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Como se escreve a histria?"
Nelson Schapochnik
"Um homem se prope tarefa de esboar o mundo. Aolongo dos anos
povoa um espao com imagens deprovncias, de reinos, de montanhas, de
baas, de naves, deilhas, de peixes, de habitaes, de instrumentos de
astros,de cavalos e de pessoas. Pouco antes de morrer, descobreque
esse paciente labirinto de linhas traa a imagem deseu rosto."
Jorge Lus Borges, Eplogo.
Reunidos em torno do Instituto Histrico, os homens de
letraspassaram a imprimir um ritmo de trabalho intenso visando
satisfazer asprioridades estabelecidaas pelo estatuto: a coleta e
organizao das fontesdocumentais e o incentivo aos estudos de
natureza histrica nas insti-tuies educacionais.
No entanto, o exame da RIHGB deixa entrever que essas
preo-cupaes iniciais passaram a ser sobrepujadas pela publicao de
trabalhosinditos sobre a histria, geografia e etnologia que
corresponderam definio e tematizao dos problemas que doravante
norteariam a pro-duo dos homens de letras. Desta maneira, comea-se
a conformar umaperspectiva histrica que 'girava em torno de dois
fatos fatais (o des-cobrimento e a independncia), da tentativa de
contribuir para a definiodo territrio nacional atravs das pesquisas
dobre os limites e ocupaodo pas e, finalmente, dos estudos sobre os
diversos grupos indgenas.1
Conforme praxe da instituio, cabia ao Secretrio do
InstitutoHistrico a exposio do relatrio dos trabalhos empreendidos
pelosscios naquele ano. Alm de mencionar os programas discutidos,
as obrase correspondncias recebidas, as menes e. prmios
distribudos, Janurioda Cunha Barbosa reiterava o papel da instituio
na construo de
* Este artigo uma adaptao de um dos captulos da dissertao de
mestrado Letrasde fundao: Varnhagen e Alencar projetos de narrativa
instituinte, na rea deHistria Social da FFLCH-USP, orientado pelo
Prof. Dr. Nicolau Sevcenko eapresentada em novembro de 1992.**
UNESP Franca.1 Cf. POPPINO, R.E. "A Century of the Revista do
Instituto Histrico eGeogrfico Brasileiro", in The Hispanic American
Historical Review v.33 n 2(1953), pp. 303-323.
j Rev. Brs, de Hist. j S. Paulo [v. 13, n 25/261 pp. 67-80 |
set. 92/ago. 93 ]
67
-
instrumentos positivos (colees, arquivos e cdices), que
viabilizassemo projeto mais amplo de fundao de uma histria
nacional. O tom eufmoem relao aos resultados mais imediatos do
trabalho de levantami-niodocumental e sistematizao das fontes era
no entanto arrefecido pi-l.iconstatao de que, embora:
"Muitas pennas, alis illustres, tem escripto memoiias.annaes e
relatrios das cousas do Brasil... podemos d i / i - i .senhores,
que ainda nos falta uma histria bem organisada,que apresente ao
conhecimento dos nossos e dos estranhosum quadro fiel de pouco mais
de trs sculos, em que seveja a marcha dos nossos sucessos
relacionados entre sidesde a descoberta d'esta parte do novo
mundo".2
De qualquer maneira, seria importante lembrar que, mesmo
oshomens de letras ressentindo-se da carncia de um modelo orgnico
quefosse capaz de dar conta da "marcha dos nossos sucessos
relacionadosentre si", j se assinalava a presena de uma pluralidade
de formas queassumiria a escrita da histria. Sem nenhuma tradio
interna a que se f i l i a ie tampouco sem uma definio clara de um
padro explicativo que resultasse em uma "histria bem organizada",
os membros do Instituto Hisiorico experimentaram modalidades
distintas de interveno sob a forma derelatrios, anais e
memrias.
A nfase na necessidade de uma abordagem histrica
totalizantc,capaz de fornecer uma coerncia para a "histria
nacional", tambm seconstituiu na tnica do artigo de um dos
colaboradores do perodoMinerva Brasiliense. Ainda que os relatos
episdicos pudessem fornecerinformaes especficas e circunscritas a
um determinado tempo e espao,eles no asseguravam a produo de um
sentido para a histria, pois nocontavam com "a fora de um lao
moral, o nexo da nacionalidade".Diante deste quadro, conclua o
autor:
"Uma histria geral e completa do Brasil resta a compor, cse at
aqui nem nos era permitido a esperana de que tocedo fosse
satisfeito este desideratum, hoje assim noacontece, depois da
fundao do Intitulo Histrico, cujasimportantssimas pesquisas no
nosso passado deixamesperar que esta ilustre corporao se d tarefa
de
2 BARBOSA, J. C. "Relatrio dos trabalhos do Instituto durante o
quarto anosocial", in R1HGB. t. IV (1842), p. 5.
