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UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA JLIO DE MESQUITA FILHO
Faculdade de Cincias e Letras Campus de Araraquara - SP
Fabio Mascaro Querido
Crtica e autocrtica da modernidade: crise
civilizatria e utopia anticapitalista em Michael Lwy
Araraquara S.P. MARO/2011
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Fabio Mascaro Querido
Crtica e autocrtica da modernidade: crise civilizatria e utopia anticapitalista em Michael Lwy.
DISSERTAO APRESENTADA AO PROGRAMA DE PS-
GRADUAO EM SOCIOLOGIA - FACULDADE DE CINCIAS E LETRAS (FCL), UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA (UNESP, ARARAQUARA) -, COMO REQUISITO PARA A OBTENO DO TTULO DE MESTRE EM SOCIOLOGIA.
LINHA DE PESQUISA: SOCIEDADE CIVIL, TRABALHO E MOVIMENTOS SOCIAIS ORIENTADOR (A): PROF. DRA. MARIA ORLANDA PINASSI BOLSA: FAPESP
ARARAQUARA S.P. 2011
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DATA DA DEFESA: 15/03/2011 MEMBROS COMPONENTES DA BANCA EXAMINADORA: PROFA. DRA. MARIA ORLANDA PINASSI PRESIDENTE E ORIENTADOR (A): DEPARTAMENTO DE SOCIOLOGIA, UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA, ARARAQUARA - SP. PROFA. ISABEL MARIA F. R. LOUREIRO MEMBRO TITULAR: DEPARTAMENTO DE FILOSOFIA, UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA, MARLIA - SP. PROFA. ELIANA MARIA DE MELO SOUZA MEMBRO TITULAR: DEPARTAMENTO DE SOCIOLOGIA, UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA, ARARAQUARA - SP. PROFA. LUCILA SCAVONE MEMBRO SUPLENTE: DEPARTAMENTO DE SOCIOLOGIA, UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA, ARARAQUARA SP. PROF. MARCELO SIQUEIRA RIDENTI MEMBRO SUPLENTE: DEPARTAMENTO DE SOCIOLOGIA, UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS SP. LOCAL: FACULDADE DE CINCIAS E LETRAS UNESP CAMPUS DE ARARAQUARA
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Transformar o mundo, disse Marx; mudar a vida, disse Rimbaud: estas duas palavras-de-ordem para ns so uma s. Andr Breton. Discurso no Congresso dos Escritores - 1935.
Ser crtico implica elevar o pensamento to acima de todas
as conexes a tal ponto que, por assim dizer magicamente, da compreenso da falsidade das conexes, surgiria o conhecimento da verdade. Walter Benjamin. O conceito de crtica de arte no romantismo alemo.
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Agradecimentos
Como de praxe, deve-se ressaltar que este trabalho no seria possvel sem a
contribuio e o apoio constante de algumas pessoas. Diretamente envolvida, agradeo
primeiramente minha orientadora Maria Orlanda Pinassi, cujo compromisso com os de
baixo sempre lhe prescreveu a capacidade de nos ajudar a caminhar para muito alm das
meras impostaes acadmicas. Sem o seu apoio constante, alm de sua disponibilidade
para com as tentativas de compreender os impasses do presente, este trabalho seria, no
mnimo, um intento mais empobrecido, desprovido do esprito crtico caracterstico
daqueles para quem a racionalidade capitalista atual no , e nem poderia ser, o horizonte
insupervel da humanidade.
Alm disso, manifesto minha gratido com as professoras Eliana Maria de Melo e
Souza e Isabel Loureiro, cujas crticas e sugestes contriburam efetivamente para a
constituio do texto final. A Isabel Loureiro, em especial, devo tambm agradecer pela
leitura crtica constante de textos e resenhas de minha autoria, auxiliando de modo decisivo
a consumao deste trabalho. A ela, todos os meus reconhecimentos. Deve-se mencionar,
tambm, o importante apoio dado pesquisa pelo prprio objeto, quer dizer, pelo prprio
Michael Lwy, cuja generosidade e presena de esprito intelectuais constituram um
estmulo a mais na realizao da pesquisa. Sem, deliberadamente, nunca interferir
diretamente no contedo do trabalho em andamento, Lwy colocou-se sempre em total
disposio para ajudar no possvel, inclusive no que se refere s abordagens metodolgicas
possveis num trabalho desta natureza, isto , uma anlise sociolgica de uma trajetria
intelectual singular.
Agradeo igualmente, enfim, alm de meus pais, aos amigos que sempre me
acompanharam, e cuja confiana e camaradagem contriburam decisivamente para a
convico de que o trabalho ora apresentado tinha alguma razo de existir. Dentre estes,
destacam-se especialmente, dentre outros, meus amigos de toda vida Luiz Henrique Fquer
(Pitu), Pblio Valle, Rubens Junior, Lucas Belilacqua, Renata e Bruna Tno, sem falar
em todos aqueles que comigo dividiram experincias ao longo de uma trajetria acadmica
e poltica comum, como Afonso, Bruno Rubiatti, Andr, Adriana, entre vrios outros. Em
particular, agradeo a Maria Teresa Mhereb pelas sugestes de reviso que, certamente,
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contriburam para um texto menos truncado, e mais atinado com a forma adequada
exposio do contedo desejado. Muitos outros nomes amigos e professores poderiam
ser mencionados, os quais ajudaram, de uma forma ou de outra, na andamento e na
consumao da pesquisa.
Por fim, agradeo FAPESP pelas bolsas de Iniciao Cientfica e de Mestrado
concedidas, as quais foram de vital importncia para a realizao da pesquisa.
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RESUMO: Em toda a sua trajetria, Michael Lwy notabilizou-se pela flagrante
disposio em reler diversos autores e vises de mundo do passado luz das condies de
possibilidade do cenrio histrico contemporneo - caracterizado, entre outras coisas, por
um esgotamento do progresso capitalista e do modelo civilizatrio vigente, como sugere
a emergncia vertiginosa da crise ecolgica. Partindo desta constatao, o objetivo desta
dissertao apresentar e problematizar a defesa terica e poltica de Michael Lwy da
necessidade de uma ruptura do marxismo com as ideologias do progresso e com o
paradigma civilizatrio capitalista-moderno. A hiptese central a de que o tema da crtica
da modernidade que se manifesta concretamente nos debates em torno do eco-socialismo
o eixo a partir do qual se torna possvel conferir concretude histrica trajetria
intelectual de Lwy: de seus primeiros trabalhos na dcada de 1960 at suas incurses mais
recentes por diferentes expresses da recusa crtica e/ou utpica da modernidade, tais como
a crtica benjaminiana da temporalidade histrica do progresso dos vencedores, a crtica
weberiana e romntica da modernidade e, por fim, a rejeio utpico-religiosa do
capitalismo moderno, presente em algumas expresses do messianismo judaico na Europa
Central ou do cristianismo de libertao latino-americano.
PALAVRAS-CHAVE: Michael Lwy; crtica da modernidade; eco-socialismo; crtica do
progresso; Walter Benjamin; romantismo; utopia anticapitalista; marxismo libertrio.
ABSTRACT: Throughout his career, Michael Lwy was most notable by rereading several
authors and worldviews from the past to the brightening possibilities of the actual times -
characterized, among others, by the increasing lack of capitalist progress and the current
model of civilization, as suggested by the vertiginous emergency of the ecological crisis.
From this viewpoint, this dissertations goal is to present and discuss Michael Lwys
theoretical and political defense of the rupture necessity of marxism from the progress
ideologies and the modern-capitalism civilizacional paradigm. The central hypothesis is
that the subject-matter of modernitys critique - which concret expression may be found on
debates on eco-socialism - is the center line in which it will be possible to check out on
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Michael Lwys career its concret intellectual history: from his first works in the 60s till
his most recent incursions on different expressions of critical and/or utopical modernitys
refusal, such as benjaminian critiques to the winners progressive temporality, weberian
and romantic critiques to modernity and, at last, the utopian-religious rejection of modern
capitalism, present in some Central Europe jewish messianism expressions and in latin-
american liberating christianity.
KEYWORDS: Michael Lwy; critique of modernity; eco-socialism; critical of the
progress; Walter Benjamin; romanticism; anti-capitalist utopia; libertarian marxisme.
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APRESENTAO...............................................................................................................9 CAPTULO 1 .................................................................................................................20 CAPITALISMO CONTEMPORNEO, CRISE ECOLGICA, CRISE CIVILIZATRIA: ECO-SOCIALISMO E RENOVAO DO MARXISMO ........20
1.1. Eco-socialismo e crtica da modernidade em Michael Lwy ...................................23
CAPTULO 2 ..................................................................................................................45 UMA TRAJETRIA INDISCIPLINADA: A FORMAO INTELECTUAL DE MICHAEL LWY ........................................................................................................45
2.1. Marxismo ou a dialtica da totalidade: o mtodo e o primado da prxis ..................58
CAPTULO 3 ..................................................................................................................67 WALTER BENJAMIN E A CRTICA MARXISTA DO PROGRESSO.....................67
3.1. A tradio dos oprimidos na contramo da temporalidade vazia e homognea do progresso.......................................................................................................................74 3.2. A histria como catstrofe permanente ou a dialtica do progresso .........................91
CAPTULO 4 ..................................................................................................................97 EM BUSCA DE UMA LEITURA ANTICAPITALISTA DE MAX WEBER..............97
4.1. A valorizao dialtica do Kulturpessimismus weberiano......................................102 4.2. O marxismo weberiano ou a radicalizao anticapitalista de Weber...................106 4.3. Marx, Weber e a crtica do capitalismo: subsuno dialtica ou concesso terica?112
CAPTULO 5 ................................................................................................................ 122 TEMPORALIDADE HISTRICA, ROMANTISMO E MARXISMO EM MICHAEL LWY ........................................................................................................................... 122
5.1. A retomada marxista do anticapitalismo romntico ............................................... 124 5.2. O marxismo e as ambivalncias do anticapitalismo ............................................... 148
CAPTULO 6 ............................................................................................................... 155 MARXISMO, POLTICA E TEOLOGIA: A REVALORIZAO DAS UTOPIAS155
6.1. Utopias libertrias e messianismo judaico ............................................................. 159 6.2. Teologia e Libertao na Amrica Latina ............................................................. 166 6.3. As utopias do marxismo de Michael Lwy ........................................................... 176
CONSIDERAES FINAIS ........................................................................................ 181 CRTICA E UTOPIA: O MARXISMO LIBERTRIO DE MICHAEL LWY .. 181 BIBLIOGRAFIA...............................................................................................................189 ANEXO ......................................................................................................................... 209 SOBRE O AUTOR OU PEQUENA BIOGRAFIA DE AUXLIO .............................. 209
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APRESENTAO
Em A semana, conjunto de crnicas escritas entre 1892 e 1900, Machado de Assis
afirmou: Desconfiai de doutrinas que nascem maneira de minerva, completas e armadas.
