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Resgate no Mar - VISIONVOX

Apr 29, 2023

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Khang Minh
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Resgate no mar

A VIAJANTE

PRÓLOGO

Quando eu era pequena nunca queria pisar em poças. Não porque temia molhar as meias oupisar nos vermes afogados; era, em general, uma criatura suja, com uma bem aventurada

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indiferença para qualquer tipo de limpeza.Era porque não acreditava que aquele espelho liso só era uma pequeno espaço de água sobre

a terra sólida. Estava persuadida de que era uma porta para algum espaço insondável. As vezes,ao ver as pequenas ondas provocadas por minha proximidade, pensava que a poça eraprofunda, um mar sem fundo no que se ocultavam a preguiçosa espiral do tentáculo e o brilhoda escama, com a ameaça de enormes corpos e dentes agudos à deriva, sem lentes, nas remotasprofundidades.

E então, baixando os olhos ao reflexo, via minha própria cara redonda e meu cabeloencaracolado numa extensão azul sem contornos, e pensava que a poça era a entrada a outrocéu. Se pisava cairia de imediato e seguiria caindo, mais e mais, no espaço azul. Só tinha ummomento em que ousava caminhar através de uma poça: era no anoitecer, quando assomavamas estrelas vespertinas. Se ao olhar na água eu ver ali um ponto luminoso, então podia pisarsem medo, pois se caía na poça e no espaço poderia me agarrar a essa estrela, ao passar, eestaria segura.

Ainda agora, quando vejo uma poça em meu caminho, minha mente se detém (ainda quemeus pés não o façam) e depois segue seu caminho, deixando atrás só o eco do pensamento: Ese esta vez eu cair?

A batalha e os amores dos homens

CAPÍTULO 1O banquete dos corvos

l6 de abril de 1746

Estava morto. No entanto o nariz lhe palpitava dolorosamente, coisa que lhe era estranha,dadas as circunstâncias. Ainda que depositava uma considerável confiança no entendimento e agraça de seu Criador,sentia culpa pelo que todos tememos a possibilidade do inferno. Aindaassim, pelo que tinha ouvido falar sobre o inferno, parecia-lhe improvável que os tormentosreservados para seus infortunados habitantes pudessem restringir-se a uma dor de nariz.

Por outra parte, aquilo não podia ser o céu, tendo em conta várias coisas. Para começar, elenão o merecia. Também não tinha pinta de ser. E duvidava de que uma fratura de narizestivesse incluso entre as recompensas para os abençoados, e não para os condenados.

O quanto se tinha imaginado sempre o Purgatório como um lugar cinza, as vadias luzesavermelhadas que o ocultavam tudo lhe pareciam adequadas. Estava despejando um pouco namente e voltava, com lentidão, sua faculdade de raciocínio. Bastante incomodado, disse a síque alguém deveria atendê-lo e dizer-lhe exatamente qual era sua sentença, até que tivessesofrido o suficiente para purificar-se e entrar, por fim, no Reino de Deus.

Enquanto esperava, começou a fazer inventário de qualquer outro tormento que se lheexigisse suportar. Tinha numerosos cortes, machucados aqui e lá; estava quase seguro de tersido fraturado outra vez no dedo anular direito; era difícil protegê-lo pelo modo em que

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sobressaía, com a articulação paralisada. Mas nada disso era tão mau. O Que mais?Claire. O nome lhe apunhalou o coração com a dor mais atroz do que seu corpo tivesse

suportado até então. Ignorava se as pessoas do Purgatório lhe permitiam rezar, mas igualmenteo tentou. «Senhor», orou, «que ela esteja a salvo. Ela e o nosso filho.» Estava seguro de queClaire teria chegado ao círculo; com só dois meses de gravidez, ainda era rápida nas pernas… eteimosa como nenhuma outra mulher que conhecesse. Mas se tinha conseguido efetuar aperigosa transição ao lugar de que tinha vindo (deslizando-se precariamente pelos misteriososestratos que jaziam entre o depois e o agora, indefesa no abraço da rocha), não o saberiajamais; o mero fato de pensá-lo bastou para fazer-lhe esquecer até o palpitar do nariz.

Ao retomar o seu interrompido estado físico, afligiu-se mais do habitual ao descobrir queparecia faltar-lhe a perna esquerda. A sensação se cortava no quadril, com uma série deferroadas que lhe faziam cócegas na articulação.

Aquilo feriu sua vaidade. Ah, aí estava a coisa: um castigo destinado a curá-lo do pecado devaidade. Apertou mentalmente as mandíbulas, decidido a aceitar o que viesse com força e comtanta humildade como pudesse. Ainda assim não pôde evitar alongar uma mão exploratoria (ouo que fora que estava usando como mão) para ver onde terminava agora o membro.

A mão chocou com algo duro; os dedos se embaraçaram em um cabelo úmido e enredado.Incorporou-se bruscamente e, com algum esforço, rompeu a capa de sangue seco que lheselava as pálpebras. A memória voltou numa enxurrada, fazendo-lhe rosnar em voz alta. Tinha-se equivocado. Estava no inferno, sim. Mas desgraçadamente James Fraser não estava morto,depois de tudo.

Tinha o corpo de um homem cruzado sobre o seu. O peso morto lhe achatava a pernaesquerda, o qual explicava a ausência de sensibilidade. A cabeça, pesada como uma bala decanhão, descansava de bruços sobre seu abdomem; o cabelo endurecido caía, escuro, sobre olenço molhado de sua camisa. Incorporou-se bruscamente, preso do pânico; a cabeça rodoucom dificuldade até o seu colo e um olho entreaberto olhou cegamente para acima, depois dasprotetoras mechas de cabelo.

Era Jack Randall; sua fina jaqueta vermelha de capitão estava tão escurecida pela umidadeque parecia quase negra.Jamie fez um lerdo esforço por afastar-se ao cadáver, mas se descobriuassombrosamente fraco; sua mão se esticou debilmente contra o ombro de Randall; o cotovelodo outro braço cedeu de súbito quando tratou de apoiar-se. Estava outra vez tombado de costas,com o céu cinza da nevasca vertiginosamente aglomerado no alto. A cabeça de Jack Randall semovia obscenamente em seu ventre, para acima e para baixo, ao compasso de seu esforço.

Pressionou com as mãos o solo pantanoso (a água se elevou entre seus dedos, fria,empapando a parte posterior de sua camisa) e se retorceu para um lado. Enquanto se debatia nosolo, lutando com os vincos enrugados de seu cobertor escocês, chegaram-lhe sons acima douivar do vento de abril: gritos longínquos e gemidos, como um reclamo de fantasmas no vento.E acima de tudo, o barilho grasnido dos corvos. Dúzias de corvos, a julgar pelo ruído.

Aquilo era estranho, pensou difusamente. As aves não voam com semelhante tormenta. Comum esforço final, conseguiu liberar o cobertor de seu corpo e se cobriu com ele. Ao esticar-separa cobrir as pernas viu que tinha a saia e a perna esquerda empapadas de sangue. Oespetáculo não o afligiu; oferecia um mal vago interesse pelo contraste das manchas de corvermelha escuro contra o verde acizentado do marasmo que o rodeava. Os ecos da batalha seesfumaram de seus ouvidos e abandonou o campo de Culloden entre o reclamo dos corvos.

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Acordou muito depois ao ouvir chamar o seu nome:—Fraser!Jamie Fraser! Está aqui?«Não», pensou aturdido. «Não estou.» Onde quer que tivesse estado durante sua

inconsciência, era um lugar melhor do que aquele. Jazia num pequeno declive, meioencharcado de água.

—Eu o vi descer por aqui. Cercado de um grande matagal de aliagas. —A voz soava longe,apagando-se enquanto discutia com alguém.

Teve um sussurro em ouvido. Ao girar a cabeça viu o corvo na grama, a trinta centímetrosde distância: um borrão de plumas negras agitadas pelo vento, que o olhava com um olhobrilhante. Como se decidisse que ele não representava ameaça alguma, moveu o pescoço comdesenvoltura e afundou o bico afiado e gordo no olho de Jack Randall.

Jamie se agitou com um grito de asco que pôs o corvo em fuga dando grasnidos de alarme.—Sim!Por ali!Um chapeado no solo pantanoso, uma cara ante ele, e a bem-vinda sensação de uma mão no

ombro.—Está vivo! Vem, MacDonald! Vem, me dê uma mão. Não poderá caminhar sozinho.Eram quatro. Levantaram ele com bastante esforço; seus braços pendiam, inertes, sobre os

ombros de Ewan Cameron e Iain MacKinnon.Teria preferido dizer-lhes que o deixassem; ao acordar tinha recordado sua intenção de

morrer. Mas a doçura daquela companhia era irresistível. O descanso tinha devolvido asensação de sua perna dormente, fazendo-lhe compreender a gravidade da ferida. De qualquermodo morreria cedo; graças a Deus, não teria que o fazer só, na escuridão.

—Água? —Notou a borda da xícara nos lábios. Incorporou-se o suficiente para beber, comcuidado de não derramar a água. Uma mão lhe oprimiu a testa durante um segundo e se retirousem comentários.

Estava ardendo; quando fechava os olhos podia sentir as chamas por trás deles. Os arrepiosacordavam os demônios que dormiam em sua perna.

Murtagh. Tinha uma sensação horrível com respeito a seu padrinho, mas nenhumarecordação que lhe desse forma. Murtagh tinha morrido; sabia que assim foi, mas ignoravacomo ou por que o sabia. A metade do exército das Terras Altas tinha morrido, massacrado; aomenos, isso deduzia pelo que conversavam os homens no estábulo, ainda que por sua vez nãorecordava a batalha. Não era a primeira vez que combatia com um exército e sabia que essaperda de memória não era estranha entre os soldados, ainda que nunca a tivesse experimentadopessoalmente.

—Tudo vai bem, Jamie? —Ewan, ao seu lado, incorporou-se sobre um cotovelo, pálida acara preocupada à luz da aurora. Uma bandagem manchado de sangue lhe rodeava a cabeça;tinha marcas enferrujadas na gola da camisa, pelo atrito de uma bala no couro cabeludo.

—Sim, eu me arranjo. —lançou uma mão para tocar Ewan no ombro, em sinal de gratidão.Ewan lhe deu umas palmadas e voltou acostar-se.

Quatro dos homens falavam baixinho ao lado da única janela.—Tratar de correr? —disse um, assinalando para fora com uma cabeçada—. Por Deus,

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homem, o que melhor está mal pode andar. E seis de nós não estão em condições de dar umpasso.

—Se podes fugir, faça —disse um homem do fundo. Assinalou com uma careta sua própriaperna, envolvida nos restos de uma colcha maltrapilha — Não fique por nós.

Duncan MacDonald se afastou da janela com um sorriso lúgubre, mexendo a cabeça. A luzda janela recortava os rasgos rudes de seu rosto, acentuando as rugas da fadiga.

—Não, esperaremos —disse — Para começar, os ingleses multiplicam-se como piolhos poraqui; da janela se vê em bandos. Neste momento ninguém poderia escapar inteiro deDrumossie.

—Nem sequer os que fugiram ontem do campo de batalha poderão chegar longe —interveioMacKinnon com suavidade — Não ouviu as tropas inglesas que passavam pela noite, a marchaforçada? Acredita que lhes custariam muito derrubar o nosso miserável grupo?

Ante isso não teve resposta; todos a conheciam demasiado bem. Antes da batalha já erammuitos os escoceses que mal podiam manter-se em pé, debilitados como estavam pelo frio, afadiga e a fome.

Jamie voltou a cara à parede, rezando para que seus homens tivessem partido com temposuficiente. Lallybroch estava muito longe; se conseguiam distanciar-se bastante de Cullodenera improvável que os pegassem. No entanto, Claire lhe tinha dito que as tropas de Cumberlandassolariam as Terras Altas, adentrando-se muito por sua sede de vingança.

Esta vez, ao pensar nela só sentiu uma onda de terrível nostalgia.Deus, tê-la aqui, sentir suasmãos curando minhas feridas, acolhendo-me a cabeça em seu colo! Mas ela se foi; estava aduzentos anos de distância… Graças ao Senhor! As lágrimas lhe gotejaram lentamente entre aspálpebras fechadas.

«Senhor, que esteja a salvo», rezou. «Ela e o nosso filho.»A meia tarde, o ar se carregou subitamente de cheiro a queimado; entrava pela janela sem

vidros, mais denso do que a fumaça de pólvora negra, picante, com um cheiro vagamentehorrível, por sua lembrança a carne assada.

—Estão queimando os mortos —disse MacDonald. No tempo todo que ficavam na cabanaele mal se tinha afastado de seu assento junto à janela. Ele mesmo parecia uma caveira, com ocabelo negro pelo carvão e amassado como a terra, recolhido para atrás para descobrir um rostoentre os que assomavam todos os ossos.

Aqui e lá, no marasmo, soavam estalos leves. Disparos de pistola. Os tiros de graça,administrados pelos oficiais ingleses dotados de alguma compaixão, antes de que um pobrediabo vestido de tartán xadrez fosse jogado à pira, com seus camaradas mais afortunados.Quando Jamie levantou os olhos, Duncan MacDonald continuava sentado junto à janela, mastinha os olhos fechados.

A seu lado, Ewan Cameron se benzeu.—Queira Deus que nós recebamos a mesma misericórdia —sussurrou.Assim foi. Mal passado o meio dia da segunda jornada, uns pés calçados com botas se

aproximaram à casa; a porta se abriu.—Por Deus. —Foi uma exclamação sufocada ante a cena que se via dentro da casa. A

corrente de ar que entrou pela porta agitou o ar fedorento dos corpos, esfarrapados e cobertos

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de sangue, estendidos ou encurvados no solo de terra aplainada.Ninguém tinha mencionado a possibilidade de uma resistência armada; não tinham ânimos e

seria inútil. Os jacobitas ficaram sentados, esperando conhecer a vontade do visitante.Era um comandante, limpo e reluzente com seu uniforme passado e suas botas lustradas.

Depois de um momento de vacilação para vistoriar os habitantes, entrou seguido de perto porseu tenente.

—Sou lorde Melton —disse olhando ao seu arredor, como se procurasse o líder daqueleshomens, a quem seria mais correto dirigir seus comentários.

Duncan MacDonald, depois de devolver-lhe a olhada, levantou-se com lentidão e inclinou acabeça.

—Duncan MacDonald, de Glen Richie —disse—. E os outros —fizeram um aceno com amão—, que faziam parte das forças de Sua Majestade, o rei Jacobo.

—Isso eu imaginava —disse o inglês seco. Era jovem, de uns trinta anos, mas tinha o portee a segurança de um militar avezado. Olhou deliberadamente aos homens, de um a um; depoisafundou a mão em sua jaqueta para pegar um papel enrolado— Aqui tenho uma ordem de SuaExcelencia, o duque de Cumberlad —disse— Autorizando a execução imediata de qualquerhomem que tenha participado da traidora rebelião que acaba de terminar. —Percorreu uma vezmais com a vista aos confíns da cabana — Há aqui algum que se proclame inocente da traição?

Teve um levíssimo seguro de riso entre os escoceses. Inocentes, com a fumaça da batalhaainda enegrecendo-lhes a cara? Ali, à beira do matadouro?

—Não,milord —disse MacDonald com um ligeiro sorriso nos lábios—. Traidores, todos.Vai ter que nos enforcar, não?

Melton contraiu a cara numa pequena careta de desgosto; depois voltou a sua impasividade.Era um homem leviano, de ossos finos, apesar que levava bem a autoridade.

—Vamos fuzilar —disse— Voces tem uma hora para prepara-los. —Vacilando, olhou aoseu tenente, como se temesse parecer muito generoso ante o subordinado, mas continuou_: Sealgum de vocês deseja escrever uma carta, virá o escrevente de minha Companhia.

Depois de saudar brevemente ao MacDonald com a cabeça, girou sobre seus calcanhares ese retirou.

Foi uma hora lúgubre. Uns poucos aproveitaram do oferecimento de pluma e tinta. Outrosoravam em silêncio ou se limitavam a esperar, sem levantar-se.

MacDonald tinha implorado misericórdia para Giles McMar-tin e Frederick Murray,argumentando que mal tinham dezessete anos e que não podiam ser castigados igual aos seusmaiores.

A solicitação foi negada; os moços permaneciam sentados com as costas contra a parede,pálidos e tomados pelas mãos.

Jamie sentiu um profundo pesar por eles… e pelos outros que estavam ali, amigos leais esoldados valentes. Por ele só experimentava alívio. Essa miséria física estava a ponto determinar.

Mais por salvar as formas que por necessidade, fechou os olhos para rezar o Ato deContrição em francês, como sempre o fazia:

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«Mon Dieu, je regrette…» Mas não se arrependia de nada. Era demasiado tarde paraarrependimentos.

Perguntou se ao morrer se encontraria imediatamente com Claire. Ou talvez, como esperava,estaria condenado por um tempo à separação. Esquecendo a oração, começou a conjurar seurosto depois das pálpebras: a curva da bochecha e a têmpora, essa frente larga e despejada quesempre o incitava a beijá-la, justo ali, nesse ponto suave entre as sobrancelhas, entre os clarosolhos ambarinos.

Mais tarde regressou Melton, desta vez seguido por seis soldados, além do tenente e oescrevente. Uma vez mais se deteve na soleira da porta, mas MacDonald se levantou antes deque pudesse dizer.

—Eu serei o primeiro —disse. E cruzou a cabana com passo firme. No entanto, quandoinclinou a cabeça para cruzar a porta, lorde Melton lhe apoiou uma mão na manga.

—Me dê o seu nome completo, senhor? Meu empregado tomará nota.MacDonald deu uma olhada ao escrivente, com um sorriso amargo tratando de aparecer em

sua boca.—Uma lista de troféus, não? Bem. —Encolheu-se de ombros erguendo as costas— Duncan

William MacLeod MacDonald, de Glen Richie. —Fez uma cortês reverência a lorde Melton—A seu serviço… senhor.

Cruzou a porta. Pouco depois se ouviu um disparo a curta distância.Aos moços permitiu irem juntos, pegados com força nas mãos. Os demais foram tirados de

um a um; a cada qual se perguntou o nome para que o escrivente pudesse registrá-lo.Quando chegou a vez de Ewan, Jamie esforçou-se para incorporar-se sobre os cotovelos e

lhe estreitou a mão com tanta força como pôde.—Cedo voltaremos a nos ver —sussurrou.Ewan Cameron tremia a mão mas se limitou a sorrir. Depois se inclinou para beijar a mão

de Jamie na boca e saiu.Ficavam os seis que não podiam caminhar.—James Alexander Malcolm MacKenzie Fraser —disse ele com lentidão para que o

escrivente tivesse tempo de anotá-lo bem— Senhor de Broch Tuarach. —Soletrou compaciência; depois levantou os olhos para Melton.

—Devo pedir milord, a cortesia de me ajudar a pôr-me em pé.Melton, em vez de responder-lhe, olhava-o fixamente; sua expressão de remoto desgosto

tinha dado passo a uma mistura de assombro e de algo parecido ao horror.—Fraser? —repetiu— De Broch Tuarach?—Esse sou eu —confirmou Jamie com paciência. Não se daria um pouco de pressa aquele

homem? Uma coisa era resignar-se a ser fuzilado e outra muito diferente era escutar matandoaos teus amigos; aquilo não acalmava os nervos, precisamente.

—Por todos os diabos —murmurou o inglês. Inclinou-se para olhar bem a Jamie, que jazia àsombra da parede. Depois fez uma sinal ao seu tenente.

—Ajuda-me a levá-lo à luz —ordenou.

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Não o fizeram com suavidade; Jamie grunhiu durante o trajeto, que lhe provocou um raio dedor desde a perna esquerda até a coronilha. Aturdido, não escutou o que Melton lhe estavadizendo.

— Voce é o jacobita que chamam de Jamie o Ruivo? —perguntou outra vez, comimpaciência.

Aquilo provocou um relâmpago de medo em Jamie; que se tomassem conhecimento de queera o conhecido Jamie o Ruivo não o fuzilariam. O levariam A Londres para julgá-lo,encadeado, como botim de guerra. Depois, com a corda do carrasco à jazer no cadafalso, atéque lhe abrissem o ventre e lhe arrancassem as entranhas. Suas barrigas expeliu outro estrondolongo e ressonante; a elas também não lhe agradava a idéia.

—Não —disse com tanta firmeza como pôde reunir— Vamos terminar de uma vez?Melton, sem prestar atenção, deixou ele cair sobre os joelhos para rasgar a gola da camisa.

Depois pegou o Jamie pelo cabelo e lhe jogou a cabeça para atrás.—Maldição! —disse, fincando-lhe um dedo acima da clavícula. Ali tinha uma pequena

cicatriz triangular, que parecia ser a causa da preocupação de seu interrogador.—James Fraser, de Broch Tuarach; cabelo ruivo e uma cicatriz de três centímetros no

pescoço. —Melton lhe soltou o cabelo e se sentou sobre os calcanhares, esfregando o queixocom ar distraído. Depois, já tomada a decisão, voltou-se para o tenente e fez sinal com umgesto aos cinco homens que restavam na cabana.

—Levem os demais —ordenou. Tinha as loiras sobrancelhas unidas numa profunda ruga. Seergueu ante Jamie enquanto levavam os outros prisioneiros escoceses.

—Tenho que pensar —murmurou— Maldita seja tenho que pensar!—Faça se podes —disse Jamie— Por minha parte, preciso encostar-me. —Tinham o

erguido e tinha as costas apoiadas na parede mais afastada e as pernas esticadas, mas aquelaposição era mais do que podia suportar depois de ter estado dois dias estendido de costas.Inclinou-se para um lado para deslizar-se para o solo.

Melton murmurava baixo e Jamie não chegou a distinguir as palavras; de todas formas, nãolhe interessavam muito. Assim, sentado à luz do sol, tinha-se visto a perna com clareza pelaprimeira vez; estava quase seguro de que não viveria o suficiente para que o enforcassem.

O vermelho intenso da inflamação se estendia desde a metade da coxa para acima, bem maisvisível do que as manchas de sangue seco. A ferida em si estava purulenta; como já tinhadiminuído o fedor dos outros homens, era-lhe possível perceber o cheiro enjoativo do pus. Dequalquer modo, uma rápida bala na cabeça parecia mil vezes preferível à dor e ao delírio damorte causada pela infecção. Adormeceu, com a terra fresca sob a bochecha ardente, fresca ereconfortante como o peito de uma mãe.

Não estava realmente dormindo, senão sonolento pela febre, mas a voz de Melton em seuouvido lhe despertou bruscamente.

—Grey —disse a voz— John William Grey! Recordas esse nome?—Não —disse ele, desorientado pelo sonho e a febre— Olha,vai me matar ou não? Estou

enfermo.—Perto de Carryarrick. —A voz de Melton o incitava com impaciência— Um jovenzinho,

um moço loiro de uns dezesseis anos. Encontrou ele no bosque. Jamie olhou para o seu

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torturador. A febre lhe distorcia a visão, mas lhe pareceu ver algo vagamente familiar naquelerosto de finos ossos e olhos grandes, quase de menina.

—Ah —disse resgatando uma cara de entre as torrentes imagens que se aglomeravaerraticamente em seu cérebro— o mocinho que queria me matar. Sim, eu recordo.

Fechou os olhos outra vez. Devido à febre, uma sensação parecia fundir-se com outra. Umavez tinha quebrado o braço de John William Grey; a recordação do delicado osso sob sua mãose converteu no antebraço de Claire, ao arrancá-la entre as pedras. A brisa fresca e brumosa lheacariciou a cara como os dedos de Claire.

— Desperta, maldito sejas! — A cabeça lhe balançou sobre o pescoço. Melton o sacudiacom impaciência.-Escuta-me!

Jamie abriu os olhos, fatigado.—Sim?—John William Grey é meu irmão —disse Melton—. Ele me falou de seu encontro contigo.

Voce perdou-lhe a vida e ele te fez uma promessa. É verdadeiro?Com grande esforço, Jamie deixou seus pensamentos para trás. Tinha encontrado o menino

dois dias antes da primeira batalha da rebelião, a vitória escocesa de Prestonpans. Os seismeses decorridos desde então pareciam um vasto abismo, pelas muitas coisas que tinhamsucedido naquele tempo.

—Me Recordo, sim. Prometeu matar-me. Não me incomodaria que o fizesses por ele.Estavam caindo as pálpebras. Tinha que permanecer desperto para que o fuzilassem?—Disse que tinha uma dívida de honra contigo. E é verdadeiro. —Melton se levantou,

sacudindo as joelheiras das calças de montar, e se voltou para o tenente que observava ointerrogatório com evidente desconcerto.

—Que situação desgraçada, Wallace. Este… este jacobita é famoso. Não ouviu falar deJamie o Ruivo? A figura nos cartazes?

O tenente assentiu, olhando com curiosidade a silhueta desalinhada que jazia sobre o pó, aseus pés. Melton sorriu com amargura.

—Não, agora não parece tão perigoso, não é? Mas ainda assim é o Ruivo Jamie Fraser. Asua pessoa lhe causaria bons gozos, informando de que temos um prisioneiro tão ilustre. Aindanão acharam o Carlos Stuart, mas quantos jacobitas conhecidos serão igualmente gratos para asmultidões de Tower Hill.

—Devo enviar uma mensagem a seu respeito? —O tenente alongou a mão para a caixa dasmensagens.

— Não! – Melton virou de costas fulminando com o olhar seu prisioneiro – Aí está oproblema! Apesar de ser excelente carne de prisão, esta ruína malcheirosa é também o homemque capturou o menor de meus irmãos, preto de Preston, e em vês de matá-lo, que ra o que elemerecia, lhe poupou a vida e o devolveu a seus companheiros. Desse modo – falou entre dentes– minha família contraiu uma maldita dívida de honra.

- Meu deus – disse o tenente – Assim, não podeis entregá-lo a Sua Alteza, depois de tudo.-Não, maldito seja! Não posso sequer fuzilar a esse cretino sem faltar ao juramento de meu

irmão!

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O prisioneiro abriu um olho.-Pode faltar com ele; não lhe direi nada – sugeriu. E voltou a fechá-lo rapidamente.-Cale-se! – Já tendo perdido completamente a calma, Melton chutou o prisioneiro, que

lançou um gemido diante do impacto, porém não disse mais nada.-Poderíamos fuzilá-lo com um nome falso – sugeriu o tenente numa tentativa de ajudar.Lord Melton lançou ao seu assistente um olhar fulminante de desdém. Logo deu uma olhada

pela janela para calcular a hora.-Dentro de três horas terá escurecido. Supervisionarei o enterro dos outros executados.

Busca-me uma carroça pequena e cheia de feno. Consegue um carroceiro. Escolhe uma pessoadiscreta, Wallace, e…subornável. Quero que esteja aqui com o veículo enquanto escurece.

-Sim, senhor. Eh…. Senhor? Que faremos com o prisioneiro? – O tenente sinalizou comtimidez o corpo estendido no chão.

- Carroça? – O prisioneiro mostrava sinais de vida. De fato, diante do estímulo da agitaçãohavia conseguido apoiar-se sobre um cotovelo – Para onde me envias?

Melton se virou diante da porta com um profundo olhar de desgosto.-És o senhor de Broch Tuarach, não? Bom, pois pra lá te envio.-Mas eu não quero ir para casa! Quero que me fuzile!Os ingleses se entreolharam.-Delira – disse o subordinado.Melton assentiu.-Duvido que sobreviva à viajem, porém ao menos sua morte não cairá sobre a minha

consciência.A porta se fechou com firmeza atrás dos ingleses, deixando a Jamie Fraser muito só… e

com vida.

SE INICIA A BUSCA

CAPÍTULO 2

Invemess

2 de maio de 1968

— Claro que morreu! —A voz de Claire soava áspera pela agitação e retumbava com forçano estudo médio esvaziamento, produzindo ecos entre as prateleiras cheias de livros revirados.Estava apoiada na parede revestida de cortiça, como uma prisioneira que esperasse ao pelotãode fuzilamento, olhando alternativamente a sua filha e a Roger Wakefíeld.

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—Não creio.— Roger se sentia terrivelmente cansado. Depois de esfregar a cara com umamão, recolheu uma pasta da escrivaninha que continha toda a investigação que tinha feitodesde que Claire e sua filha lhe pediram ajuda, três semanas atrás.

Folheou lentamente o conteúdo. Os jacobitas de Culloden. O Levantamento de 1745. Osvalentes escoceses que se tinham agrupado sob o estandarte de Carlos Stuart, o Bonnie Prince,atravessando Escócia como uma espada flamejante… só para cair na ruína e na derrota contra oduque de Cumberland, no páramo cinza de Culloden.

—Toma —disse retirando várias páginas juntas. A arcaica escritura parecia estranha nanitidez do xerox— Aqui tem o contra-cheque do regimento de Lovat.

Estendeu as folhas a Claire, mas foi Brianna, sua filha, quem as pegou voltando as páginas,com uma leve ruga entre as sobrancelhas ruivas.

—Lê este encabeçamento —disse Roger—. Onde diz «Oficiais».—Está bem. «Oficiais» —leu ela em voz alta—: «Simón, filho de Lovat…»—O Jovem Zorro —interrompeu Roger—. O filho de Lovat. E mais cinco nomes, não?Brianna o olhou levantando uma sobrancelha, mas continuou com a leitura.—«William Chisholm Fraser, tenente; George D’Amerd Fra-ser Shaw, capitão; Duncan

Joseph Fraser, tenente; Bayard Murray Fraser, comandante.» —Fez uma pausa para engulirsaliva antes de ler o último nome—. «James Alexander Malcolm Mackenzie Fraser. Capitão.»—Baixou os papéis, um pouco pálida— Meu pai.

Claire se aproximou para estreitar o braço. Ela também estava pálida.—Sim — disse a Roger— Sei que foi a Culloden. Quando me deixou ali…, no círculo de

pedra…, pensava voltar ao campo de Culloden para resgatar os seus homens, que estavam comCarlos Stuart. E sabemos que o fez. —Apontou com a cabeça a pasta da escrivaninha, limpa einocente a superfície de manilha à luz do lustre — Voce achou seus nomes. Mas… mas…Jamie… —Pronunciar o nome em voz alta parecia comovê-la; fechou os lábios com força.

Agora cabia a Brianna dar apoio a sua mãe.—Disse que tinha intenção de regressar. —Seus olhos alentadores, de um azul escuro,

estavam fixos na cara de Claire— Queria tirar os seus homens do campo e depois voltar àbatalha.

A mãe assentiu, recobrando-se um pouco.—Sabia que não eram muitas as possibilidades de escapar; se fosse pego pelos ingleses…,

disse que preferia morrer em combate. Essa era sua intenção. —Voltou-se para Roger; seusolhos ambarinos eram inquietantes. Pareciam olhos de falção, como se ela pudesse ver bemmais longe do que a maioria— Não posso crer que não morreu ali. Morreram tantos…! E elequeria!

Quase a metade do exército das Terras Altas tinha morrido em Culloden, derrubados poruma rajada dos canhões e fogo dos mosquetes. Mas Jamie Fraser, não.

—Não —disse Roger com obstinação—. Esse fragmento do livro de Linklater que eu li…—Alongou a mão para um volume branco, titulado O príncipe do Urzal —. «Depois da batalha—leu—, dezoito oficiais jacobitas feridos se refugiaram numa velha casa, perto do firmamento.Ali penaram durante dois dias, com as feridas sem curar. Ao terminar esse período foram

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tirados para fora e fuzilados. Um homem chamado Fraser, do regimento de Lovat escapou àmatança. O resto foi sepultado no limite do parque agregado.» Vê? —adicionou, olhando comseveridade às duas mulheres acima do livro—. Um oficial do regimento de Lovat.

Pegou as folhas do contra-cheque.— E aqui estão! Só seis. Agora bem: sabemos que o homem da velha casa não pode ter sido

o jovem Simón, porque é um personagem histórico muito conhecido e estamos bem inteiradosdo que lhe sucedeu. Retirou-se do campo de batalha com um grupo de seus homens, sem feridaalguma, e marchou para o norte, combatendo, até chegar ao castelo de Beaufort, perto daqui.— Exibiu-se vagamente o brilho de Invemess, que tremeluzia debilmente na enorme janela. _O homem que escapou do estábulo de Leanach também não era um dos outros quatro oficiais:William, George, Duncan nem Bayard. Por que? —Tirou outro papel da pasta para abanarquase triunfalmente— Porque todos eles morreram em Culloden! Os quatro foram executadosno campo; seus nomes aparecem numa placa da igreja de Beauly.

Claire deixou escapar um longo suspiro; depois se instalou no velho cadeirão de couro, portrás da escrivaninha.

—Jesus bendito —disse. Inclinou-se para frente com os olhos fechados, apoiando oscotovelos na escrivaninha, e escondeu a cabeça entre as mãos; o cabelo castanho, denso eencaracolado, caiu ocultando-lhe a cara. Brianna lhe pôs uma mão nas costas, preocupada. Erauma moça alta, de ossos grandes, e sua longa cabeleira ruiva cintilava à luz cálida do lustre.

—Se não morreu… —começou vacilando.Claire levantou bruscamente a cabeça.—Morreu, com certeza! —disse. Tinha a cara tensa, com pequenas rugas visíveis arredor

dos olhos—. Por Deus, passaram duzentos anos. Tenha morto em Culloden ou não, já nãoexiste!

Ante a veemência de sua mãe, Brianna deu um passo atrás, baixando a cabeça; o cabeloruivo, como o de seu pai, ficou pendurando junto à bochecha.

—Suponho que sim —sussurrou.Roger notou que estava contendo as lágrimas. Tinha uma explicação: se inteirar em tão

pouco tempo de que, primeiro, o homem ao que tinha amado e chamado «papai» toda sua vidanão era seu pai; segundo, que seu verdadeiro pai era um escocês que viveu nas Terras Altasduzentos anos atrás; e terceiro, que provavelmente tinha perecido de alguma maneirahorrível,longe da esposa e da filha por quem se tinha sacrificado, isso disquicia qualquer um,pensou Roger.

Cercou a Brianna para tocar-lhe o braço. Ela o olhou tratando de sorrir e Roger a rodeou emseus braços.

Claire seguia sentada ante a escrivaninha, imóvel. Os dourados olhos de falção tinham agorauma cor mais suave, pela lonjura da recordação. Descansavam olhando sem ver a paredeoriental do estudo, ainda coberta desde o chão até o teto de notas e memorandos deixados peloreverendo Wakefield, o defunto pai adotivo de Roger.

O historiador pigarreou um pouco.—Eh… Se Jamie Fraser não morreu em Culloden… —disse.

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—É provável que morresse muito pouco depois. — Claire o olhou diretamente aos olhos; aserenidade tinha voltado a seus olhos dourados—. Voce não tem idéia do que foi aquilo. NasTerras Altas tinha fome; os homens que foram à batalha levavam vários dias sem comer. Eleestava ferido; isso sabemos. Ainda se escapou, não tinha ninguém… ninguém que o atendesse.—A voz se lhe rompeu ao dizê-lo; na atualidade era médica; por aquele então, vinte anos antes,ao sair do círculo de pedras para encontrar seu destino junto a James Fraser, era curandeira.

Roger era muito consciente das duas presenças: a moça alta e trêmula que tinha entre osbraços e a mulher da escrivaninha, tão quieta e serena. Tinha viajado através das pedras,através do tempo; foi suspeita de espionagem, presa por bruxaria, arrebatada, por umasinconcebíveis estranhas circunstâncias, dos braços de Frank Randall, seu primeiro esposo. Etrês anos depois James Fraser, seu segundo esposo, tinha enviado-a novamente através daspedras, gestante, num desesperado esforço por salvá-la, e salvar a criança que ia nascer, doiminente desastre que cedo sucederia.

Sem dúvida alguma, pensou, a mulher tinha passado por muitas coisas. Mas Roger erahistoriador. Tinha a curiosidade insaciável e amoral do erudito demasiado potente para deixar-se restringir pela simples compaixão.

—Se não morreu em Culloden —seguiu com firmeza—, talvez eu possa averiguar que lhesucedeu. Quer que eu tente?

Esperou, sem alento, notando através da camisa a cálida respiração de Brianna.Jamie Fraser tinha tido uma vida e uma morte. Roger se sentia escuramente obrigado a

averiguar toda a verdade; as mulheres de Jamie mereciam saber tudo o possível sobre ele. ParaBrianna, esse conhecimento era tudo o que poderia ter do pai ao que nunca tinha conhecido. Epara Claire… Por trás da pergunta que tinha formulado estava a idéia que, obviamente, ela nãotinha captado, aturdida como estava ainda pela impressão: já tinha cruzado duas vezes abarreira do tempo. Era possível que o fizesse outra vez. E se Jamie Fraser não tinha morridoem Culloden…

Viu que o pensamento chuviscava no âmbar turvo de seus olhos. Ela passou longo momentosem falar. Sua vista permaneceu fixa em Brianna por um instante. Depois voltou à cara deRoger.

—Sim —disse com um sussurro tão suave que mal pôde escutá-la—. Sim, Averigua, porfavor. Averigua.

Franca e Plena Revelação

CAPÍTULO 3

Inverness

9 de maio de 1968

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A ponte sobre o rio Ness tinha um denso trânsito para pedestres, muita gente voltava a suacasa para tomar o chá. Roger caminhava diante de mim, protegendo-me dos empurrões comseus largos ombros.

Me palpitava com força o coração a capa rígida do livro que eu levava apertado contra opeito. Assim era cada vez que me detinha ao pensar no que estava fazendo. Não estava segurade qual das duas alternativas era pior: descobrir que Jamie tinha morrido em Culloden oudescobrir que tinha sobrevivido.

As tábuas da ponte soavam num eco sob nossos pés enquanto voltávamos ao casarão.Doíam-me os braços pelo peso dos livros que levava; passava de um lado ao outro.

—Cuidado, homem! —gritou Roger apartando-me com destreza de um trabalhador que,montado numa bicicleta, tinha-se lançado pela ponte e esteve a ponto de atirar-me contra obalaústre.

—Perdão! —foi seu grito de desculpa. E o ciclista sacudiu a mão acima do ombro, enquantoa bicicleta ia em encontro a dois grupos escolares que voltavam para casa. Olhei para trás paraver se via a Brianna, mas não tinha sinais dela.

Roger e eu tínhamos passado a tarde numa Reunião para Conservação de Antigüidades eBrianna tinha ido ao escritório de Clãs das Terras Altas para fazer xerox de uma lista dedocumentos recopilados por Roger.

—É muito amável em dar-se o trabalho, Roger —disse elevando a voz para me ouvir acimado ruído da ponte e o rumor do rio.

—Não é nada —disse. Deteve-se esperando que eu o alcançasse — Sou curioso —adicionoucom um ligeiro sorriso. — Já sabe como são os historiadores: não podemos deixar passar umacharada.

E sacudiu a cabeça para afastar o cabelo escuro dos olhos, revolto pelo vento, sem utilizar asmãos.

Eu sabia como eram os historiadores; tinha convivido com um durante vinte anos. Franktambém não teria deixado passar aquela charada, mas também não esteve disposto a solucioná-lo. De qualquer modo, Frank tinha morrido dois anos atrás e agora tinha chegado a mim vez e ade Brianna.

—Teve notícias do doutor Linklater? —perguntei enquanto descíamos pelo arco da ponte.Apesar de tarde, o sol ainda estava alto naquela zona tão setentrional.

Roger sacudiu a cabeça, entornando os olhos para protegê-los do vento.—Não, faz apenas uma semana que lhe escrevi. Se não receber notícias suas até segunda-

feira, eu telefonarei. Não se preocupe. —Sorriu. — Fui muito circunspecto. Só lhe disse que,para um estudo que eu estava realizando, precisava de uma lista, se existia alguma, dos oficiaisjacobitas que estiveram no estábulo de Leianach depois de Culloden. E lhe pedi que, se existealguma informação quanto ao sobrevivente daquela execução, me remetesse às fontesoriginais.

—Conhece pessoalmente o Linklater? —perguntei apoiando os livros no quadril para aliviaro braço esquerdo.

—Não, mas lhe escrevi com um lembrete do Balliol Co-llege e fiz uma sutil referencia aosenhor Cheesewright, meu antigo mentor; ele sim conhece o Linklater. —Roger me piscou um

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olho reconfortantemente e eu ri.De novo no estudo do defunto reverendo Wakefield, depositei minha braçada de livros na

mesa e, aliviada, deixei-me cair no cadeirão, junto a lareira, enquanto Roger ia à cozinha aprocura de um refrigerante.

Enquanto minha respiração se acalmava; meu pulso, em mudança, seguia sendo inconstante.Contemplei a imponente pilha de livros que tínhamos trazido. Apareceria Jamie em algumdeles? E nesse caso… «Não me antencipando demais», aconselhei-me. «É muito melhoresperar ver o que ele consegue descobrir .»

Roger estava pesquisando as estantes de estudo, em procura de outras possibilidades. Porfim deixou cair a mão sobre uma pilha de livros na mesa próxima. Eram os de Frank: umaexibição impressionante, pelo que diziam os elogios impressos nas sobrecapas.

—Leu este? —perguntou pegando o volume titulado Os jacobitas.—Não. —Tomei um reconfortante gole de refrigerante e tossi— Não, não pude.Depois de minha volta eu tinha negado determinadamente a olhar qualquer material

relacionado com o passado de Escócia, apesar de que Frank estava especializado, entre outrascoisas, no século XVIII. Sabendo que Jamie tinha morrido, enfrentando à necessidade de viversem ele, evitei tudo o que pude trazer-me à mente. Era inútil (a existência de Brianna era umalembrança cotidiana), mas ainda assim não podia ler aqueles livros referidos ao Bonnie Prince,aquele jovem terrível e fútil, nem sobre seus seguidores.

—Compreendo. Só me ocorreu que poderia saber se tinha aqui algo útil. —Roger fez umapausa; o rubor se acentuou em seus pómulos. — Teu… eh… teu marido… Frank, quero dizer— acrescentou precipitadamente— Lhe disse… hum… o de…? —Falhou sua voz, sufocadapelo rubor.

—Claro! —respondi com aspereza—. Que pensas? Depois de três anos afastada de casa, nãoera questão de entrar em seu escritório dizendo: «Oi, querido, o que gostaria de jantar?»

—Não, claro que não —murmurou Roger. Voltou-se para os livros. Tinha o pescoçovermelho de vergonha.

—Desculpa —eu disse respirando fundo— Tua pergunta é normal. Só que… ainda dói umpouco.

Muito, na realidade. Surpreendia-me horrorizada o quanto que ainda me doía aquela ferida.Deixei o copo na mesa, junto ao meu cotovelo. Se íamos seguir com o tema, precisaria algomais forte do que um refrigerante.

—Sim, eu disse —continuei— Contei-lhe tudo: as pedras…de Jamie. Tudo.Roger demorou um momento em replicar. Depois se voltou, deixando-me ver só as linhas

fortes e nítidas de seu perfil, sem olhar-me. Contemplava os livros de Frank, a foto dasobrecapa: Frank, delgado, moreno e aposto, sorrindo à posteridade.

—Ele acreditou? —perguntou baixinho.Tinha os lábios pegajosos pelo refrigerante. Mas lambi antes de responder.—Não. Ao princípio, não. Achava que eu estava louca. Até me fez visitar um psiquiatra. —

Soltei um riso breve, mas a recordação me fez apertar os punhos com fúria.—E depois? —Roger se voltou para mim. O rubor tinha desaparecido, deixando só um eco

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de curiosidade nos olhos— O que pensou?respirei fundo, fechando os olhos.—Não sei.O pequeno hospital de Inverness tinha um cheiro estranho, como a desinfetante e algodão.Não podia pensar e tratava de não sentir. A volta era bem mais aterrorizador do que minha

expedição ao passado, pois ali tinha protegido a capa da dúvida e incredulidade quanto aonde me encontrava e daí estava sucedendo; além do mais, tinha vivido com a esperançaconstante de escapar. Agora sabia muito bem onde estava e tinha a certeza de que não tinhamaneira de escapar. Jamie tinha morrido.

Os médicos e as enfermeiras me tratavam com amabilidade; davam-me de comer e metraziam bebidas, mas em mim só tinha espaço para a pena e o terror. Tinha-lhes dito meunome, mas não quis falar mais.

Estendida na cama branca e limpa, mantinha os dedos apertados sobre meu ventrevulnerável e os olhos fechados. Recordava uma e mais uma vez as últimas coisas que tinhavisto antes de cruzar entre as pedras (o páramo chuvoso e a cara de Jamie), sabendo que, seolhasse muito tempo o novo ambiente que me rodeava, aquelas imagens se desvaneceriam,substituídas por coisas mundanas: as enfermeiras, o ramo de flores junto a minha cama…Disimuladamente, apertava um polegar contra a base do outro, achando um pequeno consolona ferida que tinha ali, um pequeno corte com forma de J. Que Jamie tinha feito e ele pediu aminha: o último de seus contatos em minha carne.

Devia ter permanecido algum tempo assim; às vezes dormia, sonhando com os últimos diasdo Levantamento Jacobita; revia o morto no bosque, dormido sob um cobertor de fungosmuito azuis, e A Dougal MacKenzie, agonizando no solo de um desvão, na casa Culloden, eaos homens esfarrapados do exército das Terras Altas, dormindo nas valas lodosas, o últimodescanso antes da matança.

Por fim abri os olhos. Frank estava ali, no vão da porta, alisando o cabelo com uma mão.Eu o via desconcertado… e não era de estranhar, pobre homem.

Me recostei nos travesseiros, observando-o sem falar. Parecia com seus antepassados, Jacke Alex Randall: feições nítidas e aristocráticas, cabeça bem formada sob o cabelo abundante,escuro e escorrido. No entanto, em sua cara tinha uma diferença indefinivel com respeito aeles, além da leve diferença de feições. Nele não existia a marca do medo nem da crueldade;nem a espiritualidade de Alex nem a glacial arrogância de Jack. Sua cara delgada pareciainteligente, bondosa e algo cansada; estava com olheiras e sem barbear. Soube, sem queninguém me dissesse, que tinha passado a noite ao volante para chegar até ali.

—Claire? —Aproximou-se à cama, falando vacilante, como se não estivesse seguro de queeu fora realmente Claire.

Eu também não estava segura, mas assenti.—Oi, Frank. —Minha voz soava rouca e rude, como se não estivesse acostumada a falar.Ele me pegou numa mão e eu a deixei.—Voce está… bem? —perguntou depois de um minuto, com o cenho franzido.—Estou grávida. —A minha mente desordenada, esse lhe parecía o ponto mais importante.

Não tinha pensado em que dizer ao Frank se voltasse a vê-lo, mas quando o vi ante a porta

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isso pareceu ficar claro. Lhe diria que estava grávida e ele iria embora, deixando-me só comminha última imagem do rosto de Jamie, com seu ardente contato na mão.

Seu rosto se pôs um pouco tenso, mas não me soltou a mão.—Eu sei. Me disseram. —Respirou fundo e deixou escapar o ar.— Pode me dizer o que

aconteceu,Claire?Por um momento fiquei em alvo e me encolhi.—Suponho que sim—disse. Com fadiga, ordenei meus pensamentos, não queria falar disso,

mas tinha certas obrigações com aquele homem. Não me sentia culpada, ainda não; obrigadasim. Tinha estado casada com ele.

—Bom —eu disse— Me apaixonei por outro e me casei com ele. Ele sentou —vi em respostaà expressão de horror que lhe cruzou a cara. — Não pude evitar.

Ele não esperava isso. Abriu a boca e voltou a fechá-la. Apertava-me a mão com tantaforça que a retirei, fazendo uma careta.

—O que queres dizer? —perguntou com voz áspera.— Onde esteve, Claire? —Levantou-sesubitamente, erguendo-se junto à cama.

—Lembra que a última vez em que me viu eu ia ao círculo de pedras de Craigh na Dun?—Sim? —Olhava-me com uma mistura de raiva e desconfiança.—Bom… —passei a língua pelos lábios; estavam muito secos.— A verdade é que, nesse

círculo, entrei numa pedra fendida e terminei em 1743.—Não se faça de palhaça, Claire!—Pensa que é uma piada? —A idéia era tão absurda que me joguei a rir, ainda que me

sentia muito longe de tomar-me as coisas com humor.—Chega!Deixei de rir. Como por arte de magia duas enfermeiras apareceram na porta; deviam de

ter estado espreitando no corredor. Frank se inclinou para apertar o meu braço.—Escuta —disse entre dentes.— Quero que me diga onde esteve e o que tens feito.—Estou te dizendo. Me Solta! —Incorporei-me na cama e soltei meu braço. — Já te disse:

cruzei uma pedra e acabei duzentos anos atrás. E ali conheci o teu maldito antepassado JackRandall.

Frank piscou, completamente desconcertado.—Quem?Jack Randall, o Black Jack. E era um pervertido, sujo e asqueroso!Frank tinha ficado boquiabierto, igual as enfermeiras. Ouvi passos que vinham pelo

corredor, depois delas, e vozes apressadas.—Tive que me casar com Jamie Fraser para escapar de Jack Randall, mas depois…

Jamie… Não o pude evitar, Frank; me apaixonei por ele e teria ficado ao seu lado se tivessepodido. Mas ele me enviou de volta por causa de Culloden e pelo bebê, e… —Me interrompí;um médico com bata cruzou a porta, afastando às enfermeiras.

—Eu sinto muito, Frank — eu disse fatigada.— Não queria que passasse tudo isso. Fiz o

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possível para voltar, de verdade, mas não pude. E agora é muito tarde.Contra minha vontade, as lágrimas se acumularam em meus olhos e começaram a rolar

pelas bochechas. Quase todas por Jamie, por mim mesma e pelo filho que esperava, mastambém algumas por Frank. Sorvi pelo nariz, engulindo com força, numa tentativa de meconter, e me ergui na cama.

—Veja — eu disse—, sei que não queres saber nada mais de mim e não te critico.Simplesmente… vai embora?

Tinha mudado de cara. Já não parecia aborrecido, senão inquieto e algo desconcertado.Sentou-se junto à cama, sem prestar atenção ao médico, que tinha entrado e procurava o meupulso.

—Não vou —disse com muita suavidade. E voltou a pegar-me a mão, ainda que eu tratavade retirá-la.— Esse tal… Jamie. Quem era?

Respirei fundo e entrecortadamente.—James Alexander Malcolm MacKenzie Fraser —disse espaçando as palavras com

formalidade, tal como as tinha pronunciado Jamie a primeira vez que me disse seu nomecompleto…, no dia de nosso casamento. A idéia me trouxe novas lágrimas; mas sequei com oombro, pois não dispunha das mãos.

—Era um escocês das Terras Altas. O ma…mataram… em Culloden.Não serviu de nada: estava chorando outra vez; as lágrimas não constituíam um calmante

para a dor que me destroçava, senão a única reação possível ante um sofrimento insuportável.Inclinei-me um pouco para frente, tratando de envolver aquela pequena e imperceptível vidaque tinha no ventre, o único que ficava de Jamie Fraser.

Frank e o médico trocaram olhares do quanto parecia que eu estava mal. Para eles,naturalmente, Culloden fazia parte de um passado remoto. Para mim tinha acontecido maldois dias antes.

—Deveríamos deixar que a senhora Randall descansasse um pouco —sugeriu o médico—.Neste momento parece estar um pouco alterada.

Frank nos olhou sem saber o que fazer.—Bom, é verdade que parece alterada. Mas quero averiguar… O que é isto, Claire?Ao acariciar a minha mão tinha descoberto o anel de prata em meu dedo anular e se

inclinou para examiná-lo. Era o anel que Jamie me tinha dado no casamento: uma larga faixade prata com o desenho entrecruzado das Terras Altas, pequenas flores de cardo estilizadas,gravadas nos elos.

—Não! —exclamei presa de pânico ao ver que Frank tratava de tirar do dedo. Arranquei amão e protegi o punho sob o seio, coberto pela mão esquerda, onde ainda tinha a aliança deouro que Frank tinha me presenteado. — Não, não pode me tirar. Não vou permitir! É meuanel de casamento!

—Olha, Claire…O médico interrompeu, chegou perto dele e se inclinou para murmurar algo ao ouvido.

Captei algumas palavras:

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—… Não incomode a sua esposa justamente agora. O choque…Um momento depois Frank estava novamente em pé, firmemente conduzido para fora pelo

médico, que ao passar fez um sinal a uma das enfermeiras.Mal senti a picada da agulha hipodérmica, no estado como eu estava numa onda de pesar.

Ouvi vagamente as palavras com que se despedia Frank:—Está bem, Claire, mas vou investigar!Depois desceu a bendita escuridão e dormi sem sonhar durante muito tempo.Roger se inclinou a garrafa, enchendo o copo até a metade, e entregou a Claire com um leve

sorriso.—A avó de Fiona dizia sempre que o whisky é bom para todos os males.—Vi remédios piores. —Ela pegou o copo e lhe devolveu o sorriso.Roger tomou um gole e se sentou ao seu lado, absorvendo sua bebida em silêncio.—Fiz para ele ir embora, sabe? —disse ela baixando o copo—. Eu disse que compreenderia

se seus sentimentos por mim tinham mudado, acreditando ou não. Ofereci o divórcio; que sefosse, que me esquecesse, que reiniciasse a vida que tinha começado a construir sem mim.

—E ele não quis —disse Roger. Ao descer o sol, começava a fazer frio no estudio.Agachou-se para acender a antiga estufa elétrica.— Por tua gravidez? —Adivinhou.

Claire lhe deu uma rápida olhada. Depois sorriu com ironia.—Isso. Disse que só um canalha era capaz de abandonar uma mulher grávida e sem

recursos. Sobretudo se sua visão da realidade parecia algo tênue —acrescentou risonha—. Eunão estava sem recursos, tinha um pouco de dinheiro de meu tio Lamb. Mas Frank também nãoera um canalha.

Seus olhos se desviaram até as estantes de livros. Ali estavam as obras históricas de seumarido, com os lombos cintilantes à luz do lustre.

—Era um homem muito decente —concluiu com suavidade. E tomou um gole mais,fechando os olhos ao subir dos vapores alcoólicos—. Ainda mais, sabia ou suspeitava que nãopodia ter filhos. Um verdadeiro golpe para um homem tão dedicado à história e às genealogias.Com todas essas idéias dinásticas, não?

—Sim, compreendo —disse Roger com lentidão—. Mas não sentia…? Isto é…, o filho deoutro homem…

—Talvez. —Os olhos de âmbar voltaram a olhá-lo, algo amaciados pelo whisky e asreminiscências.— Mas como não sentia, nem podia crer em nada do que eu dissesse sobreJamie, essencialmente a criança seria filho de pai desconhecido. Se ele ignorava quem era essehomem (e se convenceu de que eu também não sabia, de que tinha inventado essas alucinaçõespor efeito do choque traumático), então ninguém diria que a criança não era sua. Eu não —acrescentou com uma deixa de amargura.

Tomou um grande gole do whisky, que a fez lacrimejar um pouco, e enxugou os olhos.—Mas a verdade é que me levou longe. A Boston. Tinham-lhe oferecido um bom posto em

Harvard onde ninguém nos conhecia. Ali nasceu Brianna.O choro nervoso me acordou mais uma vez. Tinha voltado à cama às seis e meia, depois de

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levantar-me cinco vezes pela noite para atender à menina. Uma lenta olhada ao relógio merevelou que eram sete horas. Pelo banheiro surgia uma alegre canção: a voz de Frank seelevava em «Rule, Britannia», acima do ruído da água corrente.

Permaneci na cama, com os membros pesados pelo esgotamento, perguntando-me se teriaforças necessárias para suportar o pranto até que Frank saísse do chuveiro e me trouxesse aBrianna. Mas o pranto subiu de tom e se converteu num grito.

Cruzei pesadamente o corredor gelado até o quarto do nenê. Brianna, de três meses, estavaestendida de costas, gritando a pleno pulmão. Aturdida pela falta de sonho, demorei ummomento ao recordar que a tinha deixado de bruços.

—Querida! Voce se virou sozinha! —Aterrorizada por sua audácia, Brianna agitou ospunhosinhos rosados e gritou com mais força, apertando os olhos.

Levantei ela depressa para dar-lhe palmadinhas nas costas, murmurando sobre a penugemruiva que lhe cobria a cabeça.

—Oh, minha pequena pedra preciosa! Que menina tão inteligente!—O que foi? —Frank saiu do banho secando a cabeça e com uma segunda toalha envolta

no quadril—. Algum problema com Brianna?Aproximou-se de nós com cara de preocupação. Perto do nascimento, nós dois tínhamos

estado nervosos: Frank, irritado; eu, aterrorizada. Não tínhamos idéia do que podia sucederentre nós logo que nascesse o filho de Jamie Fraser. Mas quando a enfermeira pegou aBrianna de seu berço e a entregou a Frank dizendo: «Aqui está a menina do papai», ele ficoucom a cara sem expressão; depois, ao olhar o pequeno rostinho, perfeita como um pimpolho,ficou maravilhado. Menos de uma semana a menina já era sua, em corpo e alma.

Voltei-me para ele, sorrindo.—Ela deu a volta! Sozinha!—De verdade? —Refulgía de prazer—. Não é muito cedo para que ela faça isso?—Sim. Segundo o doutor Spock, não deveria ter feito até o mês que vem, pelo menos.—Bom, o que sabe esse doutor Spock? Vem aqui, minha preciosa; dá um beijo no papai por

ser tão precoce.Levantou o corpinho suavemente, envolvido em seu pijama rosado, e deu um beijo na ponta

do nariz. Brianna espirrou e nós dois rimos.Então fui consciente de que era minha primeira risada em todo um ano. Mais ainda: era a

primeira vez que eu ria com Frank.Ele também o notou; seus olhos se encontraram com os meus acima da cabeça de Brianna.

Eram de um suave cor avelã e nesse momento estavam cheios de ternura. Sorri, um poucotrémula, alerta pelo fato de que ele estava quase nu, com gotas de água deslizando-se pelosombros delgados e brilhando na pele morena e suave do peito.

Os dois perceberam simultaneamente o cheiro a queimado. Isso nos arrancou da bem-aventurança doméstica.

—O café! —Frank pôs a Bree em meus braços, sem nenhuma cerimônia, e saiu disparadopara a cozinha, deixando ambas as toalhas feitas um vulto aos meus pés. Eu segui lentamente,levando a Bree apoiada no ombro.

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Estava de pé ante a pia da cozinha, nu, entre uma nuvem de vapor que surgia da cafeteirachamuscada.

—Que tam um chá? —sugeri, acomodando destramente a Brianna em meu quadril com umbraço, enquanto voltava ao aparador— Que droga acabou; só tem de saquinho.

Frank fez uma careta; sendo inglês até os tutanos, teria preferido lamber a água sanitáriado que tomar chá de saquinhos.

—Não, posso tomar uma xícara de café no caminho para a universidade. A propósito:lembra que nesta noite virão jantar o reitor e sua esposa? A senhora Hinchcliffe traz umpresente para Brianna.

—Está bem —eu disse sem entusiasmo. Já tinha tratado com os Hinchcliffe e não estavamuito desejosa de repetir a experiência.

Brianna afundou o nariz sobre o meu peito em cima de minha bata vermelha, emitindopequenos rosnados.

—Não pode ser que tem fome outra vez — Mamou não faz nem duas horas.—A senhora Hinchcliffe diz que não é conveniente alimentar um bebê cada vez que chora —

observou Frank— Se não ensinar a respeitar os horários, ficam malcriados.—Bom, então será uma malcriada, não? —repliquei com frieza e sem olhá-lo. A boquinha

rosada se fechou com força e Brianna começou a mamar com despreocupado apetite. Asenhora Hinchcliffe também opinava que dar o peito era vulgar e anti-higiénico.

Frank suspirou sem insistir.—Bom —disse incômodo — Voltarei antes das seis. Quer que eu traga algo para te poupar

de sair?Dei-lhe um breve sorriso.—Não, posso me virar.—Está bem.Vacilou um momento enquanto eu acomodava a Bree em meu colo, com a cabeça no espaço

de meu braço; a curva de sua cabeça reproduzia a de meu peito. Ao afastar os olhos damenina descobri que ele estava me observando apaixonadamente, com um olhar fixo naredondeza do meu seio semidescuberto.

Eu também o correspondi. Ao detectar um começo de excitação sexual, inclinei a cabeçasobre a pequena para ocultar meu rubor.

—Adeus —murmurei sem olhá-lo.Ficou imóvel um momento; depois se inclinou para frente e me deu um beijo na bochecha; o

calor de seu corpo nu me inquietava.—Adeus, Claire —disse suavemente— Até a noite.Como não voltou à cozinha antes de sair, pude terminar de dar o peito a Brianna e tratar

de pôr um pouco de ordem em meus próprios sentimentos.Desde minha volta não tinha visto Frank nu, pois se vestia sempre no banho ou no closet.

Até essa manhã também não tinha tratado de beijar-me. Como a minha gravidez foi dos que osginecologistas denominam «de alto risco», ele não pôde compartilhar minha cama, ainda no

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caso de que eu estivesse estado disposta…,mas não estava.A menina era nosso interesse compartilhado, um ponto através do qual podíamos contatar

de imediato, mas mantendo a mínima distância. Ao que parece, essa distância mínima já eraexcessiva para Frank.

Eu podia fazer…, fisicamente ao menos. A semana anterior, com uma piscada e umapalmada no traseiro, o médico me tinha assegurado que podia retomar «as relações» com meuesposo quando quisesse.

Sabia que Frank não tinha sido fiel desde meu desaparecimento. Ainda não chegava aoscinquenta anos; era delgado, moreno e musculoso, um homem muito charmoso. Nas festas, asmulheres se aglomeravam ao seu arredor como abelhas em torno do mel, emitindo pequenosmurmúrios de excitação sexual. Mas ele tinha sido discreto. Sempre passava a noite em casa ecuidava de não se apresentar com manchas de lápis labial no pescoço da camisa. Agora quetinha intenções de lançar-se afundo. Ao que parece tinha certo direito; talvez não era meudever, já que eu era novamente sua esposa?

Só existia um pequeno problema. Quando eu acordava pela noite, não era a Frank quem euprocurava.

—Jamie —sussurrei— Oh,Jamie.Minhas lágrimas crepitavam na luz matinal, enfeitando a penugem ruiva de Brianna como

pérolas e diamantes espalhados.Não foi um bom dia. Brianna tinha uma feia irritação devido aos cueiros. Tinha que a

levantar continuamente. Mamava e alvoroçava alternativamente; a intervalos vomitava,deixando manchas molhadas e pastosas em toda minha roupa. Antes das onze eu já tinhamudado três vezes a blusa.

O pesado sustento da mama me incomodava nas axilas e tinha os mamilos frios e rachados.No meio de minha laboriosa limpeza, a caldeira morreu com ruído sibilante sob as tábuas dosolo.

—Não, a semana que vem não pode ser —eu disse por telefone a oficina de reparos. Olheipara a janela, onde o frio nevoeiro de fevereiro ameaçava filtrar sob o parapeito paradevorar-nos—. Aqui dentro faz menos cinco graus e tenho uma menina de três meses. Estáouvindo chorar?

—Está bem, senhora —disse uma voz resignada ao outro lado da linha—. Irei esta tarde,entre as doze e as seis.

—Entre as doze e as seis? Não pode indicar uma hora mais precisa? Tenho que ir aomercado —protestei.

—A sua não é a única caldeira rompida da cidade, senhora —disse a voz com decisão.Apertando os dentes, liguei ao mercado que fazia entregas a domicílio e pedi o necessário

para preparar o jantar. Depois levantei à menina, que naquele momento tinha a cor de umaberingela e cheirava notoriamente mau.

—Tudo bem, tesouro.— Me apoiei no ombro para dar palmadinhas, mas os gritoscontinuavam. Não se podia criticar, pobrezinha; tinha o traseiro quase em carne viva.

Como Brianna não podia dormir mais de dez minutos seguidos, eu também não podia. Àsquatro, quando adormecemos, nos acordou com uma estrondosa chegada o homem que vinha

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consertar a caldeira: bateu a porta sem se incomodar em deixar sua enorme chave inglesa.Sustentando à menina com um braço, comecei a preparar o jantar com a outra mão livre,

acompanhada pelos gritos em minha orelha e os ruídos violentos que vinham do porão.—Não lhe prometo nada, senhora, mas por agora terá calefação. —O homem da caldeira

apareceu bruscamente, limpando uma mancha de gordura da testa enrugada.Meia hora depois, o frango jazia em sua pia, recheado e lambuzado, rodeado de alho

picado, raminhos de alecrim e cascas de limão. Depois de jogar um jorro de limão sobre apele untada de banha, pude colocá-lo no forno e iniciar a tarefa de me vestir. A cozinhaparecia ter tido um assalto, com os armários abertos e todas as superfícies horizontais cheiasde louças. Fechei violentamente um par de aparadores e, por fim, a porta da mesma cozinha,confiando que isso mantivesse fora do alcançe à senhora Hinchcliffe, se os bons modos nãobastavam.

Frank tinha comprado um vestido novo para Brianna. Era um bonito traje rosado, dei umaolhada duvidosa no encaixe do pescoço. Pareciam um pouco ásperas mas também delicadas.

—Bom, vamos provar —eu disse—. Papai quer que esteja muito bonita. Tratamos de nãovomitar, né?

Ela piscou com uns gorgorejos tentadores. Para dar-lhe gosto, baixei a cabeça e lhe fiz«Pufff» no umbigo, no qual se retorceu de prazer. Fizemos várias vezes antes de iniciar openoso trabalho de colocá-la no vestido rosado.

A não agradou a Brianna; começou a se queixar quando eu passei o vestido pela cabeça.Quando passei nos braços rechonchudos pelas mangas enchidas, ela jogou a cabeça paraatrás com um grito penetrante.

—O que foi? —perguntei sobressaltada. A essa altura já conhecia todos seus gritos e o quesignificavam,um pouco mais ou menos. Mas esse era novo; estava carregado de medo e dor.

— O que foi,querida?Agora gritava furiosamente, com lágrimas escorrendo pela rosto. Ao levantá-la vi uma

longa linha vermelha no interior do braço que ela agitava. No vestido tinha ficado um alfinetee eu acabei de abrir a pele ao subir-lhe com a manga.

—Oh, querida! Oh, me perdoa! Mamãe sente muito! —Banhada em lágrimas, retirei oalfinete, vacilando entre a fúria e a aflição. Levei Brianna ao dormitório e me encostei em umadas duas cama, a minha, para pôr rapidamente uma saia decente e uma blusa limpa.

O campanhia soou quando eu estava colocando os sapatos. Tinha um buraco no calcanhar,mas já não tinha tempo para solucioná-lo. Meti os pés nuns ajustados sapatos de lagarto e,pegando a Brianna, fui abrir.

Era Frank, tão carregado de pacotes que não podia usar a chave. Com uma só mão, aliviei-o da maior parte e amontoei tudo na mesa do hall.

—O jantar já está pronto, querida? Trouxe uma toalha de mesa e guardanapos novos;achei que o jogo velho estava um pouco surrado. E aqui está o vinho.

Pegou a garrafa com um sorriso; depois se inclinou para me olhar. Deixando de sorrir,olhou com reprovação o meu cabelo desalinhado e minha blusa, recém manchada por umvômito de leite.

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—Por Deus, Claire —disse—, não pode se arrumar um pouco? Afinal de contas, voce estáem casa o dia todo sem outra coisa pra fazer. Não podia tomar uns minutos pára… ?

—Não —disse em voz bem alta.Deixei em seus braços a Brianna, que choramingava outra vez, nervosa pelo cansaço.—Não —repeti.Peguei a garrafa de vinho de sua mão.—NÃO! —gritei batendo o chão com um pé.Balancei a garrafa com um gesto amplo. Agachou a cabeça, mas foi o batente da porta que

eu golpeei. Voaram salpicos purpúro de Beaujolais e lascas de vidro cintilaram à luz daentrada.

Atirei a garrafa quebrada entre as azaleias e saí correndo no meio do nevoeiro gelado, semcasaco. No extremo do caminho cruzei com os assombrados Hinchcliffe, que chegavam commeia hora de antecipação, provavelmente com a esperança de surpreender-me em algumadeficiência doméstica. Oxalá que desfrutassem o jantar.

Fui sem rumo pelo nevoeiro, com a calefação do carro a todo vapor, até que comecei aficar sem gasolina. Não queria voltar pra casa; ainda não. Uma dessas cafeterias que estãoabertas toda a noite? Então me dei conta de que era sexta-feira noite e de que era muito tarde.Ainda, tinha um lugar a ir. Virei para trás, para o subúrbio onde vivíamos, rumo à igreja deSan Finbar.

—San Finbar? —tinha dito Frank incrédulo—. Esse santo não existe. Não é possível.—Existe —eu disse presunção—. Foi um bispo irlandês do século XII.—Ah, irlandês —replicou depreciativo—. Isso se explica. O que não posso entender —

acrescentou tentando agir com tato— é… eh… bom, por que?—Por que, o que?—Por que isso da Adoração Perpétua? Nunca foi devota, não mais do que eu. Voce não vai

a missas nem nada disso. O pai Beggs me pergunta por voce todas as semanas.Sacudi a cabeça.—Não saberia explicar, Frank. Simplesmente…, é algo que preciso fazer. —Olhei-o incapaz

de me expressar adequadamente—. Ali há… paz.Ele abriu a boca para dizer algo mais, mas me deu as costas mexendo a cabeça.Tinha paz, sim. O estacionamento da igreja estava deserto, sem contar o carro do único

devoto que estaria de turno àquela hora. Ajoelhei-me por trás dele; era um homem corpulento,com uma capa de chuva amarelo. Pouco depois se levantou e, depois de fazer uma meditaçãoante o altar, dirigiu-se para a porta, saudando-me brevemente com a cabeça ao passar.

Fechei os olhos escutando o silêncio.Tudo o que tinha sucedido durante o dia passava pela minha mente, num grande

desencadeamento de idéias e sensações. Por fim, como costumava me ocorrer ali, deixei depensar.

—Oh, Senhor —sussurrei—, peço a tua misericórdia a alma de teu servidor James. —«E aminha», acrescentei em silêncio. «E a minha.»

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Permaneci sentada, sem me mover, até que ouvi os passos suaves do seguinte *adorador,que se aproximava pelo corredor. Vinham em cada hora, dia e noite. O Bendito Sacramentonão devia ficar só.

Enquanto me dirigia para os fundos da capela, vi uma silhueta na última fila, à sombra daestátua de Santo Antonio. Ao aproximar, moveu-se; depois se pôs em pé e saiu ao meuencontro.

—O que fazes aqui? —susurrei.Frank apontou com a cabeça ao novo adorador, que já estava ajoelhado, e me pegou pelo

cotovelo para me guiar para fora.Esperei que fechasse a porta da capela antes de girar para olhá-lo de frente.—O que significa isto? —exclamei, com raiva—. Por que veio me procurar?—Estava preocupado contigo. —Sinalizou o estacionamento vazio, onde seu grande Buick

guardava protetoramente junto ao meu pequeno Ford.— É perigoso que uma mulher ande só aesta hora por esta parte da cidade. Vim para te levar pra casa. Nada mais.

Não mencionou os Hinchcliffe nem falou do jantar. Meu aborrecimento cedeu um pouco.—Ah. E o que fizeste com Brianna?—Pedi a nossa vizinha, a velha senhora Munsing, que estivesse alerta caso chorasse. Mas

parecia dormir profundamente. Vêm, que faz frio aqui fora.—Nos veremos em casa —eu disse.Quando entrei para ver a Brianna, havia um silencio no quarto. Ainda dormia, mas notei

ela um pouco inquieta.—Começa a ter fome —sussurrei a Frank, que se tinha aproximado por trás e a olhava

afetuosamente acima de meu ombro—. Será melhor de que eu lhe dê o peito antes de medeitar, assim dormirá até mais tarde.

—Vou te trazer algo quente.Enquanto eu levantava o vulto cálido e sonolento, ele desapareceu pela porta da cozinha.Tinha tomado em um só peito, mas estava com sono. Por muito que eu falasse ou a

sacudisse suavemente, não acordou o suficiente para mamar do outro peito; assim que acoloquei no berço, dando palmadinhas nas costas até que emitisse um arroto satisfeito,seguido pela respiração pesada da satisfação absoluta.

—Esta noite não vai acordar, verdade? —Frank a cobriu com o cobertor decorado comcoelhinhos amarelos.

—Sim. —Sentei-me na cadeira, muito exausta, física e mentalmente, para levantar-me outravez. Frank se deteve ao meu lado e pôs a sua mãe leve em meu ombro.

—Assim que ele morreu? —perguntou com suavidade.«Te disse que sim», ia responder. Mas me interrompi e fechei a boca. Limitei a assentir com

a cabeça, mecionei lentamente com os olhos fixos no berço escuro em sua pequena ocupante.Ainda tinha o seio direito dolorosamente enchido de leite. Com um suspiro de resignação,

alonguei a mão para o extrator de leite, um artefato de borracha, feio e ridículo.Dispensei Frank com um aceno.

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—Anda, saia. Demorarei só uns minutos, mas tenho que…Em vez de me responder ou retirar-se, ele tirou o extrator da mão para deixá-lo na mesa.

Depois, inclinando a cabeça, fixou suavemente os lábios em meu mamilo. Lancei um gemido,sentindo a ardência quase dolorosa do leite que corria pelos pequenos condutos. Pus uma mãona nuca para apertá-lo um pouco mais a mim.

—Com mais força —sussurrei. Sua boca absorvia suavemente; não se parecia em nada àsimplacáveis e duras gengivas de um bebê.

Fechei os olhos e me deixei levar pela maré.A porta principal do velha casarão se abriu com um chio de gonzos enferrujados,

anunciando o regresso de Brianna Randall. Roger se levantou de imediato para sair do hall,atraído pelas vozes das moças.

—Meio quilo da melhor manteiga. Isso é o que me encarregaste de pedir e o fiz, mas existemanteiga pior ou melhor? —Brianna estava entregando uns pacotes a Fiona, rindo enquantofalava.

—Bom, se comprou para esse velho vigarista de Wicklow, esta será das piores, diga ele oque disser — interrompeu Fiona.— Ah, trouxe a canela, ótimo! Então vou fazer pãozinhos decanela. Quer ver como preparo?

—Sim, mas antes quero o jantar. Estou morta de fome! —Brianna se pôs de pé, farejandoesperançosa para a cozinha—. Que temos para o jantar? Assados?

—Assados! Por Deus, na primavera não se comem entranhas, Sassenach tonta! Comem-seno outono, quando se matam as ovelhas.

—Eu sou uma Sassenach? —Brianna parecia encantada com o termo.—Claro, boba. Mas me agrada, apesar de tudo.Fiona ria com a cabeça levantada para Brianna, que lhe passava quase trinta centímetros. A

miúda escocesa tinha dezenove anos; era bonita, simpática e um pouco gorda; ao seulado,Brianna parecia uma escultura medieval, por sua seriedade e seus ossos fortes. Com seunariz longo e reto e a cabeleira refulgindo como ouro avermelhado sob o balão de vidro quependia do teto, teria podido sair de um manuscrito alumiado, tão real como se tivesse suportadoum milênio sem mudanças.

Roger se deu conta de que Claire estava de pé ao seu lado. Olhava a sua filha com umaexpressão que se misturavam o amor, o orgulho e algo mais: recordações, talvez? Com umaleve surpresa, pensou que também Jamie Fraser teria tido, não só a atraente estatura e o cabeloviking que tinha legado a sua filha, senão também, provavelmente, a mesma presença física.

Era notável, pensou. Ela não fazia nem dizia nada para sair-se do normal; no entanto, erainegável que Brianna atraía à gente. Existia nela certo atrativo quase magnético, pelo que todosse sentiam impulsionados a aproximar-se ao fulgor de sua aura.

—Oi—eu disse sorrindo—. Teve sorte no escritório dos Clãs ou tens estado muito ocupadase fazendo de cozinheira?

—Cozinheira? —Os olhos de Brianna se rasgaram em azuis triângulos divertidos—.Cozinheira! Primeiro me chamam de Sassenach; agora, cozinheira. Como se chamam osescoceses quando querem ser amáveis?

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—Prrreciosa —respondeu ele, arrastando exageradamente os erres à maneira escocesa.As duas garotas riram.—Parece um terrier enfadado —comentou Claire—. Encontraste algo na biblioteca dos

Clãs, Bree?—Um montão de coisas —respondeu a moça remexendo nos xerox que tinha deixado na

mesa do hall.— Me arrumei para ler a maior parte enquanto tiravam as cópias. A maisinteressante é esta.

Tirou uma folha do feixe e a entregou a Roger. Era um extrato de um certo livro sobrelendas das Terras Altas, um artigo encabeçado «Salto do Tonel».

—Lendas? —estranhou-se Claire, olhando acima do ombro de Roger—. É isso o queprecisamos?

—Poderia ser —respondeu com ar distraído, pois estava lendo a página por cima . Pelo quese refere às Terras Altas de Escócia, a maior parte da história é oral, mais ou menos atémediados do século XIX. Isso significa que não se distinguia entre os relatos baseados empersonagens históricos e os contos sobre coisas míticas, como cavalos aquáticos, fantasmas efaçanhas do Povo Antigo. Com freqüência, os eruditos que tomavam notas dos relatos nãosabiam com certeza de que estavam falando; as vezes era uma combinação de mito e realidade;outras vezes se podia notar que o descrito era um fato histórico.

»Isto, por exemplo —passou o papel a Claire— parece um fato real. Explica como seoriginou o nome de certa formação rochosa das Terras Altas.

Claire colocou o cabelo atrás da orelha e inclinou a cabeça para ler, vesgueando à luzescassa do teto.

—«Salto do Tonel» —leu Claire—. «Esta estranha formação, situada a certa distância de umribeiro, denomina-se assim por um senhor jacobita e seu servente. O senhor, um dos poucosafortunados que conseguiu escapar do desastre de Culloden, regressou dificultosamente a suacasa, mas se viu obrigado a permanecer quase sete anos oculto numa gruta de suas terras,enquanto os ingleses percorriam as Terras Altas em procura dos fugitivos partidários de CarlosStuart. Os arrendatários do senhor guardaram lealmente o segredo de sua presença e lhelevavam comida e provisões ao seu esconderijo. Sempre tinham cuidado em referir-se aofugitivo chamando-o só de “O Gorropardo”.

Certo dia, um menino que levava um tonel de cerveja para o senhor, encontrou-se na trilhacom um grupo de dragões ingleses. Ao negar valorosamente a responder às perguntas dossoldados e a entregar seu ônus, o menino foi atacado por um dos dragões e deixou cair o tonel,que baixou quicando pela empinada colina, até a ribeiro abaixo.»

Levantou os olhos do papel, olhando a sua filha com uma sobrancelha levantada.—Por que isto? Sabemos…, ou acreditamos saber —corrigiu com uma irônica inclinação de

cabeça dirigida a Roger— que Jamie escapou de Culloden, mas não foi o único. O que fazpensar que este senhor pôde ter sido Jamie?

—O Gorropardo, imagino —respondeu Brianna, como se a pergunta a surpreendesse.—O que? —Roger a olhou intrigado—. O que pensa como Gorropardo?Ao modo de resposta, Brianna mexeu numa mecha de seu denso cabelo ruivo e o sacudiu

sob o nariz do historiador.

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—Gorropardo! —repetiu impaciente—. Um gorro de cor castanho claro, certo? Usavaconstantemente um gorro, porque podiam reconhecê-lo por seu cabelo ruivo. Não diz que osingleses o chamavam «Jamie o Ruivo»? Sabiam que era ruivo. Tinha que esconder a cabeça!

Roger a olhou fixamente, emudecido.—Pode estar certo —reconheceu Claire. O entusiasmo fazia que lhe brilhassem os olhos —

Era como o teu. Jamie tinha o cabelo igual ao teu,Bree. — Alongou uma mão para acariciarsuavemente a cabeleira de Brianna. A moça suavizou a expressão ao olhar a sua mãe.

—Sei —disse— Não deixava de pensar enquanto lia. Imaginava vê-lo, compreende?Interrompeu-se com um pigarreio como se tivesse engasgado com algo. Via-o ali, escondidonos urzais, com o sol refletindo-se em seu cabelo. — Voce disse que tinha sido um proscrito.Me ocorreu…, Me ocorreu que devia saber muito bem como esconder-se. Se o procuravampara matá-lo —concluiu com suavidade.

—Correto. —Roger falou com energia para dispersar a sombra que nublava os olhos deBrianna—. Fez um ótimo trabalho de dedução. Mas talvez possamos comprová-lo setrabalharmos um pouco mais. Se localizarmos no mapa o Salto do Tonel…

—Pensa que sou estúpida? —replicou Brianna desdenhosa— Já pensei. —A sombra tinhadesaparecido, substituída por uma expressão ufana—. Por isso voltei tão tarde; fiz que oempregado tirasse todos os mapas das Terras Altas que tinham ali.

Retirou outra folha fotocopiada.—Vê? É tão pequena que não aparece na maioria dos mapas, mas neste figurava. Justo aqui;

aqui está a aldeia de Broch Mordha, que segundo mamãe está próximo de Lallybroch. E aqui…—moveu o dedo médio um centímetro para assinalar uma linha de letras microscópicas.— Vê?Voltou a sua fazenda, Lallybroch, e ali se escondeu.

—Não tenho uma lupa a mão —disse Roger dando as costas— estou disposto a crer que aífoi «Salto do Tonel», se me dá tua palavra. —Olhou a Brianna com um amplo sorriso—.Minhas felicitações. Creio que voce o encontrou… Até aqui, ao menos.

Brianna sorriu, com um brilho suspeito nos olhos.—Sim —disse suavemente. E tocou as duas folhas de papel— Meu pai.Claire lhe estreitou a mão.—Você tem o cabelo de teu pai, alegra-me ver que tens o cérebro de tua mãe —disse

sorrindo—. Vamos celebrar tua descoberta com o jantar de Fiona.—Bom trabalho —disse Roger a Brianna, enquanto seguiam a Claire para o refeitório.

Apoiou uma mão na cintura— Pode estar muito orgulhosa.—Obrigado —replicou ela com um breve sorriso. Mas a expressão pensativa voltou quase

de imediato.—O que foi? —Roger se deteve no hall.—Em realidade nada. —Ela se voltou a olhá-lo, com uma ruga visível entre as sobrancelhas

ruivas.— Só que… estava pensando, tratando de imaginar. Como acha que foi aquilo para ele?Passar sete anos numa gruta…

Movido por um impulso, Roger se inclinou para depositar um leve beijo entre suassobrancelhas.

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—Não sei, querida —disse— Mas talvez possamos averiguar.

SEGUNDA PARTELallybrochCAPÍTULO 4O GorropardoLallybrochNovembro de 1752

Uma vez ao mês, quando algum dos meninos levava a mensagem de que não tinha perigo,ele descia a casa para se barbear. Sempre pela noite, caminhando com os passos suaves de umaraposa na escuridão.

Filtrava-se como uma sombra pela porta da cozinha, onde lhe recebiam o sorriso de Ian ou obeijo de sua irmã, então se iniciava a transformação. A cumbuca de água quente e a navalharecém afiada já estavam o esperando na mesa, com o sabão. De vez em quando era sabão deverdade, o seu primo Jared tinha enviado um pouco da França; com mais freqüência, o seboirritava os olhos pela força da água.

Sentia iniciar uma mudança com o primeiro aroma da cozinha, tão forte e rico depois doscheiros do lago, o páramo e a lenha, atenuados pelo vento. Mas só ao concluir com o rito dobarbeado é que se sentia completamente humano mais uma vez.

Havia aprendido a não falar antes de se barbear; as palavras não surgiam facilmente depoisde um mês de solidão. Tinha algo que pedir e escutar: sobre as patrulhas inglesas no distrito, apolítica, as detenções e juízos em Londres e Edimburgo… Mas isso podia esperar. Era melhorfalar com Ian sobre a propriedade e com Jenny sobre os meninos. Se parecia não ter perigo,faziam descer os meninos para que saudassem o seu tio com abraços sonolentos e beijosúmidos, antes de voltar cambaleando em suas camas.

—Cedo será um homem —tinha sido seu primeiro tema de conversa em setembro,sinalizando com a cabeça ao filho maior de Jenny, o que levava seu nome. O menino, que tinhasete anos, permanecia sentado à mesa, algo coibido e muito consciente da dignidade de ser,pelo momento, o homem da casa.

—Sim, como que necessito outro desses seres para me preocupar —replicou azedamente suairmã. Mas tocou o seu filho no ombro ao passar com um orgulho que desmentia suas palavras.

—Não teve notícias de Ian? —Seu cunhado tinha sido preso pela quarta vez, três semanasantes, e levado a Inverness sob a suspeita de se simpatizar com os jacobitas.

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Jenny sacudiu a cabeça, colocando ante ele um prato coberto.—Não há por que de se preocupar—disse, servindo-lhe docinho de perdiz. Sua voz era

serena mas se acentuou ama pequena ruga vertical entre suas sobrancelhas.— Mandei Ferguspara que lhes mostrem a escritura de transferência e a constância de que Ian foi descadastradopor seu regimento. O enviarão para casa quando entenderem que não é o senhor de Lallybroche que nada conseguirão acusando-o. —Depois de lançar um olhar ao seu filho, alongou a mãopara a jarra de cerveja—. Para eles será difícil apresentar uma acusação de traição nummenino.

Sua voz era lúgubre, mas encerrava com um acento de satisfação ao pensar na confusão dacorte inglesa. A escritura de transferência, salpicada da chuva, demonstrava que o título deLallybroch tinha passado do James adulto ao menor; cada vez que aparecia nos tribunais,burlava as tentativas da Coroa de apoderar-se da fazenda como propriedade de um traidorjacobita.

Os ingleses tinham incendiado três plantações além do campo alto. Arrancaram de seus laresa Hugh Kirby e A Geoff Murray para fuzilá-los em suas próprias casas, sem perguntas nemacusações formais. O jovem Joe Fraser tinha sido advertido por sua esposa, que viu quandochegaram os ingleses, e passou três semanas vivendo com Jamie na gruta, até que os soldadosestivessem bem longe do distrito…, levando assim a Ian.

Em outubro falou com os meninos maiores: Fergus, o francesinho que tinham o tirado deum bordel de Paris, e Rabbie MacNab, o filho da empregada e grande amigo de Fergus.

Enquanto se barbeava tinha visto, pelo canto do olho, a fascinada inveja de Rabbie MacNab,Fergus e o pequeno Jamie, que o observavam com atenção, pouco boquiabertos.

—Nunca viram um homem se barbeando? —perguntou levantando uma sobrancelha.Rabbie e Fergus trocaram olhares; a resposta correu por conta do pequeno Jamie,

proprietário titular da propriedade.—Oh, bom… sim, tio —disse ruborizando-se—. Mas… isto é… —gaguejou um pouco,

ruborizou-se ainda mais—. Agora papai não está… e ainda quando estava em casa não viamossempre se barbeando… e além disso, tem tanto cabelo na cara, tio, depois de um mês… É quenos alegramos muito de te ver outra vez e…

Subitamente, Jamie se deu conta de que, para os pequenos, ele devia parecer umpersonagem de histórias. Viver só numa gruta, sair a caçar na escuridão, descer na bruma danoite, sujo, barbudo e com o cabelo revirado… A essa idade, ser forajido e viver escondido nomorro, numa gruta úmida, podia parecer uma aventura fascinante.

Podiam entender o medo, até certo ponto. O medo à captura, à morte. Mas não o medo àsolidão, ao próprio temperamento, à loucura.

—Bom, sim —disse, voltando-se com ar indiferente para o espelho—. O homem nasce parasofrer e para se barbear. Uma das pragas de Adão.

—De Adão? —Fergus fez cara de confuso enquanto os outros fingiam ter alguma idéia doque Jamie dizia. De Fergus ninguém esperava que soubesse tudo, porque era francês.

—Ah, sim. —Jamie meteu o lábio superior sob os dentes para raspar delicadamenteembaixo do nariz—. No princípio, quando Deus criou o homem, o queixo de Adão era tãolimpinho como a de Eva. E os dois tinham o corpo tão suave como um recém nascido —

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acrescentou, vendo que seu sobrinho dava uma olhada em Rabbie. Ele ainda não tinha barba,mas o tênue focinho do lábio superior revelava crescimentos em outras partes.

—Mas quando o anjo da espada flamegou os expulsou do Edén, nem tinham bem cruzado asportas do jardim, os pelos começaram a crescer e a arder no queixo de Adão. E desde então ohomem está condenado a barbear-se. —Terminou seu próprio queixo com um garbosomovimento final e se inclinou teatralmente ante seu público.

—Mas e o outro pêlo? Por que? —quis saber Rabbie—. Aí embaixo não se barbeou!O pequeno Jamie soltou uma risada aguda, outra vez corado.—Ainda bem —observou seu tocaio—. Faria falta uma mão muito firme. Isso sim: não teria

necessidade de espelho —acrescentou entre um coro de risos.—E as senhoras? —perguntou Fergus. Ao dizer «senhoras» se quebrou a voz num graznido

de rã que fez rir ainda mais aos outros dois—. As senhoras também têm pelo ali e não sebarbeiam…, geralmente, ao menos —adicionou pensando, obviamente, em algumas das coisasque tinha visto no bordel.

Jamie ouviu os passos de sua irmã no corredor, que se aproximava com o passo lento ebambaleante da gravidez avançada. Trazia a bandeja do jantar sobre seu ventre inchado.

—Silêncio! —ordenou aos meninos, que interromperam bruscamente os risos. E se adiantoude pressa com a bandeja para pô-la na mesa.

Era um prato apetitoso, com toucinho e carne de cabra; viu que a proeminente pomo deAdão subia e baixava na garganta de Fergus ao sentir o aroma. Sabia que eles guardavam amelhor comida para ele; era óbvio, era o mais abatido das caras que rodeavam a mesa. Cadavez que ele descia trazia toda a carne que conseguia conseguir: coelhos ou galos silvestrescaçados com armadilha e alguns ovos de maçarico; mas nunca era suficiente para aquela casa,cuja hospitalidade devia cobrir as necessidades, não só dos seus e dos criados, como tambémdas famílias de Kirby e Murray, ambos assassinados. Ao menos até a primavera, as viúvas e osórfãos de seus arrendatários deviam permanecer ali e a ele lhe correspondia fazer o possívelpor alimentá-los.

—Senta ao meu lado —disse a Jenny pegando pelo braço para trazê-la suavemente até obanco posto junto a ele. Com grande firmeza, cortou um bom pedaço de carne e pôs o prato nafrente dela.

—Mas isso é tudo para voce! —protestou ela—. Eu já comi.—Não o suficiente. Precisas mais…, pelo bebê —disse inspirado. Se não comia por si

mesma, o faria pela criança.Sua irmã vacilou um momento e, sorrindo-lhe, pegou a colher e começou a comer.Corria o mês de novembro; o frio se filtrava pela camisa delgada e as calças de montar que

levava postos. Atencioso ao rasto, mal o notou. O céu estava coberto com pequenas nuvens,mas a lua cheia dava abundante luz.

Não chovia, graças a Deus; com o ruído do água ao cair era impossível ouvir nada, e oaroma penetrante das plantas molhadas disfarçava o cheiro dos animais. Seu olfato se tinhavoltado quase penosamente agudo nos longos meses passados ao ar livre; as vezes, quandoentrava na casa, os cheiros pareciam capazes de derrubá-lo.

Girou com toda a lentidão possível para o lugar onde seus ouvidos lhe tinham indicado onde

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estava o veado. Tinha o arco na mão e uma flecha pronta. Poderia disparar uma só vez, talvez,quando o animal fugisse.

Ali! O coração lhe subiu à garganta ao ver os cornos, agudos e negros acima das aliagas.Firmou o corpo, respirou fundo e deu um passo adiante.

Foi um disparo limpo, felizmente se fincou justo por trás da paleta. Dificilmente teria tidoforças para perseguir a um veado adulto ferido. Tinha caído num lugar livre, depois de umamata de aliagas, com as pernas tesas, na forma estranhamente indefesa em que fazem osungulados moribundos.

Jamie tirou a faca do cinto e se ajoelhou junto ao veado, dizendo apressadamente a oraçãode Gralloch que lhe tinha ensinado o velho John Murray, o pai de Ian. Com a segurança quelhe dava a prática, levantou o focinho pegajoso com uma mão e, com a outra, cortou o pescoçodo animal. Depois, o brusco esforço de mover e estripar a rês, o longo talho onde semisturavam força e delicadeza para abrir o couro entre as patas sem penetrar no saco queencerrava as entranhas. Meteu as mãos na rês, profanando a intimidade quente e úmida, e fezoutro esforço para retirar o saco viscoso, que brilhava entre suas mãos ao luar. Um talho acima,outro abaixo. E a massa ficou livre, na transformação de magia negra que convertia a um veadoem carne.

Era um animal pequeno, ainda que sua galhada já tinha pontas. Com um pouco de sortepoderia carregá-lo sozinho, em vez de deixá-lo a graça das raposas e dos texugos até quepudesse trazer ajuda para transportá-lo. Meteu um ombro sob uma das patas e se incorporoucom lentidão,grunhindo pelo esforço, até acomodar firmemente o peso nas costas.

Sentia-se um pouco mareado. Cada vez lhe afetava mais a desorientação, a fragmentação desi mesmo entre o dia e a noite. Durante o dia era só uma criatura que escapava de sua úmidaimobilidade mediante uma disciplinada e teimosa retirada pelas vias do pensamento e ameditação, procurando refúgio nas páginas dos livros. Mas ao sair a lua, sucumbindo deimediato às sensações, emergia, como uma besta de sua guarida, ao ar fresco para correr pelascolinas escuras e caçar sob as estrelas, impulsionado pela noite, ébrio de sangue e influxolunar.

Só quando surgiram à vista as luzes de Lallybroch deixou, por fim, que o manto dehumanidade caísse sobre ele, que mente e corpo voltassem a unir-se, enquanto se preparavapara saudar a sua família.

CAPÍTULO 5

NOS DÃO UM MENINO

Três semanas depois ainda não tinhamos notícias de Ian. Fergus levava vários dias sem ir àgruta, pelo que Jamie se consumia de preocupação para saber como ia tudo na casa. Os veadosjá tinham desaparecido, com tantas bocas que alimentaram, e a horta rendia muito pouconaquela época do ano.

Sua preocupação era tanta que se arriscou fazendo uma visita inesperada; depois de revisar

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suas armadilhas, desceu das colinas justo antes do crepúsculo. Mas, teve a prudência de pôr ogorro tecido com uma tosca lã parda que lhe protegeria o cabelo de qualquer raio revelador dosol poente. Sua estatura, por si só, podia provocar suspeitas, mas não dar certeza, e tinha plenaconfiança na força de suas pernas para escapar se tivesse a má sorte de encontrar-se com umapatrulha inglesa. As lebres dos urzais não podiam medir forças com Jamie Fraser, estavaprecavido.

Ao aproximar-se notou que a casa estava estranhamente silenciosa. Faltava o alvoroçohabitual dos meninos: os cinco de Jenny e os seis dos arrendatários, não mencionando a Ferguse a Rabbie MacNab, que deixaram a muito tempo de se perseguirem pelos estábulos, gritandocomo possuídos.

Deteve-se na porta da cozinha, sentindo a casa deserta ao seu arredor. Encontrava-se no hall,com a dispensa em um lado, o tanque ao outro e a parte principal da cozinha bem na frente.Permaneceu imóvel, aguçando todos os sentidos, escutando enquanto inalava os abrumadoresaromas da casa. Tinha alguém ali: um leve rasgo, seguido por um tinido suave e regular, surgiaatravés da porta recoberta de pano que retinha o calor na cozinha, impedindo que se filtrassepara a gelada dispensa.

Reconfortado pelo barulho doméstico, abriu a porta com cautela, mas sem medo. Jenny, só egrávida, estava de pé na frente da mesa, batendo algo numa cumbuca amarela.

—O que fazes aqui? Onde está a senhora Coker?A irmã soltou a colher com um grito sobressaltado.—Jamie! —Apertou uma mão contra o peito e fechou os olhos, pálida.—Por Deus! Quase me mata de susto! —Abriu os olhos, de cor azul escuro como os dele, e

lhe fincou uma olhada penetrante—O que está fazendo aqui, Virgem Santa? Não te esperavadentro de uma semana.

—Faz dias que Fergus não sobe à colina; estava preocupado —disse simplesmente.—Voce é um tesouro, Jamie. —Seu rosto estava recobrando a cor. Com um sorriso, se

aproximou ao seu irmão para abraçá-lo.—Onde estão todos? —perguntou, soltando-a na má vontade.—Bom, a senhora Coker morreu —respondeu acentuando a leve ruga entre suas

sobrancelhas.—É? —Jamie se benzeu suavemente— Lamento. —A senhora Coker tinha sido criada

primeiro e caseira depois, desde o casamento de seus pais, mais de quarenta anos atrás—Quando?

—Ontem pela manhã. Não foi inesperado, pobrezinha, e se foi aprazivelmente. Em suaprópria cama, como queria, com o pai McMurtry orando junto a ela.

Jamie deu uma olhada reflexiva para a porta que levava para as habitações do serviço.—Ainda está ali?A irmã sacudiu a cabeça.—Não. Eu disse ao seu filho que deviam velá-la aqui, na casa, mas os Coker pensaram que,

estando as coisas como estão —abrangeu com uma careta a ausência de Ian, o espreito dosingleses, os arrendatários refugiados, a falta de comida e a presença de Jamie na gruta—, era

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melhor fazê-lo em Broch Mordha, em casa de sua irmã. Foram todos ali. Eu disse que nãoestava em condições de acompanhá-los —deu um sorriso amarelo.— Mas em realidadeprecisava umas horas de paz e silêncio.

—E aqui venho eu, a interromper tua paz —disse Jamie melancólico.— Queres que eu vá?—Não, cabeça de vento —disse a irmã afavelmente.— Senta enquanto sigo preparando o

jantar.—Que tem para comer? —perguntou olfateando com ar esperançoso.—Depende do que tenhas trazido —replicou Jenny. Moveu-se pesadamente pela cozinha,

retirando coisas dos armários, e se deteve a mexer o grande caldeiro que pendia sobre o fogo,do que surgia um vapor tênue.

—Se trouxe carne, a comeremos. Se não, será cevada fervida e carne em conserva.—Ainda bem que tive sorte —disse ele. Virou sua bolsa e deixou cair os três coelhos na

mesa, um vulto inerme de pelagem cinza e orelhas caídas— E amoras —disse virando oconteúdo de seu gorro pardo, manchado por dentro por uma substância vermelha.

A Jenny iluminou os olhos.—Claro que posso —respondeu sua irmã, distraída, enquanto folheava o volume— Mas

quando falta a metade das coisas necessárias, as vezes encontro aqui algo que eu posso usar.Normalmente prepararia o molho com vinho, mas só tem um tonel no «buraco da cura» e nãoquero tocá-lo. Poderia fazer-nos falta.

Ele não perguntou para que. Um tonel de vinho podia engraxar as engrenagens para queliberassem a Ian ou, ao menos, para conseguir notícias suas. Distraído, inclinou-se para ocaldeiro para submergir a faca no líquido fervente; depois o secou.

—Por que fez isso, Jamie? —Jenny o estava olhando.—Ah —disse ele aparentando indiferença enquanto pegava um dos animais—. Claire me

ensinou a lavar as facas em água fervendo antes de tocar os alimentos com eles.Sem ver, sentiu que ela levantara as sobrancelhas. Só uma vez lhe tinha perguntado por

Claire, quando voltou de Culloden, um pouco consciente e quase morto de febre. «Se foi»,tinha sido sua resposta, afastando o rosto. «Não volte a mencionar o nome dela.» Leal comosempre, Jenny não fazia e ele também não. Ignorava por que acabava de pronunciar seu nome,a não ser fora de seus sonhos.

Teria podido jurar que as vezes acordava com o cheiro dela no corpo, almiscarado e intenso,sempre misturado com um fresco aroma a ervas verdes. Mais de uma vez tinha ejaculado suasemente enquanto sonhava, coisa que o deixava um pouco envergonhado e intranqüilo. Paradistração de ambos sinalizou o ventre de Jenny.

—Quanto falta? —perguntou carrancudo— Voce parece uma gaita: um toque e puf!—Sim? Ah se fosse tão fácil. —Arqueou as costas, esfregando a cintura, e seu ventre se

projetou de uma maneira alarmante. Ele se apertou contra a parede para dar-lhe espaço.— Seráem qualquer momento, suponho. Nunca se sabe com exatidão.

Pegou uma xícara para medir a farinha e notou que na bolsa tinha muito pouca.—Quando começar, manda-me chamar à gruta —disse subitamente.— Vou descer, com

ingleses ou sem eles.

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Jenny deixou de mexer para olhá-lo.—Para que?—Bom, Ian não está aqui —apontou Jamie pegando um dos coelhos esfolados. Com a

destreza da prática, desarticulou uma coxa e, com três rápidos golpes, a carne pálida ficouaplanada, pronta para o docinho.

—De pouco me serviria tê-lo aqui —sussurou ela— Já ocupou de sua parte faz nove meses.—Olhando a seu irmão com o nariz franzido, pegou o prato com a banha.

Jamie não pôde resistir a tentação de apoiar levemente a mão naquela curva monstruosa paraperceber os poderosos pontapés do habitante, impaciente por abandonar seu encerro.

—Me manda Fergus quando chegar o momento —repetiu.Ela o olhou com exasperação e lhe afastou a mão com um golpe de colher.—Não acabei de dizer que não preciso? Por Deus, homem, muitas preocupações eu já tenho,

com a casa cheia de gente, mal o indispensável para alimentá-la, Ian preso em Inverness e osingleses rondando as janelas cada vez que me dou uma volta. Devo me preocupar também como risco de te pegarem?

—Por mim não se preocupe. Sei me cuidar —assegurou sem olhá-la.—Bom, se sabe se cuidar, fique na colina. Já tive seis filhos. Não vê que posso me arranjar?—Com voce não se pode discutir —acusou.—Não —replicou ela de imediato.Assim ficando por lá.—Verei.—Voce deve de ser o tonto mais teimoso da Escócia.Pela rosto de seu irmão se estendeu um enorme sorriso.—Pode se dizer que sim —disse dando-lhe umas palmadinhas no ventre enorme.— E pode

se dizer que não. Mas vou vir. Quando chegar o momento, me envia Fergus.Três dias depois, ao amanhecer, Fergus subiu com custo até a gruta, ofegando e perdendo a

trilha na escuridão. Fez tanto ruído entre as aliagas que Jamie o ouviu muito antes de quechegasse.

—Milord… —começou sem alento ao aparecer no extremo da trilha.Mas Jamie já o tinha deixado para trás e descia apressadamente para a casa, jogando-se o

manto pelos ombros.—Mas milord… —ouviu-se a voz do garoto depois dele, ofegante e assustado—. Os

soldados…—Que soldados? —Jamie se deteve bruscamente.—Dragões ingleses, Milord. Milady me manda dizer que não abandone a gruta sob nenhum

motivo. Um dos homens os viu ontem, acampados cerca de Dunmaglas.—Malditos sejam.—Sim, milord. —Fergus se sentou numa pedra para abanar-se, seu estreito torso palpitava

aceleradamente.Jamie vacilava. Todos seus instintos se negavam a voltar à gruta.

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—Hum… —murmurou olhando a Fergus. Nele se percebia certa suspeita. Por que sua irmãlhe mandava Fergus a uma hora tão estranha? A resposta era óbvia: temia não estar emcondições de enviar-lhe a mensagem à noite seguinte.

—Como está minha irmã? —perguntou.—Oh, bem, milord, muito bem! —O caloroso tom da afirmação confirmou as suspeitas de

Jamie.—Está a ponto de ter o menino, não?—Não, milord, claro que não!Jamie firmou uma mão no ombro de Fergus. Os ossos pareciam pequenos e frágeis sob seus

dedos; recordou, incômodo, os coelhos que tinha picado para Jenny.—Me diz a vedade —exigiu!—É verdade, milord!A mão apertou inexoravelmente.—Ela ordenou que não me dissesses?A proibição de Jenny devia ter sido literal, pois Fergus respondeu a essa pergunta com

evidente alívio.—Sim, milord!—Ah. —Jamie afrouxou a mão e o garoto se levantou de um pulo. Enquanto ajeitava o

ombro dormente, começou a falar com volubilidade.—Disse que eu não devia dizer-lhe nada, salvo o dos soldados, milord, e que se fizesse me

cortaria os testículo para ferver como nabos.Jamie não pôde reprimir um sorriso.—Por falta de comida como estamos —assegurou ao seu protegido—, não é para tanto. —

Deu uma olhada ao horizonte, onde aparecia uma fina linha rosada, depois da silhueta negrados pinheiros.— Vem, vamos. Em meia hora terá amanhecido.

No amanhecer não havia rastos do silêncio. Quem tinha os olhos na cara podia ver que emLallybroch estava acontecendo algo anormal. O caldeiro da colagem tinha ficado no pátio, como fogo apagado, cheio de água fria e roupa molhada. Uns gemidos lamuriante, como seestivessem estrangulando a alguém, indicavam que a única vaca restante precisava comurgência que a ordenhassem. Os balidos irritantes, no beiral das cabras, revelaram-lhe que seusocupantes teriam agradado receber um atendimento similar.

Quando entrou no pátio, três frangos passaram correndo num plumoso alvoroço,perseguidos por Jehu, o cahorro. Jamie lhe acertou com a bota sob as costelas, fazendo-o voarpelo ar.

Os meninos, os moços maiores, Mary MacNab e Sukie, a outra criada, estavam reunidos nasala sob a vigilante olhada da senhora Kirby, uma viúva severa, que estava lendo a Bíblia.

Em cima ouviu-se um gritos que pareceu prolongar-se indefinidamente. A senhora Kirby seinterrompeu um momento para permitir que todos o percebessem, antes de continuar com aleitura. Seus olhos, pálidos e úmidos como ostras cruas, desviaram-se fugazmente para o teto;depois voltaram a posar, satisfeitos, na fileira de caras tensas.

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Kitty estourou em histéricos soluços e sepultou a cara no ombro de sua irmã. Maggie Ellenestava vermelha; seu irmão maior, mortalmente pálido depois de ouvir o grito.

—Senhora Kirby —disse Jamie— Calle, por favor.A senhora Kirby, afogando uma exclamação, deixou cair a Bíblia, que aterrizou com um

golpe surdo. Jamie se inclinou para recolhê-la; depois mostrou os dentes à mulher. Pelo visto,seu gesto não teve sucesso como sorriso mas algum efeito produziu, pois a mulher, palideceu,levou uma mão ao amplo seio.

—Creio que vocês seriam mais úteis na cozinha —disse ele. Seu aceno de cabeça enviou aSukie para ali como se fosse uma folha no vento. A senhora Kirby se levantou para seguí-la, commuita mais dignidade, mas sem vacilar.

Arroubado pela pequena vitória, Jamie se desfez em poucos instantes dos outros ocupantes dasala. A viúva Murray e suas filhas saíram para lavar roupa e os meninos menores, para trancafiaros frangos, sob a supervisão de Mary MacNab. Os meninos maiores foram, com alívio, a ocupar-se do gado.

Uma vez deserta a casa, vacilou um momento. Sentia que devia ficar na casa montandoguarda, ainda que tinha aguda consciência de que não podia fazer nada para ajudar, tal comoJenny tinha dito. No pátio tinha visto uma mula desconhecida; provavelmente, a parteira estavalá em cima, com Jenny.

Incapaz de permanecer sentado, vagou inquieto pela sala, com a Bíblia nas mãos, tocandocoisas. Um gemido prolongado no andar superior lhe fez olhar involuntariamente o LivroSagrado. Não tinha muitas vontades de fazê-lo, mas deixou que o livro se abrisse pela primeirapágina, onde se registravam os casamentos, nascimentos e mortes da família.

As anotações começavam com o casamento de seus pais, Brian Fraser e Ellen MacKenzie. Osnomes e a data estavam escritos com a letra redonda de sua mãe; abaixo, uma breve anotaçãocom o garrancho de seu pai, mais firmes e negros: «Casados por amor», dizia; a observação,tendo em conta o registo seguinte, que datava o nascimento de Willie dois meses depois.

Como sempre, Jamie sorriu ao ver aquelas palavras, levantando os olhos para o retrato: elemesmo, aos dois anos, com Willie e Bran, o enorme cachorro. Era tudo que corte, provavelmenteobra de uma faca, para descarregar a frustração de seu dono.

—E se não tivesse morto? —disse suavemente ao quadro.Ao fechar o livro viu a última anotação. Caitlin Maisri Murray, nascida no dia 3 de dezembro

de 1749, falecida no dia 3 de dezembro de 1749. Se os soldados ingleses não tivessem chegadono dia 2 de dezembro, teria se adiantado o parto de Jenny? Se tivessem tido suficiente comida, seela não tivesse sido pele, ossos e o vulto do ventre,teria evitado?

Em cima chegou outro grito. Num espasmo de medo, Jamie apertou o livro entre as mãos.—Ora por nós, irmão —sussurrou. Depois de se benzer, deixou a Bíblia e foi ao celeiro, para

ajudar com os animais.Ali tinha pouco o que fazer; Rabbie e Fergus eram suficientes para atender os poucos animais

restantes. O jovem Jamie, com seus dez anos, estava já em idade de prestar bastante ajuda.Procurando algo que fazer, Jamie pegou uma braçada de feno para levá-la à mula da parteira.Quando acabar o feno teria que matar à vaca; a diferença das cabras, a ela não lhe bastava opasto de inverno das colinas, mesmo ainda com as ervas que os meninos traziam. Com sorte, os

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animais durariam até a primavera.Quando entrou no celeiro, Fergus levantou os olhos.—Ela é uma boa parteira, de boa reputação? —Perguntou disparando agressivamente a

mandíbula— Não creio que a Madame deva estar em mãos de uma camponesa!—Como quer que eu saiba? —replicou Jamie irritado— Talvez eu devia me ocupar de

contratar parteiras? —A senhora Martin, a velha parteira que tinha assistido o nascimento atodos os Murray anteriores, tinha morrido durante a fome do ano seguinte a Culloden, comotantos outros. A senhora Innes, a nova parteira, era bem mais jovem; era de esperar que játivesse experiência suficiente para saber o que fazia.

Rabbie também parecia inclinado a participar da discussão. Olhou Fergus com gestocenhoso.

—O que significa isso de «camponesa»? Voce também é camponês, não se deu conta disto.Fergus o olhou alçando o nariz com muita dignidade.—Que eu seja camponês ou não, não tem importância —disse alterado.— Eu não sou

parteira.—Não, és um fiddle-ma-fyke! —Rabbie deu a seu amigo um forte empurrão.Com uma exclamação de surpresa, Fergus caiu pesadamente para trás. Levantou-se

rapidamente para se jogar contra Rabbie, que ria, sentado na borda do presépio, mas Jamie opegou pelo pescoço da camisa.

—Nada disso —ordenou—. Não quero que destrua o pouco feno que nos resta. — PôsFergus em pé e, para distraí-lo, perguntou:— O Que sabes sobre parteiras, afinal de contas?

—Muito, milord. —Fergus sacudiu a roupa com gestos elegantes— Enquanto vivia em casade Madame Elise, muitas das damas foram postas no leito.

—Não duvido —interpôs Jamie com secura—. Para dar à luz, queres dizer?—Para dar à luz, claro. Caramba, eu mesmo nasci ali!—Evidentemente. — Jamie contraiu a boca— Bom, confio que tenhas de fato cuidadosas

observações e que possa dizer como se devem fazer as coisas.Fergus ignorou o sarcasmo.—É verdade —disse despreocupado—. Naturalmente, a parteira deve pôr uma faca sob a

cama, para cortar a dor. E um ovo consagrado com água bendita aos pés da cama para que amulher possa expulsar o menino com facilidade. Depois do nascimento —prosseguiu perdendoas dúvidas no entusiasmo de sua dissertação—, a parteira deve preparar um chá com a placentae dar para a mãe beber, para que o leite flua em abundância.

Rabbie teve uma ânsia.—Com a placenta? —exclamou incrédulo— Deus meu!Jamie também sentia um pouco enojado com aquela exposição de conhecimentos médicos

modernos.—Bom, sim —disse a Rabbie tratando de fingir desembaraço— Eles comem rãs, sabia? E

caracóis. Suponho que comer placenta não é tão estranho.Para seus botões ele mesmo se perguntou se eles demoraram muito em comer rãs e caracóis,

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mas preferiu reservar o comentário.Rabbie fingiu mais algumas ânsias.—Cristo, quem quer ser francês!Fergus girou em volta e disparou um rápido murro, que lhe atingiu na boca do estômago.

Rabbie se dobrou sem fazer ruído, com os olhos dilatados numa expressão de intensa surpresa.Estava tão ridículo que para Jamie custou não rir, em exceto também a sua preocupação porJenny e a irritação que lhe provocavam as rixas dos moços.

—Por que não deixa de…! —começou.Interrompeu um grito do pequeno Jamie, que até então tinha guardado silêncio, fascinado

pela conversa.—O que? —Jamie girou sobre seus calcanhares e levou automaticamente a mão à pistola

que levava quando abandonava a gruta. Mas não tinha nenhuma patrulha inglesa no pátio doestábulo—Que diabo acontece?

Então ele viu. Três pequenas manchas negras que voavam sobre as matas mortas nosemeado das batatas.

—Corvos —disse, sentindo arrepiar o cabelo da nuca. Que aquelas aves da guerra e amatança chegassem numa casa durante um nascimento era o pior dos presságios. E umadaquelas sujas criaturas estavam posando no telhado, ante seus próprios olhos.

Sem pensar direito, sacou a pistola do cinto e apoiou o cano no antebraço para apontar comcuidado.

A arma sacudiu e o corvo estourou numa nuvem de plumas negras. Seus dois colegas sejogaram ao ar,afastando-se com loucos agitos; seus ásperos gritos se perderam rapidamente noar de inverno.

—Mon Dieu! —exclamou Fergus— C’est bem ça!—Sim, bom disparo, senhor. —Rabbie, ainda impressionado, tinha-se reposto a tempo para

ver o tiro. Agora apontava a casa com o queixo— Olha, senhor. Não é a parteira?Era a senhora Innes, sim, que aparecia com a cabeça pela janela do andar superior, com o

loiro cabelo solto, tratando de olhar para o patío. Talvez o ruído do disparo lhe fez temer algumproblema. Jamie saiu do pátio e agitou a mão para tranqüilizá-la.

—Tudo está bem —gritou— Foi só um acidente. —Não queria mencionar os corvos para oacaso da mulher comentar a Jenny.

—Sobe! —gritou ela sem dar muita atenção— O bebê nasceu e sua irmã quer ve-lo!Jenny abriu um olho, azul e levemente rasgado, como o de Jamie.—Voce acabou vindo,né?—Pensei que alguém teria que estar aqui, ainda que fosse para orar por voce —respondeu

resmungão.Ela fechou o olho e um leve sorriso lhe curvou os lábios. Ela parecia muito com uma pintura

que ele tinha visto em França.—Voce é um bobo, mas estou feliz —disse com suavidade. E abriu os olhos para dar uma

olhada ao vulto envolto que tinha na dobra do braço— Quer vê-lo?

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—Ah, é um homenzinho.Com mãos experientes depois de ser tio durante anos, Jamie pegou o pequeno embrulho e o

acomodou contra seu corpo, retirando a ponta do cobertor que tampava o rosto. O bebê tinha osolhos muito fechados; as pestanas não eram visíveis na ruga profunda das pálpebras, queformavam um ângulo agudo sobre a suave redondez das bochechas; isso imaginava que talvez,seria esse o único rasgo identificável, que se pareceria à mãe. A cabeça estava cheia deestranhos volumes e desviada para o lado; seu aspecto fez Jamie, incômodo, comparar com ummelão; mas a grossa boquinha se mantinha descontraída e aprazível; o úmido lábio interior seestremecia com o ronquido que acompanhava ao esgotamento de ter nascido.

—Foi um trabalho duro, não? —comentou dirigindo-se ao menino.Mas foi a mãe quem respondeu:—Sim, efetivamente. No armário há whisky. Quer me trazer um copo? —Sua voz soava

rouca; teve que pigarrear para completar o pedido.—Whisky? Não deveria beber cerveja com ovos batidos? —perguntou seu irmão,

reprimindo com dificuldade a imagem mental do que, segundo Fergus, era o alimentoadequado para as recém mamães.

— Whisky—ela assegurou com decisão— Quando estava doente, cansado e com a perna tãodolorida, te dei cerveja com ovos batidos?

—Voce me deu coisas muito piores —disse ele sorrindo de orelha a orelha— Mas éverdade, também me deu whisky. —Colocou cuidadosamente o menino dormindo na cama efoi em procura da bebida— Já tem nome? —quis saber sinalizando ao bebê com a cabeçaenquanto servia uma generosa quantidade de líquido ambarino.

—O chamarei de Ian, como seu pai. —A mão de Jenny se encostou na cabecinhaarredondada, recoberta por uma pelugem castanha dourada. No ponto macio da coronilhapalpitava visivelmente o pulso; para o Jamie lhe parecia tremendamente frágil, mas a parteiralhe tinha assegurado que era um menino são e vigoroso; teria que acreditar. Movido por umaobscura necessidade de proteger aquele ponto macio, tão exposto, levantou uma vez mais obebê e lhe cobriu a cabeça com o cobertor.

—Mary MacNab me contou o que fizeste com a senhora Kirby —comentou Jenny tomandoum trago — Que pena que eu perdi. Diz Mary que essa velha bruxa esteve a ponto de engulir aprópria língua quando te ouviu.

Jamie sorriu como resposta, dando suaves palmadas nas costas do bebê, que descansavasobre seu ombro, profundamente dormindo. Seu corpinho, inerte como um presunto sem osso,era um peso macio e reconfortante.

—Que pena que não o fez. Como faz para suportar essa mulher? Eu a estrangularia se ativesse em minha casa todos os dias.

Sua irmã ofegou e fechou os olhos, jogando a cabeça para trás para que o whisky descessepor sua garganta.

—Ah, a gente incomoda até onde se permite. E eu não lhe permito muito. De qualquer modo—disse abrindo os olhos—, não me desagradaria livrar-me dela. Estou pensando mandar aovelho Kettrick, o de Broch Mordha. O ano passado perdeu a sua esposa e a sua filha; precisaráque alguém o ajude.

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—Sim, mas se eu fosse Samuel Kettrick ficaria com a viúva de Murray, não com a de Kirby—observou Jamie.

—Peggy Murray já está arranjada — assegurou sua irmã— Na primavera se casará comDuncan Gibbons.

—Duncan se moveu depressa —comentou um pouco surpreso. Então lhe ocorreu algo esorriu—. Algum dos dois sabe?

—Não —respondeu ela devolvendo-lhe o sorriso. Depois o gesto se esfumou numa olhadaespeculativa— A não ser que voce também esteja pensando em Peggy.

—Eu —Jamie deu um sobressalto, como se ela acabasse de sugerir que ele desejava saltarpela janela.

—Ela só tem vinte e cinco anos —insistiu Jenny—. Pode ter mais filhos. E é boa mãe.—Voce não bebeu demais? Estou vivendo numa gruta, como um animal, e voce pensa em

me arranjar uma esposa! —De repente sentiu um vazio por dentro.—Quanto tempo faz que não se deita com uma mulher, Jamie? —perguntou sua irmã em

tom coloquial.Voltou-se a olhá-la, estupefato.—Que tipo de pergunta é essa?—Não tem estado com nenhuma das solteiras que vivem em Lallybroch e Broch Mordha —

continuou ela sem dar atenção— Eu teria sabido. E creio que também com nenhuma dasviúvas. —Fez uma delicada pausa.

—Sabe perfeitamente que —não respondeu sentindo que enrusbeceu as bochechas.—Por que? —perguntou Jenny sem rodeios.—Como que «por que»! —olhava-a com a boca entreaberta— Perdeu o juízo? Me vês capaz

de escapulir de casa em casa, deitando com toda mulher que não me expulse a vassouradas?—Como se alguma fosse te expulsar. Não, Jamie. És um bom homem. —Jenny sorriu com

certa tristeza— Não se aproveitaria de nenhuma mulher. Primeiro teria que se casar, não?—Não! —exclamou ele violento. O bebê se retorceu com um murmúrio sonolento.

Automaticamente, mudou para o outro ombro sem deixar de dar algumas palmadas, enquantofulminava a sua irmã com os olhos—. Não penso em me casar de novo, assim podes esqueceressa idéia de casamento, Jenny Murray. Não quero saber nada disso, me ouve?

—Te ouço, sim —disse sem se perturbar. E se encostou um pouco mais no travesseiro paraolhá-lo nos olhos—. Pensa em viver como os monges até o fim de seus dias? Ir à tumba semum filho que te enterre e que abençoe teu nome?

—Ocupa-se de suas coisas, maldita sejas! —Com o coração acelerado, ele lhe voltou ascostas para dirigir-se à janela. Ali ficou olhando sem ver o pátio dos estábulos.

—Sei que ainda choras por Claire —soou a suas costas, suavemente, a voz de sua irmã—Acha que eu poderia esquecer Ian se ele não regressasse? Mas é hora de seguir adiante, Jamie.Claire não ia querer que passasses a vida só, sem ninguém que te console e te dê filhos.

—Ela estava grávida —murmurou ele, por fim, falando com seu próprio reflexo no vidroembaçado— Quando se… Quando a perdi.

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De que outro modo podia dizê-lo? Não tinha maneira de explicar a sua irmã onde estavaClaire. De explicar-lhe que não podia pensar em outra, com a esperança de que estivesse viva,ainda sabendo que a tinha perdido para sempre.

Depois de um longo silêncio, por fim, Jenny perguntou baixinho:—Por isso veio hoje?Ele suspirou e se voltou.—Talvez sim. Já que não pude ajudar a minha esposa, pensei que poderia te ajudar.Na

realidade, não pude —disse com certa amargura— Para voce sou tão inútil como fui para ela.Jenny lhe estendeu uma mão, cheia de aflição.—Jamie, mo chridhe… —Mas se interrompeu com os olhos dilatados por um súbito alarme:

Lá embaixo chegavam gritos e ruídos de madeira estilhaçada.—Virgem Santa! —disse palidecendo ainda mais—São os ingleses!—Deus meu. —Era tanto uma prece como uma exclamação de surpresa. Jamie olhou à

cama e à janela, calculando as possibilidades de se esconde e as de escapar. O ruído de botas jáse ouvia na escada.

—O armário, Jamie! —sussurrou sua irmã com urgência.Sem vacilar, entrou no roupeiro e fechou diante de si.Um momento depois se abriu violentamente a porta da alcova. Seu vão se encheu com uma

silhueta de jaqueta vermelha e um chapéu agachado que apoiava uma espada desembainhada.O capitão de dragões fez uma pausa, percorrendo o quarto com os olhos; finalmente se fixou nacama.

—A senhora Murray? —perguntou.Jenny fez um esforço por erguer as costas.—Sou eu. E que demônio faz voce em minha casa? —Perguntou. Estava pálida, com a cara

brilhante pelo suor e os braços trémulos, mas mantinha a cabeça erguida e uma olhada fria—Saí daqui!

Sem pdar atenção, o homem entrou no quarto para se aproximar à janela. Jamie viu passarsua forma imprecisa junto à esquina do roupeiro; depois reapareceu de costas a ele, dirigindo-se a Jenny.

—Um de meus exploradores informou ter ouvido um disparo nos arredores desta casa nãofaz muito momento. Onde estão seus homens?

—Não tenho nenhum. —Os braços trémulos já não a sustentavam mais. Jamie viu que suairmã se deixava cair sobre os travesseiros—. Já levaram meu esposo e meu filho maior não temnem dez anos. —Não mencionou a Rabbie nem a Fergus, que já tinham idade suficiente paraser tratados (ou maltratados) como homens, se ao capitão isso lhe ocorria. Era de esperar quetivessem corrido de lá quando viram os ingleses.

O capitão era um homem calejado, de idade madura,com pouca credulidade.—Nas Terras Altas, ter armas é delito grave —disse voltando-se para o soldado que tinha

entrado depois dele— Reviste a casa, Jenkins.Teve que levantar a voz para dar essa ordem, pois na escada a comoção er alta. Jenkins

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girou para sair do quarto, mas naquele momento entrou a senhora Innes, a parteira, passandoviolentamente junto ao soldado que tratava correr com o passo.

—Deixa em paz à pobre senhora! —exclamou enfrentando ao capitão com os punhosapertados junto ao corpo. Tremia a voz e o coque estava se desfazendo, mas se manteve firme— Saí daqui, condenados, e deixa-a em paz!

—Não estou maltratando a tua senhora —disse o capitão com certa irritação; era óbvio quetinha imaginado à senhora Innes como uma das criadas—. Só venho a…

—Não faz ainda uma hora que deu a luz! Não é decente sequer olhá-la, muito menos doque…!

—A senhora deu a luz? —A voz do capitão se fez mais aguda. Com súbito interesse, seusolhos passaram da parteira à cama— Deu luz à um menino, senhora Murray? Onde está acriança?

A criança em questão se moveu dentro de suas envolturas, perturbada pela mão tensa de seuhorrorizado tio. Nas profundidades do roupeiro, Jamie podia ver a cara de sua irmã, branca atéos lábios, imóvel como uma pedra.

—A criança morreu —disse.A parteira abriu a boca, espantada. Por sorte, o capitão seguia concentrado em Jenny.—Verdade? —disse lentamente— Foi…?—Mamãe!—O grito de angústia vinha da porta. O pequeno Jamie se desprendeu das mãos

de um soldado para se jogar em sua mãe— O menino morreu, mamãe? Não, não! —Soluçandocaiu de joelhos, escondendo a cara entre os lençóis.

Como chamando ao seu irmão, o pequeno Ian deu evidências de seu estado esperneado comnotável vigor contra as costelas de seu tio; a seguir emitiu uma série de rosnados sufocados,que felizmente passaram despercebidos no alvoroço exterior.

Jennie estava tentando consolar o pequeno Jamie; a senhora Innes fazia esforços inúteis paralevantá-lo; o capitão tentava em vão fazer-se ouvir acima dos gemidos entristecidos do meninoe, por toda a casa, vibravam os sons apagados das botas e os gritos.

Jamie teve a impressão de que o capitão queria saber onde se encontrava o corpo do recémnascido. Apertou o corpo em questão, para sufocar qualquer intenção de pranto. Levou a outramão à manivela do punhal, mas era um gesto vão; se abrisseem o roupeiro, nem sequer cortar opescoço lhe serviria de nada.

O recém nascido emitiu um ruído, sugerindo que não lhe agradavam essas chacoalhadas.Jamie, que já via a casa em chamas e seus habitantes massacrados, se viu tão potente como osagoniados uivos de seu sobrinho maior.

—Foi voce! —O pequeno Jamie se tinha posto em pé, inchado pelas lágrimas e a ira, eestava avançando para o capitão, com a cabeça baixa, como um pequeno carneiro— Vocematou o meu irmão, inglês de merda!

O capitão,surpreso por aquele ataque, deu um passo atrás, piscando.—Não, garoto, está muitoengando. Caramba, eu só…—Maldito estúpido! A mhic an diabhoil! —Completamente fora de si, o pequeno Jamie ia

para o capitão, gritando todas as obscenidades que tinha ouvido em sua vida, em gaélico ou em

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inglês.—Enh —disse o bebê Ian, ao ouvido de Jamie, o maior— Enh, enh.Isso se parecia muito aos preliminares de um grito maiúsculo. Em seu pânico, Jamie soltou o

punhal e afundou o polegar na suave e úmida abertura que estava emitindo aqueles sons. Asgengivas desdentadas do bebê se fecharam ao redor do dedo, com uma ferocidade que esteve aponto de arrancar-lhe uma exclamação.

—Saia.Saia daqui! Saia ou eu te mato! —gritava o jovem Jamie ao capitão, com a caracontraída pela cólera.

—Esperarei os meus homens no andar de baixo —informou o capitão com toda a dignidadeque lhe foi possível.

E se retirou, fechando apressadamente a porta. O pequeno Jamie, privado de seu inimigo,caiu ao solo e se derrubou num pranto indefeso.

Pela rachadura da porta, Jamie viu que a senhora Innes olhava à Jenny, abrindo a boca paraformular uma pergunta. Jenny se levantou como Lázaro, com uma expressão feroz, apertandoum dedo contra os lábios para impor silêncio. Tirou os pés da cama e sentou para esperar. Osruídos dos soldados soavam em toda a casa.

Jamie respirou profundamente e se preparou. Teria que correr o risco; tinha a mão e o pulsomolhados de saliva e os rosnados frustrados do bebê estavam aumentando o volume.

Saiu a tropeções do roupeiro, banhado em suor, e pôs o bebê nos braços de Jenny. Eladescobriu o peito com um só movimento e oprimiu a cabecinha contra o seu mamilo,inclinando-se para proteger o vulto pequeno.

O pequeno Jamie se levantou ao ver o roupeiro se abrir;agora, pasmo contra a porta,aturdido pela impressão, olhava alternadamente a sua mãe e ao seu tio.

Quando os gritos e os rangidos da guarnição anunciaram a partida dos soldados, Ian filho, jásaciado, roncava nos braços de sua mãe. Jamie viu eles se afastando junto à janela, onde nãopodia ser visto.

—Descer ao «buraco da cura» —disse suavemente— Quando escureçer voltarei à gruta.Jenny assentiu com a cabeça, sem olhá-lo.—Crio… que não devo voltar a descer —disse por fim— Durante algum tempo.Sua irmã assentiu uma vez mais, sem dizer nada.

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CAPÍTULO 6

Estando agora justificado por seu sangue

Só retornou à casa mais uma vez. Durante dois meses se manteve escondido na gruta; quasenão se atrevia nem a sair pela noite para caçar, pois os soldados ingleses estavam aindaaquartelados em Comar. As tropas saíam diariamente, em pequenas patrulhas de oito ou dezhomens, e percorriam a campina saqueando o que ainda ficava e destruindo o que não podiamutilizar. Tudo com a bênção da Coroa inglesa.

Ao pé da colina onde estava a gruta passava um caminho. Era uma tosca trilha utilizadapelos veados, ainda que tonto era o animal que se aventurasse onde seu cheiro pudesse chegar àgruta. Ainda assim, de vez em quando Jamie via algum grupo de veados vermelhos ouencontrava suas impressões no dia seguinte.

O caminho também era utilizado pelos poucos que tinham algo que fazer na encosta. Ovento soprava desde a gruta, assim Jamie não esperava ver nenhum veado. Tinha estadoestendido no solo, justo à entrada da caverna, onde as aliagas e as sorveiras deixavam passarluz suficiente para ler em dias de céu aberto. Não tinha muitos livros, mas Jared sempre davaum jeito de contrabandear alguns quando enviava presentes da França.

Umas sombras se moveram sobre a página ao agitar-se das matas. O instinto afinado deJamie captou de imediato a mudança na direção do vento… e com ele, um som de vozes.

Levantou-se de um pulo, levando a mão ao punhal do qual jamais se separava. Deixandocuidadosamente o livro se segurou junto a uma elevação de granito que usava como apoio e seiçou até a estreita greta que constituía a entrada da gruta.

O intenso reflexo de vermelho e metal no caminho abaixo lhe surpreendeudesagradavelmente. Não é que temesse que algum dos soldados se aproximassem demais datrilha (estavam mal equipados para percorrer os trechos mais normais daquele urzal e muitopior para trepar por uma costa espinhosa como aquela) mas sua presença tão próxima lheimpediria de sair da gruta antes do escurecer, nem sequer para procurar água ou se aliviar. Deuuma rápida olhada à jarra de água, ainda que soubesse que estava praticamente vazia.

Um grito lhe obrigou a olhar novamente para baixo; então esteve a ponto de perder oprecário apoio na rocha. Os soldados estavam agrupados em torno de uma pequena silhueta,encurvada sob o peso de um pequeno diminuto tonel. Era Fergus, que subia com um barril decerveja recém destilada. Por todos os diabos! Não lhe teria caído nada mal aquela cerveja; faziameses que não a provava.

Como o vento tinha voltado a mudar, só lhe chegaram algumas palavras soltas; mas apequena silhueta parecia estar discutindo com o soldado que tinha à sua frente e acenavaviolentamente com a mão livre.

—Idiota! —sussurrou Jamie—. Entregue-lhes esse tonel e deixe eles irem, pequenoestúpido!

Um dos soldados lançou algumas bofetadas na direção do tonel, fazendo a miúda silhuetamorena dar um ágil salto para trás. Jamie espalmou a mão na testa, exasperado. Fergus nãopodia insistir em sua insolência quando enfrentava uma autoridade…, sobretudo quando se

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tratava de autoridade inglesa. Agora deslizava para trás, gritando algo a seus perseguidores.—Tonto! —disse Jamie, violentamente— Deixa cair isso e foge!Em vez de soltar o tonel ou partir correndo, Fergus, visivelmente seguro de sua própria

agilidade, voltou às costas dos soldados e mexeu no traseiro de uma maneira insultante.Irritados até o ponto de arriscar-se a pisar aquela vegetação pantanosa, muitos dos JaquetasVermelhas saíram do caminho para perseguí-lo.

Jamie viu que o chefe levantava um braço e gritava uma advertência. Pelo visto, tinhacompreendido que Fergus podia ser uma isca, enviado para levá-los a uma emboscada. MasFergus também estava gritando. Ao que parece, os soldados entendiam bastante bem seufrancês de bueiro pois, ainda que vários dos homens se detiveram ante o grito do chefe, quatrodos soldados se arrojaram contra o rapaz.

Teve um forcejo e novos gritos; Fergus escapou como uma enguia entre os soldados. Comtoda aquela comoção e entre os gemidos do vento, era impossível que Jamie ouvisse o sussurrodo sabre ao sair de sua bainha. No entanto, lhe ficaria gravado que o tinha ouvido, como se oleve som do metal tivesse sido a primeira indicação do desastre. Parecia ressoar em seusouvidos cada vez que recordava a cena. E a recordaria durante muitíssimo tempo.

Talvez foi pela atitude dos soldados, uma irritação que se percebia até na gruta. Talvez sópela sensação de fatalidade que não o abandonava desde a batalha de Culloden. Foraverdadeiro ou não que tinha ouvido o som do sabre, seu corpo estava pronto para saltar quandoviu o arco prateado da vara que fendia o ar.

Movia-se quase com preguiça, com lentidão suficiente para que seu cérebro calculasse suadireção, deduzisse o alvo e gritasse, sem palavras: «Não» Sem dúvida se moveu com tantalentidão que teria podido se lançar sobre os homens, sujeitando o pulso que segurava o sabre eretorcê-la até que soltasse a mortífera vara de metal.

A parte consciente de seu cérebro lhe disse que era uma tolice e manteve suas mãospetrificadas ao redor da elevação de granito, obrigando-o a resistir o surpreendente impulso desair da gruta e se por a correr.

«Não posso», disse-lhe num sussurro imperceptível sob a fúria e o horror que o tomavam«Ele fez isto por voce. Não pode», repetia, frio como a morte sob a ardente onda que osufocava. «Não posso fazer nada.»

E não fez nada. Só observou, enquanto a vara completava sua preguiçosa curva dando namosca com um ruído surdo, quase intransponível. E o tonel em disputa caía dando tombos pelacosta do ribeiro. Seu mergulho final se perdeu num gorgotejo alegre de água parda, bem maisabaixo.

Os gritos cessaram bruscamente e sobreviveu o silêncio, mas nos ouvidos de Jamie obranido continuava. Se afrouxaram os joelhos e compreendeu vagamente que ia desmaiar. Suavisão se converteu num negro avermelhado, semeado de estrelas e faixas de luz. Mas nemsequer a sombra que avançava pôde apagar a visão final da mão de Fergus, sua mão pequena edestra de astuto batedor de carteiras, no lodo do caminho, com a palma voltada para acima numgesto de súplica.

Aguardou durante quarenta e oito longas e intermináveis horas, até que ouviu o apito deRabbie MacNab no caminho, embaixo da gruta.

—Como está? —perguntou.

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—A senhora Jenny diz que ele vai se curar —respondeu Rabbie. Sua cara juvenil estavapálida e com olheiras; obviamente, ainda não tinha se reposto da impressão recebida peloacidente de seu amigo— Diz que não tem febre e que não há sinais de gangrena em seu… —Enguliu saliva auditivamente. —… Está…, coto.

—Assim que os soldados o levaram até a casa? —Sem esperar resposta, Jamie já ia colinaabaixo.

—Sim, deu-me a impressão de que estavam muito nervosos. —Rabbie se deteve paradesenredar a camisa de um arbusto. Depois teve pressa para atingir ao seu patrão— Creio quesentem muito. Ao menos, isso foi o que disse o capitão. E deu um ouro à senhora Jenny…,para Fergus.

—Ah, sim? —comentou Jamie— Que generoso.Não voltou a falar até que chegaram à casa.Tinham encostado Fergus com grande pompa no quarto dos meninos, numa cama junto à

janela. Jamie, ao entrar, encontrou-o com os olhos fechados e as longas pestanas apoiadassuavemente sobre as bochechas magras. Desprovida da animação habitual, as caretas e asposes, sua cara parecia diferente. O nariz um pouco ganchudo sobre a boca longa e movediça,dava-lhe um ar levemente aristocrático; os ossos que se endureciam sob a pele pareciam preverque, ao perder o encanto juvenil, aquele rosto seria formoso.

Quando Jamie avançou para a cama, as pestanas escuras se elevaram de imediato.—Milord —disse Fergus. Um débil sorriso devolveu de imediato a suas feições o aspecto

familiar— Esta seguro aqui?—Por Deus, filho, eu sinto muito. —Jamie se deixou cair de joelhos junto à cama. Mal

suportava olhar o delgado antebraço que jazia sobre o edredon, com a frágil pulso vendado queterminava em nada, mas se obrigou a estreitar-lhe um ombro como modo de saudação e aesfregar-lhe o abundante cabelo escuro— Dói muito?

—Não, milord —disse Fergus. De repente lhe cruzou no rosto um traiçoeiro gesto de dor.Sorriu com vergonha— Bom, não muito. E a Madame foi muito generosa com o whisky.

— Eu sinto muito —repetiu Jamie. Não tinha outra coisa que dizer. Nem sequer podia falar,pelo nó que tinha na garganta. Apressou-se a baixar os olhos, sabendo que Fergus ficarianervoso se o visse chorar.

—Ah, milord, não se preocupe. —Na voz de Fergus tinha uma leve travessa— Tive sorte.Jamie enguliu saliva com dificuldade antes de replicar. —Sim, porque estás vivo, graças a

Deus. —Oh, mais do que isso, milord!Ao levantar a cabeça viu o rapaz a sorrir, ainda que muito pálido.—Não lembras do nosso acordo, milord? —Nosso acordo?—Sim, quando me pegou para os seus serviços, em Paris. Prometeu-me que, se eu fosse

preso e executado, farías missas por minha alma durante todo um ano. —A única mão voltoupara a maltratada medalha esverdeada que lhe pendia do pescoço: San Dimas, santo patronodos ladrões— Mas se eu perdesse uma mão ou uma orelha estando a vosso serviço…

—…me manteria durante o resto de tua vida. —Jamie não sabia se ria ou chorava.Contentou-se com uma palmada à mão que agora jazia sobre o cobertor, muito quieta—.

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Recordo, sim. E pode confiar em que cumprirei o trato.—Oh, sempre confiei em voce ,milord —disse Fergus. Era óbvio que estava fatigando; as

bochechas estavam ainda mais pálidas e o cabelo negro caía para atrás, sobre o travesseiro—Assim tenho sorte —murmurou, ainda sorridente— Inesperadamente me converti numcavaleiro ocioso, não?

Quando saiu do quarto, Jenny o estava esperando.—Vem comigo ao «buraco da cura» —lhe pediu pegando-a pelo cotovelo— Preciso falar

contigo e não quero estar muito tempo à vista.Ela o seguiu sem comentários ao vestíbulo que separava a cozinha da dispensa. Nas lajes do

solo tinha um grande painel de madeira com buracos. Teoricamente, servia para ventilar oporão, ao que se chegava por uma porta exterior; em realidade, se alguma pessoa suspicazdecidia pesquisar, aquele painel era visível do depósito ao porão.

O que não se via era que os buracos ofereciam também ar e luz em um quarto secreto,construído por trás do depósito, ao que se podia descer retirando o painel, com marcacimentada e tudo, para descobrir uma pequena escada. Ali só cabiam duas pessoas, se sentaramjuntos no único banco. Jamie se acomodou junto a sua irmã quando havia substituído o painel ebaixado a escada. Permaneceu imóvel um momento. Depois tomou folego.

—Não agüento mais —disse. Falava em voz tão baixa que Jenny se viu obrigada a inclinar acabeça para ouvir, como o padre ao receber a confissão de um penitente— Não posso. Tenhoque ir.

Ela lhe pegou da mão, estreitando-se fortemente com seus dedos pequenos e firmes.—Vai tentar outra vez ir a França?Jamie tinha tratado de fugir a França duas vezes; e as duas tentativas se viram frustrados

pela estreita vigilância que os ingleses mantinham em todos os portos. Não tinha disfarcesuficiente para um homem de sua estatura e sua cor de cabelo.

Sacudiu a cabeça.—Não. Vou deixar que me capturem.—Jamie! —Em sua agitação, Jenny elevou momentaneamente a voz; depois voltou a baixá-

la, respondendo ao apertão de advertência de seu irmão. —Não podes fazer isso, Jamie. PorDeus, te enforcariam!

Mantinha a cabeça agachada, como se estivesse pensando, mas a sacudiu sem vacilar.—Não creio. —Lançou uma rápida olhada à mulher.— Claire… era vidente. —Era uma boa

explicação, ainda que não fosse a verdade.— Ela viu o que sucederia em Culloden; ela sabia. Eme disse o que passaria depois.

—Ah —murmurou Jenny suavemente.- Eu o imaginava. Por isso me fez plantar batatas…, econstruir este lugar.

—Sim. —Estreitou a mão de sua irmã antes de soltá-la e se voltou no estreito assento paraolhá-la—. Disseme que a Coroa passaria algum tempo perseguindo aos traidores jacobitas… eassim é —disse irônico.— Mas que depois dos primeiros anos já não executariam aoscapturados; só iriam a prisão.

—Só! —repetiu ela— Se queres fugir, Jamie, o diabo aos urzais. Mas se entregar para ir a

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um cárcere inglês, enforcado ou não…—Espera —a interrompeu apoiando-lhe uma mão no braço.— Ainda não te disse tudo. Não

penso em me apresentar aos ingleses e me render sem nada. Puseram um bom preço a minhacabeça, não? Seria uma pena desperdiçá-lo, voce não acha?

