PEDRO PAULO TEIXEIRA COELHO
PERCURSOS SOBRE TICA E ECONOMIA:
da felicidade ao pensamento ecolgico
Monografia de Bacharelado em Economia
Faculdade de Economia, Administrao,
Contabilidade e Aturia
PUC So Paulo Maio 2013
PEDRO PAULO TEIXEIRA COELHO
PERCURSOS SOBRE TICA E ECONOMIA:
da felicidade ao pensamento ecolgico
Monografia submetida apreciao de
banca examinadora do Departamento de
Economia, como exigncia parcial para a
obteno do grau de bacharel em economia,
elaborada sob a orientao do Professor
Jorge Alano Silveira Garagorry.
Monografia de Bacharelado em Economia
Faculdade de Economia, Administrao,
Contabilidade e Aturia
PUC So Paulo Maio 2013
Esta monografia foi examinada pelos professores abaixo relacionados e aprovada com nota
final ____,____ (____________________________).
___________________________________________
___________________________________________
___________________________________________
A meus pais e avs,
a Marianna e s crianas desta terra,
que simbolizam os ancestrais e o que est
por vir.
AGRADECIMENTOS
Iniciei a trajetria desta monografia no incio de 2012, quando ainda estagiava na
UMAPAZ (Universidade Aberta do Meio Ambiente e Cultura de Paz). Foi l que eu
conheci algumas pessoas que me ajudaram a observar com mais profundidade a ligao
entre felicidade e economia, atravs do FIB. Entre as diversas pessoas que fizeram parte
deste momento, e que eu gostaria que se sentissem lembradas, agradeo imensamente ao
amigo e Professor Georges Fouad Kharlakian Jr.
Nessa poca eu j tinha entrado em contato com algumas das correntes do
pensamento ecolgico na economia motivado pelo Professor Dr. Jos Geraldo Portugal, o
qual eu gostaria de agradecer pelas leituras sugeridas sobre o assunto e pela oportunidade
de estar junto ao seu trabalho docente como monitor das disciplinas de Introduo
Economia I e II do Departamento de Economia da PUC-SP desde 2009.
No decorrer do ano de 2012, me tornei professor de Geografia e aprofundei os
meus laos com a questo da educao atravs do grupo formado em torno da Professora
Dr. Maria Eliza Miranda, do Departamento de Geografia da USP, a qual eu gostaria de
agradecer pelo apoio em minha outra graduao, to importante em meu repertrio pessoal
quanto o curso de economia.
Minha gratido Rosngela Selma e Jos Wanderley, meus pais, que possibilitaram
a minha prpria vida e todas as experincias me trouxeram at aqui. Gratido minha irm
Marina Morena, ao Guga e companheira e namorada Marianna Perna, que me ajudou
com ideias, bem como na reviso deste escrito. Agradeo por serem aqueles que convivem
comigo e pela dedicao e carinho que me inspiram.
Por fim, agradeo ao Professor Dr. Jorge Alano Silveira Garagorry, pelo apoio e
orientao na monografia e aos meus alunos e amigos, que diversas vezes me fizeram rever
e fortalecer os pontos de vista que esto expressos neste trabalho.
COELHO, P. P. T., Percursos sobre tica e economia: da felicidade ao
pensamento ecolgico. So Paulo SP, 2013. [Monografia de Bacharelado
Faculdade de Economia, Administrao, Contabilidade e Aturia Pontifcia
Universidade Catlica de So Paulo].
RESUMO
A monografia aborda o tema dos indicadores de bem-estar PIB e FIB e do
pensamento ecolgico, luz da discusso sobre tica e economia, a partir da viso de
Amartya Sen e outros autores.
O trabalho busca avaliar quais so as potncias e/ou limitaes destes indicadores e
da abordagem ecolgica para a economia, num contexto em que a organizao
contempornea aponta para uma sociedade desigual do ponto de vista socioeconmico e de
constrangimento das questes ticas, neste incio do sculo XXI.
SUMRIO
INTRODUO 1
CAPTULO 1 PENSAMENTO ECONMICO, PARADIGMAS E FELICIDADE 5
1.1. Escassez de indicadores 8
1.2. Genealogia do indicador de felicidade 12
1.3. Valores e dimenses do bem-estar no FIB 15
1.3.1. Padro de vida 15
1.3.2. Sade 16
1.3.3. Educao 17
1.3.4. Uso do tempo 17
1.3.5. Boa governana 18
1.3.6. Diversidade e resilincia ecolgica 18
1.3.7. Bem-estar psicolgico 19
1.3.8. Vitalidade comunitria 20
1.3.9. Diversidade e resilincia cultural 20
CAPTULO 2 SOBRE ECOLOGIA E ECONOMIA 22
2.1. Georgescu-Roegen e bioeconomia 26
2.2. Preservacionismo e culto vida silvestre 29
2.3. O assim chamado desenvolvimento sustentvel 31
2.4. Justia ambiental e ecologismo popular 35
2.5. Economia ambiental ou ecologia de livre-mercado 37
2.6. Ecodesenvolvimento e ecossocioeconomia 40
2.7. Marx e a ecologia 44
2.7.1. Outras contribuies de origem marxiana 47
CAPTULO 3 TICA, BEM-ESTAR E DESENVOLVIMENTO 50
3.1. tica, utilitarismo e hegemonia 53
3.2. Eficincia, Pareto e bem-estar 56
3.3. Bem-estar, desenvolvimento e liberdade 58
3.4. Bem-estar e capacitaes 61
3.5. Felicidade, ecologia e indicadores 65
CONCLUSO 71
REFERNCIAS BIBLIOGRFICAS 75
1
INTRODUO
O bem-estar e o pensamento ecolgico j figuravam como questes de importncia
para a economia desde o seu surgimento como um campo do saber. Elas perderam
importncia no trajeto da sistematizao das cincias econmicas e, neste incio do sculo
XXI, reassumem antigos e inauguram novos significados sobre a vida em sociedade.
Movimentos sociais, empresas, entidades governamentais e supragovernamentais, diversos
cientistas, filsofos, lideranas e grupos espirituais esto em busca de espaos para esses
interesses na organizao capitalista dominante.
A realizao desses objetivos sociais, no jogo das decises econmicas, depende de
diversos fatores. A avaliao da questo do desenvolvimento e da teoria econmica como
uma tenso velada entre os interesses dos agentes hegemnicos e os interesses civis de
ordem socioeconmica, poltica e at socioambiental, busca compreender a legitimidade da
emergncia de novos padres de organizao econmica, sejam eles endgenos ou no ao
capitalismo.
Escolheu-se, pois, dois recortes: um que privilegia o fenmeno do surgimento de
novos indicadores socioeconmicos, menos pelo rigor tcnico-instrumental que exigem do
que pela necessidade avaliativa que os interesses civis contemporneos contemplam; outro
que explora necessidade ou limitao que a questo ecolgica impe ao processo de
desenvolvimento econmico, pois esta parece uma fronteira qual a produo capitalista
se aproxima em seu processo. Ambos os recortes simbolizam acontecimentos
paradigmticos com que a sociedade de consumo do sculo XXI se depara, seja para sua
reproduo sociometablica segundo padres historicamente discutidos e exaustivamente
descritos, seja para a sua superao como forma de organizao econmica.
Enquanto a questo do FIB diz respeito formulao de mecanismos de informao
socioeconmica sobre o que desejam as pessoas nos planos individual e coletivo para suas
vidas, a histria do pensamento ecolgico trata da questo das diversas escalas em que a
economia (mercados, governos, indstrias e consumidores) e a ecologia se relacionam e
interagem. Questes s vezes distintas em sua argumentao, mas que abrem caminhos
comuns, principalmente na complexidade que exigem ao serem analisadas e avaliadas.
Em que pese a relevncia desses recortes na sociedade desigual
socioeconomicamente do incio do sculo XXI, no se neutraliza a questo do
2
desenvolvimento econmico capitalista. Foi preciso fazer tambm uma reconstituio
sobre a gnese e evoluo dos principais conceitos de desenvolvimento econmico.
Encontramos, neste percurso, as ideias de Amartya Sen, que permitiram religar o percurso
histrico das teorias do desenvolvimento e do bem-estar social s ideias do bem-estar
coletivo, preconizadas pelo FIB. A sua abordagem do desenvolvimento como expanso das
capacidades e das liberdades substantivas a pedra angular da sntese entre tica e
economia.
Vale ressaltar que as potencialidades do FIB e do pensamento ecolgico no bastam
por si para suplantar ou suspender os efeitos da lgica capitalista na sociedade
contempornea. Todavia, h perspectivas favorveis que essas potencialidades inserem no
ambiente econmico em diversas escalas, tanto por causa do espao paradigmtico que a
felicidade e a ecologia ocupam no campo do saber econmico, quanto pela articulao que
promovem com a tica e a cidadania planetria, por tratar-se de valores ligados escolha
social. Os valores que inspiram a vida de uma sociedade determinaro sua viso de
mundo, assim como as suas instituies, seus empreendimentos cientficos e a tecnologia,
alm das aes polticas e econmicas que a caracterizam (CAPRA, 1982, p. 182).
Assim, o objetivo desta monografia avaliar as potencialidades e limitaes, no
mbito dos valores e da tica econmica, dos conceitos de PIB - Produto Interno Bruto e
FIB - Felicidade Interna Bruta, enquanto indicadores utilizados para mensurar o bem-estar
social, bem como das concepes elaboradas pelas principais correntes do pensamento
econmico ecolgico.
Para tratar deste propsito, estruturamos o nosso trabalho em trs captulos.
No captulo 1 identificaremos os gargalos que a tomada do crescimento econmico
como um objetivo unvoco e instrumental pode acarretar. Apresentaremos tambm a
origem da ideia da felicidade como objetivo social para a organizao das funes
econmicas.
No captulo 2 registraremos a histria do pensamento ecolgico na relao com a
economia, buscando mapear e caracterizar o quadro de convivncia entre ideias difusas
sobre essa interao: o desenvolvimento sustentvel, a economia do meio ambiente, a
economia ecolgica ou justia ambiental e a ecossocioeconomia. Buscaremos tambm
destacar os subsdios que as vises ecolgicas podem fornecer ao campo da economia e
reorganizao das funes produtivas.