Confiai nas que crescem com o tempo. Ora, a advertncia machadiana, sempre bem vinda,
pode ser tomada como uma das convices que regem este livro sobre Michael Lwy,
intelectual cuja trajetria caracteriza-se exatamente por um movimento ascendente; neste
caminho, ao mesmo tempo em que manteve uma mesma perspectiva terica e poltica
marxista original, sua obra cresceu com o tempo, potencializando gradativamente as
virtualidades que j pareciam estar em germe desde seus primrdios. Na trajetria de
Michael Lwy, a incorporao de novas inspiraes tericas no significa o abandono das
referncias anteriores; ao contrrio, a descoberta do novo enriquece a forma de apropriao
do antigo, elevando-o a outro patamar, capaz de responder aos desafios sempre renovados
do real. Com isso, o acmulo no apenas quantitativo como, sobretudo, qualitativo,
medida que transforma cada nova influncia em elemento de atualizao das inspiraes
precedentes.
Desde o princpio de sua trajetria, Michael Lwy destacou-se pela disposio em
percorrer as mais variadas linhagens do marxismo e do pensamento anticapitalista, sem
falar em sua tentativa de dialogar criticamente com diferentes campos das cincias sociais
acadmicas. Crescendo com o tempo, a obra de Lwy atingiu seu ponto mais alto
especialmente aps a incorporao substantiva de aspectos centrais do marxismo
romntico de Walter Benjamin, momento a partir do qual se tornou possvel estabelecer
uma espcie de sntese de toda sua bagagem anterior, redimensionando-a luz da atual fase
da hegemonia capitalista e das transformaes nas formas de luta das classes oprimidas. Por
isso, sua leitura do marxismo foi se resignificando com o tempo, e seus trabalhos mais
longnquos aparecem, ento, como etapa fundamental de um itinerrio que, agora mais do
que nunca, parece capaz de reunir as condies para o enfrentamento terico e poltico dos
desafios decisivos do mundo contemporneo.
Em um pequeno e interessante ensaio sobre Michael Lwy, Roberto Schwarz sugere
a possibilidade de diviso da obra de Lwy em trs blocos centrais, os quais diferem
entre si em virtude no somente das disposies intrnsecas, internas, da obra do autor,
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seno tambm devido aos prprios desdobramentos e transformaes da (ps) modernidade
capitalista, antes e aps a dbcle definitiva do chamado socialismo realmente existente.
Segundo o esquema de Schwarz, o primeiro conjunto temtico corresponde aos trabalhos
tericos de Lwy redigidos nas dcadas de 1960 e 1970, nos quais se estabelece uma
compreenso original e inventiva de autores clssicos do marxismo, tais como Marx,
Trotsky, Rosa Luxemburgo, Georg Lukcs, Ernesto Che Guevara, dentre outros. Pode-se
destacar, neste momento, alm da tese sobre a teoria da revoluo no jovem Marx
(defendida sob orientao de Lucien Goldmann em 1964, na Sorbonne, em Paris), a
instigante anlise da evoluo poltica de Lukcs, em que Lwy buscou revelar as
potencialidades revolucionrias imanente s conflagraes e ambigidades da trajetria do
filsofo hngaro, da juventude romntica at a adeso explosiva ao comunismo.
O segundo bloco terico e temtico concentra-se na tentativa de Michael Lwy de
fundamentar uma espcie de sociologia marxista do conhecimento, defendendo a
superioridade metodolgica do marxismo em funo de seus vnculos com a classe social
revolucionria do presente histrico: o proletariado, a um s tempo sujeito e objeto do
conhecimento, eixo sob o qual poderia emergir uma compreenso (crtico-prtica,
retomando as letras de Marx e Engels nA Ideologia Alem) dos alicerces bsicos da
totalidade, em suas mltiplas determinaes concretas1. Resultaram da seus inmeros
textos dedicados sociologia do conhecimento, em cujas premissas argumentativas pode-se
perceber com nitidez a influncia no s do Lukcs de Histria e conscincia de classe
(HCC), ou das consideraes metodolgicas de Lucien Goldmann, mas tambm, em certa
medida, do verdadeiro fundador da sociologia do conhecimento Karl Mannheim.
O terceiro momento do percurso intelectual de Michael Lwy, de acordo com
Schwarz, alm de mais complexo e polmico, caracteriza-se pela consecuo concreta da
busca pela redefinio do lugar do marxismo em face das complexidades do mundo
contemporneo. Desde ento, delineia-se uma nfase na necessidade de atualizao crtica
do marxismo a partir de um franco dilogo com as mais diversas expresses da crtica
modernidade capitalista. 1 Em Histria e conscincia de classe, Georg Lukcs afirmara: No a predominncia dos motivos econmicos na explicao da histria que distingue decisivamente o marxismo da cincia burguesa: o ponto de vista da totalidade. Georg Lukcs, Histria e Conscincia de Classe, So Paulo: Martins Fontes, 2003, p.105.
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Da sua incurso em grande escala pelos territrios do romantismo anticapitalista, do utopismo e do messianismo judaicos, em cuja crtica do progresso ele encontra um elemento de verdade contempornea, importante para uma atualizao do marxismo2.
Lwy dedica-se, ento, reavaliao marxista das inmeras manifestaes - tericas,
polticas e artsticas - de crtica (negativa) da modernidade: dos romnticos ao judasmo
libertrio da Europa Central, dos surrealistas aos recentes movimentos ecolgicos.
Do ponto de vista terico e poltico, o momento chave, quer dizer, o auge deste
bloco temtico repousa na descoberta de Walter Benjamin, cuja obra conferiu a Lwy a
possibilidade de extrair todas as consequncias de aspectos tericos que, at ento,
permaneciam latentes, estimulando-o a uma significativa ampliao temtica de seus
trabalhos. Com a obra de Benjamin, Lwy intensifica a busca por elementos tericos e
polticos necessrios radicalizao da crtica marxista da modernidade e do progresso,
mudana que se justifica pela tentativa de enfrentar diretamente o contexto histrico e
cultural dos tempos contemporneos.
No por acaso, diferena do primeiro e do segundo blocos que estavam
diretamente envolvidos na disputa ideolgica em curso, e tinham algo de fla-flu
doutrinrio3 o terceiro momento da trajetria de Lwy vincula-se intimamente aos
impasses histricos dos outros dois e, consequentemente, aos desafios do presente.
Consolida-se, neste momento, a convico de ordem terica e poltica de que o
marxismo [...] precisa, para enfrentar os problemas atuais, radicalizar sua crtica da
modernidade, do paradigma da civilizao ocidental, industrial, moderna, burguesa4,
propondo um novo desfecho para a crise, historicamente necessria, do discurso filosfico
da modernidade. Eis porque, diz Schwarz, os escritos deste perodo desenvolvem-se sob
um prisma mais problematizador, o que lhes garante uma indiscutvel superioridade
literria5.
2 Roberto Schwarz, Aos olhos de um velho amigo. In: Ivana Jinkings & Joo Alexandre Peschanski, As utopias de Michael Lwy. Reflexes sobre um marxista insubordinado, So Paulo: Boitempo, 2007, pp.155-160. (p.159). 3 Idem, p.159. 4 Michael Lwy, Marxismo: resistncia e utopia. In: Michael Lwy & Daniel Bensad, Marxismo, modernidade e utopia. So Paulo: Xam, 2000, pp.241-247. (p.242). 5 Roberto Schwarz, Aos olhos de um velho amigo, op.cit., 2007, p.159.
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Concretamente, pode-se dizer que a perspectiva da crtica radical da civilizao
capitalista-moderna, que d o tom deste terceiro bloco, manifesta-se em toda a sua
plenitude na forma especfica assumida pela adeso contempornea de Michael Lwy ao
eco-socialismo. Com o eco-socialismo, a defesa de uma crtica marxista da modernidade
vinculada reivindicao poltica de uma alternativa socialista em ruptura com o progresso
destrutivo e com o paradigma civilizatrio capitalista-moderno - tal como, alis, Benjamin
reivindica nas Teses sobre o conceito da Histria e/ou no Projeto das Passagens. No
contexto da obra de Lwy, o eco-socialismo constitui, por isso mesmo, uma mediao
concreta atravs da qual ele articula sua postura em face de questes eminentemente
contemporneas como a crise ecolgica ou, melhor dizendo, a crise civilizatria vigente.
Neste percurso, como se a anlise crtica do capitalismo moderno cuja densidade
terica foi composta atravs da leitura de HCC atingisse agora um novo patamar, a partir
do qual Lwy rene condies tericas para enfrentar de forma mais problematizadora as
novas formas de realizao do capitalismo contemporneo, marcado pelo esgotamento
histrico do progresso e do discurso filosfico da modernidade. Enquanto seus trabalhos
das dcadas de 1960 e 1970, que consolidam uma leitura humanista e historicista do
marxismo (compreendido, antes de tudo, como filosofia da prxis), constituam parte das
disputas tericas e polticas de um perodo em que ainda soavam os ecos revolucionrios do
68 francs e das demais movimentaes revolucionrias no centro e na periferia do
capitalismo, os seus trabalhos mais recentes, que extrapolam os limites do marxismo,
vinculam-se diretamente s condies polticas e ideolgicas do capitalismo
contemporneo, marcado pela deslegitimao de toda e qualquer grande narrativa
emancipatria.
Por isso mesmo, a partir do presente, ou seja, das condies de possibilidade do
capitalismo e das lutas anticapitalistas do tempo-de-agora (como diria Benjamin), que
se torna possvel estabelecer um fio condutor que atravessa o conjunto da obra de Lwy, e
que se expressa em todas as suas consequncias aps os anos 1980. Do seu ponto mais
desenvolvido, quer dizer, quando sua trajetria atinge uma espcie de cume intelectual,
torna-se possvel visualizar com melhor preciso os diversos momentos de constituio
terica da obra de Michael Lwy. A insistncia na necessidade de radicalizao da ruptura
do marxismo com toda forma de crena no progresso e no paradigma civilizatrio
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capitalista-moderno insistncia que assume caractersticas concretas com a reivindicao
da perspectiva eco-socialista - constitui, no limite, um parmetro a partir do qual se pode
melhor avaliar a obra de Michael Lwy luz dos desafios de um presente caracterizado
pela baixa mundial do marxismo e pelo declnio relativo das outrora absolutas certezas do
progresso.
