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UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA FACULDADE DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM CIÊNCIAS SOCIAIS ISRAEL DE JESUS ROCHA AGINDO COMO EXPERTS: A atuação dos cientistas na audiência pública sobre a constitucionalidade do artigo 5º da lei de biossegurança Salvador 2013
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Jan 07, 2017

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UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA

FACULDADE DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM CIÊNCIAS SOCIAIS

ISRAEL DE JESUS ROCHA

AGINDO COMO EXPERTS: A atuação dos cientistas na audiência pública sobre a constitucionalidade do

artigo 5º da lei de biossegurança

Salvador

2013

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ISRAEL DE JESUS ROCHA

AGINDO COMO EXPERTS: A atuação dos cientistas na audiência pública sobre a constitucionalidade do

artigo 5º da lei de biossegurança

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-

graduação em Ciências Sociais da Faculdade de

Filosofia e Ciências Humanas da Universidade

Federal da Bahia como requisito para obtenção do

título de mestre.

Orientadora

Prof.ª Dr.ª Iara Maria de Almeida Souza

Salvador

2013

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À Ceição,

e seus exageros de mãe.

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AGRADECIMENTOS

Como sempre sou esquecido, espero que me perdoem. Vamos aos costumes.

Quero muito agradecer:

A Iara Maria de Almeida Souza, que mais do que orientadora e interlocutora, tem sido uma

mentora desde os tempos remotos da graduação. Agradeço o estímulo e constante disposição

nas leituras deste texto.

Aos amigos e colegas da turma de mestrado que tanto contribuíram com todo tipo de apoio

possível na construção deste texto.

A Rosanita Baptista, amiga de angústias acadêmicas, pela solidariedade nos momentos em

que “jogar para cima” significa tudo.

Aos queridos professores, pois sem eles, por bem ou mal, as coisas não teriam acontecido

dessa forma.

Aos finais de tarde das sextas-feiras conversando sobre fenomenologia, filosofia e teoria

social com o povo do ECSAS/UFBA. Tardes que tanto contribuíram, e ainda contribuem,

para a minha formação.

Aos sempre solícitos Dora e Reinaldo, dispostos sempre a resolver os problemas dos

desesperados pós-graduandos.

E por fim, mas não menos importante, ao meu computador, que além de andar nas nuvens em

nenhum momento resolveu desviar o curso de nossas ações na produção deste trabalho.

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RESUMO

A Lei de Biossegurança brasileira, após aprovação, iniciou um longo percurso pelo judiciário

que se encerraria três anos mais tarde com a audiência pública e a votação sobre a

constitucionalidade da referida lei. Entre uma e outra, uma série de mobilizações em torno da

questão envolvendo o uso de embriões para obtenção de células-tronco ganhou os espaços

midiáticos, políticos e jurídicos. O objetivo deste trabalho é analisar a controvérsia

envolvendo a lei de biossegurança a partir da audiência pública, convocada a partir da ação

direta de inconstitucionalidade 3510, no Supremo Tribunal Federal, descrevendo os modos de

ação dos cientistas envolvidos com o tema. Para isso, procura recompor a partir de materiais

audiovisuais e rastros documentais os traços deixados desde a votação no Congresso até a

audiência, ao passo que tenta mostrar como as apresentações dos cientistas são pontualizações

que evidenciam e mobilizam uma série de redes sociotécnicas formadas por atores humanos e

não-humanos. Nosso ponto de partida considera que as relações entre a ciência e o direito não

podem ser concebidas como esferas desarticuladas. Antes, elas são parte do esforço de

composição de um mundo em comum para o qual escolhemos aqueles que farão parte ou não

de tais arranjos. Conclui-se, então, que os vínculos estabelecidos pela ciência a partir da

mobilização dos atores que a sustentam não podem ser vistos de maneira isolada da

sociedade, pois há neste processo um esforço de mobilização de outros atores, como o sistema

jurídico, que atuam diretamente no sentido de lançar perspectivas de significação e contextos

de uso sobre os resultados alcançados pela ciência, sobretudo quando os objetos oferecem

riscos e afetam diretamente um número significativo de pessoas.

Palavras-chave: expertise; experts; células-tronco; Supremo Tribunal Federal;

biossegurança.

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ABSTRACT

After approval The Biosafety Bill Law in Brazil began a long journey for judiciary that would

end three years later with a public hearing and vote on the constitutionality of that law.

Between them, a series of demonstrations around the issue involving the use of embryos to

obtain stem cells gained the media, political and legal spaces. The objective of this study is to

analyze the controversy surrounding the law biosecurity from the public hearing, requested

from the direct action of unconstitutionality 3510, in Brazil’s Federal Supreme Court,

describing the modes of action of the scientists involved with the topic. For this, demand

recover from audiovisual and documentary materialsthe traces left from the vote in Congress

by the audience, while trying to show how scientists are punctualizations presentations that

highlight and mobilize a range of socio-technical networks formed by human and non-human

actors. In this case we consider that the relationship between science and law can not be

conceived as disjointed spheres. Rather, they are part of the effort of composing a common

world in which we choose those who will be part or not of such arrangements. We conclude

that the bonds established by science from the mobilization of actors that support can not be

seen in isolation from society, because this process is an effort to mobilize other actors such

as the legal system, which act directly to launch perspectives of meaning and contexts of use

on the achievements of science, especially when objects pose risks and directly affect a

significant number of people.

Keywords: expertise; experts; stem cells; Federal Supreme Court; Biosafety

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SUMÁRIO

INTRODUÇÃO 10

CAPITULO 01: Traços teórico-metodológicos 16

CAPÍTULO 02: A expertise e seus delineamentos na audiência pública 23

2.1 - As abordagens sobre a audiência pública 3510-0. 24

2.2 - A noção de pessoa revisada e o problema do embrião como indivíduo. 27

2.3 - Expertise em ação. 29

2.4 - Autoridade científica e democracia liberal. 31

2.5 - Expertise, experiência e core set. 36

2.6 - Expertise, participação pública e concernimento nos debates sobre a ciência

e tecnologia.

41

CAPÍTULO 03: rastreando os percursos da ação direta de inconstitucionalidade 3510-0 46

3.1 - O Supremo Tribunal Federal e sua primeira audiência pública. 47

3.2 - Passos para ação direta de inconstitucionalidade 3510. 52

3.3 - A ação direta de inconstitucionalidade 3510 e seus procedimentos. 62

3.4 - A disposição dos blocos. 68

CAPÍTULO 04: construindo (dis)cursos em oposição: mobilizando atores humanos e

não-humanos numa audiência pública.

77

4.1 - O embrião como massa celular 81

4.2 - O descarte do embrião e um possível destino nobre 86

4.3 - O embrião mobilizado: sua autonomia a partir daperformance químico-

biológica

97

FECHAMENTOS PRECÁRIOS: quando ciência e lei estabilizam arranjos

sociotécnicos.

115

REFERÊNCIAS 121

ANEXOS 125

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10

INTRODUÇÃO

Minhas palavras vão no sentido de agradecer à comunidade científica, que

vem trazer a este tribunal o aporte de seu conhecimento acumulado ao longo

do tempo sobre uma matéria tão difícil quanto esta que constitui o objeto, e

dizer lhes que o ato de julgar é antes de mais nada um grande exercício de

humildade.E é por isso que o Supremo tribunal Federal se reúne para ouvir a

opinião dos especialistas. Acrescentar conhecimentos e aprofundar esses

conhecimentos... para que possa, conhecendo as limitações que são próprias

do ser humano tentar encontrar a melhor solução...

(Ellen Grace, Ministra do Supremo)

Gostaria muito de aplaudir essa iniciativa... eu venho defendendo a muito

tempo a importância dos cientistas conversarem com a população, com a

sociedade... eu acho que essa interação é extremamente importante.

(Maiana Zatz, Professora de genética da Universidade de São Paulo)

Aquilo que parecia ser o final de um longo processo de construção de uma lei no

Congresso Nacional, envolvendo atores heterogêneos interessados na questão, a votação da lei

de Biossegurança1 em 2005, contudo, sua aprovação marcou o início, ou o prolongamento, de

uma longa controvérsia envolvendo as células-tronco embrionárias (CTe) e as células-tronco

adultas (CTa).Este processo culminou, três anos depois, com uma audiência e posterior

votação da ação direta de inconstitucionalidade, impetrada pelo então Procurador da Geral da

Republica, Claudio Fonteles.

O texto da lei buscava regulamentar inicialmente os organismos geneticamente

modificados com o objetivo de resolver um problema criado com a plantação da soja

transgênica na região sul do país. Entre as idas e vindas nas duas casas do Congresso, o texto

passou a incorporar um artigo elaborado para disciplinar o uso dos embriões supranumerários

para a obtenção de células tronco embrionárias.

1 Biossegurança, segundo a definição usada pela Comissão Técnica Nacional de Biossegurança (CTNBIO), é o

conjunto de medidas relacionadas à segurança, controle e diminuição dos riscos que emergem com as

biotecnologias. Em termos conceituais a biossegurança começou a ser elaborada na conferência de Asilomar, em

1975, nos Estados Unidos, quando especialistas se reuniram para elaborar propostas que minimizassem os

efeitos do progresso científico até aquele momento. O termo não foi cunhado nesta conferência e a participação

se limitou aos especialistas.

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11

Estes embriões extra uterinos não são um problema recente constituído pela

ciência. Há mais de 20 anos, quando a técnica de fertilização in vitro começou a ser

estabilizada como procedimento para resolver casos de casais que não podem ter filhos por

fertilização natural, a ciência passou a procurar delimitações para o que viria a ser chamado

de pré-embrião. Convencionou-se que essa nova entidade formada nas bancadas dos

laboratórios seria aquela desenvolvida até o 14º dia. Assim como definiu que a morte

encefálica seria uma definição precária para a morte, diante da consolidação dos transplantes

de órgãos, o desenvolvimento do sistema nervoso central seria o marco do início da vida. O

pré-embrião, como uma definição, está distante de ser uma caixa preta sem muitas

mobilizações, e perceberemos como na audiência ela será questionada por cientistas que

formaram o grupo contrário à liberação.

Se, por um lado, a lei de biossegurança tratou de colocar dois assuntos que

provocaram polêmica em um único texto, o mesmo não aconteceu com a petição inicial da

ação direta de inconstitucionalidade. Objetiva em seus interesses, a ação procurou questionar

todo o artigo que permitia o uso de embriões para obtenção de células-tronco. Sugeriu, ainda,

que o Supremo Tribunal Federal convocasse uma audiência pública com caráter instrutório

com o objetivo de ouvir pessoas com notório saber relacionado ao tema para ajudar a fornecer

subsídios para a posterior votação dos ministros, sobretudo aqueles especialistas mencionados

por ela.

À luz do disposto na parte final, do parágrafo 1º, artigo 9, da lei nº

9869/99, solicito a realização da audiência pública a que deponham,

sobre o tema, as pessoas que apresento, e que comparecerão a

audiência independentemente de intimação, tão só bastando a este

Procurador-Geral da República a intimação pessoal da data aprazada à

realização da audiência pública.2

Este notório saber esteve presente no período de constituição da lei no Congresso.

Os especialistas formaram as comissões que auxiliaram a elaboração e os arranjos políticos

que colocaram o texto sobre as células-tronco na ordem do dia da lei de biossegurança. E

alguns deles tornaram a participar da audiência no Supremo.

2 Petição Inicial da ADIN 3510-0

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12

O ponto de partida de descrição da controvérsia começa, então, pela atuação

desses cientistas na audiência. A escolha desse evento parte de um pressuposto adotado pelos

teóricos da teoria do ator-rede, sobretudo Latour (2005), segundo o qual precisamos seguir os

atores em seu trabalho de construção de um mundo em comum. Neste processo, alguns atores

ganham status de entidades privilegiadas e outros são deixados de fora no curso da ação.

A escolha pelas apresentações dos cientistas faz parte desse esforço de percebê-los

como pontualizações de redes sociotécnicas heterogêneas formadas por atores humanos e não

humanos. Algumas objeções podem surgir destacando que a audiência apenas marca o poder

discricionário do judiciário em julgar e, com de seus procedimentos, legitimar entidades que

poderão compor o mundo através das leis. No entanto, um olhar mais detido nos modos como

os cientistas foram mobilizados perceberá os diversos atores que perpassam seus discursos e

ações durante a audiência. E estes extrapolam os limites dos dados técnicos, apropriando-se

de linguagens comuns aos que assistiram e aos próprios ministros do Supremo.

O interesse pela atuação desses experts em espaços que não são usuais para os

mesmos tem sido desenvolvido em meu percurso acadêmico desde a graduação, momento em

que estudava a cobertura da mídia sobre as células-tronco. A partir desses trabalhos a ideia de

estudar como a ciência ocupa espaços fora do laboratório surgiu da tentativa de perceber que

as distinções institucionais que marcam a modernidade, ciência de um lado, sistema judiciário

de outro, podem melhor ser compreendidas quando pensamos em suas interseções e no

trabalho de proliferação de atores no mundo. Diante disso, partimos do suposto que considera

tais instituições como espaços essenciais de estabilização de atores no mundo moderno.

A emergência de objetos que surgem do trabalho científico tecnológico tem

demandado do sistema jurídico atuações no sentido de nomeá-los e discipliná-los de acordo

com as leis vigentes. Não apenas as células-tronco, assunto dessa dissertação, mas os crimes

digitais, as biotecnologias, técnicas de clonagem, mapeamento de genomas, coletas de

material genético biológico, todas estas questões têm mobilizado o direito em seus aspectos

disciplinadores.

Neste sentido, como afirma Jasanoff (1995), e veremos mais adiante, o sistema

judiciário lança bases nas quais a ciência e seus constructos podem ter um significado e

sobretudo um sentido de utilidade. Não podemos pensar então como esferas distintas de

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atuação. Elas permeiam uma a outra. Bruno Latour (2004) proporciona considerações

razoáveis sobre esse fazer da ciência, do direito e da política, concebendo em alguma medida

esses dois últimos como trabalhos cujo processo consiste em selecionar, classificar e agenciar,

fazendo com que isso ou aquilo faça parte do real, ou o que o autor chamou de composição

progressiva de um mundo comum. Assim, a ciência, a despeito de seus almejos em manter

clara a distinção e seu espaço imaculados, é uma atividade cuja prática de proliferação de

híbridos pelo mundo é política.

Como já antecipamos, o objeto dessa dissertação é o modo como os cientistas

atuaram na audiência sobre a ação direta de inconstitucionalidade promovida pelo Supremo

Tribunal Federal. Os modos de atuação dos cientistas, considerando os pressupostos teóricos

metodológicos adotados, são compreendidos menos como uma tentativa da ciência em definir

o seu espaço, e o direito no lado oposto definindo o que é seu, e sim como um esforço de

estabilização de uma série de redes sociotécnicas que se tornam visíveis pela ação de tais

cientistas. Essas redes mobilizam uma série de atores humanos e não humanos que transitam

pelas apresentações no decorrer da audiência. Em alguns momentos, atores, como os

embriões, são relevantes nos relatos, mobilizam e sugerem ações. Agem como verdadeiros

mediadores. Em outros, apenas são espécies de intermediários que conduzem sem modificar

sentidos e significados.

Desse modo, o texto aqui elaborado visa seguir os passos dados por esses

cientistas em suas apresentações na audiência. Algumas questões também o norteiam. Como

compreender os modos como a ciência e o direito se entrecruzam na contemporaneidade,

permeada por objetos que proporcionam riscos e incertezas? Que critérios de validade são

mobilizados pelos cientistas para justificar suas pesquisas e, sobretudo, legitimá-las diante de

públicos mais amplos? Como os cursos de ação que envolvem a controvérsia são a todo

instante negociados e refeitos pelos atores, seja humanos ou não-humanos? Estas questões

perpassam a dissertação que segue.

Seguindo a sugestão de descrever os modos como os cientistas atuaram na

audiência estruturamos a dissertação considerando os seguintes passos. O leitor encontrará

alguns traços teóricos e metodológicos adotados para compor nosso trabalho. Neste primeiro

momento vamos apresentar como desenvolvemos um interesse pela audiência e como autores

mais alinhados com a teoria do ator-rede nos orientam no sentido de pensar a audiência como

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um espaço no qual podemos perceber o fluxo de diversas agências. Em seguida, descrevemos

os materiais coletados e usados para recompor a controvérsia desde o momento em que foi

debatida e aprovada no Congresso.

Posteriormente, tentamos dar conta de algumas discussões envolvendo a questão

da expertise. A ciência e os especialistas têm assumido um contorno preponderante nas

explicações sobre os fenômenos naturais e sociais ao mesmo tempo em que tem demandado

dos mesmos uma maior interação e participação com públicos formados tanto por outros

especialistas, nosso caso com a audiência, como públicos leigos em tais assuntos. Isso porque

uma das características dos objetos que emergem dos arranjos científicos e tecnológicos diz

respeito ao concernimento que os públicos desenvolvem em relação às consequências que tais

objetos podem provocar.

No capítulo dois, delineamos uma discussão sobre a noção de expertise como ela

nos ajuda a pensar as articulações presentes na audiência, perpassando o debate envolvendo a

participação de especialistas no âmbito politico até os contornos que a noção assume com os

estudos sociais sobre a ciência e a tecnologia. Além de uma discussão sobre expertise,

apontamos alguns limites presentes nos trabalhos anteriores que debateram pontos em comum

com nosso texto. A pretensão nesta parte é mostrar como estes trabalhos centraram em

aspectos que deixaremos de lado no debate proposto pela dissertação, como a questão da

noção de pessoa e a definição do que é embrião e como os juristas trataram o tema.

No terceiro capítulo traçamos os fios que ligam a controvérsia na audiência aos

seus vínculos iniciais com a votação da lei de biossegurança em 2005. Essa recomposição

considerou aspectos que conduziram à audiência e como a própria constituição da lei oscilou

entre a inclusão e retirada do tema das células-tronco da pauta. O que seria parte de outra

legislação, com defenderam alguns, acabou tornando-se parte de uma discussão elaborada

para desviar os holofotes televisivos da questão envolvendo os organismos geneticamente

modificados. Além desses vínculos com a votação no Congresso, articula-se o modo como a

audiência foi construída, a maneira como os blocos se consolidaram e os arranjos

improvisados nos procedimentos da audiência, pois se tratou da primeira realizada pelo

Supremo Tribunal Federal.

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O último capítulo é um desdobramento do anterior e tem como objetivo colocar os

relatos dos cientistas em temas que predominaram nas apresentações. Neste sentido,

falaremos da maneira como os blocos organizaram estratégias a fim de colocar o embrião

como um objeto criado fora de uma relação com seus genitores e, por isso, passível de

manipulação como um produto da prática científica. De outro modo, temos a tentativa de

proporcionar uma autonomia do embrião por parte dos cientistas contrários às pesquisas com

células tronco embrionárias. Neste percurso atores emergem e são mobilizados na sustentação

das performances na audiência. Transitamos entre embriões, artigos científicos, crianças com

doenças degenerativas, pacientes curados, o mercado capitalista ávido por novos produtos, a

prática médica revisitada, bem como uma sorte de atores que em alguns momentos são

intermediários e em outros mediadores.

Ao final, retomamos a discussão no sentido de consolidar a perspectiva

desenvolvida durante o texto. Aquela que procura perceber a audiência mais como um

processo no qual uma série de redes sociotécnicas estão sendo mobilizadas a fim de

possibilitar a composição de um mundo em comum. Se neste mundo teremos ou não

participação de células embrionárias, de embriões supranumerários, cabe seguir os fios que

nos conduzem à audiência.

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16

CAPÍTULO 01

Traços teóricos e metodológicos

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Analisar um material que em alguma medida se revela desgastado por diversas

abordagens apresenta-se sempre como uma tarefa difícil e cautelosa. Aqui coloco-me diante

de tal problema. Inicialmente concebida como projeto para tratar da cobertura da mídia entre

o período da votação da Lei de Biossegurança em 2005 e o debate que envolveu o artigo 5º de

tal lei, sobre a liberação do uso de embriões supranumerários para obtenção de células-tronco

embrionárias, no Supremo Tribunal Federal, este texto tomou rumos outros por alguns

obstáculos ocorridos durante seu desenvolvimento. Trabalhar com a cobertura da mídia sobre

o caso tinha sido um tema pouco discutido nas fases iniciais na tentativa de estudar as

relações entre a ciência e a sociedade. Objeto este que dialogo desde a graduação com as

pesquisas desenvolvidas sobre a organização e a cooperação em um laboratório de terapia

celular.

Após descobrir que uma tese de doutorado (BROTAS, 2011) em comunicação tratou

de muitos aspectos que pretendia discutir, resolvi retomar os objetivos do projeto e deslocá-

los de uma análise da cobertura midiática para uma observação da maneira como a expertise

tinha sido delineada na controvérsia que ocasionou a audiência pública. Não desprezando os

materiais empíricos coletados ainda quando a pesquisa dizia respeito a cobertura da mídia,

tomei os mesmos como tentativa de recomposição da controvérsia na audiência, seguindo os

rastros deixados pelos atores em suas tarefas de construção de um mundo em comum

(LATOUR, 2004).

As matérias veiculadas pela imprensa revelaram algumas pistas sobre a dinâmica dos

atores envolvidos: cientistas, juristas, associações de pacientes, advogados interessados,

leituras e ilustrações que demonstravam uma certa movimentação em torno do evento. Não

apenas este movimento, mas uma série de redes mobilizadas em torno da defesa dos embriões

e de seu uso para os fins de pesquisa.

Deslocando os objetivos, o primeiro passo foi coletar os dados referentes à audiência.

Passei a trabalhar com os dados audiovisuais da audiência e julgamento. Todas as

apresentações ocorridas na audiência foram registradas em audiovisual e disponibilizadas para

qualquer interessado no material. Ao todo, os registros audiovisuais somam quase 5 horas de

apresentações e sessão de perguntas e respostas. Outra parte do registro consta as leituras dos

votos dos ministros, que somam cerca de 6 horas de material audiovisual. Parte do material

usado foi transcrito para fins de uso na pesquisa.

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Além do material audiovisual, uma busca por documentos foi realizada com o

objetivo de obter mais detalhes sobre a controvérsia e a audiência. Os documentos do trâmite

jurídico da mesma foram encontrados em sites especializados em direito. Por ter sido a

primeira audiência pública no Supremo, muitos estudos relacionados ao Direito foram

elaborados com o objetivo de entender o processo. Assim, a literatura dos estudos jurídicos

sobre o debate e a organização da audiência ajudou-me a seguir os rastros, em alguns

momentos não identificados a partir do material audiovisual. Todo o processo, desde as

petições até os despachos estão disponíveis no site do Supremo Tribunal Federal3. Estão entre

esses documentos: os votos dos Ministros disponíveis tanto no site do Supremo como em sites

especializados. As petições iniciais do processo, as convocações dos cientistas, os convites

enviados pelas partes interessadas e os documentos que solicitavam inclusão de membros

antes não convidados para o certame. Todos fazem parte dos materiais coletados e compõem

o quadro de materiais empíricos usados nesta pesquisa.

Adotando como premissas deste trabalho os pressupostos da teoria-ator-rede, procuro

recuperar a controvérsia seguindo o maior número de rastros deixados pelos atores envolvidos

nela. Sigo, então, uma premissa fundamental de simetria ontológica entre os atores envolvidos

no debate, não privilegiando, a priori, nenhum ator como ponto de partida (LATOUR, 1989,

2000, 2005; LAW, 2005; JASANOFF, 1993, 2002, 2005, CALLON et al. 2010). Mesmo que

nosso objetivo seja a ação dos experts, a compreensão que segue este objetivo é que, ao

considerá-la, tomamos tal ação como pontualizações de redes sociotécnicas (LAW, 2005). Há

diversos pontos que nos direcionam para análise da ação dos experts considerando-os a partir

da noção apresentada por John Law (2005). As pontualizações se apresentam tanto como uma

maneira de as redes sociotécnicas se fecharem, assim aparecendo como um recurso que pode

ser mobilizado e se apresentam também como uma simplificação da heterogeneidade da rede.

Neste sentido, por mais que consideremos que o sistema jurídico e seus representantes na

audiência tenham um peso relevante na controvérsia, reconhece-se que é mediante o agir dos

especialistas que nos é permitido rastrear os diversos fios que desenrolam a controvérsia.

3www.stf.gov.br. Basta inserir o nome a referência da ADIN nos motores de busca do site que será visualizada a

página que consta os documentos produzidos pelo processo. Não há com identificar que se trata de todo o trâmite

envolvendo a ADIN, mas o material oferece informações substanciais para o rastreamento de pontos discutidos

na audiência.

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Seguindo o argumento, poderíamos pensar no que levou os Ministros a convocarem

os especialistas em pesquisas com células-tronco a falarem em nome delas, se os mesmos

poderiam mobilizar a rede de uma forma mais dilatada, como a ação de um dos Ministros

sugere quando faz uma visita ao laboratório? A simplificação, neste argumento, aponta apenas

para os recursos pontualizados nos quais as redes podem ser mobilizadas e utilizadas

rapidamente sem o envolvimento direto com complexidades intermináveis (LAW, 2005). A

audiência não seria nada curta se os cientistas detalhassem e recuperassem todas as

complexidades que estão sendo mobilizadas em torno de suas apresentações. E eu como

pesquisador já teria, em alguma medida, desistido de descrevê-los. E os ministros já teriam

julgado antes da conclusão dos trabalhos.

Mas esta proposição não advém de uma postura teórico-metodológica de

considerar a análise dos especialistas, a priori. Parte da consideração sobre os diferentes

modos como a controvérsia é performada a partir das apresentações dos experts na audiência.

Seguindo os rastros deixados pelos cientistas ao longo de suas exposições, registramos os

diversos atores concernidos a agir com, entre e por eles. Por serem porta-vozes tanto de

humanos como de não-humanos, resolvi, com o risco que se corre ao delimitar, torná-los

atores chave na compreensão da controvérsia. A própria Teoria-Ator-Rede não se fecha sobre

este ponto. Seria difícil tocar uma descrição dos modos como uma controvérsia se desenrola

sem escolhermos traços que consideramos mais interessantes, ou que os atores no seu trabalho

de construir mundos sugiram como importantes a serem considerados.

A indeterminação (Latour, 2005) nos pontos de partida permite, neste sentido, ao

pesquisador rastrear a multiplicidade de atores envolvidos com a controvérsia, e a escolha dos

caminhos segue muito mais trilhas abertas e fechadas por eles do que uma seleção prévia,

realizada pelo investigador. Seguir os atores é seguir escolhas que os mesmos fazem sobre a

questão em análise. A controvérsia pode ser constantemente aberta devido ao seu caráter de

estabilização precária (LAW, 2005). Alguns atores sucumbiram no decorrer do processo de

coleta e acompanhamento de suas atribuições na controvérsia. Outros seguirão mesmo quando

o pesquisador colocar um ponto final no trabalho.

Outra premissa importante levantada pelos estudos sociais sobre a ciência é a

quebra dos privilégios epistemológicos dados aos cientistas, procurando compreender como a

audiência faz parte de um processo de estabilização de uma nova tecnologia que relaciona

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experts, jornalistas, um público mais amplo e aqueles diretamente interessados nos resultados

das pesquisas como potenciais usuários de tais tecnologias. Nesta perspectiva, a análise dos

processos de estabilização privilegia menos o trabalho dos cientistas, no sentido tradicional de

descoberta de fatos já dados no mundo, e abre margem para os diversos atores envolvidos na

controvérsia.

As sociedades contemporâneas caracterizadas por incertezas e riscos têm gerado

controvérsias que envolvem os desenvolvimentos científicos e tecnológicos. A própria

conformação desses objetos já produzem mobilizações de atores heterogêneos e argumentos

que não são puros em termos científicos. Sugerem que as fronteiras e delimitações que

usualmente mobilizamos para descrever nossos objetos são pouco profícuas em termos

práticos, mas que geram grandes divisões como as apontadas por Latour em Jamais fomos

modernos (2011). A separação operada pela modernidade entre regiões nas quais transitam

fatos e outras valores nos remete aos processos em que criamos mundos nos quais os não-

humanos parecem desvinculados do mundo dos humanos. Este processo contínuo que Latour

chamou de separação das esferas. O debate na audiência pública sugere que o embrião

congelado está seguindo este curso de ação ao romper vínculos direto com os humanos e

sofrendo o processo de transformação em objeto (CESARINO, 2006).

No mesmo sentido, os riscos e incertezas que são oferecidos por esses objetos

controversos e ambivalentes mobilizam e interessam um público mais amplo, solicitam novos

espaços de decisão, ainda em fases de mobilização de uma pluralidade de atores. Tais

espaços, apresentados por Callon et al. (2010), são considerados fóruns híbridos por que

permitem uma multiplicidade de performances que envolvem a abertura e o fechamento de

uma controvérsia. Por mais que na audiência possamos não considerar a participação explícita

desses atores mobilizados, eles em diversos momentos da controvérsia são solicitados e

arregimentados.

Considerando as observações feitas por Latour (2004) sobre a questão da

formação dos coletivos, o constante trabalho de proliferação e inserção de novos atores no

mundo em comum, tais inserções envolvem um processo exaustivo de concernir aos atores

atribuições nestes coletivos. A noção de matters of concern nos ajuda a pensar a controvérsia

em questão como uma boa ilustração de como a ciência se apresenta como uma prática de

produzir híbridos de fatos e artefatos que produzem diferenças nos coletivos. As células-

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21

tronco (embrionárias ou adultas), em jogo na audiência, convocam atores heterogêneos a

falarem em nome delas. Solicitam atenção, provocam dúvidas, até mesmo descrença em suas

potencialidades. Colocam em xeque a sua própria existência no mundo comum. Definem e se

redefinem de acordo com os atores que são afetados por elas. Reivindicam esperança,

mobilizam pacientes. Solicitam deles mobilizações diante do Congresso. Se trata não apenas

de especialistas em ciência e direito a definirem limites de uso de uma determinada

tecnologia. O que está em jogo, podemos sugerir, é como essa tecnologia (células-tronco) será

disposta em um mundo comum entre humanos e não humanos.

Kristin Asdal (2008) apresenta um caso interessante sobre a ciência nos caminhos de

espaços considerados políticos. Adotando a perspectiva de Michael Lynch (1998, apud

ASDAL, 2008), que explorou como o corpo do animal se transformou em objeto científico no

laboratório, Asdal procurou perceber como em alguma medida o uso do animal se tornou algo

não só cientificamente, como também cultural e politicamente aceito. Seu argumento então se

desloca do laboratório como o lugar privilegiado para a compreensão dos usos de animais, o

que aqui poderia ser estendido para os embriões, como uma questão que precisa ser

performada fora dos muros que cercam o laboratório. É nos espaços políticos, como o

Parlamento, o Congresso Nacional, o Supremo Tribunal Federal, que são performados, aceitos

ou excluídos e delimitados como objetos possíveis de atuarem no mundo em comum.

Asdal (1998) aponta que entre o fim do século 19 e inicio do século 20 inúmeros

países introduziram leis que regulavam e proibiam os maus tratos com animais. Tais

regulamentações não apenas discutiam normas para animais domésticos como também

aqueles que eram utilizados em laboratório. No mesmo período, considerando o caso

Norueguês, a comunidade médica tomou para si o trabalho de performar como a medicina

experimental estava ligada à sociedade através de suas descobertas, que seriam em última

instancia para resolver os problemas da própria sociedade. Assim sendo, o uso dos animais

como objetos não se prestava apenas para os propósitos da ciência, para descobrir mais sobre

a natureza ou desvendar os caminhos da verdade. Tratou-se de uma benéfica ligação entre o

laboratório e o alívio da dor e sofrimento fora de seu espaço. (ASDAL, 2008. p. 903).

Se compararmos os argumentos e recursos utilizados pelos experts na audiência, em

muitas articulações mobilizadas por eles, a sociedade aparece como um recurso que produz

efeitos sobre a maneira como os ministros poderiam ou não incorporar em seus votos. O voto

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22

da Ministra Ellen Grace aponta para as possibilidades que os embriões supranumerários

poderiam oferecer à sociedade em seu uso para a obtenção das células-tronco.

Na mesma audiência, ainda podemos perceber como os argumentos levantados por

um dos ministros, Lewandowski, apresentam certa desconfiança no papel da expertise em

definir o que pode ou não ser feito com os embriões. Essa desconfiança Asdal (2008) também

identificou no caso dos animais, quando o parlamento norueguês colocou limites à autonomia

da comunidade científica, bem como o direito da mesma em regular suas próprias atividades.

