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HANNAH ARENDT E GIORGIO AGAMBEN DUAS VISÕES DO ESTADO DE DIREITO

Feb 09, 2018

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ALEXLEUTERIO
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    FERNANDO HENRIQUE ROVERE DE GODOY

    HANNAH ARENDT E GIORGIO AGAMBEN: DUAS VISES DO ESTADO DEDIREITO

    CAMPINAS2013

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    UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS

    INSTITUTO DE FILOSOFIA E CINCIAS HUMANAS

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    FERNANDO HENRIQUE ROVERE DE GODOY

    HANNAH ARENDT E GIORGIO AGAMBEN: DUAS VISES DOESTADO DE DIREITO

    Orientadora: Prof. Dra. Yara Adario Frateschi

    Dissertao de Mestrado apresentada aoInstituto de Filosofia e CinciasHumanas, para obteno do Ttulo de

    Mestre em Filosofia

    Este exemplar corresponde verso final da dissertao defendida pelo alunoFernando Henrique Rovere de Godoy, e orientada pela Prof. Dra. Yara AdarioFrateschi.CPG, _____/_____/______.

    CAMPINAS2013

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    AGRADECIMENTOS

    Primeiramente gostaria de agradecer ao CNPq que financiou minha pesquisa epossibilitou a existncia desse trabalho. professora doutora Yara Adario Frateschi, minhaorientadora de Iniciao Cientfica e Mestrado, quem me apresentou filosofia poltica eme inspira a sempre lutar pela democracia. Ao Grupo de filosofia poltica da UNICAMP,pois com ele cresci muito em conhecimento e maturidade. Ao professor doutor RurionSoares Melo e ao professor doutor Edson Teles que participaram da minha banca dequalificao e contriburam para o amadurecimento deste trabalho, trazendo um olharcrtico fundamental para esta pesquisa. Ao professor doutor Glauco Barsalini, que de certaforma despertou em mim o interesse pelo tema e sempre esteve aberto ao dilogo.

    Agradeo tambm a Deus, pois minha f sempre me serviu de porto seguro nashoras mais difceis. Tambm agradeo aos meus pais, Celso e Jaqueline, por acreditaremnos meus sonhos e serem os alicerces para todas as minhas conquistas, e por, mesmo com

    algumas desavenas no meio do caminho, sempre quererem meu bem e por isso so osresponsveis por eu estar aqui hoje. minha irm Leticia, que ri comigo nos momentos dealegria e chora comigo nos momentos de tristeza, que me critica quando necessrio e meincentiva quando preciso, espero que possamos continuar a crescer juntos. minhanamorada Tatiana, que me deu o apoio, o carinho e a confiana que eu precisava, sempreme oferecendo um sorriso meigo e um abrao caloroso, nunca me deixando desistir e setornando mais do que fundamental pra minhas conquistas.

    minha famlia, que sempre teve orgulho e esperou o melhor de mim. Em especialao meu av Toninho, que com sua histria de vida sempre me serviu de inspirao. Darorgulho ao meu av sempre foi uma meta de vida. Aos meus amigos, que sempre meproporcionam momentos de alegria sem os quais a vida no vale a pena. Em especial aos

    meus amigos de infncia: Eduardo, Gabriel, Joo, Jos e Guilherme, que, mais do queamigos, so meus irmos. E tambm ao meu amigo Fabio, que me ajudou a no desistir e aperceber que no final tudo vai valer a pena.

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    RESUMO

    Neste Trabalho, o escopo analisar como Giorgio Agamben e Hannah Arendt

    pensam a poltica contempornea, principalmente a relao da poltica com o direito. Ainteno mostrar que, apesar de ambos os autores partirem de diagnsticos damodernidade bastante parecidos, chegam a lugares bem diferentes no tocante relao dodireito com a poltica. Ambos parecem compartilhar, primeira vista, um diagnstico deesvaziamento do espao pblico, o predomnio da violncia nas relaes, uma sociedademassificada, a vida biolgica ganhando centralidade nos contextos polticos, etc. Porm,com base nessas premissas, Agamben chega a teses como o Estado de Exceo permanente,o campo (de concentrao) como paradigma da poltica contempornea, a contiguidadeentre o totalitarismo e a democracia e o carter essencialmente violento do direito, tesesessas que no podem ser aceitas por Arendt. A inteno demonstrar que mesmo Arendtcompartilhando esse diagnstico com sua concepo de poltica pautada na pluralidade e na

    liberdade, ela enxerga outras perspectivas para a poltica atual, como o papel daConstituio de garantir as liberdades pblicas.

    Palavras-Chave: Hannah Arendt; Giorgio Agamben; Democracia; Direito; Estado deExceo

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    ABSTRACT

    This study aims to analyze how Giorgio Agamben and Hannah Arendt think the

    contemporary politics, chiefly the relation between politics and law. The intent is to showthat, although both authors derive from very similar diagnosis of modernity, they reachwell-distinct places regarding the relation between law and politics. Both of them seem toshare, at first sight, a diagnosis of public space emptying, the predominance of the violencein relations, a massified society, the biological life acquiring centrality in political contextsetc. However, based on those premises, Agamben get to theses such as the state ofpermanent exception, camp (concentration) as a contemporary politics paradigm, thecontiguity between the totalitarianism and democracy, and the essential violent character ofthe law, such theses which cannot be accepted by Arendt. The intent is to demonstrate that,although Arendt shared that diagnosis with his conception of politics guided by pluralityand liberty, she sees other perspectives for the current politics, as the role of the

    constitution to assure the public liberties.

    Keyword: Hannah Arendt; Giorgio Agamben; Democracy; Law; State of Exception

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    SUMRIO

    INTRODUO .................................................................................................................. 1

    CAPTULO 1O diagnstico poltico de Arendt aps o fenmeno totalitrio: o esforo paracompreender o incompreensvel ........................................................................................ 3

    CAPTULO 2Conceitos centrais da teoria poltica de Hannah Arendt e de Giorgio Agamben .......... 17

    2.1 A noo arendtiana de poltica .................................................................................. 182.2 A concepo que Agamben tem da poltica ............................................................... 312.3 Leitura e apropriao que Agamben faz de Arendt e a aproximao feita entre os dois

    autores ............................................................................................................................ 382.4 Diferenas entre as teorias de Agamben e Arendt...................................................... 442.5 A interpretao biopoltica de Arendt feita por Andr Duarte .................................... 51

    CAPTULO 3Fundao do Estado na concepo arendtiana e na concepo agambeniana .............. 61

    3.1 Fundao do Estado para Hannah Arendt .................................................................. 623.2 A fundao do Estado para Giorgio Agamben........................................................... 823.3 Comparaes entre as concepes dos dois autores ................................................... 94

    CONSIDERAES FINAIS ......................................................................................... 101

    BIBLIOGRAFIA ........................................................................................................... 111

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    INTRODUO

    A leitura e a apropriao que Giorgio Agamben faz de Hannah Arendt tem exercido,

    pelo menos no Brasil, forte impacto sobre os estudiosos da filosofia de Arendt, como Andr

    Duarte e Adriano Correia. Vrios elementos poderiam aproximar, primeira vista, Arendt

    de Agamben, tal como a crtica contundente que ela faz democracia de massas, do

    formalismo da concepo liberal de direito, do esvaziamento do espao pblico, da vitria

    do animal laborans, do predomnio da violncia etc. 1Com este estudo, pretendo analisar

    como, partindo de diagnsticos de modernidade convergentes, Arendt e Agamben chegam

    a concepes polticas divergentes, principalmente no tocante a relao entre poltica e

    direito. Para fazer isso usarei as concluses as quais Agamben chega a partir das premissas

    deste diagnstico de modernidade. O autor italiano conclui que existe uma contiguidade

    entre democracia e totalitarismo, baseado nas suas teses de Estado de Exceo permanente,

    o campo como paradigma da poltica e a vida biolgica como objeto das decises polticas

    contemporneas, teses essas que no podem ser aceitas por Hannah Arendt, pois, embora

    Arendt admita que a democracia nos dias de hoje est em crise 2, ela nota que na

    democracia realmente existe diferenas slidas em relao aos regimes totalitrios dosculo XX.

    Este trabalho iniciado mostrando como Arendt diagnosticou uma crise da

    modernidade atravs do seu exerccio de compreender o que foi o fenmeno totalitrio.

    Depois, sero apresentados os principais pontos das teorias polticas dos dois autores, para

    observarmos qual a concepo que cada um deles tem da poltica.

    Aps isso, so mostradas a leitura e as apropriaes que o prprio Agamben faz das

    teses Arendtianas, j que ele diz estar completando a obra de Arendt. Aqui, apontado que,com a leitura que Agamben faz de Arendt, realmente existe uma aparente aproximao

    1FRATESCHI, Yara Adario.Participao e Liberdade Poltica em Hannah Arendt.In. ____.Cadernos deFilosofia Alem. Campinas: USP, 2007. n.10. p. 83-100.2Expresso utilizada por Hannah Arendt em sua obra Sobre a Revoluo.

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    entre os dois autores e, de fato, alguns recortes das teses arendtianas corroboram com a tese

    da contiguidade entre democracia e totalitarismo.

    Em seguida, so analisadas algumas divergncias entre os pensamentos dos dois

    autores, como a teoria arendtiana do juzo poltico, que afasta o diagnstico de Agamben da

    contiguidade entre democracia e totalitarismo, pois, a forma com que Arendt define o juzo

    poltico serve como um timo parmetro para diferenciar democracia e totalitarismo.

    Mesmo uma democracia em crise no a mesma coisa que um sistema totalitrio, e Arendt

    argumenta muito bem nesse sentido falando sobre a possibilidade do juzo poltico ser

    formado em conjunto com as democracias e da impossibilidade disso acontecer nos

    sistemas totalitrios.

    Por ltimo, apresentada uma interpretao biopoltica da teoria de Arendt apoiada

    nas consideraes de Andr Duarte e uma tentativa de afast-la, mostrando que se fizermos

    uma leitura do todo da obra de Arendt, a teoria arendtiana est muito longe dos

    pressupostos biopolticos.

    Depois, desenvolvida a tese de que as teorias de Agamben e Arendt no podem ser

    aproximadas, pois elas divergem sobre a fundao do corpo poltico. Por consequncia

    dessa divergncia, cada autor tem noes diametralmente opostas sobre direito, poder e

    violncia, e a relao entre eles. Alm disso, pensando a fundao de forma diferente de

    Agamben, a tese da contiguidade entre democracia e totalitarismo totalmente afastada por

    Arendt.