Partindo do presente, o objetivo deste livro , ento, traar uma relao dialtica
entre o desenvolvimento interno da obra de Michael Lwy e as transformaes do cenrio
histrico a qual se vincula, desde sua formao intelectual no Brasil da segunda metade da
dcada de 1950 at sua trajetria na Europa, particularmente na Frana, onde assistira a
emergncia fulminante dos (ps) estruturalistas, cujas teses tornaram-se a ponta de lana
filosfica do discurso ps-modernista. A resposta s transformaes do cenrio histrico
contemporneo constitui o ponto de chegada da trajetria de Lwy que se expressa
politicamente nas discusses sobre o eco-socialismo -, ponto a partir do qual se ampliam as
possibilidades de compreenso de sua obra desde o perodo de sua formao, ou seja, desde
o seu ponto de partida. exatamente por encarar sob um ponto de vista
fundamentalmente marxista os desafios tericos e prticos da atual etapa do capitalismo
que Lwy assume um lugar de destaque no marxismo contemporneo, ao lado de figuras
como Istvn Mszros, Daniel Bensad, Alex Callinicos, Fredric Jameson, dentre outros.
Na introduo do seu livro Le Dieu Cach, em que sistematiza os pressupostos
metodolgicos do trabalho sociolgico, Lucien Goldmann afirmou: O pensamento
apenas um aspecto parcial de uma realidade menos abstrata: o homem vivo e inteiro. E este,
por sua vez, apenas um elemento do conjunto que o grupo social. Com efeito, uma
ideia, uma obra s recebe sua verdadeira significao quando integrada ao conjunto de
uma vida e de um comportamento6. Esta advertncia metodolgica, universalmente vlida,
parece ainda mais imprescindvel em relao ao marxismo, uma vez que este, enquanto
viso social de mundo especfica, vincula seu horizonte ltimo (uma comunidade humana
autntica) ao destino prtico de uma classe social concreta (o proletariado e as classes
subalternas de forma geral). No por acaso, como alertou Perry Anderson algumas dcadas
atrs, qualquer estudo sobre o pensamento marxista implica a necessidade, mais do que da
6 Lucien Goldmann, Introduo. In: Dialtica e Cultura, Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1967, pp.1-26. (p.8).
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anlise das possibilidades e dos bloqueios internos da prpria teoria em si, de uma
investigao mais ampla sobre a trajetria da prtica popular e da histria qual esta teoria
est vinculada. Teoria da histria, o marxismo projeta tambm uma histria da teoria,
construda a partir da apreenso das caractersticas e das transformaes concretas do
capitalismo.
Ao definir suas conquistas tericas como expresses cognitivas do movimento real
das coisas, e no de um estado ideal de coisas, Marx e Engels j haviam sugerido que o
destino de suas formulaes tericas ligava-se aos desdobramentos da intrincada trama da
luta de classes nacionais e internacionais que o caracterizam7. Como teoria crtica do
capitalismo que busca oferecer uma inteligibilidade reflexiva do seu prprio
desenvolvimento (e por isso inclui uma concepo autocrtica), o marxismo reconhece a
importncia das explicaes extrnsecas de suas possibilidades concretas. A anlise interna
da teoria deve ser relacionada, ento, com a histria concreta sob a qual ela se desenvolve.
No caso aqui em questo, a tentativa de interpretar o marxismo de Michael Lwy
atravs do tema da crtica da modernidade (que perpassa todo o seu itinerrio, notadamente
suas reflexes sobre o eco-socialismo) justifica-se pela hiptese de que exatamente por
meio deste tema bsico que ele elabora a sua forma relativamente especfica de conceber a
revitalizao da crtica marxista do capitalismo contemporneo. A exigncia de que o
marxismo se constitua, em ltima anlise, como crtica moderna da modernidade parece
compor parte de uma tentativa mais ampla de renovao do pensamento marxista frente s
atuais formas de realizao do capitalismo e dos seus impactos sobre as narrativas da
modernidade, particularmente a partir de meados da dcada de 1970. Conforme sugeriu
certa vez Fredric Jameson: Os marxismos (os movimentos polticos, bem como as formas de resistncia intelectual e terica) que emergirem do atual sistema capitalista, da ps-modernidade, da terceira fase do capitalismo informacional e multinacional de Mandel, sero necessariamente diferentes dos que se desenvolveram no perodo moderno, no segundo estgio, a era do imperialismo. Eles tero um relacionamento radicalmente diferente com a globalizao e tambm, em contraste com o marxismo mais antigo, parecero ter carter mais cultural, girando fundamentalmente em torno de fenmenos at ento conhecidos como reificao da mercadoria e consumismo8.
7 Perry Anderson, A crise da crise do marxismo, 2. edio, So Paulo: Brasiliense, 1985, p.16. 8 Fredric Jameson, Cinco teses sobre o marxismo realmente existente. In: Ellen Wood & John Bellamy Foster (orgs.), Em defesa da histria: marxismo e ps-modernismo, Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1999, p.193.
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Para Jameson, a etapa ps-moderna do capitalismo revela a emergncia de uma
lgica cultural parcialmente nova, estreitamente vinculada expanso global da forma-
mercadoria e das consequncias do processo de reificao. No mbito mais propriamente
simblico, o capitalismo ps-moderno caracteriza-se, entre outras manifestaes, por um
congestionamento histrico das ideologias da modernizao que at ento embalavam as
grandes narrativas conservadoras ou revolucionrias. Segundo Jameson, o ps-
modernismo o que se tem quando o processo de modernizao est completo e a natureza
se foi para sempre9. Neste contexto, a revitalizao do marxismo contemporneo depende
da sua capacidade de efetuar uma crtica anticapitalista deste processo de esgotamento da
modernizao um esgotamento que comprova, no mais, a falncia da crena, comum
especialmente no marxismo vulgar dos pases perifricos, de que a concluso dos esforos
da modernizao poderia impulsionar, quase inevitavelmente, a emancipao vislumbrada
no futuro.
Ora, ao reconhecer a necessidade da crtica radical da totalidade dos elementos
materiais e psquicos que compem a civilizao capitalista-moderna, e transformar este
imperativo em eixo fundamental de sua trajetria mais recente, Michael Lwy no deixa de
ser, de certo modo, uma expresso deste marxismo da terceira fase do capitalismo de que
fala Jameson. Muito alm de uma crtica da economia poltica, que tenta forjar uma
estratgia alternativa no espectro da modernizao capitalista, o marxismo ento
concebido como crtica radical das bases da civilizao moderna, crtica desferida no s s
manifestaes atuais, seno tambm aos alicerces da legitimidade histrica do progresso
capitalista ao longo dos sculos. sob este fundo terico e poltico que Michael Lwy
unifica e fornece expresso coerente valorizao de manifestaes to diversas da crtica
da modernidade como a perspectiva eco-socialista, a crtica benjaminiana do progresso, o
pessimismo sociolgico weberiano, o anticapitalismo romntico e as utopias libertrias e
religiosas.
***
9 Fredric Jameson, Ps-modernismo: a lgica cultural do capitalismo tardio. So Paulo: tica, 2007, p.13.
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Em certa medida, o trabalho de composio deste livro (originalmente concebido
como uma dissertao de mestrado em sociologia) pode ser definido como uma forma de
montagem, na medida em que as transformaes na estrutura interna do texto com seus
inevitveis deslocamentos na ordem dos captulos envolvem sempre a modificao
relativa do sentido original, agrupando-se em outro contexto. Os captulos, relativamente
autnomos, inibem ou potencializam sua funo dentro do texto conforme sua localizao
interna, motivo pelo qual o seu deslocamento implica sempre a reflexo substancial do
autor, que deve meditar sobre o efeito destes deslocamentos na estrutura interna do texto. A
forma interna do texto explica, com alguma preciso, a perspectiva interpretativa geral do
contedo abordado.
O trabalho ora apresentado divide-se em seis captulos, cuja disposio interna
pretende estabelecer a forma mais interessante para a exposio do contedo almejado. O
primeiro captulo (Capitalismo contemporneo, crise ecolgica, crise civilizatria: o eco-
socialismo e a renovao do marxismo) apresenta a insero especfica de Michael Lwy
nos debates em torno do eco-socialismo. Temtica eminentemente contempornea e
vinculada aos desafios do presente, os debates sobre o eco-socialismo permitem definir um
parmetro a partir do qual o itinerrio de Lwy aparece em seu ponto mais alto, com a
defesa da revitalizao do marxismo como crtica radical da modernidade capitalista.
No segundo captulo, intitulado Uma trajetria indisciplinada: a formao
intelectual de Michael Lwy, depois de j realizada a apresentao de sua defesa de uma
renovao eco-socialista do marxismo, busca-se retomar os principais aspectos da formao
intelectual de Lwy, desde seus primrdios no Brasil da segunda metade da dcada de 1950
at sua insero no contexto intelectual francs (e europeu) a partir de meados da dcada de
1960, insero que perdura at os tempos atuais. Parte-se da hiptese de que a anlise das
singularidades da formao intelectual de Lwy, ao revelar sua compreenso inventiva do
marxismo, permite visualizar alguns traos de sua trajetria mais recente, em que d
centralidade reivindicao por um marxismo crtico em ruptura com a idia iluminista-
burguesa de progresso.
O terceiro captulo (Walter Benjamin e a crtica marxista do progresso) aborda, por
sua vez, a leitura de Michael Lwy de um pensador cuja obra forneceu as principais fontes
de inspirao para a constituio de um marxismo renovado, capaz de enfrentar os novos
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desafios do nosso presente histrico: Walter Benjamin. A crtica benjaminiana das
ideologias do progresso e da histria dos vencedores informa de modo decisivo os
argumentos de Lwy em torno da atualizao do marxismo luz da prxis histrica dos
novos sujeitos potencialmente anticapitalistas no mundo contemporneo.
A reivindicao lwyana de uma leitura anticapitalista do diagnstico weberiano da
modernidade o tema do quarto captulo, intitulado Em busca de uma leitura
anticapitalista de Marx Weber. Nele, almeja-se problematizar a forma atravs da qual
Lwy prope a incorporao de alguns tpicos da anlise clssica de Max Weber no quadro
da crtica marxista-dialtica da modernidade burguesa. A fim de conferir substncia terica
ao debate, intenta-se recuperar algumas contribuies especficas de autores marxistas em
relao possibilidade de dilogo e incorporao da obra weberiana desde um ponto de
vista dialtico.
O quinto captulo (Temporalidade histrica, romantismo e marxismo em Michael
Lwy) dedicado valorizao de Lwy da viso social de mundo romntica,
especialmente do que ele compreende como romantismo revolucionrio. Em Lwy, o
resgate da dimenso revolucionria do romantismo visa potencializar o carter anti-
positivista e no-evolucionista do marxismo, reposicionando, simultaneamente, sua faceta
utpica. O romantismo atua como mecanismo de ruptura com o culto moderno da
temporalidade vazia e homognea do progresso como diria Walter Benjamin, ele
tambm um marxista romntico.