Tal perspectiva e interesse do Parlamento estavam ligados não apenas a uma critica à falta de

limites dos cientistas, mas também um certo desapontamento sobre os experimentos médicos,

aponta Asdal (2008).

Em certa medida, como veremos no próximo capítulo, a tônica de alguns votos,

principalmente os contrários à constitucionalidade do artigo, seguiram estes aspectos

apresentados na discussão de Asdal. Muito mais do que agir apenas no laboratório, cabia aos

cientistas performar e mobilizar diversos atores em torno da constitucionalidade do 5º artigo

da lei de biossegurança. Em muitos casos, na audiência, assim como as comissões à época da

votação no Congresso, tais performances precisaram extrapolar o universo do laboratório e

serem atuadas em espaços políticos4.

Seguiremos adiante os rastros deixados pelos ministros, cientistas, associações de

pacientes, organizações religiosas deixaram no desenrolar da controvérsia.

4A leitora, ou leitor, já deve ter percebido que a menção aos espaços como científico, sociedade ou político em

muitas ocasiões do texto estão mais de acordo como adoto uma certa leitura do autor(a) que no momento discuto,

do que como uma posição explicita de quem escreve. Preciso, então, deixar mais uma vez claro que se

desvincular desses recursos mais alinhados a uma sociologia do social (LATOUR, 2005) em alguns momentos

se torna uma tarefa difícil. A maneira como manuseio aqui não cria abismos e fronteiras entre tais espaços, como

coisas bem distintas e delimitadas. Aqui estou mais alinhado com uma Sociologia das associações (LATOUR,

2005; LAW, 2005 e CALLON, 2010) em que tais usos aparecem muito mais como recursos para facilitar a

compreensão do que como uma certa diferenciação ontológica dos mesmos. Latour (2004) usou a expressão

coletivos com o objetivo de minimizar as confusões entre uma sociologia que toma a sociedade como objeto

externalizado e outra sociologia que considera o próprio uso do termo sociedade inapropriado para dar conta das

inúmeras associações que envolvem o trabalho constante de estabilização precária do mundo.

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23

CAPÍTULO 02

A expertise e seus delineamentos na audiência pública.

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24

2.1 - As abordagens sobre a audiência pública 3510-0.

Durante o intervalo entre a votação da lei de Biossegurança em março de 2005 e a

audiência pública em 2008, diversas pesquisas sobre o caso das células-tronco no Brasil

foram desenvolvidas. As principais abordagens sociológicas e antropológicas sobre o tema

procuraram destacar o papel dos atores na dinâmica do trâmite na Câmara e no Senado,

discutindo o processo de construção da lei de Biossegurança (CESARINO, 2006), o embrião

a partir de uma noção de pessoa como categoria explicativa chave para a questão do embrião,

tanto na construção dos artigos relacionados às Células-tronco na Lei, como em sua votação

por constitucionalidade no Supremo Tribunal Federal (LUNA, 2009). Em outro trabalho,

Naara Luna (2007) discutiu o conceito de ‘vida’ nos debates que envolveram os ministros do

Supremo.

Além das abordagens mais diretamente relacionadas ao debate e a forma como

categorias como “pessoa” e “embrião” foram manuseadas pelos atores envolvidos na

audiência pública e na sessão de votos dos Ministros, outras perspectivas elaboraram

comparações entre o debate brasileiro e o debate britânico na definição dos limites do embrião

humano (CESARINO, 2007).

Outra questão que ecoou como desdobramento, principalmente a partir de uma

discussão mais antropológica, procurou destacar a pertinência de se considerar certas

categorias como elemento explicativo para a controvérsia envolvendo as células-tronco

(ALMEIDA; PEREIRA, 2010). Para estes autores, considerar o embrião como uma categoria

explicativa centrada em numa ideia de unicidade seria um problema trazido pela perspectiva

usada nos trabalhos de Salem (1997) e Luna (2007). Neste sentido, as perspectivas que

consideraram o embrião a partir de uma noção de pessoa pouco elucidariam o debate já que

desconsiderariam a hibridicidade e os diversos atores envolvidos nas constantes definições e

redefinições do embrião na controvérsia.

O embrião extracorpóreo, traço das tecnologias de reprodução assistida, seria um

adensamento das características da individualidade moderna e o consequente velamento dos

vínculos de parentesco. Um dado interessante trazido por Salem (1997) é que este embrião

que vive fora do útero está inserido numa rede mais complexa que outrora. Além dos seus

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25

genitores, outros a partir de então poderiam agir com e falar em seu nome. Dizer sobre sua

natureza e resistência [depoimento de Patrícia Pranke], defender suas relações químicas com a

futura mãe [depoimento de Elizabeth], convocar atores que dependem de sua condição

favorável para pesquisas e minorar seu peso enquanto vida [depoimento de Maiana Zatz], ser

meramente um aglomerado de células, um blastocisto [depoimento de Ricardo Ribeiro].

Todos estes vínculos precários multiplicados com a possibilidade extracorpórea tornam o

embrião um ente que concerne a muitos atores, liga grandes mercados e empresas a

associações de pacientes e genitores a possíveis beneficiários da tecnologia de células-tronco.

Outra questão que precisamos destacar desses trabalhos é a adoção de uma

perspectiva de análise baseada no pressuposto segundo o qual o debate brasileiro estava

centrado, tanto no Congresso como no debate jurídico do Supremo, numa ideologia moderna

do individualismo, discutida extensivamente por Louis Dumont (1985), considerando como

consequência que o embrião seria um indivíduo dotado de autonomia. Em linhas gerais, o

argumento de Dumont (1985) centra-se na distinção entre o sujeito empírico e o sujeito com

valor moral. Tal distinção parte de um suposto que o individualismo moderno teve sua

semente ainda entre os primeiros cristãos e o mundo que os cercam. O sujeito empírico é

aquele que fala e pensa, a amostra individual da espécie humana. O ser moral, aquele

autônomo, não-social e portador dos nossos valores supremos, e que se encontra em primeiro

lugar em nossa ideologia moderna do homem e da sociedade. Tendo como base essa

distinção, Dumont argumenta que há duas espécies de sociedade. Uma centrada na ideia de

indivíduo como valor supremo, por consequência o individualismo; e outra, um caso oposto,

em que o valor está na sociedade, então que se tem o holismo. (DUMONT, 1985. p. 36-37).

Os indivíduos nas sociedades tradicionais não têm o valor moral como nas

sociedades modernas. Como estas sociedades, do ponto de vista histórico, partem das

sociedades tradicionais, a questão colocada por Dumont é compreender como ocorreu tal

mudança, já que o autor supõe que ocorreu de maneira natural que o individualismo surgiu em

oposição à sociedade holista. Uma tese sugerida pelo autor encontra-se na sociedade indiana.

A figura do renunciante sugere pistas para o entendimento das origens do individualismo. O

renunciante indiano é aquele que,

basta-se a si mesmo, só se preocupa consigo mesmo. O pensamento

dele é semelhante ao do indivíduo moderno, mas com uma diferença

essencial: nós vivemos no mundo social, ele vive fora deste [...] um

Page 26: Agindo como experts... Israel de Jesus Rocha.pdf

26

‘indivíduo-fora-do-mundo’. Comparativamente, nós somos

‘indivíduos-no-mundo’ (DUMONT, 1985. p. 38)

Para Dumont (1985), o individualismo surge como um suplemento nas sociedades

tradicionais, mas não como o conhecemos na forma moderna. Por isso a comparação entre o

‘indivíduo-fora-do-mundo’ e ‘indivíduo-no-mundo’.

Considerando a abordagem de Dumont (1985), Luna e Salem traçaram uma

leitura do debate envolvendo a questão das células-tronco como uma possível leitura e reflexo

desse individualismo das sociedades modernas, proposto pelo autor. Ao considerar em linhas

gerais os argumentos essenciais da perspectiva dumontiana, para Almeida e Ferreira (2010), o

problema desta abordagem (LUNA, 2007, 2009 e SALEM, 1997) da controvérsia reside na

persistência em analisá-la com referência a uma noção de pessoa assentada em pressupostos

exclusivamente ocidentais, desconsiderando os desdobramentos que a mesma implicaria se

mudássemos a perspectiva. Quando analisada em outros termos, afirmam Almeida e Ferreira

(2010), a controvérsia deixa ser considerada como apenas uma alegoria de uma suposta

ideologia moderna e o embrião passa a ser colocado em termos de relações que são

estabelecidas em diversas situações apresentadas pelos cientistas e magistrados em seus

argumentos.

De tais situações emergem possibilidades nas quais o embrião tem suas definições

avaliadas e reconfiguradas a todo instante. Elas podem dizer respeito em alguns momentos ao

desenvolvimento do país num ranking de pesquisa; podem estar associadas às imagens de

crianças portadoras de doenças degenerativas, como na apresentação de Maiana Zatz; em

alguns momentos está em relação de autonomia com a genitora, quando já pode enviar para a

genitora informações sobre o seu desenvolvimento, que independe de sua relação de

dependência química com a mesma; em outros momentos pode ser apenas algo que não pode

ser destruído em nome de pesquisas que ainda não produziram resultados satisfatórios, entre

outras situações que podem ser vistas no quadro de distribuição dos argumentos das

apresentações no quarto capítulo. O embrião extracorpóreo, dessa maneira, seria visto como

um ente que ultrapassa as fronteiras usuais como cultura/natureza, na medida em que se

estabelece múltiplos vínculos em sua definição, vínculos esses incapazes de serem discernidos

entre culturais e naturais (ALMEIDA; PEREIRA, 2010).

Page 27: Agindo como experts... Israel de Jesus Rocha.pdf

27

Neste sentido, veremos na próxima seção como se desenvolveu algumas

abordagens envolvendo a controvérsia, sobretudo a questão do embrião como tema central da

controvérsia.

2.2 - A noção de pessoa revisada e o problema do embrião como indivíduo.

O debate em torno do embrião e as células-tronco no Brasil, de acordo com as

análises elaboradas e resumidas na seção anterior, girou em torno do pressuposto segundo o

qual o embrião é um indivíduo. Ao considerar o debate uma alegoria da ideologia moderna,

tais abordagens deixaram de considerar pontos que serão levados em conta aqui. A questão do

embrião, então, foi abordada dentro de características que dizem respeito a tal suposta

ideologia e os dados levantados por Salem e Luna corresponderam às características que

sugeriram os caminhos da controvérsia alinhados no sentido de demonstrar tal

correspondência no debate brasileiro.

No sentido empregado tanto por Salem (1997) como por Luna (2007) o debate

brasileiro envolveu o embrião com uma certa definição de vida vinculada à concepção de

pessoa, o que marca parte dos relatos dos participantes da controvérsia. Além disso, o

conceito de vida, como destacado por Luna (2007), foi vinculado a uma definição religiosa e

uma noção mais ligada à biopolítica, que estaria mais identificada com as atividades

científicas, pouco foi mobilizada no julgamento, ponto este que foi polarizado em alguns

momentos das exposições da audiência. A ideia de vida interpretada como bem jurídico

apresentada pelos ministros se aproximou da linguagem religiosa da vida como “dom de

Deus”.

Para Luna (2007), tanto a petição inicial da Ação Direta de Inconstitucionalidade

3510, como a Campanha da Fraternidade, organizada pela CNBB no ano de 2008, afirmaram

em seus argumentos uma ideia de que a vida começava na concepção e que, portanto, o uso

dos embriões para a produção de células-tronco feria preceitos fundamentais garantidos pela

Constituição Brasileira, como a dignidade da pessoa e o direito à vida. Ambos os textos

fundamentaram-se em dados biológicos para garantir que o embrião extracorpóreo seria um

depositário dos direitos, garantindo assim sua dignidade enquanto pessoa. Assim, Luna afirma

Page 28: Agindo como experts... Israel de Jesus Rocha.pdf

28

que nos dois espaços em que a controvérsia foi performada figurou uma representação de

pessoa apenas como indivíduo, destacando o pressuposto já discutido por Almeida e Ferreira

(2010) que tais análises colocaram o prisma do individualismo como uma ideologia moderna

e presente em todo debate.

Deslocando o debate de tal pressuposto, o que se pode rastrear da controvérsia,

segundo Almeida e Pereira (2010: 11) é uma certa ideia a qual o embrião extracorpóreo seria

dotado de uma visível fractalidade. Neste sentido, no calor dos ânimos elevados pela poeira

não assentada da controvérsia, o embrião estaria envolvido num conjunto de vínculos

implicados que em um dado momento presta-se a uma definição que o considera um humano,

o que garante uma proteção por parte do Estado, ou em outros momentos apenas como um

conjunto de células que serão lançadas diretamente nas bancadas dos laboratórios Brasil afora.

Quando deslocado o debate em torno do embrião de uma concepção que o trata

em seu pressuposto como um indivíduo para uma noção que o redesenha em redes de

definições, o embrião extracorpóreo deixa de estar implicado nas variações dos discursos que

supostamente estão simplesmente baseados em uma ideologia moderna do individualismo, de

acordo com os discursos proferidos pelos atores que se posicionam na controvérsia, e passa a

ser compreendido ao largo pelas relações que são estabelecidas e que o redefine a todo

momento. Neste sentido, o embrião extracorpóreo para alguns dos cientistas que defendem a

constitucionalidade da Lei de Biossegurança é diferente em termos relacionais dos cientistas

que garantem que o artigo 5º da lei fere os princípios constitucionais e sua garantia como ser

humano. Ele pode ser o ator que vai posicionar o Brasil no ranking mundial dos países que

desenvolvem pesquisas biomédicas de alto nível. Vai estar envolvido nas redefinições do que

é ser paciente portador de doença degenerativa, inserindo expectativa e esperança em novas

relações. Noutras situações será o ente que já estabelece um contato intimo com o ser que o

abriga por nove meses (a mulher), através da troca de elementos químicos.

Em todo debate, segundo o deslocamento produzido por Almeida e Pereira, os

embriões extracorpóreos passíveis de serem utilizados nas bancadas para a produção de

células-tronco, têm seus limites e contornos negociados constantemente. No capítulo 4,

quando nos deteremos mais nos detalhes das apresentações, as fronteiras de tal embrião são

recolocadas a cada 15 minutos, espaço este dado entre uma apresentação e outra. Ainda que as

apresentações figurassem em mesmo bloco, favorável ou contrário, a negociação em torno das

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29

definições apresentavam variações nítidas de relações implicadas que o embrião estabelece

com seus porta-vozes. Estas relações pouco deixam claras em quais aspectos o embrião está

implicado, se em termos culturais ou naturais. A oposição, neste sentido, pouca diferença

produz nas relações que são performadas pelos embriões, cientistas, pacientes, juristas e

atores envolvidos na controvérsia.

2.3 - Expertise em ação

A expertise passou a ser encarada como objeto de estudo entre autores dos estudos

sociais sobre a ciência e tecnologia (ESCT) a partir da percepção do envolvimento dos

cientistas em debates públicos relacionados as decisões sobre o uso e o impacto de

tecnologias no cotidiano das pessoas. Tais debates públicos em sua maioria estavam imersos

em controvérsias acerca do uso de tais tecnologias, controvérsias que extrapolavam os limites

laboratoriais e envolviam diversos atores em sua dinâmica de estabilização.

A expertise, à maneira dos autores dos ESCT, não assume um sentido

homogêneo. As abordagens foram diversas e procuraram tanto seguir um programa de

pesquisa relacionado ao Programa Forte de David Bloor (2009)5, como é o caso da

perspectiva de Collins e Evans (2002; 2010), até perspectivas que incialmente surgiram como

reação à concepção daqueles, sobre a terceira onda nos estudos sobre ciência e tecnologia.

Esta onda foi marcada pela criação de uma teoria normativa da expertise e da experiência na

ciência, e as suas críticas apontam para uma abordagem do problema da expertise em termos

de heterogeneidade de agenciamentos e pontualizações.

Parte dos argumentos em reação a teoria da expertise surge dos trabalhos de

Sheila Jasanoff (2003a; 2003b), Arie Tip (2003), Brian Wynne (2003), Anne Kerret al (2007).

5 O Programa Forte de David Bloor desenrolou um novo impulso nos estudos sociais sobre a ciência, retomando

alguns argumentos apresentados por Thomas Kuhn em seu livro: A estrutura das revoluções científicas. O

impulso do Programa, no entanto, se deu diante da ideia de simetria proposta por Bloor, ideia até então

marginalizada na sociologia do conhecimento do período. Em termos gerais a simetria proposta por Bloor

procurava tratar de maneira simétrica tanto os erros como os acertos da ciência. Até então, os sociólogos do

conhecimento procuravam apenas os fatores extracientíficos, sociais e psicológicos, para a explicação dos erros

na ciência. Os acertos pouco interessavam pois se tratavam de curso normal da racionalidade científica. Questão

que será ainda mais radicalizada com os estudos que sucederam o Programa Forte, como as etnografias dos

trabalhos científicos.

Page 30: Agindo como experts... Israel de Jesus Rocha.pdf

30

Além desses trabalhos, que discutem o argumento apresentado por Collins e Evans, nos

aproximaremos das perspectivas de Bruno Latour (2000; 2005); Michel Callon et al (2011) e

Sheila Jasanoff (2003a) que ajudam a pensar o argumento no qual a audiência pública em

discussão neste texto precisa ser entendida a partir da ação dos especialistas como uma forma

de estabilização de redes que envolvem diversos atores. Neste sentido, cabe menos considerar

que os discursos, tanto das ciências como do direito, estão ocupando espaços distintos e bem

delimitados na controvérsia. Trata-se de perceber como o próprio sistema legal (a questão

jurídica) tem tido um importante papel no desenvolvimento de uma percepção pública da

ciência e que o papel dessa não pode ser entendido sem uma vinculação com os seus diversos

trânsitos com o âmbito da justiça (JASANOFF, 1995).

Como sugere Jasanoff (1995), a lei não apenas interpreta os impactos sociais da

ciência e da tecnologia, mas também constrói regiões virtuais e materiais pelas quais tanto

uma como a outra passam a ter sentido, utilidade e peso nos processos e dinâmicas sociais. Os

limites que poderíamos sugerir para uma separação entre essas duas instituições acabam por

se revelarem frágeis diante de objetos e temas híbridos que exigem tanto da ciência como do

direito mobilizações a fim de produzir significados e sentidos para arranjos científicos

tecnológicos que não estão devidamente estabilizados, em termos de lei ou procedimentos de

pesquisa.

A audiência pública mobilizada em torno do uso dos embriões considerados

inviáveis insere-se nestes processos em que tanto a ciência como o regime jurídico precisam

estar distribuídos em espaços comuns no sentido de procurar novas formas de configuração

sobre essas novas entidades, frutos de desenvolvimento de tecnologias e pesquisa nas áreas

científicas. Neste sentido, o sistema jurídico não dispondo de uma legislação que discipline

essas tecnologias, a ciência precisa participar não apenas com o objetivo de legitimar seus

experimentos, como também fornecendo visões sobre tais tecnologias que ajudam a

conformar uma realidade sobre os experimentos, o andamento das pesquisas no país, as

possibilidades de tratamento. Estas visões se sustentam na medida em que os cientistas

trabalham produzindo fatos que reivindicam como verdadeiros assim como os trâmites

jurídicos também trabalham com regimes discursivos baseados numa autoridade presente na

lei. Este pressuposto está presente na audiência nas diversas intervenções feitas pelo ministro

relator, primeiro sobre a manifestação da plateia com palmas e, segundo, com a afirmação de

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31

que a audiência tem caráter instrutório e por isso os cientistas não poderiam fazer afirmações

de cunho jurídico nem levantar ofensas aos cientistas que apresentaram argumentos

contrários.

2.4 - Autoridade científica e democracia liberal

A participação crescente dos especialistas em debates públicos gerou dois

problemas do ponto de vista teórico (TURNER, 2001). Os problemas da igualdade e da

neutralidade. O primeiro problema diz respeito às relações entre o fenômeno da expertise e o

princípio que sustenta as democracias liberais, segundo o qual todos têm igualdade nas

decisões políticas. Tal problema é colocado diante da relação desigual em que é situado o

envolvimento entre experts que detém um determinado conhecimento sobre uma controvérsia

e um público mais abrangente formado por pessoas não especializadas (lay-people). As

desigualdades pautadas com base no conhecimento provocariam uma assimetria da

participação no debate envolvendo as controvérsias, conferindo um poder que extrapola os

limites e a capacidade de participação dos cidadãos. Supõe-se, então, que o público não

dispõe de capacidade para compreender assuntos relacionados à ciência, e que por isso não

saberia inferir as consequências dos mesmos.

O outro problema gerado pela participação dos cientistas em debates públicos,

segundo Turner (2001), está relacionado ao privilégio concedido pelo Estado à figura do

especialista. Ao conferir um status privilegiado aos experts, o Estado estaria violando o

principio da neutralidade que fundamenta as democracias liberais, acentuando o argumento

segundo o qual os públicos não especializados pouco têm a contribuir em debates que

envolvem decisões sobre ciência e tecnologia. Caberia apenas aos especialistas a tarefa de

definir o que deve ser feito ou não, já que pouco conhecimento científico e especializado

detém os públicos não especializados. Esta “violação” do principio da neutralidade apresenta-

se na mediação que o Estado faz fornecendo investimentos na produção da ciência.

Estes dois problemas, quando colocados separadamente, poderiam ser resolvidos

pelos meandros da política. Com base na literatura que discute a popularização da ciência, a

solução estaria numa resposta sistêmica: a educação. Esta seria o caminho para resolver os

Page 32: Agindo como experts... Israel de Jesus Rocha.pdf

32

problemas relacionados à falta de compreensão do público não especializado sobre as

decisões que envolvem ciência e tecnologia.

O modelo do déficit (Wynne, 1993), muito difundido na literatura sobre a

popularização, preconizava que a simples exposição dos cidadãos aos conteúdos produzidos

pela ciência seria capaz de produzir um letramento sobre tais assuntos, tornando possível a

participação daqueles cidadãos em tais decisões. Tempos depois, alguns trabalhos, como os

desenvolvidos pelo próprio Wynne, mostraram que o modelo do déficit não pontuava a

maneira como os experts e o público leigo tinham leituras diferentes sobre os mesmos

problemas que emergiam das pesquisas científicas.

Ainda na direção do modelo do déficit, o conhecimento é tratado como algo que

pode ser quantificado e a questão passa a ser deslocada para a relação entre aqueles que o

possuem e os que não possuem. O conhecimento é tratado, neste caso, como um bem que

deve ser possuído. Para equilibrar a assimetria entre experts e públicos que não o possuem, o

Estado seria o provedor da produção de expertise e proporcionaria a popularização dos

conhecimentos produzidos pelos experts (TURNER, 2001: 124). No entanto, o problema pode

ser tratado apenas como uma questão de mudança de ponto de vista, e não como algo

quantitativo. Partindo desse suposto, a educação científica seria meramente uma propaganda

de um grupo limitado, o grupo dos experts. Deste modo, seria uma outra “violação” do

principio da neutralidade do Estado.

Se pensarmos ambos problemas articulados uma outra questão emerge: o público

estaria sob controle cultural e intelectual dos experts na medida que estes são a fonte de

produção de tal conhecimento e o público seria, desse modo, menos competente que os

experts nas tomadas de decisão sobre assuntos científicos e tecnológicos (TURNER, 2001:

125)6. Tal problema suscitado por Turner emerge da relação que os cientistas estabelecem na

criação do discurso científico e na criação de um discurso público sobre a ciência, justificando

o uso e apropriação social de tal discurso, todos eles baseados numa ideia de autoridade que

permeia a expertise.

6 If experts are the source of the public’s knowledge, and this knowledge is not essentially superior to unaided

public opinion, not genuinely expert, the ‘public’ itself is presently not merely less competent than the experts

but is more or less under the cultural or intellectual control of the experts. (TURNER, 2001: 125)

Page 33: Agindo como experts... Israel de Jesus Rocha.pdf

33

Este tipo de autoridade, que Turner chama de autoridade cognitiva, se manifesta

direta e indiretamente. A autoridade científica reveste muitas das decisões tomadas no

cotidiano da política, sem que nenhum cientista apareça para justificar os usos de argumentos

utilizados para tal decisão. Turner se baseia no argumento de Habermas segundo o qual o

mundo da vida em parte é fruto de controles externos operados por experts cuja maneira de

pensar é incompreensível para as tradições que são parte e ajudam a constituir o mundo da

vida. (TURNER, 2001: 128)7. Existiria um lapso cultural entre a compreensão que os públicos

têm da ciência e da expertise e o que acontece nos ambientes e espaços de produção da

expertise e a maneira como a mesma influencia o cotidiano das pessoas. A autoridade que

fundamenta as decisões a partir da ideia de “cultura expert” de Habermas não passa em

muitos casos por processos de legitimação democrática. O expert, neste sentido, não seria

aquele que temos um contato face a face, mas aquele que está imerso na dinâmica da

burocracia do Estado.

A maneira direta pela qual opera a autoridade científica baseia-se na persuasão do

contato direto que os cientistas estabelecem entre seus pares e o público não especializado. E

esta autoridade se reveste de um caráter corporativo, segundo Turner. O público julga os

cientistas como porta-vozes legítimos para falar sobre a ciência, quando eles falam sobre a

ciência. Este julgamento fundamenta-se na medida que o público percebe que os cientistas

falam em nome da Ciência. Este tipo de manifestação da autoridade também é construída

pelos meandros da legitimação democrática quando os cientistas submetem seus trabalhos

para obtenção de financiamentos, avaliação pelos pares, nas publicações e apresentações em

congressos. Nesta relação, a autoridade está relacionada aos critérios de validação pelo outro

que está envolvido na situação.

No interior das duas lógicas de autoridade exercida pelo expert, Turner (2001)

propõe a existência de cinco tipos de processos de legitimação que estão relacionados com a

construção de uma autoridade política. Estes, entretanto, tipos propostos por Turner não

tratam de uma classificação, segundo o próprio autor coloca, mas de perceber como se dão os

processos de legitimação e suas implicações políticas.

7 The life-world is the product, at least in part, of external controls, which he calls ‘steering mechanisms’,

operates by experts whose thinking is not comprehensible within the traditions that are partof, and help to

constitute, the life-world.

Page 34: Agindo como experts... Israel de Jesus Rocha.pdf

34

Os experts do tipo I apresentado por Turner (2001: 131) são aqueles que a

legitimação permeia todo o coletivo social e uma audiência limitada. Esta legitimação

acontece de uma maneira diferente a qual concebe uma leitura da expertise no sentido

colocado por Habermas. Ela tem sua garantia numa aceitação geral dos resultados práticos

que uma expertise proporciona. Tomemos como exemplo a questão da bomba atômica.

Qualquer indivíduo direta ou indiretamente sabe que tal bomba é produto das descobertas

feitas pelos físicos em seus laboratórios. Além de ter uma ampla aceitação, aqui no sentido de

percepção da origem das descobertas, a legitimação da autoridade dos físicos fundamenta-se

numa crença que os achados têm consequências que podem ser percebidas como fruto do

trabalho dos físicos. Estes reivindicam tal autoridade e a incorporam através da ideia de

comunidade dos físicos. Este tipo de expertise tem o seu processo de legitimação muito

parecido com os de aceitação e rejeição pelos quais passam a autoridade política.

O segundo tipo de expert apresentado por Turner são aqueles que apresentam uma

legitimidade decorrente de uma audiência restrita. Mesmo possuindo uma autoridade restrita,

os físicos são pensados como experts do tipo 1 por que seus achados extrapolam a esfera de

legitimação da audiência formada apenas pela comunidade científica dos físicos. Os experts

tipo 2 apenas possuem uma legitimidade aceita por uma audiência específica. O exemplo dos

teólogos, usado por Turner (2001: 131), que tem sua autoridade como especialista em leitura

de textos religiosos limitada a determinados grupos sociais. Tal tipo de legitimação da

autoridade está restrito e possui uma audiência que é pré-estabelecida, como o caso dos físicos

e sua comunidade.

Os experts do tipo 3 não possuem uma comunidade pré-estabelecida e seus

achados não são considerados como possuindo uma relação direta e causal com os seus

produtores. Tal tipo de expertise tem como característica a formação de uma audiência. Este

tipo de expertise é formada por pessoas que são pagas para performar algum tipo de serviço.

Fiquemos ainda com o exemplo de Turner. O massagista terapêutico é pago pelo

conhecimento que possui em massagem, e pelo exercício de tal conhecimento, mas o

pagamento está relacionado ao julgamento que os consumidores do serviço fazem da relação

entre o conhecimento e o efeito proporcionado pela terapia. O testemunho dos consumidores

permite que os terapeutas reivindiquem uma expertise em relação a uma audiência mais

aberta, mas ao mesmo tempo algumas pessoas não se beneficiam dos resultados alcançados

Page 35: Agindo como experts... Israel de Jesus Rocha.pdf

35

pela massagem terapêutica e não percebem, ou possuem uma crença, as suas promessas como

um tratamento. Por isso, Turner considera que os terapeutas massagistas criam uma audiência.

Um grupo de pessoas para as quais o terapeuta é um especialista que suas ações são

comprovadas na prestação do serviço.

Os dois tipos finais estão direta ou indiretamente relacionados com a atuação do

Estado. Esses experts são convocados a falar em nome de algo e usam a expertise na

esperança que suas perspectivas convençam um público mais amplo e assim conduzam-nos a

seguir certas escolhas diante de uma situação de definição política. Para Turner (2001), este

tipo desenvolveu-se no final do século XIX nos Estados Unidos a partir do desenvolvimento

de fundações e organizações que tinham como objetivo causas filantrópicas e ações de

mobilização coletiva. Tal tipo de expert falhou em muitos casos nos quais a expertise não foi

amplamente aceita como esperavam os seus fundadores.

O quinto tipo seria um desenvolvimento histórico do tipo 4 e está diretamente

relacionado a administração pública. São os experts que agem como consultores para assuntos

de interesse público, mas que raramente são vistos. As relações estabelecidas entre esses

técnicos para assuntos científicos, os gestores públicos e os diversos tipos de interesses

envolvidos nessas relações pouco são divulgados e explicitados, para Turner (2001:136).

Diversas decisões políticas são tomadas a partir dessas relações entre tais experts e os

gestores. Uma rápida observação do trâmite da lei de biossegurança no Congresso Nacional

amplia as associações que envolvem experts do tipo 5, pois em casos como das Células-

tronco, muitos experts foram solicitados a falar em espaços midiáticos a falar sobre a

controvérsia. (ver Cesarino, 2006).8

Mesmo que Turner trate do contexto americano, podemos perceber estes aspectos

relacionados à cultura política brasileira. O auxílio de experts em questões relacionadas à

elaboração de políticas públicas é visível, por exemplo, se considerarmos os trabalhos

desenvolvidos pelos cientistas no processo de discussão e elaboração da lei de biossegurança

no Congresso, bem descrito por Letícia Cesarino (2006). Neste sentido, os dois últimos tipos

apontados por Turner (2001) estão muito relacionados ao que ocorreu na audiência pública,

8 Cabe notar que este tipo de expertise é diferente da noção de expert cultures de Habermas. Os experts no

sentido de Habermas atuam muito mais na burocracia através de um poder discricionário, como descreve Turner

(2001: 141). Este suposto poder discricionário tem relação com a possibilidade que os experts têm de lançar mão

de uma forma de dominação de forma indireta, já que a burocracia parte do suposto que a autoridade exercida é

difusa, como já havia notado Max Weber em seus relatos sobre a dominação racional.

Page 36: Agindo como experts... Israel de Jesus Rocha.pdf

36

em que muitos dos cientistas presentes também fizeram parte de comissões no Congresso com

o objetivo de auxiliar os deputados e senadores na composição do texto da lei.

O quarto e quinto tipos de expertise, por terem apoio direto e indireto do Estado, e

se situarem no âmbito das decisões políticas são o que Turner (2001) julga mais

problemáticos no caminho de uma democracia liberal. Estes experts, no sentido da tipologia

de Turner, não passam por um controle de audiência de legitimação por parte de um público

ou de seus pares, perdendo assim seu caráter democrático9. Em nosso caso, as provocações

colocadas por Turner nos conduzem a pensar a participação desses experts e os limites que

são estabelecidos pelas próprias regras do jogo, seja ele no Congresso ou no Supremo. Sugere

também que pensemos o lugar de atuação e as interseções entre as esferas do direito e da

ciência, por isso os diversos elogios dos cientistas, sobretudo porque o caso que tratamos

neste texto foi o primeiro em que o Supremo Tribunal Federal convocou uma audiência para

discutir o tema. Mas ainda parecerá limitado considerar que a atuação dos cientistas foi de

considerável mobilização para os votos dos ministros, sendo apenas de caráter instrutório

como o ministro relator considerou em diversos momentos da audiência.