Tratou de impor um sorriso em sua voz; ela, ao percebê-la, levantou bruscamente os olhos.—Mãe de Deus —sussurrou.— Queres que alguém te traia?—Sim, aparentemente. —Tinha decidido o plano estando só na gruta, mas só agora parecia

real— Talvez Joe Fraser seja o mais indicado.Jenny esfregou os lábios com o punho. Compreendeu que tinha captado sua idéia de

imediato…, com todos seus envolvimentos.—Mas ainda que não te enforquem no ato, Jamie… —sussurrou— é um risco infernal…

Poderiam te matar ao capturar-lo!—Por Deus, mulher, acha que me importo? Teve um longo silêncio até que ela disse:—Não, creio que não. E também não posso te censurar. —Fez uma pausa para afirmar a voz

—. Mas importa a mim. —Acariciou-lhe suavemente o cabelo da nuca.— Vai se cuidar meugrandíssimo bobo?

O painel de ventilação se escureceu e ouviram um ruído de passos ligeiros. Provavelmenteuma das criadas, dirigindo-se à dispensa. Depois voltou a luz escassa e a cara de Jenny voltou aser visível.

—Sim —murmurou por fim.—Me cuidarei.Demoraram mais de dois meses para arrumar tudo. Quando ao fim chegou a notícia era

primavera.Ele estava sentado em sua rocha favorita, cerca da entrada à gruta, contemplando as

primeiras estrelas. Inclusive nos piores momentos, no ano seguinte a Culloden, tinhaencontrado paz naquele momento do dia. Ao esfumar-se a luz diurna, era como se os objetos seiluminassem difusamente desde o interior, recortando-se no céu ou a terra, perfeitos e nítidosem todos seus detalhes. Viu a silhueta de uma traça, invisível à luz do sol, iluminada pelocrepúsculo, com um triângulo de sombra mais intensa que a destacava sobre o tronco onde seocultava. Num momento alçaria o vôo.

Entre os crescentes sons da noite se ouviu um apito agudo. Podia ter sido o reclamo de umapito no lago, mas reconheceu o sinal. Alguém vinha pelo caminho: um amigo.

Ele se reclinou na parede da caverna, cruzado de braços, e fincou uma olhada deexasperação naquela cabeça inclinada.

—Como são as coisas, não? —acusou— De quem foi a idéia, tua ou de minha irmã?—Que importância tem? —replicou ela muito composta.Ele sacudiu a cabeça e se agachou para pô-la em pé.—Não, não importa, porque não vai ocorrer. Agradeço-te a intenção, mas…Ela o interrompeu com um beijo. Seus lábios eram tão ternos como pareciam. Jamie a

segurou firmemente com ambas as mãos e a afastou.—Não —disse— Não é necessário e não quero fazê-lo.

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Tinha a incômoda sensação de que seu corpo não estava em absoluto acordo com aquelecomentário. Mais incômodo ainda era saber do que suas calças, demais estreitas e gastadas,faziam evidente a magnitude daquele desacordo para quem quisesse olhar. O leve sorrisodaqueles lábios sugeriu que estava olhando.

Fez ela girar para a entrada e lhe deu um leve empurrão. Ela respondeu jogando-se a umlado e alongando a mão para atrás, procurando os laços da saia.

—Não faça isso! —exclamou Jamie.—Como vai impedir? —perguntou Mary tirando a roupa. Dobrou-a sobre o único banco.—Se não vai embora, terei eu que o fazer —replicou decidido. E girou sobre seus

calcanhares. Quando se dirigia para a entrada da gruta, ouviu-a dizer por trás:—Milord!Deteve-se, mas sem girar-se.—Não é correto que me chames assim.—Lallybroch é seu e será enquanto for vivo. Ao senhor, assim devo chamá-lo.—Não é meu. A propriedade pertence ao pequeno Jamie.—Não é o pequeno Jamie quem faz o que estas fazendo —replicou ela decidida— E não foi

vossa irmã quem me pediu que fizesse isto. Vire-se.Girou-se de má vontade. Mary estava descalça e com camisola, com o cabelo solto sobre os

ombros. Estava tão delgada, mas tinha os peitos maiores do que tinha pensado e os mamilos serevelavam, proeminentes, sob a fina tela. A camisola estava tão surrada como suas outrasprendas, quase translúcida em alguns pontos. Ele fechou os olhos.

Sentiu um leve contato no braço e se obrigou a permanecer imóvel.—Sei muito bem o que está pensando —disse ela— Vi a sua senhora e sei como eram as

coisas entre vocês dois. Eu nunca tive isso —disse em voz mais baixa— com nenhum dos doishomens que me desposaram. Mas sei distinguir o verdadeiro amor. E não é minha intençãofaze-lo sentir traír o seu.

O contato, ligeiro como uma pluma, passou a sua bochecha; um polegar endurecido pelotrabalho seguiu o sulco entre o nariz e a boca.

—O que quero —continuou ela— é dar a voce algo diferente. Algo inferior, talvez, mas queo seja útil; algo que o conserve íntegro.Sua irmã e os meninos não podem dar mas eu sim.

Jamie ouviu como tomava fôlego. O atrito desapareceu de seu rosto.—Deu meu lar, minha vida e meu filho. Por que não permiti que eu possa te dar uma pequna

mudança?—Eu… faz muito tempo que não o faço —apontou ele, subitamente tímido.—Eu também não —disse ela com um leve sorriso— Mas já recordaremos como se faz.

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TERCEIRA PARTECAPÍTULO 7

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Quando sou teu cativo

Fé nos documentos

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Inverness25 de maio de 1968

O envelope de Linklater chegou com o correio da manhã.—Olha que gordo é! —exclamou Brianna— Enviou algo! —A ponta de seu nariz estava

avermelhado pelo entusiasmo.—É o que parece —reconheceu Roger. Ainda que mantinha a serenidade exterior, vi bater o

pulso em seu pescoço.Tirou um feixe de páginas fotocopiadas e a carta adjunta saiu voando. Lia em voz alta e um

pouco trêmula:—«Apreciado doutor Wakefield: Recebi sua consulta sobre a execução de oficiais jacobitas

pelas tropas do duque de Cumberland, depois da batalha de Culloden. A principal fonte quecito no livro ao que você faz referência é o diário privado de certo lorde Melton, ao comandode um regimento de infantaria às ordens de Cumberland, quando se produziu a batalha deCulloden. Anexo está o xerox das páginas pertinentes desse diário; como você verá, a históriado sobrevivente, sobrevivente James Fraser, é estranha e comovedora. Fraser não é umpersonagem histórico importante e não interessa para minha própria obra, mas com freqüênciapensei em pesquisar um pouco mais, com a esperança de determinar que sorte correufinalmente. Se você descobrir que sobreviveu à viagem para sua própria propriedade, lheficaria grato se me comunicasse. Sempre tive a esperança de que assim tenha sido, ainda quesua situação, tal como a descreve Melton, fosse muito improvável. Saúda-o sinceramente, EricLinklater.»

—Muito improvável, é? —disse Brianna se pondo na ponta dos pés para olhar sobre oombro de Roger— Ah! Ele regressou a casa. Isso já sabemos.

—Acho que assim foi —corrigiu Roger. Mas o fazia só por cautela de erudito. Seu sorrisoera tão amplo como a de Brianna.

—Quer tomar chá ou cacau antes do almoço? —A cabeça morena e encaracolada de Fionaassomou pela porta do estudio, interrompendo o entusiasmo— Tenho bolos de gengibre recémtirados do forno.

—Chá, por favor —disse Roger.Ao mesmo tempo, Brianna dizia:—Oh, cacau, perfeito.Fiona, empurrou a mesa redonda, onde trazia ao mesmo tempo uma chaleira e um pote de

cacau junto com a vasilha de biscoitos.De minha parte, aceitei uma xícara de chá e me instalei na poltrona, com as páginas do

diário de Melton.«… Para satisfazer a dívida de honra de meu irmão, não pude menos do que respeitar a vida

de Fraser. Portanto, omiti seu nome da lista de traidores executados na colina e dispus que setransportasse até sua própria propriedade. Não me sinto misericordioso ao fazer isso, nemtambém culpado com respeito as minhas obrigações para com o duque, pois a situação deFraser, que tem uma grande ferida purulenta na perna, será muito difícil que possa sobreviver à

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viagem até sua casa. Ainda assim, a honra me impede atuar de outro modo. Reconheço que mealegrou o espírito ao ver que o homem era retirado do lugar ainda com vida, enquanto eudedicava meu atendimento à melancólica tarefa de sepultar os cadáveres de seus camaradas.Aflige-me a matança que vi nestes dois últimos dias.»

Apoiei as páginas em meu joelho, engulindo saliva com dificuldade. «Uma grande feridapurulenta…» Eu sabia melhor do que Roger e Brianna a gravidade que teria sido essa lesão,sem antibióticos, sem um tratamento médico adequado, sem nem sequer os vulgaresemplastros de ervas de que dispunham os curandeiros das Terras Altas.

—Mas chegou. —A voz de Brianna interrompeu meus pensamentos, respondendo a umaidéia similar expressada por Roger. Falava com singela segurança, como se tivesse presenciadotodos os acontecimentos descritos no diário de Melton e estivesse segura de seu resultado.—Chegou. Ele era o Gorropardo; estou certa.

—O Gorropardo? —Fiona que estalava a língua ao ver intacta minha xícara de chá, já fria,olhou-a com surpresa acima do ombro— Ouviste falar do Gorropardo?

—Voce ouviu? —Roger olhava a sua jovem caseira com ar atônito.Ela assentiu, esvaziando calmamente minha xícara no vaso da aspiração, para enchê-la outra

vez com chá recém feito.—Oh, sim. Minha avó me contou muitas vezes essa história.—Conta-nos! —Brianna se inclinou para frente, muito atenciosa, com o cacau entre as mãos

—Por favor, Fiona! Como é essa história?A moça pareceu um pouco surpresa ao se ver subitamente no centro de tanta atenção, mas se

encolheu de ombros, bem disposta.—Bom, é só a história de um seguidor do Bonnie Prince. Na grande derrota de Culloden

morreram muitos, mas uns quatro escaparam. Um homem fugiu do campo de batalha e cruzouo rio a nado para escapar, mas os ingleses o perseguiram. No caminho entrou numa igreja ondeestavam celebrando um ofício e implorou misericórdia ao sacerdote. Como um padre aspessoas se compadeceram dele, vendo um homem com as vestimentas do padre. Quando osingleses invadiram, momentos depois, ele estava em pé no pulpito, pregando seu sermão, comuma poça entre os pés pela água que lhe jorrava da barba e a roupa. Os ingleses supuseram quetinham se enganado e continuaram o seu caminho, assim que o homem escapou. E na igrejatodos disseram que nunca tinham escutado um sermão tão bom! —Fiona riu estericamenteenquanto Brianna franzia o cenho e Roger fez cara de desconcerto.

—Esse era o Gorropardo? —Estranhou-se— Eu achava que…—Oh, não, não era esse. O Gorropardo foi outro dos homens que escaparam de Culloden.

Voltou a sua própria propriedade, mas como os Sassenachs estavam perseguindo aos homensem todas as Terras Altas, passou sete anos escondido numa gruta.

Ao ouvir isso, Brianna se deixou cair contra o encosto, lançando um suspiro de alívio.—E seus arrendatários o chamavam de Gorropardo para não o trair pronunciando seu nome

—murmurou.—Conheces a história? —perguntou Fiona estupefata— Assim era, sim.—E tua avó te contou o que lhe aconteceu depois? —Requeriu Roger.

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—Oh, sim! Essa é a melhor parte. Resultou que depois de Culloden teve uma terrível fome;pessoas morreram de fome nas colinas; em pleno inverno os inlgeses tiravam de suas casas,fuzilando os homens e prendiam fogo a suas casas. Os arrendatários do Gorropardo se virarammelhor do que a maioria, mas ainda assim chegou o dia em que se acabou a comida e osestomagos ressoavam da manhã à noite; não tinha caça no bosque nem cereais nos campos; osbebês morriam nos braços de suas mães por falta de leite para alimentá-los.

Ao ouvir aquelas palavras me percorreu um arrepio. Vi os habitantes de Lallybroch, pessoasàs que eu tinha amado, abatidas pelo frio e a fome. Não era só espanto o que me enchia, senãotambém culpa. Eu me tinha encontrado a salvo, abrigada e bem alimentada, em vez decompartilhar seu destino; tinha-os abandonado, tal como Jamie queria. Olhei a Brianna e aopressão de meu peito cedeu um pouco. Ela também tinha passado esses anos a salvo, comcasaco, comida e amor, porque eu tinha feito o que Jamie queria.

—Assim o Gorropardo criou um plano audaz —continuou Fiona. Sua cara redonda brilhavapela dramaticidade do relato— Fez que um de seus arrendatários se apresentasse aos ingleses eo dedurassem.

Tinham posto um bom preço a sua cabeça por ter sido um grande guerreiro do príncipeEduardo. O arrendatário cobraria o ouro da recompensa e o usaria para as pessoas dapropriedade, imagino. E a mudança informaria aos ingleses onde podiam capturar oGorropardo.

—Capturaram? —grasnou, rouca pela impressão— O enforcaram?Fiona piscou, surpresa.—Claro que não! —assegurou—Isso era o que desejavam, segundo contava minha avó. O

julgaram por traição, mas ao final só foi encarcerado. E o ouro passou a mãos de seusarrendatários, que sobreviveram à fome —concluiu alegremente, como se fosse um final feliz.

—Por Deus —sussurrou Roger com um olhar perdido no nada— Encarcerado.—Diz como se fosse uma sorte —protestou Brianna, que tinha as comissuras da boca tensas

pela aflição e os olhos acesos.—Assim é —confirmou Roger sem consertar o mal-estar— Não eram muitos os cárceres

onde os ingleses prendiam os jacobitas e todas levavam registos oficiais. Não se dá de conta?—Seu olhar passou do desconcerto de Fiona ao cenho de Brianna; depois se posou em mim,com a esperança de encontrar entendimento— Se foi encarcerado posso achá-lo.

Voltou-se para as estantes que cobriam três prateleiras do estudio, para caber a coleção deobjetos jacobitas do defunto reverendo Wakefield.

—Ele está aqui —apontou com suavidade— No registo de uma prisão. Num documento. Éuma prova real! —Voltou-se outra vez para mim— Ao ser encarcerado voltou a fazer parte dahistória escrita! O encontraremos, em algum lugar.

—E saberemos que foi ele —sussurrou Brianna—, quando o puseram em liberdade.Roger apertou os lábios para não dizer a alternativa que lhe saltava à mente, como tinha

saltado à minha: «ou quando morreu».—Sim, efetivamente —disse pegando-a da mão. Seus olhos se encontraram com os meus,

muito verdes e misteriosos—Quando o puseram em liberdade.Uma semana depois, a fé de Roger nos documentos se mantinha incólume. Não podia dizer-

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se o mesmo da antiga mesa do reverendo Wakefield, cujas finas pernas rangiam de maneiraalarmante sob seu desacostumado carga.

—Se por a cabeça mais em cima tudo se virá abaixo —observou Claire ao ver que Rogeresticava despreocupadamente a mão com intenção de lançar outra pasta sobre a pequena mesa.

—Eh? Oh, claro. —Mudou de direção em pleno movimento, procurando em vão outro lugaronde pôr a pasta, e por fim decidiu depositá-la no chão, a seus pés.

—Acabo de terminar com Wentworth —disse Claire, assinalando com o dedo do pé umaprecária pilha feita no chão— Já chegaram os registos de Berwick?

—Esta mesma manhã. Mas onde eu pus? —Roger deu uma olhada confusa pelo quarto, quese parecia muito ao saque da biblioteca de Alexandria um momento antes de que se acendessea primeira tocha. Esfregou a testa, num esforço para concentrar-se. Depois de ter passado umasemana inteira folheando durante dez horas diárias registos manuscritos, cartas e diáriosíntimos ou públicos de governadores de prisão, em procura de algum rasto oficial de JamieFraser, começava a sentir que alguém lhe tinha passado papel de lixa pelos olhos.

—Era azul —disse por fim— Me recordo claramente que era azul. Me enviou McAllister,um professor de História do Trinity College. Trinity usa grandes envelopes de cor azul claro,com o escudo de armas. Pode ser que Fiona o tenha visto. Fiona!

As horas se avançaram, na cozinha ainda tinha luz; no ar perdurava um reconfortante cheiroa cacau e a docinho de amêndoas recém assado. Fiona jamais abandonava seu posto enquantotivesse a menor possibilidade de que alguém precisasse de comida.

—Sim? —Sua cabeça encaracolada assomou pela cozinha— O cacau já está. Ia tirar odocinho do forno.

Roger lhe sorriu com profundo afeto. Fiona não sabia nada de história e só lia revistafeminina, mas nunca questionava as atividades de seu chefe: tirava o pó calmamente dosmontões de livros e papéis sem preocupar-se pelo que contivessem.

—Obrigado, Fiona —disse ele— Só queria perguntar se voce viu um envelope azul, grandee gordo, mais ou menos assim. —Indicou o tamanho com as mãos— Chegou com o correio damanhã, mas não sei onde o deixei.

—No banheiro lá em cima —respondeu ela de imediato— Há um livro muito grande comletras de ouro e a foto do Bonnie Prince, e três cartas que foram acabadas de abrir, e também afatura do gás; não esqueças de atrapalhe.

Um claro ding!, emitido pelo relógio do forno, fez que se retirasse a toda pressa, afogandouma exclamação.

Roger subiu as escadas de duas em duas, sorrindo. Com essa memória, Fiona teria Desceucom mais lentidão, trazendo o envelope azul nas mãos, e se perguntou o que teria pensado seudefunto pai adotivo da busca iniciada.

—Estaria metido nela até as sobrancelhas, sem dúvida alguma —murmurou para dentro.Rememorou uma imagem vivida do reverendo, com a calva brilhante sob os antiquados lustres,andando entre o estudio e a cozinha, onde a anciã senhora Graham, a avó de Fiona, satisfaziasuas necessidades materiais durante seus ataques de erudição noturna, tal como o fazia agorasua neta.

Estava pensativo ao entrar no estudio. Nos velhos tempos, quando o filho seguia geralmente

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a profissão do pai, o fazia só por conveniência, para manter o negócio da família, ou existiaalguma predisposição familiar para certo tipo de trabalho?

Mas na realidade estava pensando em Brianna. Observou a Claire, que mantinha a cabeçainclinada sobre a escrivaninha, e se descobriu perguntando-se até que ponto a moça se pareciaa ela e em que proporção ao obscuro escocês (guerreiro, agricultor, cortesano, senhor feudal)que a tinha gerado.

Seus pensamentos seguiam aquela linha quando, quinze minutos depois, Claire fechou aúltima pasta de seu montão e se ergueu com um suspiro.

—O que estás pensando? —perguntou alongando a mão para sua xícara.—Nada importante —respondeu Roger com um sorriso, saindo de seus sonhos— Só me

perguntava como a gente chega a ser o que é. Como chegaste a ser médica, por exemplo?—Como cheguei a ser médica? —Claire inalou o vapor do cacau e, decidindo que estava

muito quente o depositou de novo na escrivaninha, entre livros, registos e folhas rabiscadas.Depois esfrego as mãos— Como chegou a ser historiador?

—Mais ou menos honradamente —respondeu ele, sentando-se no cadeirão do reverendo.Apontou a acumulação de papéis e pequenos enfeites que os rodeava— Me Criei no meio detudo isto. Quando mal sabia ler, já perambulava pelas Terras Altas com meu pai, procurandoobjetos arqueológicos. Suponho que continuar fazendo-o era o natural. E voce?

Ela se espreguiçou para aliviar os ombros, depois de muitas horas em mantê-los encurvadossobre a escrivaninha. Brianna, sem poder manter-se desperta, tinha encostado uma hora antes,enquanto Claire e Roger continuavam a busca pelos registos administrativos das prisõesinglesas.

—Bom, no meu caso teve algo similar —disse ela— Não é que decidi subitamente dedicar-me à medicina. Um dia me dei conta de que tinha praticado a medicina durante muito tempo,de que já não o fazia e de que o sentia falta.

Esticou as mãos na escrivaninha flexionando os dedos longos, com as unhas polidas emforma de curva.

—Há uma velha canção da Primeira Guerra Mundial —sussurrou pensativa— Os velhoscamaradas do tio Lamb cantavam as vezes, quando ficavam até tarde e bebiam até embebedar-se. Dizia algo assim: «Como farás para retê-los na colina, agora que viram Paris?» —Seinterrompeu com um sorriso irônico— Eu tinha visto Paris.

Afastou os olhos de suas mãos, alerta e presente, mas com rastos de nostalgia nos olhos.—E muitas coisas mais. Caem e Amiens, Prestem e Falkirk, o Hópital dês Anges e a suposta

sala de operações de Leoch. Tinha atuado como médica em todo sentido: atendia partos,colocava ossos fraturados, suturava feridas, tratava febres… —Encolheu-se de ombros—Tinha muitíssimas coisas que não sabia, desde depois. Por isso decidi estudar medicina. Mas adiferença não foi muita, sabe? — Afundou um dedo no creme batido que boiava em seu cacaue a lambeu— Tenho um diploma de médico, mas já era muito antes de pisar a universidade.

—Não pode ter sido tão fácil. —Roger soprou seu cacau, estudando-a com franco interesse— Então não eram muitas as mulheres que estudavam medicina; agora mesmo não são tantas.E ademais, tu tinhas uma família.

—Não, não posso dizer que tenha sido fácil. —Claire o olhou com ar zombador— Esperei

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que Brianna começasse a escola, claro, e até que pudéssemos pagar a alguém para que seencarregasse de cozinhar e limpar, mas… —Encolheu-se de ombros com um sorriso irônico—Passei vários anos sem dormir. Isso ajudou um pouco. E Frank também me ajudou, ainda quepareça estranho.

Roger provou sua xícara; já tinha se esfriado o suficiente para beber.—Mesmo? —perguntou com curiosidade— Pelo que me contaste dele, não tinha me

ocorrido que lhe agradasse que estudasses medicina.—Não lhe agradava. —Ela apertou os lábios; o gesto foi mais expressivo do que as

palavras; falava de discussões, conversas abandonadas à metade e uma teimosa oposição.Que cara tão expressiva, pensou enquanto a observava. De repente se perguntou se a sua

seria igualmente fácil de interpretar. A idéia o turvou tanto que submergiu a cara no copo parabeber o cacau a grandes tragos, ainda que ainda estava muito quente.

Ao emergir da xícara viu que Claire o observava, um pouco risonha.—Por que? —perguntou rapidamente para distraí-la— O que o fez mudar de atitude?—Bree —disse ela. Seu rosto se amaciou, como lhe ocorria sempre ante a menção de sua

filha— Para Frank, a único que tinha verdadeira importância era Bree.Tal como terminava de dizer, tinha esperado que Brianna iniciasse a escola para inscrever-

me na carreira de medicina. Mas ainda assim ficavam grandes vácuos entre seus horários e osmeus, que enchemos precariamente com uma série de empregadas domésticas e babás mais oumenos competentes; algumas, mais; a maioria delas, menos.

Minha mente voltou ao horrível dia em que recebi um telefonema no hospital parainformar-me que Brianna estava ferida. Saí correndo, sem deter-me sequer para tirar oavental de cirurgia, e voei para casa saltando-me todos os limites de velocidade. Ao chegar meencontrei com um carro patrulha e uma ambulância que iluminava a noite com palpitaçõesvermelhas e azuis; na rua, frente à entrada, se aglomerava um punhado de vizinhosinteressados.

Mais tarde soubemos o que tinha sucedido. A última babá temporária, incomodada porqueeu tinha voltado a atrasar-me, tinha posto o casaco e ido embora, abandonando a Briana, quesó tinha sete anos, com instruções de «esperar a mamãe». Ela o fez obedientemente duranteuma hora ou duas, mas ao escurecer lhe deu medo estar só em casa; então decidiu irprocurar-me. Quando cruzava uma das ruas transitadas das proximidades foi atropelada porum carro.

Graças a Deus, não estava mal ferida; o carro circulava com lentidão e a experiência nãolhe deixou mais do que machucados e susto. Não estava tão assustada como eu,na realidade,nem tinha tantos machucados como as que senti ao vê-la estendida no sofá da sala, comlágrimas nas bochechas, dizendo: «Mamãe! Onde estava? Não podia encontrar-te!»

Precisei de toda minha compostura profissional para reconfortá-la, examiná-la totalmente,atender novamente seus cortes e roçaduras e dar o obrigado a quem a tinha ajudado (e que meolhavam com ar acusador ou isso me parecia). Depois a levei à cama, com o urso de pelúciaapertado entre os braços, e me sentei ante a mesa da cozinha para chorar.

Frank me deu umas palmadas lerdas, murmurando algo, mas ao fim renunciou e, com umaatitude mais prática, foi preparar o chá.

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—Estou decidida —disse quando ele pôs adiante de mim a xícara fumegante. Falava comvoz opaca; sentia a cabeça pesada e brumosa— Vou desistir. Amanhã mesmo.

—Desistir? —A voz de Frank soou aguda. Aos estudos? Por que?—Já não agüento mais. —Nunca colocava creme nem açúcar ao chá. Naquele momento

joguei ambos; enquanto mexia, observei a espuma que se amontoava na xícara—.Não suportodeixar a Bree sem saber se está bem atendida…, e sabendo que não é feliz. Bem sabes que nãolhe agradou nenhuma das babas que provamos.

—Sim, eu sei. —Sentou-se frente a mim, removendo sua própria xícara. Depois de um longoinstante, disse—: Mas não creio que devas desistir.

Era o último que esperava; tinha imaginado que ele receberia minha decisão com umaplauso de alívio. Olhei-o, atônita.

-Não?—Ah, Claire. —Falava com impaciência, mas também com uma fissura de afeto— Desde o

princípio voce soube o que era. Tens idéia do raro que é isso?—Não.Frank se reclinou na cadeira, mexendo a cabeça.—Não, suponho que —não disse. Calou um momento com a vista fixa nas mãos cruzadas.

Tinha os dedos longos e finos, suaves e sem pêlo, como de mulher. Mãos elegantes, feitas paraos gestos desenvoltos e a ênfase do discurso.

—Eu não o tenho —disse ao fim, baixinho— Sou bom, sim: para ensinar, para escrever.Estupendo as vezes. E me agrada; desfruto com o que faço. Mas o fato é que… —vacilou,olhando-me de frente—Poderia dedicar-me a outra coisa e ser igualmente bom. Me agradariatanto ou tão pouco como isto. Não tenho essa absoluta convicção de que na vida há algo parao que estou destinado. Voce sim.

—E isso é bom? —Doía-me o nariz e tinha os olhos inchados de tanto chorar.Ele sorriu.—É muito incômodo, Claire. Para voce, para mim e para Brianna. Mas não sabes como te

invejo as vezes.Alongou uma mão. Depois de uma breve vacilação, entreguei-lhe a minha.—Ter essa paixão por algo… —Uma leve careta lhe esticou a boca— Ou por alguém. É

maravilhoso, Claire, e muito raro.Me estreitou a mão suavemente e a soltou. Depois tirou um livro da estante que tinha junto

à mesa. Era um de seus textos de referência: Patriotas, de Woodhill, uma série de biografiasdos Pais Fundadores da América do Norte.

—Esta gente era assim. Da que se interessa tanto como para arriscá-lo tudo. A maioria nãoé assim, sabes? Não é que não lhe importe, senão que não lhes importa tanto. —Pegou-me amão outra vez e percorreu com um dedo as linhas da palma— Estará aqui? Há gentedestinada a algo grandioso? Ou é que nascem com essa grande paixão e, se se encontram nascircunstâncias adequadas, as coisas passam? É o que se pergunta quando estuda história. Masnão há modo de sabê-lo, mesmo. Só sabemos o que conseguiram.

Seus olhos adquiriram uma clara nota de advertência. Deu um golpezinho à capa do livro.

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—Mas esta gente, Claire… pagou seu preço.—Eu sei. —Sentia-me como se visse a cena desde longe: Frank, aarrogante, esbelto e pouco

fatigado, com belos cabelos brancos nas têmporas. Eu, com meu sujo avental de cirurgia, ocabelo escorrido e os olhos enrugados pelas lágrimas de Brianna. Passamos um momento emsilêncio. Minha mão seguia descansando na de Frank. Vi as linhas e os vales misteriosos,claros como um mapa de estradas. Mas a que destino desconhecido levavam aquelescaminhos?

Anos antes, uma anciã dama escocesa me tinha lido a mão. «As linhas da palma mudam àmedida que tu mudas», tinha dito. «Com que tenhas nascido não importa tanto como o quefaças de ti mesma.»

E daí tinha feito de mim mesma, que estava fazendo? Um desastre. Não era boa mãe, nemboa esposa, nem bom médico. Um desastre.

—Eu me ocuparei de Bree.Naquele momento estava tão afundada em meus pensamentos angustiantes que não ouvi as

palavras de Frank. Olhei-o estúpidamente.—Que disse ?—Disse —repetiu com paciência— que me ocuparei de Bree. Quando sair da escola pode

vir à universidade e colocá-la em meu escritório até que eu tenha terminado.Esfreguei o nariz.—Não disse que o pessoal fazia mal em levar os seus filhos ao trabalho? —Ele criticava

muito a uma das secretárias por ter levado ao seu neto ao escritório durante o mês em que amãe esteve enferma.

Se encolheu de ombros com ar incômodo.—Bom, as circunstâncias mudam tudo. E não creio que Brianna corra pelos corredores,

gritando e virando os tinteiros como fazia Bart Clancy.—Eu não colocaria a mão no fogo —apontei irônica— Mas voce faria? —Na boca de meu

estômago oprimido começava a crescer uma pequena sensação, um cauteloso e incréduloalívio. Por enquanto não podia confiar que Frank me fosse fiel (sabia perfeitamente que não oera) podia confiar-lhe calmamente a Bree.

De repente a preocupação desapareceu. A menina amava a Frank; estaria na glória ante aperspectiva de ir todos os dias ao seu escritório.

—Por que? —perguntei diretamente— Nunca se entusiasmou na idéia de que eu fossemédica.

—Não —disse pensativo— Mas creio que não há maneira de te impedir. Talvez o melhorseja ajudar, para que Brianna não seja prejudicada.

Suas feições se endureceram e me deu as costas.—Se ele achava ter um senão, esse senão era Brianna —disse Claire removendo

pensativamente seu cacau—Por que se interessa, Roger? Por que perguntas? Demorou ummomento em responder, enquanto tragava lentamente seu cacau. Estava espesso, com natafresca e um pouco de açúcar torrado. Ao dar a primeira olhada a Brianna, Fiona, semprerealista, tinha abandonado qualquer esperança de levar a Roger ao altar pelo caminho do

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estômago. Mas Fiona era cozinheira tal como Claire era médica: tinha nascido com essahabilidade e tinha que a utilizar.

—Porque sou historiador, suponho —respondeu ao fim, olhando-a acima da xícara—.Preciso saber o que o fez e por que.

—E acha que eu posso dizer-te? —Claire o olhou firme — Ou o que eu sei?Ele assentiu com a cabeça.—Sabes mais do que a maioria. As fontes que nós historiadores usamos não costumam ter

teu… digamos… tua perspectiva —terminou com um amplo sorriso.A tensão se aliviou subitamente. Ela recolheu sua xícara, rindo.—Digamos assim —disse.—Além do mais —prosseguiu observando-a atenciosamente—, és franca. Não creio que

pudesses mentir nem ainda que o tentasses.Ela soltou um riso breve e seco.—Todo mundo pode mentir, jovem Roger, se tem uma boa causa. Até eu. Só que é mais

difícil para quem vive em cubos de vidro. Temos que criar as mentiras com antecipação.E inclinou a cabeça para os papéis que tinha ante si. Roger pensou que tinha abandonado a

conversa, mas um momento depois Claire voltou a levantar os olhos.—Tens toda a razão —reconheceu— Sou franca…, me entrego, mais do que nada. Para

mim é difícil não dizer o que penso. Imagino que se deu conta porque és igual.—Eu? —Roger se sentiu absurdamente comprazido.Claire assentiu com um leve sorriso nos lábios.—Oh, sim. É inconfundível, sabe? Não há muitos capazes de te dizer a verdade sobre si

mesmo. Só conheci a três…, quatro, agora —corrigiu, alargando o sorriso—. Um era Jamie,por suposto. —Seus longos dedos descansaram sobre o montão de papéis, quase acariciando-os— O maestro Raymond, o boticario que conheci em Paris. E um amigo que fiz enquantoestudava medicina, Joe Abernathy. E agora, voce. Parece-me.

Inclinou a xícara para beber o resto do rico líquido pardo. Depois olhou diretamente aRoger.

—Mas Frank tinha razão, em certo sentido. Não necessariamente é mais fácil saber para quefoste criado; mas ao menos não desperdiças tempo em questionamentos ou dúvidas. Se éssincero… bom, isso também não é necessariamente fácil. Mas suponho que és sincero contigomesmo e sabes o que és, tens menos probabilidades de pensar do que desperdiçaste a vidafazendo o que não te correspondia.

Deixou de um lado o montão de papéis para pegar outro: uma série de pastas com o logotipodo Museu Britânico.

—Jamie era assim —disse com suavidade, para si mesma— Não era dos que dão as costas aalgo que considerasse seu dever. Perigoso ou não. E creio que não se sentiu desperdiçado…qualquer que fosse seu final.

Ficou em silêncio, absorta nos aracnideos traços de algum escrevente morto muito tempoatrás. Procurava alguma anotação capaz de revelar-lhe onde tinha estado Jamie Fraser, se tinha

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desperdiçado a vida numa prisão ou terminado numa masmorra solitária.Roger deixou as delgadas folhas que tinha estado olhando e bocejou intensamente, sem se

incomodar em tampar a boca.—Estou tão cansado que vejo duplo —disse— Quer que continuar pela manhã?Claire demorou um momento a responder.—Não. —Pegou outra pasta e lhe sorriu; em seus olhos tinha a expressão de distância— Vá

dormir Roger. Procurarei um pouco mais.Quando no fim o encontrei estive a ponto de passá-lo por alto. Em vez de ler os nomes com

atenção, limitava-me a procurar nas páginas a letra J: «John, Joseph, Jacques, James.» TinhaJames Edward, James Alan, James Walter ad infinitum. E de repente apareceu ali, em letrapequena e exata: «Jms. Mackenzie Fraser, de Brock Turac.»

Depositei cuidadosamente a página na mesa; fechei os olhos um instante, para despejá-los, edepois voltei a olhar. Ali estava ainda.

—Jamie —disse em voz alta. O coração me palpitava com força no peito— Jamie —repetimais baixo.

Eram quase as três da manhã. Todos dormiam. Não senti desejo de correr para acordar aBrianna nem a Roger para dar-lhes a notícia. Queria reservar-me um momento, como seestivesse só ali, no quarto iluminado pelo lustre, com Jamie em pessoa.

Seguí com o dedo a linha de tinta. A pessoa que tinha escrito aquela linha tinha visto Jamie;talvez a tinha escrito tendo-o ante si. A data era 16 de maio de 1753. Mais ou menos nestaépoca do ano. Não era a primeira vez que o encarceravam. Qual tinha sido seu aspecto aoenfrentar-se ao funcionário da prisão inglesa, sabendo o que lhe esperava? Cenhoso como odemônio, provavelmente, olhando ao longo de seu nariz longo e reto, com olhos tão frios, tãoazuis, escuros e formidáveis como as águas do lago Ness.

Abri os olhos. Apegada na recordação, nem sequer tinha visto qual era a prisão da queproviam esses registos.

«Ardsmuir», dizia o cartão, pulcramente colada à pasta.—Ardsmuir? —disse sem entender— E onde diabos fica isso?

CAPÍTULO 8

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Prisioneiro de honra

Ardsmuir, Escocia15 de fevereiro de 1755

—Ardsmuir é o traseiro do mundo—comentou o coronel Harry Quarry. Levantou a taçapara o jovem que estava de pé ante a janela— Faz doze meses que estou aqui, isto é: onzemeses e mais vinte e nove dias dos que teria querido. Desfrute seu novo posto, milord.

O comandante John William Grey se afastou da janela que dava ao pátio, da qual tinhaestado observando seus novos domínios.

—Parece um pouco incômodo —reconheceu secamente, levantando sua taça— Semprechove assim?

—Sim. Isto é Escócia… Pior ainda: o cú desta maldita Escócia. —Quarry deu um longotrago de whisky; depois tossiu e exalou ruidosamente o ar— A única compensação é a bebida—disse algo rouco— Visita os traficantes locais vestido com o seu melhor uniforme, e nosfarão um preço decente. É assombrosamente barato sem os impostos. Deixo uma lista dasmelhores destilarias.— Apontou com a cabeça a enorme escrivaninha de carvalho. Depois,levantando-se, deu um puxão na primeira gaveta.

—Aqui está o contra-cheque dos guardas. —Pegou na escrivaninha uma maltratada pasta decouro. De imediato, outra— E a dos prisioneiros. Por enquanto tem cento e noventa e seis; acifra habitual é de duzentos, somando ou restando os que falecem por doença e algum caçadorfurtivo aprisionado na campina.

—Duzentos —repetiu Grey— E quantos nas barracas dos guardas?—Oitenta e dois, segundo o contra-cheque. Em condições de ser úteis, em torno da metade.

—Quarry voltou a afundar a mão na gaveta e tirou uma garrafa de vidro pardo tampada comuma cortiça. Sacudiu para ouvir o chapino e sorriu sardónico— Não só o comandante procuraconsolo na bebida. A metade destes ordinários costumam estar incapacitados quando passalista. Eu deixarei isto também. Nos fará falta.

Voltou a guardar a garrafa e abriu a última gaveta.—Aqui, requisições e cópias; o pior do posto é a burocracia. Não é grande coisa se contar

com um empregado decente. Neste momento não o há. Tinha um cabo com boa letra masmorreu faz duas semanas. Treina outro, não terá nada a fazer salvo caçar galos silvestres eprocurar o ouro do Francês.

Festejou sua própria anedota com uma gargalhada; naquela parte de Escócia abundavam osrumores sobre o ouro que, supostamente, Luis de França tinha enviado a seu primo CarlosStuart.

—Os prisioneiros não são desobedientes? —perguntou Grey— Tenho entendido que, emsua maior parte, são jacobitas das Terras Altas.

—Efetivamente, mas bastante dóceis. —Quarry fez uma pausa para olhar pela janela. Umabreve fila de homens maltrapilhos saíam por uma porta praticada na imponente muralha depedra— Culloden os deixou sem coragem —disse indiferente— Disso se encarregou Billy, o

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carniceiro. E aqui eles trabalham tanto que não fica energia para causar problemas.Grey assentiu. A fortaleza de Ardsmuir estava em processo de renovação, utilizando,

bastante ironicamente, a mão de obra dos escoceses encarcerados ali. Levantou-se para reunir-se com Quarry ante a janela.

—Ali sai uma quadrilha cortando o caminho pela multidão. —O coronel apontou com acabeça ao grupo abaixo: dez ou doze homens barbudos, esfarrapados como espantalhos,formados em uma torpe fila ante um soldado com jaqueta vermelha. Acompanhava-nos seissoldados armados de mosquetes, cujo elegante aspecto contrastava notoriamente com o dosmontanheses. Quarry os contou,cenhoso— Deve de ter alguns enfermos; um bando de trabalhose compõe de dezoito homens: três prisioneiros por guarda, devido aos punhais. Ainda que sãoassombrosamente poucos os que tratam de fugir.

Se afastou da janela, dando um pontapé em um grande cesto cheio de toscos fragmentos desubstância escura.

—Deixa a janela aberta ainda que chova —aconselhou— Caso contrário, a fumaça damultidão o sufocará. —Como ilustração, respirou fundo e deixou escapar o ar explosivamente—. Deus meu, que alegria, voltar a Londres!

—Suponho que não há muita vida social na área —perguntou Grey seco.Quarry se curvou a rir, divertido pela idéia.—Vida social? Meu querido amigo! Se não encontrar uma ou duas moças que há na aldeia,

sua vida social consistirá somente em conversar com vossos oficiais. São quatro, dos quais só aordem é capaz de falar sem empregar blasfemias. E um prisioneiro.

—Um prisioneiro? —Grey afastou os olhos dos registos que estava folheando com umaloira sobrancelha levantada.

—Oh, sim. —Quarry se mexia inquieto pelo escritório, desejoso para partir. A carruagemesperava; só tinha demorado para informar ao seu substituto a efetuar o transpasso formal docomando. Deteve-se para dar uma olhada a Grey, curvando a boca como se desfrutasse de umabrincadeira secreta— Suponho que ouvistes falar de Jamie Fraser, o ruivo.

Grey se pôs levemente rígido, mas manteve a cara tão impávida como pôde.—Como a maioria —respondeu frio— Esse homem se destacou durante a guerra.Então esse maldito Quarry conhecia o caso! Inteiro ou só a primeira parte?O coronel contraiu levemente a boca, mas se limitou a assentir.—Bastante, sim. Bom, temos ele aqui. É o único jacobita de alta graduação; os prisioneiros

montanheses o tratam como um chefe. Portanto, se surge alguma questão relacionada com osinternos, e surgirá, vos asseguro, é ele quem atua como porta-voz.

Quarry tinha estado caminhando em meias; naquele momento se sentou para pôr as botaslongas da cavalaria para enfrentar o barro de fora.

—Um, Mac Anfhear Dhuibh. Assim o chamam. Ou simplesmente Mac Dubh. Fala gaélico?Eu também não. Mas Grissom sim, e ele diz que significa «James, filho do Negro». Metadedos guardas lhe têm medo; são os que combateram em Prestonpans às ordens de Cope. Dizemque é o diabo em pessoa. Um pobre diabo agora! —O coronel ofegou— Os prisioneiros lheobedecem sem dar um piu. Mas ordena algo sem que ele lhe ponha seu lacre e será como falar

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com as pedras do pátio. Teve ajustes com escoceses? Ah, por suposto; combateu em Cullodencom o regimento de seu irmão, não é?

Quarry deu uma palmada na testa ante sua fingida má memória. Aquele maldito homemsabia tudo!

—Então voce tem idéia. Teimoso é pouco dizer. O que significa que precisa da boa vontadede Fraser…, ou ao menos sua colaboração. —Fez uma pausa para desfrutá-lo— Eu oconvidava a jantar comigo uma vez por semana para falar de como ia tudo e me dava bonsresultados. Podes tentar o mesmo.

—Suponho que sim. —O tom de Grey era sereno mas tinha os punhos apertados. Jantariacom Fraser quando tivesse maçaricos no inferno.

—É um homem instruído —continuou Quarry com os olhos brilhantes de malícia— Uminterlocutor bem mais interessante do que os oficiais. Sabe jogar xadrez. Voce joga algumapartida de vez em quando, não?

—De vez em quando. —Tinha os músculos do abdomem tão apertados que lhe custavarespirar. Por que não fechava a boca e se ia de uma vez aquele maldito idiota?

—Oh, bom, tudo fica em suas mãos. —O coronel se voltou para a porta com o chapéu namão— Uma coisa mais. Se jantar a sós com Fraser… não lhe dê as costas.

Sua cara tinha perdido a graça ofensiva. Grey o olhou, cenhoso, mas não viu mostras de quea advertência fora uma brincadeira.

—Digo em sério —aclarou Quarry, subitamente sério— Está encadeado, mas não é difícilenforcar a um homem usando a corrente. E Fraser é um gigante.

—Eu sei. —Furioso, Grey sentiu que lhe subia o sangue à cara. Para dissimulá-lo girou emvolta refrescando-se o semblante com o ar frio que entrava pela janela entreaberta e disse àspedras cinzas do pátio que brilhavam sob a chuva—: Se é tão inteligente como diz, nãocometeria a estupidez de atacar-me em minhas próprias habitações e dentro da prisão. O queganharia com isso?

O coronel não respondeu. Em um momento Grey girou para ele e o viu olhando-opensativamente; já não tinha rastos de humor em sua cara larga e rubicunda.

—Existe a inteligência —disse com lentidão— E também existem outras coisas. Mas voce émuito jovem; talvez não tenha visto de perto o ódio e o desespero. Na Escócia teve muitonestes dez últimos anos.

O comandante Grey era jovem, certamente; tinha mal vinte e seis anos, pele clara e pestanasfemininas que lhe davam um aspecto ainda mais juvenil. Para complicar o problema, mediatrês ou menos quatro centímetros da média e era de ossos finos. Se ergueu em toda suaestatura.

—Conheço bem essas coisas, coronel —disse com voz firme.Como ele, Quarry era o filho menor de uma boa família, mas o superava em categoria.

Tinha que se controlar.Os brilhantes olhos de avelã descansaram nele, especulativos.—Dou conta.Com um brusco movimento, Quarry pôs o chapéu. Depois tocou a bochecha, onde a linha

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escura de uma cicatriz sulcava a pele avermelhada: recordação do escandaloso duelo que otinha enviado ao exílio de Ardsmuir.

—Sabe Deus o que fizeste para o enviar aqui, Grey —disse mexendo a cabeça— Por vossopróprio bem, espero que o mereça.Te desejo boa sorte!

E desapareceu com um volteio em seu manto azul.—Mais vale um mau conhecido do que um bom para conhecer —disse Murdo Lindsay

sacudindo lúgubremente a cabeça— E aposto que Harry não era tão mau.—Não, é verdade —disse Kenny Lesley— Mas estavas aqui quando veio, não é? Era muito

melhor do que esse merda de Bogle, não?—Sim —reconheceu Murdo inexpressivo. Que queres dizer, homem?—Se Harry era melhor do que Bogle —explicou Lesley paciente—, Harry era bom para

conhecer. E Bogle, o mau conhecido. Apesar de tudo, Harry foi melhor. Assim se enganas,homem.

—Não me engano! Ao menos, isso eu creio —murmurou Murdo sem poder recordarexatamente o que tinha dito. Voltou-se para apelar à corpulenta silhueta sentada no canto— Meengano, MacDubh?

O homem alto se espreguiçou, fazendo tinir levemente a corrente de seus grilhetes, e sejogou a rir.

—Não, Murdo, não se engana. Mas ainda não sabemos se tens razão. Terá que ver o quantoé o bom para conhecer, certo? —Ao ver que Lesley franzia as sobrancelhas, preparado paraseguir discutindo, alçou a voz e disse a todos os presentes:— Alguém viu o novo carcereiro?Johnson? MacTavish?

—Eu —disse Hayes adiantando-se com gosto para esquentar-se as mãos ante o fogo.Na ampla cela tinha uma chaminé frente à qual só podiam pôr-se seis homens ao mesmo

tempo. Os outros quarenta ficavam expostos ao intenso frio, apertadoss para dar-se calor.Portanto, tinham lembrado que quem tivesse um conto que relatar ou uma canção que entoarpodia situar-se junto ao fogo enquanto tivesse a palavra.

Hayes relaxou, com os olhos fechados e uma bem aventurado sorriso na cara, alongando asmãos para o calor. Os movimentos inquietos, a ambos lados, fizeram que se apressasse a abriros olhos.

—Vi-o quando desceu de sua carruagem. E outra vez quando lhes subiu um prato de docesda cozinha, enquanto conversava com o aposto Harry. É loiro, de longos cachos amarelosatados com uma fita azul. Tem os olhos grandes e as pestanas longas, como uma moça.

Hayes olhou com obcenidade aos seus ouvintes e agitou suas pálpebras, zombando.Alentado pelos risos, passou a descrever as roupas do novo carcereiro («finas como as de umlorde»), sua bagagem e seu servente («um desses Sassenachs que falam como se tivessemqueimado a língua») e tudo o que tinha podido perceber em sua maneira de expressar-se.

—Fala claro e de pressa, como se estivesse muito informado. —Mexeu dubitativamente acabeça— Mas é muito jovem. Dá a impressão de ser quase um menino, ainda que suponho queé maior do que parece. Mantém-se muito erguido, como se lhe tivessem metido uma vara pelotraseiro.

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Isto deu origem a uma série de risos e comentários vulgaress. Depois Hayes cedeu seu lugara Ogilvie, que conhecia um episódio longo e chocante sobre o senhor de Donibristle e a filhado porqueiro. Afastou-se do fogo sem ressentimento e, seguindo com o costume, foi sentar-sejunto a Mac Dubh.

Mac Dubh nunca ocupava seu lugar junto com eles, nem sequer quando lhes narrava longashistórias dos livros que tinha lido: As aventuras de Roderick Random, A história de Tom Jonesou a favorita de todos: Robinson Crusoe. Alegando que precisava espaço para suas longaspernas, ficava sempre no mesmo canto, onde todos podiam ouvir-lhe.

—Crês que falarás amanhã com o novo carcereiro, Mac Dubh? —perguntou Hayes aosentar-se ao seu lado— Cruzei-me com Billy Malcolm, que vinha cortando pela multidão, egritou que os ratos estão muito audazes em sua cela. Esta semana morderam seis homensenquanto dormiam e dois deles estão purulentos.

Mac Dubh mexeu a cabeça e coçou o queixo. Antes de cada audiência semanal com HarryQuarry se lhe facilitava uma navalha para barbear-se, mas tinham passado cinco dias desde aúltima e já tinha o queixo coberto de cerdas vermelhas.

—Não sei, Gavin —sussurrou— Quarry prometeu explicar ao novo carcereiro o nossoacordo, mas este pode ter costumes diferentes, não? Se me chama não deixarei de mencionar osratos. Malcolm pediu que Morrison visse as feridas?

Na prisão não tinha médicos. Morrison, que tinha boa mão para curar, permitia ir de cela emcela para atender aos enfermos ou lesados, se Mac Dubh o solicitava.

Hayes mexeu a cabeça.—Não teve tempo para dizer mais. Passavam marchando, entende?—Será melhor que envie Morrison —decidiu Mac Dubh— Ele pode perguntar a Billy se há

algum outro problema ali.Tinha quatro celas principais, nas que se alojava os prisioneiros em grupos numerosos; as

notícias passavam de uma a outra graças às visitas de Morrison e aos intercâmbios dos homensque se produziam em bandos quando saíam diariamente a trabalhar.

Morrison veio quando mandou chamar, guardando em seu bolso quatro crânios de ratostalhados, com que os prisioneiros improvisavam jogos de casualidade. Mac. Dubh procurou àsapalpadelas sob o banco que ocupava e tirou o saco de pano que saía ao páramo.

—Oh, outra vez esses malditos cardos! —protestou Morrison, ao ver o homão fazendo umacareta ao rebuscar na bolsa— Não posso fazer que comam essas coisas. Todos me dizem quenão são vacas nem porcos.

Mac Dubh tirou cautelosamente um punhado de caules secos e chupou os dedos fincados.—São teimosos como porcos, sem duvidá —comentou— É só um bicho leiteiro. Quantas

vezes queres que te diga, Morrison? Tira os espinhos, reduz a polpa as folhas e os caules e, sesão demais espinhosos para comer untados numa bolacha, prepara um chá para que os homenso bebam.

— Voces lembraram que as vacas e os porcos nunca perdem os dentes. —Depois de emitir obreve ruído que nele passava por gargalhada, Morrison foi recolher as poucas ervas eungüentos que utilizava como remédios. Mac Dubh deu uma olhada pela cela para assegurar-sede que não estivesse gestando nenhum problema. Depois fechou os olhos. Estava fatigado,

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tinha passado todo o dia carregando pedras, sem tempo sequer para pensar no novo carcereiro,por importante que fosse aquele homem na vida de todos. Jovem, dizia Hayes. Isso podia serbom, mas também podia ser mau.

Com um suspiro, mudou de postura, incomodado (pela milésima vez) pelas algemas quelevava. Além das roçaduras, causavam-lhe dores de costas pela impossibilidade de separar osbraços mais de meio metro.

—Mac Dubh —disse uma voz suave ao seu lado—, posso dizer-te uma palavra ao ouvido?Ao abrir os olhos viu Ronnie Sutherland ao seu lado.—Claro, Ronnie.Incorporou-se, afastando com firmeza sua mente das correntes e do novo carcereiro.Essa noite, John Grey escreveu:Queridísima mãe:Cheguei são e salvo ao meu novo posto, estou cômodo. Meu predecessor, o coronel Quarry

(sobrinho do duque de Clarence, lembras?) deu-me as boas vindas e me pôs ao tanto deminhas funções. Conto com um excelente servidor e, por enquanto é inevitável que muitascoisas de Escócia me pareçam estranhas num princípio, não duvido que a experiência tem deser interessante. Para jantar me serviram um refogado que, segundo o garçom, chama-se«haggis». Dizem ser o órgão interior de uma ovelha, recheado com uma mistura de aveiamoida e certa quantidade de carne cozida, de origem não identificada. Ainda me assegura que,para os habitantes de Escócia, este prato é uma verdadeira preciosidade, enviei-o à cozinha esolicitei a mudança um simples filet de cordeiro. Tendo celebrado desse modo minha primeirae humilde comida aqui, e estando algo fatigado pela longa viagem (de cujos detalhes teinformarei em minha próxima carta) creio que agora devo retirar-me, deixando uma descriçãomais completa do ambiente, com o que ainda não estou muito familiarizado, para outraocasião.

Fez uma pausa, dando golpezinhos no secante com a pluma, que deixou pequenos pontos detinta; uniu-os distraidamente com linhas, traçando o contorno de um objeto irregular.

Se atreveria a perguntar por George? Não podia fazê-lo diretamente, mas sim com umareferência à família, perguntando a sua mãe se tinha visto recentemente a lady Everett epedindo-lhe que lhe transmitisse suas recordações ao filho.

Suspirando desenhou outro ponto. Não. Sua mãe viúva ignorava a situação, mas o esposo delady Everett se movia no círculo militar. Com a influência de seu irmão maior reduziria afofoca ao mínimo, lorde podia sentir o assunto e não demoraria em somar dois em dois. Comque ele dissesse uma palavra imprudente a sua esposa sobre George e essa palavra passasse delady Everett a sua mãe… A condessa viúva de Melton não era tonta. Sabia muito bem que seufilho menor tinha caído em desgraça; aos oficiais jovens bem vistos pelos superiores não selhes enviava ao cú da Escócia a supervisionar a renovação de um pequeno cárcere semimportância. Mas Harold, seu irmão, tinha-lhe explicado que se tratava de um azarado assuntodo coração, insinuando algo indecoroso, para evitar que ela fizesse perguntas. Provavelmente,a condessa pensava que tinham surpreendido a John com a esposa do coronel ou com umaramera em suas habitações.

Um azarado assunto do coração! Molhou a pluma no tinteiro com um sorriso preocupado.Talvez Harold era mais sensível do que parecia ao qualificá-lo assim. Claro que, desde a morte

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de Héctor em Culloden, todos aqueles assuntos tinham sido azarados para John.Ao pensar em Culloden lembrou de Fraser, pouco que tinha estado evitando-o durante todo

o dia. Deu uma olhada à pasta onde se guardava o contra-cheque de prisioneiros, tentado abrí-la para procurar o nome. Mas que sentido tinha? Nas Terras Altas podia ter vinte homenschamados James Fraser, mas só um apelidado como ruivo.

—Perdão, senhor. Devo já esquentar a cama?O acento escocês, a suas costas, sobressaltou-lhe. Ao girar em volta se encontrou com a

cabeça revolta do prisioneiro encarregado de atender suas habitações.—Oh! Eh… sim, obrigado… MacDonell?—arriscou hesitante.—MacKay, milord —corrigiu o homem sem ressentimento visível. A cabeça desapareceu.Grey suspirou. Aquela noite já não poderia fazer nada. Voltou à escrivaninha e aproximou a

carta para assiná-la de pressa: Com todo afeto, teu obediente filho, John Wm. Grey. Depoisespalhou areia sobre a assinatura, selou-a com seu anel e a deixou a um lado para que adespachassem pela manhã.

Apagou a vela e se foi à cama guiado pelo resplendor difuso do lar.Devido aos efeitos do esgotamento e o whisky, deveria ter dormido de imediato; no entanto,

o sonho se mantinha a distância, rondando sua cama como um morcego mas sem chegar aposar-se. Cada vez que estava a ponto de sumir-se no descanso aparecia ante seus olhos umavisão do bosque de Carryarrick; então se descobria, uma vez mais, espevitado e sudoroso, como coração retombando-lhe nos ouvidos.

Naquela época ele tinha dezesseis anos e estava muito excitado por sua primeira campanha.Ainda que ainda não era oficial, seu irmão Harold o tinha levado com o regimento a fim de queconhecesse a vida militar.

Enquanto marchavam para reunir-se com o general Cope em Prestonpans, acamparam cercade um escuro bosque escocês. John se sentia muito nervoso para dormir. Como seria a batalha?Não se decidia a mencionar seu medo nem sequer a Héctor. Héctor o queria, mas era já umhomem de vinte anos, alto, musculoso e temerário, com um cargo de tenente e deslumbrantesepisódios das batalhas livradas em França.

Ainda agora ignorava se tinha feito isso para amular a Héctor ou só para impressioná-lo. Ocaso é que, ao ver o montanhes no bosque e ao reconhecê-lo como o famoso Jamie Fraser doscartazes, decidiu matá-lo ou capturá-lo.

Lhe tinha ocorrido, sim, a idéia de voltar ao acampamento em procura de ajuda; mas ohomem estava só (ao menos, isso pensou John) e obviamente desprevenido; calmamentesentado num tronco, comia um bocado de pão.

Ele desembainhou seu punhal e se escorreu entre o bosque para a ruiva cabeça, com aempunhadura da faca na mão e a mente cheia de visões de glória, imaginando os elogios deHéctor.

Mas, em seu lugar, quando descarregava seu punhal, rodeando com um braço o pescoço doescocês…

Lorde John Grey se esticou na cama, acalorado pelas recordações. Tinham caído para trás,embolando juntos na crepitante escuridão coberta de folhas secas, procurando às apalpadelasda faca, debatendo-se e lutando…, por defender a vida, pensava ele.

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Ao princípio o escocês estava embaixo dele; depois, de algum modo, retorceu-se e ficouacima. John tinha trazido numa ocasião uma grande apito feito na Índia; e isso parecia o tato deFraser: ligeiro, suave e horrivelmente poderoso; movia-se com aqueles aros musculosos, nuncapor onde se esperava.

Viu-se ignominiosamente atirado de bruços entre as folhas, com os braços dolorosamenteretorcidos nas costas. Num acesso de terror, seguro de que ia ser assassinado, tirou com todassuas forças do braço aprisionado; o osso se rompeu com um estalido de dor que o deixou semsentido.

Ao voltar em si estava apoiado numa árvore frente a um círculo de ferozes montanheses,todos com saias. No meio de todos eles estava o Ruivo Fraser… e a mulher.

Grey apertou os dentes. Maldita mulher! Se não tivesse sido por ela… Bom, só Deus sabe oque poderia ter sucedido. O que sucedeu foi que ela disse algo. Era inglesa e, por sua maneirade falar, uma dama. John, idiota!, chegou à conclusão de que a mulher era refém dos cruéisescoceses, que sem dúvida a teriam raptado com o propósito de violá-la. Todo mundo dizia queos montanheses violavam à menor oportunidade que se lhes apresentava e de que se deleitavamdesonrando às inglesas. Que podia pensar ele!

E lorde John William Grey, de dezesseis anos, extravasando idéias militares de galantería enobreza, ferido, estremecido e lutando contra a dor de seu braço fraturado, tratou de negociarpara resgatá-la de seu destino. Fraser, alto e zombador, jogou com ele como o pescador comum peixe; despiu uma parte à mulher ante seus olhos para obrigá-lo a dar informação sobre aposição e o número do regimento de seu irmão. E quando ele lhe teve dito quanto sabia, oruivo lhe revelou, rindo, que a mulher era sua esposa. Todos riram; ainda podia ouvir asobscenas e alegres vozes dos escoceses.

Grey deu a volta na cama, irritado no colchão estranho. Para piorar as coisas, Fraser nãotinha tido sequer a decência de matá-lo e o amarrou a uma árvore, onde seus camaradas oencontrariam pela manhã, quando os homens do ruivo tivessem visitado o acampamento e,com a informação proporcionada por ele, teriam inutilizado o canhão que levavam a Cope.

Todo mundo se informou, por suposto. Ainda que o escusaram por sua curta idade e o fatode que ainda não fora oficial, John se converteu num pária, em alvo de desprezo. Ninguém lhedirigia a palavra, salvo seu irmão… e Héctor. Héctor, sempre leal.

Com um suspiro, esfregou a bochecha contra o travesseiro. Ainda podia ver a Héctor em suamente: um moreno de olhos azuis e boca terna sempre sorridente. Tinha morrido dez anosatrás, em Culloden, feito em pedaços por uma espada escocesa, mas John ainda acordava asvezes ao amanhecer, com o corpo arqueado por espasmos, sentindo seu contato.

E agora, isto. Essa nomeação o tinha horrorizado: estar rodeado de escoceses, com suasvozes chiadoras, abrumado pela recordação do que lhe tinham feito a Héctor. Mas nunca, nemno mais horrível de seus pesadelos, tinha pensado voltar a encontrar-se com James Fraser.

Grey se levantou pela manhã sem ter descansado, mas com uma decisão tomada. Estava ali.Fraser também estava ali. E nenhum podia mudar de lugar num futuro previsível. Bem. Teriaque o ver de vez em quando (dentro de uma hora falaria ante os prisioneiros reunidos e, emfrente, deveria vistoriá-los com regularidade), mas não o receberia em privado. Se o mantinha adistância, talvez pudesse manter também a risca as recordações que lhe acordava. E ossentimentos.

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Pois, por enquanto era a recordação da ira e a humilhação passada o que não lhe tinhapermitido conciliar o sonho, foi a outra cara da situação atual o que o manteve desperto até oamanhecer: o compreender, pouco a pouco, que Fraser já não era seu torturador senão umprisioneiro, seu prisioneiro, tão a sua graça como os outros.

Depois de chamar a seu servente com a campainha, foi descalço à janela para ver comoestava o tempo; o frio da pedra sob os pés lhe arrancou uma exclamação.

Chovia, o qual não era estranho. Abaixo, no pátio, os prisioneiros já estavam formando asquadrilhas de trabalho. Grey tinha imaginado a Fraser preso numa diminuta cela de pedragelada, nu nas noites de inverno, alimentado com água suja, flagelado no pátio da prisão.Tinha-o imaginado com todos os detalhes, desfrutando-os. Ouvia Fraser implorar misericórdiae se concebia a si mesmo desdenhoso e altaneiro.

Imaginou-o e sentiu um surto de asco contra si mesmo.Fraser era agora um inimigo derrotado, um prisioneiro de guerra, responsabilidade da Coroa.

Responsabilidade de Grey. E seu bem-estar, obrigação de honra. Ter encontrado a Fraser nabatalha, tê-lo mutilado ou matado teria sido um selvagem prazer. Mas o fato inevitável era que,enquanto aquele homem fora seu prisioneiro, a honra lhe impedia fazer-lhe danos.

Quando esteve barbeado e vestido, já se tinha reposto o suficiente para encontrar-lhe certohumor lúgubre à situação. Sua estúpida conduta em Carryarrick tinha salvado a vida de Fraserem Culloden. Agora, já saldada aquela dívida e com Fraser em seu poder, sua mesmaimpotência de prisioneiro lhe livrava de todo perigo. Pois os Grey, estúpidos ou sábios,ingênuos ou experimentados, eram antes de mais nada homens de honra.

Sentindo-se algo melhor, se olhou ao espelho para endereçar-se a peruca e desceu paratomar café da manhã, antes de pronunciar seu primeiro discurso ante os prisioneiros.

—Quer que vos sirva o jantar na sala, senhor, ou aqui? —A cabeça de MacKay, despenteadacomo sempre, apareceu no escritório.

—Hum? —murmurou Grey absorto nos papéis espalhados ante ele. Depois levantou a osolhos — Ah. Aqui, por favor.

Apontou vagamente uma canto da enorme escrivaninha e voltou ao seu trabalho; quase nemalçou a vista ao chegar a bandeja com a comida, pouco depois.

O da burocracia não era uma brincadeira de Quarry. John tinha passado o dia sem fazeroutra coisa que redigir e assinar requisitorias. Tinha que conseguir cedo um escrivente, se nãoqueria morrer de pura chatisse.

Deixou a pluma com um suspiro e fechou os olhos, massageando a dor surda que sentiaentre as sobrancelhas. O sol não tinha incomodado em aparecer uma só vez desde sua chegadae trabalhar todo o dia numa habitação cheia de fumaça, à luz das velas, fazia que lhe ardessemos olhos como brasas. O dia anterior tinham chegado seus livros mas ainda estavam semdesempacotar.

Um surrado leve e discreto fez que se incorporasse bruscamente, abrindo os olhos. Tinha umgrande rato parda sentado no canto de sua escrivaninha, com um bocado de pudim de ameixaentre as patas dianteiras. Não se moveu; limitou-se a olhá-lo retorcendo os bigodes.

—Mas malditos sejam meus olhos! —exclamou Grey assombrado— Ouve, asqueroso! Issoé meu jantar!

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O rato mordiscou pensativamente o pudim, com os olhos brilhantes fixos no comandante.—Saia daqui! —Enfurecido, Grey pegou o objeto mais próximo e o atirou. A garrafa de

tinta estourou contra o solo e o sobressaltado animal saltou da escrivaninha fugindoprecipitadamente entre as pernas de MacKay que, ainda mais sobressaltado, tinha aparecido naporta para ver a que se devia aquele barulho.

—Há algum gato na prisão? —inquiriu Grey jogando o conteúdo da bandeja ao cesto dospapéis.

—Sim, senhor, nos depósitos há gatos —respondeu MacKay, arrastando-se sobre as mãos ejoelhos para limpar as pequenas impressões de tinta deixadas pelo rato.

—Bom, traz um, MacKay, por favor —ordenou Grey— De imediato.Foi-se à janela, tratando de despejar-se com o ar fresco enquanto MacKay concluía a

limpeza. De repente lhe ocorreu algo.—Há muitas ratos nas celas? —perguntou.—Sim, muitos, senhor —respondeu o prisioneiro— Direi ao cozinheiro que prepare outra

bandeja. Não, senhor?—Sim, por favor. E depois, senhor MacKay, ocupa-se em por em cada uma das celas um

gato.MacKay pareceu vacilar. Grey, que estava recolhendo seus papéis dispersos, deteve-se.—Algum problema, MacKay?—Não, senhor —replicou o interno— Só que eles mantêm a risca os escaravelhos. E com

todo respeito, senhor, não creio que aos homens lhe agradem que um gato coma todos seusratos.

Grey o olhou com um pouco de asco.—Os prisioneiros comem ratos? —perguntou, com a recordação daqueles dentes amarelos

mordiscando seu pudim de ameixas.—Só se têm a sorte de pegar um, senhor. Pode ser que os gatos ajudem um pouco, depois de

tudo. Precisa de algo mais, senhor?

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CAPÍTULO 9

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O VAGABUNDO

A decisão de Grey com respeito a James Fraser durou duas semanas: até que chegou omensageiro, da aldeia de Ardsmuir, com notícias que mudou tudo.

—Ainda vive? —perguntou ásperamente ao homem.O mensageiro, um dos aldeanos que trabalhavam para a prisão, assentiu com a cabeça.—Eu mesmo o vi, senhor, quando o trouxeram. Agora está no Tilo, bem atendido… mas

não creio que baste atendê-lo bem, senhor. Não sei se me compreendes. — Levantousignificativamente uma sobrancelha.

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—Compreendo —respondeu Grey—Obrigado. Seu nome…?—Allison, senhor. Rufus Allison, para servi-lo.O homem aceitou o chelín que lhe oferecia e, fazendo uma reverência com o chapéu sob o

braço, retirou-se.Grey permaneceu sentado em sua escrivaninha, contemplando o céu cinzento. Ante a

palavra ouro muitos ouvidos se aguçavam, especialmente os seus.Aquela manhã tinham encontrado um homem vagando na neblina do páramo, ao redor da

aldeia. Trazia as roupas empapadas de água de mar e delirava pela febre. Não deixava debalbuciar, mas quem o tinha resgatado não encontrava muito sentido a suas divagações. Ohomem parecia ser escocês, mas falava numa mistura incoerente de francês e gaélico, dizendoaqui e lá alguma palavra inglesa. E uma dessas palavras tinha sido «ouro».

A combinação de escoceses, ouro e francês naquela zona do país só podia trazer uma idéia àmente de alguém que tivesse combatido durante os últimos dias do alçamento jacobita: o ourodo Francês, a fortuna em barras de ouro que, segundo rumores, Luis de França tinha enviadoem segredo para auxiliar a seu primo, Carlos Stuart. E que chegou muito tarde.A verdade é queesse ouro, até então, não tinha aparecido.

Francês e gaélico. Grey falava um pouco de francês, resultado de ter combatido vários anosno estrangeiro, mas nem ele nem seus oficiais dominavam o bárbaro gaélico, descontandoalgumas palavras que o sargento Grissom tinha aprendido, sendo menino, de uma babáescocesa. Não podia confiar num homem da aldeia, se a história tinha um pouco de verdade.Oouro do Francês! Parte de seu valor como tesouro (que, em todo caso, pertenceria à Coroa),para John William Grey tinha um considerável valor pessoal. O achado daquela reserva quasemítica seria seu passaporte para sair de Ardsmuir e regressar a Londres, à civilização.

Não, não podia confiar num aldeano. Também em nenhum de seus oficiais. E numprisioneiro? Sim, não tinha perigo em empregar um prisioneiro, pois nenhum dos internospoderia utilizar a informação em proveito próprio. Por desgraça, todos os prisioneiros falavamgaélico e alguns também um pouco de inglês, mas só um dominava também o francês. «É umhomem instruído», repetiu a voz de Quarry em sua memória.

—Maldita seja! —murmurou Grey. Não tinha outro remédio. Allison tinha dito que ovagabundo estava muito enfermo e não tinha tempo para procurar alternativas. Cuspiu umfragmento de pluma.

—Brame! —gritou.O sobressaltado cabo debruçou a cabeça.—Sim, senhor?—Traga o prisioneiro James Fraser. De imediato.O alcaide, em pé depois de sua escrivaninha, apoiou-se nele como se o enorme móvel de

carvalho fora realmente o baluarte que parecia. Sentiu as mãos úmidas; o pescoço branco douniforme parecia apertar-lhe.

O coração lhe deu um pulo violento ao abrir a porta. O escocês entrou com um leve tinidode correntes e se deteve em frente a escrivaninha.

Muitas vezes, Grey tinha visto Fraser no pátio, com os outros prisioneiros, mas nunca a uma

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distância que lhe permitisse ver-lhe a cara com clareza. Tinha mudado; isso o impressionou,mas também foi um alívio. Levava muito tempo vendo em sua memória uma cara limpamentebarbeada, cenhosa e ameaçante ou alegre pelo riso zombador. Aquele homem tinha uma barbacurta e o rosto sereno e cauteloso; seus olhos azuis eram os mesmos, mas não davam sinais dereconhecê-lo. Permanecia em silêncio ante a escrivaninha, esperando.

Grey pigarreou. O coração ainda lhe palpitava muito depressa mas ao menos pôde falar comcalma.

—Senhor Fraser —disse—, agradeço-o que tenhas vindo.O escocês inclinou cortesmente a cabeça, sem mencionar que não tinha alternativa; só seus

olhos o disseram.—Sem dúvida deve se perguntar por que eu mandei chamá-lo —continuou Grey. A seus

próprios ouvidos, as frases soavam insofrivelmente pomposas, mas não tinha remédio—. Temoque surgiu uma situação na qual preciso de sua ajuda.

—Do que se trata, alcaide? —A voz era a mesma: grave e precisa, caracterizada por umsuave acento montanhês.

—Na colina, cerca da costa, encontraram um vagabundo —disse com cautela— Parece estargravemente enfermo e diz coisas sem sentido. No entanto, verdadeiros… assuntos aos que serefere parecem ser de… grande interesse para a Coroa. Preciso falar com ele e averiguar tudo opossível sobre sua identidade e os assuntos que menciona.

Fez uma pausa mas Fraser se limitou a esperar.—Por desgraça —continuou Grey tomando alento—, o homem em questão se expressa

numa mistura de gaélico, francês e com alguma palavra solta em inglês.O escocês moveu uma de suas avermelhadas sobrancelhas. Seu rosto não se alterou de modo

apreciável, mas era óbvio que tinha captado a situação.—Compreendo, comandante. —Sua voz suave estava cheia de ironia— Vos agradaria

contar com minha ajuda para interpretar o que esse homem possa dizer.Grey, que não se atrevia a falar, assentiu secamente com a cabeça.—Temo que devo recusar, alcaide. —Fraser falava respeitosamente, mas com um brilho nos

olhos no que não tinha nada de respeitoso.A mão de Grey se curvou, tensa, segurando o abrecartas de bronze.—Recusas? —Apertou mais o abrecartas para afirmar a voz— Posso perguntar por que,

senhor Fraser?—Não sou intérprete, comandante —disse o escocês amável— só um prisioneiro.—Vossa assistência seria…, apreciada. —Grey tratou de infundir intenção à palavra sem

oferecer diretamente um suborno— Ao contrário —disse endurecendo o tom—, o fato de nãoprestar uma legítima ajuda…

—Não é legítimo que me obrigue a prestar serviço nem que me ameaces, alcaide —a voz deFraser soou bem mais dura do que a do inglês.

—Não vou ameaçar! —O filo do abrecartas lhe estava cortando a mão; se viu obrigado aafrouxar os dedos.

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—Não? Bom, alegra-me saber. —Fraser girou para a porta— Nesse caso, lhe dou as boasnoites.

Grey teria preferido mil vezes deixá-lo ir. Por desgraça, o dever chamava.—Senhor Fraser!O escocês se deteve a um metro da porta, sem voltar-se. Grey respirou fundo, reunindo

forças.—Se fazer o que eu peço eu posso retirar as correntes —disse.Fraser permaneceu imóvel. Grey, ainda que jovem e pouco experiente, era observador. E

não era lerdo para avaliar um homem. Ao ver que o prisioneiro alçava a cabeça e consertava atensão de seus ombros, cedeu um pouco o nervosismo que o dominava desde que soubes dovagabundo.

—Senhor Fraser?Muito lentamente, o escocês se voltou, inexpressivo.—Trato feito, alcaide —disse com suavidade.Quando chegaram à aldeia de Ardsmuir já passava da meia-noite. Não tinha luz nas cabanas

ante as que passaram; Grey se perguntava o que pensariam os habitantes do ruído de capacetese do tinido de armas a uma hora tão avançada da noite, como o leve eco das tropas inglesas quetinham varrido as Terras Altas dez anos atrás.

Ante a porta da pousada, Grey se deteve para olhar a Fraser.—Lembra das condições de nosso acordo?—Sim —respondeu o prisioneiro, brevemente. E passou roçando-o.A troca de fazer-lhe retirar os grilhos, Grey lhe tinha exigido três coisas: primeiro, que não

tentasse escapar durante a viagem à aldeia no regresso; segundo, que lhe fizesse um relatocompleto e veraz de tudo o que o vagabundo dissesse e em terceiro lugar lhe pediu sua palavrade cavaleiro de repetir o que tivesse escutado somente a Grey.

Lá dentro teve um murmúrio de vozes gaélicas; depois, uma exclamação de surpresa quandoo pousadeiro viu a Fraser, e uma atitude de deferência ante os soldados que o acompanhavam.Sua esposa estava na escada com um esfregador na mão, fazendo dançar as sombras ao seuarredor.

Grey, sobressaltado, apoiou uma mão no braço do pousadeiro.—Quem é esse? —Na escada tinha outra silhueta, uma aparição totalmente vestida de negro.—O padre —explicou Fraser baixinho— Isso significa que o homem está agonizando.O comandante respirou fundo, tratando de preparar-se para o que vinha.—Então tem pouco tempo a perder —manifestou, pondo uma bota na escada—

Procedamos.O homem morreu justo antes do amanhecer. Fraser lhe sustentava uma mão e o sacerdote a

outra. Enquanto este último murmurava frases em gaélico e em latim, fazendo sinais papistassobre o cadáver, o prisioneiro se reclinou em seu assento com os olhos fechados, sem soltaraquela mão pequena e frágil.

O corpulento escocês tinha passado toda a noite junto ao moribundo, dando-lhe alento e

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consolo enquanto Grey permanecia junto à porta para não assustar ao homem com seuuniforme, assombrado e comovido a um tempo pela suavidade de Fraser.

Por fim o viu colocar a magra mão curtida no peito imóvel e fazer o mesmo sinal que opadre: tocou-lhe a testa, o coração e os dois ombros, como traçando uma cruz. Depois abriu osolhos. Quando se pôs em pé, sua cabeça esteve a ponto de tocar as vigas. Fazendo um brevegesto a Grey, precedeu-o pela estreita escada.

—Aqui. —O inglês disse a porta do bar, já deserto.Uma criada de olhos sonolentos acendeu o fogo e lhes levou pão e cerveja; depois os deixou

sós. Quando Fraser havia terminado de comer, perguntou:—E aí, cavaleiro?O escocês deixou seu jarro de peltre e limpou a boca com o dorso da mão.—Bem —disse—. Não tem muito sentido mas isto é o que disse.Falou com cautela, fazendo alguma pausa para recordar uma palavra exata, para explicar

alguma referência gaélica. Grey escutava, cada vez mais decepcionado. Fraser tinha razão:aquilo não tinha muito sentido.

—A bruxa branca? —interrompeu—. Falou de uma bruxa branca? E de focas? —Nãoparecia mais desgrenhado do que o resto, mas ainda assim lhe produzia incredulidade.

—Efetivamente.—Repeti —ordenou Grey— Tal como o recordas, por favor.Sentia-se estranhamente a vontade com aquele homem; notou-o com surpresa. Em parte era

pela fadiga, por suposto; suas reações e sentimentos habituais estavam intumecidos pelaprolongada vela e a tensão de ver morrer a um homem pouco à pouco.

Fraser, obedecendo, falou devagar. Descontando algumas palavras aqui e lá, a versão foiidêntica à anterior. E as partes que Grey tinha podido entender por si só estavam fielmentetraduzidas.

Mexeu a cabeça, desalentado. Divagações. Os delírios do homem tinham sido justamenteisso: delírios.

—Estas seguro de que não disse nada mais? —insistiu, com à débil esperança de que Frasertivesse omitido alguma frase, algum fragmento que brindasse um ponto para achar o ouroperdido.

—Sempre cumpro com minha palavra, senhor —assegurou o outro com fria formalidade,pondo-se em pé— Regressamos já?

Durante um momento cavalgaram em silêncio. Fraser estava perdido em seus própriospensamentos; Grey, afundado na fadiga e a desilusão. Quando viu o sol depois das pequenascolinas do norte, detiveram-se junto a uma pequena vertente para refrescar-se. Grey bebeu águafria e molhou a cara para reanimar-se. Levava mais de vinte e quatro horas sem dormir; sentia-se lento e estúpido.

Fraser também não tinha descansado durante esse tempo, mas não dava sinais de estarcansado. Arrastou-se a quatro patas, ao redor da fonte, cortando algumas ervas.

—Que fazes, senhor Fraser? —perguntou Grey desconcertado.

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Fraser levantou os olhos com certa surpresa, mas sem envergonhar-se em absoluto.—Recolho agriões, senhor.—Isso estou vendo —replicou o inglês mal humorado— Para que?—Para comer, comandante. —Fraser tirou do cinto o sujo saco de pano e meteu a verde

massa chorreante.—Por que? Não dão comida suficiente? Nunca soube que os seres humanos comiam

agriões.—São folhas verdes, comandante.—E de que outra cor pode ser uma folha, demônios? —Inerveio Grey.Fraser contraiu a boca.—Quis dizer, comandante, que comer folhas verdes evita o escorbuto e a fraqueza de dentes.

Meus homens comem as verduras que eu lhes levo. E o agrião sabe melhor do que tudo o queposso recolher na colina.

Grey levantou as sobrancelhas.—Que as plantas verdes evitam o escorbuto? —balbuciou— De onde tirastes essa idéia?—De minha esposa! —lhe espetou Fraser. E se voltou bruscamente.Grey não pôde evitar a pergunta.—Sua esposa, senhor, onde está?A resposta foi um relâmpago azul escuro que lhe provocou um arrepio.«Talvez não tenhas visto de muito perto o ódio e o desespero», soou a voz de Quarry em sua

memória. Não era verdade: tinha o reconhecido de imediato no fundo dos olhos de seuprisioneiro. Mas só por um instante, depois voltou o véu normal de serena cortesia.

—Minha esposa se foi —disse Fraser dando as costas.Grey se sentiu comovido por uma sensação inesperada. Em parte era de alívio: a mulher que

tinha sido a causa de sua humilhação já não existia. Em parte era de pena.Nenhum dos dois voltou a falar durante o regresso a Ardsmuir.Três dias depois Jamie Fraser escapou. Nunca tinha sido difícil escapar de Ardsmuir; se

ninguém o fazia era, simplesmente, porque não tinha onde ir. A cinco quilômetros da prisão, acosta de Escócia caía para o oceano num ingreme de granito. Pelos outros três lados só tinhaquilômetros de páramo deserto. Escapar não valia a pena…, salvo para Jamie Fraser, queobviamente tinha um motivo.

O dever de John Grey era perseguir ao prisioneiro e tentar capturá-lo. Foi algo mais do queo dever o que lhe induziu a desguarnecer a prisão para formar o grupo de busca. Instou-os amarchar, permitindo só brevíssimas paragens para descansar e comer. O dever, sim, e umurgente desejo de achar o ouro do Francês e ganhar a aprovação de seus superiores…, para queacabasse seu exílio naquela desolada zona de Escócia. Mas também a ira e uma estranhasensação de ter sido pessoalmente traído.

Chegaram à costa já avançando a noite seguinte, depois de passar uma jornada laboriosarevisando o páramo. O nevoeiro tinha atenuado nas rochas, varrida pelo vento da costa; anteeles se estendia o mar, semeado de diminutos ilhéus ermos.

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John Grey, de pé junto a seu cavalo, contemplou o mar negro e selvagem desde o alto dosalcantilados. Era o lugar mais desolado do que tivesse visto nunca; no entanto, tinha nele umabeleza terrível que lhe esfriava o sangue nas veias. Não tinha sinais de James Fraser. Não tinhasinal alguma vida.

De repente, um dos homens soltou uma exclamação de surpresa e empunhou a pistola.—Ali! —exclamou— Nas rochas!—Não díspare, tonto —disse outro dos soldados, segurando o braço sem dissimular seu

desprezo— Nunca viu uma foca?Grey também não conhecia as focas. Observou-as com fascinação. Desde ali pareciam

babosas negras.—Os escoceses as chamam «silkies» —comentou o soldado que as tinha reconhecido.—Silkies? —Grey, interessado, olhou ao homem com atenção. —Que mais sabe delas,

Sykes?O homem se encolheu de ombros, desfrutando de sua momentânea importância.—Pouca coisa, senhor. Aqui há algumas lendas sobre elas. Dizem que as vezes, uma delas

vem à costa, desprende-se da pele e dentro aparece uma mulher formosa. Se um homemencontra a pele e a esconde para que a mulher não possa voltar ao mar, ela está obrigada a sersua esposa. E dizem que são boas esposas, senhor.

—Ao menos, sempre estarão molhadas —murmurou o primeiro.Os homens estouraram em gargalhadas que ressoaram entre os alcantilados.—Basta! —Grey teve que alçar a voz para fazer-se ouvir acima dos risos e os comentários

obscenos— Revisem os alcantilados em ambas direções.Os homens, intimidados, obedeceram sem hesitar. Ao regressar, uma hora depois, vinham

desalinhados e molhados, mas sem ter visto sinais de Jamie Fraser… nem do ouro do Francês.Ao amanhecer voltaram a sair. Grey, em pé junto a uma fogueira acendida no alcantilado,

supervisionava a busca envolto num casaco para proteger-se do vento penetrante efortificando-se periodicamente com o café quente que lhe trazia seu servidor.

—Se veio por aqui, comandante, creio que não voltaremos a vê-lo. —Era o sargentoGrissom quem estava ao seu lado, contemplando os redemoinhos do água que rompia contra asrochas— Este lugar se chama Caldeiro do Diabo porque ferve constantemente. Os pescadoresque se afogam frente a esta costa rara vez aparecem; a culpa é das terríveis correntes iamgino,mas a gente diz que o diabo os leva para baixo.

—Mesmo? —Sussurrou Grey contemplando tristemente a espuma que batia mais dozemetros abaixo— Eu não duvidaria, sargento.

E se voltou para a fogueira.—Dá ordens de procurar até que caia o sol, sargento. Se não encontrarmos nada, voltaremos

a tentar pela manhã.Grey afastou os olhos do pescoço de seu cavalgadura, entornando os olhos contra a luz

ainda escassa. Tinha-os inchados pela fumaça de multidão e a falta de sonho e lhe doíam osossos depois de passar várias noites no solo úmido.

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—Espera aqui —disse a seus homens.A uns quantos metros de distância tinha um pequeno montículo que lhe brindaria a

intimidade necessária; seus intestinos, que não estavam habituados ao porridge e as omeletesde aveia dos escoceses, rebelavam-se ante as exigências da dieta de acampamento.

Ao endireitar-se, abandonando uma postura que se lhe antojava muito indigna, Greylevantou a cabeça e se encontrou frente a frente com James Fraser.

Ambos ficaram imóveis, olhando-se. O vento trazia um vadio cheiro do mar. Por ummomento não se ouviu senão a brisa marinha e o canto das cotovias. Depois Grey enguliusaliva, com a sensação de ter o coração na garganta.

—Temo que me surpreendes em desvantagem, senhor Fraser —disse serenamente,abotoando-se as calças com todo o aprumo que pôde reunir.

O escocês moveu somente os olhos, que desceram ao longo do inglês e voltaram a subirlentamente. Depois olharam acima de seu ombro, para os seis homens armados que lheapontavam com seus mosquetes. As pupilas de cor azul escuro se fixaram depois nas suas. Porfim torceu a boca e disse:

—Creio que a mim também, comandante.

CAPÍTULO 10

A maldição da bruxa branca

Jamie Fraser tremia, sentado no solo de pedra do depósito vazio, abraçado em seus joelhosnuma tentativa por entrar em calor. Tinha a sensação de que jamais o conseguiria. Sentiasaudades a presença dos outros prisioneiros (Morrison, Hayes, Sinclair, Sutherland), não só porsua companhia, senão pelo calor de seus corpos.

Mas estava só. E provavelmente não o devolveriam à cela grande até ter-lhe aplicado ocastigo por sua fuga. Tinha muito medo que o açoitassem e, não obstante, teria preferido queesse fora seu castigo. Era horrível, mas ao menos terminaria cedo… E era infinitamente maissuportável do que voltar às correntes.

Seus dedos procuraram o rosário que levava ao pescoço. Sua irmã o tinha dado quando saiude Lallybroch; os ingleses lhe permitiam conservá-lo, pois afinal de contas não tinha valoralgum.

—Deus te salve, María, cheia de graça —murmurou. Não tinha muitas esperanças. Aquelepequeno comandante de cabelo amarelo tinha visto o efeito dos grilhos e sabia, maldita sejasua alma, o quanto terríveis eram. O pequeno comandante lhe tinha oferecido um trato e ele otinha cumprido, ainda que parecesse o contrário. Respeitando seu juramento, transmitiu aspalavras que lhe tinha dito o vagabundo, uma a uma. O acordo não lhe obrigava a dizer queconhecia àquele homem… nem as conclusões que tinha extraído de seus murmúrios.

Reconheceu de imediato a Duncan Kerr, apesar de que o tempo e a doença o tinhammudado.

—Passa quieto, <<a charaid;bi sàmhach>> —lhe disse suavemente em gaélico, ajoelhando-

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se junto à cama onde jazia o enfermo. Num princípio pensou que Duncan estava muitodesorientado para reconhecê-lo, mas sua mão sem carne estreitou a sua com assombrosaenergia e o homem repetiu,ofegante:

—Mo charaid. —«Parente meu.»O pousadeiro os observava desde a porta, acima do ombro do comandante Grey. Jamie

inclinou a cabeça para sussurrar ao ouvido de Duncan:—Tudo o que digas será repetido em inglês. Fala com cautela.O pousadeiro entornou os olhos, mas estava demais longe para ouvir. O comandante se

voltou e, ao vê-lo, ordenou-lhe sair.—Está maldito —sussurrou— O ouro está maldito. Se dê por advertido, moço. Foi

entregado pela bruxa branca para o filho do rei. Mas a causa está perdida e o filho do rei fugiu.Ela não permitirá que o ouro seja entregado a um covarde.

—Quem é ela? —perguntou Jamie.—Procura a um homem valente. A um MacKenzie, é para ele. MacKenzie. É deles, diz a

bruxa branca, pelo bem dele, que morreu.—Quem é a bruxa? —perguntou Jamie outra vez. A palavra utilizada por Duncan era

bandruidh: uma feiticeira, uma mulher sábia, uma Dama Branca. Assim tinham chamado a suaesposa em outros tempos. A Claire, sua Dama Branca.

—A bruxa —murmurou Duncan fechando os olhos— Ela. É uma come almas. É a morte.Morreu, o MacKenzie, morreu.

—Quem morreu? Colum Mackenzie?—Todos, todos. Morreram todos, morreram! —exclamou o enfermo, estreitando-lhe a mão

—. Colum, Dougal e também Ellen. —De repente abriu os olhos fincando-os nos de Jamie edisse com assombrosa clareza—: A gente diz que Ellen MacKenzie abandonou aos seus irmãose seu lar para casar-se com uma silkie do mar. Ela as ouviu, verdade? —Duncan sorriu,sonhador, com longínquas visões boiando em seus olhos negros—. Ela ouviu cantar às silkiesnas rochas. Uma, duas, três delas. E as viu desde sua torre, uma, duas, três delas. E por issobaixou e foi ao mar, embaixo dele, para viver com as silkies. Verdade? Não foi assim?

—Isso é o que as pessoas dizem —respondeu Jamie com a boca seca. Ellen tinha sido onome de sua mãe. E isso era o que dizia a gente quando ela fugiu com Brian Dubh Fraser, quetinha o cabelo negro e brilhante das focas. O homem por quem ele mesmo recebia agora oapelido de Mac Dubh: filho de Brian, o Negro.

O comandante Grey se mantinha perto, ao outro lado da cama, observando a Duncan comuma enruga na testa. O inglês não entendia o gaélico, mas Jamie estava disposto a apostar queconhecia o equivalente «ouro». Depois de cruzar um olhar com o comandante, inclinou-seoutra vez para falar com o enfermo.

—O ouro, homem —disse em francês para que Grey ouvisse— Onde está o ouro?E estreitou a mão de Duncan com toda a força possível, tratando de transmitir-lhe uma

advertência. O moribundo fechou os olhos e murmurou algo, mas suas palavras resultaraminaudivel.

—O que disse? —inquiriu o comandante com aspereza— Que?

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—Não sei. —Jamie deu umas palmadas na mão de Duncan, para acordá-lo— Fala, homem.Me diz outra vez.

Não teve mais resposta do que outro murmúrio. O comandante, impaciente, inclinou-se parasacudir-lhe um ombro.

—Acorda! —ordenou—.Fala!De imediato Duncan Kerr abriu os olhos.—Ela vos dirá —disse em gaélico—. Ela virá por voce. —Durante uma fração de segundo

sua atenção pareceu voltar ao quarto em que jazia. Seus olhos se centraram em seus doisacompanhantes— Para ambos —disse claramente.

Depois fechou os olhos e não voltou a falar. A custódia do ouro tinha passado a outras mãos.Assim foi como Jamie Fraser respeitou a palavra dada ao inglês… e sua obrigação para com

seus compatriotas. Repetiu ao comandante tudo o que Duncan tinha dito. E de muito lheserviu! Depois, quando se lhe apresentou a oportunidade de fugir, escapou aos urzais eprocurou o mar para fazer o que estava ao seu alcance com o legado de Duncan Kerr. Agoradevia pagar o preço de seus atos.

Umas pisadas se aproximaram pelo corredor. A porta se abriu bruscamente, deixando entrarum raio de luz que o fez piscar. O corredor estava escuro, mas o guarda trazia uma tocha.

—Levantasse. —O homem alongou uma mão para ajudá-lo, pois tinha as articulaçõesrígidas. Depois o empurrou para a porta— Te requer no andar superior.

—No andar superior? Onde?Aquilo lhe surpreendeu; o forjamento estava abaixo, junto ao pátio. E também não o

açoitariam a essas horas da noite.O homem enrugou a cara, feroz e rubicunda à luz da tocha.—Nas habitações do comandante —disse muito sorridente—. E que Deus tenha piedade de

tua alma, Mac Dubh.—Não, senhor; não direi onde estive.Repetiu-o com firmeza, tratando de não lhe ranger os dentes. Não o tinham levado ao

escritório, senão à sala privada de Grey. O fogo estava acendido mas Grey, em pé frente a ele,absorvia a maior parte do calor.

—Também não por que decidiu escapar? —A voz de Grey soava serena e formal.Jamie tensionou a cara.—Isso é um assunto privado —disse.—Um assunto privado? —repetiu Grey com incredulidade—. Um assunto privado, disse?—Sim.O alcaide inalou com força pelo nariz.—Não creio ter ouvido nada mais ridículo em toda minha vida.—Sua vida foi mais bem breve, comandante —disse Fraser—, se permite que vos diga. —

De nada serviria adiar as coisas nem tratar de apaziguar àquele homem. Era melhor provocaruma decisão imediata para acabar com aquilo.

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—Tens idéia do que poderia te acontecer por isso? —inquiriu Grey baixinho.—Tenho, comandante. —Mais do que uma idéia. Sabia, por experiência, o que podiam

fazer-lhe e não era uma perspectiva agradável.Grey respirou pesadamente e levantou a cabeça.—Vem aqui, senhor Fraser —ordenou.Jamie o olhou fixamente, desconcertado.—Aqui! —repetiu o outro, peremptório, sinalizando um ponto diante de si, no tapete—.

Aqui, senhor!—Não sou um cachorro, comandante —lhe espetou Jamie—. Podes fazer comigo sua

vontade, mas não irei aos seus pés quando me chama.Isso pegou por surpresa a Grey, que emitiu um riso breve e involuntário.—Mil desculpas, senhor Fraser —disse secamente— Não era minha intenção ofende-lo. Só

quero que voce se aproxime, se entendes bem.E lhe fez uma complicada reverência, mostrnado a chaminé.Jamie vacilou, mas depois se

aproximou cautelosamente. Grey se aproximou com o nariz dilatado. Assim, tão perto, seusossos finos e a pele clara da cara lhe davam aspecto de moço. Ao apoiar-lhe uma mão namanga, seus olhos, de longas pestanas, dilataram-se de assombro.

—Está molhado!—Estou molhado, sim —disse Jamie com paciência.—Por que?—Por que? —repetiu Jamie atônito—. Não ordenou aos guardas que me arrojassem água

antes de abandonar-me numa cela gelada?—Não ordenei isso, não. —Era óbvio que o comandante dizia a verdade— Peço desculpas,

senhor Fraser.—Estão aceitas, comandante.—Sua fuga, teve algo haver com o que voce averigou na pousada do Tilo?Jamie ficou em silêncio.—Me juras que sua fuga não teve nada que ver com esse assunto?O escocês seguia calado. Não fazia sentido dizer nada.O pequeno comandante passeava frente à chaminé com as mãos cruzadas às costas. Por fim

se deteve frente a ele.—Senhor Fraser —disse— Vou perguntar mais uma vez: por que escapou da prisão?Jamie suspirou. Não passaria muito tempo mais junto ao fogo.—Não posso dizer, comandante.—Não podes ou não quer? —inquiriu Grey com aspereza.—Não parece uma diferença importante, comandante, já que, de um modo ou outro, não vou

dizer nada.Fechou os olhos e aguardou, tratando de absorver todo o calor possível antes de que o

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levassem.Grey se viu sem saber que dizer nem o que fazer. Respirou profundamente. Envergonhava-

lhe a mesquinha crueldade dos guardas, bem mais quando tinha pensado nesse tipo de vingançaao saber que Fraser estava entre seus prisioneiros. Estava em seu direito se o fazia flagelar evoltava a arrojar-lhe. Podia condená-lo a um confinamento solitário ou reduzir-lhe as rações.Podia, de fato, infligir-lhe dez castigos diferentes. E se o fazia, suas possibilidades de acharalguma vez o ouro do Francês se reduziriam até desaparecer.

O ouro existia, sim. Ou, ao menos, era muito provável que existisse. Só essa convicçãopodia ter movido a Fraser atuar como o tinha feito. Observou-o. Mantinha os olhos fechados eos lábios tensos.

Grey fez uma pausa tratando de criar um modo de atravessar essa muralha de brandodesafio. Obviamente, nem a força nem as ameaças serviriam para saber a verdade. De mávontade, compreendeu que só tinha um caminho aberto para conseguir o ouro: devia deixar aum lado os sentimentos que aquele homem lhe inspirava e aceitar a sugestão de Quarry. Deviaintimar com ele; talvez no curso dessas relações pudesse extrair-lhe alguma pista que oconduzisse ao tesouro escondido.

«Se existe», obrigou-se a recordar, voltando-se para o prisioneiro.—Senhor Fraser —disse formalmente—, me fará a honra de jantar amanhã em minhas

habitações?Teve a momentânea satisfação de pegar por surpresa àquele cretino escocês. Os olhos azuis

se abriram como pratos. Em um momento, Fraser recobrou o domínio de suas emoções. Depoisde uma pausa momentânea, inclinou-se garbosamente, como se ainda usasse saia e cobertor emvez de empapados farrapos carcerários.

—Será um grande prazer, comandante —disse.

7 de março de 1755

O guarda deixou Fraser na sala, onde tinha uma mesa servida. Pouco depois, ao sair dodormitório, Grey encontrou a seu hóspede absorto na observação de um exemplar de A NovaEloísa.

—Te interessa as novelas francesas? —balbuciou.Fraser levantou os olhos, sobressaltado, e fechou bruscamente o livro.—Sei ler, comandante —especificou. Tinha-se barbeado e tinha a maça do rosto

ligeiramente colorido.—Eu… sim, por suposto. Não quis dizer…, simplesmente… —Grey estava mais ruborizado

ainda. Tinha imaginado que seu prisioneiro não sabia ler.Por mais esfarrapado que estivessem suas roupas, Fraser tinha bons modos. Sem prestar

atenção à confusa desculpa de Grey, voltou-se para a estante.—Tenho contado esta novela aos homens, mas faz tempo que a li. Me ocorreu refrescar a

memória quanto à seqüência final.—Compreendo. —Grey se conteve a tempo para não perguntar: «E eles entendem?»

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Fraser lhe leu o pensamento, pois disse com secura:—Todos os meninos escoceses aprendem a ler e escrever, comandante. Ainda assim, nas

Terras Altas temos uma grande tradição de narrações orais.—Ah. Sim, compreendo.A entrada do servente com o jantar o salvou de novos rubores. O jantar decorreu sem

inconvenientes, ainda que a conversa foi escassa e se limitou aos assuntos da prisão.Na seguinte ocasião fez instalar o tabuleiro de xadrez ante o fogo e convidou Fraser a uma

partida antes de que servissem o jantar. Mais tarde decidiu do que isso tinha sido um toquegenial. Eliminada a necessidade de conversar e as cortesias sociais, acostumaram-se lentamenteum ao outro, avaliando-se em silêncio pelos movimentos das peças no tabuleiro de ébano emarfim.

Quando por fim se sentaram a jantar, já não eram dois desconhecidos; a conversa, ainda queainda cautelosa e formal, era ao menos uma autêntica conversa, não uma incômoda série decomeços e interrupções. Analisaram temas da prisão, conversaram um pouco sobre livros e sedespediram formalmente mas com bons termos. Grey não mencionou o assunto do ouro.

Assim se iniciou um costume semanal. Grey queria que seu hóspede se sentisse cômodo,com a esperança de que deixasse escapar alguma pista quanto ao destino do ouro. Pesando suascuidadosas sondagens, não tinha chegado tão longe. À menor pergunta referida ao que tinhasucedido em seus três dias de ausência, Fraser respondia com o silêncio.

Enquanto comiam cordeiro com batatas fervidas, Grey fez o possível por induzir a seuestranho hóspede a uma discussão sobre França e sua política, a fim de descobrir se existiaalguma relação entre Fraser e um possível provedor de ouro da corte francesa. Com grandesurpresa, inteirou-se de que o prisioneiro tinha vivido dois anos em França dedicado aonegócio do vinho, antes da rebelião dos Stuarts.

Certo humor sereno, nos olhos de Fraser, indicou-lhe que o homem tinha perfeitaconsciência do que se escondia atrás daquelas perguntas. Ao mesmo tempo se mostravadisposto à conversa, ainda que punha cuidado em mantê-la afastada de sua vida pessoal,encaminhando-a para temas mais gerais, para a arte e a sociedade.

Grey também tinha passado um tempo em Paris; pesando a suas tentativas de sondar asvinculações de Fraser com França, descobriu que a conversa lhe interessava por si mesma.

—Diz, senhor Fraser: enquanto viveu em Paris, teve oportunidade de conhecer as obrasdramáticas de Monsieur Voltaire?

Fraser sorriu.—Oh, sim, comandante. Mais ainda: tive o privilégio de compartilhar minha mesa com

Monsieur Arouet, já que Voltaire é seu pseudónimo literário, não?—É mesmo? —Grey levantou uma sobrancelha interessado— E é tão engenhoso em pessoa

como uma pluma?—Não saberia dizer —confessou Fraser, espetando destramente um bocado de cordeiro—

Rara vez dizia nada, engenhoso ou não; limitava-se a observar aos demais. —Fechou os olhosnuma rápida concentração, mastigando o cordeiro.

—A carne é de seu agrado, senhor Fraser? —inquiriu Grey cortês. A ele lhe pareciacartilaginosa, dura e mal comestível.

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—Está bom, comandante. obrigado. —Fraser recolheu um pouco de molho de vinho e levouo último bocado aos lábios. Quando Grey indicou a MacKay que aproximasse a bandeja, nãoesteve com melindres para servir outra porção de cordeiro— Isso sim, temo que MonsieurArouet não apreciaria esta excelente comida.

—Suponho que um homem tão festejado pela sociedade francesa tem de ter gostos maisexigentes —disse Grey secamente. A metade de sua comida seguia intacta no prato, destinadaao jantar de Augustus, o gato.

Fraser, rindo, assegurou-lhe:—Pelo contrário, comandante. Nunca vi a Monsieur Arouet consumir outra coisa que um

copo de água e uma bolacha, ainda na mais rica dos jantares. É um homenzinho miúdo e seco,mártir da indigestão.

—É mesmo? —Grey estava fascinado— Talvez isso explique o cinismo de suas obras. Nãocres que o caráter do autor se translude em seus escritos?

—Uma dama novelista me disse, certa vez, que escrever novelas era arte de canibais, poisune mistura com freqüência pequenas porções de seus amigos e seus inimigos, temperandocom imaginação e permite que tudo isso se cozinhe num saboroso guisado.

A descrição fez Grey rir, que fez sinal para retirar os pratos e trazer o vinho e o xerez.—Deliciosa descrição, certamente! Mas falando em canibais, teve oportunidade de ler

Robinson Crusoe, do senhor Defoe? É um de meus favoritos desde que era menino.A conversa girou então para as novelas românticas e o excitante dos trópicos. Já era muito

tarde quando Fraser voltou a sua cela, deixando ao comandante Grey entretido, mas sem teraveriguado nada sobre a origem e o paradeiro do ouro do Francês.

2 de abril de 1755

John Grey abriu o pacote de plumas que sua mãe lhe tinha enviado de Londres. Eramplumas de cisne, mais finas e mais fortes do que as de ganso. Ao vê-las sorriu vagamente; eramum pequeno e subtil lembrança de que se estava atrasando em sua correspondência.

Mas sua mãe teria que esperar ao dia seguinte. Quando molhou a pluma na tinta tinha já aspalavras claras na mente. Escreveu com celeridade, quase sem deter-se.

2 de abril de 1755 A Harold, lorde Melton, conde de MorayMeu querido Hal:Escrevo-te para informar-te de um fato recente que me chamou muito a atenção. Pode ser

que não saia nada disto, mas o tema pode resultar de grande importância.Adicionou detalhes sobre a aparição do vagabundo e suas divagações, mas sua escritura se

fez mais lenta ao descrever a fuga de Fraser e sua nova captura.O fato de que Fraser desaparecesse da prisão pouco depois destes acontecimentos me

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sugere que, em realidade, tinha algo importante nas palavras do vagabundo.No entanto, se esse fora o caso, não posso explicar os atos seguintes de Fraser. Foi

capturado três dias depois de sua fuga, em um quilômetro e meio da costa. Em váriosquilômetros ao redor, em torno de Ardsmuir, a campina está deserta; é muito pouco provávelque tenha podido reunir-se com um confederado a quem lhe transmitisse informação sobre otesouro. Revistaram todas as casas da aldeia e também o mesmo Fraser, sem descobrir rastosdo ouro. Trata-se de um distrito remoto e tenho a razoável segurança de que não secomunicou com ninguém alheio à prisão antes de sua fugida. Também estou seguro de que nãoo fez com posterioridade, pois vigiam estreitamente.

Não tinha a menor dúvida do que Fraser teria podido iludir aos dragões com facilidade, seassim o tivesse desejado, mas não o tinha feito. E deliberadamente se tinha deixado capturar.Por que? Retomou a escritura com maior lentidão.

Ao fim lhe tinha ocorrido formular, não a pergunta de sempre, senão a mais importante. Fezao terminar uma partida de xadrez que ganhou Fraser. O guarda esperava ante a porta, prontopara escoltá-lo de novo até sua cela. Quando o prisioneiro abandonou seu assento, Greytambém se levantou.

—Não vou perguntar outra vez por que fugiu da prisão —disse com serenidade,coloquialmente— Mas me agradaria saber por que voltastes?

Fraser ficou petrificado. Depois se voltou para olhá-lo nos olhos e curvou a boca numsorriso.

—Suponho que devo apreciar a sua companhia, comandante. Posso assegurar que não foipela comida.

Grey lançou um breve sopro ao recordar. Incapaz de criar uma resposta adequada, tinhadeixado sair a Fraser. Só, mais tarde da noite, depois de ter tido finalmente o bom tino deformular-se as perguntas a si mesmo em vez de interrogar ao prisioneiro, tinha chegado a umaresposta. Que teria feito ele, Grey, se Fraser não tivesse regressado?

Naturalmente, seu próximo passo teria sido pesquisar os seus familiares, talvez tivesseprocurado refúgio ou ajuda entre eles. E essa era a solução, sem dúvida. Entre os escoceses dasTerras Altas, a lealdade é um valor lendário.

Grey se incorporou para recolher a pluma e voltou a molhá-la no tinteiro.

Creio que conheces o temperamento dos escoceses; é pouco provável que o emprego daforça ou as ameaças induzam a Fraser a revelar o paradeiro do ouro, se talvez existe. Por issorecorro a ti, querido irmão, para que me ajudes a averiguar tudo o possível com respeito àfamília de James Fraser. Te rogo: não alarme a ninguém com estas investigações; se existemesses vínculos familiares, prefiro que, momentaneamente, desconheçam meu interesse.Agradeço-te profundamente os esforços que possas realizar em meu favor. Teu humildeservidor e afetuosíssimo irmão.

Molhou a pluma uma vez mais e assinou com um pequeno floreo.

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15 de maio de 1755

—Como estão os homens enfermos de gripe? —perguntou Grey.O jantar tinha terminado e, junto com ela, a conversa literária. Tinha chegado a hora dos

negócios.—Não muito bem. Tenho mais de sessenta homens enfermos, dos quais quinze estão muito

mau. —Vacilou—. Poderia solicitar-nos…?—Não prometo nada, senhor Fraser, mas podes pedir —respondeu Grey formalmente.Jamie fez uma pausa para calcular suas possibilidades. Não o obteria tudo; convinha apontar

ao mais importante, mas deixando espaço para que Grey recusasse alguma de suas petições.—Precisamos mais cobertores, comandante, mais fogo e mais comida. E medicamentos.Grey fez girar o xerez em seu copo, observando os reflexos do fogo no vértice. «Primeiro os

assuntos comuns», recordou-se. «Já terá tempo para o outro.»—Temos só vinte cobertores de reserva nos armazéns —respondeu—, mas podes utilizá-las

para os que estejam mais graves. Temo que não posso aumentar as rações de comida; os ratosestragaram uma boa parte e com o afundamento do depósito, faz dois meses, perdemos outragrande quantidade. Nossos recursos são limitados e…

—Não se trata de quantidade —interveio rapidamente Fraser—, senão do tipo de alimentos.Os que estão muito enfermos não podem digerir com facilidade o pão e o porridge. Não sepoderia procurar algum substituto?

Grey levantou uma sobrancelha.—Que sugere, senhor Fraser?—Não conta a prisão com uma soma para comprar carne de bovino salgada, nabos e cebolas

para o refogado do domingo?—Sim, mas com essa atribuição devemos comprar as provisões do próximo trimestre.—O que sugiro, comandante, é que utilize esse dinheiro agora para proporcionar caldo e

refogado aos enfermos. Os que estão sãos renunciam de boa vontade a nossa porção de carnedurante os três próximos meses.

Grey franziu o cenho.—Mas não se debilitarão os prisioneiros pela falta total de carne? Não ficarão incapacitados

para trabalhar?—Os que morrerem de gripe não trabalharão, sem dúvida —disse Fraser.Grey emitiu um breve sopro.—É verdade. Mas os que ainda estão sãos não estaria muito tempo se prescindir de suas

rações. —Mexeu a cabeça—. Não, senhor Fraser, creio que não. É preferível que os enfermoscorram risco que expor que caiam muito mais enfermos.

Fraser era um homem teimoso. Baixou a cabeça. Depois a levantou para outra tentativa.—Nesse caso, comandante, peço que, já que a Coroa não pode fornecer os alimentos

adequados, permita a gente caçar.

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—Caçar? —As sobrancelhas claras de Grey se elevaram com estupefação— Dar armas epermitir que vague pelos páramos? Pelas barbas de Cristo, senhor Fraser!

—Não creio que Cristo sofra de escorbuto, comandante —replicou Jamie, secamente— Seusdentes não correm nenhum perigo.

Ao ver que Grey torcia a boca, relaxou-se um pouco. O alcaide sempre fazia o possível porreprimir seu sentido de humor; sem dúvida pensava que isso o punha em desvantagem. Emseus tratos com Jamie Fraser, assim era. Atrevido por aquele gesto revelador, Jamie insistiu:

—Nada de armas, comandante. Nem de vagabundagens. Nos darão licença para instalararmadilhas no páramo, ali onde cortamos turbas? E para ficar com que pegarmos?

De vez em quando, algum prisioneiro armava para colocar uma armadilha, mas quasesempre eram os guardas os que ficavam com a presa. Grey respirou fundo e soltou o alentocom lentidão, pensativo.

—Armadilhas? Não precisa de materiais, senhor Fraser?—Só um pouco de barbante, comandante —lhe assegurou Jamie— Dez ou doze novelos de

qualquer tipo de Barbante. O resto fica por nossa conta.O inglês esfregou a bochecha, refletindo. Por fim assentiu.—Muito bem. —Afundou a pluma no tinteiro e escreveu algo— Amanhã darei as ordens

oportunas. Quanto ao resto de suas petições…Meia hora depois tudo estava arrumado. Jamie se apoiou no respaldo, suspirando, e tomou

por fim um sorvo de seu xerez. Que o tinha ganhado.Grey, que o contemplava com os olhos entornados, viu que seus largos ombros se

encurvaram um pouco ao afrouxar a tensão, agora que tudo estava arrumado. Isso pensavaFraser. «Muito bem», disse a sí mesmo, «bebe teu xerez e relaxa-te. Quero pegá-locompletamente desprevenido.»

—Um pouco mais, senhor Fraser? E diz, como está sua irmã ultimamente?Viu que Fraser abria bruscamente os olhos, pálido pela impressão.—Como andam as coisas em… Lallybroch? Assim se chama, verdade? —Grey afastou o

copo, sem afastar os olhos de seu hóspede.—Não saberia dizer-lhe, comandante. —A voz de Fraser soava serena, mas seus olhos

tinham reduzido a pequenas ranhuras.—Não? Me atreveria a dizer que por agora não têm problemas… Graças ao ouro que lhes

proporcionastes.Os largos ombros se tensionaram subitamente, avolumando-se sob o maltrapilho casaco.—Suponho que Ian…, assim se chama seu cunhado, segundo creio… Ian saberá dar bom

uso.Fraser tinha voltado a dominar-se. Os olhos azuis o olharam diretamente.—Já que está tão bem informado sobre meus vínculos familiares, comandante —disse sem

alterar-se—, sabe também que meu lar está a mais de cento sessenta quilômetros de Ardsmuir.Poderia explicar como pude cobrir duas vezes essa distância em só três dias?

Grey fixou os olhos na peça de xadrez, fazendo-a rodar preguiçosamente de uma mão a

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outra.—Pudeste encontrar-se no páramo com alguém que levasse a vossa família o ouro ou

indicações sobre ele.Fraser soltou um bufo.—Em Ardsmuir? Que probabilidades há, comandante, de que me encontrasse por acaso com

uma pessoa nesse páramo? E de que, fora alguém a quem eu pudesse confiar uma mensagemcomo o que sugere? —Deixou seu copo com decisão— Não me encontrei com ninguém,comandante.

—Por que devo aceitar sua palavra a respeito, senhor Fraser? —Grey deixou que em sua vozse filtrasse um considerável ceticismo. Levantou os olhos, com as sobrancelhas levantadas.Fraser ruborizou levemente.

—Ninguém teve nunca motivos para duvidar de minha palavra, comandante —disse muitoteso.

—Como não? —O enfado do inglês não era de tudo fingido— Não me destes talvez suapalavra quando ordenei que lhe tirassem as correntes?

—E cumpri!—Cumpriu? —Os dois se tinham incorporado nas cadeiras e se olhavam com fúria acima da

mesa.—Pediu-me três coisas, comandante. E respeitei esse trato em todos seus detalhes!Grey bufou com desdém.—Sim, senhor Fraser? Diz-me, pois: o que foi que induziu a desprezar subitamente a

companhia de vossos camaradas e procurar a dos coelhos do páramo? Já que me asseguras queali não encontraste ninguém… Até me dá sua palavra de que assim foi.

—Sim, comandante —disse Jamie apertando um punho— Dou a minha palavra de queassim foi.

—E sua fuga?—Quanto a minha fuga, comandante, disse não revelarei nada.—Permita-me falar com clareza, senhor Fraser. Faço a honra de supor que não faz sentido.—O que tenho é um profundo sentido da honra, comandante. Eu asseguro.Grey percebeu a ironia, mas não reagiu.—O fato é, senhor Fraser, que pouco importa se tivestes ou não contato com vossa família

em relação com o ouro. Poderia tê-lo fato. E essa possibilidade justificaria que eu enviasse aum grupo de dragões para fazer uma inspeção a fundo em Lallybroch e prender e interrogar avossos familiares.

Do bolso da peitilho tirou uma folha de papel que continha uma lista de nomes.—Ian Murray… seu cunhado, tenho entendido; Jenny, sua esposa, que seria sua irmã, por

suposto; os filhos de ambos: James, assim chamado em honra de seu tio, suponho… Margaret,Katherine, Janet, Michael e Ian. Que prole! —comentou num tom depreciativo que punha osseis pequenos Murray à altura de uma carnada de leitões— Os três meninos maiores têm idadesuficiente para ser presos e interrogados junto com os pais. Como sabes, esses interrogatórios

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não costumam ser suaves, senhor Fraser.Isso dizia a verdade e Jamie o sabia. Fechou os olhos brevemente e voltou a abrí-los.Grey recordou por um instante a Quarry, dizendo: «Se jantar a sós com esse homem, não lhe

dê as costas.» Se arrepiou o cabelo da nuca mas conseguiu dominar-se e sustentar a olhada azulde Fraser.

— o que desejas de mim? —A voz soava grave e rouca de fúria, mas o escocês permaneciaimóvel como uma figura talhada.

Grey respirou fundo.—Quero a verdade —disse. E aguardou em silêncio. Podia permitir a espera. Por fim Fraser

voltou a olhá-lo.—A verdade. De acordo. —Tomou alento— Respeitei minha palavra, comandante. Repeti

fielmente tudo o que o homem me disse aquela noite. O que não vos disse foi que uma parte doque disse fazia sentido para mim.

—Bem. —Grey permanecia muito quieto, sem atrever-se a fazer um gesto— E qual era essesentido?

—Eu… te mencionei sobre minha esposa —O prisioneiro parecia pronunciar as palavraspela força, como se doessem.

—Sim. Disseme que tinha morrido.—Disse que se tinha ido, comandante —corrigiu Fraser, suavemente, sem afastar os olhos

do peão— É provável que tenha morrido, mas… —Deteve-se e enguliu saliva antes deprosseguir, com mais firmeza— Minha esposa era curandeira. Uma encantadora, comodizemos nas Terras Altas, mas mais do que isso. Era uma Dama Branca, uma mulher sábia. —Levantou brevemente os olhos— A palavra gaélica é bandruidh; também significa bruxa.

—A bruxa branca. —O alcaide também falava com suavidade— Como as palavras dessehomem se referiam a sua esposa?

—Me ocorreu que podia assim ser. E nesse caso… —Os largos ombros se encolheramlevemente— Tinha que ir. Para ver.

—Como soubestes onde ir? Isso também se deduziu das palavras do vagabundo? —Grey seinclinou para frente, curioso.

—Não muito longe daqui há um altar em honra a Santa Bride. A Santa Bride também sechamava «a Dama Branca» —explicou levantando os olhos— Ainda que o altar estava alimuito antes do que a santa viesse a Escócia.

—Compreendo. E por isso supos que as palavras do homem não se referiam só a vossaesposa, senão também a esse lugar?

—Não sabia —repetiu Fraser— Não podia saber se tinham algo haver com minha esposa, se«a bruxa branca» só se referia a Santa Bride… ou nenhuma das duas coisas. Mas tinha que ir.

A pedido de Grey, descreveu o lugar em questão e a maneira de chegar a ele.—O altar em si é uma pedra pequena, com a forma de uma cruz antiga, tão desgastada pelo

céu aberto que as marcas mal se notavam. Levanta-se sobre um pequeno estanque, meioenterrado no urzal. No estanque se vêem pedrinhas brancas, enredadas às raízes dos urzais quecrescem na ribeira. Crê-se nessas pedras ter grandes poderes, comandante —explicou vendo a

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expressão desconcertada do inglês—. Mas só se usa uma Dama Branca.—Compreendo. E sua esposa…? —Grey fez uma pausa delicada.Fraser mexeu a cabeça.—Isso não tinha nada haver com ela. Foi-se, sim. —Ainda que falava baixinho e controlada,

Grey percebeu o deixe de desolação.—E o ouro, senhor Fraser? —perguntou serenamente— Que há dele?—Estava ali —foi a seca resposta.—O que? —Grey se incorporou na cadeira, fincando-lhe a vista— O encontrou?O escocês torceu ironicamente a boca.—Encontrei.—Era realmente o ouro francês que Luis enviou luzes de ouro a seus superiores de Londres.—Luis nunca enviou ouro aos Stuarts —assegurou Fraser— Não, comandante: o que

encontrei no estanque da santa era ouro, mas não de cunho francês.Tinha achado uma caixa pequena, que continha umas poucas moedas de ouro e prata, e um

saquinho de pele cheio de jóias.—Jóias? De onde diabos saíram?Fraser lhe jogou uma olhada de leve exasperação.—Não tenho a menor idéia, comandante —disse— Como posso saber?—Por suposto que não. —Grey tossiu para dissimular seu abalo— Evidentemente. Mas esse

tesouro… onde está agora?—Atirei-o ao mar.Grey ficou estupefato.—O atirei ao mar —repetiu Fraser, paciente. Seus olhos oblíquos sustentaram a olhada do

alcaide— Ouvistes falar de um lugar chamado Caldeiro do Diabo, comandante? Está aoitocentos metros do estanque da santa.

—Por que? Por que fizestes isso? —acusou Grey— Não faz sentido, homem!—Então o sentido não me interessava muito, comandante —explicou Fraser suavemente—

Fui com uma esperança… e desaparecida esta, o tesouro não era para mim senão uma caixa depedras e uns bocados de metal mofados. Não me servia de nada. — Arqueou levemente umasobrancelha irônica— Mas também não encontrava sentido em por em mãos do rei Jorge,assim o atirei ao mar.

Grey se deixou cair contra o respaldo, servindo-se mecanicamente outra copo de xerez.Fraser contemplava o fogo, com o queixo apoiado no punho; seu rosto tinha voltado à

impassibilidade habitual.Grey enguliu uma boa quantidade de vinho e recuperou a serenidade.—É um relato comovedor, senhor Fraser —disse— Muito dramático. No entanto, não há

provas de que seja verdade.—Mas é, comandante —assegurou o prisioneiro.

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Afundou a mão sob a cintura de suas calças e, depois de remexer um momento, alongou opunho acima da mesa, esperando. Grey estendeu a mão num ato reflito. Em seu roupa abertacaiu um objeto pequeno.

Era uma safira, de um azul tão escuro como os olhos do próprio Fraser e de bom tamanho.Grey abriu a boca, mas não disse nada. Estava sufocado pela assombro.

—Eis a evidência de que o tesouro existiu, comandante. —Fraser apontou a pedra com umgesto de cabeça— Quanto ao resto…, lamento dizer, comandante, que deves aceitar minhapalavra.

—Mas… mas… dissestes…—Efetivamente. —Fraser estava tão sossegado como se tivesse estado conversando sobre a

chuva—. Conservei essa única pedra, pensando que poderia ser-me útil se alguma vezrecuperasse a liberdade… ou se achava a ocasião de enviá-la a minha família. Poiscompreendi, comandante —nos olhos de Jamie iluminou uma luz depreciativa—, que minhafamília não poderia aproveitar um tesouro dessa espécie sem chamar a atenção de uma maneiranada conveniente. Uma pedra sim, talvez, mas não muitas.

O alcaide mal podia pensar. O que Fraser dizia era verdade. Ainda assim…—Como fez para conservar isto? —inquiriu bruscamente— Quando capturamos fostes

vistoriado até a pele.A larga boca se curvou no primeiro sorriso autêntico que Grey lhe tinha visto.—Eu a enguli.A mão de Grey se fechou convulsivamente sobre a safira. Depois o depositou, quase

timidamente, junto à peça de xadrez.—Compreendo.—Não o duvido, comandante —disse Fraser com uma gravidade que só serviu para destacar

o brilho divertido de seus olhos— De vez em quando, uma dieta de tosco porridge tem suasvantagens.

Grey sufocou um súbito impulso de rir, esfregando-se o lábio com um dedo.—Sem dúvida, senhor Fraser. —Ficou contemplando a pedra azul. Depois perguntou,

bruscamente—: És católico, senhor Fraser?Já conhecia a resposta; quase todos os apoiantes dos Stuarts eram católicos. Sem aguardar a

réplica, levantou-se para aproximar à livraria do rincão. Procurou a Bíblia encadernada em pelede bezerro e a pôs na mesa, junto à pedra.

—Me inclino a aceitar vossa palavra de cavaleiro, senhor Fraser —disse— Mas compreendaque devo ter em conta meu dever.

O prisioneiro fincou uma longa olhada no livro. Depois levantou para Grey.—Sei, comandante. —Sem vacilar, pôs a larga mão na Bíblia— Juro por Deus Todo-poderoso e por seu Sacro Verbo queo tesouro é o que vos disse. —Seus olhos brilharam à luz do fogo, escuros e insondável— E juro por minha esperança de chegar ao Céu que agora descansa no fundo do mar.

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CAPÍTULO 11

O gambito de Torremolinos

Assim resolvida a questão do ouro francês, retomaram a rotina: um breve período denegociação formal sobre os assuntos dos prisioneiros, seguido por uma conversa informal e, asvezes, uma partida de xadrez. Aquela noite abandonaram a mesa ainda analisando Pamela, aextensa novela de Samuel Richardson.

—Cres que a longitude do livro está justificada pela complexidade do relato? —perguntouGrey, inclinando-se para acender um cigarro com a vela do aparador— Afinal de contas, alémde representar um grande gasto para o editor, requer do leitor um esforço considerável.

—Admito que, nesse aspecto, tenho certos preconceitos, comandante. Dadas ascircunstâncias em que li Pamela, me teria encantado que o livro fosse o dobro de longo.

—E quais foram essas circunstâncias? —perguntou Grey, sumindo os lábios para despedirum anel de fumaça.

—Passei vários anos vivendo numa gruta das Terras Altas, comandante —disse Fraser comironia— Nunca tinha mais de dois ou três livros, que deviam durar vários meses. Sim, soupartidário dos volumes grandes, mas devo admitir que não é uma preferência universal.

—Isso é muito verdadeiro —disse Grey. Com os olhos entornados, seguiu a trajetória doprimeiro anel de fumaça e soltou outro. Depois apagou rapidamente o cigarro e se levantou doassento— Vamos. Temos tempo para uma partida rápida.

Como adversários não estavam em pé de igualdade; Fraser jogava muito melhor, mas Greyse compunha para ganhar uma partida de vez em quando a força de pura bravura. Aquela noiteprovou o Gambito de Torremolinos. Era uma abertura arriscada, com o cavalo da dama.Obrigou-se a respirar normalmente enquanto efetuava o penúltimo movimento da combinação.Sentiu que os olhos de Fraser se posavam nele, mas não o olhou por medo a delatar seunervosismo. Se seu adversário movia o cavalo, já não poderia retroceder. Se movia o peão,tudo estava perdido.

A mão de Fraser sobrevoou o tabuleiro; depois, subitamente decidido, baixou para tocar apeça. O cavalo.

Deve ter expelido o ar com muito ruído, pois Fraser levantou bruscamente os olhos. Mas jáera muito tarde. Com cuidado para evitar que sua cara refletisse a expressão de triunfo, Grey

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enrocou.O escocês olhou o tabuleiro com a sombrancelha franzida, avaliando as peças. Depois deu

um sobressalto e o olhou com olhos dilatados.—Que astuto, pequeno cretino! —disse com respeito— Onde diabos aprendeste essa

jogada?—Meu irmão mario me ensinou —respondeu Grey perdendo sua vezeira cautela por culpa

do sucesso. Normalmente, Fraser lhe ganhava sete vezes em cada dez. A vitória era doce.Seu hóspede emitiu um riso breve e alongou o índice para tombar delicadamente seu rei.—Cabia esperar algo assim de um homem como lorde Melton —observou com desaire.Grey se pôs rígido no assento. Fraser, ao notá-lo, levantou uma sobrancelha zombadora.—Refere-se a lorde Melton, certo? —disse— Ou tens outro irmão?—Não —confirmou Grey. Sentia os lábios dormentes, mas o atribuiu ao cigarro— Não, só

tenho um irmão. —O coração voltava a palpitar-lhe, mas agora com um ritmo pesado e forte.Esse maldito escocês teria sabido desde um princípio quem era ele?

—Nosso encontro foi breve, por necessidade —recordou Fraser seco— Mas memorável. —Tomou um trago de seu copo, observando a Grey acima da borda— Ignorás que eu tinhaconhecido a lorde Melton no campo de Culloden?

—Sabia. Eu combati em Culloden. —Todo o prazer da vitória se tinha evaporado. Grey sesentiu um pouco enjoado pela fumaça— Mas não esperava que lembrásses de Hal… nem quesoubésses de nosso parentesco.

—Como devo minha vida a esse encontro, é difícil que possa esquecê-lo.Grey levantou os olhos.—Tenho entendido que não estávas tão agradecido quando conheceste a Hal, em Culloden.Fraser apertou a boca. Depois a relaxou.—Não —reconheceu suavemente, sorrindo sem humor— Vosso irmão, muito

teimosamente, negou-se a fuzilar-me. Então eu não tinha motivos para agradecer-lhe o favor.—Desejáva que o fuzilassem!? —Grey alçou as sobrancelhas.—Acreditava ter motivos —disse suavemente— Naquele momento.—Que motivos? —Grey captou uma olhada rápida e se apressou a adicionar—: Não quero

ser impertinente, mas… naqueles dias eu pensava algo similar. Pelo que me dissestes dosStuarts, não creio que a derrota de sua causa vos tenha provocado tanto desespero.

Teve um leve movimento junto à boca de Fraser, muito vago para merecer o nome desorriso. O escocês inclinou brevemente a cabeça.

—Tinha quem combatiam por amor a Carlos Stuart… ou por lealdade ao direito ao trono deseu pai. Mas tens razão: eu não era desses.

Não explicou mais. Grey respirou fundo, sem afastar os olhos do tabuleiro.—Como eu dizia, por aquele então eu sentia de modo parecido. Em Culloden…, perdi a um

amigo muito íntimo —disse. A metade de sua mente se perguntava por que devia mencionar aHector precisamente ante aquele homem— Obrigou-me a ver o cadáver… Hal, meu irmão —

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balbuciou.E olhou a mão, onde o azul intenso da safira de Héctor ardia sobre sua pele, uma versão

menor da safira que Fraser lhe tinha dado com tanta inapetência.—Disse que era necessário, que se não o visse morto nunca acabaria de crer que Hector,

meu amigo, tinha-se ido para valer. Assim o choraria eternamente, disse. Se o via, mudado,choraria, mas tarde ou cedo poderia sanar… e esquecer. —Levantou os olhos fazendo umpenoso esforço para sorrir— Pelo geral Hal tem razão, mas não sempre.

Pode ser que tivesse curado, mas nunca esqueceria. Nunca esquecerei a última imagem deHector, imóvel, com a cara cerúlea à primeira luz da manhã e as longas pestanas escurasrepousando delicadamente nas bochechas como quando dormia. Nem a ferida aberta que quaselhe tinha separado a cabeça do corpo, deixando à vista a traquéia e os grandes condutos dopescoço, como num açougue. Guardaram silêncio. Fraser não disse nada, mas levantou seucopo e apurou quantas vezes. Sem dizer nada, Grey encheu ambas copos pela terceira vez e serecostou na cadeira, olhando a seu hóspede com curiosidade.

—Considera sua vida como uma carga muito pesada, senhor Fraser?O escocês o olhou aos olhos.—Talvez não tanto —respondeu com lentidão — Creio que o pior peso é, talvez, preocupar-

nos por quem não podemos ajudar.—Pior do que não ter por quem preocupar-se?Fraser fez uma pausa antes de responder.—Isso é vazio —disse ao—fim . Mas não constitui uma carga muito pesada.Era tarde; não se ouvia ruído algum na fortaleza que os rodeava, salvo alguma pisada do

soldado que montava guarda abaixo, no pátio.—Sua esposa, disseme que era curandeira?—Sim. Ela… chamava-se Claire. —Fraser enguliu saliva; depois levantou o copo para

beber como se tentasse aclarar a garganta.—Suponho que a querias muito —apontou Grey suavemente.Reconhecia no escocês a mesma compulsão que ele tinha sentido momentos antes: a

necessidade de pronunciar um nome oculto, de recuperar, por um momento, o fantasma de umamor.

—Tinha intenção de dizer obrigado alguma vez, comandante —disse o prisioneiro.Grey se sobressaltou.—Dar-me obrigado? Por que?O escocês levantou os olhos escuros.—Por aquela noite em que nos conhecemos, em Carryarrick. Pelo que fizestes em favor de

minha esposa.—Eu lembro —murmurou Grey rouco.—Não o tinha esquecido.Grey reuniu coragem para olhá-lo acima da mesa. Não tinha rastos de riso nos oblíquos

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olhos azuis. Fraser assentiu com grave formalidade.—Foste um digno inimigo, comandante; não poderia esquece-lo.John Grey riu com amargura. Estranhamente, sentia-se menos inquieto do que esperava ante

a referência explícita àquela vergonhosa recordação.—Se um menino de dezesseis anos, cagado de medo, pareceu um inimigo digno, senhor

Fraser, não me estranha que o exército das Terras Altas tenha sido derrotado.O escocês sorriu vagamente.—O homem que não se caga de medo quando lhe apontam com uma pistola à cabeça,

comandante, não tem intestinos ou não tem cérebro.Grey riu contra sua vontade.—Não quiseste falar para salvar vossa própria vida, mas o fizeste pela honra de uma dama.»A honra de minha própria dama —observou seu convidado com suavidade— A meu modo

de ver, isso não é covardia.Em sua voz era muito evidente o som da verdade para confundí-lo.—Não fiz nada por vossa esposa —objetou o alcaide com bastante amargura— Ela não

corria nenhum perigo, depois de tudo.—Mas voce não sabia, verdade? —disse Fraser— Acreditou estar salvando a vida e a

virtude a risco das vossas. Com essa idéia a honrastes. As vezes o penso, desde que… desdeque a perdi. —Em sua voz tinha uma leve vacilação; só a rigidez muscular de sua gargantadelatava sua emoção.

—Compreendo. —Grey respirou fundo e deixou escapar lentamente o ar— Lamento vossaperda —adicionou formalmente.

Ambos guardaram silêncio por um momento, sós com seus fantasmas. Por fim Fraserlevantou os olhos.

—Vosso irmão tinha razão, comandante —disse— Dou-vos a graça e o desejo de boa noite.Levantou-se, deixando o copo, e abandonou o quarto.Se parecia, em certos aspectos, aos anos passados na gruta, com as visitas à casa, esses oásis

de vida e calidez no deserto da solidão. Aqui sucedia ao contrário: ia da obstinada e frialobreguez das celas às luminosas habitações do comandante, onde podia exercitar tanto amente como o corpo, relaxar-se na indiferença, a conversa e a abundância de comida.

Em pé no ventoso corredor, enquanto esperava que o carcereiro abrisse a porta da cela,percebeu os ruídos zumbantes dos homens dormidos; ao abrir-se a porta o assaltou o cheirodaqueles homens.

—Voltas tarde, Mac Dubh —disse Murdo Lindsay com a voz cascata pelo sonho—.Amanhã estarás esgotado.

—Já me arrumarei, Murdo —sussurrou, passando entre os corpos. Tirou a jaqueta paradepositá-la com cuidado no banco, pegou o áspero cobertor e procurou seu espaço no solo; sualonga sombra piscou sob a lua, entre as barras da janela.

—O Rubito te deu de comer decentemente, Mac Dubh?—Sim, Ronnie. Obrigado.

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—Amanhã vai nos contar? —Para os prisioneiros era um estranho prazer inteirar-se do quelhe tinham servido para jantar; tomavam como uma honra o fato de que seu chefe recebesseuma boa comida.

—Sim, Ronnie —prometeu Mac Dubh— Mas agora devo dormir, de acordo?—Que durmas bem, Mac Dubh —disse num sussurro.—Doces sonhos, Gavin —sussurrou Mac Dubh por sua vez.Aquela noite sonhou com Claire. Tinha-a entre seus braços. Estava grávida, com o ventre

redondo e suave como um melão, ricos e cheios os peitos, com os mamilos escuros como ovinho, instando-lhe a prová-los. Pegou um com ansiedade, estreitando-a contra si enquantosuccionava. Seu leite era quente e doce, com um leve gosto a prata, como sangue de veado.

—Com mais força —sussurrou ela. E lhe apoiou uma mão na nuca— Com mais força.Acordou subitamente, sudoroso e ofegando, meio encolhido sobre um custado, sob um dos

bancos da cela. Ainda não tinha aclarado de tudo mas já podia ver as silhuetas dos homenstombados junto a ele. Esperava não ter gritado. Fechou os olhos de imediato, mas o sonho tinhadesaparecido. Permaneceu muito quieto enquanto o coração se lhe tranqüilizava, esperando oamanhecer.

18 de junho de 1755

Aquela noite John Grey tinha vestido com esmero; camisa limpa e médias de seda. Luzíasua própria cabeleira, singelamente trançada e umedecida com um tónico de limão e verbena.Depois de uma momentânea vacilação, tinha-se posto também o anel de Hector. O jantar foibom: um faisão que ele mesmo tinha caçado e uma salada em deferência aos estranhos gostosde Fraser. Já sentados frente ao tabuleiro de xadrez, descartaram os temas de conversa maislevianos para concentrar-se no jogo.

—Tomas xerez?Fraser assentiu com a cabeça, absorto na nova posição.—Sim, obrigado.Grey se levantou para cruzar o quarto, deixando Fraser junto ao fogo. Ao tirar a garrafa do

armário sentiu que um fio de suor lhe baixava pelas costelas. Não era pelo fogo que ardia aooutro lado da habitação, senão por puro nervosismo.

Ao regressar à mesa moveu o bispo da rainha sabendo que era só um movimento giratorio.Ainda assim pôs em perigo à rainha de Fraser; talvez o obrigasse a sacrificar uma torre.

Fraser tinha atado o cabelo para atrás com um fino cordão negro, formando um laço.Bastaria um leve puxão para desatá-lo. John Grey se imaginou deslizando a mão sob aquelamata densa e lustrosa para tocar a nuca suave e morna. Tocar…

Fechou bruscamente a mão, imaginando a sensação.—Sua vez, comandante.A suave voz escocesa lhe devolveu à realidade. Tomou assento observando o tabuleiro com

olhos cegos. Tinha intensa consciência dos movimentos do outro, de sua presença. Ao redor deFraser o ar se agitava; era impossível não o olhar. Para dissimular levantou o copo de xerez e

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tomou um trago, quase sem degustar o líquido dourado.Fraser permanecia quieto como uma estátua, estudando o tabuleiro; o azul escuro de seus

olhos parecia vivo em sua cara. O fogo se tinha consumido e as linhas de seu corpo serecortavam nas sombras. A mão dourada e negra, alumiada pelas brasas, descansava na mesa,imóvel e extraordinária como o peão capturado junto a ela.

Quando John Grey alongou a mão para o bispo de sua rainha, a pedra azul de seu anellançou um reflexo. «Faço mal, Hector?», perguntou-se. «É mal amar o homem que bem pôdeter-te matado?» Talvez era um modo de cicatrizar para ambos as feridas de Culloden.Depositou o bispo com um golpezinho seco e preciso. Sua mão, sem deter-se, pareceu mover-se por vontade própria e cruzou em pouca distância, como se soubesse exatamente o quedesejava, para posar-se na de Fraser, com a palma vibrante e os dedos curvados numa suaveimploração.

A mão que tocou estava quente, muito quente…, mas dura e imóvel como o mármore. Nadase moveu na mesa, a não ser o reflexo da chama no coração do xerez. Levantou os olhos paraprocurar os de Fraser.

—Retira essa mão —disse o escocês com muitíssima suavidade— se não quer que eu omate.

Seus dedos não se moveram; também não seu rosto, mas Grey percebeu o arrepio derepugnância, um espasmo de ódio e desgosto que surgia do centro mesmo daquele homem.

De súbito ouviu, uma vez mais, a advertência de Quarry, tão clara como se seu predecessorlhe estivesse falando ao ouvido. «Se jantar a sós com ele… não lhe dê as costas.»

Não tinha nenhuma possibilidade de fazê-lo; não podia mover-se. Não podia sequer afastar acara, piscar para romper o contato com os olhos azuuis que o mantinha petrificado. Com muitalentidão, retirou a mão.

Teve um momentâneo silêncio durante o qual nenhum dos dois pareceu respirar. Por fimFraser se levantou sem fazer ruído e saiu do quarto.

CAPÍTULO 12

SACRIFÍCIO

A chuva de outono repiqueava nas pedras do pátio e nas fileiras de homens encurvados sobo dilúvio. Os soldados que os vigiavam não pareciam bem mais felizes do que os prisioneirosempapados.

O comandante Grey esperava sob o saliente do telhado. Não era o melhor dia para realizar ainspeção e limpeza das celas dos reclusos, mas a essa altura do ano era inútil esperar quefizesse bom tempo. E com mais de duzentos prisioneiros em Ardsmuir era necessário limpar ascelas ao menos uma vez ao mês, a fim de evitar que se propagassem as doenças.

As portas da cela principal giraram para trás dando dando um passo o pequeno desfile dereclusos: eram os escolhidos para fazer a limpeza sob a estreita vigilância dos guardas. O caboDunstable saiu detrás, com as mãos carregadas dos pequenos objetos proibidos quehabitualmente apareciam nesse tipo de inspeções.

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—Os lixos de sempre, senhor —informou deixando cair as patéticas relíquias sobre umtonel— Só isto pode interessar.

Referia-se a um pequeno pedaço de tecido, de uns quinze centímetros de comprimento, comum desenho escocês de cor verde. Grey, suspirando, enquadrou os ombros.

—Sim, suponho que sim. —A posse de tartán escocês estava estritamente vetada pela Leicontra as Saias, que desarmava os escoceses e lhes impedia utilizar a vestimenta tradicional.Ficou em frente aos homens, enquanto o cabo Dunstable dava um áspero grito para chamar-lhes a atenção.

—A quem pertence isto? —O cabo levantou o pedaço de tartán ao mesmo tempo que a voz.Grey seguiu as fileiras com os olhos, comparando as caras com seu imperfeito

conhecimento dos desenhos: MacAlester, Hayes, Innes, Graham, MacMurtry, MacKenzie,MacDonald… Um momento: MacKenzie, esse. Sua segurança se baseava mais noconhecimento oficial tem de seus homens que da relação desse tartán com um clã em especial.MacKenzie era um prisioneiro jovem; mantinha a cara muito inexpressiva, muito controlada.

—É seu, MacKenzie, verdade? —inquiriu Grey fitando o jovem numa olhada triunfal.O jovem escocês compartilhava com todos os demais um ódio implacável, mas não tinha

conseguido levantar a muralha de estóica indiferença que o continha. Grey percebeu o medoque se ia acumulando no moço.

—É meu. —A voz soou acalmada, quase aborrecedora, dotada de uma indiferença tal quenem MacKenzie nem Grey a registraram de imediato. Ambos seguiram olhando-se aos olhosaté que uma sombra se alongou acima do ombro do jovem, para pegar suavemente o pedaço detecido que o oficial sustentava.

John Grey deu um passo para trás; essas palavras foram como um golpe na boca doestômago. Esquecendo por completo a MacKenzie, elevou os olhos em muitos centímetrosnecessários para olhar frente a frente a James Fraser.

—Não é o tartán dos Fraser —disse com lábios apertados.A boca de Fraser se alargou levemente. Grey manteve a vista fixa nela, temeroso de

enfrentar àqueles escuros olhos azuis.—Não, efetivamente —disse Fraser— É dos MacKenzie. O clã de minha mãe.Em algum canto de sua mente, Grey armazenou outra pequena informação na combinação

que rotulava «Jamie»: sua mãe era uma MacKenzie. Sabia que era verdade, tal como sabia queaquele tartán não pertencia a Fraser. Ouviu sua voz, serena e firme, dizendo:

—A posse de tartanes é ilegal. Conhece o castigo, não é?A larga boca se curvou num sorriso torto.—Conheço.Teve um murmúrio entre as filas de prisioneiros. Com um esforço de vontade, Grey afastou

os olhos desses lábios suaves, algo irritados pela exposição ao sol e ao vento. A expressão dosolhos era a que ele temia: nem medo nem ira; só indiferença.

Fez um sinal a um dos guardas. —Aprisione.O comandante John William Grey inclinou a cabeça, assinando as requisições sem lê-las.

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Rara vez trabalhava até tão tarde da noite, mas durante o dia não tinha tido tempo e os papéisestavam amontoando. Requisitadas deviam partir para Londres essa mesma semana.