3
No captulo 3 realizaremos uma avaliao dos valores ticos comuns s abordagens
da felicidade e da ecologia na economia, destacando os subsdios que fornecem para o
campo da tica e economia. Registraremos tambm a origem e o longo percurso de ruptura
entre essas duas reas do conhecimento, alm da contestao entre a tica econmica
dominante e a consonncia dos valores ticos e socioambientais que emergem do FIB, da
ecologia e da teoria de Amartya Sen, no sentido de ampliar os indicadores econmicos e
resignificar as concepes de bem-estar e desenvolvimento.
Por ltimo, sumarizamos as principais concluses extradas ao longo do trabalho.
4
Chuang-Tzu e Hui Tzu
Atravessaram o rio Hao
Pelo aude
Disse Chuang:
Veja como os peixes
Pulam e correm to livremente:
Isto a sua felicidade.
Respondeu Hui:
Desde que voc no um peixe
Como sabe
O que torna os peixes felizes?
Chuang respondeu:
Desde que voc no sou eu,
Como possvel que saiba que eu no sei
O que torna os peixes felizes?
Hui argumentou:
Se eu, no sendo voc,
No posso saber o que voc sabe,
Da se conclui que voc,
No sendo peixe
No pode saber o que eles sabem.
Disse Chuang:
Um momento:
Vamos retornar
pergunta primitiva.
O que torna os peixes felizes.
Dos termos da pergunta
Voc sabe evidentemente que eu sei
O que torna os peixes felizes.
Conheo as alegrias dos peixes
No rio
Atravs de minha prpria alegria medida
Que vou caminhando beira do mesmo rio. (A via de Chuang-Tzu)
5
CAPTULO 1 PENSAMENTO ECONMICO, PARADIGMAS E FELICIDADE
A princpio, a cincia econmica tem sido frequentemente caracterizada como uma
cincia social profundamente interessada em compreender a escassez dos recursos ou
fatores de produo, bem como as necessidades ilimitadas do homem moderno. Desse
duplo emergem os chamados problemas econmicos.
Desde o incio os problemas econmicos pressupem a escassez e a busca por
suprir ilimitadamente as sociedades modernas. Segundo VARIAN (2000, p. 47) a teoria
econmica no seria um assunto muito interessante num mundo em que todos estivessem
saciados em seu consumo de todos os bens. Ao adotar essa postura como senso comum e
ncleo da estrutura de pensamento na cincia econmica, a categoria escassez passou a ter
tamanha penetrao como axioma que, em alguns casos, tornou-se inquestionvel. Nesses
casos, as pesquisas em economia prescindiram de estratgias alternativas e/ou paradigmas
que partam de outras premissas.
A orientao da cincia econmica ao longo de mais de dois sculos, fundamentada
no pressuposto da escassez, permitiu a expanso da capacidade produtiva da sociedade,
pelo avano tecnolgico e pela generalizao dos padres industriais e estruturas de
mercado na economia. Em muitos lugares do mundo, a competio tornou-se uma espcie
de padro sociocultural, permeando, inclusive, esferas da educao e do trabalho. Todavia,
como assinala SILVA (2006, p. 9) tambm gerou a possibilidade da vida humana, como a
observamos hoje, se tornar invivel.
Assim, de se supor a validez da busca por alternativas ao sistema produtivo atual,
de modo geral, bem como a resignificao de muitos dos pressupostos da moderna cincia
econmica - o que E.F. Schumacher chama de metaeconomia - pois raramente so
includos de maneira explcita nos modelos econmicos. A descoberta de novas categorias
que no s expliquem como inspirem aes e comportamentos consoantes com valores
ticos e integridade ecolgica se faz mister. Segundo Fritjof Capra:
[...] a fragmentao e a compartimentao da economia tem sido assinalada e
criticada ao longo da histria moderna. Mas, ao mesmo tempo, os economistas
crticos que desejavam estudar os fenmenos econmicos tal como realmente
existem, inseridos na sociedade e no ecossistema, e que, portanto, divergiam do
estreito ponto de vista econmico, foram virtualmente forados a se colocarem
margem da cincia econmica. (CAPRA, 1982, p. 181).
6
Assim, por excluso, apontamentos preciosos sobre a economia e a sociedade,
como o caso do indiano Prabhat Sarkar, Karl Marx, entre outros, no foram devidamente
considerados e se mantm at hoje distantes, tanto daqueles que advogam em seu favor,
quanto dos policy makers.
O autor acima atenta para o fato de que a evoluo dos padres econmicos
extremamente dinmica, alm de depender dos sistemas sociais que se inserem, igualmente
mutveis. Logo, para entender a economia, importante resignificar estruturas conceituais
e torn-las adaptveis s novas situaes postas sociedade. A evoluo de uma
sociedade, inclusive a evoluo do seu sistema econmico, est intimamente ligada a
mudanas no sistema de valores que serve de base a todas as suas manifestaes (1982, p.
181).
De acordo com CAPRA (1982, p. 182), uma vez que a economia se ocupa de
compreender a produo, a distribuio e o consumo de riquezas, estudando valores
relativos troca de bens e servios com o fim de determinar o que valioso num certo
momento, ela se tornou, entre as cincias sociais, a mais normativa e mais claramente
dependente de valores. SILVA (2007, p. 4) assinala que o que moral ou imoral passa a
no ser somente uma conveno, mas algo relativo. Ele mostra isso atravs do exemplo de
que, por meio do uso da razo direcionada persuaso retrica, um advogado pode
sustentar que um criminoso no deve ser considerado como tal. Logo, os sistemas morais
que norteiam a sociedade e o pensamento econmico podem ter diferentes genealogias e
percorrer diferentes caminhos.
Independentemente da relatividade no processo de construo de valores de cada
sociedade, o fato que a economia deve analisar a ao e disposio humana em
administrar combinaes de fatores de produo, partindo de algumas restries que o
ambiente estabelece para a sua reproduo, assegurando usufruto dessas condies fsico-
naturais s geraes posteriores. A tentativa em captar a possibilidade de solidariedade na
sociedade moderna est relacionada ao potencial humano de estabelecer vnculos sociais
baseados em uma fora imanente ao dilogo e comunicao (HABERMAS apud
SOUZA, 1998, p. 38).
A eliminao gradual de uma tica restrita de contrato social no campo econmico
tem razo de ser no desenvolvimento de um novo conceito de direito. Logo, o pensamento
econmico que no desvencilhe a responsabilidade da liberdade, assim como o bem-estar
7
social do ecolgico, comprometido com a preservao das condies de sobrevivncia
qual est atrelado deve incluir, em princpio, as vrias dimenses reconhecidas que fariam
parte de um novo contrato natural, ou seja, o conjunto dos direitos do indivduo, dos
direitos do outro e dos direitos da Terra (SERRES, 1990 apud BUSS, 1993). Trata-se de
um pacto de fundao da sociedade em funo de uma tica verdadeiramente universal e
inclusiva a ser estabelecida com o ambiente ecolgico.
De fato, a questo ecolgica tem adquirido respaldo como fora aglutinadora de
debates reflexivos em diversos campos cientficos e filosficos, principalmente sobre
concepes e possibilidades de organizao humana sobre a Terra. Segundo BUSS (1993),
a questo ecolgica concebida como uma preocupao com os direitos fundamentais de
preservao das condies de vida no planeta Terra vinculados de maneira significativa,
individual e coletivamente, responsabilidade e ao desenvolvimento de liberdades e
capacidades humanas.
nesse ambiente ecolgico que se realiza o ambiente socioeconmico, de onde
emergem questes acerca do subdesenvolvimento, consumo de recursos naturais e
concentrao populacional nos ecossistemas urbanos. Assim, o metabolismo ecolgico
tambm poder ser considerado como um problema tico, fundamentado na
responsabilidade dos indivduos, empresas e governos (SCHRAMM, 1992 apud BUSS,
1993).
Neste contexto surge o indicador Felicidade Interna Bruta (FIB), um dos objetos
deste trabalho. Desenvolvido no reino do Buto - pequeno pas se comparado aos seus
vizinhos limtrofes China e ndia e em relao aos padres geoeconmicos de consumo a
nvel global - o FIB , antes de ser um instrumento de gesto pblica, um conceito que fora
elaborado com a ideia de que o desenvolvimento econmico propiciado pela expanso do
PIB (Produto Interno Bruto) gerava riqueza monetria, mas atuava em desarmonia e
favorecia diversos tipos de desequilbrio socioeconmico.
Ainda que o objetivo inicial fosse fornecer ao Buto um conjunto de indicadores
que pudessem representar outra viso de desenvolvimento que no aquela expressa pelo
PIB, alm de desenhar metas e estratgias governamentais para tal, o princpio que
realmente fundou FIB foi a busca pelos mecanismos e variveis que geram a felicidade
para a populao e seus membros, e no necessariamente, a expanso da riqueza monetria
autorreferenciada.
8
medida que o governo do Buto tem utilizado e aprimorado esse indicador nas
ltimas dcadas, o tema felicidade ganhou notoriedade numa poca em que alguns centros
de pesquisa pelo mundo, principalmente alguns observatrios da ONU como o PNUD,
por exemplo tem se empenhado em diagnosticar o desenvolvimento dos pases sobre
pontos de vista alternativos queles da expanso do produto interno bruto, o que permitiu
surgir uma gama de indicadores de bem-estar com objetivos semelhantes.
Buscar-se- entender o FIB como uma ferramenta de anlise e diagnstico
socioeconmico. Mas a sua contribuio no se encerrar em si: a questo da felicidade e
do bem-estar social como valores que sintetizam objetivos econmicos, alm da emerso
do monitoramento civil sobre as decises da economia, trazem tona um questionamento
profundo sobre a natureza das categorias e axiomas que foram tradicionalmente
privilegiados no pensamento econmico, principalmente na contemporaneidade, em que as
fronteiras entre negcios e sociedade civil tornam-se fluidas e a informao, o
conhecimento e a cincia so bens pblicos cada vez mais importantes na economia
(ABRAMOVAY, 2012, p. 80-81).
1.1. Escassez de indicadores
A busca por solues para as questes da escassez nos ltimos sculos levou a um
perceptvel desenvolvimento das foras produtivas. Esse processo se vincula ao
aprofundamento tecnolgico no campo da produo e multiplicao de capitais.
As categorias a respeito dos problemas econmicos inicialmente emergiram como
elementos da filosofia tica, indicando uma preocupao ligada ao bem-estar humano e ao
racionalismo substantivo. Posteriormente, com o advento da filosofia utilitarista e da sua
influncia na evoluo do pensamento econmico, a sua realizao pela individualizao
da ao social sinalizou para uma predominncia do racionalismo instrumental (SILVA,
2011, p. 3).