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    CAPTULO 1

    O diagnstico poltico de Arendt aps o fenmeno totalitrio: o esforo paracompreender o incompreensvel

    A inteno desta dissertao mostrar que Arendt e Agamben concebem a poltica

    contempornea de formas diferentes, principalmente no tocante relao entre poltica e

    direito. O autor italiano atribui poltica e ao direito contemporneo um carter

    essencialmente violento, pois tem como pressuposto terico a definio de Carl Schimitt

    em seu livro Teologia Poltica, que diz que o soberano aquele quem decide sobre o Estado

    de Exceo, e deste pressuposto conclui que o Estado de Exceo tende cada vez mais a se

    apresentar como o paradigma de governo dominante na poltica contempornea 3, mesmo

    nos governos democrticos. A forma que Agamben pensa a poltica contempornea a partir

    dessa definio de Carl Schimitt ser explorada no decorrer deste estudo. Assim, levando

    em considerao o escopo desta investigao, pretende-se demonstrar que a compreenso

    da poltica para a qual Hannah Arendt quer abrir nossos olhos, e que est atrelada s ideias

    de pluralidade e liberdade, est muito alm de uma compreenso restritiva e mais

    burocrtica da coisa poltica, e que reala apenas a organizao e a segurana da vida doshomens.

    Porm, existe na obra de Arendt um diagnstico de modernidade que enseja certa

    aproximao terica entre ela e o pensador italiano. Este diagnstico surge devido ao fato

    da autora tentar compreender os acontecimentos deste sculo terrvel 4.

    Arendt sempre se sentiu atrada pela atividade de compreender, considerada uma

    atividade mental cclica cuja principal significao, para ela, consistia mais no prprio

    exerccio do que nos resultados. Nos anos 1920, quando ela estava tendo seus primeiros

    contatos com os pensadores da filosofia da existncia (Martin Heidegger e Karl Jaspers),

    acontecia a consolidao do movimento nacional-socialista (nazismo) na Alemanha. O

    3AGAMBEN, Giorgio.Estado de Exceo. 2008, p.13.4KOHN, Jerome.Introduo obra compreender, formao exlio e totalitarismo. 2008, p.10

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    movimento nazista pretendia destruir as estruturas e instituies da sociedade civil que

    haviam se desenvolvido ao longo dos sculos. O crescimento do movimento nazista foi, nas

    palavras de Arendt, um choque de realidade. Arendt percebeu que o fenmeno que estava

    se revelando era algo novo e sem precedentes.

    Escrito entre 1945 e 1949, Origens do Totalitarismo foi publicado em 1951. Neste

    livro, Arendt mostra como o totalitarismo foi uma forma de governo indita na histria da

    humanidade, que se baseava na organizao burocrtica de massas apoiadas no emprego do

    terror e da ideologia. Arendt mostra tambm que, apesar de ter sido uma ruptura histrica, o

    totalitarismo no foi algo que se originou de fora, sua origem foi engendrada dentro da

    modernidade ocidental.

    Podemos pensar que, ao se tratar da origem do totalitarismo, Arendt est tentando

    dar uma explicao para o surgimento do fenmeno totalitrio, porm, no isso que a

    autora est propondo. Arendt no trabalha com a ideia de explicao que remete

    naturalmente ideia de causalidade, mas com a noo de cristalizao, ou seja, com

    elementos subterrneos que se cristalizam em uma nova forma de governo5. Arendt diz:

    Os elementos do totalitarismo formam suas origens se por origens nocompreendermos causas. A causalidade, isto , um fator de determinao deum processo de acontecimentos no qual um acontecimento sempre causa e pode

    ser explicado por outro, provavelmente uma categoria inteiramente estranha efalsificadora no reino das cincias histricas e polticas. Os elementos, por simesmos, provavelmente nunca causam nada. Tornam-se origens deacontecimentos se e quando se cristalizam em formas fixas definidas. Ento, eapenas ento podemos retraar a sua histria. O acontecimento ilumina seu

    prprio passado, mas nunca pode ser deduzido do mesmo. 6

    O livro estruturado em trs partes, a saber: antissemitismo, imperialismo e

    totalitarismo. Para Arendt, o antissemitismo moderno, que corresponde primeira parte do

    livro, no se confunde com o antigo dio pelos judeus de inspirao religiosa. O

    antissemitismo passou a ser uma ideologia laica, relacionada s condies da sociedadeeuropeia do sculo XIX, que atribuiu novos papis aos judeus: eles deixam de ser

    banqueiros das cortes medievais em uma Europa sem Estados-naes e passam a ser

    5KHON, JeromeJ. Introduo. In ARENDT, Hannah.Promessas da Poltica. 2008, p. 13-14.6Apud YOUNG-BRUEHL, E. Op. Cit. p. 195

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    minorias exticas no interior das fronteiras dos emergentes Estados-naes. Os motivos de

    Hitler para atacar o povo judeu no tinham fundamento em uma crena religiosa.

    Os judeus se julgavam a salvo dentro de uma Europa esclarecida, assim, nunca se

    protegeram de modo coeso contra a hostilidade que pesava sobre eles, divididos entre

    judeus assimilados e a maioria que se recolheu s suas tradies e evitou tomar parte na

    vida poltica ou social dos pases onde viviam.

    Nenhum dos dois grupos estava a salvo da hostilizao e de acabarem sendo vtimas

    de julgamentos preconceituosos, tanto os prias quanto os assimilados.

    Arendt mostra, em Origens do Totalitarismo, 7como Benjamin Disraeli, primeiro-

    ministro da rainha Vitria da Inglaterra, teve papel fundamental para arraigar na cultura

    europeia o exotismo dos judeus. Disraeli era uma figura excntrica que explorou ao

    mximo a aura de mistrio que pairava sobre ele, contribuindo para a ideia de que os judeus

    eram um povo dotado de uma capacidade inata para a conspirao. Para Arendt, Disraeli

    um dos culpados pela convico de que os judeus constituiriam uma fora internacional

    capaz de manipular as alavancas da poltica mundial.

    Esse antissemitismo laico recebeu um forte impulso com o caso Dreyfus, que

    ocorreu na Frana entre o final do sculo XIX e incio do sculo XX. Dreyfus, oficial do

    Estado Maior francs, foi injustamente acusado de espionagem em favor da Alemanha, por

    um processo em que o verdadeiro culpado foi acobertado por seus colegas de farda e em

    um ambiente onde o antissemitismo, obviamente, teve a sua funo. A campanha

    promovida pelos anti-dreyfusards 8 mobilizou contra os judeus uma violncia que

    antecipava o que iria acontecer na Alemanha nazista. Aqui, entra em cena um novo e

    crucial personagem, a ral. Para Arendt, a ral fundamentalmente um grupo no qual

    so representados resduos de todas as classes. Entre uma coisa e outra haveria uma figura

    intermediria, as massas, contingente tpico das sociedades urbanas modernas, que, no poracaso, so chamadas de sociedades de massa. Arendt diz:

    7ARENDT, Hannah. Origens do Totalitarismo. 1989, p. 87.8Aqueles que eram contra Dreyfus.

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    O termo massa s se aplica quando lidamos com pessoas que, simplesmentedevido ao seu nmero, ou a sua indiferena ou a uma mistura de ambos, no se

    podem integrar numa organizao baseada no interesse comum, seja partidopoltico, organizao profissional, ou sindicado de trabalhadores. 9

    Uma de suas caractersticas mais marcantes seria a apatia, e at mesmo hostilidade,

    em relao vida pblica. Arendt afirma que nas sociedades modernas, dominadas pelo

    anonimato da multido, as classes sociais propriamente ditas teriam desaparecido,

    substitudas pelas massas que surgiram dos fragmentos da sociedade atomizada. Temos,

    ento: classe, massas e, numa escala aparentemente de degradao, a ral, formada por

    resduos de todas as classes. E desse material que surge, para Arendt, a nata dos lideres

    totalitrios, com especial enfoque no caso nazista:

    Os mais talentosos lderes de massa de nossa poca provinham da aparelhagemconspirativa do partido, onde se misturavam proscritos e revolucionrios. Oantigo partido de Hitler, composto quase exclusivamente de desajustados,fracassados e aventureiros, constitua na verdade um exrcito de bomios10.

    Contingentes importantes dessa camada social forneceram o tipo humano que viu na

    aventura colonial uma oportunidade de ser algum base do nico atributo que os

    distinguia dos povos que dominaram: pertencerem raa branca superior. Arendt mostra

    como o imperialismo levou para vastas extenses do planeta a quebra e o ataque das

    tradies do humanismo iluminista, e o ataque mais arrasador aos direitos do homem de

    que os povos da Europa poderiam ser acusados, antecipando o esprito totalitrio. Terras e

    povos inteiros caram sob o domnio no da lei, mas do decreto. Faz-se notrio que as

    primeiras experincias com campos de concentrao, bem como os assassinatos em massa

    conhecidos pelo eufemismo de massacres administrativos, datam dessa poca e foram

    criaes da burocracia colonial na frica.

    Na Europa, os movimentos pan-eslavos e pan-germnicos faziam seu caminho nos

    dois pases que perderam ou chegaram tarde demais corrida imperialista, a Rssia e a

    Alemanha, exatamente aqueles que viveram experincias totalitrias. Na Alemanha, as

    ideias expansionistas logo se revestiram de atrao especial para os desenraizados no

    9ARENDT, Hannah. Origens do Totalitarismo. 1989, p. 361.10Ibidem, p. 367

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    contexto da turbulenta Repblica de Weimar, na qual uma espcie de nacionalismo tribal

    comeou a procurar inimigos, e os encontrou nos judeus. Com efeito, ao final da Primeira

    Guerra Mundial, a humilhao, a perda da esperana e a hiperinflao do final dos anos 20

    e seus nveis desesperadores de desemprego criaram condies para que algum da raldesse incio a algo sem precedentes. Como Arendt sublinha no final do livro, uma vez

    tendo irrompido na histria, o totalitarismo, da mesma maneira que outras formas de

    governo, por mais monstruoso que seja, tende infelizmente a ficar conosco de agora em

    diante... como potencialidade e como risco11.

    As solues totalitrias podem muito bem sobreviver queda dos regimestotalitrios sob a forma de forte tentao que surgir sempre que pareaimpossvel aliviar a misria poltica, social e econmica de um modo indigno dohomem 12.