Ainda sentia o frio que lhe tinha metido nos ossos aquela manhã, no pátio. O lar estavaacendido mas o fogo não parecia servir de nada. Não tratou de aproximar-se; já o tinha tentadouma vez e tinha ficado hipnotizado vendo as chamas as imagens da tarde; só pôde reagirquando o calor começou a chamuscar as calças.

Recolhendo a pluma, tratou novamente de afastar a mente do pátio.Era melhor não atrasar a execução dessas sentenças; os prisioneiros ficavam nervosos com a

expectativa e era difícil controlá-los. Geralmente, as medidas disciplinarias executadas deimediato costumavam ter um efeito saudável.

Ainda se sentia gelado por dentro, tinha dado as ordens com seriedade e compostura. Foiobedecido com igual concorrência.

Se formou os prisioneiros em fileiras aos quatro lados do pátio e os guardas frente a eles,com as baionetas preparadas para evitar qualquer reação indesejada.

Mas não teve nenhuma reação. Com as mãos cruzadas às costas, sentindo a chuva que lheempapava o casaco e corria desde o pescoço da camisa, Grey observou impassível a JamieFraser, que permanecia em pé a um metro de distância, nu até a cintura. Movia-se sem pressanem vacilação, como se aquilo fosse algo que já tivesse feito mais de uma vez, uma tarefahabitual sem maior importância.

Fez um sinal com a cabeça aos dois soldados, que seguraram os braços do prisioneiro aoposte de castigo sem que tivesse resistência. Outro gesto ao sargento encarregado de ler osatributos e um pequeno incomodo, pois o movimento fez cair em cascata a chuva acumuladaem seu chapéu. Se endereçou, ajustando-se a peruca empapada, e recuperou sua postura deautoridade para escutar a leitura.

—… na contramão da Lei contra as Saias, ditada pelo Parlamento de Sua Majestade, delitopelo qual se aplicará a sentença de setenta chicotadas.

Grey olhou objetivo ao sargento designado para aplicar o castigo; para nenhum deles era aprimeira vez. Nesta oportunidade não fez nenhum sinal com a cabeça, porque ainda chovia. Emmudança, com os olhos entrecerrados, pronunciou as palavras de costume:

—Recebe vosso castigo, senhor Fraser.E permaneceu de pé, com o olhar fixo, vendo e escutando o golpe dos relhos e os rosnados

do prisioneiro através da mordaça.O homem tensionava os músculos para resistir a dor. Uma e outra vez, até que cada fibra se

revelou separado sob a pele. Grey sentia depois dele a presença dos homens, soldados eprisioneiros, todos com o olhar fixo na plataforma e sua figura central. Até as tosses se tinhamcalado.

O sargento mal fazia uma pausa entre um golpe e outro. Estava acelerando a tarefa; todomundo queria terminar de uma vez e refugiar-se da chuva. Grissom contava a cada chicotadaem voz alta ao mesmo tempo em que o anotava em seu registo. O sargento interrompeu aflagelação fazendo correr entre os dedos as filas do chicote, com seus nodos encerados, paraliberá-las de sangue e fragmentos de carne. Depois o alçou uma vez mais, fazendo-o girar aoredor da cabeça, e voltou a descarregá-lo.

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—Trinta! —disse o sargento.O comandante Grey fechou a última gaveta da escrivaninha e vomitou sobre um montão de

requisitos.Ainda que fincasse os dedos nas mãos, o tremor não cessava. Tinha-o dentro dos ossos,

como o frio do inverno.—Cubra-o com um cobertor. O atenderei em seguida.A voz do cirurgião inglês parecia vir desde muito longe; não relacionava a voz com as mãos

que lhe aferrava com firmeza em ambos braços. Quando o moveram gritou, porque a torçãoabriu as feridas das costas, mal fechadas. O gotejo do sangue quente pelas costelas piorou ostremores, apesar do áspero cobertor que lhe puseram sobre os ombros.

—Hum. Deixou-te um desastre, não, rapaz?Não respondeu; de qualquer modo, ninguém parecia aguardar resposta. O cirurgião se

afastou um momento; depois sentiu uma mão sob a bochecha, levantando-lhe a cabeça. Umatoalha se deslizou sob sua cara, acolchoando a tosca madeira.

—Agora vou limpar as feridas —disse a voz. Era impessoal mas não falta de cordialidade.Ofegou ao sentir o contato nas costas. Teve um estranho gemido. Envergonhou-se ao

compreender que era seu.—Que idade tens, rapaz?—Dezenove. —Mal pôde pronunciar a palavra antes de agüentar com força o gemido.O cirurgião lhe tocou as costas com suavidade. Depois se incorporou.—Ninguém vai entrar —disse bondadosamente— Ande, chora.—Ei! —estava dizendo a voz— Desperta, homem!Voltou lentamente à consciência; a tosca madeira sob a bochecha uniu por um momento o

sonho e o acordar; não pôde recordar onde estava. Uma mão surgiu da escuridão e lhe tocou abochecha, vacilante.

—Estava chorando em seus sonhos, homem —sussurrou a voz— Te dói muito?—Um pouco. —Ao tratar de incorporar-se, a dor estourou sobre suas costas como um

relâmpago.Tinha tido sorte de que quem lhe tocou foi Dawes, um soldado maduro e rijo, em realidade

não lhe agradava flagelar aos prisioneiros; fazia-o só por cumprir com seu trabalho. Aindaassim, setenta chicotadas faziam dano.

—Não, caramba, está muito quente. Quer queimá-lo?Era a voz de Morrison, resmungão. Tinha que ser Morrison, por suposto. Era curioso,

pensou vagamente. Quando se reúne um grupo de homens, cada um parece achar o trabalhoque lhe corresponde, tenha-o feito antes ou não. Morrison tinha sido fazendeiro, como amaioria deles. Era provável que tivesse boa mão para os cavalos, ainda que não lhe desse maiorimportância. Agora era o curandeiro ao que recorriam os homens quando lhes doía as costas ouse rompiam um dedo.

Puseram nas costas um pano quente, que o fez rosnar pela ardência; apertou os lábios comforça para não gritar. Depois percebeu a mão pequena de Morrison no centro de suas costas.

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—Agüenta, homem, até que passe o calor. Sentia mais ou menos a mesma indiferença desdeo momento que tinha alongado a mão acima do ombro do jovem Angus para pegar o pedaço detartán. Como se dependesse dessa decisão, entre seus homens e ele tinha corrido uma espéciede pano de fundo, como se estivesse só num lugar longíquo.

Tinha seguido aos guardas que o levavam e se desvestiu quando o ordenaram sem sentir-serealmente desperto. Ouviu da plataforma as palavras do delito e a sentença sem prestar-lhesmuita atenção. Nem sequer o reanimaram a áspera mordida da corda nas mãos ou a chuva frianas costas nuas. Pareciam coisas que já tinham sucedido antes; nada que ele pudesse dizer oufazer mudaria; tudo estava decretado.

—Quieto agora, quieto. —Morrison lhe pôs uma mão no pescoço para evitar que semovesse enquanto lhe tiravam os trapos empapados para aplicar-lhe outra cataplasma quente,que acordou momentaneamente todos os nervos adormecidos.

Uma conseqüência daquele estranho estado mental era que todas as sensações pareciam ter amesma intensidade.

—Toma, Mac Dubh —disse a voz de Morrison junto ao seu ouvido— Levanta a cabeça ebebe isto.

Golpeou o cheiro penetrante do whisky; tratou de afastar a cara.—Não preciso —disse.—Claro que sim — afirmou Morrison com a firmeza que parecem ter todos os curandeiros,

como se soubessem melhor do que voce o que sentes e o que precisas. A falta de forças e devontade para discutir, abriu a boca e sorveu o whisky, sentindo que lhe estremeciam osmúsculos do pescoço com o esforço de manter a cabeça levantada.

—Um pouco mais, assim,isso aí —o instava Morrison— Bom moço. Sim, assim estámelhor, não? —Morrison moveu seu corpo— E agora, como estão essas costas? Amanhãestarás mais teso do que um poste, mas creio que não estás tão mau. Vamos, homem, bebe umpouco mais.

A borda da xícara pressionava sua boca, insistente. Morrison seguia tagarelando em vozbastante alta, sem dizer nada em especial. Tinha algo raro nisso. Morrison não era tagarela.Estava sucedendo algo mas ele não o via. Quando levantou a cabeça para averiguar, seu colegalhe obrigou a baixá-la.

—Não se incomode, Mac Dubh —lhe disse com suavidade— De qualquer modo, não podesimpedí-lo.

Do canto mais afastado da cela lhe chegavam sons discretos, os mesmos que Morrison tinhatratado de impedir-lhe ouvir. Algo que se arrastava, murmúrios breves, um golpe seco.

Estavam golpeando ao jovem Angus MacKenzie. Apoiou as mãos sob o peito, mas oesforço fez que lhe ardesse as costas e a cabeça lhe deu voltas. A mão de Morrison lhe obrigoua encostar.

—Deixa pra lá, Mac Dubh. —Seu tom era uma mistura de autoridade e resignação.Uma onda de vertigem se abateu sobre ele e suas mãos se deslizaram fora do banco. De

qualquer modo, Morrison tinha razão: não podia impedí-lo.Os sons tinham cessado, exceptuando um ofego apagado e choroso. Relaxou os ombros e

não se moveu quando Morrison lhe tirou a última cataplasma; a corrente de ar lhe provocou um

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súbito arrepio. Apertou os lábios com força para não fazer nenhum ruído. Aquela manhã otinham amordaçado, do qual se alegrava: a primeira vez que o açoitaram, anos atrás, tinha-semordido o lábio inferior quase até partí-lo em dois.

A xícara de whisky pressionou outra vez sua boca, mas afastou a cara; a bebida desapareceusem comentários, para algum lugar onde achasse uma recepção mais cordial. Provavelmente amãos de Milligan, o irlandês.

Um homem com debilidade pela bebida; outro que a detestava. Um homem amante dasmulheres; outro… De onde vinham esses dons que davam forma à natureza humana? De Deus?Era como a descida do Espírito Santo, como as línguas de fogo que se posaram nos apóstolos?Recordou a ilustração da Bíblia que sua mãe tinha na sala e fechou os olhos, sorrindo ante arecordação.

Claire, sua Claire… Como saber quem a tinha enviado, arrojando a uma vida para a qualnão tinha nascido? No entanto, ela tinha sabido o que fazer e qual era seu destino, apesar detudo. Nem todos tinham a sorte de conhecer seus dons.

Ao seu lado teve um cauteloso arrasto de pés. Ao abrir os olhos só viu uma silhueta, masadivinhou quem era.

—Como estás, Angus? —perguntou suavemente em gaélico.O jovenzinho se ajoelhou torpemente ao seu lado pegando-lhe a mão.—Estou… bem. Mas voc, senhor… Quero dizer… sento-o.Foi por experiência ou instinto que estreitou essa mão num gesto reconfortante?—Eu também estou bem —disse— Precisa descansar, pequeno Angus.A silhueta inclinou a cabeça num gesto estranhamente formal e lhe deu um beijo no dorso

da mão.—Posso… posso ficar-me junto a voc, senhor?A mão lhe pesava uma tonelada, mas ainda assim a levantou para posá-la na cabeça do

jovem. Se lhe deslizou de imediato, mas sentiu que Angus se relaxava ante o consolo que fluíado contato.

Tinha nascido para ser líder; depois foi mudado e refeito para ajustar-se ainda mais a essedestino. Mas que passava com o homem que se via obrigado a desempenhar um papel sem ternascido para ele? John Grey, por exemplo. Ou Carlos Stuart.

Pela primeira vez em dez anos, pôde perdoar àquele homem débil que, em outros tempos,tinha sido seu amigo. Depois de ter pago com tanta freqüência o preço exigido por seu própriodom, por fim podia compreender a terrível condenação de ter nascido rei sem dotes para reinar.

Então se sentiu livre de muitos pesos. O da responsabilidade imediata, a da necessidade dedecidir. Desapareceu a ira; talvez tivesse ido para sempre.

Entre a bruma que se espessava, pensou que John Grey lhe tinha devolvido seu destino.Quase lhe estava agradecido.

CAPÍTULO 13

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No meio do jogo

Inverness

2 de junho de 1968

Foi Roger quem a encontrou pela manhã, encolhida no sofá do estudio sob o tapete dachaminé; o solo estava coberto de papéis que tinham caído de uma pasta.

O tapete lhe deixava os ombros descoberto. Um braço descansava no peito sujeitando umafolha de papel enrugado. Roger o levantou com cuidado para retirar a folha sem acordá-la.Estava relaxada, com a pele assombrosamente quente e suave.

Seus olhos encontraram de imediato o nome.—James Mackenzie Fraser —murmurou afastando os olhos do papel para a mulher que

dormia no sofá— Não sei quem foi, amigo, mas deves de ser muito especial para merecê-la.Com muita suavidade voltou a subir-lhe o tapete até os ombros e baixou a persiana. Depois

se pôs em corócas para recolher os papéis dispersos de Ardsmuir. Ardsmuir. isso era tudo oque precisava no momento. Ainda que o destino final de Jamie Fraser não estivesse registradonaquelas páginas, devia mostrar a história da prisão. Talvez fizesse outra incursão nos arquivosdas Terras Altas e até uma viagem a Londres. Mas o próximo elo da corrente estava forjado; ocaminho se via com clareza.

Quando fechou a porta do estudio, movendo-se com exagerada cautela, Brianna descia aescada. Olhou-o levantando uma sobrancelha numa maneira de pergunta e ele mostrou a pastacom um sorriso.

—Achamos —sussurrou.Ela não disse nada, mas seu rosto se iluminou com um sorriso.

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QUARTA PARTEO Distrito dos Lagos

CAPÍTULO 14

GENEVA

HelwaterSetembro de 1756

—Creio —disse Grey cauteloso— que deverias pensar em mudar de nome.Não esperava resposta; Fraser não tinha dito uma palavra depois de quatro dias de viagem,

apesar de que se viam obrigados a compartilhar a habitação. Grey, encolhendo-se de ombros,ocupava a cama, enquanto Fraser, sem um gesto nem olhares, envolvia-se numa surrada capa eestava frente à chaminé.

—Nosso novo anfitrião não está bem disposto para Carlos Stuart e seus apoiantes, já que emPrestonpans perdeu o seu único filho varão —continuou Grey, dirigindo-se ao perfil de ferroque o acompanhava. Ao morrer, Gordon Dunsany era um jovem capitão do regimento deBolton, tinha poucos anos mais do que ele—. Não tens muitas esperanças de dissimular o fatode ser escocês e, por acréscimo, das Terras Altas. Se queres fazer caso de um conselho bemintencionado, seria judicioso não utilizar um sobrenome tão facilmente reconhecível como ovosso.

A dura expressão de Fraser não se alterou em absoluto.Já estava tarde quando cruzaram a ponte de Ashness para descer a costa para Watendlath

Tarn. Aquela parte da Inglaterra, o Distrito dos Lagos, não se parecia a Escócia, mas ao menostinha montanhas.

A lagoa de Watendlath estava escura e agitada pelo vento outonal; em seus bordes cresciamdensos juncos e ervas pantanosas. As chuvas tinham sido mais abundantes do que de costume eas pontas dos matagais inundados assomavam aqui e lá.

No cume da colina seguinte, o caminho se dividia em dois. Fraser, que se tinha adiantadoum pouco, parou o seu cavalo à espera de indicações, com o vento revolvendo-lhe o cabelo.Aquela manhã não se tinha trançado e as flamíferas mechas voavam ao redor da cabeça.

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Subindo ladeira acima, John William Grey observou ao homem parado, imóvel como umaestátua de bronze em sua sela salvo pela cabeleira agitada. O alento morreu em sua garganta epassou a língua pelos lábios, murmurando para si:

—Oh, Lucifer, filho da manhã.Mas se conteve para não acrescentar o resto da citação.Para Jamie, aqueles quatro dias de cavalgada para Helwater tinham sido uma tortura. A

súbita ilusão de liberdade, combinada com a certeza de sua imediata perda, faziam-lheimaginar com horror um destino desconhecido. As palavras de Grey lhe ressoavam nosouvidos, meio apagadas pelo palpitar de seu sangue colérico.

—Como a restauração da fortaleza está quase finda, graças a vossa hábil ajuda e a de vossoshomens —Grey tinha dado a sua voz um colorido irônico—, os prisioneiros serãotransportados a outros alojamentos e a fortaleza de Ardsmuir servirá de quartel ao Décimo deDragões de Sua Majestade. Os prisioneiros de guerra escoceses serão transportados às Colôniasamericanas, onde serão vendidos sob contrato de servidão pelo prazo de sete anos.

Jamie se tinha mantido cuidadosamente inexpressivo, mas ante essa notícia sentiu que a carae as mãos se adormeciam de espanto.

—Servidão? Isso não é melhor do que a escravatura —disse, ainda que sem prestar muitoatenção a suas próprias palavras. América! Terra de selvagens à que se chegava cruzando cincomil quilômetros de mares desertos e agitados!

—Um contrato de servidão não é escravatura —lhe tinha assegurado Grey. Mas ocomandante sabia tão bem como ele que a diferença era uma mera questão legal, válida sóquando os servos contratados, que sobreviviam, recobravam sua liberdade em alguma datapredeterminada. Um servo contratado era, a todas luzes, escravo de seu amo.

—Não vou enviar voce com os outros. —Grey não o olhou ao dizê-lo— Não és um simplesprisioneiro de guerra, sim um traidor preso. Como tal, deves permanecer prisioneiro e adisposição de Sua Majestade; não é possível mudar a sentença transportando sem a aprovaçãoreal. E Sua Majestade não se dignou aprová-lo.

Jamie teve consciência de uma notável variedade de emoções; embaixo de sua ira imediatatinha medo e pesar pelo destino de seus homens, misturada com uma pequena faísca dehumilhante alívio porque, qualquer que fosse seu destino, não o confiariam ao mar.Envergonhado de si mesmo, voltou para Grey dando uma olhada fria.

—O ouro —disse secamente— É por isso, não? —Enquanto tivesse a menor possibilidadeque ele revelasse o que sabia daquele tesouro quase mítico, a Coroa Inglesa não correria o riscode perdê-lo a mãos dos demônios marítimos ou os selvagens das Colônias.

O comandante ainda recusava olhá-lo, mas se encolheu de ombros, o qual equivalia a umconsentimento.

—E então, onde irei?—A um lugar chamado Helwater, no Distrito dos Lagos de Inglaterra. Ficará na casa de

lorde Dunsany, a quem prestará serviços domésticos que ele requer. —Só então Grey levantouos olhos com uma expressão ilegível nos olhos claros— Eu te visitarei cada três meses paraassegurar-me de seu bem-estar.

Agora observava as costas do comandante, coberta pela jaqueta vermelha, enquanto

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cavalgavam um por trás do outro pelos estreitos caminhos, aliviando-se de suas angústiasimaginando os grandes olhos azuis injetados em sangue, saltando de assombro, enquanto lheapertava o pescoço com as mãos, afundando os dedos na carne enrrojecida pelo sol até que ocorpo miúdo e musculoso ficava lasso como um coelho morto.

Como a disposição de Sua Majestade? Não se enganava. Tudo aquilo tinha sido tramado porGrey; o ouro era só uma desculpa. Iam vendê-lo como servente; o manteriam num lugar ondeGrey pudesse vê-lo e deleitando-se. Essa era a vingança do comandante.

Grey se deteve e girou na sela, esperando-o. Tinham chegado. A terra descia em pique paraum vale onde se via a casa familiar meio oculta entre árvores brilhantes do outono.

Ante ele se estendia Helwater e, com ele, a perspectiva de passar sua existência emvergonhosa servidão. Erguendo as costas, atiçou o seu cavalo com mais dureza da que teriaquerido.

Grey foi recebido no salão principal sem que o cordial lorde Dunsany se preocupasse porsuas roupas desalinhadas e suas botas sebosas; Lady Dunsany, uma mulher miúda erechonchuda, de cabelo loiro descolorido, mostrou-se plenamente hospitalar.

—Uma taça, Johnny! Tens que tomar uma taça. Louisa, querida minha, creio que devestrazer às meninas para que saúdem a nosso hóspede.

Enquanto lady Dunsany dava ordens a um lacaio, Sua Senhoría se inclinou sobre a taça paramurmurar-lhe:

—O prisioneiro escocês… Trouxe contigo?—Sim—confirmou Grey. Não tinha muitas possibilidades de que a senhora o escutasse, pois

mantinha uma animada conversa com o mordomo sobre as novas disposições para o jantar;ainda assim lhe pareceu melhor falar baixinho— Deixei-o no vestíbulo dianteiro. Não estavaseguro do que desejaria fazer com ele.

—Dizes que tem habilidade com os cavalos, não? Então o melhor será fazer isso, comosugeriu. —Lorde Dunsany deu uma olhada a sua esposa e voltou para ela em suas magrascostas para fazer ainda mais seu reservado diálogo— Não disse a Louisa quem é ele —murmurou o barão— Com tanto medo como causaram as gentes das Terras Altas durante aguerra…, o país estava paralisado de terror, sabe? E ela não superou a morte de Gordon.

—Compreendo. —Grey deu umas palmadas tranqüilizadoras ao velho.—Lhe direi só que é um servente recomendado por ti. Eh… não é perigoso, suponho.

Porque… bom, as meninas… —Lorde Dunsany dirigiu uma olhada intranqüila a sua esposa.—Não há nenhum perigo —assegurou Grey a seu anfitrião— É um homem de honra e deu

sua palavra. Não entrará na casa nem cruzará os limites de vossa propriedade, salvo com suapermissão expressa.

Um ruído na porta fez que Dunsany girasse em volta, recuperando uma sorridentejovialidade ante a aparição de suas duas filhas.

—Se lembras de Geneva, Johnny? —perguntou impulsionando o seu hóspede para frente—A última vez que vieste Isabel era ainda uma criança. Como passa o tempo, não? —E sacudiu acabeça com leve horror.

Isabel tinha quatorze anos; era miúda, rechonchuda e loira, como sua mãe. Quanto aGeneva, Grey não a recordava… ou talvez sim, mas a magrela colegial dos anos anteriores

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tinha escasso parecido com aquela elegante jovem de dezessete anos que agora lhe oferecia amão.

As moças saudaram ao visitante com amabilidade, mas era óbvio que estavam maisinteressadas em outra coisa.

—Papai —disse Isabel pegando-o na manga— no vestíbulo há um homem gigantesco.Enquanto desciamos a escada não deixava de olhar-nos!Dá medo vê-lo!

—Quem é, papai? —perguntou Geneva com interesse.—Eh… caramba, deve ser onovo rapaz dos estábulos que nos trouxe John —explicou lorde

Dunsany, ligeiramente— Vou ordenar que algum dos lacaios o levem a…Interrompeu-o a súbita aparição de um servente, visivelmente espantado pela notícia que

trazia.—Senhor, no vestíbulo há um escocês! —E por sua escandalosa informação ainda não fora

criada, girou para apontar com um gesto amplo a silhueta alta e silenciosa, envolvida em seumanto.

Ante um sinal, o desconhecido deu um passo a frente e inclinou cortesmente a cabeça paralorde Dunsany.

—Chamo-me Alex MacKenzie —disse com suave acento montanhês. Em sua reverêncianão tinha insinuação alguma de zombaria— Para servir-vos, milord.

Para alguém acostumado à esgotante vida de agricultor das Terras Altas ou dos trabalhosforçados de uma prisão, não presumia um grande esforço ser o rapaz dos estábulos num studinglês. Mas era um inferno para Jamie Fraser, que tinha passado os dois últimos meses presonuma cela. Durante a primeira semana, enquanto seus músculos se acostumavam às exigênciasdo movimento constante, caía pela noite em seu colcão de palha tão fatigado que nem sequersonhava.

Tinha chegado a Helwater em tal estado de esgotamento e confusão mental que, numprincípio, aquilo lhe pareceu uma prisão a mais… e uma prisão no estrangeiro, longe dasmontanhas escocesas. Uma vez estabelecido ali, tão preso de sua palavra como se estivessedepois das grades, seu corpo e sua alma se foram acalmando pouco a pouco, até que lhe erapossível repensar com racionalidade.

Não era livre mas ao menos tinha ar, luz, e espaço para esticar os membros, uma paisagemmontanhosa e os formosos cavalos que criava Dunsany. Os outros criados o olhavam comdesconfiança, mas o deixavam em paz por respeito ao seu corpo e ao seu austero semblante.Era uma vida solitária, mas já estava resignado que sempre seria assim.

Em Helwater chegaram as suaves nevascas. Até a visita oficial do comandante Grey, porNatais (uma ocasião tensa e incômoda) passou sem aturdir sua crescente sensação de alegria.

Muito discretamente, se arrumou para comunicar-se com Jenny e Ian, que seguiam nasTerras Altas. Parte das raras cartas que lhe chegavam por meios indiretos (que ele destruíadepois de ler, em caso da segurança) sua única recordação do lar era o rosário que pendia emseu pescoço, dissimulado sob a camisa.

Desapareceu a neve e o ano se tornou luminoso com a primavera. No correr de seu trabalhodiário só havia uma presença pentelha: a de lady Geneva Dunsany.*Lady Geneva, bonita,malcriada e autoritária, estava habituada a obter o que desejava e quando o desejava, dando ao

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fracasso com as conveniências de quem se lhe interpusesse. Montava bem, mas era tãocaprichosa que os moços do pátio costumavam jogar a sorte para quem tinha a desgraça deacompanhá-la em seu passeio diário.

No entanto, nos últimos tempos lady Geneva elegia por si mesma o seu acompanhante: AlexMacKenzie. Ele apelou primeiro à discrição e depois a passageiras indisposições, para livrar-sede acompanhá-la às colinas.

—Tolices —replicou ela— Não seja estúpido. Ninguém nos verá. Vamos!E partia, espoleando brutalmente a sua égua antes de que pudesse detê-la, rindo dele acima

do ombro. Seu entusiasmo era tão óbvio que os outros lacaios sorriam de soslaio e faziamcomentários baixinho. Jamie confiava em que, mais cedo ou tarde, ela se cansaria de suataciturna atitude e transportaria seus cansativos atendimentos a outro dos serventes. QuisesseDeus que se casasse cedo e se fosse bem longe de Helwater e dele.

O dia era ensolarado, coisa rara no Distrito dos Lagos, onde a diferença entre as nuvens e osolo costuma ser imperceptível quanto à umidade. A tarde de maio era tão morna que Jamienão viu inconveniencia em tirar a camisa. Não tinha mais companhia do que a de Bess eBlossom, os dois estólidos cavalos.

Logo cedo viriam os ciganos; nas cozinhas e nos pátios não se falava de outra coisa. Talveztivesse tempo para escrever mais páginas à carta que estava escrevendo e que enviava cada vezque um grupo de cíganos chegava à fazenda. A entrega podia demorar um mês, três ou seis,mas cedo ou tarde o pacote chegava às Terras Altas, passando de mão em mãos até Lallybroch,onde sua irmã pagaria uma generosa soma por sua recepção. As respostas da família chegavampela mesma rota anônima, pois Jamie era prisioneiro da Coroa; portanto, quanto enviasse ourecebesse por correio devia ser vistoriado por lorde Dunsany.

O cilindro compressor iniciou um sulco novo. Com o sol na cara, Jamie fechou os olhos,desfrutando do calor no peito e os ombros. Meia hora depois, o agudo relincho de um cavalo oarrancou de sua sonolência. Ao abrir os olhos viu o cavalgador que se aproximava ao pátioinferior, emoldurado entre as orelhas de Blossom. Incorporou-se de imediato para pôr acamisa.

—Não quer que eu te cubra, MacKenzie. —A voz de Geneva Dunsany soava estridente eum pouco sufocada; vestia seu melhor traje de montar— O que estás fazendo? —perguntoupondo sua égua junto ao cilindro.

—Espalho esterco, milady —respondeu ele sem olhá-la.—Ah… —Ela o acompanhou — Sabe que vão me casar?Todos os criados sabiam há um mês por Richards, o mordomo, que estava servindo na

biblioteca quando o advogado foi redigir o contrato matrimonial. Lady Geneva tinha sidoinformada mal dois dias antes. Segundo Betty, sua donzela, não recebeu de bom grau a notícia.

Jamie respondeu com um rosnado, sem comprometer-se.—Com Ellesmere —disse. Tinha as bochechas acendidas e os lábios apertados.—Te desejo a maior felicidade, milady. —Jamie a tirou brevemente das rédeas, pois tinham

chegado ao final do plantio.—Felicidade! —exclamou ela, dando-se uma palmada na coxa com faísco de seus grandes

olhos cinzas— Felicidade! Com um velho que poderia ser meu avô?

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Jamie suspeitava que, quanto a ser feliz, as perspectivas do conde eram ainda mais limitadasdo que as dela. Mas se limitou a murmurar:

—Me perdoa, milady. —E se afastou para desenganchar o cilindro.Ela desmontou.—É um sujo negócio entre meu pai e Ellesmere! Meu pai me vendeu, simplesmente. Se ele

se interessasse um pouquinho por mim não teria aceitado esta aliança. Não parece terrível queme utilizem assim?

Pelo contrário, Jamie pensava que lorde Dunsany, pai muito afetuoso, tinha feito a melhoraliança possível para a malcriada de sua filha maior. O conde de Ellesmere era um ancião, sim.Era muito possível que, em poucos anos, Geneva se convertesse numa viúva jovem,sumamente rica e com um título de condessa, por acréscimo.

—Estou seguro de que vosso pai tem sempre em conta o que mais vos convém, milady —respondeu inexpressivo. Por que não se ia de uma vez aquele pequeno demônio?

Ela lhe cercou com sua expressão mais conquistadora, atrapalhando sua tarefa.—Mas me casar com esse velho seco! —observou— Meu pai não tem coração. —Pôs-se

nas pontas dos pés para olhar a Jamie— Quantos anos tens, MacKenzie?Por um instante ele se deteve o coração.—Muitíssimos mais do que vos, milady —disse com firmeza— Com vossa permissão. —

Passou ao seu lado como pôde, sem tocá-la, e subiu à carreta carregada de esterco,razoavelmente seguro de que ela não o seguiria até ali.

—Mas ainda não estás preparado para se aventurar, verdade, MacKenzie? —Agora tinhafrente a si, tamapando os olhos com a mão para olhar para acima. Tinha levantado uma brisaque lhe agitava umas fibras de cabelo castanho— Teve esposa, Mackenzie?

—Sim —respondeu ele num tom que não permitia mais indagações.A lady Geneva não lhe interessava a sensibilidade alheia.—Bem —disse satisfeita— Então sabe o que se faz.—O que se faz? —Ele deteve bruscamente a tarefa.—Na cama —disse ela com acalma— Quero que te cases comigo.Num rápido momento, Jamie só teve uma ridicula visão da elegante lady Geneva,

despatarrada no esterco da carreta com as saias cobrindo-lhe a cara. Deixou cair a pá.—Aqui? —grasno.—Claro que não, tonto! Numa cama, como deve ser. Em meu dormitório.—Perdeste a cabeça —replicou Jamie friamente, pouco recuperado do golpe— Se é que

alguma vez tivestes uma cabeça a perder.Ela semicerrou os olhos. Ardiam-lhe as bochechas.—Como se atreve a falar-me desse modo?—Como me atrevo a falar-me assim? —inquiriu Jamie acalorado— Uma jovenzinha de boa

família fazendo propostas indecentes a um homem que tem o dobro de sua idade! A umcavalariço de seu pai! —adicionou recordando sua posição. Depois fez um esforço por dominar

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a cólera— Peço perdão, milady. O sol está muito forte e creio que te afetou o cérebro. Deveriavoltar imediatamente a casa e pedir a vossa donzela que vos ponha panos frios na cabeça.

Lady Geneva pulou ao solo com um pé bem calçado.—Meu cérebro funciona perfeitamente! —Fulminou com o olhar, levantando o queixo. Era

pequena e abusada, se arreganhando com aquela expressão decidida lhe dava aspecto de umameretriz sanguinária— Escuta-me: não posso impedir este horrível casamento mas estou… —Depois de uma breve vacilação, continuou com firmeza—: Que me leve o demônio se entregominha virgindade a um velho monstro depravado como Ellesmere!

Jamie passou a mão pela boca. Contra sua vontade, sentia compaixão pela moça.—Compreendo bem a honra que me fazes, milady —disse por fim com ironia— mas na

verdade não posso…—Sim que podes. —Ela posou abertamente os olhos em suas calças esfarrapadas— Betty

assegura que sim.—Betty não tem nenhuma base para tirar esse tipo de conclusões. Nunca a toquei!Geneva riu, super feliz.—Assim que não a levou a tua cama? Ela disse que não quiseste, mas supus que a negava só

por evitar uma surra. Alegro-me. Não poderia compartilhar um homem com minha governanta.Jamie respirava com força. Por desgraça, não podia estrangulá-la nem despedaçar-lhe a pá

na cabeça.—Desejo bons dias, milady —disse com toda a cortesia possível. E lhedeu as costas para

continuar arrojando as remadas de esterco.—Se não o fazes —disse ela com doçura— direi ao meu pai que me fizeste propostas

desonestas. Te fará açoitar até te tirar a pele.Encolheu involuntariamente os ombros. Não era possível que a moça o soubesse. Voltou-se

cautelosamente. Estava-o olhando com uma luz triunfal nos olhos.—É possível que vosso pai não me conheça bem —alegou—, mas ele te conhece desde que

nascestes. Diz e que o diabo a leve!A jovem se ergueu como um galo de briga, vermelha de cólera.—É isso que pensas? —exclamou— Pois bem, que o diabo te leve a ti!Do peitilho de seu traje tirou uma gorda carta que agitou sob o nariz de Jamie. Ao momento,

reconheceu a letra firme e negra de sua irmã.— Me dê isso! —Num segundo esteve no solo correndo atrás dela, mas a moça era muito

veloz. Montou antes de que ele pudesse atingí-la e voltou, com as rédeas numa mão e a cartana outra.

—Queres? —Agitava-a zombadoramente.—A quero, sim! Me dá! —Estava tão furioso que teria podido atuar com violência.—Não, não creio. —Olhava-o com faceirice enquanto a cólera desaparecia de sua expressão

— Depois de tudo, minha obrigação é entregar isto a meu pai, verdade? Ele deveria inteirar-sede que seus criados mantêm uma correspondência clandestina. Essa Jenny é o seu amor?

—Lestes minha carta? Cachorra!

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— Que linguagem! —exclamou ela, mexendo a carta com ar de deboche— Minhaobrigação é ajudar ao meus pais comunicando-lhes as coisas tão horríveis que fazem seusserventes, não acha? Creio que a papai lhe interessará muito ler isto. Sobretudo o do ouro que épreciso enviar a Lochiel, a França. Não se considera traidor a brindar consolo aos inimigos dorei? Quanta perversidade! —E estalou a língua com ar malicioso.

Jamie temeu descompor-se de terror ali mesmo. Sabia aquela moça quantas vidas pendiamde sua branca mão? Enguliu saliva uma, duas vezes, antes de poder falar.

—Está bem —disse.A cara da garota se iluminou com um sorriso mais natural, deixando ver a jovem que era.

Claro que a mordida das víboras jovens era tão venenosa como a das velhas.—Ninguém saberá —lhe assegurou ela com seriedade— Depois entregarei a carta e jamais

direi o que continha. Te prometo.—Obrigado. —Jamie tratou de ordenar seus pensamentos para traçar um plano sensato.

Sensato? Entrar na casa de seu amo para desonrar a sua filha…, a pedido seu? Nunca tinhavisto de uma perspectiva menos sensata.

—Está bem —repetiu— Devemos ser cuidadosos. —Com uma surda sensação de horror,descobriu-se arrastado ao papel de conspirador.

—Sim. Não te preocupes. Posso fazer que minha criada se ausente. E o lacaio bebe; dormesempre antes das dez.

—Bem, pensou em tudo —disse ele com um nódulo no estômago— Mas cuida de escolherum dia seguro.

—Um dia seguro? —a moça o olhou sem compreender.—durante a semana seguinte ao seu período —disse ele sem rodeios— Então será menos

provável que fiques grávida.—Oh… —Tinha-se ruborizado, mas o olhava com renovado interesse— Te mandarei uma

mensagem —disse por fim.Voltou na sela e partiu aos galopes através do semeado. Os pés de sua égua iam levantando

torrões de esterco recém espalhado.Deslizou-se sob a fileira de alerces, amaldiçoando-se para dentro. Não tinha lua, o qual era

uma bênção. Levantou os olhos para a casa, cuja bloco se erguia ante ele, escura e austero.Sim, ali estava a vela na janela, tal como ela tinha dito. Ainda assim contou as aberturas comcuidado, para verificá-lo. Que o céu o protegesse se errasse de quarto. E que o céu o protegessetambém se desse com o quarto correto, pensou lúgubremente enquanto procurava apoio notronco da enorme enredadera que cobria aquele lado da casa.

Chegou a pequena sacada ofegando, com o coração acelerado e coberto de suor, devido aofrio da noite. Ela tinha ouvido com clareza sua subida pela hera. Abandonando a cadeira naqual estava sentada, se aproximou com o queixo erguido e a cabeleira castanha solta sobre osombros. Vestia uma camisola branca, de tela muito fina, atado no pescoço com um laço deseda.

—Você veio.Ele percebeu seu tom triunfal, mas também um leve estremecimento.Siginifica que não

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estava muito segura?—Não tinha muitas alternativas —respondeu brevemente enquanto se voltava para fechar a

janela.—Quer um pouco de vinho? —Esforçando-se por mostrar-se gentil, a moça se aproximou à

mesa, onde tinha uma garrafa com duas taças. Ele se perguntou como teria conseguido. Dequalquer modo, nessas circunstâncias não lhe seria mal tomar uma taça.

Enquanto tragava o vinho a observou dissimuladamente. Era delgada e de peitos pequenos,mas era uma mulher, sem dúvida. Terminada a bebida, deixou a taça. Não fazia sentido perdertempo.

—A carta? —perguntou bruscamente.—Depois —disse ela, endurecendo a boca.—Agora. Se não, vou. —Jamie girou para a janela como se fora cumprir sua ameaça.—Espera!Se voltou a olhá-la com impaciência.—Não confias em mim? —perguntou ela com fingido encanto.—Não —foi a seca resposta.A moça o olhou zangada, projetando um lábio petulante, mas ele se limitou a observá-la

acima do ombro, sem afastar-se da janela.—Oh, bom —disse ela por fim encolhendo-se de ombros. E tirou a carta de seu costureiro.Ele a recolheu de imediato. Sentiu uma onda de fúria misturada com alívio ao ver o selo

violado e a letra familiar de Jenny, delicada e enérgica.—Então? —a voz de Geneva, impaciente, interrompeu sua leitura— Deixa isso e vêem aqui,

Jamie. Estou esperando —anunciou sentando-se na cama.Ele lhe fincou uma olhada fria.—Não me chames por esse nome —disse.—Por que? É o teu. Assim te chama tua irmã.Jamie vacilou um momento; depois deixou deliberadamente a carta e baixou a cabeça para a

atadura de suas calças.—Vos servirei devidamente —disse—, por minha honra de homem e pelo seu de mulher.

Mas… —Levantou a cabeça para fitar os olhos entornados— Já que me trouxestes a sua camamediante ameaças contra minha família, não permitirei que me chames com o nome que elesme dão.

Permanecia imóvel, com os olhos fixos nela. Por fim a moça baixou os olhos à cama.—Como devo chamar-te, então? —perguntou ao fim com voz débil— Não posso chamar-lo

de MacKenzie!Ele suspirou.—Me Chame Alex. É meu segundo nome.Ela assentiu com a cabeça. O cabelo lhe caiu para frente, cobrindo-lhe a cara, mas Jamie

detectou o breve fulgor de seus olhos espionando por trás do cabelo.

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—Está bem —grunhiu— Podes observar-me.Baixou as calças, tirando ao mesmo tempo as meias, e deixou dobrados sobre uma cadeira

antes de começar a desabotuar a camisa, consciente de que a garota o olhava com certatimidez, mas sem se cubrir. Por pura consideração se voltou para ela antes de tirar a camisa, afim de poupar-lhe o espetáculo de suas costas.

—Oh! —A exclamação foi suave mas bastou para detê-lo.—O que aconteceu?—Oh, não… Isto é… Não imaginava que…—Nunca viu um homem nu? —adivinhou ele. A cabeleira lustrosa se agitou

afirmativamente.—Sim —sussurou Geneva insegura—, só que… isso não estava…—Bom, geralmente não está assim —explicou ele calmamente sentando-se na cama— Mas

para fazer amor tem que estar assim, compreende?—Compreendo.Mas ainda parecia duvidar. Ele tratou de sorrir.—Não vou te preocupar. Não crescerá mais. E também não fará nada estranho se quiser

tocá-lo.Ao menos isso esperava ele. O fato de estar nu e tão próximo de uma moça quase nua estava

acabando com seu autodomínio. A sua traidora anatomia faminta lhe interessava não dando amínima que ela fora uma meretriz egoísta. Por sorte, talvez, ela recusou o oferecimento e seretirou um pouco para a parede, ainda que sem deixar de observá-lo.

—Quando…? Isto é, tens alguma idéia como se faz?Ela ruborizou, ainda que seus olhos se mantinham claros e sem malícia.—Bom, como os cavalos, suponho.Ele fez um gesto afirmativo, mas sentiu uma apunhalada de dor ao recordar que, em sua

noite de casamento, ele também tinha suposto que seria como os cavalos.—Algo assim —confirmou pigarrreando— Mas mais lento. E mais suave —disse ao ver seu

gesto apreensivo.—Ah, alegro-me. A ama e as criadas costumavam contar coisas de… os homens, casar-se e

tudo isso. Dava um pouco de medo. —Enguliu saliva com dificuldade— Do… dói muito? Nãoimporta, mas quero saber antes.

Jamie sentiu uma pequena e inesperada simpatia. O valor, para ele, era uma virtude.—Creio que não —disse—, se tomo o tempo necessário para prepara-la. —Se é que podia

tmoar esse tempo— Assim não será muito pior do que um beliscão.Apressou entre os dedos uma dobra do braço. Ela deu levou um susto e esfregou o lugar,

mas sorria.—Isso posso suportar.—Só dói a primeira vez —ele lhe assegurou— A próxima será melhor.Ela assentiu. Depois de uma momentânea vacilação, se aproximou alongando um dedo.

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—Posso tocar-te?Jamie ameaçou a rir, se apressou a sufocar a voz.—Creio que deves fazê-lo, milady, para que eu possa fazer o que me pedes.Geneva lhe deslizou a mão pelo braço, lentamente e com tanta suavidade que lhe fez

cócegas; já mais confiada, rodeou-lhe o antebraço com os dedos.—És muito… grande.Jamie sorriu, mas se manteve imóvel, permitindo-lhe explorar seu corpo tanto como

desejasse. Os dedos se detiveram junto à cicatriz que lhe sulcava a coxa esquerda.—Tudo bem —lhe assegurou — Já não me dói.A jovem, sem responder, deslizou dois dedos ao longo da cicatriz sem exercer pressão. As

mãos investigadoras se detiveram nas costas. Jamie, com os olhos fechados, esperava. Teve umsuspiro trémulo e os dedos voltaram a tocar com suavidade suas costas destroçadas.

—E não tives medo quando disse que te faria açoitar?A voz soava estranhamente rouca.—Não. Já não me assusta quase nada.Em realidade, assustava-o pensar que, quando chegasse o momento, não poderia conter-se

para tratá-la com a devida delicadeza.—Posso te tocar, milady? —As palavras soavam zombadoras, mas o contato não. Ela

assentiu, sem alento, e se deixou abraçar.Beijou-a suave, brevemente; depois, durante mais tempo. Sentiu-a tremer contra seu corpo

enquanto lhe desatava o laço da camisola para deslizá-lo desde os ombros. Depois a levantoupara pô-la na cama e se jogou ao seu lado, rodeando-a com um braço enquanto lhe acariciavaos peitos.

—O homem deveria pagar tributo ao vosso corpo —disse suavemente, excitando osmamilos com pequenos movimentos circulares— Porque é bela e esse é seu direito.

Geneva deixou escapar o alento num pequeno ofego e se relaxou sob suas mãos. Ele seobrigou a atuar com lentidão, acariciando, beijando-a, mal tocando-a. Não lhe agradava aquelamoça, não queria estar ali, não queria fazer isso, mas… fazia mais de três anos que não tocavaem uma mulher.

Tratou de calcular quando estaria disposta, mas como podia sabê-lo, se ela se limitava aficar como uma peça de porcelana em exibição? Não podia dar-lhe algum sinal, a maldita?

Não, por suposto que não podia. Nunca até então tinha tocado em um homem. Depois de tê-lo obrigado, deixava todo o assunto em suas mãos com uma abusiva e indesejada confiança.

—Bom —lhe murmurou— estas quieta, mo chridhe.Entre susurros que pudessem soar-lhe reconfortantes, cobriu-a com seu corpo e usou o

joelho para abrir-lhe as pernas. Sentiu um leve sobressalto ante o contato do pénis. Para serená-la envolveu as mãos em sua cabeleira, sempre murmurando suavemente em gaélico. Já nãoprestava nenhuma atenção ao que dizia. Os peitos pequenos e duros se lhe fincaram no torso.

—Mo nighean —sussurrou.—Espera—disse Geneva— Creio que…

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O esforço para domina-la deixou aturdido, mas se moveu com lentidão, penetrando-a umpouquinho.

—Ooh! —exclamou ela abrindo muito os olhos.—Ufa. —Jamie pressionou um pouco mais.—Basta!É muito grande! Tire-o!Apavorada, Geneva se debateu sob ele. Se debatendo conseguindo pela força o que ele tinha

tratado de fazer com suavidade. Meio aturdido, fez o possível para mantê-la quieta enquantoprocurava às cegas uma maneira de acalmá-la.

—Mas…—Basta!—Eu…—Tire! —gritou ela.Tampou-lhe uma mão na boca e disse o único coerente que lhe ocorreu:—Não. —E empurrou.O que poderia ter sido um alarido emergiu entre seus dedos como um estrangulado

«¡Ayayay!». Os olhos de Geneva se tornaram enormes e redondos, mas estavam secos.Naquele momento ele só era capaz de fazer uma coisa. E a fez; só fizeram falta uns poucosembates para que a onda se abatesse sobre ele, agitando-lhe a coluna de acima abaixo paraacabar varrendo os últimos restos de racionalidade.

Jamie recuperou a consciência pouco depois, com o som de seu próprio coração nosouvidos. Entreaberto numa só pálpebra, vislumbrou a pele rosada à luz do lustre. Deviaaveriguar se a tinha feito sofrer muito, mas ainda não, por Deus. Fechou o olho outra vez e selimitou a respirar.

Muito nervoso para consertar o absurdo da pergunta, Jamie respondeu com a verdade.—Perguntava-me por que demônios os homens querem deitar-se com mulheres virgens.Teve um longo silêncio.—Eu sinto muito — sussurou ela— Não sabia que a ti também doeria.Ele abriu subitamente os olhos, atônito, e se incorporou sobre um cotovelo. Geneva o estava

olhando como uma gazela assustada.—A mim? —repetiu estupefato— A mim não me doeu.Com o cenho franzido, ela lhe percorreu o corpo com uma olhada.—Pareceu que sim. Fez uma cara horrível, como se sofresse muitíssimo, e… gemeu como

um…—Bom, sim —a interrompeu apressadamente para não escutar mais observações pouco

encantadoras sobre sua conduta— Mas isso não significa… Isto é… Assim fazem os homensquando… quando fazemos isso —concluiu sem muita convicção.

O espanto da moça se estava dissolvendo em curiosidade.—Todos os homens fazem assim quando… quando fazem isso?—Como posso saber se…? —começou ele, irritado. Mas se interrompeu ao compreender

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que, na verdade, conhecia a resposta— Sim, assim é —disse, sentando-se sobre a cama— Oshomens são bestas horríveis e asquerosas, tal como vos dizia sua ama. Te machuquei muito?

—Não creio —duvidou ela— Doeu um momento, tal como voce disse, mas já passou.Lançou um suspiro de alívio ao ver que, o quanto a moça tinha sangrado, a mancha era

pequena e não parecia dolorida. Ela se tocou entre as coxas e fez uma careta de asco.—Ooh! —protestou— Isto é desagradavel e pegajoso!A Jamie lhe subiu o sangue à cara, numa mistura de indignação e rubor.—Toma —murmurou pegando um pano.A garota, em vez de pegá-lo, abriu as pernas, arqueando um pouco as costas. Obviamente

esperava que ele se ocupasse de limpá-la. O escocês sentiu o forte impulso de fazer-la engulirmas se conteve ao dar uma olhada à carta. Tinham um acordo, depois de tudo, e ela tinhacumprido sua parte.

Estava irritado quando começou a lavá-la, mas a confiança com que ela se lhe oferecia lheresultou estranhamente comovedora.

Levou a cabo o serviço com bastante suavidade e, ao terminar, descobriu-se dando-lhe umbeijo leve na curva do ventre.

—Pronto.—Obrigada. —A moça moveu os quadris, e alongou uma mão para tocá-lo. Ele, sem mover-

se, deixou-a brincar com seu umbigo. O leve toque desceu, vacilante— Disse… que a próximavez seria melhor.

Jamie fechou os olhos, respirando profundamente. Faltava muito para o amanhecer.—Creio que sim —disse. E uma vez mais se esticou ao seu lado.—Ja… eh… Alex?Se sentia como se o tivessem drogado. Responder foi um esforço.—Milady?Ela lhe rodeou o pescoço com os braços e refugiou a cabeça na curva de seu ombro, cálido o

alento contra seu peito.—Eu te quero, Alex.Jamie se espevitou o suficiente para afastá-la.—Não —disse mexendo a cabeça— Essa é a terceira regra. Não terá mais do que esta noite.

Não podes chamar-me por meu primeiro nome. E não podes me amar.Os olhos cinzas se umedeceram um pouco.—E se não posso evitá-lo?—Não é amor o que sentes. —Oxalá estivesse certo, tanto por seu próprio bem como pelo

dela— É só a sensação que despertat em seu corpo. É forte e agradável, mas não é amor.—Qual é a diferença?—O amor é para uma só pessoa. Isto, o que sentes por mim… podes sentí-lo com qualquer

homem; não é especial.

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Uma só pessoa. Afastando com firmeza a recordação de Claire, voltou cansadamente ao seutrabalho.

Aterrizou pesadamente na terra do canteiro, sem que lhe importasse achatar várias plantasternas. Estremeceu. A hora prévia do amanhecer não era só a mais escura, senão também amais fria. Ainda sentia as formas da moça e a curva morna e rosada da bochecha que tinhabeijado antes de partir.

CAPÍTULO 15POR ACIDENTEHelwaterJaneiro de 1758Quando a notícia chegou a Helwater o tempo era escuro e tormentoso. Tinha-se cancelado o

treino da tarde por causa do denso aguaceiro, e os cavalos estavam comodamente abrigados emsuas quadras. Jamie Fraser descansava num cômodo ninho de feno com um livro abertoapoiado no peito.

Era um dos varios que tinha emprestado o senhor Grieves, capataz da propriedade, e lhe eraapaixonante apesar à dificuldade de ler à escassa luz das janelinhas abertas sob o beiral.

Tão absorto estava na leitura que, ao princípio, não ouviu as vozes afogadas pelo densogolpeear da chuva a pouca distância de sua cabeça.

—MacKenzie!O uivo repetido penetrou finalmente em sua consciência. Levantou-se precipitadamente para

dar uma olhada no palheiro.—Sim?Hughes estava abrindo a boca para dar outro grito, mas a fechou.—Ah, estavas aí. —Fez-lhe sinal com uma mão reumática. Quanto os pés de Jamie tocaram

as lascas do solo, anunciou—: Deves ajudar a preparar o carro para lorde Dunsany e ladyIsabel. Vão ir a Ellesmere.

O ancião se balançava de um modo alarmante, tratando de sufocar o soluço.—Agora? Estás louco, homem, ou só bêbado? —Jamie deu uma olhada à porta, onde se via

uma sólida cortina de água. Um súbito raio se pôs no relevo da montanha. Sacudiu a cabeçapara aclarar a retina. Jeffries, o cocheiro, estava cruzando o pátio com a cabeça inclinada pelaforça do vento e da água, coberto com a capa. Assim não era uma desvaneio de bêbado.

—Jeffries precisa ajuda com os cavalos! —Hughes teve que se aproximar e gritar parafazer-se ouvir acima da tormenta. A tão curta distância, o cheiro do álcool barato erarepugnante.

—Sim, mas por que? Que motivos há para o lorde Dunsany…? Oh, que diabos… —desagradado Jamie subiu a escadinha de duas em duas. Envolveu-se em sua capa surrada e

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escondeu o livro sob o feno (os rapazes do pátio não sabiam respeitar a propriedade alheia).Por fim saiu no rugir da tormenta.

A viagem foi infernal. O vento uivava, sacudindo o enorme carro e ameaçando comderrubá-lo em qualquer momento. O capote era pouca proteção contra aquela chuva torrencial;também não servia de nada quando era preciso descer para liberar uma roda do barro.

Apesar de tudo, Jamie mal reparava no incomodo físico da viagem, preocupado como estavapor suas possíveis razões. Não tinha muitos assuntos tão urgentes como para obrigar ao anciãolorde Dunsany a sair num dia assim, muito menos pelo caminho cheio de abaixamentos quelevava a Ellesmere. Sem dúvida tinha recebido alguma notícia, que só podia referir-se a ladyGeneva ou à criança.

Soube, pelas fofocas dos criados, que lady Geneva daria a luz em janeiro, Jamie tinha feitoum rápido cálculo. Depois de amaldiçoar à moça uma vez mais, rezou por um parto semperigo. Desde então fazia o possível para não pensar no assunto. Tinha estado com ela nem maltrês dias antes do casamento; não podia estar seguro.

Lady Dunsany estava em Ellesmere com sua filha fazia uma semana. Todos os dias enviavaalgum mensageiro para que lhe levassem as milhares de coisas que tinha esquecido e precisavade imediato. Cada um deles informava, a sua chegada: «Ainda não há novidades.»

Agora tinha novidades e, obviamente, eram más.Ao passar junto ao carro, depois do último rebate com o lodo, viu a lady Isabel aparecendo à

janela.—Oh, MacKenzie! —disse com a cara contraída pelo medo e a aflição— Falta muito, por

favor?—Jeffrey diz que ainda faltam seis quilômetros, milady! Duas horas, talvez. —Sempre que

aquele maldito carro não rebatesse, lançando seus indefesos passageiros às águas deWatendlath Tarn, disse silenciosamente para si mesmo.

Isabel lhe agradeceu com uma inclinação de cabeça e baixou a janela, mas ele teve tempo dever que suas bochechas estavam tão úmidas pela chuva como pelas lágrimas.

Passaram cerca de três horas antes de que a carruagem entrasse, por fim, ao pátio deEllesmere. Lorde Dunsany desceu de um salto, sem vacilar, e mal se deteve para oferecer obraço a sua filha menor antes de entrar apressadamente.

Demoraram quase uma hora mais para livrar-se da junta, escovar os cavalos, lavar o barroaderido às rodas do carro e metê-lo tudo nos estábulos de Ellesmere. Dormentes de frio, fadigae fome, Jamie e Jeffries procuraram refúgio e sustento nas cozinhas da casa.

—Pobres homens, estão azuis de frio —observou a cozinheira— Sentam aqui, que logo tereipronto um prato quente.

Sua figura magra não fazia honra a sua destreza, pois em poucos minutos pôs ante eles umaenorme e saborosa omelete, guarnecida com grande quantidade de pão, banha e um pequenofrasco de geléia.

—Gostoso, muito gostoso —opinou Jeffries, dando uma olhada apreciando. Depois piscouum olho à cozinheira—: Claro que desceria com mais facilidade se tivesse uma taça parasuavizar o caminho, certo? Voce parece capaz de ser misericordiosa com um par de amostrascongelados, não é assim, querida?

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Fora por este exemplo de persuasão irlandesa ou pelo aspecto de suas roupas esfarrapadas, oargumento sortiu efeito: uma garrafa de conhaque para cozinhar fez sua aparição junto aopimenteiro. Jeffries se serviu em um bom trago e o bebeu sem vacilar, lambendo os lábios.

— Ah, assim está melhor! Toma, homem. —Depois de passar a garrafa a Jamie, instalou-secomodamente para desfrutar a comida e do mexerico com as criadas— Bom, que novidadeshá? Já nasceu o bebê?

— Oh, sim, ontem à noite! —disse ansiosa— Passamos toda a noite acordados, com omédico pedindo lençóis e toalhas, e a casa de pernas para o ar.Mas o bebê é o de menos!

—Bom, bom —interveio a cozinheira franzindo o cenho— Há muito a fazer para estarfofocando, Mary Ann. Vá ao escritório e averigua se Seu Senhor quer que sirvamos algo.

Uma vez tendo a atenção completa de seu público, a cozinheira se recobrou antes de revelaras notícias.

—Tudo começou faz alguns meses, quando lady Geneva começou a engordar, pobrezinha.Seu Senhor era meloso e amável com ela; desde o casamento lhe dava todos os gostos. Masquando se soube de que ia ter um filho…!

A cozinheira fez uma pausa para fazer um gesto portentoso. Jamie estava desesperado porperguntar como estava a criança e de que sexo era, mas não tinha modo de meter pressa àquelamulher, de maneira que fingiu estar interessado.

—Aos gritos e brigas! —continuou, alçando as mãos com horror— Ele gritava, ela choravae os dois golpeavam as portas. Seu Senhor lhe dizia palavras que não se usam nem numestábulo. Por isso eu disse a Mary Ann…

—Mas, Seu Senhor não se alegrou pelo filho? —interrompeu Jamie. A omelete lhe estavaengasgando. Bebeu outro pouco de conhaque com a esperança de fazê-la baixar.

A cozinheira voltou para ele com um olho de pássaro, levantando uma sobrancelha.—Qualquer um se alegraria, certo? Pois não! Muito ao invés!—Por que? —inquiriu Jeffries, não muito interessado.A cozinheira baixou a voz, abrumada pelo escandaloso de sua informação.—Disse que a criança não era sua.Jeffries, que já ia pela segunda taça, ofegou com desdém:—Um velho com uma potrilho? Parece-me muito provável, mas como Sua Senhoria soube

de quem era o feto? Tanto podia ser dele como de qualquer um, não?A cozinheira fez um sorriso brilhante e malicioso.—Oh, não sei se ele sabia de quem era, mas… há só uma maneira de saber que não era seu,

verdade?Jeffries a olhou fixamente, jogando-se para trás.—Que? —exclamou— Estás me dizendo que Seu Senhor é impotente?—Bom, a mim não me consta, claro. —Os lábios da mulher assumiram uma linha puritana,

mas de imediato se esticaram para adicionar—: Ainda que a criada diz que os lençóis que tiroudo leito nupcial estavam tão brancas como quando as pôs.

Aquilo era demais. Interrompendo as gargalhadas de Jeffries, Jamie deixou sua taça com um

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golpe seco.A criança nasceu bem? —perguntou sem rodeios.—Oh, sim. É um menino são e formoso, segundo dizem. Pensei que já sabias. É a mãe a que

morreu.Tão brusca revelação deixou a cozinha em silêncio. Até Jeffries ficou mudo por um

momento, intimidado pela morte. Depois se se benzeu de pressa, murmurando:—Que Deus a tenha em Sua Glória. —E enguliu o resto do conhaque.A Jamie lhe ardia a garganta, tanto pelo álcool ou pelas lágrimas. A surpresa e a dor o

sufocavam com uma bola de estopa na garganta.—Quando? —perguntou.—Esta manhã —disse a cozinheira mexendo positivamente a cabeça— Antes do meio dia,

pobrezinha. Durante um momento pareceu estar muito bem, depois de nascer o bebê. Diz MaryAnn que estava sentada com o pequeno em braços e que ria. —Suspirou longamente— Pertodo amanhecer começou a sangrar. Chamaram de novo ao médico, mas…

Interroupeu-a o ruído da porta ao abrir-se. Era Mary Ann com os olhos dilatados, ofegantepelos nervos e as pressas.

—Vosso amo vos chama! —balbuciou olhando a Jamie e ao cocheiro—. Aos dois, deimediato! E… oh, senhor… —Enguliu saliva, dirigindo-se a Jeffries—: Diz que leve suaspistolas, pelo amor de Deus.

O cocheiro trocou com Jamie uma olhada de consternação. Depois se levantou de um pulo esaiu disparado para os estábulos.

Demoraria uns poucos minutos em procurar as armas e comprovar que o mau tempo nãohavia estado. Jamie se pôs de pé, pegando por um braço à balbuceante criada.

—Indicame onde está o escritório —ordenou— Rápido!Uma vez no andar superior poderia ter-se guiado pelas vozes. Deteve-se frente à porta,

duvidando entre entrar ou esperar a Jeffries.—Como tens o descaro de fazer semelhantes acusações! —estava dizendo Dunsany,

estremecida a voz de velho pela ira e a aflição— Quando minha pobre menina ainda não seesfriou no leito! Covarde! Canalha! Não vou permitir que essa criança passe uma só noite sobvosso teto!

—Esse pequeno bastardo fica aqui! —clamou a voz rouca de Ellesmere. Qualquer teriapodido ver que Seu Senhor estava muito afetado pela bebida— Por bastardo que seja, é meuherdeiro e fica comigo. Comprei-o e pago. E se sua mãe era uma rameira, ao menos me deu umvarão.

—Maldito seja! —a voz de Dunsany tinha atingido um tom tão agudo que era quase umgrito— Que o comprastes? Vos… vos… atreves a sugerir…?

—Não sugiro nada. —Ellesmere seguia rouco mas se dominava melhor— Vendestes a vossafilha… Paguei trinta mil libras por uma virgem de boa família. A primeira condição não foisatisfeita e me permito duvidar da segunda.

Ouviu-se um gorgoteio.

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—Parece-me que seu nível de licor está excessivo, senhor —observou Dunsany. Sua voztremia pelo esforço de dominar as emoções— Só a vossa evidente intoxicação posso atribuir asrepugnantes calúnias que arrojaste sobre a pureza de minha filha. Sendo assim, me irei commeu neto.

—Ah, vosso neto, eh? —balbuciou Ellesmere— Parece muito seguro da «pureza» de vossafilha. Estas seguro de que o menino não é vosso? Porque ela disse…

Interrompeu-se com um grito estupefato, seguido de um estrondo. Jamie não se atreveu aesperar mais. Ao irromper na habitação encontrou Ellesmere e a lorde Dunsany enredados notapete, rodando de um lado a outro.

Depois de avaliar a situação, meteu-se na briga para ajudar o seu padrão.—Fique quieto, milord —murmurou ao ouvido de Dunsany, afastando-o da silhueta

ofegante de Ellesmere—. Quieto, velho tonto! —disse, vendo que Dunsany forçava paralançar-se contra seu adversário.

O conde tinha quase a mesma idade que Dunsany, mas era mais forte e, obviamente, gozavade melhor saúde, apesar de sua embriaguez. Pôs-se em pé cambaleando, com o escasso cabelorevolto e os olhos injetados em sangue.

—Lixo —disse quase em tom coloquial— Como me… levantas a mão.E se lançou para a campainha, ainda ofegando.Não estava muito claro que lorde Dunsany pudesse manter-se em pé, mas não tinha tempo

para preocupar-se por isso. Jamie soltou o seu chefe para segurar a mão de Ellesmere.—Não, milord —disse com todo o respeito possível. Segurou num abraço de urso,

obrigando-o a retroceder— Creio que seria… muito imprudente… envolver o vossos servos.Com um rosnado, empurrou ao conde para um cadeirão.—Será melhor que não movas daqui, milord. —Jeffries, com uma pistola em cada mão

avançou cautelosamente, dividindo sua atenção entre Ellesmere, que se esforçava paralevantar-se da poltrona, e lorde Dunsany, apoiado numa mesa, branco como o papel.

Olhou ao seu chefe para pedir instruções e, como não lhe deram nenhuma, voltou-seinstintivamente para Jamie. O escocês deu um passo adiante e pegou a Dunsany pelo braço.

—Vamos, milord —disse.Se aproximou ao ancião e tratou de ajudar-lhe a chegar à porta. Mas a saída estava

bloqueada.—William? —Lady Dunsany, com a expressão inchada pela dor que sentia, ficou

desconcertada ante a cena. Em seus braços trazia algo parecido a um vulto de roupa lavada.Levantou-o com um gesto de vazia interrogação— Mandaste à criada me dizer que trouxesseao bebê. Que…?

Interroupeu-a um rugido de Ellesmere:—É meu! —Empurrando à senhora contra a parede, arrebatou-lhe o vulto nos braços e,

apertando-o contra seu peito, recuou até a janela. Ofegava como um animal incurralado—Meu, me ouviu?

O vulto soltou um grito de protesto. Dunsany, arrancado de seu estupor, avançou com asfeições contraídas pela fúria.

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— Entrega-me!—Vá para o inferno, imbecil!Com imprevisível agilidade, Ellesmere esquivou a Dunsany e abriu a janela com uma só

mão, enquanto sujeitava ao menino com a outra.—Saí… de… minha… casa! —ofegou o conde— Saiam agora mesmo se não quer que eu

atire este pequeno bastardo! Juro que atirarei! —Para confirmar sua ameaça, aproximou o vultoà janela. Mais nove metros abaixo esperavam o pavimento do pátio.

Jamie Fraser, movido pelo instinto que lhe tinha feito sobreviver a dez ou doze batalhas,pegou uma pistola do petrificado Jeffries, girou sobre seus calcanhares e disparou.

O rugido do disparo deixou mudo a todos; inclusive o menino deixou de uivar. Ellesmereficou inexpressivo, com as sobrancelhas arregaladas num gesto interrogante. Depoiscambaleou. Jamie deu um pulo e ficou parado no meio do tapete, sem prestar atenção ao fogoque lhe chamuscava as calças, nem ao corpo de Ellesmere estendido ao seus pés, nem aoshistéricos gritos de lady Dunsany. Tremia como uma folha, sem poder mover-se nem pensar,estreitando entre os braços o vulto que tinha seu filho.

—Quero falar com Mackenzie. A sós.Lady Dunsany parecia estar fora de lugar no estábulo. Miúda, rechonchuda e de um luto

impecável, parecia um enfeite. Hughes lhe deu uma olhada de assombro. Depois lhe fez umareverência e se retirou a sua guarita, deixando-a frente a frente com o escocês.

Jamie se sentiu na obrigação de convidá-la a sentar-se, mas ali não tinha assento algumexceto um fardo de feno.

—Esta manhã reuniu-se o tribunal, MacKenzie —disse ela.—Sim, milady. —Todos sabiam. Jeffries tinha presenciado o ocorrido no salão de

Ellesmere; portanto, a servidão inteira estava inteirada. Mas ninguém falava do assunto.—O veredito do tribunal foi que o conde de Ellesmere morreu por acidente. Segundo o juiz,

Sua Senhoria estava… alterado pelo falecimento de minha filha. —Fez um leve som dedesgosto. Sua voz tremia, mas sem quebrar-se; a frágil lady Dunsany suportava a tragédiamuito melhor do que seu marido.

—Sim, milady?Jeffries tinha sido chamado a prestar depoimento. MacKenzie não, como se nunca tivesse

pisado a casa de Ellesmere.Lady Dunsany o olhou nos olhos.—Estamos agradecidos, MacKenzie —disse baixinho.—Obrigado, senhora.—Muito agradecidos —repetiu sem deixar de olhá-lo com intensidade— Vosso verdadeiro

nome não é MacKenzie, verdade? —disse de repente.—Não, milady. —Percorreu-lhe um arrepio apesar do sol. Que teria revelado lady Geneva a

sua mãe antes de morrer?Ela pareceu perceber sua rigidez, pois curvou a boca em algo que parecia ser um sorriso

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tranqüilizador.—Creio que, pelo momento, não preciso perguntar qual é —disse—. Mas há uma pergunta

que desejo fazer. Queres voltar a casa?—A casa? —repetiu.—A Escócia. —Observava-o com atenção— Sei quem és ainda que ignore vosso nome. És

um dos prisioneiros jacobitas de John. Meu esposo me disse.Jamie a observou com desconfiança, mas para ser uma mulher que acabava de perder uma

filha e ganhar um neto, não parecia alterada.—Confio que perdoes o engano, milady —murmurou— Seu Senhor…—Queria poupar-me uma preocupação —concluiu a senhora— Sim, sei. William se

preocupa demais. —Suspirou com devoção conjugal— Pelos comentários de Ellesmere vocepercebeu de que não somos ricos. Helwater está muito endividada. No entanto, meu neto éagora possuidor de uma das maiores fortunas do condado.

Para isso não parecia ter resposta alguma, exceto: «Sim, milady?»—Aqui levamos uma vida muito recuada —prosseguiu— Rara vez vamos a Londres e meu

esposo tem pouca influência nas altas esferas. Mas…—Sim, milady?—John, John Grey prove de uma família muito influente. Seu padrasto é… bom, isso não

tem importância. —Encolheu-se de ombros— O fato é que seria possível falar em vosso favorpara que o deixe em liberdade e possa voltar A Escócia. Por isso vim perguntar: quer voltar AEscócia, MacKenzie?

Jamie ficou sem ar, como se tivessem golpeado no estômago.Voltar A Escócia. Deixar de ser um estrangeiro. Deixar atrás a hostilidade, voltar A

Lallybroch, ver o rosto de sua irmã iluminado de prazer ao vê-lo. Sentir seus braços rodeando-lhe a cintura, os de Ian nos ombros e os meninos ao redor.

Ir para longe e não saber nada mais de seu filho.O dia anterior tinha visto ao menino dormindo num cesto junto a uma janela do andar

superior. Subiu ao ramo de uma grande árvore, Jamie tinha forçado os olhos para poderdistinguí-lo. A cara do menino era visível só de perfil; tinha uma bochecha apoiada no ombro.O gorro estava torto deixando ver a curva da cabeça, coroada por uma pele muito clara.

«Não é ruivo, graças a Deus», foi seu primeiro pensamento. E se benzeu. «É um meninoforte. Forte, robusto e bonito. Mas era pequeno, Deus meu!»

Lady Dunsany esperava com paciência. Ele inclinou respeitosamente a cabeça. Talvez iacometer um terrível engano mas não podia atuar de outro modo.

—Eu agradeço, milady, mas…, creio que não me irei… por agora.Lady Dunsany assentiu sem se alterar.—Como preferir, MacKenzie. Não tens mais que pedir.Girou de volta, como um carrilhão, e o deixou para voltar a seu mundo.Helwater era agora sua prisão, mil vezes mais do que antes.

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CAPÍTULO 16

Willie

Para sua grande surpresa, os anos seguintes foram, em muitos aspectos, os mais felizes navida de Jamie Fraser, excetuando o seu matrimônio. Tinha comida e roupa suficiente com quese manter quente e decente; alguma discreta carta ocasional, enviada das Terras Altas deEscócia, tranqüilizava-o comunicando-lhe que ali viviam em condições similares.

Um inesperado benefício da sossegada vida de Helwater era que, de algum modo, tinharetomado sua estranha amizade com lorde John Grey. Tal como tinha prometido, o comandantese apresentava cada três meses a visitar aos Dunsany mas não tinha feito tentativa alguma deaproveitar-se a seu favor, nem sequer de falar com Jamie, além de um superficial interrogatórioformal.

Muito lentamente, Jamie foi compreendendo tudo o que lady Dunsany lhe tinha dado aentender com seu oferecimento de liberdade. «John, John Grey, prova de uma família muitoinfluente. Seu padrasto é… bom, isso não tem importância», tinha dito. Mas tinha importância,sim. Não era por desejo de Sua Majestade que o tinham levado àquela casa em vez de condená-lo à perigosa viagem através do oceano e à vida de escravo na América, senão por influênciade John Grey. E ele não tinha decidido por vingança nem por motivos indecentes, na verdadeporque era o melhor que ele podia fazer; na impossibilidade de liberá-lo, fez o que estava aoseu alcance para aliviar as condições de seu cativeiro, brindando-lhe ar, luz e cavalos.

Lhe custou algum esforço, mas o fez. Quando Grey apareceu novamente no pátio doestábulo para sua visita trimestral, Jamie esperou até encontrá-lo a sós. Grey estava apoiado nacerca, admirando um grande alazão castrado. Ambos o observaram em silêncio durante ummomento.

—Peão do rei a rei quatro —disse Jamie baixinho, sem olhá-lo.Notou o sobressalto de Grey e sentiu seus olhos fitados nele, mas não voltou a cabeça.

Depois ouviu o rangido da madeira sob seu braço.—Cavalo da rainha a Bispo da rainha três —respondeu o comandante com voz pouco mais

rouca do que de costume.Desde então, em cada visita ia aos estábulos para passar a noite conversando com Jamie em

seu tosco banco. Não tinham tabuleiro de xadrez e rara vez jogavam verbalmente, mas asconversas noturnas continuavam; eram o único vínculo de Jamie com o mundo exterior aHelwater e um pequeno prazer que ambos esperavam com ansiedade.

Além mais, tinha a Willie. Helwater estava dedicado aos cavalos; antes de que o meninopudesse manter-se em pé com firmeza, o avô o sentou em um ponei para passeá-lo ao redor dopasto. AOS três anos já montava sozinho… sob a vigilante olhada de MacKenzie, o homem doestábulo.

Willie era um menino forte, valente e formoso. Tinha um sorriso resplandecente e encantode sobra. Também estava muito malcriado. Como o conde de Ellesmere é o único herdeirodesse condado e de Helwater, sem pais que o mantivessem a risca, fazia sua vontade com osavôs, a jovem tia e todos os serventes da casa… exceto a MacKenzie. E isso, ainda quandoandava de gatas. Pelo momento, a Jamie lhe bastava com a ameaça de não lhe permitir ajuda

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no estábulo para sufocar seus caprichos mas não seria suficiente. MacKenzie, o cavalariço,perguntava-se quando iria perder a calma e dar-lhe um cascudo, àquele pequeno diabinho.

Ainda assim, Willie era sua alegria. O garoto o adorava e passava horas inteiras em suacompanhia, montado nos enormes cavalos que atiravam do rolo ou nas carretas de feno. Noentanto, tinha algo que ameaçava aquela aprazível existência e crescia mês a mês.Ironicamente, o perigo provia do mesmo Willie e não tinha remédio.

—Que formoso menino! E monta bem! —era lady Grozier quem falava, junto a ladyDunsany, enquanto admirava as peregrinações de Willie pelo pasto a trotes em seu ponei.

A avó riu, observando o pequeno com afeto.—Oh, sim, adora o seu ponei. Custa-nos horrores conseguir que ele entre a comer. E está

ainda mais apegado com seu cavalariço.As vezes comentamos que, a poder de passar tanto tempo com MacKenzie, até começa a

parecer-se com ele.Lady Grozier, que não tinha prestado nenhuma atenção ao cavalariço deu uma olhada a

Mackenzie.—Caramba, tens razão! —exclamou muito divertida— Olha: os dois inclinando a cabeça de

igual modo e têm a mesma queda de ombros. Que curioso!Jamie se inclinou respeitosamente ante as damas, mas sentiu um suor frio na cara. Ainda não

havia acreditado que a semelhança fora visível para os demais.Uma vez que as senhoras entraram na casa, seguro de que ninguém o observava, Jamie

passou uma mão furtiva pelas feições. O quanto era parecido? Willie tinha o cabelo de umsuave tom castanho e as orelhas grandes e translúcidas… as suas não sobressaíam assim.

O problema era que Jamie Fraser levava vários anos sem se ver com clareza. Os cavalariçosnão tinham espelhos e ele evitava o tratar com as criadas, que teriam podido proporcionar-lheum. Aproximou-se ao bebedouro, como se fora vistoriar as aranhas aquáticas, e enguliu saliva.O parecido não era completo, mas indubitavelmente existia. Na postura, na forma da cabeça enos ombros, tal como lady Grozier tinha observado, mas também nos olhos. Eram os olhos dosFraser: os de Brian, os de seu pai e também os de sua irmã Jenny. Se os ossos do meninoseguiam pressionando a pele, se seu nariz crescia longo e reto e os pómulos continuavamalargando-se… qualquer o notaria.

Tinha chegado o momento de falar com lady Dunsany.Para o meio de setembro tudo estava pronto. John Grey tinha trazido o perdão. Jamie tinha

uma pequena quantidade de dinheiro poupado, suficiente para cobrir os gastos da viagem, elady Dunsany lhe tinha dado um cavalo decente. Só faltava despedir-se dos habitantes deHelwater… e de Willie.

—Amanhã me irei —disse Jamie como de passagem, com a vista fincada na crina da égua.—Onde vais? A Derwentwater? Posso ir contigo? —William, visconde de Dunsany, nono

conde de Ellesmere, se jogou da parede, aterrizando com um ruído que assustou à égua.—Não faça isso —disse Jamie— Já não disse que não podes fazer ruído na cerca de Milly?

É muito assustada.—Porquê?

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—Voce também ficará assustado se eu espremer o seu joelho. —Disparou uma mão parabeliscar a perna do menino. Willie lançou um grito e se jogou para trás, rindo.

—Posso montar a Millyflower quando tiver terminado, Mac?—Não —respondeu Jamie com paciência pela décima segunda vez— Já disse mil vezes: é

muito grande para voce.—Mas eu quero montá-la!Jamie suspirou sem responder.—Disse que quero montar a Milly!—Eu já ouvi.—Bom, posso selar! Agora mesmo!O nono conde de Ellesmere tinha erguido o queixo com desafio em seus olhos se ofuscou ao

observar o frio olhar de Jamie. O escocês baixou lentamente o capacete da égua, incorporou-secom a mesma lentidão e, com seu metro e noventa de estatura, olhou ao conde, de só uns trintae cinco.

—Não —repetiu com muita suavidade.—Sim! —Willie erperneou no feno— Tens que fazer o que eu mando!—Não tenho que fazer.—Claro que sim!—Não, eu… —Jamie apertou os lábios e se pôs em córcoras— Escuta: eu não tenho que

fazer o que mandas, porque já não sou um cavalariço. Amanhã me irei.Willie palideceu de horror.—Não! Não podes ir.—É preciso.—Não! —O pequeno conde apertou os dentes num gesto herdado de seu bisavô paterno.

Jamie agradeceu ao céu que ninguém em Helwater tivesse conhecido a Simon Fraser— Não tedeixarei ir!

—Por uma vez na vida, milord, não tens nenhuma autoridade sobre mim —replicou Jamiecom firmeza.

—Se for… —Willie procurou uma ameaça e encontrou uma muito a mão— Se for —repetiucom mais segurança—, gritarei para espantar todos os cavalos.

—Solta um só grito, pequeno demônio, e te darei uma boa. —Livre já de sua reservahabitual e alarmado pela perspectiva de que aquele malcriado alvoroçasse aos sensíveis evaliosos animais, Jamie fulminou ao menino com uma olhada.

O conde dilatou os olhos de ira e se pôs vermelho. Depois de respirar fundo, começou acorrer por todo o estábulo enquanto gritava e agitava os braços, soltando todas as palavras deseu variado repertório.

Millyflower se encabritou, relinchando com força, seguida pelas patadas e os relinchos doresto dos cavalos.

Jamie conseguiu segurar a Milly e, com bastante esforço, tirou-o sem danos para ele nem

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para a égua. Depois de amarrá-la perto, voltou ao estábulo para ocupar-se de Willie.—Merda, merda, merda! —estava gritando o conde— Foda-se!Sem dizer nada, Jamie o segurou pelo pescoço da camisa e o levou desiquilibrado,

esperneando e debatendo-se, até o banco que tinha estado. Ali se sentou, com o conde sobre osjoelhos, e lhe deu cinco ou seis surras no traseiro. Depois levantou bruscamente ao menino e opôs em pé.

—Te odeio! —O rosto manchado de lágrimas estava muito vermelho; seus punhos tremiamde ira.

—Bom, eu também não te quero muito, pequeno bastardo! —lhe espetou Jamie.Willie se ergueu em toda sua estatura apertando os punhos.—Não sou nenhum bastardo! —gritou— Retira isso! Ninguém pode me dizer isso!Retira-o,

eu já disse!Jamie o olhou com espanto. Isso significava que corriam rumores que Willie os conhecia.

Tinha atrasado demais sua partida.—Retiro —disse suavemente— Não devia usar essa palavra, milord. Queria ajoelhar-se para

abraçar ao menino e consolá-lo mas esse não era gesto que um cavalariço pudesse ter com umconde, por mais jovem que fosse. Ardia-lhe a palma da mão esquerda.

Willie, que sabia como deve comportar-se um conde, estava fazendo um grande esforço pordominar as lágrimas, sorvendo ferozmente pelos narizes e limpando-se a cara com a manga.

—Permita-me, milord. —Jamie se ajoelhou para enxugar a cara com seu lenço. Willie oolhou com os olhos enrrojecidos e melancólicos.

—Tens mesmo que te ir, Mac? —perguntou com voz muito débil.—Sim. —Olhou os olhos de cor azul escuro, tão parecidos aos seus. De repente deixou de

importar-lhe que fora correto ou não, ou quem pudesse vê-los, e espremeu o menino contra oseu coração, apertando-lhe a cara contra o ombro para que não visse as lágrimas que derramavasobre o cabelo espesso e suave.

Willie lhe rodeou o pescoço com os braços e apertou com força, sacudido pelos soluços.Jamie lhe deu umas palmadinhas nas costas e lhe alisou o cabelo, murmurando palavrasgaélicas que, com um pouco de sorte, o menino não compreenderia.

—Acompanha-me a meu quarto, Willie; quero dar-te algo.Parte da cama, o banquinho e a bacia, tinha uma mesinha com seus poucos livros, uma vela

grande e uma menor, gorda e curta, posta ante uma pequena estátua da Virgem.—Para que é a vela pequena? —perguntou Willie— A avó diz que só esses repugnantes

católicos acendem velas frente a imagens pagãs.—Bom, eu sou um repugnante católico —disse Jamie com um gesto irônico— Mas esta não

é uma imagem pagã, era uma estátua da Santa Mãe.—É mesmo? —Pelo visto, a revelação não fazia senão aumentar a fascinação do menino—

E por que os católicos acendem velas ante as estátuas?Jamie passou uma mão pelo cabelo.—Bom, é… uma maneira de orar… e de recordar. Acender uma vela e dizer uma oração

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pensando em teus seres queridos. E a chama, enquanto arde, recorda-os por ti.—Em quem pensas?—Oh, em muitas pessoas. Em minha família das Terras Altas: minha irmã. Em amigos. Em

minha esposa. —As vezes a vela ardia em memória de uma jovem atrevida chamada Geneva,mas não disse.

Willie franziu o cenho.—Mas não tens esposa!—Não, agora não. Mas sempre a recordo.O menino alongou o índicador para tocar a estatueta com cautela.—Eu também quero ser um repugnante católico —disse com firmeza.—Não pode! —exclamou Jamie satisfeito e comovido pela idéia— Tua avó e tua tia

ficariam furiosas.—Mas eu quero ser! —As feições pequenas e nítidas expressavam decisão— Não direi nada

à avó nem a tia Isabel. Não direi a ninguém. Por favor, Mac, deixa-me! Quero ser como voce!Jamie vacilou. De repente desejava deixar ao seu filho algo mais do que o cavalo que tinha

coberto em madeira como presente de despedida. Tratou de recordar o que o pai McMurtry lhetinha ensinado na escola sobre o batismo; os laicos podiam administrá-lo em caso deemergência, a falta de um sacerdote.

Os olhos, parecidos aos seus, observavam-no grandes e solenes. Afundou três dedos na águada jarra e traçou uma cruz na testa do menino.

—Eu te batizo William James —disse suavemente—, no nome do Pai, do Filho e doEspírito Santo. Amém.

Willie piscou, piscando ante a gota de água que lhe rodava pelo nariz. Jamie riu a seu pesarao ver que tirava a língua para apresá-la.

—Por que me chamou William James? —perguntou com curiosidade— Meus outros nomessão Clarence Henry George. —Fez uma careta; Clarence não lhe agradava.

Jamie dissimulou um sorriso.—Quando te batizam recebes um nome novo. James é teu nome católico especial. Eu

também me chamo assim.—É mesmo? —Willie estava super feliz— Agora sou um repugnante católico, como voce?—Sim. —Obedecendo a outro impulso, o escocês afundou a mão sob o pescoço da camisa

— Toma. Conserva isto também como recordação minha. —E pendurou suavemente o rosárioque tinha no pescoço a Willie— Mas não mostre a ninguém. E por Deus, não lhe diga aninguém que és católico.

—A ninguém no mundo —prometeu Willie. Escondeu o rosário sob sua camisa e lhe deuumas palmadinhas para assegurar-se de que estava bem escondido.

—Bem. —Jamie lhe bagunçou o cabelo— Já é quase a hora do chá. Será melhor que voltesa casa.

Willie começou a andar para a porta mas se deteve no meio caminho, subitamentepreocupado.

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—Disseme que conservasse isto como recordação tua. Mas eu não posso dar nada para queme recorde!

Jamie esboçou um sorriso. Tinha o coração tão oprimido que não acreditou poder falar, masse obrigou a fazê-lo:

—Não te aflijas —disse—. Não te esquecerei.

CAPITULO 17

SURGEM OS MOSNTROS

Loch NessAgosto de 1968

Brianna piscou, afastando uma mecha do cabelo bagunçado pelo vento.—Quase tinha esquecido como era o sol —disse olhando com os olhos entornados o astro

em questão, que brilhava com desacostumado fulgor nas águas escuras do lago Ness.Sua mãe se espreguiçou com prazer, desfrutando a brisa.—Por falar em ar fresco. Sinto-me como um fungo que tivesse estado crescendo durante

semanas na escuridão, pálido e fofo.—Bonitas intelectuais sería as duas! —observou Roger. Mas sorria.Os três estavam muito animados. Depois da árdua busca nos registos das prisões, tinham

tido um golpe de sorte: os registos de Ardsmuir estavam completos, reunidos num só lugar e,em comparação com a maioria, eram notavelmente claros. Ardsmuir tinha funcionado comocárcere só durante quinze anos; depois de sua remodelação, utilizando o trabalho dos jacobitaspresos, foi convertida em quartel do exército e quase todos os prisioneiros transportados àsColônias da América.

—Ainda não explicou por que não enviaram a Fraser a América, junto com os demais. —Roger temia ter que informar às Randall que Jamie Fraser tinha morrido em prisão, até que, aovoltar uma página, encontrou o transportado Fraser a um lugar chamado Helwater, emliberdade sob palavra.

—Não sei —disse Claire—, mas me alegro muito. É… era —se corrigiu de imediato—terrivelmente propenso ao mar.

Roger olhou a Brianna com interesse.—Voce tem enjôos no mar?Ela sacudiu a cabeça.

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—Não. —Deu umas palmadinhas na cintura nua— Isto é de ferro.Roger se jogou a rir.—Quer sair para navegar? Depois de tudo hoje é festa.—É mesmo? Voce pode pescar?—Claro. Em Loch Ness pesquei salmões e enguias —lhe assegurou— Vamos alugar um

bote no berço de Drumnadrochit.O passeio até Drumnadrochit foi um prazer. Com um dos abundantes cafés da manhã de

Fiona, o almoço num cesto e Brianna Randall sentada ao seu lado com a cabeleira ao vento,Roger se sentia disposto a pensar que o mundo era perfeito.

Depois de descobrir o registo da liberdade vigiada de James Fraser, tinha precisado outrasduas semanas de investigação e duas breves viagens ao Distrito dos Lagos e a Londres. Foi nasacrosanta Sala de Leitura do Museu Britânico onde Brianna soltou um grito de júbilo que osobrigou a retirar-se apressadamente, no meio de uma glacial reprovação: tinha visto o Ato doPerdão Real, estampada com o selo de Jorge III, datada em 1764, a nome de «James AlexanderMcKenzie Fraser».

—Nós estamos aproximando —tinha dito Roger—.¡Estamos muito perto!—Perto? —repetiu Brianna. Mas a distraiu a aparição do ônibus e não fez questão continuar.

No entanto, Roger tinha surpreendido o olhar de Claire: ela entendia muito bem do que setratava e estava pensando o mesmo.

Claire tinha desaparecido no círculo de pedras de Craigh na Dun em 1945, para reaparecerem 1743. Depois de viver quase três anos com Jamie Fraser, retornou através das pedras e seencontrou em abril de 1948. Isso podia significar que, se ela estava disposta a tentar o passouma vez mais, era provável que chegasse vinte anos depois de sua partida, em 1766. Eacabavam de localizar a Jamie Fraser, são e salvo, em 1764. Se ele tinha sobrevivido mais doisanos e se Roger conseguiu achá-lo…

—Ali! —exclamou Brianna subitamente—. «Aluguel de botes.»Assinalava um letreiro que tinha na janela do bar portuário. Roger estacionou e não pensou

em Jamie Fraser.O lago estava calmo e a pesca era escassa, mas era agradável estar no água, com o sol nas

costas e o aroma das canas e dos pinheiros quentes que chegavam desde a costa. Atolhadospelo almoço, todos sentiram sono. Em pouco momento, Brianna dormia acurrucada na proa,com a jaqueta de Roger como travesseiro. Claire piscava, sentada na popa, mas se mantinhadesperta. Contemplava as águas escuras do lago. Talvez estava alerta para encontrar lontras outroncos flutuantes, mas Roger teve a sensação de que sua olhada ia bem mais longe dosalcantilados da costa oposta.

—Te agradam os homens, não? —comentou— Os homens altos.Ela sorriu brevemente, sem olhá-lo. —Só um —disse com suavidade.—Voce irá…, se eu consiguir achá-lo? —Deixou os remos em descanso para observá-la.Ela respirou fundo antes de responder. O vento lhe tinha acendido as bochechas e cingia sua

camisa branca, moldando o busto alto e a cintura estreita. «Muito jovem para ser viúva»,pensou; «Muito formosa para desperdiçar.»

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—Não sei —respondeu Claire um pouco trémula— Só a idéia… Por um lado, reencontrar-me com Jamie. Pelo outro, voltar a… passar por aquilo. —E fechou os olhos, estremecida,como se visse o círculo de pedras de Craigh na Dun—. É indescritível, sabe? Horrível, mas deum modo diferente a outras coisas horríveis, de maneira que não se pode descrever.

Abriu os olhos para sorrir-lhe com ironia.—Seria como tratar de explicar a um homem que se sente ao ter um filho; ele pode captar,

mais ou menos, a idéia de que é doloroso, mas não está preparado para entender qo que sesente na verdade.

Roger grunhiu divertido.—Sim? Bom, há certa diferença, sabe? A verdade é que eu ouvi essas condenadas pedras.

—Estremeceu-se involuntariamente ao recordar a noite em que Gillian Edgars tinha cruzadoaquelas pedras, três meses atrás. Tinha revivido várias vezes em seus pesadelos, então atiroucom força aos remos, tratando de apagá-la—. É como se te rasgassem, não? —sugeriuolhando-a com atenção— Há algo que atira de ti, rompendo, arrastando, e não só por fora,senão também por dentro, como se o crânio fora a voar em pedaços em qualquer momento. Eesse ruído horrível…

Se estremeceu outra vez. Claire tinha palidecido.—Não sabia que a tinha escutado —disse— Não me disseste.—Não me pareceu importante. —Estudou-a um momento enquanto remava. Depois disse

baixinho—: Bree também ouviu.De repente ela disse, apontando com a cabeça as águas negras do lago:—Está aí, sabia?Ele abriu a boca para perguntar ao que se referia, mas de imediato o compreendeu. Como

tinha passado a maior parte de sua vida próximo do lago Ness, pescando enguias e salmões,conhecia todos os relatos do «temível monstro» que se contavam nas tabernas. Talvez porque asituação era incrível (estar sentado ali, discutindo calmamente se ela devia ou não aceitar oinconcebível risco de catapultar-se para um passado desconhecido), de repente não lhe pareceusó possível, senão também seguro que as escuras águas do lago ocultassem um mistério decarne e osso?

—O que é, em tua opinião? —perguntou, tanto por curiosidade como para dar a seussentimentos o tempo necessário para assentar-se.

—O que eu vi parecia um plesiossauro —disse Claire com um olhar perdid para popa—Ainda que naquele momento não me ocorreu tomar nota. —Torceu a boca num gesto que nãoera de todo sorriso— Quantos círculos de pedra há? Em Grã-Bretanha, em Europa. Voce sabe?

—Com exatidão, não. Mas são várias centenas —respondeu ele com cautela— Crês quetodos…?

—Como quer que eu saiba? —interrompeu-o Claire— O fato é que poderia ser. Forampostos para marcar algo, o quanto significa que poderia ter muitos lugares onde sucedeu isso.Te dás conta de que essa seria a explicação?

—A explicação de que? —Roger se sentia desorientado pelas rápidas mudanças deconversa.

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—Do monstro. E se tivesse outro lugar desses embaixo do lago?—Um passo… ou túnel… do tempo? —Roger contemplou deixando rastro um redemoinho,

pasmado ante a idéia.—Isso explicaria muitas coisas. —Tinha um sorriso escondido na comissura de sua boca;

não tinha modo de saber se falava a sério ou não— Os melhores candidatos a monstros seextinguiram faz milhares de anos. Se existe um túnel do tempo sob o lago, ficaria claro essepequeno problema.

—Também se explicaria por que as descrições costumam diferir —disse Roger, intrigadopela idéia—. Pode tratar-se de diferentes animais que cruzam.

—E se explicaria por que os animais não foram capturados. E por que não se as vê comfreqüência. Talvez regressam ao outro lado, de maneira que não estão constantemente no lago.

—Que animal tão estupendo! —exclamou Roger. Sorriram-se.—Sabe uma coisa? —disse ela— Não creio que apareça na lista das teorias populares.Roger, rindo, pegou um caranguejo, salpicando a Brianna. Ela se sentou bruscamente,

ofegando; depois se encostou outra vez e em poucos segundos respirava profundamente.—Ontem à noite ficou levantada até tarde —a defendeu Roger— Esteve ajudando-me a

empacotar os últimos registos para devolvê-los à Universidade de Leeds.Claire assentiu com ar abstraído, observando a sua filha.—Jamie fazia o mesmo —comentou suavemente— Era capaz de encostar e dormir em

qualquer parte. —Guardou silêncio— O fato é que cada vez se torna mais difícil. Passar aprimeira vez foi o mais horrível que me aconteceu em minha vida. Mas voltar foi mil vezespior. —Tinha os olhos fincados no castelo— Talvez porque não regressei no dia certo. Fui naFesta Maia; quando voltei faltavam duas semanas.

—Gillian também se foi na Festa Maia.Apesar do calor, Roger sentiu um pouco de frio; via novamente àquela mulher, que era a um

tempo sua antepassada e sua contemporânea, de pé à luz de uma fogueira antes de desaparecerpara sempre na greta das pedras.

—Isso é o que diziam suas anotações: que a porta estará aberta durante os festivais do Sol edo Fogo. Talvez nos dias próximos só estará meio abertas. Ou talvez ela estava equivocada porcompleto. Afinal de contas, acreditava que era necessário um sacrifício humano para quefuncionasse.

Claire enguliu saliva com dificuldade. Os restos de Greg Edgars, o esposo de Gillian, tinhamsido recobrados aquele primeiro dia de maio empapados em petróleo. O relatório policial sódizia de sua esposa: «Fugiu sem que se conheça seu paradeiro.»

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—Serias capaz de descer, Roger? —perguntou suavemente— Poderia saltar pela borda, desceraté que te estourassem os pulmões, sem saber se ao outro lado te esperam coisas com dentes ecorpos enormes?

Roger sentiu que lhe arrepiava o pêlo dos braços.—Mas a pergunta não acaba aí —disse sem deixar de contemplar as águas misteriosas—

Descerias se Brianna estivesse lá embaixo?E se voltou a olhá-lo.Ele passou a língua pelos lábios, sensíveis pelo vento, e deu uma olhada à moça. Depois se

voltou para a mãe.—Sim, creio que sim.Ela o observou um bom momento. Depois assentiu sem sorrir:—Eu também.

QUINTA PARTE

Não pode voltar a casa

CAPÍTULO 18RAÍZES

Setembro de 1968

A mulher sentada ao meu lado devia pesar uns cento e cinquenta quilos. O quadril, a coxa eo braço gordos, quentes e úmidos, apertavam-se desagradavelmente contra mim. Não tinhamaneira de escapar: ao outro lado me apertava a fuselagem do avião. Levantei um braço paraacender a luz de leitura, a fim de conferir meu relógio. Eram dez e meia, hora de Londres;faltavam ao menos mais seis horas para aterrizar em Nova York.

Com um suspiro de resignação, remexi no bolso do assento, procurando a novela romântica

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para ler, mas minha atenção escapava do livro, tanto para voltar a Roger e a Brianna, a quemtinha deixado em Edimburgo dedicados à busca, ou como para ir para frente, ao que meesperava em Boston.

Parte do problema era não saber com certeza o que me esperava ali. Tinha sido obrigada avoltar; minhas férias tinham terminado fazia tempo e também as diversas prorrogações. Tinhaassuntos para atender no hospital, contas para pagar, a manutenção da casa, amigos paratelefonar…

Um em especial: Joseph Abernathy tinha sido meu amigo mais íntimo desde nossos temposde estudantes. Antes de tomar uma decisão final, provavelmente irrevogável, queria discutí-lacom ele. Fechei o livro em meu colo para seguir com um dedo as extravagantes curvas dotítulo. Entre outras coisas, devia a Joe meu gosto pelas novelas românticas.

Conhecia a Joe desde o começo de minha prática profissional. Ambos nos destacávamosentre os outros internos do Boston Geral. Eu era a única mulher entre os médicos emamadurecimento; Joe, o único negro.

Aquele dia tinha praticado minha primeira apendicíte sem ajuda. Ainda que tudo tinha saídobem e não tinha motivos para esperar complicações pos-operatórias, sentia uma espécie deestranha possessividade com respeito ao paciente e não queria voltar para casa enquanto elenão tivesse acordado. Ao terminar meu turno, mudei de roupa e fui à sala de descanso paramédicos.

A sala não estava deserta. Joseph Abernathy, sentado num cadeirão, parecia absorto numarevista. Procurando alguma distração, dei uma olhada a várias publicações médicas atrasadas ea uns folhetos das Testemunhas de Jehová. Por fim escolhi um romance. Não tinha capa masna primeira página se lia: «O pirata impetuoso. Uma sensual e apaixonante história de amor,tão abundante como a Costa Caribenha.» Como a Costa Caribenha, é? Se o que desejava erame distrair, não acharia nada melhor. O livro se abriu automaticamente na página 42.

Com ar de autoridade, Valdez rodeou com um braço a cintura de Tessa.—Esqueceu, senhorita —murmurou junto ao sensível lóbulo de sua orelha—, que sou botim

de guerra. E o capitão de um barco pirata tem prioridade para escolher sua parte do botim.Seus lábios lhe roçaram o peito. Seu alento ardoroso, murmurando frases tranqüilizadoras,

deixou-a sem resistência. Relaxou-se, separando as coxas. Movendo-se com infinita lentidão, avara ereta do pirata tirando a fina membrana de sua inocência.

Lancei uma exclamação. O livro se deslizou ao chão, caindo aos pés do doutor Abernathy.—Desculpe —murmurei. E me inclinei para recuperá-lo com a cara em chamas. No entanto,

ao incorporar-me com O pirata impetuoso em minhas mãos suadas, vi que ele, longe deconservar seu austero semblante habitual, sorria de orelha a orelha.

—Deixe-me adivinhar —pediu— Valdez acaba de tirar uma membrana fina de inocência?—Sim. —Sem poder evitá-lo, estourei numa risada estúpida— Como sabe?—Bom, estava no princípio. Tinha que ser isso ou o da página 73, onde ele lambe com

língua faminta seus seios rosados.-O que?—Veja com seus próprios olhos. —Pôs o livro em minhas mãos, apontando uma página.

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—Não me diga que você leu isto! —acusei, arrancando os olhos de Tessa e Valdez.—Claro que sim —disse mais sorridente que nunca. Tinha um dente de ouro— Duas ou três

vezes. Não é das melhores, mas não é tão mau.—Dos melhores? Há mais como este?—Claro.As melhores são as que não têm capa.—E eu achava que você só lia revistas de medicina!—Caramba, passo trinta e seis horas metido até os cotovelos nas barrigas das pessoas. E

quer que fique a ler «Avanços na extirpação do peritoneo»? Não, por favor. Prefiro navegarcom Valdez pela Costa Caribenha. —Olhou-me com interesse— Eu também não a via capazde ler algo que não fora o Semanário de medicina. As aparências enganam, verdade, lady Jane?

—Parece que sim —repliquei secamente— O que é isso de «lady Jane»?—Uma ocorrência de Hoechstein —respondeu jogando-se para atrás, com os dedos

entrelaçados ao redor de um joelho— Com essa voz e esse acento, diria que acaba de tomar ochá com a rainha. Por seu modo de falar. Onde aprendeu isso?

—Na guerra —eu disse sorrindo ante sua descrição.Levantou as sobrancelhas. —A da Coréia?—Não. Fui enfermeira de combate na França durante a Segunda Guerra Mundial. Ali tinha

muitas enfermeiras muito capazes de converter em geleia aos médicos com uma só olhada.Mais adiante tinha tido ocasião de praticar; esse ar de autoridade inviolável, por mais fingido que fora, serviu-me de muito comotratar pessoas bem mais poderosas do que o pessoal de enfermaria e osinternos daquele hospital.Ele assentiu, atencioso a minha explicação.—Sim, entendo. Eu usava o de Walter Cronkite.—Walter Cronkite? —Olhei-o com os olhos muito arregalados.Voltou a sorrir, mostrando seu dente de ouro.—Lhe ocorre alguém melhor? Via-o pela televisão todas as noites. Minha mãe queria que eu

fosse orador.Joe Abernathy me agradava cada vez mais.—Espero que não a tenha desiludido ao dizer que você ia estudar medicina.—Para dizer verdade, não sei —confessou sem deixar de sorrir— Quando eu disse, olhou-

me durante um minuto; depois soltou um grande suspiro e disse: «Bom, ao menos os remédiospara o reumatismo me sairão mais baratos.»

Ri com ironia.—Meu esposo se mostrou ainda menos entusiasmado quando lhe disse do que ia estudar

medicina. Olhou-me fixamente e por fim me sugeriu que, se eu estava tediosa, podia oferecer-me como voluntária para escrever as cartas dos internos do asilo.

—Sim, assim é as pessoas. «O Que faz você aqui, jovenzinha, em vez de estar em sua casa,

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ocupando-se de seu marido e de sua filha?» —imitou com um sorriso irônico. Depois me deuuma palmanha na mão— Não se preocupe. Mias cedo ou mais tarde renunciam. Para mim jáquase ninguém me pergunta na cara por que não estou limpando os banheiros, se foi para issoque Deus me criou.

Naquele momento entrou a enfermeira para anunciar que meu apêndice tinha acordado. Masa amizade iniciada na página 42 floresceu a tal ponto que Joe Abernathy acabou sendo um demeus melhores amigos; possivelmente, a única pessoa próxima a mim que entendia para valero que eu fazia e por que.

Fechei os olhos. Atrás, na Escócia, Roger e Bree seguiam procurando a Jamie. Frente, emBoston, esperava meu trabalho e Joe. E Jamie? Tratei de afastar a idéia, decidida a não pensarnele até que tivesse tomado a decisão.

Algo me agitou o cabelo e uma mecha me roçou a bochecha, ligeiro como os dedos de umamante. Mas devia de ser só o ar condicionado. E era minha imaginação que misturavasubitamente, aos cheiros rançosos de perfume e cigarros, num aroma de lã e urzais.

CAPÍTULO 19

PARA ROGAR A UM FANTASMA

Estava por fim em casa, na casa da rua Furey, onde tinha vivido com Frank e Brianna quasevinte anos. As azaleias da porta não estavam totalmente secas mas suas folhas pendiam emmaços polvorentos; uma grossa capa de folhas secas jazia na terra fendida.

Não me agradavam muito as azaleias. Teria já tirado elas faz tempo, mas depois da morte deFrank me resisti a mudar algum detalhe da casa, pensando em Brianna. Muito já era ingressarna universidade e se lhe tivesse morrido o pai, tudo num mesmo ano. Eu levaria muito tempopara prestar atenção à casa; podia continuar fazendo.

—Está bem! —disse com incomodo às azaleias, enquanto fechava a torneira da mangueira— Espero que esteja contente porque isso será tudo. Eu também preciso de uma taça. E umbanho —disse ao ver as folhas manchadas de barro.

Sentei-me na borda da banheira, com roupão, agitando as bolhas. A água estava muitoquente.

Sabia perfeitamente bem o que estava fazendoquando subi ao avião em Inverness. Estavame testando.

Tinha tomado nota de todas as máquinas e artefatos da vida moderna e (isso era o maisimportante) de minha reação ante elas. O trem a Edimburgo, o avião a Boston, o táxi desde oaeroporto e tantos outros luxos mecânicos: as máquinas modernas, o aflorado público, oslavabos. Os restaurantes, onde um certificado do Departamento de Saúde te garantia apossibilidade de livrar-te de um botulismo se comias ali. E dentro de minha própria casa, asonipresentes botões que proviam de luz, calor, água e comida cozinhada.

A questão era: Me importava com tudo isso? Podia viver sem todas as «comodidades»,grandes e pequenas, às que estava habituada? Isso era o que me perguntava com cada toque debotão, cada rugir de motores, e estava segura de que a resposta era afirmativa. Nunca me tinha

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importado muito tudo isso. Desde a morte de meus pais, quando eu tinha cinco anos, vivi commeu tio Lamb, arqueólogo no qual acompanhava em suas expedições. Portanto, tinha-mecriado em condições que se poderiam chamar de «primitivas».

A água já estava o suficientemente morna para ser tolerável. Deixei cair o roupão no chão eme submergi com um agradável estremecimento. Mas as comodidades eram só isso: nadaessencial, nada do que não pudesse prescindir. Claro que não só as comodidades estavam emquestão. O passado era um país perigoso. Mas nem sequer os avanços da suposta civilizaçãobastavam para garantir a segurança. Eu tinha sobrevivido a duas grandes guerras «modernas»(e na segunda, servindo nos campos de batalha) e todas as noites podia ver pela televisão comose ia formando a seguinte.

Retirei a tampa do desagúe com os dedos, suspirando. De nada servia pensar em coisas tãoimpessoais como banheiras, bombas e violadores. A água corrente era só uma distração semimportância. O verdadeiro problema estava nas pessoas envolvidas: Brianna, Jamie e eu.

Um pouco mais reconfortada, pus a camisola e me dediquei a preparar a casa para dormir.Não tinha gato nem cachorro que alimentar; Bozo, o último de nossos cachorros, tinha morridode velhice no ano anterior.

Medir os graus do termostato, verificar as fechaduras das portas e janelas, comprovar que acozinha estivesse apagada. Isso era tudo. Durante quinze anos, minha rotina noturna tinhaincluído uma paragem no quarto de Brianna, mas isso terminou quando entrou na universidade.

Movida pelo costume, abri a porta de seu quarto e acendi a luz. Há quem têm debilidadepelos objetos e quem não a têm. Bree a tinha; praticamente não tinha um centímetro de paredevisível entre os cartazes, as fotografias, as flores secas, os bocados de tela tingida, os diplomasemoldurados e outros obstáculos.

Eu não tinha paixão pelos objetos. Não sentia necessidade de adquirir nem de decorar; antesde que Brianna tivesse idade suficiente para colaborar, Frank costumava queixar-se de quenosso mobiliário era espartano. Jamie era igual. Tinha alguns objetos que levava sempre emsua bolsa no Kilt, como talismãs ou porque lhe eram úteis; mas, nunca tinha possuído nadanem se interessava pelas coisas.

Ainda assim era estranho que Brianna se parecesse tanto ao seus dois pais, tão diferentesentre si. Dei silenciosamente boa noite ao fantasma de minha filha ausente e apaguei a luz.

A imagem de Frank me acompanhou ao dormitório. A grande cama de duas vagas, intactasob o edredon de cetim azul escuro, que eu trouxe à mente com súbita nitidez, como não orecordava fazia muitos meses.

Talvez fora a possibilidade da partida iminente o que me fazia pensar agora nele. Essequarto, essa cama, onde eu lhe tinha dito adeus pela última vez.

—Não podes vir para cama, Claire? É mais de meia-noite.Frank me olhava acima de seu livro. Já estava encostado e lia com o volume sobre os

joelhos. No suave toque de luz da vela, parecia boiar numa cálida borbulha, serenamenteisolado da fria escuridão que enchia o resto da habitação. Corriam os primeiros dias dejaneiro e, devido aos grandes esforços da caldeira, pela noite o único lugar realmente quenteera a cama, sob cobertores pesados.

Levantei-me da cadeira, sorrindo-lhe, e deixei cair o roupão de lã.

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—Não te deixo dormir? Desculpa. Estava revivendo a operação desta manhã.—Sim, eu já sei —afirmou secamente— Me satisfaz olhar-te. Os olhos ficam vidrados e

ficas boquiabierta.—Desculpa —repeti imitando seu tom— Não tenho culpa da cara que eu faço enquanto eu

penso.—E de que te serve pensar? —perguntou— voce já fez o que podia; afligir-se agora não

muda nada… Oh, bom. —Encolheu-se de ombros, irritado, e fechou o livro— Não é a primeiravez que te digo.

—Não —confirmei brevemente.Me meti na cama, tremendo um pouco, e envolvi bem as pernas na camisola. Frank se

aproximou automaticamente. Nos acolchegamos juntos, somando o calor contra o frio.—Estava pensando… —a voz de Frank surgiu da escuridão com excessiva indiferença.—Hum? —Eu seguia absorta no repasso da operação mas me esforcei para voltar ao

presente— Em que?—Em minha licença sabática. —A permissão da universidade se iniciaria dentro de um

mês. Ele tinha planejado fazer uma série de viagens breves pelo nordeste dos Estados Unidos.Reunindo material; depois passaria seis meses na Inglaterra e voltaria a Boston para dedicar-se a escrever durante os três últimos meses de licença— Me agradaria ir a Inglaterra —dissecauteloso.

—Bom, por que não? O clima será horrível, mas se vai passar a maior parte do tempo embibliotecas…

—Quero levar a Brianna.Fiquei gelada.—Mas ela não pode viajar; falta-lhe um semestre para a graduação. Não pode esperar no

verão para irmos todos juntos? Solicitei umas longas férias para essas datas e…—Vou-me agora. Para sempre. Sem voce.Incorporei-me e acendi a luz.—Por que agora, tão de repente? A nova está te pressionando, não?A expressão de alarme que lhe lampejou nos olhos era tão pronunciada que resultou

cômica. Joguei-me a rir com uma perceptível falta de humor.—Achava que eu não sabia nada? Por Deus, Frank! Quanta ignorância!Ele se sentou na cama com a mandíbula tensa.—Achei ter sido muito discreto.—Pode ser —reconheci com ironia— Contei seis dos dez últimos anos. Se foram dez ou

doze, voce foi realmente um modelo de discrição.Era raro que sua cara expressasse muita emoção, mas certa palidez me indicou que estava

furioso.—Esta deve ser um pouco especial —comentei com fingida desenvoltura, apoiando-me na

cabeceira da cama com os braços cruzados— Ainda assim, a que tanta pressa para ir a

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Inglaterra? E por que queres levar a Bree?—Pode cursar o último semestre num internado. Para ela será uma nova experiência.—Não creio que lhe interesse —observei— Não vai querer se separar de seus amigos justo

agora, antes da graduação. E muito menos para ir a um internado inglês!—Um pouco de disciplina não lhe seria mal a ninguém —disse Frank. Tinha recobrado seu

humor habitual mas as linhas de sua cara seguiam tensas— Para voce teria vindo bem. —Moveu uma mão como para descartar o assunto— Deixe assim. De qualquer modo, decidivoltar definitivamente a Inglaterra. Ofereceram-me um bom posto em Cambridge e vou aceitá-lo. Voce não vai querer abandonar o hospital, claro. Mas não penso ir sem minha filha.

—Tua filha ? —Momentaneamente me senti incapaz de falar. Como ele tinha um novo postopreparado e uma nova amante que o acompanhasse. Devia ter planejado tudo. Uma vidanova… mas não com Brianna.

—Minha filha —repetiu calmamente— Podes vir visitá-la quando quiser, claro.—Grande… cretino! —pronunciei.—Sou razoável, Claire. —Olhou-me com o nariz levantado— Quase nunca estás em casa.

Se eu vou embora não terá ninguém que cuide de Bree como é devido.—Falas como se tivesse oito anos. E vai cumprir dezoito. Já é quase uma mulher, por Deus!—Por isso mesmo precisa que a cuidem e a vigiem espetou— Se tivesses visto o que eu vejo

na universidade… como bebem, como se drogam…—Eu vejo —eu disse entre dentes— Muito de perto, na sala de Urgências. Mas Bree não

corre perigo de…—Mas claro que sim! As garotas dessa idade não têm cabeça. Vão com o primeiro tipo

que…—Não sejas idiota! Bree é muito sensata. Além disse, jovens querem experimentar; assim é

que se aprende. Não podes tê-la entre algodões por toda a vida.—Melhor entre algodões que relações com um negro —atacou. Nos pómulos lhe apareceu

uma leve mancha vermelha— Mas as coisas não serão assim, maldita seja, enquanto eu poder!Saltei da cama dando uma olhada furiosa. Tremia de ira; tive que apertar os punhos para

não lhe socar.—Asqueroso! Tens o tremendo descaro de vir dizer-me que vai viver com a última de toda

uma série de amantes! E depois se atreves a insinuar que durmo com Joe Abernathy? É isso oque queres dizer?

Teve a decência de abaixar os olhos.—É o que pensa todo mundo —murmurou— Estás sempre com esse homem. Pelo que a

Bree diz, é o mesmo. Arrastá-la a… situações perigosas e… e com esse tipo de gente…—Suponho que te referes as pessoas negras, não?—Mas claro que sim —replicou olhando-me com uma faísca nos olhos— Bastante ruim é

ter que ver os Abernathy nas festas. Mas essa pessoa obesa que me apresentaram em sua casa,cheia de tatuagens tribais e barro no cabelo! E essa repulsiva lagartixa de salão, de voz tãountuosa! E ao garoto dos Abernathy que ronda com a Bree noite e dia; levando-a a

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manifestações, a orgias em esconderijos —Não creio que tenha esconderijos miseráveis… —comentei reprimindo um indecoroso impulso de rir ante a descrição cruel, mas correta, queFrank fazia dos amigos mais excêntricos de Leonard Abernathy— Sabia que Lenny se faziachamar por Muhammad Ishmael Shabazz ?

—Sim, me disse —confirmou secamente— E não vou correr o risco de que minha filha seconverta na senhora Shabazz.

—Não creio que Bree tenha esse tipo de interesse por Lenny —assegurei lutando por conterminha irritação.

—Também não se vou permitir. Mas vou levá-la a Inglaterra.—Não leva, a não ser que ela queira ir —disse com grande segurança.Provavelmente porque se sentia em desvantagem, Frank saiu da cama e procurou às suas

pantuflas.—Não preciso de tua permissão para levar a minha filha a Inglaterra —observou— E Bree

ainda é menor de idade; irá onde eu disser. Te agradeceria que procurasse sua históriaclínica. Na nova escola a precisarão.

—Tua filha? —repeti. Percebia vagamente o frio do quarto, mas estava tão irritada que mesentia acalorada— Bree é minha filha e não vai levar a nenhuma parte!

—Não pode impedir —disse com enfurecedora serenidade, recolhendo seu roupão.— Por que não ? Quer divorciar de mim? Perfeito. Alega as causas que quiser… exceto a

de adultério, que não poderá provar porque não existe. Mas se tentar levar a Bree serei eu aque vou dizer uma ou duas coisas sobre o adultério. Quer saber quantas de tuas amanteseliminadas vieram pedir-me para eu desistir de voce?

A surpresa o deixou boquiabierto.—Eu disse a todas que renunciaria voce no momento que voce me pedisse —continuei—

Realmente estranhava que nunca o tivesses feito. Mas imaginei que era por Brianna.—Bom —replicou, pálido, numa triste tentativa de recobrar seu aprumo habitual—, não sei

por que pensei que te machucaria. Afinal de contas, nunca fizeste nada para me impedir.Impedir? O que pretendias que eu fizesse? Abrir tua correspondência ao vapor e colocar as

cartas no nariz? Armar um escândalo na festa de Natal dos professores? Queixar-me ao reitor?Ele apertou os lábios.—Poderia ter-se comportado como se te importasse —sugeriu baixinho.—Importava-me —minha voz soou afogada.Sacudiu a cabeça sem deixar de olhar-me, escuros os olhos à luz do lustre.—Mas não o suficiente. As vezes me perguntava se tinha direito a te criticar —disse

pensativo— Bree se parece com ele, não?Sim.Soltou o ar com força, quase sem fôlego.—Eu via no seu rosto quando a olhavas. Me dava conta de que estavas pensando nele.

Maldita sejas, Claire Beauchamp —murmurou— Maldita seja teu rosto, que não sabedissimular nada do que pensas ou sentes.

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Guardamos silêncio.—Eu te amava —disse por fim suavemente— Em outros tempos.—Em outros tempos. Tenho que te agradecer?—Eu te disse —recordei— Mas como não quiseste me deixar… Eu tentei, Frank.O que percebeu em minha voz, fora o que fosse, deteve-o por um momento.—Tentei—repeti com muita suavidade.—Ao princípio não podia deixar-te… grávida, sozinha. Tinha que ser muito canalha para

fazer isso. E depois… Bree. — Olhou às cegas o lápis que tinha numa mão; depois o colocouno vidro da mesa— Não podia renunciá-la. —Voltou a me olhar; seus olhos pareciam buracosno rosto ensombrado— Sabia que não posso ter filhos? Faz alguns anos me… fiz-me unstestes. Sou estéril. Sabia?

Sacudi a cabeça sem atrever-me a falar.—Bree é minha, é minha filha —afirmou— É a única filha que jamais terei. Não podia

renunciá-la. —Soltou um riso breve— Não podia renunciar a ela mas tu não podias olhá-lasem pensar nele, não é? Sem essa lembrança constante… o teria esquecido com o tempo?

—Não. —Meu sussurro pareceu percorrê-lo como uma descarga elétrica. Por um momentopermaneceu petrificado. Depois, girando bruscamente para o roupeiro, começou a pôr aroupa em cima do pijama.

Um momento depois ouvi que fechava a porta da rua (teve a suficiente presença de ânimopara não a bater) e depois o ruído de um motor frio que arrancava de má vontade.

Frank não voltou. Tratei de dormir mas estava rígida na cama fria revivendo mentalmente adiscussão, alerta ao rangido das rodas no caminho. Por fim me vesti para eu sair também,deixando uma nota para Bree.

Ainda que o hospital não me tinha chamado, decidi dar uma olhada em meu paciente; issoera melhor do que dar voltas e voltas toda a noite. Francamente, não teria me incomodadoque Frank, ao seu regresso, não me encontrasse em casa.

As ruas estavam muito escorregadias; o gelo cintilava à luz dos postes. O único consolo eraestar completamente só na rua, às quatro da manhã.

Dentro do hospital me envolveu um cheiro cálido e viciado como um certo ar defamiliaridade, chegando lá fora da noite negra.

—Está bem —me disse baixinho a enfermeira— Todos os sinais vitais se mantêm estáveis enão há hemorragia.

Deixei escapar o ar que estava segurando sem dar-me conta.—Alegro-me —disse— Alegro-me muito.De repente, o ambiente do hospital parecia meu único refúgio. Não fazia sentido voltar

para casa. Visitei rapidamente os meus outros pacientes e desci à cafeteria.Foi talvez meia hora depois: uma das enfermeiras de Urgências cruzou as portas de vaivém

e se deteve em seco ao ver-me. Depois se aproximou muito lentamente.Soube de imediato; tinha visto tantas vezes médicos e enfermeiras dar a notícia de uma

morte, que não podia confundir os sinais. Com muita calma, tratando de não sentir

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absolutamente nada, deixei a xícara quase cheia.—… Disse que você estava aqui. Identificação em sua carteira… a polícia… neve sobre

gelo, um patinamento… Já estava morto quando chegou.A enfermeira continuava falando,*balbuceante, enquanto eu percorria a grandes passos os

corredores iluminados sem olhá-la. Via as caras das enfermeiras que giravam para mim acâmara lenta, sem saber nada, mas adivinhando à primeira vista que tinha acontecido algodefinitivo.

Tinham-no numa maca da sala de Urgências: num espaço frio e desconhecido. Vi umaambulância, fora talvez a mesma que o tinha trazido. As portas duplas do corredor estavamabertas a um amanhecer glacial. A luz vermelha da ambulância palpitava como uma artéria,banhando de sangue o corredor.

O toquei. Sua carne estava inerte ao tato, em contraste com seu aspecto de vida, comoocorre com os que acabam de morrer. Fechei os olhos para apagar a pertubadora imagemdaquele perfil imóvel, que passava do vermelho ao alvo, do alvo ao vermelho, à luz queentrava pelas portas abertas.

—Frank —eu disse suavemente ao ar inquieto—, se ainda estás perto e podes ouvir-me… éverdade que te amei. Em outros tempos. Amei-te.

Um momento depois entrou Joe, ansioso, abrindo passos pelo corredor obstinado. Vinhadiretamente da sala de operações; tinha uma gota de sangue no cristal dos óculos e umamancha no torso.

—Claire —disse—.Meu Deus, Claire!Então comecei a tremer. Naqueles dez anos ele sempre me tinha chamado «Jane» ou

«Lady». Aquilo tinha que ser verdade para que ele usasse meu verdadeiro nome. Vi a minhamão, assombrosamente branca no punho escuro de Joe; depois, vermelha à luz palpitante. Porfim girei para ele, que era sólido como um tronco de árvore. Apoiei a cabeça em seu ombro e,pela primeira vez, chorei por Frank.

Apoiei o rosto na janela do dormitório, na casa da rua Furey. Com os olhos embaçados,recordava o desconhecida multidão do corredor e os reflexos vermelhos da ambulância, quevarriam o silencioso cubículo enquanto eu chorava por Frank.

Voltei a chorar por ele, pela última vez, ainda reconhecendo que nos tínhamos separadomais de vinte anos atrás, na cume de uma verde colina escocesa.

Terminadas as lágrimas, apoiei uma mão no suave edredon azul, coberto sobre o travesseiroda esquerda: o lado de Frank.

—Adeus, meu querido —sussurrei.E fui dormir, longe dos fantasmas.Pela manhã, me acordou a campanhia da porta em meu improvisado leito do sofá.—Telegrama, senhora —disse o mensageiro tratando de não olhar minha camisola.Aqueles pequenos envelopes amarelos deviam de ter causado mais ataques cardíacos do que

qualquer outra coisa, parte do toucinho no café da manhã. Meu próprio coração se encolheucomo um punho; depois continuou batendo de um modo pesado e incômodo. Tremeram-me osdedos ao abrí-lo.

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Era uma breve mensagem. «Claro», pensei absurdamente: «os escoceses são avarentos comas palavras».

O ENCONTRAMOS.VOLTA QUANDO PODERES.ROGER.

Dobrei cuidadosamente o telegrama e voltei a guardá-lo em seu envelope. Passei longomomento sentada, contemplando-o. Por fim me levantei para vestir-me.

CAPÍTULO 20DIAGNÓSTICO

Joe Abernathy, sentado ante sua escrivaninha, olhava com o semblante franzido perante opequeno retângulo de cartolina que tinha nas mãos.

—O que é isso? —perguntei sentando-me sem cerimônias na borda da escrivaninha.—Um cartão de visita. —Me entregou, divertido e irritado a mesmo tempo.Era cinza, de material caro, impressa com carateres elegantes. Muhammad Ishmael Shabazz

III, dizia a linha central; abaixo, direção e número de telefone.—Lenny? —perguntei rindo— Muhammad Ishmael Shabazz… Terceiro?—Desgraça. —A diversão parecia estar impondo-se. O dente de ouro cintilou— Diz que não

vai aceitar um nome de escravo. Quer reclamar sua herança africana. «De acordo —lhe digo—,e depois do que? Pensa andar por aí com um osso atravessado no nariz?» Não lhe basta em tero cabelo até aqui, não. Mas com um garoto dessa idade não se pode falar.

—Certo. Mas de onde saiu isso de «terceiro»?—Bom, esteve falando de sua tradição perdida, da história que lhe falta e tudo isso. «Como

vou manter a cabeça tranquila em Yale? —diz-me—, entre todos esses tipos que se chamamCadwallader IV e Sewell Lodge Filho, sem conhecer sequer o nome de meu avô, sem saber deonde venho?» —Joe bufou— «Se queres saber de onde vens, moço —lhe digo—, olha-te noespelho. Do Mayflower não foi, verdade?» Assim que decidiu recuperar sua herança até o fim.Se seu avô não lhe deu um sobrenome, será ele quem dê um sobrenome a seu avô.

Olhou-me com uma sobrancelha levantada e disse:—O problema é que isso me deixa em dúvida. Agora tenho que ser Muhammad Ishmael

Shabazz Filho, para que Lenny possa estar orgulhoso de sua descendencia afroamericana. Vocesim que tens sorte, lady Jane. Ao menos, Bree não atormenta a tua a vida perguntando quemfoi seu avô. Tua única preocupação é que se interesse à droga ou se deixe engravidar porqualquer irresponsável que depois foge para o Canadá.

Joguei-me a rir com ironia.—Isso é o que você pensa.—Bom, e como estava Escócia? —perguntou— A Bree gostou?

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—Ainda está lá. Procurando sua própria história.Joe estava abrindo a boca para dizer mas algo o interrompeu com um toque vacilante na

porta.—Doutor Abernathy? —Um jovem apareceu com a cabeça acima de uma grande caixa de

papelão.—Ishmael, para os amigos —disse Joe.—O que? —O jovem ficou boquiabierto. Depois me olhou com desconcerto e um pouco de

esperança— Você é o doutor… a doutora Abernathy?—Não —repliquei—; o doutor é ele, quando se propõe. —Levantei-me da escrivaninha,

alisando a saia—. Deixo atender teus compromissos, Joe, mas se tens tempo mais tarde…—Fica um minuto, lady Jane —interrompeu levantando-se. Fez-se cargo da caixa que trazia

o jovem e lhe estreitou formalmente a mão— Você deve de ser o senhor Thompson. Encantadode conhecê-lo.

—Horace Thompson, sim —confirmou o jovem piscando— Trouxe-lhe um… eh… umamostra. —Assinalou vagamente a caixa.

—Sim, está bem. Será um prazer dar uma olhada mas creio que a doutora Randall, aquipresente, também poderia colaborar. —Me deu uma olhada com um reflexo travesso nos olhos— Só quero ver se pode fazê-lo com uma pessoa morta, lady Jane.

—Fazer o que com um morto? —inquiri.Ele meteu a mão na caixa e tirou cuidadosamente um crânio.—Oh, que bonito —eu disse super feliz, fazendo-o girar de um lado a outro— Uma bonita

senhora —disse dirigindo-se tanto ao cránio como a mim ou a Horace Thompson— Bemdesenvolvida, madura. Tinha entre cinquenta e cinquenta e cinco anos. Trouxe as pernas? —perguntou, girando bruscamente para o jovem.

—Sim, aqui estão. Em realidade, temos todo o esqueleto. —Provavelmente trabalhava parao médico forense, que as vezes pedia assessoramento a Joe.

—A ver, doutora Randall. —Joe me pôs o crânio nas mãos— Me diz se esta dama gozavade boa saúde enquanto eu reviso as pernas.

—Eu? Não sou especialista.De qualquer modo, fiz girar lentamente o crânio nas mãos, observando os ossos. Depois o

apoiei no ventre, fechei os olhos e experimentei uma tristeza fugaz e uma vazia sensação de…surpresa?

—Mataram-na —disse— Não queria morrer.Ao abrir os olhos vi que Horace Thompson me olhava com os olhos muito abertos com a

cara pálida. Devolvi-lhe o crânio com muita timidez, perguntando:—Onde a encontraram?O senhor Thompson trocou uma olhada com Joe; depois se voltou para mim com as

sobrancelhas ainda levantadas.—Numa gruta do Caribe —disse— Estava rodeada de artefatos. Acreditamos que pode ter

entre cento cinquenta e duzentos anos.

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—Como?Joe sorria de orelha a orelha, desfrutando da brincadeira.—Nosso amigo, o senhor Thompson, é do Departamento de Antropologia de Harvard —

revelou— Seu amigo Wicklow, que me conhece, pediu-me que desse uma olhada nesteesqueleto para dizer o que pudesse sobre ele.

—Que descaro o teu! —indignei-me. Imaginei que seria algum cadáver não identificado queo legista te enviou.

—Bom, não está identificada —disse Joe— E o mais provável é que continue assim. —Removeu e dentro da caixa, a etiqueta dizia: Cultivo Verde PICT— Vamso ver o que temosaqui.

E tirou cuidadosamente uma bolsa de plástico cheia de vértebras, que começou a alinharhabilmente, cantarolando.Por fim exclamou, triunfal:

—E agora! Escuta a palavra do Senhor! Por Deus, lady Jane, é um gênio. Olha isto.Horace Thompson e eu nos inclinamos, obedientes, sobre a fileira de vértebras. O largo

corpo do axis tinha um profundo canal; a apófisis posterior se tinha desprendido e a fraturaatravessava completamente o centro do osso.

— Se rompeu no pescoço? —perguntou Thompson com interesse.—Sim, mas creio que há mais. —Joe moveu o dedo pela linha da fratura— Olhe isto. O

osso não está simplesmente rompido: aqui desapareceu por completo. Alguém degolou estadama. Com uma faca —concluiu com deleite.

Horace Thompson me olhava com cara estranha.—Como soube que a tinham matado, doutora Randall? —perguntou.Senti que o sangue me subia à cara.—Não o sei —disse—. Eu…, senti.—É mesmo? —Piscou umas vezes— Que estranho.—O faz a cada momento —informou Joe enquanto media o fémur—, mas geralmente com

os vivos. Tem o melhor diagnóstico que tenho visto em minha vida. Como estava numa gruta?—Pensamos que se tratava de… uma escrava sepultada em segredo —explicou o senhor

Thompson.—Não, não era escrava.Horace piscou.—Tem que o ter sido —assegurou— Os objetos que encontramos com ela… eram de clara

influência africana.—Não —repetiu Joe. Deu um golpezinho ao longo fémur— Não era negra.—Como sabe? Pelos ossos? —A agitação de Horace Thompson era visível— Mas eu

achava que… esse estudo de Jensen… as teorias sobre as diferenças físicas entre raças foramdescartadas.

Ficou como um tomate.—Mas as diferenças existem —corrigiu Joe— Se você quer pensar que brancos e negros são

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iguais sob a pele, dê-se o gosto, mas cientificamente não é assim. Os negros têm ossos deproporções completamente diferentes. Essa dama era branca. Caucásica. Não tenho dúvida.

—Oh —murmurou Thompson— Bom, terei que pensar… isto é… Obrigado por estudá-la.Joe deixou escapar o riso quanto a porta se fechou depois dele.—Queres apostar que a levaram a Rutgers para pedir outra opinião?—Os acadêmicos não renunciam com facilidade a suas teorias —disse encolhendo-me de

ombros— Eu sei porque vivi muito tempo com um deles.Joe voltou com um grunhido.—Bom, agora que terminamos com o senhor Thompson e com seu defunto dama branca, o

que posso fazer por ti, lady Jane?Respirei fundo.—Preciso uma opinião sincera, de alguém em cuja objetividade possa confiar. Não, retiro

isso —corrigi— Preciso uma opinião e depois, segundo seja essa opinião, um favor, talvez.Não há problema —me assegurou Joe— Opinar, sobretudo, é minha especialidade. Me diz.—Sou sexualmente atraente? —inquiri.Seus olhos, que pareciam caramelos de café, tornaram-se completamente redondos. Depois

se semicerraram, mas Joe demorou em contestar. Observou-me dos pés a cabeça, com muitoatenção.

—É uma pergunta capciosa, não? —sugeriu— Quando eu responder, alguma feministasaltará da porta, gritando: «Porco machista!»

—Não —lhe assegurei— O que preciso, justamente, é uma resposta machista.—Ah, bom. De acordo. —Retomou sua inspeção enquanto eu me mantinha bem erguida—

Uma branca flacura, com muito cabelo, mas com um traseiro estupendo —disse por fim— Eboas tetas. Era isso o que queria saber?

Sim. —Abandonei a rigidez de minha postura— Era isso, exatamente. Não é algo que eupossa perguntar a qualquer um.

Ele ampliou os lábios num som silencioso.— Lady Jane! Então tens um homem à vista!O sangue me subiu às bochechas mas tratei de conservar a dignidade.—Não sei. Pode ser. Pode ser.—Pode ser, uma ova! Por Cristo, lady Jane, já era hora!—Deixa de tagarelar —disse—. Não é o que convém a um homem de tua idade e de tua

profissão.—De minha idade? Maltrata! —olhou-me astutamente— Ele é mais jovem do que voce. É

isso que te preocupa?—Não muito. —O rubor começava a ceder— Mas faz vinte anos que não o vejo. Voce é o

único que me conhece a mais tempo. Acha que mudei muito desde que nos conhecemos?Olhava-o de frente, exigindo franqueza. Ele tirou os óculos para me observar. Depois voltou

a pô-los.

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—Não —disse— Mas ninguém muda, a não ser que engorde.—Como que não?—Nunca foste às reuniões de antigos alunos? Quando vê alguém depois de vinte anos, em

uma fração de segundo pensas: «Por Deus, como mudado está!» Mas nos dois minutos,passada a impressão, dás-te conta de que é o de sempre, com alguns cabelos brancos e algumasrugas.

Depois perguntou suavemente:—É o pai de Bree?Levantei bruscamente a cabeça.—Como diabo se deu conta?Ele sorriu.—Quanto tempo faz que conheço a Bree? Dez anos pelo menos. —Mexeu a cabeça—

Parece muito com voce, lady Jane, mas nunca encontrei nada de Frank. Seu pai é ruivo, não? Eum bom pedaço de homem, ou tudo o que me ensinaram em genética era mentira.

—Sim —confirmei, sentindo entusiasmo ante aquela simples admissão. Não tinha falado deJamie com ninguém durante vinte anos. O prazer de poder mencioná-lo livremente eraembriagante— Sim, é grande e ruivo. Escocês.

Joe voltou a dilatar os olhos.—E Bree está agora na Escócia?Assenti.—É por Bree que devo pedir-te esse favor.Duas horas depois abandonei o hospital pela última vez, depois de deixar uma carta de

renúncia dirigida à direção, e todos os documentos necessários para a administração de meusbens até que Brianna fosse maior de idade. No último documento, que entraria em vigêncianessa data, deixava-lhe tudo a ela.

Ao sair do estacionamento experimentava uma mistura de pânico, pena e regozijo. Estava àcaminho.

CAPÍTULO 21Q.E.D

Inverness5 de outubro de 1968

- Eu encontrei a escritura. Roger falou excitado. Na estação de Inverness tinha contido comgrande dificuldade quando Brianna me abraçava e quando guardamos a bagagem. - otestamento de Lallybroch? - Eu inclinei no assento traseiro para poder ouví-lo apesar do ruídodo motor. - sim, a escrita que Jamie, seu Jamie, doa a propriedade a seu sobrinho, Jamie omenor. - Está no casarão - Brianna examinou - nós não ousamos trazê-la; Roger teve queassinar com sangue para que emprestassem a ele da coleção do SPA. Estava com a pele corada

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pela excitação e pelo frio; havia umas gotas da chuva em seu cabelo avermelhado. Eu sorricom uma mistura de afeição e de pânico a isso. Era possível que estava pensando sobre a nossaseparação? - Você não vai advinhar o que nós encontramos! - você encontrou - Roger apertouo joelho dela corrigindo. Ela correspondeu com um olhar intimo onde meus alarmes maternaisse ligaram em um instante. Como já está isso!

-Do que se trata?-perguntei. Sorriso de orelha a orelha-Já vai ver, mamãe-disse Bree com uma irritante presunção-Vê-disse vinte minutos depois ante o escritório do casarão.Na maltratada superfície havia um monte de papéis amarelos com as bordas manchadas e

escurecidas-É um texto de um artigo-me disse Roger, folheando um monte de volumes que tinham no

sofá- Foi publicado em um periodo chamado Forrester’s, impresso em 1765 por um talAlexander Malcolm en Edimburgo.

Engoli a saliva; a primeira vista o vestido me pareceu um pouco apertado:no momento emque eu separara de Jamie até 1765 haviam se passado 20 anos.

-Olha, aqui está a versão publicada. Voce ve a data? 1765. E coincide exatamente com estemanuscrito, somente não inclui algumas notas.

- Sim. É a escritura da propriedade-eu disse.-Aqui está.-Brianna fuçou apressadamente a primeira gaveta para tirar um papel muito

enrugado e protegido num fundo plástico.De meu punho e letra, dizia a escritura, executada com tanto esmero que somente o

exagerado vínculo mostrava seu parentesco com seu descuidado manuscrito, James AlexanderMalcolm MacKenzie Fraser. E embaixo das linhas onde estavam as assinaturas dastestemunhas. Em letra fina e pequena, <<Murtagh FitzGibbons Fraser»; embaixo com minhaletra grande e redonda, «Claire Beauchamp Fraser».

-É isto não é?-indicou Roger em voz baixa. Um leve tremor em suas mãos desmentia suaserenidade exterior-Tem tua assinatura.É uma prova indescutível…se caso precisármos-acrescentou dando uma olhada em Bree.

Ela sacudiu a cabeça desejando que os cabelos ocultem o rosto. Nenhum deles duvidava.Odesaparecimento de Gillian Duncan através das pedras, cinco meses antes, era prova suficienteda verdade de meu relato.

-É voce mesmo, mamãe?-Bree se inclinou, ansiosa perante as páginas-O artigo não estavaassinado.Quer dizer tinha assinatura, mas era um pseudônimo.- Sorriu-O autor assinou com asiniciais «Q.E.D.» A letra parece a mesma, mas não somos grafólogos. E não preciso levar,basta voce me dizer.

-Me parece que sim - Eu me sentia sufocada mas também muito segura, incrédula dealegria.-Sim, acho que foi Jamie que escreveu.

Q.E.D, precisamente! Senti um absurdo impulso de arrancar as páginas manuscritas dofundo para apertá-las entre as mãos e tocar a tinta e o papel que eu havia tocado. Era a provasegura de que havia sobrevivido.

-Há mais. -Na voz de Roger transludia o orgulho-Vê isto?É um artigo contra a Lei de

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Comércio Interior de 1764, condenando as restrições de exportação de licor das Terras Altasescocesas a Inglaterra.Aqui está.-Seu dedo se deteve subitamente em uma frase <<pois comose sabe ha muitos séculos,a liberdade e whisky andam juntos>> Essa frase está em dialetoescocês e entre aspas. A copiou de outra parte.

—A copiou de mím —expliquei suavemente— Eu lhe disse isso quando se preparava pararoubar o vinho do príncipe Carlos.

—Sim, eu recordo —confirmou Roger com los olhos brilhantes de entusiasmo.—Porém é uma citação de Burns —sinalizei , franzindo a testa — O escritor pode tomá-la

de… Burns já existía naquela época ?—Sim —respondeu Bree muito rápida adiantando-se a Roger— Porém em 1765 Robert

Burns tinha seis anos.—E Jamie, quarenta e quatro.De repente tudo parecía real. Ele estava vivo… havía estado vivo, me corrigí, tratando de

dominar minhas emoções. Apoiei os dedos trêmulos nas páginas manuscritas.—E se… —tive que interromper-me para tragar a saliva.—E se o tempo corre paralelo, como cremos… —Roger também se interrompeu, olhando-

me.Logo desviou os olhos para Brianna. Ela estava muito pálida porém mantinha os lábios e os

olhos firmes. Quando me tocou a mão, seus dedos estavam quentes.—Então podes voltar, mamãe —disse suavemente— Podes achá-lo.—Posso atendê-la, senhora?A vendedora me olhava como um pequinês desejoso de ajudar.—Tens mais vestidos antigos como estes? —Apontei o cabide que tínha diante de mím

cheio de saias largas e corpetes de encaixar, algodão e veludo.—Oh, sim. Hoje mesmo recebemos vários destes modelos de Jessica Gutenburg. Não são

preciosos? Por aquí, senhora. Onde está esse letreiro?O letreiro dizía: CAPTURE O ENCANTO DO SÉCULO XVIII, em grandes letras brancas.

Escolhi um de veludo de cor creme.—Esse lhe ficaría perfeito —assegurou a pequinesa.—Pode ser, porém não é muito prático. Pode sujar muito.—Oh, olhe esses vermelhos!—Muito vistosos. Não é necessaário passar por uma prostituta, certo?A pequinesa me olhou com sobressalto; logo decidiu que era uma piada e a festejou com um

risinho.—Este sím —disse com decisão— É perfeito para você.Na realidade, era quase perfeito: largo até o chão, com mangas três quartos terminadas em

encaixe, de uma cor dourado intenso com reflexos pardos e ambarinos.—Quer prová-lo? Por aquí.—Não sei —disse vacilante— É encantador, porém…

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—Oh, não vá pensar que é muito juvenil para você —me assegurou a pequinesa, muito séria—. Porém sem nada lhe daria mais de vinte e cinco anos! Bom, trinta, talvez —corrigiu senconviccão depois de lançar-me uma olhada.

—Obrigada —disse secamente—, porém não estava pensando nisso. Suponho que não hávestidos como este sem zíper, ou tem?

—Sem zíper? Eh… não, não creio.—Bom, não se preocupe. —Com o vestido pendurado no braço, me dirigi até o provador—

Se eu levar, os zíperes serão o menor dos meus problemas…

Capítulo 22Véspera de Todos os Santos

-Dois guinés de ouro, seis soberanos,vinte e três chilings, dezoito florins, nove peniques, deze meio peniques, e ….doze cobres.

Roger deixou cair a última moeda no monte tilinteante, depois procurou no bolso da camisa.- Ah, é isto. – Retirou uma pequena bolsa de plástico com pequenas moedas de cobre –

Doits – explicou -, a moeda escocesa de menor valor na época. As maiores somente teserviriam para comprar um cavalo ou algo assim.

- É curioso – comentei – estas moedas valem agora muito mais do que valiam então, mas oque se pode comprar com elas é mais ou menos o mesmo. Isto equivale a seis meses derendimentos de um pequeno agricultor.

- Esqueço que você conhece tudo isto – disse Roger -: quanto valiam as coisas e como sevendiam.

- É fácil esquecer – disse contemplando o dinheiro.No limite do meu campo de visão vi que Bri se aproximava subitamente de Roger, e ele

segurou automaticamente sua mão. Respirei fundo, desviando os olhos dos pequenos montesde ouro e prata.

- Bom, pronto. Saímos para comer alguma coisa?Jantaram numa das cantinas da Rua River sem falar muito. Clarie e Brianna dividiram um

dos bancos e Roger se sentou à frente. Apenas se olhavam, mas ele as via se tocando comfreqüência.

