CRÍTICA À TEORIA PURA DO DIREITO DE HANS KELSEN: A
NECESSIDADE DE MODIFICAÇÃO DO ENSINO JURÍDICO
André Murilo Parente NogueiraAdvogado, mestrando em Sistema Constitucional
de Garantia de Direitos, pela Instituição Toledo de
Ensino, Bauru/SP
INTRODUÇÃO
Através do presente estudo buscaremos apontar algumas relevantes
considerações acerca da teoria pura do direito, elaborada por Hans Kelsen,
intimamente relacionada com a idéia de positivismo jurídico, passando desde a
evolução do direito jusnaturalista até uma abordagem crítica do positivismo
kelseniano, com ênfase especial, no que se refere ao ensino da ciência do direito,
a qual sofre, até os dias atuais, os ranços deixados pelo estudo do doutrinador de
Praga1.
Não se pretende com o presente trabalho monográfico afastar os méritos
da teoria formulada por marcante esse jus-filósofo moderno, assim como não
abordaremos todos os itens da célebre obra que leva o nome da teoria, haja vista
o aspecto pontual deste, mas sim, buscaremos reconhecer que nela existentes
1 A título informativo e por tratar o presente trabalho sobre a obra de Hans Kelsen, é interessante sabermos que o mesmo nasceu em Praga, no Império Austro-Húngaro, em 11 de outubro de 1881, vindo a falecer nos Estados Unidos, na cidade de Berkeley, no ano de 1973, onde se refugiou do nazismo crescente na Europa. Fora colaborador na redação da Constituição austríaca, país em que também fora juiz da Corte Constitucional, entre 1921 e 1930. Lecionou nas Universidades de Viena, Colônia, Harvard e Berkeley.
pontos dignos de reparo, notadamente, no que tange à pureza do direito e ao
positivismo desmedido, os quais enraizaram alguns dogmas negativos na
docência do direito, que, por sua vez, merece ser repensada numa visão pós-
moderna da ciência jurídica.
O que se almeja é demonstrar que o positivismo exacerbado e a
pretendida pureza irrestrita da ciência do direito não podem ser considerados
postulados absolutos.
Busca-se aqui elidir a idéia formulada pelo próprio Hans Kelsen no prefácio
da primeira edição de sua obra, escrito na cidade de Genebra, na Itália, no ano de
1934, reeditada em 1960, com alterações de relevo, quando assim esclareceu:
“Há mais de duas décadas que empreendi desenvolver uma teoria jurídica pura, isto é, purificada de toda ideologia política e de todos os elementos da ciência natural, uma teoria jurídica consciente da sua especificidade porque consciente da legalidade específica do seu objeto. ... Importava explicar, não as suas tendências endereçadas à formação do Direito, mas as suas tendências exclusivamente dirigidas ao conhecimento do Direito, e aproximar o tanto quanto possível os resultados do ideal de toda a ciência: objetividade e exatidão.”2
É neste prisma que iremos nos deter, nas linhas abaixo, de modo a
demonstrar a impossibilidade de obtenção uma teoria absolutamente pura do
direito, os avanços e as críticas que essa teoria comporta, todos através do viés
de um ensino jurídico que necessita ser modificado, trazendo nova ideologia e
perspectiva da ciência jurídica aos bacharéis em direito.
2 Teoria pura do direito, p. XI.
4
Esse novo corte epistemológico e a nova visão dos cursos da ciência do
Direito tem uma finalidade que bastava em si mesma, ou seja, a formação de
pessoas conscientes do papel social que deverão desempenhar, assim como a
relevância do instrumento que possuem em seu poder, o Direito, sempre voltado
à formação de um Estado verdadeiramente de Direito e Democrático3, com vistas
aos fundamentos e objetos estabelecidos nos artigos 1º e 3º, da Constituição da
República.
CONSIDERAÇÕES SOBRE O POSITIVISMO JURÍDICO E A
TEORIA PURA DO DIREITO DE HANS KELSEN – AS CRÍTICAS
PERTINENTES
Na obra Teoria Pura do Direito Hans Kelsen buscou desenvolver o ideário
de uma ciência jurídica dotada de completa pureza, a qual deveria servir de norte
para todo o método, objeto e conhecimento do direito, como ciência autônoma
das demais.