    Essa advertncia final pretende ter uma abrangncia terica para alm do contexto

    especfico que viu nascer o totalitarismo na Alemanha nazista e na Rssia Stalinista. Arendt

    insiste na anlise da cristalizao do fenmeno totalitrio e na conjuno de duas

    experincias modernas de forma alguma exclusivas desses dois pases: o desenraizamento e

    a superfluidade que atormentavam as massas modernas desde o comeo da revoluo

    industrial e o colapso das instituies polticas e tradies sociais do nosso tempo 13. Nesse

    sentido, o impiedoso processo no qual o totalitarismo engolfa e organiza as massas pareceuma fuga suicida dessa realidade.

    Outros dois elementos analisados por Arendt so o isolamento e a solido do

    homem moderno. O isolamento, um dos elementos cristalizadores da experincia totalitria,

    no lhe exclusivo, pois qualquer tirania tambm no poderia existir sem destruir a esfera

    da vida pblica, isto , sem destruir, atravs do isolamento dos homens, suas capacidades

    polticas.14Mas, alm disso, o totalitarismo destri tambm a vida privada, seja pelo terror

    que transforma cada cidado em um suspeito, seja por engoli-lo em um turbilho quetransforma cada homem em pea descartvel de um movimento incessante sempre em

    11Ibidem, p. 3112Ibidem, p. 51113Ibidem, p. 52814Ibidem, p. 527.

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    busca de inimigos, que podem ser qualquer um. O totalitarismo, assim, lhe parece a mais

    horrvel forma de governo, pois no se limita a destruir o espao pblico, como faz

    qualquer tirania que se preze, acrescentando ao isolamento a experincia de sentir-se

    desamparado e, portanto, sozinho. Arendt diz que o totalitarismo se baseia na solido, naexperincia de no se pertencer ao mundo, que uma das mais radicais e desesperadas

    experincias que o homem pode ter15.

    Arendt ainda analisa a lgica inerente maneira totalitria de pensar. O pensamento

    totalitrio elege leis histricas, como a sobrevivncia dos mais aptos, no caso do nazismo,

    ou a sobrevivncia da classe mais progressista, no caso do comunismo, condio de

    premissas; e, a partir da, operando dentro do principio da fuga suicida da realidade, tudo se

    encaixa num processo de deduo torpe, mas lgico.

    Outro esforo de Arendt para compreender o fenmeno totalitrio a sua obra Entre

    o Passado e o Futuro16, que tem por objetivo analisar a lacuna entre o passado e o futuro.

    Esta lacuna significa para ela a profunda crise em que se encontra o mundo contemporneo,

    que se traduz pela ruptura da tradio. Para a autora, essa lacuna possibilitou o surgimento

    do totalitarismo. Uma de suas concluses analisando o fenmeno totalitrio que no

    existem limites s deformaes que o homem pode chegar e que a organizao burocrtica

    de massas, baseada no terror e na ideologia, criou novas formas de governo e dominao,cuja perversidade tem grandeza17.

    Diante do fenmeno totalitrio, os padres morais e as categorias polticas que

    compunham a continuidade histrica da tradio ocidental se tornaram inadequados para

    fornecer as regras para a ao, para entender a realidade histrica e os acontecimentos que

    criaram o mundo moderno e para inserir perguntas relevantes no quadro de referncia da

    perplexidade contempornea 18.

    Na supracitada obra, Arendt afirma que Marx, Kierkgard e Nietzsche anteciparamesta ruptura da tradio no campo intelectual, tendo Hegel como ponto de partida. Hegel foi

    15Idem.16ARENDT, Hannah.Entre o passado e o futuro. 2000, p. 28.17LAFER, Celso. Hannah Arendt. Pensamento, persuaso e poder.2003, p. 52.18Idem.

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    o primeiro a se afastar de todos os sistemas de autoridade, uma vez que, ao vislumbrar o

    desdobrar completo da histria mundial numa unidade dialtica, minou a autoridade de

    todas as tradies, sustentando a sua posio apenas no fio da prpria continuidade

    histrica19. Alm disso, toda a histria da filosofia ocidental construda no conflito entre omundo das aparncias e o mundo das ideias verdadeiras perdeu seu significado quando

    Hegel demonstrou a identidade ontolgica da ideia e da matria em movimento dialtico.

    Marx, Kierkgard e Nietzsche, tendo Hegel como ponto de partida, descobriram

    pontos conflitantes entre a contemporaneidade e a tradio.

    Kierkgard atribui ao homem a qualidade de sofredor, em contraste com o conceito

    tradicional do homem como ser racional. Assim, o que ele faz subverter a relao

    tradicional entre f e razo, pois ele acredita que da dvida chegamos crena, e no se

    chega razo como afirmava o cogito cartesiano 20. Os resultados da cincia

    contempornea ajudaram a perdermos o senso comum, trazendo uma falta de confiana

    para o homem. Arendt observa que a cincia contempornea parte da rejeio do senso e da

    linguagem comuns, para assim tentar descobrir o que se esconde atrs dos fenmenos

    naturais. A fuga da linguagem comum para uma linguagem cientfica esvaziou de sentido a

    nossa percepo concreta; converteu, atravs da mediao tcnica, o nosso meio ambiente

    em objetos criados pelo homem; e conseguiu modificar, atravs da ao humana, odesencadeamento dos prprios processos da natureza.

    Diluiu-se a tradicional distino entre natureza e cultura, sendo que o homem,

    quando se confronta com a realidade objetiva, no encontra mais a natureza, mas se

    desencontra de si mesmo, isto , de objetos que criou e processos que desencadeou, que

    funcionam, mas que ele no entende, pois no capaz de atribuir significado a eles devido

    perda da linguagem comum.

    Insistindo na vontade de poder do homem e na produtividade da vida, Nietzschetambm se ops ao conceito tradicional de homem como ser racional. Porm, o

    sensualismo da vida s faz sentido no quadro de referncia da subverso ao suprassensual e

    19Ibidem, p. 53.20ARENDT, Hannah.Entre o passado e o futuro. 2000, p. 63.

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    ao transcendente. Da o Niilismo Nietzschiano encontra bice no conflito entre a

    contestao de valores transcendentais, elaborados pela tradio e classicamente utilizados

    para medir a ao humana, e a sociedade moderna que dissolveu estes padres,

    transformando-os em valores funcionais, isto , em entidades de troca. Este aspecto dasociedade moderna, longamente analisado por Arendt, fruto da cultura de massas. No

    sculo XX, a ignorncia da classe mdia em ascenso fez da cultura um instrumento de

    mobilidade social e deu origem desvalorizao dos valores, assim, a sociedade de massas

    contempornea deu seguimento a esse processo ao consumir cultura na forma diverso. A

    diverso, que o que se consome nas horas livres entre o trabalho e o descanso, est ligada

    ao processo biolgico vital e, como processo biolgico, o seu metabolismo consiste na

    alimentao de coisas21. O problema desse processo est no fato de que a indstria da

    diverso est confrontada com apetites imensos e os processos vitais da sociedade de

    massas podero vir a consumir todos os objetos culturais, assim, destruindo-os. A

    sociedade de massas se orientou por essa atitude de consumo devorador e dificilmente

    modificar essa tendncia. Arendt afirma que o cio e a cultura animi que recompunham na

    tradio ocidental a mediania entre diverso e cultura, no constituem uma resposta

    adequada para a perplexidade de um niilismo que no encontra obstculos nos valores

    vigorosos criados pela cultura, mas se esvai no contato indigno com a diverso 22.

    Por sua vez, Marx asseverou a incompatibilidade entre o pensamento clssico e as

    condies polticas da modernidade. A teoria de Marx rompeu com a tradio atravs da

    radicalidade de alguns de seus conceitos bsicos. O primeiro a mxima marxiana de que o

    trabalho cria o homem, o que equivale a dizer que o homem cria a si mesmo pelo trabalho,

    ento, o que caracteriza o homem no ser um animal racional, mas sim um animal que

    trabalha, um anima laborans. Alm de que, esta posio implica em um ataque a Deus,

    como criador do homem, numa reavaliao do trabalho que at ento fora uma atividade

    desprezada em termos de problemtica filosfico-poltica e uma afronta tradicional

    dignidade da razo. O segundo ponto a ideia de Marx de que a violncia a parteira da

    histria. Atribuir violncia um papel to importante uma afronta ideia tradicional, que

    21LAFFER, Celso.Hannah Arendt. Pensamento, persuaso e poder.2003, p. 54.22ARENDT. Hannah.Entre o passado e o futuro. 2000, p. 249.

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    teve origem com os gregos antigos, de que os homens tm a faculdade especfica de

    conduzir os negcios atravs da persuaso. Os gregos acreditavam que os homens so livres

    e, portanto, capazes de se persuadirem pela palavra. A violncia no contexto tradicional

    sempre foi encarada como ultima ratio, aplicada apenas na relao entre brbaros, na qualimperava a coero e no a persuaso; e nos escravos que eram forados a trabalhar, motivo

    pelo qual sua atividade no era digna, pois no implicava no uso dialgico da palavra. E,

    por ltimo, o conceito de Marx de atualizar a filosofia na poltica, que implica no fim de

    um ciclo de pensamento iniciado por Plato quando este afastou a filosofia da poltica. Este

    salto de Marx trouxe profundas modificaes ao conceito de histria, com influncia na

    ruptura entre a modernidade e a tradio.

    Segundo os gregos, a circularidade da vida biolgica conferia natureza o seucarter de imortalidade, em contraposio mortalidade concreta dos homens. Porm, o

    tempo retilneo de uma vida individual pode abrigar feitos e acontecimentos que, pela sua

    singularidade, merecem ser conservados. A funo tradicional da histria seria a de

    registrar tais feitos e acontecimentos, assim, garantindo a imortalidade do homem na Terra.

    Esta viso de histria sofreu mudanas quando Giambatista Vico enfrentou o problema da

    distino entre processos naturais e processos histricos. Conforme afirma Vico, a natureza

    feita por Deus e s Ele pode compreender os seus processos, porm, a histria feita pelo

    homem, que, portanto, pode entender os processos que ele mesmo desencadeou.