A seguir, no sexto e ltimo captulo, intitulado Marxismo, poltica e teologia: a
revalorizao das utopias, apresenta-se as faces da valorizao de Lwy das utopias
anticapitalistas, inclusive religiosas, em cujas conscincias antecipatrias se torna possvel,
para ele, retomar a dimenso imaginativa do marxismo, resgatando a capacidade de
projeo de um outro mundo possvel. Mais especificamente, aborda-se a anlise de
Michael Lwy das diversas facetas da religiosidade utpica, tais como o messianismo
judaico - que se manifestou em diversos intelectuais da Europa Central na transio do
sculo XIX para o XX -, e o cristianismo de libertao - to importante na histria mais
recente da Amrica Latina a partir da segunda metade do sculo XX.
Enfim, objetiva-se na concluso (Crtica e utopia: o marxismo libertrio de
Michael Lwy) sintetizar os aspectos principais do marxismo libertrio de Michael Lwy,
19
que se caracteriza, entre outras coisas, pela retomada do dilogo do marxismo com as mais
diversas expresses das utopias anticapitalistas, a partir da oposio comum racionalidade
instrumental da modernidade capitalista. Ademais, pretende-se demonstrar o carter
eminentemente anticapitalista da crtica da modernidade reivindicada por Lwy, o que a
diferencia substancialmente da rejeio ps-moderna das narrativas filosficas da
modernidade.
Ao final, em anexo, encontra-se ainda um pequeno cronograma com o ano das
principais etapas da trajetria de Lwy e com a data exata da publicao original de seus
livros.
20
CAPTULO 1
Capitalismo contemporneo, crise ecolgica, crise civilizatria: eco-socialismo e
renovao do marxismo
Desde meados da dcada de 1970, possvel perceber a emergncia vertiginosa de
uma crise ecolgica sem precedentes, resultado do mpeto destrutivo do capitalismo que,
naquele momento, reorganizava significativamente os seus parmetros de acumulao e
reproduo ampliada de capital. De l para c, os sinais de alerta provocados pela
destruio do meio-ambiente anunciaram-se em escala crescente: do crescimento
exponencial da poluio do ar, da gua potvel e do meio ambiente, destruio
vertiginosa das florestas tropicais e da biodiversidade, do esgotamento e desertificao do
solo drstica reduo da biodiversidade pela extino de milhares de espcies, dentre
outras catstrofes potenciais, vrias so os exemplos do carter destrutivo do modelo
civilizatrio capitalista.
Desde ento, como vm destacando vrios autores, as ameaas contra as condies
de vida alcanaram uma dimenso muito mais trgica do que no comeo do sculo XX10.
Sob o predomnio de uma produo destrutiva cada vez maior e mais irremedivel, assiste-
se a emergncia de uma verdadeira crise civilizatria, insolvel, incontrolvel e, mais
importante, insupervel nos limites do sistema social estabelecido. Mais que uma mera
crise econmica, qual se seguem medidas mais ou menos eficazes de recuperao, trata-se
agora de uma crise global da civilizao capitalista, cuja expresso mais dramtica a
deteriorao incontrolvel das condies naturais e sociais de produo11. Vive-se,
portanto, deste ponto de vista, um processo de mltiplas crises, econmicas, ecolgicas,
sociais e polticas, que se determinam e se sobredeterminam12.
Por isso, hoje em dia, por trs de palavras como ecologia e meio-ambiente
escondem-se nada menos do que questes decisivas para a continuidade das condies de
reproduo social de certas classes, de certos povos e, inclusive, de certos pases13. Como
10 Franois Chesnais & Claude Serfati, Ecologia e condies fsicas de reproduo social: alguns fios condutores marxistas. Crtica Marxista, So Paulo, n.16, 2003. p.68. 11 Renan Vega Cantor, Crisis civilizatria. Herramienta, Buenos Aires, n.42, 2009. p.48. 12 Frider Otto Wolf. Crise cologique et thorie marxiste. Pour une problmatique renouvele. In: Jean-Marie Harribey & Michael Lwy (orgs.). Capital contre nature. Paris: Presses Universitaires de France, 2003. pp.191-202. (p.202). 13 Idem, p.39.
21
bem observa Joel Kovel (responsvel pela redao, junto com Michael Lwy, do primeiro
manifesta internacional eco-socialista):
A crise ecolgica uma abstrao de uma srie de fatos obstinados: que os distrbios ambientais estalam por toda parte; que ela est conectada de maneira peculiar com a condio contempornea, e que coloca de modo claro uma ameaa maior para a integridade futura da sociedade e da natureza14.
A esta verdadeira mutao histrica do modo de acumulao capitalista15 que
envolve uma significativa reorganizao de suas formas de produo corresponde um
avano impressionante da mercantilizao da vida social em seu conjunto. Se o capitalismo
sempre se caracterizou pela necessidade de expanso econmico-territorial, como destacou
Rosa Luxemburgo, esta tendncia se manifesta nos tempos atuais atravs da
mercantilizao de dimenses da vida humana outrora incomensurveis, como os recursos
naturais e at mesmo o corpo humano. Nas ltimas dcadas, o progresso da civilizao
capitalista, que sempre revelou um aspecto destrutivo e predatrio (como assinalou Marx
em sua crtica das formas assumidas pela acumulao primitiva), atinge propores
infinitamente mais trgicas, na medida mesma em que submete a quase totalidade das
formas de existncia condio de mercadoria. Esta a medida trgica do progresso na
atualidade.
Sob este contexto marcado pela expanso global da forma mercadoria, de tal
forma que j no parece possvel visualizar algum lugar fora do sistema, como outrora a
natureza ou o inconsciente16 -, novos desafios tericos e polticos se impem ao pensamento
crtico e, em particular, ao marxismo. Em alguma medida, a crise do culto moderno ao
progresso significa, tambm, a crise de uma certa vertente do marxismo, cuja perspectiva
terica e poltica tradicional se apoiava na defesa da modernizao e do progresso como
etapas fundamentais da emancipao projetada para o futuro. Por isso, a superao desta
14 Joel Kovel, El enemigo de la naturaleza. El fin del capitalismo o el fin del mundo?. Buenos Aires, Asoociacin Civil Cultural Tesis 11, 2005, p.35. Conforme o mesmo autor: A crise ecolgica no se refere a algum prejuzo eco-sistmico dado, como o aquecimento global, a extino das espcies, a diminuio dos recursos naturais ou a extenso das intoxicaes por novos produtos qumicos. [...] Se refere ao fato de que este conjunto de coisas ocorrem todas juntas que esto emergindo em e pertencem ao mesmo momento da histria (p.38). 15 Daniel Bensad, Uma nova poca histria. In: Michael Lwy & Daniel Bensad, Marxismo, modernidade e utopia. So Paulo: Xam, 2000. p.41. 16 Fredric Jameson, Ps-modernismo: a lgica cultural do capitalismo tardio. So Paulo: tica, 2007.
22
crise deve implicar um esforo de atualizao da crtica marxista da civilizao
capitalista, demonstrando a possibilidade efetiva de um marxismo em ruptura com o
progresso como reivindicou Benjamin nas Passagens , dotando-o, assim, de capacidade
terica para renovar sua dimenso crtica e radical.
Nas palavras de Immanuel Wallerstein, que resume muito bem o que est em
questo nesta problemtica: se h uma ideia associada ao mundo moderno, a noo de progresso [...]. A idia de progresso justificou a transio do feudalismo para o capitalismo. Legitimou que a oposio remanescente mercantilizao de tudo fosse destruda e permitiu descartar os aspectos negativos do capitalismo com base na noo de que os benefcios superavam em muito os prejuzos. Logo, no surpreendente que os liberais acreditassem no progresso. Surpreendente que seus oponentes ideolgicos, os marxistas antiliberais, representantes das classes trabalhadoras oprimidas -, acreditassem no progresso com, pelo menos, a mesma paixo. [...] Ao mesmo tempo em que a idia de progresso justificava o socialismo, tambm justificava o capitalismo. Era difcil aclamar o proletariado sem antes prestar homenagens burguesia. [...] A adeso marxista ao modelo evolucionrio do progresso tem sido uma enorme armadilha, da qual os socialistas s comearam a desconfiar recentemente, como um elemento da crise ideolgica que parte da crise estrutural global da economia mundial capitalista17.
Ora, precisamente a partir do enfrentamento aos desafios singulares de um
presente caracterizado pelo esgotamento histrico do modelo civilizatrio capitalista-
moderno e dos paradigmas tericos do progresso, que Michael Lwy constitui sua obra
mais recente (a partir dos anos de 1980), em especial suas reflexes em torno do eco-
socialismo. At mesmo por envolver o imperativo de renovao e atualizao da crtica
marxista do capitalismo contemporneo, a problemtica do eco-socialismo manifesta em
termos concretos, por assim dizer, os principais traos das proposies tericas de Michael
Lwy em defesa de um marxismo afinado como o tempo presente.
Compreendido, acima de tudo, como uma filosofia da prxis, e no como um
sistema terico abstrato e fechado, o marxismo deve renovar permanentemente sua crtica
da ordem estabelecida, luz das constantes transformaes nas formas de realizao do
capitalismo. Deste ponto de vista, a temtica do eco-socialismo, ao mesmo tempo em que
17 Immanuel Wallerstein, Capitalismo histrico e civilizao capitalista, Rio de Janeiro: Contraponto, 2001, p.83, 84.
23
mobiliza aspectos centrais da obra mais recente de Lwy, permite vincular dialeticamente o
constructo terico do autor sua reivindicao intelectual e poltica de um marxismo
crtico, renovado e no-dogmtico, capaz de enfrentar os desafios do mundo
contemporneo.
1.1. Eco-socialismo e crtica da modernidade em Michael Lwy
Mas, afinal, o que o eco-socialismo? E, mais ainda, qual o lugar preciso ocupado
por Michael Lwy nos debates em torno deste tema? Em outras palavras: qual o sentido
concreto da problemtica do eco-socialismo no conjunto mais amplo da obra de Lwy?