Perguntou-se como ele se comportaria na mesma situação. A todas as famílias chega omomento da separação, mas com mais freqüência é a morte que intervém para cortar os laçosentre pais e filhos. Quando se levantaram para sair apoiou uma mão no braço de Claire.

- Só para me satisfazer – disse – quer tentar algo?- Suponho que sim – disse ela sorridente – Do que se trata?- Passe pela porta com os olhos fechados. Quando estiver lá fora os abra. Depois vem me

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dizer o que foi que viu primeiro.Ela contraiu a boca, divertida.- Bem. Esperemos que o primeiro não seja um policial, ou terá que ir me tirar da prisão por

distúrbios na rua.- Desde que não seja um pato….Claire o olhou com estranheza, mas foi até a porta da cantina, obediente, e fechou os

olhos… Brianna a viu desaparecer.- Qual é a idéia, Roger? – perguntou levantando as sobrancelhas acobreadas – Patos!- É somente um costume antigo – explicou ele sem retirar os olhos da entrada – Samhain, o

dia de Todos os Santos, é uma das festas em que se costumava adivinhar o futuro. E umamaneira de adivinhá-lo era caminhar até o fundo da casa e sair com os olhos fechados. O queprimeiro via ao abri-los era um presságio para o futuro próximo.

- Os patos são maus presságios?

- Depende do que estão fazendo – disse ele com ar distraído -. Se têm a cabeça embaixo daasa significa a morte. Por que está demorando tanto?

- Seria melhor que fossemos ver – sugeriu Brianna nervosa.Mas no momento em que estavam chegando na porta, o vitral escureceu e viram aparecer

Claire um pouco agitada.- Não imaginam o que vi primeiro! – exclamou rindo.- Não seria um pato com a cabeça embaixo da asa? – perguntou Brianna preocupada.- Não. Um policial. Virei á direita e me choquei nele.- Vinha em sua direção? – Roger se sentia inexplicavelmente aliviado.- Sim, quase o empurrei de frente.- Indica boa sorte – assegurou Roger sorrindo – Se no Samhain você vê um homem vindo

em sua direção significa que encontrará o que busca.- Verdade? – ela o olhou com ar intrigado. Logo seu rosto se iluminou com um sorriso

súbito -. Estupendo! Vamos celebrar em casa, querem?- A reserva nervosa que haviam mantido durante todo o jantar parecia ter-se desvanecido

subitamente, substituída por uma espécie de entusiasmo.- Já tem o dinheiro – comentou Roger pela décima vez.- E a capa – acrescentou Brianna.- Sim, sim, sim – confirmou Claire impaciente -. Tudo o que necessito, ao menos, tudo o

que posso levar – corrigiu. Depois de uma pausa, apertou impulsivamente as mãos de Bri e deRoger.

- Obrigada, obrigada aos dois – disse com os olhos úmidos e a voz rouca -. Não possoexpressar o que sinto. Mas vou sentir muitas saudades de vocês, queridos!

Bri e ela se abraçaram. Quando se separaram, entre soluços, Claire apoiou uma mão na

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bochecha de sua filha.- Seria melhor se eu subisse – murmurou – Ainda tenho coisas a fazer. Até amanhã,

pequena. - Se colocou na ponta dos pés para dar um beijo no nariz de sua filha e saiuapressadamente.

Brianna voltou a sentar-se, dando um suspiro profundo. E ficou contemplando o fogoenquanto girava lentamente um copo de coca-cola entre as mãos. Roger foi fechar as janelas ecolocar ordem no quarto. Quando se virou para Brianna a viu ainda imóvel, com o olhar fixono mesmo lugar. Sentou-se junto a ela e pegou sua mão.

- Talvez possa regressar – lhe disse suavemente – Não o sabemos.- Não creio – replicou ela – Já te contei como era. Talvez nem se possa cruzar.Roger lançou um olhar para a porta para se assegurar que Claire já estava no andar de cima.- Seu lugar é junto dele, Bri – disse – Não percebe? Quando diz seu nome….- Percebo. Sei que necessita dele. – O lábio inferior lhe tremia um pouco - . Mas….eu

também preciso dela!Roger acariciou seu cabelo, maravilhado com a suavidade dos fios que deslizavam entre

seus dedos. Queria abraçá-la, mas ela estava rígida e insensível.- Você já é maior, Bri – objetou – Já vive sozinha, não é? Pode a querer, mas não a necessita

como quando era pequena. Não te parece que ela tenha o direito de ser feliz?

- Sim, mas….não compreendes, Roger! – explodiu. E se virou para ele com os lábiosapertados, engolindo a saliva com dificuldade -. Ela é a única coisa que me resta. Ela e papai…Frank – se corrigiu – eram os que me conheciam desde sempre, os que me viram dar osprimeiros passos, os que se orgulharam quanto me destacava na escola.

As lágrimas a interromperam, deixando rastros brilhantes à luz do fogo.- É como se … existissem tantas coisas que não sei…Oh Roger, se ela vai não restará

ninguém no mundo que me considere especial só por ser eu mesma. Ela é a única pessoa aquem importa que eu tenha nascido….Se se vai….

Colocou-se de pé, com as mãos apertadas na boca contraída pelo esforço de dominar-se.Logo relaxou os ombros e sua alta silhueta perdeu a tensão.

- O que estou dizendo é bobo e egoísta – murmurou em tom razoável – Não me entendes eacreditas que sou muito má.

- Não – assegurou Roger em voz baixa. Aproximou-se para abraçar sua cintura com osbraços, recostando-se contra ela – Nunca o pensaria. Lembra-se daquelas caixas na garagem?

- Quais? – perguntou ela, tratando de rir – Existem centenas.- As que dizem ‘ROGER’. Estão cheias de trastes guardados por meus pais. Fotos, cartas,

roupas de bebê, livros e coisas velhas. Quando o reverendo me trouxe para viver com ele, asguardou com se fossem documentos históricos preciosos: em caixas duplas e protegidos contraas traças.

Se moveu lentamente, levando-a consigo enquanto contemplava o fogo por cima do ombrode Brianna.

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- Uma vez o perguntei para que as conserva se eu não queria nada daquilo. Mas ele me disseque era melhor guardá-las porque era a minha história. Disse que todos precisamos ter nossahistória.

- Alguma vez abriu essas caixas?Roger sacudiu a cabeça.- Não importa o que contenham – sussurrou – Só importa que estejam lá.Logo retornou para virá-la para ele.- Você se engana, sabe? – disse segurando suas mãos – Sua mãe não é a única que se

importa.Brianna estava deitada havia pouco tempo, mas Roger se dirigiu ao estúdio, contemplando

as chamas que morriam na lareira. O ruído dos passos na escada o arrancou de seupensamentos. Era Claire.

- Pensei que você estaria acordado – disse. Estava de camisola.Estendeu a mão e com um sorriso a convidou para entrar.- Nunca pude dormir no dia de Todos os Santos. Depois dos contos que meu pai me contava

….sempre me parecia ouvir os fantasmas a falar em minha janela.Riram juntos; logo se fez entre eles um daqueles silêncios incômodos que haviam marcado a

noite. Claire se sentou junto a ele, contemplando o fogo, suas mãos se moviam inquietas entreas pregas da camisola. A luz cintilava nos seus dois anéis de casamento, ouro e prata, emfaíscas de fogo.

- Eu cuidarei dela, já sabes – disse Roger por fim em voz baixa – Ou não sabes?- Sim – disse ela com suavidade.

Ele viu tremer as lágrimas em seus cílios. Claire procurou no bolso de sua bata e tirou umgrande envelope branco.

- Você dirá que sou uma covarde miserável, e está certo. Mas…francamente…não acreditopoder fazê-lo. Despedir-me de Bri, quero dizer – Fez uma pausa para dominar a voz. Depoislhe deu o envelope. – Coloquei tudo por escrito…tudo o que pude…Faz??

Roger pegou o envelope, quente pelo contato com seu corpo.- Sim – disse com voz rouca – Isso significa que você irá….- Cedo – confirmou ela respirando fundo -. Antes do amanhecer. Combinei com um carro

para que viesse me buscar – retorceu as mãos no colo – Se me… – Mordeu o lábio, e olhousuplicante para Roger – Não sei, compreende? Não sei se poderei fazê-lo. Tenho muito medo.Medo de ir. Medo de não ir. Medo, simplesmente.

- Eu também o teria.Estendeu a mão e Claire a aceitou. Depois de um momento, a estreitou e soltou.- Obrigada, Roger – disse – Obrigada por tudo.Se inclinou para um beijo ligeiro em seus lábios. Depois se foi como um fantasma branco na

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escuridão do vestíbulo levado pelo vento do Halloween.

CAPÍTULO 23Craigh na Dun

O ar do amanhecer era frio e brumoso, me alegrei em levar a capa.-Aqui? - perguntou o taxista dando uma olhada hesitante na paisagem deserta - Está segura?-Sim - disse meio sufocada pelo terror - É aqui.-Sim? - Ainda duvidava, apesar do dinheiro que acabava por em suas mãos - Quer que eu a

espere, senhora? Ou voltarás mais tarde?Senti uma forte tetação de aceitar. E se me faltar coragem?-Não - respondi engolindo saliva - Não, não é necessário.Sim não podia faze-lo teria que voltar a Inverness caminhando, isso era tudo. Talvez Roger

e Brianna viriam me buscar; isso me parecia pior. Ou seria um alívio?Lá estava eu andando.Não podia. Pensei em Bree, tal como a ví na noite anterior, aparetemente dormindo em sua

cama. Entrei em pánico enquanto comecei a perceber a proximidade das pedras. Alaridos, caos,a sensação de desgarramento. Não podia.

Não podia mas continuava escalando, com as mãos suadas; meus pes se moviam como se jánão estivessem mais o controle.

Quando cheguei lá em cima já havia amanhecido. A neblina ficara pra trás. As pedras sefaziam nítidas e escuras embaixo do céu cristalino.

Estavam sentadas em sua grama, frente a pedra fendida, frente a frente. Ao ouvir meuspassos, Brianna girou até a mim.

Eu a olhei fixamente, muda de estupefação. Usava um modelo de Jessica Gutenburg muitoparecido com o que eu vestia, mas de uma cor verde lima.

-Essa cor em voce fica horrível - observei.-Não tinha nenhum com o tamanho trinta e oito - respondeu com serenidade.-Em ome de Deus, quer me dizer o que estás fazendo aqui? - perguntei- Viemos para se despedir - disse Bree com um semisorriso nos lábios.Olhei a Roger, que se encolheu um pouco nos olbros.- Ah Sim. Bom.A pedra se alçava por detrás de Brianna; sua altura duplicava a de um homem.- Se voce não for - disse ela com firmeza - eu irei.

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- Voce? Você está louca?- Não. -Enguliu saliva dando uma olhada na pedra fendida. Talvez era esse tom verde lima

que dava em seu rosto uma certa palidez. - Estou certa de poder cruzar. Quando GillianDuncan passou através das pedras, eu ouvi. Roger também. - Lhe deu uma olhada, buscandoconsolo; logo voltou a fitar os olhos em mim - Não sei se poderia encontrar Jamie Fraser,talvez somente tu possas faze-lo. Mas se não estás disposta a tetar, eu farei.

Abri a boca mas não encontrei nada que dizer.-Não se da conta, mamãe? Ele deve saber. Deve saber que voce conseguiu, o que fez por nós

o que desejava. Nós o devemos, mamãe. Alguém tem que achá-lo para dizer. Me tocou asmãos. - Dizer que eu nasci.

-Oh, Bree - exclamei com a voz tão sufocada que apenas pude falar - Oh, Bree!Ele se entregou a mim - continuou ela em um tom quase inaudível. - Agora tenho que

devolver a ele, mamãe.Aqueles olhos, tão parecidos com os de Jamie, me olhavam inundados pelas lágrimas.- Se encontrá-lo… - sussurrou - Quando encontrares meu pai…dê isto a ele. - Se inclinou

para me dar um beijo; logo ergueu as costas e me fez girar para a pedra - Olha, mamãe - dissesem alento - Eu te amo.

Pelo canto do olho eu vi Roger se aproximando dela. Dei um passo; logo, outro. Ouvi umruido, um vago rugir. Dei o último passo e o mundo desapareceu.

SEXTA PARTE

Edimburgo

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CAPÍTULO 24

1. Malcolm, tipógrafo

Meu primeiro pensamento coerente foi: <<Está chovendo. Isto deve ser Escócia>> Abri umolho com certa dificuldade. Tinha a pálpebra grudada; sentia o rosto frio e inchado, como deum cadáver submerso.

Estava chovendo, evidentemente: era uma suave e incessante barulho de chuva quelevantava a tenua bruma de gotas na colina verde. Me levantei e de imediato cai para trás.

Oscilando, fechei os olhos para protege-los do aguaceiro. Começava a ter uma pequenanoção de quem era e onde estava. Bree. Seu rosto surgiu rápido em minha memória com umasacudida que me arrancou uma exclamação, como se me tivessem dado um golpe no estômago.

Jamie. Aqui estava: é o ponto fixo que me havia apegado, meu único apoio racional.Respirei lenta e profundamente com as mãos cruzadas sobre meu coração palpitante,

buscando a imagem de Jamie.Mais uma vez me forcei erguer. Desta vez mantive erguida apoiando-me com as mãos.

Estava na Escócia, claro. Dificilmente poderia estar em outro lugar mas também era na Escociado passado. Ao menos eu esperava ser. Ao menos não era a Escócia que eu havia deixado.

Não tinha idéia alguma de quanto tempo havia passado desde que havia cruzado o círculo depedras. Bastante tempo eu imaginava, a julgar pelo estado de minha roupa; estava empapadaaté a pele.

Debaixo de mim havia umas baias, roxas e negras entre a erva.<<Muito apropriado>>,pensei vagamente divertida. Havia caído debaixo de uma sorveira, a proteção dos escocesescontra a bruxaria e os encantamentos.

Me segurei em seu tronco liso para me por em pé. Sempre apoiada a árvore olhei para onordeste. Por ali estava Inverness. Em automóvel e por estradas modernas, não demoraria maisde uma hora de viagem.

O caminho existia; divisa do contorno de uma tosca senda que rodeava a base da montanha;era uma linha escura e prateada entre a verde umidade das vegetações. Sem emoção, fazersessenta e tantos kilômetros a pé se parecia em nada a viajar de carruagem.

De qualquer modo, estava viva. E eu estava aqui. Agora sabia. Ao comprender queprovavelmente ficaria aqui para sempre, uma estranha calma se impõs aos meus medos evacilações.Não podia voltar. Não havia mais remédio a não ser avançar…em sua busca.

Começando a andar fiquei com calor. Me bastou uma rápida palmada para comprovar quemeu estômago vazio havia feito a viagem comigo. Exceto talvez: a ideia de andar sessentakilometros com estômago vazio não tinha nada de atrativo.

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Com um pouco de sorte, não seria necessário. Talvez haveria por aqui alguma aldeia comuma casa onde pudesse comprar um cavalo. De qualquer modo estava preparada. Meu planoconsistia em chegar a Inverness e ali pegar um deligência até Edimburgo.

Pensei em uma pequena livraria que eu passava todas as manhãs por lá, entre oestacionamento e o hospital . Um de seus cartazes dizia:<<Hoje és o primeiro dia do resto detuas vida>> E outro:<<Uma viagem de mil kilometros se inicia somente com um passo>>

O mais irritante das frases feitas, me diz,que todas elas tinham razão.Me soltei do serbal ecomecei a andar a colina abaixo, fazia meu futuro.

A viagem entre Inverness e Edimburgo foi longa e incomoda; ia em uma carruagem grandecom outras duas senhoras,um insuportável menino de uma das senhoras e quatro cavaleiros dediversos tamanhos e humores.

Junto a mim se sentava o senhor Graham, homem vivaz, já avançando nos anos, com umabolsa de cânfora pendurado na cintura como solução para dispersar os malignos humores dagripe.

Normalmente, o pudor das damas requer que a deligencia se disperse a cada hora para queos passageiros se dispersem pela vegetação, através do caminho.

Atrás um deles mudou, o senhor Graham descobriu que seu assento havia sido invadido pelosenhor Wallace, um jovem advogado rechonchudo. Os detalhes de seu trabalho de letrado nãome eram tão fascinantes como são, mas, nessas circunstãncias ,me tranquilizou um pouco notarsua obvia atração por mim.Passei várias horas jogando xadrez com ele em um pequenotabuleiro de bolso.

A expectativa de poder encontrá-lo em Edimburgo acabava que distraída devido asincomodidades da viagem e das complexidades do xadrez. A Malcolm: o nome me rondava amente como um hino de esperança. A. Malcolm. Teria que ser Jamie, sem dúvida. JamesAlexander Malcolm Mackenzie Fraser.

- Considerando o modo em que aconceteceu os rebeldes das Terras Altas depois deCulloden, seria muito razoável que, em um lugar como Edimburgo, utilizara um nome suposto- me havia explicado Roger Wakefield— Depois de tudo, era um traidor convicto. Ao queparece, isso se converteu em um costume para ele - falou com um ar crítico, observando omanuscrito da sátira contra os impostos - Para aquela época, isto se parece muito com arebelião.

- Sim assim era Jamie - disse secamente. Mas o meu coração saltitava ao ver aquelesgarranchos. Meu Jamie.

O tempo estava bom, apesar da estação, somente alguma chuva ocasional nos perturbava naviagem.

O completamos em menos de 2 dias, com quatro paradas para mudar os cavalos e tomar umar.

Em Edimburgo, a carruagem se deteve detrás de uma taberna de Boyd, próximo ao RoyalMile. Eu tinha as pernas entumecidas depois de estar tanto tempo sentada; ainda assim eu tinhapressa, com a esperança de escapar do pátio enquanto meus dignos companheiros estavamocupados com seus petences.Não tive sorte: O senhor Wallace me alcançou próximo da rua.

-Senhora Fraser - disseMe concederias o prazer de te acompanhar até ao seu destino? Sem

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dúvidas necessita´ra de ajuda para transportar sua bagagem.-Eh…Obrigada, mas… vou deixar minha bagagem a cargo do proprietário. Meu…Meu… -

Busquei freneticamente uma explicação - O servente de meu esposo virá depois buscá-lo.A cara redonda se alargou um pouco ao ouvir a palavra <,esposo>> mas se recuperou com

gentileza, fazendo uma reverência.- Compreendo. Permita-me expressar meu profundo agradecimento pelo prazer de ter vossa

companhia durante a viagem, senhora Fraser. Talvez voltamos a nos encontrar. - Se ergueupara estudar o tumulto que passava junto conosco - Vosso esposo virá buscá-lo? Me encantariaconhece-lo.

- Não. Me encontrarei com ele mais tarde - Eu disse-Foi um prazer encontrá-lo, senhorWallace, eu espero voltar a ve-lo.

Lhe estendi a mão com entusiasmo, com o qual eu acabei aturdindo-o com tempo suficientepara escapulir dentre a multidãode passageiros, transportadores e vendedores de ruas.

Me detive no meio da ladeira, ofegando como uma batedora de carteiras fugitiva. Aquihavia uma fonte pública em cuja beira me sentei para recobrar o folego.

Estava aqui, realmente. Edimburgo se alçava atrás de mim,das cintilantes alturas do Castilloaté ao Palácio Holyrood, ao pé da cidade.

Tinha muita fome; não havia comido nada desde o apressado café da manhã de purê ecordeiro fervido, pouco depois da alvorada. Ainda que levava um sanduiche em meu bolso masnão havia tido coragem de comelo, devido aos curiosos olahres de meus companheiros deviagem.

Eu tirei para devolve-lo novamente cuidadosamente. Manteiga de cacau e geléia comrabanadas no pão branco; estava bastante maltratado, achatado e com manchas purpuras dageléia no pão molahdo. Mas estava delicioso.

Depois de comer o último pedaço, rico e doce, de minha vida anterior, dpbrei a minha capa.Olhei para vistar ao redor, mas ninguém me olhava. Abrindo a mão, deixei que um pequena

capa plástica cair no chão. Mer perguntei se essa anacrônica presença lhe causaria danos comaquele objeto.

-Voce está se distraindo,Beauchamp - disse pra mim mesma - É hora de continuar.Eu me levantei, respirando profundamente. Logo segurei pela manga um entregador da

padaria.- Desculpa. Busco um tipógrafo, o senhor Malcolm. Alexander Malcolm - disse com uma

mescla de medo e entusiasmo. Deve haver alguma imprensa aqui em Edimburgo em nome deAlexander Malcolm?

-Oh sim, senhora. Rua abaixo, a sua esquerda. Carfax Close.Carfax Close. Dei um passo entre a multidão, próxima aos edifícios para evitar as ocasionais

chuvas que se lançavam pela ventania.Bem adiante inspirava a escura e baixa entrada de Carfax Close, do outro lado da Royal

Mile.Me detive ao vê-la, o coração me palpitava de tal modo que podia ter tido um ataque em um

metro de distância.

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Não chovia mas faltava muito pouco; a umidade do ar me enrolava o cabelo. Mas eu ajeiteina frente, sujeitando-o como pude na falta de espelho.Ao ver uma grande vitrine cilindrado,avancei às pressas.

Dentro do local havia uma mulher apoiada no balcão. Lhe acompanhvam 3 meninospequenos que vi de relance. O lugar era uma farmacia; com nome de Haugh, pintado sobre aporta, me provocou um calafrio de reconhecimento. Em minha breve temporada anterior emEdimburgo havia comprado algumas ervas ali.

-Que o diabo te leve pequeno rato! - dizia uma mulher a um menino pequeno - Não te dissemil vezes para manter suas mãos em seus bolsos?

- Desculpe - eu interrompi, empurrada por uma curiosidade irresistível.- Sim - Arrancada de suas chamadas maternais, a mulher me olhou inexpressivamente.- Estava admirando o seus filhos - eu disse, fingindo-me calma como pude - Que meninos

tão bonitos! Que idade eles tem?Ficou boquiaberta. O gesto confirmou a ausencia de vários dentes. Logo exclamou

tagarelando.- Oh, bom, que amavel é a senhora. É…esta, Maisri, tem dez anos. Acenou com a cabeça a

maior, que estava limpando o nariz na manga - Joey, oito e tira o dedo do nariz asqueroso! -Logo se voltou para dar uma palmadinha orgulhosa a mais pequena - A pequena Polly cumpriuseis em maio.

Nossa! - a olhei com assombro - Não posso crer que tenhas filhos com essa idade. Deve tercasado muito jovem.

- Oh, não!Nada disso. Eu já tinha dezenove anos quando Maisri nasceu!- Assombroso - disse. Busquei em meu bolso para oferecer um pequenique a cada um dos

meninos, que aceitaram com tímidas reverencias de gratitude - Eu os desejo um bom dia…eminhas felicitações pela tão encantadora família - disse a mulher.

Me afastei com um sorriso. Dezenove anos ao nascer a maior, que agora tem 10 anos. Amulher tem vintenove anos. Eu sou benzida por ter uma boa alimentação, higiene eodontologia, sem o desgaste das numerosas doenças e das duras tarefas físicas, eu pareciamuito mais jovem que ela. Respirei fundo, enchi o peito para tras e desmoronei nas sobras deCarfaz Close.

Era um beco largo e serpenteante; a imprensa estava no começo. Nos lados havia edificiosde locações e construções prósperas, mas somente no chão prestei atenção ao delicado letreirobranco que pendia junto a porta.

A. MALCOLM

IMPRESSOR E LIVREIRO

Livros, cartões de visita, panfletos, cartasAlonguei a mão para tocar as negras letras do nome. Malcolm. Alexander Malcolm. James

Alexander Malcolm MacKenzie Fraser. Talvez.

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Se demorasse um pouco mais perderia a coragem. Empurrei a porta e entrei.Um largo balcão cruzava o quarto frente com a porta, com um tampo aberto e uma estante

ao lado com várias bandeijas de caracteres. A porta aberta da porta de trás deixava a mostra umbloco de uma imprensa. Inclinado sobre ela, de costas para mim, estava Jamie.

-É voce, Geordie? - Perguntou sem se virar. Vestia camisa e calça de montar, nas mãos tinhauma pequena ferramenta com que estava fazendo algo dentro da imprensa - Voce demoroubastante. Conseguiu esse…?

- Aqui não é nenhum Geordie - disse. Minha voz saiu mais aguda que de costume - Sou eu.Claire.

Se ergueu com muita lentidão. Havia deixado crescer os cabelos: um grosso rabo de intensoruivo dourado, com reflexos de cobre. Me olhou sem falar. Um tremor lhe recorreu em seupescoço musculoso, como se para engulir a saliva, mas acabou não dizendo nada.

Era a mesma cara larga e cheia de bom humor, os mesmos olhos da cor azul escuro,enviesados sobre os altos pómulos de viking, a boca larga, com uma borda de sorriso. As linhasque rodeavam os olhos e a boca eram mais profundas, claro. O nariz havia mudado um pouco:a ponta estava mais afiada, se engrossava mais acima por uma antiga fratura.

Cruzei pela porta do balcão sem ver mais que seus olhos. Pigarrei.- Quando voce fraturou o nariz?A comissura de sua boca larga se elevaram um pouco.- Uns tres minutos depois de ver-te pela última vez…Sassenach.Havia uma vacilação no nome, quase que uma pergunta. Apenas nos separavam trinta

centímetros. Alonguei a mão para tocar na pequena linha da fratura.- És real - sussurou.Se eu havia parecido ver-lo pálido, em um momento seu rosto perdeu todo vestigio de cor.Seus olhos se puseram em branco. Caiu contra a porta, fazendo chover papeis e objetos

diversos que estava sobre a imprensa. Pensei, distraída, que caia com bastante graça para umser tão corpulento.

Era só um desmaio; quando me rodeei ao seu lado para afrouxar sua camisa, seus olhos jácomeçavam a piscar. Estava recobrando sua saudavel cor normal. Me sentei no chão com aspernas cruzadas para apoiar sua cabeça em meu colo e acariciei seu cabelo denso e suave.Abriu os olhos.

- Tão grave é? - eu perguntei sorrindo. Eram as mesmas palavras que eu havia dito no dia denosso casamento, sustentando a cabeça em meu colo, mais de vinte anos atrás.

-Tanto e mais, Sassenach - respondeu desenhando algo parecido com um sorriso. Se sentoubruscamente para me olhar fixamente - Meu Deus do Céu, és real, sim!

- Voce também. - Levantei o queixo para olhá-lo-Pensava…pensava que estava morto. -Queria falar com rapidez, mas minha voz me traiu.

Não sei quanto tempo passamos assim, sentados no chão empoeirado, abraçados e chorandoa saudade de vinte anos.

Ele envolveu os dedos em meu cabelo e tirou até soltá-los. Os grampos cairam, ressonando

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no chão como granizo. Eu tinha os dedos afundados em seu braço, como se pudessedesaparecer se ele não me prender fisicamente.

Eu mesma presa desse mesmo tremor, me segurei bruscamente pelos seus ombros para nãoperder. Me olhou desesperadamente, levantando uma mão para seguir a linha de meus ossos,uma e outra vez, sem prestar atenção nas lágrimas que me chorreava o nariz.

-Me dê isso - Lhe tirei o pano para soar com firmeza - Agora voce. - Houve um grasnido deganso estrangulado. Rí como uma menina, desfeita pela emoção. Ele sorrio também sem deixarde me olhar.

De perto eu não pude me conter para não tocá-lo. Me joguei contra ele, que levantou osbraços no mesmo tempo para me receber. Eu apertei até que rangesse as costas enquanto meacariciava as costas, repetindo meu nome muitas vezes.

Por fim pude soltá-lo e me incorporei um pouco. Ele deu uma espiada pelo chão, entre suaspernas, com o cenho franzido.

- Perdeu algo? -perguntei surpreendidaLevantou os olhos com um sorriso um pouco tímido.-Temia ter-me descontrolado a ponto de urinar-me, mas não. Eu havia sentado em um jarro

de cerveja.Um aromático charco de liquido pardo estava se estendendo pouco a pouco embaixo dele.

Com um grito de alarme, me coloquei em pé e o ajudei a fazer o outro tanto. Depois de um vãoesforço para avaliar os danos na parte de trás, Jamie se encolheu de ombros e optou emdesabotoar as calças. Se deteve ao sentir sentir descer pelas pernas, ficou ruborizado.

-Não tem problema -eu disse sentindo um intenso rubor cubrindo as bochechas - Estamoscasados. - Mas abaixei os olhos um pouco sufocada. - Eu acho, pelo menos.

Ele me olhou fixamente; logo um sorriso se curvou em sua boca larga e suave.- Estamos casados,sim. - Já livre das calças manchadas, avançou para mim.Alonguei a mão, tanto para dete-lo como para dar boas vindas. Se deteve a um palmo para

pegar minha mão. Seus dedos se detiverram em meu anel de prata.- Eu nunca tirei ele - balbuciei. Me parecia importante que ele soubesse.Me estreitou levemente a mão, sem soltar o anel.- Quero…- Engoliu saliva e buscou o anel de prata com os dedos, mais uma vez - Tenho

muito desejo de beijar-te - disse docemente - Posso?-Sim - sussurrei.Me puxou lentamente para sí, retendo a minha mão contra seu peito.- Faz muito tempo que não faço isto - eu disse. A sombra e o medo escureceu no azul de

seus olhos.- Eu tampouco.Me segurou o rosto entre as mãos, com muita suavidade, e apoiou a boca contra a minha.Não sabia dizer o que eu esperava. Uma repetição da fúria desatada que havia acompanhado

nossa separação final? Mas agora éramos desconhecidos, nos tocamos lentamente, pedindo eaceitando uma muda permissão com os lábios calados. Nós dois mantivemos os olhos

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fechados. Simplesmente, tinhamos medo de olhar-nos.Afastou os lábios dos meus, cruzando-os pelas minhas bochechas, os olhos.-Eu te ví tantas vezes… - me sussurou ao ouvido - Vinhas a mim com tanta frequencia…As

vezes quando sonhava. Quando tinha febre. Quando me sentia tão assustado e solitário quepedia para morrer.

Quando me fazias falta te via sempre,sorrindo, com o cabelo cacheado ao redor do rosto.Mas nunca dizias nada. E nunca me tocavas.

- Agora posso tocar-te.- Não tenhas medo - disse suavemente - Agora estamos juntos.Podiamos ter ficado indefinidamente assim, de pé e olhando-nos, se não houvesse sonado a

campanhia da porta. Soltei a Jamie para girar bruscamente. Um homenzinho fibroso, comrebelde cabelo negro, nos olhava boquiaberto da estrada com um pequeno pacote nas mãos.

- Ah, voce chegou, Geordie! Por que demorou tanto? - Perguntou Jamie.Geordie não disse nada mas seus olhos não perdiam a direção em seu patrão: com as pernas

desnudas, com camisa, calça e calçado espalhados pelo chão e eu em seus braços, com ovestido enrugado e meu cabelo solto. Seu rosto se enrugou com um cenho de censura.

- Me demito - disse com a rica entonação de um oeste da Escócia - Meu trabalho deimprensa é uma coisa, mas isso de trabalhar para um católico imoral é outra bem distinta. Faziaporque gostava de sua alma, homem, mas se tem orgias em seu negócio isto já é demais. Medemito!

Depositou o pacote no centro do balcão e girando sobre seus calcanhares, marchou até aporta.

-E ainda não é nem meio-dia - acrescentou.A porta se fechou estrondosamente atrás dele. Jamie ficou olhando-a por um momento;logo

se deixou cair lentamente ao chão, rindo tanto que seus olhos se encheram de lágrimas.- E ainda não são nem meio-dia! - repetiu secando as lágrimas - Oh, Geordie, por Deus!Não pude deixar de rir também,embora estivesse preocupada.- Não queria causar-te problemas - disse - Acredita que ele voltará?Sorveu pelo nariz, limpando o rosto com a manga da camisa.- Oh, sim. Vive cruzando a rua, em Wickham Wynd. Dentro de pouco tempo irei ve-lo

para…para explicar-lhe - disse. Me olhou como se estivesse começando a compreender - SabeDeus como!

- Tens outro par de calças? - perguntei recolhendo a outra para por a secar em seu balcão.- Sim em cima. Espera um pouco. Meteu seu largo braço no armário e tirou uma placa

letreira que dizia: VOLTO LOGO. Depois de colocá-lo na porta, fechou com trinco e se voltoupara mim.

- Quer subir comigo? - perguntou com os olhos faiscando, jogando o braço como umconvite. - Se não te parecer imoral…

- Por que não? - Tinha a risada a flor da pele - Por acaso não estamos casados?

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O andar superior se dividia em duas habitações, uma a cada lado do patamar, e um pequenobanheiro em frente. O quarto de trás estava obviamente dedicado a armazenar aos objetos daimprensa. E o outro era sobrio como uma cela monocal. Havia uma comoda com uma mão deceramica,uma pia de lavar as mãos, uma banqueta e uma cama estreita. Ao ve-lo deixei escaparum sopro; somente agora percebi que ele estava sozinho. Jamie dormia sozinho.

Um rápido visto ao redor me confirmou que não havia sinais de presença feminina. Meucoração voltou a bater em seu ritmo normal. Jamie, de costas pra mim, estava abotoando ascalças limpas mas notei um certo pudor tenso em seus ombros. Eu sentia uma tensão similarem seu pescoço.Um ave recobrados da impressão do reencontro, ambos tinhamos um ataque detimidez. Eu vi ajustando os ombros e voltando-se para mim.

- Me alegro muito ver-te, Claire - disse suavemente - Temia que jamais…bom.Se encolheu levemente os ombros e olhou em meus olhos.- E a criança? - perguntou.Quando sentia visivelmente eu seu rosto: esperança, medo e o

esforço em dominar ambas coisas.Alonguei a mão com um sorriso.- Vem aqui.Havia pensado muito em o que eu levaria se minha viagem através das pedras tivesse exito.Depois das acusações de bruxaria que haviam recaído sobre mim, devia ter muito cuidado.

Mas havia pouca coisa obrigada a levar, fossem quais fossem as consequencias se alguém olha-se.

Fiz ele se sentar ao meu lado em sua cama e tirei de meu bolso um pequeno pacoteretangular que tinha preparado em Boston com todo cuidado. Depois de retirar a proteçãoimpermeável, eu coloquei o conteúdo em suas mãos.

-Olha.As segurou com cuidado, como quem maneja um substancia desconhecida, possivelmente

perigosa.Suas mãos seguraram por um momento as fotografias. A cara redonda de Brianna recém

nascida estava em seus dedos, com os punhos pequenos curvados sobre a manta, com os olhosfechados e a boquinha apenas entreaberta com sono.

Jamie estava absolutamente pasmado pela fotografia. Apoiou as fotos contra o peito imóvel,com os olhos dilatados e fixos.

- Ela é a sua filha - disse. Voltei seu rosto atônito em minha direção para beijá-losuavemente em seus lábios.

Com um pestanejo voltou a vida.- Minha…ela…- Estava rouco pela impressionado pela fotografia - Filha. Minha filha.

Ela…sabe?- Sim. Olha o resto.Deslizou a primeira foto entre seus dedos: Brianna, Banhada de açucar em seu primeiro bolo

de aniversário, quatro dentes em um sorriso de travessura. Jamie emitiu um som inarticulado eafroxou os dedos.

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Brianna com dois anos, com seu traje de frio, redondas e com suas bochechas rosadas.Bree com quatro anos,com o tornozelo cruzado sobre o joelho oposto, com o cabelo

brilhando, pousando para o fotógrafo com sua roupa branca.Aos cinco, com sua primeira lancheira, pronta para pegar o ônibus que a levaria para o

jardim de infãncia.- Não permitiu que a acompanhasse; queria ir sozinha. É muito valente. Não tem medo de

nada.-Oh, Deus! - exclamou ao ver a foto de Bree com dez anos, sentada no chão da cozinha,

abraçada ao Smoky, nosso grande Terranova. Essa era colorida, seus cabelos brilhavam comforça contra a negra pelagem do cachorro.

Lhe tremiam tanto as mãos que já não podia segurar as fotos. Tive que mostrar as últimas:Bree, já maior, rindo ante o que havia pescado; de pé ante uma janela; ruborizada e com oscabelos remexidos depois de ter cortado a lenha, apoiada no cabo do machado. Essasmostravam seu rosto com todas as expressões que eu tinha captado: o nariz largo e a bocalarga, os altos pómulos de viking e os olhos rasgados; era uma versão mais delicada de seu pai,do homem que sentado em sua cama junto de mim, movia a boca sem dizer nada, deixandocorrer caladamente as lágrimas.

Eu o puxei contra meu peito, sentindo com força os ombros trêmulos. Minhas própriaslágrimas cairam em seu cabelo.

- Como se chama? - Por fim levantou o rosto, secando o nariz com o dorso da mão.Pegou as fotos com suavidade, como se pudessem desintegrar-se. - Que nome colocas-tes?- Brianna - disse orgulhosa.- Brianna? Que nome tão horrível para uma menininha!Dei um respingo, ante o golpe.- Não é horrível! - espetei - É um nome formoso. Além do mais, voce mesmo me disse que a

chamaria assim. Como que é horrível?- Eu te disse? - parpadeou.- Claro que sim! Quando…quando… na última vez que te vi. - Apertei os lábios para não

chorar.Depois de um minuto, já dominados pelos sentimentos, acrescentei-: Me disse que daria ao

bebê o nome de seu pai. Se chamava Brian, não é?- Sim está certo. - Era como se o sorriso lutasse em seu rosto para impor as outras emoções.

- Sim tens razão. Está certo. Só que…bom, imaginei que seria um menino.- E lamentas que não foi? - perguntei com uma olhada fulminante.Ele me deteve segurando pelos braços.- Não, não lamento. Claro que não! - Torceu levemente a boca - Mas não vou te negar que

isto é um verdadeiro golpe, Sassenach. E tu também.O olhei por um momento, imóvel. Eu sabia que tinha tido meses inteiros para me preparar e

ainda sim me tremiam os joelhos.- Suponho que sim. Não gostou que eu tenha vindo? - Engoli saliva - Quer…Quer que eu vá

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embora?Me apertou com tanta firmeza que deixei escapar um pequeno chiado. Ao se dar conta de

que estava me machucando, afroxou os dedos mas sem deixar de me segurar com firmeza.Estava pálido.

- Não - disse com alguma calma - Não quero.Eu…- Repentinamente apertou os dentes.Logo concluiu, com muita decisão - Não.

Deslizou uma mão para baixo para tomar a minha enquanto alongava a outra para asfotografias.

As apoiou em seu joelho para olhá-las com a cabeça inclinada, a fim de que eu não visse seurosto.

- Brianna - murmurou - Mas voce pronuncia errado, Sassenach. Se chama…Ele disse com uma estranha cadencia montanhosa, acentuando a primeira sílaba e

sussurrando apenas a segunda: Briina,- Briina? - repeti divertida.Ele assentiu com os olhos cravados nas fotografias.- Brianna. É um belo nome.- Me alegra saber que gostas.- Fala-me dela. - Seguia olhando com suas feições largas a menina coberta em seu traje de

neve. - Como ela era pequenininha? Qual foi a primeira palavra que disse quando aprendeu afalar?

- <<Cachorro>> Essa foi a sua primeira palavra. A segunda foi:<<Não>>!O sorriso se alargou em seu rosto.-Sim, essa é a que todas aprendem em seguida. Parece que ela gosta de cachorros? Formou

as fotos como leque, como se fossem cartas, buscando a foto com Smoky - Que cachorrobonito! De que raça é?

- ‘Terranova ‘ - Me inclinei para achá-la. - Aqui há outra em que ela está com um cachorroque um amigo meu deu de presente.

A luz do dia cinzento estava desvanecendo.De pronto, um feroz grunhido intenrrompeunosso diálogo; saiu de meu corpete do meu modelo Jessica Gutenburg. Tinha se passado muitotempo desde o último lanche.

- Tens fome, Sassenach - perguntou Jamie, com o qual me pareceu desnecessário.- Bom sim, agora que mencionas. Por acaso guardas comida em sua gaveta?Nos primeiros dias de nosso matrimonio, eu tinha adquirido o costume de guardar pequenos

lanches para calmar a constante apetite de Jamie. Ele se deitou a rir.- Por acaso sim.Mas agora não tem grande coisa aqui. Somente um par de omeletes

rançosos. Será melhor que te leve a uma taberna e…- Rápido se pos com cara de alarme - Ataberna, por Deus! Me esqueci do senhor Willoughby!

Antes de que pudesse se decidir, eu estava em pé, buscando meias limpas em sua cômoda.Me atirou uma omelete no colo.

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- Quem é o senhor Willoughby? - perguntei espalhando as migalhas.- Por todos os diabos - murmurou - Eu disse que iria buscár-lo ao meio-dia, mas me esqueci

por completo. Já devem ser quatro horas!- Em efeito. A campanhia foi tocada.- Por todos os diabos! - repitiu.Meteu os pés em um par de sapatos com fivelas de peltre, pegou o casaco pendurado no

cabide e logo se deteve ante a porta.- Me acompanhas? - perguntou ansiosoMe levantei, chupando os dedos para vestir a minha capa.- Não me poderia impedir nem com cavalos selvagens - lhe assegurei.

CAPÍTULO 25

CASA DO PRAZER

- Quem é o senhor Willoughby? - perguntei quando estavamos embaixo da arcada de CarfaxClose para olhar pela rua empedrada.

-É …um sócio meu - replicou Jamie me dando uma olhada cautelosa - Será melhor que voceponha um capuz. Está chovendo.

Lhe apertei a mão e ele devolveu em gesto, sorrindo.- Onde vamos?- Ao ‘fim do mundo’.O rugido da água dificultava a conversa. Afortunadamente, a taberna chamada ‘Fim de

Mundo’ estava apenas a dez metros; apesar da intensa chuva, minha capa apenas molhou

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quando agachamos a cabeça para passar debaixo do dintel.O salão principal estava abarrotado, quente e cheio de fumo, era um abrigo de refugio contra

uma tempestade lá fora. Havia muitas mulheres sentadas em seus bancos, mas a maioria dosclientes eram homens.Com a nossa aparição se levantaram algumas cabeças, algunscumprimentos a gritos e um movimento geral para fazer-nos sentar em uma das mesas largas.Obviamente, Jamie era bem conhecido em o ‘Fim do Mundo’.

- Não, senhora, nós não ficaremos - ele disse a jovem camareira - Eu vim somente parabuscá-lo.

A garota pôs os olhos em branco.- Ah, sim já era hora! Mither levou ele pra baixo.- Sim, eu me atrasei - se desculpou Jamie - Me atrasei por…um assunto.A garota o olhou com curiosidade mas logo se encolheu de ombros, dando a Jamie um

sorriso cheio de covinhas.- Não é nada, senhor.Harry o levou uma jarra de conhaque e desde então ele não tem mais

ouvido.- Conhaque, é? - disse Jamie em tom de resignação - E por acaso está acordado?Do bolso de seu casaco tirou uma bolsinha de couro, de lá extraiu varias moedas e deixou

cair nas mãos estendidas da garota.- Acho que sim - respondeu ela embolsando alegremente o dinheiro - Faz pouco tempo ouvi

ele cantando. Obrigado, senhor!Com um gesto de assentimento, Jamie se dirigiu para a parte do fundo do salão, indicando-

me que o seguisse para a cozinha. Em um canto havia uma pequena porta de madeira. Correu otrinco e abriu, deixando em descoberto uma escada escura que descia para o fundo da terra.

Os ombros de Jamie encheram por completo o estreito vão da escada, obstruindo a visão doque havia abaixo. Quando saiu ao espaço aberto divisei pesadas vigas de carvalho e uma fileirade enormes barris sobre uma larga tábua posta sobre o cavalete.

Ao pé da escada ardia uma tocha. O sótão estava com sombras e no seu interior pareciadeserto. Agucei o ouvido mas somente percebi o silencio da taberna. Nada se cantavacertamente.

- Tem certeza que está aqui?- Oh, sim. - Jamie parecia preocupado mais resignado - O pequeno verme tinha o escondido,

suponho. Sabe que não gosto que beba em lugares públicos.Levantei um sobrancelha, mas ele se limitou a avançar grandes passos entre as sombras,

murmurando bem baixo. No sótão ocupava bastante espaço; eu caminhava arrastando os pés naescuridão, muito tempo depois o perdendo de vista. Enquanto isso, sozinha em um círculo deluz que arrojava pela tocha,olhei com interesse ao meu redor.

Junto a fileira de tonel tinha várias caixotes de madeira empilhadas no centro do salão contraum estranho fragmento de muro que tinha estava suspenso em um metro e meio do solo econtinuava ao fundo. Devia de ser uns restos de um antigo muro levantado em 1513 pelosfundadores de Edimburgo para definir o limite da civilizada Escocia. Isso explicava o nome databerna.

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- Maldito verme. - Jamie surgiu entre as sombras com uma teia de aranha presa no cabelo euma expressão cenhosa - Deve estar detras da parede.

Com as mãos num modo de vaia, gritou algo em uma giria incompreensível; não se pareciasequer em gaélico. Um súbito movimento me fez desviar os olhos a tempo para ver uma bolaazul brilhante que voava do antigo fragmento da parede, até golpear a Jamie entre osomoplatos.

Ao ve-lo cair, corri até seu corpo.- Jamie! Você está bem?A figura prostada lançou alguns comentários grosseiros em gaélico e se ergueu com

lentitude, frontando a cabeça, que havia sido golpeada contra o chão de pedra. Enquanto isso, abola azul se havia convertido em uma silhueta de um chinês muito pequeno, que ria com muitoprazer, sua cara redonda e azeitonada brilhava de alegria e conhaque.

- É o senhor Willoughby, suponho? - eu disse ao aparecer.Deve ter reconhecido seu nome, pois sorrio de orelha a orelha assentindo com a cabeça; seus

olhos se reduziram a uma abertura cintilante. Disse algo em chinês, logo saltou pelo ar dandovarias voltas para trás em rápidas sucessões, para terminar fazendo graça com um sorrisotriunfante.

- Maldito piolho! Jamie se levantou limpando as mãos feridas em seu casaco. Com umrápido tapa, segurou o chinês pelo pescoço desiquilibrando-o até a direção da escada.

- Temos que ir. Rápido - Em resposta ao seu empurrão, a pequena silhueta vestida de azul seafroxou de imediato.

- Quando está sobrio se comporta bem - me explicou Jamie, pedindo desculpas carregando ochines pelos ombros - Mas não deve tomar conhaque. É pinguço.

-Estou vendo. De onde diabos o achas-te? Fascinada, segui a Jamie para cima. O rabinho dosenhor Willoughby se balançava como um metrônomo contra o casaco cinza de Jamie.

- Foi no caisMas antes de seguir, a porta de cima se abriu e nos encontramos de novo na cozinha da

taberna. A robusta proprietaria inflamou as bochechas com ar de reprovação.- Eu disse, senhor Malcolm - comentou - como bem sabes, eu não sou mulher de andar com

esse tipo de homem.Não é uma atitude conveniente para quem dirige uma taberna. Mas já tedisse que esse homenzinho amarelo não é…

- Sim, senhora Patterson. Já havia me falado - interrompeu Jamie. Pegou uma moeda dobolso e com uma reverência, entregou a corpulenta tarbeneira. - Agradeço muito vossatolerância. Não vai voltar a acontecer…espero - disse baixo.

Nosso regresso causou outra comoção, mas desta vez foi negativa. As pessoas caladasmurmuravam maldições. Pelo visto, o senhor Willoughby não era um fregues muito queridopor ali.

Proximo a porta nós encontramos um problema, havia uma opulenta jovem com vestidobastante decotado. Não me custou muito adivinhar sua ocupação principal.

- É ele - gritou apontando a Jamie com um dedo vacilante - Esse diabo asqueroso!Parecia ter dificuldade para centrar a vista. Seus companheiros olharam a Jamie com um

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interesse que se acentuou quando a jovem avançou movendo o dedo ao ar como se dirigisse umcoro.

- Ele! O anão de que eu falei, ele que me fez essa porqueira.Como o resto da mutidão, eu também olhava a Jamie com interesse, mas todos

compreendemos logo que a mulher não se referia a ele, sim ao seu acompanhante.- Desgraçado! - gritou a mulher dirigindo seus comentários ao senhor Willoughby-Verme!

Víbora!Aquele espetáculo aflito estava excitando aos seus companheiros; um deles, um moço alto e

corpulento, se levantou com os punhos apertados e com os olhos cintilantes do alcool.- É este? Quer que lhe dê uma boa, Maggie?- Nem tente, filho - o aconselhou Jamie mudando seu acompanhante de posição para

equilibrá-lo melhor - Volta para a cozinha, que já vamos embora.- Ah, sim? E voce é o rufião do pequenino aí, não? - O rapaz fez uma careta horrível

voltando o rosto enrrojecido para mim - Ao menos, tua outra rameira não é amarela. Lançou-me um olhar.E puxou a minha capa, deixando o corpete descoberto e decotado com modelo deJessica Gutenburg amostra.

- Parece bastante rosada - disse seu amigo com obvia aprovação.- Solta, filho da puta! Jamie girou , lançando fogo pelos olhos, com o punho livre apertado

em sinal de ameaça.- A quem estás insultando, chulo barato? - O primeiro dos jovens, que não podia sair de seu

assento atrás da mesa, se jogou por cima e se lançou ao Jamie.Ele se esquivou rápido, deixando que se espatifa-se de bruços contra a parede. Logo deu um

passo atá a mesa e descarregou com força o punho contra a cabeça de outro. Finalmente mepegou pela mão para arrastar-me a rua.

- Vamos - grunhou enquanto mudava de posição o chinês para segurá-lo melhor - Em umsegundo deixamo-os para trás.

Correndo viramos numa esquina e nos encontramos em um pequeno patio.- Que…diabos…voce fez?- ofeguei. Não conseguia imaginar o que podia ter feito aquele

chines pequeno a uma vigorosa moça como a tal Maggie.A julgar pela aparencia, ela podia te-lo esmagado como uma mosca.- Bom, é por causa dos pés, sabe? - explicou Jamie dando ao senhor Willoughby uma olhada

de irritada resignação.- Dos pés? - Involutariamente meus olhos se desviaram para os pés do chines, vendo

pequenos calçados de cetim preto com solas de feltro.- Não os dele - corrigiu - O das mulheres.- Que mulheres?- Bom,até agora se meteu com as rameiras. - Espiou pela arcada tratando de ver nossos

perseguidores. - Mas não sei o que poderia querer. Não o critico, é pagão.- Compreendo - disse antes que não era certo - O que?

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- Aí estão! Um grito ao extremo do beco interrompeu minha pergunta.- Caramba, pensei que haviam desistido. Vem por aqui!Nós fomos mais uma vez para um beco. Jamie me empurrou para um pátio cheio de tonel e

caixotes, onde meteu o corpo do senhor Willoughby em um barril cheio de lixo. Eu ofegavapelo desacostumado esforço, com o coração ao galope devido ao medo. Jamie, ruborizado pelofrio e exercício, tinha o cabelo remexido em distintas direções mas sua respiração era quasenormal.

- Faz este tipo de coisa com muita frequencia? - perguntei.- Não muita.Nos chegou um eco de pes que corriam, mas desapareceu e tudo ficou em silencio, tirando o

barulho da chuva nas calhas.- Se foram. Vamos ficar um pouco aqui, para estarmos seguros - Baixou um caixote para eu

me sentar e, depois de achar outro, se deixou cair com um suspiro, afastando o cabelo solto dorosto. - Eu sinto muito, Sassenach. Não imaginei que isto seria tão…

- Agitado? - Lhe devolvi com sorriso enquanto me secava uma gota de chuva na ponta donariz. - Não importa. Disse…Como sabe a respeito dos pés?

- Ele me disse, ele gosta de beber, sabe. - Jamie deu uma olhada no barril onde haviaescondido o seu colega - E quando bebe demais começa a falar dos pés das mulheres e dascoisas nojentas que ele gostaria de fazer com eles.

- Que coisas tão nojentas se podem fazer com um pé? - perguntei fascinada. - Eu acho queas possibilidades são limitadas.

- Não em absoluto - replicou rápido. - Mas não é algo que possamos discutir em plena rua.A nossas costas, do fundo do barril, surgiu um vago sonido. Me parece que o senhor

Willoughby estava fazendo uma pergunta.- Cala a boca, verme - disse Jamie grosseiro. Uma palavra a mais e será eu que te pisarei na

cara.Veremos se voce gosta.- Quer que alguém lhe pise na cara? - perguntei.- Sim voce. - Se encolheu de ombros como pedindo desculpas. Estava vermelho. - Não teve

tempo de explica-lhe quem era.- Ele fala nosso idioma?- Oh, sim, em certo modo, mas não sei se entende muito. Eu mal falo chines.- De onde vem o nome Willoughby? - perguntei,mas estava mais interessada em saber o que

fazia um chines com um respeitável impresor de Edimburgo.- Seu verdadeiro nome era Yi Tien Cho. Segundo dizem, siginifica <<o que se apoia no

céu>>.- Muito difícil de pronunciar para os escoceses desta zona? - Conhecendo a natureza insular

dos escoceses não me surpreendeu que não quiseram aventurar-se em linguisticas estranhas.Jamie, com sua facilidade para os idiomas, era uma anomalia genética.

- Bom, nem tanto. Mas se pronuncia mal como uma palavra gaélica. Me pareceu preferível

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chamá-lo de Willoughby.- Compreendo.Dei uma olhada por cim do ombro. Ao que parece,não tinha moradia pela costa. Jamie,

vendo meu gesto, se levantou.- Sim, já podemos ir. Eles devem ter voltado para a taberna.- Não tinhamos que passar pelo ‘Fim do Mundo’ para voltar a imprensa? - perguntei - Há

outro caminho?- É… não, não iremos para a imprensa.Eu não podia ver o rosto dele, mas notei uma certa reserva em sua atitude. Teria alguma

residência em outro ponto da cidade?Se inclinou para o barril, dizendo algo em chines com acento escoces.Era um dos sons mais

estranhos que eu tinha ouvido,algo como chiado de gaita quando se afinam. O senhorWilloughby respondeu com loquacidade, interrompendo-se com risinhos. Por fim saiu dobarril, mostrando sua pequena silhueta embaixo da luz de uma lampada distante. Desceu combastante agilidade e não tardou para se reclinar no chão, ante mim.

Tendo em conta que Jamie me havia dito sobre os pés, me apressei a dar uma passo pra trás.- Não, não tem problema, Sassenach - me assegurou Jamie apoiando uma mão

tranquilizadora em meu braço. - Ele está pedindo desculpas pela falta de respeito.- Ah, tudo bem. Olhei dubitivamente o senhor Willoughby,que tagarelava algo dirigindo-se

ao chão.Por fim saimos da Royal Mile. O edificio que Jamie nos levou estava discretamente oculto

em um pequeno beco. A porta se abriu a sua chamada. A mulher que apareceu, com um vela namão, era pequena e elegante, de cabelo escuro; Ao ver Jamie lançou um exclamação de algria elhe deu um beijo na bochecha. Minhas entranhas ficaram espremidas como um punho, mas metranquilizei ao ouvir ele chamando-a de <<Madame Jeanne>>. Não era apelativo que pudessedar a uma esposa…nem tão pouco a uma amante, com um pouco de sorte.

Ainda assim, algo naquela mulher me inquietava. Era francesa obviamente, mesmo falandoum bom inglês, e me olhava franzindo o cenho e um ar de desgosto.

- Monsieur Fraser - disse tocando em Jamie no ombro com uma possessividade que eu nãogostei nem um pouco. - Me permita umas palavras sozinhos?

Jamie entregou seu casaco a criada que vinha buscar e, dando-me uma olhada, avaliouimediatamente a situação.

- Claro, Madame Jeanne - disse cortesmente alongando uma mão para me conduzir a frente.- Mas antes…permitá-me apresentar a minha esposa. Madame Fraser.

- Vossa….esposa? - Eu não tive tempo de decidir se o rosto da mulher predominava com umpasmo ou horror. - Mas Monsieur Fraser… Tu trazes ela aqui? Eu diria…uma mulher…vai epassa, talvez não seja bom insultar as nossas jeunes filies… Mas uma esposa! Ficouboquiaberta,exibindo varios molares cariados. Logo se sacudiu bruscamente, recuperando suaatitude serena e me saudou tentando se mostrar gentil. - Bonsoir…Madame.

- Igualmente - disse cortés.- Meu quarto está preparado, Madame? - perguntou Jamie. Sem aguardar resposta, girou até

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a escada me levando consigo. - Vamos passar a noite aqui.Se voltou para olhar o senhor Willoughby,que havia entrado conosco, e lhe acenou com um

gesto interrogante, olhando a Madame Jeanne com as sombrancelhas arquiadas. Ela observouum momento ao chines; por fim deu uma energética palmada para chamar a criada.

- Averigua se Mademoiselle Josie está livre, Pauline, por favor - ordenou. - Depois levaágua quente e toalhas limpas a Monsieur Fraser e sua…esposa. - disse a última palavra comassombro.

- Ah, outra coisa, Madame, já que está sendo tão amável. - Jamie se inclinou do corrimãosorridente. - Minha esposa necessita de um vestido novo; seu guarda-roupa sofreu um delicadoacidente. Poderia proporcionar algo adequado pela manhã? Obrigado, Madame Jeanne.Bonsoir!

O segui em silencio pelos quatro degraus da escada.Minha mente estava um turbilhão.<<Rufião>>, o havia chamado o cara da taberna.Sem dúvida era somente um insulto, algoassim me parecia absolutamente impossivel.

Não sabia o que esperar, mas o quarto era bastante normal, pequeno e limpo. Ele tirou ocasaco molhado e, depois de colocá-lo despreocupadamente na cadeira, se sentou na cama paratirar os sapatos molhados.

- Meu Deus, estou morto de fome - disse - Espero que a cozinheira não tenha se deitadoainda.

- Jamie…- Tire a capa, Sassenach - indicou o cabide ao pé da porta - Estás empapada.- Sim. Bom…sim. - Traguei a saliva. - É que…é…Jamie. Porque estás morando permanente

num bordel?Esfregou o queixo um pouco assustado.- Eu sinto muito, Sassenach - disse - Não deveria ter te trazido aqui mas não me ocorreu

outro lugar onde pudesse arranjar um vestido em pouco tempo e servir-nos de um jantarquente. Além disso,tinha que por o senhor Willoughby onde não poderia meter-se emproblemas. Então de qualquer modo devíamos vir… - Olhou para a cama. - É muito maiscomoda que minha cama da imprensa. Mas talvez foi uma má ideia. Podemos ir se te parece…

-Isso não me incomoda - interrompi. - O que quero saber é por que tens um quarto numbordel? Também és um cliente?

- Cliente? - me olhou com as sombracelhas arqueadas. - Aqui? Por Deus Sassenach, quemvoce acha que eu sou?

- Maldito seja se voce for. Por isso pergunto. Vai me responder ou não?- Suponho que sim. Não sou cliente de Jeanne, mas ela é minha cliente…e das boas. Me

reserva um quarto porque meu trabalho me faz ficar na rua até tarde e eu gosto de ter a cama ecomida quente a qualquer hora. E intimidade. Este quarto é parte do meu acordo com ela.

- Então nesse caso, eu pergunto: Que negócio pode ter um impressor com uma dona debordel?

- Não. - Sussurou lentamente. Acho que a pergunta não é essa.- Não?

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- Não. Com um movimento leve, se levantou da cama para se aproximar de mim tanto queme vi obrigada a levantar a cabeça para olhá-lo. - A pergunta, Sassenach, é: Por que vocevoltou?

- Bonita pergunta me fazes! - Apertei as mãos contra a madeira áspera da porta. - Por quediabos achas que voltei?

- Não sei. - Sua voz escocesa sonava tranquila. - Voce voltou para ser novamente a minhaesposa? Ou somente para dar notícias de minha filha? Tu és a mãe de minha filha. Só por issoeu te devo minha alma, pela certeza de que não vivi em vão, de que minha filha está bem esalva. Mas passou muito tempo, Sassenach, desde que voce e eu éramos uma só pessoa. Voceviveu tua vida…lá. E eu a minha aqui. Não sabes nada do que eu tenho feito nem do que temsido. Voltou por que me desejas…ou porque se sentiu obrigada?

Senti um nó em minha garganta mas olhei em seus olhos.- Voltei porque…Achava que estava morto. Pensava que tinhas morrido em Culloden.- Compreendo - disse com suavidade. Bom, minha inteção era morrer. - Sorriu sem humor. -

Me esforcei bastante. - Levantou os olhos até mim. - Como descobriu que eu não haviamorrido? E mais, onde eu estava?

- Me ajudaram. Um jovem historiador, chamado Roger Wakefield, encontrou os registros eseguiu os seu rastro até Edimburgo. Então quando li «A. Malcolm» tive a certeza…, mepareceu que podia ser voce. - conclui, desolada.

- Sim compreendo. E então voce veio. Mas ainda sim. Por que?Por um momento eu o olhei sem falar.- Queres me dizer que não me quer aqui? - disse por fim. - Nesse caso…Sei que tens tua

vida feita. Talvez…outros laços…Ele se aproximou da janela para contemplarme.- Faz vinte anos que ardo por ti, Sassenach - murmurou. - Voce não sabe? Por Deus!Mas

não sou o mesmo que conheceste há vinte anos, não é? - Me deu as costas com um gesto defrustração. - Agora nos conhecemos menos quando nos casamos. - Quer que eu vá embora? -meu sangue me palpitava os ouvidos.

- Não! - Me segurou pelos ombros com tanta força que me joguei involutariamente para trás.- Não - repetiu com mais serenidade. - Não quero que voce vá embora. Eu já te disse. Mas…necessito saber.

Inclinou a cabeça até mim com uma pergunta estampada em seu rosto.- Voce me ama? - sussurou - Voce vai me aceitar, Sassenach, arriscando com o homem que

sou ao do homem que voce conheceu?Senti uma grande onda de alívio mesclando com temor.- Já é muito tarde para perguntar isso. - eu disse tocando a bochecha onde a barba começava

a aparecer. - Porque eu arrisquei tudo que eu tinha. Não importa quem és agora, Jamie Fraser.Sim. Eu te amo, te quero, sim.

A luz da vela cintilava eu seus olhos. Me pegou nas mãos e avancei, sem dizer nada, estavaem seu abraço.

- Tens uma coragem do diabo, não? Como sempre.

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- E tu? Sabe acaso como eu sou? Voce tão pouco sabe o que eu estava fazendo nestes vinteanos. Poderia ter me convertido em uma pessoa horrível.

- Acho que é possivel. Mas ti digo algo, Sassenach: Não creio que me importe.- Tão pouco a mim.Parecia absurdo sentir-me tímida com ele, mas assim era. As aventuras da noite, suas

palavras, tudo estava aberto ao abismo da realidade: os vinte anos não compartidos, o futurodesconhecido que se estendia mais a frente.

Uma batida na porta rompeu nossa tensão. A criada trazia o jantar em uma bandeja. Depoisde uma tímida reverencia dirigida e mim e um sorriso para Jamie, nos serviu o jantar (carnefria, caldo e pão de aveia quante com manteiga) e acendeu o fogo com uma mão prática eveloz. Logo se retirou murmurando.

- Boa noite.Comiamos lentamente, tomando cuidado somente em conversar sobre coisas neutras; eu lhe

contei como havia viajado desde Craigh na Dun a Inverness.Ele, por sua vez, me falou dosenhor Willoughby,a quem havia encontrado bebado perdido e meio morto de fome, caídoatrás de uma fileira de tonels no cais de Burntisland.

Falamos pouco das coisas pessoais mas enquanto comiamos me senti cada vez maispendente de seu corpo. Ao terminar o jantar, em sua mente também predominava a mesmaidéia. Ele esvaziou a taça de vinho e me olhou diretamente nos olhos.

- Voce quer…? - Se interrompeu com um rubor acentuado em suas feições mas tragou asaliva e continuou. - Quer vir a cama comigo? Quer dizer-acrescentou de pressa- , faz frio, nósestavamos molhados e…

- E não há nenhuma cadeira-terminei por ele - De acordo.Me virei até a cama, sentindo uma estranha mescla de entusiasmo e vacilação. Ele tirou com

rapidez a calça e as meias.- Me desculpe, Sassenach. Não me havia ocorrido ajudar-te em seus laços.<< Assim parece que não está habituado a desvestir mulheres>>, pensei sem poder contetar-

me, sorrindo ante a ideia.- Não são laços - murmurei, -mas se queres tirar uma mão com a parte de trás…Deixei no lado a minha capa e me voltei para ele, levantando o cabelo para deixar a gola do

vestido a vista. Houve um silencio desconcertado. Logo senti que deslizava lentamente umdedo em minha coluna vertebral.

- O que é isso? - perguntou.- Se chama zíper - expliquei. - Vê essa pequena lingueta que tem em cima? Basta escorregar

e tirar até abaixo.Os dentes do ziper se separaram com um rasguido; se afrouxaram as costas do vestido.Mer ergui ante ele, sem outra roupa que não os sapatos e as meias de seda rosada seguras

com ligas.Senti a urgente necessidade de puxar o vestido para cima outra vez, mas resisti com as

costas erguidas e o queixo alto.

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Ele não disse nada.- Queres dizer algo, por favor? - Exigi com voz tremula.Abriu a boca mas continuou mudo, movendo lentamente a cabeça de um lado ao outro.- Céus - sussurou por fim. - Claire…és a mulher mais linda que eu já ví.- Estás perdendo a visão - assegurei-Deve de ser glaucoma porque não tens idade para ter

cataratas.O comentário fez ele rir. Então vi que na verdade estava cego: os seus olhos brilhavam com

lágrimas, devido ao riso.-Tenho os olhos de falcão - respondeu igualmente convencido, -como sempre. Vem aqui.Me levou com gentileza até a cama e se sentou, comigo em pé entre os joelhos. Me deu um

beijo suave em cada peito e apoiou a cabeça entre eles.-Por Deus, poderia repousar a cabeça aqui para sempre. Mas tocar-te, minha Sassenach…

com a pele branca como alabrasto, as linhas largas de teu corpo…Senti o movimento de sua garganta ao tragar a saliva, a mão que descia pouco a pouco pela

curva da cintura e do meu traseiro.- Bom Deus - murmurou. - Não poderia olhá-la e manter as mãos quietas, ter tão próxima de

mim sem te desejar.Logo me deitou na cama e se inclinou para me beijar. Me tirou os sapatos e lhe busquei pelo

pescoço.- Quero ver-te- Bom, não há muito que ver, Sassenach - disse com um sorriso inseguro. - De qualquer

modo, o que está aqui é teu… se quiseres.Tirou a camisa e, depois de atirá-la ao chão, se apoiou com as palmas das mãos para exibir

seu corpo.Não sei o que eu esperava, mas ao ver o seu corpo desnudo me tirou o folego. Havia

mudado,mas eram sutis mudanças, como se o haviam posto em um forno para dar-lhe um bomacabamento. Sua pele havia escurecido um pouco, palidecendo até o branco puro da virilhacom as veias azuis se destacando em seu avermelhado pelo púbico. Era obvio que não mentiaao dizer que me desejava.

Quando o olhei nos olhos torci subitamente a boca.- Uma vez eu disse que seria sincero contigo, SassenachMe deitei a rir, com as lágrimas escorrendo em meus olhos- Eu também.Alonguei a mão, vacilante, ele me segurou. Nós ficamos imóveis. Cada um tinha uma

intensa consciencia do outro; havia sido impossível não tê-la. O quarto era pequeno e aatmosfera estava tão carregada que era visivel.

- Tens tanto medo como eu? - perguntei enfim, rouca.Ele me observou com atenção. Logo levantou uma sobrancelha.- Não acho que seja possível. Estás com a pele arrepiada. Tens medo, Sassenach, ou é só o

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frio?- As duas coisas - eu disse.- Cubra-te - ele rio.E me soltou a mão para pegar a colcha.Não deixei de tremer nem quando se deitou ao meu lado, mesmo ao calor de seu corpo me

causou uma forte impressão física.- Nossa, voce sim é que não tem frio! - disse voltando para ele.- Não. Suponho que o meu é medo, não?Me envolveu suavemente com os braços; ao tocar-lhe o peito senti sua pele eriçada.- Em nossa noite de casamento também tinhamos medo. Voce segurava em minhas mãos.

Disse que se nos tocássemos seria mais fácil.Emitiu um leve sonido; meus dedos acabaram de encontrar uma teta.- É verdade - disse sufocado. - Por Deus tóca-me outra vez assim. Esticou subitamente as

mãos para me puxar contra ele. - Toca-me e deixa que eu te toque, minha Sassenach. Quandonos casamos - sussurou, - quando te vi ali, tão linda com o vestido branco, somente pudepensar no momento em que estivessemos sozinhos para tirar os laços e ver-te nua na cama, aomeu lado.

- E agora, me quer? - sussurei beijando a pele bronzeada da clavícula. Tinha um saborlevemente salgado. Sua pele cheirava ao fumo da lareira.

Em vez de responder se moveu bruscamente para me fazer sentir sua rígida virilidade emmeu ventre.

Foi tanto terror como o desejo me levou a apertar-me contra ele. Eu desejava, sim; medoiam os peitos e sentia no ventre tenso e entre as perna eu úmida pela excitação sexual. Mastão forte como a luxuria era o simples desejo de ser sua, de que me dominava, de que mepossuia com vigor para me fazer esquecer tudo.

Senti sua necessidade e o tremor de suas mãos que me rodeavam as nádegas, e suainvoluntaria sacudida em seu quadril, que me conteve em imediato. «Faça», pensei.«Façaagora mesmo, por Deus. e sem nenhuma suavidade!»

Não podia dizer-lhe. Eu via a urgencia em seu rosto, mas eu tão pouco podia dize-lo; eramuito cedo e muito tarde para trocar essas palavras. Mas nós dois haviamos compartilhadooutra linguagem que meu corpo ainda recordava. Pressionei com violencia o seu quadril contramim. Estávamos a um segundo da decisão final.

- Me dá a sua boca, Sassenach - pediu suavmente inclinando-se para mim.Sua cabeçabloqueou a luz da vela, deixando somente um vago resplendor e a escuridão de sua pele. Meabri a ele com um leve suspiro.Sua lingua buscou a minha.

Lhe mordi o lábio e ele retrocedeu um pouquinho, sobressaltado.- Jamie -disse -Jamie!Era tudo o que eu podia pronunciar, mas impulsionei o quadril contra ele, motivando a

violencia. Depois cravei os dentes em seu ombro. Ele me penetrou com força.- Não para, por Deus - exclamei.Seu corpo, ao ouvir-me, respondeu no mesmo idioma. Suas mãos que me seguravam os

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pulsos se esticaram. A força de seus embates me chegaram até ao ventre.Depois me soltou os pulsos e caiu um pouco sobre mim, imobilizando o meu quadril com as

mãos.Quando me retorci contra o seu corpo ele me mordeu o pescoço.Eu ficava quieta somente porque não podia me mover. Senti um palpitar nas costelas, mas

não sabia se era meu coração ou o dele.Depois ele se moveu dentro de mim. Bastou para provocar-me uma convulsão ao modo de

resposta.Indefesa embaixo de seu corpo, senti que meus espasmos o acariciavam, incentivando a

acompanhar-me.Arqueou as costas para trás, levantando-se sobre as mãos. Depois, lentamente abriu os olhos

para me olhar com infinita ternura.-Oh, Clarei - sussurou - Oh Clarei, por Deus.E se deixou levar, muito dentro de mim, sem mover-se. Por fim deixou cair a cabeça com

um soluço e o cabelo lhe ocultou o rosto. Cada sacudida entre minhas pernas despertava umgemido em mim.

Quando tudo havia terminado, muito suavemente, desceu para apoiar a cabeça sobre aminha e ficou como morto.

Por fim saí de meu extase; apoiei a mão na base do esterno, onde o pulso batia lento e forte.- É como andar de bicicleta, suponho - disse - Antes não tinha tanto pêlo em seu peito, voce

sabia?- Não - respondeu sonolento. - Não me ocorreu em contá-los. As bicicletas tem muito pêlo?Me pegou de surpresa e comecei a rir.- Não - eu disse, -quis dizer que recordamos bem como se fazia.Jamie abriu um olho para me dar uma olhada reflexiva.- Tinha que ser muito tonto para esquecer, Sassenach - comentou - Pode ser que perdi a

prática mas nunca haverei de perder todas minhas faculdades.Passamos depois bem quietos, sentindo a respiração do outro.O edifício era sólido e o ruido da tempestade afogava quase todos os ruidos interiores mas

de vez em quando se ouviam pisadas, uma risada masculina e a voz aguda de uma mulher.Jamie se agitou um pouco incômodo.- Tinha sido melhor levar-te a uma taberna - disse-Só que…- Não importa - lhe assegurei - Francamente, havia imaginado deitar contigo em muitos

lugares, mas nunca pensei em um bordel. -Não quero parecer intrometida mas tenhocuriosidade. - Voce…é…é o proprietário desta casa, Jamie?

- Eu? Meu Deus, Sassenach, quem voce acha que sou?- Bom, o que sou eu - disse com certa aspereza. - Quando te encontro, o primeiro que fazes é

desmaiar. Quando conseguiu se colocar em pé, nos atacam em uma taberna e nos perseguempor todo Edimburgo em companhia de um chines degenerado. E terminamos em um bordel…

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cuja Madame parece manter uma relação sumamente familiar contigo, por certo. Depois te tirara roupa, anuncia que és uma pessoa horrível, com um passado de depravação, e me levas paracama. O que posso pensar?

O riso ganhou o combate.- Bom, não sou nenhum santo, Sassenach - reconheceu - Mas tão pouco sou um rufião.- Me alegro em saber. - Houve uma pausa momentanea. - Tens intenção de me dizer o que

fazes? Ou devo ir enumerando as vergonhosas possibilidades até acertar por dedução?- É? - murmurou divertido pela sugestão. - O que voce supõe?O observei com atenção.- Bom, apostaria minhas enáguas que não és um impressor? - disse.Jamie alargou um sorriso.- Por que?Lhe cravei um dedo em suas costelas.- Seu estado físico está muito bom. Depois dos quarenta anos, quase todos os homens

começam a ganhar barriga. Voce não tem uma grama a mais.- Isso é porque não tenho quem me cozinhe - disse com melancolia. - Voce tão pouco estaria

gorda se comesse sempre em uma taberna. - Me deu uma palmada familiar em meu traseiro.- Não trate de me distrair - protestei recobrando minha dignidade. - Tão pouco tens os

músculos de quem trabalha como um escravo em uma imprensa.- Alguma vez já trabalhei em uma Sassenach? - Levantou uma sombrancelha depreciativo.- Não - reconheci-Não és um salteador?- Não - respondeu sorridente - Tenta outra vez.- Caloteiro?- Não.- Sequestros por resgate, não, não creio - disse, contando as possibilidades nos dedos. -

Ladrão? Não. Pirata?Não, impossivel ao menos que se tenha curado o mareado. Impostor?Difícil.

O olhei fixamente, deixando cair a mão.- A última vez que te vi eras um traidor mas isso não me parece um bom modo de ganhar a

vida.- Oh, sigo sendo um traidor - me assegurou - só que ultimamente não me têm condenado.- Ultimamente?- Passei vários anos encarcerado por traidor, Sassenach - recordou. - Pela Rebelião.Mas isso

faz tempo.- Sim, eu sabia.Dilatou os olhos.- Voce sabia?- Isso e algo mais. Te direi depois. Mais relaxado por um momento e voltamos a questão.

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Como ganhas a vida na atualidade?- Sou impressor - disse sorrindo de orelha a orelha.- E também traidor?- E também traidor. E nos último anos me prenderam duas vezes por rebelião.Mas não

puderam provar nada.- E o que vai acontecer se algum dia eles puderem provar?Agitou ao ar a mão livre.- Oh, me picotam, flagelam, prendem, deportam…Esse tipo de coisas. Não é provavel que

me enforquem.- Que alívio-eu disse.- Eu te adverti - recordou. Já não brincava. Seus olhos azuis estavam sérios e vigilantes.- É verdade - reconheci respirando profundamente.- Quer me deixar? - Falava com indiferença mas eu o ví segurando a colcha.- Não. - E sorri como pude.- Não voltei para fazer amor contigo uma só única vez. Vim para

ficarmos juntos…se me aceitar. - conclui.- Se te aceito? - deixou escapar em alento e se sentou na cama cruzando as pernas. - Não…

nem sequer posso dizer o que senti ao tocar-te, Sassenach, quando me dei conta de querealmente eras voce - Me recorreu com os olhos - Encontrar-te outra vez…e voltar a perder-te…- Se interrompeu.

Segui com um dedo a linha nítida do pómulo e da mandíbula.- Não me perderá - disse - Nunca mais. Mesmo que me digas que tens cometido bigamia e

que te arrastaram bêbado.Se afastou com brusquidão. Deixei cair a mão, sobressaltada.- O que foi?- Bem… - Se interrompeu franzindo os lábios - É que…-O que? Há alguma coisa que não me tenha dito?- Bom, imprimir panfletos sediciosos não é muito rentável - explicou.- Suponho que não. - Me estava acelerando outra vez o coração ante a perspectiva de novas

revelações. - Que outra coisa tem estado fazendo?- Só um pouco de contrabando - respondeu em tom de desculpa - Como atividade

secundária, sabe?- És um contrabandista? - O olhei fixamente - De que?- Principalmente, de whisky. E também um pouco de rum, bastante vinho francês.- Era isso! - As peças do quebra -cabeças se encaixaram: o senhor Willoughby,o cais de

Edimburgo e nosso alojamento atual. - Daí voce vinculou com este lugar. E tem feito queMadame Jeanne seja cliente sua.

- Claro - assentiu. - Dá muito resultado: quando o licor chega da França, o armazenamos emum dos sótãos desta casa. Jeanne nos compra diretamente uma parte e nos guarda o resto até

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que podemos despachá-lo.- Hum…e como parte do acerto - disse delicadamente - tens…é…Os olhos azuis se entrefecharam.- A resposta ao que estás pensando, Sassenach, é Não - disse com firmeza.- Não? - Me sentia sumamente pálida. - Assim que voce lê o meu pensamento? E diga-me, o

que estou pensando?- Estás se perguntando se as vezes cobro em espécie humana, verdade?- Bem, sim - admiti. - Mas isso não é assunto meu.- Não é assunto seu? - Arqueou as sombrancelhas ruivas e me segurou pelos ombros para

me aproximar dele.Parecia um pouco sufocado. - Não?- Sim - corregi igualmente sufocada. - E voce não fez?- Não. Vem aqui.Me envolveu entre seus braços. A memória do corpo não é como o da mente. Meu corpo o

conhecia e se correspondia de imediato, como se suas mãos tivessem separado de mim nãoanos atrás mas sim segundos antes.

- Tive mais medo desta vez do que em nossa noite de núpcias. - murmurei.- É mesmo? - Alongou os braços ao meu redor - Te assusto, Sassenach?- Não. Só que… a primeira vez… não achava que fosse para sempre. As vezes queria ir

embora.Soltou um leve suspiro.- E se foi, mas voltou. Estás aqui. É o que importa.Me erguei para olhá-lo. Tinha os olhos fechados.- O que pensou na primeira vez que fizemos amor? - perguntei.Abriu lentamente os olhos azuis para posá-los em mim.- Para mim sempre foi definitivo, Sassenach - disse sensivelmente.Pouco depois nós dormimos abraçados, com o ruido da chuva nas persianas.Foi uma noite sem sossego. Me sentia muito exausta para permanecer desperta um momento

mais, mas também muito feliz para dormir profundamente. Talvez temia que Jamiedesapareceria se eu ficasse dormindo. Talvez ele pensava o mesmo.

Em alguma hora profunda e silenciosa da madrugada, se voltou para mim sem dizer nada eeu para ele, e fizemos amor com ternura, sem falar.

Suave como um vôo de uma mariposa na escuridão, minha mão roçou a sua perna edescobriu uma fina cicatriz. A seguir com os dedos eu me detive no final, perguntando sempalavras: «Como?»

Sua respiração mudou com um suspirto. Me cubriu a mão com a sua.- Culloden - disse.Essa palavra sussurada era uma evocação da tragédia e morte…e de nossa separação.

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- Jamais te deixarei - murmurei. - Nunca mais.Pouco depois senti que voltava a mudar de posição.- Me descreve ela - sussurou - O que tem de voce e de mim. As mãos, são como as tuas ou

como as minhas? Me descreva para que eu a veja.Coloquei a mão junto com a minha. Era uma mão sana: dedos retos, unhas cortadas,

quadradas e limpas.- Como as minhas. - Minha voz sonava rouca por falta de sono. E na casa reinava o silencio.

Levantei os dedos uns dois centímetros. - Tens as mãos largas e finas, como eu, mas sãograndes: de dorso larog e com uma profunda curva próximo ao pulso…como a tua.E lhepalpita o pulso justo aqui, como voce. - Toquei uma veia onde o pulso se une com a mão. - Asunhas são quadradas, como as tuas. Mas tem o mindinho direito torcido, igual o seu. - pegueimostrando. - Tio Lamb me disse que minha mãe também tinha assim.Minha mãe haviamorrido quando eu tinha cinco anos. Não a recordava com nitidez mas pensava nela cada vezque via inesperadamente a minha própria mão.

- Tem esta linha. - continuei suavemente, contornando a curva entre a tempora e a bochecha.- Os olhos são como os seus, com as mesmas pestanas e as mesmas sombrancelhas. O nariz dosFraser. A boca é mais parecida com a minha, com o lábio inferior grosso mas largo como o teu.O queixo é pontiagudo como o meu, mas muito mais forte. É alta; mede quase um e oitenta.

Ao sentir a sua estupefação lhe toquei o joelho com o meu.- As pernas são tão largas como as tuas, mas muito mais femininas.- E tem esta veia azul, justo aqui? - Me colocou ternamente o polegar no espaço da tempora.

-E as orelhas tem as abas pequenas, Sassenach?- Sempre se queixou de suas orelhas; diz que sobressaem –eu disse. As lágrimas me

escorriam enquanto Brianna vinha receber a vida por nós dois. - Ela as tem furadas. Não seincomoda, não é?

Disse rápido para segurar as lágrimas. - Frank dizia que era vulgar e que não devia faze-lo,mas ela insistia, quando cumpriu dezesseis anos eu permiti. Me pareceu ruim proibi-la se eutinha as minhas furadas e todas as suas amigas também. Não queria…não queria…

- Fizeste bem - disse interrompendo a enxurrada de frases meio histéricas.Me estreitou comsuave firmeza. - Fizeste bem. Tem sido uma mãe maravilhosa, eu sei.

Eu chorava outra vez , fazendo ruidos tremendo contra ele.- Me deu uma filha, Mo Duinne - murmurou ele. - Estamos juntos para sempre. Ela está

bem. Viveremos para sempre, tu e eu.Me beijou levemente e apoiou a cabeça na almofada.- Brianna - sussurou com aquela estranha entonação montanhesa que fazia do nome algo

muito seu.Suspirou profundamente. Um instante depois dormia. Em seguida eu também dormi.

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CAPÍTULO 26

O café da manhã tardio das prostituta

Depois de vários anos respondendo aos telefonemas da maternidade e da profissão médica,tinha desenvolvido a habilidade de acordar completamente do sonho mais profundo. Jamie nãoestava na cama; sem alongar a mão nem abrir os olhos, soube que seu lugar estava vazio. Noentanto, ele devia de estar por perto. Girei a cabeça sobre o travesseiro, abrindo os olhos. Oquarto estava coberto por uma luz cinza que apagava todas as cores, mas marcava claramentena penumbra as linhas de seu corpo. Estava em pé junto à tina de água. Admirei as curvasredondas de suas nádegas, o pequeno oco musculoso que as fazia iguais e sua pálidavulnerabilidade.

Ele se voltou, sereno e um pouco distraído. Ao ver que o estava observando pareceuligeiramente sobressaltado. Sorri em silêncio; não me ocorria nada para dizer. Ele veio sentar-se na cama. —Dormis-te bem? —perguntei ao fim, estupidamente. Um amplo sorriso lhealargou a cara. —Não—disse— E voce? —Também não. —Senti seu calor, apesar da distânciae do frio do quarto— Não tens frio? —Não. Ficamos em silêncio, mas não podíamos deixar deolhar-nos. O observei com atenção, comparando minhas recordações com a realidade. —Ésmais corpulento do que recordava —aventurei. Ele torceu a cabeça para olhar-me com ardivertido. —E voce parece um pouco menor.

Minha mão se perdeu na sua; sentia a boca seca. Engoli a saliva. —Há muito tempo atrásvocê me perguntou se eu sabia o que existia entre nós dois —disse. —Me lembro —confirmoucom suavidade, pressionando brevemente os dedos sobre meu pulso— Como é… te tocar;deitar contigo. —Eu te respondi que não sabia. —Então eu também não. —O sorriso quase setinha esfumado, mas seguia ali, espreitando na comissura da boca. —E ainda não sei —prossegui— Mas… —interrompi com um pigarro. —Mas ainda existe —completou ele. Osorriso passou de seus lábios para seus olhos – Não?

Era verdade. Sentia-me tão consciente de sua presença como se tivesse tido um cartucho dedinamite aceso, mas a sensação tinha mudado entre os dois. Ao dormir junto éramos um sócorpo, unidos pelo amor da filha gerada pelos dois; mas ao acordar éramos duas pessoas…ligadas por algp diferente. —Sim. Isto é… Acha que é só por Brianna? Aumentou a pressão emmeus dedos.

—Se te quero por ser a mãe de minha filha? —Ergueu uma sobrancelha avermelhada, comar de incredulidade

—. Não. E não porque não te agradeça —disse apressadamente— Mas não é por isso. Creioque poderia observar-te durante horas inteiras, Sassenach, para ver em que você mudou e emque continua sendo a mesma. Só para ver pequenos detalhes, como a curva de teu queixo ou asorelhas, com essas pequenas perfurações. Tudo isso está igual que antes. O cabelo… eu techamava mo nighean donn, te lembras?

Sua voz era pouco mais do que um sussurro; acariciou meus cachos com seus dedos.—Suponho que isso mudou um pouco —disse. —Como carvalho sob a chuva —sorriu ele,

alisando uma mecha— Com gotas de água caindo das folhas, ao longo da crosta. Acariciei-lhe a coxa, tocando a

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longa cicatriz.—Quisera eu tivesse estado ali para atender-te —sussurrei— Foi o mais horrível que fiz em

minha vida: abandonar-te, sabendo que… que ias morrer. —Mal pude pronunciar a palavra. —Bom, esforcei-me bastante. —

Sua careta irônica me fez rir, apesar da emoção— Não foi culpa minha se não tive sucesso. —Jogou uma olhada indiferente à cicatriz

— Também não foi culpa do Sassenach nem de sua baioneta. Incorporei-me sobre umcotovelo, entornando os olhos para estudar a ferida. —Isso te fizeram com uma baioneta? —Bem, sim. É que infeccionou.

—Eu sei; encontramos o diário de lorde Melton, o que te enviou a tua casa do campo debatalha. Ele não acreditava que pudesses chegar. Ofegou. —E quase acertou. Quandoretiraram-me da carroça, em Lallybroch, estava quase morto. —Sua cara se anuviou pelasrecordações— Deus meu, as vezes desperto no meio da noite sonhando com essa carroça.Foram dois dias de viagem, com frio e febre.

—Deve ter sido horrível —reconheci, ainda que a palavra parecesse insuficiente.—- Só resisti porque imaginava o que faria com Melton para me vingar por ele não ter me

fuzilado. Ri outra vez. Jamie me olhou com um sorriso torto.—Não tem nada de divertido —reconheci engolindo saliva— Rio para não chorar.—Sim, eu sei. Estreitou-me a mão. Eu respirei fundo.—Não… não quis olhar para trás. Não me sentia capaz de averiguar… o que tinha

acontecido. —Mordi meu lábio; reconhecendo que parecia uma traição— Não é que tentara…que quisera…te esquecer —disse procurando torpemente as palavras

— Não podia. Jamais. Mas… —Não se aflija, Sassenach —me interrompeu dando-me umapalmadinha na mão

— Te compreendo. Eu também tentara não lembrar. —Mas se o tivesse feito —confesseibaixando os olhos ao lençol— talvez tivesse te encontrado antes.

—E então o quê? Terias deixado a nossa filha lá, sem a mãe? Teria voltado para mim apósCulloden, quando somente poderia te ver sofrer com os demais, sem poder cuidar de você, mesentindo culpado por te levar a este destino?— Ergueu uma sobrancelha interrogante; depoissacudiu a cabeça— Não: eu te disse que te fosses e que me esquecesses. Como poderia criticar-te por fazer o que te disse, Sassenach? —Mas teríamos tido mais tempo! Poderíamos…

Ele me interrompeu apoiando a boca na minha. Após um momento me soltou. —Sim, éverdade. Mas não podemos pensar nisso. —Olhou-me com firmeza, analisando— Não possoolhar pra trás e seguir vivendo, Sassenach. Se não tivéssemos mais do que a noite passada eeste momento, me bastaria.

- Para mim não! – protestei. Ele começou a rir.- Você é uma pequena ambiciosa.—Sim. A tensão se tinha quebrado. Voltei a concentrar-me em sua cicatriz.—Estavas-me contando como te fizeram isso.

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—Bem, foi Jenny… minha irmã, se lembra? Recordava-a, sim: tão morena como ruivo ele ebem menor, mas podia medir-se com seu irmão, e ainda superá-lo, em matéria de teimosia. —Disse que não ia deixar-me morrer —continuou ele com um sorriso melancólico— E ocumpriu. Ao que parece, eu não tinha direito a opinar sobre o assunto, porque não seincomodou em conferir-me.

—Muito próprio de Jenny. —Senti um leve fulgor de consolo ao pensar em minha cunhada:Jamie não tinha estado tão só como eu acreditava. —Deu-me poções para a febre e me pôscataplasmas na perna para retirar o veneno. Mas não deram resultado e minha perna piorava.Estava inchada e fedorenta; depois começou a pôr-se negra. Então pensaram que teriam quecortar-me para salvar-me a vida. Relatava-o com bastante despreocupação, mas eu me senti umpouco mal disposta. —É óbvio que não o fizeram —observe

i— Por que? —Bem, foi por Ian. Ele não o permitiu. Disse a Jenny que sabia muito bem oque era viver com uma só perna e, enquanto a ele não lhe molestava muito, estava seguro deque a mim não me agradaria, por muitas razões. O gesto da mão as abarcou todas: a perda docombate, da guerra, de mim, de seu lar e seu meio de vida, tudo o que compunha sua vidanormal.

—Então Jenny fez com que três dos arrendatários se sentassem em cima de mim paramanter-me imóvel. Depois me abriu a perna até o osso com uma faca de cozinha e lavou aferida com água fervendo —disse calmamente. —Santo céu! —balbuciei horrorizada. Elesorriu vagamente. —Bem, deu resultado. Engoli a saliva com dificuldade; tinha gosto de bílis.—Por Deus, poderias ter ficado inválido por toda a vida! —Bem, ela limpou a ferida o melhordo que pôde e depois a costurou. Disse que não me permitiria morrer, nem ficar inválido, nempassar o dia estendido na cama sentindo lástima de mim mesmo, nem… —Encolheu-se deombros resignado— Quando acabou de enumerar tudo o que não ia permitir-me, a única opçãoque restava era repor-me. Imitei seu riso. Ele alargou o sorriso ante a recordação. —Quandopude levantar-me, fez que Ian me levasse para fora depois de escurecer, para que caminhasse.

Um belo espetáculo! Ele, com sua perna de pau; eu, com minha bengala; os dois mancandodaqui para lá, como um par de cegonhas coxas. —- Você passou anos vivendo numa caverna,não é? Existe uma lenda sobre isso. Elevou as sobrancelhas, surpreso.

—Uma lenda? —Parecia envaidecido e envergonhado— Parece-me um tema bobo para umalenda. —Há algo mais dramático: que te fizeste entregar aos ingleses para cobrar a recompensaque tinham posto a tua cabeça —comentei mais seca ainda

— Não foi um risco bastante grande? — Imaginei que a prisão não seria tão horrível —confessou incômodo—, e tendo em conta tudo… Tratei de falar com calma, ainda que sentiadesejos de sacudi-lo com súbita e ridícula fúria retrospectiva.

—Que prisão nem prisão! Sabias perfeitamente que podiam enforcar-te, não? E mesmoassim o fizeste!

—Tinha que fazer algo. —Encolheu-se de ombros— Se os ingleses eram tão tontos parapagar um bom preço por um triste despojo… Bem, não há nenhuma lei que proíba aproveitar-se dos tontos, não é?

—Não sei quem era o tonto —manifestei sem olhá-lo— De qualquer modo, deves saber quetua filha está muito orgulhosa de ti.

—É sério? —Parecia estupefato. —Claro. É um herói, não? Jamie enrijeceu.

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—Eu? Não! —Passou uma mão pelo cabelo, como costumava fazer quando estava pensativoou confuso — Não teve nada de heróico nisso. Eu… não agüentava mais. Ver que todospassavam fome e não poder cuidá-los… Jenny, Ian e os meninos, todos os arrendatários e suasfamílias… —Olhou-me com ar indefeso— Não me importava que os ingleses me enforcassemou não. Imaginei que não o fariam, pelo que voce me tinha dito, mas ainda pensando ocontrário o teria feito. Mas isso não foi coragem, Sassenach, em absoluto.

—Compreendo —disse suavemente depois de uma pausa— Compreendo. - De verdade? –Estava sério. —Conheço você, Jamie Fraser.

—De verdade? —repetiu. Mas um leve sorriso lhe sombreava a boca.—Creio que sim. O sorriso se alargou, mas antes que pudesse falar bateram à porta. Dei um

pulo, como se tivesse tocado num ferro quente. Jamie, rindo, deu-me uma palmada no quadril efoi abrir.

—Não creio que seja a polícia, Sassenach, senão a criada com o café da manhã. E estamoscasados, não? —Ergueu uma sobrancelha interrogante.

—De qualquer modo, não deverias vestir alguma coisa? —perguntei no momento em quetocava na maçaneta da porta. Olhou-se. —- Não acredito que as pessoas desta casa sehorrorizem com algo assim, Sassenach. Mas devo respeitar tua sensibilidade. —Dirigindo-meum largo sorriso, pegou uma toalha do lavatório para envolver o quadril com algum desleixo.

Divisei no corredor uma alta silhueta de homem e de imediato me cobri com os lençóis até acabeça. Ao ouvir a voz do visitante me alegrei de estar momentaneamente fora de seus olhos.

—Jamie? —Parecia bastante sobressaltado. Reconheci-o de imediato, apesar de não o terouvido em vinte anos. Espionei por embaixo dos cobertores.

—Claro que sou eu —disse Jamie bastante irritado— Para que tens os olhos, homem? Fezseu cunhado entrar no quarto e fechou a porta.

—Já vejo que é você —replicou Ian com um pouco de aspereza—, Mas não podia acreditarem meus olhos! Vi fibras cinzas no cabelo castanho e na cara e as rugas de muitos anos detrabalhos pesados.

—O moço da tipografia me disse que não tinhas passado a noite lá. E esta era a direção àque Jenny te enviava as cartas —disse—. Mas nunca pensei que te encontraria num prostíbulo,Jamie! Não estava seguro, quando essa… essa senhora me abriu a porta. Mas depois…

—Não é o que imaginas, Ian —advertiu Jamie. —Ah, não? E Jenny temendo que caíssesenfermo por viver tanto tempo sem mulher! Lhe direi que não tem por que preocupar-se. Eonde está meu filho, diga-me? Em outro quarto, com alguma outra mulherzinha?

—Teu filho? —A surpresa de Jamie era evidente— Qual? Ian olhou a Jamie. Em sua caralonga e singela, o enfado se tinha convertido em alarme.

—Não está contigo? O pequeno Ian não está aqui? —O pequeno Ian? Por Deus, homem,como podes crer-me capaz de trazer a um bordel um garoto de quatorze anos! Ian abriu a boca.Depois voltou a fechá-la e se sentou no banquinho.

—Se queres que te diga a verdade, Jamie, já não sei do que és capaz. —Olhou ao seucunhado com os dentes apertados

—Em outros tempos eu sabia, mas agora já não.

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—Que diabos queres dizer com isso? —Vi enfurecer-se a expressão de Jamie. Ian deu umaolhada à cama. Jamie seguia corado, mas vi que lhe tremia a comissura da boca. Inclinou-senuma complicada reverência.

—Peço-te perdão, Ian. Estou faltando com à boa educação. Permita-me apresentar a minhaesposa. Aproximou-se à cama e retirou os cobertores.

—Não! —exclamou Ian, levantando-se de um pulo e olhando para qualquer coisa menos acama.

—- O que? Não vai saudar minha esposa?—Tua esposa? —Ian o olhou com horror— Você se casou com uma rameira?—Eu não diria isso exatamente —intervim. Ao ouvir minha voz, Ian voltou bruscamente a

cabeça para mim.—Oi —saudei, agitando alegremente a mão do meu ninho de lençois—Quanto tempo sem

ver-nos. Sempre tinha pensado que os livros exageravam ao descrever a reação de quem viaum fantasma, mas ante o visto desde meu retomo ao passado teria que revisar minhas opiniões:Jamie tinha desmaiado. Ian não tinha, literalmente, os cabelos de pé, mas sim, parecia louco desusto

- Isso te ensinará a não pensar tão mal de mim – disse Jamie com evidente satisfação.Depois, compadecido de seu trêmulo cunhado, o serviu de um pouco de conhaque – Julgueis esereis julgados, não?

—Que…? —exalou Ian soluçando ao olhar-me— Como…?—É uma longa história —eu disse. Jamie assentiu com a cabeça– Não acredito conhecer o jovem Ian.Desapareceu? —perguntei cortesmente.Ele assentiu mecanicamente, sem tirar os olhos de mim.—A sexta-feira passada fugiu de casa —disse aturdido— Deixou um bilhete dizendo que viria encontrar-se com seu tio. Bebeu um gole de

conhaque que lhe fez tossir até quase chorar.—Não é a primeira vez, sabes? —disseme. Parecia estar recobrando o domínio de si. Jamie

se sentou na cama e me pegou a mão.—Não vi o teu filho desde que lhe mandei a casa com Fergus, faz seis meses —disse.Começava a estar tão preocupado como Ian— Estás seguro de que vinha para cá? —Bem, és seu único tio, que eu saiba —replicou o

outro bastante azedo. Deixou o copo, depois de beber de um só trago o resto do conhaque.—Fergus? —interrompi— Fergus está bem? —Sentia uma onda de júbilo ao pensar no

órfão francês que Jamie tinha trazido a Escócia como servo. Ele me olhou.—Oh, sim. Fergus já é um homem. Mudou um pouco, claro. —Uma sombra lhe cruzou a

cara, mas a despejou um sorriso— Se alegrará muitíssimo de voltar a ver-te, Sassenach. Iantinha se levantado para andar.

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—- Não saiu a cavalo – murmurou -. Não tem nada que alguém possa quere roubar. – Viroupara seu cunhado

– Por onde o trouxe da última vez? Por terra, rodeando o Firth, ou navegando?

—- Não fui buscá-lo em Lallybroch. Ele cruzou com Fergus até Carryarrick e se reuniucomigo junto ao lago Laggan. Depois baixamos por Struan, Weem e… sim, já lembrei. Paranão cruzar pelas terras dos Campbell nos desviamos para o Este e cruzamos o Forth à altura deDonibristle. —Acha que fez o mesmo trajeto?

—É possível. —Jamie mexeu a cabeça em dúvida.O pai voltou a andar, com as mãos cruzadas às costas.—A última vez que fugiu lhe dei uma surra que não pôde sentar-se por vários dias.—Tinha os lábios apertados. Adivinhei que o jovem Ian era uma verdadeira prova para ele— Acreditava que não ia cometer outra vez a mesma estupidez. Jamie ofegou, não sem

simpatia.—Alguma vez uma surra te impediu fazer o que tinhas decidido? Ian deixou de andar para

cair de novo no banquinho.—Não —suspirou—, mas suponho que foi um alívio para meu pai. Sua cara se partiu num

sorriso contrariado. Jamie ria.—Deve de estar bem —declarou Jamie, confiado, enquanto deixava cair a toalha para pôr as

calças—Vou divulgar que o estamos procurando. Se está em Edimburgo, o saberemos antes deque caia a noite. Ian deu uma olhada à cama e se levantou precipitadamente.

—Vou contigo.—De acordo. – A cabeça de Jamie apareceu pela gola da camisa com o cenho franzido– Terá que ficar aqui, Sassenach – disse.—Suponho que sim —reconheci com secura— Como não tenho roupa… A criada tinha levado meu vestido depois de servir-nos o

jantar. Ian levantou as sobrancelhas até a linha dos cabelos, mas Jamie se limitou aassentir. —Antes de sair falarei com Jeanne —prometeu pensativo— Talvez me atraseum pouco, Sassenach. Tenho… alguns assuntos que resolver. —Estreitou-me a mão— Meagradaria ficar mas… Me esperará aqui? —Não te preocupes —lhe assegurei,assinalando a toalha que ele tinha descartado— Não penso sair vestida com isso.

Quando o ruído de suas pisadas desapareceu pelo corredor, recostei-me sobre ostravesseiros, sonolenta e satisfeita. Sentia agradáveis dores em vários lugaresdesacostumados e, enquanto resistia a separar-me de Jamie, também era gratificantepassar algum tempo a sós, recordando. Sentia-me como quem recebeu um cofre fechadocom um tesouro, perdido muito tempo atrás. Apalpava sua forma e seu agradável peso,encantada por possuí-lo, mas ainda não sabia com exatidão o que tinha dentro.

Morria de curiosidades por saber o que tinha feito Jamie, o que tinha dito e pensadodurante todos os dias de nossa separação. Indubitavelmente, depois de ter sobrevivido aCulloden devia de ter refeito sua vida… e conhecendo a Jamie Fraser, não podia pensarque tivesse sido simples. Mas uma coisa era saber isso e outra diferente era encarar a

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realidade. Eram muitas as perguntas que não tinha tido tempo de formular. Que tinhasido da família, lá em Lallybroch, de sua irmã e seus sobrinhos? Obviamente, Ian estavasão e salvo, apesar da perna de pau. Mas e o resto da família, os arrendatários dafazenda, teriam sobrevivido à destruição das Terras Altas? E, em sendo assim, que faziaJamie em Edimburgo? E o quê diriam eles quando se inteirassem de minha súbitareaparição?

Bom, nos ocuparíamos no tema quando chegasse o momento. Com mais curiosidademe perguntava quanto as atividades ilegais de Jamie, sua extensão e seu perigo. Então eracontrabando e motim, não? Sabia que, nas Terras Altas de Escócia, o contrabando era umaprofissão tão honorável como roubar gado vinte anos atrás, que possuía riscos relativamenteescassos. Já o motim era outra coisa; parecia uma ocupação bastante perigosa para um exjacobita preso. Provavelmente, essa era a razão pela qual usava um nome falso… ao menosuma das razões. Apesar da confusão que estava quando chegamos ao bordel, tinha notado queMadame Jeanne o chamava por seu verdadeiro nome. Portanto, era de supor que comocontrabandista conservava sua própria identidade, reservando o pseudônimo de Alex Malcolmpara as atividades da tipografia, legais ou ilegais. Nas breves horas da noite tinha visto, ouvidoe sentido o suficiente para saber que o Jamie Fraser com quem tinha me casado ainda existia.Restava saber quantas outras pessoas também existiam.

Alguém chamou timidamente à porta, interrompendo meus pensamentos. «O café damanhã», pensei. E muito oportuno. Estava morta de fome. —Entre, por favor —anuncieilevantando-me. A porta se abriu com muita lentidão; depois de uma grande pausa, uma cabeçaapareceu pela abertura como um caracol que emergia de sua concha após uma chuva degranizo. A coroava uma mata mal cortada de cabelos castanhos escuros, tão densa que aspontas sobressaiam como espetos sobre as grandes orelhas. O rosto era largo e ossudo, seriafeio a não ser pelos olhos pardos, muito bonitos, suaves e tão grandes como os de um cervo.Pousaram em mim com uma expressão confusa e interessada.

A cabeça e eu nos observamos mutuamente por um momento.- Você é a ….mulher do Sr. Malcolm? – perguntou.- Poderia-se dizer que sim – respondi com cautela.- Poderia-se dizer que sim – respondi com cautela. Era-me vagamente familiar, ainda que

estivesse segura de não o ter visto antes. Subi um pouco mais o lençol - E você, quem é?Ele refletiu um pouco antes de responder, com a mesma prudência:- Ian Murray.

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- Ian Murray – Me levantei bruscamente, resgatando o lençol no último momento – Entre –ordenei peremptoriamente – Se é quem estou pensando, por que não está onde deveria estar? Eo que faz aqui?

Parecia bastante alarmado e deu mostras de querer retirar-se.- Espera! – exclamei, tirando uma perna da cama para perseguí-lo. Os grandes olhos pardos

se alargaram ante a aparição do membro nu. Ficou petrificado - Entre.Era alto e deselegante como um filhote de cegonha, deveria pesar uns 57 quilos, espalhados

numa estrutura de 1,80m. Sabendo quem era, a aparência com seu pai era notória.- Eu….é…procurava meu…. ao senhor Malcolm, digo – murmurou olhando fixamente para

as tábuas do piso.- Se te referes ao seu tio Jaime, não está aqui.- Não, não, suponho que não. – Parecia que não lhe ocorria nada a acrescentar. Depois

levantou o rosto dizendo -: Sabe onde …?Ao me ver, voltou a baixar a cabeça de imediato, outra vez ruborizado e mudo.- Saiu para te procurar. Com seu pai – acrescentei – Foram há pelo menos meia hora.Ele levantou a bruscamente a cabeça, com os olhos fora de órbita.- Com meu pai? Meu pai esteve aqui? Você o conhece?- Claro que sim – disse sem pensar – Conheço Ian há muito tempo.Não era tão inescrutável como seu tio Jamie. Tudo o que pensava aparecia em seu rosto. E

foi fácil rastrear a sucessão de pensamentos: do horror inicial passava a dúvida docomportamento paterno.

- E….- balbuciei alarmada - …Não penses mal. Quero dizer, seu pai e eu …na realidade, écom seu tio que eu…

Tentava buscar um modo de explicar lhe a situação sem me colocar em águas maisprofundas, mas ele virou sobre suas pernas e começou a andar para a porta.

- Espera um momento – insisti. Se deteve, mas sem me olhar – Qual a sua idade?Se virou para mim com dolorosa dignidade.- Vou fazer 15 dentro de 3 semanas. - O rubor estava voltando a suas bochechas - Não se

preocupe. Tenho idade suficiente para saber…que tipo de lugar é esse. Sem intenção de vosofender, senhora. Se tio Jamie … quero dizer, eu… – Na falta de palavras adequadas, acaboupor balbuciar -: Encantado em conhecê-la, senhora! – E fugiu para o corredor, batendo a portacom tanta força que ela se sacudiu no batente.

Cai nas almofadas meio divertida, meio alarmada. Perguntava-me por que o jovem Ian tinhaido até lá em busca de seu tio. Seria Geordie que lhe dera a informação na imprensa? Nãoparecia provável. Portanto, devia conhecer por outras fontes a vinculação de seu tio com oestabelecimento. E a fonte mais provável era o próprio Jamie.

Mas isso significava que Jamie sabia da presença de seu sobrinho em Edimburgo. Por quefingia não ter visto o menino? Ian era seu melhor amigo, tinham sido criados juntos. Para queJamie enganasse seu cunhado devia ter algo muito importante em mente.

Antes que meus pensamentos fossem para longe ouvi outra batida em minha porta.

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- Pode entrar - disse preparando a colcha para por a bandeja.Tive que baixar os olhos. Era a pequena silhueta do senhor Willoughby que entrava,

gateando sobre as maõs e os joelhos.- Que diabos está fazendo aqui? - interpelei, escondendo apressadamente os pés e subindo a

colcha até os ombros.Como resposta, o chines se deteve a trinta centímetros da cama e deixou cair a cabeça ao

chão com um forte ruido, uma vez e outra vez.- Para! - exclamei, vendo que estava querendo fazer a terceira.- Mil perdões - explicou sentando-se sobre os calcanhares. Estava obviamente maltrapilho

com uma ressaca endiabrada.- Não há nenhum problema - lhe assegurei retrocendendo cautelosamente até a parede. - Não

tens porque pedir desculpas.- Sim, desculpa-me - insistiu - Tsei-mi dito esposa. Senhora muito honrável Primeira

Esposa, não rameira barata.- Muito obrigada - disse-Tsei-mi? Jamie, quieres dizer? Jamie Fraser?O homenzinho assentiu, com obvio detrimento de sua cabeça. Lhe segurou com ambas as

mãos e fechou os olhos, onde desapareceu imediatamente as rugas do pescoço.- Tsei-mi - afirmou sem abrir os olhos - Tsei-mi disse desculpas muito honradas a primeira

Esposa. Yi Tien Cho - disse, dando-se um golpe em seu peito para indicar que era o seu nome,para não confundir com algum outro humildíssimo servidor presente nas proximidades.

- Bem, muito bem - balbuciei - E… encantada de conhecer-te.Obviamente restabelecido, se deixou cair de bruços ante mim como se não tivesse ossos.- Yi Tien Cho servir senhora - disse - Primeira Esposa favor pisar humilde servidor, se

gostar.- AH! - exclamei friamente - Já haviam me falado de ti. Quer que eu te pisoteie, é isso? Nem

pensar!Assomou uma ranhura do olho negro e resplandecente. O chines soltou uma risada tão

irrepremível que eu mesma não pude deixar de rir.- Lavarei pés de Primeira Esposa? ofereceu com um amplo sorriso.- Nada disso. Se quieres fazer algo útil, vá ordenar que me tragam o café da manhã. Não,

espera um momento - disse mudando de ideia - Primeiro me diz onde te encontras-te comJamie. Se não te incomodar - disse por cortesia.

Ele voltou para sentar-se sobre os calcanhares, bamboleando um pouco a cabeça.- Cais - disse - Dois anos atrás. Venho China, longe, não comida. Esconder em barril -

explicou, formando um círculo com os braços para indicar seu meio de transporte.- Como clandestino?- Barco mercante - assentiu - Cais aqui, roubar comida. Um noite roubar conhaque, bebado

perdido. Muito frio para dormir, quase morri, mas Tsei-mi encontrou. - Se mostrou novamenteao bater em seu peito - Humilde servidor Tsei-mi, humilde servidor Primeira Esposa.

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E me fez uma reverencia, mesmo cambaleando de um modo alarmante, voltou a se indireitarsem haver sofrido incidentes.

- O conhaque parece ser tua perdição - observei - Lamento não ter nada que dar-te para a dorde cabeça. Neste momento não tenho nenhum remédio aqui.

- Oh, não importa - me assegurou - Tenho bolas saudáveis.- Que bom - murmurei, me perguntando se ele preparava outra intenção contra meus pés ou

se estava apenas um embriagado que confundia as partes básicas da anatomia.O que fez foi colocar as mãos nas profundidades de sua ampla manga azul e com ar de

conspirador, extraiu um saquinho de seda branca onde deixou cair duas bolas esverdeadas.- Bolas saudáveis-explicou o senhor Willoughby, fazendo-as rodar pela palma de sua mão

com um agradável repiqueto. - Jade. Muito boas bolas saudáveis.- É mesmo? - perguntei fascinada - E são medicinais? Quer dizer, te fazem bem?Assentiu vigorosamente, mas deteve o gesto com um leve gemido. Depois de uma pausa

abriu a mão para fazer rodar as esferas com um hábil movimento circular nos dedos.- Na mão todas as partes do corpo - explicou. Tocou delicadamente com o dedo várias partes

da palma aberta, entre as bolas vedes - Aqui cabeça. Aqui estomago, aqui fígado. Bolas fazemtodo bem.

- Bom suponho que são tão portáteis como o Alka-Seltzer - comenteiPossivelmente foi essa referencia ao estomago que induziu o meu a emitir um rugido

audível.- Primeira Esposa quer comida - observou o senhor Willoughby com muita destreza.- Muito astuto de tua parte. Quero comida, sim. Podes descer e dizer a alguém?- Humilde servidor já vai.E saiu, não sem lançar-se com bastante violencia contra o batente da porta.Aquilo estava sendo ridículo. Em vez de continuar sentada ali, desnuda e recebendo

delegações caprichosas do mundo exterior, considerei que havia chegado o momento de tomaratitudes. Depois de envolver-me cuidadosamente com a colcha, dei alguns passos pelocorredor.

O piso parecia deserto. Afastando de meu quarto, havia somente mais duas portas. E o tetotinha vigas de adornos; isso significava que estávamos num sótão; o mais provável era que osoutros quartos estivessem ocupados por serventes que, em qualquer momento, deviam de estartrabalhando embaixo.

Depois de segurar as pontas da colcha sobre o peito, como se fosse um sári, recorri aocorrimão que se arrastava e descia pela escada, seguindo o aroma da comida.

o odor ( mais os barulhos de mastigação de várias pessoas sentadas na mesa) vinham de umaporta fechada no primeiro piso. Ao abri-la me encontrei de frente a um grande quarto,mobiliado como cozinha.

A mesa estava rodeada por mais de vinte mulheres; algumas estavam já vestidas, mas amaioria apresentava tal estado de nudez que, em comparação, minha colcha era de umpuritanismo exagerado. Uma mulher, sentada próximo a cabeceira, me viu abrir a porta e me

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chamou acenando, correndo amistosamente um banco para eu sentar.- Deves de ser a moça nova, não? - disse, observando-me com interesse - És um pouquinho

mais velha para o gosto da Madame; ela prefere as menores de vinte e cinco anos. Mas nãoestás nada mal, não - me assegurou apressadamente - Estás muito bem, sem dúvida.

- Boa pele e um rosto bonito - observou a morena sentada frente a mim, avaliando-me comar objetivo de quem julga a um bom cavalo - E pelo que vejo, tem um bom traseiro.

- A Madame não gosta que tirem a roupa da cama - apontou meu primeiro contato com ar dereprovação - Se caso não tens nada bonito para por, deveria ter baixado até o traseiro.

- Como se chamas, querida? - Um mulher baixa e bastante rechonchuda, de rosto redondo ecordial, se inclinou junto a morena para sorrír-me. Em vez de me receber como se deve elascomeçaram a parlotear. Eu sou Dorcas. Está é Peggy. - Agitou o polegar onde estava a morena;logo acenou a ruiva sentada ao meu lado - E essa é Mollie.

- Me chamo Claire - disse com um sorriso, ainda subia pudorosamente a colcha. Não sabiacomo corrigir a equivocada impressão de que eu era uma rameira nova. De momento meparecia o menos importante que conseguir o pequeno almoço.

Como se advinharam minha necessidade, a amistosa Dorcas alongou o braço até o aparadorque tinha atrás e depois de entrgar-me um prato de madeira, empurrou para mim uma grandefonte de salsichas.

A comida estava bem preparada, de qualquer modo, eu estava morrendo de fome.Te começaram o trabalho com um bruto, não? —Millie, minha vizinha, acenava para o meu

decote.Me mortificou ver uma grande mancha roxa que parecia pela borda da colcha, seguramente

tem também marcas de mordidas no pescoço.- E também tens um nariz um pouco inchado - comentou Peggy olhando-me com olhar

critico. Se esticou para tocar-me, sem se preocupar com o suicinto roupão que, com omovimento, se abriu até a cintura. - Te deram uma bofetada, não? Quando eles ficam muitobrutos tens que chamar, sabe? Madame não permite que os clientes nos maltratem. Dê um bomberro, que Bruno estará aqui num segundo.

- Bruno? – repeti um pouco confusa.- É o porteiro. Por isso o chamamos de Bruno. Qual o seu verdadeiro nome? - perguntou

uma das rameiras - Horace?- Theobald - corrigiu Millie. E se voltou para uma criada. - Quer trazer um pouco mais de

cerveja, Janie?Voltou de novo para mim:- Sim, Peggy tem razão. -Não é precisamente linda mas tem um boca bem formada e uma

expressão simpática. - Aqui está a cerveja - disse recebendo da criada uma jarra de cerâmica eque pos diante de mim.

- Não lhe aconteceu nada - decidiu Dorcas,tratou completando um exame de minhas partesvisíveis. - Mas deve estar um pouco dolorida entre as pernas, não?

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Me sorriu com sagacidade- oh, olhem, ficou ruborizada - exclamou Mollie encantada - Oooh, és nova, não é?Bebi um grande trago de cerveja. Era escura e espessa; me senti muito bem, tanto pelo seu

sabor como pela amplitude da jarra, que me ocultava o rosto.- Não se preocupe - Mollie me deu umas palmadas bondosas no braço. - Depois do café da

manhã te mostrarei onde estão os barris, para que umedeça as partes com água quente. Esta noitese sentirá como nova.

- E não esqueça de dizer onde se guardam os potes de ervas perfumadas - disse Dorcas -Ponhas na água antes de sentar. A madame gosta quando cheiramos bem.

- Zi loz hombges quiziegan acostagze con un pezcado, iguían a los muellez; ez más bagato —entonou Peggy, imitando a Madame Jeanne.

A mesa estourou em risadinhas, sufocadas rapidamente pela súbita aparição de Madame empessoa, que entrou por uma porta do fundo.

Franzia o cenho e parecia muito preocupada para reparar na hilaridade contida. Mollie, ao vê-la, estalou a lingua.

- Um cliente a esta hora! Não me deixam tomar um café da manhã tranquila.- Não se preocupe, Mollie - observou Peggy afastando a trança escura. -É Claire quem terá

que atendê-lo. A mais nova lhe tocam o que niguém quer. - me informou.- É…obrigada - sussurei.Naquele momento, a olhada de Madame Jeanne caiu sobre mim e sua boca se abriu em uma

forma horrorizada.- O que estás fazendo aqui? - susurou, aproximando-se precipitadamente para segurar-me por

um braço.- Comendo - repliquei, mal disposta para me pegarem.- Merde! Nadie não subiu o seu café da manhã?- Não. Nem a roupa - apontei com um gesto a colcha, em eminente perigo de cair.- Nez de Cléopatre! - exclamou ela com violencia enquanto olhava ao redor saindo faíscas

pelos olhos. - Darei uma sova nessa criada inútil! Mil desculpas, Madame!- Não tem problema - assegurei graciosamente, captando as olhadas atônitas de minhas

companheiras de mesa. - Tem sido um café da manhã maravilhoso. Encantada de te-lasconhecido,senhoras - saúde, levantando-me para tentar uma elegante reverencia, sem soltar acolcha. - E agora, Madame… falemos de meu vestido.

Entre agitadas desculpas de Madame Jeanne e suas reiteradas esperanças de que MonsieurFraser não se informara de minha indesejável intimidade com as trabalhadoras doestabelecimento, subí torpemente outros dois vãos de escadas, até um quarto pequeno cheio deprendas em diversas razões; e no canto se acumulava vários retalhos.

- Um momento, por favor - pediu Madame Jeanne.E se retirou com uma profunda reverencia, deixando-me em companhia de um manequim,

cujo peito estava cheio de pequenos alfinetes. Despendurei uma anágua de seu cabide e a pus.Era feita de um fino algodão, com um grande decote franzido e multiplas mãos bordadas

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embaixo do peito e cintura, que pareciam acariciar-me com sensualidade.Se ouviam vozes no quarto vizinho, onde Madame parecia estar repreendendo; ao menos isso

pensei ao ouvir a grave voz masculina.- Não me interessa o que tenha feito a irmã desta desgraçada - dizia ela. -Não entendes que

deixei a esposa de Monsieur Jamie nua e com fome…?- Está segura de que é a esposa? - perguntou a voz grave masculina - Me haviam dito…- A mim também. Mas se ele disse que a mulher é sua esposa, eu não tenho nada que

discutir, n’est-cepas? - Madame parecia impaciente - Bem, em quanto essa infeliz deMadeleine…

- Não é culpa dela, Madame - interrompeu Bruno - Não sabes a novidade desta manhã? Odo Demônio?

Madame fez uma pequena exclamação- Não! Outra?- Sim, Madame - A voz de Bruno sonava lúgubre. - A umas portas daqui, sobre a taberna de

Buho Verde. A moça era a irmã de Madeleine. O padre trouxe a notícia justo antes do café damanhã. Já viu…

- Sim, sim, compreendo. - Madame pareceu ficar sem folego. - Sim, claro. claro. Foi…o desempre? - Sua voz tremia de desgosto.

- Sim, Madame. Um machado ou algum tipo de lâmina grande. - Baixou a voz, comoparecia fazer as pessoas ao relatar coisas horríveis. - O padre me disse que lhe haviam cortadoa cabeça. O corpo estava proximo da porta e a cabeça… - Reduziu a voz quase como sussuro. -A cabeça, na prateleira, olhando sobre o quarto, o hospetaleiro desmaiou ao encontrá-la.

Tinha que reconhecer que Jamie tinha razão ao dizer que havia sido mal ideia instalar-meem um bordel. Bem, ao menos agora estava mais ou menos vestida. Passei pro quarto vizinho,onde encontrei a Madame Jeanne reclinada no sofá de uma pequena sala, com um homemcorpulento e de expressão infeliz, sentado em seus pés numa almofada. Ela levou um susto.

- Madame Fraser! Oh,me desculpa! Não era minha intenção deixá-la esperando, mas eurecebi… - vacilou, buscando alguma expressão delicada - uma notícia inquietante.

- Eu já sei - reconheci - Quem é esse Demônio?- Voce ouviu? - Se antes estava branca, sua pele palideceu varios tons a mais. Se retorceu as

mãos. - O que dirá a ele? Vai ficar furioso!- Quem? inquiri - Jamie ou o Demonio?- Vosso esposo. - Passou a olhar distraida pela sala - Quando descobrir de que sua esposa

tem sido tão vergonhosamente desatendida, confundida com uma filie de joie e exposta a…a…- Na realidade, não acho que lhe incomde - disse. Mas eu gostaria que me falasse desse

Demonio.- Por que queres saber? - Bruno elevou suas densas sombrancelhas.Olhou vacilante a Madame Jeanne, como pedindo orientação, mas a proprietária deu uma

olhada no pequeno relógio de sua penteadeira e se levantou de um salto, com uma exclamaçãoespantada.

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- Crottin! Tenho que ir!- Oh… - murmurou recobrando a surpresa. - É certo, devia chegar as dez e ponto.Segundo o relogio esmaltado, era dez e meia. O que devia chegar, fosse o que fosse, teria

que esperar um pouco.- O Demônio - insisti.Como quase todo o mundo, Bruno se mostrou disposto a revelar todos os detalhes macabros,

uma vez superado certo recato, deixando de lado a delicadeza social.O demonio de Edimburgo era assassino, tal como eu havia deduzido pela conversa escutada.

Como um Jack o Estripador de outrora, se especializava em mulheres fáceis, as que matava agolpes com um instrumento de lâmina pesada. Em alguns casos, os cadáveres haviamaparecido esquartejados, segundo disse Bruno, baixando a voz.

Os assassinatos, oito no total, se produziam a intervalos de dois anos. Com uma só exceção,as mulheres foram assassinadas em suas próprias habitaçãoes; em sua maioria viviam sozinhas;duas morreram em bordeis. Provavelmente isso explicava a agitação de Madame.

- Qual foi a exceção? - pergunteiBruno se benzeu.- Uma monja - sussurou. Era óbvio que ainda estava impressionado-Francesa. Uma irmã da

Merced.A irmã havia sido raptada no cais, ao desembarcar em Edimburgo com um grupo de monjas

destinadas a Londres. Na confusão, nenhuma das companheiras reparou em sua ausencia. Laencontraram ao anoitecer, em um dos becos, mas já era muito tarde.

- Violada? - perguntei com interesse clínico.Bruno me olhou com desconfiança.- Não sei - respondeu formalmente. Depois se pos em pé; seus ombros estavam encurvados

pelo cansaço - Se me dá licença, Madame… - disse com remota formalidade.E saiu.Voltei a sentar-me, um pouco aturdida, no pequeno sofá de veludo. Nunca havia imaginado

que em um bordel podiam acontecer tantas coisas durante o dia.Alguém bateu a porta com fortes golpes. Quando me levantava, se abriu sem esperar e uma

silhueta delgada e imperiosa entrou a grandes passos.Falava frances com um acento muitomarcado e uma atitude tão furiosa que não entendi nada.

- Procuras a Madame Jeanne? - perguntei, aproveitando a pequena pausa que fiz para tomarfolego.

O visitante era um jovem de uns trinta anos, muito charmoso, de uma contextura leve edenso cabelo negro. Me fisgou com os olhos chamejavam baixo com sombrancelhas espessas.Então o seu rosto sofreu uma mudança extraordinária. As sombrancelhas arquearam, os olhosnegros ficaram enormes e o semblante palideceu.

- Milady! - exclamou deixando-se cair de joelhos para abraçar-me, apertando a cara contraminha anágua de algodão, na altura entre minhas pernas.

- Solta-me! - protestei empurrando pelos ombros - Não trabalho aqui. Já disse para me

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soltar!- Milady! - repetia com extase - MIlady! Voce voltou! Um milagre! Deus a trouxe de volta!Levantou os olhos para mim, sorrindo em lágrimas. Seus dentes eram brancos e perfeitos.

Rápido vi sua cara de malandrinho embaixo do rosto do homem.- Fergus! É voce?, Fergus! Levanta-se, por Deus! Deixa eu te ver.Se pôs em pé, mas não tive tempo de inspecioná-lo: me envolveu em um abraço capaz de

triturar minhas costelas, que eu lhe devolvi com grandes palmadas em suas costas,entusiasmadas por voltar a vê-lo.

- Acho que estou vendo um fantasma! - exclamou - É voce, mesmo?- Sou eu, sim - lhe assegurei.- Já tens visto o Milord? - perguntou excitado - Sabe já que estás aqui?- Sim.- Oh! - Voltou meio passo, parpadeando, como se tivesse tido uma idéia - Mas…mas o que

passou com…? - Fez um pausa, claramente confuso.- Com o que?- Estavas aqui! Que demonios fazes aqui em cima, Fergus?A alta silhueta de Jamie apareceu subitamente no vão da porta. Se alargaram os olhos para

as minhas anáguas.- Onde está tua roupa? - perguntou.Abri a boca para responder mas agitou uma mão impaciente.- Não importa. Agora não tenho tempo. Vamos, Fergus, que tenho dezoito caixas de

conhaque no beco e a polícia pisando em meus calcanhares.Desapareceram com um trotar de botas pela escada, deixando-me sozinha mais uma vez.Não sabia se descia a reunir-me ao grupo ou não, mas a curiosidade é mais capaz que a

discrição.Depois de uma rápida visita ao quarto de costura em busca de algo que me cubra um pouco

mais, me envolvi em um grande xale bordado de malvas loucas.Me detive ao pé da escada, atenta ao rodar os barris para me sevir de guia. Enquanto estava

ali senti uma rajada súbita em meus pés descalço; ao voltar vi um homem no vão da porta queconduzia a cozinha. Parecia tão surpreendido como eu, mas se adiantou com um sorriso parasegurar-me pelo cotovelo.

- Que tenhas um bom dia, querida. Não esperava encontrar nenhuma senhorita acordada aesta hora da manhã. Te enviaram para me distrair?

- Não. Quem? - perguntei.- A Madame. - Deu uma olhada ao seu redor - Onde ela está?- Não tenho ideia. Solta-me!Em vez de obedecer, me cravou os dedos no braço. Depois se inclinou para sussurrar em

meu ouvido, entre vapores de tabaco rançoso:

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- Há uma recompensa, sabes? Uma porcentagem sobre o valor do contrabando sequestrado.Não tem porque inteirar nada, em exceto voce e eu. - Me passou um dedo embaixo do meuseio, que fez o bico se arrepiar embaixo do fino algodão. - O que te parece, jovem?O olheifixamente. <<Tenho a polícia pisando-me os calcanhares>>, havia dito Jamie. Aquele homemdevia de ser um oficial da Coroa, encarregado de perseguir o contrabando. <<A picota,deportação, flagelação, prisão>>, havia enumerado Jamie, agitando uma mão despreocupada,como se aqueles castigos fossem o equivalente a uma multa de transito.

- O que está falando? - inquiri tratando de fingir-me intrigada. - E por última vez, te digoque me soltes!

Não podia ter vindo sozinho. Quantos mais estariam rodeando o edifício?- Sim, por favor solte - disse uma voz detrás de mim.Vi que o policial dilatava os olhos, olhando por cima de meu ombro.Em um segundo apareceu na escada o senhor Willoughby, vestido com um roupa de seda

azul, segurando uma grande pistola com as duas mãos. Saudou o policial com uma cortesinclinação de cabeça.

- Não rameira barata - explicou parpadeando como uma coruja - Honrada esposa.O policial, novamente sobressaltado pela inesperada aparição do chines, nos olhou

surpreendido.- Esposa? - repitiu incrédulo - Disse que é sua esposa?Pelo visto, o senhor Willoughby captou somente uma palavra, assentindo.- Esposa - repetiu - Por favor solta.O policial me soltou, olhando ao senhor Willoughby com expressão cenhuda.- Olha… - começou.Não pode dizer nada mais pois meu gardião, dando por sensato que já havia feito a devida

advertencia, levantou a pistola e apertou o gatilho.O homem cambaleou para trás com expressão de intensa surpresa. Atuando por reflexo, me

segurou por debaixo de meus braços e caiu suavemente nas tábuas do patamar.Em cima se fezum alvoroço; os habitantes da casa se embolaram no corredor principal, entre fuxicos eexclamações, atraídos pelo disparo.

Fergus invadiu por uma porta que devia de levar ao sótão, com pistola na mão.-Milady - ofegou ao me ver sentada no canto, com o corpo do policial escarranchado em

meu colo - O que voce fez?- Eu? - protestei indignada - Eu não fiz nada. Foi esse chines que Jamie tem por mascote.Acenei com a cabeça ao senhor Willoughby, que havia se sentado num degrau com a pistola

caida nos pés. Fergus disse algo em frances tão coloquial que não podia traduzir, mas sooupouco encantador para o senhor Willoughby.Depois cruzou o patamar em grandes passos ealargou uma mão para agarrar ao chines pelo ombro. Ao menos, isso creio eu…antes de verque o braço estendido não terminava em uma mão, vi sim um gancho de reluzente metalescuro.

- Fergus! - Estava tão horrorizada que interrompi minha tentativa de deter a hemorragia com

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o xalé - O que…que?- O que? - Seguindo a direção de meus olhos, se deu de ombros - Ah, isto. Os ingleses. Não

se preocupe por isso, milady; não temos tempo. E voce, canaille, desce!E arrancou o senhor Willoughby da escada para arrastá-lo até a porta do sótão, por onde o

expulsou sem considerações. Foi uma série de golpes secos, como se o chines tivesse caíndorodando pela escada, momentaneamente perdia suas habilidades acrobáticas. Não tive tempode pensar nisso, porque Fergus se pos em córcoras ao meu lado e levantou a cabeça do policialsegurando pelo cabelo.

- Quantos te acompanham? - perguntou - Se não me dizer agora mesmo, porco, te corto acabeça!

Evidentemente, a ameaça era superflua.- Nos veremos…no…inferno - sussurou o homem. E morreu em meu colo com uma última

convulsão.Se ouviam pisadas na escadaria, subindo a toda velocidade. Jamie cruzou correndo a porta

do sótão e apenas pôde deter-se antes de tropeçar com as pernas no policial. Depois de recorrertodo o corpo com os olhos, seus olhos se detiveram em meu rosto com espanto assombro.

- O que voce fez, Sassenach? - acusou.- Não foi ela, senão o anfíbio amarelo - interveio Fergus, me poupando o trabalho. Depois

meteu a pistola abaixo da cintura para oferecer-me a mão sana. - Vamos, Milady! Deves ir parabaixo!

Jamie lhe deteve, apontando com a cabeça o salão dianteiro.- Eu me encargo disto - disse - Vigia a frente, Fergus. O sinal de costume. E não saque a

pistola a menos que seja necessário.Fergus fez um gesto afirmativo e desapareceu de imediato do salão.Jamie, que se havia ajustado para envolver desajeitosamente o cadáver com meu xalé, me

liberou de seu peso. Foi um alívio, exceto o sangue e outras substancias repugnantes que meempapavam a anágua.

- Oooh, creio que está morto! - exclamou uma voz aturdida em cima.Dez ou doze prostituras olhavam do alto, como querubins no céu.- Voltem as suas habitações - ladrou Jamie.Houve um coro de chiados e dispersaram-se como pombas.Jamie deu uma olhada ao redor. Por sorte, não havia sinais do incidente: o xale e eu

havíamos recibido tudo.- Vamos - ordenouOs degrais e o soltão estavam escuros. Me detive embaixo para esperar a Jamie. O policial

não era leve.- Ao outro lado - indicou ofegando - Um muro falso. Agarra-te em meu braço.Já fechada a porta de cima, não se via nada; por sorte, Jamie parecia guiar-se como por

radar. Cheirava a pedra úmida. Alargando a mão toquei uma parede áspera ante mim.

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Jamie subiu a voz para dizer algo em gaélico. Ao parecer, era o equivalente celta de<<Abra-te, Sésamo>>, por trás em um breve silencio se ouviu um ruido chirriante. Naescuridade, ante mim, apareceu uma vaga linha luminosa que se foi alargando; uma parte daparede girou para fora deixando ver uma porta com um marco de madeira sobre o que sehaviam montado pedras cortadas simulando ser parte da parede.

A parte oculta do sótão era uma habitação ampla, de nove a dez metros de lado. Por ali semoviam várias silhuetas em um ambiente sufocante pelo odor a conhaque. Jamie deixou cair ocadáver em um canto, sem nenhuma cerimonia, e se voltou para mim.

- Por Deus, Sassenach, voce está bem?- Tenho um pouco de frio - disse, tratando de que não me rangessem os dentes - E a anágua

empapada de sangue. De resto estou bem…acho.- Jeanne! - gritou Jamie.Um das silhuetas vinha até nós; era a Madame, preocupadíssima. Ele explicou a situação em

poucas palavras, fazendo que sua expressão piorasse consideravelmente.—Horreur! —exclamou - Morto? Em meu local? Diante de testemunhas?- Eu temo que sim - Jamie parecia sereno - Eu me encarrego disso. Mas por enquanto deves

subir. Talvez não tenha vindo sozinho. Já sabes como fazer.Sua voz sonava tranquilizadora. Lhe apertou o braço.- Ah, Jeanne - disse quando ela estava se retirando - Quando regressar, podes trazer alguma

roupa para minha esposa? Se seu vestido ainda não estiver pronto, creio que Daphne é damesma altura dela.

- Roupa?Madame Jeanne esfregou os olhos ante as sombras onde eu me encontrava. Para ajudá-la dei

um passo onde tinha luz, exibindo os resultados de meu encontro com o policial. Ela gaguejouum par de vezes e , depois de fazer o sinal da cruz, saiu sem dizer nada.

Eu tanto tremia, tanto pela situação como pelo frio. Aquilo era como uma mal noite desábado na sala de Urgências.

- Vem Sasseanch - indicou Jamie apoiando-me uma mão na cintura - Tens que lavar-te.- Lavar-me? Com o que? Com conhaque?Isso lhe fez rir.- Não, com água. Posso oferecer-te uma tina, mas temo que estará fria.Estava sumamente fria.- O-n-de vem esta água? - perguntei estremecida - De uma geleira?- Do telhado - respondeu - Há uma cisterna onde se armazena a água da chuva, com uma

canaleta e um tubo que baixa por um lado do edificio.Parecia absurdamente orgulhoso de sí mesmo. Comecei a rir.- Todo um invento. Para que usas a água?- Para diminuir o licor - Sinalizou ao lado oposto do salão, onde as escuras silhuetas

trabalhavam com notável empenho entre uma grande quantidade de toneles e tinas. - Vem a

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cento e oitenta graus. Aqui nós mesclamos agua pura e voltamos a embalá-los para vender nastabernas.

Detrás de um biombo armado com toneles, dei uma olhada em minha improvisadabanheira.Uma só vela acesa na superfície da água, dando um aspecto negro e insondável.Fiquei nua, tremendo violentamente, me havia parecido muito fácil renunciar a água quente eas torneiras modernas quando os tinha na mão.

Jamie tirou da manga um lenço grande, ao qual olhei vacilante.- Bom, está mais limpo que tua anágua - encolhendo os ombros.Ele deixou em minhas mãos e se afastou para supervisionar as operações.A água estava gelada e o sótão também; as gotas geladas me corriam pelo ventre e nas

coxas, provocando-me pequenos calafrios.Pensar no que podia estar acontecendo em cima não ajudava a calmar minhas apreensões.Presumidamente, estávamos a salvo enquanto a parede falsa enganasse os investigadores.

Mas se o muro não nos ocultasse, nossa posição seria quase desesperada.E o desaparecimento daquele homem não podia deixar de provocar uma procura intensa.

Imaginei a policia rastreando o bordel, interrogando as mulheres ente ameaças até obter minhadescrição completa, ao de Jamie e do senhor Willoughby e os demais de vários testemunhossobre o assassinato.

Dei um aolhada involuntaria ao outro canto, onde jazia morto ensaguentado sudário,bordado com malvas loucas rosas e amarelas.

O chines não estava por ali; devia de ter desmaiado atrás das caixas de conhaque.- Toma, Sassenach. Bebe isto. Me rangiam tanto os dentes que quase mordi a lingua.- Jamie havia reaparecido ao meu lado, como um cachorro São Bernardo, trazendo uma taça

de conhaque.- O-b-rigada.- Tive que usar as duas mãos para sustentar a taça de madeira, mas o conhaque me ajudou.

Me caiu na boca do estomago como uma brasa, disparando odor de calor até minhasextremidades frígidas.

- Oh, Deus, que bom. - Disse na pausa suficiente para tomar folego - Esta é a versão sem adiminuição?

- Não. Essa te mataria. Esta é um pouco mais forte da qual nós vendemos. Anda, logo.Depois te darei um pouco mais.

Enquanto eu terminava apressadamente meu congelado banho, o observei pelo canto doolho.

Me olhava com a expressão franzida, obviamente abstraido em suas reflexções.- O que está pensando, Jamie?A expressão desapareceu momentaneamente e seus olhos se clarearam.- Estava pensando como és bonita, Sassenach - disse com suavidade.- Pode ser, se é aficionado em carne de galinha a grande escala - repliquei azeda. E alarguei

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a mão deixando a taça.Ele me sorriu subitamente, com um branco lampejo de dentes na penumbra do sótão.- Oh, sim - disse - Somente ver um frango desplumado me provoca uma ereção

extraordinária.Me engasguei com o conhaque, meio histérica pela tensão e o horror. Jamie se fez

rapidamente num abrigo e me envolveu com ele. Me abraçou estremecida.- Me desculpa - disse - Estou bem. Mas é culpa minha. O senhor Willoughby disparou

contra o policial porque pensou que estava me fazendo propostas indecentes.Jamie ofegou.- Não é culpa tua, Sassenach - disse secamente - E se interessa, não é a primeira vez que

esse chines comete uma besteira. Quando bebe é capaz de qualquer loucura.Logo mudou sua expressão. Acabava de captar o que eu havia dito. Me olhou com os olhos

dilatados.- Voce disse policial?- Sim, por que?Sem responder, me soltou pelos ombros e girou sobre seus calcanhares.- Segura isto - ordenou me dando a vela na mão. E se aproximou junto a silhueta coberta

para retirar a mancha que lhe cobria a cara.Eu havia visto alguns cadáveres; o espetáculo não me impressionava, mas tão pouco era

agradável. Jamie observou com a expressão franzida aquela cara morta, somente com a luz davela, e murmurou um pouco baixo.

- O que aconteceu? - perguntei.- Este homem não é policial. Conheço todos os agentes do distrito e também os oficiais. E

este eu nunca tinha visto.Com um pouco de asco, afastou a solapa ensaguentada do casaco para buscar embaixo da

roupa do homem. Por fim tirou uma pequena navalha e um livro encadernado em papel roxo.- Novo testamento - leu com assombro.Jamie fez um gesto afirmativo.- Policial não é, isto não é algo que alguém leve a um prostíbulo. - Depois de limpar o

pequeno volume com o xale, lhe cobriu de novo o rosto e se pos em pé, sacudindo a cabeça.- Isto é a única coisa que tem em seu bolso. Os policiais e inspetores de Aduanas devem

levar sempre sua credencial, pois ao contrário não tem autoridade para confiscar mercadoriasnem registrar um local. - Levantou os olhos arqueando a sombrancelha. - Por que pensou queera um policial?

- Me perguntou se me haviam enviado como distração e onde estava a Madame. Depoisdisse que havia uma recompensa, uma porcentagem sobre o contrabando sequestrado, e queninguém o conhecia, exceto ele e eu. E como me disses-te que a policia estava pisando oscalcanhares, pensei que era um deles.

Foi então quando apareceu o senhor Willoughby e tudo se foi ao inferno.

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Jamie assentiu, mas estava desconcertado.- Bom, não sei quem poderia ser, mas me alegro de que não era policial. Ao principio pensei

que algo havia saido errado.- Saído errado?Sorrio brevemente.- Tenho um acordo com o chefe de Aduanas, Sassenach.- Um acordo? - repeti boquiaberta.

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Se encolheu dos ombros- Bom, um suborno, se prefere que eu diga com clareza.- É um procedimento comercial comum? - perguntei, tratando de fazer com tato.Se contraiu um pouco a boca.- Sim, de fato. Pode se dizer que exista um acordo entre sir Percival Turner e eu. Me

preocuparia muito saber que deixei este local vigiado por políciais.- Está bem - disse lentamente enquanto me embaralhava todos os acontecimento da manhã,

compreendidos em partes, tentando ordená-los - Mas nesse caso, por que disses-te a Fergus quetinhas a policia pisando em seus calcanhares? E por que todo mundo anda correndo de um lado aoutro, como frangos degolados?

- Ah, isso. - Sorrindo por um instante, me segurou no braço para afastar-me do cadáver - Bom,temos um acordo, como te dizia. Como parte dele, Sir Percival deve satisfazer o seus chefes deLondres sequestrando, de vez em quando, uma quantidade de contrabando. Nós nosencarregamos de dar-lhe a oportunidade. Wally e os rapazes trazem da costa duas carretascarregadas: uma com o melhor conhaque; a outra com tonels furados e vinho barato. Esta manhãme encontrei com eles fora da cidade, como estava planejado, para trazer as carretas até aqui;tivemos cuidado em chamar a atenção do oficial da cavalaria que passava, casualmetne, comalguns dragões. Nós fizemos com que nos perseguissem pelos becos até que chegou o momentoque eu, com os barris bons,me separasse de Wally e sua carga de vinho barato. Então eleabandonou sua carreta para fugir e eu vim a toda velocidade até aqui, seguido por dois ou tresdragões para salvar as aparencias. Soa bem para quem informa, sabes? - Sorrindo de orelha aorelha, citou: << Os contrabandistas escaparam, apesar da perseguição, mas os corajosossoldados de sua Magestade conseguiram capturar uma carreta carregada de licores, cujo valor foicalculado em sessenta libras e dez chelines>>. Já conhece essas coisas.