    Porm, para Vico e Hegel, a histria tem uma relevncia terica, pois se trata de

    uma viso a posteriori dos acontecimentos, na qual o historiador, porque observou a

    totalidade do processo, pode abraar o seu sentido. Marx, ao propor a atualizao da

    filosofia na poltica, politizou e industrializou o conceito de histria, subvertendo o seu

    significado terico 23. A filosofia de Marx se baseava na preocupao hegeliana da

    histria, s que a histria deixou de ser uma compreenso do passado para ser uma projeo

    do futuro, isto , a histria passou a ser um molde dado pela contemplao para a ao

    humana. Para Marx, a finalidade da histria a atualizao da ideia de liberdade. Este

    processo revelado pelas leis da dialtica e o seu contedo a luta de classes. Contudo,

    23LAFER, Celso. Hannah Arendt. Pensamento, persuaso e poder.2003, p. 56.

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    este processo anlogo fabricao industrial, isto , tem comeo, meio e fim; onde o fim

    a fabricao da sociedade perfeita. Dessa forma, deixa de existir a imortalidade e

    grandeza dos feitos e acontecimentos humanos, pois, quando este processo se encerrar,

    tornar irrelevante tudo o que aconteceu antes dele. Na sociedade sem classes de Marx osfeitos humanos tero o mesmo significado que as tbuas e os pregos para uma mesa

    acabada 24. Esta superposio da teoria e da ao dissolveu o significado tradicional de

    ambas, tanto nos termos prprios de Marx quanto nos termos das tendncias do pensamento

    contemporneo. O conceito de Marx da atualizao da filosofia na poltica levada s suas

    ltimas consequncias chega a algo paradoxal, pois ela implicar o fim do trabalho com o

    advento do cio, o fim da violncia com o fim do Estado, e o fim do pensamento, pois este

    estar realizado na histria. Da o desencontro entre os conceitos que glorificam o homem

    que trabalha, a violncia e a atualizao da filosofia, e a viso utpica final de uma

    sociedade sem Estado, sem trabalho e sem classes.

    O impacto do pensamento de Nietzsche, Marx e Kierkgard foi fulcral para a ruptura

    com a tradio que ocorreu. A contestao dos trs filsofos tradio, por ser uma

    contestao, ainda se integrava na mesma tradio, por isso, talvez, conseguiram eles

    manter no horizonte de suas formulaes uma aspirao de totalidade 25. Porm, suas ideias

    ajudaram na ruptura da tradio e trouxeram o desaparecimento de uma viso totalizadora,

    que, junto com a ntida delimitao implcita na ideia de modelo, ocasionou a mudana da

    noo de teoria. Agora, teoria um sistema de verdades interligadas que no foram feitas

    nem construdas, mas dadas para os sentidos e razo, para se transformar numa hiptese

    de trabalho que se modifica de acordo com os seus resultados e cuja validade depende no

    de uma revelao de verdade, mas do fato de funcionar. Tudo pode, eventualmente,

    funcionar, e a experincia do totalitarismo comprova no mundo dos fatos a tendncia das

    orientaes do pensamento antes relatada. Portanto, na contemporaneidade houve uma

    perda do senso comum, uma dissoluo dos valores e uma nova concepo de teoria e tudo

    isso ocorre, para Arendt, devido ruptura da tradio.

    24ARENDT, Hannah. Entre o Passado e o Futuro. 2000, p. 65.25LAFER, Celso. Hannah Arendt. Pensamento, persuaso e poder.2003, p. 57.

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    Outro diagnstico da modernidade na obra de Arendt a ameaa do conformismo.

    Arendt diz que os norte-americanos enxergam as experincias com o totalitarismo, seja na

    forma de um movimento totalitrio ou de uma franca dominao totalitria, como

    experincias no americanas, muitas vezes considerando que experincias como o nazismoe o bolchevismo no podem ocorrer nos Estados Unidos. Porm, ela via no macarthismo

    uma prova de que o totalitarismo poderia se realizar nos Estados Unidos tambm, pois

    havia semelhanas sinistras nos comits de investigao do macarthismo com a

    metodologia totalitria, inclusive a tradicional inveno de um mito conspiratrio.

    Arendt ressalta outra questo deste problema. Ela notava como os europeus

    divulgavam pouco a sua oposio ao macarthismo, pois predominava na Europa que todos

    os americanos so da mesma opinio nesse assunto, ignorando a opinio individual de cadacidado americano e generalizando-os. Para Arendt, surgia uma expectativa europeia de

    encontrar uma espcie de conformismo que dispensa a violncia ou ameaas e que brota

    espontaneamente numa sociedade que condiciona com tal perfeio os cidados a suas

    exigncias e ningum percebe que est condicionado. Os europeus sempre enxergaram essa

    caracterstica na democracia norte-americana.

    Arendt explica que em termos histricos o conflito europeu do indivduo contra o

    Estado sempre foi resolvido em detrimento da liberdade individual. Os americanostomaram esse fato como prova do sacrifcio das liberdades humanas ao Estado. Para os

    europeus, a situao era vista como um conflito entre Estado e sociedade, de modo que o

    individuo, mesmo que suas liberdades fossem violadas pelo governo, sempre poderia

    encontrar um refgio seguro em sua vida social privada. Apenas a dominao totalitria e

    nenhum outro governo conseguiu destruir esse refgio da esfera social privada. O medo dos

    europeus era de que nos Estados Unidos no houvesse o refgio das liberdades individuais,

    justamente porque julgavam que nos Estados Unidos no havia uma distino entre

    governo e sociedade. O maior receio europeu era que, num governo majoritrio, a prpria

    sociedade seria opressora, sem deixar espao para as liberdades individuais.

    Arendt cita Tocqueville dizendo que sempre que as condies sociais so iguais, a

    opinio pblica exerce uma presso com peso (to) enorme sobre a mente de cada

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    indivduo que a maioria no precisa obrig-lo, ela o convence26, a coero no violenta da

    desaprovao pblica to grande que o dissidente no tem para onde se voltar, e no final

    ser levado ao conformismo ou ao desespero. O que os europeus temiam que no fossem

    necessrios a violncia e o terror para que desaparecesse a liberdade nos Estados Unidos.

    Arendt afirma que o risco do conformismo e a ameaa que ele representa para a

    liberdade so inerentes a todas as sociedades de massas. O fenmeno totalitrio se valeu do

    horror e da propaganda ideolgica para massificar de vez a sociedade e acabar com

    qualquer resqucio de classe ou casta que pudesse existir. Numa sociedade de massas j

    existente no inconcebvel que os elementos totalitrios possam por algum tempo

    basearem-se no conformismo, sem precisar valerem-se do terror e da propaganda

    ideolgica. Arendt diz que nos estgios iniciais do regime totalitrio o conformismopoderia ser usado para diminuir a violncia do terror e a insistncia ideolgica; com isso, a

    transio de um ambiente livre para uma fase pr-totalitria seria menos perceptvel 27.

    Arendt afirma que os Estados Unidos s tm ficado imune aos riscos de uma

    sociedade de massa por manter uma Constituio intacta e garantir que as instituies da

    liberdade funcionem. Esse tema ser abordado no prximo captulo desta dissertao. Para

    Arendt, os riscos do conformismo e das sociedades de massas so bem maiores justamente

    por elas no poderem contar com um sistema de salvaguarda constitucional to forte epreparado quanto o dos Estados Unidos. Porm, Arendt identifica o risco do conformismo e

    da sociedade de massas como uma caracterstica inerente modernidade, sendo esse um

    dos problemas centrais do mundo.

    Outra caracterstica que Arendt atribui modernidade a aparncia de necessidade

    e a admirao que as pessoas tm por essa necessidade. Arendt afirma que os piores crimes

    de sua poca foram perpetrados em nome de algum tipo de necessidade ou em prol da

    onda do futuro

    28

    . Ela diagnosticou que as pessoas se submetem necessidade, abrindomo da sua liberdade e seu direito de ao, mesmo podendo vir a pagar com a morte por tal

    submisso.

    26ARENDT, Hannah. Compreender, ensaios; A ameaa do conformismo. 1994, p. 441.27Idem.28ARENDT, Hannah. Compreender, ensaios; Franz Kafka, uma reavaliao. 1994 p. 98.

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    Arendt tambm identifica na modernidade a ascenso da burocracia, isto , a

    substituio do governo pela administrao e das leis por decretos arbitrrios. E, para ela, a

    conjugao da admirao pela necessidade com a ascenso da burocracia levou a

    modernidade a acreditar no determinismo. Considerando a vida um declnio que leva morte, a sociedade em dissoluo acompanha cegamente o curso natural da runa. Arendt

    ressalva que apenas a salvao vem do inesperado, no a runa, pois a salvao, e no a

    runa, que depende da vontade e liberdade dos homens. Na modernidade, as estruturas

    ruinosas foram sustentadas e o prprio processo da runa foi acelerado pela crena quase

    universal num processo necessrio e automtico ao qual o homem deve se submeter. Para

    Arendt, os burocratas possuem certa f na necessidade, da qual eles so funcionrios. O

    homem como funcionrio da necessidade se torna um agente da lei natural da runa, assim

    se degenerando em um instrumento natural de destruio, que pode ser acelerada pelo uso

    pervertido das capacidades humanas. Arendt se vale de uma analogia para explicar o que

    acontece quando o mundo passa a ser regido pela lei natural e no pelas leis humanas:

    assim como uma casa abandonada pelos homens a seu destino natural pouco a pouco

    seguir o curso da runa, que, de certa maneira, intrnseco a todas as obras humanas, da

    mesma forma seguramente o mundo, criado pelos homens e constitudo de acordo com as

    leis humanas, e no naturais, ir se tornar de novo uma parte da natureza e seguir a lei da

    runa assim que o homem decidir se tornar ele prprio parte da natureza 29. Para Arendt,

    quando o homem abre mo de sua faculdade de criar leis e at mesmo de prescrev-las

    natureza, ele se torna um instrumento cego e afiado das leis naturais, o que s leva ao

    declnio do mundo.

    Conforme o que foi exposto acima, podemos ver que Arendt possui uma crtica

    modernidade, pensando a crtica como uma criao de possibilidades de entender um

    problema como problema, ao mesmo tempo em que a crtica aparece como um convite para

    pensar em conjunto os problemas que se criticam 30. O diagnstico feito por Arendt um

    alerta para a maneira como estamos nos portando enquanto humanos em relao nossa

    29Ibidem,p. 101.30NASCIMENTO, Wanderson Flor do. O lugar da crtica no pensamento de Hannah Arendt. 2010,p. 222.