A emergncia da perspectiva eco-socialista praticamente contempornea ao
surgimento vertiginoso da crise ecolgica na agenda poltica e social. Acima de tudo, ela
nasceu a partir de debates e obras de diversos intelectuais, nas ltimas quatro dcadas, que
contriburam para a formao de uma corrente de pensamento e de ao, como diz Lwy,
capaz de demarcar posio em defesa da renovao ecolgica do marxismo18. Destacam-
se, dentre estes intelectuais, os nomes de Manuel Sacristan, Raymond Williams, Rudolf
Bahro e Andr Gorz, alm dos mais contemporneos James OConnor (atual diretor da
revista Capitalism, Nature, Socialism), Barry Commoner, John Bellamy Foster, John Clark
e Joel Kovel nos EUA, Francisco Fernandez Beuy, Jorge Riechman e Juan Martinez Allier
na Espanha, Jean-Paul Dlage, Michael Lwy e Jean Marie Harribey na Frana, Elmar
Altvater e Frieder Otto Wolf na Alemanha.
Retomando o argumento destes diversos autores, Michael Lwy define
genericamente o eco-socialismo como uma corrente de pensamento e de ao (e no um
movimento poltico homogneo e organizado) que engloba as teorias e os movimentos que
aspiram a subordinar o valor de troca ao valor de uso, organizando a produo em funo
das necessidades sociais e das exigncias da proteo do meio-ambiente19. Joel Kovel, na
mesma perspectiva, anuncia o eco-socialismo como uma luta pelo valor de uso e, atravs
do valor de uso realizado, pelo valor intrnseco. Isto significa que uma luta pelo lado
qualitativo das coisas20. Predomnio do valor de uso e crtica do fetichismo da mercadoria:
18 Michael Lwy, Ecologia e Socialismo, So Paulo: Cortez, 2005, p.49 19 Idem, p.49. 20 Joel Kovel, El enemigo de la naturaleza. Op.cit., 2005, p.204.
24
eis a articulao necessria concepo e vivncia prtica de uma temporalidade
qualitativa, bem diferente dos imperativos do tempo que reduz o homem condio de sua
carcaa, como disse Marx certa vez.
com esta ampla perspectiva que se espera forjar um espao de convergncia entre
os movimentos ecolgicos e um marxismo renovado atento intensificao da lgica
destrutiva do capitalismo. Composto basicamente por intelectuais mais ou menos prximos
ao marxismo, o eco-socialismo um parmetro terico-poltico a partir do qual se
estabelece a possibilidade de um dilogo crtico com as demandas e reflexes dos
movimentos ecolgicos. De outro ngulo, tambm uma estratgia de atualizao terica
interna ao pensamento crtico, em geral, e ao marxismo, em particular. Se o eco-socialismo
reivindica as aquisies fundamentais do marxismo, ele no hesita em se livrar das suas
escrias produtivistas21. Trata-se, ento, de uma releitura do socialismo que faz um acerto
de contas radical com a herana do socialismo burocrtico do leste europeu responsvel
por nveis de devastao ecolgica semelhantes aos das sociedades capitalista-ocidentais ,
sem abandonar a perspectiva anticapitalista. Noutras palavras: o eco-socialismo mais que
o socialismo tal qual o conhecemos tradicionalmente. Mas tambm, definitivamente,
socialista22.
Esta releitura atualizada da tradio socialista passa, entre outras coisas, por uma
reviso autocrtica de algumas concepes caras ao marxismo clssico, por assim dizer.
Um novo diagnstico de poca, numa era de transformaes substantivas do modo de
funcionamento do sistema (assim como de seus virtuais oponentes), se no implica a
fundao de um novo sistema terico, supe a necessidade no s de mais uma anlise
concreta da situao concreta, a partir de uma pretenso de verdade j pressuposta e de
antemo legitimada; mais que isso, supe uma reavaliao crtica do prprio instrumental
terico utilizado para a anlise dos fenmenos sociais concretos: o marxismo.
O eco-socialismo manifesta, nesse sentido, um eixo concreto a partir do qual se
torna possvel delimitar os principais aspectos da atualizao contempornea do marxismo.
Por isso ele to importante para a compreenso da obra mais recente de Michael Lwy,
nos ltimos trinta anos. Na temtica do eco-socialismo, concentra-se a maioria dos
21 Michael Lwy, Ecologia e Socialismo, op.cit., 2005, p.49. 22 Joel Kovel, El enemigo de la naturaleza. Op.cit., 2005, p.205.
25
argumentos do autor em torno da necessidade da radicalizao da crtica marxista da
civilizao capitalista-moderna. Mais do que uma crtica da economia poltica, o marxismo
se apresenta, ento, para Lwy e para os eco-socialistas, como uma crtica radical desferida
s bases da civilizao moderna.
A necessidade da radicalizao da crtica da civilizao moderna confirma-se, por
exemplo, na reivindicao eco-socialista de que a superao do capitalismo envolve a
subverso do aparato produtivo, industrial e tecnolgico vigente, cujas bases esto
intimamente vinculadas conformao histrica das relaes sociais capitalistas. O
aparelho produtivo e tecnolgico capitalista destrutivo no apenas porque est a servio
do capitalismo, livrando-se dele to-logo ocorra o desbloqueio das relaes de produo
estabelecidas; ao contrrio, tal aparato produtivo destrutivo exatamente porque suas
formas de realizao obedecem, at mesmo em seus alicerces internos, aos imperativos do
capitalismo, motivo pelo qual ele no , e nem poderia ser, neutro.
De um ponto de vista eco-socialista, o aparelho produtivo capitalista, por sua
natureza e estrutura [...], est a servio da acumulao do capital e da expanso ilimitada do
mercado23. Alis, a alegao da neutralidade tecnolgica constitui, ela mesma, um dos
mais fortes pontos de apoio ideolgico do capital. Subordinada s relaes e estruturas
sociais dominantes, a tecnologia desenvolvida pelo capital, longe de ser neutra,
realmente, no importa quem opere, uma tecnologia eminentemente capitalista24. Da
mesma forma, a cincia e a tecnologia funcionam, no capitalismo, em acordo s
necessidades da reproduo do capital, que impe sociedade as condies necessrias de
sua existncia instvel e predatria. Enfim, como afirma Istvn Mszros, [...] a cincia e a
tecnologia no so jogadores bem treinados e em boa forma que, sentados nos bancos de
reservas, ficam espera do chamado dos treinadores socialistas esclarecidos para virar o
jogo25.
Na dcada de 1960, Herbert Marcuse afirmou, sem meias palavras:
no somente sua aplicao mas j a tcnica ela mesma dominao (sobre a natureza e sobre os homens) [...] Determinados fins no so impostos apenas posteriormente e exteriormente tcnica mas eles
23 Michael Lwy, op.cit., 2005, p.55. 24 Victor Wallis, Progresso ou progresso? Definindo uma tecnologia socialista. Crtica Marxista, So Paulo, n.12, pp. 133-146. (p.141). 25 Istvn Mszros, Para alm do capital. So Paulo: Boitempo Editorial, 2002, p.265.
26
participam da prpria constituio do aparelho tcnico; a tcnica sempre um projeto scio-histrico; nela encontra-se projetado o que uma sociedade e os interesses nela dominantes pretendem fazer com o homem e com as coisas26.
At por isso, mais do que a emergncia de um novo modo de produo, o eco-
socialismo prope uma ruptura civilizatria, quer dizer, uma transformao qualitativa do
paradigma tecnolgico e produtivo existente, cujas prerrogativas permaneceram
praticamente intocadas ao longo das experincias dos pases da ex-URSS. Trata-se da
superao no somente do capitalismo, seno tambm da civilizao industrial em sua
totalidade27. Nas palavras de Lwy, o eco-socialismo implica uma radicalizao da
ruptura com a civilizao material capitalista. Nesta perspectiva, o projeto socialista visa
no somente uma nova sociedade e um novo modo de produo, mas tambm um novo
paradigma de civilizao, que requer uma nova forma de relao entre os seres humanos e
destes com a natureza28. Ou, como diz Isabel Loureiro, sob inspirao marcusiana, mais
alm do fim da propriedade privada dos meios de produo, o socialismo [...] a mudana da vida em sua totalidade, a emergncia de uma outra civilizao, a transformao da sensibilidade humana, em uma palavra, o fim da reificao para a qual a condio prvia o fim da mercantilizao dos homens e da natureza29.
Com efeito, o marxismo do sculo XXI deveria, contra uma certa vulgata marxista,
que concebe a mudana unicamente como supresso das relaes sociais capitalistas
(compreendidas como obstculos ao livre desenvolvimento das foras produtivas),
questionar a prpria estrutura do processo de produo30. Para Joel Kovel, na mesma
perspectiva, preciso reestruturar totalmente o sistema industrial, tendo como objetivo
26 Herbert Marcuse, Industrializao e capitalismo na obra de Max Weber. In: Cultura e Sociedade. Volume II. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1998, pp.113-136. (p.132), traduo: Wolfgang Leo Maar. 27 Renan Vega Cantor, El Manifiesto Comunista y la urgencia de emprender una crtica marxista del progreso, Herramienta, Buenos Aires, n.8, 1998/1999. 28 Michael Lwy, Progrs destructif. Marx, Engels et lcologie. In: Michael Lwy & Jean-Marie Harribey, Capital contre nature, Paris: PUF, 2003. p.22. 29 Isabel Loureiro, Le marxisme cologique de Herbert Marcuse: il faut changer le sens du progrs. In: Michael Lwy & Jean-Marie Harribey, Capital contre nature, Paris: PUF, 2003, pp.155-164. (p.161). 30 Michael Lwy, Ecologia e Socialismo, op.cit., 2005, p.76. Em certa medida, a transformao eco-socialista pode ser concebida como uma revoluo energtica, no interior da qual se consubstanciaria a substituio das energias no-renovveis e responsveis pela poluio e envenenamento do meio ambiente carvo, petrleo e combustveis nucleares por energias leves e renovveis: gua, vento, sol. Idem, p.55.
27
uma reestruturao radical das necessidades dos homens e uma transformao da relao
com os bens de consumo capaz de fazer com que o valor de uso material coloque fim ao
regime de troca enfim, uma transformao social chamada eco-socialismo31.
O eco-socialismo questiona, portanto, diretamente, o fetichismo das foras
produtivas (conforme a expresso utilizada por Herbert Marcuse32) que caracterizou parcela
significativa da tradio marxista. Mesmo porque, nos tempos contemporneos, as foras
produtivas do capital revelam-se absolutamente destrutivas do ponto de vista do porvir da
humanidade. Por isso, como sustenta Daniel Bensad, a idia de uma transformao das
foras potencialmente produtivas em foras efetivamente destrutivas, num outro registro
temporal, sem dvida mais fecunda do que o esquema mecanicista da oposio entre o
desenvolvimento das foras produtivas e as relaes sociais de produo que a entravam33.