68
escrever a histria nacional, resultado final, para que
devemconvergir todos os seus trabalhos".3
Convm notar que a referncia ao Instituto Histrico como o"locus"
privilegiado para a fundao de saberes sobre o Brasil no
parecefortuita. Ao reordenar o passado em funo do presente, o
debate sobrea histria do Brasil nascia com um imperativo poltico: a
construo deuma "memria nacional". Todavia, um problema persistia:
como se deveriaescrever a "histria geral e completa do Brasil"?
Mesclando a compilao de textos impressos e de manuscritos
sinferncias arriscadas, o gnero "sinopse histrica" passa a ser
con-siderado uma alternativa momentnea para a ausncia de trabahos
maisslidos. Assim se expressava Jos da Cunha Matos, autor das
pocasbrasileiras ou Sumrio dos acontecimentos mais notveis do
Imprio doBrasil (1839):
"No Brasil existem impressos alguns escriptos de
homenslaboriosos que nos apresentam a marcha sucessora da
civi-lizao da Terra de Santa Cruz; eu tenho-me aproveitado dofruto
dos trabalhos destes dignos vares, e por isso desejoajuntar em um s
quadro, posto que imperfeito, aquilo queeles nos oferecem em
diversas obras cuja aquisio emcertos casos impossvel, e em todos
mui dispendiosa".4
Expresso mais acabada da tentativa de reverter aquele quadro
dedisperso documental e de oferecer aos leitores um panorama da
"marchada civilizao", as "sinopses histricas" procuravam registrar,
na conti-guidade temporal, a sucesso dos eventos como um processo
finito ecompreensvel. A adoo desta forma de relato parecia
satisfazer umadupla expectativa: por um lado, ela forjava uma ideia
de processo histricolinear atravs da demarcao de motivos iniciais e
conclusivos e, por outrolado, ela se oferecia como um relato dos
fatos que aconteceram em mo-mentos pontuais, sem qualquer interveno
do locutor. Sendo assim, asinopse histrica pode ser vista como a
forma pura daquele tipo deenunciao lingustica denominado por Emile
Benveniste de "histoire",que se caracterizaria pela anulao do
narrador, dando a impresso dosacontecimentos falarem por si
prprios.5
3 T. "Obras de Histria e Geografia", in Minerva brasiliense v. l
n 2 (1843), p.53.4 MATTOS, R. J. C. "pocas Brasileiras ou Simrio
dos acontecimentos maisnotveis do Imprio do Brasil", in RIHGB n"
302 (1974), pp. 218-351.6 BENVENISTE, E. "As relaes de tempo no
verbo francs", in Problemas delingustica geral. S. Paulo, Nacional,
1976, pp. 260-276.
69
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Publicado em 1843, o Compndio da Histria do Brasil, de JosIgncio
de Abreu e Lima tambm fruto desta experimentao inicial queprocurava
aliar o limitado equipamento erudito ao projeto de fundao deuma
histria nacional. Em linhas gerais, esta obra no difere da
primeira:trata-se de uma compilao ordenada cronologicamente. Sua
pecularidaderesidia na introduo de cortes ou periodizaes, pois
"...tudo quantoexistia escrito acerca do Brasil era sem mtodo nem
plano algum histrico.Era um monto de fatos atirados ao acaso, sem
discriminao de pocasnem de perodos".^ Apesar de no explicitada, o
tipo de explicao for-necida pelas "sinopses" repousava numa lgica
em que de o antes expli-caria o depois. O arranjo dos "dados"
considerados nicos, no compa-rveis ou at mesmo pouco homogneos
entre si numa srie cronolgicafechada, passaria a conformar sua
estratgia explicativa.