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    humanidade. Contudo, a crtica arendtiana vem no sentido de tentar pensar de que maneira

    podemos recuperar a dignidade da poltica.

    Nos prximos captulos, ser mostrado de que forma Arendt aponta caminhos de

    luz em meio ao seu sombrio diagnstico da modernidade. Tambm vamos apontar o

    diagnstico que Agamben possui da modernidade, mostrando alguns pontos de confluncia

    entre as duas teorias, e como os dois autores acabam chegando a lugares bem diferentes,

    principalmente no tocante relao entre direito e poltica, apesar de terem um ponto de

    partida semelhante, o diagnstico da modernidade.

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    CAPTULO 2

    Conceitos centrais da teoria poltica de Hannah Arendt e de Giorgio Agamben

    Seguindo o objetivo desta pesquisa de comparar as teorias polticas de Giorgio

    Agamben e Hannah Arendt, tendo como foco as leituras que os dois fazem do vnculo entre

    direito e democracia, percebe-se que Agamben afirma que seu pensamento influenciado

    pela obra Arendtiana, porm, para o filosfo italiano, a obra de Arendt no foi

    completamente desenvolvida por ela e por nenhum de seus seguidores no que tange traar

    uma conexo entre o poder totalitrio e a vitria do animal laborans, que faz com que a

    vida nua seja o centro da cena poltica da modernidade . Agamben pretende, ento, dar

    continuidade obra de Hannah Arendt.

    Neste trabalho ser mostrado que mesmo Agamben se apropriando de algumas teses

    arendtianas, como ele mesmo diz, e os dois autores tendo como ponto de partida os

    diagnsticos da situao poltica na modernidade, as formas pelas quais eles concebem a

    poltica contempornea so diferentes uma da outra, principalmente na articulao entre

    direito e democracia.

    Para isso, necessrio apresentar os principais conceitos da teoria poltica de

    Hannah Arendt e de Giorgio Agamben, e assim mostrar qual a concepo que os dois

    possuem da poltica31. Posteriormente, sero analisadas quais teses Arendtianas so lidas e

    apropriadas por Agamben, mostrando quais diagnsticos de poca so aceito por ambos os

    autores. Por ltimo, sero abordadas as diferenas marcantes entre os autores em suas

    concepes da poltica contempornea.

    Neste captulo, em especfico, sero apresentadas as principais categorias dasteorias polticas desses autores que servem de substrato a todas as reflexes feitas por eles,

    para depois mostrar como Agamben l a obra de Hannah Arendt e se apropria dela.

    31No primeiro captulo, foi apresentado o diagnstico que Arendt faz da modernidade, porm, ainda no seapresentou qual a sua concepo de poltica. Neste captulo, sero mostradas quais categorias ela usa paraconceber a poltica como liberdade.

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    A seguir, sero apresentadas as noes fundamentais do pensamento poltico de

    Hannah Arendt.

    2.1 A noo arendtiana de poltica

    Para chegar sua concepo de poltica, Arendt se vale da expresso victa activa. A

    filsofa diz que essa expresso to antiga quanto a nossa tradio de pensamento poltico,

    e que essa tradio atribuiu um significado especfico expresso. Esse significado teve

    incio com o julgamento de Scrates, perpassando a idade medieval com Agostinho. O

    significado que a tradio atribui vita activa o de uma vida dedicada aos assuntospblicos e polticos. Porm, com o fim da cidade-estado e, segundo Arendt, Agostinho

    foi o ultimo a vivenciar a cidade-estado , a expresso perdeu o seu significado poltico e

    passou a significar toda e qualquer atividade nas coisas deste mundo.

    A vita activa sempre esteve em oposio vita contemplativa, e durante toda a

    tradio houve uma hierarquizao entre esses dois modos de vida. Como a tradio

    acreditava que o homem s chegaria verdade atravs de uma revelao, ou contemplao,

    a vita contemplativa era privilegiada e tida como superior em relao vita activa32

    .Hannah Arendt se vale da expresso vita activa em manifesto conflito com a tradio, pois

    altera a ordem da hierarquia entre vita activa e vita contemplativa. Em Arendt, a expresso

    continua a significar toda e qualquer atividade nas coisas deste mundo, porm,

    diferentemente de toda a tradio, a vita activa mais valorizada do que a vita

    contemplativa33

    .

    Com a expresso vita activa, a filsofa pretende designar trs atividades humanas

    fundamentais: trabalho, obra e ao. Para ela, essas so atividades fundamentais, pois a

    cada uma delas corresponde uma das condies bsicas mediante as quais a vida foi dada

    32Hannah Arendt alega que, desde a filosofia de Plato, a contemplao tem mais valor do que as atividadeshumanas. Essa ideia foi reforada com o advento da doutrina da revelao do cristianismo e se manteve comtoda a histria da filosofia.33ARENDT, Hannah.A Condio Humana. 2010, p. 20.

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    ao homem na Terra 34. Essas condies bsicas mediantes as quais a vida foi dada ao

    homem na Terra so o que a filsofa chama de condio humana. Vale a pena ressaltar que

    a expresso condio humana difere da expresso natureza humana. Arendt no est

    preocupada em investigar algo como uma natureza, ou uma essncia humana. A expressocondio humana usada, pois, para a pensadora, a existncia humana condicionada,

    ou seja, tudo aquilo que o homem entra em contato torna-se imediatamente uma condio

    de sua existncia. A condio humana a forma em que o homem existe e se manifesta na

    Terra.

    interessante observar que a condio humana se divide em atividades distintas,

    porm, articuladas, e, por isso, Arendt chama esse conjunto formado pelo trabalho, obra e

    ao de vida ativa. O homem sempre est condicionado a essas trs atividades. A primeiraatividade da vita activa o trabalho:

    O trabalho a atividade que corresponde ao processo biolgico do corpohumano, cujo crescimento espontneo, metabolismo e eventual declnio tm a vercom as necessidades vitais produzidas e introduzidas pelo trabalho no processoda vida. A condio humana do trabalho a prpria vida. 35

    Como o trabalho aquilo que assegura a sobrevivncia do indivduo (e, segundo

    Arendt, tambm da espcie atravs da reproduo), ele se torna algo necessrio e

    inalienvel ao homem. Trabalhar essencial para o homem sobreviver, ou seja, na

    atividade do trabalho no existe liberdade, o homem se encontra escravizado por essa

    necessidade. Tanto que na antiguidade os homens se valiam do artifcio da escravido, mas

    no para obter mo de obra barata nem instrumento de explorao para fins de lucro, mas

    sim na tentativa de afastar as necessidades do trabalho das condies da vida humana. Os

    escravos eram aqueles que no possuam liberdade alguma, s possuam necessidades. A

    degradao do escravo era um fardo pior do que a morte, pois implicava a transformao do

    homem em algo semelhante a um animal domstico. O trabalho uma atividade queequipara o homem a um animal, ou seja, o homem, quando est trabalhando, no passa de

    um animal, o que Arendt chama de animal laborans. Para a filsofa, o animal laborans,

    34Ibidem,p. 15.35Idem.

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    realmente, apenas uma das espcies de animais que vivem na Terra na melhor das

    hipteses, a mais desenvolvida 36.

    Aqui, vlido explicar o que Arendt entende por necessidade: aquilo que

    constrange o homem de tal forma que impede qualquer resistncia 37. A filsofa

    exemplifica sua ideia de necessidade com as necessidades biolgicas, se o homem resistir

    s suas necessidades biolgicas, ele morre. Contudo, a necessidade no se resume s

    biolgicas, qualquer situao que impede o surgimento do novo, impondo um

    comportamento determinado aos homens, uma situao em que a necessidade prevalece 38 39. Tambm decorre dessa ligao entre o trabalho e as necessidades biolgicas do ser

    humano o fato de o trabalho ser algo que uniformiza os homens. Quando esto na atividade

    do trabalho, todos os homens possuem as mesmas necessidades, as necessidades vitais, etambm possuem um nico objetivo, que saci-las. Em termos biolgicos, os homens de

    fato se equivalem, no havendo diferenas entre eles. Em decorrncia disso, o homem no

    capaz de ser livre enquanto trabalha, nem de deixar sua singularidade categoria que

    expressa o fato de cada homem ser diferente do outro aparecer e trazer ao mundo algo

    novo. O conceito de singularidade tambm fundamental para entender a concepo

    poltica de Hannah Arendt. Para auxiliar sua explanao sobre a singularidade, Arendt

    recorre noo de uniformidade, que, segundo ela, a negao de que os homens existem

    no plural. Para Arendt, cada homem nico, ou seja, cada um diferente de todos os outros

    que existem sobre a Terra. Por cada homem diferir-se um do outro, Arendt diz que eles so

    singulares. Devido a essa singularidade, impossvel conhecer um indivduo abstrado de

    suas particularidades. essa singularidade que caracteriza o humano.

    36Ibidem, p. 95.37BRITO, Renata Romolo.Ao poltica em Hannah Arendt.2007,p. 27.38Idem.39Arendt tambm diz que o raciocnio caracterizado pela necessidade; uma vez que ele opera pelo principioda no contradio. A concluso decorrente do raciocnio lgico sempre necessria, contudo, isso no querdizer que ela, a concluso, condiz com a realidade. Como j dizia Aristteles, em sua obra Organon,no porque uma coisa possui validade lgica que ela verdadeira.

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    Um conjunto de homens singulares constitui uma humanidade plural. Afirmar a

    pluralidade significa dizer que os homens so diferentes entre si. Portanto, uma ideia de

    igualdade humana baseada em uma natureza humana comum rejeitada pela autora. Aqui,

    se faz necessrio distinguir a ideia de natureza humana (que a autora recusa) e a ideia decondio humana (da qual a autora se vale). Para a pensadora, condio humanano o

    mesmo que natureza humana. A ideia de natureza humana busca trazer uma essncia que

    inerente a todos os homens. Essa ideia de essncia uniformiza os homens, assim

    suprimindo a singularidade de cada um e a pluralidade da humanidade. Portanto, Arendt

    rejeita totalmente uma natureza humana. Para a pensadora, no faz sentido a questo o que

    somos ns?, mas sim a questo Quem somos ns?.

    J a condio humana no est relacionada a uma essncia humana. A pensadora sevale da expresso condio humana, pois, para ela, a existncia humana condicionada, ou

    seja, tudo aquilo com que o homem entra em contato torna-se imediatamente uma condio

    de sua existncia. Esses elementos da condio humana no so essenciais, so meros

    condicionantes.