Por ser relevar imprescindível traremos um resumo do pensar kelseniano
escrito por si mesmo:
“A Teoria Pura do Direito é uma teoria do Direito positivo _ do Direito positivo em geral, não de uma ordem jurídica especial.
3 Esse Estado em que vivemos é declaradamente democrático (Preâmbulo e caput do artigo 1º), que traz em seu bojo “a idéia base é a de que a vontade política da maioria governante de cada momento não pode prevalecer contra a vontade da maioria constituinte incorporado na Lei Fundamental”,é a limitação da maioria pelo princípio da constitucionalidade, segundo Walter Claudius Rothenburg, em Inconstitucionalidade por omissão e troca de sujeito: a perda de competência como sanção à inconstitucionalidade por omissão, p. 105.
5
...
...já não lhe importa a questão de saber como é o Direito, ou como deve ele ser feito. É a ciência jurídica e não política do Direito.Quando a si própria se designa de ‘pura’ teoria do Direito, isto significa que ela se propõe garantir um conhecimento apenas dirigido e excluir desse conhecimento tudo quanto não se possa, rigorosamente, determinar como Direito. Quer isto dizer que ela pretende libertar a ciência jurídica de todos os elementos que lhe são estranhos. Esse é o seu princípio metodológico fundamental..... Quando a Teoria Pura empreende delimitar o conhecimento do Direito em face destas disciplinas, fá-lo não por ignorar, ou muito menos, por negar essa conexão, mas porque intenta evitar um sincretismo metodológico que obscurece a essência da ciência jurídica e dilui os limites que lhe são impostos pela natureza do objeto.”4
Numa primeira e desatenta leitura tal doutrina kelseniana mostra-se como
sedutora e, não à toa, trouxe tanta inovação e aceitação dos doutrinadores do
direito, marcando e deixando grande influência dos cientistas jurídicos da época,
até mesmo porque conferia uma autonomia disciplinar, uma independência
científica, até então, desconhecida pelos estudiosos do direito, o que, assentou-se
como paradigma dessa doutrina.
A teoria pura do direito fora inspirada e elaborada com nítido objetivo de
atacar e desmistificar determinados preceitos estabelecidos pelos que
sustentavam o jusnaturalismo, desde a Antigüidade até início do século XX, fora
um método científico de repudiar aquela visão do direito natural, daí a estreita
ligação da teoria com o positivismo jurídico, a norma, como comando emanado do
legislador, do Estado, trata-se do critério do que é lícito ou ilícito e não bom ou
mau, justo ou injusto (aliás, esse critério pode ser mensurado levando-se como
padrão de equivalência a determinação da norma posta, normas impositivas, de
caráter sancionatório)5.4 Op. cit., p. 1-2.5 Em sentido contrário, temos a lição de Norberto Bobbio, em Dalla strutura alla funzione, onde
demonstra a crescente tendência do que convém denominar de direito promocional, para
6
Necessário se faz entender o objeto que encontrava-se combatido pela
teoria de Hans Kelsen, qual seja, o direito natural, que fora assim definido por
Alexandre Miguel:
“...o direito natural é um ditame da justa razão destinado a mostrar que um ato é moralmente torpe ou moralmente necessário, segundo seja ou não conforme a própria natureza racional do homem, e a mostrar que tal ato é, em conseqüência disso, vetado ou comandado por Deus, como autor da natureza.”6
Importantes ensinamentos também são trazidos por Agostinho Ramalho
Marques Neto, que após apresentar as tendências do direito natural aponta o
elemento identificador dessa teoria do direito:
“...há uma lei natural, eterna e imutável, que se traduz na existência de um universo já legislado; essa lei pode ser um reflexo da inteligência divina, ou resultar de uma ordem natural das coisas, ou da razão do homem, ou de seu instinto social”7
Esse direito natural advindo de séculos, ligado à forma natural das coisas,
com normas jurídicas naturais e direitos subjetivos naturais, inaptos à pessoa
humana, direitos fundamentais da pessoa, direitos suprapositivos, com estreitos
laços ao sentido de justiça, como reguladora social, com relevante papel nas
conquistas jurídicas e políticas das revoluções burguesas, é que constitui o alvo
principal dos ataques do positivismo ou normativismo kelseniano.
conceituar um direito não exclusivamente sancionados, mas também, um direito que prestigia condutas conforme o esperado pelo Estado, são as denominadas técnicas de encorajamento e as sanções positivas, que surgem em virtude da crise do sistema protetivo-repressivo.