- Suponho que sim - disse - Assim é voce, com os licores bons, o que devia chegar as dezhoras. Madame Jeanne disse…

- Sim - confirmou cenhudo. - Ela devia ter a porta do sótao aberta e a rampa em seu lugar asdez em ponto. Não tinhamos muito tempo para descarregar tudo. Esta manhã abriu tardíssimo;tive que dar voltas pelo quarteirão para não atrair os dragões até sua porta.

- Algo a distraiu - expliquei - Bom, se este homem não era policial, não creio que hajanenhum outro em cima. Agora nós podemos sair daqui.

- Me alegro. - O casaco de Jamie me cubria até os joelhos, mas sentia olhares encobertos queeu recibia em minhas pernas desnudas do outro extremo da habitação. Voltaremos para aimprensa?

- Talvez. Tenho que pensar. Jamie falava em tom distraído, com a frente enrugada pelareflexão.

-E…O que fizeste com o Ian?Levantou os olhos, como se não compreendesse. Logo seu rosto se despertou- Ah, Ian. Eu deixei ele fazendo averiguações nas tabernas do mercado. Nos reuniremos

mais tarde - murmurou como se dizendo para sí próprio.- A próposito: eu conheci o Ian filho - disse em tom coloquial.

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Jamie pareceu sobressaltar-se.- Veio aqui?- A tua procura, sim. Mais ou menos uma meia hora depois que voce saiu.- Menos mal! - Passou uma mão pelo cabelo, como divertido e preocupado - Me daria muito

trabalho explicar a Ian que faz seu filho aqui.- E voce sabe para que veio? - perguntei com curiosidade.- Não, não sei! Supostamente devia…Oh, deixemos assim. Neste momento não posso

preocupar-me por isso. Voltou aos seus pensamentos, dos que surgiu momentaneamente paraperguntar: - Te disse onde ia?

Sacudi a cabeça e enquanto ele voltava a pensar, me sentei em uma tina invertida. Apesar doperigo e da incomodação, me sentia absurdamente feliz simplesmente por te-lo próximo.

Logo, como se me advinhava o pensamento, se deteve com um sorriso.- Voce tem suficiente roupa, Sassenach?- Não, mas não importa. - Me uni para as suas aventuras, colocando-me em seu braço. -

Tens adiantado um pouco de tuas reflexões?Riu tristemente.- Não. Estou pensando cinco ou seis coisas ao mesmo tempo e não posso solucionar nem a

metade. Por exemplo, não sei se o pequeno Ian está onde deveria estar.- E onde deveria estar?- Na imprensa - disse com certo enfase. - Mas está manhã devia estar com Wally e não foi

assim.- Com Wally? Voce sabia que não estava em sua casa quando seu pai veio buscá-lo?Esfregou o nariz com um dedo, um tanto irritado e divertido.- Oh, sim. Lhe havia prometido não dizer nada ao seu pai até que ele tivesse oportunidade de

explicar-lhe. Mas dúvido que a explicação pudesse proteger seu traseiro.Tal como seu pai havia dito, o jovem Ian havia vindo a Edimburgo para reunir-se com seu

tio, sem incomodar previamente em pedir autorização a seus pais.Jamie descobriu muito rápidoeste descuido mas não quis obriga-lo a voltar sozinho a Lallybroch. E ainda não havia tidotempo de ve-lo pessoalmente.

- Em realidade, sabe se cuidar sozinho - me explicou. Na luta de expressões ganhou adivertida - É um rapaz bastante capaz, mas… bem, já tenho visto que para algumas pessoas lheacontecem coisas sem que elas tenham muito haver.

- Agora que mencionas, sim - confirmei ironicamente - Eu sou uma delas.Isso lhe fez rir.- Tens razão, Sassenach! Talvez por isso eu gosto tanto do pequeno Ian. Me lembra voce.- Pois para mim me lembra um pouco voce.Soltou um breve suspiro.- Por Deus, Jenny me deixara inválido se souber de que seu filho esteve em uma casa de má

reputação. Espero que ele saiba manter a boca fechada quando voltar para sua casa.

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- Sempre volta a sua casa - observei, pensando no menino que havia visto pela manhã aderiva em uma cidade cheia de prostitutas, policiais, contrabandistas e assassinos armados demachados. - Por sorte não é uma mulher - disse pensando nesta última possibilidade. - Ao queparece, o Demonio não gosta de meninos.

- Mas a muitos outros sim - sussurou Jamie azedo - Entre meu sobrinho e tu, Sassenach, saiodeste sótão mal cheiroso ficando com os cabelos brancos.

- Eu? -exclamei surpreendida - Por mim não precisa se preocupar.- Ah não? - Me soltou o braço para girar até mim, lançando fogo pelos olhos - Acha que não

preciso me preocupar contigo? Nossa, eu te deixo na cama, sana e salva, e uma hora depois teencontro ao pé da escada, em anáguas e abraçada a um cadaver! E agora mesmo: estás aqui,desnuda como uma minhoca, com quinze homens ao redor se perguntando quem diabos és.Como eu vou explicar, Sassenach? Diga-me - Passou os dedos pelo cabelo, em um gesto deexaspero. - Bom, já está tudo resolvido.

Me coloquei na ponta dos pés para lhe por o cabelo detrás da orelha. Seguindo o principioque os polos opostos se atraem bruscamente quando estão a uma pequena distancia, inclinou acabeça para me beijar.

- Eu me havia esquecido - disse um momento depois.- O que?- Tudo. - Falava com muita suavidade, com a boca em meu cabelo - O prazer, o medo.

Sobre tudo isso: o medo. Faz muito tempo que não tenho medo, Sassenach - sussurou - Masagora sim.

Porque agora tenho algo que perder.Voltei um pouco para olhá-lo. Então, mudando de expressão, me deu um rápido beijos.Vamos - disse me segurando pelo braço - Vou dizer aos homens que és minha esposa. O

resto terá que esperar.

CAPÍTULO 27

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EM CHAMAS

O vestido era um pouco mais decotado que o necessário e um pouco apertado na altura dobusto, mas em geral me caiu bem.

- Como sabia que Daphne tinha a minha mesma altura? - perguntei enquanto tomava sopa.- Eu disse que não me deitava com as moças - replicou Jamie. - Mas não disse que não

olhava.Me olhou oscilando como uma coruja (algum defeito congênito o fazia capaz de fechar num

só olho) Comecei a rir.- Mas te fica muito melhor que a Daphne - disse.A taberna de Moubray estava muito concorrida, era um lugar amplo e elegante, com uma

escada exterior que chegava ao primeiro piso, onde a cozinha satisfazia a apetite doscomerciantes prósperos e os funcionários de Edimburgo.

- Quem és agora? - quis saber - Madame Jeanne te chama «Monsieur Fraser», usa o teuverdadeiro nome em público?

Mexeu a cabeça enquanto esmigalhava um pãozinho em sua sopa.- Não. Na atualidade sou Sawney Malcolm, impressor e editor.- Sawney? É um apócope de Alexander, não? Como «Sandy».- Nas Terras Altas se diz Sawney - me informei - «Sandy» se ouve mal nas Terras Baixas…

o na boca dos Sassenachs ignorantes. - Me sorriu arqueando uma sombrancelha.- De acordo. - disse. - Isto é o mais importante: quem eu sou?Um de seus enormes pés buscou o meu e me sorriu.- És minhas esposa, Sassenach. Sempre. Me chame como eu me chamo, voce é minha

esposa.Me inundou em uma onda de prazer, em seu rosto refletado as lembranças da noite anterior.

Tinha as orelhas um pouco ruborizadas.- Não parece que este refogado tem muita pimenta? - comentei - Estás seguro, Jamie?- Sim - disse. E de imediato especificou: - Sim, estou seguro, e não, o refogado está bom.Eu

gosto com um pouco de pimenta.Seu pé se moveu levemente contra o meu, acariciando-me o tornozelo.- Assim sou a senhora Malcolm - sussurei saboreando o nome.Só o efeito de dizer senhora me provocava uma emoção absurda, como as recém casadas.Involutariamente olhei o anel de prata que eu levava na mão direita. Ele advertindo meu

gesto, levantou a taça.- Saúde a senhora Malcolm - disse suavemente.Voltou a sentir-me sem alento. Me pegou na mão.- Cuidar-te e proteger-te - disse sorrindo.- Hoje e sempre - completei sem observar os olhares que atraimos.

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Um clérigo, sentado ao outro lado do salão, se inclinou para dizer algo ao seu companheiro,que nos observou fixamente. Me surpreendeu descubrir que era o senhor Wallace, meucompanheiro de viagem da deligencia de Inverness.

- Em cima há quartos privados - murmurou Jamie.Perdi todo interesse no senhor Wallace.- Bem. Mas ainda não terminou o seu refogado.- Para o inferno com o refogado.- Está vindo a criada com a cerveja.- Ao inferno com ela também. - Seus brancos dentes se fecharam sobre meus dedos fazendo-

me dar um susto.- As pessoas estão nos olhando.- Que nos olhem e disfrutem.Meteu suavemente a lingua entre meus dedos.- Um homem com casaco verde está vindo para cá.- Ao infer… - acabava Jamie. A sombra do visitante caiu sobre a mesa.- Desejo-os bons dias senhor Malcolm - saudou o visitante com uma reverencia cortes.

Suponho que não imcomodo.- Estás errado - corrigiu Jamie. - Creio que não conheço o senhor.O cavaleiro, um ingles discretamente vestido que aparentava uns trinta e cinco anos, se

inclinou novamente sem deixar-se intimidar pela falta de hospitalidade.- Não tivemos o prazer de nos apresentar senhor - disse com deferencia. Sem embargo, meu

chefe me manda saudá-los e perguntar se voce…e sua….companheira…teria a bondade debeber uma taça com ele.

- Minha esposa e eu-disse fazendo exatamente a mesma pausa antes de <<esposa>> - temosoutro compromisso. Se seu chefe deseja falar comigo…

- É o Sir Percival Turner quem solicita senhor - disse apressadamente o secretário antes deir.

- Bem - replicou Jamie - , com o respeito devido, diga a sir Percival que neste momentoestou ocupado. Poderias transmitir minhas desculpas?

Deu as costas ao secretario, o qual se dirigiu até uma porta do lado oposto.- Onde estávamos? - perguntou Jamie - Ah, sim. Ao inferno os cavaleiros de casaco verde.

Agora, quanto aos quartos privados…- Como vai explicar minha presença?Arqueou uma sombrancelha.- O que devo explicar? - Me olhou de cima para baixo - O que tem de mal em sua presença?

Não te falta nenhum membro, não és corcunda, tens todos os dentes, não estás gorda…- Voce sabe a que me refiro - protestei dando um leve ponta pé por debaixo da mesa.- Claro - replicou muito sorridente - Mas entre uma coisa e outra não tenho muito tempo

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para pensar nisso. Poderia dizer, simplismente…- Portanto voce está casado, meu querido amigo!Que grande notícia! Minhas mais sinceras

felicitações. E espero ser o primeiro em expressar os melhores desejos a sua dama.Era um cavaleiro pequeno e de mais idade, apoiado num pomo de ouro de sua bengala. Nos

sorriu cordialmente.- Perdona-me a pequena descortesia de convidá-los por meio de Johnson - pediu

depreciativo - é que esta condenada enfermidade me impede de mover com agilidade.Jamie, que havia levantado ante a aparição do visitante, lhe estava aproximando uma

cadeira.- Nos acompanha, sir Percival?- Oh, não, de nenhum modo! Não quero atrapalhar vossa felicidade, meu querido senhor.Sinceramente, não tenho idéia…Sem deixar de protestar, se deixou cair na cadeira oferecida, estendeu um pé embaixo da

mesa com uma careta de dor.- Sou um mártir acabado, querida - me confessou inclinando-se para mim. Percebi seu mal

alento de ancião embaixo dos azeites que perfumavam sua roupa.Jamie, tratando-se de ficar bem ali parado, pediu vinho e aceitou com certa elegancia as

constantes cordialidades do senhor Percival.- É uma verdadeira sorte que o tenha encontrado aqui, querido amigo - disse o cavaleiro,

apoiando uma mão bem cuidada na manga de meu esposo - Tinha algo especial para dizer. Defato, eu enviei um bilhete a imprensa mas meu mensageiro não o encontrou lá.

- É? - Jamie arqueou as sombrancelhas interrogando.- Sim. Se não me engano, faz algumas semanas me comentou que tinhas intenção de fazer

uma viagem de negocios ao norte. Em relação com uma imprensa nova ou algo assim?- Sim é - concordou Jamie cortes - O senhor MacLeod me havia convidado a Perth para

mostrar-me um novo modelo de imprensa que colocou recentemente em uso.- Bem - Senhor Percival tirou do bolso uma caixa de rapé esmaltada em verde e ouro, com

querubins na cobertura - Não os aconselho fazer uma viagem ao norte neste momento -sussurou concentrando-se ao conteúdo da caixa - Nesta época o tempo tende a ser inclemente;não creio que a senhora Malcolm se sentirá bem.

Jamie tomou um gole de vinho.- Eu agradeço o conselho, sir Percival - disse - Por acaso tens notícias, de nossos agentes, de

que tem havido recentes tormentas no norte?Sir Percival espirrou como um camundongo resfriado.- Assim é. - Guardou o lenço com uma piscada benevolente. - Como sou seu amigo e tenho

muito em conta o seu bem estar, o aconselho energicamente que permaneça em Edimburgo. Aofim e ao cabo - disse voltando -se para mim - agora tens um incentivo para querer comodar-seem casa, verdade? Bom, meus queridos jovens, temo que devo desculpas.Não quero maisincomodar ao vosso desjejum de bodas.

Com ajuda de Johnson, sir Percival marchou com passo curto fazendo bater sua bengala ao

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chão.- Parece um senhor amável - comentei.Jamie suspirou.- Apodrecido como madeira bichada - disse antes de esvaziar a sua taça. Depois seguiu com

ar pensativo a silhueta murcha, que manobrava cautelosamente ao corrimão da escada.- Nãoesperaria outra coisa do sir Percival, estando tão perto de seu juizo final. Deveria conter-seantes só do que por medo do diabo.

- Suponho que é como todo mundo - disse cinicamente - A maioria acredita que viveráeternamente.

Jamie riu subitamente uma vez recobrado seu animo.- Sim, é verdade. - Me aproximou a taça de vinho. - Agora que estás aqui, Sassenach, estou

convencido de que assim será. Bebe, Mo Duinne, e vamos subir.— Post coitum omne animalium triste est - comentei com os olhos fechados.- Que idéia tão estranha, Sassenach - murmurou Jamie sonolento - Suponho que não é tua.- Não. - Lhe afastei o cabelo úmido da frente. Escondeu o rosto na curva de meu ombro com

um ronronar satisfeito.As habitações privadas de Moubray deixavam muito a desejar quanto as instalações

amorosas. De qualquer modo, o sofá oferecia uma superfície horizontal e acolchoada que, bempensado, era o único indispensável.

- Não sei quem disse; algum filósofo antigo.- Não recordo ter sentido nunca menos triste.- Eu tão pouco. - Segui com um dedo a direção do redemoinho que levantava o seu cabelo. -

Por isso o recordei. O que havia levado o filósofo a esta conclusão?- Suponho que depende do tipo de animal com quem havia estado fornicando. - observou ele

- Talvez nenhum deles lhe tinham afeto. Mas deve haver provado com muitos para fazer umaafirmação tão ampla.

Usou meu peito como encosto, sacudido pelo marear do meu riso.- Os machos parecem bastante depravados - disse - lhes penduram a lingua, babam, põem os

olhos em branco e fazem ruidos asquerosos. Em todas as espécies, não?Senti a curva de seu sorriso em meu ombro.- Nunca vi que a ti eu pendurasse a lingua.- Porque tinhas os olhos fechados.- Tão pouco ouvi ruidos asquerosos.- É que, com a pressa do momento, não me ocorreu nada para dizer - admitiu - A próxima

vez me comportarei melhor.Rimos juntos. Depois de uma pausa lhe alisei o cabelo.- Não creio ter nunca sido tão feliz, Jamie.- Eu também, Sassenach - disse.

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- Não é somente pela cama, sabe? - disse retirando-se um pouco para me olhar. Seus olhostinham um azul intenso, como o cálido mar tropical - Estar contigo outra vez, saber que possocontar qualquer coisa sem tomar cuidado com as palavras nem dissimular os pensamentos…Por Deus, Sasseanch, Deus sabe que estou louco de desejo como um jovenzinho e que nãoposso deixar de tocar-te. Mas não me importaria perde-lo enquanto puder estar contigo e abrir-te meu coração.

- Me sentia tão sozinha sem voce - sussurei - Muito só.- Eu também. Não te direi que vivi como os monjes. Quando era preciso, para não

enlouquecer…O interrompi apoiando um dedo sobre seus labios.- Como eu. Frank…Ele também me tampou a boca com a mão.- Não tem importancia - disse.- Não, não importa. Falar-me do que pensas. Teremos tempo.Deu uma olhada na janela para avaliar a luz. Devemos nos reunir com Ian as cinco, na

imprensa, para averiguar como anda a busca de seu filho. Depois se afastou cuidadosamente demim.

- Temos duas horas pelo menos.Se veste que eu pedirei para trazerem vinho e biscoitos.Me pareceu estupendo. Desde nosso reencontro vivia com fome.- Não estou triste mas me sinto um pouco envergonhado - reconheceu Jamie agitando os

largos dedos do pé para por suas meias - Ao menos assim deveria ser.- Por que?- Bem, estou como que no paraíso, contigo, com vinho e biscoitos, enquanto Ian corre pelas

ruas atrás de seu filho.- E voce? Se preocupa com o jovem Ian? - perguntei concentrada em meus laços.Franziu levemente a expressão.- Não tanto por ele como pela possibilidade de que não apareça antes de amanhã.- O que deve acontecer amanhã? - perguntei. Então recordei tardiamente a conversa com

senhor Percival Turner. - Ah, tua viagem ao norte. Devias partir amanhã?

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Assentiu- Sim. Devo encontrar-me com alguém na enseada de Mullin, aproveitando a lua nova. Um

lugar proveniente da França, carregado de vinho e batista.- E sir Percival te estava advertindo para não aparecer neste encontro?- Parece que sim. Não sei o que pode ter acontecido, mas me informarei. Talvez há um

funcionário da Aduanas no distrito. Ou talvez tem sabido de alguma atividade na costa quepoderia atrapalhar.

Depois colocou as mãos sobre os joelhos com as palmas para cima, e as flexionou. Os dedosda mão direita não se esticavam bem.

- Voce se lembra da noite em que me curaste a mão?- As vezes, em meus momentos mais horríveis. - Jamais esqueceria aquela noite. Contra

todas as possibilidades, eu havia o resgatado da prisão de Wentworth e de uma sentença demorte, mas não a tempo de impedir que Jack Randall, o Black Jack, o torturasse cruelmente. -Foi minha primeira cirurgia ortopédica.

- Já fez muitas vezes? - perguntou com curiosidade.- Algumas, sim. Sou cirurgiã, quer dizer: um tipo de médico que conhece todos os ramos da

medicina, mas se especializa em algo.- Voce sempre foi especial - sorriu - O que faz de especial os cirurgiãos?- Bom, poderia se dizer que…o cirurgião trata de curar utilizando uma navalha.Bonita contradição, sassenach, ainda mais contigo.- É mesmo? - exclamei sobressaltada.Ele assentiu sem afastar os olhos de meu rosto. Notei que me estudava com atenção. Me

perguntei, um pouco envergonhada, que aspecto achava:corada depois de termos feito amor,com o cabelo desalinhado.

- Nunca te ví tão encantadora, Sasseanch - Alargou o sorriso ao ver que eu tentava arrumar ocabelo - Deixa teus cachos em paz. Agora o que eu penso, és como uma navalha. Com umabainha muito bem trabalhada. E dentro, um aço fundido temperado, com um gume muito fino eperverso.

- Perverso? – estranhei.- Não estou dizendo que te falta coração. Mas podes ser implacável, Sasseanch, quando

queres.Sorri com certa ironia.- É verdade.- Já tinha visto isso em voce, não é? - Sua voz se tornou muito mais suave, mas soltou meus

dedos que estava segurando na mão. - Apesar de agora ser muito mais que quando eras jovem.Suponho que deves usá-lo com muita frequencia.

Depois comprendi porque ele via com tanta claridade o que Frank nunca havia apreciado.- Voce também o tem - eu disse - E o tens usado. Com frequencia.Sem pensar, toquei a cicatriz que lhe cruzava o dedo medio. Ele assentiu com a cabeça.

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- Muitas vezes me perguntava - disse em voz tão baixa que apenas pude ouvir - se podia poressa navalha ao meu serviço e bainhado outra vez, sem perigo. Se era eu o dono de minha almaou se me havia convertido em escravo de minha própria espada. E pensado, uma e outra vez,que havia desembainhado muito pouco, tanto que já não era apto para ter uma relação humana.

Meus lábios se contrairam com o impulso de fazer um comentário, mas mordi eles. Ao notá-lo, ele sorriu com certa ironia.

- Não acreditei ser capaz de voltar a rir no leito de uma mulher - disse - Nem de ir quandonão fosse apenas pela cegueira da necessidade, como os cavalos. - Sua voz havia adquirido umtom de amargura.

- Não te imagino como um cavalo - disse. Foi um comentário rápido, mas seu rosto seabrandou ao olhar-me.

- Eu sei, Sassenach. Isso é o que me dá esperanças. Porque eu sou…e eu sei…mas talvez…- Deixou morrer a voz observando-me com paixão. - Voce tem essa força. E também a alma.Portanto é possível que a minha tenha salvação.

Não pude responder. Passei um momento sem dizer nada, acariciando os dedos torcidos e osdedos grandes e duros. Era uma mão de guerreiro mas já não guerreava mais.

A apoiei em meu joelho com a palma para cima e recorri com o dedo, lentamente, suaselevações e suas linhas profundas, atá a diminuta letra C gravada na base do polegar: a marcaque o identificava como meu.

- Uma cigana que conheci nas Terras Altas dizia que as linhas da mão não predizem a vida:a refletem.

-É mesmo? - contraiu levemente os dedos deixando a mão aberta.- Não sei. Ela dizia que trazemos essas linhas ao nascer, mas logo mudam com cada coisa

que fazes segundo o que és. - Não sabia nada de quiromancia, mas me fixei em uma linhaprofunda que partia desde muito acima birfucando-se várias vezes - Esta deve ser a linha davida. Consegue ver estas bifurcações? Suponho que indicam muitas mudanças, muitasescolhas.

Soltou um bufido, mais alegre que desdenhoso.- Então, esta primeira divisão deve ser quando conheci o Jack Randall; a segunda quando

me casei contigo. Olhas, estão próximas.- É verdade - deslizei um dedo pela dobra. Ele contraiu os dedos como se tivesse cócegas. -

E Culloden pode ser a outra?- Talvez. -Mas não queria falar de Culloden. Adiantou o dedo. - Aqui, quando me

encarceraram. E quando regressei. E quando vim a Edimburgo.- Para ser impressor… - me interrompi para olhá-lo, arqueando as sombrancelhas. - Como

lhe ocorreu ser impressor? É a última coisa que havia imaginado.- Ah, isso. - Alargou a boca em um sorriso - Bom, foi por casualidade.No principio, estava buscando um negócio que serviria para dissimular e facilitar o

contrabando. Posto que possuia uma soma considerável, graças a um serviço recente, decidiadquirir uma empresa cujas operações normais requizessem uma carreta grande, com utilizaçãode cavalos, e algum local discreto que se pudesse utilizar para armazenar provisionalmente a

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mercadoria no transito.- A imprensa me ocorreu quando fui encarregado de alguns cartazes - me explicou -

Enquanto esperava que me atendessem vi chegar uma carreta, carregada com caixas de papel ebarris de alcool para diluir a tinta no poeira. Então pensei: Caramba, isso é interessante! Apolicia nunca suspeitaria de um lugar assim.

Somente depois de comprar a empresa de Carfax Close, contratar a Geordie e receber osprimeiros encargos, lhe ocorreram as outras possibilidades do ofício.

- Foi por um homem chamado Tom Gage - explicou - Me fazia pequenos encargos, todosinocentes, mas vinha com frequencia e ficava conversando comigo e com Georgie, depois deveter notado que eu conhecia melhor o ofício.

Obviamente, Gage estava explorando as simpatias de Alexander Malcolm:ao identificar seuacento montanhes, mencionou a alguns conhecidos que o tinham visto em dificuldades depoisda Rebelião por suas ideias jacobitas e manipulou habilmente algumas reuniões até que adivertida presa lhe disse, sem mais rodeios, que podia encarregar o que desejava; os homens dorei não se inteiraram.

Assim começou a associação; no principio foi estritamente comercial, mas com o tempo sefoi profundando até converter se em amizade.

- Uma vez o trabalho estava feito, descemos para a taberna para conversar. Tom meapresentou a vários amigos e, por fim, disse que eu mesmo devia escrever um pequeno artigo.Comecei a rir, dizendo que morreriam todos de velhice antes que eu pudesse escrever algointelegível.

Esticou os braços mais pra frente, flexionando os dedos.- Estou bastante bem - disse - Com um pouco de sorte, assim seguirei por muitos anos…mas

não para sempre, Sassenach. Tenho combatido muitas vezes com a espada e com o punhal, mastodo guerreiro chega o dia que lhe faltam as forças.

Mexendo a cabeça, tirou do bolso algumas coisas que colocou em minha mão. Eram frias eduras ao tato: retangulos de chumbo, pequenos e pesados. Não me fez falta tocar as bordas parasaber a que letras correspondiam esses tipos.

- Q.E.D - disse- Os ingleses me tiraram a espada e o punhal - concluiu suavemente tocando os caracteres

que eu tinha na minha palma - Mas Tom Gage voltou a me por uma arma na mão. E não pensodevolver.

As quinze para cinco descemos de braço dado pela pendente empedrada Royal Mile. Acidade refulgia ao nosso redor como se compartilha-se nossa felicidade. Edimburgo jaziaabaixo numa neblina que não tardaria em converter em chuva, mas as nuvens refletiam a luz dosol poente, vermelha e dourada.

Num estado extase, demorei vários minutos para notar que acontecia algo estranho. Umhomem, impaciente pelo nosso passo serpenteante, nos adiantou com passo enérgico detendo-

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se diante de mim e fazendo-me tropeçar nas pedras molhadas.- O que passa? - perguntei agachando-me para recuperar o sapato que me havia saído.Depois me dei conta que todos, ao nosso redor, se detinham mirando para cima e foram

correndo a rua abaixo.- O que acha que aconteceu…?Mas quando me voltei para Jamie vi que ele também olhava fixamente para cima. Num

momento notei que o resplendor vermelho das nuvens era muito mais intenso; pareciapestanejar de um modo muito pouco característico para um acaso.

- Fogo – disse - Meu Deus, creio que é em Leith Wynd!Nesse mesmo instante outra personagem gritou <<fogo>> e as pessoas se lançaram em

tropel rua abaixo.Jamie já estava em movimento e me arrastava detrás dele. Saltando incomodamente sobre

um pé só, em vez de deter-me, sem parar coloquei o outro sapato e segui correndo,escorregando e tropeçando nos frios calçados empedrados.

O incendio não estava em Leith Wynd, sim em Carfax Close,na rua vizinha. A entrada seamontoavam curiosos, esticando o pescoço no esforço para ver. Ao agachar-me para entrar,uma onde de calor me golpeou a cara.

Jamie se lançou entre a multidão sem vacilar, abrindo caminho com a força. Eu o seguiamais próxima antes de que as pessoas voltassem a fechar-se. Por fim nos encontrarmos defrente a multidão. Pelas janelas da imprensa surgiam densas nuvens de fumaça negra. Por cimada gritaria das pessoas se ouvia um sussuro crepitante, como se o fogo estivesse falandoconsigo mesmo.

- Minha imprensa! - Com um grito de angustia, Jamie subiu os degraus da entrada e abriu aporta com um ponta pé. Uma nuvem de fumaça surgiu do interior, devorando-o como umcavalo faminto. Por um breve instante vi que se cambaleava pelo impacto da fumaça, logo caiude joelhos e entrou de gatas.

Inspirados pelo exemplo, vários homens subiram os degrais da oficina e desapareceram nointerior cheio de fumaça.O calor era tão intenso que me esquentava nas pernas. Me pergunteicomo podiam suportar lá dentro.

Atrás de mim, uma nova serie de gritos anúnciou a chegada da Guarda Municipal armada decântaros. Os guardas, obviamente acostumados nessa tarefa, jogaram as jaquetas do uniforme ecomeçaram imediatamente a atacar o incendio; rompendo as janelas e passando os baldes deágua a toda pressa. Enquanto isso, a multidão crescia: as famílias que ocupavam os pisossuperiores dos edificios próximos tratavam de dirigir apressadamente em uma horda demeninos excitados para leva-los a um lugar seguro.

Por mais valentes que foram os esforços da brigada, não pareciam ter muito efeito sobre oincendio, que continuava avançando. Enquanto eu corria de um lado ao outro, tratando em vãode ver algum movimento no interior, o primeiro homem na linha dos cântaros deu um grito edeu um pulo pra trás, justo a tempo para evitar que uma bandeja com caracteres de chumbo ogolpeasse, que saiu zumbindo pela janela e aterrizou no chão empedrado, espalhandoestrondosamente os caracteres por toda a rua.

Dois ou tres malandrinhos escapuliram entre a multidão e começaram a pega-los enquanto

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recebiam uns cascudos de alguns vizinhos indignados. Uma dama roliça,com lenço na cabeça eavental, arriscou sua integridade fisica para arrastar uma pesada bandeja até a calçada, ondeprotegeu protetoramente sobre ela como uma galinha choca.

Despertado pela corrente de ar que penetrava pela porta e as janelas, a voz do fogo não eramais um sussuro, sim um rugido satisfeito. O chefe da Guarda Municipal, a quem lhe choviaobjetos arrojados pela janela impedido de lançar a água, gritou algo a seus homens e pegandoum lenço empapado no nariz, correu ao interior do edificio, seguido por cinco ou seis de seushomens.

A linha voltou a formar-se com rapidez; os cântaros ocupavam-se passando de mão em mãoa bomba mais próxima, dando volta pela esquina. Os excitados meninos pegavam voando osbaldes vazios que empurravam no degrau e corriam para enche-los outra vez. Edimburgo éuma cidade de pedra com tantos edifícios amontoados, equipados com lareiras e chamines, queos incendios deviam ser algo bastante comum.

Uma nova comoção, detrás de mim, anunciou a tarde chegada da autobomba. As pessoas seabriram como o Mar Vermelho para dar espaço para a máquina, arrastada por homens já que oscavalos não podiam circular por aqueles escorregadios empedramentos. Era uma maravilha debronze, reluzente como um brasa ante o reflexo das chamas. O calor ia cobrando intensidade, acada sopro de ar quente me secavam os pulmões. Estava aterrorizada por Jamie. Quanto tempomais poderia respirar naquele inferno de fumaça e calor?

- Jesus, Maria e José - Ian apareceu subitamente ao meu lado abrindo passo entre a multidãoa passo de pato de pau - Onde está Jamie? - me gritou no ouvido.

- Lá dentro! - gritei a minha vez acenando.Houve uma súbita comoção na porta da imprensa; os gritos confusos se aplicavam ao ruido

do fogo. Apareceram varios pares de pernas embaixo da fumaça que brotava na porta. Logo,apareceu sei homens, Jamie estava entre eles, cambaleando-se embaixo com o peso de umamáquina enorme: sua preciosa imprensa. Depois de empurrá-la para o centro da multidão,voltaram de novo para dentro do local.

Já era muito tarde para tentar novas manobras de resgate: se ouviu um estrondo no interior euma nova rajada de calor fez as pessoas retrocederem. Depois, as janelas do piso superior seencendiaram em chamas dançarinas. Alguns homens sairam do edificio, tossindo e afogando-se; alguns vinham gateando, enegrecidos pela fuligem e empapados pelo suor de seus esforços.A equipe da máquina bombeava com desesperação, mas o grosso jorro de água não fazia maisnenhum efeito sobre o incendio.

A mão de Ian se fechou sobre meu braço como as mandíbulas de uma armadilha.- Ian! - gritou em voz tão alta que se fez ouvir em cima do ruido da multidão e do fogo.Seguindo a direção de seu olhar, ví uma silhueta assombrosa na janela do piso superior.Pareceu se forçar brevemente com o batente corrediço, mas caiu para trás ficando envolto

pela fumaça.O coração me subiu pela boca. Não havia um modo de saber se aquela figura era o pequeno

Ian, mas sem dúvida se tratava de uma forma humana. Ian mancando já estava indo para aporta da imprensa, com toda a velocidade que a perna de pau lhe permitia.

- Espera! - gritei correndo atrás dele.

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Inclinando sobre a imprensa, Jamie ofegava, tratando de recobrar o folego enquantoagradecia aos seus colaboradores.

- Em cima! - gritei - O jovem Ian está lá em cima!Ele deu um passo pra trás, passando a manga pela cara enegrecida, e cravou os olhos

desesperados pelas janelas superiores. Somente se via o fulgor do fogo. Ian se debatia entre asmãos de vários vizinhos que tentavam impedir que ele fosse.

- Não, homem, não podes entrar! - gritou o capítão da Guarda Municipal, lhe segurando asmãos - Já caiu a escada e o teto não tardará!

Ian era alto e vigoroso, apesar de sua contextura fraca e pela falta de uma perna. As fracasmãos dos membros da Guarda (em sua maioria veteranos dos regimentos escoceses) nãopodiam contra a força do montanhês, acentuada pelo desespero paterno. Lentamente, mas sempausa, ia arrastando aqueles que o seguravam para as chamas.

Jamie respirou fundo, enchendo de ar em seus pulmões. Em um instante precisamente pegouIan pela cintura arrastando-o para trás.

- Para trás, homem! - gritou rouco - Não pode! Não tem mais escada - Olhou ao seu redor enum segundo empurrou Ian aos meus braços - Segure-o! - gritou - vou pegar o menino!

Disse isso, girou e subiu os degraus do edifício vizinho, abrindo passos entre os paroquianosda chocolateria do piso de baixo, que haviam saido a olhar o alvoroço com as taças de peltre namão.

Seguindo o exemplo de Jamie, apertei com os braços a cintura de Ian disposta a não soltá-lo.- Não se preocupa - lhe disse inutilmente - Ele vai salvá-lo. Tenho certeza.Ian não respondeu; talvez não me ouviu. Permanecia imóvel e rígido como uma estátua,

respirando com dificuldade, como se soluça-se.Apenas um minuto depois se abriu uma janela no piso superior da Chocolateria. Por ela

apareceu a cabeça e os ombros de Jamie; seu cabelo parecia uma labareda do incendioprincipal. Saiu para a beira e virou com cautela, em cócoras, até chegar de cara com o edificio.

Com um resmungo que era audível mesmo aos ruidos do fogo e da multidão, ficou de pé naborda do telhado.

Um homem mais baixo não iria poder fazer. Muito menos Ian com sua perna de pau. Elemurmurava muito baixo; me parecia que rezava mas tinha os dentes apertados e o rosto tensopelo medo.

- O que diabos Jamie está fazendo lá em cima? - pensei.Não me dei conta de que havia falado em voz alta até que o barbeiro respondeu:- No telhado da imprensa tem um alçapão, senhora. Sem dúvida o senhor Malcolm vai usá-

la para entrar no piso superior. É seu aprendiz que está ali?- Não! - lhe espetou Ian - É meu filho!O barbeiro voltou ante sua olhada fulminante, murmurando:- Ah sim, senhor, claro! - E se afastou.Entre a multidão houve um grito que se converteu em bramido: duas silhuetas apareceram

no telhado da imprensa. Ian me soltou a mão lançando-se mais adiante.

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Jamie trazia abraçado o seu sobrinho, dobrado e cambaleando-se pela fumaça aspirada. Erabastante obvio que nenhum deles poderia fazer o trajeto até o edificio vizinho. E naquelemomento Jamie viu Ian, embaixo, e fazendo com as mãos um alto-falante gritou:

- Corda!Tinha cordas; a guarda municipal estava bem equipada. Vi um lampejo de dentes quando

Jamie sorriu para o seu cunhado, e a expressão de entendimento com o que ele respondeu.Quantas vezes haviam arranjado uma corda para lançar um fardo até o feno ou para amarrarum carga na carreta?

A multidão voltou para que Ian pudesse girar o braço; o pesado rolo voou em cima até umasuave parábola, desenroscando-se no trajeto até se lançar no braço estendido de Jamie com aprecisão de uma abelha ao descer sobre uma flor. Jamie correu no extremo e desapareceu ummomento para amarrar a corda pela chaminé.

Depois de uns segundos de precário trabalho, as duas figuras enagrecidas pela fumaçaaterrizaram na calçada, sanas e salvas.

- Voce está bem? - Me fala! - Ian caiu de joelhos junto ao seu filho, tratandodesesperadamente de desatar a corda que lhe rodeava o peito enquanto lhe segurava a cabeçatonta.

Jamie se havia apoiado na grade da chocolataria, tinha o rosto negro e tossia como se fosseexpulsar os seus pulmões; de resto parecia bem. Me sentei do outro lado do menino apoiando acabeça em meu colo.

Ao ve-lo não sabia se ria ou chorava. Em um lado da frente, o denso cabelo estava reduzidoa umas mechas vermelhas descoloridas; as sombrancelhas haviam desaparecido por completo ea pele, devido a fuligem, parecia com um rosado intenso de um leitão recem tirado do forno.

Busquei o pulso no fraco pescoço; era tranquilizadoramente forte. Respirava de um mododificultoso e irregular, o qual não era de estranhar, esperava que não tivesse queimado orevestimento dos pulmões. Tossiu longo e espasmodicamente, seu corpo delgado seconvulsionava sobre meu colo.

- Está bem? - instintivamente Ian segurou o seu filho por debaixo das axilas para ergue-lo.- Acho que sim, mas não estou totalmente segura.O menino continuava tossindo, mas não estava todo consciente.- Está bem? - era Jamie em córcoras ao meu lado. Sua voz sonava tão rouca que tinha sido

impossível reconhece-la.- Creio que sim. E voce? Parece Malcolm X - comentei dando uma olhada por cima do

ombro agitado do jovem Ian.- É mesmo? - levantou uma mão ao rosto, sobressaltado, mas logo sorriu para tranquilizar-

me. - Não, ainda não sou ex Malcolm, só estou um pouco chamuscado pelas bordas.- Para trás, atrás! - O capítão da Guarda apareceu ao meu lado com a barba cinza eriçada

pelos nervos e me tirou pela manga - Volte, senhora, que o teto está a ponto de cair.Tinha razão: enquanto gateávamos até um lugar mais seguro, o teto da imprensa caiu. Pouco

depois, Ian e eu nos encontramos a sós com o menino, Jamie conseguiu alojamente para suaimprensa no depósito da barberia e tratou de repartir dinheiro entre os membros da Guarda e os

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outros assistentes, se aproximou de nós com passo cansado.- Como está o menino? - perguntou limpando o rosto com a mão.Ian levantou os olhos até ele. Pela primeira vez a cólera, a preocupação e o medo

desapareceram de seu semblante. Sorriu.- Não parece estar muito melhor que voce, homem, mas creio que sairá desta. Estendeu uma

mão, quer?Entre carinhosos murmurios gaélicos, se inclinou até seu filho.Quando chegamos ao estabelecimento de Madame Jeanne, o jovem Ian já podia caminhar,

mesmo apoiado sobre seu pai e seu tio. Foi Bruno quem abriu a porta; depois de um gaguejoincrédulo, abriu de par em par, rindo tanto que apenas eu pude fechar a porta as nossas costas.

Devo admitir que não éramos um espetáculo muito bonito, mas o jovem Ian concentrou todaa atenção as múltiplas cabeças que apareciam no salão; parecia um flamengo recem saido doovo.

Uma vez instalados na pequena sala de cima e com a porta fechada, Ian se voltou até seudesventurado filho.

- Vai sobreviver, não, seu mal criado? - inquiriu.- Sim, senhor - respondeu o menino com um horrendo grasnido, como se tivesse preferido

dizer que não.- Me alegro - disse o pai cenhudo - E agora, voce vai me explicar? Ou preferes que te faça

falar a golpes para economizar o tempo?- Não podes açoitar alguém que acaba de se queimar até as sombrancelhas, Ian - protestou

Jamie enquanto enchia uma taça de vinho.- Não seria humano.Com um amplo sorriso, entregou a taça ao seu sobrinho, que aceitou imediatamente.- Está certo - disse Ian inspecionando o seu filho. O menino tinha um aspecto lamentável,

mas ao mesmo tempo divertido - Não por isso vou deixar de açoitar o traseiro, entendes? - lheadvertiu - Isso tirando o que tua mãe quer te fazer quando voltar a ve-la. Mas por agora ficatranquilo, menino.

O jovem Ian não respondeu. Não muito reconfortado mas o tom magnanimo dessa últimadeclaração, buscou refugiu no fundo de sua taça. Eu também aceitei a minha com gosto.

Enquanto me desgrudava do corpete molhado nos peitos, me surpreendi com o olhar deinteresse que me lançou o menino e decidi, com pena, que não podia tirar o vestido enquantoele estivesse no quarto.

Jamie queria falar se corrompia bastante.- Te sentes em condições de falar um pouco, filho? - Jamie se sentou frente ao seu sobrinho

junto a Ian.- Sim, creio que sim - grasnou o jovem Ian com cautela. Depois de um pigarro que pareceu

o coaxar de um sapo, repetiu com mais firmeza - - - Posso sim.- Bem. Em primeiro lugar: o que fazias na imprensa? E em seguida: Como começou o

incendio?O jovem Ian refletiu. Depois de tomar outro gole de vinho para dar coragem, disse:

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- Eu iniciei o fogo.Jamie e Ian se ergueram imediatamente.- Por que?- Bom, havia um homem - começou o menino inseguro. E se interrompeu.- Um homem - o atiçou Jamie com paciencia, ao ver que seu sobrinho parecia voltar

novamente a ficar mudo - Que homem?O jovem Ian apertou a taça entre as mãos; parecia profundamente infeliz.- Responde ao teu tio, idiota - ordenou o pai áspero - se não queres que te ponha sobre meus

joelhos e te açoite agora mesmo.Em base de ameaças similares, os dois homens conseguiram arrancar do menino um relato

mais ou menos coerente.Naquela manhã o jovem Ian tinha acudido a taberna de Kerse onde devia encontrar-se com

Wally, quem voltaria de seu trajeto trazendo o conhaque para encher os tonels que usariamcomo cevo.

- Quem te disse para ir lá?- perguntou Ian ásperamente.- Eu - interveio Jamie. Logo agitou uma mão ao seu cunhado, pedindo silencio. - Sim, eu

sabia que ele estava aqui. Vamos deixar isso para mais tarde, Ian, por favor. É importante sabero que aconteceu.

Ian lhe deu uma olhada fulminante, mas manteve a boca fechada.- É que eu tinha fome - disse o jovem Ian.- Como sempre - comentaram o pai e o tio ao mesmo tempo.Ambos se olharam, lançando uma breve gargalhada, a atmosfera tensa do quarto se aliviou

um pouco.- Assim então voce entrou na taberna para comer algo - advinhou Jamie - Está bem, menino,

não tem problema. O que aconteceu enquanto voce estava lá?Segundo era, foi ali onde havia visto o homem. Um tipo pequeno com rosto de rato que

estava falando com o tarbeneiro, era torto e tianha um rabinho de marinheiro.- Perguntou por voce, tio jamie - O jovem Ian tinha se tranquilizado graças ao vinho. - Pelo

teu autentico nome.Jamie deu um sobressalto.- Por Jamie Fraser,queres dizer?O menino assentiu com a cabeça enquanto bebia outro gole.- Sim e também conhecia o teu outro nome: Jamie Roy.- Jamie Roy? - Ian deu uma olhada de desconcerto para seu cunhado, que se deu de ombros

com impaciencia.- É o nome que uso no cais. Por Deus, Ian, sabe perfeitamente ao que me dedico!- Sim, mas ignorava que o pequeno estivesse te ajudando - Ian apertou os lábios e voltou sua

atenção a seu filho. Continua, menino. Não voltarei a interromper.

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O marinheiro havia perguntado ao dono do estabelecimento que mais podia ser um velholobo do mar, caído em desgraça e necessitado de emprego, para encontrar um tal de JamieFraser, que tinha fama de dar trabalho a homens capazes. Como o taberneiro fingia nãoconhecer esse nome, o homem se inclinou um pouco mais, aproximando uma moeda eperguntando-lhe em voz baixa se o nome de «Jamie Roy» lhe era mais familiar.

O proprietário se manteve surdo como uma parede, por qual o marinheiro não tardou emabandonar a taberna, seguido próximo pelo jovem Ian.

- Me pareceu que convinha averiguar quem era e que intenções tinha - explicou o meninogaguejando.

O homem era um bom caminhante; havia corrido uns oito quilometros em menos de umahora até chegar a taberna de Buho Verde, seguido de um Ian morto de sede devido adesgastante caminhada.

Ao ouvir esse nome deu um sobressalto, mas não disse nada.- Estava atestado - informou o menino - Pela manhã havia sucedido algo e todos estavam

falando do feito… mas fechavam a boca quando me viam, Ali se repetiu a mesma cena - Fezuma pausa para tossir e pigarrear. - O marinheiro pediu conhaque e perguntou ao tarbeneiro seconhecia um fornecedor de licores chamado Jamie Roy ou Jamie Fraser.

O homem havia visitado metódicamente uma taberna atrás da outra, seguido fielmente pelasombra de Ian; em cada estabelecimento pediu conhaque e repetiu a pergunta.

- Deve ter uma cabeça muito firme para beber conhaque - comentou o pai.O menino sacudiu a cabeça.- Ele não bebia. Somente cheirava.O pai estalou a lingua ante o escandaloso desperdício mas as sombrancelhas ruivas de Jamie

se levantaram ainda mais.- Não provava? - perguntou bruscamente.- Somente na taberna Perros e Pistolas e do Cerdo Azul. Nos outros lugares não bebeu nada,

e entramos em cinco antes de que… - deixou a frase sem terminar para tragar mais um pouco.A cara de Jamie sofreu uma transformação assombrosa. Do desconcerto passou a uma total

inexpressividade; logo pareceu ter uma revelação.- Então foi assim - disse suavemente para sí próprio - Claro - Voltou a concentrar-se no

sobrinho. - E o que aconteceu depois, filho?O jovem Ian estava se deprimindo outra vez.- Bom, entre Kerse e Edimburgo tinha muita distancia. E caminhar me dava muita sede…Pai e tio trocaram um agrio olhar.- Bebeu demais - concluiu Jamie resignado.- Bom, como eu ia saber que ele entraria em tantas tabernas? - exclamou o menino tentando

defender-se, com as orelhas ruborizadas.- Claro, filho - Reconheceu Jamie para calar o comentário de seu cunhado - Quando

resistiu?Segundo se descobriu, foi em meio da Royal Mile quando o jovem Ian, abrumado pela

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madrugada, a caminhada de oito quilometros e os efeitos do dois litros de cerveja, pouco maisou menos, ele adormeceu em um canto. Ao despertar, uma hora depois, descobriu que suapresa havia desaparecido.

- Então vim aqui - explicou - Pensei que tio Jamie devia interar-se, mas não o encontrei.O menino me deu um olhar, com as orelhas mais coloridas que nunca.- E por que te ocorreu busca-lo aqui? - Ian cravou em seu filho uma olhada, que logo

desviou para o seu cunhado. - Que descaro, Jamie Fraser! Trazer meu filho a uma casa derameiras!

- Não és o mais indicado para falar, papai! - O menino se pos em pé, cambalendo-se eapertando os punhos fechados.

- Eu? O que quer dizer com isso, pequeno estúpido? - exclamou Ian indignado.- Quero dizer que és um hipócrita de todos os demonios - gritou o filho - Muito aconselha

teus filhos que devemos ser puros e fieis a uma só mulher! E mesmo assim voce escapuliu dacidade para correr atrás de rameiras!

- O que?Ian estava vermelho. Olhou com certo alarme a Jamie, que parecia estar divirtindo-se com a

situação.- És um…um…hipócrita!- Este menino ainda está embriagado - lhe disse Jamie.- Certo.Ian pai não estava embriagado, mas sua expressão se parecia muito a do filho.- Que demonios voce quer dizer com isso? - gritou avançando ameaçadoramente até o filho,

que voltou involutariamente.- Ela - disse acenando-me para explicar-se melhor. - Ela. Enganas a minha mamãe com esta

rameira barata! Isso é o que quero dizer!Ian lhe deu um golpe que o derrubou sobre o sofá.- Grandíssimo idiota! Bramou escandalizado - Bonita maneira de se referir a sua tia Claire!

Por não falar de mim e de tua mãe!- Minha tia? - O jovem Ian me olhou da almofada boquiaberto, se parecia tanto a um

pombinho pedindo comida que, contra minha vontade, cai em uma gargalhada.- Esta manhã voce se foi antes de que eu pudesse apresentar-me – disse.- Mas minha tia está morta! - protestou estupidamente.- Ainda não. A menos que eu pega um pneumonia por ficar com este vestido molhado.Me olhava com olhos dilatados.- Algumas senhoras de Lallybroch contam que eras uma mulher sábia, uma Dama Branca…

ou talvez uma fada. Quando tio Jamie voltou de Culloden sem voce, elas disseram que vocetalvez havia voltado junto as fadas. É verdade?

Troquei olhares com Jamie, que elevou os olhos ao teto.- Não - respondi - Eu…é

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- Depois de Culloden escapou para França - interveio Ian com grande firmeza - Comoacreditava que seu tio Jamie havia morrido em combate, voltou junto a sua família. Havia sidomuito amiga do príncipe e , depois da guerra, não podia voltar a Escocia sem correr um grandeperigo. Mas quando descobriu que seu esposo não havia morrido se embarcou de imediato eveio em busca dele.

O jovem Ian estava boquiaberto, igual a mim.- E assim - disse reagindo - Isso foi o que aconteceu.- Assim voce voltou - disse o menino com alegria - Por Deus que romantico!Havia rompido a tensão do momento. Ian vacilava enquanto seus olhos se amoleciam ao

passar de Jamie a mim.- Sim - disse com um sorriso - Suponho que sim.- Não esperava ter que fazer isto até cerca de dois ou tres anos - comentou Jamie

sustentando com a mão esperta o rosto de seu sobrinho, que vomitava penosamente naescupideira que ele oferecia.

- Sempre está adiantado! - recordou Ian com resignação - Aprendeu a caminhar antes desaber manter-se em pé; caia continuamente no fogo, na tina da cola, no galinheiro… - dissedando uma palmada nas costas convulsionada - Anda filho, tire para fora.

Pouco depois deixamos o menino no sofá para que se recuperasse dos efeitos causados pelafumaça, a emoção e o excesso de vinho, deixou caiu os olhos examinadores de seu pai e tio.

- Onde diabos está o que eu pedi? - Jamie alargou a mão impaciente até a campanhia, maseu o impedi.

- Não se preocupe, irei buscar.Encontrei a cozinha sem dificuldades e solicitei as provisões necessárias. Enquanto rogava

que Jamie e seu cunhado dessem ao menino alguns minutos de respiro, não sozinho pelo seubem, mas sim também para não perder nada de seu relato.

Quando voltei ao quarto foi obvio que alguma coisa eu havia perdido; a frieza invadia a sala,o jovem Ian, se apressou a desviar os olhos. Jamie mantinha sua impertubalidade habitual masseu cunhado parecia tanto atordoado e inquieto como o menino.

- Olhei a Jamie com uma sombrancelha alta. Se encolheu de ombros com um leve sorriso.- Pão e leite - disse entregando ao joven Ian, que de imediato se pois mais contente. - Tá

quente. Ofereci a chaleira ao pai - Whisky - A Jamie - E este frio para as queimaduras.Do pé uma vasilha com várias panos umedecidos.- Água fria? - Jamie levantou as sombrancelhas ruivas - Não tem manteiga?- Para queimaduras não se trata com manteiga - expliquei - Se usa suco de aloe ou de

llantén, mas na cozinha não tinha nada disso. O melhor que pude fazer foi isso.Apliquei um cataplasmo nas partes queimadas do jovem Ian enquanto Jamie e Ian faziam as

honras com o Whisky. Já mais repostos, nos sentamos e escutamos o resto da história.- Bom - disse o jovenzinho - passei um momento caminhando pela cidade sem saber o que

fazer.Quando me aclarou um pouco a cabeça, me ocorreu que, se o homem ia de taberna em

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taberna rua abaixo, o melhor era começar pelo outro extremo e ir rua acima. Assim talvez oencontrasse.

- Brilhante ideia - ponderou Jamie - E o encontras-te?- Sim.Quando estava começando a me desesperar vi o homem sentado em um bar da Destilaria

Holyrood. Ao que parecia não havia parado ali para pedir informação, sim para descansar, poisestava tranquilamente instalado bebendo cerveja. O jovem Ian permaneceu no pátio atrás deum tonel. Até que o homem pagou sua conta e saiu sem pressa.

- Não visitou mais tabernas - informou o menino limpando uma gota de leite no queixo. -Foi diretamente a Carfax Close, a imprensa.

Jamie disse baixo algumas palavras gaélicas,- Sim? E depois?- Bom, encontrou o negócio fechado, claro. Ao ver que a porta estava fechada com chaves

olhou as janelas, como se pensasse entrar por ali.

Logo deu uma vista nas pessoas que ia e vinha. Se deteve um momento no umbral,pensando, e finalmente voltou até a entrada da rua vizinha. Tive que me esconder na alfaiatariado canto para que não me visse.

O homem havia parado na entrada. Depois, já decidido, caminhou alguns passos para adireita e desapareceu por um pequeno beco.

- Eu sabia que esse beco desembocava no patio atrás da rua vizinha. - explicou Ian -Compreendi de imediato suas intenções.

- Na parte de trás da rua há um pequeno patio. - me explicou Jamie - onde acumulam coisasvelhas, mercadorias e coisas assim. A imprensa tinha uma porta no fundo que dava a essepátio.

O jovem Ian deixou seu prato vazio com um gesto de assentimento.- Sim. Me pareceu que pensava entrar por ali. E me lembrei dos novos panfletos.- Céus! - murmurou Jamie um pouco pálido.- Que panfletos? - perguntou seu cunhado.- Os novos impresos para o senhor Gage - explicou o menino.Ian estava tão desconcertado como eu.- Politica - explicou Jamie sem rodeios. - Um argumento para recusar a última Lei de Selos,

exortando a oposição civil…Com violencia, se fosse necessário. Cinco mil panfletos acabadosde imprimir e empilhados na parte do fundo. Gage devia vir buscá-los de manhã na primeirahora.

- Meu Deus - murmurou Ian. Havia palidecido ainda mais que Jamie o olhava com umamescla de horror e respeito religioso. -Voce perdeu a cabeça? Estás junto com Tom Gage e seugrupo de sediciosos? E por cima envonvendo o meu filho? Como podes fazer algo assim,Jamie? Como! Não temos sofrido já bastante por voce, Jenny e eu?

- Não formo parte do grupo de Gage - corrigiu Jamie - Mas sou impressor, não? E ele pagou

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esses panfletos.Ian levantou as mãos em um gesto de grande irritação.- Ah, sim! De muito servirá isso quando a Coroa te mandar pra forca! Se descubrirem esses

panfletos em teu local…Atacado por uma ideía súbita, se voltou até seu filho.- Ah, então foi por isso. Sabias o que diziam os panfletos. Por isso voce pegou fogo?O jovem Ian assentiu, solene como uma coruja.- Não tinha tempo para tirá-los - disse - Eram cinco mil. O homem…o marinheiro…havia

entrado pela janela do fundo e estava a ponto de abrir a porta.Ian girou para enfrentar a Jamie.- Maldito seja! - exclamou com violencia. - Maldito seja, Jamie Fraser!Tens o cerebro de um

pássaro! Primeiro os jacobitas e agora isso!Jamie ruborizou.- Tenho que carregar a culpa de carlos Stuart? - Seus olhos lançavam lampejos de

cólera.Deixou bruscamente sua taça salpicando e o Whisky sobre a mesa - Por acaso não fiztudo que pude para deter aquele estúpido? Não renunciei a tudo por essa luta? A tudo, Ian! Asminhas terras, a minha liberdade e a minha esposa para tentar que todos saissem salvos!

Enquanto falava me deu uma breve olhada. Por um momento pude entender o que lhe haviacustado aqueles últimos vinte anos.

- E enquanto ter prejudicado a tua família, não tens se beneficiado, Ian? Agora Lallybrochpertence ao pequeno Jamie, não?Não é o meu filho, sim o teu!

Ian fez um gesto de dor.- Eu nunca te pedi…- Não, é verdade. Não estou te acusando, por Deus! Mas é a verdade. Lallybroch já não é

meu. O recebi de meu pai e eu cuidei tão bem como pude. E voce me ajudou, Ian. - Sua voz semoderou. - Nunca poderia ter recuperado sem voce, sem Jenny. Não me doi ceder ao pequenoJamie. Tinha que fazer. Mas ainda assim…

Se voltou de costas, com a cabeça agachada e os ombros tensos embaixo da camisa. Eutinha medo de mover-me, de falar, mas captei o olhar de Ian, cheia de aflição, e lhe apoiei umamão no ombro em busca de um mútuo consolo. O pulso batia com firmeza na clavícula. Meestreitou a mão com força.

Jamie se voltou para seu cunhado, lutando para dominar a voz e o genio.- Eu te juro, Ian: nunca permeti que o menino corresse perigo. O mantive afastado como me

era possível. Não deixei que lhe vissem nos cais nem que saisse com Fergus nos botes, pormuito que me implorou. - Ao olhar ao seu sobrinho sua expressão adquirio uma rara mescla deafeto e irritação. - Não pedi que viesse,Ian, eu disse que devia voltar a casa.

- Mas não o obrigou a voltar, não é? - A cor estava desaparecendo do rosto de Ian, mas seusolhos pardos continuavam entornados e brilhantes pela fúria. - Muito menos mandou nenhumaviso. Por Deus, jamie, Jenny não está dormindo nenhuma noite nem se quer em todo o mes!

- Queria levá-lo eu mesmo.

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- Tem idade suficiente para viajar sozinho - disse teu pai - veio até aqui sem que o trazesse,não?

- Sim. Não era por isso. - Jamie, inquieto, brincou com a taça em pé. - Queria leva´-lo parapedir, a voce e a Jenny, que lhe permitisse viver um tempo comigo.

Ian deixou escapar uma risada breve e sarcástica.- Ah, sim? Queria nossa permissão para que o enforquem ou lhe deportem contigo?A cólera voltou a cruzar as feições de Jamie.- Sabes que não permitiria que corresse nenhum perigo - disse - Pelo amor de Deus, eu o

quero como se fosse o meu filho!A Ian havia se acelerado a respiração. Percebi em meu lugar, atrás do sofá.- Oh, eu sei muito bem - disse encarando Jamie nos olhos. - Mas não é teu filho, não é? É

meu.Jamie sustentou o encaro num instante.- Sim - disse no fim com a voz baixa - Está certo.O cunhado passou uma mão pela frente, afastando o cabelo escuro.- Bom. - Respirou fundo uma ou duas vezes mais e se voltou para o menino. – Vamos, tenho

um quarto na posada de Ha-lliday.Os dedos ossudos do filho apertou os meus, tragou a saliva, mas não fez nenhum

movimento de abandono no assento.- Não, papai - disse. Lhe tremia a voz e gaguejava com força para não chorar - Não irei

contigo.O pai palideceu.- Então é assim?O jovem assentiu com a cabeça.- Ire…irei contigo pela manhã, papai. mas agora não.Ian olhou a seu filho sem dizer nada. Logo murmurou.- Compreendo. Está bem. Está bem.Sem uma palavra mais, girou e saiu fechando a porta com muito cuidado.O ombro do menino tremia embaixo do meu. Me apertava os dedos mais que nunca,

chorando sem ruido. Jamie se aproximou lentamente com a cara cheia de preocupação.- Oh, Ian, pequeno - murmurou. - Fez muito mal, filho, por Deus.- Era necessário. - O sobrinho deixou escapar um bufo. Então me dei conta de que havia

estado segurando o folego. - Não queria fazer papai sofrer. Não queria fazer isso!Jamie lhe deu uma palmada distraída no joelho.- Eu sei, filho, mas dizer semelhante coisa…- É que não podia contar nada. Mas voce tem que saber, tio Jamie!Levantou os olhos, subitamente alarmado pelo tom de seu sobrinho.

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- Saber o que?- O homem. O homem do rabinho.- O que tem ele?O jovem Ian passou a lingua pelos lábios para se armar de coragem.- Acho que eu o matei - sussurou.Jamie me lançou um olhar sobressaltado.- Como?- Bom…menti um pouco - começou Ian com voz tremula. Ainda tinha os olhos cheios de

lágrimas, mas as secou com a mão. - Quando entrei na imprensa com a chave que havia medado, o homem já estava ali. O encontrei guardando alguns panfletos embaixo do casaco. Eugritei que os deixasse e se voltou para mim com uma pistola na mão.

A pistola se havia disparado, para grande susto do menino, mas a bala se desviou. Sem seintimidar, o marinheiro se arrojou contra ele levantando a pistola para usá-la como cassetete.

- Não tive tempo de fugir e nem de pensar - disse Ian - Busquei o que tinha mais a mão e oatirei.

O que tinha na mão era uma panela de cobre de cabo largo que se utiliza para verter ochumbo fundido nos moldes. A forja ainda estava acendida ainda com as brasas bem cobertas,o crisol continha umas gotas ardentes de chumbo que voaram em direção a cara do marinheiro.

- Por Deus, como gritou! - Um forte calafrio correu no jovem Ian.Rodeei ao extremos do sofá para sentar-me ao seu lado e segurar suas mãos.O marinheiro se havia cambaleado para trás enquanto se dava tapas na cara e se batia com a

pequena forja espalhando as brasas por todas as partes.- Foi isso que iniciou o incendio - disse o menino - Tratei de apagá-lo a golpes, mas

alcançou o papel e o fogo me saltou para o rosto. Foi como se toda a habitação estivesse emchamas.

- Os barris de tinta, suponho - disse Jamie para sí mesmo. - A poeira se dissolve no alcool.No papel em chamas caiu entre Ian e a porta dos fundos. O marinheiro, cegado e uivando

como alma penada, de joelhos no chão lhe fechava a passagem até ao quarto de frente e até asalvação.

- Não…não suportava tocá-lo, afastei de um empurrão - disse novamente estremecido.Perdida a cabeça por completo, optei por fugir as escadas para cima, mas me encontrei entre

as chamas que acendiam pelo vão da escada, enchendo rapidamente o quarto do piso superiorcom uma fumaça cegadora.

- Não te ocorreu sair do telhado pelo alçapão? - perguntou Jamie.O jovem Ian balançou lentamente a cabeça.- Não sabia que existia.- O que fazia essa porta ali? - perguntei com curiosidadeJamie me deu um sorriso fugaz.- Para casos de necessidades. Tonta é a raposa que tem uma só saida em sua toca.

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Ainda devo reconhecer que quando a fiz abrir, não pensava precisamente nos incendios. Ian,acha que o homem não escapou do fogo?

- Não acho que pudesse - respondeu o menino soluçando outra vez - E se tá morto fui euquem o matou. Não podia dizer a papai que sou um assa…um assassi…

Chorava demais para poder pronunciar a palavra.- Não és nenhum assassino - disse seu tio com firmeza dando uma palmada em seu ombro. -

Basta já.Está bem. Não fez nada errado, filho.O menino assentiu, mas não desejava chorar e tremer. Por fim o rodeei com os braços,

segurando-o como um recem nascido. Me era estranho te-lo abraçado; era quase tão grandecomo um homem adulto, mas de ossos leves e com tão pouca carne que me dava a sensação desustentar um esqueleto.

Falava com o rosto afundado em meu seio, com a voz tão distorçida pela emoção e que mecustou entender suas palavras.

- …pecado mortal…, condenado ao inferno…, não pude dizer ao papai…, medo…,nuncavoltarei para casa…

Jamie levantou as sombrancelhas. Me limitei a encolher os ombros, acariciando o cabelorevolto do menino. Por fim ele se inclinou para frente e o o segurei com firmeza pelos ombrospara ergue-lo.

- Olha-me, Ian - ordenou - Não, Não! Me olha!- Ian - Jamie lhe estreitou as mãos - Em primeiro lugar, não é pecado matar a alguém que

está tentando te matar. A igreja permite matar, se é necessário, em defesa própria, de tuafamília ou de teu país. Assim então voce não cometeu nenhum pecado mortal e não estácondenado.

- Não? - O jovem Ian sorveu ruidadosamente pelo nariz, limpando o rosto com uma manga.- Não - assegurou Jamie com um sorriso nos olhos - pela manhã iremos juntos falar com o

padre Hayes. Pode se confessar com ele para que te absolva, mas te dirá o mesmo que eu.- Oh… - a sílaba dava um profundo alivio.Jamie lhe deu outra palmada no joelho.- Outra coisa: não deves ter medo de dizer ao teu pai.- Não? - O menino havia aceitado sem vacilar sobre o estado de sua alma, mas este último

parecia inspirar profundas duvidas.- Não posso assegurar que ele não ficará nervoso - disse Jamie com sinceridade. Mas

provavelmente é que lhe saem canas verdes no ato. Mas saiba compreender.- Voce acredita? - Os olhos de Ian encheram de esperança e da dúvida - Não…não creio

que…Meu pai já matou algum homem? - perguntou subitamente.Jamie gaguejou, desconcertado pela pergunta.- Bom, suponho…Ele esteve em combate, mas…se queres que te diga a verdade, Ian, não

sei. O homens não falam esse tipo de coisas, sabe? Exceto os soldados as vezes quando estãomuito embriagados.

Estava buscando um pano em sua manga, mas rápido levantou os olhos, assaltados por uma

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ideia.- Por isso preferia contar a mim e não ao teu pai? Porque eu já tinha matado?O sobrinho assentiu.- Sim. Imaginei que…que tu sabias o que se deve fazer.- Ah. -Jamie respirou fundo e trocou um olhar comigo - Bom…Encolheu os ombros e voltou a inchá-los. Compreendi que aceitava a carga posta pelo jovem

Ian.- O que deves fazer - disse suspirando - é se perguntar se podia ter feito alguma outra coisa.

Não tinhas alternativa, assim que voce pode ficar tranquilo. Logo vai se confessar, se puderes;se não,um bom ato de penitencia. Com isso basta se não tem pecado mortal. Não cometeunenhuma falta , claro, mas a penitencia és poque lamenta profundamente a necessidade que teobrigou.E finalmente reza uma oração pela alma da pessoa que voce matou. Para que possadescançar e não te persiga.

Conheces a oração para a paz da alma? Te sentirás melhor, se tens tempo para fazer. Emmeio da batalha, quando não tens tempo, dizes esta: << Recebe esta alma em teus braços, ohCristo, Rei dos Céus, Amen>>

- Recebe esta alma em Teus braços, oh Cristo, Rei dos ceús, Amém - repitiu o jovem Ian .Logo assentiu lentamente: - Sim está bem, E depois?

Jamie alargou uma mão para tocar-lhe a bochecha com muita suavidade.- Depois aprendes a viver com a recordação, filho - concluiu - Isso é tudo.

CAPÍTULO 28

O GUARDIÃO DA VIRTUDE

— O homem que seguiu Ian pode ter algo haver com a advertência do Sr. Percival? —Destampei a bandeja que acabaram de trazer para oferecer-lhe; parecia que havia passadomuito tempo desde a refeição de Moubray.

Jamie assentiu pegando uma espécie de pãozinho recheado quente.— Não me surpreenderia — disse secamente—. É provável que haja mais de um homem

com a intenção de me prejudicar, mas não acredito, que haja bandos inteiros rondando porEdimburgo. — Mastigou meneando a cabeça — Não, isso é evidente, mas não há por que sepreocupar.

— Não? — Dei uma pequena mordida no meu pãozinho; logo outro, maior. E dei umapausa para engolir.

— Não — disse com mais clareza — Ha de ser questão de um contrabandista rival. Ha umbando com o qual tenho tido algumas dificuldades. — Agitou a mão retirando as migalhas epegou outro pãozinho. — Pelo comportamento desse homem, que só farejou o conhaque,poderia ser um degustador: alguém capaz de identificar a procedência de um vinho pelo cheiroe pelo ano em que foi engarrafado somente com uma tragada. Um tipo muito valioso —acrescentou pensativo — e excelente para me seguir o rastro.

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— Poderia te rastrear por meio do conhaque? — Perguntei com curiosidade — Mais oumenos. Recorda-se do meu primo Jared?

— Claro. Ainda está vivo?— Para eliminá-lo teriam que trancá-lo em um barril e atirá-lo no Sena —replicou Jamie—

Não só está vivo como desfrutando de sua existência. Como acha que consigo o conhaqueFrancês que trago para a Escócia?

— Por intermédio de Jared, suponho —disse.Jamie assentiu com a boca cheia.—Eh!— Arrebatou o prato dos dedos esqueléticos do jovem Ian— Se tem o estômago tão

embrulhado, não deves comer algo tão forte. — advertiu de cenho franzido enquanto mastigava— Vou pedir mais pão e leite para você.

—Espera tio! —protestou o menino olhando com nostalgia os saborosos pãezinhosrecheados.— Tenho uma fome terrível!

Purificado por sua confissão, havia recobrado o bom animo e, pelo visto, também seuapetite. Jamie suspirou.

— Bom, está bem. Mas juras que não vai vomitar em cima de mim?— Não,tio — prometeu mansamente o jovem Ian.—De acordo. —Depois de devolver-lhe o prato, Jamie continuou com sua explicação.—

Jared me envia principalmente o produto de segunda qualidade de seus próprios vinhedos ereserva o de primeira qualidade para vender na França, aonde as pessoas percebem a diferença.

— Então, o que você trás para a Escócia é identificável.— Somente por meio de um degustador. O certo é que esse homem provou o vinho em

alguma taberna que compra exclusivamente meu conhaque. De qualquer modo, não mepreocupa muito que alguém procure Jamie Roy nas tabernas. — Cheirou seu vinho antes debeber— O que me preocupa é que esse homem chegou à imprensa. Causa-me muito incômodoporque quem quer conhecer o Jamie Roy do cais são os mesmo que tratam com Alex Malcolm,o tipógrafo.

— Mas sir Percival te chamou de Malcolm. E sabe que você é um contrabandista —protestei. - Jamie assentiu com a cabeça.

— Nos portos próximos a Edimburgo, Sassenach, a metade dos homens são contrabandistas.Sir Percival sabe que me dedico a isso, sim, mas não me associa com Jamie Roy nem comJames Fraser. Acredita que comercializo sedas e veludos da Holanda… Porque com isso opago. —Esboçou um sorriso— Troco o conhaque por tecidos com o alfaiate da esquina. SirPercival é aficionado por tecidos finos e sua esposa ainda mais. Mas ignora que trafico licoresem grande quantidade. Do contrario não se conformaria com apenas alguns cortes de tecidos,te asseguro.

—É possível que este marinheiro tenha te localizado através de algum taberneiro?Passou as mãos pelos cabelos, como sempre fazia quando estava pensando.—Só me conhece como cliente — disse com lentidão— É Fergus quem se encarrega de

negociar com as tabernas… e ele nunca se aproxima da imprensa. Sempre nos reunimos aquiem particular. —Me sorriu com ironia— E não há nada de estranho em um homem visitar um

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bordel, não é verdade?De repente me ocorreu uma idéia.— E se for assim? Qualquer homem pode entrar aqui sem despertar suspeitas. E se esse

marinheiro se habituou a te ver com Fergus? Ou se alguma das meninas te descobriu? Afinalvocê não é um homem que possa passar desapercebido.

— Muito bem pensado, Sassenach —manifestou— Posso averiguar facilmente se em outrosdias tem vindo por aqui um marinheiro. Vou falar com Jeanne. —Se levantou para seespreguiçar. Suas mãos quase tocavam as vigas do teto— E depois vamos nos deitar, não? —Me piscou um olho - Entre uma coisa e outra, tem sido um dia terrível.

Jeanne chegou junto com Fergus, que lhe abriu a porta com a familiaridade de um irmão.— Ia vender o conhaque —informou a Jamie— Sei que vendi a MacAlpine… com uma

defasagem no preço, milord, por desgraça. Pareceu-me que era melhor fazer uma venda rápida.—Sim, é preferível não o ter na taberna —confirmou Jamie— Que fizestes com o cadáver?O francês emboçou um leve sorriso; sua cara magra e suas madeixas escuras lhe davam um

ar de pirata.—Nosso intruso também foi parar na taberna de MacAlpine, milord…, devidamente

disfarçado.—De que? —quis saber.O sorriso de pirata se voltou para mim; Fergus, apesar do garfo, tinha se tornado um homem

muito bonito.—De creme de menta, milady.—Não acredito que ninguem em Edimburgo havia provado o creme de menta nos últimos

cem anos —comentou Madame Jeanne— Estes escoceses pagãos não estão habituados com oslicores civilizados. Nossos clientes nunca pedem outra coisa que não seja whisky, cerveja e oconhaque.

—Exatamente, Madame —assentiu Fergus— Não convêm que os homens de MacAlpineprovem o conteúdo deste tonel, verdade?

—Mas alguem abrirá esse tonel, mais cedo ou mais tarde —objetei— Não quero sergrosseira, mas…

—Exatamente, milady. —Fergus me dedicou una respeitosa reverencia— Ainda que ocreme de menta tenha um alto teor alcoólico. O sótão dessa taberna é somente uma pausamomentânea na viagem do nosso desconhecido, antes do seu descanso eterno. Amanhã irá aocais e, dali, a algum lugar muito mais distante.

Jeanne se dirigiu a porta, dando de ombros.—Amanhã, quando as rameiras estiverem desocupadas, lhes perguntarei se tem visto esse

marinheiro, Monsieur. No momento…—No momento, falando de estar desocupada… —interrompeu Fergus - É possível que

Mademoiselle Sophie esteja livre essa noite?A Madame lhe dirigiu um olhar irônico.—Assim que os vi entrar, mon petit saucisson, suponho que se tenha mantido livre. —Jogou

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os olhos sobre o jovem Ian, jogado entre as almofadas como um espantalho sem seu recheio depalha— E devo providenciar uma cama para este jovem cavalheiro?

—Oh, sim. —Jamie observou o seu entristecido sobrinho — Poderia por um colchão nomeu quarto.

—Oh, não! —balbuciou o jovem Ian— Sem duvidas queres ficar a sós com a sua esposa,verdade tio?

—Quê? —Jamie o olhou sem compreender.—Bom, quero dizer… —O menino me olhou indeciso— Suponho que necessitarás… h…

Hum?Como todo escocês das Terras Altas, conseguiu dar um toque de impudicia a última silaba.—Caramba, tens muita consideração, Ian. —A voz de Jamie soou um pouco estremecida

por seu esforço de não rir.— E me alegra que tenhas uma opinião tão alta sobre a minhavirilidade para acreditar que eu seria capaz de algo além de dormir depois de um dia como este.

Mas creio que por esta noite posso deixar os meus desejos carnais sem satisfação… Apesarde gostar muito de sua tia.

— Bruno me disse que não há muito movimento no estabelecimento esta noite—interveioFergus um pouco desconcertado— Que problema ha de o menino…?

— Ele tem apenas quatorze anos, por Deus! —protestou Jamie escandalizado.- Quase quinze! —corrigiu o jovem Ian com expressão de interesse.— Bom, é suficiente, sem duvidas —assegurou Fergus pedindo a confirmação de Madame

Jeanne com o olhar—. Teus irmãos não passavam dessa idade quando tiveram sua primeiravez. E cumpriu com todas as honras.

— O que está dizendo? —Jamie olhava o seu protegido com os olhos arregalados.— Bom, alguém tinha que se ocupar disso.— disse Fergus com impaciência —

Normalmente é o pai, mas Monsieur não é… Sem intenção de faltar com respeito a seuestimado pai, mas —falou se dirigindo ao jovem Ian—, este assunto é para alguém maisexperiente, compreende?

Logo se voltou para Madame Jeanne como um gourmand que consulta seu camareiro. —Bem… Dorcas, o que te parece? Ou Penélope?

— Não, não —disse ela sacudindo a cabeça com decisão— Tem que ser a segunda a Mary,sem duvida. A pequena.

—Ah, a ruiva? Sim, creio que tem razão —aprovou Fergus— Traga-a então.Jeanne saiu sem que Jamie tivesse tempo para fazer outra coisa se não emitir um grunido de

protesto.— Mas… mas., o menino não pode…— Sim eu posso —assegurou o jovem Ian— Ao menos eu acredito.— E o que vou dizer a sua mãe? —perguntou.A porta se abriu, então vimos uma muito baixa, suave como uma perdiz, de cara radiante

emoldurada por uma cabeleira ruiva. Ao vê-la o jovem Ian ficou petrificado; apenas podiarespirar.

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Quando já não podia seguir contendo seu fôlego sem cair desmaiado, se voltou para Jamiesorrindo com arrebatadora doçura.

—Bem, tio Jamie, em teu lugar… — sua voz subiu subitamente com uma alarmante nota desoprano. Depois de pigarrear continuou, com respeitável voz de barítono—: Em teu lugar nãodiria nada. Boa noite tia.

E saiu com ar decidido.— Não sei se devo matar Fergus ou lhe dizer obrigado.Jamie, sentado na cama, desabotoava lentamente a camisa.— Suponho que deva fazer o que mais convenha ao jovem Ian.— Sim, com essa maldita imoralidade dos franceses.— Foi o arcanjo Miguel que expulsou Adão e Eva do Éden? — perguntei enquanto tirava as

meias.Jamie riu baixo.— Pareço-me com isso? O guardião da virtude? E Fergus seria a serpente maligna? —

Pegou-me pelos braços para me levantar— Vem aqui, Sassenach; não gosto de te ver dejoelhos me servindo.

— Hoje tem sido um dia difícil —Decretei obrigando-o a se levantar comigo—, ainda quenão tenha matado ninguém.

Apoiou a bochecha nos meus cabelos.— Na realidade, não tenho sido totalmente sincero com esse garoto —confessou.— Não? Na minha opinião, você tem sido maravilhoso. Pelo menos conseguiu com que se

sentisse melhor.— Sim, assim espero. E se as orações, ainda que não lhe sirvirem de nada, pelo menos não

lhe fazem mal. Mas não disse tudo. Geralmente nós só conhecemos um homem quando nosfere a alma por ter matado ou quando ele procura uma mulher, Sassenach — explicousuavemente—. A própria se puder ser. Se não, qualquer outra. Porque ela pode fazer o queninguém mais pode… cura-lo.

Soltou a braguilha de sua calça.— Por isso que o deixou ir a segunda Mary?Encolheu os ombros e se afastou para tirar a calça.— Não podia detê-lo. E pensei que era melhor permitir, ainda que seja tão jovem. —Me

dedicou um sorriso torcido— Ao menos não passará a noite desesperado pensando nessemarinheiro.

— Suponho que não. E você? —Lhe tirei a camisa.— Eu? —Me olhou com as sobrancelhas arqueadas a camisa suja descendo pelos ombros.— Sim. Não mataste ninguém, mas…não quer…?O sorriso que se instalou em seu rosto, eliminou qualquer semelhança com Miguel, o severo

guardião da virtude.— Suponho que sim —disse—. Mas trata-me com suavidade, querido?

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CAPÍTULO 29A ÚLTIMA VÍTIMA DE CULLODEN

Pela manhã, quando Jamie e Ian partiram para cumprir com sua piedosa tarefa, saí atrásdeles. Me detive a comprar um grande cesto de vime de um vendedor de rua; já era hora decomeçar a ter os utensilios médicos que pudesse encontrar. Vistos os acontecimentos do diaanterior, temia que muitoem breve me fizesse falta.

A farmacia de Haugh não havia mudado em nada. O homem que atendia o balcão era umautentico Haugh muito mais jovem daquele que conheci a vinte anos atrás, quando ajudava oseu negócio buscando dados sobre os militares, e mais as ervas e outros remédios.

Esse jovem Haugh não me conhecia, claro, mas se dedicou amavelmente a buscar as ervasque eu desejava. No local havia outro cliente rondando o balcão onde se preparavam as poçõesmagistrais. Andava de um lado ao outro com obvia impaciencia e com as mãos cruzadas nascostas. Por fim se aproximou ao balcão.

- Quanto falta? - espetou.- Não sei dizer, reverendo - respondeu o farmaceutico em tom de desculpa - Louisa disse

que era necessário ferve-lo.Aquele homem me era conhecido, mas não tive tempo de pensar onde havia visto antes. O

senhor Haugh olhava com ar em dúvida a lista que eu lhe havia dado.- Acónito, acónito - murmurou - O que é?- Bom, entre outras coisas um veneno - disse.O farmaceutico ficou boquiaberto.- E também um remédio - lhe assegurei - É preciso por com muito cuidado ao utilizá-lo. Em

uso externo é bom para o reumatismo. Uma quantidade muito pequena ingerida por via oralabaixava o ritmo do pulso e é bom para certas enfermidades do coração.

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- Caramba - se maravilhou o senhor Haugh gaguejando. Logo se voltou até as estantes comar indefeso e mostrando interesse. - É…sabes que cheiro tem?

Interpretando isso como um convite, rodeei o balcão para inspecionar os frascos.- Temo que ainda não sou tão hábil com os medicamentos como era o meu pai - disse o

jovem. - Ele me ensinou muito mas morreu faz um ano e aqui tem coisas cujo uso desconheço.- Bem, este serve para tosses - informei baixando um frasco de helenio enquanto dava uma

olhada ao impaciente reverendo, que havia tirado um lenço e respirava asmáticamente -Sobretudo ainda com tosse provocada pelo catarro.

Observei as estantes cheias franzindo a testa. Tudo estava impecavelmente limpo masobviamente não havia sido guardado por ordem alfabética nenhum remédio. O senhor Haughhavia se baseado na memória algum tipo de sistema? Fechei os olhos, tratando de recordarminha última visita a farmácia.

- Ali. - Com bastante segurança minha mão se aproximou do frasco rotulado Dedaleira. Nooutro lado, Cola de Caballo, do outro, Raiz de Muguet. Repassei mentalmente os possíveisusos dessas ervas, todas eram para doenças cardíacas. O Acónito não devia de estar longe.

O encontrei muito rápido, em um frasco que entreguei cautelosamente ao senhor Haugh.- Tenha cuidado.Basta um pouquinho disto para que se adormeça a pele. Seria melhor se

pusesse em um frasco de vidro.- Parece saber muito mais de remédios que este jovem - disse detrás de mim uma voz grave

e rouca.- Bem, provavelmente tenho mais experiencia que ele. - O sacerdote estava apoiado ao

balcão e me observava; seus olhos eram de um azul muito pálido embaixo das grossassombrancelhas. Me sobressaltei ao recordar onde o havia visto: na taberna de Moubray, no diaanterior. Não deu sinal algum de me reconhecer.

- Hum, o que faria com uma doença nervosa?- Que tipo de doença nervosa?Franziu os lábios e a expressão, duvidando se confia em mim.- Bem, é um caso complicado. Mas em geral, o que receitarias para uma especie de …

ataque?- Convulsões epilépticas? O enfermo cai no chão e se retorce?- Não, outro tipo de ataques. Uiva e fica imóvel.- As duas coisas ao mesmo tempo?- Não - esclareceu precipitadamente - Primeiro uma coisa e depois a outra. Passa dias

inteiros muda, com a vista fixa e de repente grita como para despertar os mortos.- Há de ser muito incomodo - Se sua esposa atua assim, isso explica as profunda rugas que

rodeavam a boca e os olhos e as grandes orelhas azuis. Tamboriei com um dedo o balcãoreflexionando. - Não sei.Teria que ver a enferma.

Ele passou a lingua pelo lábio inferior.- Talvez…estaria disposta a visitá-la? Não estamos longe - disse com bastante rigidez.- Neste momento não posso - expliquei - Devo me encontrar com meu esposo. Mas esta

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tarde, talvez…- As duas. Na pousada de Henderson, em Carrubbers Close. Meu nome é Campbell.

Reverendo Archibald Campbell.Antes de que eu pudesse responder sim ou não, se abriu a cortina da dependencia e o senhor

Haugh apareceu com seus frascos.O reverendo olhou os seus com suspicacia enquanto buscava uma moeda no bolso.- Bom, aqui está o preço - disse de má voltande deixando no balcão. - Espero que me tenhas

dado o que eu queria, não o veneno da senhora.A cortina voltou a abrir; uma mulher apareceu com a cabeça e seguiu com a vista ao

sacerdote enquanto se retirava.- Menos mal que se vá - comentou - Meio penique por uma hora de trabalho, e ainda insulta!

O senhor poderia ter escolhido melhor, ao menos, isso eu pensei.- O conheces? - perguntei.- Não, não posso dizer que o conheça bem - Louisa me olhava com franca curiosidade - é

um desses ministros da Igreja Livre; ele passa o dia berrando na esquina do mercado. O que mesurpreende é que alguém como ele venha em nossa farmácia, sabendo o que pensa os padresem geral. - Me cravou uma olhada. - Sem animo de ofende-los senhora, se voce também é daIgreja Livre.

- Não, eu também sou católica…e… papista - lhe assegurei - Pensei que poderias saber algosobre a esposa do reverendo e sua enfermidade.

Louisa mexeu a cabeça, voltando-se para outro cliente.- Não, nunca a ví. Qualquer que seja sua enfermidade - disse, viver com esse homem não lhe

aliviará muito.Fazia frio mas estava limpo. No jardim da diretoria somente ficava um vago cheiro da

fumaça como lembrança do incendio. Jamie e eu nos sentamos em um banco apoiado a paredeabsorvendo o pálido sol de inverno enquanto esperávamos que o jovem Ian terminasse suaconfissão.

- Foi voce que contou a Ian esse monte de mentiras que disse ontem sobre mim?- Ah,sim. Ian é muito inteligente para acreditar, mas era uma história bastante aceitável e ele

é muito bom amigo para exigir a verdade.- Suponho que, para o consumo geral, serve - disse - Mas não devia ter dito o mesmo ao

senhor Percival, em vez de permitir pensar que estávamos recem casados?Sacudiu decidamente a cabeça.- Oh, não. Não quero que me associe com Culloden. Se lhe contar o mesmo que a Ian daria

muito mais que falar.Se pos em pé e alargou o pescoço, tentando olhar por cima do muro até o jardim da

diretoria.- Este jovenzinho está demorando demais - comentou enquanto voltava a se sentar - Tantas

coisa tem para confessar, quando ainda nem havia cumprido os quinze anos?- Depois do dia e da noite que aconteceu ontem? Tudo depende dos detalhes que lhe pede o

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padre Hayes - comentei recordando meu café da manhã com as rameiras - Ficou aqui todo essetempo?

- É…não.- Jamie ruborizou um pouco nas orelhas à luz matinal - Eu..é…tive que entrarprimeiro. Para dar exemplo, sabe?

- Agora isso explica porque demorou tanto - brinquei - Quanto tempo faz que voce não seconfessava?

- Seis meses. Isso é o que disse o padre Hayes.- E está certo?- Não, mas já que ia me castigar por roubo, violencia e blasfemia, bem podia castigar-me

também por mentir.- Como! Nada de fornicação nem de pensamentos impuros?- Não, em absoluto - replicou austero - Se podem pensar coisas horriveis sem que seja

pecado, sem fazer referencia a esposa. É impuro somente quando pensas em outras damas.- Não tinha ideia de que meu regresso era para salvar-te a alma - disse recatada - mas me

alegro de ter essa utilidade.Se deitou a rir. Logo me deu um grande beijo.- No ano passado conheci um judeu - comentou - Um filósofo nato que havia dado a volta

ao mundo seis vezes. Segundo me disse, tanto a fé mulçumana como os ensinos judeus, diz quemarido e mulher quando fazem amor é um ato de virtude.

Talvez tem algo haver com o fato de que os judeus e mulçumanos praticam a circuncisão -disse pensativo - Não me ocorreu perguntá-lo…mesmo porque poderia parecer um poucoindelicado.

- Não acho que um prepucio mais ou menos possa prejudicar a virtude. O que aconteceucom seu rosário? - perguntei reconhecendo ele que havia caido na grama. - Parece comidopelos ratos.

- Ratos não. - disse - Crianças.- Que crianças?- Oh, qualquer uma que está próxima - disse encolhendo os ombros e guardando o rosário no

bolso. - O jovem Jamie já tem tres e Maggie e Kitty, dois cada uma. O pequeno Michael acabade se casar e sua esposa já está esperando. Ignoravas que te haviam feito tia-avó sete vezes, nãoé?

- Tia-avó? - repeti estupefatada.- Bem, eu sou tio-avô - apontou alegremente - e não me parece tão terrivel, exceto por

morderem meu rosário quando estavam saindo os dentes. Isso é que me chamam «tito».As vezes, esses vinte anos pareciam um só instante enquanto que outras vezes sentia um

tempo muito grande.- É…Espero que não haja um equivalente feminino de «tito».- Oh, não - me assegurou - Para todos és a tia-avó Claire. E falam de voce com muitíssimo

respeito.- Mil vezes obrigada - murmurei pensando na ala geriátrica do hospital.

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Jamie se deitou a rir. Com uma rápida provocada, sem dúvida, por sua recente liberação detodo pecado, me pegou pela cintura para sentar-me em seu colo.

- Nunca havia visto uma tia-avó com um traseiro tão bonito - disse fazendo-me saltar sobreseus joelhos.

E me mordeu suavemente a orelha. Soltei um grito.- Está bem, tia? - nós olhamos a nossas costas, cheia de preocupação, a voz do jovem Ian.Jamie deu um sobressalto que esteve a ponto de tirar-me de seu colo. Logo me segurou a

cintura com mais força.- Claro que sim - disse - É que tua tia acaba de ver uma aranha.- Onde?- Ali em cima - Jamie me deixou para levantar-se e acenou a rama da tília.

Realmente havia uma aranha estirada entre as ramas, cintilante pela umidade.- Tio Jamie, podes me emprestar o rosário? - perguntou o menino quando saimos dos

empedrados da Royal Mile. - O padre me disse que devo rezar cinco decenários comopenitencia. E são demais para se contar nos dedos.

- Encantado Jamie se deteve para tirar o rosário do bolso. - Mas não esquece de medevolver.

O menino sorriu.- Sim, já sei que voce também vai precisar, tio Jamie. - Me piscou um olho sem pestanas. -

O padre me disse que tem sido muito mal e me aconselhou a não imitá-lo.- Hum… - Jamie tinha um brilho rosado nas bochechas.- Quantos decenários deves rezar como penitencia? - perguntei por curiosidade.- Oitenta e cinco - murmurou.O sobrinho ficou boquiaberto.- Quanto tempo faz que não se confessava, tio?- Muito - respondeu Jamie secamente - Vamos!Depois de comer, Jamie devia se reunir com um certo senhor Harding, representante da

companhia com a que tinha assegurado o local da imprensa, a fim de inspecionar os restos paraverificar as perdas.

- Não te necessito, filho - disse em tom tranquilizador ao jovem Ian, que não parecia muitoentusiasmado pela perpectiva de voltar ao cenário de sua aventura. - Vá com tua tia visitar essalouca - se voltou para mim com uma sombrancelha alta - Não sei como o fazes. Tens apenasdois dias na cidade e já tens enfermos em vários quilometros ao redor pendentes as tuasatenções.

- É somente uma mulher. E nem sequer a tenho visto ainda.- Bom, ao menos a loucura não é contagiosa…isso eu espero. - Me deu um beijo e uma

palmada no ombro de seu sobrinho - Cuida bem da tua tia, Ian.

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O menino seguiu com os olhos em sua alta silhueta.- Quer ir com ele, Ian? - lhe perguntei - Posso me arranjar sozinha.- Oh, não, tia! Parecia bastante encabulado. - Não quero ir, nem pensar. Somente…me

estava perguntando se…bom, se encontrariam algo. Nas cinzas- Um cadáver, quer dizer - disse sem rodeios.O menino assentiu, inquieto.- Não sei - disse - Se o fogo foi muito intenso, talvez não tenha nada. Mas não se preocupe.

Teu tio saberá o que fazer.Se iluminou o rosto; tinha fé na capacidade de Jamie para manejar qualquer tipo de

situações. Então começou a sonar os sinos da igreja.- Vamos. Já são duas horas.Apesar de sua conversa com o padre Hayes, Ian tinha um certo ar sonhador. Conversamos

muito pouco enquanto subíamos a costa da Royal Mile até o albergue de Henderson.Um menino nos conduziu ao terceiro piso, onde a porta foi aberta de imediato por uma

robusta mulher com avental, que luzia uma expressão preocupada. Mas não aparetanva mais devinte e cinco anos, já havia perdido vários dentes.

- És a dama que o reverendo me anunciou? - Ante meu gesto afirmativo, sua expressão seanimou um pouco. - O senhor Campbell teve que sair mas disse que estaria muito agradecidopara ver o que poderia ser feito por sua irmã, senhora.

Irmã, não esposa.- Bem, farei o que puder - prometi - Posso ver a senhorita Campbell?Deixando Ian na sala com suas lembranças, passei no dormitório do fundo com a mulher

que disse chamar-se Nellie Cowden.Tal como havia me anunciado, a senhorita Campbell tinha um olhar fixo, mas seus olhos

azuis não pareciam ver nada. Nem sequer a mim. Estava sentada em uma cadeira larga e baixa,de costas ao fogo.

- Senhorita Campbell? - pronunciei com cautela.- Quando está assim não responde - explicou Nellie Cowden . E mexeu a cabeça limpando

mas mãos no avental. - Nem uma palavra.- Quanto tempo faz que está assim? - Levantou uma de suas rígidas mãos para buscar o

pulso, ali estava, lento mas bastante firme.- Oh, dois dias, de momento - A senhorita Cowden, interessada, se inclinou para observar o

aspecto de sua pupila. - Pode estar assim uma semana ou mais; treze dias chegou a estar umavez.

Enquanto examinava a enferma fiz algumas perguntas a mulher. A senhorita Margaretcampbell tinha trinta e sete anos e era o único membro familiar do reverendo, com quem vive amais de vinte anos, desde a morte de seus pais.

- O que provoca isso? Voce sabe?A senhorita Cowden mexeu a cabeça.

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- Não senhora. Eu diria que não tem motivo. Parece estar bem, falando e rindo, e de repente!paf!

Estalou os dedos. Logo, para dar efeito a faze-los sonar deliberadamente embaixo do narizda mulher.

- Mas é pior quando se excita - me assegurou agachando-se ao meu lado enquanto eudescalçava a senhorita Campbell para provar seus reflexos.

- O que acontece então? Grita, como disse o reverendo? - Me levantei - Poderias trazer umavela acendida, por favor?

- Grita, sim. -A senhorita Cowden se apressou a acender uma vela. - As vezes grita de ummodo espantoso até ficar esgotada. Logo acaba dormindo. Dorme o dia inteiro e desperta comose não houvesse acontecido nada.

- E quando disperta, parece normal? - Movi a vela a poucos centímetros de seus olhos. Aspupilas se contrairam como resposta automática da luz, mas sem seguir os movimentos dachama.

- Bom, normal…não se pode dizer - disse lentamente a senhorita Cowden - A pobrezinhaestá mal da cabeça desdo os vinte anos.

- Mas não leva todo este tempo ao seu cuidado, não é?- Oh, não! Em Burntisland, onde viviam, o senhor Campbell tinha o cuidado de outra

mulher. Mas a senhora já não era muito jovem e não quis abandonar a casa. Quando oreverendo decidiu aceitar o oferecimento da Sociedade Missionária para levar a sua irmã asAntilhas, pediu um mulher forte, de bom caráter, a quem não lhe molestasse viajar com umaenferma. E aqui estou - A mulher me dedicou um sorriso desdentado, como testemunho de suasvirtudes.

- Para as Antilhas? Pensa embarcar com a senhorita Campbell?- Disse que com a mudança de clima poderia se sentir melhor - explicou - Estar longe da

Escócia, de tantas lembranças espantosas. Eu creio que deveria fazer isso a muito tempo.- De que lembranças espantosas me falas? - perguntei.A mulher se desviou até a mesa, onde havia uma garrafa e varias taças.- Bom, eu somente sei o que me contou Tilly Lawson, quem a cuidou durante muito tempo.Aceitaria uns tragos cordiais, senhora, para não depreciar a hospitalidade do reverendo?Enquanto bebiamos me contou a história de Margaret Campbell.Havia nascido em Burntisland, a uns oito quilometros de Edimburgo. Em 1745, quando

Carlos Stuart marchou até a cidade para reclamar o trono de seu pai, tinha dezessete anos.- Seu pai era monárquico, claro, e seu irmão estava em um regimento do governo que

marchou até ao norte para acabar com a rebelião. Mas a senhorita Margaret não: ela estava como Bonnie Prince e com os homens que o seguiam.

Com um deles, em especial, até a senhorita Cowden ignorava seu nome. Mas devia de haversido muito bravo, pois a senhorita Margaret saia escondido de sua casa para se reunir com ele edar-lhe todas as informações que tinha escutado das conversas de seu pai ou lendo as cartas deseu irmão. Depois se iniciou a retirada para o norte. Margaret, desesperada pelos rumores,abandonou sua casa no meio da noite para se reunir com o homem que amava.

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Ali o relato se tornava duvidoso: talvez encontrou o homem e ele a recusou; talvez não podefalar a tempo e se viu obrigada a regressar. De qualquer modo, iniciou a volta e , no dia depoisde Culloden, caiu nas mãos de uma legião de soldados ingleses.

- O que lhe fizeram foi horrível - disse a senhorita Cowden baixando a voz. - Horrível!Os soldados ingleses, cegados pela luxúria da perseguição e da matança, não pensaram em

perguntar-lhe seu nome nem as ideias políticas de sua família: pelo seu acento lheidentificaram como escocesa e com isso para eles bastou.

A abandonara, pensando que estava morta, em uma valeta cheia de água gelada, onderesgatou uma família de ciganos. Margaret sobreviveu, mas ficou assim. Viajou com osciganos até o sul, para evitar o saque das Terras Altas. Um dia, estando no pátio de umataberna recorrendo nas moedas enquanto os ciganos cantavam, encontrou seu irmão, que haviasido detido com seu regimento.

Todo aquele assunto havia deixado em Archibald Campbell um profundo rancor contra osescoceses das Terras Altas e do exército ingles, por isso que renunciou ao seu cargo. Depois damorte de seus pais se encontrou em uma posição aceitavelmente boa, mas era o único sustentode sua irmã enferma.

- Não pôde se casar - explicou a senhorita Cowden - Que mulher haveria aceitado-o com suairmã?

Antes suas dificuldades buscou refugio em Deus e se fez pregador, ocupação na qual tevemuito exito. Aquele mesmo ano, a Sociedade de Missioneiros Presbiterianos tinha oferecidouma missão nas Antilhas para organizar as igrejas de Barbados e Jamaica.

Dei uma última olhada na silhueta sentada junto ao fogo.- Bem - suspirei - , lamentavelmente não é muito o que posso fazer por ela. Mas deixarei

algumas receitas para que faça preparar na farmácia antes de partir.Anotei algumas ervas sedantes e tisanas que corrigem sua leve deficiencia nutricional. O

reverendo Campbell não havia regressado, mas não havia motivos para esperá-lo. Depois deme despedir da senhorita Campbell, abri a porta do dormitório. O jovem Ian me estavaesperando do outro lado.

- Oh! exclamou sobressaltado - Ia te buscar, tia. São quase tres e meia e o tio Jamie disse…- Jamie? - A voz sonou detrás de mim proveniente da cadeira posta junto ao fogo;A senhorita Cowden e eu giramos. Margaret Campbell estava muito erguida e seus olhos

estavam agora bem centrados. Ao entrar o jovem Ian, a enferma rompeu em alaridos.Bastante nervosos pela cena da senhorita Campbell, o menino e eu voltamos ao refugio do

bordel, onde recebemos o despreocupado cumprimento de Bruno, que nos fez entrar a sala dofundo. Ali estavam Jamie e Fergus, muito concentrados em sua conversa.

- É certo que não pode confiar em Sir Percival - disse Fergus - ,mas neste caso, por que oadvertiria sobre uma emboscada se esta não fosse ocorrer?

- Não sei - respondeu Jamie numa cadeira - Somente podemos pensar que a polícia templanejado uma emboscada. Dentro de dois dias, disseram. Isso significa que será na enseada deMullen.

Ao nos ver entrar se levantaram, oferecendo o assento.

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- Faremos nas rochas de Balcarres, não é? - perguntou Fergus.Jamie franziu o semblante, tamboreando sobre a mesa.- Não - resolveu - Que seja em Arbroath. Na pequena enseada, por debaixo da abadia.

Somente para ver se estamos certos, de acordo?- De acordo. - Fergus afastou o prato de tortas de aveia e se levantou - Farei correr a notícia,

milord. Em Arbroath,dentro de quatro dias.Depois de me saudar com uma inclinação de cabeça, se envolveu numa capa e saiu.- É o contrabando, tio? - perguntou o jovem Ian ansioso. - Vai vir uma embarcação

francesa?- Sim. E voce, joven Ian, não tens nada haver com o assunto.- Mas eu posso ajudar! - protestou o menino - Necessitarás de alguém que lhe segure as

mulas!- Depois de tudo que nos disse seu pai? Por Deus, que péssima memória tens, filho!Ian pareceu se ruborizar um pouco.- Vais a Arbroath por uma carga de licor? - perguntei - Não te parece perigoso depois da

advertencia de sir Percival?Jamie me olhou levantando uma sombrancelha e respondeu com paciencia.- Não. Sir Percival me advertiu que a polícia estará no nosso encontro combinado em cerca

de dois dias. Isso vai ser na enseada de Mullen. mas tenho um acordo com Jared e seuscapitães: se por algum motivo não pudermos assistir a reunião, a embarcação se manterá longeda costa e regressa na noite seguinte a um lugar diferente. E ainda temos um terceiro lugarcombinado, se o segunda encontro não se concretizar.

- Mas se sir Percival sabe sobre o primeiro encontro, não estaram tanto nos outros também?- insisti.- Não. Jared e eu combinamos os tres lugares por meio de uma carta selada, que veio dentro

de um pacote no nome de Jeanne. Depois de ler a carta, a queimei. Os homens que vemconosco conhecem o primeiro ponto, claro; suponho que alguns deles poderia deixar escaparalgo - disse cenhudo - Mas nada, nem sequer Fergus, conhece os outros lugares, a menos quedevemos ajudar um deles. E nesse caso todos sabem fechar bem a boca.

- Isso significa que não tem perigo, tio! - exclamou o jovem Ian - Deixame ir, por favor. Nãovou atrapalhar.

Jamie olhou seu sobrinho com certa irritação.- Voce vai comigo a Arbroath,mas ficarás com sua tia na pousada, perto da abadia, até que

tenhamos terminado. - Se voltou até mim. - Deve levar o menino a sua casa, Claire, e arrumaras coisas com seus pais da melhor forma que puder.

Ian pai havia abandonado a pousada nessa manhã, antes de que Jamie e seu filho chegassem,sem deixar mensagem alguma; era de presumir que estava a caminho de casa.

- Te incomoda fazer esta viagem? - me perguntou Jamie.- Em absoluto - lhe assegurei - Será um prazer ver outra vez Jenny e o resto de tua família.

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- Mas tio! - balbuceou o menino. - Que me dizes de…?- Cala-te - lhe espetou Jamie. - Não quero ouviu uma palavra mais, estamos entendidos?Depois, mais relaxado, me sorriu.- Bom, como foi tua visita a louca?- Muito interessante - assegurei - Conheces alguém que se chama Campbell, Jamie?- Existe uns trezentos ou quatrocentos - disse com um sorriso - Te referes a alguém em

particular?Lhe repeti a história de Archibald Campbell e sua irmã Margaret. Me escutou mexendo a

cabeça. Depois suspirou.- Me contaram coisas piores sobre o que aconteceu depois de Culloden - disse - Mas não

acho que…Espera. - Me olhou com os olhos entornados, pensativo. — Margaret Campbell.Margaret.É uma menina bonita e pequena, mais ou menos como a Mary? De cabelo castanhosuave como uma plumagem e rosto muito doce? - Acho que sim. - Desenhou uma linha entreas esmigalhas da mesa. - Se não me engano, era a noiva de Ewan Cameron. Lembra de Ewan?

- Claro. - Era um homem alto e arrogante, muito brincalhão, que trabalhava com Jamie emHolyrood reunindo informações que se filtravam da Inglaterra. - O que foi dele? Ou não devoperguntar?

- Os ingleses o fusilaram - respondeu em voz baixa - Dois dias depois de Culloden. Fechouos olhos. Depois voltou a abrir com um sorriso cansado.- Bem. Que Deus abençoe o reverendoArchie Campbell. Durante a rebelião ouvi mencioar seu nome um par de vezes. Diziam que eraum soldado audaz e valente. Suponho que agora necessita ser assim, coitado.

- Bem, há muito que fazer antes da viagem. Ouve, Ian: em cima, da mesa, encontrarás umalista dos clientes da imprensa. Trata de marcar os que ainda tem pedidos pendentes.

Deve ir ve-los, um por um, e oferecer a devolução do dinheiro. A menos que prefira esperarque eu consiga outro local e termine de instalar, mas adverte que pode demorar até dois meses.

Deu uma palmada em seu casaco, onde ele saiu rapidinho.- Por sorte, o dinheiro do seguro servirá para pagar as contas com os clientes. Ainda sobrará

um pouco. A propósito… - Se voltou até mim com um sorriso - Teu trabalho, Sassenach, seráconseguir uma costureira que te arranje um vestido decente em dois dias. Suponho que Daphnevai querer o vestido de volta. E não posso levar-te nua a Lallybroch.

CAPÍTULO 30

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O ENCONTRO

Durante a viagem ao norte, rumo a Arbroath, o principal entreternimento foi observar oconflito de vontades entre Jamie e o jovem Ian. Sabia por experiencia propria que a teimosia eraum dos componentes fundamentais do carater dos Fraser; ao que parecia, os Murray também nãoficavam atras, a menos que fossem os genes Fraser os que predominaram.

Esta luta entre eles se prolongou por bastante tempo, até chegarmos a Arbroath, no anoitecerdo quarto dia; ali descobrimos que a pousada onde Jamie pensava em me deixar junto com Ian,não existia mais. Só restara um muro semi destruido e uma das vigas chamuscadas; ainda mais, ocaminho estava deserto em vários quilometros pela redondeza.

Jamie ficou em silêncio, contemplando as montanhas de pedra. Era obvio que não podia nosdeixar num lugar lamacento e deserto. O garoto teve a prudencia de ficar em silêncio, mesmoque sua raquitica estrutura vibrasse de ansiedade.

— Está bem —disse Jamie, por fim, resignado— Podem vir. Mas somente até a beira ingremeIan, me entendeu? E cuida da sua tia.

— Entendi, tio Jamie —respondeu o jovem Ian com falsa bravura. Mas captei o olhar irônicode Jamie e compreendi que, se Ian devia cuidar de sua tia, a sua tia também deveria cuidar deIan. Dissimulei um sorriso com um gesto de acanhamento. O resto dos homens chegaram atempo ao lugar do Encontro. Justamente depois de escurecer. Entre eles se encontrava umasilhueta inconfundivel. Como condutor de uma grande carreta puxada por mulas, vinha Fergusjunto a um pequeno elemento; só podía ser o senhor Willoughby, a quem eu não via desde queatirara no homem misterioso, na escada do bordel.

— Espero que nesta noite não venha armado — murmurei Jamie.— Quem? —perguntou olhando na penumbra — Ah, o chinês? Não, ninguém está armado.Antes que eu pudesse perguntar por que, ele se adiantou para ajudar a colocar a carreta na

posição correta, apontada para a fuga. O jovem Ian se adiantou com passos decididos. Eu osegui, atenta a minha missão de custodia.

O senhor Willoughby se pôs na ponta dos pés para tirar, da parte traseira da carreta, umalamparina de aspecto estranho; coberta por cima por uma peça de metal perfurado e com os ladostambém de metal.

— É uma lâmpada para fazer sinais? —perguntei fascinada.—Exatamente —confirmou o menino com ar de importância— Tem que manter os lados

fechados para que se veja o sinal no mar. Deixa comigo. Eu me encarrego disso. Conheço osinal.

O senhor Willoughby se limitou a menear a cabeça, pondo a lamparina fora de seu alcance.—Alto demais, jovem demais —declarou— Disse Tsei-mi.—O que? — O jovem Ian estava indignado— O que significa isso de alto demais e jovem

demais, pedaço de…?—Significa —Esclareceu uma voz serena a nossas costas — que quem sustenta oferecerá um

bom alvo se tivermos visitas. O senhor Willoughby tem a gentileza de assumir o risco por que éo mais baixo de todos. Você é bastante alto para se destacar abaixo do céu, pequeno Ian, e

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bastante jovem para não ver nenhum mal nisso. Deixa de estorvar, quer?O senhor Willoughby abriu a lamparina. Se ouviu um estalido agudo, que se repitiu duas

vezes e distingui o crepitar de uma pedra.Aquele lado da costa era pedregoso e rustico, como quase toda a costa Escocia. Me perguntei

como e onde poderia ancorar o barco francês, já que não havia uma enseada natural.Outra silhueta negra se ergueu subitamente do meu lado.—Tudo preparado, senhor —disse em voz baixa— Em cima, nas rochas.—Bom, Joey. —Um súbito fulgor iluminou o perfil de Jamie, concentrado no pavio recém

acendido. Contendo o folego, para que a chama crescesse e se estabilizasse. Logo fechousuavemente o lado metalico soltando um suspiro.

—Bom —repitiu levantando-se. Deu uma espiada na costa sul, observando as estrelas— Sãoquase nove. Não tardarão. Lembre-se, Joey: que ninguem se mova até que eu dê a ordem.Entendido?

—Sim, senhor.—Tenha certeza —insistiu Jamie— Repita isso a todos: que ninguém se mova até que eu

ordene.—Sim, senhor —repetiu Joey, desta vez com mais respeito.E desapareceu na noite sem fazer ruídos.— Aconteceu alguma coisa? —perguntei com voz audivel apenas sobre o rumor das ondas.Jamie mexeu a cabeça. O que havia dito a Ian era certo: sua propria silhueta se destacava

nitidamente abaixo do céu pálido.—Não sei —vacilou por um momento— Ouça, Sassenach, sente algo?Respirei fundo, surpresa.—Nada estranho, que eu saiba. E você?Os ombros da silhueta se levantaram e voltaram a descer.—Agora não, mas por um momento havia jurado que sentia cheiro de pólvora.—Eu não sinto nada —disse o sobrinho com a voz alterada pela excitação. Apressou-se em

pigarrear assustado — Willie MacLeod y Alec Hays revisaram as pedras. Não encontraramsinais da polícia.

—Melhor assim. — A voz de Jamie soava intranqüila. Disse ao jovem Ian por um ombro —Agora se encarregue de sua tia, Ian. Vão os dois por essas matas de aliagas; se mantenham bemlonge da carroça. Se acontecer alguma coisa, Ian, leva a sua tia diretamente para casa, paraLallybroch. Imediatamente.

— Mas… —protestei.— Tio! — disse o jovem Ian.—Obedeça —ordenou Jamie em tom severo.Nos voltou as costas, dando a discussão por encerrada.O jovem Ian permaneceu contrariado, mas fez o que lhe havia sido ordenado. Nos

instalamos em uma pequena colina.

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—Daqui se vê a agua —sussurrou desnecessariamente.Serrei os olhos, tratando de localizar o senhor Willoughby e a sua lâmpada, mas não vi luz

alguma. Supus que a estivesse ocultando com seu próprio corpo.De repente o jovem Ian ficou rígido.— Vem vindo alguém! —susurrou— Rápido, esconda-se atrás de mim.E se plantou intrépidamente a minha frente, colocando uma mão embaixo da camisa para

sacar uma pistola. Apesar da escuridão, vi um vago esplendor das estrelas no cano da arma.— Não dispare, por Deus! — Lhe sussurrei sem atrever-me a segurar ou tocá-lo por medo

de que disparasse.— Agradeceria se você obedecesse a sua tia, Ian — respondeu a suave e irônica voz de

Jamie por debaixo da costa — Não quero que me voe a cabeça.Ian abaixou a pistola, encolhendo os ombros com um suspiro que podia ser de alivio ou

decepção. As aliagas estremeceram-se; em instantes Jamie estava conosco, arrancando ortigasda manga.

— Ninguem lhe disse que não devia vir armado? — Jamie falava com calma—. Apontaruma arma para um funcionario da Alfandega Real é um delito que se castiga com a forca —meexplicou— Nenhum dos homens está armado, nem sequer com uma faca de pescador, sedefendem no braço.

—Bem, Fergus me disse que não me enforcariam, pois ainda não tenho barba —explicouIan incomodado— Disse que só me deportariam.

Jamie ofegou com os dentes apertados, em um gesto de exasperação.—Oh, claro. suponho que para sua mãe seria um grande prazer saber que te deportaram para

as colonias, no caso de Fergus ter razão! — Estendeu a mão — Dê-me isso, tonto.Rodou a pistola nas mãos.—Onde adquiriu-a? Está carregada. E me parecia que havia sentido a polvora. Tem sorte de

eu não ter percebido essa arma ou te arrancaria os ovos pelas calças.Antes de que o jovem Ian pudesse responder, havia um sinal no mar:—Olhe!O barco frances era pouco mais que uma mancha sobre a água. jamie não prestava atenção;

ele olhava para baixo. Seguindo a direção de seus olhos destingui um pequeno ponto luminoso:o senhor Willoughby com a lanterna.

Houve um breve lampejo de luz, que cintilou nas rochas molhadas antes de desaparecer. Amão de Ian estava tensa em meu braço. Esperamos trinta segundos, contendo o ar. Outrolampejo iluminou a espuma.

- O que é isso? - perguntei- O que? – Jamie olhava agora até ao barco.- Na costa; quando se acendeu a luz me pareceu ver algo semi enterrado na areia.Parecia…Se produziu um terceiro lampejo. Um momento depois, o veículo acendeu uma luz como

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resposta: uma lamparina azul, um vulto misterioso pendurado num mastro grande, que seduplicava sobre a água escura.

- A maré está subindo - me sussurou Jamie ao ouvido - As ancaras flutuam; a corrente irátrazer até a costa em poucos minutos.

Isso resolvia o problema da ancoragem: não necessitava amarrar o barco. Mas como seefetuaria o pagamento? Antes de formular a pergunta ouvi um grito inesperado. Embaixoestalou um verdadeiro inferno.

De imediato, Jamie abriu o passo por entre as matas de aliagas, seguido próximo por Ian epor mim. Era pouco o que se podia ver com claridade, mas na praia reinava o caos. Haviasilhuetas escuras rodando sobre a areia, acompanhadas de gritos. Destingui as palavras:<<Alto, em nome do rei>>, que me congelou o sangue.

- Policiais! - O jovem Ian também havia ouvido.Jamie disse um palavrão em gaélico. Logo deixou a cabeça para trás e gritou algo. Sua voz

soou com claridade na praia.—Éirich ‘illean! —aulló— Suas am bearrach is teich! —Logo se voltou para nós — Saem

daquí!Da praia surgiu um grito agudo, tanto que impos os outros ruidos.- Esse é Willoughby! —exclamou Ian - O pegaram!Sem prestar atenção ao Jamie, que nos ordenava fugir, nós dois nos adiantamos para espiar

entre as aliagas. Havia figuras negras bamboleando e lutando entre a pilha de algas. O brilhodifuso da lanterna bastava para mostrar as silhuetas entrecruzadas; a mais pequena esperneavadesesperadamente enquanto o sustentavam inquieto.

- Irei buscá-lo! - Ian se lançou adiante, até que Jamie o segurou pela gola da camisa.- Faça o que eu te disse! Leve a minha esposa onde não corra perigo!O jovem Ian se voltou para mim, ofegante, mas eu não pensava ir a nenhuma parte; estagnei

os pés na terra, resistindo aos seus puxões. Jamie, sem prestarnos mais atenção, correu paralonge do escarpado e se deteve a varios metros. Vi claramente sua figura recortada abaixo docéu; logo cravou um joelho na terra para afirmar a pistola no antebraço, apontando para baixo.

O ruido do disparo se perdeu no meio do tumulto. Não obstante, o resultado foi espetacular.A lanterna estalou com uma chuva de azeite ardente, que escureceu subitamente a praia e calouos gritos.

Uns segundos depois,o silencio se quebrou com um uivo de dor e indignação. Meus olhos,momentaneamente cegados pelo lampejo da lanterna, se adaptaram rapidamente. Então vioutro briho: a luz de varias chamas pequenas que pareciam subir e baixar erraticamente.Surgiam da manga de um homem, que saltava gritando e golpeando inutilmente o fogo iniciadoem suas roupas pelo azeite inflamado.

As matas de aliagas se sacudiram violentamente Jamie se jogou ladeira abaixo,desaparecendo de meus olhos.

- Jamie!Incentivado pelo meu grito, o jovem Ian se atirou em mim com mais força e me afastou do

escarpado quase a rastras.

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- Vamos tia! Em um momento estarão aqui!Era certo, já se ouviam as vozes que se aproximavam pela praia; Os homens começaram a se

pendurar pelas rochas. Levantei a minha saia e comecei a correr, seguindo o menino tãodepressa como pude entre as duras ervas do escarpado.

Ignorava onde íamos, mas o jovem Ian parecia saber.- Onde estamos? - ofeguei quando diminuimos a marcha, na beira de um rio.- Ali adiante está o caminho de Arbroath - explicou. Respirava com dificuldade e tinha uma

mancha de lodo na camisa. - Em seguida a trilha será mais fácil. Está bem, tia? Quer que televe nos braços?

Recusei cortesmente seu galante oferecimento, sabendo que pesava tanto como ele. Depoisde tirar os sapatos e as meias, cruzei o rio, afundada na água até os joelhos; o lodo gelado meescorria entre os dedos dos pés. Ao sair, tremendo espasmodicamente, aceitei o casaco que Ianme ofereceu.

Excitado como estava não o necessitava. Saimos do caminho, ofegantes e com o vento friosurrando nosso rosto.

- Algum sinal no escarpado? - perguntou um grave voz masculina.Ian se deteve tão bruscamente que me choquei contra ele.- Ainda não - foi a resposta - Eu acho que ouvi alguns gritos por aquele lado, mas logo

mudou o vento.- Bom, sobe outra vez a árvore idiota - disse a primeira voz com impaciencia-Se esses filhos

da puta escaparem da praia nós pegaremos eles aqui. É melhor que a recompensa seja para nóse não para esses vermes da costa.

- Faz frio - disse a segunda voz - Aqui, o campo é aberto, o vento te roe os ossos. Oxalá setivessemos pego o plantão na abadia. Ao menos ali estariamos abrigados.

O jovem Ian estava me apertando o braço com tanta força que ia me deixar hematomas.Tentei tirar para me libertar, mas ele não prestou atenção.

- Sim, mas teriamos menos possibilidades de pegar o tubarão - replicou a primeira voz - Ah,o que eu não faria com cinquenta libras!

- Está bem - disse a segunda voz resignada - Mas não sei como vamos ver seu cabelo ruivonesse escuro.

- Basta derrubá-lo, Oakie; depois teremos tempo de mirar sua cabeça.Por fim meus puxões conseguiu tirar de seu transe o jovem Ian, que me seguiu até a beirada

do caminho, entre o matagal.- Ao que se referiam com esse plantão na abadia? - perguntei quando me pareceu que os

guardas não podiam nos ouvir - Sabes algo?- Creio que sim, tia. Tem que ser a abadia de Arbroath. Esse é o ponto do encontro, não?- Que ponto de encontro?- Só sei que algo saiu errado - explicou ele. Então cada um teve que se virar como pôde e

encontrar com os demais na abadia enquanto espera passar o perigo.- Bom, as coisas não haviam saido pior - observei – O que foi que gritou teu tio quando

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apareceu os policiais da Aduana?- Disse: <<para cima, rapazes! Pelo escarpado e a correr!>>- Bom conselho - reconheci secamente - Se o seguiram, a maioria deve ter escapado.- Exceto tio Jamie e o senhor Willoughby. - O jovem Ian passou nervosamente a mão pelo

cabelo, fazendo-me pensar em Jamie.- Sim - respirei fundo - Bom, por agora não há nada que possamos fazer por eles. Os outros,

mudaram…se vão até a abadia…- Sim - me interrompeu - isso é o estou tentando decidir. Devo fazer o que disse tio Jamie e

levar-te a Lallybroch? Ou tratar de chegar a abadia para avisar os demais?- Vá a abadia - disse - tão rápida como podia.- Bom, mas…Não gostou de deixarte aqui sozinha, tia. E tio Jamie disse…- Terá tempo para obedecer as ordens, jovem Ian, e um tempo para pensar por sí mesmo -

disse com firmeza ignorando de que, na realidade, era eu quem estava pensando por ele - Estecaminho leva abadia?

- Sim. Está apenas a dois quilometros - Já estava brincando sobre a ponta dos pés, desejosode partir.

- Bem. Vai para a abadia por um atalho. Eu irei por esse caminho e tratarei de distrais ospoliciais até que voce tenha passado. Nos entraremos ali! Ah, espera! É melhor que ponhas ocasaco.

Me desprendi dele de má vontade e alarguei o braço para rete-lo um momento mais.- Ian?- Sim?- Cuidado, está bem?Seguindo um impulso, me empinei para dar-lhe um beijo na bochecha fria. Arqueou as

sombracelhas surpreendido, mas sorriu. Por fim num segundo desapareceu. Uma rama deamieiro voltou ao seu lugar detrás dele.

Me perguntava se era melhor fazer ruido. Ao contrário poderiam atacar-me sem previo avisoposto que os homens, ao ouvir meus passos poderiam tomar-me por uma contrabandista emfuga. Por outra parte, se caminha-se tranquilamente e catarolando, para demonstrar que erauma mulher inofensiva, poderiam permanecer ocultos para não denunciar a sua presença. E oque eu desejava era, justamente, que denunciassem sua presença. Me inclinei para pegar umapedra do chão. Logo, sentindo mais frio que nunca, sai ao caminho e segui andando sem dizernada.

CAPÍTULO 31

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Lua de contrabandistas

O vento mantinha as árvores e as matas em constante agitação, dissimulando o ruído deminhas pisadas no caminho… e também as de qualquer que pudesse estar me espreitando. Essanoite, a quinze dias de Todos os Santos, era uma daquelas em que era fácil acreditar emespíritos malignos.

Não foi um espírito o que me agarrou subitamente por trás, segurando uma mão em minhaboca. Se não tivesse estado preparada para tal eventualidade teria desmaiado de susto. Aindaassim o coração disparou e me sacudi entre os braços de meu captor.

Tinha me agarrado pela esquerda, segurando-me pelo braço contra as costas. Mas tinha obraço direito livre. Finquei-lhe o salto de meu sapato na patela e de imediato, aproveitando seumomentâneo cambaleio, lancei um golpe para trás, batendo-lhe na cabeça com a pedra quelevava na mão.

Foi só um atrito, mas bastante forte para arrancar-lhe um rosnado de surpresa e obrigá-lo aafrouxar sua pressão. Esperneei e me debati. No momento em que retirava a mão de minhaboca, finquei-lhe os dentes num dedo com tanta força como pude.

Não sei se meus músculos maxilares tinham tanta força como dizem os textos de anatomia,mas sem dúvida estavam causando efeito. Meu atacante se movia freneticamente tratando deliberar o dedo. Assim, foi forçado a afrouxar a pressão e a baixar-me. Quanto toquei o chãocom os pés deixei de mordê-lo e lhe apliquei uma boa joelhada nos testículos, com toda apotência que me permitiam as saias.

Esse tipo de golpe é supervalorizado como método defensivo. Isto é: dá resultados(espetaculares, por verdadeiro), mas manobrar para olhá-lo era mais difícil do que se poderiapensar, sobretudo quando se veste saias volumosas. Além disso, os homens se protegem muitonesses apêndices e estão alerta ante qualquer atentado que se tente contra eles.

No entanto, neste caso meu atacante estava com a guarda baixa e as pernas bem abertas paranão perder o equilíbrio; dei-lhe em cheio. Emitiu um horrível ruído, como um coelhoestrangulado, enquanto se dobrava em dois. —É voce, Sassenach? As palavras foram umsussurro na escuridão, a minha esquerda. Pulei como uma gazela assustada, lançando uminvoluntário alarido. Pela segunda vez, uma mão me fechou a boca. —Por Deus, Sassenach! —murmurou Jamie ao meu ouvido—. Sou eu. — Eu sei —disse entre dentes quando me soltou—Mas quem é o que me agarrou? —Fergus, suponho. É voce, Fergus?

Depois de receber uma espécie de ruído estrangulado a modo de resposta, agachou-se parapôr em pé à segunda silhueta. —Não fale! —sussurrei— Um pouco mais adiante há polícias.—Jura? —respondeu Jamie com voz normal— Não parecem ter muita curiosidade pelo ruídoque fizemos. Depois de uma pausa, me pôs uma mão no braço e gritou para a noite: —MacLeod! Raeburn! —Sim, Roy —respondeu uma voz um pouco irritada entre o matagal—Aqui estamos. Innes também. E Meldrum, não?

—Sim, sou eu. Arrastando os pés, falando baixinho, saíram outras figuras entre os arbustos.—Quatro, cinco, seis —contou Jamie— Onde estão Hays e os Gordon? —Vi que Hays semetia no água —informou um deles—.Deve de ter dado uma volta. Suponho que os Gordon eKennedy fizeram o mesmo. Não ouvi que os capturassem. —Alegro-me —disse Jamie— Bem,Sassenach, o que era isso de uns policiais? Já que Oakie e seu colega não apareciam, começava

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a sentir-me idiota, mas relatei o que Ian e eu tínhamos escutado. —Sim? —Jamie pareciainteressado— Pode manter-se em pé, Fergus? Sim? Bom moço! Bem, convém ir dar umaolhada. Meldrum, tens sílex?

Poucos segundos depois, levando uma pequena tocha que lutava por manter-se acesa,caminhou para baixo até perder-se depois da curva. Os contrabandistas e eu esperamos numsilêncio tenso, prontos para correr ou ir ao seu socorro, mas não tinha ruídos de emboscada.Depois de um tempo que nos pareceu eterno, a voz de Jamie veio flutuando pelo caminho.

—Venham —disse com serenidade. Estava no meio do caminho, próximo a um grandeamieiro. Por trás de seu ombro esquerdo se via outra cara suspensa no ar, mal iluminada: umacara horrível, parada, negra à luz da tocha, com os olhos desorbitados e a língua de fora. Ocabelo, loiro como palha seca, agitava-se ao vento. Tive que abafar um grito.

—Tinha razão, Sassenach —disse Jamie— Tinha um policial. —Atirou ao solo algo queaterrizou com um ruído seco—Uma credencial. Chamava-se Thomas Oakie. Alguém oconhece? —Tal como está agora, não —murmurou uma voz a minhas costas— Nem suaprópria mãe o reconheceria! Teve um murmúrio geral de negativas e um nervoso arrastar depés. Pelo visto, todos tinham tantas vontades como eu de abandonar aquele lugar. —Jesús! —murmurou Fergus contemplando o enforcado—Quem terá feito isso? —Eu fiz… Ao menos,isso é o que se dirá, não? —Jamie deu uma olhada para cima— Não vamos perder mais tempo.—E Ian? —perguntei recordando subitamente do moço— Foi à abadia para nos pôr sobreaviso. —Ah, sim? —A voz de Jamie se tornou mais áspera— Venho de lá e não me cruzei comele. Por onde foi, Sassenach? —Por ali —apontei. Fergus emitiu um bufo que pôde terparecido uma risada.

—A abadia está em direção contrária —explicou Jamie divertido— Vamos. O atingiremosquando se der conta do erro e inicie o regresso. —Esperem aí —pediu Fergus levantando umamão. Entre o matagal se ouviu um cauteloso murmúrio de folhas; depois, a voz do jovem Ian:—Tio Jamie? —Sim, Ian —disse o tio secamente— Sou eu. —Vi a luz e regressei para ver setia Claire estava bem. Não deves estar aqui com essa tocha, tio. Há polícias na área! Jamie lherodeou os ombros com um braço para dar-lhe a volta antes que pudesse ver o corpo doenforcado no chão. —Não se preocupe, Ian —disse sem alterar-se— Já se foram. E passou atocha pela erva molhada, onde se extinguiu o fogo com um sussurro. —Vamos —disseserenamente na escuridão— O senhor Willoughby está logo ali, com os cavalos. Ao amanhecerestaremos nas Terras Altas.

SÉTIMA PARTE

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De novo em casa

CAPÍTULO 32O regresso do filho pródigo

Foram quatro dias de viagem a cavalo, entre Arbroath e Lallybroch, nos quais as conversasforam escassas. Tanto o jovem Ian como Jamie estavam preocupados, provavelmente pordiferentes motivos. Por minha parte, não deixava de preocupar-me, não só pelo passadorecente, senão pelo futuro imediato. Jenny devia de estar informada por Ian de meu regresso.Como tomaria minha reaparição?

Jenny Murray era o mais parecido de uma irmã do que eu tivesse tido e, sem dúvida, aamiga mais íntima. Mas o mais importante era saber de que só Jenny amava a Jamie Frasertanto ou mais do que eu. Estava desejosa de voltar a vê-la outra vez, mas não podia deixar deperguntar-me como teria levado essa história de minha suposta fuga a França, abandonando oseu irmão.

O caminho era tão estreito que os cavalos deviam andar um por trás do outro. De repenteJamie deteve o seu e se desviou para um clarão, meio escondido pelos ramos do amieiro. Namargem tinha um barranco de pedra cinza. O jovem Ian desmontou de seu pônei com umsuspiro de alívio; montávamos desde o amanhecer.

—Ufa! —disse esfregando o traseiro sem disfarce— Tenho todo o corpo dormente.—Eu também —confessei imitando-o— Mas suponho que serão piores as chagas.—Como faz tio Jamie para agüentar? Deve de ter o traseiro de couro.—Pelo que eu vi não —repliquei distraída— Onde ele foi?O cavalo de Jamie mordiscava a erva atado sob um carvalho, a um lado do clarão, mas dele

não tinha sinais.Ian e eu nos olhamos sem compreender; encolhendo os ombros, aproximei-me do barranco,

por onde corria um fio de água. Fiz uma concha com as mãos para beber com gratidão olíquido frio, apesar do ar outonal que me enrijecia as bochechas. Quando voltei as costas aobarranco, com a sede já saciada, deparei-me com Jamie, que tinha aparecido ali como por artede magia. Estava guardando uma caixa de fósforos no bolso do casaco e trazia na roupa umvago cheiro a fumaça. Deixou cair um palito queimado à erva e o fez pó com o pé.

—De onde veio? —perguntei piscando— Onde tinhas se metido?—Ali há uma pequena gruta —explicou assinalando para trás com o polegar—Só queria ver

se alguém tinha estado ali.— E…?— Sim, teve alguém. —Tinha o cenho franzido mas não com ar de preocupação, senão

como se estivesse matutando— Encontrei carvão misturado com a terra; alguém tinha acendidofogo ali dentro.

—Quem pode ter sido? —perguntei colocando a cabeça pelo saliente que ocultava a boca dagruta. Só vi uma estreita faixa de escuridão, uma greta na face da montanha. Pareceu-me muitopouco acolhedora. Algum contrabandista conhecido seu podia tê-lo seguido desde a costa?

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Estaria preocupado pela possibilidade de uma perseguição ou uma emboscada? Dei umaolhada acima do ombro mas não tinha outra coisa que as amieiras com as folhas secassussurrando sob o vento outonal.

—Não sei —disse— Um caçador, suponho. Encontrei também ossos de aves silvestres. —Não parecia preocupar-se pela identidade do desconhecido. O jovem Ian, fascinado pela grutainvisível, tinha desaparecido através da greta. Por fim saiu, tirando uma teia de aranha docabelo.

—É como a “Gruta de Cluny”, tio? —perguntou com os olhos reluzentes.—Não tão grande, Ian —respondeu Jamie com um sorriso— O pobre Cluny não poderia

passar por esta entrada. Era um homem muito grande e gordo; dobrava-me em largura.—O que é a Gruta de Cluny? —perguntei.—Trata-se de Cluny MacPherson —explicou Jamie inclinando a cabeça para salpicar-se a

cara com água gelada— Um homem muito engenhoso. Os ingleses queimaram sua casa ederrubaram os alicerces, mas ele escapou. Construiu um pequeno esconderijo numa cavernapróxima e fechou a entrada com ramos de salgueiro entretecidas e enganchadas com barro.Dizem que a um metro de distância não se tinha nem idéia de que a gruta estivesse ali, a nãoser pelo cheiro de seu cachimbo.

—O príncipe Carlos também esteve um tempo ali, quando os ingleses o perseguiram —meinformou o jovem Ian

— Cluny o escondeu vários dias. —Vem se lavar, Ian —ordenou o tio com um jeito deaspereza— Não podes apresentar-se ante seus pais coberto de sebo.

Ian obedeceu com um suspiro. Não se podia dizer que estivesse coberto de sebo mas tinhana cara as impressões inegáveis da viagem. Voltei-me para Jamie, que contemplava o banho deseu sobrinho com ar distraído.

— O que voce contou sobre ele a teus sobrinhos? —perguntei baixinho— Sobre Carlos.Jamie me lançou um olhar penetrante. —Nunca falei dele —disse.

E se voltou para os cavalos. Três horas depois deixamos para trás os últimos desfiladeirosventosos e nos encontramos na pendente final que descia para Lallybroch. Jamie, que ia àvanguarda, freou seu cavalo para esperar que Ian e eu o atingíssemos.

—Aí está —disse sorrindo— Muito mudada, não?Mexi a cabeça embelezada. Mesmo de longe a casa parecia não ter sofrido nenhuma

mudança. No entanto, ao olhar melhor vi que as construções exteriores estavam um poucoalteradas. Jamie tinha me contado que, no ano seguinte a Culloden, os soldados ingleses tinhamqueimado o pombal e a capela; detectei os espaços vazios onde se tinham antes. Uma parte domuro se tinha derrubado e estava reconstruído com pedra de diferente cor; também vi um beiralnovo que, obviamente, cumpria funções de pombal. De uma chaminé, para o oeste, elevava-seum caracol de fumaça, levado para o sul pelo vento do mar. Subitamente imaginei o fogo acesono lar da sala, refletindo-se na cara de Jenny, que lia em voz alta uma novela ou um livro depoesia enquanto Jamie e Ian, absortos numa partida de xadrez, meio que a escutavam.

—Crês que voltaremos a viver aqui? —perguntei a Jamie cuidando de que minha voz nãoexpressasse nostalgia.

—Não te posso dizer, Sassenach —respondeu ele— Seria grato, mas… não sei como estarão

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as coisas, compreende? —Contemplava a casa com uma pequena ruga na testa.—Não importa. Se vivermos em Edimburgo… ou na França, será para mim igual, Jamie. —

toquei-lhe a mão para reconfortá-lo — Enquanto estivermos juntos.Sua expressão vagamente preocupada desapareceu um momento. Tomou-me a mão para

levar aos seus lábios.—A mim também não me importa muito, Sassenach, enquanto eu tenha voce comigo.

Olhamo-nos aos olhos até que uma tosse forçada nos anunciou a presença de Ian. Jamie, comum dilatado sorriso, soltou-me a mão para voltar-se para seu sobrinho.

— Logo estaremos chegamos, Ian —disse enquanto o moço freava o pônei junto a nós— Se não chover estaremos lá muito antes do jantar.—Hum… —O jovenzinho não parecia alegrar-se muito pela perspectiva. Dirigi-lhe um

olhar solidário.—O lar é o lugar onde, quando deves voltar, estão obrigados a te receber —citei.O jovem Ian me lançou uma olhada astuta.—Sim, isso é o que temo, tia.—Não te aflijas, Ian. Lembras da parábola do filho pródigo? Tua mãe se alegrará ao ver-te

são e salvo. O jovem Ian lhe direcionou um olhar de profunda desilusão.—Se crês que é um bezerro gordo o que vão matar, tio Jamie, não conheces a minha mãe.

Mordiscou o lábio inferior e se ergueu na cadeira com um profundo suspiro.—Será melhor terminar de uma vez, não? —disse.Enquanto ele descia cautelosamente a encosta pedregosa, perguntei a Jamie:—Acha que seus pais serão muito duros com ele?Meu esposo se encolheu de ombros.—Bem, estou seguro que o perdoarão, mas antes lhe açoitaram bem o traseiro. Posso dar-me

por afortunado se não fizerem o mesmo comigo —adicionou com ironia. Fincou as esporas aseu arreio descendo encosta abaixo.

—Vamos, Sassenach. É melhor acabar de uma vez, não?Não sabia que classe de recepção me esperava em Lallybroch, mas era tranqüilizadora. O

jovem Ian deixou cair as rédeas e desmontou entre um mar de cachorros que saltavam ao seuarredor e lhe lambiam a cara. Depois se aproximou, trazendo-me nos braços um cachorro.

— Este é Jocky —anunciou mostrando no alto o cachorro pardo e branco— É meu. Papai me presenteou.—Bonito cãozinho — eu disse coçando suas orelhas caídas.—Estás te enchendo de pelos, Ian —assinalou uma voz clara e aguda com marcado tom de

reprovação. Era uma moça alta e delgada, de uns dezessete anos, sentada à margem docaminho.

—Bem, e voce está se cobrindo de carrapichos —replicou o jovem Ian, voltando-sebruscamente para ela. A garota agitou um montão de cachos castanhos e sacudiu a saia, querealmente estava cheia.

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—Papai diz que não mereces ter um cachorro —comentou— Para que fugir e deixá-loassim!

Ele se pôs à defensiva.—Queria levar-te —disse com voz insegura—, mas me pareceu que na cidade não estaria

seguro.—Venha nos saudar, pequena Janet, seja boazinha —disse Jamie com simpatia, mas

também com uma observação cínica que a fez ruborizar.—Tio Jamie! Ah, e também… —Desviou os olhos para mim.—Sim, ela é tua tia Claire. A pequena Janet ainda não tinha nascido na última vez que

vieste, Sassenach. —Depois se dirigindo a Janet— Suponho que tua mãe está em casa.A moça assentiu sem afastar os olhos fascinados de meu rosto.—Encantada de conhecer-te —saudei. Olhou-me fixamente um momento mais e,

recordando subitamente os bons modos, dobrou os joelhos numa reverência e me estreitou amão com cautela, como temerosa de que eu me transformasse em fumaça entre seus dedos.Pareceu tranqüilizar-se ao descobrir que eu era de carne e osso.

—É… um prazer, senhora—murmurou.—Mamãe e papai estão muito aborrecidos, Jen? —O jovem Ian depositou suavemente o

cachorro no chão.—E como quer que estejam, idiota? Mamãe temia que tivesse esbarrado no bosque com

algum javali ou que os ciganos te tivessem seqüestrado. Não pôde dormir até que averiguaramaonde tinhas ido.

Ian apertou os lábios, baixando os olhos ao chão.—Estás horroroso, Ian. Dormiste vestido? —Com certeza —replicou impaciente— Talvez

pensas que fugir com uma camisa de dormir e que a vestia todos os dias para dormir a todo otempo?

Janet riu.A expressão incomodada do moço se aliviou um pouco.—Oh, bom, venham —disse ela compadecida— Acompanha-me ao tanque, para ver se

podemos te escovar e te pentear antes de que papai e mamãe te vejam.—Por que a todos parece que estar limpo servirá de algo? —disse Ian.Jamie desmontou, muito sorridente.—Ao menos não piorará as coisas, Ian. Vá com tua irmã. É melhor que teus pais não tenham

que enfrentar muitas coisas ao mesmo tempo. E antes de mais nada vão querer ver a tua tia.—Hum… —Com um gesto de consentimento, o garoto marchou de má vontade para a parte

do fundo da casa, seguido por sua decidida irmã.

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— O que comeu? —ouvi-a perguntar— Tens uma grande mancha de sebo ao redor da boca.— Não é sebo, é barba! —respondeu furioso.

— Barba? —exclamou ela incrédula— Voce?— Vamos! —Levando-a pelo cotovelo, o jovem Ian a levou para o pátio, com os ombros

curvados pela timidez. Jamie apoiou a cabeça em minha coxa, escondendo a cara em minhassaias, com os ombros estremecidos por uma gargalhada muda.

—Não há problema, já se foram —disse meio sufocada pelo esforço de conter o riso.Jamie levantou a cara avermelhada.—«Barba? Voce?» —grasnou imitando a sua sobrinha—. Igualzinha à sua mãe, Deus meu!

Isso foi justamente o que me disse Jenny, com a mesma voz, quando me surpreendeubarbeando-me pela primeira vez. Estive a ponto de cortar o pescoço.

— Queres ir barbear-te antes de saudar a Jenny e Ian? —perguntei.Ele meneou a cabeça. —Não —disse alisando-se o cabelo para trás — O jovem Ian tem

razão: a limpeza não servirá de nada.Provavelmente tinham ouvido aos cachorros. Ao entrar encontramos a Ian e Jenny na sala:

ela, no sofá, tecendo meias de lã; ele, em pé ante o fogo, esquentando a perna. Tinha umabandeja de bolos e uma garrafa de cerveja caseira, obviamente preparada para receber-nos. Erauma cena muito acolhedora, que me apagou o cansaço da viagem. Ian se voltou de imediatopara nós, sorrindo com timidez. Mas era Jenny a que me interessava. Ela também estava meolhando, imóvel no sofá, com os olhos dilatados. Minha primeira impressão foi que tinhamudado muito; a segunda, que não tinha mudado em nada.

Ian, ao ver-me pela primeira vez no bordel, tinha agido como se eu fosse um fantasma.Jenny fez mais ou menos o mesmo. Piscando com a boca entreaberta, viu-me aproximar-mesem mudar de expressão. Jamie me seguia segurando-me pelo cotovelo.

—Chegamos, Jenny —disse apoiando uma mão reconfortante nas costas. Olhou ao seuirmão e depois se virou para observar-me.

—É mesmo você, Claire? —Sua voz era suave e vacilante. Ainda que familiar, não parecia avoz forte da mulher que eu recordava.

—Sou eu, sim. —Alonguei-lhe as mãos com um sorriso— Alegro-me de voltar a ver-te,Jenny.

Pegou-me as mãos com dedos ligeiros. Depois me as estreitou.— Por Deus, claro que é voce! —sussurrou enquanto se levantava ligeiramente sufocada.

De repente revi a Jenny que conhecia: com seus vivos olhos azul escuro, vistoriando minhacara com curiosidade.

—Claro que é ela —grunhiu Jamie— Ian já deve ter-te contado. Ou achou que ele tinhamentido?

—Mal mudaste —comentou ela sem prestar atenção ao seu irmão— Tens o cabelo umpouco mais claro, mas estás igual.