Esse movimento pode ser entendido como um processo histrico que inverteu a
funo da tcnica na sociedade, conduzindo-o condio de fim ao invs de meio para
solucionar os problemas econmicos. Esse fenmeno pode ser entendido como uma forma
de instrumentalizao das categorias econmicas, o que certamente contribuiu para
diversos afastamentos entre o pensamento econmico e a tica.
9
Sob ponto de vista semelhante, durante o perodo marcado pela depresso
econmica da dcada de 1930, John Maynard Keynes sentiu-se impelido a concluir que
no estaramos muito longe do dia em que preferiramos o bom ao til. Contudo, adverte
os leitores sobre a inviabilidade dessa realidade para a economia capitalista, justamente no
contexto que presencia. Na obra O Negcio ser Pequeno (Small is Beautiful, 1973), h
uma meno sobre esse episdio:
Mas, cuidado!, [Keynes] prosseguia, Ainda no chegou o tempo de tudo isso. Por mais cem anos, no mnimo, devemos simular para ns e para todos
que o justo injusto e o injusto justo; pois o injusto til e o justo no o .
Avareza, usura e precauo ainda tem de ser nossos deuses por mais algum
tempo. Pois s elas podem tirar-nos do tnel da necessidade econmica para a
luz do dia.. (KEYNES apud SCHUMACHER, 1983, p. 20).
Atravs dessa passagem, Schumacher, o autor da obra em destaque, deixa
subentendido que o processo de crescimento econmico permitiu que se consolidasse uma
crena no avano tecnolgico e que este, como Keynes j havia observado, tem como
atrativo irresistvel a qualidade de permitir mais depressa o acesso a uma coisa desejvel;
ele justifica um avano sem limites discernveis e duplamente atraente ao evitar por
completo a questo tica (SCHUMACHER, 1983, p. 19).
Dessa maneira, importante resignificar o contnuo e autorreferente crescimento
econmico: havendo a expanso da demanda por bens em alguns pases, decorrente do
avano das foras produtivas e explorao de matrias primas, h uma tendncia que tem
tornado alguns bens escassos e/ou muito caros antes de outros pases, configurando uma
situao de privilgio queles cuja inovao tecnolgica mais tradicional, bem como uma
posio desfavorvel queles que ainda no reuniram riqueza, educao, refinamento
industrial e poderio de capital acumulado (1983, p. 23). Trata-se de um quadro clssico de
desigualdade de condies econmicas que permanece se ampliando.
O socioeconomista indiano Amartya Sen enfatizou que o potencial de frutificao
de qualquer novo indicador social proposto jaz tanto na discusso pblica que ele gera
quanto no uso tcnico da mtrica em si, independentemente de quo boa ela for (SEN
apud GALVO, 2012). O papel da discusso pblica, portanto, o que sinaliza este fato.
O autor fez essa considerao com o objetivo de esclarecer por que um indicador social ou
socioeconmico deve responder mais s necessidades da populao do que a uma
contabilidade grosseiramente superficial.
10
Ele inaugura uma valente crtica ao clculo do PIB Produto Interno Bruto que
consta em grande parte da histria e anlise econmica do sculo XX como indicador de
riqueza econmica a ser perseguido. A constatao do potencial econmico que h para
gerao de bem-estar em escalas maiores do que so verificadas atualmente e a emerso da
necessidade de reavaliao do modelo econmico hegemnico so acontecimentos que
merecem destaque no contexto de pensamento econmico avant-garde.
No decorrer das ltimas dcadas o nvel de desenvolvimento econmico tem sido
aferido a partir de indicadores que levam em conta apenas o produto da riqueza material
monetria gerada e acumulada num certo perodo e lugar. Desses indicadores, o mais
famoso e influente justamente o PIB. Ele surgiu como uma abordagem sobre o progresso
econmico durante a poca da Grande Depresso (1929) e ganhou notoriedade como
objeto de pesquisa da poltica econmica principalmente a partir da II Guerra Mundial,
com a unificao das contas nacionais. De maneira que se tornou referncia de progresso
econmico nas dcadas posteriores, e tem servido fundamentalmente para contar os
valores de bens e servios finais (BLANCHARD, 2007, p. 42) produzidos ou fornecidos
por um pas durante um determinado perodo.
O PIB o principal indicador utilizado pelas sociedades desenvolvidas para avaliar
o progresso econmico. Atualmente, a maioria dos pases mede as variaes do produto
interno bruto (PIB) ou as variantes desse conceito (GADREY & JANY-CATRICE, 2006, p.
15 apud SILVA, 2011, p. 40).
No que o pensamento econmico deva se privar por completo de seu contedo e
poder de informao. Todavia, h que se compreender corretamente em que contexto
histrico e cientfico esse indicador foi projetado, quais as consequncias de sua tomada
como revelador nico de estratgias econmicas bem sucedidas e qual o nvel de
complexidade envolvido na expanso do PIB sem a correta avaliao de seus riscos
socioambientais.
H um caso emblemtico sobre a relao dos riscos socioambientais e a expanso
econmica de uma regio: quando o navio petroleiro Exxon Valdez naufragou na costa do
Alaska, em 24 de maro de 1989, foi necessria, para reparar o enorme acidente, a
contratao de inmeras empresas para limpar as costas dos dejetos hidrocarbonetos.
Essa dramtica situao foi descrita como paradoxo do PIB pelo filsofo Patrick
Viveret (VIVERET apud DOWBOR, 2009). O paradoxo pode ser descrito segundo o fato
de que os investimentos que se deram em decorrncia da necessidade de limpeza a rea
11
ocenica atingida pelo vazamento de petrleo elevaram fortemente o PIB da regio por
anos a fio.
O paradoxo do PIB expe a possibilidade de elevao no PIB por meio de um
desastre ecolgico de propores gigantescas. Como o PIB apenas calcula o volume de
atividades econmicas monetrias ao medir o fluxo de meios, no levando em conta fins
especficos que possam ser sustentados pela busca de algum objetivo socialmente
desejvel, em seu bojo terico reside o fato contraditrio de que um acidente ecolgico
como fora a poluio de Prince William Sound, no Golfo do Alaska, possa ser considerado
economicamente justificvel, por estar conjugado expanso de riqueza monetria.
Dessa maneira so abertos precedentes para que alguns riscos ambientais e
ecolgicos que no seriam normalmente aceitos pela sociedade tornem-se economicamente
aceitveis, tratados muitas vezes como meros riscos ao investimento. No limite, vale dizer
que os riscos socioambientais podem chegar a ser considerados por alguns agentes
econmicos como desejveis, do ponto de vista da simples expanso do PIB.
Segundo DOWBOR (2009), o mais importante ainda o fato do PIB no levar em
conta a reduo dos estoques de bens naturais do planeta. Quando um pas explora o seu
petrleo, isto geralmente apresentado como eficincia econmica. Inclusive a expresso
produtores de petrleo j um paradoxo, pois nunca se conseguira produzir o petrleo;
ele resultado do estoque de bens naturais e a sua extrao, se der lugar a atividades
importantes para a humanidade, pode ser considerada positiva, ainda que se deva levar em
conta que h reduo do estoque de bens naturais que se entrega s geraes seguintes
(DOWBOR, 2009).
A extrao de petrleo uma atividade econmica que fere o princpio econmico
de intertemporalidade dos recursos naturais. Por isso, no faz sentido a sua renda ser
contabilizada como aumento da riqueza de um pas. A partir de 2003, o Banco Mundial
passou a considerar a extrao de combustveis fsseis na conta da poupana nacional, e
no na de produto (DOWBOR, 2009). O compromisso em no contabilizar o consumo de
bens no renovveis (do contrrio, deformaria radicalmente as prioridades econmicas que
devem ser privilegiadas) foi um gesto simbolicamente importante em termos de
questionamento do pensamento hegemnico em poltica econmica, ainda que o Bird seja
apenas um rgo de assistncia ao desenvolvimento dos pases.
Para DOWBOR (2008, p. 33), grande parte do nosso sentimento de impotncia
frente s dinmicas econmicas vem do fato de que simultaneamente no temos
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instrumentos para saber qual a contribuio das diversas atividades para o nosso bem
estar.. Sendo assim, se tomada isoladamente, a anlise da taxa de expanso do PIB abstrai
o foco do objetivo principal, que deve ser a qualidade de vida e bem-estar da comunidade.
A construo de novos indicadores de riqueza se torna um eixo particularmente importante
na formulao de parmetros de medio na realidade atual do planeta.
Em termos gerais, o PIB representa um axioma do pensamento econmico
dominante (presente nas reflexes denominadas ortodoxas e heterodoxas dentro do
panorama da teoria econmica). Ele ser contraposto a outros indicadores idealizados no
empenho de elaborar instrumentos que reconduzam o bem-estar ao centro da discusso em
economia. Haver tambm uma reflexo sobre os valores ticos que introduzem na
discusso, o que ser o pano de fundo de nossa avaliao.
nesse contexto que emerge o potencial dos indicadores alternativos, entre eles o
FIB (GNH Gross National Happiness, no original em ingls). Ele est presente na
discusso pblica sobre a melhoria do bem-estar social, mas tambm insere a ao civil
coletiva como varivel a ser considerada para operar devidamente. Nos arautos simblicos
de sua elaborao, os conceitos que esto por trs do FIB rementem investigao sobre
quais fatores so capazes de promover a felicidade coletiva.
1.2. Genealogia do indicador de felicidade
O FIB Felicidade Interna Bruta , antes de ser um indicador socioeconmico,
um conceito que fora desenvolvido na Repblica do Buto com o objetivo de compreender
como e quais so os fatores que promovem o bem-estar e a felicidade de uma populao,
pas ou comunidade. H substanciosos trabalhos por parte dos policy makers butaneses,
que advm da preocupao em demonstrar a felicidade de uma nao, levando em conta
uma sntese entre indicadores mais complexos - do ponto de vista conceitual e tcnico-
instrumental - se comparados aos indicadores tradicionalmente tratados na economia.
Apesar de em sua gnese o FIB estar associado ao desenvolvimento das polticas pblicas
do Buto, em especfico, ele tem influenciado a formao de um programa de interesse
socioeconmico e ambiental, com a perspectiva de que a busca pelo desenvolvimento deve
ter como axioma principal a promoo da felicidade coletiva e do bem-estar social.