6 Em busca do direito perdido: uma crítica ao direito natural e ao direito positivo, p. 308.7 Ciência do direito: conceito, objeto, método, p. 135.
7
Para Hans Kelsen, partindo de um ponto de vista racional da ciência
jurídica, o critério religioso ou metafísico pregado pelo jusnaturalismo não merece
ser considerado, posto que seria absolutamente insustentável, não podendo
prescrever os comportamentos humanos, aqui se percebe uma troca de valores
entre justiça e segurança.
Nesse paralelo bem esclarece Paulo Magalhães da Costa Coelho, ao
destacar que “operou-se, destarte, o desprezo pelo ideal de justiça em favor da
segurança jurídica”8, restando bem nítido o verdadeiro cerne e,
concomitantemente, o equívoco da pureza do direito.
Assim, a teoria pura do direito vê na norma, advinda do Estado, como
critério objetivo e exato de estudo da ciência jurídica, norma essa alheia a toda e
qualquer impureza, como adiante será melhor explicitado, donde resta destacado
o íntimo relacionamento desse pensamento de Kelsen com o crescente preceito
do positivismo jurídico.
Outrossim, resta bastante esclarecedora a lição de Ruth Maria Junqueira
de Andrade Pereira, quando traça linhas a respeito da passagem do direito
natural ao direito positivo, destacando:
8 É possível a construção de uma hermenêutica constitucional emancipadora na pós-modernidade? p. 113.
8
“O positivismo jurídico nasceu da contraposição do direito positivo com o natural...são dois os critérios para distinguir o direito positivo do natural: a) o direito natural é aquele que tem em toda parte a mesma eficácia, enquanto o direito positivo tem eficácia apenas nas comunidades singulares em que é posto; b) o direito natural prescreve ações cujo valor não depende do juízo que sobre elas tenha o sujeito...Já o direito positivo, estabelece que antes de reguladas as ações podem ser cumpridas de um jeito ou de outro, mas depois de legalizadas devem ser cumpridas conforme a lei determinar”9
Continua a mesma autora10 apontando algumas características peculiares
do positivismo, as quais parafraseamos, citando resumidamente: a) retirar do
direito tudo que não lhe diz respeito (moral, política, psicologia, religião,
economia, sociologia, etc); b) norma como eixo central da ciência jurídica; c)
racionalidade formal e regularidade procedimental; d) legitimidade é igual a
legalidade; e) o modo de produção do direito é o direito positivado, posto, é o
direito positivo que produz a autoridade.
Semelhantes são os apontamentos colacionados por Luis Roberto Barroso
que leciona no sentido de existência de algumas características peculiares do
positivismo, que, segundo o mesmo, alcançam o auge no que denomina de
“Normativismo de Hans Kelsen”.11.
Muito embora sejam pertinentes, não iremos nos aprofundar no tema de
diferenciação entre o positivismo jurídico e o direito natural, por não se tratarem
do cerne deste, bem como pela vastidão do tema, sendo importante para o
presente trabalho monográfico entendermos que o primeiro sucedeu ao segundo,
9 Análise comparativa da teoria pura do direito..., p. 148.10 Op. cit., p. 150.11 Fundamentos teóricos e filosóficos no direito constitucional, in Estudo de Direito Constitucional
em homenagem a José Afonso da Silva, p. 40.
9
surgindo como crítica aos ensinamentos pregados pelo mesmo, conforme supra
demonstrado.
Neste trilhar, importante tecermos alguns esclarecimentos sobre o que se
deve entender por pureza ou pelo direito puro, nos moldes pretendidos por Hans
Kelsen em sua teoria, a qual, como antes já transcrito, tem como seu princípio
metodológico fundamental essa mencionada “pureza da ciência jurídica”.
Tal proposição não deixa margem de dúvidas para mencionarmos que
Hans Kelsen fora um grande positivista, que estrutura seu pensar em uma norma
hipotética fundamental (norma pressuposta) que, por sua vez, presta-se como
fundamento de validade de todo o ordenamento jurídico (normas postas), o que
não se debaterá neste, em face da complexidade e vastidão do tema, o que
poderia acarretar no deslocamento do objeto do trabalho.