2.5 - Expertise, experiência e core set.

Collins e Evans (2002; 2010) passaram a tratar os experts do tipo 1, como dos

físicos no exemplo situado por Turner, como uma categoria analítica real e a partir disso

construíram uma tipologia de diferenciação de diversas expertises. Diferente de Turner, para

Collins e Evans se tratava de estabelecer diferenças reais, diria os autores que também

ontológicas, de tais expertises. Estas diferenças reais seriam fronteiras bem delimitadas de

ação dos cientistas, que deixariam claras os limites da participação de não experts em

questões envolvendo a ciência.

A tentativa de estabelecer uma teoria normativa da expertise e da experiência

conduziram os autores a criarem três categorias de expertise: não expertise, expertise

interacional e expertise contributiva. Ao elaborarem tais categorias, Collins e Evans passaram

9The fourth and fifth type present more serious problems. Both typically are subsidized by the state, indirectly

[…](TURNER, 2001:141)

Page 37: Agindo como experts... Israel de Jesus Rocha.pdf

37

a criticar diretamente os estudos sociais sobre a ciência, demarcando a proposta da teoria

normativa como a terceira onda em tais estudos. A terceira onda iria devolver o caráter

normativo retirado com as duas ondas anteriores.

As duas primeiras ondas10

dos estudos sobre a ciência, para Collins e Evans,

foram satisfatórias na resolução do problema de legitimação ao mostrarem que tal problema

seria resolvido com a ampliação das decisões envolvendo ciência e tecnologia além de um

núcleo de experts, provocando uma maior aceitação dos resultados práticos da ciência na

sociedade. A questão de partida colocada por eles é saber se a legitimidade política das

decisões técnicas no domínio público poderiam ser maximizadas apenas com referência a um

processo de debate democrático ou deveriam apenas ser baseadas sobre as melhores opiniões

especializadas?11

Por decisões politicas que envolvem ciência e tecnologia Collins e Evans

consideram as interseções em que ambas são de considerável relevância para o público e nas

quais tanto os especialistas como o público de uma maneira geral têm importantes

contribuições a fazer. A questão destina-se, assim, a entender até que ponto a participação do

público não especializado poderia se estender, não rompendo com a fronteira entre a expertise

e o conhecimento leigo. O problema de extensão, dessa maneira, pouco foi resolvido com os

trabalhos desenvolvidos pelos teóricos das primeira e segunda ondas. Especialmente os

sociólogos da segunda onda, ao mostrarem toda a amplitude de fatores sociais que interferem

nas produções científicas e como o conhecimento científico é semelhante a outras formas de

conhecimento, tornaram-se imprecisos sobre o que demarca tais fronteiras (COLLINS &

EVANS, 2002: 239).

Para resolver estes problemas deixados pelas duas primeiras ondas Collins e

Evans cunham a ideia de um núcleo duro (core set) formado no interior da comunidade

científica por cientistas que estão profundamente envolvidos em experimentos e teorizações

10

A primeira onda nos estudos de expertise foi formada pelos estudos que procuraram explicações para o

sucesso da ciência e a parir disso considerar conclusões sobre a manutenção desse sucesso. Com uma perspectiva

externa, tal onda tinha o sucesso da ciência como premissa, dado os avanços permitidos por ela na sociedade. A

autoridade exercida pelos experts pouco questionamento enfrentava em espaços públicos. É claro que este

momento vivido pela ciência foi marcado pelos avanços médicos e tecnológicos proporcionados por ela. A

segunda onda, também chamada de construcionismo social, apareceu na década de 60 como uma reação à

primeira, colocando o conhecimento científico em posições que seus privilégios epistemológicos fossem

questionados. 11

Should the political legitimacy of the technical decisions in the public domain be maximized by referring them

to the widest democratic processes, or should such decisions be based on the best expert advice?

Page 38: Agindo como experts... Israel de Jesus Rocha.pdf

38

que são diretamente relevantes para as controvérsias e debates sobre a ciência. Na audiência

pública, ambos os lados parecem desdobrar pesquisadores que, nas palavras de Collins e

Evans, formariam um core set na discussão sobre a liberação dos embriões. Eles estão

dispostos nas apresentações de uma maneira proposital com objetivos de proporcionar

impacto diante dos ministros e convidados presentes no certame da audiência (ver capítulo 4).

No entanto, uma observação mais detida da audiência, coloca as oposições em espaços que

dialogam em todos os âmbitos e revelam interseções. Este ponto é sugerido quando os

cientistas argumentam que pesquisar células-tronco embrionárias não anula as pesquisas com

as células-tronco adultas

As categorias de expertise elaboradas por Collins e Evans consideram uma escala

que parte do core set como centro de expertise e, à medida que se afasta, considera-se a

possibilidade de baixa ou ausência de expertise. O exemplo usado por Turner para demonstrar

a expertise do tipo 3, a teologia e astrologia, para Collins e Evans, conferem uma expertise

descontinua em relação ao núcleo duro da comunidade científica que está envolvida num

determinado debate, caracterizando assim, uma não-expertise. O fato de não ter tal expertise

produz uma razão para uma ausência de participação num debate de interesse público por

parte do cidadão.

Entretanto, a expertise de pessoas não certificadas (aquelas que não portam um

certificado ou diploma) pode ser considerada em alguns casos contínua. Wynne (1989) relatou

a experiência dos fazendeiros de carneiro que participaram ativamente das determinações de

medidas que foram tomadas pós-acidente de Chernobyl. Para Collins e Evans, este caso revela

que os criadores de carneiro, não possuindo certificações e diplomas, possuíam uma expertise

contributiva, pois contribuíram de maneira decisiva e mais precisa na determinação do tempo

para que o ambiente estivesse livre da contaminação provocada pelo acidente, elaborada pelos

técnicos do governo.

A terceira classificação proposta por Collins e Evans (2002), a expertise

interacional, é atribuída aos experts que dominam uma cultura linguística de um grupo social

ao qual não pertencem. Ao se conviver com determinados grupos de cientistas, certas

habilidades podem ser adquiridas ao ponto de tal indivíduo ser considerado expert na área por

uma outra pessoa que tenha pouco domínio da linguagem usada pelos cientistas da área de

estudo. Para sustentar o argumento os autores usam os exemplos dos jornalistas

Page 39: Agindo como experts... Israel de Jesus Rocha.pdf

39

especializados em coberturas da ciência, os meios de comunicação de validação pelos pares,

como revisão de projetos e pareceres, em que técnicos nem sempre formados numa área

avaliam projetos. Os métodos de pesquisa das ciências sociais também estão incluídos neste

tipo de expertise e Collins e Evans afirmam que muitos trabalhos elaborados na segunda onda

dos estudos sobre a ciência e tecnologia baseiam-se neste tipo de expertise, como a

experiência de Latour em A vida de laboratório (LATOUR, 1989; LAW, 2005).

O experimento proposto pelos autores para comprovar este tipo de expertise

procurou colocar dois experts, um com formação na própria área e outro com expertise

interacional, para serem avaliados por outro especialista experiente, e este deveria apontar

qual deles seria o “impostor” (aquele que não possui formação na área). A conclusão de

Collins e Evans é que o desempenho linguístico dos que são bem socializados na cultura

linguística de um grupo pouco, ou nada, se distingue daqueles que passaram por uma

formação prática na área. A habilidade que está em jogo nestes exemplos é a capacidade de

tradução que o expert que possui uma expertise interacional desenvolve. Esta habilidade, para

Collins e Evans (2002: 257), é fundamental para a participação em decisões que envolvem

assuntos científicos e tecnológicos. Como este tipo de especialista não é treinado na área ele

não perde sua condição de “leigo” e a capacidade de relação direta com o público não

especializado.

Collins e Evans (2002: 258) procuram estabelecer critérios de legitimação para as

participações em decisões que envolvem ciência e tecnologia e a partir dos tipos de expertises

demarcam duas possibilidades de julgamento. O primeiro tipo de julgamento diz respeito a

que tipo de experiências são relevantes para determinadas decisões. A segunda relaciona-se

com a capacidade de discrição. Saber distinguir as reais contribuições que um ator social

(expert) dispõe para a controvérsia em discussão. Seguindo os argumentos de Collins e Evans,

portanto, a não-expertise pouco poderia contribuir em debates públicos envolvendo ciência e

tecnologia. A categoria de não expertise seria então a ausência de um conhecimento

especializado capaz de tornar a ação de um ator social suficiente em determinada área de

conhecimento. Por isso, se um ator não possui nenhuma expertise que o habilite para

participar nos debates e questões públicas, de forma a contribuir ou manter a interação entre

os atores envolvidos na controvérsia, tal ator não deve participar de tais decisões técnicas.

Page 40: Agindo como experts... Israel de Jesus Rocha.pdf

40

Mesmo marcando distinções reais entre as expertises, diferente do que Turner

apresenta, Collins e Evans parecem ainda limitados quando tentamos pensar a questão da

participação dos experts na audiência pública envolvendo as células-tronco e os embriões no

Brasil. Se, por um lado, as categorias criadas pelos autores demarcam uma fronteira entre

aqueles que podem dizer e falar em nome da ciência e aqueles que não podem, pouco

podemos compreender quando a expertise científica está relacionada com um julgamento no

qual os atores que julgarão são, eles mesmos, leigos, na própria definição utilizada pelo então

presidente do Supremo Tribunal Federal, quando o assunto técnico em questão é uma

expertise em biomedicina, bioética, medicina e biologia celular. Estariam então os Ministros

do Supremo inabilitados a discutir qualquer questão que envolva o debate sobre a ciência?

Além disso, como o próprio Ministro relator do caso, caberia apenas aos experts exercer esta

possibilidade de participação no certame? E o que dizer sobre a possibilidade de participação

de outros atores que não representavam grupos de interesse.

Outra questão relevante que precisamos pontuar a respeito do trabalho de Collins

e Evans (2002) é um relativo retrocesso em relação a segunda onda. Mesmo que ambos

afirmem que em muitos casos sua teoria normativa da expertise e experiência tenha como

base os estudos de tal onda. Ao delimitar fronteiras entre os que podem ou não participar das

decisões técnicas, Collins e Evans acabam retomando premissas presentes nos estudos da

primeira onda. Basta lembrarmos que na primeira onda a ciência era tratada a partir de uma

perspectiva externalista, que considerava seu êxito como premissa, sobretudo pelo impacto

positivo produzido por ela durante as primeiras décadas do século 20.

A premissa da primeira onda retomada por Collins e Evans considerava então que

não havia espaço possível para uma crítica dos produtos criados pela ciência devido ao caráter

externalista dos trabalhos que envolveram tal onda. Não se tratava de perceber as produções

da ciência em seu making science (LATOUR, 2000), mas apenas avaliar os erros procurando

os fatores sociais e psicológicos que o tenham provocado, ponto este diagnosticado por Bloor

(2010).

Todos estes trabalhos alinhados com o que Collins e Evans chamam de primeira

onda consideravam apenas como materiais bons para pensar a ciência questões relacionadas à

valores, erros advindos de problemas sociais e individuais, falta de competência do cientista,

uso não racional dos resultados oferecidos pela Ciência. Revelam assim, uma dimensão de

Page 41: Agindo como experts... Israel de Jesus Rocha.pdf

41

crença no trabalho institucional da Ciência no mundo moderno. Os domínios permaneciam

delimitados segundo essas análises, pois só consideravam poucas zonas de interseção entre

elas.

Em certo sentido, ao delimitar as fronteiras do trabalho dos cientistas, os autores

colocam a possibilidade de avaliação da ciência apenas ser realizada por pares, delimitando

também fronteiras do que pertence ao social e ao campo da ciência12

. A dissolução dessas

fronteiras parece pouco interessar aos autores. Faço observar que a ausência de preocupação

com tal dissolução não torna o trabalho de Collins e Evans menos importante. Mesmo

colocando a questão do limite da participação nas decisões técnicas e respondê-la a partir de

restrições ao público formado por atores que não possuem expertise, fundamento de sua

noção de core set, os limites ainda parecem permanecer mesmo diante de uma descrição que

privilegie a dissolução das fronteiras entre públicos com autoridade para participar e outros

não.

Colocando dessa maneira, sugere-se que há uma defesa da extensão das decisões

para públicos que não estão diretamente envolvidos com a controvérsia. Neste sentido, a

questão colocada por Collins e Evans pouco tem haver com a capacidade e habilidade

adquiridas com um certo treinamento, mas com uma certa maneira de estar concernido com

questões ligadas à controvérsia. No caso das Células-tronco, elas concernem, afetam,

solicitam e mobilizam envolvimento de diversos atores que não apenas os especialistas. Estes

falam por elas, mas os pacientes são mobilizados em torno da possibilidade de tratamento (o

cientista Ricardo Ribeiro menciona o número de ligações que recebe de pessoas desejando

participar das fases experimentais em humanos). Sendo assim, a noção de core set empregada

por Collins e Evans (2002) apresenta tal limite relacionado à participação. A dimensão do

concernimento ficará mais clara na próxima seção, quando discutiremos as possibilidades de

participação e arregimentação de aliados e seus envolvimentos no debate.

2.6 – Expertise, participação pública e concernimento nos debates sobre a ciência e

tecnologia

12

The romantic and reckless extension of expertise has many well-known dangers – the public can be wrong.

(COLLINS & EVANS, 2002: 171)

Page 42: Agindo como experts... Israel de Jesus Rocha.pdf

42

Esta compreensão pode ser concebida a partir das críticas geradas pelo trabalho

dos autores (JASANOFF, 2002; WYNNE, 2002 RIP, 2003 e KERR, 2007). Um dos primeiros

pontos discutidos sobre a teoria normativa da expertise foi debatido por Wynne (2002), sobre

a participação do público nas decisões técnicas. Os limites estabelecidos pela teoria normativa

da expertise e experiência conduzem a um imaginário de aceitação não critica de um

cientificismo ocidental, segundo Wynne.

As instituições científicas há décadas têm reproduzido uma ideia segundo a qual

as suposições sobre as descobertas científicas como coisas que são “valiosas” e “seguras” são

causadas por uma ignorância do público na compreensão do conhecimento. O modelo do

déficit estaria no fundamento desta compreensão. A ideia de ignorância ou desconhecimento

nas refutações de propostas baseadas no conhecimento científico é um argumento que parece

flexível, para Wynne. Isto por que tal visão é crucial para a compreensão das falhas nas

políticas científicas em obter uma legitimação pública para seus argumentos baseados em

dados técnicos.

Os primeiros problemas relacionados a este modelo demonstram seu limite em

compreender o papel do público leigo nas questões que envolvem ciência e tecnologia, por

falta de evidências que relacionem a legitimidade das decisões técnicas e a visão do público

sobre tais decisões. Outro problema é a qualidade e a quantidade de conhecimentos que o

público leigo deveria obter para fazer parte das decisões. O modelo do déficit torna essas

questões limitadas e a relação que o público leigo estabelece com o conhecimento científico

pouco é debatida em termos políticos.

Se considerarmos as pesquisas sobre a compreensão dos conhecimentos

produzidos pela ciência, diz Wynne (1993), o público é considerado pouco capaz de

estabelecer relações causais entre questões epistemológicas e a produção do conhecimento.

Não se trata de um dado inerente ao público, mas uma certa inflexibilidade das construções da

ciência sobre o modo como o público lida com o conhecimento científico. Neste sentido,

Wynne discute a noção de reflexividade como uma capacidade de identificação, exame crítico

e suposições pré-analíticas que estão na base da construção do conhecimento cientifico,

diferente do sentido utilizado por David Blorr em seu Programa Forte para o qual a noção de

Page 43: Agindo como experts... Israel de Jesus Rocha.pdf

43

reflexividade estava relacionada ao emprego dos modelos explicativos dos estudos

sociológicos sobre a ciência deveriam ser aplicados à própria Sociologia do Conhecimento.

A capacidade reflexiva do público sobre o conhecimento científico tem sido

subestimado pelo modelo do déficit, que se revela mais uma compreensão com poucos

elementos empíricos sobre a relação que aquele estabelece com o conhecimento. Nos

desenhos metodológicos e pesquisas propostos por Wynne, o público se mostrou muito mais

reflexivo acerca dos conhecimentos produzidos pela ciência, se pensarmos sobre o caso dos

criadores de carneiro e a questão nuclear em Chernobyl.

Neste sentido, os estudos sociais sobre a ciência e a tecnologia mais alinhados à

segunda onda têm reiterado que os conhecimentos científicos são resultados de arranjos

sociotécnicos que em determinados momentos produzem pontualizações. Tal maneira de

conceber os conhecimentos científicos permite percebê-los também como possíveis de serem

desconstruídos. Para Sheila Jasanoff (2003), uma das críticas dos limites estabelecidos pela

teoria normativa da experiência e expertise, as desconstruções do conhecimento ocorrem nos

processos de participação pública nas decisões que envolvem a ciência e a política. Estes

conhecimentos passam a ser reelaborados por aqueles que não são os experts e dominam o

conhecimento em questão. Estas reelaborações podem encontrar respaldo tanto nas

racionalidades científicas como em outros tipos de racionalidade, como no nosso estudo aqui

proposto, o direito. Se considerarmos parte dos relatos dos Ministros em seus votos,

perceberemos como em muitas situações pouca referência há às apresentações dos cientistas.

Esta dimensão não explicita uma negação da autoridade e expertise científica em alguns

casos, mas em outros, como do voto do Ministro Lewandowski há uma declarada tentativa de

negar a possibilidade da ciência como um discurso que fecha as controvérsias.

Os limites entre a ciência e a sociedade, nessa perspectiva, pouco interessa para

Jasanoff (2003). E aqui adotamos a mesma premissa. Pareceu não haver um limite como

proposto por Collins e Evans ao enfatizarem a noção de core set nas decisões que envolvem a

ciência na medida que muitas questões colocadas por ela não poderiam ser respondidas

através dela, mas em sua ampliação e envolvimento nos debates por parte de públicos que

estão direta ou indiretamente implicados em seus resultados. Muitos arranjos sociotécnicos

modernos envolvem não-humanos e humanos com características híbridas que solicitam

participação e concernem a um público amplo, seja pelos seus resultados promissores, no caso

Page 44: Agindo como experts... Israel de Jesus Rocha.pdf

44

das células-tronco, ou por sua possibilidade de catástrofe eminente, como são tratadas as

tecnologias nucleares. O argumento de Jasanoff (2003) parte do suposto que este processo

implica em mais abertura do que fechamento para novas racionalidades. Os fazendeiros de

Wynne (1993) não eram especialistas portadores de diploma formados em instituições

certificadas. Conheciam aspectos locais que a prática possibilitou desenvolver.

A proposta de Jasanoff (2003) em tomar as relações entre ciência e participação

pública, bem como os argumentos apresentados por Bruno Latour (2000; 2005) e Michel

Callon (2010) ajudam-nos a pensar os dados da audiência pública sobre os usos de embriões

para obtenção de células-tronco. A região cinzenta (JASANOFF, 2002), formada pelas

relações entre a ciência e a participação de públicos mais heterogêneos nas decisões, e a

noção de fóruns híbridos proposta por Michel Callon et al. (2010) e as noções de porta-vozes

e formação de grupos, usadas por Bruno Latour (2000; 2005), colocam algumas questões

sobre a audiência pública. Frequentemente quando as questões colocadas pela ciência

apontam consequências como as células-tronco, fatos e valores revelam a linha tênue que os

separa no mundo moderno e a consequente proliferação dos híbridos pela prática da ciência

(LATOUR, 1989)

Como podemos, num primeiro momento, deslocar o debate sobre a audiência de

uma ideia colocada por Luna e Cesarino (2008), na qual o debate envolvendo o embrião seria

apenas o reflexo de uma ideologia moderna, quando baseiam-se no trabalho dumontiano

(1985)? A questão que se coloca diante dos dados é como pensar a ação dos cientistas e

ministros envolvidos no debate como pontualizações (LAW, 2005) de redes sociotécnicas

envolvidas na questão das células-tronco e embriões no Brasil. Tais pontualizações dizem

respeito mais as possibilidades engendradas e as diferenças sensíveis produzidas pelos atores

envolvidos na controvérsia e menos a uma leitura do debate apenas como uma alegoria de

uma ideologia moderna.

Os problemas gerados por temas que produzem incertezas como as Células-tronco

têm suscitado reflexões em torno do papel da expertise nas sociedades modernas. Ao

considerar que tanto os leigos quando os cientistas podem contribuir para o avanço em torno

destes temas, podemos levar em conta um ponto muito discutido por Jasanoff (1993) sobre a

ideia de contingência ou dependência em relação ao contexto. Ambos estão ligados à maneira

como a ciência não pode prescindir de um conjunto de fatores que envolvem as experiências

Page 45: Agindo como experts... Israel de Jesus Rocha.pdf

45

individuais e institucionais, e mesmo a maneira como a controvérsia está inserida em cenários

mais amplos, como a política científica do país. Basta considerarmos que as pesquisas com

células-tronco no país, antes mesmo de ser aprovada a lei de biossegurança, já dispunham de

um farto fundo de investimento estatal para a pesquisa, anunciado rapidamente após a votação

da lei.

Não podemos desprezar as dimensões e zonas pelas quais as instituições científica

e judiciária se interconectam no mundo moderno. Essas interações dispõem de um conjunto

complexo de arranjos que envolvem a participação dos cientistas como testemunhas

privilegiadas quando provas envolvem dados científicos; coloca-nos questões de como o

processo legal afeta a ciência de uma maneira que o oposto acontece de forma assimétrica.

Mais uma vez o posicionamento do Ministro Levandowski sobre o papel da ciência

demonstra a dinâmica. Outro aspecto relevante que trata esse texto tem relação com a

formação do consenso legal e o científico e o papel do cientista como testemunha em que

pode-se haver uma distinção clara entre decidir um caso e ajudar a confirmar os fatos do caso.

Está distinção fica clara na audiência quando o ministro relator pontua o lugar que os

cientistas ocupam na audiência. Tanto os caminhos percorridos pela ciência como os tramites

do judiciário, neste sentido, contribuem para a estabilização de entidades no mundo comum,

delimitando espaços de atuação e lançando no mundo atores que antes poderiam estar

circunscritos apenas ao ambiente do laboratório.

Page 46: Agindo como experts... Israel de Jesus Rocha.pdf

46

CAPÍTULO 03

Rastreando os percursos da ação direta de inconstitucionalidade 3510

Page 47: Agindo como experts... Israel de Jesus Rocha.pdf

47

3.1 - O Supremo Tribunal Federal e sua primeira audiência pública.

“A função essencial do STF é a guarda da Constituição Federal.” Este texto abre a

autodescrição que o Supremo Tribunal Federal apresenta nos documentos e em seu endereço

eletrônico13

. Diferentemente de outras instâncias do sistema judiciário brasileiro, o Supremo

apenas tem como objetivo salvaguardar os princípios transcritos na Constituição, contando

para isso com alguns dispositivos. Em sua competência cabe julgar a ação direta de

inconstitucionalidade de lei (ADIN); a ação declaratória de constitucionalidade (ADC), a

arguição de descumprimento de preceito fundamental (ADPF) decorrente da própria

Constituição e a extradição solicitada por Estado estrangeiro. Basta lembramos do caso de

Cesare Battisti. Cabe também ao STF julgar, na área penal, as infrações penais comuns do

Presidente da República, do Vice-Presidente, dos membros do Congresso Nacional, seus

próprios Ministros e o Procurador-Geral da República, concedendo a estes o foro privilegiado

de julgamento em casos de tais crimes. Além disso, outros tipos de julgamentos são

competidos ao Supremo, mediante grau de recurso, sendo eles o habeas corpus14

, o mandado

de segurança15

, o habeas data16

e o mandado de injunção17

decididos em única instância pelos

Tribunais Superiores.

Formado por duas turmas, cada uma composta por 5 Ministros, cabendo a essas

turmas todos os julgamentos, exceto a ação direta de inconstitucionalidade, que compete à

corte como um todo. Além das duas turmas, o Supremo é formado por quatro comissões,

13

Site do Supremo Tribunal Federal www.stf.gov.br 14

Habeas Corpus tem o objetivo de garantir os direitos de ir e vir dos indivíduos sempre que os mesmos tenham

sido feridos ilegalmente ou estão ameaçados. 15

Mandado de segurança concede-se sempre que há ferimento dos direitos que não são contemplados pelo

habeas data e habeas corpus. Está previsto na lei 12.106 de setembro de 2009, na qual se disciplina os mandados

de segurança individual e coletivo. 16

Habeas data trata-se de uma ação constitucional de proteção ao direito individual de informação e está previsto

no artigo 5º, inciso LXXII da Constituição. Parte-se do pressuposto que qualquer indivíduo que impetre (aquele

que aciona o judiciário) tenha acesso aos dados relacionados. 17

Mandado de Injunção também está previsto pelo artigo 5º da Constituição e diz respeito a uma consecução

sempre que a ausência de uma norma regulamentadora torne inviável o exercício dos direitos e liberdades

constitucionais, e das prerrogativas relacionadas à nacionalidade, a soberania e a cidadania.

Page 48: Agindo como experts... Israel de Jesus Rocha.pdf

48

organizadas de acordo com as atribuições e formada por três a quatro membros, todos

Ministros. As comissões são: jurisprudência18

, regimento19

, coordenação20

e documentação21

.

A denominação “Supremo Tribunal Federal” começou a ser usada no decreto nº

520 de 22 de junho de 1890, que lançava a Constituição provisória de 1890 e permaneceu no

decreto nº 848 de 11 de outubro que organizava a justiça federal brasileira ainda no mesmo

ano. Organizado formalmente em 1891 o Supremo passou a contar com 15 Ministros

escolhidos pelo presidente da república. Apenas em 1930, por força de decreto, o número de

Ministros foi reduzido para 11, configuração que, exceto durante o regime militar (que

aumentou o número de ministros para dezesseis) permanece até os dias atuais.

Sua organização atual conta com 11 Ministros indicados pelo Presidente da

Republica e submetidos à aprovação no Senado. Na composição de 2008, ano da audiência da

ADIN, faziam parte: Ellen Grace (presidente), Celso de Mello, Marco Aurélio, Gilmar

Mendes, Cezar Peluso, Ayres Britto, Joaquim Barbosa, Eros Grau, Ricardo Lewandowski,

Cármen Lúcia e Menezes Direito.

A Audiência Pública sobre o artigo 5º da lei de Biossegurança consagrou-se como

a primeira audiência realizada pelo Supremo. Mesmo com o dispositivo disponível em lei

desde 1999, o que permitia em teoria que em qualquer julgamento considerado de notória

relevância pública pudesse ser acionado uma audiência, o Supremo só realizou sua primeira

audiência nove anos mais tarde. Tal audiência não marcou apenas o inicio de uma sequência

de outras que foram acionadas para resolução de outras matérias. Marcou a inexperiência de

lidar com tais sessões diante da ausência, em regimento interno, de procedimentos que

regulassem e organizassem estes eventos.

Ao mesmo tempo, marca, para os Ministros que se manifestaram sobre o assunto,

um tempo em que o Supremo deixa de voltar-se para si e abre suas portas para a sociedade,

18

Comissão responsável pela seleção dos acordãos que vão ser publicados pela revista do STF, publicar resumos

das decisões e circular um boletim interno antes das publicações dos acordões e serviços de sistematização e

divulgação da jurisprudência do STF. 19

Comissão responsável por zelar e manter o regimento interno do STF atualizado de acordo com as solicitações

e exigências das outras comissões. 20

Comissão responsável por sugerir medidas destinadas a prevenir medidas discrepantes, aumentar o

desempenho das sessões e facilitar as tarefas dos advogados. 21

Comissão responsável pela orientação dos serviços de documentação e arquivamento dos processos, livros e

documentos do STF.

Page 49: Agindo como experts... Israel de Jesus Rocha.pdf

49

sugerindo o quão democrático o Supremo pode chegar a ser. Tal característica parecerá

contraditória e indicará caminhos e contornos que a controvérsia assumiu diante dos inúmeros

atores envolvidos na consolidação dessa tecnologia. O judiciário, ao passo que possibilita o

fluxo da ciência no sentido de legitimar seus achados e descobertas, limita-a determinando

suas fronteiras e maneiras de agir (JASANOFF,1995). Então, se por um lado alguns ministros

destacam a participação dos cientistas na audiência, outros apresentam desconfianças sobre o

papel da mesma no mundo moderno. De como a mesma se tornou um dogma em si. Três

ministros realizaram pronunciamentos em ambos sentidos. Vejamos as observações realizadas

pelos ministros.

O ato de julgar é antes de mais nada um grande exercício de

humildade intelectual. Por isso, o Supremo Tribunal Federal se reúne

para ouvir a opinião dos especialistas, acrescentar e aprofundar

conhecimentos, para que possa, ciente das limitações que são próprias

do ser humano, tentar encontrar a solução neste, como nos outros

casos (trecho da audiência pública - Ministra Ellen Grace)

Conforme realçou a Ministra Ellen Grace, o Supremo experimenta, no

dia de hoje, pela primeira vez, um mecanismo de democracia

participativa ou democracia direta, que é essa possibilidade de um

segmento, muito bem organizado, científico, da população contribuir

para a formatação de um julgado que lhe diz imediato respeito e

repercute na vida de toda a população. Metaforicamente, democracia é

isso mesmo, é prestigiar as bases, deslocando quem está na plateia,

habitualmente, para o palco das decisões coletivas. (trecho da

audiência – Carlos Ayres Brito)

Outro destaque ocorreu não na audiência, mas no voto do ministro Gilmar

Mendes,

O Supremo Tribunal Federal demonstra, com este julgamento, que

pode, sim, ser uma Casa do povo, tal qual o Parlamento. Um lugar

onde os diversos anseios sociais e o pluralismo político, ético e

religioso encontram guarida nos debates procedimental e

argumentativamente organizados em normas previamente

estabelecidas. As audiências públicas, nas quais são ouvidos os

expertos sobre a matéria em debate, a intervenção dos amici curiae,

com suas contribuições jurídica e socialmente relevantes, assim como

a intervenção do Ministério Público, como representante de toda a

sociedade perante o Tribunal, e das advocacias pública e privada, na

defesa de seus interesses, fazem desta Corte também um espaço

democrático. Um espaço aberto à reflexão e à argumentação jurídica e

moral, com ampla repercussão na coletividade e nas instituições

democráticas (trecho do voto de Gilmar Mendes)

Page 50: Agindo como experts... Israel de Jesus Rocha.pdf

50

Mas isto não ocorreu com outros ministros, alguns deles não fizeram referências

em seus textos sobre a atitude de convocação dos cientistas para audiência. Em outros casos,

como o do Ministro Eros Grau, houve uma relativa rejeição diante da iniciativa do Relator,

como podemos observar no próprio texto de voto do Ministro,

Forças sociais manifestaram-se intensamente - de modo mesmo

impertinente, algumas delas -em relação à matéria objeto da presente

ação direta de inconstitucionalidade. Estou convencido de que, ao

contrário do que se afirmou mais de uma vez, o debate instalado ao

redor do que dispõe a Lei n. 11.105 não opõe ciência e religião, porém

religião e religião. Alguns dos que assumem o lugar de quem fala e

diz pela Ciência são portadores de mais certezas do que os líderes

religiosos mais conspícuos. Portam-se, alguns deles, com arrogância

que nega a própria Ciência, como que supondo que todos, inclusive os

que cá estão, fossemos parvos. Como todas as academias de ciência

são favoráveis às pesquisas de que ora se cuida, já está decidido. Nada

mais teríamos nós a deliberar. Mesmo porque, a imaginar que as

impedíssemos, estaríamos a opor obstáculo à cura imediata de

doenças. A promessa é de que, declarada a constitucionalidade dos

preceitos ora sindicados, algumas semanas ou meses após todas as

curas serão logradas. Típica indução a erro mediante artifício retórico.