Meus olhos se encheram de lágrimas. Ela, ao notá-lo, abraçou-me com força, apoiando seucabelo suave em meu rosto. Depois de um momento me soltou para dar um passo atrás, quaserindo.

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— Por Deus, até seu cheiro é o mesmo! —exclamou.Eu também estourei em risos. Ian, que tinha se aproximado, inclinou-se para abraçar-me

com suavidade.—É uma alegria voltar a ver-te, Claire. —Seus suaves olhos pardos me sorriam; a sensação

de boas vindas se acentuou — Quer comer algo? —convidou assinalando a bandeja.Eu vacilei um momento mas Jamie avançou com celeridade.—Não me viria mal um trago, Ian. obrigado. — Quer que te sirva algo, Claire?Encheram os copos, passaram os bolos e nos sentamos ao redor do fogo, murmurando

elogios com a boca cheia. Jamie, sentado junto a mim na poltrona de carvalho, mal provou suacerveja e deixou o bolo de aveia inteira sobre o joelho. Pelo visto, não tinha aceitado o lanchepor fome, senão para disfarçar que nem sua irmã nem seu cunhado o tinham recebido com umabraço cordial. Surpreendi um rápido cruzamento de olhos entre os esposos; depois Jennyolhou para Jamie dessa vez de forma demorada e insondável. A conversa, o pouca que tinha,foi morrendo até deixar no quarto um silêncio incômodo.

— Como estão teus filhos? —perguntei a Jenny para romper o silêncio.Ao ver que dava um soluço compreendi que, inadvertidamente, tinha feito a pergunta menos

adequada.—Oh, bastante bem —replicou com ar vacilante— Todos muito bonitos. E os netos também

—adicionou com um súbito sorriso ao pensar neles.—Quase todos estão na casa do jovem Jamie —interveio Ian como resposta a minha

verdadeira pergunta— A semana passada sua esposa teve outro filho, assim as três meninasforam ajudar um pouco. E Michael foi a Inverness procurar algumas coisas que vêm da França.

Teve outra troca de olhares, desta vez entre Ian e Jamie. Detectei uma leve inclinação decabeça por parte de meu esposo e algo em Ian que não chegou a ser um gesto afirmativo. «Quediabos passa aqui?», perguntei-me.

Jamie pigarreou, olhando diretamente ao seu cunhado, e abordou o ponto principal daagenda:

—Trouxemos o garoto.Ian respirou fundo; sua cara longa e singela se endureceu um pouco.—Será? Senti que Jamie, ao meu lado, ficou um pouco tenso, preparando-se para defender o

seu sobrinho como pudesse.—É um bom moço Ian.—Será? — Desta vez foi Jenny quem o disse enrugando suas finas sobrancelhas negras—

Pelo modo em que age em casa, ninguém o diria. Mas talvez contigo se comporte de outromodo, Jamie. Em suas palavras tinha uma forte nota de acusação.

—Agradeço-te que defendas ao garoto, Jamie —interveio Ian—, mas seria melhor falar comele. — Está em cima?

Jamie respondeu sem comprometer-se:—No tanque, suponho; queria lavar-se um pouco antes de vê-los.No corredor sem tapete ressoou o passo irregular da perna de pau: Ian ia para o tanque.

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Voltou carrancudo, precedido pelo moço. O filho pródigo estava tão apresentável como opermitia o uso de sabão, água e navalha de barbear.

—Mamãe —saudou inclinando torpemente a cabeça para sua mãe.—Ian —respondeu ela com suavidade.O tom gentil fez que o moço levantasse os olhos, claramente surpreso. Olhou-o com um leve

sorriso— Alegro-me de ter-te em casa, são e salvo, mo chridhe.A expressão do garoto se despejou como se lhe tivessem lido o indulto frente ao pelotão de

fuzilamento. Depois deu uma olhada ao seu pai e se pôs rígido, engolindo saliva com força. —Hum! —pigarreou Ian com ar de escocês severo—Bem, quero escutar tuas explicações,jovenzinho.

—Oh, bom… eu… —O jovem Ian emudeceu. Depois fez outra tentativa— Bem… não hánenhuma, pai.

— Olha-me! —O filho levantou a cabeça de má vontade, escapulindo do olhar— Sabes oque lhe fizeste a tua mãe? Desaparecer assim, sem dizer uma palavra, sem que tivéssemosnotícias suas durante três dias, até que Joe Fraser nos trouxe tua carta! Imaginas sequer o queforam para ela esses três dias, pensando que podias estar ferido ou morto?

A expressão de Ian (ou suas palavras) pareceram causar um forte efeito em seu filho, quefincou o olhar ao chão.

—Bem, não pensei que Joe demoraria tanto em trazer a carta —murmurou.— A carta, sim! —Ian enrijecia cada vez mais— «Fui para Edimburgo», assim, friamente.

— Descarregou na mesa um golpe que fez saltar todos— Aqui está! Nada de «com vossapermissão» ou «vos enviarei notícias»… ! Nem tão sequer «Querida mãe»!

O garoto levantou bruscamente a cabeça, com os olhos brilhantes de irritação.— Isso não é verdade! Dizia: «Não se preocupem por mim» e «Abraços, Ian». — É a

verdade! Não é verdade, mãe? —Pela primeira vez olhou a Jenny com gesto implorante. Elaestava quieta como uma pedra, com a cara inexpressiva. Naquele momento seus olhos seamaciaram.

— É verdade, Ian —reconheceu— Foi amável… mas a verdade é que me preocupei.— Sinto muito mamãe —disse o garoto em voz tão baixa que mal se ouviu— Não… não era

minha intenção… —terminou a frase com um pequeno encolhimento de ombros.Jenny alongou a mão mas o esposo a olhou nos olhos e a voltou a deixar no regaço. Ian pai

falou com lentidão e precisão.—A verdade é que esta não foi a primeira vez, verdade Ian?O moço, sem responder, fez um pequeno gesto que podia tomar-se como de consentimento.—Não podes dizer que não sabias o que estavas fazendo, que nunca te explicamos os

perigos, que não te tivéssemos proibido ir além de Broch Mordha. Também não ignoravas quenos preocuparíamos, verdade? Sabia tudo isso… e ainda assim foi. Estou falando contigo,filho! Olha-me!

O garoto levantou lentamente a cabeça. Agora estava carrancudo mas resignado; ao que

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parece já tinha passado por cenas parecidas e sabia como terminavam.—Nem sequer vou perguntar ao seu tio que estiveste fazendo. Só espero que em Edimburgo

não se tenhas comportado do mesmo modo que aqui. De todas formas, desobedeceste-me edestroçaste o coração de tua mãe.

Jenny se moveu outra vez como se quisesse falar, mas Ian a calou com um gesto brusco.— E o que te disse da última vez? Que te disse depois dos castigos? Responde-me, Ian!O garoto engoliu saliva com dificuldade.—Disseste… disseste que a próxima vez me esfolaria vivo. —Terminou a frase com um

gemido.— Sim. Supus que terias o juizo de cuidar que não tivesse uma próxima vez, mas me

equivoquei, não? Estou muito decepcionado contigo, Ian. Essa é a verdade. —Assinalou aporta com um menear da cabeça—Para fora. Espera-me junto ao portão.

Os passos arrastados do pecador se perderam pelo corredor, deixando na sala um tensosilêncio.

—Ian —disse Jamie suavemente—, me agradaria que não fizesses isso.—Que? —Ian voltou para seu cunhado com a testa enrugada pela ira— Que não o açoite? É

isso o que vais dizer?Jamie apertou os dentes mas manteve a voz serena.—Não tenho nada que dizer, Ian. É teu filho e podes fazer o que quiser. Mas não me

permitirás explicar o que fez?— O que fez? —exclamou Jenny voltando subitamente à vida.Podia deixar que seu esposo se ocupasse do jovem Ian mas tratando-se de seu irmão

ninguém falaria por ela— Escapar no meio da noite como ladrões? Tratar com delinqüentes e arriscar a pele por um

barril de conhaque?Ian a fez calar com um gesto rápido.—Tratar com delinqüentes como eu? —perguntou Jamie com voz ofendida— Sabes de onde

sai o dinheiro para manter toda esta família Jenny? Não é dos salmos que imprimo emEdimburgo!

— Acha que não o sei? —lhe espetou ela— Alguma vez te perguntei o que fazias?—Não, não perguntou. Acho que preferias não saber. Mas sabes, não?—E culpas a mim pelo que fazes? É culpa minha ter filhos que precisam comer?Jenny não enrijecia como Jamie: quando perdia os estribos se punha branca de fúria. Vi que

ele se esforçava por dominar seu gênio.—Culpar-te? Não, evidente que não. Mas tens direito a culpar-me por Ian e eu não posso

manter todos trabalhando nestas terras?Jenny também estava fazendo um esforço por dominar-se.—Não —disse— Fazes o que podes, Jamie. Sabes muito bem que não me referia a ti ao

falar de delinqüentes mas…

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—Então te referes aos homens que emprego. Eu faço o mesmo que eles, Jenny. Se eles sãodelinqüentes, o que sou eu?

—Meu irmão —respondeu ela rapidamente—, ainda que as vezes não me convenha muitodizê-lo. Maldito sejas, Jamie Fraser! Sabes muito bem que não quero brigar contigo pelo quefazes! Se fosses assaltante de caminhos ou dono de prostíbulos, seria porque não há outroremédio. Mas nem por isso quero que meu filho participe.

Ante a menção dos prostíbulos, Jamie virou os olhos e direcionou à seu cunhado uma rápidaolhada de acusação. O outro mexeu a cabeça, estupefato pela ferocidade de sua esposa.

—Não lhe disse nada —explicou— Já sabes como ela é.Jamie tratou de mostrar-se razoável.—Sim, compreendo. Mas bem sabes que não colocaria o teu filho em perigo, Jenny. Por

Deus, eu o quero como se fosse meu filho!—É mesmo? —inquiriu com incredualidade— Por isso o incentivaste a fugir de casa e o

guardou contigo sem fazer-nos chegar uma só palavra para tranqüilizar-nos?Jamie teve a decência de mostrar-se envergonhado.—Bem, sim, sinto muito. Minha intenção era… —Interrompeu-se com um gesto de

impaciência— Bem, isso não importa mais. Não avisei, é verdade. Mas quanto a incentivá-lopara que fugisse…

—Não, não creio que tenhas feito isso —interveio Ian—, ao menos diretamente. Mas essegaroto te adora, Jamie. Vejo como te escuta quando vens de visita. Tua maneira de viver lheparece uma grande aventura, muito diferente a remover esterco para a horta de sua mãe. Sorriubrevemente contra sua vontade. Jamie imitou seu gesto, encolhendo os ombros.

—Bem, é normal que os garotos dessa idade queiram um pouco de aventura. Nós tambéméramos assim.

—Não importa o que queira —interrompeu Jenny— O tipo de aventuras que pode corrercontigo não lhe convêm. O bom Deus sabe que a ti te protege algum feitiço, Jamie. Casocontrário terias morrido dez ou doze vezes.

—Suponho que sim. Deus quis proteger-me por alguma razão. —Jamie me olhou com umbreve sorriso e me procurou a mão.

—Não sei muito sobre tua forma de vida, mas te conheço e estou segura de que não é o maisconveniente para um menino.

—Hum… —Jamie esfregou a barba crescida e fez outra tentativa— Bem, isso é o quequeria dizer. O jovem Ian se portou como um verdadeiro homem esta semana. Não me parecebem que o açoite como se fosse uma criança.

Jenny ergueu as sobrancelhas.—Assim agora é um homem! Caramba, Jamie, é uma criança de quatorze anos!—Aos quatorze eu era um homem, Jenny —corrigiu ele suavemente.—Isso era o que você acreditava. —Levantou-se bruscamente com os olhos úmidos. — Eras

um formoso moço, Jamie, quando partiste com Dougal para a primeira incursão, com o punhalna coxa. E também recordo como voltaste, imundo de lodo e com um arranhão na caraenquanto Dougal se gabava ante papai da coragem que tinhas tido por afastar seis vacas

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sozinho e não proferir uma queixa quando te feriram. Isso é ser um homem? Jamie a encaroucom um reflexo de humor.

—Bem, sim, isso e algo mais, talvez.— O que mais? —inquiriu ela ainda mais seca— Deitar-se com uma mulher? Matar um

homem?Sempre pensei que Jenny Fraser tinha um pouco de videncia, sobretudo no que se referia ao

seu irmão. E pelo visto, esse talento se estendia ao seu filho. Mexeu lentamente a cabeça. —Não, o pequeno Ian ainda não é um homem. Mas tu sim, Jamie, e conheces muito bem adiferença.

Ian estava contemplando a briga entre os irmãos com tanta fascinação como eu. Nessemomento tossiu baixo.

—Faz uns quinze minutos que o garoto está esperando seus castigos —observou. —Seja ounão conveniente açoitá-lo, é um pouco cruel obrigá-lo a esperar, não?

—Tens que fazer, Ian? —Jamie fez o último esforço. —Bem —respondeu o cunhadolentamente, — disse-lhe que vai receber uma surra e ele sabe perfeitamente porque a ganhou.Não posso voltar atrás. Agora quanto eu fazer… não, não creio. —Abriu uma gaveta doaparador, sacou uma gorda correia de couro e a pôs nas mãos de Jamie — Você vai fazer .

—Eu?—exclamou Jamie horrorizado.— Não posso açoita-lo!—Eu creio que sim que podes. —Ian cruzou calmamente os braços.—Passas a vida dizendo

que o queres como se fosse teu filho. Bem, Jamie: ser pai desse menino não é nada fácil. Émelhor que o descubras por si mesmo, não?

Jamie o olhou um longo instante. Depois se voltou para sua irmã. Ela ergueu umasobrancelha sem afastar a vista.

—Merece tanto como ele, Jamie. Vê.Meu esposo apertou os lábios. Depois girou ao redor e saiu sem falar. Jenny lançou uma

rápida olhada a seu esposo; depois olhou a mim. Finalmente se juntou à janela. Ian e eu, queéramos bem mais altos, pusemo-nos por trás dela. Lá fora a luz ia se apagando rapidamentemas ainda dava para ver a figura seca do jovem Ian, recostado com tristeza no portão demadeira, a uns vinte metros da casa.

— Tio Jamie! —Seus olhos cairam sobre a correia— É você quem vai me açoitar?— Suponho que sim. —disse ele com franqueza— Mas antes devo pedir-te perdão, Ian.— A mim? —O garoto parecia um pouco desconcertado.Pelo visto, não era habitual que seus maiores lhe pedissem desculpas, muito menos antes de

açoitá-lo.— Não tens por que, tio Jamie.— Claro que sim. Fiz mal ao permitir que ficasses comigo em Edimburgo. E provavelmente

também ao contar-te contos e dar-te a idéia de escapar. Levei-te a lugares onde não deverias terestado e talvez te pus em perigo. Causei mais preocupações a teus pais das que voce teriacausado sozinho. Por isso te peço que me perdoe, Ian.

— Ah… Bem, sim. Claro, tio.

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— Obrigado, Ian.Ficaram em silêncio. Depois o garoto, suspirando, encolheu os ombros.—Será melhor que o faças de uma vez.—Suponho que sim. —Jamie parecia tão arredio ou mais do que seu sobrinho.O jovem Ian, resignado, girou para o portão sem vacilar. Jamie o imitou com mais lentidão.

—Hum… e… teu pai…?—Geralmente são dez, tio. —O garoto tinha tirado o casaco e falava acima do ombro—.

Doze se me comportei muito mau e quinze se foi algo horrível.— O que me dizes? Se comportaste simplesmente mal ou muito mal?O jovenzinho soltou um riso apático.— Para que meu pai te obrigue a fazer isto, tio Jamie, deve de ter sido horrível, mas me

conformo com muito mau. Será melhor que me dê doze.Ian pai, ao meu lado, soltou um resfôlego engraçado.— O garoto é honrado —murmurou.—Bem. —Jamie respirou fundo e jogou o braço para trás mas seu sobrinho o interrompeu.

—Espera, tio. Ainda não estou pronto.—Oh, não me faças isto! —protestou Jamie.—Papai diz que só às meninas são açoitadas com as saias postas —explicou— Os homens

devem receber o castigo com o traseiro descoberto.—E nisso tem muitíssima razão —murmurou Jamie obviamente irritado ainda por sua briga

com Jenny— Pronto?Feitos os necessários ajustes, o tio deu um passo atrás e alçou o braço. Ouviu-se um forte

estalo e Jenny fez um gesto de dor e de solidariedade com seu filho. Por fim Jamie deixou cairo braço e enxugou a testa.

—Estás bem, filho? O jovem Ian ergueu as costas com certa dificuldade e subiu as calças.—Sim, tio. Obrigado. —Sua voz soava ligeiramente rouca mas serena.

Aceitou a mão que Jamie lhe oferecia mas seu tio, em vez de conduzi-lo para a casa, pôs-lhea correia na mão.

— Agora é a sua vez. —anunciou apoiando-se no portão.O garoto ficou tão impressionado como os que estávamos em casa.— Que? —exclamou estupefato.— Agora é a sua vez! —repetiu Jamie com firmeza. — Eu te castiguei. Agora castiga-me.

— Não posso fazer isso, tio!— Claro que podes. —Jamie se incorporou para olhá-lo aos olhos— Não ouviste o que te

disse quando te pedi perdão? Bem, me comportei tão mal como voce e eu também devo pagar.Não me agradou te açoitar também não te agradará, mas os dois devem cumprir. Entendido?

—S-s-sim, tio —gaguejou o jovenzinho.—Então vamos! —Jamie baixou as calças e voltou a inclinar-se sobre o portão.

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A silhueta delgada se ergueu e a correia assobiou no ar. Ouvimos como Ian filho contavaminuciosamente e descia os golpes. Depois do último e ante um suspiro geral de alívio dentroda casa, Jamie meteu a camisa dentro das calças e saudou a seu sobrinho com uma formalinclinação de cabeça.

—Obrigado, Ian. —Depois abandonou a formalidade para esfregar o traseiro —Caramba,pequeno braço que tens!

—Como o teu, tio —disse Ian imitando sua ironia.E as duas figuras, já mal visíveis, esfregaram-se rindo. Depois Jamie rodeou com um braço

os ombros de seu sobrinho e virou para a casa.—Se não te incomoda, Ian, preferiria não ter que voltar a passar por isto, ok? —disse em

tom confidencial.—Trato feito, tio Jamie.Por um momento se abriu a porta do corredor. Depois de trocar olhares, Jenny e Ian se

voltaram em uníssono para saudar aos pródigos.

CAPÍTULO 33

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Tesouro enterrado

—Pareces um baduíno —comentei.—Sim? E o que é isso?Apesar do gelado ar outonal que entrava pela janela semi-aberta, Jamie atirou a camisa

sobre o montão de roupa sem nenhuma mostra de incômodo. Depois se espreguiçou comprazer, completamente nu.

— Oh, Deus, que gosto não estar em cima do cavalo!— Hum… Melhor ainda dormir numa cama para valer, em vez de fazê-lo entre brejos

molhados. —Girei sobre mim mesma desfrutando os fartos cobertores.— Quer dizer-me o que é um baduíno? —perguntou Jamie— Ou o dizias só por gosto?— Um baduíno—expliquei desfrutando do espetáculo que me brindava suas costas

musculosas enquanto se lavava— é um macaco muito grande com o traseiro vermelho.Ofegou, rindo.— Bem, teu poder de observação é impecável, Sassenach. —E passou cuidadosamente as

mãos pelo traseiro ainda aceso.— Fazia trinta anos que ninguém me açoitava. Já havia meesquecido

— Pensar que o jovem Ian te atribuía um traseiro tão duro como o couro de arreio! —exclamei divertida. —Acha que valeu a pena?

— Oh, sim —respondeu com despreocupação deslizando-se ao meu lado.Seu corpo estava frio e duro como o mármore. Lancei um grito mas me deixei atrair contra

seu peito sem protestar— Caramba, como estás quentinha. Aproxime-se mais, quer? —Colocou as pernas entre as

minhas.—Oh, sei que valeu a pena. Podes desmaiar a golpes a esse garoto, como fez seu paimais de uma vez, e não conseguirás senão fortalecer sua decisão de fugir à primeiraoportunidade. Mas por não repetir algo como isto será capaz de caminhar pelas brasas.

Falava com segurança e me pareceu que tinha muita razão. O jovem Ian tinha recebido aabsolvição de seus pais sob a forma de um beijo materno e um veloz abraço do pai. Depois seretirou à cama com um punhado de bolos, sem dúvida para pensar sobre as curiosasconseqüências de desobedecer. Jamie também tinha sido absolvido com beijos. Suspeitei queisso lhe importava mais do que os efeitos de sua atuação sobre o sobrinho.

— Ao menos, Jenny e Ian já não estão aborrecidos contigo —observei.— Não. Em realidade, não creio que estivessem muito. É que não sabiam que fazer com o

garoto —explicou.— Os Fraser são teimosos, não? —comentei sorrindo.Riu entre dentes.—Isso é. O jovem Ian pode parecer-se aos Murray mas é um Fraser feito e direito. E com a

teimosia não servem os gritos nem as surras; isso ainda os deixa mais obstinados.—O terei em conta —disse.— Ouve, Dorcas me disse que muitos cavaleiros pagam muito

bem pelo privilégio de receber uma surra no bordel. Diz que isso os… estimula.

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Jamie soltou um resmungo.—Verdade? Suponho que é verdade, se Dorcas o diz. Mas eu não o entendo. Se queres

minha opinião, há maneiras bem mais agradáveis de conseguir uma ereção. Por outra parte —disse para ser justo,— talvez não seja o mesmo receber surras de uma garota bela que de teupai… ou de teu sobrinho.

— Talvez. Quer que provemos um dia destes?— Não. —Sorriu-me com os olhos mais enviesados do que de costume, fechados como os

de um gato sonolento.O calor de suas mãos envolveu-me os peitos.— Certamente me ocorrem coisas mais agradáveis, e a voce?A vela tinha se consumido, o fogo quase tinha desaparecido da chaminé e a pálida luz das

estrelas penetrava pela janela embaçada.—Que bonito —murmurei deslizando um dedo pelas poderosas costelas que davam forma

ao torso— Que bonito ter um corpo de homem que se possa tocar.—Ainda te agrada? —perguntou entre tímido e satisfeito.Rodeou-me os ombros com um braço para acariciar-me o cabelo.— Sim!Era algo que não tinha sentido falta conscientemente mas agora voltava a recordar esse

prazer: a intimidade em que o corpo do homem te é tão acessível como o próprio, como seessas estranhas formas fossem, de repente, um prolongamento de teus próprios membros.

Ficamos em silêncio por alguns momentos, escutando o gotejar da chuva. O ar frio dooutono corria pelo quarto misturando-se com o calor fumegante do fogo. Ele se deitou de lado,de costas para mim e subiu a colcha para abrigar-nos. Observei as leves linhas das cicatrizesque lhe entrecruzavam os ombros. Em outros tempos tinha conhecido aquelas marcas tão bemque podia percorrê-las às cegas com os dedos. Agora tinha ali uma fina curva em forma demeia lua que não me era familiar e um corte em diagonal que antes não existia: sinais de umpassado violento que eu não tinha compartilhado. Percorri a meia lua em toda sua longitude.

— Você foi perseguido, não? —perguntei.Moveu ligeiramente um ombro sem chegar a encolhê-lo.—De vez em quando.—Faz pouco tempo?Respirou com lentidão antes de responder.—Sim, creio que sim.Baixei os dedos pelo corte em diagonal. Tinha sido um corte profundo; ainda que estivesse

bem cicatrizado, a linha seguia nítida sob as polpas de meus dedos.—Sabes por quem?—Não. —Fechou a mão sobre a minha, que estava apoiada em meu ventre.—Mas creio saber porque.Na casa reinava um grande silêncio. Faltavam a maioria dos filhos e netos, só ficavam os

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serventes em seus quartos longínquos, por trás da cozinha, Ian e Jenny na outra ponta docorredor e o jovem Ian, acima; todos dormiam.

—Recordas que, depois da queda de Stirling, pouco antes de Culloden, falou-se muito deuma certa quantidade de ouro que vinha da França?

—Enviado por Luis? Sim… mas ele não o enviou. Sempre teve rumores: ouro da França,navios da Espanha, armas da Holanda… mas quase tudo ficou em nada.

—Oh, algo teve, ainda que não enviado por Luis. Mas então ninguém sabia. Falaram-me deseu encontro com o moribundo Duncan Kerr e sua mensagem sussurrada no sótão da pousadasob a olhada vigilante do oficial inglês.

—Duncan tinha febre mas não delirava. Sabia que estava morrendo e quem era eu. Era suaúnica possibilidade contar a alguém de confiança. E me disse.

—Focas e bruxas brancas? —repeti— Francamente, parece uma charada.E voce entendeu?—Não tudo —admitiu.—Não tenho nem idéia de quem era a bruxa branca. Ao princípio

pensei que se referia a voce, Sassenach, e quase parou meu coração ao escutá-lo. —Apertou-me a mão, sorrindo com melancolia.—De repente me ocorreu que algo podia ter saído mal, quetalvez não estivesses com Frank em teu lugar de origem senão na França. Pela cabeça mecruzou todo tipo de loucuras.

—Oxalá tivesse sido assim —sussurrei.—Comigo na prisão? E Brianna, que idade teria? Dez anos, mais ou menos. Não, não

desperdices teu tempo lamentando-se, Sassenach. Agora estás aqui e não voltarás a deixar-me.Deu-me um beijo na testa. Depois retomou o relato.—Eu ignorava de onde provia o ouro mas compreendi que ele estava me dizendo onde

estava e porque. Pertencia ao príncipe Tearlach; tinha sido enviado para ele. E isso das focas…Levantou um pouco a cabeça para olhar para a janela, onde uma roseira fazia sombras sobre ovidro.

—Quando minha mãe fugiu de Leoch, o povo disse que tinha ido viver com as focas sóporque a criada que tinha visto meu pai disse que parecia uma grande foca que tivesseabandonado a pele para caminhar pela terra como um homem. Era verdade. —Jamie, sorrindo,passou uma mão pela densa cabeleira.—Tinha o cabelo farto, como o meu, mas negro como oazeviche. À luz brilhava como se estivesse molhado. Movia-se com celeridade, deslizando-secomo uma foca na água. De repente encolheu os ombros. —Bem, continuo. Quando DuncanKerr mencionou o nome de Ellen compreendi que se referia a minha mãe. Era um sinal de quesabia meu nome, sabia quem era eu. Não estava delirando, por estranho que soasse tudo. E aosaber isso… —voltou a encolher-se de ombros—. Segundo o inglês, Duncan tinha aparecidopróximo da costa. Ali há centenas de ilhéus e rochas, mas as focas vivem num só ponto: noextremo das terras dos MacKenzie, frente a Coigach.

—E você foi para lá?—Sim. —Suspirou profundamente.—Não teria escapado da prisão se não tivesse pensado

que podia estar relacionado contigo, Sassenach. Fugir não era difícil mas os homens rara vez otentavam. Nenhum de nós era dessa zona… e em todo caso, nenhum de nós ficava muitotempo fora da prisão. O duque de Cumberland e seus homens tinham feito um bom trabalho.

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Tal como disse um contemporâneo ao avaliar seus lucros, pouco depois: «Criou um deserto e ochamou paz.» Realmente, qualquer prisioneiro que escapasse de Ardsmuir se teria encontradorealmente só, sem clã nem amigos que o socorressem.

Jamie sabia que o comandante inglês não demoraria em adivinhar para onde ele ia eorganizar uma partida de perseguição. Por outra parte, naquele remoto setor do reino não tinhabons caminhos; uma pessoa ciente da região, que viajasse a pé, levava vantagem a seusperseguidores forasteiros e a cavalo. Escapou a meia tarde e caminhou durante toda a noiteorientando-se pelas estrelas e chegou à costa cerca do amanhecer do dia seguinte.

—O rincão das focas é muito conhecido entre os MacKenzie. Eu tinha estado ali uma vez,com Dougal. Segundo a interpretação que Jamie tinha feito do relato de Duncan, o tesouroestava na terceira ilha, a mais afastada da costa. —Ali a rocha estava puída; ao aproximar-medemais da borda entre meus pés se desprendiam bocados que caíam pelo alcantilado. Não meocorria como chegar à água e muito menos à ilha das focas. Mas então recordei o que tinha ditoDuncan sobre a torre de Ellen.

Ali estava «a torre»: uma pequena saliência de pedra, menos de um metro e meio do pontomais alto do promontório. Mas sob a saliência tinha uma estreita greta oculta entre as rochas,uma pequena chaminé que cruzava os vinte e cinco metros de alcantilado; era uma rota difícilpela que podia descer um homem a pé. Desde a base da torre de Ellen até a terceira ilhaficavam ainda mais de quatrocentos metros de água verde e agitada. Despiu-se e, depois depersignar-se, encomendou sua alma à mãe. Depois se atirou nu às ondas. Cego pelo sal eensurdecido pelo mar agitado, lutou contra as correntes durante um tempo que lhe pareceuextensíssimo. Quando pôde assomar a cabeça e os ombros, ofegante, viu que o promontórionão estava atrás, como tinha acreditado, senão a sua direita.

—A maré estava baixando e me arrastava —disse irônico—, Pensei que estava acabado poissabia que jamais poderia regressar. Já estava a dois dias sem comer e não me restavam muitasforças. Então deixei de nadar e me limitei a boiar de costas, entregando ao abraço do mar.Mareado pela fome e o esforço, fechei os olhos procurando na mente uma antiga prece que osceltas recitavam para não se afogar. Àquelas alturas do relato guardei silêncio durante tantotempo que me perguntei se teria algum problema. Mas no fim respirou fundo e disse comtimidez.

—Vai me dizer que estou louco, Sassenach. Jamais o contei a ninguém, nem sequer a Jenny,mas… naquele momento ouvi a voz de minha mãe que me chamava, justo no meio da oração.—Encolheu-se de ombros, incômodo. —Quisera tenha sido só porque tinha estado pensandonela ao abandonar a costa. No entanto…

Ficou calado até que lhe toquei o rosto.— O que ela disse? —perguntei baixinho.— Disseme: «Vêem a mim, Jamie. Vêem a mim, filho!» — Respirou fundo e deixei escapar

lentamente o ar— Escutei-a com total clareza mas não vi nada. Ainda que estava tão cansadoque já não me importava morrer, ao ouvir sua voz dei a volta e tratei de avançar. Pensava dardez braçadas e deter-me novamente para descansar… ou afundar-me. À oitava braçada meapressou a corrente. —Foi como se alguém me tivesse carregado nos braços —disse como seainda o surpreendesse a recordação.— Senti-a ao meu arredor; a água era um pouco maismorna que antes e me levava consigo. Bastava-me bater os pés um pouco para manter a cabeçafora da água.

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A corrente, forte e encrespada entre ilhas e promontórios, tinha-o levado até a margem doterceiro ilhéu; com umas poucas braçadas teve as rochas a seu alcance.

—Então senti algo que se erguia acima de mim e um horrível fedor de pescado morto —disse— Pus-me imediatamente de joelhos. Ali estava, em menos de um metro de distância:uma grande foca macho, lustrosa e molhada, que me olhava fixamente. Ainda que Jamie nãoera pescador nem marinheiro, tinha escutado suficientes histórias para saber que os machoseram perigosos, sobretudo quando um intruso ameaçava seu território. Vendo aquela bocaaberta, com sua formosa dentadura arregaçada e os rolos de gordura dura que cingiam seuenorme corpo, não se sentiu muito disposto a pô-lo em dúvida.

—Pesava mais de cento trinta quilos, Sassenach —disse. —Ainda que não quisesse exagerarteria podido lançar-me ao mar com um só movimento ou arrastar-me ao fundo para que meafogasse.

—É óbvio que não o fez —disse— O que aconteceu?Jamie se jogou a rir.—Creio que eu não estava em condições de fazer nada sensato, aturdido como estava pelo

cansaço. Limitei-me a olhá-lo durante um momento. Depois lhe disse: «Não se preocupe. Soueu.»

—E daí, o que fez a foca?Jamie se encolheu ligeiramente de ombros.—Olhou-me fixamente. As focas não piscam muito, sabe? Altera os nervos se olham muito

tempo. Depois emitiu uma espécie de rosnado e se deslizou à água.Depois de descansar um momento, Jamie iniciou uma metódica inspeção das gretas. Não

demorou em achar uma profunda fenda que conduzia a um oco, trinta centímetros por embaixoda superfície rochosa.

—Bem, não mantenha em suspense —protestei— O ouro do Francês estava ali?—Sim e não, Sassenach —respondeu afundando o estômago— Eu esperava encontrar

lingotes de ouro. Trinta mil libras em lingotes de ouro avolumariam muito. Mas no oco sótinha uma caixa que não superava os trinta centímetros de longitude e um pequeno saco decouro. Na caixa tinha ouro, sim, e também prata. Ouro e prata, sim: a caixa de madeiracontinha duzentas e cinco moedas de ouro e prata; algumas, de formas tão nítidas como seestivessem recém cunhadas; outras, com as marcas gastadas até ser quase invisíveis.

—Moedas antigas, Sassenach.—Antigas? Muito velhas quer dizer.—Gregas e romanas. Muito antigas.—É incrível —suspirei.—Era um tesouro, sim, mas não…—Não o que teria enviado Luis para alimentar um exército —concluiu ele.—Não: quem pôs

esse tesouro ali não foi Luis nem um de seus ministros.—E o saco? —perguntei— O que tinha no saco?—Pedras, Sassenach. Pedras preciosas. Diamantes, esmeraldas, pérolas, safiras. Não muitas,

mas sim grandes e bem talhadas. —Sorriu, franzindo o cenho.—Bem grandes. Tinha sentadonuma rocha sob o céu cinza, girando as moedas e as jóias entre os dedos. Por fim teve a

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sensação de que o estavam olhando. Ao levantar a cabeça se descobriu rodeado por um círculode focas curiosas. A maré estava baixa e as fêmeas tinham voltado da pesca; vinte pares deredondos olhos negros o estudavam com cautela.

O enorme macho negro, mais valente pela presença de seu harém, acercou-se entre fortesrosnados.

—Então me pareceu melhor retirar-me. Depois de tudo, já tinha achado o que procurava.Assim que pus a caixa e o saco onde os tinha encontrado gatinhei para a água, meio congelado.Em meia hora, a corrente o levou ao pé do promontório; depois de vestir-se, ficou dormidonum ninho de ervas secas.

—Acordei ao amanhecer —disse suavemente.— Vi muitos amanheceres, Sassenach, masnenhum como aquele. Era como se o sol nascente estivesse dentro de mim. Quando finalmenteconsegui reter o calor e pude manter-me em pé, andei terra adentro, para o caminho, para ir aoencontro dos ingleses.

—Mas por que voltaste? —quis saber.—Se estavas livre, tinhas dinheiro e…!—E onde podia gastar esse dinheiro, Sassenach? Podia entrar no lar de um fazendeiro e

oferecer-lhe um denário de ouro ou uma pequena esmeralda? —Sorriu ante minha indignaçãomexendo a cabeça.— Não, tinha que regressar. Poderia ter vivido um tempo no marasmo, nu efaminto, mas estavam me procurando, Sassenach, com afinco pois pensavam que eu sabia ondeestava escondido o ouro. Enquanto eu estivesse em liberdade e pudesse pedir refúgio, nenhumachoupana estaria a salvo dos ingleses. Não quis expor as pessoas da zona a esse tipo de perigo.Além disso, se não me capturavam retomariam a busca aqui, em Lallybroch; nem muito menospodia arriscar a minha própria família. E de qualquer modo…

Se deteve, como se lhe custasse encontrar as palavras.—Tinha que regressar —disse com lentidão— Ainda que só pelos homens.—Pelos homens da prisão? —perguntei surpresa — Tinha prisioneiros de Lallybroch

encarcerados contigo?Sacudiu a cabeça.—Não. Tinha homens de quase todos os clãs. Mas precisavam de um chefe.—E isso você era para eles? —Falei com suavidade, dominando o impulso de alisar-lhe o

cenho. —A falta de outro melhor —respondeu com um reflexo sorriso. Mas aqueles homenstinham desaparecido. Tinham-nos separado a todos para enviá-los a uma terra estrangeira semque ele pudesse salvá-los.

—Fizeste o possível por eles. Mas já passou tudo —lhe consolei.Passamos um longo momento em silêncio, abraçados e acalentados pelos pequenos ruídos

da casa. A diferença da bagunça comercial do bordel, esses pequenos rangidos e suspirosdavam a sensação de quietude, de lar e segurança. Pela primeira vez estávamos realmentejuntos e sós, longe do perigo. Tinhamos tempo, agora. Tempo para escutar o resto da história:saber que tinha feito com o ouro, que tinha sido dos homens de Ardsmuir; tempo parareflexionar sobre o incêndio da tipografia, o marinheiro do jovem Ian, o encontro com osagentes da Alfândega na costa de Arbroath e decidir que faríamos a seguir. Como tinha tempo,já não era necessário falar dessas coisas.

O último fragmento de carvão se rompeu na chaminé. Me encolhi contra Jamie, escondendo

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a cara em seu pescoço. Cheirava vagamente a erva e a suor, com um feixe de conhaque. Elemudou de posição para unir os nossos corpos nus em toda sua longitude.

— Outra vez? —murmurei divertida.— Supõe-se que os homens de tua idade não voltam acomeçar tão cedo.

Me mordeu suavemente o lóbulo da orelha.—Bem, voce também o fazes, Sassenach —assinalou—, e és mais velha do que eu.—Isso é diferente. —Afoguei uma pequena exclamação ao senti-lo sobre mim.—Sou

mulher.—E se não fosses mulher —me segurou pondo-se mãos à obra,— eu também não o faria. E

agora cala-te.Mal tinha amanhecido quando me despertou o arranhar da roseira na janela e o leve tilintar

na cozinha, onde preparavam o café da manhã. O fogo tinha se apagado por completo.Abandonei a cama sem fazer ruído para não acordar a Jamie. As tábuas do piso estavamgeladas. Estremecida, alonguei a mão para a primeira roupa disponível. Envolvida na camisade Jamie, ajoelhei-me junto à lareira para reavivar as brasas. Pela noite tinha deixado a janelaentreaberta para evitar que a fumaça nos sufocasse; o fogo de carvão emite muito calor, mastambém muita fumaça, como atestavam as vigas enegrecidas. Disseme que, pelo momento,poderíamos prescindir do ar fresco, ao menos até que o fogo estivesse bem aceso.

A paisagem exterior era perfeita em sua imóvel clareza: muros de pedra e pinheiros escuros,como traços de pluma sob as nuvens cinzas da manhã. Um movimento me fez desviar a vistapara a crista da colina, onde uma tosca senda conduzia à aldeia de Broch Mordha, a dezesseisquilômetros de distância. Um a um, três pequenos pôneis montanheses apareceram no alto dacosta e iniciaram a descida para a fazenda. Estavam muito longe para distinguir-lhes os rostos,mas as saias inchadas me revelaram que os três cavalheiros eram mulheres. Talvez fossem asmoças (Maggie, Kitty e Janet) que voltavam de casa do jovem Jamie. Jamie o maior sealegraria de vê-las.

Fechei a janela e tirei a camisa para esconder-me sob os cobertores. Ele sentiu o frio de meuregresso e rodou instintivamente para mim, curvando-se contra meu corpo como uma colhercontra outra. Depois esfregou a cara no meu ombro, sonolento.

—Dormiste bem, Sassenach? —murmurou.—Como nunca —lhe assegurei acomodando o traseiro frio no oco morno de suas coxas.—E voce?—Hummmm —foi um rosnado bem aventurado.Envolveu-me com seus braços.—Sonhei como um demônio.—Com que?—Com mulheres nuas —disse mordendo-me o ombro.—E com comida.Seu estômago rosnou com suavidade. No ar tinha um inconfundível cheiro de bolos e

toucinho frito.

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—Enquanto não confundas uma coisa com a outra…—Sei distinguir um falcão de um serrote quando o vento vem do noroeste —me assegurou

—, e uma moça gorducha de um presunto bem curtido, apesar das semelhanças.Me apertou as nádegas com ambas mãos, fazendo-me soltar um grito.—Besta! —protestei chutando-lhe as canelas.—Ah, agora sou uma besta —riu—Bem, pois… Com um profundo bramido, submergiu-se

sob a colcha para mordiscar a face interior das coxas, sem prestar nenhuma atenção aos meusgritos e à chuva de golpes que lhe destinei. —Creio que a diferença não é tanta como eupensava —observou assomando a cabeça entre minhas pernas com o cabelo vermelhoarrepiado como um porco espinho.—Ao paladar és bastante salgada. Que…? Interrompeu-oum súbito estrondo. A porta se abriu de par em par batendo contra a parede. Voltamo-nos aolhar, sobressaltados.

No vão da porta se erguia uma jovenzinha desconhecida para mim. Teria quinze oudezesseis anos, cabeleira muito loira e grandes olhos azuis. Seus olhos eram um pouco maioresdo normal e estavam fixos em mim com expressão de espanto. Passaram lentamente de meucabelo encaracolado aos meus peitos nus; depois desceram até encontrar-se com Jamie, quejazia com a boca aberta entre minhas coxas, mudo por um espanto tão grande como o dela.

— Papai! —exclamou a garota cheia de indignação— Quem é esta mulher?

CAPÍTULO 34

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Papai

—Papai? —repeti alterada.—Papai!Ao abrir a porta, Jamie tinha se convertido em pedra. Naquele momento se incorporou

bruscamente para recolher a colcha caída. Depois retirou o cabelo da cara fincando na garotaum olhar fulminante.

—Que diabos estás fazendo aqui? —interpelou.Nu, com a barba vermelha e enrouquecido pela fúria, apresentava um aspecto formidável. A

moça deu um passo atrás, insegura, mas firmou a mandíbula e lhe sustentou o olhar.—Vim com mamãe!Um disparo ao coração não teria causado tanto efeito em Jamie. Deu um violento

sobressalto e de sua cara desapareceu a cor, que voltou rapidamente ao ouvir umas pisadasaceleradas na escada. Então saltou da cama, lançando-me apressadamente o cobertor e pegandosuas calças. Mal tinha se vestido quando outra silhueta feminina irrompeu no quarto e sedeteve bruscamente, com os olhos fora de órbitas fixos na cama.

— Então era verdade! —Voltou-se para Jamie apertando os punhos— É verdade! É a bruxaSassenach! Como pode fazer-me isso, Jamie Fraser?

—Cala-te, Laoghaire —alfinetou ele— Não te fiz nada!Só ao ouvir seu nome a reconheci. Mais de vinte anos atrás, Laoghaire MacKenzie era uma

esbelta moça de dezesseis anos: pele como pétalas de rosa, cabelo como raios de luar e umaviolenta paixão não correspondida por Jamie Fraser. Tinha engordado muito e as mechas queescapavam de sua coifa tinham a cor da cinza, mas os olhos que fixou em mim tinham amesma expressão de ódio daquele tempo.

— É meu! —sussurrou golpeando o solo com um pé. – Volte ao inferno de onde vieste! Váe deixa-me, digo-te! Como eu não dava sinais de obedecer, olhou ao seu arredor procurandouma arma. Ao ver a jarra de água, apoderou-se dela para atirar-me mas Jamie a tiroulimpamente da mão e a segurou pelo braço com tanta força que a fez gritar.

— Desça! —ordenou.—Depois falarei contigo, Laoghaire.— Como se fosse falar comigo! —gritou ela.E com a mão livre lhe arranhou a cara desde o olho até o queixo. Ele lhe segurou o outro

punho para levá-la ao corredor. Depois fechou a porta com chave. Quando se voltou para mim,eu estava sentada na beira da cama tratando de vestir minhas meias com mãos tremulas.

— Posso explicar-te, Claire —disse.— N-n-não creio.— Escuta-me! —Jamie bateu o punho na mesa com um estrondo que me fez saltar.— É melhor dar explicações a tua filha —observei passando a anágua pela cabeça.— Não é minha filha!— Não? —Tirei a cabeça pelo decote da anágua.— Também não estás casado com

Laoghaire?— Estou casado contigo, maldita seja! —gritou golpeando a mesa outra vez.

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— Me parece que não. —Sentia muito frio e meu vestido estava atrás de Jamie.— Precisoda minha roupa.

— Não irás a parte alguma, Sassenach. Antes tens que…— Não me chame assim! —gritei para surpresa dos dois.Ele me olhou um instante. Depois assentiu com a cabeça.— Está bem. —Respirou fundo.— Vou arrumar as coisas. Depois falaremos, eu e voce. —

Não te movas daqui, Sass… Claire.E recolheu a camisa para pôr com um jeito violento. Me levantei para por o vestido. Depois

me joguei na cama, tremendo dos pés a cabeça, com a lã verde feita um novelo nos joelhos. —Oh, Bree! —exclamei— Oh, Bree, meu Deus!

Me deixei a chorar: em parte pela desagradável surpresa e em parte pela recordação deBrianna. Pensar em Laoghaire converteu instantaneamente a dor em ira. Maldito Jamie! Quetivesse voltado a se casar, acreditando-se viúvo, era uma coisa. Mas que tivesse casado comaquela rancorosa mulher que tinha tratado de assassinar-me no Castelo de Leoch… Claro queele devia ignorar isto.

— Bem, deveria ter sabido! Ao inferno com ele! Como pôde aceitá-la?As lágrimas me corriam abundantemente pela cara e o nariz escorria. À falta de lenço me

assoei com uma ponta do lençol. Cheirava a Jamie. Pior ainda: cheirava aos dois, com o vagoalmíscar de nosso prazer.

—Mentiroso! —gritei. E despedacei contra a porta a jarra que Laoghaire tinha tratado delançar-me.

Viveriam ali, em Lallybroch? Recordei que Jamie tinha encarregado a Fergus que seadiantasse, em teoria para anunciar nossa chegada a Ian e a Jenny, mas também, sem dúvida,para afastar a Laoghaire antes de que eu chegasse. Que pensariam eles do assunto? Ainda queobviamente estavam inteirados, a noite anterior me tinham recebido sem dar sinais de sabê-lo.Mas tinham retirado a Laoghaire da casa, que fazia de novo ali? Latejavam-me as têmporas.Precisava sair dali. Esse era o único pensamento mais ou menos coerente dentro de minhacabeça, de maneira que me segurei a ele: devia ir embora. Não podia continuar ali, na mesmacasa que Laoghaire e sua filha. Elas estavam em seu lar e eu não.

Estremeci. O fogo tinha voltado a apagar-se e pela janela entrava uma corrente glacial.Sentime gelada até os ossos ainda que já vestida. Perdi algum tempo procurando a capa antesde recordar que a tinha deixado embaixo, na sala. Alisei-me o cabelo com os dedos, demaisalterada para procurar um pente. Pronta, por fim. Pronta para tudo o que podia estar. Enquantolançava uma última olhada a meu arredor ouvi passos na escada. Não eram passos leves erápidos, como os outros, senão pesados e lentos, decididos. Era Jamie quem subia… e nãoestava muito desejoso de ver-me.

Perfeito. Eu também não queria vê-lo. Preferia ir-me de imediato, sem discutir. Quepodíamos dizer-nos? Ao abrir a porta retrocedi, sem dar-me conta do que fazia até que toquei acama com as pernas. Então, perdido o equilíbrio, sentei-me. Jamie se deteve no vão da portapara olhar-me. Tinha se barbeado e escovado o cabelo antes de enfrentar o problema, como ojovem Ian no dia anterior.

— Acha que isto ajudará? —perguntei com um esboço de sorriso.

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Engoliu a saliva sem contestar.Ele suspirou.— Não, claro que não. —Fechou a porta depois de si e avançou para a cama com uma mão

estendida. — Claire…— Não me toque!— Não vai permitir que te explique, Claire?— Parece-me que já é um pouco tarde para isso. —Queria usar um tom frio e desdenhoso.

Por desgraça me tremeu a voz.

— Sempre foi razoável —disse baixinho.— Não me digas como fui sempre! —As lágrimas estavam muito próximas da superfície.

Mordi-me os lábios para contê-las.— Certo. —Estava muito pálido; os arranhões de Laoghaire eram três linhas vermelhas em

sua bochecha.— Não vivo com ela —explicou— Ela e as garotas vivem em Balriggan, próximo de Broch

Mordha. —Observava-me com atenção mas não disse nada— Foi um grande erro… casar-mecom ela.

— Com duas filhas? Demoraste bastante em dar-te conta disso, não? Ele apertou os lábios.— As garotas não são minhas. São de seu primeiro marido.

— Ah. —Isso não mudava muito as coisas mas experimentei uma pequena onda de alíviopor Brianna.

— Faz tempo que não vivo com elas. Envio-lhes dinheiro desde Edimburgo mas…— Não tens por que me dar explicações —interrompi— Deixa-me passar, por favor. Vou-

embora.— Onde?— Longe. À minha casa. Não sei. — Deixa-me passar!— Não irás a nenhuma parte —replicou decidido.— Não podes me impedir! Alongou as mãos para segurar-me pelos braços.— Claro que posso.— Solta-me agora mesmo!— Não! —Fincou-me os olhos entrecerrados.De repente me dei conta de que, por mais sereno que pudesse parecer exteriormente, estava

tão alterado como eu— Não te deixarei ir sem explicar-te por que…— Que queres explicar-me? —acusei furiosa — Que voltou a se casar! Que mais queres

dizer?— E voce, foi uma freira durante estes vinte anos? —inquiriu sacudindo-me um pouco.— Não! —lancei-lhe a palavra ao rosto.— Não, que merda! E também não imaginei nunca

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que voce tivesse se comportado como um monge!— Nesse caso…Mas eu estava muito furiosa para escutar mais.— Você mentiu pra mim, maldito!— Não menti!— Claro que sim! Sabes perfeitamente! Solta-me, cretino! —Dei-lhe um pontapé na canela

que lhe arrancou uma exclamação de dor mas não me soltou.Pelo contrário: apertou-me com mais força, fazendo-me gritar.— Nunca te disse uma mentira.— Não, mas ainda assim mentiste! Você me deu a entender que não estava casado, que não

tinhas ninguém, que… que… —Estava meio que soluçando de ira— Deverias ter-me dito quando cheguei! Por que diabos te calas-te?Afrouxou os dedos que me sujeitavam os braços e eu me recompus para liberar-me.— Por que? —insisti socando-lhe uma e outra vez no peito com os punhos.— Por que, por que, por que?— Porque tinha medo. —Agarrou me os punhos para jogar-me na cama. Depois se ergueu

ante mim com os punhos apertados e a respiração agitada— Sou um covarde, maldita seja! Não te disse por medo que me abandonasses. Pouco

homem como sou, não teria podido suportá-lo.— Pouco homem? Com duas esposas? Já me basta!— Sou homem talvez? Querendo-te tanto que o demais não me importa? Sabendo que

sacrificaria minha honra, minha família, minha vida por deitar-me contigo, apesar de que meabandonaste?

— E tens o descaro de dizer-me semelhante coisa? —Minha voz, de tão aguda, surgiu comoum sussurro agudo e cruel — Jogas a culpa a mim?

— Não, não posso culpar-te. —Girou para um lado, cego— Que culpa tem voce, se queriasficar ao meu lado para morrer comigo?

— Como tonta que sou! —exclamei.—Tu me obrigaste a ir. E agora queres jogar-me aculpa por ter-te obedecido?

Deu uma volta por mim com os olhos escurecidos pelo desespero.— Tive que fazer! Pelo bem da criança! —Involuntariamente, desviou os olhos para o

cabide onde pendia seu casaco com as fotos de Brianna no bolso. Depois baixou a voz— Não,não posso arrepender-me disso, qualquer que tenha sido o preço. Teria dado a vida por ela epor voce. Não posso te criticar por ter-te ido.

— Mas me culpas por ter voltado.Sacudiu a cabeça.— Não, por Deus! Sabes o que significa viver vinte anos sem coração? Não ser nem meia

pessoa, acostumar-te a viver com o pouco que resta, enchendo o vazio com o que encontras amão?

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— E a mim me contas! —Esforcei-me para liberar-me, sem muito sucesso.— Claro que eusei, maldito cretino! Ou acha que voltei para viver feliz com Frank para todo o sempre? Dei-lheum pontapé com todas minhas forças. Ele fez uma careta mas sem soltar-me.

— As vezes pedia que fosse assim. —respondeu apertando os dentes— Mas as vezes o viacontigo, dia e noite, possuindo-te, criando o meu filho. E teria podido matar-te por fazer-meisso!

De repente soltou me as mãos e, girando ao redor, despedaçou o punho contra um armáriode carvalho.

— Isso é o que sentes, não? —observei com frialdade—Eu não preciso imaginar-te comLaoghaire. Te vi com ela!

— Estou me lixando para Laoghaire! Nunca me importou!— Cretino! —repeti.—És capaz de casar-te com uma mulher sem querê-la e a descartas

quando…— Cala-te! —rugiu.— Cala a boca, maldita bruxa! —Descarregou o punho no lavatório sem

deixar de olhar-me.— De um modo ou outro, estou condenado, não? Se senti algo por ela, souum mulherengo desleal; se não, sou uma besta sem coração.

— Deverias ter-me dito!— Para que? —Levantou-me com um puxão.— Terias girado sobre teus calcanhares para

abandonar-me sem dizer nenhuma palavra. E depois de ter voltado a ver-te… teria feito coisasmuito piores do que mentir para conservar-te. Apertou-me com força contra seu corpo parabeijar-me, longamente e com dureza. Meus joelhos se converteram em água; lutei por manter-me fria, agarrada na recordação dos olhos furiosos de Laoghaire, de sua voz gritona: «É meu!»

— Isto não faz sentido —disse afastando-me— Não posso pensar com clareza. Eu vouembora. Lancei-me para a porta, mas ele me segurou pelo punho e voltou a me beijar com tantaforça que me deixou sabor de sangue na boca. Não tinha em seu gesto afeto nem desejo, sópaixão cega e a vontade de possuir-me. Já não falava mais.

Eu também não. Afastei a boca e lhe dei uma violenta bofetada, curvando os dedos paraarranhá-lo. Ele se jogou para trás com a bochecha novamente ferida. Depois enredou os dedosem meu cabelo e se inclinou para beijar-me outra vez com deliberada selvageria, ignorando osgolpes que eu lançava contra ele. Lançou-me sobre a cama e ali me imobilizou com o peso deseu corpo. Estava excitado isso se notava. Eu também. «Minha», dizia ele, sem pronunciar umasó palavra. « Minha!» O recusei com ilimitada fúria e bastante habilidade. «Tua», dizia meucorpo. «Tua, e maldito sejas por isso!» Estávamos fazendo o possível por matar-nosmutuamente, impulsionados pela ira daqueles anos de separação: eu por sua decisão de enviar-me de volta, ele por minha partida; eu por Laoghaire, ele por Frank.

— Cachorra! —ofegou— Puta!— Vá para o inferno! —Puxei-lhe os cabelo para baixar-lhe a cara até mim. Caímos da

cama ao chão, feitos um emaranhado, e rodamos de um lado a outro, entre maldiçõesbalbuciadas e palavras sem terminar. Não ouvi o ruído da porta ao abrir-se. Não ouvi nada,ainda que ela devia de ter-nos chamado mais de uma vez. Surda e cega, não atendia mais doque a Jamie até que a chuva de água fria caiu sobre nós. Jamie ficou petrificado e empalideceu;em sua cara só ficaram os ossos marcados sob a pele. Sentime aturdida. Do cabelo de Jamie sedesprendiam gotas de água que caíam sobre os meus peitos. Por trás dele vi a Jenny, tão branca

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como seu irmão, com uma caçarola vazia na mão.— Basta! —ordenou. Tinha os olhos enviesados pela cólera e o horror— Como podes fazer

isto, Jamie? Montar em tua mulher como uma besta em cela sem que te importe se te ouvemem toda a casa!

Ele se separou lentamente de mim, lerdo como um urso.Jenny pegou um cobertor da cama e me jogou sobre o corpo. Jamie se levantou com lentidão

e se acomodou com as calças rasgadas.— Não tens vergonha? —exclamou ela escandalizada.Jamie a olhou como se nunca tivesse visto uma criatura parecida e estivesse tratando de

adivinhar o que era. Das pontas do cabelo lhe caíam gotas sobre o peito nu.— Sim —disse por fim suavemente.— Tenho vergonha.Parecia desconcertado. Fechou os olhos, recorrido por um profundo estremecimento, e saiu

sem dizer uma palavra.

CAPÍTULO 35Fuga do Éden

Jenny me ajudou a recostar-me.— Te trarei algo para que te vistas —murmurou ajeitando um travesseiro para que me

apoiasse.— E algo para beber. Está bem?— Onde está Jamie? Me deu uma rápida olhada de simpatia na que se misturava um reflexo

de curiosidade.— Não tenhas medo. Não deixarei que volte a aproximar-se de ti. —Falava com firmeza;

depois apertou os lábios, carrancuda, e me agasalhou com a colcha — Como pôde fazer-te algoassim!

— Não foi culpa sua… Isso não. —Passei uma mão pelo cabelo enredado — Fui eu. Fomosos dois. Ele… eu…

— Compreendo. —Jenny me olhou por um longo tempo. Pareceu-me bastante possível queo compreendesse.

No andar de baixo se ouviu um golpe surdo: tinha-se fechado a grande porta principal.Jenny chegou à janela e abriu a cortina.

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— É Jamie —disse.—Vai subir à colina; sempre faz o mesmo quando está irritado. Isso ouembebedar-se com Ian. A colina é melhor. Soltei um pequeno suspiro.

— Suponho que estará irritado, sim.Apareceu a jovem Janet trazendo com equilíbrio uma bandeja com bolos, whisky e água.

Estava pálida e assustada.— Estás… bem, tia? —perguntou enquanto deixava a bandeja.— Estou bem —lhe assegurei incorporando-me para pegar a garrafa de whisky.Jenny lhe deu uma palmadinha no braço.— Fica com tua tia —ordenou— Eu irei procurar-lhe um vestido.Janet assentiu obediente e se instalou num banco junto à cama.— Sabes onde está Laoghaire? —perguntei enquanto comia e bebia. A garota tinha a cabeça

baixa, como se estivesse estudando as próprias mãos, mas ante minha pergunta a levantoubruscamente.

— Oh! —exclamou. —Oh, sim. Marsali, Joan e ela voltaram a Balriggan, onde vivem.Tio Jamie as obrigou.— Ah, sim —disse secamente.Ela mordeu os lábios, retorcendo as mãos no avental. De repente levantou os olhos.— Sinto muitíssimo, tia!— Não importa —lhe disse ainda sem ter idéia do que queria dizer.— É que fui eu! —Parecia totalmente agoniada mas decidida a confessar-se. — Eu… eu…

disse a Laoghaire que estavas aqui. Por isso veio.— Oh… —Bem, isso explicava tudo.— Não me ocorreu…, isto é… Não era minha intenção provocar um escândalo, de verdade.

Não sabia que tu… que ela…— Não importa —repeti— Cedo ou tarde, alguma das duas tinha que se inteirar. —Ainda

que isso não muda em nada, olhei-a com certa curiosidade — Mas por que o disseste?— Porque mamãe me ordenou —respondeu sussurrando.Levantou-se e saiu a toda pressa, roçando à sua mãe no vão da porta. Não perguntei nada.

Jenny tinha conseguido um vestido e me ajudou a pôr-me sem mais conversa do que eraimprescindível. Uma vez vestida e calçada, com o cabelo penteado e recolhido, voltei-me paraela.

— Quero ir embora —disse— Agora mesmo.Ela não discutiu. Limitou-se a olhar-me dos pés a cabeça para assegurar-se de que estivesse

bastante forte. Depois assentiu:— Creio que é o melhor —disse baixinho. Já próximo ao meio dia, parti de Lallybroch

sabendo que fora a última vez. Levava uma adaga na cintura como proteção, ainda quedificilmente me faria falta. Nos alforjes do arreio tinha comida e várias garrafas de cerveja:suficiente para chegar ao círculo de pedras. Tinha pensado em pegar as fotos de Brianna queJamie tinha em seu casaco mas as deixei ali. Ela lhe pertencia para sempre, ainda que comigo

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não sucedesse o mesmo.Não tinha ninguém à vista quando Jenny tirou o cavalo do estábulo, sujeitando as bridas

para que eu montasse. Vesti o capuz do manto e fiz um sinal com a cabeça. Da última vez nostínhamos separado como irmãs, com lágrimas e abraços. Ela soltou as rédeas e deu um passoatrás enquanto eu dirigia o cavalo para o caminho.

— Que Deus te acompanhe! —ouvi-lhe dizer depois de mim. Não respondi. Também nãoolhei para trás. Passei a maior parte do dia a cavalo, sem prestar muita atenção ao caminho;atenta só ao rumo, deixava que meu arreio escolhesse as sendas pelos passos da montanha.Detive-me quando a luz começava a desaparecer; depois de atar o cavalo para que pastasse, meacostei envolvida na capa. De imediato adormeci para não recordar. O aturdimento era meuúnico refúgio.

No dia seguinte foi a fome que me devolveu, de má vontade, à vida. Durante toda a jornadaanterior nem tinha parado para comer. Também não o fiz ao lembrar mais, para meio dia, meuestômago começava a emitir fortes protestos. Assim desmontei num pequeno clarão, junto aum riacho, e desembrulhei a comida que Jenny tinha posto nos alforjes. Comi um sanduíche,bebi uma das garrafas de cerveja e montei novamente, dirigindo ao cavalo em direção aonordeste. Por desgraça, se a comida tinha devolvido as forças ao meu corpo, também tinhadado nova vida aos meus sentimentos. À medida que ascendíamos meu ânimo ia decaindo cadavez mais.

O cavalo estava bem disposto, mas eu não. Ao meio da tarde, sem poder continuar, adentrei-me com o arreio num bosque para que não fosse visível do caminho; depois de atá-lofolgadamente, caminhei entre as árvores até encontrar o tronco de um álamo trêmulomanchado de musgo. Sentei-me nele, encurvada, com os cotovelos nos joelhos e a cabeça entreas mãos. Doíam-me todas as articulações, mais de pena que pelo confronto do dia anterior oupelos rigores da viagem. A reserva e a introversão sempre tinham tido muita importância emminha vida.

Tinha aprendido, com bastante trabalho, a arte de curar: a brindar com cuidado e interessedetendo-me antes do ponto perigoso em que doar-se muito é deixar de ser eficiente.

Sempre, sempre, tinha tido que equilibrar a compaixão com sabedoria, o amor com sentido,a humanidade com inflexibilidade. Só com Jamie tinha me dado conta do quanto tinha,arriscando-o tudo, descartando a cautela, o sentido comum e a sabedoria junto com ascomodidades e restrições de uma posição ganhada a pulso. Tinha chegado a ele sem dar-lhenada mais que minha pessoa, em corpo e alma, confiando em que soubesse ver-me inteira ecuidar de minhas debilidades como em outros tempos. No princípio temi que ele não pudesse.Ou não quisesse. E depois chegaram esses poucos dias de prazer perfeito que me fizerampensar que tudo voltava a ser como antes. Pude amá-lo em liberdade e ser amada com umasinceridade que igualava a minha.

As lágrimas se deslizaram entre meus dedos. Chorava por Jamie e pelo que eu tinha sidocom ele. Sua voz me sussurrava: «Sabes o que significa dizer outra vez “Te amo” e dizê-lopara valer?» Eu sabia. E com a cabeça entre as mãos, sob os pinheiros, soube que nuncavoltaria a dizê-lo de verdade. Afundada como estava em minha angustiante contemplação, nãoouvi os passos até que estivesse quase ante mim. Levantei-me da árvore caída e dei meia voltapara o atacante com o coração na boca e adaga na mão.

— Meu Deus! —Quem me espreitava retrocedeu ante a folha nua, tão sobressaltado como

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eu.— Que diabos estás fazendo aqui? —interpelei levando a mão livre ao peito. O coração me

palpitava como um tambor. Devia estar tão pálida como ele.— Por Deus, tia Claire! Onde aprendes-te a desembainhar assim uma faca? Quase me matas

do susto! —O jovem Ian passou uma mão pela testa.— O mesmo eu digo —lhe assegurei.Minha mão tremia tanto que não pude embainhar a adaga e meus joelhos afrouxavam-se.

Deixei-me cair no tronco do álamo com a faca no colo.—Repito —disse tratando de controlar-me—: O que fazes aqui?O garoto mordeu o lábio e, depois de olhar ao redor, sentou-se a meu lado.— Foi tio Jamie quem me enviou… —começou.Levantei-me de imediato, embainhando a adaga no cinto.— Espera, tia! Por favor! —Segurou-me por um braço mas eu me desprendi com uma

chacoalhada.— Não me interessa —disse esperneando a um lado as folhas de samambaia—. Volta a tua

casa, pequeno Ian. Tenho onde ir. —Isso esperava, ao menos.— Mas as coisas não são como você acha! —Já que não podia me deter me seguiu pelo

claro discutindo enquanto se agachava ante os ramos baixos— Ele precisa de voce, tia! De verdade. Deves regressar comigo!Não respondi. Ali estava meu cavalo; agachei-me para desatar a corda.— Tia Claire! Não vai me escutar? —Se ergueu ao lado do cavalo olhando-me acima da

cela de montar.—Não.Montei com majestade, fazendo subir saias e anáguas, mas minha digna partida se viu

impedida pelo jovem Ian, que segurava as rédeas com mão de ferro.—Solta —ordenei.— Primeiro escuta-me. —Fincou-me os olhos com os dentes apertados, acendendo seus

suaves olhos pardos. «Está bem», decidi. Não lhe serviria de nada, nem a ele nem a seutraiçoeiro tio, mas o escutaria.

— Fala —disse reunindo a pouca paciência que eu tinha.— Bem —começou subitamente inseguro.— É… eu… ele… Lancei um rosnado de

exasperação.— Começa pelo princípio. Mas não se estenda demais, sim? —Ele assentiu, fincando os

dentes no lábio para concentrar-se.— Bem, tio Jamie armou um alvoroço em casa quando soube que tinhas ido.— Não o duvido.— Nunca o tinha visto tão furioso —continuou, observando-me com atenção.— E mamãe

também não.

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Gritaram de tudo. Papai tratou de acalmá-los, mas nem sequer pareciam ouvi-lo. Tio Jamiedisse que mamãe era uma abelhuda… e coisas muito piores.

— Não tinha por que chatear-se com Jenny —objetei.—Ela só tratou de ajudar… creio. —Repugnava-me saber que essa rixa também era por culpa minha. Jenny tinha sido o principalapoio de Jamie desde a morte da mãe, quando ambos eram meninos. Quantos males mais lheteria causado com minha volta? Para surpresa minha, o garoto sorriu.

— Bem, ela também fez o seu. Antes de que terminasse a discussão, tio Jamie tinha maisalgumas marcas de dentes. Mamãe o atacou com um caldeirão de ferro; ele se esquivou paraarrojá-lo pela janela da cozinha e assustou a todos os frangos que tinha no pátio.

— Os frangos não me interessam, jovem Ian —disse friamente.— Continua. Quero seguirviagem.

— Bem, depois tio Jamie derrubou as prateleiras dos livros da sala, porque estava muitoaturdido para ver por onde ia enquanto saía. Papai se assomou pela janela para perguntar-lheonde ia e ele respondeu que vai saír para procurar-te.

— E por que estás aqui em seu lugar? — perguntei vigiando a mão que segurava as rédeas.Se os dedos dessem algum sinal de relaxar-se, eu trataria de arrancar.

O jovem Ian suspirou.— É que, enquanto tio Jamie estava montando em seu cavalo apareceu tia… eh… sua esp…

— Enrijeceu miseravelmente. — Laoghaire.Naquele momento desisti de fingir indiferença.—E então, o que aconteceu ? Ele franziu o cenho. —Teve uma discussão terrível, mas não

pude ouvir muito. Tia… Laoghaire, digo… ela não sabe brigar como se deve, como mamãe etio Jamie. Não faz mais do que chorar e gemer. Choramingos, como diz mamãe.

— Hum. E então? Laoghaire tinha desmontado para pegar a Jamie pela perna e puxá-lo.Depois se deixou cair num charco do pátio, abraçada aos joelhos de Jamie, soluçando egemendo como sempre. Ele não podia escapar; acabou por levantá-la e a jogou sobre o ombropara levá-la em cima sem prestar atenção aos olhares da família e os serventes.

— Bem —disse. Notando que tinha os dentes apertados, afrouxei-os— Assim te enviou aprocurar-me porque ele estava muito ocupado com sua esposa. Cretino! Que descaro! Mandaalguém a procurar-me como se eu fosse uma criada porque não lhe resulta cômodo vir empessoa. Quer o pão e o bolo, não? Grandíssimo arrogante, egoísta, autoritário… escocês! Tinhaos nós dos dedos brancos de tanto apertar o assento. Sem preocupar-me já pelas sutilezas, deiuma bofetada às rédeas.

— Solta!— Mas não foi assim, tia Claire!— O que não foi assim? —Seu tom desesperado me fez levantar os olhos.— Tio Jamie não ficou para atender a Laoghaire!— E por que te enviou ?— Porque ela lhe disparou. Ele me enviou a procurar-te porque está morrendo.— Se estiver mentindo, Ian Murray —disse pela décima segunda vez—, o lamentarás até o

fim de tua vida… que será muito curta! Tive que alçar a voz para fazer-me ouvir. Tinha-se

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levantado um forte vento que me agitava o cabelo e me cingia as saias às pernas; grandesnuvens negras fechavam os passos de montanha. O jovem Ian, sem alento para contestar,limitou-se a sacudir a cabeça, inclinada contra o vento. Ia a pé, conduzindo ambos pôneis pelobridão por um trecho pantanoso, junto à beira de um pequeno lago. Calculei que era nem meiodia. Faltavam várias horas para chegar a Lallybroch e não parecia provável que chegássemosantes de escurecer. Tinham passado três dias desde que eu partira. Três dias desde que Jamierecebera o disparo.

O jovem Ian não me dava muitos detalhes; depois de ter cumprido com sua missão, sóqueria chegar a Lallybroch o antes possível e não lhe parecia necessário conversar. Dissemeque Jamie estava ferido no braço esquerdo; isso não era muito grave. Mas a bala lhe tinhapenetrado também nas costas e isso sim era grave. Quando o garoto partiu, Jamie estavaconsciente; isso não era grave. Mas começava a subir-lhe a febre; isso sim era bastante grave.Quanto aos possíveis efeitos do tiro, o tipo ou gravidade da febre e o tratamento que lhetivessem aplicado, Ian se limitou a encolher-se de ombros. Talvez Jamie estivesse morrendo,talvez não. Cabia a possibilidade de que ele mesmo se tivesse disparado para obrigar-me aregressar. Era capaz de traçar um plano como esse e tinha coragem de sobra para levá-lo até ofim. Por outro lado, eu nunca o tinha visto atuar sem calcular o custo e sua disposição a pagá-lo. Não parecia lógico que corresse o risco de morrer para atrair-me de novo a Lallybroch.Jamie Fraser era um homem muito lógico.

Muito bem: dada a improbabilidade de que Jamie tivesse disparado contra si mesmo,existiria sequer esse disparo? Talvez tudo fosse uma invenção sua. Mas me parecia muitodifícil que seu sobrinho fosse capaz de dar-me uma notícia falsa de um modo tão convincente.Cada vez que abandonava Lallybroch tinha pensando que não regressaria jamais. E ali estavamais uma vez, regressando. Por duas vezes me tinha separado de Jamie com a certeza de nãovoltar a vê-lo. E ali estava, voltando a ele como uma pomba mensageira a seu pombal.

—Te direi uma coisa, Jamie Fraser —murmurei baixo— Se não estiver muito próximo damorte quando eu chegar, viverás para lamentá-lo.

CAPÍTULO 36Feitiçaria prática e aplicada

Chegamos várias horas depois do escurecer, empapados até os ossos. A casa estavasilenciosa e escura com exceção de duas luzes tênues na sala. Ouviu-se um ladrido deadvertência mas o jovem Ian calou o animal; depois de farejar com curiosidade meu estribo, a

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silhueta branca e negra desapareceu na escuridão do pátio. O ladrido tinha bastado para alertara alguém.

Enquanto o jovem Ian me conduzia ao vestíbulo, abriu-se a porta da sala e Jenny assomou acabeça, com olheiras de preocupação. Ao ver seu filho sua expressão se converteu em alívio,de imediato suprimido pela justiceira expressão de indignação da mãe ante o filho errante.

— Ian, pequeno bandido! Onde te enfiaste? Teu pai e eu ficamos loucos de angustia! —Deu-lhe uma olhada ansiosa.— Estás bem?

Ante seu gesto afirmativo apertou novamente os lábios.—Bem, agora sim o que te espera é uma boa, moço! Queres dizer-me onde diabos estiveste?Em vez de responder ao xingamento, o garoto se encolheu torpemente de ombros e deu um

passo a um lado, deixando-me à vista de sua mãe. Se minha ressurreição de entre os mortos atinha desconcertado, esta segunda reaparição a deixou atônita. Os olhos azuis, normalmente tãoenviesados como os de seu irmão, dilataram-se até o ponto de parecer redondos. Olhou-medurante longo momento sem dizer nada; depois voltou novamente os olhos para seu filho.

— Um cuco —disse em tom quase coloquial.— Isso é voce, moço: um grande cuco noninho. Saberá Deus de quem deves ser filho. Meu, não.

— Eu… bom, é que… —balbuciou com os olhos fincados nas botas.— Não podia deixarque…

— Oh, isso agora não importa! —lhe alfinetou sua mãe. — Sobe e vá deitar-se.Amanhã teu pai se encarregará de ti. Ian jogou um olhar indefeso à porta da sala. Depois se

voltou para mim com um encolhimento de ombros e se afastou pelo corredor arrastando os pés.Jenny permaneceu imóvel, sem afastar os olhos de mim até que a porta se fechou com um

golpe suave.— Então voltou.Assenti com a cabeça.— Agora isso não importa —disse baixinho para não perturbar o descanso da casa.— Onde está Jamie?Depois de uma breve vacilação, ela aceitou minha presença.— Aqui —disse assinalando a porta da sala.Comecei a andar mas me detive. Tinha algo por perguntar.— Onde está Laoghaire?— Se foi. —Os olhos de Jenny eram inescrutáveis à luz da vela.Cruzei a porta e fechei com firmeza depois de mim. Jamie, muito grande para o sofá, jazia

num catre instalado junto ao fogo, dormindo ou inconsciente; seu perfil se recortava, escuro eafiado, contra a luz das brasas. Ao menos não tinha morrido: vi o lento subir e baixar do peitosob a colcha. Não precisava ter pressa agora. Desatei os cordéis de meu capote e estendi aroupa empapada sobre o encosto da cadeira, pegando o xale de Jenny para substituí-lo. Tinhaas mãos frias. As pus sob as axilas para que recuperassem a temperatura normal antes de tocá-lo.

Quando por fim me aventurei a apoiar a mão em sua frente estive a ponto de retirá-la

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bruscamente: queimava como uma pistola depois de ter sido disparada. Gemeu e se removeuante o contato. Depois de observá-lo ocupei a cadeira de Jenny. Com uma temperatura comoessa não dormiria muito tempo; não valia a pena acordá-lo antes para examiná-lo. Ospensamentos que se tinham iniciado no bosque, prolongados durante a pressurosa viagem deregresso, continuaram então sem vontade consciente por minha parte. A honra tinha conduzidoa Frank à decisão de reter-me como esposa e criar a Brianna como se fora sua. A honra e suaresistência a recusar uma responsabilidade que acreditava ser sua. Agora tinha ante mim aoutro homem honrável.

Laoghaire e suas filhas, Jenny e sua família, os prisioneiros escoceses, os contrabandistas, osenhor Willoughby e Geordie, Fergus e os arrendatários… Quantas outras responsabilidadesteria carregado Jamie durante minha ausência? Por minha parte, a morte de Frank me tinhaabsolvido de uma de minhas obrigações; a mesma Brianna, de outra. O conselho do hospital,em sua eterna sabedoria, cortou minha última atadura daquela outra vida. A ajuda de JoeAbernathy me deu tempo para livrar-me das responsabilidades menores, para delegar eresolver. Jamie não tinha tido possibilidade de eleger quanto a minha reaparição em sua vida,nem tempo para tomar decisões e resolver conflitos. Ele não era dos que faltam as suasresponsabilidades, nem sequer por amor.

Tinha mentido, sim, por não confiar que eu fosse capaz de reconhecer essasresponsabilidades e permanecer ao seu lado. Tinha tido medo. Eu também: medo de que não sedecidisse por mim no conflito entre um amor de vinte anos e sua família atual. Por isso fugipara Craigh na Dun com a pressa e a decisão de um condenado que se aproxima aos degraus docadafalso. O orgulho ferido me incitava, mas bastou que o jovem Ian dissesse: «Ele estámorrendo» para que visse a pouca importância que tinha. Só me dei conta de que tinha abertoos olhos quando falou:

— Você voltou. —disse com suavidade. Estava seguro.Abri a boca para replicar mas continuou sem afastar suas dilatadas pupilas de minha cara: —

Amor meu… que linda és, meu Deus, com esses grandes olhos dourados e o cabelo tão suaveao redor do rosto. —Passou a língua pelos lábios secos. —Estava seguro de que me perdoarias,Sassenach, quando o soubesses.

— Quando o soubesse? —Ergui as sobrancelhas sem dizer nada.— Tinha muito medo de perder-te outra vez, mo duinne —murmurou. —Muito medo.

Desde o dia em que te vi não amei nenhuma outra, minha Sassenach, mas não podia… nãopodia suportar… Sua voz se apagou num murmúrio ininteligível; voltou a fechar os olhos. Eume mantinha imóvel sem saber como agir. De repente os abriu outra vez, pesados pela febre.

— Já não falta muito, Sassenach —adicionou para tranqüilizar-me, curvando a boca numatentativa de sorriso.— Já não falta muito. E então voltarei a tocar-te. Tenho muito desejo detocar-te.

— Oh, Jamie —murmurei. Levada pela ternura, alonguei uma mão para tocar sua bochechaardente. Seus olhos se dilataram de espanto. Sentou-se na cama, lançando um alarido pavorosopela dor que o movimento lhe provocou no braço ferido.

— Oh, Deus! Oh, Cristo, Deus Todo-poderoso! —exclamou sem alento, agarrando o braçoesquerdo— És de verdade! Por todos os demônios malditos! Oh, Deus!

— Estás bem? —perguntei estupidamente.

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Jenny assomou a cabeça pela porta. Jamie, ao vê-la, encontrou alento suficiente para rugir:— Sai daqui! —Depois voltou a dobrar-se com um rosnado — Cris… to —se queixou entredentes

— Em nome de Deus, o que fazes aqui, Sassenach?— Como que faço aqui? Mandou-me procurar. O que significa isso de que sou de verdade?

Ele tornou a afrouxar a mão que apertava o braço esquerdo. De imediato voltou a apertá-lo,entre várias referências em francês aos órgãos reprodutores de certos animais.— Faz o favor dedeitar! —ordenei empurrando-o sobre os travesseiros. Notei com certo alarme que os ossosestavam muito próximos da pele.

— Pensava que eras um delírio da febre…, até que me tocaste —explicou ofegando.— Quediabos pretendes aparecendo assim junto a minha cama? Queres matar-me de susto? —Fezuma careta de dor.— Por Deus, é como se este maldito braço desprendesse de meu ombro. Ah,merda!

Desprendi-lhe com firmeza os dedos da mão.— Não enviaste ao jovem Ian para que me dissesse que estavas morrendo? —perguntei

enquanto lhe arregaçava a camisa de dormir. Tinha uma gorda bandagem acima do cotovelo.Procurei às apalpadelas o extremo do lenço.

— Eu? Não! Ai, dói-me!— Ainda vai doer bastante antes que termine contigo —adverti desembrulhando a ferida

com cuidado.— Então esse pequeno cretino veio a procurar-me por conta própria? Tu não querias que eu

voltasse?— Não! Que voltasses a mim só por pena, como se fosse um cachorro numa vala? Ah,

diabos! Não. Até proibi essa anta que fosse procurar-te.— Sou médica, não veterinária —observei friamente.— E se não me querias aqui, o que foi

que disseste quando acreditava estar sonhando, diga-me? Morde o cobertor ou qualquer outracoisa; a bandagem está colada e tenho que arrancá-la.

Mordeu-se o lábio e respirou bruscamente pelo nariz. Me afastei para remexer na gaveta daescrivaninha onde Jenny guardava as velas. Precisava de mais luz.

— Imaginei que o jovem Ian me disse que estavas morrendo só para me obrigar a voltar.— Por mais que o queira, estou morrendo. —Sua voz soava seca e direta apesar da falta de

alento.Me voltei para ele, surpresa. Sua respiração era arrítmica e tinha os olhos brilhantes pela

febre. Sem responder, acendi as velas que tinha encontrado e as pus no grande candelabro doaparador. Depois me inclinei para a cama.

— Vamos dar uma olhada nisto. A ferida em si era um buraco com sangue seco nas bordas,de tintura levemente azul. Pressionei a carne dos lados; estava enrijecida e tinha uma supuraçãoconsiderável. Jamie se removeu inquieto enquanto eu deslizava os dedos ao longo do músculo.

— Aqui tens um inflamado para uma boa infecção, moço —informei.—O jovem Ian medisse que tinhas uma ferida nas costas. Teve um segundo disparo ou a bala atravessou o braço?

— Atravessou-o. Jenny me tirou a bala das costas. Mas não está muito mau; só penetrou

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dois ou três centímetros.— Diga-me onde foi.Movendo-se com muita lentidão, moveu o braço para fora. Notei que até esse pequeno

movimento lhe produzia uma intensa dor. O buraco de saída estava sobre a articulação docotovelo, na face interna do braço, mas não frente à entrada; o projétil tinha sido desviado emsua trajetória.

— Tocou o osso —disse tratando de não imaginar o que devia de ter sentido.—Sabes se háfratura? Não quero tocar-te mais do necessário.

— Ainda bem —disse tentando sorrir.— Não, não creio que tenha fratura. Quando rompi amandíbula e a mão foi diferente. Mas dói.

— Suponho que sim. —Apalpei com cuidado a curva dos bíceps— Até onde chega a dor?Deu uma olhada quase indiferente ao braço ferido.

— É como se não tivesse osso, senão um atiçador quente. Mas não é só o braço o que medói; e sim as costas inteiras; tenho-a rígida. —Engoliu saliva e voltou a passar a língua peloslábios.— Me darias um pouco de conhaque? —pediu.— Me faz mal sentir a batida do coração.

Sem fazer nenhum comentário, enchi um copo de água e aproximei de seus lábios. Eleergueu uma sobrancelha mas bebeu com vontade.

— Duas vezes em minha vida tenho estado a ponto de morrer pela febre —disse.— Creioque desta vez é a definitiva. Não queria mandar que fossem procurar-te, mas… alegro-me quetenhas vindo. —Engoliu saliva antes de continuar.— Queria… queria pedir-te perdão. Edespedir-me como é devido. Não vou pedir-te que fiques até o final mas… ficarias comigo…,só um momento?

— Ficarei um momento —disse —Mas não vais morrer.Ele fitou-me com estranheza.—Tu me curaste uma grande febre; ainda penso que foi por feitiçaria. Jenny me curou a

seguinte só com sua teimosia. Suponho que, tendo-vos as duas comigo, posso superar esta, masnão sei se quero passar outra vez por esse tormento. Creio que preferiria morrer, sem a ti não éigual.

—Ingrato —lhe disse.—Covarde. —Indecisa entre a exasperação e a ternura, dei-lhe umapalmada na bochecha. Saquei de meu bolso o pequeno estojo que levava sempre comigo. —Desta vez também não vou permitir que morra, ainda que a tentação é grande. Retirei a flanelacinza, deixando à vista as reluzentes seringas, e retirei da caixa o frasquinho de penicilina emtabletes.

— Em nome de Deus, o que é isso? —perguntou olhando-as com interesse. —Parecemmalignas.

Não respondi, ocupada como estava em dissolver os tabletes de penicilina numa ampola deágua esterilizada. Depois preparei a injeção.

— Vire-se sobre o lado são —lhe ordenei— e levanta a camisa de dormir. Deu uma olhadadesconfiada à agulha mas obedeceu de má vontade. Pesquisei o território com ar de aprovação.

— Teu traseiro não mudou nada em vinte anos — comentei admirando as musculosascurvas.

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— Nem o teu —replicou ele cortês,— mas não vou pedir-te que o descubras. Te atacousubitamente a luxúria?

— Não, por agora. —Esfreguei um pouco a pele com um pano empapado em conhaque. —Essa marca de conhaque é muito boa —observou espionando acima do ombro—, mas meagrada mais quando se aplica pelo lado oposto.

— Também é a melhor fonte de álcool disponível. Agora fique quieto e relaxe. Depois defincar habilmente a agulha, pressionei lentamente o embolo.

— Ai! —Jamie esfregou o traseiro com dor.— Já já deixará de arder. —Servi-lhe dois centímetros de conhaque.— Agora podes beber

um pouco… muito pouquinho.Esvaziou a xícara sem comentários enquanto eu envolvia as seringas.— Achava que para fazer bruxarias se fincavam os alfinetes em bonecos, não na própria

pessoa.— Não é um alfinete. É uma seringa hipodérmica.— Pouco importa como a chames; parecia um prego para ferradura. Te incomodaria

explicar-me como podes curar-me o braço fincando alfinetes na bunda?Respirei fundo.— Recordas que certa vez te falei dos germes? Animaizinhos tão pequenos que não se

vêem. Podem meter-se no corpo com água e comida em mau estado ou pelas feridas abertas. Ese entram te causam doenças. Olhou-se o braço com interesse.

— Quer dizer que tenho germes no braço?— Pode estar certo. —Golpeei o estojo com um dedo.—O remédio que te pus no traseiro

mata os germes. Te aplicarei uma injeção a cada quatro horas, até amanhã a esta hora, e entãoveremos como estás. Compreendes?

Assentiu lentamente.— Compreendo, sim. Devia ter deixado que te queimassem a vinte anos.

CAPÍTULO 37O que há num nome

Depois de aplicar-lhe a injeção, sentei-me ao seu lado e deixei segurar-me a mão até queadormecesse. Passei o resto da noite junto a sua cama, cochilando; acordava-me o relógiointerno que temos todos os médicos, ajustado às mudanças de guarda dos hospitais. Apliquei-lhe mais duas injeções, a última ao romper a manhã; então a febre já tinha baixado de formaperceptível.

— Estes malditos germes do século XVIII não têm nada que fazer contra a penicilina —disse ao seu corpo adormecido.— Não têm resistência. Até a sífilis desapareceria da noite parao dia.

E depois, o que? Perguntava-me enquanto ia à cozinha em procura de chá quente e algo paracomer. Uma mulher desconhecida, provavelmente a cozinheira ou a criada, estava acendendo o

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forno de tijolos para cozinhar as fogaças do dia, que esperavam sobre a mesa. Não sesurpreendeu ao ver-me; depois de de dar um lugar para que me sentasse, serviu-me o chá eumas omeletes com um rápido: «Bom dia, senhora», antes de voltar ao seu trabalho. Pelo visto,Jenny tinha informado de minha presença as pessoas da casa. Isso significava que me aceitava?Tinha minhas dúvidas. Obviamente queria que eu me fosse e não a alegrava ver-me ali outravez. Se decidisse ficar, tanto ela como seu irmão teriam que me dar certas explicações comrespeito a Laoghaire.

— Obrigada —disse cortesmente à cozinheira.Voltei à sala com meu chá, a esperar o momento em que Jamie se decidisse a acordar. Por

fim, justo antes do meio dia, deu sinais de reanimação: removeu-se com um suspiro, grunhiupor causa da dor do braço e voltou a ficar virado. Dei-lhe um tempo para que ele reparasse aminha presença, mas continuava com os olhos fechados. No entanto não dormia: as linhas deseu corpo estavam um pouco tensas.

— Muito bem —disse reclinando-me comodamente na cadeira, bem longe de seu alcance.— Escuto-te. Uma pequena ranhura azul apareceu entre suas longas pestanas douradas,fechando-se de novo.

— Hum…? —murmurou fingindo acordar pouco a pouco.— Não escondas o corpo. —ordenei— Sei perfeitamente que estás desperto.Abre os olhos e conta-me de Laoghaire.Seus olhos azuis se abriram posando-se em mim com certo desagrado.— Não tens medo de que eu sofra uma recaída? —perguntou.— Sempre ouvi dizer que aos

enfermos não se deve inquietar. Isso pode fazer com que recaiam.— Estás com um médico —lhe assegurei— Se desmaiar pelo esforço saberei que fazer.— É disso que tenho medo. —Dirigiu os olhos para o pequeno estojo onde guardava as

drogas e as seringas.— Sentou o traseiro como se me tivesse sentado sem calças numa mata deespinhos.

—Bem —disse.—Dentro de uma hora te aplicarei outra. Mas agora vai falar. Apertou oslábios.

— Está bem —suspirou por fim— Acontecei quando eu voltei da Inglaterra. Tinha chegadoao Distrito dos Lagos, cruzando a grande serra que separa Inglaterra de Escócia.

— Ali há uma pedra que marca a fronteira. Talvez a conheças.Assenti; tinha visto aquele menir enorme onde Jamie dizia ter-se detido a descansar.— Não sabes o que significa viver tanto tempo entre estrangeiros.— Acreditas mesmo nisso? —comentei com certa aspereza. Ele baixou os olhos com um

leve sorriso.— Sim, talvez o saibas. Há mudanças, não? Por mais que te esforces por conservar as

recordações da pátria e por seguir sendo como eras, isso te muda. Não chegas a ser um deles,mas ao mesmo tempo deixas de ser o que eras.

— Eu sei. Continua. Suspirou esfregando o nariz.— Voltei para casa. —Levantou os olhos com um semi sorriso.— Como era mesmo o que

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disseste ao jovem Ian? «O lar é o lugar onde, quando deves voltar, têm que te receber.» Eraassim?

— Quem o escreveu foi um poeta chamado Frost. Mas que queres dizer? Não me digas quetua família não se alegrou de ver-te!

— Claro que sim —reconheceu lentamente. —Não quero dizer que me tenham recebidomal, em absoluto. Mas minha ausência tinha durado demais; os menores já não mereconheciam. Sorriu com tristeza. —Quando vivia escondido na gruta tudo era diferente.Viam-me raras vezes, mas estava sempre ali e era parte da família. Depois fui ao cárcere. ÀInglaterra. Escrevíamo-nos mas não é o mesmo: umas quantas palavras no papel, contandocoisas que sucederam meses atrás. Encolheu-se de ombros; o movimento lhe arrancou umacareta de dor.

— E quando voltei tudo era diferente. Ian me perguntava se convinha ou não cercar tal ouqual pasto, mas eu sabia que o garoto já estava fazendo o trabalho. Quando caminhava peloscampos, as pessoas me olhavam de soslaio, desconfiadas, tomando-me por um forasteiro.Depois, ao reconhecer-me, punham cara de ter visto um fantasma.

Interrompeu-se para olhar para a janela.— Creio que realmente era um fantasma. Não sei se me entendes.— Sentes como se tivesses rompido o que te atava à terra —disse com suavidade— Flutua

pela casa sem ouvir teus passos. Ouves o que te dizem e não faz sentido. Recordo-o; assim eraantes do nascimento de Bree.

— Eu estava aqui —explicou ele.—Mas não em casa. E suponho que me sentia só.— Suponho que sim. —Tomei cuidado para não denotar solidariedade nem condenação. Eu

também sabia algo sobre a solidão. Jenny tinha tratado de convencê-lo para que voltasse acasar-se, à força de suavidade e persistência.

— Laoghaire estava casada com Hugh MacKenzie, um dos arrendatários de Colum. Hughmorreu em Culloden. Dois anos mais tarde ela se casou com Simon MacKimmie, do clã Fraser.Dele são as duas garotas, Marsali e Joan. Poucos anos depois, os ingleses o encarceraram numaprisão de Edimburgo. Tinha uma boa casa, uma propriedade cobiçável; naqueles tempos, issobastava para que se considerasse traidor um escocês das Terras Altas, fora ou não partidáriodos Stuart. Sua voz tinha ficado rouca. Interrompeu-se para pigarrear.

— Simon não teve tanta sorte como eu: morreu no cárcere antes que pudessem levá-lo ajuízo. Durante algum tempo, a Coroa tratou de confiscar sua propriedade, mas Ned Gowanviajou a Edimburgo para defender a Laoghaire; conseguiu salvar a casa e um pouco dedinheiro, alegando que lhe correspondiam por ser sua viúva.

— Ned Gowan? —exclamei com surpresa e prazer— Não pode ser que ainda esteja vivo! —Era um cavaleiro miúdo, já de idade avançada, que assessorava ao clã MacKenzie sobre osassuntos legais. Vinte anos antes me tinha salvado de ir à fogueira por bruxa. Jamie sorriu aover minha alegria.

— Oh, sim. Creio que, para acabar com ele, terá que lhe dar uma machadada na cabeça. É omesmo de sempre, ainda que já deva de ter mais de setenta anos.

— Ainda vive no Castelo de Leoch?Assentiu, alongando a mão para a jarra. Bebeu com dificuldade.

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— No que resta dele. Mas nestes anos teve que viajar muito, apelando condenações portraição e pleiteando para recobrar propriedades. —O sorriso de Jamie encerrava certaamargura.—Como diz o provérbio: «Depois de uma guerra, primeiro chegam os corvos paracomer a carne; depois os advogados para pelar os ossos.» Elevou a mão direita ao ombro paramassageá-lo.

— Mas Ned é um bom homem apesar de sua profissão. Vai e vem de Inverness aEdimburgo; as vezes vai a Londres ou a Paris. E de vez em quando se detém aqui para fazeruma parada no caminho.

Foi Ned Gowan quem mencionou Laoghaire quando regressava de Balriggan. Jenny,aguçando o ouvido, pediu mais detalhes. Como se estes resultassem satisfatórios, enviou aBalriggan um convite para que a viúva e suas duas filhas celebrassem o Ano Novo emLallybroch.

— Foi aqui —disse Jamie, abrangendo com um movimento da mão sã o quarto ondeestávamos. —Jenny tinha retirado os móveis. Junto àquela janela estava o violinista, com a luanova ao fundo. Assinalou com a cabeça a janela onde tremia a roseira. Um pouco da luzdaquela festa perdurava em seu rosto; ao vê-la senti uma ferroada de dor.

—Dancei com Laoghaire quase toda a noite. E ao amanhecer, quando os que ainda estavamdespertos foram à porta do fundo para ver os presságios do Ano Novo, nós o seguimos.

As solteiras, por turnos, davam algumas voltas e cruzavam a porta com os olhos fechados;depois de algumas voltas, abriam os olhos; o primeiro que viam lhes indicava com quem secasariam. Entre muitos risos, os convidados, excitados pelo whisky e o baile, foram cruzando aporta. Laoghaire resistia, ruborizada e sorridente, dizendo que era um jogo para garotas e nãopara matronas de trinta e quatro anos; ante a insistência dos outros, provou. E quando abriu osolhos, seu olhar posou no rosto de Jamie.

—Era uma viúva com duas meninas. Precisava de um homem sem dúvida alguma. E euprecisava… um pouco. —Contemplou o fogo.—Supus que poderíamos ajudar-nosmutuamente.

Casaram-se discretamente em Balriggan e Jamie mudou para lá seus poucos pertences. Nãopassou sequer um ano antes que voltasse a mudar-se, desta vez para Edimburgo.

—Mas o que aconteceu? —perguntei com curiosidade.Olhou-me com ar indefeso.—Não sei o que saiu errado. Só sei que nada saiu bem. —Esfregou-se os cenhos, cansado.—Creio que foi culpa minha. Sempre a desiludia. No meio do jantar abandonava a mesa,

soluçando e com os olhos cheios de lágrimas, sem que eu soubesse que tinha feito. Nuncasoube o que fazer por ela nem o que dizer; só conseguia piorar as coisas. Ela passava dias,semanas inteiras sem falar comigo. Se me aproximava, voltava-me as costas.

Olhou-me com ar astuto. — Voce nunca me fez isso, Sassenach.—Não é meu estilo. —disse—Ao menos, quando me chateio contigo sabes perfeitamente o

porque.Recostou-se nos travesseiros ofegante. Ficamos em silêncio. Depois continuou, levantando

os olhos ao teto:—Sempre pensei que preferiria não saber de como era tua vida com ele. Com Frank, quero

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dizer. Mas talvez tenha me equivocado.—Te contarei tudo o que quiser saber. — prometi —Mas não agora. Agora cabe a ti. Fechou

os olhos suspirando.—Tinha medo. Eu tentava tratá-la com suavidade. Fiz o quanto pude para satisfazê-la mas

não serviu de nada. Talvez tenha sido culpa de Hugh ou de Simon. Ambos eram bons, masnunca se sabe o que se passa no leito conjugal. Ou talvez foi pelo nascimento das filhas; nemtodas as mulheres suportam passar por isso. A verdade é que tinha uma ferida que eu não podiacurar por mais do que me esforçasse. Evitava meu contato; nos olhos se via o medo e o asco.Por isso me fui. Não pude suportá-lo mais.

Sem dizer nada, tomei-lhe a mão procurando-lhe o pulso. Tranqüilizou-me senti-lo lento eno compasso.

—Dói muito seu braço? —perguntei.—Um pouco.Inclinei-me para tocar-lhe a testa. Estava quente mas não tinha febre. Alisei a ruga entre as

espessas sobrancelhas avermelhadas.—E sua cabeça, dói?—Sim.—Vou preparar um chá de salgueiro.Quis levantar-me mas ele me deteve pelo braço.—Não preciso de chá. —disse — Mas me aliviaria apoiar a cabeça em teu colo e que me

aplicasse uma massagem nas têmporas.—Não me enganas nem por um momento, Jamie Fraser. —disse —Não pense que vou

esquecer-me da próxima injeção.Enquanto falava, afastei a cadeira para sentar-me na beira do catre. Apoiei-lhe a cabeça na

saia e comecei a acariciar-lhe as têmporas. Deixou escapar um pequeno rosnado de felicidade.—Oh, que agradável — murmurou.Mesmo pesando a minha decisão de não o tocar mais do que o necessário até que tivéssemos

resolvido as coisas, minhas mãos seguiram as linhas do pescoço e os ombros.—Muito bem —disse ao fim, pegando a ampola de penicilina.—Uma rápida fincada e… Ao roçar a parte dianteira de sua camisola retirei a mão,

sobressaltada.—Jamie! —exclamei divertida— Não pode ser!—Suponho que não. — disse sem alterar-se. Mas sempre se pode sonhar, não?Aquela noite também não subi para deitar. Não conversamos muito; bastava-nos estar juntos

naquele catre estreito, quase sem movermos para não piorar o braço ferido. O resto da casaestava em silêncio.

—Te imaginas? —murmurou em algum momento da madrugada.— Sabes o quão difícil que é estar assim com alguém e não contar jamais os seus segredos?—Sim —respondi pensando em Frank.— Eu sei.

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—Imagine. —Tocou-me o cabelo. — E de repente… recuperar a segurança. Dizer e fazer oque bem quiser, sabendo que é o correto.

—Dizer «te amo» e dizê-lo com todo o coração —disse suavemente.Sem saber como, descobri-me enroscada contra ele, com a cabeça na curva de seu ombro.—Durante tantos anos fui tantas coisas, tantos homens diferentes… —Engoliu saliva e

mudou de posição. —Era tio para os filhos de Jenny, irmão para ela e seu marido, «milord»para Fergus, «senhor» para meus arrendatários. «Mac Dubh» para os homens de Ardsmuir e«MacKenzie» para os outros serventes de Helwater. Depois, Malcolm na tipografia e JamieRoy nas docas. Acariciou-me lentamente a cabeleira. —Mas aqui —concluiu em voz tão baixaque mal pude ouvir-te—, aqui, contigo na escuridão… não tenho nome.

—Te amo— lhe disse.

CAPÍTULO 38

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Encontro com um advogado

Tal como tinha previsto, os germes do século XVIII não eram páreo para os antibióticosmodernos. Em vinte e quatro horas a febre tinha desaparecido e durante os dois dias seguintescomeçou a ceder a inflamação do braço, deixando só um endurecimento ao redor da ferida quesupurava levemente quando a apertava. Ao quarto dia, segura de que Jamie estava serecobrando, pus um curativo frouxo com ungüento de centaura e subi para vestir-me. Aindaque não tivesse anunciado minha intenção de ir ao andar superior, quando abri a porta de meudormitório encontrei junto a tina uma grande jarra com água quente e um tablete de sabão.Peguei-o para cheirar: fino sabão francês, perfumado com lírios do vale. Era um delicadocomentário sobre minha posição dentro da casa: hóspede de honra, sem dúvida, mas alheia àfamília, que se as arrumava com a habitual mistura de sebo e lixívia.

—Muito bem, já veremos —murmurei enquanto ensaboava o pano para lavar-me. Meia horadepois, enquanto arrumava meu cabelo frente ao espelho, ouvi chegar alguém. A julgar peloruído eram várias pessoas. Quando desci me encontrei com uma pequena multidão de meninosque corriam entre a cozinha e a sala e com algum adulto que me olhou com curiosidade. Nasala tinham desmontado o catre; Jamie, já barbeado e com uma camisa de dormir limpa, estavasentado no sofá, coberto com uma colcha e com o braço esquerdo em tipóia. Rodeavam-noquatro ou cinco meninos. —Aí está! —exclamou com prazer ante minha aparição. E todos ospresentes se voltaram para olhar-me. Suas expressões iam da simpática saudação à surpresa.

—Te lembras do jovem Jamie? —O xará maior assinalou com a cabeça a um jovem alto, deombros largos e negro cabelo encaracolado, que sustentava em braços um vulto inquieto.

— Me recordo desses cachos — respondi sorrindo. — O resto mudou um pouco.O jovem Jamie me dedicou um amplo sorriso.—Eu me lembro bem, tia — disse com voz profunda. — Sentavas-me em teus joelhos para

jogar aos Cinco Porquinhos com os dedos de meu pé.—Não é possível! —exclamei fitando-o espantada.—Podes fazer a prova com nosso pequeno Benjamin — sugeriu o jovem com um sorriso. E

se inclinou para depositar cuidadosamente o vulto em meus braços. Uma cara muito redonda seergueu para mim, com esse ar de aturdimento tão comum entre os recém nascidos. Benjaminparecia um pouco confuso ante a brusca mudança de braços, mas não se opôs. Um menininholoiro se reclinava no joelho de Jamie olhando-me com estranheza.

—Quem é essa, tio? —perguntou com um sussurro bem audível.—É tua tia avó Claire —respondeu Jamie com gravidade. — Suponho que já te falaram

dela.—Ah, sim —confirmou o menino com grandes acenos de cabeça. — É tão velha como a

vovó?— Mais velha ainda — informou Jamie, assentindo com igual solenidade.O garoto me olhou boquiaberto. Depois se voltou para Jamie com a cara franzida por um

gesto zombador.

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—Não caçoes, tio! Não pode ser tão velha como a vovó! Nem tem cabelos brancos! —Obrigada, filho — lhe disse com um radiante sorriso.

—Estás seguro de que é ela? —insistiu o menino, olhando-me com ar dubitativo. —Mamãediz que a tia avó Claire era uma bruxa. E esta senhora não parece. Não tem nenhuma verrugano nariz!

—Obrigado — repeti pouco mais seca. — E tu, como se chama?Escondeu a cara na manga de Jamie, negando-se a falar.—É Angus Walter Edwin Murray Carmichael — apresentou seu tio avô, revolvendo-lhe o

sedoso cabelo loiro. —O filho mais velho de Maggie, e vulgarmente conhecido pelo apelido deWally.

—Nós o chamamos de Empapado. — esclareceu uma pequena ruiva, junto a meu joelho,—porque sempre tem o nariz cheio de melecas.

Angus Walter fulminou a sua prima com os olhos, vermelho como uma espinha.—Não é verdade! —gritou. —Retire isso!E sem dar-lhe tempo de fazê-lo, jogou-se contra ela com os punhos apertados.—Às meninas não se pega —lhe disse Jamie, pegando-o pela gola da camisa.—Não é próprio de homens.—Mas disse que sou um melequento! —gemeu Angus Walter. — Tenho que lhe pegar!—E não é de boa educação fazer comentários sobre o aspecto pessoal dos demais, senhorita

Abigail —adicionou Jamie, dirigindo-se à menina. —Deves desculpar-te com teu primo.—Mas se é verdade! —protestou Abigail.Ao ver o olhar severo de seu tio avô, baixou os olhos e se pôs vermelha.— Perdão, Wally.Ao princípio o menino não pareceu disposto a dar-se por satisfeito, mas Jamie o persuadiu

prometendo contar-lhe um conto.—O do duende e o ginete! — pediu a ruiva.—Não! O do diabo que jogava ao xadrez! —interveio outro.— O conto é para Wally — apontou Jamie com firmeza— Que escolha ele.Puxou um lenço limpo e o pôs no nariz de Wally, bastante indecoroso, por verdadeiro, e

ordenou baixinho:—Sopre. —Depois, em voz mais alta: — Diga-me que conto preferes, Wally.Depois de assoar o nariz, o menino disse:—O de Santa Bride e os gansos, por favor, tio.Jamie me procurou com um olhar pensativo.—Muito bem. —começou.—Faz muito tempo, centenas de anos, mais dos que possam imaginar, Bride pisou na rocha

das Terras Altas junto com Miguel, o Bendito…Naquele momento Benjamin começou a farejar o peitilho do vestido, de maneira que saí a

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procura de sua mãe. Encontrei à senhora em questão na cozinha, misturada com um grupo demulheres e jovenzinhas; depois de entregar-lhe o menino se iniciaram as apresentações, assaudações e esse tipo de ritos que nós mulheres utilizamos para avaliar-nos mutuamente, comou sem discrição.Todas se mostraram muito cordiais; era evidente que sabiam quem era eu,pois não denotavam surpresa ante a volta da primeira esposa de Jamie, seja de entre os mortosou da França, segundo o que se lhes tivessem dito.

No entanto, ainda que me tratassem com grande amabilidade e cortesia, tinha olhadas desoslaio e discretos comentários em gaélico. Mas o mais estranho era a ausência de Jenny, aalma de Lallybroch. Evitava-me desde meu regresso com o jovem Ian; provavelmente eranatural, dadas as circunstâncias. Eu também não tinha procurado um encontro com ela. Ambassabíamos que era preciso ajustar contas mas nenhuma procurava a oportunidade. A cozinha eraacolhedora… talvez até demais. Quando alguém mencionou que fazia falta uma jarra de cremepara os bolos, aproveitei a oportunidade de escapar oferecendo-me para trazê-la da ala onde seguardava o leite.

Depois de ter estado submersa no barulho da cozinha, o ar frio e úmido me era tãorefrescante que passei um minuto arejando as anáguas impregnadas de cheiro de comida antesde continuar meu caminho. A ala do leite estava a certa distância da casa, próxima do estábuloonde se alojavam as ovelhas e as cabras. Nas Terras Altas, os bovinos se criavam por suacarne, pois o leite de vaca só se considerava adequado para os inválidos. Com surpresa, ao sairda ala vi Fergus reclinado no muro do pátio, contemplando com ar amuado as ovelhas. Asvaliosas ovelhas merinas, às que Jenny mimava mais do que a seus netos, me cercaram emmassa, balindo freneticamente com a esperança de receber algum bocado extraordinário.

Fergus lançou um olhar malévolo.—Bestas inúteis, ruidosas e malemolientes — disse.Pareceu-me bastante ingrato, considerando que sua manta e suas meias deviam ser tecidos

com sua lã.—Alegro-me de voltar a ver-te, Fergus — comentei sem prestar atenção ao seu mau humor.

—Sabe que Jamie está aqui?Se acabava de chegar, o que saberia dos últimos acontecimentos?—Não —reconheceu com desassossego. — Suponho que deveria dizê-lo.Mas não fez jeitos de ir para a casa. Era óbvio que algo lhe inquietava. Perguntei-me se sua

missão teria fracassado.—Encontraste o senhor Gage?Por um momento pareceu não compreender; depois voltou a sua cara uma chispa de

animação.—Ah, sim. Milord estava certo; fui com Gage para prevenir aos outros membros da

Sociedade. Depois fomos à taberna onde deviam reunir-se. E tal como esperávamos tinhamvários homens da Alfândega disfarçados. Podem esperar tanto como seu colega, o do tonel!Obrilho de selvagem diversão se apagou em seus olhos com um suspiro.

—Não podemos pretender que nos paguem pelos panfletos, por suposto. E ainda que aimprensa tenha se salvado, só Deus sabe quanto demorará para milord restabelecer a tipografia.

Surpreendeu-me seu ar de luto.

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—Mas você não ajuda na tipografia? —perguntei.Encolheu um ombro.—Não posso dizer que ajude, milady. Mas milord teve a gentileza de permitir-me investir

ali uma parte de meus ganhos com o conhaque. Com o tempo devo chegar a ser um verdadeirosócio.

—Compreendo —sussurrei solidária.—Precisas de dinheiro? Eu poderia… Jogou-me um olhar surpreso.—Obrigado, milady, mas não. Para meus gastos preciso muito pouco e tenho o suficiente.

—Deu uma palmada no bolso de seu casaco, que emitiu um repique reconfortante.Depois disse com lentidão.—É que… bom, o negócio da tipografia é muito respeitável, milady.—Suponho que sim.Captou meu tom intrigado e esboçou um sorriso lúgubre.—Lhe direi qual é o problema, milady. Enquanto o contrabando rende rendimentos mais do

que suficientes para manter a uma esposa, dificilmente parecerá uma profissão atraente aospais de uma dama respeitável.

—Aah! —exclamei.Agora via as coisas claras.— Queres se casar? Com uma dama respeitável? Assentiu com certa timidez.—Sim. Mas sua mãe não me aceita. Bem pensado, não se podia criticar à mãe da

jovenzinha. Fergus era dono de uma beleza morena e um porte deslumbrante que bem podiamconquistar a uma moça, mas carecia de certas coisas que os pais escoceses consideravamatraentes: propriedades, rendimentos estáveis, mão esquerda e sobrenome.

—Se eu fosse sócio de uma próspera tipografia, aí sim a boa senhora poderia tomar emconta minhas pretensões. —explicou. — Mas tal como estão as coisas… —Mexeu a cabeça,desconsolado.

Dei-lhe uma palmada compreensiva no braço.—Não te preocupes.Logo nos ocorrerá algo. Sabe Jamie dessa moça? Sem dúvida aceitaria

falar com sua mãe em teu nome.Para surpresa minha, pôs cara de alarme.—Oh, não, milady! Não lhe diga nada, por favor. Nestes momentos tem coisas bem mais

importantes para pensar.Provavelmente estava certo, mas sua veemência me surpreendeu. Ainda assim concordei em

não dizer nada a Jamie.—Talvez mais adiante, milady —disse. — Pelo momento, creio que não sou companhia

adequada nem tão sequer para as ovelhas.E se afastou para o pombal com um profundo suspiro.Fiquei surpresa ao encontrar Jenny na sala, com Jamie. Tinha estado fora; tinha as

bochechas e a ponta do nariz avermelhado pelo frio.

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—Mandei o jovem Ian que selasse Donas —disse a seu irmão com o cenho franzido. —Poderás caminhar até o celeiro, Jamie, ou é melhor que traga o cavalo até aqui? Olhou-a comuma sobrancelha em alto.

—Posso caminhar até onde faça falta, mas não penso ir a nenhuma parte.—Não te disse que vem para cá? —protestou Jenny, impaciente.—Ontem à noite veio Amyas Kettrick dizendo que chegava desde Kinwallis e que Hobart

tinha intenção de vir hoje. —Deu uma olhada ao bonito relógio esmaltado da estante.— Se saiu depois do café da manhã, estará aqui dentro de uma hora.Jamie reclinou a cabeça no sofá.—Já te disse, Jenny, que Hobart MacKenzie não me assusta. Que me crucifiquem se fujo

dele!Olhou-o com frieza.—Ah, sim? Laoghaire também não te assustava. E olhe só o que aconteceu! —Assinalou

com a cabeça o braço na tipóia.A seu pesar, Jamie curvou a boca.—Bem, isso é verdade —reconheceu. —Por outro lado, Jenny, bem sabes que nas Terras

Altas as armas de fogo escasseiam mais do que os dentes de galinha. Se Hobart quer matar-me,não creio que se atreva a pedir-me a pistola emprestada.

— Não creio que se incomode; não fará mais do que entrar e atravessar-te a garganta comoum ganso que és! — espetou ela.

Jamie se lançou a rir e recebeu um olhar fulminante. Aproveitei aquele momento paraintervir:

—Quem é Hobart MacKenzie? E por que quer atravessar-te como a um ganso?Jamie girou a cabeça para mim com expressão divertida.—Hobart é o irmão de Laoghaire, Sassenach —explicou.— Quanto a isso de atravessar-me…—Vive em Kinwallis. Laoghaire o mandou chamar —interrompeu Jenny—, e lhe contou…

tudo isto.—A idéia é que Hobart deve vir limpar a honra de sua irmã eliminando-me.A perspectiva parecia divertir a Jamie. Mas eu não estava tão segura e Jenny também não.—Esse Hobart não te preocupa? —perguntei.—Não, claro que não. —Parecia um pouco irritado.Voltou-se para sua irmã.—Por Deus, Jenny, já conheces a Hobart MacKenzie! Esse homem não é capaz de matar

nem um leitão sem amputar seu próprio pé.—Hum… —sussurrou ela.—Suponha que venha por ti e tu o matas. Que acontecerá, então?—Ele será homem morto, suponho.

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—E te enforcarão por assassinato. Ou terás que fugir, perseguido por todos os parentes deLaoghaire. Queres iniciar uma guerra entre clãs?

—O que quero —contestou ele com paciência— é tomar café da manhã. Vais dar-me decomer ou queres que eu desmaie de fome para poder esconder-me no «buraco do padre» atéque Hobart se vá?

—Não é má idéia —repôs ela, encarando seus ouvintes num sorriso desenganado. —Sepudesse arrastar tua renitente pessoa até ali, te faria dormir com uma bofetada! —Mexeu acabeça com um suspiro.

— Está bem, Jamie. Que seja como quer. Mas não faças nada que estrague meu bonitotapete turco, ok?

—Prometido, Jenny. Derramar sangue na sala é de má educação.Ela soltou um bufado.—Idiota —disse sem rancor.—Farei que Janet te traga o porridge.E desapareceu num redemoinho de saias e anáguas.—Dornas? —perguntei olhando-o com estranheza. —Não pode ser o mesmo cavalo do que

te apoderaste em Leoch!—Oh, não. —Jamie jogou a cabeça atrás para sorrir-me. —Este é o neto de Dornas…, um

deles. Os potros levam o mesmo nome em sua honra.Inclinei-me para revisar-lhe o braço e fez uma careta.—Dói?—Tinha melhorado.No dia anterior, a zona dolorida era bem maior.—Não muito. —Tirou a tipóia e esticou o braço com um gesto de dor.—Creio que ainda não posso trabalhar de saltimbanco.Comecei a rir.—Não, creio que não. —vacilei —Escuta… esse tal Hobart, estás seguro de que não…? —

Estou seguro. E ainda que não o estivesse, primeiro preciso tomar café da manhã. Não voupermitir que me matem com o estômago vazio.

Ri outra vez, mais calma.—Te trarei — prometi.Ao sair para o vestíbulo vi mover-se algo por trás de uma janela. Era Jenny, com manto e

capuz, que subia a costa para o estábulo. Por um súbito impulso, peguei um capote docabideiro e corri atrás dela.

Tinha um par de coisas que falar com Jenny Murray e essa podia ser minha melhoroportunidade de estar a sós com ela. Alcancei-a ante a porta do celeiro; ao ouvir meus passosgirou ao redor, sobressaltada, e deu uma olhada a seu arredor.

—Vou dizer ao jovem Ian para retirar as selas do cavalo —disse ao ver que estávamos a sós.— Tenho que voltar ao porão para procurar cebolas para uma torta. Me acompanha? —Vou

contigo. —Fechando o manto para defender-me do vento, segui-a ao interior do estábulo.

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Ian filho estava esparramado sobre um montão de palha fresca. Em seu cubículo, um alazãode olhos ternos mascava seu feno, sem cadeira nem brida.

—Não te mandei preparar a Dornas? —perguntou ela com voz áspera.O garoto coçou a cabeça, ligeiramente intimidado.—Sim, mamãe. Mas acreditei que não valia a pena.—Não? E por que?Encolheu-se de ombros com um sorriso.—Sabes perfeitamente que tio Jamie não foge de ninguém, muito menos de tio Hobart, não

sabe? —apontou com suavidade, Jenny suspirou .—Sim, pequeno Ian, eu sei. —Sua mão acariciou a bochecha de seu filho.—Vá em casa e tome um segundo café da manhã com teu tio. Tua tia e eu iremos ao porão.

Mas se chegar o senhor Hobart, não esqueças vir avisar-me imediatamente, entendes?—Sim, mamãe.O garoto saiu disparado para a casa, movendo-se com a torpe graça de um filhote de

cegonha. Jenny mexeu a cabeça com o sorriso ainda nos lábios.—Doce criatura! —murmurou.Depois, recordando as circunstâncias, voltou-se para mim com ar decidido.—Vamos, pois suponho que queiras falar comigo, não?Nenhuma das duas disse nada até que chegamos ao calmo santuário do porão, onde se

armazenavam as provisões.—Recordas que me sugeriste plantar batatas? —comentou Jenny, passando uma mão pelos

montões de tubérculos.—Foi um acerto; aquela colheita de batatas nos manteve com vida mais de um inverno,

depois de Culloden.Ficou um silêncio.Por fim perguntei, sem levantar a voz:—Por que? Por que o fizeste? Arranquei uma das cebolas trançadas.—Por que fiz o quê? funcionar de casamenteira entre meu irmão e Laoghaire? —Jogou-me

um olhar interrogante mas de imediato voltou à trança de cebolas.—Tens razão: ele não teria casado se não fosse por mim.—Você o obrigou —disse.—Estava muito só —explicou com voz suave.—Muito só. Não suportava vê-lo assim. Não

sabes quanto tempo chorou por ti.—Eu acreditava que tinha morrido — disse contestando à tácita acusação.—Pouco lhe faltou. —Suspirou apartando-se uma mecha de cabelo escuro. —Caíram tantos

em Culloden… Ele pensava o mesmo de ti. Mas estava ferido, e não falo da perna. Depois,quando voltou da Inglaterra… — Sacudiu a cabeça e me jogou um olhar de soslaio—. Pareciaestar muito bem, mas… não é o tipo de homem que possa dormir só, verdade?

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—Verdade —reconheci — Mas nós dois estávamos vivos. Por que avisaste a Laoghairequando voltamos com teu filho?

Jenny demorou em responder. Seguia arrancando cebolas.—Eu ia com a sua cara. — reconheceu em voz tão baixa que mal a ouvi. —Antes, quando

vivias aqui com Jamie, queria-te muito.—Eu também a ti —assegurei com a mesma suavidade. —Por que, então?Ela me olhou apertando os punhos.—Fiquei aturdida quando Ian me disse que tinhas voltado. Ao princípio me entusiasmei;

queria ver-te, saber onde tinhas estado…Ergueu as sobrancelhas a modo de pergunta. Ante minha falta de resposta continuou: —Mas

depois tive medo. Porque tinha te visto, sabes? Quando se casou com Laoghaire. Estavas entreos dois, frente ao altar, à esquerda de Jamie. Então soube que voltarias para recuperá-lo.

Senti que se me arrepiava o cabelo da nuca. Ela mexeu lentamente a cabeça; a recordação atinha feito empalidecer. Sentou-se num barril, com o capote estendido ao redor como uma flor.

—Não nasci com o dom da vidência; também não me sucede habitualmente. Aquela foi aprimeira vez e espero que seja a última. Mas te vi ali com tanta clareza como te vejo agora, elevei tamanho susto que saí da igreja no meio dos votos. —Engoliu a saliva. —Não sei quemés nem… nem o que és. Não conhecemos a tua família. Não sabemos de onde vens. Nunca toperguntei, verdade? Jamie te escolheu, isso foi suficiente. Mas te foste e, depois de tantotempo…, supus que te teria esquecido o suficiente para voltar a casar-se e ser feliz.

—Mas não foi assim— apontei esperando confirmação.Ela sacudiu a cabeça.—Não. De qualquer modo, Jamie é um homem fiel. Apesar de seu, tinha prometido cuidar

de Laoghaire e nunca a abandonaria de tudo. Ainda que vivesse em Edimburgo, eu estavasegura de que sempre voltaria aqui, às Terras Altas. Então regressaste.

Tinha as mãos quietas no colo.—Sabes que, em toda minha vida, nunca me afastei mais de quinze quilômetros de

Lallybroch?—Não sabia —reconheci sobressaltada.—Você sim. Suponho que viajaste muito. —Avaliando o meu rosto, procurando pistas.—É verdade. Assenti, pensativa.—E irás outra vez —sussurrou. —Estava segura de que voltarias a ir embora. Não estás

atada a estes lugares, como Laoghaire, como eu. Então ele seguiria contigo e eu jamais oreveria. Por isso o fiz. Imaginei que quando soubesses de seu casamento com Laoghaire, tefosse de imediato e Jamie ficaria. Mas voltaste. —Encolheu os ombros, indefesa. —Agoracompreendo que não serve de nada. Está preso a ti. És sua esposa, para bem ou para mau, e sete vais, ele irá contigo.

Procurei inutilmente algumas palavras para reconfortá-la.—Não quero ir. Só quero ficar com ele… para sempre. Apoiei uma mão em seu braço. Ela

ficou tensa mas por fim acabou enlaçou os dedos com os meus.

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—Dizem muitas coisas diferentes sobre a vidência, verdade? — comentou depois de umapausa— Alguns dizem que está escrito: o que vês é o que vai suceder. Outros dizem que não,que é só uma advertência. Se lhe prestar atenção podes mudar as coisas. O que você acha ?

Olhava-me de soslaio, com curiosidade.—Não sei —reconheci com voz trêmula. —Sempre pensei que, sabendo as coisas com

antecipação, era possível mudá-las. Mas agora… nãosei —concluí com tristeza, pensando emCulloden.

Jenny me observava; seus olhos azuis estavam tão escuros que pareciam negros. Voltei a meperguntar o que saberia pela boca de Jamie… e o que a partir daí teria adivinhado por suaconta.

—Mas há de tentá-lo— disse com segurança.—Não podes permitir que simplesmenteaconteça, não é?

Eu ignorava se era uma referencia pessoal mas sacudi a cabeça.—Tens razão. Há de se tentar. Sorrimo-nos com certa timidez.—Cuidarás bem dele? — perguntou ela subitamente. —Ainda que partam?Estreitei-lhe os dedos frios.—Prometo —disse.—Nesse caso, tudo vai bem —assegurou devolvendo-me o gesto.Estivemos um momento assim, pegadas pelas mãos, até que a porta do porão se abriu de par

em par, deixando entrar uma rajada de ar carregada de chuva.—Mamãe? —O jovem Ian assomou a cabeça com os olhos brilhantes de excitação. —

Chegou Hobart MacKenzie! Diz papai que vem em seguida!—Está armado? —perguntou ela levantando-se com nervosismo. —Traz pistola ou espada?Negou com a cabeça, fazendo voar o cabelo escuro.—Oh, não, mamãe. A coisa é ainda pior: trouxe um advogado.Era difícil imaginar alguém menos propenso à vingança que Hobart MacKenzie. Tinha uns

trinta anos; era de ossos pequenos e pálidos e olhos lacrimosos; suas feições indecisas seiniciavam numa calvície incipiente e terminavam num queixo igualmente escasso que pareciatratar de esconder-se entre os vincos de sua papada.

—Senhora Jenny —saudou com uma reverência.Os olhinhos de coelho se desviaram para mim e me abandonaram de imediato, como

desejando que minha presença não fosse real. Com um profundo suspiro, Jenny pegou o touropelos cornos.

—Senhor MacKenzie —saudou com uma reverência formal. — Permita-me apresentar-vosa Claire, minha cunhada. Claire, o senhor Hobart MacKenzie, de Kinwallis.

Limitou-se me olhar, boquiaberto.—É um prazer —improvisei com meu sorriso mais cordial. —Eh… —Tentou uma

inclinação de cabeça.—Hum… ao seu serviço… senhora.

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Por sorte, naquele momento se abriu a porta da sala. Ante a pequena e pulcra silhuetaemoldurada pelo vão, deixei escapar uma exclamação de prazer.

—Ned! Ned Gowan!Era ele: o ancião advogado de Edimburgo que, em outros tempos, tinha-me salvado da

fogueira à que iam condenar-me por bruxa. Apesar das rugas, seus olhos eram os de sempre:negros e brilhantes; fixaram-se em mim com expressão de alegria.

—Querida minha! —exclamou adiantando-se a passo rápido.Tomou-me a mão para levar-se aos lábios secos com fervorosa galanteria. —Tinham-me

dito que vos… —Como é possível que estejais…? —… um prazer tão grande vê-la! —… felizpor este reencontro, mas…

Hobart MacKenzie tossiu para interromper este entusiástico diálogo. O senhor Gowanlevantou os olhos com sobressalto.

—Ah, sim, por suposto. Os negócios primeiro, querida —disse. —Depois, se o permitir,terei o gosto de escutar o relato de vossas aventuras.

—Eh… farei o possível —disse perguntando-me o que queria saber.—Estupendo, estupendo.O velhinho deu uma olhada para o corredor, onde Jenny tinha pendurado seu manto e estava

arrumando o cabelo.— Os senhores Fraser e Murray já estão na sala. Senhor MacKenzie, se vos e as senhoras

aceitam se reunir conosco quem sabe possamos resolver este assunto sem perda de tempo epassar à questões mais agradáveiss. Me concedeis a honra, querida? —disse oferecendo-me seubraço ossudo.

Jamie continuava no sofá como o tinha deixado… isto é: vivo. Os meninos tinhamdesaparecido, exceção feita de um pequeno gorducho que dormia encolhido em seu colo.Sentei-me numa almofada junto ao sofá. Não acreditava que Hobart MacKenzie tentassenenhuma agressão mas preferia estar perto pelo talvez. Os outros participantes já se tinhaminstalado na sala: Jenny, junto a Ian, no outro sofá; Hobart e o senhor Gowan, em seuscadeirões de veludo.

—Estamos todos reunidos? —perguntou o advogado. —Todas as partes interessadas?Excelente. Bem, devo começar por estabelecer minha própria posição. Vim como advogado dosenhor Hobart MacKenzie, representando os interesses da senhora Fraser. —Ao ver que eudava um respingo aclarou:

—Da segunda senhora Fraser, de solteira Laoghaire MacKenzie. Ficou claro?— Deu umaolhada inquisitiva a Jamie, quem assentiu.

—Claro. —Bem. —O senhor Gowan pegou um copo e bebeu um gole. —Meus clientes, osMacKenzie, aceitaram minha proposta de procurar uma solução legal a esta confusão que,segundo tenho entendido, é resultado da aparição súbita e inesperada… ainda que muito grata eafortunada, por verdadeiro… —adicionou enquanto me fazia uma reverência— da primeiraesposa de James Fraser.

Depois dedicou a Jamie um gesto de censura.—Lamento dizer, meu querido jovem, que você se meteu em consideráveis apertos legais.

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Olhou a sua irmã com uma sobrancelha em alto.—Bem, tive alguma ajuda — disse secamente.—Quais são essas dificuldades?—Para começar — especificou Ned Gowan alegremente,— a primeira senhora Fraser está

em todo seu direito de iniciar ações legais contra voce, acusando-o de adultério e fornicação,pelo qual poderia corresponder uma pena de…

Jamie lançou um relâmpago azul em minha direção.—Isso não me preocupa muito —disse ao advogado. —Que mais?— Com respeito à segunda senhora Fraser, Laoghaire MacKenzie, poderia acusa-lo de

bigamia, intenção de enganar e fraude, intencional ou não, traição e… Já tinha levantado oquarto dedo e se estava preparando para mais.

Jamie interrompeu a recontagem com uma pergunta: —Diga-me, Ned: que diabos quer essamaldita mulher?

O advogado piscou.—Bem, a vontade que expressa a senhora —disse circunspecto— é de te castrar e de te

estripar na praça de Broch Mordha, além de ver sua cabeça num poste junto ao seu portão.— Compreendo —disse torcendo a boca. Um sorriso uniu as rugas de Ned.—Vi-me obrigado a informar à senhora F… eh… à dama que a lei lhe outorga remédios um

pouco mais limitados.—Sei —comentou Jamie.—Mas a idéia geral, suponho, é que já não deseja recuperar-me

como esposo.—Não — interveio Hobart —Como carniça para corvos, poderia ser, mas como esposo,

jamais.Ned lhe deu uma olhada fria.—Rogo-vos que não comprometas vosso caso fazendo concessões antes de ter chegado a

um acordo —reprovou.— Caso contrário, para que me pagas?E se voltou para Jamie, impoluto em sua dignidade profissional.—Enquanto a senhorita MacKenzie não deseja retomar a relação conjugal com vos… coisa

que, de qualquer modo, seria impossível a não ser que voce se divorciásse da atual senhoraFraser para voltar a se casar…

—Nada mais longe de minha intenção —assegurou precipitadamente Jamie.—Nesse caso —prosseguiu Ned,— devo informar aos meus clientes que o mais conveniente

é evitar o custo e a publicidade de um pleito. Portanto…— Quanto? — interrompeu Jamie.—Senhor Fraser! —Agora Ned Gowan se mostrava escandalizado.— Ainda não mencionei

nenhuma demanda pecuniária.—Só porque estás muito ocupado em se divertir, velho vigarista —exclamou Jamie, irritado,

mas sem perder o sentido do humor. —Vai direto ao ponto, por favor?Ned inclinou cerimoniosamente a cabeça.—Bem, é necessário compreender que, se a senhorita MacKenzie e seu irmão obtivessem

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uma sentença favorável num pleito como o descrito, poderiam fazer-vos pagar umaindenização muito substanciosa. Depois de tudo, além de ver-se submetida ao ridículo e àhumilhação pública, a senhorita MacKenzie corre também o risco de perder seu principal meiode subsistência…

—Não corre tal risco —interrompeu Jamie acalorado.— Eu lhe disse que seguiriamantendo-as, a ela e às meninas! Por quem me tomas?

Ned trocou um rápido olhar com Hobart, que mexeu a cabeça.—É melhor que não o saiba —assegurou.— Ignorava que minha irmã conhecesse essas palavras. Mas estas disposto a pagar?—Estou. —Só até que ela volte a casar-se. —Todas as cabeças se voltaram para Jenny, que

fez um gesto firme a Ned Gowan.—Se Jamie estava casado com Claire, seu casamento com Laoghaire não tem nenhuma

validade, verdade?—Verdade, senhora Murray. —Nesse caso —esclareceu Jenny, — pode voltar a casar-se

imediatamente. E quando casar, meu irmão não deve estar obrigado a manter sua casa.— Excelente observação, senhora Murray. — O advogado pegou sua pluma para rabiscar

com afinco. — Bem, estamos progredindo — declarou radiante —O seguinte ponto a cobrir…Uma hora depois, o garrafão de whisky estava completamente vazio, a mesa carregada de

papeladas legais e todo mundo exausto… à exceção de Ned, que se mantinha tão vivaz edespejado como sempre.

—Excelente, excelente — declarou outra vez recolhendo as folhas para pô-las em ordem. —Portanto, os pontos principais do acordo são os seguintes: o senhor Fraser aceita pagar àsenhorita MacKenzie a soma de cem libras como compensação pelos prejuízos e moléstiasocasionados e pela perda de seus serviços matrimoniais.

Ante isto Jamie soltou um leve bufido que o advogado fingiu não escutar.—E por acréscimo, aceita manter seu lar a razão de cem libras anuais, pagamento que

cessará no momento em que a senhorita MacKenzie voltar a civilizar um matrimônio. O senhorFraser aceita assim mesmo fixar, para cada uma das filhas da senhorita MacKenzie, uma doteadicional de trezentas libras. E finalmente, renuncia a apresentar demandas legais contra ditasenhorita por tentativa de assassinato. Ela, a seu turno, libera o senhor Fraser de qualquer outrareclamação. Compreendes tudo isto e estas disposto a consentir, senhor Fraser? —inquiriu.

— Consinto — disse Jamie.Fazia muito tempo que estava de pé; tinha a cara pálida e a testa coberta de suor, mas se

mantinha erguido com o menino dormido no colo.—Excelente —repetiu Ned. E se levantou para dedicar-nos uma sorridente reverência. —

Esse delicioso aroma, indica que há nas cercanias uma perna de cordeiro, senhora Jenny?Sentei-me à mesa, com Jamie de um lado e ao outro Hobart MacKenzie, já descontraído e

com boa cor.—A solução é casá-la quanto antes —declarou Jenny.Filhos e netos já estavam deitados; com a partida de Ned e Hobart para Kinwallis,

ficávamos só nós quatro junto ao brandy e os bolos com creme. Jamie se voltou para sua irmã.

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—Formar casais é tua especialidade, não? —disse. —Suponho que, se te propões, podesencontrar a um ou dois homens adequados para esse trabalho.

—Suponho que sim —confirmou sem afastar os olhos de seu bordado. — O que mepergunto é de onde vais tirar mil duzentas libras, Jamie.

Era o mesmo que eu estava pensando.—Bem, só se pode retirar de um lugar, não? —Ian passou o olhar entre sua esposa e seu

cunhado. Depois de um breve silêncio, Jamie assentiu.—Suponho que sim —disse com desanimo.Olhou a janela, onde a chuva castigava os vidros.—Mas ainda não é boa época para isso.Ian se encolheu de ombros.—Dentro de uma semana começará a maré de primavera.Jamie franziu o cenho. Parecia preocupado.—Sim, é verdade, mas…—Não há quem tenha mais direito do que tu sobre isso, Jamie —observou o cunhado com

um sorriso, estreitando-lhe o braço são.— Estava destinado aos seguidores do príncipe Carlos, não? E tu foste um deles, queira ou

não.Respondeu-lhe com um sorriso melancólico.—É verdade —suspirou. —De qualquer modo, não me ocorre outra saída.Olhou a seus parentes como se duvidasse em adicionar algo. A irmã, que o conhecia ainda

melhor do que eu, afastou os olhos de seu labor para fincar-lhe um olhar agudo. — O que estáspensando, Jamie?

Respirou fundo.—Quero levar o jovem Ian comigo. — disse.—Não —replicou Jenny instantaneamente.—Já tem idade para isso, Jenny — observou Jamie baixinho.—Não é verdade! Mal tem quinze anos.Michael e Jamie tinham dezesseis e estavam mais desenvolvidos.—Sim, mas o pequeno Ian nada melhor do que seus irmãos — interveio Ian, judiciosamente,

com a testa enrugada. — Depois de tudo, tem que ser um dos moços. Jamie não pode nadarnestas condições. E Claire também não.

—Nadar? —exclamei completamente desconcertada —Nadar onde?Por um momento Ian pareceu surpreso; depois olhou para Jamie, erguendo as sobrancelhas.—Não contou para ela?Sacudiu a cabeça.—Sim, mas não tudo. —Voltou-se para mim — Falamos do tesouro, Sassenach; o ouro das

focas.

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Como Jamie não pode levar o tesouro consigo, tinha voltado a escondê-lo em seu lugarantes de regressar a Ardsmuir.

—Não sabia que fazer com ele —explicou. — Duncan Kerr o deixou a meu cargo, mas euignorava a quem pertencia, quem o pôs ali e não sabia o que fazer com ele. «A bruxa branca»,foi o que disse Duncan. E a meu modo de ver isso se referia só a voce, Sassenach.

Contrário a utilizar o tesouro em proveito próprio mas com a idéia de que alguém deviaestar inteirado de sua existência, caso ele morresse na prisão, Jamie tinha enviado a Lallybrochuma carta cuidadosamente codificada, indicando-lhes a localização do tesouro e o uso ao que,provavelmente, estava destinado. Naquela época os tempos eram duros para os jacobitas; aindapiores para quem tinham escapado para a França, deixando para trás terras e fortuna, que paraquem permanecia nas Terras Altas, enfrentando a perseguição inglesa. Mais ou menos aomesmo tempo, Lallybroch sofreu duas péssimas colheitas consecutivas. Da França chegavamcartas que solicitavam qualquer socorro possível para os colegas que corriam perigo de morrerde fome.

—Não tínhamos nada que enviar; na realidade, aqui também estavam todos próximo depassar fome — explicou Ian. —Me comuniquei com Jamie; ele disse que talvez não fosse malutilizar uma pequena parte do tesouro para ajudar os seguidores do príncipe Tearlach.

Ian tinha cruzado Escócia com Jamie, seu filho maior, para a enseada das focas. Por temorque se filtrasse alguma notícia sobre o tesouro, não pediram um bote aos pescadores: foi omoço quem nadou até a rocha das focas, tal como o tinha feito seu tio vários anos atrás.Encontrou o tesouro em seu lugar; guardou duas moedas de ouro e três das gemas menoresnum saco que levava atado ao pescoço, deixou o resto do tesouro e voltou contra corrente,chegando exausto à costa. Dali foram a Inverness para embarcar para França, onde o primoJared Fraser, que prosperava em seu desterro como mercador de vinhos, ajudou-lhes aconverter discretamente em dinheiro as moedas e as jóias, assumindo a responsabilidade dedistribuí-lo entre os jacobitas precisados.

Desde então, Ian tinha efetuado três vezes a trabalhosa viagem até a costa com um de seusfilhos. Em cada oportunidade tinha pego uma pequena parte da fortuna oculta, a fim de cobriralguma necessidade. Em duas ocasiões o dinheiro foi para a França para os amigos quepassavam apertos; a outra parte foi usada para comprar sementes e o alimento necessário paraque os arrendatários pudessem sobreviver ao longo inverno, depois do fracasso da colheita debatatas em Lallybroch. Só Jenny, Ian e os dois filhos maiores, Jamie e Michael, conheciam aexistência do tesouro. Agora era a vez do jovem Ian.

—Não. — repetiu Jenny.Mas me deu a impressão de que já não estava muito convencida. Ian assentia com a cabeça,

pensativo.—Você o levaria também à França, Jamie?—Sim. Devo manter-me longe de Lallybroch durante algum tempo, pelo bem de Laoghaire.

Não posso viver aqui com Claire, ante seus mesmos narizes, ao menos até que ela estejadevidamente casada. —Dirigiu-se a seu cunhado.

—Não te contei tudo o que aconteceu em Edimburgo, Ian, mas creio que, pensando-o bem,convém-me afastar-me também dali por um tempo.

Eu tratava de digerir estas notícias. Até então ignorava que Jamie tivesse intenções de

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abandonar Lallybroch e a Escócia.—Que está pensando em fazer, Jamie? —Jenny já não fingia que bordava e mantinha as

mãos quietas sobre seu colo.Ele esfregou o nariz com expressão de cansaço.—Bem, Jared me ofereceu mais de uma vez fazer-me sócio de sua empresa. Talvez me

estabeleça na França durante um ano. O jovem Ian poderia vir conosco e educar-se em Paris.Jenny e Ian trocaram uma longa olhada. Por fim ela inclinou a cabeça. Ian, sorridente,

tomou-lhe a mão.—Não terá problemas, mo nighean dubh —lhe disse de modo baixo e terno.Depois se voltou para seu cunhado.— Leve-o contigo. É uma grande oportunidade para o garoto.—Estão seguros? —Jamie, vacilando, dirigia-se mais a sua irmã que a Ian.Ela assentiu.—Suponho que é melhor dar-lhe a liberdade enquanto ele acredita que ainda está em nossas

mãos dar-lhe —disse.Olhou a Jamie e depois a mim.— Cuidarão dele, de verdade?

CAPÍTULO 39

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Perdido e chorado pelo vento

Aquela parte de Escócia tinha tão pouco a ver com os vales frondosos e os lagos próximos aLallybroch como os estanques de Yorkshire. Não tinha árvores, só longas extensões de urzais erochas que se elevavam sobre penhascos até tocar o céu encapotado onde desapareceriam emcortinas de nevoeiro. A marcha era lenta, no qual só incomodava ao jovem Ian, que estavacheio de entusiasmo e impaciência por chegar.

—Que distância há entre a costa e a ilha das focas? —perguntou a Jamie pela décima vez.—Uns seiscentos metros, calculo — replicou seu tio.—Posso nadar essa distância —disse o jovem Ian pela décima vez.—Sim, eu sei —assegurou seu tio com paciência. Dirigiu-me uma olhada cúmplice.— Mas não precisará; bastará que nades em linha reta para a ilha; a corrente te levará.O garoto assentiu e voltou a fazer silêncio. O promontório que tinha junto à enseada estava

deserto e envolto pela bruma. Jamie assinalou a seu sobrinho a chaminé de rocha situada noque chamavam «a torre de Ellen» e, retirando um rolo de corda de sua cela, avançou comcautela entre as pedras até a entrada.

—Não tire a camisa até que estejas embaixo —indicou a gritos, para fazer-se ouvir. —Casocontrário a rocha te destroçará nas costas.

Ian assentiu; depois, com a corda bem atada à cintura, despediu-se de mim com um sorrisonervoso e em dois saltos desapareceu sob a terra. Seu tio tinha o outro extremo da corda atadoà cintura e a ia desenrolando cuidadosamente com a mão sã enquanto o garoto descia.Engatinhei sobre seixos e ervas até a borda insegura do alcantilado, desde onde se via umapraia em forma de meia lua.

Parecia que tinha passado muito tempo quando finalmente vi Ian sair do fundo da chaminé;era uma silhueta pequena como uma formiga. Depois de retirar a corda, deu uma olhada ao seuredor e, ao ver-nos no alto do alcantilado, saudou-nos com um gesto de entusiasmo. Eurespondi igual mas Jamie se limitou a murmurar:

—Bom, anda, vai.A pequena silhueta lançou a cabeça às ondas cinzas.—Brrrr! —exclamei— A água deve de estar gelada!—Sim —disse Jamie. —Ian tem razão; é uma péssima época para nadar.Estava pálido e tenso. Não parecia que fosse pelo braço ferido, ainda que o longo caminho a

cavalo e o exercício com a corda não podiam ter-lhe feito nenhum bem. Tinha mostrado umaalentadora confiança enquanto Ian efetuava a descida, mas agora não fazia nenhum esforço pordissimular sua preocupação. A verdade era que, se algo corresse mal, não teria como chegar atéIan.

—Não voltará dentro de umas duas horas —comentou respondendo a minha tácita perguntae abandonando de má vontade sua inútil observação da enseada.

—Droga, preferiria ter ido eu mesmo, com ferida ou sem ela.