Quando no início do presente trabalho trouxemos à apreciação trecho
inaugural da obra Teoria Pura do Direito, ali, naquele trecho, o autor Hans Kelsen,
já deixa à evidência qual seu propósito no estudo, demonstrar que o direito é uma
ciência pura, autônoma, devendo ser subtraído de seu entendimento qualquer
elemento que lhe seja estranho, a fim de proporcionar à ciência jurídica
objetividade e exatidão em seu conhecimento, que deve se dar a partir, exclusiva
e tão somente, através das normas emanadas do Estado, basta que cumpramos
a lei, nenhum motivo externo social merece ser relevado.
10
Kelsen, durante toda a obra, busca afastar o direito dos demais ramos
científicos, conhecendo que elas se aproximam, mas tal, deve reforçar a
necessidade do direito continuar incólume.
Fica bem destacado no texto de Kelsen qual era a pretensão de sua obra:
“O direito deve ser moral, justo, mas não necessariamente o será.A validade de uma ordem jurídica independe de sua concordância ou discordância com qualquer sistema de moral....a tarefa da ciência jurídica descrever seu objeto e não apreciá-lo como bom ou mau. A ciência jurídica não tem o papel de legitimar o direito, de justificá-lo através de uma moral absoluta ou relativa, tem que conhecê-lo e descrevê-lo.”12
O pretendido resultado posto pela doutrina de Hans Kelsen é bem
diagnosticado por Agostinho Ramalho Marques Neto que, descrevendo a pureza
da ciência jurídica assevera:
“A grande preocupação de KELSEN é construir uma ciência do Direito que tenha um objeto puro, livre de qualquer contaminação ideológica, política, econômica, etc., essencialmente jurídico e, como tal, passível de ser identificado sem maiores dificuldades........Para alcançar tão grandioso escopo, para construir uma ciência limpa de qualquer impureza, KELSEN define seu princípio fundamenta: o Direito se resume exclusivamente à norma; o chamado conteúdo social da regra jurídica, que revela a n-dimensionalidade do Direito, é alheio a esta disciplina, constituindo um objeto das ciências sociais....KELSEN apresenta, pois, sua doutrina como libertadora da ciência jurídica ‘de todos os elementos que lhe são estranhos”.... o mito positivista de que é a natureza do objeto que define o campo das ciências. Só que, aqui, o objeto é a norma, e não o fato.”13
As linhas anteriores são bastante nítidas e deixam às claras o que Hans
Kelsen pretendeu ao formular a Teoria Pura do Direito, isto é, uma ciência
12 Op. cit., p. 66.13 Op. cit., p . 163-165.
11
jurídica, que na sua dogmática desprezasse qualquer fator social, de qualquer
natureza, para admitir o estudo e o conhecimento fulcrado na norma, esse seria o
único e irrestrito objeto do dogma jurídico, buscando atribuir objetividade e
exatidão no pensamento do Direito.
Eis aqui o ponto central em que passamos de um mero estudo
demonstrativo da Teoria Pura e do positivismo jurídico pregado por Kelsen para a
apresentação de diversos aspectos críticos aptos a relativizarem a força dessa
acepção do Direito.
Isso sem menosprezar os possíveis avanços que a mesma trouxe à
sociedade, entretanto, alguns de seus motes devem ser repensados, na busca de
uma ciência jurídica mais social, justa e humanitária, o que, inegavelmente,
refletirá no ensino do Direito, o que será objeto de apresentação no tópico
posterior, restando, agora, uma crítica genérica a respeito da pureza e do
positivismo jurídico kelseniano.
Ocorre que para o positivismo de Kelsen, o ordenamento era pleno,
bastava em si mesmo, inexistindo lacunas, o que tornava a sua teoria do direito
como algo estanque, sem instrumentos para lidar com conceitos e situações
indeterminadas no sistema jurídico, o que conferia uma inoperacionalidade do
mesmo, isso tudo sem contar a questão de que, por vezes, afasta o valor justiça
para contemplar a norma jurídica, objeto da dogmática do Direito e de pureza.
12
É com tranqüilidade, todavia, que podemos mencionar que a ciência do
direito jamais terá ou teve essa pureza pretendida por Hans Kelsen, sendo
gritante que o fenômeno jurídico, a norma, é formada, editada e tem sua eficácia
dentro de um determinado seio social que a elegeu como forma de conduta, quer
seja ela proibitiva ou permissiva, quer estabeleça uma sanção negativa ou
positiva.