(trecho retirado do voto do Ministro Eros Grau, p.02)

A relação que os Ministros estabeleceram com a audiência não pode ser analisada

com profundidade a partir das exposições dos cientistas. Muitos deles não compareceram à

sessão para as exposições. Outros acompanharam à distância o julgamento e encaminharam

questões. No entanto, cabe ressaltar a maneira como a audiência foi destacada por ambas as

partes envolvidas, ministros e cientistas, muitos deles acentuando a importância da audiência

e a abertura do Supremo para escutar a comunidade científica, que em alguns discursos

marcavam o lugar da representação de grupos sociais e organizações como associação de

pacientes, hospitais, centros universitários e grupos de pesquisa distribuídos pelo país.

Depois da realização da primeira audiência pública no Supremo, outras foram

convocadas. Um ano mais tarde, em junho de 2008, a Ministra Cármen Lúcia convocara

audiência em torno do ADPF/10122

, que envolvia as questões ambientais relacionadas à

22

Arguição de descumprimento de preceito fundamental

Page 51: Agindo como experts... Israel de Jesus Rocha.pdf

51

importação de pneus usados. Outra audiência foi convocada pelo Ministro Marco Aurélio

Mello para discutir sobre a ADPF/54, que tratou do aborto de anencéfalo.

Já em 2009 o então presidente, Ministro Gilmar Mendes, convocou outra

audiência para tratar do Sistema Único de Saúde. O objetivo da audiência foi o de coletar

subsídios para o julgamento de vários processos relacionados à distribuição de medicamentos,

suplementos alimentares, próteses, criação de vagas em UTIs e a realização de cirurgias.

Em 2010 foi convocada e realizada outra audiência pública, dessa vez para tratar

das cotas raciais. O relator Ricardo Lewandowski pronunciou-se destacando a importância do

tema para a sociedade brasileira e para as politicas públicas que visam diminuir a

desigualdade e acesso ao ensino superior no Brasil. No ano de 2012 já foram realizadas duas

audiências. Sobre o caso do uso de produtos contendo Amianto em todo território de São

Paulo (ADIN 3937) e a proibição de venda de bebidas alcoólicas em rodovias e estradas

brasileiras, pela Lei Seca (ADIN 4103)23

.

Aqui não trataremos em detalhes de todas as audiências realizadas pelo Supremo.

Porém, há de se perguntar os motivos pelos quais até a audiência sobre o uso de embriões

para pesquisas com células-tronco a Corte não tenha usado tal mecanismo previsto na lei que

regulamenta as ADINs, ADPFs e outros dispositivos usados pelo Supremo para julgar

matérias em relação com a Constituição. E porque logo depois da audiência sobre as células-

tronco tornou-se comum o uso do dispositivo pelo Supremo. De todo modo, destaco que estes

aspectos que envolvem os trâmites do sistema judiciário poderão ser mais detidamente

informados a partir da literatura jurídica que desenvolveu o tema com mais detalhes.

23

Disponível em http://www.stf.jus.br/portal/peticaoInicial/pesquisarPeticaoInicial.asp acesso em junho 20 de

2012.

Page 52: Agindo como experts... Israel de Jesus Rocha.pdf

52

3.2 - Passos para ação direta de inconstitucionalidade 3510

Quando, em 1998, a equipe do Professor James A. Thompson24

, da universidade

de Wisconsin, nos Estados Unidos, publicou o pioneiro trabalho mostrando os resultados com

o isolamento de células-tronco embrionárias, o mundo, ali, começara a assistir uma jornada

das biotecnologias que marcaria toda a primeira década do século XXI. Depois dele, diversas

pesquisas foram produzidas em diversos países, conduzindo a uma reflexão que extrapolaria

os limites dos laboratórios onde eram desenvolvidas. Quando divulgados os resultados

naquele ano, as células-tronco não eram meros atores desconhecidos da comunidade

científica. Estudos com células-tronco vinham sendo desenvolvidos desde o final da década

de 60 com pesquisas voltadas para o seu uso em transplantes de medula óssea. A novidade

residia não no uso das células-tronco adultas, estabilizadas em diversas práticas médicas e de

pesquisa, mas no uso de embriões para a obtenção de linhagens de célula.

O problema do embrião não parece ter sido levantado exclusivamente pelas

células-tronco embrionárias. Durante a década de oitenta um amplo debate mobilizou o

Parlamento Britânico em torno de um novo estatuto para o embrião emergente das novas

tecnologias de reprodução assistida (MULKAY, 1995; SALEM, 1997). Na controvérsia

venceu o pré-embrião, tendo como marco o décimo quarto dia, marcado pelo aparecimento do

sistema nervoso central.

Assim como o surgimento do embrião extra corporal exigiu esforços de definição

de seu estatuto em si mesmo e a hierarquização dos interesses e direitos relacionados a ele e a

mulher que o abriga (SALEM, 1997), o uso de embriões para a obtenção de linhagens de

células-tronco embrionárias desencadeou e reacendeu uma série questões éticas, morais,

políticas e controvérsias sobre a definição do que seria o início da vida nos países em que as

pesquisas prosseguiam. Não apenas a definição do início da vida entrou em jogo como

também uma série de questões que envolviam desde o desenvolvimento do país até o descarte

automático dos embriões excedentes nas clínicas. As fronteiras entre a ciência e a política já

24

Thomson, Itskovitz-Eldor, Shapiro et al. “Embryonic cell lines derived from human Blastocysts.Science no

282, 1998. Apesar de Tompson ter isolado as células-tronco embrionárias em 1998, outros trabalhos como dos

ingleses da Universidade de Cambridge Martin Evans e Matthwew Kaufman foram responsáveis pela geração da

primeira linhagem de células-tronco de embriões em camundongos.

Page 53: Agindo como experts... Israel de Jesus Rocha.pdf

53

não pareciam ser mais delimitadas e rígidas, assegurando à primeira o domínio do natural e à

segunda o domínio dos valores.

Em março de 2005 o Congresso Nacional aprovou o novo texto da Lei de

Biossegurança (11.105/2005)25

, encerrando provisoriamente uma controvérsia e abrindo outra

que já estava tomando espaço na mídia e nas agendas do próprio Congresso desde outubro de

2003, quando foi enviado o esboço do projeto de lei com objetivo de legislar sobre a matéria.

Inicialmente o projeto girava em torno das discussões sobre os organismos

geneticamente modificados, diante da grande repercussão da soja geneticamente modificada

plantada no Rio Grande do Sul desde o final da década de 90. Não figurava no texto da lei

pontos que tratavam diretamente da questão dos embriões extranumerários e a possibilidade

de uso dos mesmos para obtenção de células-tronco embrionárias (CTEs). Só num segundo

momento as pressões pela liberação das pesquisas envolvendo as CTEs ganharam forma,

sendo incorporado através do artigo 5º, que legislava sobre o uso dos embriões acima

mencionados.

Mesmo com os arranjos no Senado as duas matérias, as CTEs e os OGMs foram

para a Câmara dos Deputados em um único texto. A aprovação de nova lei de Biossegurança

em 2005 incorporou em seu texto o artigo 5º, que autorizava o uso dos embriões

supranumerários ou inviáveis para fins de pesquisa e terapia.

Art. 5º É permitida, para fins de pesquisa e terapia, a utilização de células-

tronco embrionárias obtidas de embriões humanos produzidos por fertilização

in vitro e não utilizados no respectivo procedimento, atendidas as seguintes

condições:

I – sejam embriões inviáveis; ou

II – sejam embriões congelados há 3 (três) anos ou mais, na data da publicação

desta Lei, ou que, já congelados na data da publicação desta Lei, depois de

completarem 3 (três) anos, contados a partir da data de congelamento.

§ 1o Em qualquer caso, é necessário o consentimento dos genitores.

§ 2o Instituições de pesquisa e serviços de saúde que realizem pesquisa ou

terapia com células-tronco embrionárias humanas deverão submeter seus

projetos à apreciação e aprovação dos respectivos comitês de ética em

pesquisa.

25

A lei de biossegurança tem com objetivo regulamentar as práticas relacionadas ao uso dos transgênicos e

células-tronco no Brasil.

Page 54: Agindo como experts... Israel de Jesus Rocha.pdf

54

§ 3o É vedada a comercialização do material biológico a que se refere este

artigo e sua prática implica o crime tipificado no art. 15 da Lei no 9.434, de 4

de fevereiro de 1997.

A Lei de Biossegurança, vigente na época e aprovada em 1995, não fazia

nenhuma menção aos embriões produzidos em laboratório, para fins de uso na Reprodução

assistida. Glaci Zancan, professora da Universidade Federal do Paraná e ex-presidenta da

Sociedade Brasileira de Pesquisa Científica (SBPC), que trabalhou na elaboração do texto do

projeto de lei em 2003, mediante solicitação do poder executivo, explicou que naquele

momento não havia conhecimento suficiente que permitisse vislumbrar a manipulação com

vistas a obtenção de células-tronco a partir dos embriões congelados nas clínicas de

fertilização. Afirmou, então, que a proibição ocorreu por falta de conhecimento disponível e,

subsequentemente, numa audiência no Senado, pontuou que as matérias (os transgênicos e as

células-tronco) tramitassem em textos separados, sugerindo que o texto sobre as células-

tronco fosse incluído no debate dos projetos de regulamentação da Reprodução Assistida

(CESARINO, 2006). A pesquisadora se referiu ao inciso IV do artigo 6º do projeto de lei

2.401/2003 que tinha como objetivo a produção, armazenamento ou manipulação de

embriões humanos destinados a servir como material biológico disponível.

Neste período, tramitava pela Câmara um projeto de lei sobre a Reprodução

Assistida (PL nº 1.184/2003)26

elaborado no mesmo ano do texto da primeira lei de

Biossegurança. No texto do projeto não fica explicito a possibilidade de armazenamento dos

embriões. No artigo 13 afirma-se que só poderá ser produzido e transferido para a mulher

apenas dois embriões. Também não apresenta clareza sobre a possibilidade de descarte dos

embriões, fazendo menção apenas aos gametas dos doadores, caso os mesmos decidam pelo

descarte. Outro ponto que o texto não menciona, e deixa passível de interpretação, está no

paragrafo dois do artigo 13: a redução embrionária27

. Por não haver uma legislação especifica

26

Este projeto de lei tramita no Congresso até os dias atuais. Quando realizei a ultima revisão dessa passagem do

texto tive a curiosidade de consultar o tramite do projeto no site da Câmara. Atualmente, a última atualização do

processo data de julho de 2012, o deputado João Campos recomendava uma audiência pública para

esclarecimentos sobre o projeto. Ver em:

http://www.camara.gov.br/proposicoesWeb/fichadetramitacao?idProposicao=118275 27

A prática de reprodução assistida considera que é preciso implantar vários embriões para que se obtenha êxito

no processo. Quando há nidação (fixação do óvulo fecundado na parede do endométrio) de mais de um embrião

a prática seguia o caminho da retirada, evitando assim riscos da gravidez múltipla. Não há nenhuma lei

específica que legisle sobre o tema. Havia apenas uma resolução, a mencionada no texto, sobre a qual se

Page 55: Agindo como experts... Israel de Jesus Rocha.pdf

55

à época os embriões extranumerários armazenados nas clínicas de fertilização in vitro (FIV)

deveriam ficar criopreservados até a decisão dos pais, pois uma resolução (nº 1.358/92)28

do

Conselho Federal de Medicina proibia o descarte dos embriões.

Não havia nenhuma indicação por parte dos Poderes Legislativo e Executivo em

regular mediante uma legislação específica (e ainda hoje não há tal legislação) o uso das

pesquisas com células-tronco. Diante dos desenvolvimentos das pesquisas no circuito

acadêmico internacional e com a preocupação de atraso em relação aos países que já estavam

desenvolvendo pesquisas com embriões, diversos grupos de pressão se organizaram em torno

da matéria, solicitando de tais poderes um posicionamento a respeito. Além dos grupos de

pressão formados por especialistas que já pesquisavam células-tronco adultas29

(CTa) e

empregavam com certos resultados positivos em tratamentos de doenças como cardiopatias

(doença de Chagas e insuficiência cardíaca), de doenças autoimunes como o Diabetes tipo 1,

além do Acidente vascular cerebral (AVC), havia grupos formados por pessoas que percebiam

no tratamento a esperança para a cura das doenças.

Diante da pressão exercida pelos grupos, um projeto de lei que inicialmente foi

elaborado para resolver o problema dos organismos geneticamente modificados ganhou status

de uma lei elaborada para liberar o uso de pesquisas com células-tronco embrionárias em boa

parte da opinião pública nacional. Internamente, o projeto não seguiu coeso nas duas matérias.

Tanto os organismos geneticamente modificados quanto as células-tronco embrionárias

mobilizaram atores que divergiam em opinião e estratégias. No caso das CTEs os arranjos

parlamentares mobilizaram a bancada “cristã” (evangélicos e católicos) em torno da retirada

dos artigos que liberavam as pesquisas com embriões. Em oposição estavam aqueles que

regulava os procedimentos de reprodução assistida. Nesta resolução, havia uma menção ao número máximo de

embriões que poderia ser implantado, um total de quatro. Esta resolução foi revogada e outra, CFMnº

1.957/2010, mudou o teor da limitação de embriões propondo uma gradação: a) mulheres com até 35 anos: até

dois embriões); b) mulheres entre 36 e 39 anos: até três embriões; c) mulheres com 40 anos ou mais: até quatro

embriões, baseado na possibilidade de sucesso no processo de nidação dos embriões. 28

Foi substituída pela resolução CFM nº 1.957/2010. 29

Desde as primeiras publicações especializadas sobre as células-tronco e suas possibilidades que podemos

observar um espaço aberto para o desenvolvimento de uma controvérsia. Essas células possuem várias

aplicações no campo da pesquisa básica, desde o entendimento do desenvolvimento biológico humano até a

viabilidade terapêutica de alguns medicamentos. O uso mais controverso está na terapia gênica, quando elas são

utilizadas como vetores na modificação de outras células do corpo. Elas são classificadas como: totipotentes,

capazes de diferenciação em qualquer tecido dos 216 do corpo humano; pluripotentes ou multipotentes,

capazes de se diferenciarem em quase todos os tecidos; as oligopotentes, capazes apenas de diferenciação em

poucos tecidos e as onipotentes, que se diferenciam apenas em um tecido. Os dois primeiros tipos são apenas

encontrados nos embriões, as totipotentes entre o terceiro e quarto dias, enquanto as pluripotentes surgem no

interior do embrião quando este atinge a fase de blastocisto.

Page 56: Agindo como experts... Israel de Jesus Rocha.pdf

56

desejavam a liberação. A controvérsia no parlamento mobilizou estes dois blocos, mas não se

limitou a eles. Outros atores foram mobilizados em torno do projeto e envolveu as associações

de pacientes diretamente interessados nos futuros tratamentos e os porta-vozes das inúmeras

pesquisas que envolviam estudos com células-tronco, os especialistas.

Em meados de 2004 foi retirado do texto do projeto de lei, depois de amplas

modificações feitas pelas tramitações e audiências públicas realizadas na Câmara dos

Deputados, o artigo que proibia a produção e o armazenamento de embriões sob declaração de

que limitava a pesquisa com células-tronco embrionárias no país. Ao passo que o dispositivo

que substituía não explicitava o que poderia ou não ser feito, possibilitando assim que

embriões fossem produzidos para os fins de pesquisa, tanto pela FIV como pelos

procedimentos de clonagem disponíveis na época (CESARINO, 2006).

Com todos os holofotes e microfones da opinião pública direcionados ainda para a

matéria dos organismos geneticamente modificados, os pontos relacionados à liberação das

pesquisas com embriões foi meticulosamente recuperado pela bancada cristã, ameaçando o

governo tanto na oposição em votações próximas como utilizando do argumento que a

opinião da bancada expressava a vontade de boa parte da população brasileira.

As articulações fizeram com que o relator Renildo Calheiros, a fim de aprovar o

texto de seu Parecer sem muito debate, pois foi apresentado como uma contraproposta ao

texto de Aldo Rebelo30

, incluísse novamente o dispositivo que proibia a produção de embriões

para fins de pesquisa, além de criminalizar a prática. O que agradou as bancadas católica e

evangélica na Câmara. Desde então, a matéria que envolvia as células-tronco passou a ocupar

o cenário da opinião pública brasileira, ultrapassando os transgênicos e agendando a pauta do

Congresso Nacional. Este deslocamento indicou caminhos da controvérsia relacionados à

posição estratégica que os transgênicos ocupam no cenário nacional. O lobby pela aprovação

da lei que autorizava e disciplinava o uso dos organismos exerceu pressão sobretudo

envolvendo a bancada ruralista e empresas com capital direto na produção de sementes

transgênicas. Neste sentido, a inclusão do texto sobre as células-tronco pareceu uma saída

30

No dia da votação não se sabia ao certo qual texto seria votado. Se o texto de Aldo Rebelo, já apresentado e

amplamente apoiado por setores do governo e da oposição, ou seria o texto Parecer de Renildo Calheiros,

articulado na sessão com o objetivo de ser votado. Na sessão ambos foram encaminhados para votação depois de

mais de 2 horas de atraso.

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57

para aprovação dos itens do texto que diziam respeito à produção dos organismos

geneticamente modificados.

Aprovado e encaminhado para o Senado o texto passou por um amplo debate que

incluiu mais algumas comissões e audiências públicas com representantes de organizações da

sociedade civil. Das comissões e audiências elaboradas, apenas uma tratava diretamente das

células-tronco embrionárias e envolviam os especialistas: Maiana Zatz (Diretora do Centro de

Estudos do Genoma Humano da USP); a professora Patrícia Pranke (UFRGS); André Soares

(professor de Bioética da PUC/SP); Dráuzio Varella (Oncologista) e Marco Antônio Zago

(Diretor científico do Hemocentro da USP). Desses, Maiana Zatz, Patrícia Pranke e Marco

Antônio Zago participaram também da audiência pública da ADIN 3510, no bloco dos

cientistas favoráveis às pesquisas. Neste momento os especialistas se posicionaram sobre a

questão e defenderam a liberação das pesquisas, que não deixaram de mencionar a sua

conquista na audiência, basta vermos no capítulo quatro o depoimento de Zatz durante sua

exposição.

No Senado intensificou-se o debate em torno da separação dos temas,

transgênicos e células-tronco embrionárias, que até então figuravam no mesmo texto. Alguns

deputados defenderam a prerrogativa legal que nenhum projeto de lei pode tratar de dois

assuntos e outros defenderam que as duas matérias poderiam fazer parte de um único texto,

argumentando que apenas deveria ser mencionados no primeiro artigo da lei (CESARINO,

2006).

Os substitutivos elaborados para a matéria células-tronco mudou diversos pontos.

Entre os que foram modificados estavam a permissão da clonagem terapêutica como técnica

de obtenção de células-tronco para fins de tratamento; utilização dos embriões armazenados

nas clínicas de fertilização in vitro que tivessem no máximo 5 dias e que não fossem

utilizados nos procedimentos e autorizados pelos genitores, além de criminalizar a prática de

venda desse material. Ainda foram utilizados de alguns recursos retóricos a fim de evitar

problemas conceituais como a substituição do termo “embriões humanos” por “conjunto

celulares embrionários humanos”, explicando se tratar de células e não um ser humano

formado ainda. Como afirma Cesarino (2006),

a inserção do blastocisto em uma nova categoria, diferente da de

“embrião” (como, por exemplo, a britânica “pré-embrião”), é uma das

Page 58: Agindo como experts... Israel de Jesus Rocha.pdf

58

estratégias dos lobbies pró-pesquisa em todo o mundo para convencer

os políticos a liberarem a pesquisa. No caso brasileiro, a mudança

incluída no parecer de Dias baseia-se em uma definição funcional das

células embrionárias, que, no entanto, é parcial: não se menciona que

tais “conjuntos celulares embrionários humanos” também podem

transformar-se num ser humano formado.

Na comissão de educação, onde ocorreu a audiência sobre as células-tronco, a

novidade foi a presença dos argumentos polarizados entre o lixo como o destino já usual dos

embriões ou a nobreza que envolve o uso para a pesquisa. O argumento provou-se útil diante

da celeuma formada em torno da definição do início da vida e apresentou-se como uma

tentativa de apaziguar os ânimos entre os cientistas e religiosos em torno da questão. Ao tratar

do tema nestes termos sugeriu-se que fossem destinados à pesquisa os embriões excedentes

produzidos nas clínicas de FIV, protelando assim o assunto já que os cientistas disporiam de

um material para início das pesquisas e deixando o aprofundamento da discussão para um

momento posterior, incluindo a necessidade de criação de uma Comissão Nacional de

Bioética (CESARINO, 2006).

O argumento da polaridade entre a pesquisa e o lixo adiou o debate sobre o uso

dos embriões ao convencer os senadores dedicados à questão das células-tronco31

, a

Confederação Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) e a Frente Parlamentar Evangélica

(FPE). Os pesquisadores que foram à audiência no Senado centralizaram suas argumentações

em torno do excessivo número de embriões disponíveis nas clínicas. Aceitaram os dados

disponibilizados pelos cientistas a respeito do número de embriões que possivelmente

estariam descartados nas clínicas de fertilização, cerca de 20 a 30 mil embriões. O que seria

suficiente para proporcionar material de pesquisa para os cinco anos posteriores à aprovação

da lei.

Mesmo com discursos de reprovação por parte de alguns parlamentares, a matéria

foi aprovada no Senado, procurando contemplar interesses nacionais relacionados ao

desenvolvimento das pesquisas. Tentando agradar os parlamentares evangélicos, fixou-se

como limite de uso os embriões congelados há mais de 3 anos, ou que completariam tal

período na data de aprovação da lei. Após a aprovação da lei um levantamento realizado pela

31

Esta especialização ocorreu por uma divisão dos trabalhos no Senado, ficando alguns senadores responsáveis

pela resolução da matéria. (para mais detalhes ver Cesarino, 2006)

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59

Associação Brasileira de Reprodução Assistida mostrou que o número de embriões

disponíveis não passava dos 10 mil nas 15 maiores clínicas de reprodução do país, e desses

apenas 3 mil estavam congelados há mais de 3 anos (CESARINO, 2006).

Os dois pareceres sobre o texto que envolvia a matéria das células-tronco

debateram-se em torno da definição de alguns conceitos como a clonagem terapêutica32

. Os

embates na Câmara deixaram mal resolvidos o que seria tal técnica e coube ao Parecer do

Senador Suassuna uma dedicação ao tema, optando por sua supressão do texto. A medida

agradou a bancada evangélica, mas desagradou muito os interessados na manutenção da

definição no texto. O curioso neste caso é que meses depois veio à tona as redes que

sustentavam as técnicas e procedimentos envolvidos no que foi um dos maiores casos de

fraude na comunidade científica nos últimos anos, o caso Hwang. (SOUZA, 2011),

envolvendo a técnica de clonagem terapêutica. No texto, sugerido pelo Parecer de Suassuna,

ficou clara então a disposição em proibir tanto a clonagem terapêutica como a reprodutiva.

O retorno do texto à Câmara foi marcado pelo caráter de urgência em sua

aprovação. Não obstante o desejo de muitos deputados em colocar imediatamente em pauta as

matérias, o texto foi arquivado a espera de um melhor momento para a votação. O que tornou

a matéria passível de aguardar uma oportunidade para a aprovação foi a Medida Provisória

que permitia e legalizava a nova safra de soja transgênica no Sul do país. Com tal medida, o

texto pode esfriar nas gavetas até que pudesse ser mencionado novamente em votação. A

chegada do projeto na Câmara ocorreu ainda nos meses finais de 2004 e só tornou a se

apreciado para votação em março de 2005, período no qual ocorreu a sua aprovação na

mesma Casa.

Com os arranjos dos parlamentares, a pressão exercida por associações de

pacientes e a presença de muitos cientistas na votação, o texto foi votado em separado e

aprovado com ampla maioria, 366 a 59, a favor da manutenção do artigo 5º da lei. Os

argumentos apresentados insistiam na potencialidade dos tratamentos e no apelo aos

familiares e pessoas diretamente implicadas. Via-se pessoas, pais e mães, crianças em cadeira

32

A clonagem terapêutica é uma técnica associada a clonagem reprodutiva. Nesta, há a transferência do núcleo

de uma célula somática de um tecido, seja de animal ou humano, para um óvulo sem núcleo. Depois disso, o

óvulo é implantado, ocasionando assim a produção do clone. Na clonagem terapêutica a diferença está no uso

final do processo. Não há o implante no útero e o óvulo segue as fases de divisão e formação do blastocisto ainda

no laboratório, possibilitando assim o uso de suas células.

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60

de rodas, artistas ilustres, levantando bandeiras e apoiando os votos favoráveis à manutenção

do artigo na lei. Os parlamentares evangélicos tentaram, mesmo com todos os arranjos feitos

anteriormente, marcar o posicionamento sobre o artigo da lei na plenária, exigindo práticas

presentes no regimento interno como a presença da bíblia na bancada até ameaças de punição

divina aos presentes (CESARINO, 2006).

Com a aprovação em separado da maioria dos artigos que envolviam os

transgênicos e as células-tronco coube ao executivo apenas fazer um acabamento superficial

no texto, mas sem substanciais mudanças no grosso do que foi aprovado. A lei de

biossegurança estava aprovada e a partir de então oferecendo parâmetros de ação em relação

às duas matérias.

Dois meses depois, mais exatamente no dia 30 de maio daquele ano, o que parecia

estar longe do clima acalorado dos debates em torno dos temas, voltou à tona, dessa vez não

pelo poder legislativo, mas mediante executivo, que acionou o judiciário. O que inicialmente

estava resolvido, neste momento tornou-se alvo de questionamentos por parte Procuradoria

Geral da República, através de seu procurador Claudio Fonteles.

Inicialmente o questionamento do artigo 5º da lei, que legislava o uso dos

embriões para fins de pesquisa, foi elaborado por meio da ADIN 3510, objeto de nosso

presente estudo. Aproximadamente 20 dias depois, o Procurador, Claudio Fonteles, acionou o

Supremo com uma Adin questionando mais 20 dispositivos da lei, envolvendo principalmente

as prerrogativas que a CTNBio33

tinha de decidir sobre questões envolvendo os transgênicos,

tema este que não trataremos aqui.

A Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADIN 3510-0) e a Campanha da

Fraternidade da CNBB34

foram duas mobilizações relacionadas diretamente com o

questionamento do artigo 5º da lei. Dentre as duas reações a Campanha teve um impacto

menor do ponto de vista de mobilização da opinião pública sobre a questão.

Já a primeira, a ADIN 3510-0, gerou uma forte mobilização da opinião pública e

foi proposta pela Procuradoria Geral da República, através do Procurador Cláudio Fonteles,

33

Comissão Técnica Nacional de Biossegurança 34

A Campanha da Fraternidade de 2008 considerou o tema: Fraternidade e defesa da vida. Em seu texto base a

Campanha declarou apoio às pesquisas com células-tronco adultas e criticou o uso de qualquer forma de vida

para fins utilitários como a pesquisa.

Page 61: Agindo como experts... Israel de Jesus Rocha.pdf

61

que entrou com ação no Ministério Público em 16 de maio de 2005 alegando a

inconstitucionalidade do artigo 5º da Lei de Biossegurança, entendendo que o artigo feria os

direitos e garantias fundamentais, a inviolabilidade do direito à vida e a preservação da

dignidade humana (LUNA, 2008). Para fundamentar a justificativa foi utilizada a tese na qual

os embriões precisariam ser destruídos para a extração das CTEs.

Logo que entrou com a Ação, o Procurador sugeriu ao relator Carlos Ayres Britto

que fosse convocada uma audiência pública com cientistas que representassem as duas partes

envolvidas na matéria, sendo metade destinado aos favoráveis à lei e a outra com

posicionamentos contrários ao artigo 5º da lei. O julgamento foi iniciado em março de 2007,

mas logo suspenso pelo pedido de vistas do processo pelo Ministro Menezes Direito e só foi

retomado em maio de 2008 com uma votação apertada de 6 a 5 favorável à

constitucionalidade da lei. Para a audiência pública foram convidados pesquisadores de

diversos centros de pesquisa e instituições federais e estaduais de ensino situados em algumas

cidades brasileiras como Salvador, Rio de Janeiro, São Paulo, Ribeirão Preto e Belo

Horizonte.

Desde 1999 instrumentos como a audiência pública são possibilitados em casos de

Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADIN) e Ação Declaratória de Constitucionalidade

(ADC). No entanto, e aqui figura uma das curiosidades deste tema, foi a primeira vez que o

Supremo Tribunal Federal (STF) dispôs deste dispositivo para análise da constitucionalidade

de um artigo de uma lei ou uma lei como um todo. O dispositivo prevê a convocação de

autoridades competentes numa determinada matéria para tratar de assuntos para os quais não

dispõem, os ministros, de suficientes informações que permitam julgar o tema.

Diferente do que aconteceu durante a tramitação da lei no Senado e na Câmara

dos Deputados, com a participação não apenas de cientistas, mas também de associações de

pacientes, representantes de clínicas de fertilização, a audiência da ADIN foi apenas uma ação

instrutória para o acúmulo de conhecimentos sobre o tema, sem possibilidade de manifestação

para os que apenas assistiam as apresentações.

Page 62: Agindo como experts... Israel de Jesus Rocha.pdf

62

3.3 - A ação direta de inconstitucionalidade 3510 e seus procedimentos

Com dissemos, depois de quase dois meses de votada a Lei de Biossegurança na

Câmara dos Deputados, o texto elaborado para dar conta das matérias envolvendo os

transgênicos e as células-tronco, volta a ser o centro das atenções na mídia e no judiciário. No

dia 30 de maio de 2005 o então Procurador Geral da República, Claudio Fonteles, impetrou

uma Ação Direta de Inconstitucionalidade, identificada como 3510-0, no Supremo Tribunal

Federal. O Objetivo da ação foi o de questionar o dispositivo do artigo 5º da lei de

Biossegurança, argumentando que foram inobservados o inciso III do artigo 1º e o artigo 5º da

Constituição Federal Brasileira, que garante o direito e a proteção a vida humana. Sua

fundamentação baseou-se no principio de que a vida humana começa com a fecundação.

Longe de oferecer apenas uma argumentação jurídica para a defesa da

inconstitucionalidade e a impetração da Ação, o Procurador Claudio Fonteles procurou

fundamentar sua petição baseando-se em argumentos científicos que permearão todo processo

da audiência pública, inclusive solicitando do Supremo a convocação do evento e indicando a

disponibilidade dos experts, ponto que trataremos com detalhes mais adiante. Sua

fundamentação levou em conta as considerações sobre o tema de quatro especialistas que

defenderam a fecundação como início da vida e mais um que defendeu os avanços obtidos

pelas células-tronco adultas35

. Dos cinco especialistas acionados pelo Procurador, três

compuseram o bloco dos pesquisadores contrários às pesquisas com embriões, como veremos

mais adiante.

A tese central desta petição afirma que a vida humana acontece na, e a

partir da, fecundação. [citando Dernival Brandão, sem data] ‘O

embrião é o ser humano na fase inicial de sua vida. É um ser humano

em virtude de sua constituição genética específica própria e de ser

gerado por um casal humano através de gametas humanos –

espermatozoide e óvulo. Compreende a fase de desenvolvimento que

vai desde a concepção, com a formação do zigoto na união dos

gametas, até completar a oitava semana de vida. Desde o primeiro

momento de sua existência esse novo ser já tem determinado as suas

características pessoais fundamentais como sexo, grupo sanguíneo, cor

da pele e dos olhos, etc. É o agente de seu próprio desenvolvimento,

35

Alice Teixeira Ferreira, Elizabeth Kipman Cerqueira, Dalton Luiz de Paula Ramos, Dernival Brandão e

Damian Garcia-Olmo.

Page 63: Agindo como experts... Israel de Jesus Rocha.pdf

63

coordenado de acordo com o seu próprio código genético. (Texto da

petição inicial da ADIN 3510)

Do ponto de vista do requerido, que neste caso era a Presidência da República,

coube a defesa da constitucionalidade baseada no princípio segundo o qual há dois valores

que a constituição ampara: o direito à saúde e o direito de livre expressão da atividade

científica. A mesma manifestação foi alinhada com a do segundo requerido, o Congresso

Nacional. Ambos se manifestaram também na sessão plenária anterior à votação dos

ministros. Diante das indagações levantadas pela petição coube ao Ministro Carlos Ayres

Britto atender a solicitação de realizar uma audiência pública para obter os esclarecimentos

necessários sobre o tema, como podemos observar na decisão monocrática exercida pelo

Ministro Relator.