Quando comparado aos indicadores tradicionais, o FIB contempla um conceito
amplo de bem-estar, em que vale destacar a relao entre as dimenses da economia, do
13
ambiente ecolgico, cultura e psicologia. Nos documentos metodolgicos sobre o
indicador, foram considerados os diversos conceitos da felicidade ao longo da histria. H
um dilogo entre a evoluo desse conceito na filosofia e na cincia a partir de Epicuro e a
filosofia hedonista, Santo Agostinho e a relao entre bem-estar e as questes de ordem
espiritual, at a felicidade como possibilidade de ser um objeto oculto e estratgico da
economia num futuro prximo (SILVA, 2011, p. 41).
Os relatos sistematizados sobre a histria do FIB, sua origem, necessidades,
metas, dimenses e indicadores foram desenvolvidos a partir dos materiais
oficiais do Centro de Estudos do Buto, que executa pesquisas
multidisciplinares sobre economia, histria, espiritualidade, sociedade, poltica,
cultura, meio ambiente e outros aspectos. (SILVA, 2011, p. 42).
mister destacar a importncia dessa sistematizao para este trabalho, uma vez
que os pressupostos normativos do FIB o posicionam no mesmo patamar que os estudos
sobre a tica econmica.
O desenvolvimento econmico que o Buto empreende intenciona ir alm do
equilbrio entre as contas nacionais. Inclusive, difcil tratar a questo do desenvolvimento
no Buto como apenas desenvolvimento econmico. A ideia de felicidade e bem-estar
tratada de maneira difusa, havendo autores que preferem caracteriz-la como algo que se
aproxima (mas no equivalente) de bem-estar social, desenvolvimento socioeconmico,
desenvolvimento sistmico, ou apenas desenvolvimento (SEN, 2000).
Por meio do Centro de Estudo do Buto1 houve a elaborao dos ndices que
compe o FIB, os quais se desdobram em indicadores comuns a diversas dimenses da
sociedade, de modo a fornecer informaes sintticas para o planejamento, desde o nvel
genrico ministerial at departamentos de trabalho mais localizado. Foram estabelecidas
ferramentas de triagem para os projetos do governo, com metas e objetivos que servem
para sinalizar quais so as reas que esto sendo mais e menos desprivilegiadas (SILVA,
2011, p. 44). Desde a sua introduo no planejamento butans, estes mecanismos vem
sendo aprimorados e servem como padro de avaliao de longo prazo pela populao.
Os indicadores que compe o FIB tambm so um canal de comunicao entre a
sociedade civil e o governo, pois uma das etapas de elaborao constitui-se de entrevistas
1
O Centro de Estudos do Buto (Centre for Bhutan Studies) um instituto de pesquisas ligadas ao
FIB, criado pelo PNUD. um rgo autnomo atrelado ao Conselho do Centro de Estudos do Buto, sendo
presidido por Dasho Karma Ura, mestre em Poltica, Filosofia e Economia pela Universidade de Oxford.
14
com a populao sobre os resultados anteriores do FIB em suas trajetrias pessoais.
Decerto isso imprime algum significado poltico participao civil nas pesquisas. O
envolvimento cidado com as atividades comunitrias um dos subindicadores do FIB e
reflete principalmente a evoluo do engajamento sociopoltico da populao butanesa.
Sobre isso, observa-se:
O senso de propsito comum incorporado em um conjunto de indicadores, o
que permite que homens e mulheres da sociedade possam acompanhar e
monitorar os seus dirigentes, verificando se as metas propostas esto sendo
realmente cumpridas. (SILVA, 2011, p. 44).
A construo dos ndices deve respeitar a relevncia tanto de aspectos funcionais da
sociedade, a autopercepo das condies socioeconmicas, psicolgicas e espirituais,
como tambm a necessidade e importncia da formao de material estatstico regional
sobre essas informaes. Isso proporciona, juntamente com os dados objetivos, uma
imagem mais precisa do estado social ligado ao bem-estar (2011, p. 44). Os indicadores
sinalizam, para tanto, uma variedade de informaes que permite o cruzamento relativo
dos dados obtidos, privilegiando mais a sua inter-relao do que a avaliao de sua riqueza
ou pobreza absoluta. Dessa maneira, a metodologia de trabalho possibilita obter
informaes regionais e, portanto, mais gerais, mas tambm informaes pessoais e
individuais, sendo que, muitas vezes, a compreenso de uma pode ser mais bem feita luz
da outra.
Se em sua origem o FIB est associado s estratgias de poltica econmica do
Buto em especfico, na orientao de uma busca por um desenvolvimento integral da
sociedade, que esteja conjugado a felicidade e bem-estar, ele pode representar um novo
paradigma dentro do pensamento econmico. Pela razo de levar em conta outras
dimenses que orbitam a esfera econmica alm da produo material de riqueza
monetria, o FIB parece promover um realinhamento da economia s questes da tica
econmica e das prticas do bem estar social e comunitrio.
15
1.3. Valores e dimenses do bem-estar no FIB2
Ao trabalhar-se com empenho investigativo cientfico e filosfico, foi possvel a
identificao de valores ticos que correlacionassem diversas esferas da vida privada e
coletiva da sociedade butanesa. Foram elaborados indicadores que, sintetizados,
constituem o ndice de felicidade interna bruta. Esse agregado de indicadores inclui metas
a serem alcanadas a curto, mdio e longo prazo, alm de incluir sugestes de meios para
atingir esses objetivos. Os quatro pilares em que a felicidade e o bem-estar social esto
ancorados so economia, cultura, meio ambiente ou ecolgico e boa governana.
Segundo SILVA (2011, p. 46), os indicadores do FIB tem esses pilares mas foram
concebidos em nove dimenses bsicas, que so as componentes fundamentais para que
esses quatro pilares interajam em harmonia. Esses indicadores tem razo de ser como
instrumentos cujo grau de informao sobre cada uma dessas dimenses deve manter
relao com o que se atinge entre elas em conjunto.
Segundo URA (2011, p. 2), as nove dimenses so ponderadas da mesma maneira,
pois cada uma considerada vital e sua importncia se atribui a composio do ndice de
felicidade nacional bruta.
1.3.1. Padro de vida
A dimenso do padro de vida analisada atravs dos nveis de renda individual e
familiar, o senso de estabilidade financeira individual e familiar, mensurada atravs da
quantidade e tamanho da propriedade (limitado a cinco acres3 por famlia) e dos ativos, tais
como presena de telefone, computador e eletrodomsticos em casa. Tambm h uma
autoavaliao do status econmico individual, bem como da capacidade de contribuio
para as festas comunitrias ou da dificuldade em assumir parte desses compromissos, alm
do nvel da habitao - acesso eletricidade, banheiros, nmero de cmodos e qualidade
do telhado.
2
A caracterizao dimenses do bem estar no FIB expressas neste captulo tiveram como inspirao
as informaes apresentadas de modo bastante geral em no GNH ndex, presentes no contedo do portal THE
Centre for Bhutan Studies (2012).
3 A unidade de medida Acre equivalente a 4.046,8564224 m, aproximadamente 0,4 hectare
(medida para rea rural mais comumente utilizada no Brasil e em Portugal.
16
vlido considerar que na dimenso do padro de vida se leva em considerao a
renda em um determinado perodo, sendo que, apesar do semelhante resultado com
agregado do produto interno bruto, ele emerge como uma resignificao original na
economia budista desse pas.
O economista moderno est acostumado a medir o padro de vida pela quantidade de consumo anual, supondo sempre que um homem que consome
mais est em melhor situao do que outro que consome menos. Um economista budista consideraria este enfoque extremamente irracional: como o
consumo simplesmente um meio para o bem-estar humano, a meta deveria ser
obter o mximo de bem-estar com o mnimo de consumo (SCHUMACHER,
1983, p. 49).
Apesar de ser possvel a aproximao dessa categoria com os indicadores de
produo (PIB) e nvel de renda (PIB per capita), deve-se atentar para o fato de que a
varivel consumo, no entendimento do FIB, no deve ser considerada em termos
absolutos. Ela est relacionada a capacidade relativa do consumo em contribuir para um
quantum de bem-estar, de acordo com um nvel de absoro de recursos para ger-lo.
Os subindicadores de padro de vida consistem em: renda familiar per capita; nvel
de habitao e; propriedade de ativos.
1.3.2. Sade
No mbito da sade so considerados, tanto para medir a eficcia e funcionamento
do sistema pblico de sade quanto para mensurar o grau de dependncia que os
indivduos da comunidade tem de um sistema pblico de sade. Tambm considerado o
grau de sade preventiva do indivduo, observado atravs da qualidade na alimentao e da
realizao de atividades fsicas.
A autoavaliao uma situao mpar da pesquisa sobre felicidade: se investiga o
nmero mdio de dias saudveis do indivduo num perodo, a incidncia mdia de
transmisso do vrus HIV e da prtica de amamentao, alm do IMC (ndice de Massa
Corporal). Os servios e as prticas de sade so mensurados quanto sua ausncia ou
presena (dummies), alm da avaliao de proximidade ou distncia para acessar os
servios de sade, preferencialmente, via caminhada.
H tambm o indicador de sade mental. Este mensura a capacidade ou dificuldade
de concentrao das pessoas, capacidade de resoluo de problemas e tomada de decises a
17
nvel pessoal e coletivo, alm da presena ou no de stress prolongado, depresso,
insegurana ou complexo de inferioridade.
O conjunto de subindicadores que compe o ndice de Sade abrange quatro reas
principais: autoavaliao do status da sade; nmero de dias saudveis do indivduo, no
perodo de 1 ano; deficincias e dificuldades do atendimento na sade e; nvel de sade
mental.
1.3.3. Educao
O domnio da educao abrangente e tange os conhecimentos gerais da prtica
cidad. Ele se encontra associado incorporao de valores ticos e habilidades tcnicas de
trabalho, alm do exerccio da criatividade. Avalia-se a eficcia da educao no cotidiano,
e se a ocupao diria da pessoa contribui sade econmica coletiva em termos
diferentes daqueles que so concebidos como sade econmica principalmente no
Ocidente.
A cidadania como forma de participao poltica comunitria uma qualidade
endgena a dimenso da educao. Nessa direo, cultura e conhecimento populares so
considerados relevantes formao individual e coletiva na facilitao dos processos
colaborativos intracomunitrios.
O ndice de educao consiste nos subindicadores: conhecimentos gerais; taxa de
alfabetizao (avaliada pela destreza para com o idioma tradicional dzongkha) e; grau de
instruo e incorporao de valores ticos.