Logo, é certo que o objeto de conhecimento da ciência do direito não é
algo dotado do sentido “puro” posto por Kelsen, sendo que suporta influência
constante do meio social em que se encontra, sem se mencionar que o mesmo
adveio desses anseios sociais.
É certo que o estudo, a dogmática jurídica deve ser elaborada com minúcia
atenta aos mais diversos critérios de interdisciplinaridade, ainda mais no mundo
atual em que vivemos, de constante evolução e participação global, o
neoliberalismo econômico, a relativização das soberanias, os grandes blocos
comerciais, enfim, tudo corrobora para um direito marcado por uma vasta pressão
da sociedade e de seus diversos elementos.
Neste diapasão, tomamos a liberdade corroborar com o pensamento de
Paulo Magalhães da Costa Coelho, o qual, com pertinência nos ensina:
“A comunicação com outros ramos do saber é absolutamente essencial para uma real compreensão do fenômeno jurídico, Comunicação esta que foi cortada pelo viés do positivismo jurídico, preocupado tão-somente com a validade lógica das normas, com os resultados conhecidos.”14
14 Op. cit., p. 126.
13
Esses elementos de ordem política, ideológica, cultural, internacional,
econômica, ética, sociológico, tudo interfere no pensar do cientista do direito,
assim como na própria norma, possível “objeto puro”, de sorte que fica impossível
pensarmos a ciência jurídica sem, ainda que inconscientemente, sermos levados
por um ou mais desses fatores.
A dogmática do direito deve comportar um método misto de estudo, tendo
em vista que o objeto de seu estudo não se resume, tão somente, à norma, a
ponto de que os elementos acima expostos são apenas alguns dos que devem
ser pensados paralelamente com a norma positivada e posta pelo Estado,
evidenciando esse jogo de forças sociais do qual o Direito, a ciência do Direito,
sem dúvida tem grande participação e assume papel de relevo.
Novamente me valho das lições de Agostinho Ramalho Marques Neto que,
aduzindo acerca da inexistência da pureza do direito, tal como objetivou a
doutrina kelseniana, menciona:
“Assim, o que interessa é um direito real, concreto, histórico, visceralmente comprometido com as condições efetivas do espaço-tempo social, que constituem a medida por excelência de sua eficácia; e não um direito estático, conservador, reacionário, voltado para o passado, óbice ao invés de propulsor do desenvolvimento social, que prefira enclausurar-se em seus próprios dogmas a abrir-se a uma crítica fecunda que o renove e lhe dê vida.”15
Outrossim, não podemos nos esquivar do fato de que o direito é uma
ciência que se esforça e estende seus préstimos com vistas à máxima formação
15 Op. cit., p. 131.
14
da pacificação social, regulando as relações entre indivíduos histórico-sociais,
relações intersubjetivas, subtraindo-se, portanto, ainda mais, a possibilidade de
pureza desse ramo do saber humano.
Não bastasse a inexistência da sonhada pureza kelseniana do Direito,
outras abrangências de sua teoria pura merecem considerações críticas,
iniciando-se pelo postulado da norma hipotética fundamental, a qual, muito
embora, signifique algum avanço também deixa seqüelas históricas.
Pela pirâmide do ordenamento jurídico Kelsen formulou seus estudos de
modo que à norma bastava encontrar seu fundamento de validade em outra
norma, contudo, pressuposta, uma norma hipotética fundamental, pensamento
este que acabou por prestar-se como fundamento para um Estado liberal e
burguês crescente à época da formulação de sua teoria, bem como sustentou
uma luta ferrenha de classes e a manutenção do poder pelos mesmos burgueses.
Isso porque, não se pensava no direito como algo modificador da realidade
social em que era positivado, mas sim num direito que, simplesmente, ficara
resumido à obediência de uma norma fundamental, não se aduzindo no que se
refere à justiça da norma jurídica naquele contexto, não se discutiu sobre a
validade social da regra jurídica pura, de tal sorte que essa teoria pura acabou
sendo utilizada como escudo de muitos Estados autoritários.