O autor do Compndio tambm compartilha a noo de que aescrita da
histria requeria a anulao do narrador de maneira a dar a ilusodos
fatos falaram por si mesmos. Para ser fiel verdadeira imagem
dopassado, ele preconizava um "estylo" ambguo que:
"...no um defeito, como se poderia suppr, mas topouco filha da
arte; pois que, como j disse muito poucoh da prpria redaco;
extractando ou copiando, conserveimuito de propsito o estylo dos
auctores, de que me servi,alterando poucas vezes uma ou outra
palavra, uma ou outraphrase".7
A periodizao empregada por Abreu e Lima, fortemente determi-nada
por eventos poltico-administrativos, desdobrava-se em oito
"po-cas", que cobririam o perodo de 1500 a 1842, a saber: "1)
Descobrimento(as primeiras exploraes, estado fsico do pas); 2)
Colonizao; 3)Transio para o domnio estrangeiro; 4) Volta ao domnio
ptrio. Guerrados holandeses; 5) Estado da colnia, melhoramentos,
administraointerna; 6) Estabelecimento da Corte no Brasil,
administrao de el-rei; 7)Independncia, administrao do Primeiro
Imprio; 8) Menoridade.Administrao da Regncia, a Maioridade". O
estabelecimento dessas"pocas" se tornava possvel atravs da seleo e
hierarquizao dealguns fatos, que seriam convertidos em centros
explicadores de uma sub-srie em torno da qual todo um conjunto de
acontecimentos passa a serreferido. Fixando as recordaes atravs da
delimitao de uma origem e
6 LIMA, J. I. A. "Carta do Sr. Jos Igncio de Abreu e Lima a
Janurio da CunhaBarbosa lida na sesso de 14.09.1843", in R1HGB t. V
(1843), p. 370.7 Idem. Compndio da historia do Brasil, 2 vols. R.
Janeiro, Eduardo e HenriqueLaemmert , 1843, s/p.
70
de um fim, o gnero "sinopse histrica" se afastava das "crnicas"
namedida em que os acontecimentos passariam a funcionar como
elementosde um enredo. Integrados numa trama, os acontecimentos at
entoprivados de sentido adquiriam significao pela sua posio na
narrativa.8
Incumbido pelo Instituto Histrico de elaborar um juzo sobre
oCompndio, Varnhagen aponta para uma srie de imprecises, que voda
incorreo gramatical ao no-estabelecimento preciso de datas,
deacusao de plagirio de Beauchamp e Southey falta de um trabalho
deinvestigao e crtica das fontes. Para Varnhagen, o "gnero"
sinopsehistrica no era compatvel com o estado da pesquisa histrica
no Brasilnem era a forma apropriada para o projeto de uma histria
nacional etampouco estava altura de Abreu e Lima, pois "...um
compndio , emqualquer sciencia ou arte, o livro mais difcil de
escrever, e que maispertence aos abalisados grandes mestres."9
Descartada a obra enquantomodelo e desqualificado o autor,
Varnhagen depositava suas esperanasno futuro:
"Mas no nos illudamos... muito documento, muitapreciosidade de
alto quilate para a histria do Brasil hamanuscripta, que ns
conhecemos, que possumos e de quecontinuamos a fazer colleco, para,
se Deus nos ajudar comvida, e nos der meio intellectuaes,
emprehender-mos para onosso pais o melhor servio, que hoje
imaginamos possvelde lhe fazer - o substituir-lhe na literatura, e
portanto nasprprias ideas, um passado assente e seguro de
recordaessolidas..."10
A argumentao de Varnhagem sinaliza uma dupla carncia:
aprecariedade do trabalho de coleta e armazenamento das fontes, por
umlado, e a necessidade da definio de um padro de escrita da
histriaque a afastasse do campo das belas-letras atravs da utilizao
de umaparato crtico capaz de reconstruir o passado com base em
"recordaesslidas".
De acordo com os preceitos expostos por J.M. Pereira da Silva
naspginas de Nitheroy, os homens de letras deveriam renunciar a
uma
8 Cf. WHITE, H. "A potica da histria", in Metahistria. A
imaginao histricas sculo XIX. S. Paulo, EDUSP, 1992, pp. 21-23;
sobre a distino entre"crnica" e "narrativa", veja do mesmo autor:
"The historical text as literaryartifact", in Tropics of
discoursg.. Baltimore, The Johns Hopkins University Press,1978, pp.
81-100 (esp. pp. 91-93)9 VARNHAGEN, F. A. "Primeiro juzo", in RIGHB
t. VI (1844). p. 66.10 Idem, ibidem, p. 75.