1.3.4. Uso do tempo
O domnio do uso do tempo est entre uma das dimenses mais representantes e
inovadoras no entendimento de qualidade de vida. Levam-se em conta as aes realizadas
no cotidiano do indivduo e o tempo despendido em cada uma delas, medido em horas de
trabalho produtivo, lazer e horas de sono.
O tempo reservado vida pessoal inclui a participao em atividades educativas, de
cunho espiritual, sociocultural, esportivo, lazer e comunitrio. A compreenso do uso do
tempo revela que a diversidade de atividades que um indivduo pode se engajar alm de
sua jornada de trabalho contribui para a elevao de seu nvel pessoal de felicidade.
18
A dimenso do uso do tempo avaliada, a nvel qualitativo e quantitativo em: horas
de trabalho e horas de sono;
1.3.5. Boa governana
A dimenso da boa governana diz respeito percepo civil sobre a qualidade e
grau de efetividade da ao governamental. Em primeiro lugar, esses indicadores esto
relacionados ao desempenho dos governantes escolhidos em corresponder s demandas
comunitrias por servios e criao de emprego direto. Isso engloba desde a rede de
proteo da vida, os direitos fundamentais (voto, liberdade, cidadania, valorizao do
trabalho), a valorizao das culturas tradicionais, at o combate desigualdade,
corrupo e ao abuso de poder poltico, caracterizando o desempenho da liderana poltica
em vrios nveis.
Em segundo lugar, a poltica estudada luz do nvel de participao da
populao nas votaes - tanto na escala local quanto provincial -, alm da avaliao civil
dos servios pblicos a partir de algumas balizas: o acesso eletricidade, gua potvel,
tratamento de resduos e disponibilidade de centros mdicos (medido pelo indicador
comum dimenso sade - a proximidade ou distncia do acesso aos servios de sade via
caminhada).
Sendo assim, os indicadores de boa governana consistem em: servios pblicos
operantes num certo momento; desempenho do governo; participao poltica e; acesso
direitos fundamentais.
1.3.6. Diversidade e resilincia ecolgica
Na dimenso diversidade e resilincia ecolgica localizam-se duas aes
complementares: o trabalho de tcnicos e pesquisadores ligados ao aparelho
governamental, cujo objetivo de coletar materiais sobre os ecossistemas e monitorar a
preservao de sua biodiversidade e do uso dos recursos naturais (em acepo semelhante
que se tem sobre o manejo dos recursos de maneira sustentvel) e o trabalho da
populao, a qual atribuda a funo de coletar informaes sobre o risco e segurana
ambiental afim do governo mapear as reas de ocorrncia dos deslizamentos de terra,
enchentes, poluio do ar, hdrica e sonora, e de destino de resduos.
19
Nesta dimenso do FIB, a conservao do ambiente compreendida como um
quesito vital. Ela expressa a atualidade de alguns valores ticos, no mbito das polticas
para o meio ambiente de carter completamente inovador. Aps adoo de medidas de
funcionamento do FIB, o territrio do Buto mantm sua cobertura vegetal abrangendo
72% e ainda transformou 28% do territrio do pas em santurio ecolgico (PRADO apud
SILVA, 2011, p. 49). Vale dizer que at a degradao do ambiente urbano compreendida
pela tica da ausncia de reas verdes em larga escala, alm do nvel de espraiamento da
mancha urbana.
O domnio da diversidade e resilincia do meio ambiente caracterizado pelos
subindicadores a seguir: nvel de degradao ecolgica; nvel de degradao urbana; ndice
de reflorestamento e responsabilidade ambiental e; ndice de danos vida selvagem.
1.3.7. Bem-estar psicolgico
O domnio do bem-estar psicolgico mais uma dimenso de indicadores
inovadores em relao aos indicadores tradicionais de bem-estar. Ele de fundamental
importncia para a avaliao do FIB, pois est ligado, de maneira ampla, observao de
fenmenos que muitas vezes no interferem, pelo menos diretamente, na escala social.
por este motivo que a sua representao simblica, dentro do pensamento
econmico, rara. A cincia econmica concebeu, no limite, a teoria das preferncias
reveladas, dada a impossibilidade, para a microeconomia, em identificar as condicionantes,
origens e fundamentos das preferncias pessoais, pautando-se pela perspectiva do sujeito
como um mero consumidor que revela as suas preferncias de acordo com as escolhas que
faz sobre o seu gasto de dinheiro4.
De maneira geral, a satisfao com os servios prestados pela sociedade, alm do
nvel bem-estar subjetivo resultante, uma varivel que compreende o bem-estar social.
Segundo o portal brasileiro sobre o indicador, ligado organizao no governamental
Viso Futuro, a avaliao do bem-estar psicolgico permite identificar o grau de otimismo
que cada indivduo tem em relao s suas prprias escolhas e capacidades.
4
Vale dizer que, por exemplo, segundo essa concepo, as escolhas dos fumantes e obesos
exprimiriam suas reais preferncias, o que ampliaria o seu nvel de bem-estar. Mas de acordo com as
descobertas de Carol Graham, os obesos no so mais felizes, na verdade, que os no obesos e os fumantes
vivem o paradoxo de sentirem-se mais felizes quando aumentam os preos dos cigarros (ABRAMOVAY,
2012, p. 69).
20
Dessa maneira, os indicadores que compe essa dimenso dizem respeito
identificao da ocorrncia de emoes positivas, como compaixo e generosidade, de
emoes negativas, como angstia, egosmo, frustrao e ansiedade e da concepo
pessoal sobre necessidades bsicas, o que est correlacionado s dimenses anteriormente
destacadas: sade, padro de vida, relacionamentos, ocupao, equilbrio na quantidade de
trabalho. Vale destacar que a dedicao s atividades espirituais, medidas atravs da
ocorrncia da meditao e orao a nvel pessoal, est diretamente ligada, segundo o FIB,
ao bem-estar psicolgico.
O ndice de bem-estar psicolgico abrange, portanto, trs contedos principais:
indicadores psicolgicos sobre necessidades bsicas; indicadores de equilbrio emocional
e; indicadores de espiritualidade.
1.3.8. Vitalidade comunitria
O domnio da vitalidade comunitria emerge atravs de uma razo social sobre a
identidade coletiva. Ela seria caracterizada atravs de um agregado das taxas de
voluntariado e de doao monetria, o que forneceria a noo de confiana na comunidade,
entendida como famlia ampliada. H uma preocupao com a minimizao da violncia e
que contemplada, no bem-estar social, pela segurana. Este domnio avalia as interaes
que ocorrem intracomunidade e a capacidade de cooperao e de ampliao das
capacidades coletivas ao longo do tempo.
Os indicadores que compe esta dimenso: relaes familiares; relaes
sociocomunitrias e nvel de segurana.
1.3.9. Diversidade e resilincia cultural
A dimenso da diversidade e resilincia cultural est ligada dinmica e
preservao das tradies culturais, que podem contribuir positivamente para formao de
valores comuns e identidade comunitria. Variveis como a quantidade e o carter dos
eventos culturais, a diversidade de idiomas, a participao nas festividades da comunidade,
alm da tolerncia e assimilao de novos valores so considerados no ndice. Tambm
entra nessa conta a ampliao das capacidades pela incorporao de habilidades artsticas
no campo da tecelagem, bordado, pintura, carpintaria, escultura, modelagem, manipulao
de bambu, couro e metais (ouro, prata e ferro), papelaria e alvenaria.
21
O domnio da diversidade e resilincia cultural abrange as seguintes reas:
utilizao de dialetos locais; nmero de dias do ano despendidos em festividades
comunitrias; habilidades artsticas e; importncia e transmisso do Driglam Namzha
(cdigo de esttica e conduta tradicional do Buto).
22
CAPTULO 2 SOBRE ECOLOGIA E ECONOMIA
Na cincia econmica tradicional, o meio ambiente (ou meio fsico) - como sugere
uma consulta a um dos livros-texto mais utilizados nos cursos de economia5 - no uma
varivel que goza de grande prestgio. Na maioria dos casos ela nem considerada ou, nos
poucos casos em que presente, est restrita a situaes e espaos frgeis dentro dos
modelos econmicos. A possibilidade de um ajuste ou outro se faz e, sob a forma de
apndice da atividade produtiva ou pela execuo dos testes estatsticos de normalidade
sobre seu efeito residual, os modelos seguem ativos, muitas vezes perpetuando uma
tradio rigorosa, que reivindica o status de cincia, mas que alheio dimenso real e
material. Em grande parte do arcabouo terico da economia, a dimenso ecossistmica
possui a essncia de um almoxarifado ou dispensa, podendo at ser pensado como um
penduricalho (CAVALCANTI, 2010, p. 56).
Paradoxalmente, ainda que a lgica predominante na economia contempornea, o
capitalismo, fortalea diversos tipos de contradio, a alerta para o qual nos fazem,
repetidas vezes, gegrafos e alguns economistas marxistas e neomarxistas, a atividade
econmica tem sempre uma dimenso espacial ou territorial. O metabolismo entre
economia, espao e sociedade mobiliza, muitas vezes, uma transformao drstica nos
lugares, o que torna a atividade humana uma varivel considervel na modificao dos
espaos. LEFEBVRE (1974, p. 49) considera que a transformao do espao natural se d
sobre a suas runas; dele estabelece-se o espao social onde ocorre a acumulao.
Toda atividade humana, qualquer que seja, incide na metamorfose dos espaos. Os
ecossistemas quer pelo lado da extrao de recursos, quer pelo lanamento de dejetos sob
a forma energia degradada sofrem alteraes. A respirao extrai oxignio e devolve gs
carbnico ecosfera; a alimentao serve-se de solo, gua, fotossntese, etc. e converte-se
em fezes e urina, alm de energia trmica degradada; o automvel, queimando combustvel
retirado de petrleo, produz um trabalho, polui e aquece o ar, virando sucata no final de sua
vida til (CAVALCANTI, 2004, p. 149).
A natureza, enfim, fonte primria e insubstituvel da vida no planeta Terra. Na sua
condio de meio fsico, lhe cabe ser o suporte ao desenvolvimento de diversos
organismos. No caso dos seres humanos, a dependncia da natureza se aprofunda ainda
5
Este o caso do livro Microeconomia (2012), de Gregory Mankiw.
23
mais: o meio fsico de onde se retira a matria prima que ir satisfazer as necessidades de
sobrevivncia, mas no s: com o tempo, a humanidade se desenvolveu e passou a
manipular os recursos que a natureza lhe fornecia para adaptar a sua prpria vida.