O pensamento de Hans Kelsen reduziu o direito a uma simples norma
legal, posta, tida como válida e insuscetível de questionamento na medida em que
15
obedecia aos primados de uma norma pressuposta, esquecendo-se dos
problemas e anseios sociais e da verdadeira função do direito, a de ser uma arma
na obtenção e alcance da justiça social.
É provável que a intenção de Hans Kelsen não teria sido distorcer o Direito
a esse ponto de servir como instrumento de dominação, contudo, a minimização
do direito e a limitação de sua esfera de atuação e desenvolvimento social, tal
como fora apresentada, acarretou em sérios danos à própria humanidade, como a
força do nazismo, que mais tarde acabou chocando-se com o próprio autor da
teoria.
Esse panorama é bem traçado por Luis Roberto Barroso que salienta em
seu texto:
“O fetiche da lei e o legalismo acrítico, subprodutos do Positivismo Jurídico, serviram de disfarce para autoritarismos de matizes variados. A idéia de que o debate acerca da justiça se encerrava quando da positivação da norma tinha um caráter legitimador da ordem estabelecida. Qualquer ordem....Esses movimentos políticos e militares (Fascismo, na Itália e Nazismo, na Alemanha) ascenderam ao poder dentro do quadro da legalidade vigente e promoveram a barbárie em nome da lei.16”
Atualmente, e com grande mérito, a doutrina jus-filosófica, vem
trabalhando, através da produção científica, na formulação de uma nova teoria do
direito, que alguns denominam de pós-positivismo, que funda seus alicerces em
uma hermenêutica constitucional, num constitucionalismo voltado às
necessidades da coletividade, à preservação e obtenção da dignidade da pessoa
humana, da justiça social, e não mero procedimentalismo ou obediência 16 Op. cit., p. 43.
16
incondicional à norma, ainda que inconstitucional, injusta e desprovida de
legitimidade que, de fato, se pretende vislumbrar em nosso futuro próximo.
Cabe a nós enxergarmos e exercermos esse inquestionável papel do
direito, o papel de instrumento apto à modificar a realidade social, buscando a
consagração de um Estado Democrático, Republicano, calcado nas diretrizes da
nossa Constituição Federal, da igualdade jurídica e material, da dignidade da
pessoa humana, da erradicação da pobreza, tudo em busca de uma justiça social
e distributiva.
Para incutirmos esses nobres ideais na sociedade se faz pertinente uma
modificação da ideologia e da consciência social, iniciando-se, nos bancos da
academia, pelos estudantes da ciência do direito, de maneira a afastar falsos
dogmas que impregnam o estudo e o ensino da ciência jurídica, muitos deles,
decorrentes da teoria retro exposta, diagnósticos que nos traz enormes prejuízos,
posto que influenciaram, consideravelmente o ensino do Direito, que, via de regra,
vem sendo estruturado, preponderante e preocupantemente, em textos
positivados, códigos, sem nenhuma reflexão aguçada das condições sociais que
circundam aquela norma.
Nas linhas que seguem buscaremos apresentar a influência deixada pela
obra de Hans Kelsen nas lições do Direito, assim como algumas possibilidades de
modificação desse duro retrato dos cursos de ensino jurídico em todo território
nacional, mas, principalmente, restará clara a necessidade de repensarmos certas
verdades dogmáticas que se arrastam na ciência jurídica.
17
A NECESSIDADE DE MODIFICAÇÃO DO ENFOQUE NO ENSINO
JURÍDICO
É inarredável que a Teoria Pura do Direito formulada por Hans Kelsen,
bem como o seu conseqüente, o frio positivismo jurídico_ amor à letra da lei_,
ocasionaram em grande influência dos juristas por todo mundo, não sendo
diferente no território brasileiro, onde sua doutrina também fora bastante
difundida, assim como acarretou em importantes reflexos no ensino da ciência
jurídica, que passa a ser ministrada, exageradamente, com vistas aos textos
positivados.
Cediço, outrossim, que restou identificada a crise do positivismo jurídico e
da teoria pura kelseniana, utilizada como método de manutenção do poder, ainda
que autoritário e absolutista, o que, de forma ou de outra, deixou arestas na
sociedade e, por conseguinte, no lecionar da ciência jurídica.