71
-
compreenso da histria enquanto "uma simples exposio de factos
semcritrio". Embora ainda considerasse a histria um gnero
literrio,compartilhado pela filosofia, eloquncia e poesia, o autor
vislumbrava duasalternativas que poderiam ser utilizadas na escrita
da histria:
"O nosso sculo considera a histria de duas maneiras,
ouparticular ou universal. A primeira consiste em escrever,segundo
os grandes modelos, os acontecimentos, com todaa verdade, e crtica,
em marcar cada povo seu typnpeculiar, a marcha da civilizao, o
estado da indstria, c- oavanamento e progresso das naoens. A esta
escolapertencem Thierry, Lingard, Sismondi e Muller,
historiadoresmodernos. A segunda maneira de considerar a historia,
philosphica e ideal. Giambatista Vio no sculo passadoestabelece
leis universais da humanidade, eleva-se darepresentao ideia, dos
phenomenos essncia,attendendo ao principio da natureza idntica em
todas asnaoens, forma uma historia abstraia, no pertencendo
anenhuma; Herder e Hegel continuam no nosso sculo estatarefa, e
consideram a humanidade, como sendo o que podiaser, e nada seno o
que ela podia ser."1
A distino, apontada por Pereira da Silva, entre a
"histriaparticular" e a "histria universal" punha em cena o debate
travado entredois padres historiogrficos, respectivamente a histria
narrativa c ahistria-filosfica.
No seu contexto iluminista de origem, a histria que se
auto-denominava "filosfica" representava uma tentativa de fundar um
discursosobre a histria com base em um raciocnio apriorstico
fornecido pelaRazo. A histria-filosfica "...no era composta pelo
acmulo de fatos,nem dependia apenas de um tipo de ordenao, nem
dizia respeito a umamaior ou menor amplitude na abordagem de
diferentes povos ccivilizaes, no consistia na comparao dos costumes
dos povos, nobuscava apenas as causas das instituies que existiram;
a filosofia dahistria buscava e afirmava um sentido para o
devir".12
11 SILVA, J. M. P. "Estudos sobre a litteratura", in Nitheroy t.
I (1836), pp241-242.12 TERRA, R.R. "Algumas questes sobre a
filosofia da histria em Kant", in I.Kant, Ideia de uma histria
universal de um ponto de vista cosmopolita. S. Paulo,Brasiliense,
1986, p. 58. Ainda sobre a "weltgeschichte", veja ARANTES, P.
E"Nota sobre a crtica da filosofia da histria", in Almanaque n" 3
(1977), pp.53-62; RAGIONIERI, E. La polemica su Ia weltgeschichte.
Roma, Edizioni diStoria e Letteratura, 1951.
72
Por sua vez, a histria-narrativa se constitua em uma
poderosarstialgia mimtica capaz de ressucitar a realidade do
passado, de faz-lo.u essvel atravs da percepo direta das fontes.
Seu "mtodo histrico"i onsistia numa disposio de ir aos arquivos e
bibliotecas, despojado dequalquer preconceito, ler os documentos,
selecion-los atravs da crticain te rna e externa e, em seguida,
compor um relato sobre os acontecimentosatestados pelos documentos
de modo a fazer da prpria narrativa a expli- aco "do que tinha
acontecido" no passado. 13
Aparentemente incompatveis entre si em virtude dos problemas
de< > i < lem epistemolgica, estas duas modalidades de
escrita da histria sea j u s t a v a m perfeitamente aos propsitos
do Instituto Histrico de traar al i tograf ia da Nao. No entanto,
conforme exps Manoel L. Salgado Guima-riles, "...como conciliar o
ideal iluminista supranacional da repblica daslei i as com a
necessidade de fundamentar historicamente um projeto nacio-n a l ,
construindo seus mitos e representaes, porm dando-lhes um esta-t u
i o de objetividade e evidncia fundados na prpria histria?".14 A
escritad.i h i s t r i a era naquele momento indissocivel da ao
poltica, suafuncionalidade era concebida como propedutica ao poder
em vias deilelmio. A histria no era apenas o registro fiel do
passado, ela eraj i a i t e da construo do futuro. Portanto, o
historiador, longe de ser umi i i t - i o erudito, era, na notvel
definio de Friedrich Schlegel, "um profetavol tado para o
passado".15
O ritmo vagaroso das comisses encarregadas do levantamentodm
umcn ta l , a precariedade do estado de conservao das fontes e
odesaparecimento de muitos originais pareciam refrear a efetivao
dojno je io de se escrever a "histria ptria". Diante de tal quadro,
afirmavaum scio do Intitulo Histrico, "...por ora no convm, nem
possvelescrever de um s jacto a histria geral do imprio do Brasil,
que seja( h ) ' i i a d 'elle e faa honra aos membros d'este
Instilulo, que de lal larefaIni i iverem de ser encarregados".16
Esles obstculos momentaneamenteiiiijiossveis de ser resolvidos,
impunham um redimensionamento da tarefaa inh i i da aos homens de
letras. O risco de insistirem nesta perspectivapoderia conduzi-los
aos mesmos equvocos comelidos pela "especulao
5 Cf. WHITE, H. "Michelet: o realismo histrico como estria
romanesca", inMi-iiihistria. pp. 147-173; veja tambm FURET, F. "Da
histria-narrativa In .loiia-problemas", in A oficina da histria.