    Arendt tambm apresenta o conceito de natalidade. a condio humana da

    natalidade que permite o surgimento de novos elementos no mundo. O fato de cada ser

    humano, em virtude de seu nascimento, ser novo, significa que todo homem, j ao nascer, dotado de uma singularidade que se constitui no mundo como uma novidade. Dessa forma,

    a natalidade se articula com a singularidade dentro da noo arendtiana que considera a

    especificidade de cada ser humano, pois cada nascimento visto como um evento nico,

    que traz ao mundo um ser diferente de todos os outros. E se articula com a liberdade, pois

    com o nascimento e o surgimento de um novo ser humano ele se constitui como novidade.

    A natalidade atribui ao ser humano a capacidade de criar coisas novas e imprevisveis, e,

    devido sua imprevisibilidade, cada nascimento um milagre que traz nova esperana ao

    mundo.

    No trabalho, o homem est totalmente subjugado ao reino da necessidade. Se

    considerarmos a libertao como ela aparece na obra Da Revoluo, isto , a libertao

    como a luta dos revolucionrios para acabar com a misria e a fome que assolava o povo,

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    ela tambm est relacionada com as necessidades dos homens. Pela libertao ser

    intimamente relacionada s necessidades, a sua busca tambm uniformiza os homens,

    impedindo que a sua singularidade aparea e que eles possam, de fato, ser livres. Aqui,

    necessrio explicar melhor o que a autora entende por libertao. Para Arendt, liberdadeno se ope apenas necessidade, nos termos clssicos da histria da filosofia, mas se ope

    tambm (em termos arendtianos) libertao. A oposio entre liberdade e libertao repe

    a oposio entre liberdade e necessidade no domnio exclusivo da prxis (poltica). A

    libertao a conquista da liberdade na sua acepo negativa, garantida pelos direitos civis,

    mas ela no pode ser confundida com liberdade poltica. A liberdade est para alm da

    libertao. Para voc alcanar a liberdade necessrio que tenha conseguido a libertao

    anteriormente, isto , ter o mnimo de bens materiais para sobreviver e ter garantido alguns

    direitos civis bsicos, e, ainda assim, ter conseguido a libertao no quer dizer que voc j

    tenha a liberdade.

    Outra caracterstica do trabalho no produzir nada durvel. tpico de todo

    trabalho no deixar nada atrs de si; o resultado do esforo do trabalho consumido quase

    to depressa quanto o esforo despendido. E, no entanto, esse esforo, a despeito de sua

    futilidade, decorre de enorme premncia; motiva-o um impulso mais poderoso que qualquer

    outro, pois a prpria vida depende dele 40. A produtividade do trabalho raramente produz

    objetos, sua preocupao fundamental so os meios da prpria sobrevivncia e da

    reproduo; o trabalho nunca produz outra coisa seno vida. O produto do trabalho so

    aquelas coisas necessrias ao processo da vida. Seu consumo mal sobrevive ao ato de sua

    produo, se o produto do trabalho no for consumido logo aps ter sido produzido, ele se

    deteriorar. Devido a essas caractersticas dos produtos do trabalho, eles so o que

    chamamos de bens de consumo. Tudo o que o trabalho produz destina-se a alimentar quase

    que imediatamente o processo da vida humana, e este consumo, regenerando o processo

    vital, (re) produz nova fora de trabalho, que o corpo necessita para o posterior sustento.

    Assim sendo, o trabalho jamais poupa o animal que labora de repeti-lo mais uma vez, pois

    40ARENDT, Hannah.A Condio Humana. 2010,p. 98.

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    sempre haver a necessidade de sustento para o corpo. Portanto, o trabalho uma eterna

    necessidade imposta pela natureza, uma atividade interminvel.

    Mais um predicado do trabalho que ele uma atividade privada. O trabalho priva

    um homem do outro, ou seja, ele ocorre no isolamento. Como diz Arendt, nada mais

    privado que as funes corporais do processo vital 41. O animal laborans expulso do

    mundo pblico na medida em que prisioneiro da privatizao do prprio corpo, restrito

    satisfao de necessidades que ningum pode compartilhar ou comunicar inteiramente.

    Essa a razo pela qual esto relacionados, para Arendt, o trabalho, o espao privado, a

    libertao e a necessidade. Arendt entende o espao privado como um lugar que permanece

    na sombra, sendo um lugar particular e isolado. O espao privado o lugar das questes

    individuais, ou seja, das preocupaes particulares de cada indivduo, e, nele, os homens(ou um pequeno grupo) se isolam uns dos outros, h ausncia dos outros, assim, nessa

    esfera privada pode-se desenvolver assuntos que necessitam do isolamento. Aqui, vlido

    ressaltar a importncia da esfera privada para Arendt, pois a filsofa viveu diante da

    experincia do totalitarismo e se colocou a pensar sobre esse fenmeno e a combat-lo.

    Esse foi sempre um tema vigente em suas obras. E sendo o totalitarismo o regime no qual

    todas as coisas se tornam pblicas, eliminando o espao privado 42, Arendt reconhece a

    importncia desse espao, uma vez que, para ela, na esfera privada que o homem capaz

    de desenvolver sua singularidade.

    Ento, podemos concluir que o trabalho uma atividade ligada necessidade, que

    uniformiza os seres humanos e no produz nada durvel, apenas bens de consumo, e uma

    atividade que isola os homens uns dos outros.

    A segunda atividade apresentada por Arendt a obra. Para Arendt:

    A obra a atividade correspondente ao artificialismo da existncia humana,existncia essa no necessariamente contida no eterno ciclo vital da espcie, e

    cuja mortalidade no compensada por este ltimo. A obra produz um mundoartificial de coisas, nitidamente diferente de qualquer ambiente natural. Dentro desuas fronteiras habita cada vida individual, embora esse mundo se destine a

    41Ibidem,p. 123.42Essa noo de regime totalitrio foi derivada do textoHannah Arendt e a Questo do Poltico,de ClaudeLefort.

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    sobreviver e a transcender todas as vidas individuais. A condio humana da obra a mundanidade. 43

    A atividade da obra caracteriza-se por produzir (fabricar) artifcios, esses artifcios

    so objetos destinados ao uso e dotados de durabilidade. Diferentemente do produto do

    trabalho, que logo consumido, o produto da obra possui durabilidade no mundo, ou seja,

    ele no se extingue logo aps ser utilizado. Portanto, os produtos da obra recebem o nome

    de bens durveis ou objetos de uso.

    A durabilidade dos produtos da obra faz com que a obra seja a atividade que

    constri o mundo, ou seja, ela quem faz as coisas do mundo, e esta durabilidade d s

    coisas do mundo uma relativa independncia dos homens que as produziram e as

    utilizaram. Assim, as coisas do mundo duram mais do que os seus fabricantes mortais, e

    isso atribui certa estabilidade e objetividade ao mundo, fazendo com que os homens possam

    continuar exercendo seu fluxo de mudanas (nascendo e morrendo). tambm a

    durabilidade do mundo que garante que uma gerao no venha a habitar um local

    totalmente diferente da gerao anterior.

    a obra que garante um mundo interposto entre os homens e a natureza. Para

    Arendt, o mundo44 o local onde os homens habitam e, sendo o homem um ser

    condicionado, o mundo um condicionante do homem. O mundo habitado pelos homens

    consiste em coisas produzidas pelas atividades humanas, e, sendo ele fruto desses produtos,

    , portanto, artificial.

    Para fabricar as coisas do mundo com a atividade da obra, o homo faber (expresso

    usada por Arendt pra se referir ao homem que fabrica) precisa de material, mas esse

    material no simplesmente dado e disponvel, o material da fabricao j um produto

    das mos humanas que o retiraram da sua natural localizao. Isso, para Arendt, um

    elemento de violao e de violncia inerente obra, que, alm de usar de violncia para

    extrair o material, tambm usa de violncia para transformar o material no objeto desejado.

    Todo o processo de fabricao violento, e ohomo faber, criador do artifcio humano,

    43ARENDT, Hannah.A Condio Humana. 2010,p.15.44Mundo no coincide com o planeta Terra.

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    um destruidor da natureza, no exatamente em sentido pejorativo, mas sim no sentido de

    quem transforma e controla a natureza. Como a obra o que cria o mundo humano, ela faz

    com que o homem saia da esfera privada. Porm, o homem ainda precisa do isolamento da

    esfera privada na atividade da obra, pois s assim o homo faber capaz de produzir o queest pensando. Aqui, Arendt ressalta mais uma vez a importncia da esfera privada para o

    homem.

    Neste momento, faz-se necessrio explicitar a diferena entre mercado de trocas e o

    palco que a obra constri para a poltica. Arendt diz que o homo faber capaz de ter a sua

    prpria esfera pblica, embora no uma esfera poltica propriamente dita. A esfera pblica

    do homo faber o mercado de trocas no qual ele pode exibir os produtos de sua mo e

    receber a estima que merece45

    . O fato que o homem que fabrica s capaz de serelacionar devidamente com as pessoas trocando produtos com elas, uma vez que sempre

    no isolamento que ele os produz. importante frisar que o mercado de trocas, embora seja

    um espao pblico, no uma esfera poltica. Diferente do mercado de trocas, o palco para

    a poltica que a obra constri no um local do homo faber (embora fabricado por ele). O

    palco poltico dotado da permanncia advinda do produto da obra, e nele que os homens

    aparecem para agir politicamente. A importncia de esse palco ter sido fruto da obra a

    permanncia e a estabilidade que so garantidas para o homem insurgir com o novo e agir.

    Arendt afirma que o que rege a obra so a eficcia e utilidade. Portanto, na atividade

    da obra, o que atua uma razo instrumental do homem. A razo instrumental, base

    operacional da atividade da obra, faz com que o homo faber pense e aja atravs de uma

    lgica utilitarista, ou seja, o homo faber v tudo como um meio para atingir um

    determinado fim. O utilitarismo a prpria generalizao dos princpios do homo faber,

    levando a extremos a instrumentalidade e a identificao de fins com meios. Alis, o

    utilitarismo destri a categoria mesma em que se baseia ao engendrar essa identificao,

    proporcionando um mundo em que qualquer significado impossvel. E, para Arendt,

    nesse mundo que a lgica totalitria funciona. Portanto, a obra uma atividade humana que

    produz bens de uso durveis e, assim, d origem ao mundo humano. Ele um processo

    45ARENDT. Hannah.A Condio Humana. 2010,p. 174.