(...) a matéria veiculada nesta ação se torna de saliente importância,

por suscitar numerosos questionamentos e múltiplos entendimentos a

respeito da tutela do direito à vida. Tudo a justificar a realização de

audiência pública, a teor do § 1º do artigo 9º da Lei nº 9.868/99.

Audiência que, além de subsidiar os Ministros deste Supremo

Tribunal Federal, também possibilitará uma maior participação da

sociedade civil no enfrentamento da controvérsia constitucional, o que

certamente legitimará ainda mais a decisão a ser tomada pelo Plenário

desta nossa Corte.

4. Esse o quadro, determino:

a) a realização de audiência pública, em data a ser oportunamente

fixada (§ 1º do art. 9º da Lei nº 9.868/99);

b) a intimação do autor para apresentação, no prazo de 15 (quinze)

dias, do endereço completo dos expertos relacionados às fls. 14;

c) a intimação dos requeridos e dos interessados para indicação, no

prazo de 15 (quinze) dias, de pessoas com autoridade e experiência na

matéria, a fim de que sejam ouvidas na precitada sessão pública.

Indicação, essa, que deverá ser acompanhada da qualificação completa

dos expertos.36

A Lei 9.868/99 que dispõe sobre os processos de ação direta de

inconstitucionalidade e ação declaratória de constitucionalidade. Especificamente o parágrafo

1º em seu artigo 9º afirma que em caso de necessidade de esclarecimento de matéria ou

36

Decisão publicada no Diário de Justiça da União em 01.02.2007

Page 64: Agindo como experts... Israel de Jesus Rocha.pdf

64

circunstancia de fato ou de notória insuficiência de informações existentes o Tribunal pode

solicitar por parte de peritos emissão de parecer sobre o assunto ou estabelecer datas para uma

audiência pública de instrução e recebimento de depoimentos. No entanto, o Supremo não tem

em seu regimento nenhum dispositivo que regule tal procedimento.

Apesar de na ADIN ter ocorrido a audiência pública como já indicava a petição de

Fonteles cabia ao relator Ayres Brito adotá-la ou não como procedimento de instrução na

decisão (pergunta: porque ele então resolveu manter?). Em sua explicação, o relator afirmou o

compromisso da audiência em possibilitar além de um maior subsídio para as decisões dos

ministros, uma maior participação da sociedade. Neste sentido, uma curiosidade sobre a

formação da audiência é que não houve apenas a solicitação de especialistas ligados às

organizações e associações de pesquisa e em defesa dos direitos de pacientes, como se tratava

da maioria presente.

Em 28 de novembro de 2005, o Ministro Ayres Britto, acatou o pedido do

Movimento em Prol da Vida (MOVITAE) para integrar o processo como amicus curiae37

. Em

breve decisão, o Relator considerou a importância da matéria e a representatividade da

interessada. Mais tarde, foram deferidas iguais participações ao Instituto de Bioética, Direitos

Humanos e Gênero (ANIS) e à Confederação Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB). As

entidades MOVITAE e a ANIS tornaram-se protagonistas da reivindicação pela liberdade de

pesquisa com células-tronco, posicionando-se pela constitucionalidade do art. 5º da lei de

biossegurança, em nome do direito à saúde e, por extensão, à própria vida. Diferentemente, a

CNBB acrescentou ingredientes religiosos à matéria, defendendo a inconstitucionalidade da

norma, em nome do direito à vida e da dignidade do embrião humano.

Como mencionei antes, não apenas representantes de organizações solicitaram a

participação na audiência. Uma pessoa de nome Reginaldo da Luz Ghisolfi requereu

participação como amicus curiae. No entanto, em 3 de maio de 2006, seu pedido foi

indeferido pelo Ministro Relator, precisamente por faltar a ele a representatividade necessária

para a intervenção como interessado. Embora o cidadão tenha sustentado ser um conhecedor

da matéria, portanto, passível de ser um argumentador, segundo requer o dispositivo da lei, o

37

Os Amicus Curiae(amigo da corte) é uma espécie de intervenção assistencial em processos que envolvem

constitucionalidade por parte de entidades interessadas e que têm representatividade para se manifestar durante o

processo. O curioso é que elas não são partes do processo e atuam apenas como interessados na causa em

questão. (ver mais detalhes no site do Supremo Tribunal Federal)

Page 65: Agindo como experts... Israel de Jesus Rocha.pdf

65

Relator, interpretando o art. 7º, § 2º, da Lei n. 9.868/99, não considerou suficiente a condição

individual do requerente, sendo necessária sua qualidade de representante de um grupo de

interesse (TORRONTEGUY, Marco; RAUPP, Luciane, 2008).

A convocação dos especialistas ocorreu pelo autor da petição, pelas partes

interessadas e pelos requeridos. A lista de especialistas sugerida pela petição inicial contou

com os nomes: Alice Teixeira Ferreira; Claudia Maria de Castro Batista; Eliane Elisa de

Souza e Azevedo; Elizabeth Kipman Cerqueira; Lilian Piñero Eça; Dalton Luiz de Paula

Ramos; Dernival da Silva Brandão; Herbeth Praxedes; Rogério Pazetti.

Nesta ocasião, mesmo com a possibilidade de envio simples pelo próprio autor da

petição, o relator solicitou que fossem enviados para os nomes os comunicados como convites

para os participantes. A ANIS (Instituto de Bioética, Direitos Humanos e Gênero) tentou a

indicação de especialistas por duas vezes antes de ter nomes sugeridos para a participação. A

organização só foi admitida como amicus curiae depois da emissão dos convites para os

especialistas indicados. A CNBB requereu também, após a emissão dos convites, a indicação

de dois especialistas para participação na audiência. Argumentos em diversas teses do direito

sugerem que se isso não tivesse ocorrido o número de participantes que solicitariam

participação como amicus curiae seria difícil de precisar, e portanto inviabilizaria a realização

da audiência.

O Supremo emitiu os convites, inicialmente para 17 especialistas indicados pela

presidência da república, pela mesa do congresso nacional e pela Procuradoria. Ao final

compareceram ao certame da audiência 22 especialistas.

O Bloco favorável à realização das pesquisas foi composto por: Mayana Zatz

(Coordenadora do Centro de Estudos do Genoma Humano da USP); Patrícia Helena Lucas

Pranke (Professora da UFRGS e representante do Ministério da Saúde); Lúcia Willadino

Braga (Presidente e Diretora da Rede de Hospital Sarah); Stevens Rehen (Presidente da

Sociedade Brasileira de Neurociências); Rosália Mendes Otero (Professora de Biofisica da

UFRJ); Júlio Voltarelli (Coordenador da Unidade de Transplante de Medula Óssea da USP);

Ricardo Ribeiro dos Santos (Pesquisador da Fiocruz); Lygia V. Pereira (Professor do Dep. De

genética e biologia da USP); Luiz Eugênio Araújo de Moraes Mello (Doutor em biologia

Page 66: Agindo como experts... Israel de Jesus Rocha.pdf

66

molecular); Antônio Carlos Campos de Carvalho (Doutor em biofísica UFRJ); Débora Diniz

(Diretora executiva da ANIS).

O Bloco contrário à realização das pesquisas foi formado por: Lenise Aparecida

Martins Garcia (Professora do Departamento de Biologia Celular da UNB); Cláudia Maria de

Castro Batista (PHD em Neurociências); Lilian Piñero Eça (Doutora em biologia molecular);

Alice Teixeira Ferreira (Professora de biologia celular e molecular da UNIFESP); Marcelo

Vaccari (Vice-presidente do Instituto de Pesquisa Células-tronco); Antônio José Eça (Médico

psiquiatra forense); Elizabeth Kipman Cerqueira (Coordenadora do Centro de Bioética

Jacareí/SP); Rodolfo Acatauassú Nunes (Doutor em Cirurgia Geral/UFRJ); Herberth Praxedes

(Coordenador do Comitê de ética da UFF); Dalton Luiz de Paula Ramos (Professor de

bioética da USP); Rogério Pazetti (Doutor em Ciências Faculdade de Medicina da USP).

Destes 22 especialistas4 não constavam da lista de convidados da relação

apresentada pela Procuradoria da República na petição inicial, nem do requerimento

apresentado pela CNBB. São eles: Lúcia Willadino Braga e Júlio Voltarelli, favoráveis às

pesquisas e Marcelo Vaccari e Antônio José Eça, contrários às pesquisas.

A forma como os especialistas foram indicados para participar da audiência

pública mereceu críticas de Cláudia Maria de Castro Batista, que integrou o bloco contrário às

pesquisas com células-tronco embrionárias humanas. Para a pesquisadora, a centralização da

escolha dos participantes e da organização do bloco expositor contrário às pesquisas nas mãos

da Procuradoria Geral da República resultou em um grupo menos ligado à área científica do

que aquele que era favorável às pesquisas com células-tronco embrionárias humanas. O

resultado, segundo a pesquisadora, foi uma disparidade muito grande na representação das

posições, que poderia ser minimizada caso fossem indicadas para compor o bloco contrário às

pesquisas pessoas mais preparadas, articuladas e envolvidas com pesquisa científica. Essa

possibilidade existiria, caso organizasse um grupo de pessoas do seu conhecimento, o que a

princípio, entendeu que ocorreria. (LIMA, 2008)

Não houve tempo também, por parte da Procuradoria, de organizar

uma coisa bem feita. Eu não vi isso. A princípio eu achei que eu iria

organizar e colocar pessoas que seguissem uma linha de pensamento e

acabou que foram pessoas que não se conheciam, de nada, eu não

conhecia ninguém do lado da Procuradoria e algumas prestaram

depoimentos que foram lamentáveis. [...] Teve um que era totalmente

fora da área acadêmica, científica. Eu não sei o que ele estava fazendo

Page 67: Agindo como experts... Israel de Jesus Rocha.pdf

67

lá, como ele foi parar lá, eu nunca tinha ouvido ele falar em público,

por isso, para mim, foi um choque. [...] E o outro lado estava muito

mais preparado, porque eram pessoas que, aí sim, eu conheço todo

mundo há muitos anos, são pessoas todas da área acadêmica, cientistas

e pesquisadores. Eu sabia o que cada um iria falar, iram apresentar

muito bem. Falam muito bem e têm uma linha coerente. Então ficou

uma coisa meio disparatada. (Claudia Batista, trecho da entrevista)

[...]

O Fonteles entrou em contato comigo, disse que haveria uma reunião,

eu fui e aí eu vi algumas pessoas, não todas, enfim, subentendi que eu

iria organizar a coisa, com um grupo do meu conhecimento. Mas aí eu

vi iriam só dois ou três, três pessoas além de mim que estavam

preparadas. Eram mal preparadas por não serem da área científica,

mais ligadas à área da saúde pública, não científica, com pesquisa em

si. Algumas tinham a melhor da boa vontade em defender o lado ético;

não tinham preparação para isso, eu acho que foi mais por aí: Pessoas

com muita boa vontade, sem preparação.”38

(Claudia Batista, trecho da

entrevista)

As mesmas críticas foram apontadas por Antônio Carlos Campos de Carvalho,

A primeira coisa que chama a atenção da gente é que os pesquisadores

que eram favoráveis, se você for olhar os currículos desses

pesquisadores, eles têm inúmeros trabalhos publicados, têm uma vida

acadêmica bastante ativa e são pesquisadores produtivos, que

publicam em revistas conceituadas internacionais indexadas e quanto

ao currículo do pessoal que estava falando contra, é uma pobreza

geral, na maioria dos casos. Com raras e honrosas exceções, a maioria

daquelas pessoas não tem nenhuma, digamos, tradição acadêmica,

nem história de pesquisa na área. Isso é o que contrasta. (trecho da

entrevista)

Além dos dois pesquisadores já mencionados, a pesquisadora Lygia Pereira

destacou a importância dos argumentos científicos na defesa do bloco contra as pesquisas. Os

pesquisadores revelaram-se limitados em suas defesas. Se observarmos, como detalharei mais

adiante, os vídeos da audiência, muitos dos apresentadores do bloco contrário às pesquisas

levavam um tempo de exposição bem menor se compararmos o tempo usado pelos

38

Os trechos dessas entrevistas estão disponíveis na pesquisa realizada por Rafael Scavone Bellem de Lima

(2008), sobre a organização e o aproveitamento da primeira audiência pública do Supremo para o Direito. Em

contato com o autor, solicitei cópias das entrevistas para tentar recompor a controvérsia. Em resposta, o mesmo

afirmou ter perdido as transcrições e gravações do material. A recomposição aqui baseia-se nos trechos que ele

publicou no trabalho, não sendo possível acessar outras partes das entrevistas. Os trechos aqui usados foram

importantes peças para a reconstrução dos rastros deixados pela audiência.

Page 68: Agindo como experts... Israel de Jesus Rocha.pdf

68

pesquisadores favoráveis às pesquisas. Além da variável tempo, as apresentações destacavam

pontos repetitivos entre os participantes. A questão genética e a vida a partir da fecundação

foram temas que perpassaram todas as apresentações do bloco contrário às pesquisas.

Veremos isso mais adiante no quadro comparativo dos tempos usados nas apresentações.

Agora o que foi pena é que eles [se refere à Procuradoria] chamaram

pessoas – enfim, as pessoas que eram contra, como não existe um

argumento científico contra as células tronco embrionárias, você pode

usar argumentos religiosos, esses têm que ser respeitados, agora não

existe um argumento científico, você não pode dizer que a célula

tronco adulta é melhor que a embrionária, que estava no texto da ação

de inconstitucionalidade. Então o pessoal que era do contra, usando os

argumentos científicos, eram muito fracos. Muito fracos. Mas enfim,

as partes, eles não acharam ninguém para falar do ponto de vista

científico, para ter argumentos contra. (Lygia Pereira, trecho da

entrevista)

Se confrontarmos as posições tanto de Claudia Maria com a da pesquisadora

Lygia Pereira percebemos que todo o arranjo desenvolvido para a audiência provocou um

certo desconforto aos membros do bloco contrário à pesquisa. Neste sentido, sugere que

poucos são os pesquisadores contrários envolvidos diretamente na controvérsia, como

podemos observar no comentário de Lygia Pereira,

[...] eu não conheço, a turma que estava lá que era do contra é o único

pessoal do contra que eu conheço, nesses anos todos de debate, a

gente vem debatendo isso no mínimo desde 2002. E são sempre

aquelas mesmas pessoas, eu não conheço nenhum outro membro da

comunidade científica que tenha se levantado para falar contra essas

pesquisas. Mas se existe, eu sinto muito que não pôde ter a sua

participação naquele evento.(trecho da entrevista)

3.4 - A disposição dos blocos

O relator do processo indicou a realização da Audiência apenas para o dia 24 de

abril de 2007 com uma duração prevista de 7 horas, entre 9 e 19 horas no auditório da

primeira turma do STF. Como não havia uma regulamentação no regimento interno do STF o

Relator acabou aplicando as normas disponíveis do Capítulo III do regimento interno da

Page 69: Agindo como experts... Israel de Jesus Rocha.pdf

69

Câmara dos Deputados39

, que disciplinam as audiências públicas. De acordo com tal

regimento cada expositor dispõe de um período de 20 minutos para apresentação. Para a

ADIN o tempo fixado pelo regimento não foi seguido, cabendo ao Relator a definição do

tempo para os participantes envolvidos na audiência. As apresentações não seguiram limites

bem definidos, variando entre os expositores.

O tempo da audiência foi dividido em dois blocos no turno matutino e dois blocos

no turno vespertino, respectivamente de 3 horas para o turno da manhã e 4 horas para o turno

da tarde. Pela manhã foram distribuídas 1 hora e meia para cada bloco de expositores. Pela

tarde o período correspondeu a 2 horas. Coube aos expositores dos blocos organizarem o

tempo das exposições de acordo com a disponibilidade dada.

A ordem de apresentação foi definida em sorteio e o início dos turnos se deu de

modo alternado entre os blocos. No período matutino os especialistas listados como

favoráveis às pesquisas iniciaram as apresentações. A ausência de normas claras sobre a

participação e organização de uma audiência pública no âmbito do STF tornou os argumentos

do Relator um ponto preponderante de organização das apresentações. A alternância entre os

blocos, contudo, não foi para acentuar o caráter antagônico dos conteúdos. O intuito não foi o

de promover o debate e a contraposição de ideias, como afirmou o Relator durante os breves

intervalos da audiência. As regras estabelecidas pelo Relator tiveram o intuito de evitar a

contraposição e proporcionar o que Ayres afirmou na abertura não se tratar de estabelecer um

contraditório, mas sim de um processo de coleta de dados para o futuro julgamento pelos

Ministros.

Apesar de transcorrido dentro das regras estabelecidas, nas quais o contraditório

não poderia ser exposto pelos especialistas, o Ministro Carlos Ayres Britto interviu nas

apresentações de dois participantes, Antônio José Eça e Herberth Praxedes, ambos do bloco

de pesquisadores contrários às pesquisas, solicitando que os mesmos evitassem o debate e o

confronto com as apresentações dos expositores favoráveis às pesquisas.

Primeiro na exposição de Antônio José Eça, quando o mesmo afirma,

Vamos gastar dinheiro com aventuras ética e tecnicamente

discutíveis? [...] Porque não se pensa, num país como o nosso, em

39

Regimento interno da Câmara dos deputados, artigos 256 e 257.

Page 70: Agindo como experts... Israel de Jesus Rocha.pdf

70

melhorar as condições de vida do povo, dando-lhe saneamento básico,

atendimento médico, exatamente o que falta a essas mulheres, isso se

estiverem preocupados com a mulher brasileira. [...]. Isso sim é saúde

pública, que deveria preocupar quem está querendo fazer alguma coisa

de bem para a mulher brasileira.40

Mais adiante com Herberth Praxedes,

A ciência é um método sistemático para se desenvolver e testar

hipóteses sobre o mundo físico. Não promete curas miraculosas com

provas inconsistentes – os Senhores viram hoje, desde de manhã até

agora, que é exatamente isso que os expositores que me antecederam

fizeram. Quando cientistas fazem tais asserções – de curas milagrosas

-, eles estão agindo individualmente, por suas convicções e esperanças

individuais, e não como a voz da ciência. Se tais cientistas permitem

que sua crença pessoal, no futuro da pesquisa com células-tronco

embrionárias humanas, seja interpretada como uma predição plausível

do resultado dessas pesquisas, eles estarão agindo

irresponsavelmente.41

Michael Mulkay e Nigel Gilbert (1982) observaram que em disputas envolvendo

diferentes teorias os cientistas constroem argumentos procurando o descrédito das explicações

apresentadas por cientistas com teorias opostas. Em muitos casos, não há argumentos

pautados na referência direta ao conteúdo das teorias. Quando parece haver uma certeza sobre

os conteúdos da teoria os argumentos são exclusivamente tratados como um fenômeno

cognitivo. Quando não há tais certezas e que os trabalhos apontam para possíveis erros,parece

haver a introdução de fatores sociais e psicológicos que distorcem o domínio cognitivo.

Este argumento desenvolvido por Mulkay e Gilbert (1982) também aparece no

Programa forte de David Bloor (2009) a partir da noção de simetria proposta pelo mesmo.

Tanto os argumentos de Eça como de Praxedes sugerem que os pesquisadores do bloco

contrário manuseiam informações e argumentos na direção apontada pelos autores42

.Não só

40

Trecho da audiência pública. 41

Trecho da audiência pública. 42

Whereas correct belief is portrayed as exclusively a congnitive phenomenon, as arising unproblematically out

of rational assessments of experimental evidence, incorrect belief is viewed as involving the intrusion of

distorting social and psychological factors into the cognitive domain. […] actors and beliefs generated in this

social network are extremely diverse and that the accounts offered by particular members appear to alter

significantly from occasion to another. (MULKAY, M; GILBERT,G.N. 1982, p.181)

Page 71: Agindo como experts... Israel de Jesus Rocha.pdf

71

os especialistas do bloco contrário à pesquisa mostraram como manusear os argumentos do

grupo em oposição. Os especialistas do bloco favorável às pesquisas construíram argumentos

que procuraram desprezar as posições do bloco contrário.

Existem várias coisas que são colocadas, por exemplo, que célula-

tronco embrionária tem potencial de produzir tumor. Isso é uma

falácia. Ela produz tumor quando colocada em um animal que tem

uma deficiência genética muito significante e, em altas doses de

célula, dará um tipo de tumor que vamos mostrar. Mas em condições

normais ela não produz.43

Mesmo afirmando no intervalo entre os blocos, ainda no primeiro turno, sobre o

clima amistoso e de respeito entre os expositores favoráveis à pesquisa, estes não fazendo

nenhuma menção aos argumentos dos especialistas do bloco contrário às pesquisas, não foi

possível ao Relator evitar que trechos das apresentações de expositores como Ricardo Ribeiro

dos Santos fizessem referências aos apresentadores do bloco contrário às pesquisas.

O mesmo aconteceu com o expositor Antônio José Eça, quando afirma que

alguém disse que a formação de tumores é falácia, não é. Está por aí para publicação, talvez

falte ler, há formação de tumores com célula embrionária [referindo-se à exposição de

Ricardo Ribeiro dos Santos].

Nas duas situações não houve intervenções do relator, desdobrando uma dimensão

das apresentações que escapam às definições usuais que remetem a argumentos contrários e

favoráveis. A intuitiva organização das exposições em dois blocos bem delimitados e com

objetivo de coleta de informações para os julgamentos dos magistrados não limitou as

referências com desqualificações moderadas entre os participantes. Tal modo de organização

inibiu em certa medida também uma pluralidade de manifestações que de alguma maneira não

se enquadravam nos blocos organizados. Como mencionei mais acima, apenas foi permitido

para audiência representantes de organizações sociais que estivessem diretamente envolvidas

com a questão tratada na audiência, que tinham interesse direto na questão das pesquisas com

células-tronco.

43

Trecho da audiência pública: exposição de Ricardo Ribeiro.

Page 72: Agindo como experts... Israel de Jesus Rocha.pdf

72

Os conteúdos das apresentações não foram fixados previamente pela Relatoria.

Coube aos blocos a melhor organização dos conteúdos e das exposições, incluindo a

administração do tempo. Afirmou o próprio relator no final do turno vespertino que não havia

nenhuma “predeterminação do tema”44

, desde que não tratasse de aportes jurídicos sobre o

assunto. O que seria tratado mais adiante na votação dos ministros.

Mesmo colocando que cabia aos expositores não ocuparem-se de comentários

jurídicos sobre a questão, alguns articularam intervenções que diziam respeito diretamente ao

Direito, como o Antônio José Eça.

Estou aqui como docente de Medicina Legal, para discutir até mesmo

os problemas legais que dizem respeito à área médica relativa a esse

problema. Claro que terei de misturar Medicina e legalidade, puxando

para o lado da Medicina [...] A minha especialidade é a Medicina

Legal e também, talvez, os eventuais problemas éticos que existam,

mas passa primordialmente – junto com o Professor Genival França,

um dos maiores médicos legistas do país – pela discussão sobre vida e

morte. Essa discussão passará pela consideração de que anteriormente,

os meios disponíveis pela Medicina Legal para precisar a morte,

principalmente quando surgiu o interesse pelos transplantes de órgãos

eram muito precários.45

Os comentários do Médico legista proporcionaram momentos de intervenção por

parte da Relatoria, reafirmando mais uma vez o propósito da audiência, no sentido de coletar

apenas informações úteis para os Ministros no momento do julgamento de mérito da questão.

Vossa Excelência, porém, poderá falar sobre o aspecto médico, que é de seu conhecimento, e

não fazer uma análise de dispositivos jurídicos.46

A reafirmação do Relator também ocorreu

no final do período matutino ao considerar que as apresentações foram louváveis em não

mencionar aspectos de cunho jurídico, pontuando que cabia aos ministros em outro momento

do processo.

Quero louvar, nos expositores, esse apego fiel e irrestrito ao tema da

exposição, sem descambar, por exemplo, para a área jurídica. Este não

é o momento de falar juridicamente, de fazer sustentação oral do

44

Trecho da audiência pública. 45

Trecho da audiência pública. 46

Trecho da audiência pública.

Page 73: Agindo como experts... Israel de Jesus Rocha.pdf

73

ponto de vista jurídico. Teremos uma audiência para isto, com

sustentações orais de parte a parte.47

Após conclusão das apresentações o Ministro Relator começou a solicitar dos

ministros presentes as perguntas para os expositores. Além disso, mencionou a importância do

evento para o judiciário brasileiro e elogiou as apresentações dos expositores. Em seguida,

afirmou ter ao menos 10 perguntas sobre o assunto que em sua maioria foi resolvida pelas

apresentações, só restando apenas três. As perguntas do Relator tocaram em aspectos

relevantes da discussão envolvendo as apresentações. Vejamos:

A primeira pergunta pode parecer aos Senhores sem importância, do

ponto de vista científico, mas para nós, do ponto de vista jurídico, é

importante em atenção ao Código Civil: Que é nascituro para as

ciências médicas e biológicas? É possível dar essa resposta? Essas

duas ciências trabalham com o termo nascituro? Há um conceito

médico e biológico de nascituro?

Segunda: Qual a importância médica e biológica do marco dos três

anos de congelamento? Porque a lei se refere, exatamente, a esse

período para o congelamento de embriões fertilizados in vitro?

Terceira, já houve um comentário lúcido, procedente, sobre o que vou

perguntar, mas eu queria uma retomada dessa resposta ou dessa

investigação. O que é mesmo embrião inviável? 48

As perguntas do Relator foram direcionadas para todos os membros dos dois

blocos, mas dizem respeito apenas a algumas dúvidas suscitadas por apresentações

específicas, sobretudo as relacionadas aos aspectos técnicos do desenvolvimento do embrião.

A expositora que tratou do tema foi Patrícia Pranke e a ela foi designada, por escolha do

próprio bloco dos favoráveis às pesquisas envolvendo os embriões supranumerários, elaborar

uma resposta, a qual será apresentada e discutida em capítulo adiante.

Além das perguntas do Relator, outros ministros participaram, mesmo à distância,

enviando outros questionamentos. É o caso do Ministro Ricardo Lewandowski e outro

questionamento enviado pelo gabinete do Ministro Eros Grau.

47

Trecho da audiência pública. 48

Trecho da audiência pública.

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74

Tendo em vista que a legislação brasileira permite a fertilização in

vitro, qual a melhor destinação para os embriões extranumerários,

atualmente congelados nas clínicas de fertilização? [pergunta realizada

pelo Ministro Ricardo Lewandowski]

O grupo expôs a respeito das células germinativas. Porque tais células

não são amplamente utilizadas? Elas podem gerar resultados ou

resultar em doenças degenerativas? O alcance dessas células demanda

um procedimento de alto custo? [pergunta realizada pelo Ministro

Eros Grau].

Assim como foi para a organização do tempo de exposições o mesmo ocorreu

com a administração do tempo para as respostas. Não havia nenhuma regulação do uso e ficou

acordado, após uma pausa e conversas entre os expositores e Ministros, na própria sessão, que

cada bloco teria dez minutos para responder ao conjunto de questões apresentado pelos

Ministros. As questões sugeridas pelos ministros que não estavam presentes à sessão apenas

mencionavam o bloco 01, mas diante da incerteza de qual bloco deveria responder tais

questões, o Ministro Relator direcionou para ambos os blocos. O Ministro solicitou dos

participantes que mantivessem o espírito amistoso e de respeito que ocorreu durante as

exposições. A estes foi dado um período para organização das exposições de resposta. No

momento dessa organização foi solicitado por parte do Relator que argumentos de cunho

jurídico fossem deixados de lado pelo momento oportuno que os Ministros teriam para julgar

o mérito da questão. Nota-se que mesmo com tal solicitação o advogado Luis Roberto

Barroso se reuniu com os expositores do bloco favorável às pesquisas. Este advogado ainda

sustentou oralmente na sessão de julgamento de mérito argumentos favoráveis e em defesa

dos amici curiae que defendiam a constitucionalidade do dispositivo da lei de biossegurança

(LIMA, 2008).

Não há na audiência manifestações de crítica à ausência da maioria dos ministros

do STF. Apenas o Relator da questão Ministro Carlos Ayres Britto, a presidente do Supremo

à época, Ministra Ellen Gracie, que abriu a sessão de trabalho, além dos ministros Gilmar

Mendes e Joaquim Barbosa, estiveram presentes à sessão. Os outros Ministros não expuseram

motivos para ausência. Entretanto, o Relator afirmou em sessão que todas as apresentações e

depoimentos coletados seriam transcritos e gravados em vídeo, e futuramente disponibilizados

para os Ministros ausentes na audiência.

Page 75: Agindo como experts... Israel de Jesus Rocha.pdf

75

Não fica explicito na audiência a obrigatoriedade da presença dos Ministros na

sessão. O Ministro Ricardo Lewandowski acompanhou a audiência à distância, pois estava em

São Paulo. Não há como afirmar a partir da audiência que os outros Ministros acompanharam

à distância, como o fez Lewandowski. O Ministro Carlos Alberto procurou em momento

posterior à audiência os pesquisadores Claudia Maria de Castro Batista, Lygia Pereira e

Stevens Rehen para organizar visitas aos centros e laboratórios que desenvolviam as

pesquisas. Assim Claudia Batista o mencionou,

O Carlos Alberto Direito pediu para que eu organizasse a visita dele à

UFRJ. Eu falei: “Tudo bem, eu espero o senhor.” Ele conheceu vários

laboratórios, várias pessoas. Bom, ele é impressionantemente

inteligente. [...] Esse senhor, você não tem ideia de como ele

trabalhou, passou dias e dias inteiros em clínicas de fertilização, dias

inteiros querendo ver com os próprios olhos os protocolos de morte

encefálica, protocolos de todo o procedimento de fertilização in vitro,

protocolos de todas as pesquisas e projetos de pesquisas com células

tronco-adultas na universidade. (trecho da entrevista)

O mesmo com a pesquisadora Lygia Pereira, [...] ele chamou uma reunião, eu fui

ao gabinete dele, e conversamos, ele tinha uma série de perguntas técnicas, depois eles me

pediram referências por email, mandei uma quantidade enorme de material para eles. E foi

isso. (trecho da entrevista)

As observações realizadas pelos pesquisadores após a audiência demonstram que

o pedido de vistas do processo da audiência realizado pelo Ministro Carlos Alberto Menezes

Direito estava relacionado a falta de esclarecimento sobre as pesquisas que envolvem células-

tronco embrionárias. Não há, portanto, uma relação direta entre a ausência dos Ministros e a

possibilidade de pouco esclarecimento por parte da audiência pública (LIMA, 2008). Apesar

de apenas a presidente do Supremo à época e o relator do processo terem comparecido à

audiência e outros acompanharem à distância pelos instrumentos tecnológicos como a tv

justiça, não há indicações e manifestações nos votos dos ministros que a audiência não

forneceu material suficiente para o julgamento. Muitos deles, se acompanharmos os votos,

fizeram referência explícita às apresentações dos cientistas.

Os contornos que a audiência pública e a controvérsia assumiram no decorrer do

processo desde a votação da lei de biossegurança assumiram uma forma que pouco nos diz

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76

sobre uma oposição entre dois blocos claramente delineados. Se em alguns momentos os

cientistas estavam alinhados com uma certa perspectiva que os colocavam em blocos

antagônicos, em outros essa oposição pouco parecia clara. Muitos defendiam claramente que

pesquisar com células-tronco embrionárias seria um avanço das pesquisas com tal técnica,

pois já pesquisavam com células-tronco adultas. Em outras situações afirmavam que as

pesquisas com CTa precisam ser mais desenvolvidas e que a justificativa para a pesquisas

com CTe não se sustenta pois as possibilidades não foram esgotadas. Todas as maneiras

tratadas pelos especialistas colocavam seus posicionamentos em relações que não se

excluíam, como a organização da audiência sugere inicialmente.

Outro aspecto a ser considerado foi o modo como a audiência foi organizada. Os

especialistas sugerem em seus relatos que os blocos não foram claramente organizados a

partir de critérios mais “justos” de preparação. Cientistas do bloco que se opôs a

constitucionalidade da lei em alguns momentos afirmaram a maneira precipitada como o

bloco foi formado. Consideraram que o outro bloco havia coerência nos argumentos e força

pelo currículo dos especialistas. Ao mesmo tempo afirmaram que os currículos dos

especialistas de seu grupo foram selecionados de maneira arbitrária e desorganizada, um dos

motivos para a ausência de uma articulação sistemática na defesa da inconstitucionalidade.