Lisboa, Gradiva, 1985, pp.81-98.1 ( iUlMARES, M. L. S. "Nao e
civilizao nos trpicos", in Estudos
lintuiii-iis n l (1988), pp. 7-8.Apud, LOBO, Luza. Terorias
poticas do Romantismo. P. Alegre, Mercado
A l . n i o , 1987, p. 54."' MATTOS, R. J. C. "Dissertao a cerca
do systema de escrever a historia antiga
-
estrangeira", portadora de "invectivas, insultos, calumnias,
improprios,e de falsidades em desabono do povo do Brasil".
Limitado pelas cirscustncias j referidas, o projeto de se
escrever"uma histria philosophica do povo do Brasil" deveria dar
lugar a umaalternativa mais plausvel. A dissertao de Raimundo Jos
da CunhaMattos prescrevia a indagao: "... em primeiro lugar (d)a
histria parti-cular ou das provncias, para com bons materiaes
escrevermos a historiageral do imprio brasileiro".17 A soluo
apontada pelo scio do InstitutoHistrico recorria a um procedimento
integrativo onde as histriasparticulares eram concebidas como peas
de um edifcio em construo.A perspectiva unitria da "histria geral"
seria discernvel atravs da tota-lizao indutiva.
Sob o mesmo espao textual, figuram ecos de uma concepo"antiga"da
histria ("historia magistra vitae") "o fim principal dahistria
poltica e civil, encaminhar os homens prtica das virtudes eao
aborrecimento dos vcios para que d'ahi resulte o bem estar
dassociedades" , capaz de fornecer uma coleo de exemplos de
condutatica, moral e poltica, que poderiam ser empregados
instrutivamenteenquanto pedagogia do cidado, juntamente a uma
definio "moderna",que procurava expurgar toda insinuao fictcia de
seu discurso como ooposto da verdade e, portanto, como um
impedimento compreenso darealidade "a historia a sciencia de narrar
ou descrever osacontecimentos presentes e os passados". Ainda sobre
este ltimoaspecto, lembra o autor a importncia do aparato crtico
que "... deve(ria)presidir ao exame d'estes monumentos; observar o
talho da letra, a cor eo estado das tintas, confrontar as eras ou
as cousas com pessoas, enfimdesempenhar os deveres de um bom
palegrapho e bom chronologo."1
O autor da Dissertao tambm faz uma proposta de periodizaodas
"trs pocas da nossa histria", a saber:
"... na primeira trata-se dos aborgenes ou autctones; em
asegunda compreendam-se as eras do descobrimento pelosportugueses,
e da administrao colonial; e a terceiraabrajam-se todos os
acontecimentos nacionais desde o diaem que o povo brasileiro se
constituiu soberano e in-dependente, e abraou um sistema de governo
imperial,hereditrio constitucional e representativo"19.
17 Idem, ibidem, p. 135.18 Idem, ibidem, pp. 137-138.19 Idem,
ibidem, p. 129.
74
O autor associa a primeira poca s "tradies hericas" dosindgenas,
a segunda poca ou "antiga" administrao colonial, e aterceira poca
ou "moderna" ao perodo "em que o povo brasileiro seconstituiu
soberano e independente". Este recurso a expresso danecessidade de
romper com os vnculos do passado, indicando o inimigovencido, e, ao
mesmo tempo, afirmao de um novo tempo que comea eque ser definido
por aquilo que superou. Atravs do emprego da narra-tiva, o conjunto
das trs pocas formava uma articulao coerente, apon-tando para uma
"inteno transformadora vitoriosa"20: a legitimao do"sistema
imperial, hereeditrio, constitucional e representativo"(sic).
No intuito de concretizar a crescente expectativa por um
modelopara a abordagem da "histria ptria", o Instituto Histrico
estabeleceuum prmio de 100.000 ris para o trabalho que oferecesse
um "plano parase escrever a histria 'antiga' e 'moderna' do Brasil,
organizada de talmodo que nele se compreendessem as partes poltica,
civil, eclesitica elucraria". Dois trabalhos foram apresentados
comisso de julgamentoda associao, o de J. Wallestein, intitulado
Memria sobre o plano dese escrever a histria antiga e moderna do
Brasil, e o de C. F. P. VonMartius, intitulado Como se escreve a
histria do Brasil.