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—Já fizeram o jovem Jamie e Michael — lhe recordei.Sorriu com melancolia.— Oh, sim. Ian não terá problemas. Mas quando está consciente de que algo é perigoso, é

mais fácil voce mesmo fazer do que esperar e se preocupar enquanto o outro faz.—Aha! —exclamei. —Agora já sabe como é estar casada contigo.Jogou-se a rir.—Suponho que sim. Além do mais, seria uma pena privar a Ian de sua aventura. Vêem,

resguardemo-nos do vento. Sentamos a certa distância da borda, usando os cavalos comoparapeito. Como o vento dificultava a conversa, guardamos silêncio, de costas à enseadatempestuosa.

— Que foi isso? —Jamie levantou a cabeça, alerta.— O que? —Pareceu-me ouvir um grito.—As focas, suponho — disse.Mas antes que tivesse terminado a frase, já estava em pé, andando a grandes passos para a

beira do alcantilado. A enseada ainda estava invadida pela bruma mas o vento tinha descobertoa ilha das focas, deixando-a perfeitamente visível pelo momento. Tinha um pequeno boteamarrado numa saliente rocha inclinada, de um lado da ilha. Não era uma embarcação parapescar, senão algo maior e com um só jogo de remos. Ante nossa vista apareceu um homem,proveniente do centro da ilha trazendo algo sob o braço; o objeto tinha a forma e o tamanho dacaixa que Jamie tinha descrito. Não tive muito tempo para reflexões, pois de imediato apareceuum segundo homem do outro lado da ilha. Este último trazia o jovem Ian, meio nu, carregadosobre um ombro. Pelo modo com que bamboleavam a cabeça e os braços, era evidente que ogaroto estava morto ou inconsciente.

—Ian!Jamie me fechou a boca com uma mão antes que pudesse voltar a gritar.—Quieta!Obrigou-me a me ajoelhar para que ninguém me visse. Sem poder fazer nada, vimos que o

segundo homem jogava Ian dentro do bote sem nenhum cuidado e o impulsionava para o água.Não tinha possibilidade de descer pela chaminé e nadar até a ilha antes que escapassem. Maspara onde iriam?

—De onde saíram? —sussurrei.—De um barco. É o bote de um barco. Jamie disse com muito sentimento um palavrão em

gaélico. De repente desapareceu. Ao girar a cabeça o vi montar a cavalo, cruzar o promontórioe afastar-se da enseada como se levado pelo diabo. Os cavalos estavam mais bem calçados queeu para aquela superfície rochosa. Apressei-me a montar para seguir a Jamie.

O terreno se partia num pendente pedregoso que descia para o oceano, não tão abruptoquanto o alcantilado da enseada mas demasiado escarpado para as cavalgaduras. Quandoacabei de frear a minha, Jamie tinha desmontado e descia para a água. A chalupa se afastava dailha, rodeando a curva do promontório, para a esquerda. Alguém devia de estar vigiando nobarco, pois se ouviu um grito apagado e umas figuras apareceram em coberta. Provavelmentealguma delas nos viu, a julgar pela súbita agitação que se produziu a bordo: mais gritos e várias

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cabeças assomaram acima da borda. O barco era azul, com uma larga banda negra pintada aoredor e uma linha de frestas. Uma delas se abriu ante meus olhos e apareceu o olho negro eredondo de um canhão.

—Jamie! —gritei a todo pulmão.Levantou os olhos e, ao ver o que lhe apontava, jogou-se de bruços às pedras no momento

em que se produzia o disparo. Ainda que o ruído não tenha sido muito potente, pude ouvir oapito junto a minha cabeça. Então compreendi que tanto os cavalos como eu, no alto dopromontório, éramos bem mais visíveis do que Jamie. Atirei-me pela borda e, depois deescorregar um par de metros entre uma chuva de cascalho, refugiei-me numa greta doalcantilado. Produziu-se uma segunda explosão. Ao que parece os do barco ficaram satisfeitospelo efeito deste último disparo, pois de imediato se fez o silêncio. A fresta se fechou semruído; a corrente da âncora se içou, espalhando água, e o barco virou com lentidão, procurandoo vento. As velas se incharam e a nave dirigiu-se ao mar aberto. Quando Jamie chegou ao meurefúgio, o barco tinha quase desaparecido no denso banco de nuvens que escurecia o horizonte.

—Meu Deus —foi tudo o que disse estreitando-me com força. —Meu Deus.Depois se voltou para o mar. Nada se movia, salvo uns fiapos de nevoeiro.—Que vamos fazer? —perguntei.Sentia-me aturdida. Parecia impossível que, em menos de uma hora, Ian tivesse

desaparecido como se varrido da face da terra. Minha mente fazia questão de repassar asimagens: o nevoeiro que se levantava nos contornos da ilha, a súbita aparição do bote, oshomens caminhando pelas rochas e o corpo desengonçado do adolescente bamboleando-secomo um boneco desarticulado. Jamie tinha a cara rígida e profundas rugas entre o nariz e aboca.

—Não sei — disse — Maldita seja, não sei o que fazer!Apertou os punhos e fechou os olhos. Respirava com dificuldade. Essa confissão me

assustou ainda mais. Tinha-me habituado com um Jamie que sempre soube o que fazer aindanas piores circunstâncias. Então vi um fio de sangue no punho de sua camisa; tinha cortado amão ao descer por entre as rochas. Agradeci em ter algo o que fazer, ainda que fosse umanimiedade.

—Você se feriu —disse tocando-lhe a mão. —Deixa-me ver. Vou fazer um curativo.—Não. —Afastou o rosto tenso, tratando desesperadamente de atravessar o nevoeiro com os

olhos.Quando tratei de pegar-lhe a mão se afastou com brusquidão—Te disse que não! Deixa!Engoli a saliva com dificuldade, apertando os braços sob a capa.—Os cavalos escaparam — observou baixinho. —Vamos procurá-los. Cruzamos o trecho

coberto de pedras e mato em silêncio. Divisei os cavalos de longe, em torno do companheiroatado.

—Não creio que esteja morto —comentei por fim de um momento que pareceu um ano.—Não —confirmou ele. —Não estava morto. Caso contrário não o teriam levado.—Viu quando o colocaram no barco? — insisti. Pareceu-me que lhe faria bem falar. Ele

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assentiu com a cabeça.—Sim, subiram-no a bordo; vi com clareza. Suponho que é uma esperança —murmurou

quase para si mesmo.—Se não o mataram então, o mais provável é que não o façam. —Comose recordasse de repente que eu estava ali, deu-se uma volta para olhar-me.

—Estás bem, Sassenach? Eu tinha vários machucados, estava coberta de suor e me tremiamos joelhos pelo susto, mas basicamente me encontrava bem.

—Perfeitamente. —Voltei a apoiar-lhe uma mão no braço. Desta vez não se resistiu. —Ainda bem. —Apertou-me a mão e continuamos a andar.

—Tens alguma idéia de quem são? —Tive que elevar um pouco a voz para fazer-me ouviracima do ruído do mar agitado, mas queria fazê-lo falar para distraí-lo.

Sacudiu a cabeça, carrancudo.—Um dos marinheiros gritou algo em francês aos homens do bote. Mas isso não prova

nada; uma tripulação se forma com marinheiros de todas partes. Ainda assim, esse barco nãotinha aspecto de navio mercante… e também não parecia inglês —adicionou — ainda que nãosaberia dizer-te por que. Talvez pela disposição das velas.

—Era azul, com uma linha negra pintada ao redor — observei — Só tive tempo de ver issoantes que começassem os tiros de canhão. Não viste o nome?

—Que nome? —A idéia pareceu surpreender-lhe.— Num barco?—Não é habitual que os barcos tenham o nome pintado no flanco?—Não. Para que? —perguntou desconcertado.—Para que os demais possam identificá-lo, oras! —exclamei exasperada.Meu tom lhe fez sorrir.—Bem, suponho que eles não têm muito interesse em deixar-se identificar.—E como fazem os barcos honrados para identificar-se mutuamente se não têm o nome

pintado?Ergueu uma sobrancelha.—Eu poderia te distinguir de qualquer outra mulher —assinalou. —E não tens o nome

pintado no peito.—Isso significa que os barcos são tão poucos e tão diferentes que é possível reconhecê-los a

uma simples vista?—Eu só reconheço alguns —esclareceu, —aqueles com os que tive trato. Mas os

marinheiros sabem bem mais.—Então seria possível averiguar como se chama o barco que levou Ian, não?Assentiu, olhando-me com curiosidade.—Creio que sim. Tenho tentado me lembrar de todos os detalhes que vi para descrevê-lo a

Jared. Ele conhece muitíssimos barcos e muitos capitães. Talvez algum deles possa identificarum barco azul, bem largo, de três paus, com doze canhões e uma estátua de proa carrancuda.

Meu coração deu um pulo.—Então já que tens um plano!

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—Eu não diria um plano, mas sim que me ocorre outra coisa. Já temos reservadas aspassagens desde Inverness. O melhor que podemos fazer é continuar viagem. Jared estará nosesperando em Lhe Havre. Talvez ele possa ajudar-nos a averiguar como se chama o barco epara onde se dirige. Sim —disse com secura, antecipando-se a minha pergunta,— os barcostêm portos de origem e, a não ser que pertençam à Marinha, rotas habituais e registros que seguardam no porto, onde consta para onde se dirigem.

Começava a sentir-me melhor.—E desde que não sejam forasteiros e nem piratas — disse.—E se forem?—Então Deus saberá. Eu não.Não disse uma palavra mais até que chegássemos aos cavalos.—Cha! —exclamou, olhando-os com reprovação.—Estúpidos!Pegou a corda e lhe deu duas voltas ao redor de um saliente. Entregou-me um extremo com

a ordem de sustentá-lo e a deixou cair pela chaminé. Depois de tirar o casaco e os sapatos,desapareceu pela abertura sem mais comentário. Em pouco tempo voltou a sair, suandoprofusamente, com um vulto pequeno sob o braço: a camisa de Ian, sua jaqueta, os sapatos e asmeias, sua navalha e o pequeno saco de couro onde o garoto guardava seus poucos pertences.

—Quer levar tudo isso a Jenny? —perguntei, tratando de imaginar o que minha cunhadapoderia pensar, dizer ou fazer ao receber a notícia.

Ainda que Jamie estivesse enrijecido pelo esforço da escalada, minhas palavras lhe fizeramempalidecer.

—Oh, sim —disse com amargura. — Quer que eu volte a casa para informar a minha irmãde que perdi seu filho caçula? Ela não queria que me acompanhasse e eu insisti. Prometi cuidardele. Agora está ferido, talvez morto, mas aqui estão suas roupas como recordação —apertouos dentes. —Preferiria me matar.

Depois se ajoelhou no solo para dobrar cuidadosamente as roupas. Depois de envolvê-las najaqueta, guardou a trouxa no alforje.

—Suponho que Ian precisará tudo isso quando o encontrarmos —disse tratando de soarconvicta.

Jamie demorou um momento em assentir.—Assim espero. Era muito tarde para empreender a viagem para Inverness. Sem dizer nada,

começamos a montar o acampamento. Nos alforjes tínhamos comida fria, mas não tivemosvontade de comer. Preferimos enrolar-nos em cobertores e capotes e jogar-nos a dormir.

Cochilei com a mente atribulada. Ao acordar, tremendo de frio, tateei uma mão a procura deJamie. Não estava ali. Quando me incorporei descobri que me tinha coberto com seu cobertor,pobre substituto de seu calor humano. Estava sentado a certa distância, de costas para mim. Aopôr-se o sol, o vento tinha virado para o mar levando-se parte do nevoeiro. À luz que brilhava àmeia lua pude ver com clareza sua silhueta encurvada. Levantei-me para aproximar-me,envolvendo-me no cobertor para proteger-me do frio. Meus passos tiniam sobre os fragmentosde granito, ruído que se perdia no rumor do mar. Ainda assim deve ter me ouvido; não se

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voltou, mas também não deu sinais de surpresa quando me sentei a seu lado. Tinha o queixoapoiado nas mãos e os cotovelos nos joelhos; seus olhos olhavam sem ver a água escura daenseada.

—Estás bem? —perguntei baixinho. —Faz um frio tremendo.—Estou bem, sim —respondeu sem convicção. Só estava de casaco, mais do que

insuficiente.—Não foi culpa tua —disse.—Deverias deitar e dormir, Sassenach. —Sua voz soava serena mas com verdadeira

desesperança que me instou a aproximar-me mais, tratando de abraçá-lo.—Fico contigo.Com um profundo suspiro, sentou-me em seus joelhos para abraçar-me com força. O tremor

cedeu pouco a pouco.—Que fazes aqui? —perguntei ao fim.—Rezo. Ou pelo menos tentava.—Não devia interromper-te. —Fiz menção de retirar-me mas ele me segurou.—Não, fique.—Que passa, Jamie?—É pecado ter-te? —sussurrou. Estava muito pálido; seus olhos pareciam fossas escuras

sob a escassa luz. —Não posso deixar de perguntar-me se é culpa minha. Tão grave pecado édesejar-te tanto, precisar de voce mais do que a minha vida?

—É verdade isso? —Tomei-lhe o rosto entre as mãos. —E se é verdade, que pode ter demau? Sou tua esposa.

A simples palavra «esposa» me aliviou o coração.—Isso é o que me digo. Deus te enviou a mim; como poderia não te amar? No entanto…

penso, penso e não posso parar. O tesouro… Faria bem utilizá-lo quando tinha necessidade,para alimentar aos famintos ou resgatar a alguém da prisão. Mas para livrar-me da culpa… usá-lo só para poder viver livremente em Lallybroch contigo, sem preocupar-me por Laoghaire…Creio que fui mau.

—Quieto —disse — Não digas isso. Alguma vez fizeste algo por ti, Jamie, sem pensar nosdemais?

—Oh, muitas vezes —sussurrou. — Quando te vi. Quando te tomei por esposa semperguntar-me se me querias ou não, se tinhas outro lar, outro homem.

—Idiota. —lhe sussurrei ao ouvido. — És um idiota, Jamie Fraser. Que me dizes deBrianna? Isso não foi mal, ou foi?

—Não. —Engoliu a saliva. —Mas agora te separei dela também. Te amo… e amo a Iancomo se fosse meu. E estou pensando que talvez não posso ter a ambos.

—Jamie Fraser —repeti com tanta convicção como pude—, és um perfeito estúpido. Tu nãome obrigaste a vir, nem me afastou de Brianna. Vim porque quis, porque te queria tanto comotu a mim. E o fato de que eu esteja aqui não tem nada haver com Ian. Estamos casados, malditosejas: ante Deus, ante os homens, ante Netuno ou ante quem te ocorra.

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—Netuno? —repetiu desconcertado.—Cala-te. Estamos casados, digo, e não é pecado que me desejes nem que me tenhas. E

nenhum Deus que mereça esse nome seria capaz de tirar teu sobrinho só porque quer ser feliz.Pare já com isso!

Por fim me afastei para olhá-lo.—Além do mais, —disse — não penso voltar por nada deste mundo. O que você pode fazer,

diga-me?Desta vez, a vibração de seu peito não era de frio, senão de riso.—Ficar contigo e ao diabo com tudo —disse me beijando a testa. — Por amar-te conheci o

inferno mais de uma vez, Sassenach; se é necessário, voltarei a conhecê-lo. —Bah! Crês queamá-lo é um leito de rosas?

Desta vez soltou uma gargalhada.—Não, mas quer insistir?—Pode ser.—És uma mulher muito teimosa. —Em sua voz se percebia o sorriso.—Deus nos criou e nós nos juntamos.Ficamos em silêncio durante um longo tempo, esperando que amanhecesse. Abaixo se ouviu

o gemido de uma foca.—Sente-se capaz de iniciar a viagem? —perguntou Jamie de súbito. —Sem esperar a luz do

dia?Uma vez que deixemos para trás o alcantilado, o trajeto não será tão difícil; os cavalos

podem arrumar-se na escuridão. Doía-me todo o corpo pelo cansaço e estava morta de fome,mas me levantei de imediato, retirando o cabelo do rosto.

—Vamos —disse.

OITAVA PARTE

NA ÁGUA

CAPÍTULO 40INDO ATÉ O MAR—Terá que ser o Artemis.Depois de fechar sua escrivaninha portátil, o primo de Jamie esfregou o cenho. Tinha-o

conhecido cinqüentão; agora Jared tinha bem mais de setenta anos mas sua cara afiada, seu

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corpo enxuto e sua incansável capacidade de trabalho seguiam sendo os mesmos. Só o cabelodenunciava sua idade: tinha passado do negro ao branco puro.

—É só uma caravela de tamanho médio, com uma tripulação de quarenta pessoas mais oumenos —comentou— Mas a temporada já passou e não creio que consigamos nada melhor.Todos os barcos que vão para as Antilhas partiram faz mais de um mês. O Artemis devia tersaído com o comboio da Jamaica, mas precisava de uns reparos.

—Prefiro que seja um de teus barcos… com um de teus capitães —lhe assegurou Jamie—Otamanho não importa.

Jared ergueu uma sobrancelha com ceticismo.—Ah, não? Em alto mar poderia descobrir o tanto que importa. A esta altura do ano o vento

sopra com força; as caravelas são sacudidas como se fossem cortinas. Posso perguntar-te comopassou por sua cabeça cruzar o Canal num barco, primo?

Ante esta pergunta, a cara de Jamie se tornou ainda mais lúgubre, acentuando as olheiras.—Eu me arranjarei —disse arisco.Jared o olhou com ar duvidoso; sabia muito bem o que lhe sucedia em qualquer tipo de

embarcação: mal pisava na embarcação, ainda que estivesse ancorado, ficava verde eprostrado.

Isso me tinha preocupado.—Bem, suponho que não há remédio —suspirou o primo. —Ao menos terás um médico a

mão. Isto é… suponho que pensas acompanhá-lo, querida.—Sim —lhe assegurei— Quanto tempo resta para que o barco esteja pronto? Me agradaria

procurar uma boa farmácia para abastecer-me de medicamentos antes de partir.Jared franziu os lábios, concentrando-se.—Uma semana, se Deus assim quiser. Neste momento o Artemis está em Bilbao; com bom

vento, chegará depois de amanhã com uma carga de couros curtidos da Espanha. Ainda nãocontratei um capitão para a viagem; estou procurando o adequado; talvez deva ir até Paris paracontratá-lo; serão quatro dias de viagem, ida e volta. Adicionemos um dia para completar oabastecimento, encher os tonéis de água e outros detalhes. Pode estar pronto para partir dentrode uma semana, ao amanhecer.

—Quanto tempo demora para chegar às Antilhas? —perguntou Jamie.—Durante a temporada demora dois meses —respondeu Jared. —Mas a esta altura, com as

tormentas de inverno, poderiam ser três ou inclusive mais. Ou não chegar nunca.Claro que Jared, como todo ex marinheiro, era muito supersticioso e tinha muito tato para

expressar essa possibilidade. Também não mencionaria a outra questão que me ocupava amente: não tínhamos provas de que o barco azul se dirigisse às Antilhas. Só contávamos comos registros que Jared tinha conseguido no porto de Lhe Havre, onde o “Bruxa” (nome muitoadequado) figurava como originário de Bridgetown, na ilha de Barbados.

—Descreva-me outra vez esse barco que levou o jovem Ian —pediu Jared—.Comonavegava? Alto na água ou bastante afundado, como se levasse uma carga pesada?

Jamie fechou os olhos para concentrar-se. Depois disse:—Poderia jurar que ia muito carregado. As frestas dos canhões estavam menos um par de

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metros da água.Seu primo assentiu, satisfeito.—Isso significa que não acabava de chegar, e sim que partia. Enviei mensageiros aos

principais portos de França, Portugal e Espanha. Com um pouco de sorte, eles averiguarão deonde partiu e daí que destino leva. —Os lábios finos se contraíram.—A não ser que se tenhafeito pirata e navegue com papéis falsos, claro. Isso é tudo o que se pode fazer pelo momento.Agora vamos a casa, que Mathilde nos espera com o jantar. Amanhã te ensinarei a lista demercadorias enquanto tua esposa sai a procurar suas ervas.

Eram quase cinco e já tinha escurecido por completo, mas Jared tinha uma escolta de doishomens equipados com porretes e tochas para que nos acompanhassem até em casa. Lhe Havreera uma próspera cidade portuária e não convinha caminhar pelas docas depois do escurecer, emuito menos se um era um rico mercador de vinhos. Apesar do esgotamento da viagem, aopressiva umidade, o penetrante cheiro de peixe e a fome que me corroia, sentia-me reanimada.Graças a Jared existia uma possibilidade de achar ao jovem Ian. O primo de Jamie tambémacreditava que, se os piratas do Bruxa não tinham matado o garoto de imediato, o maisprovável era que o mantivessem com vida. Um rapaz jovem e saudável, qualquer que fosse suaraça, podia-se vender nas Antilhas como escravo ou criado por uma quantidade de duzentaslibras, uma soma muito respeitável nessa época.

Uma forte rajada de vento e várias gotas geladas sufocaram um pouco meu otimismorecordando-me que, por mais fácil que fosse localizar a Ian ao chegar às Antilhas, antes erapreciso que tanto o Bruxa como o Artemis aportassem a elas. E já estavam começando astormentas de inverno. Mesmo diante do substancioso jantar de Jared e os excelentes vinhos queo acompanharam, aquela noite não pude dormir; minha mente evocava imagens de lonasempapadas e mares agitados. Pelo menos, essa excitante imaginação só me desvelava a mim:Jamie, em vez de subir comigo, tinha ficado discutindo com seu primo os detalhes da viagem.Jared estava disposto a arriscar um barco e um capitão para colaborar na busca. Em troca,Jamie embarcaria como comissário.

—Como o que? —tinha exclamado eu, ao escutar a proposta.—O comissário é o homem que se ocupa de supervisionar a carga, a descarga, a venda e a

disposição da mercadoria —me explicou Jared com paciência.Esse foi o trato. Levaríamos mercadorias até a Jamaica, onde as tocaríamos por rum para a

viagem de volta, que teria turno ao final de abril ou princípios de maio, quando chegasse o bomtempo. Se chegássemos à Jamaica em fevereiro, Jamie poderia dispor durante três meses doArtemis e sua tripulação para viajar até Barbados (ou onde fosse necessário) a procura dojovem Ian. Três meses. Tomara que seja o suficiente. O vento parecia amainar. Como nãoconseguia conciliar o sonho, abandonei a cama com um cobertor sobre os ombros e meaproximei da janela. Ainda estava ali quando Jamie abriu a porta.

—Ainda estás acordada? —perguntou.—A chuva não me deixa dormir. —Fui abraçá-lo.Ele me estreitou contra si, apoiando a bochecha em meu cabelo.—Tens estado escrevendo? —perguntei.Olhou-me com assombro.

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—Sim, mas como sabe?—Cheiras a tinta.Afastou-se um pouco para pentear-se com os dedos.—Tens o nariz como um porco trufeiro, Sassenach.—Caramba, muito obrigada pelo tão elegante elogio. O que escreveste? Seu sorriso

desapareceu.—Uma carta para Jenny — disse.Tirou o casaco e começou a afrouxar a gravata. — Não quis escrever-lhe antes de ter falado

com Jared, para poder contar-lhe quais eram nossos planos e as possibilidades que tínhamos derecuperar a Ian são e salvo. —Fez uma careta.—Sabe Deus como reagirá quando a receber.Então estarei em alto mar. A redação não teria sido nada fácil, mas supus que se sentiria maiscalmo depois de tê-lo feito. Enquanto tirava os sapatos e as meias, aproximei-me por detráspara desatar-lhe o cabelo. —Alegro-me de tê-lo feito —comentou. —Atormentava-me ter quelhe dizer o que se passou.

—Escreveu a verdade?Encolheu-se de ombros.—Como sempre.No entanto, não lhe tinha dito a verdade com respeito a mim. Comecei a dar-lhe uma

massagem nos ombros.—Que aconteceu com o senhor Willoughby?—perguntei.O chinês tinha nos acompanhado, colando-se a Jamie como uma sombra.—Creio que esteja dormindo no estábulo. —Jamie bocejou— Mathilde disse que não estava

habituada a ter pagões na casa e que não tinha intenção de começar agora. Deixei-a aspergindoágua benta na cozinha onde tinha jantado. De repente me pegou a mão para acariciar-me apequena cicatriz do polegar: o J que ele tinha traçado com a ponta de sua faca quando nosseparamos, antes de Culloden.

—Não te perguntei se queres me acompanhar. —disse—Poderias ficar; Jared te alojaria debom grado, aqui ou em Paris. Ou talvez preferisse regressar a Lallybroch.

—Não, não me perguntou. Sabes muito bem qual é minha resposta.Olhamo-nos com um sorriso. De sua cara tinham desaparecido as rugas do cansaço e o

pesar.O vento assobiava na chaminé e a chuva corria pelo vidro como uma torrente de lágrimas,

mas já não me importava. Agora poderia dormir. Pela manhã o céu estava descoberto. Noescritório de Jared, uma brisa fria sacudia a janela sem poder penetrar no abrigo interior.Aproximando os pés do fogo, afundei a pena no tinteiro. Estava fazendo uma lista de todos oselementos medicinais que podia precisar nos dois meses de viagem. O álcool destilado era omais importante e o mais fácil de conseguir; Jared tinha prometido trazer-me um barril deParis. O trabalho era lento. Já tinham passado os tempos em que conhecia os usos medicinaisde todas as ervas comuns e outras bastante esquisitas. Era preciso recordá-los; não contava commuita coisa. Quando ia escrevendo os nomes das ervas, vinham-me à memória seu cheiro e seuaspecto.

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Do outro lado da mesa, Jamie lutava com suas próprias listas, escrevendo trabalhosamentecom sua maltratada mão direita. De vez em quando se detinha para esfregar a ferida do braçocicatrizando, amaldiçoando baixo.

—Tens suco de lima em tua lista, Sassenach? —perguntou.—Não. Devo anotá-lo?Retirou uma mecha da testa.—Depende. É costume que o cirurgião de bordo leve suco de lima, mas nos barcos

pequenos, como o Artemis, não costuma ter cirurgião; todos os alimentos correm por conta dotesoureiro.

Como também não levaremos tesoureiro, porque não teve tempo de procurar a um nome deconfiança, também é missão minha.

—Bem, se vais atuar como tesoureiro e comissário, suponho que eu serei o mais parecido aum cirurgião —disse sorrindo—Já me encarrego do suco de lima.

—Está bem.Continuamos rabiscando em amistosa companhia até que nos interrompeu a entrada de

Josephine, a criada. Vinha anunciar-nos uma visita.—Está esperando na porta. O mordomo tentou impedir-lhe, mas o homem faz questão de ter

uma palavrinha com o senhor, Monsieur James.Jamie ergueu as sobrancelhas.—Que tipo de homem é?Josephine apertou os lábios sem atrever-se a dizê-lo. Isso me despertou a curiosidade e me

aventurei até a janela.—Parece um vendedor de rua; traz uma espécie de mochila às costas —informei esticando o

pescoço.Jamie me pegou pela cintura para afastar-me e se assomou em meu lugar.—Ah, é o traficante de moedas que mencionou Jared —exclamou.—Faça-o entrar.Josephine se retirou com uma expressão muito eloqüente em sua estreita face; logo após

voltou junto a um jovem alto e desalinhado, de uns vinte anos; vestia um casaco fora de moda ecalças muito grandes. Tirou o sujo chapéu negro, descobrindo um rosto magro de expressãointeligente e enfeitado por uma barba escassa. Como em Lhe Havre só usavam barba unspoucos marinheiros, não fazia falta o gorro negro para revelar sua origem judia. O moço mefez uma torpe reverência e outra a Jamie, lutando com as alças da mochila.

—Madame, Monsieur, são muito bondosos em me receber. —Falava um francês estranho.—O agradecido sou eu —disse Jamie— Não esperava que viesses tão cedo. Disseme meu

primo que voce se chama Mayer.O traficante assentiu com a cabeça, com um tímido sorriso entre as mechas de barba juvenil.—Mayer, sim. Não foi nenhum incomodo. Estava na cidade.—Mas vem de Frankfurt, verdade? Uma longa viagem —comentou meu esposo, cortês.Olhou a vestimenta do visitante, que parecia ter saído de um latão de lixo. — E empoeirada,

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suponho.—Aceita um pouco de vinho?Mayer pareceu confuso ante o oferecimento. Depois de abrir e fechar a boca várias vezes,

contentou-se com um calado gesto de aceitação. No entanto, sua timidez desapareceu ao abrir amochila. Depois de despregar um pano, foi abrindo saquinhos e depositando seu conteúdosobre o veludo azul, pronunciando os nomes das moedas com ar reverente. Seus olhosrefletiam o brilho do metal precioso.

—Monsieur Fraser diz que desejas vistoriar tantas moedas raras de Grécia e Roma comoseja possível. Não trouxe todas as que tenho, por suposto, mas posso mostrar algumas. Seassim o senhor desejar, poderei mandar trazer as outras de Frankfurt.

Jamie sacudiu a cabeça com um sorriso.—Temo que não haja tempo, senhor Mayer. Temos que…—Só Mayer, Monsieur Fraser —interrompeu o jovem com cortesia, ainda que com um leve

tensão na voz.—Perdão. —Jamie lhe dedicou uma leve inclinação de cabeça— Espero que meu primo não

vos tenha induzido a confusão. Terei muito gosto em pagar o custo da viagem e adicionar algomais pelo tempo que te faço perder mas não desejo comprar nenhuma de suas moedas, se…Mayer.

O jovem elevou as sobrancelhas com ar inquisitivo.—O que desejo —explicou Jamie com lentidão, inclinando-se para observar as moedas— é

comparar vossas moedas com minhas recordações de várias moedas antigas. Se visse algumasimilar, perguntaria se sabes de alguém de sua família (já que és muito jovem) ou de outrapessoa que possa ter comprado essas moedas há vinte anos.

Como o jovem judeu parecia estupefato, sorriu.—Compreendo que é muito para se pedir. Mas meu primo me disse que vossa família é uma

das mais entendidas e uma das poucas casas que se ocupa destes assuntos. Além disso estariaprofundamente agradecido se pudésses informar-me de quem se dedica a este negócio nasAntilhas.

Mayer o observou e inclinou a cabeça.—Meu pai ou meu tio poderiam ter feito uma venda assim. Eu não, mas aqui tenho o

catálogo e o registro de todas as moedas que passaram por nossas mãos nos últimos trinta anos.Informarei o que poder. O senhor vê aqui alguma peça como as que recorda?

Jamie estudou as moedas com muita atenção. Por fim afastou suavemente uma peça deprata.

—Esta —disse—Tinha várias assim, com estes golfinhos. —Depois separou um gastadodisco de ouro com um perfil impreciso e outra de prata— Estas; catorze de ouro e dez dasoutras, as de duas cabeças.

—Dez! —Os olhos de Mayer se dilataram de estupefação. —Nunca teria imaginado quetivesse tantas na Europa.

Jamie assentiu.—Estou certo. Tive-as na mão.

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—Estas são as caras gêmeas de Alexandre —explicou Mayer tocando o ouro com reverência—Moeda realmente muito rara. É um tetradracma, estampada para comemorar a batalha deAnfípolis e a fundação de uma cidade no mesmo lugar.

Jamie escutava com atenção. Ainda que a numismática não lhe interessasse muito, sabiaapreciar a paixão de um homem por seu trabalho. Meia hora depois, depois de novas consultasno catálogo, o assunto estava concluído.

—Naturalmente, Monsieur, nossas transações são confidenciais —disse Mayer— Por issosó posso dizer quais moedas vendemos e em que data, mas sem revelar o nome do comprador.—Fez uma pausa, pensativo.

—No entanto, sei que o primeiro comprador destas moedas faleceu já há vários anos, enessas circunstâncias… —Encolheu-se de ombros.

—Esse comprador foi um cavaleiro inglês, Monsieur. Chamava-se Clarence Mary-lebone,duque de Sandringham.

—Sandringham! —exclamei assombrada.Mayer me olhou com curiosidade. Depois se voltou para Jamie, que demonstrava um

amável interesse.—Sim, Madame. Sei que o duque morreu, pois possuía uma extensa coleção de moedas

antigas que meu tio comprou de seus herdeiros em 1746. Aqui figura a transação.Eu estava inteirada da morte do duque por experiência mais direta. Murtagh, o padrinho de

Jamie, tinha-o matado numa escura noite de março, pouco antes que a batalha de Cullodenpusesse fim à rebelião jacobita. Engoli saliva ao recordar a última vez que vi ao duque, comuma expressão de intensa surpresa nos olhos azuis. O duque de Sandringham tinha prometido aCarlos Stuart, o Bonnie Prince, cinqüenta mil libras para que levantasse um exército, com acondição de que recuperasse o trono de Inglaterra. Mayer adicionou, vacilante. —Posso dizeralgo mais: quando meu tio adquiriu a coleção do duque, depois de sua morte, não tinha nelanenhuma tetradracma.

—Não —murmurou Jamie—, não podia tê-los. Obrigado, Mayer. E agora bebamos à vossasaúde e por vosso livro.

Mayer guardou no bolso as libras de prata que Jamie acabava de dar-lhe como pagamento.Depois de despedir-se com profundas reverencias, pôs-se seu deplorável chapéu.

—Adeus, Madame.—Adeus, Mayer. —Depois perguntei, vacilando—: Mayer é vosso único nome?Algo brilhou em seus grandes olhos azuis, mas respondeu com amabilidade. —Sim,

Madame. Aos judeus de Frankfurt não se permite usar sobrenomes. —Sorriu.— Os vizinhosnos designam fazendo referência a um velho escudo vermelho que estava pintado na fachadade nossa casa, faz muitos anos. Algo disso… não, Madame. Não temos sobrenome.

Josephine se apresentou para acompanhar a nosso visitante. Minutos depois ouvi o ruído daporta ao fechar-se, quase violentamente. Jamie, ao percebê-lo, girou para a janela.

—Que Deus te acompanhe, Mayer Escudo-Vermelho —disse sorrindo.De repente me ocorreu algo.—Jamie, Dunkan Kerr era jacobita?

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Jamie assentiu.—Por que apareceu na ilha das focas dez anos depois de Culloden? Foi recolher o tesouro

ou deixá-lo lá? E, quem enviou o “Bruxa” agora? —perguntei.—Algum maldito isso eu sei. Talvez o duque tinha algum cúmplice. —Jamie levantou e se

assomou à janela.— Bom, teremos tempo de especular quando estivermos em alto mar.—Falas alemão, Jamie? —disse, mudando de assunto.—Que? Oh, sim —respondeu olhando pela janela.—Como se diz «escudo vermelho» em alemão?—Rothschild, Sassenach. Por que perguntas?—Era só uma idéia —disse. O repique dos socos de madeira já se tinham perdido entre os

ruídos da rua.—Suponho que todo mundo deve começar de algum modo.A farmácia da Rua de Varennes tinha desaparecido, substituída por uma próspera taberna,

uma casa de penhores e uma pequena joialheria.—Mestre Raymond? —O dono da casa de empenhos ergueu as sobrancelhas grisalhas.—

Ouvi falar dele, Madame. —Me deu uma olhada cautelosa, como sugerindo que não lhe tinhamdito nada positivo.—Mas faz já vários anos que se foi. Se precisa de um bom boticário, poderáir a Krasner, da Place d’Aloes, ou talvez a Madame Verrue, próximo das Tullerías…

Observando com interesse ao senhor Willoughby, que me acompanhava, disse em tomconfidencial:

—Vos interessaria vender o chinês, Madame? Tenho um cliente com marcadas preferênciaspor tudo que é oriental. Poderia te conseguir um bom preço… sem cobrar mais do que acomissão habitual, eu asseguro.

—Obrigado —contestei—, mas creio que não. Procurarei Krasner.O senhor Willoughby tinha chamado muito pouca atenção em Le Havre. Nas ruas de Paris,

em troca, com uma jaqueta sobre o pijama de seda azul e o rabicho enroscado à cabeça,provocava consideráveis comentários. Não obstante, demonstrou ser muito entendido em ervase substâncias medicinais. —Bai jei ai —me disse na botica de Krasner pegando umas sementesde mostarda de uma caixa aberta

— Bom para shen-iene… rins.—É verdade —confirmei surpresa— Como o sabes?—Conheci curadores de outro tempo —foi quando respondeu.Depois apontou uma cesta que continha umas bolas com aparência de barro seco— Shan-eü. Bom, muito bom; limpa sangue, fígado trabalha bem, não pele seca, ajuda ver.

Pode comprar.As bolas em questão resultaram ser uma espécie de enguia seca e enrolada. Como o tempo

era bom, exceto em estarmos próximo do inverno, voltamos caminhando a casa de Jared, naRue Tremoulins.

Na esquina da Rue du Nord e a Allée dês Canards vi algo fora do comum: uma silhueta altae encurvada, de casaco negro e chapéu redondo.

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—Reverendo Campbell! —exclamei.Girou ao redor e, ao reconhecer-me, tirou-se o chapéu com uma reverência.—Senhora Malcolm! É um grandíssimo prazer voltar a vê-la! —Ao cair seus olhos sobre o

senhor Willoughby endureceu as feições num gesto de censura. —Eh… o cavaleiro é o senhorWilloughby —o apresentei—, um… sócio de meu esposo. Senhor Willoughby, o reverendoArchibald Campbell.

—Ah, sim.—Imaginava o senhor já navegando para as Antilhas —comentei, com a esperança de

afastar seus gélidos olhos do chinês. Deu resultado: seus olhos se voltaram para mim, umpouco mais doce.

—Agradeço o interesse, Madame —disse— Ainda acalento essas intenções. Mas tinha queliquidar na França certos negócios urgentes. Partirei de Edimburgo na semana que vem, quinta-feira.

—E como está vossa irmã?Lançou uma olhada de desgosto ao senhor Willoughby. Depois baixou a voz. —Melhorou

um pouco, graças a senhora. As poções que prescrevestes foram muito úteis. Está bem maisserena e dorme com mais regularidade. Devo agradecer novamente vosso amável atendimento.

—Alegro-me de saber. Espero que a viagem lhe caia bem.Separamo-nos com as habituais expressões de boa vontade. Depois de um breve silêncio, o

senhor Willoughby comentou:—Reverendo quer dizer homem muito santo, sim?Tinha a dificuldade comum entre os orientais de pronunciar o erre, com o qual a palavra

«reverendo» resultava muito pitoresca.—Sim —confirmei olhando-o com curiosidade.—Não muito santo, este reverendo.—Por que o dizes? Me deu uma olhada astuta.—Eu ver uma vez, em Madame Jeanne. Não fala forte. Muito calado então, reverendo.—É mesmo?—Putas baratas —ampliou o chinês, fazendo um gesto muito grosseiro nas proximidades

entre suas pernas a modo de ilustração.—Sim, já entendi. Bem, suponho que a carne é débil inclusive entre os ministros da Igreja

Livre escocesa.Aquela noite, durante o jantar, mencionei que tinha encontrado o reverendo, ainda que me

reservei dos comentários do senhor Willoughby sobre suas outras atividades.—Deveria ter-lhe perguntado a que ponto das Antilhas se dirigia —me lamentei— Não é

uma companhia muito divertida mas talvez nos fosse útil ter ali algum conhecido.Jared, que estava comendo almôndegas de bezerra com ar muito decidido, engoliu e disse:—Não se preocupes por isso, querida. Preparei uma lista de conhecidos e várias cartas para

certos amigos meus que poderão ajudar-los.

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Depois de observar a Jamie com expressão pensativa, adicionou em tom coloquial:—Nos encontramos no plano, primo.Isso me desconcertou, mas Jamie se repôs num instante:—E nos separamos na praça.A cara estreita de Jared se partiu num amplo sorriso.— Ah, isso ajuda! Não estava seguro, mas me parece que vale a pena tentar. Onde te

iniciaram?—No cárcere —respondeu Jamie, brevemente.—Devia de ser a loja de Inverness.Jared assentiu com satisfação.—Sim, seguro. Há lojas na Jamaica e em Barbados; te darei cartas para que leves aos Grão-

Mestres de lá. Mas a loja maior é a de Trinidad; tem mais de dois mil membros. Se precisar deajuda para procurar ao moço, deve pedir a eles. Nessa loja chegam, tarde ou cedo, todas asnotícias do que passa nas ilhas.

—Não se incomodariam em explicar-me do que estão falando? —interrompi. Jamie sorriu.—Da maçonaria, Sassenach.—És maçom? —balbuciei—Não me tinhas dito!—Não pode fazê-lo —apontou Jared com certa aspereza. —Os ritos da maçonaria são

secretos, conhecidos só por seus membros. Se Jamie não for que nem um de nós, eu nãopoderia dar-lhe uma carta de apresentação para a loja de Trinidad.

Meu esposo me tocou um pé por embaixo da mesa, olhando-me com um sorriso oculto nosolhos. Depois elevou um pouco a taça num brinde silencioso e me senti reconfortada. O gestome recordou nossa noite de casamento, quando nos sentamos com grandes taças de vinho;éramos dois estranhos que se temiam mutuamente, sem nada que nos unisse além do contratomatrimonial… e a promessa de sermos francos.

«Talvez tenha coisas que não possas contar-me», tinha dito ele. «Não te farei perguntas nemte obrigarei. Mas quando for me dizer algo, que seja a verdade. Por agora não há nada entrenós, salvo o respeito. No respeito há lugar para os segredos, creio… mas não para as mentiras.»Bebi longamente de minha própria taça, sentindo o calor que me subia às bochechas. Jamieseguia com os olhos fixos em mim, ignorando o monólogo de seu primo sobre a embarcação eas velas de bordo. Seu pé procurou o meu; respondi-lhe de igual modo.

—Sim, me ocuparei disso pela manhã —respondeu a Jared— Mas agora, primo, creio quevou retirar-me. O dia foi longo.

Depois de levantar-se, ofereceu-me o braço.—Me acompanhas, Claire?Pus-me em pé; o vinho que circulava por meu sangue me dava calor e me produzia um

pouco de tontura. Nossos olhares se encontraram. Agora tinha entre nós bem mais do querespeito. E lugar para conhecer todos nossos segredos, em seu devido tempo. Pela manhã,Jamie e o senhor Willoughby saíram com Jared para completar seus recados. Eu também tinhaalgo que fazer… e preferia fazê-lo só. Com o coração palpitando, subi à carruagem de Jared epedi ao cocheiro que me levasse ao Hôpital dês Anges. A tumba estava no pequeno cemitérioreservado para o convento, sob os pilares da catedral. Era uma lápide pequena de mármore

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branco. Um par de asas de querubim protegiam a única palavra: «Faith». Contemplei-a até queminha vista nublou-se. Tinha levado uma tulipa cor de rosa; em pleno mês de dezembro e emParis, não era fácil conseguir este tipo de flor mas Jared tinha uma estufa. Ajoelhei-me paradepositá-la sobre a pedra, acariciando a pétala com um dedo como se fosse a bochecha de umrecém nascido.

—Não esperava chorar —disse.Naquele momento, senti a mão da madre Hildegarde sobre minha cabeça.—Le Bon Dieu ordena as coisas como melhor acredita —disse suavemente—, mas rara vez

nos diz por que.Respirei fundo e sequei as bochechas com uma ponta do manto.—Já faz muito tempo. —Levantei-me com lentidão.A madre Hildegarde me observava com profunda simpatia e interesse.—Notei que, para as mães, o tempo não parece passar no que diz respeito aos filhos; ainda

que sejam adultos elas podem vê-los sempre como quando nasceram.—Sobretudo quando dormem — comentei—Então sempre é possível ver outra vez o recém

nascido.A madre assentiu satisfeita.—Ah, me parece que teves outros filhos. Teu aspecto o diz.—Uma. —Encarei-a— Como sabes tanto sobre mães e filhos?—Os anciãos dormem muito pouco —disse encolhendo-se de ombros—. Algumas noites

percorro as salas e falo com os pacientes.A idade a tinha reduzido: seus largos ombros estavam encurvados e magros como um cabide

sob o hábito de sarja negra. Ainda assim, era mais alta do que a maioria das freiras. Depois desoar o nariz, segui-a ao longo do caminho até o convento. Enquanto caminhávamos repareioutras lápides pequenas, espalhadas entre as demais.

—Todas são de meninos? —perguntei surpresa.—Os filhos das freiras —respondeu sem dar-lhe importância. Voltei-me para ela

boquiaberta. Encolheu-se de ombros, elegante e irônica como sempre.—As vezes acontece. —Uns passos além adicionou: —Não com muita freqüência, por

suposto. —Assinalou com a bengala os confins do cemitério—Este lugar está reservado para asirmãs, uns poucos benfeitores do Hospital… e seus amados.

—Das irmãs ou dos benfeitores?—Das irmãs.Contra o muro mais afastado, mas ainda em terra consagrada, via-se uma fileira de pequenas

lápides com um só nome cada uma: Bouton, sobre uma cifra romana, do I ao XV: os amadoscachorros da mãe Hildegarde. Lancei uma olhada ao seu colega atual, o décimo sexto com essenome; era negro como carvão e de pelo encaracolado como um cordeiro persa. As irmãs e seusseres amados.

—Alegra-me muito que tenhas voltado, ma chère —disse ela—Entre; te darei algumascoisas que podem ser-te úteis durante a viagem.

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Enquanto percorríamos o caminho bordeado de telhas que conduzia à entrada do Hospitallevantei os olhos para dizer, vacilante:

—Espero não te ofender, madre, mas há uma pergunta que me agradaria fazer. —Oitenta etrês —respondeu com um largo sorriso que descobriu seus grandes dentes amarelos.

—Todo mundo quer saber. —Voltou-se a olhar o pequeno cemitério, encolhendo-se deombros num gesto muito francês.

—Ainda não. Le Bon Dieu sabe quanto trabalho me fica por fazer.

CAPÍTULO 41

NOS LEVAMOS AO MAR

Era um típico dia escocês, cinza e frio, quando o Artemis tocou em terra no cabo Wrath, nacosta noroeste. Olhei pela janela da taberna, para o sólido nevoeiro que se atrapava aosalcantilados. Jamie passeava pelo cais apesar da chuva, bastante nervoso para permanecer juntoao fogo. A viagem de regresso à Escócia não lhe tinha resultado mais grato do que a primeiravez que cruzou o Canal; a perspectiva de passar dois ou três meses a bordo do Artemis lheespantava. Ainda mais, sua impaciência por perseguir aos seqüestradores era tão forte quequalquer demora lhe produzia frustração. O irônico era que este último atraso tinha sidoocasionado por ele. Tínhamos feito escala no Cabo Wrath para embarcar Fergus e ao pequenogrupo de contrabandistas que Jamie lhe tinha encarregado contratar antes de nossa partida paraLe Havre.

—Não há maneira de saber com quem nos encontraremos nas Antilhas, Sassenach — tinhaexplicado Jamie. —Não quero enfrentar só um barco cheio de piratas, nem brigar junto comhomens desconhecidos.

Todos os contrabandistas eram homens do mar acostumados aos botes e ao oceano e,provavelmente, também aos barcos. Cabo Wrath era um porto pequeno com pouco tráfico noinverno. No cais de madeira só tinha amarrados, a parte da Artemis, uns poucos barcospesqueiros e um barquinho. Fergus estava atrasado. A ninguém parecia incomodar a espera,exceto a Jamie e ao capitão. Seu nome era Raines; era um homenzinho gorducho, já entradonos anos, que passava a maior parte do tempo na cobertura do barco com um olho no céucarregado e o outro em seu barômetro.

Avançada a tarde do segundo dia apareceram seis homens serpenteando ao longo da costapedregosa, montados em peludos pôneis.

—O que vem adiante é Raeburn —assinalou Jamie entornando os olhos para identificá-los.—Segue-o Kennedy; depois, Innes, o que lhe falta o braço esquerdo, vês? Mais atrás,Meldrum, e o que o acompanha deve de ser MacLeod, pois sempre cavalgam juntos. E oúltimo, é Gordon ou Fergus?

—Deve de ser Gordon —observei olhando acima de seu ombro. —É bastante gordo para serFergus.

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Depois de receber aos contrabandistas, apresentá-los a seus novos colegas e tê-los todossentados ante um jantar quente e uma taça, Jamie perguntou:

—Onde diabos está Fergus? Raeburn inclinou a cabeça.—Bem, tinha certo assunto que resolver e me encarregou que alugasse os cavalos e

procurasse a Meldrum e a MacLeod, que tinham saído em seu próprio barco e demorariam unsdois dias para voltar.

—Que assunto era esse? —inquiriu Jamie com aspereza.A única resposta foi um encolhimento de ombros. Meu esposo murmurou algo em gaélico e

se dedicou ao seu jantar sem mais comentários. À manhã seguinte, com a tripulação jácompleta (a exceção de Fergus), iniciaram-se os preparativos para partir. Jamie se mantinhapróximo do leme, sem perturbar e dando uma mão onde era mais necessária a força do que ahabilidade. Ainda assim passava a maior parte do tempo com os olhos fixos no caminho.

—Se não partirmos até o meio da tarde perderemos a maré —apontou o capitão Raines comfirmeza. — Dentro de vinte e quatro horas o tempo será pior: o contragiros está descendo e osinto no pescoço. E não quero levantar âncoras no meio de uma tormenta, se posso evitá-lo. Epara chegar às Antilhas o antes possível…

—Sim, capitão, compreendo —o interrompeu Jamie— É claro. Faremos o que for melhor.Distanciou-se para dar espaço a um apressado marinheiro e o capitão desapareceu, dando

ordens a cada passo. Com o correr das horas Jamie, aparentemente tão sereno como sempre,não deixava de agitar seus dois dedos rígidos; era o único sinal exterior de preocupação. Fergustinha estado com ele vinte anos, desde o dia em que o retirou de um bordel parisiense para queroubasse as cartas de Carlos Stuart. Jamie era o mais parecido a um pai do que o moço tinhatido. Não me ocorria que assunto tão urgente podia impedir-lhe reunir-se conosco. A Jamietambém não; por isso seus dedos marcavam um ritmo silencioso sobre o balaústre.

Chegou a hora. Jamie, de má vontade, afastou os olhos da costa deserta. Apoiei-lhe umamão no braço como calada mostra de solidariedade.

—Será melhor que desça —disse— Tenho um lustre de álcool. Vou te preparar um chá degengibre, é o melhor de meu herbário para as náuseas e… O ruído de um cavalo ao galopelevantou ecos ao longo da costa; o barulho do cascalho ressoou muito antes que o cavaleiroaparecesse.

—Aí está, o tonto —disse Jamie com alívio.Depois se voltou para o capitão Raines com uma sobrancelha em alto.—Ainda temos uma suficiente maré? Bem, pois vamos.—Soltar amarras! —bramou o capitão.Os marinheiros se puseram imediatamente em ação. A última das cordas que nos segurava

aos pilares foi gentilmente enrolada. Ao nosso arredor, o cordão se tencionou e as velasflamejaram, o capataz corria pela coberta, ladrando ordens com uma voz que parecia de metalmufado.

—Mova-se! —disse, super feliz ao sentir que a cobertura se estremecia sob meus pés.—Oh, Deus… —exclamou Jamie ao perceber o mesmo. E se segurou ao balaústre com os

olhos fechados, engolindo saliva.

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—O senhor Willoughby diz conhecer uma cura para a tontura —comentei.—Ah! Já sei a que se refere. Se pensa que vou permitir-lhe… Que demônios se passa aqui!Girei ao redor e vi o que tinha provocado aquele comentário. Fergus estava na coberta

ajudando a uma moça trepada sobre o balaústre, com a cabeleira loira agitada pelo vento. Era afilha de Laoghaire: Marsali MacKimmie. Antes que pudesse falar, Jamie me deixou para tráspara aproximar-se dos recém chegados.

—Em nome de Deus, que significa isto, pequenos idiotas?—Estamos casados —anunciou Fergus pondo-se diante de Marsali, um pouco assustado e

excitado, pálido sob a mecha de cabelo negro.—Casados! —Jamie apertou os punhos e Fergus retrocedeu um passo.— Como que estão

casados? Tens deitado-se com ela?—Heim?… não, milord —disse o francês, vários tons mais pálido.Ao mesmo tempo Marsali avançou o queixo com os olhos acesos e ar desafiante:— Sim!Jamie os olhou e, depois de emitir um sonoro resfôlego, voltou-lhes as costas. —Senhor

Warren! Regresse à costa, por favor!O piloto se deteve boquiaberto, olhou a Jamie e depois dirigiu uma significativa olhada para

a costa que se afastava. Nos escassos momentos decorridos desde a aparição dos supostosrecém casados, o Artemis já tinha se afastado mais de um quilômetro da costa e as rochas dosalcantilados retrocediam a uma velocidade cada vez maior.

—Não creio que seja possível —disse—Parece que já estamos no marulho. Jamie apontou aescada que conduzia aos camarotes.

—Vocês dois, para baixo.Fergus e Marsali se sentaram juntos numa das liteiras, de mãos dadas. Jamie me indicou a

outra e se voltou para o casal com os braços na cintura.—Bem —disse—Que tolice é essa de que estão casados?—É verdade, milord —aclarou Fergus.Estava muito pálido mas seus olhos escuros brilhavam de entusiasmo.—Sim? E quem vos casou? —inquiriu Jamie com cepticismo.Trocaram olhares. Fergus explicou:—Nos… demo-nos palavras e as mãos.—Diante de testemunhas —adicionou Marsali.Em contraste com a palidez de Fergus suas bochechas pareciam arder. Levou a mão ao

peito.—Aqui tenho o contrato assinado.Jamie emitiu um rosnado. Segundo as leis de Escócia, duas pessoas podiam casar-se

legalmente dando-se as mãos ante testemunhas e declarando ser marido e mulher.—Bem, mas ainda não se deitaram —disse—E aos olhos da Igreja, só o contrato não basta.

Devemos saltar em Lewes para carregar as últimas provisões. Ali desembarcaremos a Marsali;

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farei que dois marinheiros a levem a casa de sua mãe.—Não pode fazer isso! —exclamou a garota erguendo-se com um olhar fulminante.— Irei com Fergus!—Oh, não, nada disso, pequena! —alfinetou Jamie — Não pensaste em tua mãe? Fugir

assim, sem dizer nada…—Enviei-lhe uma carta desde Inverness —aclarou Marsali com o queixo erguido—,

dizendo-lhe que tinha me casado com Fergus e que ia embarcar contigo.—Deus me ampare! Acreditará que eu estava sabendo de tudo! —Jamie parecia horrorizado.—É que… eu… pedi à senhora Laoghaire que me concedesse a mão de sua filha, milord —

interveio Fergus —Foi no mês passado, em Lallybroch.—Não é necessário que me repitas o que ela te disse —disse Jamie. —Negou. —Disse que

era um bastardo —estourou Marsali, indignada—, um criminoso e… e…—E é —assinalou meu marido. —E também um aleijado sem bens, coisa que tua mãe não

teria deixado de notar.—Não me importa! —A garota agarrou a mão de Fergus, olhando-o com afeto.—Eu o amo.—De qualquer modo, és muito jovem para casar.—Tenho quinze anos; é mais do que suficiente.—E ele trinta! —Jamie sacudiu a cabeça.—Não, filha. Sinto muito mas não posso permitir. Além do mais esta viagem é muito

perigosa…—Mas ela sim pode ir! —Marsali me apontou desdenhosamente com o queixo.—Não meta Claire nisto. Não é assunto teu.—Ah, não? Abandonas a minha mãe por esta rameira inglesa, a converte no motivo de riso

em todo o país… e dizes que não é assunto meu? —A garota se levantou de um salto. —E tenso descaro de indicar-me o que devo fazer e o que não?

—Assim é —afirmou ele contendo-se. —Meus assuntos privados não te interessam.—Também não a ti os meus!Fergus se levantou, alarmado, para tentar acalmá-la.—Marsali, ma chére, não deves falar desse modo a milord.—Eu falarei como me dê vontade!—Não, não podes!Surpreendida pela súbita aspereza de Fergus, piscou. Fergus moderou o tom: —Não. Senta-

te, ma petite. Milord foi mais do que um pai para mim. Salvou-me a vida mil vezes. Alémdisso, é teu padrasto. Apesar da opinião que tua mãe possa ter dele, não podes negar queproporcionou às três um bom sustento e proteção. Ao menos, deves-lhe respeito.

Marsali mordeu os lábios, com os olhos brilhantes.—Perdoe-me —murmurou finalmente a Jamie.

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No camarote, a tensão baixou um pouco.—Não tem importância, pequena — respondeu resmungão.Depois suspirou.—Ainda assim, Marsali, deves voltar para casa.—Não irei. —Ainda que a moça estivesse mais serena, a firmeza de seu queixo era a

mesma.Olhou aos dois.—Ainda que ele diga que não tenhamos deitados juntos, nós fizemos. Ao menos, é o que eu

direi. Se me obrigar a voltar para casa direi a todo mundo que fui sua. Já vês: ou casada oudesonrada!

Seu tom era decidido. Jamie murmurou entre dentes:— Senhor me livre das mulheres —disse fincando nela um olhar fulminante: — De acordo!

Estão casados. Mas vão fazer como é devido, ante um padre. Quando chegarmos às Antilhasprocuraremos um. E enquanto não tenhas recebido a bênção, Fergus não te tocará. Entendido?

Olhou ferozmente a ambos.—Sim, milord — aceitou Fergus com alegria. —Merci beaucoup!Marsali olhou ao seu padrasto com olhos entornados, mas acabou inclinando a cabeça e me

dando um olhar de soslaio.—Sim, pai — disse.O casamento de Fergus tinha conseguido que Jamie esquecesse o movimento do navio, mas

seu efeito não durou muito. Ainda que ficasse cada vez mais verde, negava-se a abandonar acoberta enquanto a costa de Escócia estivesse à vista.

—Talvez não volte a vê-la nunca mais —disse com tristeza quando tratei de persuadi-lo deque descesse para deitar-se.

—Claro que voltarás a vê-la —assegurei.—Regressarás.Não sei quando, mas tenho a certeza de que o farás. Olhou-me com desconcerto, esboçando

um sorriso.—Viste minha tumba, não é verdade?Como isso não parecia inquietá-lo, assenti com a cabeça. Fechou os olhos.—Está bem. Mas não me contes nada se não se importa.—Não posso dizer. Não tinha datas. Só teu nome… e o meu.—O teu? —Abriu subitamente os olhos.Se me fez um nó na garganta ao recordar a placa de granito. Era das que denominam «lápide

matrimonial»: um quarto de círculo talhado de maneira que se forma com outro um arcocompleto. Naturalmente, só tinha visto uma das metades.

—Figuravam todos os teus nomes. Foi como soube que eras voce. E abaixo dizia: «Ao meuamado esposo, de Claire.»

Moveu afirmativamente a cabeça, assimilando a notícia.

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—Isso significa que resgataremos ao jovem Ian são e salvo. Asseguro-te, Sassenach, quenão voltarei a pisar Escócia sem trazê-lo comigo.

—O resgataremos —disse com uma segurança que não sentia.Quando caiu a noite, as rochas da Escócia tinham desaparecido entre a bruma do mar.

Jamie, gelado até os ossos e branco como um lençol, deixou-se levar até a cama. Foi então quesurgiram as imprevistas conseqüências de seu ultimato a Fergus. Só tinham dois pequenoscamarotes privados, a parte do correspondente ao capitão. Se o jovem casal não podia dormirna mesma cama até que sua união tivesse recebido uma bênção formal, era óbvio que Jamie eFergus teriam que ocupar um e nós o outro.

A viagem parecia condenada a ser difícil em todos os sentidos.Eu confiava que as tonturas de Jamie melhorariam quando ele não mais pudesse ver o

bambolear do horizonte, mas não tivemos essa sorte.—Outra vez? —protestou Fergus, incorporando-se em seu beliche a meia-noite.—Como é possível, se não comeu nada todo o dia? —Eu disse a ele —respondi enquanto

me encaminhava para a porta com a vasilha nas mãos.—Vá dormir, milady —disse Fergus fazendo-se carregar. —Eu me encarregarei dele.A idéia de deitar era tentadora depois de um dia tão longo.—Vá, Sassenach —interveio Jamie.Estava pálido e molhado de suor. —Logo, logo passará.—Está bem —cedi— É possível que pela manhã te sintas melhor.Jamie abriu um olho e voltou a fechá-lo com um gemido.—Ou que tenha morrido —sugeriu.Com um sorriso, saí ao corredor escuro onde tropecei com a silhueta prostrada do senhor

Willoughby, encolhido contra a porta do camarote. Lançou um rosnado de surpresa, mas ao verque se tratava de mim, engatinhou lentamente para o interior do camarote. Sem prestar atençãoà exclamação desagradada de Fergus, meteu-se sob a mesa e voltou a dormir de imediato commuita satisfação. Meu camarote estava do outro lado do corredor, mas me detive a respirar o arfresco que entrava desde a coberta, escutando a variada gama de ruídos. Marsali dormiaprofundamente numa das duas liteiras. Melhor assim. Ao menos não me veria obrigada a tratarde iniciar uma conversa. Apesar, que senti pena por ela; sem dúvida a garota não teriaimaginado assim sua noite de núpcias.

O Artemis estava bastante limpo comparado com outros barcos, mas a higiene básica deixamuito a desejar quando se amontoam num espaço de cento setenta metros quadrados trinta edois homens, duas mulheres, seis toneladas de couros curtidos, quarenta e dois barris deenxofre e uma grande quantidade de lâminas de cobre e latão. No segundo dia, quando descipara procurar minha caixa de medicamentos que tinha sido posta no porão por erro, vi um rato.Pela noite, em meu camarote, percebi um ruído suave, como de pés arrastando-se; ao acender olustre descobri que tinham várias dúzias de baratas que fugiam freneticamente para as sombras.As latrinas, duas pequenas galerias a cada lado da embarcação, na proa, consistiam num par detábuas, separadas por uma estratégica ranhura e suspensas a dois metros e meio das ondas; aousá-las se podia receber um inesperado esguicho de água fria no momento mais inoportuno. Eususpeitava que isto, mais à dieta de porco salgado e bolachas marinhas, provocaria uma

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epidemia de prisão de ventre entre a tripulação.O senhor Warren, o capataz, informou-me com orgulho que todas as manhãs esfregavam a

coberta, se lustravam os bronzes e se efetuava uma limpeza geral. Ainda assim, era impossíveldissimular o fato de que tinha trinta e quatro pessoas ocupando um espaço limitado, das quaissó uma se banhava. Dadas as circunstâncias, levei uma grande surpresa quando, na segundamanhã, abri a porta da cozinha em procura de água fervendo. Esperava encontrar o mesmosebo que no resto do barco mas me deslumbrou o reflexo do sol numa fileira de caçarolas decobre, tão esfregadas que refulgiam com um tom rosado. Pisquei para adaptar a vista. Asparedes da cozinha estavam cobertas de prateleiras e armários, construídos para resistir ao marmais agitado. E no meio daquele imaculado esplendor se erguia o cozinheiro, estudando-mecom expressão fúnebre.

—Fora —ordenou.—Bom dia —saudei com toda a cordialidade possível. — Me chamo Claire Fraser.—Fora — repetiu no mesmo tom. —Sou a senhora Fraser, esposa do comissário e cirurgiã

de bordo. Preciso de seis galões de água fervendo, quando for possível, para limpar a latrina.Seus pequenos olhos azuis me apontaram com duas pistolas.

—Sou Aloysius Ou’Shaughnessy Murphy —informou— Cozinheiro de bordo. E precisoque tire os pés de meu solo recém esfregado. Não permito a presença de mulheres na minhacozinha.

Era vários centímetros mais baixo do que eu mas o compensava medindo quase um metro amais de circunferência; os ombros eram de lutador e tinha uma cabeça enorme sobre eles, sempescoço à vista. Completava o conjunto uma perna de pau. Dei um passo para trás comdignidade para falar com a segurança que me oferecia o corredor.

—Nesse caso, poderias enviar-me a água quente pelo marinheiro.—Talvez sim—disse— E talvez não.Depois, voltando-me as costas, dedicou-se a sua pata de cordeiro. Fiquei no corredor,

pensando. O ar estava impregnado pelo aroma empoeirado de sálvia, esfumaçado pela acritudede uma cebola. Era evidente que a tripulação do Artemis não subsistia só a base de porcosalgado e bolachas marinhas. Começava a compreender por que o capitão Raines tinha umfísico com forma de pêra. Voltei a assomar a cabeça, com cuidado de não pisar no interior.

—Cardamomo —disse com firmeza — Noz moscada, inteira, que foi seca este ano. Extratode anís fresco. Raiz de gengibre, dois dos grandes e sem manchas.

Fiz uma pausa. O senhor Murphy tinha deixado de picar e mantinha a faca imóvel sobre achapa.

—E meia dúzia de grãos de baunilha. Do Ceilão.Girou lentamente, secando as mãos no avental. Sua cara era larga e corada com tesos

bigodes, muito loiros, que se estremeceram como as antenas de um inseto.—Açafrão? —perguntou com voz rouca.—Meia porção —confirmei de imediato, dissimulando qualquer deixe de triunfo em minha

atitude.Respirou fundo; em seus olhinhos azuis faiscavam a luxúria.

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—Lá fora tem um pano de chão, senhora, se quiser limpar as botas para entrar.Esterilizada em uma das latrinas, tudo o que permitiu a água fervendo e a tolerância de

Fergus, voltei a meu camarote para lavar-me para o almoço. Não encontrei a Marsali que semdúvida estava com Fergus. Lavei as mãos com álcool e, depois de escovar-me o cabelo, cruzeio corredor para ver se existia a remota possibilidade de que Jamie quisesse comer ou beberalgo. Bastou-me um olhar rápido para eliminar a idéia. Marsali e eu ocupávamos o camarotemaior, o que significava que cada uma de nós contava com um espaço de um metro oitenta decomprimento, descontando as liteiras presas à parede, que mediam em torno de um metro esessenta. Minha colega cabia bem na sua, mas eu devia curvar-me como um camarão sobreuma torrada.

Jamie e Fergus ocupavam liteiras similares. Meu esposo jazia de costas, como um caracolem sua concha.

—Não te encontras muito bem, né? —observei compassiva.Abriu um olho como se dispusesse a dizer algo.—Não. —E voltou a fechá-lo.—Diz o capitão Raines que amanhã o mar estará mais sereno —o consolei, ainda que nesse

dia não estivesse muito agitado.—Não importa. Amanhã terei morrido… com um pouco de sorte.—Temo que não. —Sacudi a cabeça.—Disto não se morre ninguém… ainda que vendo-te

pareça mentira.—Não é por isso. —Fez um esforço para incorporar-se. —Claire. Cuida-te. Não te disse

antes… para não te preocupar.Mudou de expressão. Familiarizada com os sintomas do mal-estar corporal, aproximei a

vasilha justo a tempo.—Oh, Deus… —Esticou-se, pálido como o lençol.—O que não me disseste? —perguntei enquanto deixava a vasilha no solo.—Pergunte a Fergus. Diga-lhe que é ordem minha. E que Innes não foi.—Do que estás falando? —perguntei ligeiramente alarmada.As tonturas do mar não costumavam causar delírios.—Innes —repetiu—Não pode ser ele. O que quer matar-me.Percorreu-me um arrepio.—Estás bem, Jamie? —Inclinei-me para secar-lhe a cara. Não tinha febre.—Quem quer te matar?—Não sei. Pergunta-lhe a Fergus. A sós. Ele te dirá.Não tinha nem idéia do que aquilo significava mas se Jamie corria algum perigo não ia

deixá-lo só.—Ficarei contigo até que desça.—Não me acontecerá nada —disse— Vá, Sassenach. Não creio que tentem nada às claras.

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Aquilo não me tranqüilizou em absoluto.—Vá —repetiu quase sem mover os lábios.Algo se moveu no corredor, junto à porta do camarote. Distingui a silhueta do senhor

Willoughby com o queixo fincado nos joelhos.—Calma, honorável Primeira Esposa —me assegurou num sussurro.—Eu cuido.—Bem, obrigada. Saí a procura de Fergus bastante preocupada.Encontrei a Fergus com Marsali na coberta da popa. Mostrou-se pouco mais tranqüilizador.—Não estamos seguros de que alguém pretenda matar a milord —explicou. —O daqueles

tonéis pode ter sido um acidente; ocorreu mais de uma vez; também o incêndio do galpão.Ainda assim…

—Um momento, jovem Fergus —disse puxando-lhe a manga— Que tonéis? Que incêndio?—Ah! —exclamou com cara de surpresa— Milord não contou nada?—Milord está feito um trapo e só pôde me dizer que perguntasse a voce. Fergus sacudiu a

cabeça estalando a língua.—Sempre pensa que não mareará —disse. —Cada vez que sobe a um barco assegura que é

questão de vontade, que é sua mente quem manda e não se deixará dominar pelo estômago.Mas a três metros do cais já está verde.

—Não tinha me contado — reconheci divertida pela descrição. —Tonto!—Já o conheces, milady —sorriu Fergus.—Poderia estar agonizando e não dizer nada.—Oh, estes homens!—Milady?—Não disse nada. Falavas-me de uns tonéis e de um incêndio.—Ah, sim, claro. —Fergus retirou uma grossa mecha de cabelo.—Foi na casa de Madame Jeanne, no dia anterior a voltar a vê-los.O dia de minha volta a Edimburgo, poucas horas antes de encontrar a Jamie na tipografia,

ele tinha estado nas docas de Burntisland com Fergus e outros seis homens, aproveitando alonga noite invernal para recuperar vários tonéis de vinho Madeira camuflado como inocentefarinha.

—O Madeira não penetra na madeira tão rápido como outros vinhos —me explicou Fergus.—O conhaque não é possível passá-lo desse modo, sob os narizes dos aduaneiros, pois oscachorros o farejam de imediato.

—Que cachorros?—Alguns inspetores de Alfândegas têm cachorros adestrados para detectar contrabando de

fumo e conhaque. Tínhamos retirado sem problemas o Madeira e o levamos a um depósito, umdos que estão em nome de lorde Dundas mas que na realidade pertence a milord e a MadameJeanne.

—É isso! —Voltei a sentir o mesmo nó no estômago quando Jamie abriu a porta do bordel.

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—Assim que são sócios? —Em certo modo. —O moço parecia apenado—. Milord só cobracinco por cento, por conseguir o lugar e fazer os arranjos. Como impressor se ganha muitomenos do que com uma casa de prazeres.

—Não o duvido. —Depois de tudo, Edimburgo e Madame Jeanne tinham ficado atrás. —Continua com o relato. Alguém poderia degolar a Jamie antes que eu descubra por que.

—Por suposto, milady. —Fergus se desculpou com uma inclinação de cabeça.Uma vez escondido o vinho, os contrabandistas tinham feito uma pausa para reanimar-se

com um trago, antes de voltar a casa ao amanhecer. Dois dos homens tinham pedido sua partedizendo que precisavam do dinheiro para pagar dívidas de jogo e comprar provisões para afamília. Jamie foi então ao escritório do depósito, onde guardava um pouco de ouro. Enquantoos homens se entretinham com brincadeiras e risos, uma súbita vibração sacudiu o solo: umbarril de duas toneladas se tinha desprendido da pilha. —Milord estava cruzando frente aostonéis —explicou Fergus mexendo a cabeça. —Se não ficou achatado foi pela graça de Deus.Essas coisas ocorrem. Todos os anos, só nos depósitos de Edimburgo, morrem dez ou dozehomens em acidentes parecidos. Mas os outros acidentes…

Na semana anterior, um pequeno beiral cheio de palha tinha estourado em chamas enquantoJamie trabalhava dentro. Ao que parece, um lustre tinha caído entre ele e a porta, prendendo apalha, com o que Jamie ficou preso depois de um muro de fogo num local sem janelas. —Porsorte, o beiral era tão débil que milord pôde abrir um buraco a pontapés e sair ileso. —Fergussuspirou cansado.

Perguntei-me se teria montado guarda durante toda a noite— Esses incidentes puderam ter-se produzido por acaso, mas somando o de Arbroath…

—É possível que tenha um traidor entre os contrabandistas —disse.—Pois é, milady. —Fergus coçou a cabeça. —Mas milord está inquieto por aquele homem

que o chinês matou na casa de Madame Jeanne.—Pode ser um agente de Alfândegas que lhes tivesse seguido desde as docas até ali? Jamie

disse que não era possível, já que não tinha licença.—Isso não prova nada. O pior era o livrinho que levava no bolso.—O Novo Testamento? Não penso que tenha muita importância.—Poderia ser que sim, milady. Esse livrinho foi um dos que imprimiu pessoalmente milord.—Creio que começo a compreender —sussurrei.Fergus assentiu com gravidade.—Sempre se pode procurar outro esconderijo se os da Alfândega rastreiam o conhaque até o

bordel. Mas se os agentes da Coroa vinculam ao notório contrabandista Jamie Roy com orespeitável senhor Malcolm… —Abriu as mãos.

—Compreendes? Teriam provas para enforcá-lo dez ou doze vezes.—Quando Jamie disse que lhe convinha ausentar-se da Escócia durante um tempo, não só

estava preocupado por Laoghaire e Hobart MacKenzie —reconheci.Paradoxalmente, as revelações de Fergus me causavam alívio; não era a única culpada do

exílio de Jamie. Simplesmente tinha precipitado a crise.—Assim é, milady. Mas não estamos seguros de que um dos homens tenha nos denunciado.

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Nem de que alguém queira matar a milord. Se há um traidor entre nós, é um dos seis quemilord mandou trazer. Os seis estavam presentes quando caíram os tonéis e quando seincendiou o beiral; todos estiveram no bordel e também no caminho de Arbroath quandosofremos a emboscada e encontramos o policial enforcado.

—Todos sabem da tipografia?—Oh, não, milady! Milord pôs sempre muito cuidado em que não soubessem. Mas é

possível que um deles o visse pelas ruas de Edimburgo e o seguisse até a tipografia. —Sorriucom ironia.

—Milord não é homem que passe despercebido, milady.—Verdade —confirmei— Mas agora todos conhecem o verdadeiro nome de Jamie. O

capitão Raines o chama de Fraser.—Sim —reconheceu com um sorriso.—Por isso devemos averiguar se realmente navegamos com um traidor… e quem é.Naquele momento caí em conta de que Fergus já era um homem feito e direito… e um tanto

perigoso. Marsali tinha passado a maior parte do tempo contemplando o mar, como se nãoquisesse arriscar-se a conversar comigo. Ainda assim deve ter escutado tudo, pois vi que apercorria um arrepio. Provavelmente ao fugir com Fergus não tinha planejado embarcar comum assassino.

—Será melhor que a leves para baixo —disse— Está ficando azul. Não te preocupes —dissedirigindo-me a Marsali— demorarei um pouco para descer ao camarote.

—Aonde vai, milady? —Fergus me olhava com suspicácia. —Milord não ia querer que…—À cozinha.—À cozinha?—Quero ver se Aloysius Ou’Shaughnessy Murphy tem algum remédio contra a tontura —

disse.—Se Jamie continuar assim como até agora, pouco lhe importará que alguém o degole.Murphy, amaciado por umas raspas secas de laranja e uma garrafa do melhor clarim,

mostrou-se bem disposto. De fato, pareceu considerar como um desafio profissional manter umpouco de comida no estômago de Jamie. Dedicou horas inteiras à mística contemplação de suasespeciarias e sua despensa… mas não serviu de nada. Jamie não dava sinais de recuperação.Tinha a cor das natas rançosas e só abandonava sua liteira para arrastar-se até a latrina,custodiado dia e noite por Fergus e o senhor Willoughby. Felizmente nenhum dos seiscontrabandistas dava um só passo que se pudesse considerar ameaçador. Todos expressavamuma solidária preocupação pela saúde de Jamie e, sob atenciosa vigilância, tinham-lhe feitouma breve visita sem que surgissem circunstâncias suspeitas.

De minha parte, passava os dias explorando a embarcação e atendendo aos labores médicoshabituais: dedos achatados, abscessos e gengivas ensangüentadas. Murphy tinha tido agenerosidade de permitir-me triturar minhas ervas e preparar meus remédios num canto dacozinha. Marsali abandonava nosso camarote antes que eu acordasse e ao deitar-me aencontrava já adormecida. Quando nos encontrávamos na coberta ou à hora das refeições,mostrava-se silenciosamente hostil. Supus que se devia, em parte, ao natural afeto por sua mãe,mas também a ter que passar as noites comigo no lugar de Fergus. Em realidade, se permaneciaintacta (e assim eu acreditava, a julgar por sua atitude amuada) devia-se só ao respeito que

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Fergus dava às ordens de Jamie: como guardião de sua virtude, o padrasto era, naquelesmomentos, uma força descartável.

—O que, o caldo também não? —Estranhou-se Murphy. —Com esse caldo levantei a váriosdo leito de morte!

Pegou a sopeira que lhe devolvia Fergus e, depois de cheirá-la com ar crítico, me pôsembaixo do nariz. Em verdade, o dourado líquido tinha um cheiro tão apetitoso que encheuminha boca de água, ainda que pese ao excelente café da manhã consumido fazia uma hora.Com suas dimensões de barril e seu aspecto de pirata consumado, Murphy tinha fama de ser omelhor cozinheiro naval de Le Havre; ao menos, isso me disse sem a menor vaidade. Astonturas eram um desafio para sua capacidade; Jamie, prostrado já fazia quatro dias,representava um verdadeiro desafio.

—É um caldo estupendo, sem dúvida —o tranqüilizei— Mas não pode reter absolutamentenada.

Murphy grunhiu e começou a revolver suas provisões. Por fim me entregou uma bandeja. —… leite batido com whisky e um rico ovo… —ouvi enquanto me afastava pelo corredor.Esquivei cuidadosamente ao senhor Willoughby, que dormia junto à porta de Jamie como umcachorro fraldiqueiro. Mas ao entrar no camarote compreendi que, uma vez mais, ashabilidades culinárias do senhor Murphy resultariam vãs. Como qualquer homem enfermo,Jamie se tinha arrumado para que o ambiente fosse sumamente incômodo e deprimente. Apequena habitação estava úmida e fedorenta; na liteira, rodeada por um pano que não deixavapassar luz nem ar, amontoavam-se os cobertores pegajosos e a roupa suja.

—Levanta-te e ande —disse alegremente, deixando a bandeja para abrir a improvisadacortina, feita com uma camisa de Fergus.

Jamie entreabriu um olho.—Vá embora —disse antes de voltar a fechá-lo.—Trouxe algo para que tomes café da manhã.—Não quero ouvir falar de café da manhã.—Digamos que é o almoço, então. A estas horas, bem poderia ser. —Aproximei um banco e

pegando um pepino em conserva o aproximei do seu nariz.— Chupa isto.Abriu pouco a pouco o outro olho. Ainda que não dissesse nada, suas pupilas azuis se

pousaram em mim com uma eloqüência tão feroz que me apressei a retirar o pepino.—Essa liteira é muito pequena para voce —observei.—Verdade.—Não quere provar uma rede? Ao menos poderias esticar-te.—Não quero.—Disse o capitão que precisa de uma lista da carga… Quando puder fazê-la.Sem molestar-se em abrir os olhos, emitiu uma breve e irrepetível sugestão sobre o que

podia fazer o capitão Raines com sua lista. Peguei-lhe a mão, suspirando; estava fria e úmida eo pulso acelerado.

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—Bem —disse ao fim —, poderíamos provar algo que eu empregava com os meuspacientes. As vezes dava resultado.

Deixou escapar um gemido, mas não se opôs. Sentei-me no banco sem soltar-lhe a mão.Poucos minutos antes de operar costumava falar com os pacientes para tranqüilizá-los; tinhadescoberto que, se conseguia fazê-los pensar em algo que não fosse a operação, obtinham-semelhores resultados: sangravam menos, as náuseas provocadas pela anestesia eram mais levese cicatrizavam com mais celeridade.

—Vamos pensar em algo agradável — propus com voz grave e sedativa. —Pense emLallybroch, na colina que está junto à casa. Pensa nos pinheiros…, sentes seu cheiro? Pensa nafumaça que surge da chaminé nos dias despejados. Imagina que tens uma maçã na mão; sente-a, dura e redonda…

—Sassenach? —Olhava-me com intensa concentração.O suor fazia brilhar sua frente.—Sim?—Vá.—O que?—Quero que vás embora —repetiu com muita suavidade— se não queres que eu te quebre o

pescoço. Vá de uma vez.Saí com toda dignidade. O senhor Willoughby, do corredor, jogou um olhar pensativo ao

interior do camarote.—Não terias aqui aquelas bolas de pedra? —perguntei.—Sim —respondeu com certa surpresa.—Quer bolas saudáveis para Tsei-mi?Procurava-as dentro de sua manga, mas o detive com um gesto.—O que quero é despedaçá-las na cabeça, mas Hipócrates não me permite.O senhor Willoughby esboçou um sorriso desconcertado.—Que homem tão terrível! —exclamei com uma mistura de exasperação, piedade… e

medo. Uma coisa era cruzar o Canal da Mancha em dez horas. Mas que aconteceria depois dedois meses em alto mar?

—Cabeça de porco — disse o chinês. —É rato ou dragão?— Cheira como um zoológico inteiro. Mas por que dragão?—Um nasce em Ano de Dragão, Ano de Rato, Ano de Ovelha, Ano de Cavalo —explicou.

—Sendo diferente, cada ano, diferente pessoa. Sabe se Tsei-mi rato ou dragão?—Em que ano nasceu, queres saber? Foi em 1721, mas não sei a qual animal corresponde.—Parece-me rato. —O senhor Willoughby contemplou com ar pensativo o emaranhado de

cobertores, que se agitavam com certa inquietude. —Rato muito inteligente, muita sorte. Masdragão também, poderia ser. Muito vigoroso em cama, Tsei-mi? Dragões pessoas muitoapaixonadas.

—Não que eu saiba, ultimamente.

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O montão de roupa se moveu para cima e voltou a cair, como se seu conteúdo tivesse dado avolta.

—Tenho remédio chinês —apontou o senhor Willoughby observando o fenômeno. —Bompara vomito, estômago, cabeça, tudo faz pacífico e sereno. Olhei-o com interesse.

—De verdade? Me agradaria vê-lo. O provaste com Jamie? O pequeno chinês sacudiutristemente a cabeça.

—Não quer. Diz maldito, vomita se me aproximo.Olhamo-nos com perfeito entendimento.—Te direi uma coisa —disse, alçando a voz em dois decibéis: —as ansias secas, se se

prolongarem muito, podem ser perigosas.—Oh, muito danosas, sim —assentiu energicamente.—Irritam os tecidos do estômago e o esôfago.—De verdade?—Sim. Elevam a pressão arterial e tencionam demais os músculos abdominais, que podem

chegar a rasgar-se e provocar uma hérnia.—Ah.—Além disso —continuei, elevando a voz um pouquinho mais—, as vezes os testículos se

enredam dentro do escroto e se corta a circulação da zona.—Oooh! —Os olhos do senhor Willoughby se fizeram redondos.—Nesse caso — concluí—, a única coisa que se pode fazer é amputar antes de que se inicie

a gangrena.O chinês emitiu um som sibilante para expressar seu profundo horror. O montão de

cobertores, que se tinha estado bamboleando de um lado a outro durante toda a conversa, ficouimóvel. Olhei ao senhor Willoughby, que se encolheu de ombros. Cruzei os braços paraesperar. Depois de um minuto, um elegante pé descalço saiu entre os lençóis; pouco depois, seuniu ao seu colega.

—Malditos sejam os dois — disse com grave e malévola voz escocesa. —Venha aqui.Fergus e Marsali estavam inclinados sobre o balaústre da popa, ombro com ombro,

abraçados pela cintura. Ao ouvir nossos passos, o moço se voltou a olhar e afogou umaexclamação, persignando-se com olhos dilatados.

—Nem… uma… palavra, por favor —pediu Jamie com os dentes apertados. Fergus abriu aboca mas não pôde dizer nada. Marsali lançou um grito.

—Papai! Que te passou?—Não é nada —disse resmungão— Uma loucura do chinês para curar os vômitos.A garota se aproximou, alongando timidamente um dedo para tocar as agulhas que tinha

fincadas no pulso. Outras cintilavam na face interior da perna, acima do tornozelo.—E… dá resultado? —perguntou.—Como se sente?Jamie torceu a boca; começava a recuperar seu habitual sentido do humor.—Sinto-me como um boneco vodu que alguém tivesse enchido de alfinetes —respondeu. —

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Mas como estou meia hora sem vomitar, devo supor que dá resultado.Me de uma olhada. Depois, ao senhor Willoughby.—Não poderiam pôr-me a chupar um pepino mas creio que poderia tomar uma taça de

cerveja se a conseguir, Fergus.—Oh… Oh, sim, milord. Me acompanhas?—Devo indicar a Murphy que comece a preparar-te o almoço? — perguntei a Jamie.Jogou-me uma longa olhada acima do ombro. As agulhas de ouro lhe brotavam do cabelo

em dois grupos gêmeos, reluzindo ao sol da manhã como um par de diabólicos cornos.—Não abuses, Sassenach —advertiu. —Não acredita que vou esquecer-me disto. Testículos

enredados! Bah!O senhor Willoughby, sentado sobre seus calcanhares, contava algo com os dedos,

obviamente absorto em algum tipo de cálculo. Quando Jamie se fora, levantou os olhos.—Rato não —disse sacudindo a cabeça.—Dragão não, também não. Tsei-mi nasce Ano do

Boi.—É mesmo? —comentei observando os largos ombros e a cabeça vermelha, teimosamente

enfrentada ao vento—Bem apropriado!

CAPÍTULO 42

A CARA DA LUA

O trabalho de Jamie como comissário não exigia muito esforço. Depois de comprovar oconteúdo do porão e aferi-lo com as cartas de embarque, não tinha nada mais que fazer atéchegar a Jamaica. Enquanto assistia com entusiasmo às práticas de tiro que se realizavam diasim e dia não; ajudava a vistoriar os quatro enormes canhões e passava horas inteirasdiscutindo apaixonadamente com Tom Sturgis, o artilheiro. Durante aqueles estrondososexercícios, Marsali, o senhor Willoughby e eu nos colocávamos a resguardo sob o cuidado deFergus, excluído das práticas por faltar-lhe uma mão. Para minha surpresa, a tripulação me

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aceitou como cirurgiã de bordo sem maiores reparos. Fergus me explicou que nos pequenosnavios mercantes, até os barbeiros podiam cumprir essa função. Geralmente era a esposa doartilheiro, se este era casado, quem atendia as pequenas lesões e doenças da tripulação.

Éramos trinta e quatro pessoas a bordo e o trabalho mal me ocupava uma hora pelas manhãs,de maneira que tanto Jamie como eu tínhamos bastante tempo livre. À medida que o Artemisdescia para o sul, começamos a passar juntos a maior parte do tempo. Pela primeira vez desdeminha volta a Edimburgo podíamos conversar e recordar as coisas meio esquecidas quesabíamos um do outro, descobrir novas facetas que a experiência tinha polido e desfrutar damútua presença sem as distrações do perigo e da vida cotidiana. A lua se elevou como umenorme disco dourado; saiu velozmente da água para subir pelo céu como uma ave fênix emascensão. Jamie e eu a admirávamos do balaústre. Distinguiam-se sem dificuldade os pontosescuros e as sombras de sua superfície.

—Parece possível conversar com ela —disse sorridente.—Quando parti, um grupo de homens estava preparando para ir à lua. Terão chegado já?—Vossas máquinas voadoras, chegam tão alto? —estranhou-se Jamie.— Ainda que pareça

estar perto, não há muita distância? Um livro dizia que, talvez, tinha trezentas léguas entre aTerra e a lua. Estava equivocado? Ou talvez vossos… aeroplanos… podem chegar tão longe?

—É necessário um aparelho especial, chamado foguete — expliquei. —Em realidade, adistância é muito maior; quanto mais te afastas da Terra, mais se reduz o ar para respirar peloque é necessário levá-lo, junto à água e comida, numa espécie de tubos.

—Verdade? —Levantou os olhos com expressão maravilhada. —Como serão as coisas láem cima?

—Isso eu sei, porque vi fotografias. É rochosa e erma, sem vida mas muito formosa, combarrancos, montanhas e crateras; vêem-se desde aqui: são aquelas manchas escuras. —Assinalei a cara sorridente e dediquei um sorriso a Jamie. —Não se diferencia muito daEscócia… só não é verde.

Riu com a palavra «fotografias» e retirou do bolso o pequeno pacote de fotos que guardavacom muita prudência e que não retirava nunca se alguém pudesse vê-las, ainda que fosseFergus. Mas estávamos a sós e não corríamos perigo de que nos interrompessem.

—Crês que ela caminhará pela lua? —perguntou com suavidade, detendo-se na foto de Breeolhando pela janela com expressão sonhadora.

—Não sei. — disse sorrindo.Aproximei-me dele, sentindo o calor de seu corpo através do casaco e apoiei a cabeça em

seu braço enquanto olhava pouco a pouco as fotos.—É linda —murmurou. —E além disso, dizes que é muito inteligente.—Como seu pai — reconheci.Riu entre dentes, mas senti que ficou tenso ao ver uma das fotos. Brianna tinha uns

dezesseis anos e se banhava com seu amigo Rodney na praia. Pigarreou.—Isso… Esse moço…? Não que quisesse criticar, Claire, mas não te parece que isto é um

pouco… indecente?Contive o riso para dizer, com muita compostura:

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—Até pelo contrário, o traje de banho é bastante recatado… para a época. Escolhi a fotoporque supus que te agradaria… ver a tua filha o mais natural que pudesse.

A idéia pareceu escandalizá-lo um pouco mas seu olhar voltou irresistivelmente à foto.—Sim, bom, é adorável e me alegro de saber. Mas esse… esse moço…Pela primeira vez não me pareceu tão mau que Jamie não tivesse podido vigiar

pessoalmente a vida de Bree: ante ele, qualquer moço que tivesse a audácia de cortejá-la teriamorrido de susto.

Jamie respirou fundo. Dei-me conta de que reunia coragem para fazer-me uma pergunta.—Crês que é… virgem? — a pausa foi mal perceptível.—Claro — assegurei.Em realidade só achava possível mas não estava disposta a admiti-lo.—Ah… —exclamou aliviado.Mordi os lábios para não rir—Bem, estava seguro, mas… isto é… —Engoliu saliva.—Bree é muito boa garota —lhe disse estreitando-lhe o braço. —Ainda que Frank e eu não

nos déssemos muito bem, fomos bons pais.—Sim, eu sei. —Teve a delicadeza de mostrar-se envergonhado; guardou as fotos no bolso

e disse, sem olhar-me:—Está segura de ter feito bem em vir agora, Claire? Não é que eu não te queira comigo —

disse precipitadamente ao sentir que me colocava rígida. —Claro que te quero, por Deus!Quero-te tanto que as vezes sinto como se o coração me arrebentasse de alegria ao ver-te aomeu lado. Só que… agora Brianna está só: Frank morreu e você se foi; não tem um esposo quea proteja; não há um homem em sua família que se ocupe de casá-la bem. Não deverias terficado um pouco mais com ela?

Fiz uma pausa tratando de dominar meus próprios sentimentos.—Não sei —reconheci ao fim.Tremia-me a voz ainda que me esforçasse por controlá-la.—Olhe, em meus tempos as coisas não são como agora. —Isso já sei!—Não, não sabes. —Arranquei minha mão da sua com um olhar fulminante. —Não sabes,

Jamie, e não há forma de explicar-te, porque não acreditaria. Bree já é uma mulher adulta; secasará quando e como queira, não quando alguém o decidir por ela. Em realidade, nem sequerestá obrigada a casar-se. Tem uma boa educação e pode ganhar a vida; há muitas mulheres queo fazem. Não tem necessidade de um homem que a proteja.

—Se as mulheres não precisam um homem que as proteja e as ame, deve ser uma épocamuito triste. —Sustentou-me o olhar com idêntica fúria.

Respirei fundo, tratando de manter a calma.—Não disse que não o precisemos. —Apoiei-lhe uma mão no ombro. —Disse que ela pode

escolher. Não está obrigada a aceitar um homem por necessidade; pode fazê-lo por amor.Jamie começou a relaxar-se.

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—Voce me aceitou por necessidade.—E voltei por amor —assinalei. —Acreditas que te precisava menos porque podia manter-

me só?—Não —reconheceu baixinho.—Não acredito.—A verdade é que me preocupava a perspectiva de abandoná-la —sussurrei. —Ela mesma

me obrigou. Temíamos que, se esperássemos mais tempo, já não seria possível localizar-te.Mas me preocupava.

—Eu sei. Não deveria ter dito isso.—Deixei-lhe uma carta. Foi o único que me ocorreu… sabendo que talvez não voltaria a vê-

la.—Sim? Isso foi bom, Sassenach. Que lhe dizias?Soltei um riso tremulo.—Tudo o que me ocorreu. Conselhos de mãe, com a pouca sabedoria que tenho. E coisas

práticas: onde estava a escritura da casa e os documentos da família. E recomendações sobrecomo viver. Suponho que ela não as levará em conta e será muito feliz, mas ao menos saberáque pensava nela.

Minha querida Bree…Ali me detive. Não podia.—Controla-te, Beauchamp — murmurei. —Vê se acaba de uma vez com esta maldita carta.

Ainda que não lhe faça falta, também não lhe fará nenhum dano. Mas se precisa, assim será.Peguei a esferográfica e comecei. Não sei se chegarás a ler isto, mas é importante pô-lo por

escrito. Deixo aqui o que sei de teus avôs (os verdadeiros), teus bisavôs e tua história clínica…Escrevi durante muito tempo, cobrindo páginas atrás páginas. Minha mente ia serenando

pelo esforço e a necessidade de registrar a informação com clareza.

És minha menina e o serás sempre. Só compreenderás o que isso significa quando tiver umfilho, mas quero dizer-te: sempre serás tão parte de mim como quando compartilhavas meucorpo e te sentia mover-te. Sempre. Quando te vejo dormir penso nas noites em que teaninhava, nas vezes que me aproximava para escutar-te respirar. Passe o que passar, tudoestá bem no mundo, porque estou com voce. E como te chamava naqueles anos! Gatinha,abóbora, pomba, querida, doce, maritaca… Agora sei porque os judeus e os muçulmanos têmnovecentos nomes para denominar a Deus; ao amor não lhe basta com uma palavra.

Pisquei para descansar os olhos e continuei escrevendo com urgencia. Não me atrevia atomar-me o tempo necessário para escolher as palavras.

Me recordo tudo de ti: desde a pelugem dourada que, de recém nascida, cobria-te a testa,até a unha do dedão que rompeste no ano passado, quando brigou com Jeremy e fechaste comum pontapé a porta de sua caminhonete. Me parte o coração pensar que isso se acaba; já nãopoderei observar-te e detectar as pequenas mudanças; não saberei se deixarás de roer asunhas nem verei a forma definitiva de teu rosto. Não te esquecerei nunca, Bree, nunca.

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Provavelmente não há outra pessoa na Terra que saiba como era o dorso de tuas orelhasaos três anos. Quando me sentava ao teu lado para ler «Os cinco patinhos foram nadar…» ouo conto dos três porquinhos, aquelas orelhas se punham rosas de felicidade. Tinhas a pele tãolimpa e frágil que teria bastado um mau pensamento para deixar-lhe impressão. Já te dissecomo te pareces com Jamie. Mas também tens um pouco de mim; procure o retrato de minhamãe, o que está na caixa, e a pequena fotografia em branco e preto de tua avó com sua mãe.Verás que tua testa é larga e clara, como a delas e como a minha. Também conheço a muitosdos Fraser; creio que vas envelhecer bem se cuidar de sua pele. Encarrega-te de tudo, Bree.Quanto me agradaria poder cuidar-te e proteger-te durante toda a vida! Mas não posso,ficando ou indo. De qualquer modo, cuida-te; faça-o por mim.

As lágrimas começavam a molhar o papel; tive que me deter para secá-las antes queborrassem a tinta e deixassem ilegível a escritura. Sequei o rosto e segui escrevendo com maislentidão.

Deves saber, Bree, que não me arrependo. Apesar de tudo, não me arrependo. Agorapoderá imaginar o quão só me senti sem Jamie. És minha alegria, Bree. És perfeita emaravilhosa. Já te ouço dizer, nesse tom exasperado: <<É lógico que pensas assim: és minhamãe!» Sim, por isso o sei. Por ti tudo valeu a pena, Bree… ainda que tivesse sido pior. Fizmuitas coisas em minha vida, mas a mais importante foi amar ao teu pai e a voce. Elege umhomem que se pareça a teu pai. A qualquer dos dois.

Ante isso mexi a cabeça; podiam existir dois homens mais diferentes? Mas ao pensar emRoger Wakefield resolvi deixá-lo assim.

Uma vez que tenhas escolhido a um homem, não tente mudá-lo. Não se pode. Mas o maisimportante é não permitir que tente mudar a ti. Também não se pode, mas os homens sempre otentam.

Caminha sempre com as costas erguidas e trata de não engordar.Com todo meu amor,Mamãe.

Jamie, inclinado sobre o balaústre, tremia os ombros; não pude saber se era de riso ou deemoção.

—Creio que se cuidará muito bem — sussurrou. —Não importa quem a tenha gerado: nuncanenhuma garota teve uma mãe melhor. Dá-me um beijo, Sassenach. E acredite: não te mudariapor nada do mundo.

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CAPÍTULO 43

MEMBROS FANTASMAS

Desde a partida, Fergus, o senhor Willoughby, Jamie e eu vigiávamos com atenção os seiscontrabandistas escoceses. Como nenhum deles fazia o menor gesto suspeito acabei relaxandoainda que, a exceção de Innes, não deixei de mostrar-me reservada para eles. Innes era umhomem calado. Por isso não me surpreendeu descobri-lo uma manhã com a cara contraídanuma careta silenciosa e dobrado em dois atrás de uma escotilha, como se travasse algumsilencioso combate interior.

—Sente dores, Innes? —perguntei.—Ai! —Ergueu as costas sobressaltado, para voltar a agachar-se com um braço sobre o

ventre. —Hummmm.—Acompanha-me.O peguei pelo cotovelo para levá-lo ao meu camarote e tirei sua camisa para examiná-lo.

Apalpei seu abdome magro e peludo. As dores eram intermitentes, faziam-lhe retorcer-se comoum verme e depois desapareciam; dava a sensação de que era uma simples flatulência, mas eramelhor conferir. —Respira fundo —lhe pedi apoiando as mãos sobre seu peito. —Agora soltao ar. —Seu rosto adquiriu de novo a cor habitual.

Peguei uma das gordas folhas de pergaminho que usava como estetoscópio.—Quando foi a última vez que esvaziaste o ventre? —perguntei enquanto fazia um rolo com

o pergaminho.A cara magra do escocês se tornou da cor de fígado fresco. Murmurou algo incoerente e

reconheci a palavra «quatro».—Quatro dias? —inquiri prendendo-o sobre a mesa para impedir que escapasse. —Espere

um momento. Preciso escutar algo para assegurar-me.Tal como eu pensava, na curva superior do intestino grosso se ouvia claramente o rumor dos

gases presos. O cólon estava bloqueado; dali não surgia som algum.—Está com gases na barriga —expliquei.—E prisão de ventre—Sim, já o sei — murmurou Innes procurando freneticamente a camisa que lhe retinha

enquanto lhe passava um sermão sobre sua dieta.Não me surpreendeu saber que consistia quase por completo em carne salgada e bolachas—E as ervilhas secas? E a aveia? —perguntei surpresa.Innes não abriu a boca mas a pergunta desatou uma torrente de revelações e queixas dos

espectadores que se tinham amontoado no corredor.Como Jamie, Fergus, Marsali e eu comíamos com o capitão Raines, desfrutando dos

banquetes de Murphy, ignorávamos o quão deficiente que era a comida para a tripulação. Aoque parece, o problema era que Murphy reservava seus sabores culinários para a mesa docapitão, enquanto alimentar a tripulação lhe parecia mais uma tediosa obrigação do que umdesafio. Negava-se terminantemente a molestar-se em atos como embeber alfarroba ou ferver

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aveia. A teimosa insistência dos escoceses, que reclamavam por sua aveia, despertava suaintransigência irlandesa. A questão, que num princípio parecia um pequeno desacordo, podiaconverter-se num problema mais grave.

—Falarei com o senhor Murphy — prometi aos escoceses.E entreguei a Innes algumas ervas envoltas numa gaze.—Por enquanto, prepara uma infusão com isto e bebe uma xícara a cada mudança de turno.

Se amanhã não tiver obtido resultados tomaremos medidas mais potentes.Innes pegou o envoltório e, depois de inclinar a cabeça agradecido, fugiu a toda pressa.Depois de um inflamado debate com Murphy, que foi concluído sem derramamento de

sangue, lembramos que eu me encarregaria todas as manhãs de preparar o purê para osescoceses com a condição de que usasse só uma caçarola e uma colher, não cantasse enquantoo fazia e cuidasse de não sujar sua sagrada cozinha.

Na manhã seguinte, Jamie não se apresentou à mesa do capitão. Tinha saído na chalupa comdois dos marinheiros com intenção de pescar algo. Regressou ao meio dia, alegre, queimadopelo sol e coberto de escamas.

—Que fizeste com Innes, Sassenach? —exclamou sorridente. —Escondeu-se na latrina deestibordo. Diz que lhe ordenaste não sair de lá até que tenha cagado.

—Não lhe disse exatamente isso —expliquei —; disse-lhe que se até esta noite não tiveresvaziado o ventre, lhe faria uma lavagem.

Jamie deu uma olhada para a latrina.—Bem, esperemos que seus intestinos cooperem. Caso contrário, com uma ameaça como

essa, não sairá durante o resto da viagem.—Não te preocupes. Agora que todos estão comendo purê, seu ventre voltará a funcionar.Jamie me lançou uma olhada de surpresa.—Que estão comendo purê? Que significa isso, Sassenach?Expliquei-lhe como tinha originado a Guerra da Aveia e seu resultado final. —Deveriam ter

recorrido a mim —comentou enquanto lavava os braços.—Suponho que o teriam feito cedo ou tarde. Eu o descobri por acaso, porque encontrei a

Innes gruindo por trás de uma escotilla.—Hum… —disse enquanto tirava o sangue do pescado com pedra pómes.—Estes homens não são como teus arrendatários de Lallybroch, verdade? —comentei.—Não. —Submergiu os dedos na bacia de água, deixando pequenos círculos nos quais

boiavam escamas. —Eu não sou seu senhor. Só o que lhes pagam. —Mas te apreciam —protestei.

Corrigi ao recordar o relato de Fergus:—Ao menos, cinco deles.—Sim. MacLeod e os outros me têm afeto… cinco deles. E me apoiariam se fosse

necessário… cinco ao menos. Mas não me conhecem bem, nem eu a eles, exceto a Innes. —Arrojou a água suja pela borda e me ofereceu o braço. —Em Culloden morreu algo mais doque a causa dos Stuart, Sassenach. Bem, vamos comer?

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Na semana seguinte descobri o que diferenciava Innes do resto. Talvez arrebatado pelosucesso de meu purgante se apresentou voluntariamente em meu camarote.

—Me agradaria saber, senhora —disse cortesmente—, se existe algum remédio para algoque não tem.

—Como? —Devo ter feito cara de surpresa ante tal descrição, pois me mostrou sua mangavazia a modo de exemplo.

—O braço —explicou. — Não o tenho, como podeis ver. No entanto, as vezes me dói de ummodo horrível. Durante anos pensei que estava louco — confessou um pouco rubro e baixandoa voz.

—Mas estive falando com o senhor Murphy e me disse que lhe sucede o mesmo com aperna que perdeu. E Fergus costuma acordar com a sensação de que está metendo a mãoamputada num bolso alheio. —Sorriu e seus dentes cintilaram sob o bigode caído.

—Se é tão comum sentir um membro que já não existe, talvez se possa fazer algo parasolucioná-lo.

—Compreendo. —Esfreguei o queixo reflexionando.—É comum experimentar sensações numa parte do corpo que se perdeu. Chama-se

«membro fantasma». Quanto à solução… Tratei de recordar se existia alguma terapia.Enquanto pensava, para ganhar tempo perguntei:

—Como perdeu o braço?—Oh, por envenenamento do sangue —explicou indiferente.—Um dia fiz um pequeno corte na mão com um prego e se pôs purulento. Foi uma sorte,

porque isso evitou que me transportasse para os demais.—Os demais?Olhou-me com surpresa.—Os outros prisioneiros de Ardsmuir. Não vos disse nada Mac Dubh? Quando a fortaleza

deixou de ser prisão, todos os escoceses foram enviados às Colônias com contrato deservidão… exceto Mac Dubh, por ser um homem importante que não queriam perder de vista,e eu, que tinha perdido o braço e não servia para trabalhos pesados. A ele o levaram a outrolugar; a mim me perdoaram e me deixaram em liberdade.

—Como vê, se não fosse pela dor que me ataca algumas noites, teria sido um acidenteafortunado.

Com uma careta, fez gestos de esfregar o braço inexistente; de imediato se deteve,encolhendo-se de ombros como que para explicar o problema.

—Compreendo. Então estiveste na prisão com Jamie. Ignorava-o. —Eu começei a revirarprocurando o conteúdo de minha caixa de primeiros socorros, perguntando-me se algumcalmante serviria para este tipo de dor.

—Ah, sim. —Innes ia perdendo sua timidez e começava a falar com mais liberdade. —Teriamorrido de fome se Mac Dubh não tivesse vindo procurar-me quando o soltaram.

—Foi procurar-te? —Pelo canto do olho vi um reflexo azul. Era o senhor Willoughby quepassava. Chamei-o por senhas.

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—Sim. Quando o libertaram foi pesquisar se tinha voltado algum dos homens que enviarama América. —Encolheu-se de ombros; a falta do braço exagerava o efeito.

—Na Escócia não restava nenhum, exceto eu.—Compreendo. Senhor Willoughby, que se pode fazer com isto? Expliquei o problema ao

chinês, o qual tinha uma solução. Despojamos novamente a Innes de sua camisa. Enquanto eutomava notas, ele pressionou firmemente com os dedos certos pontos do pescoço e o torso.

—Braço está num mundo fantasma —explicou.—Corpo não; aqui, no mundo de cima. Braço quer voltar, não quer estar longe corpo. Isto…

An-mo… aperta-aperta… acalma dor. Mas também dizemos braço não voltar.—E como se faz isso? —Innes começava a interessar-se pelo procedimento.O chinês revolveu minha caixa de primeiros socorros, sacou um frasco de chille picantes

secos e pôs uma pequena quantidade num prato para esquentá-los.—Envia fumaça de mensageiro fan jiao a mundo fantasma, falar braço. Depois, sem pausa,

cuspiu copiosamente sobre o coto de Innes.—Ei, maldito pagão! —gritou o escocês com os olhos dilatados pela fúria.—Como te

atreves a cuspir-me?—Cuspo fantasma — corrigiu o senhor Willoughby retrocedendo precipitadamente para a

porta. —Fantasma medo saliva. Já não volta.Apoiei uma mão no braço são de Innes.—Dói agora o braço? —perguntei.Sua ira começou a ceder.—Bem… não —admitiu dirigindo um olhar carrancudo ao chinês.—Mas nem por isso vou permitir que me cuspas quando te dê a vontade, verme!—Oh, não— replicou o senhor Willoughby muito sereno. —Eu não cuspo. Agora tu cospe.

Assusta teu fantasma.Innes coçou a cabeça num gesto entre a ira e o riso.—Bem, que me crucifiquem —disse ao fim sacudindo a cabeça.E recolheu a camisa para pôr-se.—De qualquer modo, creio que da próxima vez tentarei com um chá, senhora Fraser.

CAPÍTULO 44

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FORÇAS NATURAIS

—Sou um tonto — disse Jamie.Falava com ar triste enquanto observava a Fergus e a Marsali conversando junto ao

balaústre.—Por que o dizes? —perguntei ainda que tivesse uma idéia bastante aproximada.—Passei vinte anos desejando ter-te na minha cama — disse, confirmando minhas

suposições. —E no entanto de tua volta disponho as coisas de tal forma que não posso beijar-tesem ter que me esconder por trás de uma escotilha. Além disso, cada vez que me viro mesurpreendo com esse cretino do Fergus olhando-me com rancor. Não posso culpar a ninguém,salvo a minha própria estupidez. Em que estava pensando quando tomei esta decisão? —inquiriu fincando um olhar fulminante no casal que se namorava com carinho.

—Bem, a verdade é que Marsali só tem quinze anos —disse.—Suponho que tratou de se comportar como um pai… ou a um padrasto.—Pois é. —Olhou-me com um sorriso de reprovação.—E minha recompensa por tão

abnegada atitude é que não posso tocar a minha própria esposa.—Oh, claro que podes tocar-me. —Peguei-lhe uma mão para acariciar-me suavemente.—O que não podemos é dar rédeas soltas a nossa paixão.—Em minha defesa tenho que dizer que minhas intenções eram boas —sussurrou

melancolicamente enquanto sorria.—Bem, já sabes o que se diz das boas intenções.—O que?—Que delas está cheio o inferno. —Estreitei-lhe a mão e tratei de retirar a minha, mas ele

não me permitiu.—Muito certo —disse. —Eu queria que a moça pudesse pensar no que ia fazer antes que

fosse tarde demais. E o resultado final de minha intervenção foi que passo acordado metade danoite, ouvindo Fergus gemer do outro lado do camarote. Além de suportar os sorrisos datripulação quando me vêem passar. —Como soam os gemidos? — perguntei fascinada.

Jamie pareceu um pouco aturdido.—Oh, bom… é só… —Fez uma breve pausa.— Tens idéia do que fazem os homens no cárcere, Sassenach, por estar tanto tempo sem

mulheres?—Posso imaginar.—Suponho que sim — reconheceu. —E seguramente acertas. Há três possibilidades:

utilizar-se mutuamente, enlouquecer ou arrumar-se só, compreendes? Voltou-se para o marcom um sorriso mal visível.

—Acredita que estou louco, Sassenach?—No geral, não —respondi sinceramente.

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—Não, não fui capaz. Ainda que de vez em quando pensasse que teria me agradadoenlouquecer —confessou pensativo. —Também não recorri à homosexualidade —adicionoucom uma careta irônica.

—Já o imagino.O desespero e a necessidade podiam levar a alguns homens que, em condições normais, se

teriam horrorizado ante a idéia de utilizar a outro. A Jamie, nunca. Conhecendo suasexperiências nas mãos de Jack Randall, era mais provável que enlouquecesse antes de recorrera tais atos.

—No cárcere não há nenhuma intimidade —disse. —Creio que isso me incomodava maisdo que os grilhões. Dia e noite, sempre à vista de alguém, sem outra maneira de proteger teuspensamentos que te fingir dormindo. Quanto ao outro… —Com um breve resfolegar passou ocabelo para trás da orelha. —Bem, um espera que se apague a luz, pois a única intimidade estána escuridão. Passei mais de um ano com grilhões, Sassenach.

Levantou os braços, separou-os meio metro e cortou bruscamente o movimento, como setivesse chegado a algum topo invisível.

—Só podia fazer isto. Era impossível mover as mãos sem que as correntes fizessem ruído.Se há algo que conheço muito bem, Sassenach — concluiu baixinho lançando um olhar aFergus,—é o ruído do homem que faz amor com uma mulher ausente.

Encolheu-se de ombros e me olhou com um semi-sorriso; sob seu humor zombador viespreitar as escuras recordações no fundo de seus olhos. Também vi uma terrível necessidade,um desejo tão forte que não tinha sucumbido à solidão, a degradação e a distância. Seu apetitesaía da medula dos ossos. E os meus pareceram dissolver-se. Sua mão estava a doiscentímetros da minha, longa e potente. «Se o toco —pensei—, me possuirá aqui mesmo, sobrea coberta.»

Como se me tivesse ouvido, pegou-me subitamente a mão apertando-me a coxa.—As vezes, Sassenach, seria capaz de possuir-te sob o mastro, com as saias erguidas até a

cintura, e ao diabo com essa maldita tripulação! Apertamo-nos a mão enquanto contestava comuma amável inclinação de cabeça à saudação do artilheiro. Sob meus pés soou a campainhaque nos chamava à mesa do capitão. Fergus e Marsali abandonaram seus jogos de amor paradescer e a tripulação iniciou os preparativos para a mudança de turno. Nós seguíamos de péjunto ao balaústre, olhando-nos aos olhos.

—O capitão vos envia suas saudações, senhor Fraser, e pergunta se pensas em comer comele.

—Era Maitland, o marinheiro, que cumpria seu recado mantendo uma prudente distância.Jamie respirou fundo e afastou os olhos de mim.

—Desceremos imediatamente —disse e, depois de acomodar o casaco sobre os ombros,ofereceu-me o braço.

—Vamos, Sassenach?—Um momento.Encontrei em meu bolso o que levava tanto tempo procurando. Tirei-o e o pus na sua mão.

Ficou olhando a imagem do rei Jorge m.—Este é o preço. —expliquei— Vamos descer para comer.

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No dia seguinte voltamos a passá-lo na coberta; o ar continuava gelado mas era preferível ofrio ao ambiente viciado dos camarotes. Demos nosso passeio habitual em torno da coberta. Apouca distância estava o senhor Willoughby, com as pernas cruzadas sob a proteção do mastro;tinha um pequeno recipiente de tinta negra junto à ponta da sapatilha e uma grande folha depapel branco ante si. A ponta do pincel tocava a página com a leveza de uma borboleta,deixando depois de si rasgos assombrosamente fortes. Ante meus olhos fascinados voltou acomeçar no alto da página descendo rapidamente. Ver a segurança com que realizava os traçosera como contemplar a um bailarino ou a um maestro de esgrima. Um marinheiro passouperigosamente perto e esteve a ponto de plantar seu enorme pé na nivea brancura do papel.Pouco depois, outro homem fez o mesmo, mesmo sobrando espaço para passar. O primeiro, aoregressar, pôs tão pouco cuidado que deu um pontapé no pequeno tinteiro. O segundomarinheiro se deteve com interesse.

—E essa mancha na nossa limpa coberta? Ao capitão Raines não lhe agradará —anunciou,saudando zombadoramente ao senhor Willoughby.

—Farás bem em limpar isso com a língua, pequeno, antes que eu o vingue.—Isso. Limpe com a língua. Imediatamente!O primeiro homem se aproximou um passo à silhueta sentada; sua sombra caiu sobre a

página como um borrão. O senhor Willoughby apertou os lábios mas não levantou os olhos.—Disse que… —começou o primeiro marinheiro em voz alta. Mas interrompeu, surpreso,

ao ver que um grande lenço branco caía sobre a mancha de tinta.—Perdoai, cavaleiros —disse Jamie. —Ao que parece, me caiu algo.Com uma cordial inclinação de cabeça dedicada à tripulação, inclinou-se para recolher o

lenço, deixando um leve borrão na coberta. Os marinheiros trocaram um olhar de dúvida. Aover o brilho dos olhos azuis sobre o branco sorriso empalideceram visivelmente.

—Não é nada, senhor — murmurou.—Vamos, Joe, que somos necessários na popa.Sem olhar para os homens que se afastavam nem ao senhor Willoughby, Jamie veio para

mim, guardando o lenço na manga.—Um dia muito agradável, concorda, Sassenach? —Jogou a cabeça para trás para respirar

profundamente.—Fizeste bem — disse enquanto apoiava no balaústre. —Posso oferecer meu camarote ao

senhor Willoughby para que escreva?Jamie ofegou.—Não; já lhe ofereci o meu ou a mesa do refeitório, quando está desocupada, mas prefere

estar aqui; é muito teimoso.—Suponho que há mais luz . —comentei dubitativa. —Mas não parece muito cômodo.—Efetivamente. —Jamie se penteou com os dedos, exasperado. —Ele o faz de propósito,

para molestar à tripulação.—Bem, se é o que procura, sem dúvida o consegue —comentei. —Mas para que?—É complicado. Suponho que é o primeiro chinês que conheces.—Não, mas suspeito que os de minha época são diferentes. Não costumam usar rabicho nem

pijama de seda, nem se preocupam com os pés das mulheres. Jamie se aproximou até que sua

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mão roçou a minha no balaústre.—Bem, tem a ver com os pés. Ao menos assim começou. Josie, uma das garotas de

Madame Jeanne contou a Gordon e, claro, ele contou a todo mundo.—Que diabos acontece com os pés? —inquiri com curiosidade. —Que tanto se importa com

eles?Jamie tossiu, um pouco ruborizado.—Bem, é um pouco…—Não podes dizer-me nada que me espante —lhe assegurei. —Vi muitas coisas nesta vida,

como sabes, e muitas delas contigo.—Suponho que sim —sorriu. —Bem, o caso é que, na China, às damas de alto berço lhes

cobriam os pés.—Ouvi falar disso — disse sem compreender a que vinha. —Supõe-se que desse modo os

pés permanecem pequenos e um tanto elegantes.Jamie voltou a ofegar.—Elegantes? Sabes como se faz?E procedeu a descrever-me.—Que repugnante! —protestei. —Mas que relação tem isso com…?Lancei uma olhada ao senhor Willoughby, que não parecia escutar-nos.—Digamos que este é o pé da menina, Sassenach —explicou esticando a mão direita para

frente. —Curvam-se os dedos para abaixo, até chegar a tocar no calcanhar. O que fica nomeio?

—O que? —perguntei surpresa.Jamie estendeu o dedo médio da mão esquerda e o afundou no centro do punho, num

inconfundível gesto.—Um buraco —disse sucintamente.—Não pode ser! Se faz por isso?Ele enrugou a testa.—Não é brincadeira, Sassenach. —Assinalou delicadamente ao senhor Willoughby com a

cabeça.—Ele assegura que para o homem é uma sensação extraordinária.—Mas… pequena besta pervertida!Jamie se lançou a rir ante minha indignação.—Bem, essa é a opinião geral da tripulação. Claro que com as mulheres européias, o efeito

não pode ser o mesmo mas suponho que… tenta-o de vez em quando. Começava acompreender a hostilidade geral que cercava o pequeno chinês. Meu breve trato com atripulação do Artemis tinha me demonstrado que os marinheiros, em geral, tendiam a serpessoas galantes, com um forte aspecto romântico no que diz respeito às mulheres; sem dúvidaporque passavam boa parte do ano sem companhia feminina.

—Hum — sussurrei lançando uma olhada suspicaz ao chinês. —Bem, isso explica a

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hostilidade dos homens, mas… e a sua?—Isso é mais complexo. —Jamie esboçou um sorriso irônico. —Para o senhor Yi Tien Cho,

do Império Celeste, os bárbaros somos nós.—Verdade? Tu também?—Oh, sim. Sou um sujo e fedorento gwao-fe, isto é, um demônio estrangeiro. Cheiro como

uma doninha… creio que isso significa huang-shu-lang, e tenho cara de gárgula — concluiucom alegria.

—Ele te disse tudo isso?—Não notaste que os homens miúdos são capazes de dizer qualquer coisa quando o álcool

os domina? Creio que o conhaque lhes faz esquecer seu tamanho; então se crêem grandes e secomportam como gigantes.

Olhou ao senhor Willoughby, que seguia escrevendo.—Quando está sóbrio é um pouco mais circunspecto mas isso não muda sua maneira de

pensar. Falta-lhe saber que, se não fosse por mim, alguém o mataria de uma vez ou o jogaria aomar qualquer noite.

—Mesmo lhe salvando a vida, dando-lhe trabalho e proteção ele te xinga e te tem por umbárbaro ignorante —comentei.—Que encanto!

—Que diga o que quiser. Na realidade, sou o único que o compreende.—Jura? —Pus uma mão sobre a de Jamie.—Bem, talvez não deixe de compreendê-lo —admitiu baixando os olhos. —Mas recordo-

me o que significa ter somente teu orgulho… e um amigo.Ao lembrar o que tinha me dito Innes, perguntei-me se o manco teria sido seu amigo em

outros tempos. Joe Abernathy tinha sido da mesma importância para mim.—Sim, no hospital… — comecei. Mas me interromperam uns gritos provenientes da

cozinha.—Inúteis! —gritou o irlandês. — Que estão olhando? Que dois de vocês joguem esta

porcaria fora!Pouco depois, um cheiro horrível me invadiu o nariz. Maitland e Grosman subiam com um

grande tonel para a coberta.—Por Deus, que é isso! —exclamei cobrindo a cara com um lenço.—Pelo cheiro, um cavalo morto faz bastante tempo —disse Jamie.Maitland e Grosman atiraram o tonel ao mar. Estava cheio de carne podre, coberta de

vermes. A tripulação se reuniu na coberta, atraída pelos gritos de Murphy. Naquele momentoapareceu Manzetti, um pequeno marinho italiano, carregando seu mosquete.

—Tubarões! —explicou com uma cintilação nos dentes. —São muito gostosos.A água turva tinha uma cor cinza mas divisei algo que se movia sob a superfície e o tonel se

agitou. A meu lado, o mosquete disparou com um pequeno rugido deixando uma nuvem depólvora e um grito geral. Quando meus olhos deixaram de lacrimejar distingui uma manchaparda que se espalhava em torno do tonel.

—Não serve — disse Manzetti baixando o mosquete. —Muito longe.

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—Me agradaria comer um bom bocado de tubarão — disse a pouca distância a voz docapitão.

— Poderíamos baixar um bote, senhor Picard. O capataz deu uma ordem a gritos e se lançouum bote onde iam o italiano com seu mosquete e mais três homens, equipados com ganchos ecordas. Quando chegaram, o tonel tinha se convertido nuns bocados de madeira ao redor dosquais se debatiam os tubarões e, por cima, uma ruidosa nuvem de aves marinhas. De repente,um focinho afiado emergiu apoderando-se de um pássaro e desaparecendo sob a água.

—Você viu? —perguntei assombrada.—Por minha avó, que dentes! —confirmou Jamie impressionado.—De pouco lhe servirão — disse Murphy sorrindo com selvagem gozo — quando lhe

meterem uma bala nesse maldito cabeção. Traz-me um desses bastardos, Manzetti, e terás umagarrafa de conhaque!

—Trata-se de uma questão pessoal, senhor Murphy? —perguntou Jamie em tom cortês. —Ou é puro interesse profissional?

—Ambas coisas, senhor Fraser, ambas coisas. —O cozinheiro golpeou a borda com a pernade madeira— Eles já me provaram —disse—, mas eu também já comi uns quantos.

O bote mal se divisava entre os adejos; os gritos das aves impediam ouvir qualquer coisaque não fossem os gritos do senhor Murphy.

—Bisteca de tubarão com mostarda! —uivava. —Fígado em iscas! Farei sopa com asnadadeiras e gelatina com os olhos embebidos em xerez, malditos bastardos!

Manzetti, ajoelhado na proa, apontou com seu mosquete deixando escapar uma nuvem defumaça negra. Foi então que vi o senhor Willoughby.

Ninguém o tinha visto saltar do balaústre, pois todos tínhamos os olhos postos na caçada.Mas ali estava, a pouca distância do bote, com a cabeça barbeada reluzindo no água e brigandocom uma ave enorme que agitava a água com as asas como se fosse uma batedeira. Alertadopor meu grito, Jamie o olhou com os olhos fora de órbitas. Antes que eu pudesse mover-me,subiu ao balaústre. Meu grito de espanto coincidiu com um rugido de surpresa de Murphy:Jamie tinha caído justamente junto ao chinês. Teve gritos e exclamações na coberta e um gritoagudo de Marsali. A cabeça vermelha de Jamie emergiu junto à do senhor Willoughby; umsegundo depois, seu braço cingia o pescoço do chinês. O senhor Willoughby não soltava a ave.Não sabia se Jamie queria resgatá-lo ou estrangulá-lo até que o vi impulsionar-se comenérgicos pontapés, arrastando para o barco a massa forcejante de ave e homem.

Gritos de triunfo no bote e um círculo vermelho intenso que se estendia no água; depois detremendas convulsões, um tubarão foi enganchado e erguido à pequena embarcação. Foi umcaos: os homens do bote tinham visto o que passava a pouca distância. Jogaram-se cordas porambos lados; os tripulantes corriam de popa a proa, nervosos, sem decidir-se entre ajudar noresgate ou na captura do tubarão. Por fim, Jamie e sua carga foram içados por estibordo esuspensos à coberta enquanto o tubarão capturado subia por bombordo, dando débeis rabadas.

—Deus ben… dito —ofegou Jamie baqueando como um pescado.—Está bem? —Ajoelhei-me ao seu lado para secar-lhe o rosto com a saia.—Deus —repetiu incorporando-se. Espirrou. —Temia que me devorassem. Esses idiotas do

bote remavam para nós com todos os tubarões atrás. —Massageou suavemente as panturrilhas.

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—Talvez seja muito sensível, Sassenach, mas sempre me aterrorizou a idéia de perder umaperna. Parece-me inclusive pior do que perder a vida.

—Preferiria que conservasses as duas coisas —disse.Jamie começava a tremer. Tirei-me o xale para pôr em seus ombros e procurei ao senhor

Willoughby com a vista. O pequeno chinês seguia aferrado a sua presa, um jovem pelicanoquase tão grande como ele. Não prestou a menor atenção a Jamie nem aos insultos que lhedirigia. Deu-se meia volta e se foi, gotejando água e protegido do castigo físico pelo bico deseu cativo, que afugentava a todo mundo.

—Que pretendia? —estranhei-me. —O senhor Willoughby me refiro.Jamie sacudiu a cabeça, soando-se o nariz com as mangas da camisa.—E eu que sei. Suponho que sua intenção era prender esse pássaro mas ignoro por que. Será

para comer? Murphy, ao escutá-lo, voltou-se da escadinha.—Os pelicanos não são comestíveis —assegurou mexendo a cabeça. —Tem gosto de

maresia, não importa como o cozinhe. Não sei que estavam fazendo por aqui: são avescosteiras. Provavelmente foi arrastado por algum vendaval. São bastante torpes, oscondenados.

Jamie se levantou rindo.—Bem, talvez só queira as plumas para escrever. Acompanha-me, Sassenach. Podes secar-

me as costas. Trinta segundos depois estávamos em seu camarote. As frias gotas que caíam deseu cabelo molhado me correram desde os ombros até o peito. Sua boca ardia de paixão. Asduras curvas de suas costas despediam calor sob a tela da camisa empapada.

—Atchim! —disse sem alento, soltando-me para arrancar as calças—. Por Deus, tenho-oscolados! Não posso tirar!

Puxou os cordões, gargalhando, mas a água lhe impedia desatar o nó.—Uma faca! —pedi. —Onde há uma faca?O mais parecido era um abridor de cartas de marfim. Voltou-se com um grito.—Por Deus, Sassenach, tenha cuidado! De nada te servirá tirar-me as calças se me castrares!Aqui está! —Revirando no caos de sua liteira, tirou o punhal brandindo com um gesto

triunfal. Pouco depois, as calças empapadas jaziam no solo. Levantou-me em desequilíbriopara tombar-me entre papéis enrugados e plumas espalhadas, levantou-me as saias e meseparou as pernas.

—Espera! —sussurrei—Vem alguém!—Muito tarde —disse sem alento. —Se não o fizer, eu morro.Me possuiu com um rápido e implacável impulso. Mordi-lhe o ombro com força; tinha gosto

de sal e pano molhado. Não emitiu nem uma queixa. Dois embates, três. Rodeei-lhe as nádegascom as pernas, afogando os gritos em sua camisa sem que me importasse quem pudesse entrar.Foi rápido e fundo. Jamie penetrou uma e outra vez e terminou com um profundo gemidotriunfal. Dois minutos depois se abriu a porta do camarote. Innes passou lentamente os olhos:da escrivaninha revolta até mim, decorosamente sentada na liteira, ainda que úmida edesalinhada, e de mim a Jamie, que se tinha sentado num banquinho, com a camisa molhadacolada ao corpo e o rubor que ia apagando pouco a pouco. Não disse nada, saudou-me com a

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cabeça e se inclinou para retirar uma garrafa de conhaque escondida sob a liteira de Fergus.—É para o chinês —me explicou. —Para que não se resfrie.Deteve-se na porta e fincou em Jamie uma olhada pensativa.—Poderia dizer ao senhor Murphy que te prepare um pouco de caldo, Mac Dubh. Dizem

que é perigoso esfriar-se depois de um grande esforço, não? Não é questão de que pegues umcatarro.

—Se assim fosse, Innes, ao menos morreria feliz.No dia seguinte descobrimos para que o senhor Willoughby queria o pelicano. Encontramos

ele na coberta de popa, com o ave pousada num baú; tinha-lhe atado as asas ao corpo com umatira de pano. O pássaro me fincou seus olhos amarelos e redondos, chasqueando o bico comoadvertência. Willoughby estava retirando um fio em cujo extremo se debatia um pequenocamarão. Desprendeu-o para mostrá-lo ao pelicano, dizendo-lhe algo em chinês. A ave oobservou com audácia, sem mover-se. Abriu-lhe o bico e lhe jogou o camarão ao bucho. Opelicano, surpreso, engoliu convulsivamente.

—Hao-liao —aprovou o chinês acariciando-lhe a cabeça. Ao ver que estava sendoobservado, chamou-me por senhas sem afastar os olhos do perigoso bico.

—Ping An —disse assinalando ao pelicano. —Aprazível.A ave ergueu uma crista de plumas brancas, como se erguesse as orelhas ao ouvir seu nome.Comecei a rir.—Verdade? Que vai fazer com ele?—Vou ensiná-lo a caçar para mim — explicou o chinês como se tal coisa fosse possível. —

Olhe.Olhei. Depois de pescar e fornecer ao pelicano vários camarões a mais e um par de peixes

pequenos, o senhor Willoughby tirou outra tira de pano suave de algum canto de suavestimenta e cingiu um extremo ao pescoço do ave.

—Não quero enforcar — disse —Mas não engole peixes.Atou ao colar um fio e, depois de indicar-me por senhas que me distanciasse, soltou

bruscamente a atadura que sujeitava as asas do animal. Surpreendido pela inesperada liberdade,o pelicano se cambaleou pelo baú, debatendo-se uma ou duas vezes. Por fim se levantou para océu com uma explosão de plumas.

Ping An, o aprazível, levantou vôo até onde lhe permitia o fio e se esforçou para elevar-semais ainda. Resignado começou a voar em círculos. O senhor Willoughby, vesgo pelo sol,girava lentamente na coberta, remontando-o como se fosse um cometa. Todos os tripulantesinterromperam suas tarefas para observar a cena. De repente, como disparado por uma besta, opelicano pregueou as asas e mergulhou, submergindo-se na água quase sem chapinhar. Aoemergir à superfície com ar de leve surpresa, o senhor Willoughby começou a rebocá-lo.Quando o teve novamente a bordo conseguiu convencê-lo, com certa dificuldade, para queentregasse sua pesca. Por fim permitiu que seu captor metesse cautelosamente a mão no buchoe extraísse um formoso atum. O senhor Willoughby dedicou um sorriso cordial a Picard, que oolhava boquiaberto e tirou uma pequena faca para abrir o peixe. Com a ave presa sob umbraço, afrouxou o colar com a outra mão e lhe ofereceu um bocado ainda palpitante, que PingAn pegou de boa vontade.

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—Seu — explicou o chinês, limpando calmamente o sangue e as escamas na perna dascalças.

—Meu. —Assinalou com a cabeça a metade do peixe que tinha deixado sobre o baú.Uma semana depois o pelicano estava completamente domesticado; se lhe permitia voar

livremente, com o colar posto mas sem fio que o segurasse. Ao voltar junto ao seu amo deixavaa seus pés os pescados reluzentes que trazia na pança. A tripulação, impressionada pela pesca edesconfiando do grande bico de Ping An, mantinha-se longe do senhor Willoughby. Quando otempo o permitia, o chinês seguia enchendo páginas junto ao mastro, sob os benignos olhosamarelos de seu novo amigo. Um dia me detive a observá-lo, fora de sua vista. Contemplavacom expressão satisfeita a página finda. Eu não podia ler aqueles caracteres mas o aspectoresultava muito agradável aos olhos. Por fim, com um suspiro, sacudiu a cabeça. Suave,delicadamente, pregueou a folha uma, duas, três vezes e se pôs em pé para aproximar-se dobalaústre. Com as mãos estendidas para a água a deixou cair. O vento a içou num redemoinho.O senhor Willoughby não parou a contemplá-lo e, voltando as costas ao balaústre, desceu paraos camarotes.

CAPÍTULO 45

A HISTÓRIA DO SENHOR WILLOUGHBY

Conforme avançávamos para o sul, os dias se tornavam mais cálidos; a tripulação se reuniadepois do jantar no castelo de proa, onde cantavam e dançavam ao compasso de um violino ouse dedicavam a narrar episódios. Quando a maioria das histórias já eram conhecidas pelatripulação, Maitland, o marinheiro, voltou-se para o senhor Willoughby.

—Por que foste embora da China, Willoughby? —perguntou-lhe com curiosidade.Ainda que ao princípio se fez rogar, o chines pareceu lisonjeado pelo interesse que levantava

a questão. Ante a insistência, concordou em narrar como tinha abandonado sua pátria, com aúnica condição de que Jamie atuasse como tradutor pois seu domínio de nosso idioma não eraadequado para a ocasião. Meu esposo, atendendo de boa vontade, sentou-se junto a ele com acabeça inclinada para escutar.

—Eu era mandarín —começou a traduzir Jamie—, mandarín de letras, dotado para aredação. Vestia uma túnica de seda bordada com muitas cores e, sobre esta, a toga de seda azuldos eruditos com a insígnia de meu cargo no peito e nas costas um feng-huang, uma ave defogo.

—Creio que se refere a uma fênix — explicou Jamie.—Nasci em Pequim, Cidade Imperial do Filho do Céu…—Assim chamam ao seu imperador — me sussurrou Fergus.—Cristo! —sussurraram muitos com indignação.

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—Desde muito jovem demonstrei certa habilidade para a redação. Foi bem como meu nomechegou a ouvidos de Wu-Xien, mandarín da Casa Imperial, o qual me instalou em sua casa esupervisionou minha educação. Cresci rapidamente, de tal modo que, antes de cumprir os vintee seis anos, me tinha outorgado uma esfera de coral vermelho para usar no chapéu. Entãochegaram maus ventos que semearam em meu jardim as sementes da desgraça. Pode ser quetenha recebido a maldição de um inimigo ou que, em minha arrogância, tivesse deixado defazer os devidos sacrifícios… ainda que não esquecia a reverência a meus antepassados; nuncadeixava de visitar sua tumba uma vez ao ano…

—Se suas redações eram sempre tão longas, o mais provável é que o Filho do Céu o fizesselançar ao rio quando lhe esgotasse a paciência —murmurou Fergus, cínico.

— Qualquer fosse a causa, minha poesia chegou aos olhos de Wan-Mei, a Segunda Esposado Imperador. Era uma mulher muito poderosa, pois tinha tido nada menos que quatro filhos;quando pediu que fizesse parte de sua casa, a solicitação foi aprovada imediatamente.

—E o que tinha de mau nisso? —perguntou Gordon inclinando-se para frente com muitointeresse. —Era uma oportunidade de progredir, não?

O senhor Willoughby compreendeu a pergunta, pois dedicou a Gordon um gesto afirmativoe continuou. A voz de Jamie retomou ao relato.

—Oh, a honra era inestimável; eu teria uma grande casa própria dentro das muralhas dopalácio e uma guarda de soldados para que escoltassem meu palanquim. Meu nome seriaescrito em letras de ouro no Livro do Mérito. »No entanto, para servir dentro da Casa Imperialhá um requisito: todos os servidores das esposas reais devem ser eunucos.

—Malditos pagões! Bastardos amarelos! —exclamou a tripulação horrorizada. —O que éum eunuco? —perguntou Marsali, desconcertada.

—Nada que deva preocupar-te, chérie —lhe assegurou Fergus rodeando-lhe os ombros comum braço.

E dirigindo-se ao senhor Willoughby com a maior simpatia:— Então fugiste, mon ami? Eu teria feito o mesmo, sem duvida.—Era uma desonra de minha parte recusar o pedido do Imperador. No entanto, ainda que

seja uma triste debilidade… estava apaixonado por uma mulher.O comentário provocou um suspiro de entendimento, pois quase todos os marinheiros são

uns loucos românticos. Mas o chinês se interrompeu puxando a Jamie pela manga.—Oh, equivoquei-me —corrigiu meu marido. —Não diz que estava apaixonado de uma

mulher, senão por Mulher, de todas as mulheres em geral. É assim? —perguntou olhando aoseu amigo.

O chinês assentiu, satisfeito.—Sim —continuou através de Jamie—, pensava muito nas mulheres, em sua graça e sua

beleza, como lótus boiando ao vento. Todos meus poemas foram escritos para a Mulher: asvezes dedicados a alguma em especial, mas com mais freqüência para a Mulher em si. Falavamdo sabor de damasco de seus peitos e o perfume cálido de seu umbigo ao acordar no inverno;do calor desse montículo que te enche a mão como um pêssego partido.

Fergus, escandalizado, tampou com as mãos os ouvidos de sua noiva mas o resto daaudiência se mostrava muito receptiva.

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—Fugi na Noite das Lanternas —continuou o chinês. —É um grande festival, durante o quala gente sai à rua. Não tinha perigo de que os guardas reparassem em mim. Justo depois doescurecer, quando as procissões percorrem toda a cidade, pus-me as roupas de um viajante…um peregrino… e abandonei a casa. Abri-me passo entre a multidão sem dificuldade, levandouma lanterna de papel anônima onde não figurava minha casa ou meu nome.

Mas no dia seguinte estive a ponto de ser pego. —Tinha-me esquecido das unhas —disse.Alongou uma mão, pequena e de dedos curtos com as unhas roídas até a carne. —Os

mandarins deixam as unhas longas; é um símbolo que lhes distingue por não estarem obrigadosa trabalhar com as mãos. As minhas tinham a longitude de uma falange. Na casa onde entreipara tomar um refresco, no dia seguinte, um servente as viu e correu a dizer ao guarda. Yi TienCho fugiu; para iludir aos seus perseguidores se escondeu numa vala úmida e permaneceuoculto entre o matagal. —Enquanto estava tombado ali cortei as unhas —disse sacudindo omindinho direito. —Esta tive que arrancar, pois tinha um “da zi” de ouro incrustado e não pudetirá-lo.

Depois de roubar as roupas de um camponês postas a secar numa mata e deixar em trocauma unha arrancada com seu caractere de ouro, continuou cruzando lentamente o país para acosta. Ao princípio pagava por sua comida com a pequena quantidade de dinheiro que levavaconsigo, mas nas ruas de Lulong tropeçou com um bando de ladrões que, ainda que lhe tenhampoupado a vida, tiraram-lhe o dinheiro. —A partir de então —disse—, comia o que podiaroubar ou passava fome. Por fim os ventos da fortuna mudaram; encontrei-me com um grupode boticários que ia à feira dos médicos, próxima da costa. Em troca de que lhes desenhasseestandartes para o posto e lhes redigisse etiquetas para exaltar as virtudes de suas poções,aceitaram levar-me com eles.

Uma vez na costa, escolheu o barco cujos marinheiros lhe pareceram mais bárbaros com aidéia de que com eles poderia chegar mais longe e escondeu-se no porão do Serafina, que iapara Edimburgo.

—Tinha intenção de abandonar por completo o país? —perguntou Fergus interessado. —Parece uma decisão desesperada.

— O Imperador mãos muito longas —respondeu o senhor Willoughby suavemente, semesperar a tradução. —Eu exílio ou morto.

Continuou com um ar reflexivo que Jamie imitou com exatidão:—É estranho, mas foi meu amor pelas mulheres o que a Segunda Esposa viu e amou em

minhas palavras. No entanto, possuir a mim e meus poemas destruiria para sempre o queadmirava. Emitiu um riso sufocado, de inconfundível ironia.

—Também não é essa a última contradição de minha vida. Por não renunciar a minhavirilidade, perdi todo o resto: minha honra, meu meio de vida e meu país. Não me refiro só àterra: ás ladeiras de nobres pinheiros, nem à Tartaria, onde passava meus verões, nem àsgrandes planícies do sul, com seus rios cheios de peixes, senão também à perda de minhaprópria identidade. Meus pais estão desonrados, as tumbas de meus antepassados destruídas ejá não há tocheiros que ardam ante suas imagens.

Perdi tudo. Aqui as douradas palavras de meus poemas não são senão cacarejos de galinhase os traços de meu pincel, as impressões de suas patas no pó. Vejo-me num país de mulherestoscas e fedorentas como ursos. Por amor à Mulher, vim a um lugar onde não há uma só

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mulher digna de amor!Neste momento, vendo as expressões carrancudas dos marinheiros, Jamie interrompeu a

tradução para acalmar ao chinês, posando sua enorme mão no ombro coberto de seda azul.—Sim, compreendo. E estou seguro de que todos os homens aqui presentes teriam feito o

mesmo nessa situação.Verdade, moços? — perguntou olhando acima do ombro, com assobrancelhas expressivamente arqueadas.

Sua força moral bastou para arrancar-lhes um apático murmúrio de aprovação. O senhorWilloughby, sem prestar atenção aos murmúrios nem aos olhares ameaçadores, seguia com avista perdida no horizonte. Seus olhos negros brilhavam pelas recordações e o álcool. Jamie selevantou, oferecendo-me a mão para ajudar-me a fazer o mesmo.

Então o chinês introduziu a mão entre as pernas. Num gesto desprovido de toda obcenidade,rodeou os testículos e os sustentou contemplando o vulto com ar de profunda reflexão.

—As vezes —sussurrou para si mesmo— creio que não valeu a pena.

CAPÍTULO 46

ENCONTRO COM O MASORPA

Fazia um tempo que tinha a sensação de que Marsali estava reunindo coragem para falarcomigo. Estava segura de que assim o faria, cedo ou tarde: apesar do que sentisse por mim, euera a única mulher a bordo. Fiz o possível para colaborar. Dava-lhe bom dia e lhe sorria comamabilidade. Mas teria que ser ela a dar o primeiro passo. Enquanto escrevia algumas notas emnosso camarote, uma sombra escureceu a entrada. Ao levantar os olhos vi Marsali. —Precisosaber algo —disse com firmeza. —Não gosto de ti e creio que sabes, mas diz papai que você éuma mulher sábia. E acredito capaz de responder-me com sinceridade, inclusive sendo umarameira.