Estas foras destrutivas no so o resultado do excesso de populao ou da
tecnologia em si, abstratamente, nem tampouco da m vontade do gnero humano. Antes,
trata-se de algo muito mais concreto tal qual anuncia Michael Lwy , a saber: das
conseqncias do processo de acumulao do capital, em particular na sua forma atual, da
globalizao neoliberal sob a hegemonia do imprio norte-americano. Este, e no outro,
seria o elemento essencial, motor desse processo e dessa lgica destrutiva que corresponde
necessidade de expanso ilimitada aquilo que Hegel chamou m infinitude -, um
processo infinito de acumulao de mercadorias, de capital e de lucro34.
exatamente devido compreenso da crise ecolgica como expresso intrnseca
da lgica capitalista, que os eco-socialistas reafirmam a origem social da destruio do eco-
sistema. Crise ecolgica e crise social possuem uma origem comum, qual seja: o
capitalismo moderno. Em palavras do Primeiro Manifesto Ecossocialista Internacional,
redigido por Lwy e Joel Kovel: Na nossa viso, as crises ecolgicas e o colapso social esto profundamente relacionados e deveriam ser vistos como manifestaes
31 Joel Kovel, Un socialisme pour les temps nouveaux. In: Michael Lwy & Jean-Marie Harribey, Capital contre nature, Paris: PUF, 2003, pp.149-154. (p.153). 32 Cf. Isabel Loureiro, op.cit., 2003, p.160. 33 Daniel Bensad, Marx Intempestivo: grandezas e misrias de uma aventura crtica. Rio de Janeiro: Civilizao Brasileira, 1999, p.485. 34 Michael Lwy, A natureza e o meio-ambiente: os limites do planeta. In: Marildo Menegat, Elaine Behring & Virgnia Fontes (orgs.), Os dilemas da humanidade: dilogos entre civilizaes, Rio de Janeiro: Contraponto, 2007, pp.77-86 (p.79).
28
diferentes das mesmas foras estruturais. As primeiras derivam, de uma maneira geral, da industrializao massiva, que ultrapassou a capacidade da Terra absorver e conter a instabilidade ecolgica. O segundo deriva da forma de imperialismo conhecida como globalizao, com seus efeitos desintegradores sobre as sociedades que se colocam em seu caminho. Ainda, essas foras subjacentes so essencialmente diferentes aspectos do mesmo movimento, devendo ser identificadas como a dinmica central que move o todo: a expanso do sistema capitalista mundial35.
Desde o fim dos chamados anos dourados do capital, em meados da dcada de
1970, a conjuno entre a crise econmica mundial e a progresso acentuada da crise
ecolgica revelou a face mais perversa das novas formas de reproduo ampliada do
capitalismo. Horror econmico e crise ambiental constituem momentos especficos de
um mesmo processo estrutural, que remonta s tentativas do capital em ultrapassar suas
prprias barreiras. Mas a verdadeira barreira do capital ele mesmo; em sua tendncia
universalizao, o capital depara-se com os limites inerentes sua prpria natureza, de tal
forma que, em ltima instncia, a universalidade buscada torna-se uma universalizao
truncada, que no cessa de se negar, chocando-se contra as barreiras do capital tornado em
si mesmo seu prprio limite36. o prprio capital que, em sua tendncia e aspirao
criao de um mercado mundial (tendncia imediatamente implcita no prprio conceito
de capital, conforme sugeriu Marx nos Grundrisse), produz os seus prprios limites.
No por acaso, como diz Franois Chesnais, a conjuno entre a crise econmica
mundial e a progresso da crise climtica e sobretudo sua gravidade no totalmente
fortuita. As razes destas duas crises so as mesmas, a saber, a natureza do capital e da
produo capitalista37. A simultaneidade das catstrofes ecolgicas e sociais uma
expresso da condensao destrutiva do processo de expanso mundial do capital. Para
Paul Sweezy, uma parcela considervel da crise ecolgica (assim como da prpria crise
social) tem sua origem no funcionamento da economia mundial, quer dizer, na forma
como esta se desenvolveu nos ltimos trs ou quatro sculos38. Em ltima instncia,
portanto, o que hoje se tornou conhecido como crise ambiental seria o resultado 35 In: Michael Lwy, Ecologia e Socialismo, op.cit., 2005, p.85. 36 Daniel Bensad, Marx Intempestivo, op.cit., 1999, p.442. 37 Franois Chesnais, Les origines communes de la crise conomique et de la crise cologique. Carr Rouge, 2008. Disponvel em: http://www.carre-rouge.org/spip.php?article211. s/p. 38 Paul Sweezy, Capitalismo e meio-ambiente, Margem Esquerda: ensaios marxistas, n.12, So Paulo: Boitempo Editorial, 2008. pp. 117-124. (p.119, 120).
29
acumulado da expanso e reproduo ampliada do capitalismo, desde suas origens at os
dias atuais. A diferena que muito do que costumava ser meramente considerado um
inevitvel vis negativo do progresso agora visto como parte de uma alarmante ameaa
continuao da vida na Terra39.
Com efeito, se a proliferao da crise ecolgica e dos desastres sociais constitui
um produto historicamente necessrio das formas de acumulao e reproduo global do
capital, abre-se a possibilidade de uma fecundao recproca entre a crtica marxista do
capitalismo e a crtica ecolgica do produtivismo. Se afirmamos que a simultaneidade dos desastres sociais e ecolgicos no fortuita, quer dizer que eles so o produto do desenvolvimento econmico impulsionado pela acumulao do capital em escala planetria, e, pior ainda, que eles so seu produto necessrio, ento se coloca a questo do encontro entre a crtica marxista do capitalismo e a crtica do produtivismo cara aos ecologistas40.
Mesmo porque, ao contrrio do que acreditam significativas correntes da
ecologismo social, a ecologia no um paradigma total, que ultrapassa os antigos
paradigmas centrados na luta pela transformao das relaes sociais de produo como
se estas relaes, e os antagonismos de classe que ela engendra, fossem coisa do tenro
passado do sculo XIX. Na realidade, a recomposio da capacidade crtica dos
movimentos ecolgicos depende, em grande medida, de sua articulao com uma
perspectiva social e poltica radical, capaz de colocar em questo os fundamentos das
relaes sociais capitalistas em suas mltiplas dimenses, responsveis pela constituio de
uma relao destrutiva do homem em relao natureza. Crtica ecolgica e crtica social
coincidem, assim, na denncia ao carter destrutivo do capitalismo moderno. Da que,
segundo as palavras de Jean-Marie Harribey, professor da Universidade de Bordeaux IV:
nossa nica chance de avanar em direo a uma sociedade mais justa e mais ecolgica
de conceber uma articulao indita entre estes dois plos que so o social e o ecolgico e
portanto preparar a fuso41.
39 Idem, p.118, 119. 40 Jean-Marie Harribey, Rapports sociaux et cologie : hirarchie ou dialectique?. Congrs Marx International IV Guerre impriale, guerre sociale , 29 septembre au 2 octobre 2004. Universit Paris X-Nanterre, Actuel Marx. Disponvel em: http://actuelmarx.u-paris10.fr/m4harriecolo.htm. 41 Idem, s/p. Pois, como assinala Pierre Rousset, o reencontro inevitvel entre a ecologia e o social que, no fundo, permite interpretar o alcance das grandes polaridades, das clivagens estruturantes, dos conflitos de
30
Na prxis social realmente existente, todavia, no so poucos os obstculos
enfrentados pelas tentativas de se estabelecer uma aliana entre os movimentos ecolgicos
e o socialismo. Muito embora partilhem alguns pontos comuns42, o fato que a articulao
e, se muito, convergncia entre vermelhos e verdes depende ainda de um difcil
trabalho de construo. Se muitos marxistas vem nos movimentos ecolgicos to-somente
uma expresso da poltica ps-moderna, que teria mais a confundir do que ajudar, a maioria
dos ecologistas, por sua vez, desconfia profundamente do mpeto produtivista que, para
eles, imanente abordagem marxista da histria como desenvolvimento das foras
produtivas do homem.
A concretizao de tal aliana exige, acima de tudo, que os movimentos ecolgicos
compreendam a dimenso anticapitalista da sua luta, e, ao mesmo tempo, que o pensamento
social revolucionrio (no caso, o marxismo), seja capaz de reconhecer a extenso e a
profundidade ecolgica do enfrentamento ao capitalismo. Tal dilogo e, qui, aliana,
poderia provocar uma oxigenao mtua entre os movimentos ecolgicos e os movimentos
sociais anticapitalistas, contribuindo para a renovao concreta da perspectiva
revolucionria. No por acaso, para Michael Lwy, a convergncia dos dois e a formao
de um pensamento socialista ecolgico um dos grandes desafios para a renovao do
marxismo e do movimento revolucionrio no sculo XXI43.
De um lado, a ecologia pode estimular a constituio de uma nova concepo do
tempo, em ruptura com a temporalidade vazia e homognea do progresso capitalista,
visualizada a partir dos ritmos das necessidades sociais e naturais. Torna-se possvel, assim,
o desenvolvimento de uma concepo de planejamento contraposta ao imediatismo
interesses que se afirmam em torno das polmicas engendradas por esta crise (ecolgica). Crise ecologique, internationalisme et anticapitalisme lheure de la modialisation. In: Michael Lwy & Jean-Marie Harribey, Capital contre nature, Paris: PUF, 2003, pp.203-214. (p.205). 42 O socialismo e a ecologia ou pelo menos algumas das suas correntes tm objetivos comuns, que implicam questionar a autonomizao da economia, do reino da quantificao, da produo como um objetivo em si mesmo, da ditadura do dinheiro, da reduo do universo social ao clculo das margens da rentabilidade e s necessidades da acumulao do capital. Ambos pedem valores qualitativos: o valor de uso, a satisfao das necessidades, a igualdade social para uns, a preservao da natureza, o equilbrio ecolgico para outros. Ambos concebem a economia como inserida no meio ambiente: social para uns, natural para outros (Lwy, 2005, p.42). 43 Michael Lwy, Luta Anticapitalista e Renovao do Marxismo. In: Michael Lwy & Daniel Bensad, Marxismo, modernidade e utopia, So Paulo: Xam, 2000, pp.248-256. (p.248).
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destrutivo da lgica mercantil44. De outro, a insistncia do marxismo na necessidade de
uma crtica das razes fundamentais do sistema capitalista pode contribuir para que os
ecologistas reconheam os condicionamentos sistmicos e estruturais que envolvem a
produo e reproduo do que ficou conhecido como crise ecolgica. Mas a tarefa, como
reconhece Michael Lwy, no das mais fceis. Pois ela implica,
[...] que a ecologia renuncie s tentaes do naturalismo anti-humanista e abandone sua pretenso de substituir ou absorver a crtica da economia poltica. Mas ela implica tambm que o marxismo se desvencilhe do produtivismo, substituindo o esquema mecanicista da oposio entre o desenvolvimento das foras produtivas e das relaes de produo que o entrava pela idia, bem mais fecunda, de uma transformao das foras potencialmente produtivas em foras efetivamente destrutivas45.
