possibilidade de perceber o trabalho árduo de (des)estabilização de mundos (LATOUR,
2012).
A partir desse percurso podemos então esboçar algumas notas sobre a questão que
nos concerniu este estudo e algumas possibilidades de estudos futuros.
Se o nosso debate centrou num espaço onde inicialmente apenas dois atores foram
dotados de uma relevância para a controvérsia, no decorrer desta sugerimos que estes dois
atores poderiam ser mais proficuamente percebidos como pontualizações (LAW, 2005). Neste
sentido, nosso texto sugeriu que as diversas redes pelas quais atores diversos performam
ações ultrapassam a simples ideia que considera o peso das decisões do judiciário e a força de
persuasão da ciência. Os processos legais parecem ser menos afetados pela maneira como a
ciência desenrola seus achados e descobertas, mas não há como indicar que no
desenvolvimento da controvérsia em torno da audiênciaa exposição dos cientistas fizessem
parte de um simples “faz de conta”, como poderia sugerir a intervenção no voto de Eros grau,
mencionado no segundo capítulo. Como nos revela Jasanoff (1995) sobre a maneira como
tanto a ciência e o judiciário contribuem para a composição de um mundo comum.
Ainda que com conclusões baseadas em especulações, provisórias e sempre sujeitas à
modificações, a ciência em seu sentido ordinário é vista como diferente das demais atividades
sociais em virtude de seus procedimentos institucionalizados e com uma capacidade de
produzir enunciados que reivindicam validade universal. Este aspecto não pode deixar de ser
notado, sobretudo, na maneira como os cientistas se posicionam e mobilizam diversos atores
que agem através de suas apresentações.
118
Ainda que representações sobre a ciência considere-a como uma entidade separada
das demais instituições sociais, o fazer prático do cientista sugere uma maior aproximação e a
audiência sugere este trabalho de proliferação que não envolve apenas os desenvolvimentos e
descobertas em laboratórios. Neste sentido, a definição de core-set proposta por Collins e
Evans (2002) revelou-se um tanto limitada para a composição de nossa controvérsia. Mesmo
que a convocação para a audiência tenha sido restrita aos especialistas, a mobilização de
diversos atores que são concernidos a atuar e falar através dos cientistas sugere uma ação não
no sentido restrito de núcleo de cientistas que estão concernidos a falar. Aqui sugerimos que
se forma mais uma rede sociotécnica que perpassa a ação dos cientistas vistos como
pontualizações em torno do tema.
Falar sem o apoio de crianças portadoras de doenças degenerativas não emociona;
mostrar o caráter utilitário dos embriões supranumerários sem o apoio dos procedimentos das
clínicas de fertilização não resultaria numa frieza de exposição de algo que tem valor máximo
para alguns, enquanto outros consideram apenas uma massa celular; se o homem que “voltou
para a sua família” após tratamento não fosse visto a caminhar em sua roça e ainda esperando
filhos, Ricardo Ribeiro pouco poderia sugerir avanços em torno das células tronco
embrionárias e as limitações sobre as células adultas? Ainda, o que seria da autonomia do
embrião se não fosse através dos marcadores estudados por Piñero Eça que poderia localizar
as ligações químicas que o embrião desenvolve com a sua genitora horas após a fecundação?
Como então sustentar sem apoio desses atores, sobretudo, os desenvolvimentos da genética,
que um embrião é um ser humano dotado de autonomia e por isso precisa ter seu direito
garantido pela justiça?
Todos esses arranjos sugeriram, neste texto, que as relações estabelecidas entre a
ciência e o judiciário estão envolvidas nas redes mobilizadas em torno dos argumentos dos
cientistas, mesmo que, por uma diferença de um voto a favor, os que defendiam a pesquisa
tenha vencido a “disputa”. Há menos um fundamento pautado pela guerra entre os favoráveis
e contrários e sim arranjos sociotécnicos que tornaram possíveis a continuação das pesquisas.
Podemos aventar, sugerindo estudos futuros, como um certo imaginário envolvendo a ciência
poderia indicar que o grupo favorável saiu vencedor na controvérsia, mesmo o grupo
contrário apresentando resultados fundamentados em estudos científicos e até em alguns
momentos mais mobilizadores do que a “frieza” dos favoráveis.
119
Poderíamos indicar, como rapidamente sugeriu dois cientistas que apresentaram na
audiência, que no final o que estava em jogo era a lógica de mercado a qual era preciso
transformar o embrião numa mercadoria passível de manipulação e venda. A objetificação do
embrião desenvolveu-se a partir da emergência das técnicas de fertilização in vitro. Foi a
possibilidade de manipulação do embrião fora do útero que solicitou ações no sentido de
torná-lo uma entidade que não causasse muito problemas na composição de um mundo em
comum. Desde então, definições como o pré-embrião, aparecimento do sistema nervoso
central, embrião em potencial começaram a fazer parte das bancadas de laboratórios de
biomedicina, além de solicitar da justiça revisões em definições associadas à fecundação em
suas regulamentações.
Neste sentido, a ciência e o judiciário podem ser percebidas menos como instâncias
separadas em nossa sociedade e vistas como parte de um processo no qual atores humanos e
não humanos são definidos e redefinidos, e ações programadas no sentido de compor um
mundo comum, seja excluindo ou incluindo-os neste universo. Como observou Jasanoff
(2005), a lei não apenas interpreta os impactos sociais da ciência e da tecnologia, ela constrói
e remove ambientes nos quais a ciência e a tecnologia são dotadas de sentido e, sobretudo,
utilidade. A aprovação das células tronco embrionárias abre uma possibilidade de atuação
para os cientistas legitimarem institucionalmente o que já desenvolviam em bancadas nos
institutos de pesquisa pelo país.Ao mesmo tempo que indica a maneira como o judiciário tem
lidado com a emergência de novas tecnologias que demandam regulamentação. Que
envolvem um mercado, grupos interessados e diversos atores mobilizados em torno de sua
estabilização.
O recurso às apresentações dos cientistas mostrou-se curioso em termos
metodológicos sobretudo pelo acesso que proporciona aos atores que estão mobilizados na
estabilização da controvérsia envolvendo as células-tronco. Se escolhemos esses discursos
como ponto de partida não limita a possibilidade de a audiência ser fruto de novas abordagens
que a traduzam a partir de pontos diferentes. Um estudo poderia sugerir como o sistema
judiciário estaria permeável aos critérios de validação que emergem da ciência num espaço
em que o objetivo principal seria o de coletar informação para um julgamento posterior.
Acredito que outro poderia considerar a possibilidade de uma discussão envolvendo os
critérios de validade e verdade alçados pelas duas instituições não só em espaços de encontro
120
como a audiência, mas outros através dos quais há encontros. E a modernidade, no sentido
latouriano, estaria permeada de espaços como estes. Espaços híbridos em sua constituição e
proliferação.
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ANEXOS