Nesse processo, a humanidade desenvolveu novas necessidades, atividades capazes
de supri-las, novas capacidades e uma poro de significados sobre a sua existncia,
sempre socialmente. Neste percurso, no foram raras as vezes em que a foras da natureza
assumiram o papel de antagonismo frente ao desenvolvimento das atividades humanas,
pois representavam uma enorme barreira a ser vencida. A partir do momento em que a
evoluo tcnica permitiu encontrar maneiras de superar os seus obstculos, ela esteve
apartada das discusses sobre desenvolvimento econmico, o que permitiu a algumas
vertentes do pensamento econmico, em suas formulaes e modelos sobre crescimento
econmico, desconsiderarem qualquer efeito deste processo para com o meio ecolgico.
Contudo, a representao intelectual que concebeu o crescimento da atividade econmica
como um objetivo universal da economia contempornea, se mostrou limitada em resolver
os velhos problemas econmicos da produo e distribuio dos recursos disponveis,
conduzindo diversos seres humanos a diversas privaes e desigualdades (SEN apud
BELTRAME, 2009, p. 3).
neste contexto em que encontramos a economia contempornea: apartada das
relaes com o meio ecolgico ao mesmo tempo em que busca encontrar maneiras de
superar esse constrangimento. Nos ltimos anos, principalmente em decorrncia da
popularidade dos temas socioambientais, tem emergido (ainda que timidamente) campos
de estudo dentro economia que lidam com essas questes.
Poder-se-iam ser julgadas essas abordagens enquadramentos economicistas que o
tema ecolgico/ambiental est sujeito? No bojo terico de alguns desses trabalhos sim, mas
em outros no. De abordagens meramente instrumentais, que recorrem de maneira
inquestionvel desregulao das atividades econmicas e ao sistema monetrio para
corrigir alocaes ineficazes dos recursos, o pensamento econmico j est povoado
demais. mister buscar outras abordagens tino econmico que levem em conta o
mecanismo ecolgico e vice-versa.
A rea normalmente denominada economia do meio ambiente se preocupa em
manipular e encontrar os preos corretos que fazem jus alocao tima de recursos. Alm
disso, ocupam-se em identificar custos ambientais a fim de internaliza-los, com o objetivo
de se obterem preos que reflitam custos de oportunidade marginais timos e completos.
24
Para bom entendimento, trata-se de um ramo da microeconomia aplicada e da economia
industrial.
Por outro lado, amparado pela crescente preocupao acerca da sobrecarga do
sistema ecolgico enquanto sustentculo da reproduo da sociedade e de seu modo de
produo - por onde o modo de produo capitalista emerge como grande impactante do
ecossistema -, surge a enorme contribuio da economia ecolgica. Entender a vida
humana e sua relao com a natureza e o que podemos fazer constitui, por assim serem,
pontos de partida tericos que originam formalmente esse campo de estudo. Ocupa-se
tambm, apesar de no se apegar tanto s questes microfundamentais, do comportamento
dos mercados agregados, incluindo os mtodos da economia do meio ambiente, mas com
uma anlise que possibilita o nascimento de outros discursos, graas orientao crtica e
reflexiva que nela se inserem.
Tanto a economia do meio ambiente quanto a economia ecolgica permanecem longe
do interesse acalorado do mainstream. Muito embora a primeira seja mais consoante com
os pressupostos tradicionais que a cincia econmica presume, em relao segunda,
ambas no esto no epicentro das pesquisas ligadas tanto teoria econmica quanto
economia aplicada. Curiosamente, tambm no h registro formal de uma tradio em
macroeconomia propriamente ecolgica ou ambiental. provvel que haja esforos
cientficos nesse sentido, pois h muita relevncia em encontrar a escala adequada para os
estudos dessa interface entre os campos econmico, ecolgico e tambm poltico.
Para ser mais preciso, difcil registrar linhas e tradies de orientao ecolgica ou
ambiental em economia. No se sabe com exatido as razes ou motivos pelos quais isso
ainda no se foi possvel, apesar de poder especular-se a seu respeito: a) Possivelmente a
questo tica que ela impe no devidamente considerada ou posta em evidncia; b)
Provavelmente trata-se de um paradigma cuja emergncia recente, portanto, ainda no
est consolidado ou no amplamente aceito pela comunidade cientfica e filosfica.
De uma maneira ou de outra, no de se ignorar a importncia de sua necessidade
tica. Ela encontra a sociedade numa poca em que os debates poltico-econmicos sobre a
questo ambiental ainda esto em gnese. Tambm o uso do termo desenvolvimento
sustentvel para generalizar o movimento crtico explorao econmica baseada no
modelo de esgotamento dos recursos tem sido feito de maneira indiscriminada. Esse
mesmo conceito tem sido alvo de crticas muito severas, devido s suas ambiguidades,
indefinies e/ou contradies; nfase economicista e desenvolvimentista; alm de no
25
colocar em evidncia o verdadeiro constrangimento tico que a economia globalizada
submete.
Alm disso, a no explicitao sobre como resolver o conflito entre preservao e
crescimento econmico no contexto de capitalismo abriu margem para, nesse raciocnio,
representar o esgotamento das possibilidades reais de viabilidade da produo econmica
(HERCULANO, 1992; RODRIGUES, 1996; BRUGGER, 1994; STAHEL, 1995; LIMA,
1997; SANTOS, 1996 apud LIMA, 1999: p. 149). Nesse ringue, os defensores do
crescimento econmico passaram a se opor de maneira drstica a toda e qualquer discusso
de cunho socioambiental que pusesse em risco o seu discurso.
Como se pode perceber, a identificao da contenda entre natureza e sociedade,
meio ambiente e o contexto de incerteza da economia, compe a nova fronteira a ser
explorada, entre a cincia e teoria econmica. Toda a filosofia e a cincia esto sentindo os
abalos da emergncia do paradigma ecolgico e ambiental. A economia, sendo a cincia
social que se dispe a analisar a produo, a distribuio e consumo de bens e servios
materiais e imateriais, que diz respeito tanto esfera governamental quanto s empresas -
das escolhas que so feitas coletivamente ou individuais -, no escapa disso.
As noes de desenvolvimento que interessam a esta pesquisa deve considerar a
varivel ambiental. Logo, a promoo do bem-estar social, sem causar estresses e rudos
que o sistema ecolgico no possa acolher, deve fazer parte dessa investigao.
A vida em sociedade nunca esteve descolada de seu impacto ambiental e multiplicou-
se extraordinariamente e de forma nunca antes registrada como fora no breve sculo XX
(ABRAMOVAY, 2012). Segundo CAVALCANTI (2004, p. 150) nos cinquenta anos
posteriores Segunda Guerra Mundial, por exemplo, a populao do Brasil mais do que
triplicou, e o PIB do pas aumentou mais de 12 vezes; no mundo, a populao passou de
1,5 bilho de pessoas em 1900 para 6,3 bilhes em 2003. O PIB global, nestes mesmo
marco cronolgico, cresceu de 900 para 33 mil bilhes de dlares, a preos constantes (um
aumento de quase 37 vezes).
Que importncia isso revela ao ter-se a presena crescente dos humanos e da
economia sobre os ecossistemas e sobre a biosfera? Quanto mais o tempo passa e as
variveis ambientais no assumem a importncia que lhes digna nos debates sobre
economia e sociedade, expande-se um passivo ambiental que, infelizmente, carrega
consigo um enorme passivo social.
26
Ser que essas variveis s sero assimiladas quando no houver mais alternativa?
Eis um debate importante e que merece ser acompanhado com o devido esmero no s por
economistas, gestores e administradores. O contato que a sociedade civil trava com essas
questes est aqum do desejvel, mantendo-se, normalmente, na esfera do senso comum
ou da indiferena. Economia e meio ambiente no seriam temas de relevncia da cidadania
planetria?
Essa percepo intenciona apresentar como os problemas centrais tratados na
economia so vistos em favor de grau maior de sustentabilidade nas interaes entre o
sistema econmico e ecolgico, em sua vastido e variabilidade emprica. Pretende-se,
para dar cabo a isso, mapear as diversas contribuies sobre a interface to interessante que
dessas duas reas emergem, luz da necessidade original que ela imprime: uma viso mais
holstica e que transcenda fronteiras normais das disciplinas acadmicas e geogrficas
(CAVALCANTI, 2004, p. 156).
Agora, a sociedade precisa lidar com os problemas da economia materialista, com
poucas oportunidades de expanso diante dos recursos finitos e dos desafios da poluio
ambiental (GOSWAMI, 2011, p. 206). Para o interesse de uma economia que conte com
contribuies advindas da ecologia, do pensamento sistmico e da cincia da
complexidade, paradigmas da viabilidade da civilizao humana, o desafio reorientar o
progresso econmico de maneira a torn-lo compatvel com a preservao do equilbrio do
planeta (LWY, 2004, p. 101)
2.1. Georgescu-Roegen e bioeconomia
Um dos primeiros economistas a atravessarem a fronteira da economia aplicada em
busca de uma interface com a ecologia foi Nicholas Georgescu-Roegen. Ele nasceu em
Constana, Romnia, em 1906, onde fez seus estudos universitrios em matemtica e
doutorou-se em Paris com uma tese de estatstica6. Esteve na Romnia como professor da
Universidade de Bucareste at 1934 quando foi para Harvard, onde permaneceu at 1937,
perodo onde iniciou seu interesse pela teoria dos ciclos econmicos e teoria do consumo,
sendo contemporneo intelectual de Samuelson, Leontieff e Paul Sweezy. Retornou
Romnia em 1937, primeiro para Bucareste com objetivo de regressar sua ctedra e
depois, ao final da II guerra, como membro da Comisso de Armistcio. Em 1948 ele
6
Le problme de la recherche des composantes cycliques dun phenomne (1930)
27
retornou aos Estados Unidos e tornou-se professor do Departamento de Economia da
Universidade de Vanderbilt, sendo nomeado professor emrito em 1976.