Denota-se que os estudos dos textos codificados, através de docentes que
sofreram forte influência da teoria pura kelseniana, com a dogmática jurídica
voltada às normas postas, exclusivamente, sem margem de dúvida, acaba por
limitar o âmbito de reflexão dos discentes.
Tal comportamento, em regra, faz com que o aluno ocupe a posição de
mero expectador, ouvinte dos ensinamentos transmitidos, sistemática e
18
automotizadamente pelo professor, sem desenvolvimento de um senso racional
crítico, no que concerne à norma jurídica e à própria realidade social em que
aquela norma deverá ser aplicada.
Antonio Carlos de Oliveira, em O ensino jurídico e a responsabilidade
social do profissional do direito, ao versar sobre a matéria usa a expressão
menciona que o professor não pode assumir a posição de “um mero exibidor de
uma cultura jurídica de fachada, monologando em sala de aula, diante de
estudantes ouvintes apáticos...”.17
É sabido, ademais, que tal condição não se trata de mera dificuldade
didática enfrentada pelos docentes nos dias presentes, decorrentes de uma sala
com grande contingente de alunos, portadores da mais variadas características e
dificuldades - algumas, inclusive, que deveriam ter sido sanadas no decorrer do
ensino médio -, que confere uma presente, mas dificultosa, heterogeneidade
discente, mas também, como herança de uma pureza do direito que jamais
existiu.
Em pensamento par ao que aqui se apresenta é de importância
destacarmos trecho da obra anteriormente citada da lavra de Agostinho Ramalho
Marques Neto:
“... o aluno encontra imensas dificuldades para uma participação ativa no seu próprio processo de formação, conformando-se, o mais das vezes, como assimilar conhecimentos freqüentemente divorciados da realidade social, sem sobre eles formular quaisquer indagações críticas, o que leva, na vida profissional, a
17 P. 320.
19
assumir uma postura dogmática, ajudando, consciente ou inconscientemente, a manter o status quo implantado pelas classes dominantes.......a formação predominante do bacharel em Direito tem sido tradicionalmente marcada, de um lado, por uma improfícua erudição livresca... e, do outro, por um conservadorismo que faz do jurista um indivíduo mais preocupado com a exegese de textos legais, cujos fundamentos geralmente nem sequer se indaga, do que com a possibilidade de transformar o Direito num propulsor de um desenvolvimento social integral.”18
Não sobra margem alguma para não vislumbramos que o ensino da ciência
jurídica necessita de extrema e urgente reformulação, rompendo-se com o
dogmatismo tradicional, que, infelizmente, já deixou suas marcas em considerável
número de profissionais do direito, apegados com imenso afeto, somente, ao
texto da lei, como percebemos no exercício diário dessa nobre e socialmente
indispensável profissão.
É bem verdade que aqueles que já se encontram “contaminados” por esse
pensar falso da teoria do direito dificilmente se renderão a novos argumentos, tais
como os expostos nesse trabalho monográfico, sobremaneira ante aos longos
anos de “cegueira jurídica”, contudo, não podemos admitir que outras gerações
de operadores e cientistas do direito sejam maculados com esses mesmos
dogmas, necessitamos romper com o mesmo, cujo qual, somente tem se
prestado “em nome de uma suposta segurança que é muito mais das elites
detentoras do poder, do que da sociedade como um todo”19, o que é
evidentemente temerário.
18 P. 210-213.19 Idem, p. 215.
20
De maneira que, também, não destoa do pensamento exposto a lição de
Antonio Carlos de Oliveira merece ser destacada:
“...quando se busca formar pessoas para a lida forense, o objetivo não é somente dotá-las de uma bagagem de conhecimentos especializados, com instrumental para um bom desempenho nos misteres a que se dedicarem. É preciso que se forme nessas pessoas a consciência da sua relevante missão de cidadão aliada ao seu importante destino como fator de influência no meio social, no cumprimento dos seus deveres profissionais, atuando com probidade e responsabilidade, servindo de exemplo como paradigmas éticos, operosos e eficientes.”20
É pertinente saber que cabe aos docentes da ciência jurídica libertarem o
Direito das raízes do ilegítimo dogmatismo de Kelsen, trazendo-o ao contexto da
sociedade, da qual é responsável pela regulação, como disciplina que constrói
sua evolução analisando criticamente seu próprio objeto, com vistas à obtenção
de uma sociedade mais justa e igualitária, eis a proposta a ser levada ao
conhecimento dos discentes dos cursos de direito.