Por isso mesmo, a construo de uma perspectiva eco-socialista ainda encontra pela
frente inmeros obstculos, muitos dos quais oriundos no s dos movimentos ecolgicos
tradicionais (refratrios crtica social e poltica do capitalismo), seno tambm do prprio
marxismo, ainda pouco capaz de se desvencilhar de uma vez por todas dos percalos
economicistas e deterministas forjados em seu nome. Hoje, ainda, o marxismo est longe
de ter preenchido o seu atraso nessa rea46. Porm, apesar de tudo, pode-se visualizar a
emergncia, nas ltimas dcadas, de reflexes tericas e polticas que, em sua diversidade,
apresentam em comum uma tentativa de estabelecer um vnculo substantivo entre as
preocupaes ecolgicas e a luta anticapitalista, o que, por si s, j impe a necessidade de
renovao do marxismo. Aqui se encontra um dos eixos do desafio e, mais ainda, da aposta
de Michael Lwy na reconstruo do pensamento social radical.
Para Jean-Marie Harribey, a conjuno de trs acontecimentos histricos, nas
ltimas dcadas, reabriu as possibilidades de uma aproximao entre a perspectiva
ecolgica e a perspectiva anticapitalista. So eles: 1) o colapso dos modelos socialistas do
leste europeu; 2) o processo de liberalizao e desregulamentao do capitalismo
contemporneo, sob a conduo dos mercados financeiros globais. Enfim, e talvez o mais
importante: 3) a convergncia das mobilizaes populares e sociais contra a mundializao
44 Pierre Rousset, O ecolgico e o social: combates, problemas, marxismos, 2001. Disponvel em www.ecossocialistas.org.br. Acesso em 23/06/2007. 45 Michael Lwy, Marx: a aventura continua. In: Michael Lwy & Daniel Bensad, Marxismo, modernidade e utopia. So Paulo: Xam, 2000, pp. 263-267. (p.267). 46 Michael Lwy, Ecologia e Socialismo, op.cit., p.44.
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capitalista, que questionam tanto a dimenso social quanto a ecolgica da crise do capital.
Em conjunto, tais acontecimentos possibilitam a constituio de um novo fluxo de lutas
sociais anticapitalistas, em ruptura com as antigas filiaes do pensamento socialista s
ideologias iluministas do progresso47.
Mais do que uma empreitada meramente terico-intelectual, so as prprias lutas
sociais contemporneas ajuntadas sob o epteto de movimentos altermundialistas que,
na prtica, incorporam a dimenso ecolgica como uma dimenso fundamental da luta
contra as atuais formas de realizao do capitalismo. Nos pases da periferia do sistema,
notadamente, pode-se perceber a emergncia aparentemente espontnea de uma
ecologia dos pobres, que estabelece vnculos duradouros entre a defesa da natureza e a luta
contra a explorao e a opresso48, como se viu na trajetria de Chico Mendes ou na
recente guerra da gua, que ocorreu em Cochabamba na Bolvia, em 200049. A ecologia
poltica dos pobres se ope ao industrialismo e ao desenvolvimento que foram
caractersticos do capitalismo histrico, mas se ope igualmente utilizao mercantil do
ecologismo50.
Enfim, como diz Michael Lwy: Hoje, no incio do sculo XXI, a ecologia social se tornou um dos ingredientes mais importantes do vasto movimento contra a globalizao capitalista neoliberal que est em processo de desenvolvimento, tanto no Norte, quanto no Sul do planeta. A presena macia dos ecologistas foi uma das caractersticas chocantes da grande manifestao de Seattle
47 Jean-Marie Harribey, Rapports sociaux et cologie : hirarchie ou dialectique?. Congrs Marx International IV Guerre impriale, guerre sociale , 29 septembre au 2 octobre 2004. Universit Paris X-Nanterre, Actuel Marx. Disponvel em: http://actuelmarx.u-paris10.fr/m4harriecolo.htm. 48 Renan Vega Cantor, El Caos Planetrio: ensaios marxistas sobre la miseria de la mundializacin capitalista, Buenos Aires: Herramiente; Antdoto, 1999, p.78. 49 Entre janeiro e abril de 2000, ocorreram inmeros protestos populares contra a privatizao da gua em Cochabamba, a terceira maior cidade da Bolvia. A guerra da gua, como ficou conhecida, mobilizou setores expressivos das camadas populares e indgenas contra a privatizao impulsionada pelo Banco Mundial de um recurso natural (como a gua) que sempre fora controlado, at ento, basicamente, pelas prprias organizaes das comunidades. Como observa Ral Zibechi: La clebre guerra del agua slo puede explicarse como resultado de una decisin comunitaria, de cientos de miles de personas, de defender un recurso que no fue ni creado ni gestionado por el Estado sino por las propias comunidades urbanas y rurales. No limite, tratava-se exatamente de mais um captulo da luta indgena e popular contra o progresso (neoliberal) na Amrica Latina, o que certamente no surpreenderia a Benjamin. Ral Zibechi, Cochabamba. De la guerra a la gestin del gua. Herramienta, n.41, 2009. Disponvel em: http://www.herramienta.com.ar/revista-herramienta-n-41/cochabamba-de-la-guerra-la-gestion-del-agua. Acesso em: 10/04/2010. 50 Francisco Fernandez Buey, En paix avec la nature: ethique, politique et ecologie. In: Michael Lwy & Jean-Marie Harribey (orgs.), Capital contre nature, Paris: PUF, 2003, pp.165-178. (p.176).
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contra a Organizao Mundial do Comrcio em 1999. E no Frum Social Mundial de Porto Alegre em 2001, um dos atos simblicos fortes do evento foi a operao, levada a cabo pelos militantes do Movimento dos Sem-Terra brasileiros (MST) e pela Confederao Camponesa Francesa de Jos Bov, de arrancar uma plantao de milho transgnico da multinacional Monsanto51.
O movimento altermundialista que nasceu, na realidade, com o grito de Ya Basta!
lanado pelos zapatistas em 199452 - significa, nesse sentido, uma tentativa de atualizao
da perspectiva anti-sistmica, luz das transformaes do capitalismo contemporneo. O
eco-socialismo parte deste cenrio ainda incerto, um tanto nebuloso, e carregado de novas
potencialidades. Mas, ao mesmo tempo, na medida em que reafirmam a centralidade da luta
contra o capitalismo, os eco-socialistas reconhecem nos trabalhadores e nas classes
subalternas uma fora essencial nas lutas sociais e ecolgicas do presente e na
revitalizao terica e poltica de uma perspectiva anticapitalista. Ainda que critiquem a
ideologia das correntes dominantes do movimento operrio, os eco-socialistas sabem que
os trabalhadores e as suas organizaes so uma fora essencial para qualquer
transformao radical do sistema, e para o estabelecimento de uma nova sociedade,
socialista e ecolgica53.
Ora, deste ponto de vista, a fora do altermundialismo no reside na sua
capacidade de substituir as lutas de classes tradicionais, mas na sua capacidade de refunda-
las sob novo contexto54. O fetichismo da mercadoria, que est na base da transformao das
relaes humanas em coisas, estimula igualmente a transformao da natureza em coisa, em
matria-prima conforme a lgica mercantil. O fetichismo da mercadoria no se contenta
em mudar as relaes humanas em coisas: ele degrada igualmente o natural condio de
bestial55. Assim, como demonstram os eco-socialistas e algumas correntes do movimento
altermundialista, uma ecologia que ignora ou negligencia o marxismo e sua crtica do
fetichismo da mercadoria est condenada a no ser mais do que uma correo dos
51 Michael Lwy, Ecologia e Socialismo, op.cit., p.65. 52 Michael Lwy, Negatividade e Utopia do movimento altermundialista. Lutas Sociais, So Paulo, n.19/20, pp.32-38. (p.34). 53 Michael Lwy, Ecologia e Socialismo, op.cit., p.47, 48. 54 Jean-Marie Harribey, Rapports sociaux..., op.cit., 2004, s/p. 55 Daniel Bensad, Marx, o Intempestivo, op.cit., p.435.
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excessos do produtivismo capitalismo56.
Entretanto, para responder s demandas do debate ecolgico, o marxismo precisa
realizar um acerto de contas definitivo com alguns dos preceitos historicamente formulados
em seu nome. A partir dos desafios do tempo-de-agora, como diria Benjamin, deve-se
atualizar o projeto anticapitalista, em ruptura com o progresso, atualizao na qual
imprescindvel o componente eco-social, que requer uma nova forma de entender e assumir
as relaes no s entre os seres humanos seno entre estes e a natureza57. Caso contrrio,
o marxismo manter-se- prisioneiro das crticas ecologistas ao suposto gnio
produtivista58 de Marx, sem que se consiga explicitar o reverso de sua concepo dialtica:
a crtica feroz do carter violento e destrutivo do processo de expanso do progresso
capitalista59.
Para parcela considervel dos movimentos ecolgicos, Marx foi um dos mais
tenazes defensores do desenvolvimento das foras produtivas como um fim em si, cuja
evoluo determinaria as etapas do progresso da histria. Alain Lipietz, por exemplo, para
quem o paradigma vermelho deve ser substitudo pelo verde, acredita que Marx v a histria como uma artificializao progressiva do mundo, liberando a humanidade dos constrangimentos externos impostos por seu inadequado domnio da natureza. Isto o leva e os marxistas que seguem o seu rastro a uma tendncia em subestimar o aspecto irredutvel desses constrangimentos externos (os ecolgicos, para ser mais exato). Nesse aspecto, Marx compartilha inteiramente da ideologia bblico-cartesiana da conquista da natureza60.
Mesmo para Ted Benton, cuja crtica ecolgica inequivocamente anticapitalista,
Marx, a despeito de sua crtica moral sistemtica e de sua anlise da natureza transitria do
capitalismo, [...] conserva uma viso otimista de seu papel histrico, na medida em que
56 Michael Lwy, Ecologia e Socialismo, op.cit., p.38. 57 Renan Vega Cantor, El Manifiesto Comunista y la urgencia de emprender uma crtica marxista del progreso, op.cit., p.33. 58 Daniel Bensad, Marx, o Intempestivo, op.cit., 1999, p.433. 59 Basta ver o captulo sobre a acumulao primitiva nO Capital. 60 Alain Lipietz, A ecologia poltica e o futuro do marxismo. Ambiente & Sociedade - Vol. V - no 2 - ago./dez. 2002 - Vol. VI - no 1 - jan./jul. 2003, pp.9-22. (p.14). Na opinio de Lipietz, o paradigma verde tem uma grande vantagem sobre o vermelho: ele aparece aps um sculo de ensaios e de equvocos. Cf. Alain Lipietz, Ecologie politique et mouvement ouvrier: similitude et diffrences, Politis La Revue, n.1, hiver 1992, p.60-61; ou ainda, do mesmo autor, Vers Esperance, Paris: La Dcouvert, 1993.