O ensaio de Wallestein propunha um modelo de escrever a
histriasemelhante ao empregado por Tito Lvio, isto , "pelo sistema
de dcadas,narrando-se os factos acontecidos dentro de perodos
certos". O autorrecomendava uma parte introdutria ao plano, onde
deveria constar umadescrio das naes indgenas que habitavam o Brasil
na ocasio dodescobrimento. Uma vez concluda esta introduo:
"... principia a historia com o descobrimento do Brazil em1500
por Pedro Alvares Cabral at 1510, poca do naufrgiode Diogo Alvares
Corra, o Caramur ... Assim por diantepode a historia do Brazil,
chegar at independncia ecoroao do Sr. D. Pedro Primeiro".21
Operando a partir de dois plos "temas fulcrais"22
o"descobrimento" e a "independncia" , temos um duplo movimento
de
10 A expresso (que aparece) de BRESCIANI, M. S. M. "As voltas de
umparafuso", in Cincia e Cultura 30 (8) : 914.
1 WALLESTEIN, J. "Memria sobre o melhor plano de se escrever a
historiaantiga e moderna do Brazil (datada 30.09.1843)", in RIHGB
t. XLV (1882), pp.159-160.f2 A expresso de VIZENTINI, C. A. "Escola
e livro didtico de histria", inMarcos A. Silva (org.) Repensando a
histria. R. Janeiro, Marco Zero, 1984, p.77. Ainda sobre as injunes
entre fato histrico e temporalidades, veja tambm domesmo autor "A
instaurao da temporalidade e a (re)fundao na histria: 1930r 1937",
in Tempo Brasileiro n 87 (1986), pp. 104-121.
75
-
insero do Brasil no curso da histria universal: como parte e
comoreiterao desta mesma histria. O procedimento adotado era
definidocomo a ordenao dos "fatos histricos" numa sucesso temporal
quedesenvolveria a totalidade do perodo. Neste caso, o
"descobrimento"marcaria o incio da nossa histria, o que pressupunha
a existncia doobjeto Brasil antes mesmo do processo de conquista e
colonizao doterritrio pelos europeus.23 A "independncia", por sua
vez, constitua-se em um outro plo ordenador, frente ao qual o
princpio de seleo eexplicao dos acontecimentos ganha plena
significao. O que o autordeixa entrever atravs da delimitao de uma
"origem" (a descoberta) ede um "fim" (a independncia) a afirmao de
um sentido da histriaque revela o processo de florao gradativa do
"logos" nacional. Temosa uma abordagem onde o espao politicamente
demarcado no sculo XIX,como Estado independente tomado como um dado
que, projetado nopassado, torna-se o referencial para a prpria
pesquisa histrica.24
Em considerao aos preceitos da objetividade e da neutralidade,J.
Wallestein considerava temerria qualquer incurso na histria
maisrecente porque ela no estaria suficientemente distante para ser
avaliada- "archivem-se os documentos, e o tempo vir". O plano do
autor preco-
nizava uma histria fundamentalmente poltica, relegando "s partes
civil ,ecleziastica e literria ... no fim de cada dcada em artigo
separado, quesirva como de observaes ao texto".25
O parecer atribudo a este trabalho exprime um profundo
desen-canto com o modelo vislumbrado.
"... o autor d'esta memria no comprehendeu bem opensamento de
nosso programa, porquanto as vistas desteInstituto no se poderiam
contentar com a simples distri-buio das matrias, e isto por um
mthodo puramente fict-cio ou artificial que poder ser cmmodo para o
historiador,mas de modo algum apto a produzir uma historia no
gnerophilosophico, como se deve exigir actualmente."26
23 Cf. SANTOS, A. C. M. "Memria, histria, nao: propondo
questes", inTempo Brasileiro n 87 (1986), p. 9.24 Cf. HOBSBAWM, E.
J. "A nao como novidade: da revoluo ao liberalismo",in Naes e
nacionalismo R. Janeiro, Paz e Terra, 1990, pp. 27-61. Veja
tambmANDERSON, B. "Antigos imprios, novas naes", in Nao e
conscincianacional. S. Paulo, tica, 1989, pp. 57-76.25 WALLENSTEIN,
J. op. cit. p. 160.26 ALEMO, F. F. et alli. "Parecer da comisso
sobre o 'Plano de se escrevera histria do Brasil', lida na 168
sesso do Instituto Histrico aos 10.07.1847,in RIHGB t. IX (1847),
p. 279.