Georgescu-Roegen demonstrou interesse em compreender desde cedo as relaes
entre as leis da termodinmica e as sociedades humanas, mas apenas no incio da dcada de
1970, quando j tinha idade para jubilar-se, publicou Entropy law and the economic
Process (1971), a obra percussora da economia ecolgica. Essa obra herdou o conceito de
balano energtico da termodinmica, incorporando-o na economia. Atravs da anlise da
dinmica populacional e sua implicao para o consumo, ele desenvolve um ramo analtico
da ecologia, valendo-se da linguagem matemtica para estimar gastos energticos das
atividades econmicos. Apesar de ser o pensador pioneiro em buscar as contribuies que
o pensamento ecolgico poderia fornecer economia, seus estudos, o que ele intitulou
como bioeconomics, no se constituiu uma escola ou tradio prpria em cincia
econmica.
Enquanto a economia clssica e neoclssica no levava em considerao a dimenso
material dos valores de uso e, por conseguinte, dos valores de troca, a reintroduo dos
aspectos fsicos da produo na tica da economia (retorno ao pensamento fisiocrata), se
deu atravs da lei de entropia e sua relao com a produo econmica, observada pelo
autor. SACHS (2007, p. 79) considera que a disperso do calor e a lei de entropia, ao serem
introduzidas na teoria econmica, qualificaram a gesto ecolgica como varivel
importante demais para ser ignorada pelos economistas. Um dos desdobramentos, que ele
chama ateno, para o fato de que pela opo da entropia se torna plausvel o
entendimento dos processos econmicos como contedo e intercmbio energtico. Isso
permite deduzir, por exemplo, que o fato de um alimento ter um valor energtico para o
consumo bem inferior energia empregada em seu processo produtivo, rastreia,
interessantemente, a importncia dos balanos energticos negativos que envolvem o
sistema econmico.
Contudo, SACHS (2007, p. 79) ressalta que disponibilidade do alimento como forma
consumvel deve ser distinguida da qualidade indisponvel que as fontes primrias de
energia representam. Ou seja, resumir o metabolismo econmico aos balanos energticos
tira o foco da discusso normativa da economia e no ilumina solues viveis. Ele
condena o enfoque que substitui integralmente a contabilidade monetria pela
contabilidade do contedo energtico que Georgescu-Roegen intenta, por ser igualmente
unidimensional, destacando que os instrumentos tradicionais da chamada caixa de
28
ferramentas do economista no garantem mais do que uma explicao parcial e terica do
processo econmico, tampouco vivel no plano emprico.
De acordo esse autor (2006, p. 80), a bioeconomia contm um certo exagero em
transpor as leis de termodinmica sociedade humana, uma vez que, em nome de uma
premissa conservacionista radical, reduz-se a preocupao econmica s restries dos
modelos de fluxo da matria. Da mesma maneira que a lgica estritamente produtivista
leva o raciocnio econmico de enorme risco, por induzir a apropriao predatria da
natureza, a prudncia ecolgica tambm exige que o raciocnio econmico de longo prazo
no seja unilateral, uma vez que raramente so aplicveis e calibrveis em cenrios reais de
curto prazo e negociao de interesses entre os agentes econmicos.
De qualquer forma, seria injusto no considerar que da podem ser extradas ricas
contribuies regulao dos processos industriais, introduzindo ferramentas da
bioeconomia, tais como a elasticidade-renda do consumo exossomtico de energia de um
processo (se ela maior que a unidade a ser consumida ou superior a zero), alm de
identificar o feedback existente entre incremento de consumo e aumento de insumos
materiais na produo. Numa via complementar a de SACHS (1986), MARTNEZ ALIER
(1998, p. 45) considerou que a obra de Georgescu-Roegen ainda era, nos idos dos anos de
1990, o principal fundamento da crtica ecolgica e ambiental s prticas da cincia
econmica convencional.
Apesar do certo reducionismo qumico-fsico que a bioeconomia introduz, tornando-
a inaplicvel estimar os balanos em larga escala at o presente momento, pode-se dizer
que sua contribuio reside na incumbncia de conceitos-chave da ecologia ao pensamento
econmico, convidando (ao menos) os economistas a preocuparem-se com o meio
ecolgico de algum ponto de vista, o que pode induzir a um maior esforo em preencher
lacunas e passarelas que habitam os modelos de criao e circulao de valores com o
fluxo de matria e energia que permeia toda a produo econmica (2006, p. 80).
O exame da realidade pe em evidncia que qualquer atividade econmica est
assentada em bases ecolgicas, representadas por fluxos de energia e de materiais que
alimentam todas as fases deste processo. nisso que consiste a compreenso que a
bioeconomia introduz. Porque como qualquer atividade traz embutida uma transformao
de energia atravs da converso qumica da matria bruta em movimento, energia
mecnica -, compete ao captulo da fsica que estuda o campo das transformaes
energticas explicar as regras sob as quais isso ocorre. Tal captulo precisamente o da
29
termodinmica, com suas leis duras e implacveis (GEORGESCU-ROEGEN, 1971), s
quais a economia tem que se submeter (BRANCO, 1999 apud CAVALCANTI, 2003, p.
154).
Por fim, Nicolas Georgescu-Roegen revelou a insuficincia da cincia econmica
tradicional em explicar a trajetria dos desgastes ambientais e energticos. Ao incorporar a
riqueza dos ciclos biogeoqumicos e dos intercmbios de energia trmica para o fim de
suas anlises, o aspecto metablico dos sistemas econmicos foi registrado pela primeira
vez, sem fugir da alcunha positiva que o pensamento econmico busca para se legitimar
como cincia.
2.2. Preservacionismo e culto vida silvestre
Em termos cronolgicos, a ecologia do culto vida silvestre e da defesa da natureza
intocada at anterior a contribuio de Georgescu-Roegen. Entre seus principais
expoentes esto John Muir e Aldo Leopold, com um intervalo de quase cinquenta anos de
um para o outro. Suas contribuies foram enriquecidas pelas descobertas vindas da
biogeografia e da ecologia dos sistemas, para com a percepo acerca da vida silvestre e
selvagem, chamando a ateno para aspecto funcional da preservao dos ecossistemas: o
seu uso econmico de valorizao.
Segundo MARTNEZ ALIER (2007, p. 22), o culto ao silvestre no ataca o
crescimento econmico enquanto tal, admitindo inclusive sua derrota para as
transformaes do mundo industrializado. Mas a preservao e a manuteno dos espaos
da natureza original, situados fora da influncia do mercado, eram seus motivos. Para isso,
recorre-se a argumentos cientficos que surgem atravs da biologia da conservao - que se
desenvolve a partir dos anos 1960 aos indicadores de presso demogrfica sobre os
ecossistemas, referentes parcela primria lquida de biomassa destinada apropriao
humana para produo -, evidenciando que uma proporo cada vez menor da biomassa
est disponvel para espcies que no esto associadas aos seres humanos.
As ferramentas por eles desenvolvidas se inserem na mesma linha que alguns
indicadores desse incio de sculo XXI sobre a sobrecarga humana sobre os ecossistemas,
como por exemplo, a chamada Pegada Ecolgica (ecological footprint). Muitos dos
argumentos preservacionistas contam com conceitos e teorias que pe em evidncia que a
30
perda da biodiversidade caminha a passos largos (2007: p. 23). Apoiaram-se nestes
argumentos os fundadores da teoria neomaltusiana de crescimento demogrfico.
Por outro lado, sua transposio economia um pouco limitada, pois, segundo
INGLEHART (1995) apud MARTNEZ ALIER (2007, p. 25), os pensadores dessa
vertente tem recorrido a argumentos ps-materialistas e s mudanas de ordem cultural,
em direo a novos valores presentes na sociedade. medida que a urgncia das
necessidades materiais estaria diminuindo, e isso seria caracterstica de uma poca ps-
materialista, a satisfao do bem-estar humano implicaria num maior apreo pela
preservao da natureza. Logo, a economia no deveria estar to preocupada em modificar
as relaes produtivas predominantes.
Sem dvida, como ressalta MARTNEZ ALIER (1998), o termo ps-materialismo
equivocado, pois h exemplos claros, como os Estados Unidos, o Japo e a Unio
Europia, que contrariam este conceito pelo fato de sua prosperidade econmica depender
enormemente de uma quantidade per capita crescente de recursos energticos e de
materiais, assim como a disponibilidade espacial crescente para depsito e descarte de
resduos. Segundo seu registro, na obra O ecologismo dos pobres e no captulo que dedica
a leitura histrica dos movimentos ecologistas7, de acordo com algumas pesquisas, a
populao da Holanda encontra-se no mais elevado patamar da escala de valores sociais
ps-materialistas (IGLEHART, 1995 apud MARTNEZ ALIER, 2007) sem, pelo contrrio,
ter tornado sua economia independente de um grande consumo per capita de matrias-
primas.
Atravs do balano energtico negativo que sustenta os pases do eixo Estados
Unidos Japo - Unio Europia, o autor (2007, p. 25) identifica que a crescente
preocupao com valores socioambientais no Ocidente a partir de 1970, contrariando o
argumento de Iglehart, no se deu em funo das sociedades estarem caminhando para
uma sociedade ps-materialistas. Possivelmente, a popularizao de informaes
relacionadas a setores econmicos estratgicos de energia e infraestrutura contriburam
para que a perspectiva ambiental se inserisse nas pautas de discusso pblica, alm das
preocupaes de ordem material decorrentes da contaminao qumica de rios e incertezas
7 Ecologismo e ambientalismo esto indistintamente empregadas nesse texto. Segundo Joan
Martinez Alier, seus usos variam: Na Colmbia, por exemplo, o ambientalismo considerado uma corrente
mais radical que o ecologismo; no Chile ou na Espanha, ocorre o contrrio.
31
suscitadas pela divulgao dos riscos associados energia nuclear (predominante nos anos
80).
Contudo, a representatividade do culto a vida silvestre em setores populares do
ambientalismo rendeu algumas contribuies ao campo poltico, como a Conveno da
Biodiversidade (1992), no Rio de Janeiro e a Lei de Espcies em Perigo, dos Estados
Unidos. Isso talvez seja a sua contribuio mais louvvel: diferentemente da Bioeconomia,
tentativa cientfica, ela introduziu uma retrica normativa e utilitarista em favor do meio
ambiente, o que a tornou a primeira e mais conhecida vertente da ecologia poltica.
Por fim, j nos anos 90, essa abordagem rompeu com diversos setores do ecologismo
de orientao mais radical, diante da viso antagnica que predomina entre
preservacionismo em relao ao uso rural dos ecossistemas. Como parte deste argumento o
movimento do culto vida silvestre direciona uma preocupao secundria s frgeis
populaes que desses ecossistemas dependem diretamente, o que acentua o antagonismo
com outras vertentes da economia ecolgica.