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    violento regido pelas regras da eficcia, nas quais tudo se torna um meio para atingir um

    determinado fim.

    A ltima atividade da vita activa a ao. Diferentemente do trabalho e da obra,

    Arendt diz que a ao a atividade humana poltica por excelncia, razo pela qual, para

    esta pesquisa, a atividade da ao interessa mais do que as atividades do trabalho e da obra.

    A ao, nica atividade que se exerce diretamente entre os homens sem amediao das coisas ou da matria, corresponde condio humana da

    pluralidade, ao fato de que homens, e no o Homem, vivem na Terra e habitam omundo. Todos os aspectos da condio humana tm alguma relao com a

    poltica; mas esta pluralidade especificamente a condio no apenas aconditio sine qua non, mas a conditio per quamde toda a vida poltica. 46

    A ao uma atividade humana que s se d no entre-homens, impossvel a ao eo discurso se realizarem no isolamento, ela se d, necessariamente, no espao pblico, e

    Arendt confirma isso ao dizer: Ao contrrio da fabricao, a ao jamais possvel no

    isolamento. Estar isolado estar privado da capacidade de agir 47. Se valendo da metfora

    entre luz e sombra, Arendt pretende explicar o que ela entende por espao pblico. A

    filsofa equipara o espao pblico luz, o lugar em que existe luminosidade e visibilidade.

    O espao pblico dentro da filosofia de Hannah Arendt apresenta-se como a esfera do que

    comum e compartilhado por todos os homens. Ele ocupado por cidados que adentram

    nesse espao para discutir e falar sobre esse mundo que se instala entre eles, que todos

    compartilham e que lhes interessa. formado por uma pluralidade de pessoas, cada uma

    com sua perspectiva prpria em relao forma que o mundo se mostra para elas, sendo a

    multiplicidade de perspectivas o que permite a instaurao de um debate pblico 48.

    Tambm no espao pblico que um homem pode aparecer para todos os demais. Isso

    importante pelo seu conceito de realidade. Para Arendt, a realidade definida como aquilo

    que aparece. Diz a pensadora: Privar-se dele [do espao de aparncias] significa privar-se

    da realidade que, humana e politicamente, o mesmo que aparncia49. No espao pblico,

    46Ibidem,p. 15.47Ibidem,p. 201.48Ibidem,p. 67.49Ibidem,p. 211.

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    a maior preocupao no com o indivduo, mas sim com o que compartilhado por todos

    os homens, portanto, o espao pblico deve estar aberto a todos.

    A noo de espao pblico vinculada noo de espao poltico e possui dois

    sentidos interconexos. Por um lado, o espao pblico abarca tudo aquilo que aparece para

    todos e, portanto, refere-se quele espao aberto visibilidade geral sob diferentes

    perspectivas, a partir das quais se tece uma realidade fundada intersubjetivamente: Para

    ns, a aparnciaaquilo que visto e ouvido pelos outros e por ns mesmos constitui

    a realidade (...). A presena de outros que veem o que vemos e ouvem o que ouvimos

    garante-nos a realidade do mundo e de ns mesmos 50. Aquilo que capaz de aparecer

    para todos sob a luz da esfera pblica constitui-se em matria de assunto pblico e comum.

    Assim, o que pblico distingue-se de todas as experincias humanas cuja prpriarealidade no poderia ser comunicada e tornada pblica sem que sua prpria natureza se

    corrompesse, posto que seria de ordem privada e, enquanto tal, incomunicveis e

    irrelevantes para todos os outros. Em um segundo sentido, pblico refere-se tambm ao

    mundo de instituies polticas e legais que possumos em comum com todos os outros,

    constituindo aquele espao que se encontra entre os homens sempre que eles se renem

    para discutir e tomar iniciativas em conjunto, fora do espao privado.

    A ao a expresso da comunicao que reflete a singularidade de cada homem, e atravs dela que os homens revelam uns para os outros as suas distines. A ao e o

    discurso vinculam-se poltica, pois, para a execuo desta, indispensvel a presena de

    outros, os quais tambm agem e discursam. Portanto, atravs dessas duas atividades que

    se revela que a pluralidade uma das condies bsicas da existncia humana na Terra e

    tambm a prpria condio da vida poltica enquanto tal. Nota-se que, para Arendt, no h

    ao poltica sem discurso, assim como tambm todo discurso constitui uma forma de ao,

    definindo-se uma relao de reciprocidade que seria inexistente nas demais atividades

    humanas, em que o discurso possuiria uma funo meramente subordinada. atravs da

    ao e do discurso que os homens se manifestam uns aos outros, no como meros objetos

    fsicos, mas enquanto homens. a ao que humaniza o homem e atravs dela que nos

    50Ibidem,p. 59.

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    inserimos no mundo humano. Na ao e no discurso, os homens mostram quem so,

    revelam ativamente suas identidades pessoais e singulares e, assim, apresentam-se ao

    mundo humano 51. Finalmente, a ao e o discurso vinculam-se de modo fundamental

    poltica,porque por meio deles que os homens mostram uns aos outros quem eles so52.Ao considerar a ao, a pensadora concentra sua ateno no potencial de revelao do

    quem do ator atravs dos seus atos. O carter revelador dos atos e palavras se encontra

    presente em toda forma de ao e discurso.

    por meio da ao e do discurso que os homens tomam iniciativas, atualizam sua

    liberdade e trazem ao mundo a novidade imprevisvel concretizada em inmeros eventos

    histricos. Cabe aqui apresentar o que Arendt entende por liberdade, conceito ainda mais

    fundamental para a sua concepo de poltica. A liberdade para Arendt est no ato humanoque no se conforma com a necessidade. Quando o homem age com liberdade, o inesperado

    pode se realizar. vlido observar que a noo arendtiana de liberdade vai contra a noo

    tradicional de liberdade. Segundo a autora, a noo tradicional confina a liberdade a uma

    faculdade interna do homem e designa o que Arendt chama de liberdade interior ou de livre

    arbtrio, tambm denominada de liberdade da vontade. A liberdade torna-se livre arbtrio

    quando deixa de ser objeto de um viver junto com os outros no agir53 e passa a ser uma

    vivncia interna, um fato da vontade, recolhendo-se ao relacionamento do eu com o prprio

    eu. Essa viso intimista da liberdade como arbtrio e fenmeno da vontade tornou-se

    extraordinariamente fortalecida pela convico, defendida desde o fim da antiguidade, de

    que a liberdade no apenas no se encontra no agir e na poltica, mas ao contrrio, s

    possvel se o homem abre mo do agir, retira-se do mundo em direo a si mesmo54.

    O triunfo da liberdade interior comea com Epiceto e aprofunda-se no

    cristianismo, alcanando no liberalismo o seu significado antipoltico mais acabado, com o

    credo liberal de quanto menos poltica mais liberdade.

    51Ibidem,p. 192.52 importante mostrar que o interesse da questo arendtiana no QUEM e no no O QU, pois se a questofor O QUE o homem? estaramos nos questionando pela natureza do homem, que justamente aquilo aoqual Arendt vai contra. Para a pensadora, no existe uma natureza humana, por isso a questo para ela QUEM o homem?, j que atravs dessa questo nos perguntamos pela singularidade de cada homem.53O conceito de ao ser explicado melhor depois.54ARENDT. Hannah.A Dignidade da Poltica. 1999, p. 121.

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    Arendt diz que a liberdade existe sempre que os homens fazem algo de

    imprevisvel, como quando realizam algo que no podia ser esperado em razo dos

    acontecimentos anteriores, algo que rompe os limites. Esse rompimento de limites est

    relacionado espontaneidade 55. Tambm existe liberdade, para Arendt, quando o homemtraz existncia algo novo, indito, e que antes era inexistente e imprevisto. Por esse lado,

    a liberdade a capacidade de comear. Porque um comeo, o homem pode comear, ser

    humano e ser livre so nica e mesma coisa. Deus criou o homem para introduzir no mundo

    a capacidade de comear: a liberdade56. Essa capacidade de comear tem raiz na condio

    humana da natalidade.

    Hannah Arendt recusa a noo tradicional de liberdade (a que confina a liberdade a

    uma faculdade do homem), pois essa noo afasta a liberdade da poltica e a transforma emum fenmeno da vontade. Para Arendt, o que interessa a liberdade na poltica, pois, sem a

    liberdade, a vida poltica seria destituda de significado. Sendo assim, a sua teoria poltica

    est centrada na afirmao de que a raison dtre da poltica a liberdade, e seu domnio de

    experincia a ao. Agir trazer a novidade imprevisvel luz do dia: O fato de que o

    homem capaz de realizar o infinitamente improvvel. E isto, por sua vez, s possvel

    porque cada homem singular, de sorte que, a cada nascimento, vem ao mundo algo

    singularmente novo 57. Quando agimos damos incio a algo novo, o homem capaz de

    trazer tona algo totalmente imprevisto atravs da ao. A ao a expresso da liberdade,

    pois, para Arendt, a liberdade est no ato humano que no se conforma com a necessidade.

    Quando o homem age com liberdade, o inesperado pode se realizar.

    Esse espao pblico onde os homens se manifestam uns aos outros, revelando sua

    identidade, dando incio a algo novo e onde cada homem apresenta sua singularidade,

    chamado teia de relaes. Essa teia de relaes humanas preexistente onde definido o

    traado dos interesses humanos em cada momento histrico particular e aquilo que est

    entre homens, que so dotados de inmeras vontades e intenes conflitantes. Disto

    55Aqui Arendt se vale da noo kantiana da espontaneidade do agir humano. Para uma melhor apreenso daapropriao de Arendt da noo de espontaneidade de Kant, verLies polticas de Kant e Que Liberdade.56ARENDT. Hannah.Entre o Passado e o Futuro. 2000, p. 216.57ARENDT, Hannah.A Condio Humana. 2010,p.191.

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    resulta que a ao humana quase nunca atinge sua finalidade (pois deflagrada nesta teia

    de relaes)58, o que s refora a sua inerente imprevisibilidade, contrariamente ao que

    ocorre na atividade da fabricao, cujo mrito reside no produto final e no em seu prprio

    desempenho. A teia de relaes regida pela igualdade no espao pblico, mas no poruma igualdade uniformizante. A igualdade da teia de relaes uma igualdade criada,

    artificial, e que respeita a pluralidade; o que podemos chamar de igualdade jurdico-

    poltica.