76
Ao contrrio da "memria" apresentada por J. Wallestein, a
disser-i.n, . iD de Von Martius no apelava para uma narrativa dos
acontecimentos,ii . io sugeria periodizao alguma e tampouco
reiterava a proposta de fazerum.i histria geral a partir das
histrias particulares. No concebendo ahis tr ia como uma galeria de
grandes personagens ou de exemplos dev i r t udes individuais, o
ensaio de Von Martius lanava bases para umainterpretao orgnica da
histria do Brasil vazada em uma perspectiva"fi losfica ou
pragmtica". Esta proposta sobre a forma de se escrever ahistria
parecia reverter as experimentaes iniciais dos scios do
InstitutoHistrico, pois:
"As obras at o presente publicadas sobre as provncias,em
separado, so de preo inestimvel. Elas abundam emfatos importantes,
esclarecem at com minuciosidade muitosacontecimentos; contudo, no
satisfazem ainda s exignciasda verdadeira historiografia, porque se
ressentem de mais decerto esprito de crnicas. Um grande nmero de
fatos ecircunstncias insignificantes, que com monotonia serepetem,
e a relao minuciosa at excesso de aconteci-mentos que desvaneceram
sem deixarem vestgios histricos,tudo isso, recebido em uma obra
histrica, h de prejudicaro interesse da narrao e confundir o juzo
claro do leitorsobre o essencial da relao. O que avultar repetir-se
o quecada provncia, ou relacionar fatos de nenhuma
importnciahistrica, que se referem administrao de cidades,
munic-pios ou bispados, etc; ou uma escrupulosa acumulao decitaes e
autos que nada provam, e cuja autenticidadehistrica por vezes
duvidosa?"27
O plano delineado por Von Martius se afastava da tentativa
decompor uma viso orgnica da histria do Brasil atravs da
justaposiodas histrias provinciais. Do seu ponto de vista, a
histria do Brasildeveria ser apreendida sob uma perspectiva capaz
de produzir umaidentidade que seria assegurada pelo exame do
"movimento histricocaracterstico e particular", donde confluiriam
as trs raas formadoras danacionalidade brasileira. Para ele, a
histria brasileira se desenvolvia"segundo uma lei particular das
foras diagonais", em que os portu-
" MARTIUS, C. F. P. von "Como se escreve a historia do Brasil",
in O estadotio direito entre os autctones do Brasil B. Horizonte/S.
Paulo, Itatiaia/EDUSP,1982, p. 104. (Originalmente publicado na
RIHGB t. VII, 1845, pp. 381-403).
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gueses se apresentaram "como o mais poderoso e essencial
motor"28 sobo qual interagiram indgenas e negros. Esta investigao
deveria seranimada por aquilo que o autor denominou de "filantropia
transcendente",expresso da inelutvel necessidade de superao de
qualquer preconcchofrente histria.
Na dissertao de Von Martius cada uma das trs raas consi-derada
de maneira particular, indicando-se os rumos da pesquisa no
senti-do de fixar sua participao no desenrolar da histria, enquanto
"desen-volvimento fsico, moral e civil da totalidade da populao".
Ao longo dotexto, Von Martius indicaria aspectos e procedimentos
que posteriormenteiro reverberar na produo de muitos scios do
Instituto Histrico.
Inicialmente, o autor sugeria uma investigao sobre a
"naturezaprimitiva" dos autctones para, em seguida, perscrutar
"qual a parte quetoca aos boais filhos da terra no desenvolvimento
das relaes sociaisdos portugueses emigrados."29 Elegendo como
documento mais signifi-cativo para o esclarecimento destas questes
o estudo das lnguas ind-genas, Von Martius recomendava ao Instituto
Histrico a elaborao dedicionrios e observaes gramaticais sobre
estas lnguas, com especialateno aos "... vocbulos que referem a
objetos naturais, determinaeslegais (de direito), ou vestgios de
relaes sociais".30
O papel preponderante atribudo ao elemento portugus reiterado,ao
longo do ensaio, em virtude de seu imperativo civili/acional. Neste
sen-tido, o autor sublinhava a organizao do sistema de milcias,
pois estas"...fortaleciam e conservavam o esprito de empresas
aventureiras, viagensde descobrimento, e extenso do domnio
portugus", bem como "...favo-reciam o desenvolvimento de instituies
municipais livres"31 e a atuaodas ordens religiosas, especialmente
pelo fato de que "...muitas vezes elaseram os nicos motores de
civilizao e instruo para um povo inquietoe turbulento. Outras vezes
ns vemos elas protegerem os oprimidos contraos mais fortes".32 Para
Von Martius, o historiador pragmtico no poderiase limitar elaborao
de uma crnica dos acontecimentos polticos, massobretudo "...deve
transportar-nos casa do colono e cidado brasileiro;ele deve
mostrar-nos como viviam nos diversos sculos, tanto nas cidadescomo
nos estabelecimentos rurais, como se formavam as relaes docidado
para com seus vizinhos, seus criados e escravos; e finalmentecom os
fregueses, nas transaes comercias. Ele deve juntar-nos o estadoda
igreja, escola, levar-nos para o campo, s fazendas, roas, plantaes
c
28 Idem , ibidem, p. 88.29 Idem, ibidem, p. 91.30 Idem, ibidem,
p. 92.31 Idem, ibidem, p. 95.32 Idem, ibidem, p. 98.