Ao priorizar a preservao e o controle ambiental para posterior valorizao
mercantil da natureza e de seus recursos, alou os interesses relacionados vida silvestre a
outro patamar. O preservacionismo ganhou espaos em aparelhos de gesto pblica no
mbito global e qualificou-se como bandeira principal de diversas organizaes no
governamentais de expresso (MARTNEZ ALIER, 2007). claro que isso desejvel, de
algum ponto de vista. Todavia, transformou-se numa espcie de mainstream da ecologia
poltica e, se no houver esforos no sentido de ampliar a contribuio que o pensamento
ecolgico pode fornecer economia que no apenas a valorizao monetria dos espaos
preservados, a sociedade continuar merc dos interesses dos agentes hegemnicos que
mais confundem que esclarecem a sociedade civil sobre o tema ambiental.
2.3. O assim chamado desenvolvimento sustentvel
A corrente do culto vida silvestre tem sido desafiada desde algum tempo atrs pela
corrente do ecologismo preocupada com os efeitos do crescimento econmico, no s nas
regies de natureza intocada, mas tambm em territrios industrializados. Sua ateno
volta-se para os impactos ambientais ou riscos sociais decorrentes das atividades
econmicas inclusive nos ambientes urbanos. Pode-se dizer que essa segunda corrente do
32
movimento ecologista se preocupa com a economia numa forma de totalidade
(MARTNEZ ALIER, 2007, p. 26).
O desenvolvimento sustentvel est nucleado na noo de sustentabilidade ambiental
hegemnica, referendada pela Organizao das Naes Unidas (ONU) no Relatrio
Brundtland (1987). uma concepo que se tornou notria por ser a maior fornecedora de
conceitos e ideias relacionadas ao meio ambiente no contexto ocidental e por pressionar as
empresas a um posicionamento tico diante do paradigma socioambiental.
Ao debruar o seu discurso sobre a tentativa de transformar algumas bases do
sistema produtivo principalmente com relao eficincia energtica e sobre as matrizes
tcnicas de explorao dos recursos, essa forma de desenvolvimento promove a busca por
alternativas aos meios que so empregados hoje em dia, sem, contudo, apontar as
contradies do sistema capitalista. De certo modo representa uma continuidade em
relao primeira corrente do pensamento ecolgico, mas se aproxima com mais
profundidade do debate econmico em torno da questo ambiental como totalidade, apesar
de, diferentemente, no apelar para a perda dos atrativos naturais e motivos estticos
alegados pela ecologia do culto vida silvestre para construir o seu arcabouo terico.
Por no romper com a estrutura capitalista vigente, que produz e reproduz padres de
explorao dos recursos que comprometem a sua disponibilidade futura, a questo do
desenvolvimento sustentvel adquiriu a incrvel capacidade de aglutinar uma imensa
nebulosa de discursos sobre responsabilidade socioambiental vindos de setores
empresariais, dos governos, das ONGs, da sociedade civil e de rgos supranacionais. A
natureza hbrida de seus enunciados, que busca no responsabilizar nenhum agente
econmico pela degradao dos servios que os ecossistemas prestam humanidade,
parece ter favorecido enormemente a descoordenao das aes dos agentes econmicos.
Pode-se dizer isso, pois muitos dos corolrios lgicos, modernizao ecolgica, boa
(ou consciente) utilizao dos recursos, alm do crescimento econmico, mas no a
qualquer custo, por um lado, tem sido utilizados empresas e governos de maneira to
descontextualizada que, diversos movimentos ambientalistas tem julgado o termo
desenvolvimento sustentvel banal. Surge tambm a perspectiva dos agentes econmicos
utilizarem este termo para designar propostas tanto de marketing verde quando
33
greenwashing8. Neste caso, no parecem diferenciar o contedo substantivo que envolve o
desenvolvimento sustentvel do seu contedo instrumental9.
Por outro lado, o aprofundamento na compreenso das disputas polticas em torno de
um enfoque economicista da questo ecolgica fez do assim chamado desenvolvimento
sustentvel o receptculo ideal das discusses sobre regulao dos recursos naturais, ainda
que ela no defina a escala e nem os sujeitos que devem pagar pela sua exausto. Enfim, a
conformao do grande campo de foras ambientalistas, a partir da ECO-92 levou a
considerar que o conceito de sustentabilidade carregava uma indeterminao, a qual
denominou-se nebulosa ambientalista (MOREIRA, 1993; 2004, p. 195).
Com uma representatividade considervel nos debates poltico econmicos sobre
meio ambiente, graas a seu fisiologismo ideolgico, introduziu um aparato discursivo que
tem se tornado a principal e mais recorrente linguagem do ecologismo junto com o
preservacionismo. Seu interesse na regulao ambiental a levou de encontro com certa
corrente denominada economia ambiental (que est a seguir, neste trabalho), que busca
explicaes ambientais endgenas ao sistema, como o entendimento dos fatores do
metabolismo industrial e dos preos corretos de regulao, por intermdio da
internalizao das externalidades (MARTNEZ ALIER, 2007, p. 28).
Ou seja, no desenvolvimento sustentvel, o aspecto cientfico da ecologia se
converte, por um lado, num saber gerencial ocupado em remediar a degradao ambiental
causada pelos processos industriais e decorrentes da urbanizao, estando presente na
economia atravs de vnculos empresariais e governamentais, cujo objetivo consagrar,
pela gesto dos recursos, sua utilizao indefinida pelas geraes atuais e futuras.
Por outro lado, de uma forma at mesmo leonina, ela esconde por baixo de sua
colorao verde uma dinmica competitiva intercapitalista (MOREIRA, 1999, 2004: p.
196). Segundo MARTNEZ ALIER (2007) uma corrente de utilitaristas cujo interesse na
eficincia tcnica est desprovida da noo do sagrado, o que pelo menos aparece nos
escritos pioneiros do culto vida silvestre. A extino de aves, rs ou borboletas indica
problemas (desequilbrios ecolgicos), tal como a morte de canrios nos capacetes dos
mineiros de carvo. Contudo, essas espcies, enquanto tais, no possuem direito
indiscutvel vida (MARTNEZ ALIER, 2007, p. 27).
8
Para mais informaes sobre estes conceitos, consultar DIAS (2011).
9
Usaremos as designaes substantivo x instrumental que habitam a obra do economista Amartya
Sen.
34
Por diversas razes, de ordens polticas e econmicas, o assim chamado
desenvolvimento sustentvel emerge na contemporaneidade como a corrente mais
influente dentro do paradigma ambiental, mesmo que os valores morais que propem
estejam num nvel apenas raso. O grande enfrentamento ainda sem soluo entre a
expanso econmica e os interesses socioambientais no cessou: a maior parcela dos
pases ainda no definiu com preciso o que espera no futuro sobre a questo do meio
ambiente, por conta de uma submisso excessiva aos interesses econmicos de curto prazo
das empresas e da sociedade de consumo em que vivemos.
No plano emprico, sua insuficincia crtica e insucesso como alternativa econmica
residem na ausncia do poder de legao das organizaes intergovernamentais. Muitas
reflexes presentes em documentos internacionais de prestgio, tais como a Agenda 21 e a
Carta da Terra concebem o desenvolvimento sustentvel como estgio superior ao
capitalismo. Contudo, a sua execuo no pode se dar sem uma ao articulada de todos os
agentes econmicos e setores da sociedade civil, o que autoriza uma dose exagerada de
idealismo participar do debate econmico ecolgico, alm de agradar aos mantenedores da
ordem vigente, por permitir o esvaziamento de seu contedo necessrio:
O desenvolvimento sustentvel um meta-arranjo que une a todos, do industrial preocupado com seus lucros ao agricultor de subsistncia
minimizador de riscos, ao assistente social ligado ao objetivo de maior
equidade, ao primeiro mundista preocupado com a poluio ou com a
preocupao da vida selvagem, ao formulador de polticas que procura
maximizar o crescimento, ao burocrata orientado por objetivos e, portanto, ao
poltico interessado em cooptar eleitores. (LEL, 1991, p. 613 apud
MUELLER, 2007, p. 137).
Como se pode observar, focalizar neste conceito todas as expectativas que temos
para solucionar os problemas ambientais, alm de ser uma ingenuidade, pois so evidentes
os enormes os seus obstculos tcnicos e polticos para tornar realidade esse paradigma, h
sempre o risco de exagerar na confiana que se deposita queles que advogam em seu
favor. Como disse corretamente MUELLER (2007, p. 137), sua noo est muito prxima
do critrio de eficincia de Pareto da anlise econmica por admitir que muitos pudessem
ganhar, mas exige que ningum perca nem os atuais ricos, nem os atuais pobres e nem as
geraes futuras.
Se o relatrio da Comisso Mundial do Meio Ambiente (CMMD, 1987 apud
MUELLER, 2007) mostra que os atuais padres de crescimento no so sustentveis,
35
requerendo a implantao de programas radicais para corrigir tendncias econmicas que
so predominantes, a dvida que surge : ser razovel esperar que tais mudanas sejam
Pareto-eficientes? Ser vlido supor que, mesmo que tais mudanas engendrem uma
legio de ganhadores, seja possvel evitar que muitos tenham considerveis perdas?
(MUELLER, 2007, p. 138).
2.4. Justia ambiental e ecologismo popular
Segundo MARTNEZ ALIER (2007, p. 34), a justia ambiental assinala que os
efeitos colaterais do crescimento econmico autorreferenciado sobrecarregam
diferencialmente algumas populaes, geralmente as menos privilegiadas. Ele destaca que
os impactos mais significativos sobre a questo ecolgica no so apenas com relao ao
meio fsico em si, mas sobre o agravamento da situao frgil que permanece a vida de
algumas pessoas do meio rural, chamando ateno para o deslocamento geogrfico das
fontes de recursos rurais para reas de descarte dos resduos.
Ela um desmembramento da ecologia poltica (a fuso da ecologia humana com a
economia poltica). Essa corrente foi identificada a partir de meados da dcada de 1980
como agrarismo ecolgico (GUHA, MARTNEZ ALIER, 1997 apud MARTNEZ ALIER,
2007: p. 37) e surgiu principalmente como forma de contestao tanto da wilderness
thinking (culto vida silvestre) quanto do scientific industrialism (ecodesenvolvimento
ou desenvolvimento sustentvel).
O movimento por justia ambiental vinculou os movimentos camponeses de
resistncia crtica ecolgica, para compor uma frente de luta contra a modernizao
agrcola, entendida como um elemento faci