Outros aspectos relacionados à maneira como os argumentos e os recursos foram

mobilizados pelos especialistas e manuseados ou não pelos ministros serão tratados no

terceiro capítulo. Na próxima seção será discutido os pontos relacionados ao desenvolvimento

dos argumentos na audiência. Veremos como os argumentos transitam em torno da

transformação do embrião em um ser autônomo ou uma massa celular que precisa de um

destino nobre diferente do atual nas clínicas de fertilização in vitro. Estes dois pontos

preponderantes são acompanhados de aspectos secundários que fortalecem a controvérsia. A

questão do mercado como o principal interessado no desenvolvimento dessas técnicas. O

aspecto utilitário dado ao embrião, em detrimento de sua natureza humana. São pontos que

perpassam as apresentações dos cientistas durante a audiência. Trataremos com mais detalhes

estes pontos no próximo capítulo.

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77

CAPÍTULO 04

Construindo (dis)cursos em oposição: mobilizando atores humanos e não-

humanos na audiência pública.

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78

O nosso percurso pelo debate envolvendo as pesquisas com células-tronco no Brasil

desde a votação da Lei de Biossegurança até o julgamento da constitucionalidade do artigo

quinto da referida lei, fato este que ocasionou na primeira audiência pública do Supremo

Tribunal Federal, nos conduz neste momento para uma tentativa de traçar os fios através dos

quais os cientistas arregimentaram aliados em alguns momentos e abriram mão de alguns

deles, num processo contínuo de construção e reconstrução de definições e performances do

que é ser embrião e do que é pesquisas envolvendo células-tronco embrionárias e adultas; do

que é ser expert em algo que produz diferenças sensíveis em torno de novas entidades que

compõem o mundo em comum, mobilizando recursos técnicos, pessoais e emotivos.

Redefinições também dos enquadramentos que os cientistas usaram para explicar os usos de

embriões na obtenção de células, na formação e sustentação de grupos em torno da defesa de

argumentos favoráveis e contrários às pesquisas.

Não considerando como dada a vitória dos argumentos favoráveis à pesquisa, como

poderia sugerir uma interpretação que considera o peso das forças do mercado influenciando o

processo de decisão sobre a constitucionalidade da lei, cabe aqui entender que tais forças

compuseram o processo como ingredientes na circulação de definições e performances dos

cientistas. Em alguns casos, veremos mais adiante, o mercado foi relevante na formação de

rede de discursos; em outros, pouco peso ganhou. Por isso, aqui não seguiremos na tentativa

de mostrar que forças ocultas pareciam manipular e orientar os argumentos dos cientistas e

ministros envolvidos no debate. Alguns até revelaram essa dimensão da controvérsia,

pontuando os interesses de empresas de biotecnologia na continuidade das pesquisas. Antes,

procuramos perceber que foi através da ação dos cientistas na defesa de seus argumentos que

diversos atores foram mobilizados para o que Bruno Latour (1997) chamou de composição de

um mundo comum.

Seguindo os rastros deixados por nossos privilegiados informantes procuramos

compor uma ideia segunda a qual a ação dos cientistas pode ser compreendida como uma

pontualização (LAW, 2005) de uma série de redes sociotécnicas precárias compostas em

torno da manutenção das pesquisas, ou de sua proibição. Neste sentido, o que parece apenas

Page 79: Agindo como experts... Israel de Jesus Rocha.pdf

79

simples referências nos emaranhados de atores mobilizados que perpassam as ações dos

cientistas, aqui surgirá como recursos através dos quais as ações dos cientistas na audiência

foram concretizadas, realizadas e sustentadas enquanto posicionamentos dos blocos.

Neste capítulo, seguimos numa tentativa de organizar os dados empíricos da

audiência, as exposições dos cientistas, a partir de temas nos quais a mobilização de certos

atores surgiram como relevantes para os próprios cientistas. Diante disso, alguns temas são

indicados como caminho para a compreensão da controvérsia. A primeira pontualização diz

respeito ao modo como o embrião foi comparado, reprogramado, disposto nas apresentações

como uma massa celular.

A possibilidade de comparação do embrião como uma célula que pode ser

manuseada foi objeto de reflexão de alguns dos cientistas nas exposições e abriu o que até

então parecia ser uma caixa preta. Diante da possibilidade de manipulação que sua fabricação

fora do útero proporcionou, emergiram situações para as quais as práticas científicas

necessitaram de novas categorias, assim como o próprio campo do direito para classificar esse

novo ente que surgiu nas bancadas dos laboratórios. Definições como o pré-embrião

compõem os cenários dos favoráveis e contrários, seja para legitimar seu uso como fonte de

obtenção de células, seja para criticar, sugerindo-a como um limite artificial criado apenas

para justificar a manipulação dos embriões.

Outro caminho percorrido pelas cientistas tratou de considerar o embrião como algo

que na prática já sofre um processo de descarte. O uso de informações baseadas na dinâmica

das clínicas de fertilização fundamenta este ponto dos argumentos dos cientistas. O descarte

automático de parte dos embriões produzidos nas clínicas é sugerido como caminho aberto

para o seu uso nas pesquisas. A impossibilidade de implantação (demonstrada a partir de

dados estatísticos) desses embriões e a ausência de uma legislação que discipline a prática

foram colocados como espaços abertos para a aceitação inevitável de que os mesmos jamais

poderão continuar seu desenvolvimento. Os procedimentos clínicos de obtenção dos embriões

para a fertilização é que precisa ser colocado como problema, discute Patrícia Pranke, uma

das cientistas envolvidas com a audiência. A solução, para a cientista, aparece com a

possibilidade de doação para pesquisa, a partir do número efetivo de embriões disponíveis nas

clínicas.

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80

A performance bioquímica dos embriões sugere um caminho no qual a suposta

necessidade do útero para o desenvolvimento parece não ser um aspecto central a ser

mobilizado. Os cientistas favoráveis às pesquisas mobilizaram o papel que a vinculação do

embrião ao útero tem para o desenvolvimento de um novo ser. Sem esta vinculação não há

desenvolvimento e, por isso, se torna difícil falar em aborto, como destaca Patrícia Pranke,

por exemplo. Ao mesmo tempo, este ponto é desenvolvido a partir do momento em que a

autonomia do embrião ganha forma como uma das pontualizações das apresentações. Nela,

uma série de atores até então invisíveis ganham marcadores florescentes e gráficos animados

que indicam os caminhos que as substâncias percorrem entre o embrião e o corpo de sua

genitora, sugerindo desde então o modo como o primeiro envia mensagens de preparação para

a segunda. Os cientistas contrários às pesquisas demonstraram com gráficos como os aspectos

químicos e biológicos, quando mapeados por marcadores, atuam no sentido de vincular o

embrião à mulher logo após a fecundação. O aspecto curioso dessas pontualizações está na

ausência de atores que mobilizem o embrião extracorpóreo, além daquele que desfaz a

associação direta entre uso para pesquisa e aborto. A ausência de atores mobilizados em torno

da relação do embrião extracorpóreo e a genitora nos discursos dos cientistas contrários

fortalece o argumento dos cientistas favoráveis pois só sustenta, ponto este colocado por um

dos cientistas, que precisa haver uma preparação do corpo da mulher para a implantação.

Por fim, as escolhas metodológicas tomadas neste capítulo levam em consideração

como os relatos dos cientistas mobilizaram uma série de atores diante dos três principais

temas selecionados para compor a escrita. Seguimos assim, trilhas desenhadas pelos próprios

cientistas nas apresentações de seus argumentos em defesa de suas pesquisas ou seus

embriões. Alguns ficaram de fora e a lógica de apresentação não foi seguida. Por isso,

parecerá em alguns momentos repetitiva a circulação dos cientistas entre os temas, o que

reforça uma discussão que apresentamos nos capítulos anteriores, na qual sugere que é mais

proveitoso pensar os cientistas envolvidos em debates que estão além da formação dos blocos.

Antes de agrupá-los em blocos e sugerir contornos nítidos da controvérsia, pareceu mais

interessante coloca-los diante de temas que mobilizam atores heterogêneos sobre a questão.

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81

4.1 - O embrião como massa celular

A primeira estratégia foi deslocar o interesse pelo embrião colocando-o na condição

de uma massa celular. Em quatro das apresentações desenvolvidas pelos cientistas

considerados do bloco dos favoráveis, o embrião como massa celular assumiu contornos

diferentes à medida que se desenrolava as apresentações. O estatuto do embrião

extracorpóreo, fruto da fertilização in vitro, começou a ser discutido em finais da década de

70 e início de 80. Se tratando de uma nova entidade no mundo, produzia diferenças, sobretudo

na maneira como concebíamos as relações de parentesco, por exemplo, e sobre a propriedade

relacionada ao casal como doadores dos gametas e portadores do embrião. No debate

britânico a categoria do pré-embrião venceu e convencionou-se que até o 14º dia, como marco

da formação do sistema nervoso central, ainda não se poderia considerar que aquela entidade

seria um embrião.

Na audiência, a primeira cientista a adotar a estratégia do embrião como massa

celular foi Maiana Zatz. Em sua apresentação há duas fontes de agências que perpassam suas

colocações. Antes, a cientista enfatiza o papel das pesquisas que envolvem células-tronco

embrionárias na possibilidade de cura para uma série de doenças genéticas que afetam cerca

de 3 por cento das crianças que nascem de pais normais, em torno de 5 milhões de brasileiros.

Além das doenças que afetam as crianças, Zatz exibe os números relacionados às doenças que

envolvem adultos e que têm um componente genético importante. Lista uma série de doenças

como Câncer, Diabetes, Mal de Alzheimer para no final afirmar, usando imagens, que

ninguém escapa! Continua afirmando que além dessas pessoas, incluindo aí as vitimas de

acidentes, poderão futuramente ser tratadas com células-tronco49

.

Das duas fontes que a cientista mobiliza em sua apresentação a primeira é o seu

envolvimento com os pacientes a partir dos quais a mesma se propõe a falar. O caminho

adotado por Zatz considera os aspectos relacionados à esperança dos pais e mães de pacientes

que possuem doenças neuromusculares, que afetam um a cada mil indivíduos e são em torno

de 50 doenças diferentes. Uma das características que Zatz afirma ter estas doenças é a

degeneração progressiva da musculatura esquelética. Entre as cinquenta, as mais frequentes

49

Trecho da audiência pública.

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82

são aquelas que atingem as crianças. A distrofia muscular e atrofia espinhal progressiva. Em

suas formas mais graves as crianças nem chegam a andar. As imagens de crianças com tais

doenças degenerativas compõem o quadro que a cientista utiliza para apresentar o interesse

dos cientistas que são favoráveis à continuação das pesquisas.

“essas duas meninas do lado esquerdo [exibe imagem de duas meninas

em cadeira de rodas em uma projeção] elas nos acompanharam

quando a gente votou a lei de biossegurança e os pais estavam juntos

conosco, apesar de os pais serem extremamente religiosos,

evangélicos eles estão defendendo essas pesquisas e uma coisa que

nos emocionou muito é que a pequenininha, que na época tinha 3 anos

nos disse: porque vocês não fazem um buraco nas minhas costas e põe

uma pilha para eu poder andar como minhas bonecas” (Zatz, trecho da

audiência)

No mesmo sentido que mobiliza as imagens de pacientes que sofrem com as doenças

estudadas por ela, Zatz desenvolve um diálogo não apenas com o seu texto. Desenvolve um

diálogo com os ministros e com a plateia. O recurso à pausas de média duração (cerca de 2

segundos) e um tom dramático que exibe em sua face, ajuda a cientista a compor um ambiente

dramático relacionado às imagens das meninas. Ao colocar as imagens de duas crianças

portadoras de distrofia muscular e destacar a citação de uma delas sobre as pilhas e as

bonecas, Zatz mobiliza não apenas características relacionadas à esperança, como as crianças,

mas também seus pais, que por serem de formação religiosa, sugere a cientista, tenderiam a

ser contrários à pesquisa envolvendo os embriões.

A partir deste momento começa a enfatizar a esperança que envolve tais pesquisas,

destacando que as células-tronco podem um dia substituir o tecido muscular ou os neurônios

motores. Seria então o “futuro da medicina regenerativa” (Zatz, trecho da audiência). A

mobilização de pacientes e pessoas que possivelmente poderão ser tratadas pela terapia

celular também são apresentadas por Ricardo Ribeiro. Diferente de Zatz, Ribeiro usa um

vídeo de um agricultor que no momento da audiência apresenta um quadro estável e consegue

ter uma vida normal com sua família.

Houve num grupo que recebeu células uma melhora muito

significativa... esse paciente [exibe o vídeo] por exemplo, internou

morrendo no hospital, ele tinha no máximo pelas leis naturais menos

de seis meses de vida e ele tinha falta de ar a mínimos esforços, ele

recebeu células tronco adultas por quase três anos, ele voltou para

Page 83: Agindo como experts... Israel de Jesus Rocha.pdf

83

roça, está trabalhando, está sustentando a família, voltou para o

convívio da família e no ultimo ambulatório ele veio me falar que a

mulher dele está grávida de novo... um efeito colateral das células-

tronco... (Ricardo Ribeiro, trecho da audiência)

A câmera que grava as cenas da audiência alterna entre imagens dramáticas dos

traços da cientista com as imagens das crianças exibidas por ela numa projeção. Há uma

inclinação da filmagem em considerar o tom dramático disposto por Zatz e as imagens das

meninas na apresentação. A própria cientista parece acionar de maneira minuciosa recursos

discursivos para demonstrar que o embrião não se apresenta com algo que possa ser

considerado independente, ou mesmo que um conjunto de células seja considerado um

embrião. Ao falar da fecundação, Zatz aponta a mesma como uma condição necessária, mas

não suficiente, para que o embrião se desenvolva.

só para vocês terem uma ideia, qual o tamanho desse embrião de oito

células se a gente comprar com um buraco de agulha de injeção na

microscopia eletrônica vocês podem ver então essa bolinha laranja

[imagem que mostra a ponta da agulha e um esfera laranja] que é do

tamanho da ponta de uma agulha (Zatz, trecho da audiência)

A exposição das imagens relacionadas ao conteúdo envolvendo as crianças passa a

ser deslocada para uma exibição dos limites que as células-tronco adultas estão enfrentando

em seu processo de estabilização como uma tecnologia que pode ser alternativa ao uso de

embriões para a produção de células-tronco.

o que mais está sendo feito em tentativas terapêuticas nós chamamos

de auto transplante ou transplante autólogo, onde se tira células-tronco

do próprio individuo da medula óssea e se injeta em outros órgãos [...]

mas as más notícias é que essas tentativas não servem para doenças

genéticas por que todas as células têm a mesma mutação ou erro

genético [...] então, o que estamos pesquisando outras fontes de

células-tronco. Meu grupo e eu tentamos extrair células-tronco de

outros tecidos e elas conseguem se diferenciar em vários tecidos e

depois injetamos em modelos animais. Mas os resultados preliminares

mesmo indicando existir a diferenciação os resultados são muito

pequenos. Está muito longe de ter uma aplicação terapêutica. (Zatz,

trecho da audiência)

Page 84: Agindo como experts... Israel de Jesus Rocha.pdf

84

A descrição das células-tronco embrionárias como células totipotentes é apresentada

de uma maneira que revela o seu potencial de diferenciação a partir dos mecanismos que

identificam as fases nas quais tais células produzem diferenciações. Zatz enfatiza que a

identificação dos mecanismos genéticos só podem ser descobertos através de pesquisas que

envolvem células-tronco embrionárias, e não adultas, por sua limitada capacidade de se

diferenciarem.

Como podemos aprender como genes precisam ser ativados ou

silenciados para formar o tecido que queremos? Pesquisando células-

tronco embrionárias, não há outra maneira e nós queremos estudar

essas células que são derivadas de embriões excedentes obtidos por

fertilização in vitro, e que estão congeladas há mais de três anos ou

são inviáveis para a implantação, como a lei [art. 5º] permite. (Zatz,

trecho da audiência)

Este aspecto do discurso de Zatz sugere uma mudança, que a mesma fará em sua

apresentação, apontando para o avanço do Brasil em aprovar a lei de biossegurança em 2005.

Neste sentido, começa a adotar um posicionamento que se desloca dos trabalhos de bancada,

as experiências que dizem até que ponto pesquisar com células-tronco adultas pode ser mais

favorável do que as embrionárias, para um discurso pautado pelas diferenças em relação aos

países que já aprovaram as pesquisas envolvendo células-tronco embrionárias e o Brasil.

As academias de ciências de 66 países assinaram um documento

defendendo essas pesquisas para fins terapêuticos e pesquisas com

células-tronco derivadas de embriões de até 14 dias foram aprovadas

pela Inglaterra e maioria dos países da Europa, Austrália, Canadá,

Coreia, Japão, Israel, China, pela Califórnia, que doou 3 bilhões de

dólares para essas pesquisas com células-tronco. (Zatz, trecho da

audiência)

Sua ênfase na aprovação da lei que assegura as pesquisas não se limita apenas a

mostrar como o Brasil não ficou atrás em relação aos outros países. Mostrou também que há

uma preocupação por parte da cientista em garantir que os brasileiros possam contar com

resultados obtidos no seu próprio país, desenvolvidos por cientistas como a própria Zatz. Este

componente da apresentação da cientista solicita não somente um elemento comparativo para

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85

a ciência nacional, mas uma relação direta com as crianças que marcou o início de sua

apresentação.

As pausas e os usos de palavras que não estão diretamente relacionadas a um

discurso técnico, a descrição de marcadores e números de células que cada fase do blastocisto

contém, sugere uma mobilização emotiva em torno das escolhas as quais aparentemente os

ministros poderiam ser mobilizados, mesmo se tratando de julgar apenas o mérito da

constitucionalidade do artigo ou não.

Em 2005 tivemos a aprovação da lei de biossegurança com a maioria

expressiva dos deputados votando a favor... e foi um dos momentos

mais emocionantes da minha vida poder festejar a aprovação dessa

lei... e que foi também matéria de revistas internacionais elogiando

essa nossa iniciativa [...] a votação da lei de biossegurança nos deu o

direito de fazer as mesmas pesquisas que se faz no exterior, de não

sermos só espectadores, de garantir para a família de afetados que nós

estamos tentando o melhor e que elas não precisam correr para o

exterior para tratar seus filhos, que a gente aqui está fazendo as

mesmas pesquisas. (longa pausa) Nós não podemos retroceder. (Zatz,

trecho da audiência)

O aspecto chave da compreensão dos argumentos de Zatz como uma tentativa de

deslocar a autonomia do embrião como algo que tem vida e, portanto, passível de ter garantias

de proteção pela lei, está na ênfase dada ao caráter não abortivo que significa o uso dos

embriões até certo estágio de desenvolvimento. Este caráter parte do suposto que não pode

haver aborto se não há ligação direta com útero, sobretudo de uma entidade criada nas

bancadas das clínicas e laboratórios.

Pesquisar células-tronco embrionárias não é aborto. É muito

importante que isso fique bem claro. No aborto, nós temos uma vida

no útero que será interrompida com intervenção humana, enquanto

que no embrião congelado não há vida se não houver intervenção

humana. Nós temos que ter intervenção humana para a formação do

embrião por que aquele casal não conseguiu por fertilização natural e

também para inserir no útero. Esses embriões nunca serão inseridos no

útero, então é muito importante que se entenda a diferença. (Zatz,

trecho da audiência).

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86

A ênfase dada ao caráter não autônomo do embrião congelado acentua o argumento

de que o mesmo pode ser considerado material de pesquisa sem prejuízos éticos ou morais.

Assim como Zatz, outros pesquisadores, como veremos adiante, também adotaram como

linha discursiva a possibilidade de uso dos embriões como material de pesquisa em

decorrência de sua já prevista descartabilidade.

4.2 - O descarte inevitável do embrião e um possível destino nobre

O descarte é um dos componentes mais presentes na apresentação da cientista Patrícia

Pranke, que, ao contrário da linha discursiva de Zatz, adotou uma estratégia técnica de

descrição dos modos como os embriões passam por um processo de seleção antes mesmo de

se tornarem viáveis para a implantação.

Como já discutido anteriormente, no Brasil não há uma legislação específica que

discipline a produção de embriões nas clínicas de fertilização. O projeto de lei sobre a

reprodução assistida está em tramitação no congresso e uma resolução do Conselho de

medicina sugere procedimentos para tal. Esses procedimentos são destacados por Patrícia a

ponto de enfatizar, ao final de sua exposição, um destino nobre para os embriões que serão

necessariamente descartados ou ficarão congelados sem possibilidade de uso por seus

portadores. A pergunta que norteia sua apresentação diz respeito ao ponto lógico, para a

cientista, da audiência: o que será feito com os embriões que ficarão congelados ou vão para o

lixo algum dia?

O mesmo argumento do destino nobre é retomado por Zatz em contornos dramáticos

sobre a possibilidade de uso dos embriões em pesquisas. Neste momento, os atores humanos,

como as crianças e a esperança de seus pais volta a compor a cena na apresentação de Zatz.

O que a gente está defendendo é que da mesma maneira que um

indivíduo em morte cerebral doa órgãos, um embrião congelado possa

doar suas células. Então o que é eticamente correto? Preservar esses

embriões congelados mesmo sabendo que a probabilidade de gerar um

ser humano é praticamente zero, ou doá-los para pesquisa que poderão

resultar em futuros tratamentos? [pausa longa e olha para a plateia e

ministros. Apresenta um tom de voz sempre baixo e o aumenta

Page 87: Agindo como experts... Israel de Jesus Rocha.pdf

87

quando enfatiza os pontos]. Eu venho há muito tempo lutando pela

qualidade de vida de pacientes com doenças muito graves [...] e hoje

conseguimos com algumas técnicas prolongar a vida deles em pelo

menos mais dez anos, talvez tempo necessário para que nós possamos

transformar essas pesquisas em tratamento. Será que podemos

comparar a vida dessas crianças, desses jovens com embriões

congelados? [...] Não podemos mais perder tempo (Zatz, trecho da

audiência)

O embrião como massa celular tem a sua acentuação a partir das apresentações de

Patrícia Pranke. Os aspectos técnicos relacionados ao desenvolvimento do embrião são

destacados pela cientista. Diferente de Zatz, a exposição de Pranke detalha aspectos

relacionados à técnica de fertilização in vitro e todo procedimento de implantação no útero.

Seus argumentos começam destacando os limites que o blastocisto enfrenta em relação aos

procedimentos in vitro.

o útero é uma barreira intransponível [pausa curta] se este blastocisto

não estiver em contato com o útero ele vai naturalmente morrer [tom

de desdém] ele não vai naturalmente conseguir se diferenciar em

embrião e continuar seu desenvolvimento. [...] nós estamos falando de

células que foram produzidas em laboratório e nunca serão

implantadas em útero materno. (Pranke, trecho da audiência)

As categorias embrião e blastocisto nos argumentos de Pranke se misturam e se

confundem. Diferente da emoção mobilizada por Zatz, Pranke descreve os procedimentos nas

clínicas de modo a produzir um efeito de aceitação inevitável do fato de que normalmente

muitos embriões já são descartados em tais procedimentos. Além do descarte, muitos, pela

própria lógica de produção dos embriões in vitro, são considerados impróprios para o

implante e serão congelados ou descartados de acordo com critérios estatísticos.

[...] quando ele chega no estágio do dia 3, 4 ou 5, só existe três

possibilidades para aquele embrião. Nós, pela interferência humana

implantamos ele no útero materno, ou nós pela interferência humana

congelamos esse embrião, ou nós deixamos ele na placa e não tem

outro destino, ele vai naturalmente morrer. Então, o que a interferência

humana está fazendo nas clínicas de fertilização: ou faz a implantação,

porque o casal deseja ter o filho, ou congela. E a nossa questão é

exatamente isso: o que nós vamos fazer com esses embriões após o

congelamento? [neste momento Pranke mostra uma imagem de um

blastocisto (embrião de 5 dias): de um lado ele aberto e do outro

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88

fechado. só para termos uma comparação, se olharmos para uma

folha de jornal, a letra menor, ele corresponderá ao pingo do ‘i’ de

uma folha de jornal. [grifo meu] (Pranke, trecho da audiência)

A descrição das categorias de embriões é esmiuçada por Pranke numa tentativa de

demonstrar que o problema com a questão das pesquisas usando-os como material não está

diretamente ligada a sua produção para este fim. Pranke enfatiza que é preciso pensar no uso

daqueles supranumerários que já estão disponíveis nos bancos das clínicas e que não serão

utilizados nos procedimentos de reprodução assistida. Tal ênfase se destaca pela maneira

como a cientista descreve as categorias e os usos na prática das clínicas.

Quando o clínico que trabalha com essa fertilização assistida faz essa

fecundação in vitro é possível se obter quatro categorias de embriões,

digamos assim. Essas são as classificações [exibição de imagens] que

os especialistas na área conseguem identificar para poder saber o

embrião que vai poder ser implantado na mãe... naquela mulher que

deseja ser mãe. Temos quatro categorias de embriões que são

categorizados morfologicamente, de acordo com a forma, de acordo

com sua simetria, fragmentação [...] é importante a gente compreender

o seguinte: o que quer dizer o embrião A? é o embrião ideal, o que

tem a maior chance de nidar e poder desenvolver um novo ser. E o

embrião D é praticamente aquele que não tem chance nenhuma. Então

o embrião de categoria A e B podem ser transferidos, mas o C e o D

evita-se transferir. (Pranke, trecho da audiência)

Os procedimentos utilizados pelas clínicas na produção de embriões abrem margem

para o uso de seu excedente pelos cientistas que desejam pesquisar células-tronco

embrionárias. As próprias taxas de implantação exibidas e usadas por Pranke fortalece seu

argumento que as clínicas já tratam os embriões como um conjunto de células que passam por

critérios de classificação e poderão ser ou não implantados, e que seu descarte é algo

naturalizado pelos procedimentos.

Os embriões de categorias A e B, aqueles que podem ser implantados, se revelam

com taxas médias quando frescos ou congelados. Todos os dados apresentados por Pranke

conduzem-na a afirmação que o congelamento em si já diminui em larga proporção a

probabilidade de implantação dos embriões no útero. Além desse aspecto relacionado ao

congelamento, Pranke destaca ainda que os embriões categorizados como C e D têm taxas

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89

elevadas de mal formação fetal e que, por isso, não há indicações de implantação de embriões

nessas categorias.

Os argumentos técnicos de Pranke mobilizam a viabilidade do uso das células desses

embriões inviáveis. Assim, diferente de outros cientistas que não apresentam dados

relacionados a este aspecto do processo de fecundação do embrião, Pranke destaca que,

[...] muitos trabalhos contra-indicam a transferência de embriões C e

D e a maioria das clínicas de fertilização nem congelam embriões de

má qualidade, descartando-os antes ainda do congelamento, são os

chamados embriões inviáveis [longa pausa e deslocamento da câmera

para os ministros]. Ora, se esse embrião tem quase zero por cento de

chance de gerar um ser humano após o seu congelamento e se tem

uma grande chance de ter mal formação [...] já vão ser descartados em

grande parte das clínicas antes do congelamento [...] por que não doá-

los para a pesquisa antes de congelá-los, os embriões inviáveis, como

a lei prevê... (Patrícia Pranke, trecho da audiência)

A fim de finalizar seu argumento do embrião como uma massa celular Pranke

compara duas outras tecnologias usadas como métodos contraceptivos: o DIU e a Pílula do

dia seguinte. Segundo Pranke, estes métodos também provocam aborto (e uma das questões

que a cientista considera que está sendo discutida na audiência é se o uso de embriões para

extração de células-tronco embrionárias provocam aborto) já que não permitem que o embrião

fixe na parede uterina.

Estes dois procedimentos [DIU e pílula do dia seguinte] nós estamos

falando de procedimentos em que o embrião está no útero da mãe e

eles simplesmente impedem a nidação. Então, ora isso é permitido

dentro do útero da mãe porque então nós não podemos trabalhar com

células [substitui o nome embrião] que estão congeladas que jamais

foram e que jamais serão colocadas em organismo materno. [pausa

longa] Este é um procedimento autorizado no Brasil hoje. E nós

estamos falando de algo que também é autorizado no Brasil hoje que é

usar essas células congeladas que não tem e nunca terão um acesso a

esse útero materno. (Patrícia Pranke, trecho da audiência) [grifo meu]

Na mesma direção de Zatz, Pranke começa a traçar contornos dramáticos em sua

apresentação ao falar da doação de órgãos como um ato de altruísmo no mundo ocidental, e

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90

que no Brasil há muitas campanhas que incentivam a doação. Seguindo nesta direção aponta

que

se consideramos que um critério para a doação de órgãos é a morte

encefálica, porque não definir que o marco zero da vida é quando as

células do sistema nervoso começam a se desenvolver? Nós não

estamos aqui para definir quando a vida começa por que levaria dias,

mas são questões que estamos trabalhando, questão de doação de

órgãos com o conceito: a morte encefálica é o fim da vida. O embrião

congelado nunca tem e nunca terá as células do sistema nervoso

central. Por que o pré-embrião, até 14 dias, ele não tem essas células e

só a partir da segunda semana que essas células começam a se

desenvolver. (Pranke, trecho da audiência)

A morte encefálica e a ideia de um marco zero a partir do surgimento do sistema

nervoso são mobilizados por alguns dos cientistas presentes na audiência, como veremos mais

adiante. Ao mobilizar a ideia que considera a paralisação do cérebro como um critério para a

doação de órgãos, Pranke usa como recurso tecnologias que em outros momentos foram alvos

de controvérsias em torno de sua estabilização. Este processo de mobilização de caixas-pretas

ajuda a cientista a consolidar seus argumentos em torno do fechamento do uso de embriões já

pressupõe uma associação direta entre o fim e o início do sistema nervoso do ser humano. Ao

mesmo tempo, a cientista descarta a possibilidade de uma discussão sobre o início da vida,

fortalecendo a perspectiva pragmática em torno da liberação dos embriões para uso em

pesquisas.

A frieza como os aspectos técnicos são considerados na parte inicial da apresentação

dão lugar para uma exposição dramática da cientista na conclusão, quando a mesma começa a

considerar outros fins para os embriões. Outros critérios de comparação são usados no sentido

de provocar um certo destino sem saída, como o fim prático para o uso dos embriões. Para

construir este argumento, Pranke apresentou uma pesquisa elaborada para coletar informações

sobre o que fazer com os embriões congelados no Brasil. As opções sugeridas pela pesquisa

apontam para o que a cientista solicita ser um destino nobre para os embriões. A solução

prática apresentada pela cientista contrasta com as soluções apontadas pela pesquisa. Doá-los

para os casais que desejam ter filhos; implantá-los em mulheres ‘barrigas de aluguel’ e

depois de nascidos adotá-los; destruí-los, proibir o congelamento; mantê-los congelados

‘para sempre’(Pranke, trecho da audiência) foram as soluções levantadas a fim de comparar

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91

qual o fim mais interessante do ponto de vista das pesquisas com células-tronco embrionárias.

Os comentários apresentados pela cientista para as soluções transitam entre o desdém quando

menciona as mulheres ‘barrigas de aluguel’, até uma elaboração sobre a possibilidade de se

proibir o congelamento, afirmando que ainda que isso seja decidido no país, os embriões

congelados não deixariam de ser um problema, o que demandaria uma solução imediata sobre

o artigo 5º da lei de biossegurança.

Assim como na apresentação de Zatz, há uma inclinação de Pranke em tornar o

embrião um instrumento de uso para obtenção de células. Este fim prático, como última saída,

já que as soluções listadas pelos participantes das pesquisas parecem, no sentido que Pranke

os desenvolve, soluções incabíveis, se apresenta como o fim único e último e, associado a ele,

um destino nobre, o qual servirá no futuro para resolver doenças que acometem as crianças de

Zatz, do Hospital Sarah, da doutora Lucia Braga, uma das expositoras na audiência.

O contorno dramático da exposição da cientista alinha-se com este destino fatalista

gerado pela própria dinâmica e procedimentos da fertilização in vitro. Assim, a pesquisa passa

a ser um caminho não só para solucionar problemas relacionados às doenças degenerativas,

mas resolve uma questão imediata que é o que fazer com esses embriões congelados(Pranke)

e a ausência de legislações que disciplinem a reprodução assistida no Brasil.