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engenhos. Aqui deve apresentar quais os meios, segundo que
sistema,com que conhecimentos manejavam a economia rstica, lavoura
e comrciocolonial".
O estudo do elemento negro deveria ser encaminhado em
duasdirees: por um lado, buscaria compreender "a condio dos
negrosimportados, seus costumes, suas opinies civis, seus
conhecimentosnaturais, preconceitos e supersties, os defeitos e
virtudes prprios sua raa em geral" e, por outro lado, as
consequncias da adoo dotrfico de escravos sobre o Brasil, Portugal
e a frica. A postura de VonMartius a cerca deste ltimo aspecto iria
repercutir no modelo de produoda histria nacional: "...no h dvida
que o Brasil teria tido um desen-volvimento muito diferente, sem a
introduo dos escravos negros. Separa melhor ou para pior, este
problema se resolver para o historiador,depois de ter tido ocasio
de ponderar todas as influncias, que tiveramos escravos africanos
no desenvolvimento civil, moral e poltico da pre-sente
populao".34
Com vistas a criar no leitor um interesse pela matria, Von
Martiusainda recomendava alguns preceitos estilsticos, a saber: a
descrio das"pinturas encantadoras da natureza", o uso de um "estilo
popular", aconciso da obra em "um s forte volume" e a refutao das
"citaesestreis". De acordo com o autor, a histria do Brasil, "como
qualquerhistria que esse nome merece", deveria ser escrita com base
no modelopico.
Contudo, no final da dissertao que o autor deixava evidente
asrelaes profundas entre o saber e o poder. O discurso histrico era
vistocomo o instrumento mais adequado para produzir a visibilidade
da Naoem construo, capaz de forjar deliberadamente uma unidade
interpretativado passado e de, simultaneamente, converter-se em um
discurso de coe-so e de legitimao. Da a recomendao:
"A Histria uma mestra, no somente do futuro, comotambm do
presente. Ela pode difundir entre os contem-porneos sentimentos e
pensamentos do mais nobre patrio-tismo. Uma obra histrica sobre o
Brasil deve, segundo aminha opinio, ter igualmente tendncia de
despertar e rea-nimar em seus leitores brasileiros o amor da ptria,
coragem,constncia, indstria, fidelidade, prudncia, em uma
palavra,todas as virtudes cvicas... Nunca esquea, pois, o
histo-riador do Brasil, que para prestar um verdadeiro servio
13 Idem, ibidem, p. 99.34 Idem, ibidem, p. 103.
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sua ptria dever escrever como autor Monrquico-Cons-titucional,
como unitrio no mais puro sentido da palavra".35
A obra de von Martius no s foi premiada mas acolhida comouma
empresa vivificadora para os membros do Instituto Histrico.
Oparecer da comisso encarregada de avaliar os trabalhos revelava,
comntida clareza, a satisfao frente ao modelo oferecido por Von
Martius. Ovalor das "consideraes filosficas" sobrepujava as
preocupaes paracom "a diviso das pocas ... o encadeamento dos
factos". E mais: "...sealguma cousa se podia dizer contra elle, que
uma histria escriptasegundo ah se prescreve talvez seja inexequvel
na actualidade, o quevem a dizer que elle bom demais... ah est o
modelo para quando acousa for realizvel".36
RESUMONo sculo XIX, a partir do
Instituto Histrico, letrados iniciaramcoleta e organizao das
fontes docu-mentais, que viabilizassem o projetomais amplo da
fundao de uma his-tria nacional. O artigo discute comoesses homens
de letras, alm do tra-balho documental, dedicaram-se produo
historiogrfica, ressentindo-se da ausncia de um padro expli-cativo,
mas apontando pluralidade deformas que assumiria a escrita
dahistria.
ABSTRACTThe article discusses how, in
the 19th century, brazilian's intelectuaisof Instituto Histrico
e GeogrficoBrasileiro, develloped the effort ofcollecting and
organizing histrica!sources and began the nationalhistoriography
that pointed at differentways of historical writing in Brazil.
35 Idem, ibidem, pp. 106-107.36 ALEMO, F. F. et alli. op. cit.,
p. 287.