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constitui as condies necessrias emancipao futura do homem61, razo pela qual eles
jamais teriam admitido a possibilidade de existncia de limites naturais, identificando os
defensores desta perspectiva com o conservantismo reacionrio (como se v,
particularmente, na crtica desferida Malthus)62. Marx teria, portanto, subestimado a
autonomia relativa das condies naturalmente dadas e no manipulveis, resistindo
incluso da contabilidade energtica na sua teoria do valor-trabalho63. Ele no teria
percebido, assim, suficientemente, que a natureza material dos meios de produo de
trabalho e das matrias-primas coloca limites sua utilizao/transformabilidade pelas
intenes do homem64.
Em consequncia, do ponto de vista dos ecologistas, Marx visualizava na cincia e
na tecnologia, assim como no desenvolvimento das foras produtivas em seu conjunto, uma
capacidade ilimitada, desconsiderando aquilo que atualmente se denomina resultados
imprevistos do uso tecnolgico e tambm os potenciais limites fsicos ao desenvolvimento
econmico, conforme comenta Guillermo Foladori65. Para Benton, Marx e Engels
partilhavam da tendncia a ver a cincia moderna como potencialmente favorvel
emancipao do homem eles a transformavam inclusive, na condio necessria desta
emancipao66. Assim, tudo se passaria como se este modelo cientfico-tecnolgico fosse
neutro, atuando como potencializador da atividade trans-histrica do homem na direo da
dominao da natureza.
Muito embora reafirme que os conceitos econmicos marxianos constituem um
ponto de partida indispensvel para toda investigao ecolgica, Ted Benton no
surpreende quando afirma que, no materialismo histrico marxista [...], h muitas coisas
que so incompatveis com uma perspectiva ecolgica67. Alain Lipietz aponta para a
mesma direo, mas com um tom nitidamente mais incisivo. Diz ele: a estrutura geral, a
plataforma intelectual do paradigma marxista, junto com as solues-chave que sugere,
61 Ted Benton, Marxisme et limites naturelles: critique et reconstruction cologique. In: Michael Lwy & Jean-Marie Harribey (orgs.), Capital contre nature, Paris: PUF, 2003, pp.23-55. (p.40). 62 Idem, p.40. 63 Cf. Daniel Bensad, Marx..., op.cit., 1999, p.459-470. 64 Ted Benton, Marxisme..., op.cit., 2003, p.37. 65 Guillermo Foladori, A questo ambiental em Marx. Crtica Marxista, So Paulo: Xam, 1997, pp.140-161. (p.142). 66 Ted Benton, Marxisme et limites naturelles: critique et reconstruction cologique, op.cit., p.24. 67 Idem, p.28.
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devem ser abandonadas; virtualmente, toda rea do pensamento marxista deve ser
reexaminada de forma completa a fim de que possa realmente ser usada68.
Dentre os marxistas, em particular aqueles direta ou indiretamente envolvidos no
debate eco-socialista, a resposta s crticas dos ecologistas assumiram perspectivas
variadas. Embora todos reconheam a absoluta atualidade da crtica marxista do
capitalismo em face da crise ecolgica, pode-se notar diferentes posturas quanto s reais
contribuies de Marx para a constituio de uma perspectiva a um s tempo socialista e
ecolgica. Para John Bellamy Foster, por exemplo, possvel visualizar uma significativa
dimenso ecolgica no prprio cerne do materialismo histrico construdo por Marx. O
pensamento social de Marx, em outras palavras, est inextricavelmente atrelado a uma
viso de mundo ecolgica. Inspirado pela obra de Epicuro (como demonstra sua tese de
doutoramento), o materialismo de Marx, ao assinalar a transitoriedade de toda vida e
existncia, inclusive da natureza, j compe traos decisivos para uma crtica ecolgica
rigorosa, de base cientfica. Por isso, como afirmou o gegrafo italiano Massimo Quaini,
citado por Foster, Marx denunciou a espoliao da natureza antes do nascimento da
moderna conscincia ecolgica burguesa69.
Franois Chesnais e Claude Serfati, em perspectiva semelhante, tambm sustentam
a necessidade de um retorno Marx, capaz de elucidar os primeiros passos para uma
crtica ecolgica anticapitalista. Mas, para eles, mais do que para Foster, retornar a Marx
no quer dizer tentar sustentar que ele, bem como Engels, com ele e aps ele, no tenham
escrito coisas contraditrias ou defendido posies cuja conciliao nem sempre
evidente70. Eles reconhecem, ento, a necessidade de uma atualizao seletiva da obra
do filsofo alemo: Hoje, ser fiel a Marx rel-lo para procurar com ele (e no apenas em seu trabalho) todos os traos predatrios e parasitrios, assim como todas as tendncias transformao das foras inicialmente ou potencialmente produtivas em foras destrutivas, que estavam inscritas nos fundamentos do capitalismo desde o incio, mas cujo tempo de gestao e de maturao foi muito longo71.
68 Alain Lipietz, op.cit., 2002/2003, p.13. 69 Cf. John Bellamy Foster, A ecologia de Marx: materialismo e natureza. Rio de Janeiro: Civilizao Brasileira, 2005, p.23. (traduo de Maria Teresa Machado). 70 Franois Chesnais & Claude Serfati, Ecologia e condies fsicas de reproduo social: alguns fios condutores marxistas, op.cit., 2003, p.47. 71 Idem, p.50.
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Neste contexto, recupera-se Marx no quadro de uma crtica renovada do
capitalismo que vincularia, de forma indissocivel, a explorao dos dominados pelos
possuidores de riqueza e a destruio da natureza e da biosfera72. Mesmo porque, j nos
Manuscritos de 1844, Marx73 concebe o homem como parte da natureza, de tal forma que
o comunismo, enquanto naturalismo consumado = humanismo, e enquanto humanismo
consumado = naturalismo, constitui-se na verdadeira dissoluo ao antagonismo do
homem com a natureza e com o homem74.
No entanto, tanto John Bellamy Foster quanto Franois Chesnais so resistentes
necessidade da conceituao eco-socialista. Para o primeiro, as tentativas dos eco-
socialistas de enxertar a Teoria Verde em Marx, ou Marx na Teoria Verde (...) jamais
poderiam gerar a sntese ora necessria75. Franois Chesnais, por sua vez, acredita que, se
a ideia de socialismo entrou em descrdito histrico em virtude do carter destrutivo das
experincias socialistas do leste europeu, o contedo da palavra socialismo continua
vlido, devendo ser repensado a partir dos aportes de Marx sobre os produtores
associados e suas relaes com a natureza76. Desta perspectiva, no haveria necessidade
terica e tampouco poltica para a adoo do idia de eco-socialismo.
Do ponto de vista terico, a posio de Michael Lwy coincide com as expostas
acima. Mas sua postura , digamos assim, mais nuanada, quer dizer, mais disposta a
admitir certas tenses e at contradies na concepo do progresso em Marx, o que
implica a possibilidade e a necessidade de constituio de uma perspectiva
legitimamente eco-socialista, capaz de atualizar a crtica marxista a partir dos desafios do
presente. Em suas palavras: os temas ecolgicos no ocupam um lugar central no
dispositivo terico marxiano, e, at por isso, os escritos de Marx e Engels sobre a relao 72 Idem, p.40. 73 Karl Marx, Manuscritos Econmico-Filosficos, So Paulo: Boitempo, 2004, p.84. 74 Idem, p.105. Nas palavras de Alan Bihr: a utopia comunista deve romper com a concepo antropocntrica da existncia humana, baseando seu sentido no na separao entre o homem e a natureza, mas no pertencimento do homem natureza, da qual guardio e testemunha. S assim o comunismo poder significar a reconciliao do homem com a natureza, a naturalizao do homem ao mesmo tempo que a humanizao da natureza, para retomar as clebres frmulas do jovem Marx. Da grande noite alternativa: o movimento operrio europeu em crise. 2. edio. So Paulo: Boitempo, 1999, p.141. 75 John Bellamy Foster, A ecologia..., op.cit., 2005, p.23. 76 Franois Chesnais, Les origines comunnes de la crise conomique et de la crise cologique. Disponvel em: http://www.carre-rouge.org/article.php3?id_article=212. Acesso em: 20/05/2009.
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entre as sociedades humanas e a natureza esto longe de serem unvocos, e podem ser
objeto de interpretaes diferentes77. Ora, o desdobramento deste reconhecimento
inequvoco: mais do que tentar provar a existncia de um Marx anjo da guarda
ecologista78, a constituio de uma ecologia de inspirao marxista deveria instalar-se
nas prprias tenses e contradies existentes em sua obra, de forma a melhor transplant-
la criticamente para o presente - em um momento em que a crtica do capitalismo se
constitui num fundamento indispensvel de uma perspectiva ecolgica radical79.
Pois, como diz Daniel Bensad, com toda a certeza, seria anacrnico exonerar
Marx das iluses prometicas de seu tempo; mas seria igualmente abusivo fazer dele um
pregador descuidoso da industrializao a qualquer preo e do progresso em sentido
nico80. Para Michael Lwy, da mesma forma, como ponto de partida indispensvel, Marx
no apresenta em seus trabalhos a soluo terica para todos os novos desafios que
emergiram com o atual estgio do capitalismo. Demasiadamente atado a uma perspectiva
neo-iluminista, nem sempre ele pde perceber as potencialidades destrutivas inscritas na
imensa capacidade do capitalismo de desenvolver as foras produtivas, de fazer com que o
slido desmanche no ar, de acordo com a clebre frmula do Manifesto Comunista cujo
culto da modernidade foi positivamente ressaltado por Marshall Berman81.
Neste quadro, para estar altura do presente, a crtica marxista do capitalismo
necessita ser depurada de seus aspectos mais decididamente legitimadores do progresso
capitalista-moderno. A despeito dos seus limites, Marx no , e nunca foi, um partidrio
inconteste do discurso filosfico da modernidade, com sua crena exacerbada no
progresso linear. Em ruptura como o otimismo tecnolgico do seu tempo, Marx repele a
77 Michael Lwy, Progrs destructif. Marx, Engels et lcologie. In: Michael Lwy & Jean-Marie Harribey, Capital contre nature, Paris: PUF, 2003, pp.11-22 (p.11). 78 Daniel Bensad, Marx, o Intempestivo, op.cit, 1999, p.433. Que faam dele o responsvel pelo produtivismo burocrtico e suas cat