Se Maiana Zatz e Patrícia Pranke enfatizaram o caráter prático da solução encontrada

pela lei brasileira, deslocando o status do embrião como um ser autônomo para uma massa

celular que só passaria a existir enquanto vida depois da formação do sistema nervoso central,

o mesmo não acontece com a apresentação de Ricardo Ribeiro. O embrião deixa de ser o foco

da discussão e as possibilidades das células-tronco embrionárias são destacadas como o eixo

da questão. Não há apenas um foco nas possibilidades, há uma separação radical entre essas

duas entidades. Além dessa separação, que na apresentação de Pranke foi em muitos casos

fundidos, o cientista Ricardo Ribeiro desenvolve os aspectos relacionados ao congelamento já

apontados por Pranke.

Se nós formos falar de congelados, por que... por que nós não

atingimos o mérito técnico no congelamento. A técnica de

congelamento degrada os embriões [pausa longa e exibição das

variações entre os embriões] ela não qualifica esses embriões para um

implante para dar um ser vivo completo. A maioria das clínicas de

fertilidade não gostam de usar embriões congelados e sabe-se que a

viabilidade de embriões congelados há mais de 3 anos é muito baixa, é

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92

praticamente nula e a maioria rejeita implante desses embriões.

(Ricardo Ribeiro, trecho da audiência)

Os limites do congelamento apontados por Ribeiro engrossam a lista das

possibilidades que um destino mais nobre para os embriões pode ter. Além desse limite

imposto pela imprecisão da técnica, Ribeiro aponta o que até então nenhum dos cientistas que

apresentou antes dele fez. Uma delimitação entre o que é o embrião e o que é uma célula e o

difícil trabalho de bancada para se produzir uma linhagem celular estabilizada.

Que seriam os que vão gerar, essas células da camada interna vão

passar para a cultura, deixam de ser embrião e passa a ser uma

linhagem celular, uma cultura de célula... e não tem mais nada a ver

com embrião. Célula tronco embrionária é totalmente diferente de

embrião... célula tronco embrionária é uma cultura celular, uma

linhagem de célula difícil de se obter... nós nunca seremos tachados de

exterminadores do futuro uma vez que a gente usa linhagem celulares

e não embriões para tratamento... os extratos de embriões que estão

por aí é na ‘cosmetologia’ não tem nada a ver com terapia celular... o

que nós vamos usar são linhagens derivadas e com uma dificuldade

muito grande... de cada 20 embriões 1 a gente consegue derivar uma

linhagem para ser usada em terapia ou pesquisa e os outros não são

aproveitados... isso se tratando de embriões frescos. (Ricardo Ribeiro,

trecho da audiência)

A ênfase dada ao processo de estabilização das células como tecnologia sugerida por

Ribeiro nos remete ao esforço dispendido por cientistas desde o inicio do século 20 para

estabilizar linhagens de células, descritos por Hannah Landecker (2007). A padronização de

linhagens no laboratório, e seu precário esforço de manutenção no tempo e espaço provocou

revisões conceituais relacionados à autonomia, à ideia de imortalidade e ao que Latour (2004)

chama de composição constante de híbridos pelo trabalho das ciências. Além de mudanças na

maneira como aqueles conceitos foram concebidos, Landecker aponta a possibilidade de

reprodução em massa a partir do caso HeLa, quando as novas possibilidades para a

experimentação, padronização e técnicas fizeram das células de Henrietta Lacks uma presença

constante em laboratórios de muitos países onde ocorresse pesquisas biomédicas. Ao lado

dessas células estavam as novas técnicas de congelamento e clonagem que possibilitaram o

seu transito no tempo e espaço.

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[...] então a dificuldade é grande, uma vez que nós tenhamos as

linhagens, elas são estáveis e são imortais praticamente. E a gente

atinge o patamar de ter uma fonte de tratamento para varias doenças e

varias coisas sem precisar usar novos embriões [...] o mais importante

das células tronco embrionárias nessa massa assim [exibe um vídeo de

um processo de transformação da célula tronco embrionária em um

tecido específico] a gente já vê células formando coração, batendo,

participando. (Ricardo Ribeiro, trecho da audiência)

Além da discussão envolvendo a distinção entre o que é o embrião e as células-

tronco, Ribeiro destaca detalhes das técnicas relacionadas ao caminho que as células

percorrem de transformação em tecidos específicos.

O mais importante... o que que a gente quer das células tronco

embrionárias, eu vou usar células tronco embrionárias? Não. Eu pego

essas células-tronco, eu coloco uma série de hormônios celulares,

transformo ela em neurônio usando fatores, hormônios certos e essas

células diferenciadas é que serão usadas no tratamento. (Ricardo

Ribeiro, trecho da audiência)

A ênfase na técnica conduz Ribeiro a apontar que o problema em questão na

audiência não está na liberação dos embriões, e sim na maneira como esses procedimentos

serão regulamentados. Este caminho percorrido pelo cientista sugere um alinhamento com o

argumento apresentado por Pranke sobre a relação instrumental a qual está imbuída a prática

das clinicas de fertilização in vitro. Segundo a cientista, a prática de descarte de embriões

inviáveis é comum nas clínicas e as respostas dadas pelos cientistas favoráveis às pesquisas

estão relacionadas a um fim mais humano diante da instrumentalidade dos procedimentos

médicos nas clínicas.

os problemas que a células-tronco embrionárias apresentam, como

tumores, também com as células-tronco adultas podem ocorrer...

precisamos do controle genético. Mais do que a lei, podendo ou não

usar embriões, é a lei que vai regulamentar a utilização disso. (Ricardo

Ribeiro, trecho da audiência)

Uma das características do bloco que defendeu a constitucionalidade de lei de

biossegurança é a vinculação com pesquisas que já trabalham com células tronco adultas.

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94

Assim com Ricardo Ribeiro mobilizou resultados relacionados ao uso dessas células em

terapia, como o caso do agricultor, Júlio Voltarelli também debate os limites dessas células e a

possibilidade futura de tratamentos com terapia celular com células embrionárias. Os

resultados apresentados fazem parte de procedimentos que o mesmo chama de convencional

(estabilizados). Tanto o transplante autólogo como o transplante alogênico50

já produzem

resultados estáveis, mas apresentam limites para o futuro desenvolvimento da técnica de

terapia celular.

As esperanças com o uso de células tronco adultas foram reforçadas com a

publicação do trabalho de Catherine Verfaillie sobre a pluripotência de uma célula da medula,

com características semelhantes às embrionárias. Os argumentos técnicos apresentados por

Voltarelli se articulam com a limitação das células tronco adultas para os tratamentos. Os

resultados são limitados e a pesquisa com embrionárias se apresenta como uma alternativa

para elevar os resultados das pesquisas. Neste sentido, Voltarelli demonstra que as tentativas

de Verfaille passaram a ser alvo de críticas sobre a autenticidade de seus resultados.

Então a ideia de que as células mesenquimais da medula óssea fossem

regenerar o tecido como as embrionárias na prática não funcionou. E

tem um grande problema com os dados da Dra. Verfaille que eles

estão sendo questionados... como a maioria dos laboratórios não

conseguem reproduzir esses dados... que existe uma célula na medula

óssea adulta que dá origem a todos os tecidos que se comporta como

uma célula pluripotencial, esse dado não é repetido na maioria dos

trabalhos e atualmente os trabalhos dela estão sob investigação para

ver se é real ou não... é possível que não seja real. (Voltarelli, trecho

da audiência)

Esta mesma linha de argumentação dos usos das células tronco adultas também é

conduzido pela cientista Rosália Mendes. Os resultados encontrados por Voltarelli em

pesquisas envolvendo tratamento para o diabetes são também encontrados por Mendes nas

pesquisas envolvendo problemas neurológicos, levando-a a concluir que os usos e a defesa

das células tronco embrionárias apontam para avanços mais consistentes. Um detalhe das

observações de Mendes está relacionado ao uso que o mercado já faz e pode fazer em relação

a pesquisa e a produção de medicamentos.

50

No transplante autólogo os tecidos que serão transplantados têm origem no próprio paciente. Diferente do

transplante alogênico, no qual o doador é um terceiro com características genéticas semelhantes.

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95

Esses resultados [com células tronco adultas] mostram que é possível

pensar um cenário onde neurônios possam ser injetados e esses

neurônios podem funcionar e substituir aqueles que foram perdidos e

com isso realmente curar a doença neurológica, por que o que temos

até agora são medicamentos que tratam os sintomas mas não temos

medicamentos que tem nenhuma possibilidade de cura na medicina

atual. [pausa] isso parece muito longe para nós mas isso é um cenário

bastante próximo nos EUA onde é possível patentear essas células e

várias empresas que estão iniciando estudos já em pacientes onde se

chegaria a um medicamento que seria uma célula dopaminérgica,

moto neurônio e o único problema que isso por ser patenteado isso é

vendido, então é possível que num futuro próximo, se nós não

tivermos as nossas próprias células embrionárias para tratar doentes

neurológicos os doentes brasileiros tenham que comprar essa terapia

de outros países... (Rosália Mendes, trecho da entrevista)

Mendes não discute as implicações da liberação das pesquisas no Brasil e nem

aponta diferenças entre os dois sistemas, o brasileiro e americano. No desenvolvimento de seu

argumento parece não haver uma clara delimitação do uso que essas células terão no Brasil

em casos de estabilização e padronização de sua reprodução. O mesmo acontece com os

outros cientistas mobilizados nesse texto.

A ênfase no caráter mercadológico parece ser apontada mais especificamente pelos

cientistas contrários às pesquisas. Estes vincularam não apenas a autorização da pesquisa

relacionada aos interesses de mercado, da produção em massa e desejo de vender linhagens

celulares derivadas de embriões, como também contrapuseram com argumentos que priorizam

a autonomia do embrião desde a fecundação.

Além desses aspectos, os cientistas ligados ao bloco contrário mobilizaram recursos

que ocorreram no momento da audiência para provocar dramaticidade à questão. É preciso

destacar que o recurso a tons dramáticos, pausas longas, e direcionamentos do olhar,

alternando entre a plateia e os ministros, ajudaram a compor um ambiente dramático em torno

da morte, ou completo desdém em relação ao descarte do embrião e frieza demonstrada por

cientistas do bloco favorável à pesquisa. Se por um lado falar em embriões como células que

são descartadas rotineiramente nas clínicas sugeriu desdém, por outro esses mesmos embriões

pareciam ter vida, falavam a partir de marcadores, substâncias, proteínas e mobilizavam em

torno de sua ação uma rede complexa formada também pelos cientistas que defenderam a sua

proteção enquanto ser.

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96

Um olhar mais detido sugere que os aspectos técnicos relacionados ao tratamento do

embrião como uma massa celular se contrapôs aos argumentos, em muitos casos envolvendo

filosofia, ética e prática médica aliado com os cientistas que privilegiavam o embrião como

um ser humano dotado de direitos e que deveria ser assegurada sua proteção.

Por que deixar claro isso... e eu fiz questão de colocar em minha

apresentação [mostra imagem de um embrião] um embrião, por que eu

não perdi um montinho de células [pausa longa] ele tinha seis semanas

apenas, não sei se ele ou ela, não foi possível verificar isso ainda...

geneticamente seria possível comprovar... mas já era meu filho... já

era um filho... não era uma coisa que estava ali dentro da minha

esposa, nós fizemos ultrassom e ele estava lá... (Rogério Pazetti,

trecho da audiência)

O cientista Rogério Pazetti mencionou em sua apresentação que a perda de seu filho,

ainda em fase embrionária, o faria em alguns momentos ter de parar sua exposição. Estes

recursos são mobilizados, mesmo não intencionalmente, a fim de tocar os ministros e a plateia

diante da relação utilitária estabelecida com a questão. Numa audiência em que cientistas

colocam o embrião em horizontes práticos opostos, de um lado a manipulação, no outro sua

preservação a qualquer custo, falar da morte de um filho em estágio embrionário procura

mobilizar emoções tanto dos cientistas presentes com dos próprios ministros. Numa plateia já

silenciada pelos apelos da organização do Supremo, reafirmadas constantemente pelo

Ministro relator Ayres Brito, poucos sussurros poderiam ser escutados através do vídeo. O

momento oportuno, quase final da audiência e com a maioria das exposições do bloco

contrário às pesquisas já realizadas, no qual Pazetti comunica a morte de seu filho, ainda

embrião, o faz estabelecer relações envolvendo, sobretudo, aspectos emotivos sobre o uso de

embriões para obtenção células para pesquisas.

O embrião humano é um amontoado de células? [...] portanto o

embrião humano não é um amontoado de células. São células ligadas

umas as outras com informações precisas, como a Dra. Claudia

mostrou, desde a primeira divisão, cada qual com a sua informação

para que diferenciação ela vai seguir desde o primeiro instante.

Também não são células como também foi colocado a analogia com

uma cultura de células. Ali sim devemos ter um amontoado de

células... (Rogério Pazetti, trecho da audiência)

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97

Pazetti não se limita a fazer referência à maneira como o bloco favorável à pesquisa

trata os embriões, compara argumentos que consideram o embrião como amontoado de

células com argumentos que não o consideram e apresentam as informações que já são

desenvolvidas desde o momento da fecundação como uma questão de relevante importância

para a caracterização da espécie humana, segundo o cientista. Destaca então o trabalho

coordenado de substâncias, aspectos genéticos, ênfase dada aos muitos cientistas que

formaram o bloco dos cientistas contrários às pesquisas.

Os argumentos de Pazetti sugerem que o trabalho de expertise não apenas está

relacionado com a mobilização de recursos técnicos originados de pesquisas científicas e suas

aplicações. Sugere que em espaços onde as ciências precisam performar suas ações com

objetivos de obter legitimidade, os argumentos técnicos precisam ser permeados de

afirmações não técnicas. Se os argumentos técnicos em alguns momentos são usados para

demarcar a posição de expertise, o uso de argumentos não técnicos sugerem uma aproximação

do próprio expert daqueles que não dominam as extensas explicações dos dados científicos. E

os enunciados adquirem além da força dos dados que sustentam as afirmações, tonalidades

que dramatizam e solicitam do público uma compreensão além do envolvimento técnico.

4.3 - O embrião mobilizado: sua autonomia a partir da performance químico-biológica

Um dos primeiros aspectos relacionados à autonomia são as definições genéticas que

o embrião já desenvolve desde a fecundação. A genética mobilizada pelos cientistas

favoráveis à pesquisa pouco dizia sobre sua real mobilização e diferença na composição dos

argumentos desenvolvidos por aquele grupo. Em alguns momentos ela aparecia apenas como

um componente que precisa ser controlado, sobretudo nas apresentações de Ricardo Ribeiro e

Pranke. Em Zatz, a relação com as respostas da genética estavam relacionadas às doenças que

a cientista pesquisa.

Ao contrário desses argumentos pontuais, os cientistas do grupo que reúne os

contrários à pesquisa fortaleceram a ideia de linha genética e herança para estabelecer uma

relação de autonomia do embrião, de vínculo autônomo do embrião com sua genitora. Este

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98

vínculo está relacionado com a necessidade do útero para a sobrevivência do embrião, que

desde já possui uma autonomia em seu processo de formação devido sua carga genética. Os

cientistas contrários ao mesmo tempo que enfatizaram as relações e trocas bioquímicas

desenvolvidas entre o embrião e a mulher, acentuaram por outro lado a autonomia imposta

pelo mesmo ao solicitar da mulher que o abriga uma adaptação às novas condições. Tal

autonomia é acentuada quando a relação que o embrião estabelece com a mulher que o tem

em seu ventre é estabelecida desde as primeiras horas através de ligações e trocas químicas.

Tudo isso está programado no DNA de cada um... cada espécie tem o

seu DNA e vai se expressar, vai se desenvolver conforme aquele

código, aquilo que está gravado no seu DNA... então, o projeto

Genoma Humano ele vem fazendo com que nós possamos conhecer

profundamente nosso próprio genoma [...] então ele caracterizou e

vem caracterizando o programa de nossa espécie... (Lenise Garcia,

trecho da audiência)

A relação da autonomia do embrião com a genética é apresentada pela cientista desde

o momento em que há a fecundação. A partir disso há um ligação entre os trinta mil genes

relacionados ao homem e os outros trinta mil provenientes da mulher, que quando juntos,

formam um ser único e irrepetível (Lenise Garcia, trecho da audiência).

Essa imensa combinação que pode existir entre conjuntos diferentes

de trinta mil genes [...] e que, no entanto, cabe inteiro aqui [mostra

imagem microscópica] nessa primeira célula que se forma na junção

do espermatozoide e do óvulo. E aí já está definido as características

genéticas desse indivíduo... já está definido se é homem ou mulher por

exemplo... então a gente poderia dizer que nesse montinho de célula é

um montinho de células masculinas ou um montinho de células

femininas... (Lenise Garcia, trecho da audiência)

Quando menciona aspectos relacionados à possibilidade de identificação de doenças

genéticas a partir desse montinho de células, Lenise faz uma referência às cientistas Zatz e

Pranke e destaca que neste ponto caberia a sociedade estabelecer critérios quando

identificadas doenças que são prejudiciais à população e que colocaria em questão a possível

eliminação desses embriões com doenças genéticas. Lenise não se limita em fazer sobre a

eliminação dos embriões a partir das pesquisas. Ela acentua as possibilidade que a eliminação

e o descarte podem provocar de prejuízo moral para a sociedade.

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99

Se eu tirar uma célula e for examinar se tem uma doença genética,

eventualmente você já pode detectar se a doença genética está ali.

Agora, nós temos que pensar enquanto sociedade se eu detecto uma

doença genética num embrião eu vou eliminar esse embrião? Se eu

detecto que um embrião tem hemofilia eu vou eliminar? Então

Betinho teria sido eliminado, se ele tivesse sido gerado numa clinica

de fertilização in vitro... porque o Betinho era hemofílico... então nós

começamos a classificar as pessoas entre aquelas que são normais,

aquelas que são adequadas para a nossa sociedade e aquelas que são

inadequadas... (Lenise Garcia, trecho da audiência)

A comparação entre o embrião e a célula não é descartada pela cientista. A diferença

entre sua equiparação e a elaborada pelos cientistas favoráveis é a ideia de um padrão

genético já presente desde o momento da fecundação, aspecto este não descartado pelos

cientistas favoráveis, mas minorado a fim de considerar apenas o embrião como uma massa

celular.

A relação de autonomia que o embrião estabelece com seu ambiente desde a

fecundação tem consequências diretas na maneira como concebemos a questão de sua

dignidade e, por conseguinte, seus direitos. Em que ponto o ser humano deve já possuir

direitos. Essas questões são colocadas pela cientista Claudia Batista são acentuadas pela

relação de projeto que é estabelecida com seu desenvolvimento. É na consideração da

fertilização como um processo que conduz a individuação que a cientista pontua que a partir

desses estágios biológicos que a vida chega ao seu termo. Se tem vida durante o processo e

não no final do mesmo (Claudia Batista, trecho da entrevista). A autonomia do embrião é

dimensionada a partir da perspectiva de um projeto, como destaca Claudia Batista,

Gostaria de fazer uma comparação agora entre vida humana e vida

celular, à esquerda eu tenho uma foto de um embrião de três dias e à

direita de um conjunto de células com as quais eu trabalho. O embrião

de três dias é aparentemente um montinho de células como as

neuroesferas também [...] qual a diferença, então, se

morfologicamente eles são assemelhados? A diferença entre a vida

humana e a vida celular está na autonomia, unidade, projeto. O

embrião de 3 dias ele já tem uma autonomia funcional, autonomia que

dá uma unidade a todo um organismo como um todo... esse montinho

é um todo que se comporta funcionalmente, metabolicamente com um

único ser[...] e que se auto-direciona no sentido de gerar um novo

indivíduo... (Claudia Batista, trecho da audiência)

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100

Esta autonomia não vai se destacar apenas em relação a vida do próprio embrião

como algo que pode e deve ser protegido mesmo que tenha sido criado fora do útero, mas

sobretudo em relação de autonomia relativa com sua genitora. Esta autonomia relativa que é

estabelecida foi amplamente desenvolvida por Lilia Piñero Eça e está marcada pelo contato

químico que o embrião desenvolve com a sua genitora.

Nós falamos até agora sobre esse zigoto onde realmente temos todo

esse programa genético e todas as nossas características até o fim de

nossas vidas. Mas uma coisa que eu acho muito importante a gente

falar aqui hoje é de que não só já temos o programa desde a primeira

divisão do zigoto como é muito importante lembrar também que além

de já termos essa programação esse embrião já se comunica com a

própria mãe, através daquilo que a gente não enxerga

macroscopicamente, mas nós enxergamos isso através de nossas

moléculas marcadas (Eça, trecho da audiência)

Poucas horas depois do contato entre os zigotos na fecundação, os processos de

trocas químicas mobilizadas pelo embrião já são desenvolvidos e sugerem que o organismo da

mãe comece a produzir um ambiente adaptado a sua chegada. Até este momento das

apresentações, os cientistas, sobretudo os favoráveis à pesquisa, não relacionavam nenhum

aspecto envolvendo participação de atores químicos no processo. Um dos pontos curiosos dos

atores mobilizados pelo grupo que é contrário às pesquisas está então diretamente envolvido

com as relações que esses embriões desenvolvem com sua mãe ainda nos primeiros momentos

após a fecundação. Esta relação não só é de dependência como de controle hormonal

estabelecido pelo embrião, neste momento um ser autônomo, sobre a mulher. Neste sentido,

não há quase referência relacionada com o desenvolvimento do embrião criado in vitro,

apenas aspectos pontuais como a discussão de Claudia Batista sobre os desenvolvimentos e o

padrão genético do embrião.

A ênfase no caráter técnico relacionado à morte encefálica para justificar e marcar

que o embrião nasce apenas quando as células do sistema nervoso central começam a se

desenvolver parece sugerir que os cientistas favoráveis às pesquisas apenas procuram critérios

que resolvam um problema prático colocado pelas clínicas de fertilização. A questão dos

excedentes. Diferente desse posicionamento, os cientistas contrários às pesquisas destacaram

aspectos relacionados à relação do embrião com a mãe. Ao passo que colocaram a relação do

embrião com a genitora como um dos aspectos relevantes na audiência, consideraram que o

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101

uso de conceitos como a morte encefálica, por parte dos favoráveis, apenas demarcava a

possibilidade de uso dos embriões sem implicações éticas e morais.

A mobilização dos agentes químicos através do estudo dos sinais de células

desenvolvida por Eça para compor sua apresentação mostra como aquele conjunto de massa

celular, como descrito pelos cientistas favoráveis, pode envolver uma série de agências

relacionadas à mudança do corpo da mãe, sugerida não como algo que a define e pertence,

mas como uma ação direta e implicada com o desenvolvimento de um ser autônomo.

...através dos vasos sanguíneos dessa mãe temos substâncias que são

secretadas e essa... esse futuro... toda essa vida humana... todo esse

programa humano já manda toda essa mensagem desse corpo para a

mãe [longa pausa] a mãe recebendo essas substâncias ela vai ter

substâncias, ela vai ter mudanças hormonais, que substâncias seriam

essas? Aqui é o vaso sanguíneo onde a mãe vai estar recebendo as

substâncias desse filho que seria a conversa molecular entre embrião e

mãe e essas substâncias elas vão agir dentro dessa célula... por que

uma mulher é feita... nós todas... por 75 trilhões de células... então já

duas a três horas após o encontro do espermatozoide com o óvulo essa

conversa do embrião através das moléculas [...] elas já vão começar a

acionar esses 75 trilhões ..(Eça, trecho da audiência).

A condição de relativa autonomia nos argumentos apresentados por Eça indica que

através das ligações químicas estabelecidas com a mãe este embrião passa a agir em seu

corpo, sugerindo estados biológicos que a encaminham para a gestação. Este componente do

embrião intrauterino como um ser que possui uma autonomia, só requerendo da mãe suas

condições de desenvolvimento sustenta não apenas o argumento de Eça. Ele ancora os

argumentos de Claudia e de Lenise, quando as mesmas destacam a formação do embrião e

suas fases como processos que iniciam desde o primeiro momento com a fecundação.

Toda mulher já se prepara com essas substâncias nessas duas a três

horas após para o ninho [ênfase tonal] para poder receber esse embrião

que vai ser nidado até o 14º dia em seu útero, mas desde o primeiro

momento ela prepara seu ninho... isso então realmente é a

comunicação humana [...] então veja quantas moléculas ele já manda

para a mãe para mandar informações e ela preparar seu ninho... ela

fica com sono, ela fica com uma série de manifestações para entrar em

repouso para poder se preparar e receber esse feto... (Eça. Trecho da

audiência)

Page 102: Agindo como experts... Israel de Jesus Rocha.pdf

102

Essas alterações químicas provocadas pela presença do embrião no útero da mãe são

sugeridas por Eça como uma ligação na qual não pode haver desde então uma interrupção.

Para Eça, este corte do embrião retirado do corpo da mãe é o mesmo que se desligar um

computador puxando o fio da tomada produzindo um ‘black out’. Os efeitos colaterais que

essa interrupção provoca estão ligados também a fatores envolvendo substâncias. Este

argumento é desdobrado por outra cientista quando analisa como os embriões mantêm uma

relação com a mãe na qual a mesma se sente “obrigada” quimicamente ao transporte do

mesmo em seu ventre.

O que a fecundação in vitro nos mostrou? Que a mãe que vai receber,

implantado o embrião tem de ser preparada e receber as mesmas

influências que o embrião daria a ela se o embrião estivesse dentro

dela... isso é a prova que o embrião que o filho manda na mãe desde o

começo [...] ou seja, para receber o embrião implantado ela precisa ser

preparada como se o embrião estivesse dentro dela. (Elizabeth

Cerqueira, trecho da audiência)

Continuando a discussão de Eça, a cientista Elizabeth Cerqueira ampliou a relação de

autonomia que o embrião desenvolve com a progenitora e a estende até a fertilização in vitro.

Não se trataria de pensar os embriões congelados nas clínicas apenas como passíveis de uso

em pesquisas, mas de perceber como e sua própria forma de vida já solicita da mulher

possivelmente o abrigará depois, que ela seja preparada para seu recebimento, preparo este

que precisa ser muito similar àquele dispensado se o embrião estivesse presente em seu útero.

Dessa maneira, o grupo dos pesquisadores que são contrários às pesquisas não

apenas minimizam os argumentos pautados no descarte e uso em pesquisa como um único

destino para aqueles embriões excedentes, mas que este novo ente precisa ser considerado em

seu grau de autonomia, sobretudo em relação à mulher.

Um aspecto curioso levantado por Elizabeth Cerqueira se trata da identidade do

embrião proveniente de um processo de construção desenvolvido por ele. Que essa identidade

não surge de um observador e que não pode ser definido apenas por suas propriedades

funcionais e estruturais, admitindo os limites colocados pelos cientistas favoráveis às

pesquisas quando partiram de diversos critérios para a definição de quando a vida do embrião

começa.

Page 103: Agindo como experts... Israel de Jesus Rocha.pdf

103

A sua ontogênese [do embrião] pertence a ele mesmo. Se eu procurar

definir o embrião pelas propriedades funcionais ou estruturais então eu

admito que o embrião ele se torna vida humana e começa como ser

humano quando [pausa] começa a bater o coração, ou então quando o

sistema nervoso está formado, ou então, ou então... qualquer coisa

assim... [...] se eu colocar assim eu estou tendo uma concepção

‘fixista’. Que é contraria a biologia... a biologia define o ser humano

como um processo dinâmico, aquele que ontologicamente tem um

movimento que lhe é próprio, que sai dele mesmo um movimento de

desenvolvimento [...] o ‘si’ do embrião não pode se reduzir a um

suporte, mesmo o suporte genético... o suporte genético inicia um

desenvolvimento mas não é o embrião. (Elizabeth Cerqueira, trecho da

entrevista)

Só a partir da possibilidade de se ter o embrião como objeto que os questionamentos

suscitados pelos cientistas favoráveis à pesquisa foram possíveis e a mobilização em torno das

pesquisas envolveu, sobretudo, o aspecto prático da questão. A cientista Elizabeth Cerqueira

enfatiza as soluções que este embrião produzido in vitro solicitou dos cientistas para tentar

classificar este nova entidade que vive fora do útero. O problema que a mesma pontua em

contraponto às soluções mobilizadas é que as mesmas não tratam o embrião como um ser

humano desde a fecundação e apenas como uma massa celular.

Interessante que a FIV nos trouxe muito conhecimento sobre a

fecundação, mas ao mesmo tempo nos trouxe questionamentos porque

nunca, até então, nós tínhamos na mão um embrião humano vivo

passível de manipulação. A partir da fecundação in vitro nós passamos

a ter todas essas possibilidades que nos trazem todos esses

problemas... então, o que se faz com esses embriões excedentes, nós

vamos fecundar mais de um, vamos implantar diversos, vamos

reduzir, ou seja, tirar alguns que foram... todos... de repente quatro...

não tem possibilidade de chegar ao final... então quantos vamos tirar

do útero... é... barriga de aluguel... implantar em útero que não seja

humano... enfim... todos esses questionamentos apareceram depois

que foi possível ter o embrião como objeto em laboratório... (Elizabeth

Cerqueira, trecho da entrevista)

As definições elaboradas pelos cientistas diante daquela entidade criada fora do útero

sugerem, para Elizabeth Cerqueira, apenas uma tentativa de justificar o uso desse embrião

como objeto no laboratório. As definições propostas no relatório de Warnock (1982-84) na

qual o embrião passa a ser um ser humano em potencial e a definição de pré-embrião

(cunhado pela Federação Europeia de Ciência em 1985) surgiram com um esforço de

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104

estabilização precária da emergência de novas relações demandadas pelo embrião criado nas

bancadas dos laboratórios.

Essas definições manuseadas pelos cientistas favoráveis às pesquisas sugeriram não

apenas uma solução para o problema do embrião fora do útero, correspondeu, diante das

apresentações de Pranke e Zatz, como soluções que resolveram, assim como a decisão de se

usar os embriões extranumerários em pesquisas, de maneira prática a questão colocada pelos

novos problemas de pesquisa.

O que seria o pré-embrião? Será que existe o pré-embrião e por isso

nós podemos manipulá-lo, será que existe o pré-embrião e por isso eu

posso usar célula-tronco embrionária, posso congelá-lo, ou porque que

eu quero usar célula tronco embrionária e quero congelá-lo eu criei o

pré-embrião [...] porque como nós dissemos por que que se definiu até

a linha primitiva, porque não um pouco antes ou depois, por que não

um mês antes ou um mês depois [...] porque esse questionamento? Por

que a linha primitiva também não se forma em um ato, um segundo

que você possa dizer um segundo antes, um segundo depois tinha a

linha primitiva ou não... (Elizabeth Cerqueira, trecho da entrevista)

O questionamento dos interesses relacionados as pesquisas envolve não apenas a

autonomia relativa que o embrião desenvolve em relação a sua genitora. Envolve também, por

parte dos cientistas contrários, uma mobilização de agências relacionadas ao fracasso até

então das pesquisas envolvendo células tronco embrionárias. Os esforços, para alguns

cientistas ligados ao bloco contrário deveria se concentrar em desenvolver técnicas já

existentes, sobretudo envolvendo as células tronco adultas. Neste sentido, diversas

apresentações seguiram uma lógica de mostrar como os resultados envolvendo células tronco

adultas têm obtido êxitos que podem se consolidar futuramente.

Alguns elementos apresentados durante a audiência deslocam a questão diretamente

ligada ao embrião, seja ele mobilizado como uma massa celular ou um ser com uma

autonomia relativa desde o momento da fecundação, e mobilizam questões envolvidas com

certas práticas, como a médica, por exemplo. Se observarmos os critérios de formação inicial

e composição da audiência, poderia se colocado como alguns cientistas foram escolhidos para

compor o quadro e apresentação nos blocos.

Page 105: Agindo como experts... Israel de Jesus Rocha.pdf

105

A mobilização de manuais da literatura médica para mostrar como a aprovação das

pesquisas poderia alterar a formação de uma prática sugere que a audiência não está

estritamente relacionada a uma definição do embrião ou uma finalidade prática para os

excedentes. A leitura de trechos de livros sobre o que ensina a prática médica sobre o que é o

embrião ou o zigoto coloca o Professor Rodolfo Nunes diante de possível impacto sobre a

própria prática.