    A igualdade jurdico-poltica respeita a singularidade de cada homem, no

    suprimindo a pluralidade, e ainda permitindo que todos falem de igual para igual no palco

    poltico. Ela se configura, portanto, como um princpio funcional de organizao poltica,

    em que pessoas desiguais recebem os mesmos direitos. vlido tambm ressaltar que essa uma igualdade instaurada pelo direito e pelas leis.

    Portanto, a igualdade no pode advir de uma natureza humana comum, porque esta

    no existe. Porm, Arendt considera que os homens podem ser uniformizados, e isso ocorre

    quando eles esto sujeitos s mesmas necessidades ou possuem o mesmo destino (a morte).

    Essa uniformidade acaba com a diferena entre os homens. Afirmar a pluralidade significa

    dizer que os homens so inerentemente diferentes entre si e, devido a essa noo, uma ideia

    de igualdade natural rejeitada pela autora. Para Arendt, a igualdade no pode advir deuma natureza comum, pois esta no existe. Porm, Hannah Arendt admite que, sob a

    perspectiva do trabalho, os homens podem ser considerados iguais por pertencerem

    mesma espcie, por terem as mesmas caractersticas e o mesmo objetivo de sobreviver.

    Podem ser considerados iguais por estarem sujeitos mesma necessidade. Porm, esse tipo

    de igualdade no pode ser levada para a poltica, pois, do contrrio, ela transformada em

    uniformizao. Por isso, como j foi dito, a igualdade da poltica tem de ser artificial, criada

    (no derivada de uma natureza e nem do trabalho), e que no deve suprimir a singularidade.

    Para Arendt, quando os homens agem em concerto que surge o poder, que outro

    conceito central da sua teoria poltica. O trao mais marcante do conceito arendtiano de

    58Ibidem,p.195.

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    poder o fato deste no se confundir com violncia ou com fora. Ela define o poder como

    a

    habilidade humana no apenas para agir, mas para agir em concerto. O poder

    nunca propriedade de um indivduo; pertence a um grupo e permanece emexistncia apenas na medida em que o grupo conserva-se unido. Quando dizemosque algum est no poder, na realidade nos referimos ao fato de que ele foiempossado por um certo nmero de pessoas para agir em seu nome. 59

    Com isso, chegamos concluso de que a noo arendtiana de poltica retoma as

    noes de liberdade e singularidade para constituir um espao de aparncia em que os

    homens possam conviver como homens, na forma de ao e discurso, construindo uma

    ampla teia de relaes em que as particularidades de suas singularidades podem ser

    mutuamente reveladas, longe da necessidade invarivel e confinante do espao privado. Na

    teia de relaes prevalece uma igualdade entre os desiguais que permite que os homens

    usem do discurso e da persuaso para se comunicarem e buscarem o consenso, no

    necessitando, assim, da fora e da violncia.

    Agora que foram apresentadas as categorias fundamentais da poltica arendtiana, se

    faz necessrio apresentar os principais conceitos da poltica de Giorgio Agamben.

    2.2 A concepo que Agamben tem da poltica

    Comearemos a apresentao da teoria poltica de Agamben com o conceito de vida

    nua, expresso que aparece diversas vezes nas obras do filsofo italiano. Retiramos do livro

    de Daniel Arruda Nascimento, denominada Do fim da experincia ao fim do jurdico:

    percurso de Giorgio Agamben,todas as passagens em que Agamben usa a expresso vida

    nua e o significado que atribui a ela. No livro que inicia o projeto Homo sacer, publicadoem 1995, a expresso aparece pela primeira vez na introduo, como um substitutivo para a

    palavra grega zo, entendida pelo autor como o simples fato de viver, a qualidade de ser

    vivo, vida crua, vida no seu estado natural. Em La comunit che viene, publicado pela

    59ARENDT, Hannah. Sobre a Violncia.2008, p. 36.

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    primeira vez em 1990, a expresso havia surgido para designar o anteparo da ltima

    expropriao da pequena burguesia planetria, da ltima frustrao da individualidade.

    Herdeira do mundo agora desprovido de classes, frente sociedade de consumo vazia e

    sociedade do espetculo desesperado, a classe burguesa tornada universal no escapa constatao de ir ao encontro d vida nua. Em Mezzi senza fine, coletnea publicada em

    1996, a expresso citada por duas vezes. No captulo Note sulla politica, datado de 1992,

    o filsofo diz que a vida nua, portadora do nexo soberano e do limiar indefinvel entre

    violncia e direito, hoje abandonada a uma violncia tanto mais eficaz quanto annima e

    cotidiana. J no captulo intitulado Forma-di-vita, datado de 1993, o filsofo se refere

    vida nua como aquela vida exposta ameaa de morte que, por isso mesmo, veio a se

    tornar o fundamento do poder soberano. O poder absoluto e perptuo do soberano no teria

    como fundamento a vontade poltica, mas a vida constantemente exposta morte, que

    somente adquire conservao e proteo na medida em que se submete ao poder de vida e

    morte do soberano. Essa mesma vida nua hoje reconhecida como o Estado de Exceo

    permanente, tornada a forma de vida dominante e normal. Num sentido jurdico,

    poderamos ainda entender a vida nua como aquela despida do seu estatuto de direito, nua

    de personalidade, desprovida da capacidade de contrair direitos e obrigaes.

    Agamben, observando que a vida nua, ou seja, a vida simplesmente vivida, despida

    de qualquer atributo, passou a assumir o papel central na cena poltica da modernidade,

    chega ao conceito de biopoltica60. Para chegar a esse conceito, Agamben se vale da

    diferenciao filolgica entre duas palavras gregas utilizadas para se referir vida, as

    palavras zo e bios. Zo exprimia o simples fato de viver, comum a todos os seres vivos

    (animais, homens e deuses), jBios significava a forma ou maneira de viver prpria de um

    indivduo ou de um grupo. Agamben usa como exemplo a filosofia de Aristteles que faz a

    diferenciao entre duas formas de viver, a bios politics e a bios theoretics. Para

    Agamben, Aristteles jamais poderia ter utilizado o termo zopelo simples fato de queno

    estava em questo de modo algum a simples vida natural, mas uma vida qualificada, um

    modo particular de vida. Ele se vale dessa diferenciao entre zo e biospara dizer que a

    60Agamben dialoga com Foucault e se apropria das reflexes dele para chegar ao seu conceito de biopoltica.

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    simples vida natural excluda da polis no mundo clssico e fica confinada ao mbito do

    oikos. por isso que no comeo de sua poltica, Aristteles faz questo de diferenciar o

    chefe de famlia do chefe de governo da polis. Com isso, podemos dizer que o poltico

    no um atributo do vivente como tal, mas uma diferena especfica que determina ognero do vivente.

    Assim, Agamben constata que no limiar da idade moderna a zo passa a ser

    includa na poltica e, para ele, com a incluso da vida natural (zo) nas preocupaes

    estatais a governamentais, a poltica passa a ser biopoltica. Portanto, com o advento da

    biopoltica na modernidade, as questes polticas so a vida do ser vivente.

    Para Agamben, o ingresso dazo na esfera daplis, a politizao da vida nua como

    tal, constitui o evento decisivo da modernidade, que assinala uma transformao radical das

    categorias poltico-filosficas do pensamento clssico. Portanto, segundo Agamben, s

    possvel entender os atuais problemas da poltica sob a tica da biopoltica.

    Outro conceito da teoria poltica de Agamben a ser analisado o paradoxo da

    soberania, que consiste no fato de que

    o soberano est, ao mesmo tempo, dentro e fora do ordenamento jurdico. Se osoberano , de fato, aquele no qual o ordenamento jurdico reconhece o poder de

    proclamar o Estado de Exceo e de suspender, deste modo, a validade do

    ordenamento, ento ele permanece fora do ordenamento jurdico e, todavia,pertence a este, porque cabe a ele decidir se a constituio in toto possa sersuspensa. 61

    Para Agamben, o paradoxo da soberania se encontra justamente no que expressa o

    trecho de Schimitt, a saber, a relao entre exceo e soberania. O soberano, enquanto

    poder que decide e suspende a norma, est fora do direito, mas pertence ao ordenamento

    jurdico porque tem a competncia para a deciso, elemento fundamental do direito62. O

    conceito de soberania paradoxal, pois o soberano ao mesmo tempo pertence e nopertence ao ordenamento jurdico, o qual ele mesmo cria e suspende. Portanto, a soberania

    61SCHMITT, Carl. Teologia Politica. In: AGAMBEN, G.Homo sacer: o poder soberano e a vida nua. 2005,p. 23.62BARSALINI, Glauco.Estado de Exceo Permanente: Soberania, violncia e Direito, na obra de Giorgio

    Agamben. 2002, p.7.

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    a afirmao e a negao do ordenamento jurdico simultaneamente. A soberania

    indispensvel para a fixao do ordenamento jurdico, porm, o soberano pode decidir para

    alm do ordenamento, tendo em vista que ele quem decide o que est dentro e o que est

    fora do ordenamento. Por isso, podemos afirmar que o ordenamento jurdico est disposio do soberano.

    Em resumo, o soberano quem decide o que exceo e o que ordenamento

    jurdico, ou seja, ele fim e princpio do ordenamento jurdico. Nesse jogo, tambm o

    soberano quem decide o que possui valor jurdico e poltico. Por isso, Agamben afirma que

    o soberano tem a capacidade de criar e definir o prprio espao no qual a ordem jurdico-

    poltica pode ter valor. Ela , nesse sentido, a localizao fundamental, que no se limita a

    distinguir o que est dentro e o que est fora, a situao normal e o caos, mas traa entreeles um limiar (o Estado de Exceo) a partir do qual o interno e externo entram naquelas

    complexas relaes topolgicas que tornam possvel a validade do ordenamento63.

    Depois de apresentado o paradoxo da soberania, necessrio analisar o conceito de

    exceo desenvolvido por Agamben, uma vez que essas duas noes da poltica do autor

    so interconexas. Se o soberano aquele que decide sobre a exceo, e a deciso sobre a

    exceo suspende a norma, a norma se aplica exceo desaplicando-se, retirando-se

    desta atravs da suspenso64

    . Nasce o Estado de Exceo, que uma zona de anomia, eessa anomia, por sua vez, criada pelo Estado de E