Rompendo a visão de pureza do Direito no ensino jurídico Jünger
Habermas lembra:
“Considerar a ordem política de uma sociedade econômica como constituição da cultura jurídica é e permanece sendo o núcleo tanto teórico quanto prático de um projeto da modernidade....Em torno daqueles conceitos (direito formal, procedimental, positivado) cristaliza-se assim uma outra compreensão de fundo daquilo que toma parte no processo de realização do Estado democrático de direito como projeto histórico _ sobre-tudo o projeto dos especialistas em direito.”21
20 Op. cit., p. 319.21 O filósofo como verdadeiro professor de direito, p. 179.
21
Essa visão de utilização do direito na formação de um Estado Democrático
e a função dos professores desses cursos nesse mister é descrita por Antonio
Carlos de Oliveira:
“O professor de Direito tem de estar comprometido com objetivos condizentes com um ensino jurídico engajado na construção de uma sociedade melhor e mais justa, a fim de conscientizar o futuro bacharel do seu compromisso para com a sociedadeÉ preciso evitar o que vem acontecendo evitar o que vem acontecendo há tempos: os estudantes de Direito saem das Faculdades para sofrerem o impacto de descobrirem o descompasso entre a formação recebida nas salas de aula e o universo dos conflitos sociais...”22
Neste diapasão, percebido que se faz indispensável um repensar do
ensino da ciência jurídica, afastando-se os dogmas do positivismo jurídico e da
teoria pura do direito, trazendo os discentes do Direito à realidade social em que
convivem, visando a transformação dessa mesma esfera, para torná-la mais justa,
igualitária.
A reformulação do ensino jurídico, em especial, nos cursos de
bacharelado, deve fundamentar-se na formação de um alunado portador de
raciocínio crítico, lógico, com autonomia intelectual e embasamento teórico-
prático que possibilite ao mesmo, sabendo o conteúdo da norma jurídica,
vislumbrar o melhor modo de fazê-la aplicar ao caso concreto, com vistas a uma
interpretação que consagre a justiça social e os preceitos-nortes estabelecidos
pela nossa Constituição de Outubro, a qual, conclama no sentido de formação da
sociedade justa. Assim, tem-se um pensamento jurídico com mote de superação
de obstáculos sociais.
22 Op. cit., p. 320
22
Passa-se, ainda, a outros critérios não tão vinculados às teorias acima
criticadas nesse estudo, porém possam reflexos de suas influências, que
merecem ser desfeitos, como por exemplo, através do incentivo ao aluno-
pesquisador, participante, modificação didática e incentivo à carreira do
magistério na ciência jurídica, o que nem sempre se percebe.
É de se destacar que, no Brasil, a falta de visão da ciência jurídica como
instrumento hábil de modificação da sociedade, decorrente dos fatores supra
expostos, acrescido a outras considerações de ordem prática, tal como, a
necessidade da revisão da grade curricular, professores que vêem o magistério
como segunda profissão e o crescimento incontido das faculdades que oferecem
o curso de direito, nem sempre com a qualidade e visão necessárias, fez-se
perder no tempo a nobreza e o prestígio social dos cursos jurídicos, tal como
poderia ser presenciado em meados do século passado, o que deve ser
modificado pelo repensar do ensino do Direito, que deverá ser crítico, racional,
ligado à pesquisa e à instrumentalidade da ciência na realização da justiça social.
As palavras podem parecer contundentes, entretanto, são reais, passado o
tempo e Indispensável é que nos conscientizemos e tomemos a decência de
assumirmos o papel que a sociedade espera de nossa classe, não mais nos
escusarmos nas dificuldades diárias, muito menos esmorecermos diante das
abusividades governamentais e distorções sociais que presenciamos. É preciso
batalharmos para a modificação ideológica dos cientistas e operadores do Direito,
de modo a enaltecermos uma hermenêutica, elaboração e aplicação das normas
jurídicas com vistas aos princípios constitucionais, consagrando aqueles
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fundamentos e objetivos verdadeiros de nosso Estado Democrático
Constitucional. Isso somente será possível, contudo, a começar pela modificação
de nós mesmos, que devemos tomar o leme da sociedade e direcionarmo-la a um
porto seguro e, principalmente, justo.
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