O momento do inicio da vida é um fato biologicamente consumado. A

manipulação conceitual desse fato traz consequências para a prática

médica. Seja na área de formação dos recursos humanos, seja na

pesquisa, seja na assistência... de uma certa forma é prejudicial uma

discussão apenas conceitual ignorando um importante fato [...] no

ensino médico fica flagrante uma perplexidade no confronto com a

literatura médica estabelecida e determinados conceitos novos sem

sustentação. Introduz uma incerteza quanto ao valor da dignidade

humana e um desenvolvimento de reservas ante ao ensinamento de

uma postura de zelo em relação ao embrião ou feto como paciente

(Rodolfo Nunes, trecho da audiência)

Os elementos que apontam as possíveis mudanças e possível desdém pelo qual se

orientam os cientistas favoráveis às pesquisas, ignorando o que seria o embrião e por isso o

desrespeitando, faz o Professor Nunes desenvolver sua apresentação em torno dos limites

estabelecidos pela própria biologia, as quais se alinham com as apresentações de Lenise e

Claudia sobre a formação do embrião ainda na fecundação. Esta delimitação biológica, para

Nunes, não pode ser violada por definições arbitrárias elaboradas de acordo com os interesses

colocados diante de desenvolvimentos das pesquisas. A literatura médica mobilizada por

Nunes sustenta sua afirmação da complexidade do processo que envolve a formação do

embrião e a ausência de uma base consolidada de conceitos sem sustentação que poderiam

prejudicar a prática dos médicos, bem como o desenvolvimento de uma relação mais

objetivada com o embrião criado no laboratório, como destacou também a cientista Elizabeth

Cerqueira.

As apresentações que destacam os avanços das células tronco adultas em relação as

células tronco embrionárias apontam sobretudo os problemas que foram encontrados nas

pesquisas. Os casos de tumor foram destacados como um fator relevante para se desconsiderar

que é preciso avançar com pesquisas envolvendo as células tronco embrionárias. Ao mesmo

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106

tempo, os pesquisadores que consideram que é preciso continuar pesquisando, destacam que

as próprias células adultas também desenvolvem tumor. Neste sentido, os recursos

mobilizados em torno das consequências que tanto uma como a outra podem produzir se

neutralizam nos argumentos.

Claro que estamos todos interessados na busca de terapêuticas que

possam resolver os males que afligem a nos mesmos e a nossos

irmãos. O que se coloca nessa audiência são dois aspectos. Primeiro,

existe terapêuticas que são eficazes, ou melhor dizendo... existe

indícios científicos que existe terapêuticas que podem ser eficazes

para a solução de uma série de problemas de saúde. [pausa longa]

Portanto, o segundo aspecto, o reconhecimento do embrião como vida

humana não se contrapõe a essas exigências éticas que dizem respeito

a busca dessas terapêuticas. Hoje durante todo dia se falou que o uso

de células tronco adultas oferecem os resultados terapêuticos que a

sociedade exige e precisa... (Dalton Ramos, trecho da audiência).

As células tronco adultas são destacadas quando alguns cientistas colocam em suas

apresentações os limites envolvendo as pesquisas com as embrionárias. Pazetti levanta uma

série de questionamentos apontados pelos cientistas favoráveis sobre os limites das células

tronco adultas, mostrando que em muitos casos a afirmação daqueles cientistas não eram

comprovadas com artigos e experimentos, mostrando os limites dessas células. Ao mesmo

tempo usa afirmações utilizadas pelos cientistas contrários para mostrar como as células

adultas têm produzido resultados satisfatórios para uso em terapias. Mais do que os outros

cientistas, e mesmo com as constantes reafirmações do Ministro Relator da audiência de que

as referências aos próprios cientistas presentes na audiência, Pazetti usou como recurso as

citações colocadas pelos próprios cientistas presentes no dia.

Uma das apresentações que procurou destacar tanto os avanços das células adultas

como as embrionárias foi desenvolvida pela pesquisadora Lygia Pereira. A origem das

pesquisas com células adultas a partir de sua plasticidade gerou diversos campos de pesquisa

e no Brasil há diversos testes clínicos envolvendo tais células.

Nós temos aqui sentado alguns dos principais pesquisadores

brasileiros que exploram esse potencial da célula tronco adulta para

ver se isso é realmente uma realidade. E por que que a gente tem tanto

teste clinico em andamento com as células tronco adultas? Por que a

gente faz transplante de células tronco adulta há décadas e a gente

sabe com a experiência adquirida e com a possibilidade de fazer

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107

pesquisa com essas células tronco adultas desde a década de 50, a

gente adquiriu confiança para saber que não existe grandes riscos

associados e isso justifica então essa batelada de testes clínicos [...] é

importante também aqui saber que por mais que se tenha dito que elas

são usadas para mais de 70 terapias, transplante de células tronco seu

medico só pode receitar para os casos de medula óssea para um

numero limitado de doenças que envolve a regeneração do sangue [...]

qualquer outra aplicação ainda está no âmbito da pesquisa (Lygia

Pereira, trecho da audiência)

O trabalho de relativização dos resultados apontados pelos cientistas que defendem

apenas pesquisas usando células adultas foi considerado por Lygia Ferreira, demonstrando

como artigos científicos que parecem causar um excesso de notoriedade podem apresentar

equívocos em seus resultados. A cientista coloca que o trabalho da ciência não pode ser

avaliado e tomado como verdade absoluta sem que seja reproduzido exaustivamente por

outros laboratórios. Esta mesma observação foi feita por Voltarelli quando criticou os

trabalhos da pesquisadora americana sobre o uso de células mesenquimais para a criação de

células tronco embrionárias. Essa ciência mencionada por Lygia ainda aparece como incerta,

insegura e aberta em que a cada dia novidades surgem e afirmações absolutas são desfeitas a

cada novo experimento.

Esses desdobramentos apontados por Lygia em sua exposição sugere como os fatos

na ciência percorrem um caminho de afirmação enquanto tal a partir da possibilidade de não

enfrentar, mais adiante, questionamentos, sobretudo técnicos, que o torne fraco em sua

manutenção (LATOUR, 2000). Apontar como as células-tronco adultas depois de décadas de

pesquisa ainda não se consolidaram como uma via segura para tratamentos envolvendo

regeneração por terapia celular sugere um enfraquecimento dos argumentos dos cientistas

contrários às pesquisas e o fortalecimento de abertura para a continuidade das pesquisas,

mesmo se tratando de argumentos que não são técnicos, diante do incipiente desenvolvimento

de pesquisas e resultados das células embrionárias.

Uma coisa que eu queria chamar atenção é foi muitas vezes mostrado

aqui artigos científicos de grande impacto como se fossem verdades

absolutas e a gente tem que tomar muito cuidado por que na ciência

para um resultado ser tido como uma verdade absoluta ele tem de ser

reproduzido por vários grupos para ele ser então consolidado e nós

estamos aqui trabalhando numa ciência que está em franco

desenvolvimento, então todo dia aparece uma novidade. Se cada uma

Page 108: Agindo como experts... Israel de Jesus Rocha.pdf

108

dessas novidades vão sobreviver ao crivo de outros grupos a gente

precisa ter paciência e seriedade para ver se esses trabalhos são

reproduzidos e ao longo de minha apresentação eu vou mostrar alguns

exemplos. (Lygia Pereira, trecho da audiência).

A ciência como uma rede que mobiliza diversos atores humanos e não-humanos nos

argumentos de Lygia Pereira aparece a partir de uma reflexão sobre a plasticidade das células

tronco adultas. O que parecia uma caixa preta no sentido colocado por Latour (2000) aparece

como uma controvérsia mesmo que se desenvolva pesquisas há muitas décadas. Ao contrário

da estabilidade que os transplantes envolvendo células da medula óssea sugerem, as pesquisas

ainda provocam diversas controvérsias indicadas por Lygia Pereira.

Esse aqui foi um trabalho de 200251

publicado numa revista de maior

impacto científico em que esse grupo identificou células na medula

óssea, em camundongo, em que eles conseguiram mostrar que essas

células tinham uma capacidade, uma plasticidade de se transformar

em vários tecidos equivalentes aquelas células embrionárias. E esse

seria o melhor dos mundos. Esse trabalho foi utilizado por vários

grupos que são contra a utilização das células tronco embrionárias

como uma justificativa de porque que a gente não precisa uma célula

tronco embrionária porque a partir de julho de 2002 as células da

medula óssea passaram então a ser capazes de fazer isso tudo... (Lygia

Pereira, trecho da audiência)

O dinamismo e abertura na qual se desenvolve a controvérsia entre as células tronco

embrionária e adultas transita entre o uso, em ambos os grupos, de artigos que produziram

impactos no campo. Se por um lado, os cientistas que são contrários às pesquisas mobilizaram

a mesma pesquisa para afirmar como não há mais a necessidade para os investimentos por

parte dos países para as pesquisas com embrionárias, o grupo favorável às pesquisas

desqualificou estes mesmos artigos mostrando como as falhas nos métodos, a incapacidade de

ser reproduzido em outros laboratórios, ou resultados obtidos por outros experimentos fazem

parte do processo de obtenção de notoriedade em um campo de pesquisas ainda incipiente e

aberto.

51

VERFAILLIE, C. M. et al. Pluripotency of mesenchymal stem cells derived from adult marrow. Publicado no

volume 418 da Nature em julho de 2002.

Page 109: Agindo como experts... Israel de Jesus Rocha.pdf

109

Pouco tempo depois foi publicado em uma outra revista do mesmo

impacto um grupo sério dizendo que eles não tinham encontrado

nenhuma evidencia para essa plasticidade, essa versatilidade das

células da medula óssea... com isso eu não quero dizer que elas não

tenham essa plasticidade [...] e que a gente não pode tomar trabalhos

publicados mais recentemente como verdades absolutas. Eles são

indicações de caminhos mas que precisa ser confirmados e

consolidados por outros grupos... então isso ainda é uma questão em

aberto. A plasticidade das células tronco adultas... a verdade, os

pesquisadores que aqui estão e usam essas células em pacientes, em

testes clínicos eles estão vendo que elas exercem algum efeito

terapêutico maior ou menos em alguns casos... mas a verdade é que a

gente ainda não sabe qual é o modo de ação que elas estão usando esse

efeito terapêutico, nós não sabemos a extensão desse efeito terapêutico

e essa medula fosse ainda é... e os mecanismos por traz disso ainda

são uma grande caixa preta. (Lygia Pereira, trecho da audiência)

Ao mesmo tempo que aponta as controvérsias relacionadas às células adultas Lygia

Pereira também aponta limitações técnicas que precisam ser superadas nas células

embrionárias. A imensa plasticidade dessas células coloca como barreira a condução exata

para a diferenciação aos tecidos que se deseja obter. Nos camundongos esse controle da

plasticidade já foi estabilizado e se consegue produzir os tecidos que se desejam, obtendo

assim o efeito terapêutico desejado. Em ambas, tanto a plasticidade das adultas como

embrionárias há uma relação direta com a ação das mesmas no sentido de torná-las estáveis.

A procura por protocolos e redes estabilizadas envolvendo essas células já datam da primeira

publicação em 1998 dos trabalhos envolvendo células tronco embrionárias de humanos.

Nesses anos todos de pesquisa [desde 1981 em células de

camundongos, e 1998 em células de humanos] os cientistas vêm

preparando diferentes coquetéis de fatores de crescimento e elementos

do cultivo dessas células e hoje nós somos capazes de induzir a

diferenciação dessas células em vários tipos celulares específicos [...]

essas células, esses tecidos derivados das células tronco embrionárias

em modelos animais quando transplantados para os mais diferentes

modelos animais de doenças eles são capazes de exercer um efeito

terapêutico [...] então no camundongo está muito bem estabelecido os

efeitos terapêuticos das células embrionárias. Nós somos capazes de

controlar a diferenciação dessas células no laboratório e induzir a

formação de tecidos específicos [...] a gente já está trabalhando com

esse camundongo já há tempo suficiente para ter conseguido domá-las

e fazer com que esse potencial terapêutico nos modelos animais se

seja uma realidade... (Lygia Pereira, trecho da audiência)

Page 110: Agindo como experts... Israel de Jesus Rocha.pdf

110

Ao mobilizar tanto as células adultas e embrionárias Lygia também solicita atores

que até então não tinham sido convocados de maneira explicita e direta nas apresentações. As

agências financiadoras de pesquisa brasileiras entram em cena para compor o que a cientista

chamou de maior financiamento na busca de resultados tão empolgantes quanto os obtidos

pelas células embrionárias com as células adultas.

A ênfase no financiamento está associada, para Lygia, ao desenvolvimento não

apenas de pesquisas direcionadas para as aplicações clínicas dessas células embrionárias. O

estímulo à pesquisa básica e suas possíveis aplicações na bancada em nenhuma das

apresentações precedentes à de Lygia foi mencionada e valorizada como um caminho para a

compreensão da formação de um ser humano.

A cientista enfatiza que se pode não apenas obter resultados que proporcionem cura

para doenças, mas que é possível descobrir mecanismos complexos de diferenciação de uma

célula que conduz a forma um ser humano. A maneira como as células mobilizam uma série

de atores envolvidos com a ciência, a economia e a política e como esses mundos dependem

da maneira como essas células vão estabelecer um padrão de diferenciação ao ponto de

produzir uma linhagem capaz de produzir novas terapias nos faz pensar como Landecker

(2007) sobre a célula contemporânea como uma importante entidade econômica, produtiva e,

sobretudo, patenteável.

Acho que uma das perguntas mais fascinantes em biologia é como um

organismo passa de uma célula até um individuo complexo como é o

ser humano. Eu posso querer ser menos pretensiosa e tentar entender

como essa célula se multiplica e se diferencia em um individuo

complexo como esse feto [exibição de imagens de uma célula, um feto

e uma criança]. Isso já é extremamente complexo... ou vou um passo

atrás. Como é que essa célula decide ser um neurônio? Quais são os

mecanismos que estão por traz da diferenciação dessa célula em um

neurônio, uma célula de músculo ou uma célula sanguínea e assim por

diante... como é que eu posso estudar o desenvolvimento embrionário

do ser humano de forma ética? Uma forma que a gente tem é

utilizando as células tronco embrionárias humanas [...] a gente no

laboratório consegue que elas reproduzam alguns desses eventos do

desenvolvimento embrionário e se diferenciem nessas células e isso é

uma oportunidade preciosa de a gente entender esses mecanismos [...]

então elas antes de cumprirem uma promessa terapêutica as células

tronco embrionárias já estão nos ensinando muito sobre a biologia

básica [...] esses conhecimentos básicos por sua vez podem ser

traduzidos um dia em terapias... (Lygia Pereira, trecho da audiência)

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111

Ao passo que mobiliza uma série de atores numa composição favorável às pesquisas,

a cientista Lygia mobiliza agências pouco tocadas pelos próprios cientistas favoráveis. Se

observarmos como este bloco organizou suas exposições poderíamos perceber que uma ênfase

é dada às agências humanas e não humanas ligadas às potencialidades terapêuticas que as

células-tronco mobilizam além de uma solução imediata e prática para um problema criado

pelos procedimentos da fertilização in vitro.

Os resultados que os cientistas podem obter a partir da compreensão do modo como

as células tronco embrionárias agem e suas escolhas por diferenciações em tecidos diferentes

constituem para a cientista um lição que as pesquisas com essas células têm proporcionado. E

este aspecto está diretamente relacionado aos arranjos que poderão permitir as células

informarem suas escolhas e caminhos, através de seus mecanismos de diferenciação. Para a

cientista, não se trata apenas de fazer pesquisa, é preciso domar as células, saber seus modos

de ação, fazê-las agir da maneira que se deseja. Estas metáforas e formas de dialogar com a

tecnologia apontam a dimensão de agências que perpassam as apresentações dos cientistas.

Através delas, acessamos dados do mundo dos cientistas que dizem mais sobre o trabalho da

ciência e como esta opera no sentido de estabilização precárias de redes e arranjos

sociotécnicos.

Outro ator mobilizado pela própria Lygia é o uso de trabalhos que produzem uma

certa comoção nos humanos. Se entre os outros expositores o uso desses recursos ocorreu de

uma forma vaga, em Lygia, ele extrapola a ligação direta apenas com os artigos científicos e

passa a se ter como fonte os sites que indexam pesquisas e resultados sobre o uso de tais

células. A cientista mostra uma pesquisa realizada em um dos sites e os dados coletados

indicam por parte dos estudos uma busca por doadores de embriões para o estabelecimento de

novas linhagens de células tronco embrionárias e não fases relacionadas à terapia e

implantação de células em humanos. Neste sentido, pontua Lygia, o que está sendo

desenvolvido ainda tem muito de trabalho nas bancadas e a esperança ainda precisa ser

condicionada a esta fase. Ao mesmo tempo a cientista mobiliza novamente os atores ligados

ao financiamento de pesquisa para reforçar o argumento que as pesquisas precisam continuar

a fim de obter resultados mais satisfatórios.

O esforço de estabilização das células embrionárias parece ser o caminho o qual os

cientistas favoráveis às pesquisas têm enfrentado no sentido de consolidar um campo e uma

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112

prática de pesquisa. A estabilização ainda enfrenta diversos problemas oriundos dos modos

como essas células se comportam e a necessidade de vincular os financiamentos para as

pesquisas estão diretamente associados aos resultados obtidos a partir desse processo de

padronização de linhagens.

Além disso, há um esforço de procura por doadores disponíveis para a padronização

de novas linhagens celulares que sugerem não uma busca dos cientistas para estabelecer

terapias, mas sim linhagens estabilizadas que proporcione material seguro para pesquisa.

Como a própria Lygia coloca, mesmo estabilizando protocolos e linhagens celulares de

camundongos, ainda não há uma comoção no sentido de manter as pesquisas com células

embrionárias humanas.

A estabilização precária das células faz com que os cientistas comentem ou tratem as

mesmas com certo tom de imprevisibilidade. Por ainda não conhecerem os mecanismos que

as células usam para se diferenciarem e ainda ser um enigma os modos de ação dessas células,

as perspectivas das exposições dos cientistas que falaram no turno vespertino assumiram

contornos mais limitados pelos caminhos percorridos pela pesquisa até aquele momento. Ao

contrário dos expositores do turno matutino, as células solicitam e mobilizam muito da

participação dos cientistas que apresentam dados no turno vespertino. Essas mobilizações

envolvem mais dados técnicos e limites relacionados às células, tanto embrionárias como

adultas, do que uma ênfase no embrião.

Esses aspectos centrais, eu vou colocar três aspectos centrais aqui, não

é possível nós pedirmos para as células tronco que ela resolva um

problema sem de fato conhecermos qual é esse problema. Nós

queremos que a célula injetada substitua a célula lesada e queremos

que ela nutra as remanescentes e será que só havia um tipo celular a

ser substituído? Então é fundamental que nós conheçamos a doença

[...] não é possível a nós pedirmos a essas células tronco que elas

resolvam sem de fato conhecermos o potencial biológico daquela

célula [...] tem uma série de células e nenhuma é igual a outra. (Luis

Eugênio Melo – trecho da audiência)

As metáforas com as quais os cientistas estabelecem analogias sobre as células

evocam cenários de guerra e combate nos quais as células parecem enfrentar uma região para

qual não estão preparadas. Geralmente são células puras, imaculadas com origens adequadas

Page 113: Agindo como experts... Israel de Jesus Rocha.pdf

113

e que são implantadas em regiões complexas e arranjos metabólicos amplos (Luis Eugênio

Melo, trecho da audiência). Neste sentido, essas células precisam enfrentar um ambiente

hostil para o seu desenvolvimento. Saem de um ambiente no qual tem suas ações de acordo

com os programas de ação estabelecidos pelos cientistas, as culturas preparadas e nutridas de

acordo com os tecidos desejados, agem como programado, para um ambiente onde esses

programas são incertos e inesperados.

Ainda neste caminho as células parecem não seguir os programas de ação delineados

pelos cientistas, solicitando dos mesmos protocolos e procedimentos mais precisos. Elas

mobilizam também relações com os programas das clinicas de fertilização in vitro. As

ligações entre atores microscópicos, como as células, são estabelecidas não apenas por que os

cientistas têm um interesse em manter uma reflexão que os permitam continuar pesquisando.

Não é apenas por eles que elas falam, mobilizam, articulam uma série de outros atores

humanos e não humanos neste processo de estabilização de uma terapia, de um conhecimento

de bancada ou um parâmetro para financiamento de pesquisa. A maneira como são

estabelecidas as relações com as clínicas mostra como o judiciário, início da vida humana,

procedimentos médicos e participação de cientistas numa audiência sobre uso de embriões

estão envolvidos uma série de atores neste processo de estabilização de uma tecnologia.

Estes esforços de estabilização de uma controvérsia que começa com a discussão

envolvendo a construção da lei de biossegurança brasileira envolve uma série de atores que

imediatamente não são convocados a participar. Se dois atores preponderam na audiência, a

atuação dos cientistas e a autoridade do poder judiciário em legitimar ou não uma lei que

pretende utilizar embriões para a obtenção de células tronco para uso em pesquisas, outros

atuam mediante a ação desses cientistas e ministros. Através deles e muitas vezes interferindo

diretamente em seus modos de ação, células embrionárias ou adultas, embriões em seus

diversos estágios e programas, seus diversos modos de autonomia e controle sobre a mulher

que o abriga, pacientes que desejam uma cura para as doenças que os acometem, diversos

estudos clínicos e científicos que comprovam os limites das células tronco adultas e solicitam

mais participação e financiamento para as pesquisas com células tronco embrionárias, clínicas

de fertilização, procedimentos da fertilização in vitro questionados e associações de pacientes.

Estes atores são mobilizados e circulam, ora estabilizando precariamente redes sociotécnicas,

ora abrindo controvérsias sobre a questão das células tronco e uso de embriões.

Page 114: Agindo como experts... Israel de Jesus Rocha.pdf

114

Como vimos acima, os modos de ação desses diversos atores poderiam passar

despercebidos se considerássemos apenas os esforços de mercado ou o poder do judiciário

como uma autoridade que define as regras e as colocam no mundo. Definir que a partir da

legitimação constitucional de uma lei as células seguirão os programas desejados pelos

cientistas parece ser um caminho ainda não claro sobre a estabilização dessa tecnologia. Estes

caminhos percorridos pelas células, cientistas, laboratórios, pacientes sugerem menos clareza

e fechamento do que abertura e toda sorte de possibilidades e perspectivas. O próprio

desenvolvimento da audiência sugere caminhos pelos quais a controvérsia não caminha para

seu fechamento, tornando-se uma caixa preta. Amplia ainda mais os horizontes pelos quais as

pontualizações em alguns momentos transitarão entre um caminho favorável à proibição ou

uso dos embriões. E este aspecto da controvérsia fica claro no momento em que algumas

perguntas são elaboradas pelos ministros, a partir das quais os cientistas retomam seus

argumentos arregimentando não apenas dados, células, pacientes, mas também o

posicionamento dos demais cientistas presentes na audiência.

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115

FECHAMENTOS PRECÁRIOS

Quando ciência e lei estabilizam arranjos sociotécnicos.

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Chegamos ao final de nosso percurso pelos fios que nos conduziram a uma

compreensão precária da maneira como o debate sobre a lei de biossegurança se deu no

Brasil, a partir da Ação Direta de Inconstitucionalidade. Para o nosso leitor ou leitora, a

palavra “precário”, que tanto figurou ao longo desse texto, parecerá com mais sentido neste

momento. A precariedade das redes sociotécnicas formadas em torno das pesquisas com

células tronco embrionárias tem seu caráter aberto enquanto tecnologia ainda em

desenvolvimento. Não apenas neste ponto. A própria possibilidade de questionamento e

abertura de tecnologias que eram consideradas caixas pretas como os procedimentos

envolvendo as pesquisas com células-tronco adultas, indica um percurso no qual não podemos

certificar que um determinado arranjo sempre seguirá um curso de ação. Os programas desses

cursos mudam e há sempre negociações em torno dessas mudanças. E este aspecto ocorreu

com as células tronco, tanto embrionárias como adultas.

O que parecia um arranjo em fechamento pela aprovação da lei de biossegurança

tornou-se algo problemático que gerou consequências mais adiante como a audiência pública.

O estudo de nosso material empírico, neste sentido, seguiu os caminhos dados pelos atores

inseridos na controvérsia de maneira que a audiência fosse nosso ponto de partida. Como

sugere os passos teórico-metodológicos da Teoria-Ator-Rede, escolher um ponto de partida

não significa fechar os atores envolvidos nos desencadeamentos. Sugere, antes que tomemos

um ponto e a partir de então desenrolemos os fios que atam a controvérsia. Escolhemos a

audiência como material de curiosidade sociológica para nos determos. E seguirmos a partir

dela o difícil trabalho dos atores sociais em produzir, manter e desmantelar associações.

A escolha do material audiovisual nos possibilitou acesso ao que os elementos

textuais produzidos no decorrer dos processos de votação não nos foi oferecido: a

possibilidade de perceber as performances dos cientistas em apresentação, os ritmos de

exposição e os arranjos dos blocos, quem dispôs de mais tempo, quem falou pouco; aqueles

mais objetivos; aqueles que adotaram como estratégia direcionar seus argumentos para outros

cientistas presentes. Assim, como recurso metodológico, ainda que produzido pela TV

Justiça, o material revelou-se rico em detalhes que envolvem escolhas e dinâmicas de

apresentação durante a audiência. Escolhas entre mostrar a plateia em momentos estratégicos

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117

na qual a presença de pessoas diretamente interessadas nos tratamentos possíveis futuramente

é notável.

Se por um lado o material audiovisual nos ajudou a captar as dinâmicas e disposições

dos blocos formados pelos cientistas, por outro, os rastros deixados em forma de processos,

petições, requerimentos, acordões, transcrições e toda sorte de materiais impressos

encontrados foram fundamentais para a reconstrução da controvérsia. Ainda que o foco não

tenha sido a análise exaustiva desse material, sua disponibilidade tornou o trabalho de

acompanhamento dos atores, em sentido retrospectivo, fundamental. Este é um dos aspectos

interessantes quando se trabalha com controvérsias que produzem passos rastreáveis. A

possibilidade de perceber o trabalho árduo de (des)estabilização de mundos (LATOUR,

2012).

A partir desse percurso podemos então esboçar algumas notas sobre a questão que

nos concerniu este estudo e algumas possibilidades de estudos futuros.

Se o nosso debate centrou num espaço onde inicialmente apenas dois atores foram

dotados de uma relevância para a controvérsia, no decorrer desta sugerimos que estes dois

atores poderiam ser mais proficuamente percebidos como pontualizações (LAW, 2005). Neste

sentido, nosso texto sugeriu que as diversas redes pelas quais atores diversos performam

ações ultrapassam a simples ideia que considera o peso das decisões do judiciário e a força de

persuasão da ciência. Os processos legais parecem ser menos afetados pela maneira como a

ciência desenrola seus achados e descobertas, mas não há como indicar que no

desenvolvimento da controvérsia em torno da audiênciaa exposição dos cientistas fizessem

parte de um simples “faz de conta”, como poderia sugerir a intervenção no voto de Eros grau,

mencionado no segundo capítulo. Como nos revela Jasanoff (1995) sobre a maneira como

tanto a ciência e o judiciário contribuem para a composição de um mundo comum.

Ainda que com conclusões baseadas em especulações, provisórias e sempre sujeitas à

modificações, a ciência em seu sentido ordinário é vista como diferente das demais atividades

sociais em virtude de seus procedimentos institucionalizados e com uma capacidade de

produzir enunciados que reivindicam validade universal. Este aspecto não pode deixar de ser

notado, sobretudo, na maneira como os cientistas se posicionam e mobilizam diversos atores

que agem através de suas apresentações.

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Ainda que representações sobre a ciência considere-a como uma entidade separada

das demais instituições sociais, o fazer prático do cientista sugere uma maior aproximação e a

audiência sugere este trabalho de proliferação que não envolve apenas os desenvolvimentos e

descobertas em laboratórios. Neste sentido, a definição de core-set proposta por Collins e

Evans (2002) revelou-se um tanto limitada para a composição de nossa controvérsia. Mesmo

que a convocação para a audiência tenha sido restrita aos especialistas, a mobilização de

diversos atores que são concernidos a atuar e falar através dos cientistas sugere uma ação não

no sentido restrito de núcleo de cientistas que estão concernidos a falar. Aqui sugerimos que

se forma mais uma rede sociotécnica que perpassa a ação dos cientistas vistos como

pontualizações em torno do tema.

Falar sem o apoio de crianças portadoras de doenças degenerativas não emociona;

mostrar o caráter utilitário dos embriões supranumerários sem o apoio dos procedimentos das

clínicas de fertilização não resultaria numa frieza de exposição de algo que tem valor máximo

para alguns, enquanto outros consideram apenas uma massa celular; se o homem que “voltou

para a sua família” após tratamento não fosse visto a caminhar em sua roça e ainda esperando

filhos, Ricardo Ribeiro pouco poderia sugerir avanços em torno das células tronco

embrionárias e as limitações sobre as células adultas? Ainda, o que seria da autonomia do

embrião se não fosse através dos marcadores estudados por Piñero Eça que poderia localizar

as ligações químicas que o embrião desenvolve com a sua genitora horas após a fecundação?

Como então sustentar sem apoio desses atores, sobretudo, os desenvolvimentos da genética,

que um embrião é um ser humano dotado de autonomia e por isso precisa ter seu direito

garantido pela justiça?

Todos esses arranjos sugeriram, neste texto, que as relações estabelecidas entre a

ciência e o judiciário estão envolvidas nas redes mobilizadas em torno dos argumentos dos

cientistas, mesmo que, por uma diferença de um voto a favor, os que defendiam a pesquisa

tenha vencido a “disputa”. Há menos um fundamento pautado pela guerra entre os favoráveis

e contrários e sim arranjos sociotécnicos que tornaram possíveis a continuação das pesquisas.

Podemos aventar, sugerindo estudos futuros, como um certo imaginário envolvendo a ciência

poderia indicar que o grupo favorável saiu vencedor na controvérsia, mesmo o grupo

contrário apresentando resultados fundamentados em estudos científicos e até em alguns

momentos mais mobilizadores do que a “frieza” dos favoráveis.

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Poderíamos indicar, como rapidamente sugeriu dois cientistas que apresentaram na

audiência, que no final o que estava em jogo era a lógica de mercado a qual era preciso

transformar o embrião numa mercadoria passível de manipulação e venda. A objetificação do

embrião desenvolveu-se a partir da emergência das técnicas de fertilização in vitro. Foi a

possibilidade de manipulação do embrião fora do útero que solicitou ações no sentido de

torná-lo uma entidade que não causasse muito problemas na composição de um mundo em

comum. Desde então, definições como o pré-embrião, aparecimento do sistema nervoso

central, embrião em potencial começaram a fazer parte das bancadas de laboratórios de

biomedicina, além de solicitar da justiça revisões em definições associadas à fecundação em

suas regulamentações.

Neste sentido, a ciência e o judiciário podem ser percebidas menos como instâncias

separadas em nossa sociedade e vistas como parte de um processo no qual atores humanos e

não humanos são definidos e redefinidos, e ações programadas no sentido de compor um

mundo comum, seja excluindo ou incluindo-os neste universo. Como observou Jasanoff

(2005), a lei não apenas interpreta os impactos sociais da ciência e da tecnologia, ela constrói

e remove ambientes nos quais a ciência e a tecnologia são dotadas de sentido e, sobretudo,

utilidade. A aprovação das células tronco embrionárias abre uma possibilidade de atuação

para os cientistas legitimarem institucionalmente o que já desenvolviam em bancadas nos

institutos de pesquisa pelo país.Ao mesmo tempo que indica a maneira como o judiciário tem

lidado com a emergência de novas tecnologias que demandam regulamentação. Que

envolvem um mercado, grupos interessados e diversos atores mobilizados em torno de sua

estabilização.

O recurso às apresentações dos cientistas mostrou-se curioso em termos

metodológicos sobretudo pelo acesso que proporciona aos atores que estão mobilizados na

estabilização da controvérsia envolvendo as células-tronco. Se escolhemos esses discursos

como ponto de partida não limita a possibilidade de a audiência ser fruto de novas abordagens

que a traduzam a partir de pontos diferentes. Um estudo poderia sugerir como o sistema

judiciário estaria permeável aos critérios de validação que emergem da ciência num espaço

em que o objetivo principal seria o de coletar informação para um julgamento posterior.

Acredito que outro poderia considerar a possibilidade de uma discussão envolvendo os

critérios de validade e verdade alçados pelas duas instituições não só em espaços de encontro

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como a audiência, mas outros através dos quais há encontros. E a modernidade, no sentido

latouriano, estaria permeada de espaços como estes. Espaços híbridos em sua constituição e

proliferação.

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121

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ANEXOS

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