Deixei a pluma.—Que precisas saber?Ao ver que não me aborreci, entrou no camarote e se sentou no único banquinho disponível.—Bem, está relacionado a bebês e a forma de tê-los.Ergui uma sobrancelha.—Tua mãe não te explicou?Respirou fundo com impaciência, enlaçando as sobrancelhas loiras com um gesto feroz.—Isso qualquer idiota sabe! Se deixas que um homem te ponha o membro entre as pernas,

nove meses depois o pagas muito caro. O que quero saber é como evitá-los.—Compreendo. —Observei-a com interesse.—Não quer ter filhos? Quando estiver devidamente casada, claro. Quase todas as jovens

querem filhos.—Bem —sussurrou lentamente, retorcendo um pedaço de seu vestido—, talvez queira mais

adiante. Se tivesse o cabelo escuro, como Fergus… —Pela cara lhe cruzou uma expressão

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fugaz, depois sua expressão voltou a endurecer-se.—Mas não posso.—Por que?Franziu os lábios com ar pensativo.—Por Fergus. Ainda não dormimos juntos. A única coisa que podemos fazer é beijar-nos de

vez em quando por trás das escotilhas… graças a papai e a suas malditas idéias.—E daí, o que tem isso com o fato de não querer um bebê?—Quero que ele goste de mim — disse sem rodeios. —O membro.Mordi a parte interior do lábio.—Ah… isso pode ter algo a ver com Fergus mas continuo sem entender. Marsali me olhou

com desconfiança, ainda que já sem hostilidade.—Fergus vos tem carinho.—Eu também a ele —respondi com cautela, perguntando-me onde nos levaria esta

conversa.—Conheço-o há muito tempo, desde que era um menino.Ela relaxou subitamente.—Ah, então estas sabendo. Sabe onde nasceu.De repente compreendi sua cautela.— O prostíbulo de Paris? Eu sei, sim. Ele te contou?Assentiu com a cabeça.—Faz muito tempo, na festa de Ano Novo.Bem, aos quinze, um ano pode parecer muito tempo. —Foi quando lhe disse que o amava. E

ele respondeu que também me amava mas que minha mãe não permitiria jamais essa aliança.Eu lhe perguntei por que, se ser francês não era tão mau. Nem todos podemos ser escoceses,verdade? E não acreditava que o fato de sua mão importasse muito. Depois de tudo, o senhorMurray tem uma perna de pau e mamãe lhe tem muito carinho. Mas me contestou que não erapor isso e me contou tudo sobre Paris. Disseme que tinha nascido num bordel e que foi batedorde carteiras até que conheceu a papai. Tinha uma expressão incrédula no azul de seus olhos.

—Talvez tenha pensado que me incomodaria —disse de modo estranho. —Tratou deafastar-se de mim e disse que não voltaria a ver-me. —Encolheu-se de ombros.

—Fiz-lhe mudar de opinião. Mas não é Fergus o que me preocupa. Ele diz que sabe comoatuar e que me agradará, exceto na primeira vez. Mas minha mãe me disse outra coisa.

— O que ela te disse? —perguntei fascinada.Entre as sobrancelhas apareceu uma pequena ruga.—Bem… não é o que disse… ainda que quando soube de Fergus disse que me faria coisas

horríveis por ter vivido com rameiras e por ser o filho de uma. Foi sua atitude. Estava corada ecom os olhos baixos.

—Quando sangrei pela primeira vez, ela me indicou o que devia fazer e me disse que eraparte da maldição de Eva. Eu lhe perguntei que maldição era essa e ela leu um trecho da Bíblia.Segundo São Paulo, as mulheres eram sujas pecadoras por culpa de Eva, mas ainda podem

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salvar-se mediante o sofrimento e a maternidade.—Nunca tive muito boa opinião de São Paulo — comentei.—Mas está na Bíblia! —exclamou horrorizada.—Como muitas outras coisas —assinalei. —Não importa. Continua.—Bem, mamãe disse que eu já tinha idade para casar. Que a obrigação de toda mulher era

fazer a vontade de seu marido, agradando ou não. Me disse com cara de tristeza. Tive asensação de que essa obrigação, fora a que fosse, era horrível e somando a do sofrimento e amaternidade…

Interrompeu-se com um suspiro. Esperei sem dizer nada.—Já não lembro meu pai. Quando os ingleses o levaram eu tinha só três anos. Mas recordo

sua relação com… com Jamie. Mordeu novamente os lábios. Não estava habituada a chamá-lopor seu nome.

—Pap… Jamie, digo… parece bom. A Joan e a mim sempre nos tratou bem. Mas quandotratava de abraçar a mamãe… ela o evitava como se tivesse medo dele; não lhe agradava que atocasse. No entanto, nunca vi lhe fazendo nada mau. Talvez era algo que lhe fazia na cama,quando estavam sós.

Marsali passou a língua pelos lábios, secos pelo ar marinho. Aproximei-lhe a jarra de água,me agradeceu com a cabeça e encheu uma xícara. Com a vista fixa no jarro de água, continuou:

—Imaginei que era porque mamãe tinha tido filhos e sabendo que era horrível, não queriadeitar-se com… com Jamie por medo a que lhe sucedesse outra vez. Bebeu um gole e meolhou de frente.

—Vi você com papai —disse. —Só por um momento, antes de que me descobrisse. E… eparecia que a agradava o que estavam fazendo na cama.

—Bem… sim—balbuciei. —Agradava-me.Soltou um rosnado satisfeito. —Hum! E voce gosta que a toque. Eu vi. Claro: você não teve

filhos. E me disseram que é possível não os ter, ainda que ninguém sabe muito bem como. Masvocê deve saber, já que é uma mulher sábia.

Inclinou a cabeça para um lado estudando-me.—Me agradaria ter um filho —admitiu—, mas se é preciso escolher entre o bebê ou que me

agrade a ficar com Fergus, fico com Fergus. Assim não terei bebês… se me explicar o quedevo fazer.

Respirei fundo, perguntando-me por onde começar.—Bem, na realidade tive filhos.—Verdade? E pap… Jamie o sabe?—Claro —respondi com dureza. —Eram seus.—Papai nunca me disse que tinha filhos.—Provavelmente porque não acreditou que fosse assunto seu. E não é —adicionei, talvez

com mais aspereza necessária. —A primeira morreu. Está sepultada na França. Nossa segundafilha já é uma mulher; nasceu depois de Culloden.

—E ele a conhece? —perguntou Marsali.

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Neguei com a cabeça, sem poder falar.

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—Que triste — sussurrou ela levantando os olhos. —Mesmo tendo filhos, bem, isso nãomudou as coisas? Hum! Claro que passou muito tempo. Não esteve com outros homensenquanto viveu na França?

—Isso não te diz respeito —repliquei com firmeza. —Quanto ao parto, algumas mulherespodem ficar diferentes sim, mas nem todas. De qualquer modo, há bons motivos para que nãotenhas filhos de imediato.

—Há algum modo…?—Variados. Infelizmente, a maioria nem sempre funciona — reconheci sentindo falta de

meu bloco de receitas e a confiabilidade da pílula. —Pegue para mim por favor uma caixinhaque há nesse armário. —Assinalei.

—Essa, sim. As parteiras francesas costumam preparar um chá de bagas e valeriana, mas éperigoso e não muito confiável.

—Sente sua falta? —perguntou Marsali bruscamente. Levantei os olhos de minha caixa deprimeiros socorros, surpresa. —Da vossa filha.

Pela falta de expressão em sua face, suspeitei que a pergunta estava mais relacionada comLaoghaire que comigo.

—Sim — respondi singelamente—, mas já é adulta e tem uma vida própria.Retirei da caixa um grande bocado de esponja esterilizada e, com um dos bisturis, cortei

com cuidado vários pedaços de uns sete centímetros de lado e voltei a revolver o conteúdo dacaixa até encontrar o frasquinho de azeite de atanasia. Ante os olhos fascinados de Marsali,embebi gentilmente um dos pedaços. —Esta é a quantidade de azeite que deves usar. Se nãotiver azeite, submerge a esponja em vinagre; em caso de necessidade pode usar até o vinho.Antes de ir-te para cama com um homem, enfie o pedaço de esponja bem lá dentro. Faça issoinclusive na primeira vez. Com uma só vez pode ficar grávida. Marsali assentiu com os olhosdilatados, roçando a esponja com o indicador.

—Sim? E… depois? Retiro ou…?Um grito urgente, acompanhado por uma súbita chacoalhada do Artemis, pôs fim a nossa

conversa. Algo estava sucedendo.—Te explicarei depois — disse entregando-lhe a esponja e o frasco.Saí para o corredor. Jamie estava com o capitão na coberta de popa, observando um grande

barco que se aproximava. Era três vezes maior que o Artemis, com três mastros e toda umaselva de cordames e velas, entre as quais umas pequenas figuras negras saltavam como pulgas.Depois de seu rastro boiava uma nuvem de fumaça branca, indício de que acabavam dedisparar um tiro de canhão.

—Disparam contra nós? —perguntei assombrada.—Não —respondeu Jamie carrancudo. —Só fizeram um disparo de advertência. Querem

abordar-nos.—E podem fazê-lo? —Minha pergunta estava dirigida ao capitão Raines.—Podem —disse ele. —Com este vento e em mar aberto não poderíamos escapar.—Que barco é?

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—Uma canhoneira britânica, Sassenach. Setenta e quatro canhões. Deve descer.Era uma má notícia. Ainda que a Grã-Bretanha já não estivesse em guerra com a França, as

relações entre ambos países não eram nada cordiais.—Que podem querer de nós? —perguntou Jamie ao capitão.Raines mexeu a cabeça. Em sua cara gorducha tinha uma expressão triste.—Estão escassos de tripulação; isso é evidente por suas velas —assinalou sem tirar os olhos

da canhoneira que se aproximava. —Podem alistar a todos nossos tripulantes de origembritânica… mais ou menos a metade de nossos homens, inclusive voce, senhor Fraser, a nãoser que prefiras se fazer passar por francês.

—Maldita seja… — conjurou Jamie baixo e me olhou com o cenho franzido. —Não te dissepara descer?

—Sim, disse — confirmei sem mover-me.Aproximei-me mais a ele, com os olhos fixos na canhoneira. Estavam baixando um bote.

Um oficial com jaqueta dourada e chapéu desceu por um lado.—Se alistarem aos marinheiros britânicos — perguntei ao capitão—, o que será deles?—Terão que servir no Marsopa. Assim se chama — explicou assinalando o mascarão de

proa, que representava um boto.—Talvez os deixem em liberdade quando cheguem ao porto… e talvez não.—Como? Podem seqüestrar os homens e obrigá-los a servir-lhes durante o tempo que se

lhes convenha?—Sim —confirmou o capitão.—E se o fizerem seremos nós quem teremos muita dificuldade para chegar a Jamaica, com a

tripulação reduzida à metade. Jamie me segurou pelo cotovelo. —Não levarão nem Innes nemFergus —me disse. —Eles te ajudarão a procurar ao jovem Ian. Caso se apoderem de nós, vá àcasa que Jared tem em Sugar Bay e inicie a busca. —Dedicou-me um breve sorriso.—Nosencontraremos ali.

—Mas poderias passar por francês! —protestei.—Não. Não posso permitir que levem meus homens e ficar aqui, escondendo-me sob um

sobrenome francês. —Mas…Ia alegar que os contrabandistas escoceses não eram «seus homens» nem tinham direito a

tanta lealdade mas calei, sabendo que era inútil.—Não importa, Sassenach —assegurou com suavidade. —escaparei, de um modo ou outro.

Mas creio que, por agora, nosso sobrenome deve ser Malcolm. Quando o bote se deteve aonosso lado, vi que o capitão Raines arcava as sobrancelhas num gesto de estupefação.

—Deus nos ampare! Que significa isto? —murmurou baixo.Nela tinha um jovem de uns vinte e poucos anos, abatido e com os ombros curvados pela

fadiga. O uniforme lhe ia muito grande.—És o capitão deste barco? —O inglês tinha os olhos vermelhos pelo esgotamento mas

distinguiu a primeira vista a Raines entre a cara fechada.—Sou Thomas Leonard, capitão suplente do Marsopa, barco de Sua Majestade. Pelo amor

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de Deus —suplicou com a voz rouca—, tens um cirurgião a bordo?Em baixo, frente a um copo de vinho do Porto oferecido com desconfiança, o capitão

Leonard explicou que o Marsopa padecia uma epidemia já fazia quatro semanas.—A metade da tripulação está enferma —disse limpando-se uma gota de carmim do queixo

sem barbear.—Já perdemos trinta homens e corremos perigo de perder muitos mais.—Vosso capitão morreu? —perguntou Raines.Leonard avermelhou-se um pouco.—O capitão e os dois oficiais principais morreram a semana passada. Também o cirurgião e

seu ajudante. Eu sou o terceiro oficial. Isso explicava sua assombrosa juventude e seunervosismo. —Se tens a bordo alguém com experiência em questões médicas… —Olhou comcara esperançosa ao capitão e a Jamie, que se mantinha em pé junto à escrivaninha.

—Eu sou a cirurgiã do Artemis, capitão Leonard —disse da porta. —Que sintomasapresentam vossos homens?

—Você? — jovem capitão voltou, boquiaberto, a cabeça para mim.—Minha esposa tem a rara arte de curar, capitão — confirmou Jamie com suavidade. —Se é

ajuda o que procura, aconselho responder a suas perguntas e obedecer suas indicações.Leonard piscou e assentiu com a cabeça.—Bem, a doença começa com fortes dores de barriga, vômitos e diarréias horríveis. Os

enfermos se queixam de dores de cabeça e lhes sobe muito a febre. Além disso…—Alguns têm urticarias no ventre? — interrompi.Sacudiu afirmativamente a cabeça.—Efetivamente. E há os que botam sangue pela bunda. Oh, perdão, senhora! —Desculpou-

se subitamente acalorado. —Não tive intenção de ofender-vos, mas…—Creio saber do que se trata — o cortei.Em mim começava a crescer uma sensação excitante: a de ter um diagnóstico confiável e os

conhecimentos necessários para atuar.— Para estar segura deveria examiná-los, mas…—Minha esposa terá grande prazer em assessorar, capitão —disse Jamie com firmeza—,

mas temo que não possa ir a vossa embarcação.—Estás certo? —O jovem nos olhou a ambos desesperado. —Se pudesse ver meus

homens…—Não —repetiu Jamie. Ao mesmo tempo eu respondia:—Sim, evidentemente! Fez-se um silêncio incômodo. Por fim Jamie se pôs em pé.—Nos dê licença, capitão Leonard? —E me retirou à força do camarote.—Estás louca? —

sussurrou sem soltar-me o braço.—Como te ocorre pisar num barco onde há peste? Arriscar tuavida, a da tripulação e a do jovem Ian, tudo por um punhado de ingleses!

—Não é a peste —disse esforçando-me.—E não arriscaria a vida. Solta o meu braço,

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maldito escocês! —Tratei de mostrar-me paciente. —Escuta. Não se trata da peste; pelasurticárias, estou quase segura de que é febre tifóide. Não vou cair enferma porque estouvacinada.

—Ah, sim? —exclamou cético.—Olhe, sou médica —insisti procurando as palavras adequadas. —Estão doentes e posso

ajudá-los. Eu… é que… tenho que fazer, isso é tudo!A julgar pelo efeito, a minha oratória parecia faltar-lhe eloqüência. Jamie ergueu uma

sobrancelha, convidando-me a continuar.—Quando me licenciei como médica fiz um juramento —expliquei. Elevou-se a outra

sobrancelha.—Um juramento? Que classe de juramento? Fechei os olhos e repeti o que recordava do

juramento hipocrático.—Assim se faz na irmandade dos médicos? —perguntou. —Te comprometes a ajudar a

quem o solicite, ainda que seja um inimigo?—Não há diferença se está ferido ou enfermo. —Estudei-lhe a cara para ver se me

compreendia.—Está bem — reconheceu lentamente.—Eu também fiz algum juramento uma vez ou outra. E nunca os tomei às pressas. —Pegou-

me a mão direita, procurando o anel de prata— Alguns pesam mais do que outros, claro —comentou observando-me.

—Eu sei —disse respondendo ao que pensava.Apoiei-lhe a outra mão no peito; no anel de ouro se refletiu um raio de sol.—Mas enquanto se possa cumprir com um juramento sem causar dano a outro…

Suspirando, inclinou-se para dar-me um beijo.—Não quero que faltes a ele. —Se ergueu com uma careta irônica. —Estás segura de que

essa sua vacina funciona?—Funciona — lhe assegurei.—Talvez fosse conveniente que te acompanhasse.—Não podes. Não estás vacinado e o tifo é muito contagioso.—Só crês que é tifo pelo que diz Leonard —objetou. —Não está segura de que se trate

disso.—Não —admiti.— Mas só há uma maneira de comprová-lo.Ajudaram-me a subir até a coberta do Marsopa por meio de um balanço suspenso na baixa

da maré. Aterrissei de forma brusca e escarrapachada e quanto me levantei me assombroudescobrir o tão sólida que era a coberta da canhoneira comparada com o bamboleante Artemis.

—Mostra-me onde estão, por favor —pedi.A ponte do navio era um espaço fechado, iluminado por lustres de azeite que balançavam

com o bambolear da embarcação; as fileiras de redes ficavam sumidas na sombra e manchadaspor remendos de luz. Pareciam bainhas balançando-se pelo movimento do mar. O fedor erainsuportável.

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—Preciso de mais luz —disse ao apreensivo guarda encarregado de acompanhar-me.O moço, com a cara coberta por um lenço, parecia assustado mas levantou seu lustre para

que pudesse olhar dentro da rede mais próxima. Seu ocupante afastou a cara com um rosnadoao ver a luz. Estava aceso pela febre e sua pele queimava. Quando lhe apalpei o ventre seretorceu como uma minhoca no anzol.

—Fique tranqüilo. — o acalmei.—Vou te ajudar; logo se sentirá melhor. Deixa que teexamine os olhos. Sim, isso.

Ao retirar a pálpebra, a pupila se encolheu ante a luz.—Por Deus, afasta essa luz! —ofegou.Febre, vômitos, choques abdominais, dor de cabeça.—Sente arrepios? —perguntei afastando a lanterna do guarda. A resposta não foi uma

palavra, senão mais um gemido afirmativo.Tratava-se de algo muito contagioso que não era malária, já que o barco tinha zarpado da

Europa e não do Caribe. Tifo, quase com toda segurança; como o transmitiam os piolhos,tendia a estender-se rapidamente naquele tipo de alojamento fechado. Os sintomas eram muitosimilares aos que via ao meu redor.

—É febre tifóide — informei ao capitão.—Sim? —Sua cara com olheiras estava cheia de apreensão.—Sabe como solucioná-la,

senhora Malcolm?—Sim, mas não será fácil. É preciso levar aos enfermos para cima, lavá-los bem e deitá-los

onde tenham ar fresco. Por mais, é questão de atenção; precisam de muita água. Água fervida:isso é importantíssimo. Aplicar-lhes panos molhados para baixar a febre. Mas o principal éevitar que se contagiem outras pessoas. Terá que fazer várias coisas…

—Faça-as—me interrompeu. —Colocarei a vosso serviço todos os homens sãos de quepossa prescindir. Dai-lhes as ordens necessárias.

—Bem —disse dando um olhar dubitativo ao meu redor.—Posso organizar o trabalho e explicar-vos como continuar mas a tarefa será árdua. O

capitão Raines e meu marido estão desejosos de seguir viagem.—Senhora Malcolm —manifestou seriamente o capitão: —vos estarei eternamente

agradecido por qualquer ajuda que possa prestar-nos. Temos muita pressa em chegar a Jamaicae, a não ser que possa salvar ao resto da tripulação desta maldita doença, nunca chegaremos.

Senti uma apunhalada de compaixão.—De acordo —suspirei.—Para começar, envia-me dez ou doze marinheiros sãos.

Aproximei-me do balaústre para agitar a mão para Jamie.—Voltas já? —gritou-me, fazendo buzina com as mãos.—Ainda não! —respondi— Preciso de duas horas! Levantei dois dedos por se não me

tivesse ouvido, mas vi de imediato que lhe apagava o sorriso: tinha-me entendido. Fiz pôr aosenfermos na coberta de popa e ordenei a minha equipe que lhes tirassem a roupa ensebada e oslavassem com água do mar. Enquanto desci à cozinha para indicar ao pessoal as precauçõesnecessárias com o manejo da comida. De repente percebi o movimento do barco. Saíprecipitadamente e descobri uma nuvem de velas despregadas ao alto; o Artemis ia ficando

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rapidamente para trás. O capitão Leonard o olhava em pé, junto ao timoneiro.—Que está fazendo? —gritei—Maldito cretino! Que está acontecendo aqui? O capitão me

olhou atordoado mas apertou os dentes com teimosia.—Devemos chegar a Jamaica imediatamente —disse. Se não tivesse tido as bochechas

irritadas pelo forte vento, lhe teria notado o rubor—Sinto muito, senhora Malcolm. Asseguro-vos que lamento atuar assim, mas…

—Mas nada! —exclamei furiosa— Vire! Lance a âncora, diabos! Não pode seqüestrar-medeste modo!

—Lamento profundamente —repetiu—, mas creio que precisamos de vossos serviçosconstantes, senhora Malcolm. Ainda que me esforçasse por demonstrar segurança, não oconseguiria. —Não vos aflijais, senhora —disse.—Prometi a vosso esposo que a Marinha vosproporcionará alojamento na Jamaica até a chegada do Artemis.

Ao ver minha expressão retrocedeu um passo, temendo que o atacasse…—Como que prometestes a meu esposo? —interpelei. —Isto significa que J… que o senhor

Malcolm vos permitiu seqüestrar-me?—Em… não, não foi assim. —O diálogo parecia resultar-lhe muito penoso. Tirou do bolso

um lenço nojento para secar a testa e o pescoço.—Temo que se mostrou muito intransigente.—Ah, pois sim intransigente! Bem, eu sou como ele! —Dei um pontapé no solo. —Se

acredita que vou ajudar, condenado seqüestrador, estais muito equivocado!—Obriga-me a dizer o mesmo que a vosso esposo, senhora Malcolm. O Artemis navega sob

bandeira francesa e com documentos franceses e mais da metade da tripulação está compostapor britânicos. Poderia ter obrigado a esses homens a prestar serviço aqui… e me fazem muitafalta. Permiti que ficassem em troca de vossos conhecimentos médicos.

—Portanto decidiste obrigar a mim a prestar serviço. E meu esposo aceitou esse… esseacordo?

—Não, não aceitou — replicou o jovem num tom bastante seco. —Foi o capitão do Artemisquem percebeu a força de meu argumento. Devo suplicar vosso perdão por esta conduta tãopouco cavalheiresca, senhora, mas a verdade é que estou desesperado —confessousingelamente. —Talvez seja esta nossa única oportunidade. Devo aproveitá-la.

Abri a boca para contestar mas voltei a fechá-la. Apesar da minha fúria, sua situação meinspirava certa simpatia.

—Está bem —disse entre dentes. —Está… bem! Não creio ter muitas opções. Me dê todosos homens de que possas prescindir para esfregar o entrepiso. Ah, tens um pouco de álcool abordo? Mostrou-se surpreso.

—Álcool? Há rum para os homens e vinho. Bastará isso?—Se não há outra coisa, terá que bastar. —Tratei de afastar minhas próprias emoções e

fazer-me cargo da situação. —Terei que falar com o comissário, suponho.—Sim, claro acompanha-me.Leonard fez manejos de descer as escadas mas se deteve abalado para ceder-me o passo…

isso porque na descida poderia expor indecorosamente meus membros inferiores. Antes de ter

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posto um pé ao final da escadinha, acima se ouviu uma confusão de vozes.—Não! Não pode incomodar ao capitão! O que tenhas que lhe dizer…—Solta-me! Se não falo com ele agora mesmo e será muito tarde!—Stevens! Que significa isto? Que passa aqui? — disse Leonard com aspereza.—Não sucede nada, senhor —disse a primeira voz.—É que Tompkins, aqui presente, está seguro de conhecer alguém que ia naquele barco. Ao

gigante ruivo. Diz que…—Agora não tenho tempo — espetou o capitão. —Diga isso ao primeiro oficial, Tompkins.

Me ocuparei depois desse assunto.Tinha voltado a subir parte da escada para escutar melhor. O jovem me observou com

atenção mas me mostrei inexpressiva.—Vos restam abastecimento suficientes, capitão? Terá que alimentar aos enfermos com

muito cuidado. Suponho que não terá leite a bordo, mas…—Oh, sim temos leite —informou animando-se.—Temos seis cabras das que se ocupa a

senhora Johansen, a esposa do artilheiro. Depois de resolvermos com o comissário, te levareiaté ela.

Depois de apresentar-me ao senhor Overholt, o capitão Leonard se retirou, recomendando-lhe que me prestasse todos os serviços possíveis.

Quem seria esse Tompkins? A voz me era completamente desconhecida e seu nometambém. O que saberia de Jamie? Que ia fazer o capitão Leonard com essa informação? Agorasó podia conter minha impaciência e, com a parte de minha mente que não estava ocupada porespeculações inúteis, determinar quais alimentos se podiam proporcionar aos enfermos. Erammuito poucas.

—Durante os primeiros dias bastará alimentar-lhes com leite e água fervida, mas à medidaque os homens comecem a recuperar-se precisarão de algo leve e nutritivo. Sopa, por exemplo.Poderia preparar uma sopa de pescado? Ou tens alguma outra coisa?

—Bem… —O senhor Overholt parecia intranqüilo.—Há uma pequena quantidade de figossecos, cinco quilos de açúcar, um pouco de café, bolachas e um grande tonel de vinho Madeiramas não se pode utilizar.

—Por que? —inquiri. Moveu os pés, atordoado.—Porque essas provisões estão destinadas a nosso passageiro.—Quem é esse passageiro? —perguntei sem compreender.O comissário pôs cara de surpresa.—O capitão não lhe disse? Levamos o novo governador da Jamaica.—Se o governador não está doente, que coma carne salgada —disse com firmeza. —Lhe

cairá bem. Agora faça o favor de levar o vinho à cozinha. Tenho muito que fazer. Com a ajudade um guarda marinho, um jovem baixo e robusto chamado Pound, fiz um rápido percurso pelobarco, confiscando implacavelmente provisões e mão de obra. Pound, que trotava ao meu ladocomo um pequeno bulldog, advertia com firmeza à tripulação que, por ordem do capitão, meusdesejos deviam ser satisfeitos de imediato por mais sem razão que pudessem parecer.

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O mais importante era estabelecer a quarentena. Quando acabassem de esfregar e ventilar oentrepiso, teria que instalar ali aos enfermos mas alterando a distribuição das redes com o fimde deixar um amplo espaço entre uma e outra; a tripulação não afetada teria que dormir nacoberta. Além disso, precisavamos instalações sanitárias adequadas.

—Senhor Pound —chamei. Sua cara redonda se voltou para mim do pé de uma escadinha.—Sim, senhora? —Qual é vosso nome de batismo, senhor Pound?—Elias, senhora —respondeu um pouco desconcertado —Se incomodaria que te chama-se

assim? Devolveu-me o sorriso com ar vacilante.—Ah… não, senhora. Talvez incomode ao capitão —adicionou cauteloso. —Não é costume

na Marinha, sabes?Elias Pound não podia ter mais de dezoito anos; quanto ao capitão Leonard, dificilmente

teria mais de vinte e quatro. Ainda assim, o protocolo era o protocolo.—Em público respeitarei estritamente os costumes da Marinha —lhe assegurei reprimindo

meu sorriso— Mas se vamos trabalhar juntos, será mais cômodo que use seu prenome. Eusabia, ainda que ele o ignorasse, o que tínhamos por diante: horas, dias, talvez semanas detrabalho e esgotamento que nos desafiaria os sentidos; então, só a força física e o instinto cego,além da liderança de um chefe incansável, manteria em pé a quem se ocupassem dos enfermos.

Eu distava muito de ser incansável, mas seria necessário manter a ilusão. Para isso precisariada ajuda de duas ou três pessoas às que pudesse treinar; atuariam como substitutos de minhasmãos e meus olhos; eles continuariam com a tarefa quando eu precisasse descansar.

—Quanto tempo faz que navegas, Elias? —perguntei.—Desde os sete anos, senhora. —Caminhava para trás, arrastando um grande baú. Deteve-

se para limpar a cara, sufocado pelo esforço. —Consegui um posto neste barco graças ao meutio, que é comandante do Triton. É minha primeira viagem com o Marsopa.

Abriu o baú, deixando descoberto uma variedade de instrumentos cirúrgicos manchados deóxido (ao menos, era de esperar que se tratasse de ferrugem) e um montão de frascos e jarras.Um dos frascos tinha rompido deixando um fino pó branco sobre o conteúdo do baú; pareciagesso.

—Isto é o que trazia o senhor Hunter, o médico, senhora. Vos servirá de algo? —Só Deussabe —disse dando uma olhada. —Já veremos. Pode levar ao entrepiso para outra pessoa,Elias. Preciso que me acompanhes para falar com o cozinheiro. Enquanto supervisionava alimpeza do entrepiso com água do mar fervendo, minha mente tomava várias rotas.

Em primeiro lugar, estava planejando os passos a dar para combater a epidemia. Dois doshomens, muito debilitados pela doença e a desidratação, tinham morrido durante o trasladopara a coberta. Outros quatro não passariam da noite. Os quarenta e cinco restantes variavamentre um prognóstico esperançoso e muito escassas possibilidades de sobreviver; com sorte ehabilidade poderia salvar à maior parte.Mas quantos casos mais se estariam incubando entre oresto da tripulação? Por ordens minhas, na cozinha se estava fervendo uma enorme quantidadede água: de mar para a limpeza e doce para beber. Fiz outra anotação em minha lista mental:devia ver à senhora Johansen, a das cabras, para que também se esterilizasse o leite.

No entrepiso tínhamos acumulado todo o álcool disponível para profundo horror do senhorOverholt. Podia ser utilizado em sua forma atual, ainda que teria sido melhor contar com álcool

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refinado. Existiria um meio para destilá-lo? Outra nota: conferir com o comissário. Por baixoda lista mental, cada vez mais longa, pensava vagamente no misterioso Tompkins e suainformação. Qualquer que fosse, não tinha provocado um giro para reunir-nos com o Artemis.Ou bem o capitão Leonard não o tinha tomado em sério ou estava muito desejoso de chegar aJamaica para permitir que algo entorpecesse seu avanço. Olhei pela borda com a vã esperançade distinguir uma vela mas o Marsopa estava só. O Artemis (e Jamie), tinham ficado muitoatrás.

Afastei de mim a súbita onda de solidão e pânico. Devia falar sem perda de tempo com ocapitão Leonard. Ele tinha a resposta ao menos de dois dos problemas que me preocupavam: apossível fonte do surto de tifo e o papel do desconhecido senhor Tompkins nos assuntos deJamie. Mas tinha assuntos mais urgentes.

—Elias! —chamei sabendo que estaria ao alcance de minha voz. —Vamos ver à senhoraJohansen e às cabras.

CAPÍTULO 47

O BARCO DA EPIDEMIA

Dois dias depois ainda não tinha conseguido falar com o capitão Leonard. Fui duas vezes aoseu camarote, mas ou não estava ali ou não podia atender-me. O senhor Overholt fazia opossível por evitar-me e para livrar-se de minhas insaciáveis demandas; encerrava-se em seucamarote com um saquinho de sálvia e hisopo atado ao pescoço para afugentar a epidemia. Eume sentia mais para cachorro pastor que para médica: passava o dia grunhindo nos calcanharesde todo mundo; já estava rouca pelo esforço. Mas ia obtendo resultados; entre a tripulaçãotinha uma nova sensação de esperança, um objetivo comum. Aquele dia tinham morrido quatrohomens e apareceram dez casos novos mas no entrepiso se ouviam menos gemidos de dor. Nacara dos que ainda estavam sãos era apreciável o alívio que proporciona fazer algo, o que querque seja. Até o momento não tinha conseguido descobrir a fonte do contágio. Se conseguisseencontrá-la e impedir que surgissem novos casos, talvez pudesse deter a epidemia numasemana.

Entre a tripulação tinha dois homens condenados a alistar-se por destilar licores ilegais.Consegui tê-los ao meu serviço e os pus a construir um destilador no que, para horror datripulação, converteríamos o rum em álcool puro para desinfetar. Na senhora Johansen, aesposa do artilheiro, encontrei inesperadamente uma aliada. Era uma sueca inteligente, de trintae tantos anos; só falava umas poucas palavras entrecortadas em nosso idioma e eu ignorava porcompleto o seu, mas tinha compreendido de imediato o que queria e se ocupava em fazê-lo. SeElias era minha mão direita, Annekje Johansen era a esquerda. Assumiu por si só aresponsabilidade de moer pacientemente a bolacha dura e misturá-la com o leite de cabrafervida para alimentar com a mistura resultante aos enfermos que já estavam o bastanterepostos para digeri-la.

O artilheiro se encontrava entre os enfermos mas felizmente era um dos casos mais leves; eutinha todas as esperanças de que se recobrasse, tanto pelo devotado atendimento de sua esposa

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como por sua robusta constituição.—Senhora, Ruthven diz que alguém está bebendo álcool puro novamente —Elias Pound

apareceu junto a mim, com olheiras e pálido; sua cara redonda tinha afinado notoriamente pelotrabalho. Era a quarta vez nos três últimos dias. Tanto o destilador como o álcool purificadoestavam submetidos a uma estreita vigilância mas os marinheiros, que tinham visto sua raçãodiária de rum reduzida à metade, estavam tão desesperados pela bebida que, de um modo ououtro, se as engenhavam para apoderar-se do álcool destinado à esterilização.

—Santo céu, senhora Malcolm — tinha sido a resposta do comissário ante a minha queixa—, os marinheiros são capazes de beber qualquer coisa: vinho avinagrado, pêssegos trituradose fermentados dentro de uma bota de borracha…, até soube de um que roubava os curativosusados e os embebia com a esperança de obter um pouco de álcool. Não, senhora: de nadaservirá dizer-lhes que o álcool puro os pode matar. E assim era. Já tinha morrido um dos quatroque tinham bebido e outros dois estavam num canto separado no entrepiso em estado de comaprofundo. Se sobrevivessem, o mais provável era que sofressem lesões cerebrais permanentes.

—Na realidade, viver num inferno flutuante como este deixaria lesões cerebrais a qualquerum —me queixei amargamente a uma andorinha que tinha pousado no balaústre. —Como senão fosse suficiente tratar de salvar do tifo à metade destes azarados, agora a outra metade quermatar-se com o álcool. Malditos sejam!

O oceano se estendia ao redor, completamente deserto. Para frente as Antilhas, onde seescondia o destino do jovem Ian. Atrás, Jamie e o Artemis tinham desaparecido fazia tempo. Eeu no meio, com seiscentos marinheiros ingleses enlouquecidos pela falta de bebida e umentrepiso cheio de intestinos inflamados. Tranqüilizei-me e fui com decisão para o corredor deproa. O capitão Leonard teria que falar comigo. Detive-me no vão da porta. Ainda não erameio dia mas o capitão dormia com a cabeça apoiada nos braços, que cobriam um livro aberto.Apesar da barba um pouco crescida, seu aspecto era juvenil. Dei a volta com intenção deregressar mais tarde. Ao fazê-lo rocei um montão de livros mau empilhados num armário. Oprimeiro caiu ruidosamente ao solo acordando de um sobressalto ao capitão. —¡Senhora Fra…Malcolm! —exclamou esfregando-se a cara e sacudiu a cabeça para acordar-se. —Que…? Emque posso servir-vos?

—Não era minha intenção acordar-vos mas preciso de mais álcool. Poderia utilizar rum puromas deve tratar de persuadir aos marinheiros de que não bebam o álcool destilado. Tivemosoutro caso de envenenamento. Se tivesse algum modo de que entrasse mais ar fresco noentrepiso… Vendo que o constrangia, interrompi-me.

—Compreendo —disse com ar estúpido enquanto se ia despertando. —Sim, darei ordens deinstalar uma mangueira para levar mais ar para baixo. Quanto ao álcool… rogo que mepermitas conferir com o comissário; agora mesmo não conheço o estado de nossas provisões.Respirou fundo, como se preparasse para gritar, quando recordou que seu garçom seencontrava prostrado no entrepiso. Então se ouviu o tilintar do sino.

—Com licença, senhora —disse com a cortesia recobrada. —É quase meio dia e devo irestabelecer nossa posição. Vos enviarei aqui o comissário, se não vos incomoda esperar.

—Obrigado —disse ocupando a cadeira que acabava de abandonar. De repente adicionei,movida por um impulso:

—Capitão Leonard? Voltou-se para mim com expressão interrogante. —Se não vos molestaa pergunta, quantos anos tens? Suas feições se endureceram. —Dezenove, para servir-vos,

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senhora. E desapareceu pela porta.Dezenove! Fiquei paralisada pela impressão. Acreditava ser muito jovem mas não tanto. Era

ainda um menino! Dezenove anos, a idade de Brianna. Encontrar-se assim, de repente, aocomando de uma canhoneira inglesa atacada por uma epidemia que tinha acabado com a quartaparte da tripulação… Senti que o medo e a fúria começavam a amainar dentro de mim; a formaque me tinha seqüestrado não era arrogância nem falta de tino, senão puro desespero.

O capitão Leonard tinha deixado o livro de bitácula aberto sobre a mesa. Nas últimas folhastinham caído umas gotas de saliva. Aproximei-me e vi uma palavra que me arrepiou o cabelo.Quando acordou, o capitão tinha dito, antes de corrigir-se: «Senhora Fra…» A palavra que metinha chamado o atendimento era «Fraser». Sabia quem era eu… e quem era Jamie. Levantei-me precipitadamente para passar o ferrolho, voltei a sentar-me e comecei a ler.

3 de fevereiro de 1767. Às oito badaladas nos encontramos com o Artemis, bergantim dedois mastros com bandeira francesa. Detivemo-lo para solicitar a ajuda de seu cirurgião, C.Malcolm, que veio a bordo e permanece conosco atendendo aos enfermos.

Então era C. Malcolm, sim? Não mencionava meu sexo, talvez por parecer-lhe irrelevanteou bem para evitar investigações sobre o decoro de seus atos. Passei à seguinte anotação.

4 de fevereiro de 1767. Recebi informação do marinheiro Harry Tompkins, segundo o qualo comissário do bergantim Artemis é um criminoso conhecido pelo nome de James Fraser, bemcomo pelos apelidos de Jaime Roy e Alexander Malcolm. O tal Fraser é um notóriocontrabandista acusado de motim por quem as Adunas Reais oferecem uma substanciosarecompensa. Como esta informação me foi comunicada quando já nos tínhamos separado doArtemis, não me pareceu conveniente perseguir ao bergantim, já que temos ordens de chegarquanto antes a Jamaica, a serviço de nosso passageiro. Não obstante, ao devolver-lhes seucirurgião nos apresentará uma grande oportunidade de deter a Fraser.

Ouvi passos no corredor; mal abri o ferrolho, o comissário chamou à porta. Não presteimuita atenção às desculpas do senhor Overholt: minha mente estava muito ocupada em tratarde encontrar um sentido à nova situação. Quem diabos era Tompkins? Não o tinha ouvidonomear nunca; no entanto, estava perigosamente bem informado sobre as atividades de Jamie.O qual me levava a duas perguntas; como era possível que um marinheiro inglês tivesse tantainformação…? E, quem mais a conhecia? Enquanto supervisionava a lavagem dos enfermos eo fornecimento de água açucarada e leite fervido, minha mente continuava trabalhando noproblema do desconhecido Tompkins, de quem só conhecia a voz. Por fim decidi perguntar; dequalquer modo, devia saber quem era eu e o fato de que se inteirasse que eu tinha estadofazendo averiguações sobre ele não pioraria as coisas.

O mais fácil era começar por Elias. Esperei até que acabasse o dia, confiando que a fadigaembotaria sua curiosidade natural.

—Tompkins? —Sua cara de menino se enrugou para voltar a despejar-se. —Ah, sim. É umdos marinheiros do castelo de proa, senhora.

—Quando subiu a bordo?

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—Oh, em Spithead, parece-me. Não, agora recordo! Foi em Edimburgo. —Esfregou o narizcom os nós dos dedos para sufocar um bocejo.—Isso mesmo, em Edimburgo. Recordo-oporque lhe obrigaram a alistar-se. Armou um barulho tremendo, proclamando que não podiamlhe obrigar já que trabalhava para sir Percival Turner nas Alfândegas. —O bocejo acabou porganhar a partida, fazendo-lhe abrir amplamente a boca. —Mas como não tinha nenhumdocumento escrito por sir Percival, não pôde fazer nada.

—Então era um agente de Alfândegas? —Isso explicava muitas coisas, sem dúvida.—Isso mesmo. Ah… digo… sim, senhora. —Elias tratava de manter-se desperto. Suas

pupilas olhavam fixamente o lustre que se balançava num extremo do entrepiso e começavam aacompanhá-la em seu bamboleio.

—Vá deitar-se, Elias —disse compassiva. —Já terminarei.—Oh, não, senhora! Eu nem tenho sono! —Alongou torpemente a mão para a garrafa que

eu segurava. Ainda que ao terminar estivesse quase tão cansada como ele, não pude conciliar osonho. Tompkins trabalhava para sir Percival e este sabia, sem dúvida, que Jamie eracontrabandista. Mas que mais tinha no assunto? Tompkins conhecia a Jamie de vista. Como?Sir Percival tinha tolerado as atividades clandestinas de Jamie em troca de seus subornos…mas era pouco provável que algum centavo tivesse chegado aos bolsos de Tompkins. Nessecaso… e a emboscada em Arbroath? Teria um traidor entre os contrabandistas? E se assim ofosse…

Minhas idéias começavam a perder coerência. Deitei de bruços, com o travesseiro apertadocontra o peito. Meu último pensamento foi que tinha que encontrar Tompkins. Finalmente foiTompkins quem veio a mim. Durante mais de dois dias, ocupada com os enfermos, não tivetempo para nada. No terceiro dia, como as coisas pareciam estar melhor, retirei-me aocamarote do cirurgião com intenção de lavar-me e descansar um pouco antes que chamassempara almoçar. Alguém chamou com delicadeza à porta e uma voz desconhecida anunciou:

—Senhora Malcolm? Aconteceu um acidente. Ao abrir a porta, encontrei-me ante doismarinheiros que sustentavam a um terceiro que se apoiava numa perna e estava pálido pela dor.

Me bastou uma olhadela para saber de quem se tratava. O ferido apresentava num lado dorosto as cicatrizes de uma queimadura; a pálpebra torta deixava entrever a pupila leitosa de umolho cego. Ante mim estava o marinheiro caolho que o jovem Ian acreditava ter matado. Oescorrido cabelo castanho estava amarrado num rabicho que lhe caía sobre um ombro.

—Senhor Tompkins — saudei com segurança.O olho são se alargou pela surpresa.—Ponha-o aí, por favor.Os homens depositaram seu colega num banquinho, junto à parede, e voltaram ao trabalho;

tinha muita escassez de tripulantes para permitir distrações. Com o coração acelerado, ajoelhei-me para examinar a perna ferida. Ele me conhecia sem dúvida alguma. A perna estava muitotensa. A ferida era impressionante mas não tão grave se fosse atendida corretamente: um talhoprofundo ao longo da panturrilha.

—Como fez isto, senhor Tompkins? —perguntei enquanto levantava a procura de álcool.Levantou os olhos, alerta e desconfiado.—Uma farpa, senhora —respondeu com tom anasalado que já tinha ouvido uma vez. —

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Estava de pé sobre uma verga que se rompeu. Sacou furtivamente a ponta da língua passando-se pelo lábio inferior.

—Compreendo. Estudei-o de esguelha, procurando a melhor maneira de abordá-lo. Emprocura de inspiração lancei uma olhada à mesa. E a encontrei. Enquanto pedia mentalmenteperdão ao espírito de Esculapio, peguei o serrote para ossos do finado cirurgião: um objetomaligno, quase meio metro de aço enferrujado. Depois de observá-lo com ar pensativo, apoieia borda dentada na perna ferida acima do joelho e elevei os olhos de forma encantadora paraaquele aterrorizado olho.

—Senhor Tompkins —disse—, falemos francamente.Uma hora depois, o marinheiro Tompkins era devolvido à sua rede com a ferida suturada e

vendada, tremendo de pés a cabeça, mas com sua humanidade ainda inteira. Eu também estavaum pouco tremula. Tal como tinha assegurado em Edimburgo, Tompkins era agente de sirPercival Turner e percorria as docas e os depósitos da costa alerta a qualquer indício deatividade ilegal. Seus relatórios podiam levar à detenção de algum pequeno contrabandista, aoque se surpreendia com as mãos na massa, mas os peixes gordos ficavam reservados ao juízoparticular de sir Percival. Em outras palavras: se lhes permitia pagar substanciosos subornospelo privilégio de prosseguir com suas operações.

—Sir Percival tem ambições, compreendes? Quer chegar a par do reino. E algo que podiaajudá-lo nesse sentido era uma espetacular demonstração de concorrência, prestando umgrande serviço à Coroa.

—Uma detenção capaz de chamar a atenção, não? Aaahh! Isso dói, senhora! Esta segura doque faz? —Jogou um olhar dubitativo à ferida. Estava limpando com álcool diluído.

—Estou segura —o tranqüilizei. —Continue.Suponho que um simples contrabandista não teria bastado, por mais importante que fosse.

Obviamente, não. No entanto, quando sir Percival soube que podia ter a um delinqüentepolítico ao alcance das mãos, esteve a ponto de estourar de entusiasmo.

—Mas o motim é mais difícil de provar que o contrabando. Os sediciosos são idealistas —explicou Tompkins mexendo a cabeça com desgosto. —Nunca se delatam entre si.

—E vocês não sabiam a quem estavam procurando?—Não, não sabíamos quem era o peixe gordo… até que um agente teve a sorte de encontrar

com um sócio de Fraser. Ele lhe contou quem era Malcolm, o impressor, e lhe disse seuverdadeiro nome. Então tudo ficou claro.

Meu coração se deteve por um instante.—Quem era esse sócio? —perguntei. —Não sei, juro, senhora, juro. Aahh! —exclamou ao

sentir a agulha na pele.—Não é minha intenção lhe fazer qualquer dano —lhe assegurei com voz de falsete. —Mas

tenho que suturar a ferida.—Ai! Ai! Vos digo que não sei! Se o soubesse lhe diria, ponho a Deus por testemunha!—Não o ponho em dúvida —disse concentrada em meus pontos.—Ah! ¡Basta, senhora, por favor! Um momento! Só sei que era inglês. Nada mais! Levantei

os olhos.

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—Inglês? —repeti inexpressiva.—Sim, senhora. Isso disse sir Percival.Me olhava com lágrimas tremendo-lhe nas pestanas. Apliquei o último ponto com toda a

suavidade possível e atei o nó da sutura. Levantei-me sem dizer nada e lhe entreguei uma partede conhaque de minha garrafa particular. Bebeu com gratidão, reconfortando-se de imediato.Seja por agradecimento ou pelo alívio de ter terminado com aquela dura prova, contou-me oresto da história. Em procura de provas para respaldar os cargos de sedição, tinha ido àtipografia da Carfax Close.

—Sei o que sucedeu ali —assegurei, voltando-lhe a cara para a luz para examinar ascicatrizes das queimaduras. —Dói ainda?

—Não, senhora, mas me doeu horrores durante algum tempo.Como estava incapacitado por suas lesões, Tompkins não tinha participado da emboscada de

Arbroath mas sabia («Porque ouviu dizer, se me entendeis») o que tinha sucedido. Sir Percivaltinha avisado a Jamie que teria uma emboscada para que não acreditasse que estava envolvidono assunto. Também sabia pelo misterioso colaborador inglês as mudanças pactuadas com obarco francês caso falhasse o desembarque; por isso dispôs que a armadilha ficasse na praia deArbroath.

—Mas e o oficial de Alfândegas que foi assassinado no caminho? —perguntei sem poderdominar um arrepio. —Quem fez isso? Dos contrabandistas só cinco puderam fazê-lo, masnenhum deles era inglês.

—Não foi nenhum deles, senhora. Foi seu próprio colega.—Que? —Dei um suspiro sobressaltada.—É certo senhora. Eram dois. Um deles tinha instruções.As instruções eram esperar para ver se algum dos contrabandistas conseguia escapar. Uma

vez tivesse chegado ao caminho, um dos servidores públicos de Alfândegas deixaria cair um nócorrediço sobre a cabeça de seu colega e o estrangularia sem perda de tempo. Devia deixá-lopendurado ali, como mostra da ira assassina dos delinqüentes.

—Mas por que? —exclamei horrorizada. —Que sentido tinha?—Não se dá conta? —Tompkins parecia surpreso, como se a resposta fosse óbvia. —Não

tínhamos conseguido retirar da tipografia provas que acusassem a Fraser de sedição. Tambémnão o pegamos nunca com mercadoria de contrabando. Um dos agentes acreditava saber onde aguardavam, mas em novembro desapareceu sem que voltássemos a ter notícias suas.

—Compreendo. —Engoli saliva, pensando no homem que tinha me atacado na escada dobordel. Que teria sido daquele “creme de menta”?

—Bem, já temos a sir Percival como um caso especial nas mãos: um dos contrabandistasmaiores da costa além de autor de material sedicioso de primeira linha. E também um traidorjacobita indultado, cujo nome causaria sensação em todo o reino. O único problema —encolheu de ombros— é que não tinha provas. Começava a apreciar a horrível lógica de tudoaquilo. O assassinato de um servidor público de Alfândegas em pleno cumprimento de seudever não só justificava a detenção de um contrabandista para submetê-lo à pena capital, comoprovocaria grande indignação pública. A aceitação que o contrabando ocorria no povo não lhesalvaria ante uma situação como aquela.

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—Vosso sir Percival parece ser um autêntico safado —comentei.—Bem, nisso tem toda razão, senhora. Não vou dizer o contrário. —E o servidor público

assassinado… suponho que era só o elemento adequado.Com um risinho sardônico, Tompkins espalhou uma fina gota de conhaque. Parecia ter

dificuldades para focar seu único olho.—Oh, muito adequado, senhora, em mais de um sentido. Mas não merece que o chores.

Foram muitos os que se alegraram de vê-lo pendurado… Sir Percival, entre outros.—Compreendo. —Terminei de vendar-lhe a panturrilha. —Chamarei alguém para que vos

leve a vossa rede —disse tirando-lhe a garrafa quase vazia. —Essa perna deve descansardurante três dias pelo menos; diga a vosso superior que não pode levantar até que tenha tiradoos pontos.

—Tudo bem, senhora. Obrigado por ser tão boa com um pobre marinheiro. Não seincomode por Harry Tompkins. Saiu ao corredor cambaleando e se voltou para piscar-meexageradamente o olho.

—O velho Harry sempre escapa, de uma forma ou outra.—Em que ano nasceu, senhor Tompkins? —perguntei.Piscou sem compreender.—Em 1713, senhora. Por que?—Por nada. Teria apostado minhas anáguas que 1713 era o Ano do Rato.

CAPÍTULO 48

MOMENTO DA GRAÇA

Durante os dias seguintes se estabeleceu uma rotina, como acontece nas circunstancias maisdesesperadas sempre que se prolongam em tempo suficiente. Lutar contra uma enfermidadesem medicamentos é como empreende-la a empurrões contra uma sombra.

Levava nove dias lutando e haviam morrido quarenta e seis homens a mais. Ainda assim melevantava todos os dias ao amanhecer, me salpicava com água os olhos irritados e saía, umavez mais, ao campo de batalha sem armas a mais a não ser a própria persistencia…e um tonelde alcool.

Houve algumas vitorias, mas até essas me deixavam um sabor na boca amargo. Descobri apossível fonte de contagio: um dos ajudantes da cozinha, um homem chamado Howard, quehavia prestado serviço no camarote dos aspirantes aos oficiais. Segundo os incompletosregistros do defunto médico, a primeira vítima foi um dos marinheiros que comiam ali. Houveoutros quatro casos, todos no mesmo setor, depois a enfermidade começou a estender-se. Os

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homens contagiados iam deixando a mortífera contaminação nas letrinas do barco.Bastou que Howard admitisse haver visto antes uma enfermidade assim para que o assunto

se esclarecesse. Mas o cozinheiro, escasso de ajudantes, se havia negado rodondamente aseparar-se de um homem tão valioso pela << loucas ideias de uma maldita mulher>>. ComoElias não pôde persuadí-lo, me vi obrigada a recorrer ao capitão em pessoa; Leonard,interpretando mal a natureza do conflito, se apresentou com vários marinheiros armados. Nacozinha houve uma cena muito desagradável. Por fim, Howard foi enviado ao calabouço, oúnico lugar onde a quarentena era segura, protestando e inquirindo desconcertado qual haviasido seu delito.

Quando saí da cozinha, o sol descia até o oceano, deixando um fulgor que pavimentava deouro o mar, como se fossem as ruas do paraíso. Me detive transfigurada pelo espetáculo.

A luz mudou e num instante ficou atrás, deixando-me o eco de sua presença. Em um atorefleto de reconhecimento, fiz o sinal da cruz e desci ao entrepiso.

Quatro dias depois, o Tifo chegou ao Elias Pound. Foi uma infecção virulenta: chegou aoentrepiso com os olhos pesados pela febre e fazendo gestos repelindo a luz; seis horas depoisdelirava. Ao amanhecer do dia seguinte apoiou sua redonda cabeça em meu seio, me chamoude Mãe e morreu em meus braços.

Passei o dia dedicada ao meu trabalho; ao cair o sol, acompanhei o capitão Leonardenquanto lia o oficio fúnebre. O corpo do marinheiro Pound foi entregado ao mar envolto emsua rede.

Aquela noite não jantei com o capitão; preferi sentar-me num canto coberto, junto a um dosgrandes canhões, onde pude contemplar o mar sem mostrar a cara a ninguém.

Todo médico destesta perder um paciente. A morte é o seu inimigo. Deixar-se arrebatar aalguém que nos havia sido confiado é ser derrotado, sentir a impotencia mais além do pesarcomum e dos horrores da morte. Aquele dia havia perdido vinte e tres homens entre a auvoradae o acaso.Elias foi só o primeiro.

Levantei uma mão inútil para descarregá-la com força contra a grade. O fiz uma e outra vez,quase sem sentir o ardor dos golpes, cheia de ira e dor.

- Chega! - ordenou uma voz atrás de mim. Um mão me segurou o punho impedindo quevoltasse a golpear a grade.

- Solta! - Lutei, mas aqueles dedos eram muito fortes.- Basta! - disse com firmeza. Me rodeou a cintura com o outro braço para afastar-me dalí -

Não atua desse modo. Ou terás danos.- Não estou dando a mínima! - Me debati mas acabei encurvando os ombros derrotada. O

que importava?Então me soltou. Ao girar me encotrei de frente um homem que nunca havia visto. Não era

marinheiro; suas roupas, ainda que enrrugadas e fedorentas por excesso de uso, eram muitofinas: o casaco e o Jaleco haviam sido feitos por medida e o encaixe que lhe rodeava o pescoçodevia ter vindo de Bruxelas.

- Quem diabo és? - perguntei atónita.Me entregou um lenço, enrrugado mas limpo.

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- Me chamo Grey - disse com uma reverencia cortes e um leve sorriso - Suponho que voceseja a famosa senhora Malcolm,cujo heroísmo elogia tanto nosso capitão.

Se interrompeu ao ver minha careta.- Perdoname - disse - Eu disse algo inadaquado? Mil desculpas, senhora. Não era minha

intenção ofende-la.Mexei a cabeça.- Ver morrer os homens não é um ato de heroísmo - disse. Tive que me interromper para

soar o nariz. - Estou aqui, isso é tudo. Obrigada pelo lenço.- Posso fazer algo mais por voce? - vacilava - Uma taça de água? Um pouco de conhaque,

talvez?- Futucou em seu casaco para tirar uma petaca de prata, na frente se via um escudo de

armas.Aceitei com um gesto de agradecimento; tomei um trago tão grande que acabei tossindo.- Obrigada - disse ao devolver a petaca - Tanto usar o conhaque para lavar os enfermos,

havia esquecido que também se bebe.Isso me trouxe a memória os sucessos do dia com tal realismo que me deixei cair na caixa

de pólvora.- Isso significa que a epidemia não cedeu? - perguntou em voz baixa.- Não posso dizer que não cedeu - Fechei os olhos, me sentia muito triste - Hoje somente

houve apenas um caso novo. Ontem foram quatro; anteontem, seis.- Parece prometedor - comentou - Se diria que estás derrotando a enfermidade.- Não. Somente estamos conseguindo reduzir o contágio. Mas não posso fazer

absolutamente nada pelos que já estão contagiados.- Caramba…- Se inclinou para me pegar a mão. A surpresa fez que eu não resistisse. - Eu

diria que voce esteve muito ativa para dizer que não fez absolutamente nada.- Claro que fiz algo! - espetei recuperando a mão - É que não serviu de nada!- Sem dúvida alguma…- Não - Descarreguei o punho no canhão - Sabes quantos homens eu perdi hoje?Vinte e tres! Estou em pé desde o amanhecer, afundada até os cotovelos em sebo e esterco,

com a roupa pegada ao corpo. E não serviu de nada! Eu não pude ajudar! Me ouviu? Nãoconsegui ajudar!

- Eu ouvi - disse com voz baixa - Me envergonho, senhora. Me deixaram no camarote porordens do capitão mas não tinha nem ideia das circunstancias que descreves. Pelo contrário euasseguro que teria saido para ajudar.

- Por que? Não tens nenhuma obrigação.- E voce tem? - Deu-se a volta e me olhou no rosto. Então ví que era um homem charmoso,

de uns trinta e oito anos, de feições bem delineadas e grandes olhos azuis dilatados peloassombro.

- Sim - disse

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- Compreendo.- Não, não compreendes, mas não importa. - Pressionei com força na frente com as pontas

de meus dedos, no lugar que o senhor Willoughby me havia indicado para aliviar a dor decabeça - Se o capitão quer que permaneças em vosso camarote, deverias faze-lo. Tenhosuficientes homens para que me ajudem com os enfermos. Só que… não tem remédio. -Conclui deixando cair as mãos.

- Compreendo - repitiu como se falasse com as ondas - Imaginei que vossa aflição se deviasomente a compaixão natural das mulheres mas vejo que se trata de algo muito diferente. - Fezuma pausa. - Eu fui oficial do exército. Sei o que significa ter vidas humanas nas mãos… eperde-las.

Se fez um silencio.- Tudo se reduz a reconhecer que não somos Deus - disse com suavidade - E a lamentar não

podendo ser.- Sim - confirmei.Vacilou como se não soubesse o que dizer e me segurou a mão para beija-la com

simplicidade.- Boa noite, senhora Malcolm - disse.Se afastou fazendo resonar seus passos na coberta.

Estava a uns metros de distancia quando um marinheiro, ao ve-lo, se deteve com um grito.Era Jones, um de seus camareiros.

- Milord! Não deverias ter saído do camarote! O ar da noite é mortal, e com a epidemia abordo…e as ordens do capitão…

Meu novo conhecido fez um gesto de desculpa.- Sim, sim, eu sei. Eu fiz mal em sair. Mas se permanecesse um momento mais no camarote

me teria asfixiado.- É melhor se asfixiar que morrer destas malditas diarréias, senhor, com vosso respeito -

replicou severo.Ao passar Jones ao meu lado, alarguei a mão para segurá-lo pela manga.- Oh, senhora Malcolm - disse apoiando no peito a mão estendida. - Por Deus! Perdoname,

mas pensei que eras um fantasma.- Me perdoa - respondi cortes. - Somente queria te perguntar quem é o homem com quem

estavas falando.- Ele? - Jones olhou por cima do ombro mas o senhor Grey já havia desaparecido -

Caramba, é lord John Grey, senhora, o novo governador da Jamaica. - Deixou uma olhadacensora até o lugar por onde o mencionado havia desaparecido. - Somente nos falta chegar aoporto com um político morto a bordo.- Depois de sacudir a cabeça com ar crítico, meperguntou? - Já vais dormir, senhora? Quer que eu leve uma taça de chá e alguns biscoitos?

- Não, Jones, obrigada. Vou dar uma última olhada nos enfermos antes de deitar. Nãonecessito de nada.

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- Bem, senhora. Em todo caso, se quiser é só me pedir.A qualquer hora. Os desejos de umaboa noite.

Se tocou ao cabelo caído sobre a frente e continuou de pressa em seu caminho.Me deixei junto a grade, respirando em grandes inspiradas o ar fresco.Subitamente me dei

conta de que, no fim de tudo, me havia concedido esse momento de graça para mim que haviarezado sem palavras.

- Tens razão - disse em voz alta, dirigindo-me ao mar e ao céu - Com um crepúsculo noshavia bastado. Obrigada.

E desci.

CAPÍTULO 49TERRA A VISTA!

É verdade o que dizem os marinheiros: se cheira a terra muito antes de ve-la.Apesar da larga viagem, o curral das cabras era um lugar muito agradável. Diariamente se

retiravam aos montes o esterco e Annekje Johansen trazia todas as manhãs uma braçada defeno seco. O cheiros a cabra, mesmo forte, era um pouco limpo e natural, bastante maisagradável que o fedor dos marinheiros, que não se banhavam.

— Komma, komma, komma, dyr get — gritou a mulher, atraindo uma cabra com umpunhado de feno; lhe arrancou um carrapato que esmagou contra a coberta.

- Há terra à vista? - perguntei.Assentiu com um sorriso largo e alegre.- Ah. Cheira? - indicou olfateando vigorosamente - Terra, ah! Água, erva. É bom, bom!- Necessito ir a terra - disse observando-a com atenção. - Sem dizer nada, secreto.- Ah? - Annekje me olhou - Não dizer a capitão, certo?- A ninguém - confirmei movendo afirmativamente a cabeça - Me podes ajudar?Pensou em silencio. Era uma mulher corpulenta e plácida. Atuava como suas cabras, que se

adaptavam alegremente a estranha vida a bordo, disfrutando o feno e a cálida companhia. Coma mesma capacidade de adaptação, fez um sereno gesto de assentimento.- Ajudo.

Passado do meio dia ancoramos em frente a ilha de Watlings, chamada assim, segundo medisse um guarda marinho, em homenagem a um famoso corsário do século passado. A observeicom curiosidade; era plana, com grandes praias brancas e palmeiras baixas. Em outro tempohavia recebido o nome de San Salvador e provavelmente foi o primeiro que CristóvãoColombo viu do Novo Mundo.

Foi somente uma pausa para renovar nosso abastecimento de água antes de continuar aviagem até Jamaica. Faltava aproximadamente uma semana de viagem e , com tantosenfermos, os grandes toneles de água doce estavam quase vazios.

San Salvador era uma ilha pequena, mas interrogando com prudencia meus enfermos,descobri que seu porto principal atraía bastante tráfico marinho. Mesmo não sendo o lugarideal para uma fuga, não tinha a inteção de aceitar a «hospitalidade» da Marinha em Jamaica,

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onde serviria como isca para que Jamie fosse detido.Os tripulantes que não estavam ocupados se aproximaram a borda para conversar e

contemplar a ilha. Distingui um rabinho largo e loiro agitado pela brisa: o governador tambémhavia abandonado a reclusão para expor seu rosto pálido ao sol tropical.

Pensei em me aproximar, mas não tinha tempo.Annekje já havia ido buscar a cabra. Mesequei as mãos nas anáguas fazendo os últimos cálculos. As palmeiras estavam a uns duzentosmetros. Se conseguisse descer pela prancha e entrando pela selva, teria bastante possibilidadesde escapar.

Annekje abordou ao centinela com sua rara mescla de sueco e ingles; assinalava a cabra quelevava em braços e na costa, insistindo que o animal necessitava de erva fresca. O marinheiroparecia compreender mas se mantinha firme.

- Não, senhora - disse com respeito - ninguém pode desembarcar, exceto o grupo que vaicarregar a água. Ordens do capitão.

Eu me mantinha fora de seu campo de visão, observando a discussão. Ela manobrava semdeixar de discutir, obrigando o marinheiro a retroceder uns passos para que eu pudesse passarpor detrás dele. Quando o levasse bastante longe da prancha, soltaria a cabra para que,naperseguição, contasse com uns dois minutos para eu escapar.

Passei o peso do corpo de um pé ao outro. Ia descalça, desse modo me seria mais fácil correrpela areia. O centinela se moveu, dando-me as costas. Necessitava um passo mais, só mais umpasso.

- Belo dia, verdade, senhora Malcolm?Mordi a lingua.- Muito belo, capitão Leonard - disse com dificuldade. Sua voz pareceu me deter o coração.- Ter chegado até aqui é uma vitória tanto sua como minha, senhora - disse - Sem voce,

duvido que o Marsopa houvesse alcançado à terra - Me tocou timidamente a mão.Voltou a sorrir, um pouco mais amável.- Sem dúvida conseguiu sair do aperto, capitão. Pareces ser muito competente.Se deitou a rir, corado.- Bem, em grande parte o mérito são dos marinheiros, senhora; devo reconhecer que se têm

comportado com nobreza. E seus esforços, naturalmente, se devem a suas habilidades médicas.- Me olhou com um brilho severo nos olhos pardos. - Não posso expressar o que sua ajuda temsido para nós, senhora. Vou…vou informar ao governador e ao sir Greville, o Comissário Realde Antigua. Escreverei uma carta como sincero testemunho dos esforços que tens feito por nós.Talvez…talvez sirva de algo. - Baixou os olhos.

- Para que, capitão? - Ainda tinha o coração acelerado.- Não ia dizer nada, senhora, mas a honra me impede guardar silencio. Conheço vosso

nome, senhora Fraser, e seu quem é vosso esposo.- É mesmo? - Fiz o possível para dominar minhas emoções. - E quem é?O rapaz pareceu surpreendido.- Caramba, senhora, é um criminoso! Palideceu um pouco - Por acaso não sabias?

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- Eu sabia, sim - repliquei secamente - Mas porque me disse?Passou a lingua pelos lábios mas me sustentou um olhar corajoso.- Quando descobri a identidade de vosso esposo fiz uma anotação no livro de bitácora.

Agora eu lamento mas já é muito tarde. A informação já tem caráter oficial. Quando chegar aJamaica terei que comunicar seu nome e seu destino as autoridades locais e também aoComandante Naval de Antigua. O aprisionarão quando desembarcar no Artemis. - Tragou asaliva - E se o prenderem…

- Vão enforcá-lo - conclui.- Eu ví enforcar outros - disse depois de uma pausa - Senhora Fraser…eu…sinto. Não

pretendo que me perdoe. Somente quero dizer que sinto muito.Girou sobre seus calcanhares e se afastou. Frente a ele Annekje Johansen, com sua cabra,

continuava discutindo acaloradamente com o centinela.- O que significa isto? - inquiriu o capitão Leonard aborrecido - Retira imediatamente esse

animal da coberta! O que estás pensando, senhor Holford?Os olhos de Annekje passaram do capitão a mim, adivinhando instantaneamente qual havia

sido o problema. Me piscou com solenidade um de seus grandes olhos azuis. Nós tentaríamosoutra vez, mas como?

Quatro dias depois, enquanto mudávamos o rumo para entrar pelo Canal de Caicos, umarajada de ar surgiu inesperadamente e surpreendeu o barco mal preparado.

Naquele momento eu estava na coberta. Ao meu redor tudo era confusão, ordens a gritos emarinheiros que corriam. Me ergui, tratando de ordenar meus pensamentos.

- O que aconteceu? - perguntei a um marinheiro.- O mastro maior se fudeu - disse sucintamente - Com vosso perdão, senhora, mas é a

verdade. E agora teremos um baile infernal.O Masorpa conxeava lentamente com rumo até o sul, privado de seu mastro maior. O

capitão Leonard optou por portar na costa norte de uma das ilhas Caicos e realizar asreparições necessárias.

Mesmo naquela ocasião se nos permitir desembarcar, de nada me serviria. Não podia meocultar naquela ilha seca sem comida e sem água, esperando que algum furacão me trouxesseum barco.

No entanto, a mudança de rumo fez que Annekje tivesse uma idéia.- Conhecer isto - disse com ar sábio - Agora vamos girar, Gran Turca, Mouchoir. Caicos

não. - Se sentou em cócoras desenhando com um dedo na areia.- Olha: Canal Caicos - disse traçando duas linhas, em cima das quais desenhou um pequeno

triangulo de uma vela. - Passamos, mas não tem mastro. Agora… - Desenhou rapidamentevarios circulos irregulares a direita do passo - Caicos do Norte, Caicos do Sul, Caicos, GranTurca - disse cravando um dedo em cada um dos círculos - Agora ir rodeando: recifes. Canalde Mouchoir.

- O Canal de Mouchoir? - eu havia ouvido mencionar, mas não me ocorria que podia terhaver com a minha possibilidade de fuga do Marsopa.

Annekje assentiu sorrindo, desenhou uma linha larga e ondulante por debaixo do desenho

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anterior e assinalou com orgulho.- A Espanhola. Santo Domingo. Ilha grande, cidades, muitos barcos.Levantei as sombrancelhas desconcertada. Ela suspirou ao perceber que não compreendia.

Depois de pensar um momento, se levantou, pegou a caçarola pouco profunda que havíamosutilizado para pegar moluscos, a encheu de água e a agitou cuidadosamente em um movimentocircular, arrancou uma linha de sua desfiada anágua e cortando um pedaço com os dentes ocuspiu dentro da água. O fio se manteve flutuando seguindo os lentos círculos do remoinhodentro da caçarola.

- Voce - disse assinalando o pedaço de fio - Agua te move - Assinalou novamente o desenhoda areia. Fez um novo triangulo no Canal de Mouchoire uma linha que se curvava desde a velafazendo a esquerda, indicando o curso da embarcação. Depositou o fio azul que merepresentava junto a vela que simbolizava o Marsopa e o arrastou até a costa da Espanha.

- Saltar - disse.- Estás louca! - exclamei horrorizada.Rio entre dentes, muito satisfeita por se haver feito entender.- Sim - disse - Mas serve. Agua te levará. Trata de não afogar, né.Respirei profundamente, deixando os cabelos em meus olhos.- Sim - repeti - Farei o possível.

CAPÍTULO 50

ENCONTRO COM UM SACERDOTE

O mar estava morno. Comparado com o da Escócia era como um banho quente. Duas outres horas nadando me deixaram os pés adormecidos na parte em que estavam atadas as cordas

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de meu improvisado salva-vidas, feito com dois barris vazios.A esposa do artilheiro havia dito a verdade. A silhueta larga e difusa que havia visto do

Marsopa se aproximava cada vez mais; suas colinas escuras pareciam de veludo negro emcontraste com o céu. A Espanhola…Haití.

Deviam ser quatro da manhã e ainda faltava quase dois quilómetros para chegar a costa.Esgotada pelo esforço e a preocupação, me amarrei a corda em um pulso para me assegurar denão perder o arnês e, com a frente apoiada em um dos toneles que desprendia um forte cheiro arum, me deixei dormir.

O atrito de algo sólido nos pés fez que me despertasse embaixo de uma aurora opalina; maso céu brilhava com a mesma cor que se pode ver no interior de algumas conchas marinhas.Quando consegui ter os pés bem assentados na areia fria , pude perceber a força da correnteque jogava nos barris. Me libertei das cordas e, com bastante alivio, deixei que continuassemsua bamboleante viagem até a costa.

Tinha os ombros machucados e o pulso que me havia atado a corda estava em carne viva;me sentia exausta, congelada e sedenta, com as pernas flácidas como um camarão fervido.

O mar estava deserto, sem sinais do Marsopa. Havia escapado. Somente precisava chegar acosta, buscar água, conseguir algum meio de transporte para chegar rapidamente a Jamaica eme reunir com Jamie e com o Artemis antes de que o fizesse a Marinha Real. No momento,apenas podia cumprir com o primeiro ponto da agenda.

O mangue se estendia até onde chegava a vista. Não havia outra alternativa a não sercaminhar entre as raízes que sobressaiam do lodo formando grandes arcos. Como me afundavade barro até os tornozelos, me pareceu melhor seguir descalça e com as anáguas presas sobreos joelhos.

No principio foi agradável receber o sol nascente nos ombros, pois me esquentava a pelegelada e secava minhas roupas, mas depois de uma hora desejava que se ocultasse detrás dealguma nuvem. Suava abundantemente, estava de barro seco até os tornozelos e a sedecomeçava a ser insuportável.

Não se via outra coisa que a folhagem verde cinzenta.- Não é possível que toda esta ilha seja um mangal - murmurei sem deixar de umudecer -

Em algum lugar tem que haver terra seca. E água…Um ruido similar de disparo de um pequeno canhão me assutou de tal modo que me caiu a

faca. Enquanto a buscava freneticamente ante o barro, algo passou zumbando junto a minhacabeça. Se ouviu um forte agitar das folhas e, por fim, uma espécie de coloquial «Cuac?»

- Que? - Me incorporei com cautela, segurando a faca com uma mão enquanto me afastavaos cachos enrolados com a outra. A dois metros de distancia, uma grande ave negra penteavaas plumas e me olhava com ar crítico.

- Bem - disse sarcástica - voce tem asas, amigo.A ave deixou de se emplumar.- Bum! - disse repetindo o canhonaço que me havia sobressaltado.- Deixa de fazer isso - protestei irritada.Prestando atenção, esvoaçou e voltou a troar, em poucos segundos apareceram outras tres

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silhuetas negras.Estava bastante segura de que não eram abutres, mas preferia não perder mais tempo. Tinha

que recorrer muitos quilometros antes de poder dormir…e buscar Jamie. Preferia não pensar napossibilidade de não achá-lo a tempo;

Meia hora depois havia avançado tão pouco que ainda ouvia o troar intermitente de meuvizinho e seus amigos. Como ofegava, escolhi uma raiz bastante grossa para sentar-me edescansar.

- Água, agua por todas as partes - disse tristemente, olhando ao meu redor - e nem uma gotaque se pudesse beber.

Um pequeno movimento no lodo me chamou a atenção. Ao inclinar-me vi vários peixes deuma espécie que nunca havia visto; longe de boquear e se retorcer, se mantiveram erguidossobre as nanadeiras peitorais, como se não se preocupassem em absoluto em estar fora da água.Eu estudei eles com fascinação.

- Quem está alucinando? - perguntei - Voces ou eu?Os peixes, em vez de responder, deram um súbito salto e aterrizaram sobre um ramo,a um

palmo do solo. Talvez perceberam algo, pois no mesmo momento chegou uma onda que mecobriu até os joelhos.

Me invadiu uma súbita frescura. O sol havia tido a gentileza de se esconder atrás de umanuvem e, com seu desaparecimento, o ambiente dos mangais mudou por completo.Carangueijos e peixes desapareceram. Ao levantar os olhos uma nuvem afogou umaexclamação. Desde as colinas se aproximava uma enorme massa púrpura.

A onda seguinte subiu cinco centímetros a mais que a anterior e tardou em retirar-se. Eu nãoera carangueijo e nem peixe, mas me tinha dado conta de que se acordava, com assombrosaceleridade, uma tempestade.Me invadiu uma onde de pánico, mas tratei de me acalmar. Seperdesse a serenidade estaria perdida.

—Resiste, Beauchamp - Murmurei para mim mesma. Muito bem, até onde ir? Até amontanha; era a única coisa visível. Abri passos entre as ramas tão depressa como pude, semprestar atenção aos agarrões de minha saia e a crescente força com que as ondas se lançavamem minhas pernas.Segui chapinhando. A anágua me desprendia da cintura, em certo momentome cairam os sapatos e desapareceram de imediato entre a espuma que me chegava aosjoelhos.

Quando a maré chegou no meio da minha coxa se iniciou a chuva. Ao principio perdi otempo em vão levantando o rosto para tratar de absorver a agua da chuva. Por fim, recobrandoo sentido , tirei o lenço que me cobria os ombros e o escorri varias vezes para tirar os vestígiosde sal.

Deixei que se empapasse de chuva e chupei a água da teagem. Apesar do suor e das algasmarinhas: estava deliciosa.

Nas montanhas reluziu um relampago, num instante chegou o sonido do trovão. A maré meestirava com tanta força que, quando a onda se retirava, necessitava segurar as raízes maispróximas para que não me arrastassem.

Começava a pensar que havia me precipitado em abandonar o Marsopa. O vento seguiamuito forte. Dizem os marinheiros que a sétima onda é sempre a mais alta: me descobri

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contando enquanto avançava. Foi a nona que me golpeou ente os omoplatos, me derrubandoantes de que pudesse agarrar-me a uma rama.

Quando pude me erguer já não via a montanha, se não uma grande árvore a cinco ou seismetros de distancia. Trepei nela até que pude ver o mar aberto. Rodeei com os braços o troncoda árvore e , apertando o rosto na casca, receei por Jamie, pelo Artemis, pelo Marsopa, porAnnekje Johansen, Tom Leonard e pelo governador.E por mim.

Quando despertei era pleno dia, tinha uma perna afundada entre a grama e com o joelhoadormecido. Desci, quase me desiquilibrando, até cair na água pouco funda da enseada.Pegueium pouco de água para prová-la e a cuspi: era água estancada.

Ainda minhas roupas estavam empapadas, e eu estava sedenta. A tempestade haviadesaparecido fazia tempo e tudo havia ficado agradável e normal, excetuando as raízesenegrecidas devido ao raio.

Cansada e sedenta como estava, somente pude recorrer uma breve distancia antes de mesentar e descansar.Varios daqueles estranhos peixes saltaram também a terra, olhando-me comolhos salientes carregados de curiosidade.

- Bem, a mim também me parecem muito estranhos - disse a um deles.- És inglesa? - Se estranhou o peixe.A impressão de ser Alice no País das Maravilhas foi tão marcada que somente fui capaz de

oscilar estupidamente. Levantei a cabeça e olhei ao homem que havia falado.Tinha a cara avezada e queimada do sol e o cabelo negro que se cacheava sobre sua testa e

era ainda abundante e sem branco. Se adiantou com cautela, como se temesse me assustar. Eracorpulento, de estatura mediana e rosto largo com feições marcadas, em sua expressãoamistosa se mesclava a desconfiança. Usava roupas gastadas e um pesado saco no ombro; docinturão estava pendurado uma garrafa de pele de cabra.

—Vous étez Anglaise? — repetiu em frances - Comment qa va ?— Sou inglesa, sim - disse com dificuldade - Me darias um pouco de água, por favor?Abriu os grandes olhos castanhos e se limitou a entregar-me a garrafa sem dizer nada.Coloquei a faca em minha anágua para beber.- Cuidado - me advertiu ele - É perigoso beber muito rápido.- Eu sei - disse sufocada - Sou doutora.Meu salvador me observou com ar intrigado. Era razoável: devia parecer uma mendiga,

louca no mínimo.- Doutora? - repetiu em meu idioma. Me observou com atenção, quase como a ave negra

com que me havia encontrado antes - Doutora em que, se me permite perguntá-lo?- Em medicina - disse sem deixar de beber.- Nossa! - Foi seu comentário depois de uma pausa. Inclinou a cabeça em uma reverencia

formal.- Nesse caso, senhora médica, permita que me apresente. Sou Lawrence Stern, doutorem Filosofía Natural, de Gesellschaft von Naturwissenschaft Philosophieren, de Munich.

Oscilei.- Naturalista - explicou apontando ao saco de lona que levava no ombro - Estava atrás

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desses palmípedes com a esperança de observar seus hábitos de cortejo quando por casualidadeeu a ouvi…

- Falar com um peixe - completei - Bem, sim.Me olhou com um esboço de sorriso.- Terei a honra de conhecer vosso nome, senhora médica?Vacilei, sem saber o que dizer. Por fim me decidi pela verdade.- Fraser - disse-Claire Fraser. Casada com James Fraser - disse com a vaga sensação de que

o estado conjugal me daria uma maior respeitabilidade, apesar de meu aspecto.- Ao seu serviço, senhora - disse com uma graciosa reverencia - Terás sido vítima de um

naufrágio, talvez?Como parecia a explicação mais lógica de minha presença ali, fiz um gesto afirmativo.- Necessito chegar a Jamaica - disse - Poderias me ajudar?Me olhou, franzindo levemente o semblante.- Posso ajudá-la, mas antes deveria te dar algo de comer e alguma roupa, não é mesmo?Tenho um amigo ingles que não vive longe daqui. Me permite que a leve?Ante a sede e a urgente situação geral, não havia prestado muita atenção nas exigencias de

meu estomago, que ante a menção da comida ressurgiu, vociferante, a vida.- O agradeceria muito - disse em voz alta com a esperança de calá-lo.Ao sair de um palmar, a terra se abria em uma campina para elevar-se depois em uma larga

colina. Lá em cima se via uma casa… ou as ruinas dela.- A Fazenda da Fonte - informou meu novo conhecido acenando com a cabeça - Suportas a

caminhada costa acima ou…? - Vacilou me olhando como se calculasse meu peso - Suponhoque podia levá-la nos braços - disse com um tom nada bajulador.

- Posso andar - assegurei.A ladeira estava repleta de pegadas de ovelhas. Vários destes animais pastavam

apazivelmente embaixo do tórrido sol de A Espanhola. Ao sair do palmar, uma das ovelhas nosviu e deixou escapar um balido de surpresa; o resto do rebanho levantou a cabeça em uníssonopara nos olhar.

Bastante intimidada pelo exército de olhos desconfiados, peguei minhas enlodadas anáguaspara seguir o doutor Stern pela vereda principal que, a julgar por sua largura, não só utilizavamas ovelhas.

Ante a perspectiva de receber ajuda, o medo e a fatiga começaram a apaziguar. Todaviadevia enfrentar o problema de encontrar transporte até Jamaica, mas uma vez calamada a sede,com um amigo ao lado e a possibilidade de um almoço, a tarefa não parecia tão impossívelcomo no mangal.

- Ali está! - Lawrence sinalizava uma silhuera liviana que descia cautelosamente até nós,caminhando entre as ovelhas que não pareciam reparar em seu passo.

- Cristo! - exclamei - É São Francisco de Assís!- Não, nenhum dos dois - afirmou Lawrence com um olhar de surpresa - Já tinha dito que é

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ingles. - Levantou um braço - Olá, senhor Fogden!A figura de batina cinza se deteve com ar desconfiado.- Quem és?- Stern! - Anunciou meu companheiro - Lawrence Stern! Vem, senhora.E estendeu uma mão para ajudar-me na empinada costa.- Stern? - disse o homem, afastando o cabelo grisalho da frente e pestanejando como uma

coruja a luz do sol. - Não conheço nenhum…Ah, é voce! - Seu rosto enxuto se iluminou - Overme cheio de merda!

Stern me pediu desculpas com os olhos, um pouco atordoado.- Eu…é…em minha última visita recolhi vários parasitas interessantes dos excrementos das

ovelhas - explicou.- Uns vermes horríveis! - exclamou o padre Fogden, violentamente estremecido — Alguns

mediam mais de trinta centímetros.- Apenas vinte - corrigiu Stern sorrindo.- O remédio que eu sugeri, foi efetivo?O padre Fogden fez cara de surpresa.- A poção de resina - apontou o naturalista.- Ah, sim! - O semblante do sacerdote se iluminou - Claro, claro! Sim, foi muito efetivo.

Algumas morreram mas a maioria se curou por completo. Extraordinário!Rapidamente o padre Fogden pareceu se dar conta de que não estava se mostrando muito

hospitaleiro.- Mas passou, passou! Estava a ponto de sentar-me para almoçar. Tens que me acompanhar.

Insisto - Se voltou até mim - Esta senhora há de ser a senhora Stern, não?- Não, mas nos encantaria aceitar vossa hospitalidade - respondeu Stern amavelmente -

Permita-me apresentá-lo a minha acompanhante: a senhora Fraser, sua compatriota.Os olhos de Fogden se redondaram notavelmente.- Uma inglesa aqui? - disse, incrédulo, observando o lodo, as manchas de sal, meu vestido

enrrugado e meu desalinho geral. - Seu mais humilde servido, senhora. - Fez um gestopomposo até as ruinas que coroavam a colina. - Minha casa é sua.

Emitiu um assobio agudo; um pequeno cocker mostrou a cara, inquisitiva, entre as ervas.- Temos convidados, Ludo - informou o sacerdote radiante - Não é maravilhoso?Com minha mão bem segura embaixo de seu braço e pegando uma ovelha pela penugem da

cabeça, nos conduziu até a Fazenda da Fonte.A razão do nome ficou clara enquanto entramos no ruinoso pátio; em um canto, uma nuvem

de libélulas sobrevoava um reservatório cheio de algas, parecia uma fonte que alguém haviaencerrado ao construir a casa.Dez ou doze galináceos silvestres brotaram entre as pedrascaídas, esvoaçando enlouquecidas. Ante as provas que deixaram atrás de sí, deduzi que asárvores do pátio eram sua residencia habitual a muito tempo. Estes haviam crescido até talponto que suas ramas se entrelaçavam, formando uma espécie de túnel. No interior da casaparecia escuro atrás a luz do sol mas meus olhos se adaptaram muito rápido. Olhei ao meuredor com curiosidade.

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Era uma habitação simples, escura e fresca, mobiliada com uma mesa larga, algumascadeiras e banquetas e um pequeno aparador sobre a qual pendia uma horrível pintura de estiloespanhol: Um Cristo esquelético e pálido cuja mão ossuda assinalava o coração sangrante quepalpitava em seu peito.

Aquele horrível quadro me chamou tanto a atenção que tardei em notar a presença de outrapessoa. A mulher deu um passo adiante com os negros olhos fixos em mim. Sua estatura nãopassava de um metro e vinte e era tão gorda que seu corpo parecia um bloco sólido, semarticulações, com um volume redondo até a cabeça que terminava em um pequeno coque cinza.Sua pele era de um mogno claro, não sei se pelo efeito do sol. Pareceu um pulso talhado emmadeira. Um pulso vodu.

- Mamacita - disse o sacerdote em espanhol - veja que sorte! Temos convidados para comer.Te recordas do senhor Stern?-Sim, claro - disse - É o assassino de Cristo. E quem é essa rameira branca?- Ela é a senhora Fraser - continuou o padre Fogden, sorrindo como se ela não houvesse

abrido a boca. - A pobre teve a desgraça de naufragar. Devemos prestar-lhe toda a ajudapossível.

Mamacita me olhou lentamente dos pés a cabeça sem dizer nada mas com as fossas nasaisdilatadas em uma mostra de desdém.

- A comida está pronta - disse nos dando as costas.- Estupendo! - exclamou o sacerdote feliz - Mamacita os dão boas vindas. Nos servirá algo

de comer. Querem sentar?A mesa já estava posta, com um grande prato rachado e uma colher de madeira. O padre

tirou do aparador outros dois pratos e mais duas colheres, que distribuiu ao acaso sobre a mesa.- Vives sozinho aqui, senhor…é padre Fogden? — perguntei ao nosso anfitrião - Sozinho

com…é…Mamacita?- Sim, temo que sim. Por isso me alegra tanto ve-los. Não tenhos mais companhia que não

seja de Ludo e Coco - explicou, dando umas palmadas a massa peluda que descansava junto aoseu prato.

- Como? - repeti cortesmente. A julgar pelo que havia visto, havia mais de um parafusofrouxo. Stern parecia divertido ms não alarmado.

-Coco, o duende mau. Não consegue ve-lo aqui, com seu nariz de botão e seus olhosescuros? - Fogden afundou subitamente dois dedos nas depressões do fruto e os apertou comum riso afogado.

- Ah, ah, não deves olhar fixamente, Coco. É fata de educação, já sabes disso. A senhora émuito bonita - murmurou para sí próprio - Não se parece com aminha Ermenegilda mas aindaassim é muito bonita, não é, Ludo?

O cachorro, sem me prestar atenção, brincou com gozo até o seu amo, que lhe coçou asorelhas com afeto.

- Talvez nos vestidos de Ermenegilda tenha algum que a sirva?Sem saber o que responder, me limitei a sorrir amavelmente com a esperança de que meus

pensamentos não se refletissem em minha cara. Por sorte entrou Mamacita, levando uma

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fumegante caçarola de barro envolto em toalhas. Depois de colocar uma concha do conteúdoem cada prato, se retirou; seus pés, sim ela os tinha, se movia invisíveis embaixo das anáguas.

A massa que tinha em meu prato parecia ser de origem vegetal. Ao tomar cautelosamenteum bocado descobri, com surpresa, que estava bom.

- Bananas fritas com mandioca e feijões pretos - explicou Lawrence. Se serviu uma grandecolherada e comeu sem esperar que se esfriasse.

Eu esperava que me interrogasse sobre minha presença, minha identidade e minhasperspectivas, mas o padre Fogden somente cantava baixinho, elevando o ritmo com golpes acolher sobre a mesa entre um bocado e outro. Dei uma olhada a Lawrence com assombrancelhas altas. Ele se limitou a sorrir com um leve encolhimento de ombros e seguiucomendo.

Não houve mais conversas até que Mamacita substituiu os pratos por um fruteiro, tres taçase uma gigantesca jarra de argila.

- Conheces a Sangria, senhora Fraser?Abri a boca para dizer que sim, pois havia sido uma bebida muito popular nos Estados

Unidos na década dos anos sessenta, mas pensei melhor.- Não. O que é?- Um mescla de vinho tinto com suco de laranja e limão. - explicou Lawrence Stern —

Aromatizada com especiarias; se serve quente ou fria, dependendo da estação; reconfortante esaudável, não é verdade, Fogden?

- Oh, sim, sim. Muito reconfortante.Sem esperar, o sacerdote esvaziou sua taça e me deu na mão a jarra.Era aquele mesmo sabor doce e áspero; tive a momentanea ilusão de estar novamente na

festa onde havia provado pela primeira vez, com um professor de botánica que fumavamaconha.

Contribuiu a essa ilusão a conversa sobre as coleções do senhor Stern e o padre Fogden que,bebia várias taças de Sangria, foi cutucar no aparador e voltou com um grande cachimbo deargila que encheu com uma erva de odor potente: haxixe.

-Decidiu, Stern o que pensar fazer, voce e esta náufraga que tens resgatado?O botánico explicou seu plano: depois de uma noite de descanso iriamos caminhando até a

aldeia e San Luis, onde trataríamos de conseguir um barco pesqueiro que nos leve até o CaboHaitiano, que estava a uns cinquenta quilómetros. Se não encontra-lo teríamos que continuarpor terra até Le Cap, o mais importante dos portos próximos.

O sacerdote franziu o cenho, irritado pelo fumo.- Hum? Bom, suponho que não tenha muitas alternativas, verdade? Mas terás que andar com

cuidado, sobretudo se vão por terra a Le Cap. Pelos selvagens, sabes?- Selvagens? - Olhei interrogativamente a Stern.- É certo - assentiu cenhudo - Ao ir até o norte, pelo valle de Artibonite, ví dois ou tres

bandos, os selvagens são escravos fugitivos. Fogem da crueldade de seus amos e buscamrefúgio nas colinas distantes, onde podem se esconder.

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- Talvez não os incomodem - disse o padre Fogden— Afinal, ela não parece valer o esforçode um assalto.

Stern me olhou com um amplo sorriso, mas o apagou de imediato, temendo que fosse umafalta de tato.

- Necessito um pouco de ar fresco - disse afastando a cadeira - E um pouco de água para melavar, se for possível.

- Oh, claro, claro - exclamou o padre Fogden. Se levantou com movimentos inseguros. -Acompanha-me.

O ar do pátio era muito fresco e vigorizante. Respirei fundo, observando com interesse odono da casa, que forcejava com um cãntaro junto a fonte do canto.

- De onde vem a água? - perguntei - Em uma fonte?Foi Stern que respondeu.- Sim, tem milhares. Dizem que em alguns vivem certos espíritos, mas não creio que voce

acredite em superstições, verdade senhor?- Ah, disse o padre vagamente - Bem, não. Espíritos, não.Um cheiro desagradável me fez contrair o nariz. O sacerdote deve ter notado, pois disse:- Oh, não prestes atenção, é a pobre Arabella.- Arabella?- Sim. Está aqui.Fogden afastou uma surrada cortina que separava um canto do pátio. Do muro de pedra

sobressaia uma borda, de um metro de altura, onde se enfilheiravam uma série de crânios deovelhas, brancos e bem polidos.

- Não posso me separar delas, compreendes? - Acariciou a curva pesada de um crânio - Estaera Beatriz, muito doce e gentil. Morreu ao dar a luz a pobrezinha - Assinalou outros doiscrânios vizinhos, muito mais pequenos.

- Arabella é…outra ovelha? - perguntei. O cheiro era muito forte e quase preferi não saberde onde vinha.

- Um membro de meu rebanho - O sacerdote voltou até mim seus estranhos olhos azuis comum olhada feroz. - A mataram! Pobre Arabella, tão suave e confiada que era. Como puderamter a perversidade de trair tal inocencia em aras dos desejos carnais?

- Oh, que pena - exclamei sem saber o que dizer - O lamento muitíssimo. E …quem é oassassino?

- Os marinheiros, esses malditos pagões! A assassinaram na praia e assaram seu corpo emuma grelha, como o São Lorenzo Mártir.

- Marinheiros? - repeti - Quando aconteceu isto…este lamentável acontecimento?

Não podia tratar-se de Marsopa. O capitão Leonard não me considerava tão importante paraarriscar aproximar seu barco a ilha com o fim de me perseguir. Mas a ideia me fez umedecer asmãos. Mas as sequei dissimuladamente nas anáguas.

- Nesta manhã - informou o padre Fogden.Por fim reparou na anciana que o olhava com

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fúria, carregada com um cântaro em cada mão.- Oh, me esqueci! Necessitas também roupas,não é, senhora Fraser?

Meu vestido e minhas anáguas estavam tão cheias de lodo e tão rasgadas que a duras penaseram decentes.

O sacerdote se voltou até a estátua de madeira.- Não teremos algo que esta desventurada senhora posso colocar, Mamacita? — perguntou

em espanhol - Talvez algum vestido de…A mulher me mostrou os dentes.- São muito pequeno para essa vaca - disse no mesmo idioma - Dá sua batina velha -

Projetou uma olhada desdenhosa ao meus cabelos cacheados e minha cara suja. - Venha -ordenou em ingles me dando as costas – Se lavar.

Me conduziu a um pátio mais pequeno, na parte dos fundos da casa, onde me proporcionoudois cantaros de água fria, uma gasta toalha de fio e um pequeno pote de sabão com um forteodor a alvejante.Atrás me deu uma surrada batina cinza com uma corda no cinturão, voltou amostrar-me os dentes e se afastou, comentando com ar simpático:

- Lava o sangue que te manchas as mãos, rameira, assassina de Cristo.Fechei a porta do pátio com notável alivio; ainda me reconfortou mais me desprender

daquelas prendas pegajosas e sebosas. Me arrumei tanto como fosse possivel com agua fria epentiei o cabelo molhado com os dedos pensando em meu peculiar anfitrião. Suaexcentricidade, era uma forma de demencia ou somente o efeito do alcool e do haxixe? Semdúvida, parecia uma alma bondosa.Mamacita, em compensação, me deixava nervosa.Nãopodia ficar toda a tarde no patio. Estava muito cansada e necessitava descansar, dormiriadurante uma semana. Empurrei uma porta que dava a casa e entrei.

Era um pequeno dormitório; não parecia formar parte daquela casa espartana, com seuspátios ruinosos. Na cama havia almofadas de plumas e uma colcha de lã vermelha. Os moveisestavam lustrados com azeite. Em um extremo ví uma cortina de algodão se destacando, atráspendia toda uma fileira de vestidos, como um arco-iris de seda. Devia de ser o guarda-roupa datal Ermenegilda, mencionada pelo padre Fogden.Eram bonitos: seda e veludo, lã e cetim,musselina e veludo; aquelas prendas poderiam ter sido exibido a corte madrilenha.Toqueinuma manga azul como despedida e me afastei na ponta dos pés.

Lawrence Stern estava na galeria do fundo, embaixo de uma empinada pendente de alóes egoiabeiras. A distancia se divisava uma pequena ilha; se levantou cortesmente, dedicando-meuma pequena reverencia e uma olhada de surpresa.

- Senhora Fraser! Devo reconhecer que seu aspecto melhou muito. A batina do padre lhefica melhor que a ele - seus olhos de avelã se dilatavam com admiração.

- Não será tanto a batina como a ausencia do barro - observei, ocupando a cadeira que meoferecia. Na desconjunta mesa de madeira havia uma jarra. - Tem algo para beber?

- Mais Sangria. - Encheu uma taça para cada um e tragou a sua, suspirando com satisfação. -Espero que não me consideres um mal educado, senhora Fraser, mas levo meses percorrendonestes campos, sem beber outra coisa que água e o tosco rum dos escravos…- Fechou os olhos- Ambrosia.

Me sentia de acordo com ele.

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- E…o padre Fogden está…? - Buscava alguma forma delicada de perguntar o estado denosso anfitrião.

- Embriagado - disse com firmeza Stern - Está derrubado nas mesa da sala. Quase sempreestá nesse estado até o por do sol.

- Compreendo - Me acomodei na cadeira - Faz muito tempo que o conheces?Esfregou a testa pensativo.- Oh, a alguns anos - Me deu uma olhada - Por casualidade, conheces um tal de James

Fraser, de Edimburgo? Sei que é um apelido comum, mas… Vejo que o conheces!- Meu esposo se chama James Fraser.O rosto se iluminou de interesse.- É mesmo! - exclamou - É um homem muito alto, corpulento e…?- Ruivo - disse - É Jamie, sim. Rápido me ocorreu algo - Uma vez me contou que havia

conhecido um naturalista, com quem manteve uma conversa muito interessante sobre…diversos temas.

Me perguntei como sabia Stern o verdadeiro nome de Jamie se em Edimburgo era JamieRoy, o contrabandista, o o Alexander Malcolm, o respeitável impressor. Seria aquele nome declaro acento alemão o «inglés» mencionado por Tompkins?

- Sobre aranhas e cavernas - apontou Stern de imediato - O recordo perfeitamente. Nosconhecemos em um…um… - Tossiu para cubrir magistralmente um lapso - Numestabelecimento onde serviam bebidas. Uma delas…é…empregadas descobriu uma grandeespécie de Arachnida pendurado no teto de sua…e…de sua sala. E saiu correndo ao corredor,gritando incoerencias.

Stern bebeu um grande trago de sangria. A lembrança o deixou tenso.- Acabava de capturar um exemplar em um frasco quando o senhor Fraser invadiu a

habitação e…Naquele momento o científico sofreu um forte ataque de tosse.- E disse o seu nome.Stern passou uma mão pelos cachos negros.- Não creio que o fizesse, mas a dama em questão o chamava «senhor Fraser». Conversamos

quase até o amanhecer, disfrutando muito a mutua companhia. Em algum momentocomeçamos a se intimar - Elevou uma sombrancelha, sardónico - O parece muito familiar?

- Em absoluto. Mencionastes aranhas e cavernas. Há cavernas por aqui?Lawrence arrancou uma folha de seu livreto e a amassou com a mão.- Olha - disse alargando a mão. O papel se desdesdobrava lentamente, deixando uma

labiríntico topografico de dobras e digitos enrrugados. - Assim é está ilha. Recordas do quedisse o padre Fogden dos selvagens, esses escravos fugitivos que se refugiam nas colinas? Seeles estão em liberdade é porque não os perseguem. Há muitas zonas que nenhum homem(branco ou negro, me atreveria a dizer) há posto o pé ali ainda.

Nas colinas perdidas existem cavernas ainda mais perdidas, cuja existencia é ignorada portodos, salvo talvez pelos aborígenes do lugar….que desapareceram faz tempo, senhora Fraser.

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Disse pensativo:- Eu ví uma dessas cavernas. Abandawe, chamam os selvagens. Consideram um lugar

sinistro e sagrado, ainda ignoro a razão.Estimulado pela minha atenção, bebeu outro trago de sangria e continuou com sua lição de

história natural.- Aquela ilha - indicou assinalando um pequeno vulto que flutuava no mar - é a ilha da

Tartaruga. Na realidade se trata de um atol coralino com uma lagoa grande. Sabia que emoutros tempo foi refugio de piratas? - perguntou como se sentisse obrigado a completar suaconferencia com dados de interesse mais gerais.

- Piratas de verdade? - Observei a pequena ilha com mais interesse - Que romantico.Stern se deitou a rir. O olhei com surpresa.- Não rio de voce, senhora Fraser - me assegurou - É que, em certa ocasião, tive a

oportunidade de convesar com um ancião de Kingston sobre os hábitos dos piratas que, emcerta época, estabeleceram seu quartel general na aldeia próxima ao Port Royal. Perdoname afalta de delicadeza, senhora Fraser, mas és casada e tens certa familiaridade com a prática damedicina. Já ou viu falar das abomináveis práticas da homossexualidade?

Me olhava de soslaio.- Sim - respondi - Queres dizer…?- O asseguro - afirmou com um gesto magistral - Meu informador foi muito explicito quanto

aos costumes dos piratas. Homossexuais todos eles - concluiu mexendo a cabeça.- Como?- É de conhecimento público. Segundo meu informante, o feito de que Port Royal caiu ao

mar faz sessenta anos, foi atribuido a um ato de vingança divina contra aqueles perversos,como castigo por seus hábitos grosseiros e antinaturais.

Ia fazer algumas perguntas sobre o caráter exato daqueles grosseiros e antinaturais hábitosquando saiu Mamacita da galeria e veio anunciar secamente o jantar, voltando a desaparecer.

- Eu gostaria de saber de qual caverna saiu o padre Fogden — murmurei afastando minhacadeira.

- Próximo a Havana - disse Stern. E me contou o resto da história.Depois de haver exercido durante dez anos como sacerdote missionário da ordem de São

Anselmo, o padre Fogden havia chegado a Cuba quinze anos atrás. Ali se dedicou aosnecessitados, trabalhando entre aos lugarejos de Havana, pensando unicamente em aliviar ossofrimentos e no amor de Deus…, até o dia em que conheceu em um mercado a ErmenegildaRuiz Alcántara e Meroz.

- Não creio que saiba como aconteceu - disse Stern secando uma gota de vinho que baixavapor sua taça - Talvez ela tão pouco o sabe. Ou talvez planejou tudo desde o momento em que oviu.

De um modo ou outro, seis meses depois a cidade de Havana ficou boquiaberta pela notícia:a jovem esposa de Don Armando Alcántara havia fugido…com um sacerdote.

- E com sua mãe - disse bem baixo.

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- Ermenegilda jamais havia se separado de Mamacita. Nem de seu cachorro Ludo.Os fugitivos chegaram a cavalo até Bayamo. A viagem havia sido muito incomoda pelos

vestidos que Ermenegilda não queria se separar. Aí alugaram um barco pesqueiro que os levoucom seguridade a La Española.

- Ela morreu dois anos depois - informou Stern bruscamente enquanto voltava a encher suataça. - Lhe enterrou com suas próprias mãos embaixo de uma buganvilla (planta).

- E desde então estão aqui - adivinhei - O sacerdote, Ludo e Mamacita.- Oh, sim - Fechou os olhos - Ermenegilda não queria abandonar a Mamacita e Mamacita

não abandonará nunca a Ermenegilda.Bebeu de um trago só o resto de sua Sangria.- Aqui não vem ninguém - disse - Os aldeanos não querem pisar na colina. Temem o

fantasma de Ermenegilda. Una pecadora maldita, sepultada por um padre herege em terra nãoconsegrada. É natural que não possa descansar em paz.

- Mas voce mesmo assim veio - observei.Sorriu.- Ah, bom, sou científico. Não acredito em fantasmas. - Me estendeu uma mão um pouco

insegura - Vamos jantar, senhora Fraser?Na manhã seguinte, depois do café da manhã, Stern se mostrou disposto a partir até San

Luis, mas antes lhe fiz uma ou duas perguntas ao sacerdote sobre o barco que haviamencionado: se era o Marsopa, preferia me manter longe dele.

- Que tipo de barco era? - perguntei enchendo minha taça com leite de cabra paraacompanhar as bananas fritas.

O padre Fogden, que não parecia muito afetado pelo seus excessos doa dia anterior,acariciava seu coco, cantarolando para sí mesmo.

- E ? - Uma cotovelada de Stern o tirou de suas ilusões.Repeti com paciencia a minha pergunta.- Ah. - Desviou os olhos muito concentrado e relaxou o rosto. - Um de madeira.Lawrence se inclinou até o prato dissimulando um sorriso. Respirei fundo e fiz outra

tentativa.- Voce viu os marinheiros que mataram a Arabella?- Sim. Do contrário, como ia saber que eles o fizeram?- Naturalmente. Vestiam algum tipo de uniforme? - A roupa de trabalho que usava a

tripulação do Marsopa se parecia com um certo uniforme, com cor branca encardida e o cortesimilar.

- Não, creio que não. Mas me recordo que o chefe usava um gancho. Quer dizer: lhe faltavauma mão.

Deixei cair minha taça, que estourou contra a mesa.- Desculpe - disse. Me tremeram tanto as mãos que nem sequer pude recorrer aos

fragmentos da taça. Tinha medo de fazer a pergunta seguinte - Padre…o barco já foi zarpado?

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- Não! - exclamou levantando os olhos com surpresa - Seria impossível. Está no meio dapraia.

O padre Fogden começou a andar com a batina recolhida até as coxas e mostrando o brancoreluzente de suas magras pernas. Mesmo Lawrence Stern me auxiliando com gentileza,afastando as ramas e oferecendo o seu braço nas colinas mais empinadas, cheguei ofegando noalto da colina.

- Achas que existe o barco? - lhe perguntei com voz baixa. Devido a conduta de nossoanfitrião, não estava muito segura de que não houvesse imaginado somente para mostrar-sesociável.

Stern se encolheu de ombros, secando um fio de suor que lhe corria pela bochechabronzeada.

- Suponho que exista algo. Além do mais, a ovelha morta existe.Entre as ramas se via o azul relumbrante do Caribe e uma entreita faixa de areia branca. O

padre Fogden se deteve e nos chamou por sinais.- Ali estão estas bestas malvadas - murmurou. Seus olhos azuis cintilaram de fúria. Tinha

ouriçado o escasso cabelo e parecia um porco espinho comido pelas traças.- Carniceiros! -acrescentou com veemencia - Canibais!

Dei uma olhada de surpresa, mas Lawrence Stern me segurou o braço para levar-me até umaabertura mais ampla, entre as árvores.

- Sim! Ali tem um barco! - disse.Era certo. Estava na areia, meio tombado, com desordenadas cargas, velas, cordagens e

barris espalhados ao redor. Os homens agitavam-se como formigas e os gritos, golpes demartelo ressonavam como canhões. O ar estava impregnado de odor a breu quente.

- Sim é eles! É o Artemis! - A questão ficou esclarecida quando apareceu, junto ao casco,uma silhueta com uma só perna que protegia a cabeça do sol com um vistoso lenço de sedaamarela.

- Murphy! - gritei - Fergus!Jamie!Me soltei de Stern para correr ladeira abaixo sem prestar atenção ao seu grito de

advertencia.Murphy se voltou ao ouvir-me mas não pôde se afastar de meu caminho. Levada pelo

impulso, avançando como um trem de carga sem controle, me espatifei diretamente contra ele,derrubando-o.

- Murphy! - Com o júbilo do momento lhe dei um beijo.- Ei! - Protestou escandalizado.

- Milady! - Fergus apareceu ao meu lado, desalinhado; seu belo sorriso deslumbrava o rostoescurecido pelo sol - Milady!

Marsali apareceu atrás dele com um largo sorriso.— Merci aux saints! — murmurou ele - Temia não voltar a ve-los.

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Depois de beijar calorosamente em ambas as bochechas e em minha boca soltei. Dei umaolhada no Artemis, que parecia um escaravelho com as patas pra cima.

- O que aconteceu?A tempestade que me surpreendeu durante a noite anterior no mangal também havia atacado

o Artemis, arremessando-o contra um recife.- Estávamos a uns trezentos metros da costa quando aconteceu o acidente - relatou Fergus

entristecido pela lembrança.Enquanto o barco se inclinava, uma onda enorme varreu a coberta, levando o capitão Raines

e mais quatro marinheiros.- A costa estava tão próxima! - Se queixou Marsali com o rosto contraído pela aflição. - Dez

minutos depois estávamos em terra. Sim tão somente…Fergus a interrompeu pondo uma mão em seu braço.- Não podemos entender os designos de Deus. Se estivéssemos a mil milhas da costa

aconteceria o mesmo, só que nem sequer conseguimos sepultar-los decentemente.- Eu tinha um pouco de água bendita que papai me trouxe de Notre Dame - disse com o

lábios rachados. - Rezei uma oração e a espalhei sobre as tumbas. Isso…eles teriam gostado,não é?

- Não tenho dúvidas - disse com suavidade dando uma palmada em seu braço. Olhei ao meuredor buscando a grande estatura e colorida cabeça de Jamie. Começava a compreender quenão estava ali - Onde está Jamie?

Estava vermelha pelo relevo da colina abaixo, mas senti que o sangue abandonou minhasbochechas e um fio de medo corria em minhas veias. Fergus me olhava fixamente; sua caramagra era como um espelho da minha.

- Não está com voce?- Não. Como comigo? - Senti a pele fria - Onde está?Fergus mexeu lentamente a cabeça, como um boi atordido pelo golpe de uma maça.- Não sei.

CAPÍTULO 51ONDE JAMIE SE ENCONTRA NO MOMENTO

Jamie Fraser, estendido na sombra da chalupa do Marsopa, ofegava pelo esforço. Não haviasido tarefa fácil abordar a canhoneira sem ser visto; tinha todo o corpo machucado devido terbatido contra o flanco do barco ao se jogar nas redes de abordagem, e os braços doloridoscomo se tivessem sido deslocados; além disso, tinha uma farpa cravada em sua mão. Mas aliestava e ninguém o viu.

Mordeu delicadamente sua mão, buscando com os dentes a ponta da farpa enquanto tentavaorientar-se. Russo e Stone, dois tripulantes do Artemis, haviam passado horas inteirasdescrevendo a estrutura de um barco como o Marsopa, compartimentos, cobertas e um lugaronde podia alojar-se o médico. Mas uma coisa é escutar a descrição a outra muito diferente, é

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orientar-se no próprio barco. Ao menos, aquele miserável navio se mexia menos que oArtemis.

Havia esperado que descesse o sol para que Robbie MacRae o aproximasse em um bote.Raines lhe disse que, povavelmente, o Marsopa ancoraria com a maré noturna, duas horasdepois. Se conseguisse encontrar a Claire e escapar antes do amanhecer (podia nadarfacilmente até a costa com ela), o Artemis o esperaria escondido em uma pequena enseada, ououtro lado da ilha de Caicos. Se não conseguir…bem, se preocuparia disso quando chegasse omomento.

Em contraste com o mundo pequeno e atestado do Artemis, o entrepiso do Marsopa pareciauma enorme e labirinta toca. Permaneceu quieto, dilatando o nariz para aspirar aquele arfedido. Percebeu todos os fedores associados a um barco que leva muito tempo no mar, mastambém um vago gosto a vómitos e fezes. Girando para a esquerda, começou a andar comlentitude, contraindo o nariz. Onde o cheiro da enfermidade fosse mais potente, ali aencontraria.

Quatro horas depois, seu desespero crescia. Foi pela terceira vez até a popa. Tinhapercorrido o barco inteiro sem sinais da Claire.

- Maldita mulher! - disse baixo - Onde se meteu esta condenada?Um pequeno medo lhe roía o coração. Ela havia assegurado que a vacina a protegeria da

enfermidade, mas se estivesse errada? Essa possibilidade lhe tinha obrigado a perseguir oMarsopa, junto a uma ira assassina contra aquele endiabrado ingles que havia tido a insolenciade sequestrar a sua mulher na frente de seu nariz, com a vaga promessa de devolve-la depois deter utilizados seus serviços.

Deixá-la na mão dos Sassenachs sem nenhuma proteção! Nem pensar!Avançou com o ouvido atento. Se ouviam pisadas na coberta e ruidos conhecidos: homens

que estavam despendurando as cordas. O haviam visto? Bem, não tinha importancia. Não eradelito nenhum ir em busca de sua esposa.

O Marsopa navegava a toda vela. O encontro com o Artemis estava perdido desde aquelemomento.No entanto, não tinha nada que perder e sim se apresentar diretamente ante o capitãopara exigir falar com Claire. Rapidamente se deteve: ouviu cabras. E se ouviu a voz de umamulher. Uma silhueta feminina se recortava contra a luz da lamparina, mas não se tratava deClaire. O coração de Jamie deu uma virada ao ver seu contorno grosso e quadrado. O homemque a acompanhava se inclinou para pegar um cesto e caminhou até ele. Jamie saiu do estreitocorredor.

- Deus nos proteja! - exclamou o marinheiro, pálido pela tenue luz. Seu olho são se abriuhorrorizado ao reconhece-lo - O que fazes aqui?

- Me conheces, não é? - O coração lhe saltava no peito, mas não elevou a voz - Não creio tertido a honra de saber o seu nome.

- Prefiro deixar isso assim, Vossa Senhoria, se não se importa.O marinheiro torto começou a retroceder mas Jamie o segurou pelo braço com tanta força

que lhe arrancou um grito.- Um momento, por favor. Onde está a senhora Malcolm, a doutora?- Não sei.

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- Sim voce sabe - disse Jamie asperamente - E vai dizer agora mesmo se não queres que lherompe a cabeça.

- Bem, se me romper a cabeça não poderei dizer nada, verdade? - disse o marinheiro, quecomeçava a recobrar a coragem. O resto se perdeu em um grasnido enquanto a mão de Jamieapertava seu pescoço. Tompkins caiu escarrachado na coberta.

- Tens razão - reconheceu Jamie - Mas se lhe romper o braço não terás dificuldade parafalar, não é assim? - Se agachou para segurar o braço e retorce-lo nas costas.

- Eu digo, eu digo! - O marinheiro se retorceu, louco de pânico. - Maldito sejas! E ela eratão cruel como voce!

- Era? O que siginifica «era»? — Com o coração encolhido, Jamie sacudiu o braço commais brusquidade do que pensava.

Tompkins deixou escapar um grito.- Solta-me! Eu vou dizer, mas solta-me, por compaixão.O escoces afroxou a pressão.- Diga-me onde está a minha esposa! - Ante esse tom, homens mais fortes que Harry

Tompkins se haviam precipitado a obedecer.- Se perdeu! - resmungou o homem! -Caiu pela borda!- O que? - Jamie aturdido o soltou, Pela borda. Perdida.- Quando? - interpelou - Como? Conta-me como foi, estúpido! - Avançou até o marinheiro

com os punhos apertados.O outro retrocedeu frente ao braço, com uma furtiva satisfação no único olho.- Não se preocupe, Vossa Senhoria - disse em tom zombador - Não estará sozinha por muito

tempo. Dentro de alguns dias se juntará com ela no inferno…Quando bailar na forca, no portode Kingston!

Jamie ouviu pisadas a suas costas muito tarde. Nem sequer teve tempo de voltar a cabeçaantes de receber o golpe.

O haviam golpeado na cabeça mais de uma vez e sabia que o mais sensato era permanecerdeitado até que passasse a tontura e desaparecesse as luzes que palpitavam atrás das pálpebras.Se incorporar muito rápido, a dor o faria vomitar.

Claire. Perdida. Afogada. Morta.Se inclinou até um lado e vomitou, entre tosses e ansias, como se seu copo tratasse de

expulsar a ideia. Não serviu de nada.Quando se deitou, exausto, a ideía lhe permanecia. Lhe doia respirar.Se abiu uma porta; uma luz intensa lhe pegou os olhos com a força de um golpe. Fez uma

careta.- Senhor Fraser - disse uma voz culta. - Eu…eu sinto muito. Queria que soubesses.Pela ranhura de um olho vio a cara olheiruda do jovem Leonard, o homem que havia levado

Claire. Parecia envergonhado. Envergonhado! Envergonhado por ter matado-a!A fúria o colocou em pé e saltou do chão inclinado. Se chocou com Leonard e o empurrou

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até atrás, até ao corredor. Houve um surdo «tump!» quando a cabeça do ingles golpeou nastábuas. Se ouviam gritos as sombras saltavam loucamente pelo bamboleio das lamparinas, masnão prestou atenção.

Deu um forte golpe na mandíbula, o seguinte foi no nariz. Estava disposto a esgotar todas assuas forças e morrer contente se pudesse deixá-lo maltratado e fatigado, se sentia como serompesse os ossos do capitão e o correr do sangue quente embaixo de seus punhos.Necessitavavingança!

Umas mãos tiraram ele mas não se importou. Tão pouco lhe importava que o matassem. Ocorpo que estava embaixo se retorcia entre suas pernas até ficar imóvel.

Quando chegou o golpe seguinte, Jamie se afundou na escuridão.Se despertou com o suave contato de uns toques em sua cara. Alargou a mão, sonolento para

pegar, mas…- Aaahhh!Se levantou com instintiva repulsão dando tapas no rosto. A enorme aranha, quase tão

assustada como ele, fugiu depressa até os arbustos. Atrás dele se ouviram uma risadas. Girou,com o coração palpitando como um tambor, e se encontrou com seis crianças trepadas nasramas de uma árvore, sorrindo com os dentes manchados de tabaco.

Fez uma reverencia mareada e com as pernas frouxas; a impressão que o haviam impulsadoa levantar-se ia desaparecendo de seu sangue.

— Mademoiselles, Messieurs — saudou rouco. No fundo de sua mente se peguntou por queestava falando em frances.

Eram franceses, pois lhe responderam o mesmo idioma, ainda com um áspero acento criouloque nunca havia ouvido.

—Vous étes matelot? — perguntou o maior abservando-o com interesse.Dobrou os joelhos e teve que sentar-se bruscamente, o que fez rir outra vez as crianças.- Non — respondeu lutando por mover a lingua — Je suis guerrier.- Soldado! - exclamou um dos mais pequenos, com olhos redondos e escuros - Onde tens a

espada e a pistola?- Não sejas tonto - lhe disse um menina um pouco maior, altanada. - Como quer que nade

com uma pistola? Estragaria, cabeça de goiaba.- Não me digas isso, cara de caca! - gritou o mais pequeno.Gritavam e se perseguiam entre os ramos como uns macacos. Jamie passou uma mão pelo

rosto, tratando de pensar.- Mademoiselle!A maior das meninas se deixou cair em terra.- Monsieur?- Pareces uma mulher informada. Diga-me por favor, como se chama este lugar?— Cabo Haitiano — respondeu de imediato, olhando-o com curiosidade.- Falas esquisito.- Tenho sede. Há água perto?

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Cabo Haitiano. Então estava em La Española.- Por aqui, por aqui. - As outras crianças haviam descido da árvore e uma das pequenas lhe

segurava a mão.Se ajoelhou junto ao riacho para encher as mãos; molhou a cabeça e bebeu a grandes tragos

a água deliciosamente fresca. Agora lembrava: o marinheiro de cara de rato, a cara supreendidado jovem Leonard, sua profunda ira, a satisfatória sensação da carne esmagada embaixo de seupunho.

E Claire. A lembrança voltou súbitamente com uma emoção confusa de terror. logo, oalívio. O que aconteceu?

- És um desertor? - perguntou um dos meninos - Tens estado em um combate? - Olhava asmãos, feridas e doloridas.

- Sim - respondeu Jamie com o pensamento em outro lugar. Começava a se lembrar: oescuro aprisionamento onde haviam deixado sem sentidos; o horrível despertar, pensando queClaire havia morrido.

Estava ainda quase inconsciente quando abriu a porta do calabouço; um forte odor a cabralhe invadiu o nariz. Como aquela mulher teria feito para levá-lo pela escada até a coberta depopa? E por que? Somente recordava a última coisa que ela disse ao empurrá-lo até a grade:

- Ela não morreu. Ela está ali. - Apontava ao mar agitado - Ir também. Busca! - Tinha seagachado para subir até a grade.

- Não és ingles - comentou o pequeno - Esse é um barco ingles, não?Se voltou automaticamente até o lugar que ele apontava e viu o Marsopa ancorado. Havia

outros barcos agrupados no porto, claramente visíveis desde a colina.- Sim - confirmou - É um barco ingles.- Um ao meu favor! - exclamou o menino, feliz - Eu tinha razão, Jacques! É ingles! São

quatro ao meu favor e somente dois para ti, em todo o mes.- Tres - corrigiu Jacques indignado— Advinhei o espanhol e o portugues. A bruxa era

portuguesa, assim também se conta.Jamie alargou uma mão para segurar o menino pelo braço.- Pardon, Monsieur.Teu amigo mencionou uma bruxa?- Sim; esteve aqui na semana passada - respondeu o menino - Bruxa é um nome portugues?Não sabemos se contamos como espanhol ou portugues.- Alguns dos marinheiros estiveram na taberna de minha mamãe - comentou uma das

pequenas. - Pareciam falar em espanhol, mas não como fala tio Geraldo.- Eu gostaria de falar com tua mamãe, chérie — disse Jamie a menina - Algum de voces

sabem onde foi que a Bruxa zarpou?- Em Bridgetown — interveio a maior tratando de recobrar a atenção do desconhecido - Me

disse o empregado do quartel.- De qual quartel?- Os barracões estão juntos a taberna de minha mamãe - disse a mais pequena. - Os capitães

dos barcos vão sempre ali com seus papeis enquanto os marinheiros se embriagam. vem! vem!

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Mamãe te dará de comer.- Acho que tua mamãe vai por as minhas patas na rua. - disse Jamie frontando-se com a

espessa barba não feita. - Pareço um vagabundo.E era verdade.- Já viu piores - assegurou a pequena - Vem!Lhe deu obrigado com um sorriso e se deixou conduzir colina abaixo, tropeçando de vez em

quando, pois ainda não havia se habituado a caminhar em terra.Era isso que queria dizer a mulher das cabras? Claire tinha nadado até a ilha?A esperança lhe refrescou o coração. Ainda mais, a Bruxa e Ian estavam próximos. Ia se

reunir com os dois. Ele estava descalço, sem um centavo e sendo fugitivo da Marinha Real,lheparecia um pouco sem importancia. Tinha sua imaginação, suas mãos e terra embaixo dos pés.Tudo parecia possível.

CAPÍTULO 52

CELEBRANDO UM CASAMENTO

Não tinha outro remédio a não ser reparar o Artemis quanto antes e zarpar até Jamaica. Fiztudo o possível para afastar o medo que sentia por Jamie, mas durante os dois dias seguintesapenas pude comer.

Para distrair a Marsali, a levei a casa da colina, onde acabou conquistando o padre Fogdenpreparando-lhe uma receita escocesa contra os carrapatos. Stern colaborou nos trabalhos dereparação, deixando-me a custodia de sua bolsa de espécies e ao encargo de pegar qualquer sercurioro de Arachnida que caisse em minhas mãos enquanto buscava plantas medicinais.

No terceiro dia, ao sair da selva, ví que havíamos entrado em uma nova etapa; O Artemis jánão estava tombado sobre um flanco, percebi que ia recobrando pouco a pouco sua posiçãovertical, ajudado por cordas, cunhase muitos gritos.

- Já está quase terminando? - peguntei a Fergus, que permanecia em pé junto a popa.Se voltou sorrindo e secando o suor de sua testa.- Sim, Milady! Já está quase pronto. O senhor Warren opina que poderemos zarpar ao

anoitecer, quando refrescar e quando a resina estiver endurecida.- Que maravilha! - Estiquei o pescoço para observar o mastro desnudo - Temos velas?- Oh, sim - me assegurou - Temos tudo o necessário, menos…Interrompeu um grito de alarme de MacLeod.- Soldados! - Fergus, reagindo sem saber de nada, saltou dos andaimes e aterrizou ao meu

lado - Pronto, milady, ao bosque! Marsali!

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A menina apareceu atrás do casco, pálida e sobressaltada. Fergus a empurrou até mim.- Vá com milady! Corre!Lhe segurei a mão e corremos até a selva, levantando areia em nossos pés. Desde o caminho

nos chegaram gritos;acima sonou um disparo, seguido por outro. Nós nos jogamos numa maraespinosa.

- O que? - ofegou Marsali - Quem são? Que…vai a…contecer? Fergus!- Não sei. - Com a respiração ainda agitada me pus de joelhos - Tudo estava bem. Olha, são

somente dez - disse contando os soldados que saiam do palmar - São franceses. O Artemis temdocumentos franceses. Talvez não haja problemas.

Mas talvez sim. Era legal apoderar-se de um barco ancorado e abandonado. A praia estavadeserta. E entre os soldados e o botim somente se interpolavam aos tripulantes do Artemis.

Os homens guardavam silencio, agrupados atrás de Fergus, que se mantinha erguido ecenhudo. Vi ele afastando a mecha da testa com o gancho e lançou os pés em terra,preparando-se para o que pudesse acontecer. Os cavalos avançavam a passo lento, com o ruidodos cascos sufocados pela areia.Se detiveram a tres metros do grupo. O gigante que pareciaestar ao comando levantou uma mão, ordenando parar, e desceu do cavalo. Então vi comoFergus mudava de expressão e ficou petrificado, pálido embaixo do bronzeado de sua pele.

— Silence, mes amis — pediu o grandão em tom de cordial autoridade - Silence et restez,s’il vous plait.

Se não houvesse estado de joelhos me havia derrubado. Fechei os olhos e em uma mudaoração de agradecimento. Marsali, ao meu lado, fez uma exclamação.

O comandante tirou o chapéu, sacudindo uma espessa massa de cabelo ruivo empapado desuor e dedicou a Fergus um enorme sorriso.

- Voce está no comando? - disse Jamie em frances - Vem comigo. Os demais ficam ondeestão. - Vários dos tripulantes o olhavam com assombro - Não digas nada - acresceitoudespreocupado.

- O que fazem? - sussurou Marsali ao meu ouvido. Pálida de excitação, a caca de seu narizressaltava o contraste - Como ele chegou até aqui?

- Não sei! Cala-te por Deus!Jamie e Fergus caminharam até a margem falando em voz baixa. Por fim se separaram.

Jamie ordenou aos soldados que desmontassem e se reunissem em torno dele; não pude ouvir oque diziam. Em troca, Fergus, que havia voltado junto ao casco, estava ao alcance de nossosouvidos.

- São soldados do quartel Cabo Haitiano — anunciou aos tripulantes - O capitão Alessandro- disse levantando as sombrancelhas em um odioso gesto para acentuar o nome - disse que nosajudará a zarpar o Artemis.

O anúncio foi recebido com algumas exclamações de alegria evarios gestos desconcertados.- Mas, como é que o senhor Fraser…? - começou Royce, um marinheiro bastante escasso de

entendimentos.- Verdade que é uma casualidade? - lhe interrompeu Fergus em voz alta, rodeando os

ombros com um braço para retorcer a orelha - Um grande sorte, por certo! O capitão

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Alessandro diz que um homem, caminho de sua plantação, vioo barco tombado e informou aosquartéis. Com tanta ajuda teremos o Artemis a navegar em muito pouco tempo. Vamos, vamos,mãos a obra! Manzetti, nos martelos! Maitland…! — O marinheiro olhava a Jamieboquiaberto. Fergus lhe deu uma palmada no traseiro, com força suficiente para faze-lo parar -Maitland, mon enfant! Canta algo para acelerar nossos esforços.

Os marinheiros voltaram aos andaimes dando olhadas desconfiadas por cima dos ombros.Fergus ia de um lado ao outro, rogando, dando tal espetáculo que foram poucasas olhadasreveladroas desviadas até Jamie.Os martelos reiniciaram seus golpes vacilantes.

Enquanto isso, Jamie dava cautelosas diretrizes a seus soldados. Mais de um frances olhavacobiçosos ao barco, como se não estivessem ajudando por generosidade. Sendo assim sepuseram mãos a obra de boa vontade. Tres deles montaram guarda, armados e atentos a cadamovimento dos marinheiros. Jamie permanecia afastado, observando tudo.

- Saimos? - me perguntou Marsali ao ouvido.- Não - Eu não afastava os olhos de Jamie, que esperava erguido, a sombra da alta palmeira.

Sua expressão era indecifrável embaixo da estranha barba mas captei um leve movimento: osdois dedos esticados tamborilavam na coxa - Não, ainda não terminou.

O trabalho continuou durante toda a tarde. Um montão de troncos cortados ia aumentando edeixava o ar com um cheiro de seiva fresca. Fergus já estava rouco e sua camisa se aderia aotorso delgado.Os marinheiros haviam parado de cantar e trabalhavam sem dar mais que umaolhada ocasional até a palmeira que dava sombra ao capitão Alessandro.

Foi uma longa espera, que o assedio dos mosquitos fazia ainda mais dura. Notei que Jamiefez um sinal a um dos soldados e se aproximava das árvores.Depois de indicar a Marsali queme esperasse, me agachei embaixo das ramas, sem prestar atenção ao mato, e avancei comoenlouquecida até o lugar onde o havia visto desaparecer. O encontrei amarrando a braguilha dacalça. O ruido fez que voltasse bruscamente a cabeça; seu grito fez que Arabella se levantasseentre os mortos, não mencionando o centinela que o aguardava.

Me deitei para me esconder: um ruido de botas se aproximava de nós.— C’est bien! —gritou Jamie um pouco nervoso — Ce n’est qu’un serpent!O centinela falava um dialeto estrnho; parecia ter perguntado se a serpente era perigosa.

Jamie respondeu que não e , sem vacilação, se lançou até a espessura.- Claire! 0 Me estreitou contra seu peito e me sacudiu com força pelos ombros - Maldita

sejas! Achava que estavas morta! Como podes cometer a loucura de saltar no mar no meio danoite? Não tens juízo?

- Solta-me! - sussurei - Já disse para me soltar! Achas que não tenho cérebro? E vocegrandíssimo idiota? Como te ocorreu me seguir-me?

- Como assim me ocorreu? És minha esposa, Deus bendito! Como não ia te seguir! Por quenão me esperou? Por Deus, se a pegasse a tempo…

Traguei com alguma dificuldade meus próprios cometários. Em mudança disse:- Que dizbos estás fazendo aqui?- Sou o capitão - respondeu surgindo um sorriso - Não tinhas te dado conta?- O capitão Alessandro, sim! O que pensas fazer?

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Em vez de responder, me deu uma última sacudidace repartiu uma olhada fulminante entreminha pessoa e Marsali, que havia aparecido com sua cabeça inquisitiva.

- Não se movem daqui se não querem molar as madeiras.Sem esperar resposta, girou para voltar a praia.Marsali e eu trocamos uma olhada, interrompida um segundo depois por Jamie que havia

reaparecido. Me segurou pelos braços para dar-me um beijo.- Me esqueci: Te amo - disse me sacudindo outra vez - E me alegro de que não estás morta.

Mas não o faças nunca mais!Desapareceu. Marsali tinha os olhos surpresos.- O que vamos fazer? - perguntou - E ele?-Não sei. Temos que esperar.A espera foi grande. Próximo ao entardecer, enquanto dormia enconstada no tronco de uma

ávore enorme, Marsali me apoiou uma mão em meu ombro.- Estão lançando o barco! - sussurou excitada.O sol estava se pondo: reluzia, enorme e alaranjado, sobre um mar que havia adquirido o

tom púrpuro do coral. Os homens eram silhuetas negras, tão anonimas como os escravos dosfrisos egípcios atados pelas sogas em suas enormes cargas.

Quando o casco se deslizou, vi um lampejo de cabelo ruivo: Jamie subia ao barco seguidopor um de seus soldados. Os dois motanram guarda a bordo enquanto os tripulantes do Artemisremavam a chalupa e subiam pela escalera, junto com o resto dos soldados franceses.

Quando o último homem abandonou a escalera, os remadores olharam tensos para cima.Não aconteceu nada.

- O que fazem? - me perguntou Marsali exasperada.Como resposta, do Artemis se ouviu um grito furioso. Os homens que permaneciam nos

botes se levantaram imediatamente prontos para subir a bordo. Mas não se produziu nunhumoutro sinal. O Artemis flutuava serenamente nas águas da enseada.

- Eu estou farta - decidi - Estes condenados já fizeram o que queriam, seja lá o que for.Vamos.

Tomei uma baforada de ar fresco do anoitecer e sai seguida por Marsali. No momento emque chegamos a praia, uma figura escura e delgada se soltou pelo flanco do barco e correu pelabaixada.

— Mo chridhe chérie! — Fergus corria até nós. Se apoderou de Marsali para levantá-la noar - Nós fizemos! Nós fizemos sem disparar uma só bala! Estão todos amarrados como gansose apertados como arenques na bodega!

Depoisd e beijar energicamente a moça, a deixou na areia e se voltou até mim com umceremoniosa reverencia.

- Milady!, o capitão do Artemis solicita a honra de vossa presença em sua mesa na hora dojantar.

O novo capitão do Artemis estava no meio de sua cabine, completamente nú e coçando ostestículos com os olhos fechados e expressão de felicidade.

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- En… - sussurrei ante aquele cena.Abriu os olhos, radiantes de alegria. Num instante me encontrava envolta em seu abraço,

com o rosto apertado contra os cachos dourados de seu torso.Me soltei dando um passo para trás.- Deveria se vestir - sugeri - Não é que eu não desfrute o espetáculo, mas… - Acabei me

ruborizando - E…acho que esta gostei de sua barba.- A mim não - disse sem rodeios. - Estou cheio de piolhos e picam como todos os diabos.- Aaah!Sorriu. Seus dentes brancos ressaltavam a barba ruiva.- Não se preocupe, Sassenach. Eu mandei trazer uma navalha e água quente.- De verdade? É uma pena que vá tirar tão rápido. - Apesar dos piolhos, me aproximei para

inspecionar a barba - Que engraçado. Na cabeça não tens branc, mas aqui sim.- É mesmo? O que me estraanha é não ter enbranquecido totalmente com tudo o que me tem

passado este mes. E falando disso, Sassenach, como te dizia entre as árvores…- Falando disso, sim - o interrompi - Que diabos fizes-te?- Te referesaos soldados? - Coçou o queixo pensativo - Bem, foi simples. Lhe disse que

quando o barco estivesse a flutuar, reuniríamos a todos na coberta e, a um sinal meu, cairíamossobre a tripulação para trancá-los na bodega - sorriu - Somente Fergus havia posto a tripulaçãosobreaviso. A medida que os soldados iam chegando a bordo, dois dos marinheiros oseguraram pelos braços e um terceiro se encarregava de amordaça-los e tirou as armas. Foramlevados todos a bodega. E isso é tudo - se encolheu de ombros com modesta desenvoltura.

- E quanto o como chegas-te aqui…Nos interrompeu uma discreta chamada na porta.- Senhor Fraser? É…capitão? - O rosto anguloso e juvenil de Maitland apareceu por cima de

uma tigela fumegante. - O senhor Murphy já tem o fogo aceso e manda água quente com suassaudações.

- Me chame de Senhor Fraser está bem? - disse Jamie pegando a bandeja com a tigela e anavalha - Não há ninguém menos digno de chamar-se capitão - Fez uma pausa, atento ao ruidode pisadas. - mas sou capitão, no fim das contas. Isso significa que devo ordenar quandoestamos no mar e quando quiser parar-nos.

- Sim, senhor, essa é uma das coisas que fazem os capitães - afirmou o marinheiro - Etambém indicam quando se devem repartir racionando adicionais de comida e bebida.

- Compreendo. Diga-me, Maitland:Quanto pode beber um marinheiro sem perder suacapacidade oerativa?

- Oh, bastante, senhor - assegurou o moço pensativo - Talvez…uma porção adicionaldobrado para todo mundo?

Jamie levantou uma sombrancelha.- De conhaque?- Oh, não senhor! - O marinheiro parecia escandalizado - De alimento. De conhaque,

somente meia quantidade extra, senão iram rodar pela letrina.

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- Assim: dobrem a porção de alimento - Jamie se inclinou ceremoniosamente até omarinheiro, sem se importar pelo fato de estar completamente desnudo. - E que o barco nãolevante ancora até que eu termine de jantar.

- Sim senhor! —Maitland lhe devolveu a reverencia; os modos de Jamie eram contagiosos -Devo dizer ao chines que os atenda quando levantarmos ancora?

- Adiante, senhor Maitland. Muito obrigado.O rapaz deu uma última olhada de admiração as cicatrizes de seu capitão e se voltou para

sai, mas se deteve.- Algo mais, Maitland.- Sim, senhora?- Queres descer a cozinha e pedir para o senhor Murphy que me envie uma garrafa de

vinagre a mais forte? Depois averigua onde colocaram minhas medicinas e traga-me também.Desconcertado, o rapaz assentiu:- Oh, sim senhora. De imediato.- Que pensas fazer com o vinagre, Sassenach? —Jamie me observava com os olhos

entornados.- Te encher dele para matar os piolhos. Não penso dormir com uma horda de parasitas.Coçou o pescoço pensativo.- Ah, isso significa que pensas dormir comigo, não?- Não sei exatamente onde, mas isso eu penso - assegurei - E gostaria que não tirasse ainda a

barba.- Por que não? - Me deu uma olhada curiosa por cim do ombro.Senti que me acendiam as bochechas.- Es que…bem, é…diferente.- Ah é? - Deu um passo até mim. Seus olhos azuis escuror se tinham enviesado divertidos.

Em que sentido?- Bem, é…hum…- Me rocei com os dedos nas ardosas bochechas - É diferente quando me

beijas. Na …pele.Cravou seus olhos nos meus. Não tinha se movido mas parecia estar muito mais próximo.- Bom, é uma pena não usar a água quente. A devolvo a Murphy para que faça sopa ou eu a

bebo?Me deitei a rir. A tensão se dissolveu de imediato.- Usa para lavar-te. Cheirando a bordel.Alguém tossiu na soleira da porta.- Oh, perdoname, senhor Willoughby —se desculpou Jamie. - Não te esperava tão rápido.

Não prefere primeiro jantar? E aproveitando, leva estas coisas a Murphy para que queime nacozinha.

Botou ao senhor Willoughby os restos de seu uniforme e começou a revolver a arca em

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busca de roupa limpa.- Não esperava voltar a ver Lawrence Stern — comentou - Como veio parar aqui?Lhe contei meu encontro com Stern no mangal.- …E me levou a casa do padre. - me interrompi ante um súbito recordo - Ah, eu me

esqueci! Deves a este padre duas libras esterlinas pela Arabella.- Eu? - Jamie me olhou sobressaltado, com uma camisa na mão.- Sim. Será melhor que envies a Lawrence como embaixador. Parece se dar bem com ele.- De acrodo. O que aconteceu come ssa tal Arabella? Foi ultrajada por algum tripulante?- Pode se dizer que sim. - Tomei cuidado para explicar, mas antes de que pudesse falar

deram outro golpe na porta.- Não vão deixar que me vista em paz? - protestou Jamie irritado - Entre!A porta se abriu devagar, revelando a presença de Marsali, que pestanejou ao ver a nudez de

seu padrasto.Jamie se apressou a cobrir-se com a camisa que tinha nas mãos e a saudou com acabeça.

- Marsali, filha, me alegro de que estás bem. Necessitas algo?- Necessito que cumpras a promessa - disse ela.- Qual? - Jamie parecia desconfiar.- A de casar-me com Fergus quando chegamos nas Antilhas - Apareceu uam pequena ruga

entre as sombrancelhas ruivas - La Española está nas Antilhas, não?- Em efeito. E suponho que sim…bem, está certo, eu prometi. Mas…realmente tem certeza?

Os dois?- Estamos certos.- Onde está Fergus?- Ajudando a colocar a carga. Preferi dizer antes de que zarpássemos.- Bom. - Jamie deu um suspiro de resignação - Mas também disse que devias receber a

benção de um padre. O padre mais próximo está em Bayamo, a tres días de viagem. Talvez naJamaica…

- Se esquece de algo! - exclamou Marsali triunfal.- Temos um sacerdote aqui mesmo. Opadre Fogden.

- Mas partiremos pela manhã!- Não demorará tanto - alegou ela - Depois de tudo, são somente algumas palavras. Já

estamos legalmente casados. Bastará a benção da igreja, não? - Apoiou uma mão no abdomen,onde, presumivelmente, guardava o contrato matrimonial, abaixou o corpete.

- Mas tua mãe…Jamie me deu uma olhada indefesa, buscando reforços. Me encolhi os ombros com a mesma

impotencia.- Não creio que aceite - objetou Jamie com ar de alivio - A tripulação molestou uma de suas

paroquianas, chamada Arabella. Temo que não queira fazer nada por nós.

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- Fará por mim! Ele gostou de mim!Quase bailava de entusiasmo. Jamie estudou sua expressão. Era tão jovem…- Estás segura disso, filha? - peguntou no fim com muita suavidade.Ela respirou fundo.-Sim, papai! Quero Fergus! O amo!Jamie vacilou. Por fim passou uma mão pelo cabelo.- De acordo. Envía-me ao senhor Stern. Logo me traga Fergus e diz que se prepare.- Oh, obrigada, papai, obrigada!Marsali se lançou sobre ele para dar-lhe um beijo. Jamie a apertou com um braço, sem soltar

a camisa com que se cobria e a beijou na testa.- Tem cuidado - advertiu empurrando-a com suavidade - Não quero que chegues ao leito

nupcial coberta de piolhos.- Oh! - Como se recordasse algo se voltou até mim, ruborizada - Claire, poderias me

emprestar…um pouco desse sabão especial que preparas com camomila?Sim…sim temos tempo-disse dando uma olhada a seu padastro - eu gostaria de lavar a

cabeça.— Claro - respondi sorridente.- Vem. Te ajudarei ficar bonita.Dei uma olhada nela, desde a cara redonda e brilhante até os sujos pés descalços.Logo me voltei até Jamie.— Necessita um bom vestido para a cerimonia.— Sassenach — protestei - não temos…- Nós não, mas o padre sim - interrompi - Lawrence pode pedir ao padre Fogden que nos

empreste um de seus vestidos. Quer dizer, um dos vestidos de Ermenegilda. Creio que são deseu tamanho.

Jamie ficou atónito pela surpresa.— Ermenegilda? Arabella? Vestidos? — Me olhou com os olhos semicerrados - Que tipo de

padre é esse, Sassenach?- Bem, bebe um pouco - reconheci da porta - E está muito afeiçoado com suas ovelhas. Mas

ainda deve de se recordar como é um casamento.Foi uma dos casamentos mais estranhos que eu havia assistido. Quando tudo estava pronto,

o sol já tinha se ocultado por atrás do mar. Para chatear o senhor Warren, o segundo oficial,Jamie declarou que não partiríamos até o dia seguinte, para conceder aos recém casados umanoite de intimidade em terra.

- A mim não me ocorreria consumar um matrimonio em uma dessas maçditas liteiras - medisse em particular - Se copulam pela primeira vez ali, jamais poderemos desuní-los. Edesflorar uma moça em uma cama…

- Certo - disse sorrindo para mim mesma enquanto derramava mais vinagre em sua cabeça -Muita consideração de tua parte.

Agora o tinha ao meu lado, na praia, onde brilhava muito digno e charmoso com seu casco

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azul, sua calça de sarja cinza e os cabelos amarrados atrás com uma fita.Murphy e Maitland, as testemunhas, eram menos impressionantes, mesmo o cozinheiro ter

lavado as mãos e o marinheiro a cara. Fergus tinha preferido Lawrence Stern e Marsali a mim,mas afastamos a idéia; em primeiro lugar, Stern não era católico, nem sequer cristão. E mesmoque eu não tivesse problemas com a religião, era provável que Laoghaire ficasse muito mal.

- Eu disse a Marsali que devo escrever a sua mãe para anunciar o casamento - me sussurouJmaie enquanto observávamos os preparativos - Mas acho que não devia dar mais detalhes.

Me pareceu muito razoável.Não sei qual foi o milagroso argumento atuado por Lawrence, mas ali estava o padre

Fogden,frágil e insípido como um fantasma, com as faíscas azuis dos olhos como único sinalde vida. Sua pele estava tão cinza como a batina e sustentava o livro de orações com as mãostrêmulas. Cambaleando entre as tochas tentava, dificultado pelo vento, voltar as páginas dolivro. Por fim, vencido, o deixou cair na areia.

- Hum! - disse. E arrotou. R desfilou entre nós com um sorriso de satisfação.- Mamadosfilhos de Deus…

Passaram vários segundos até que o grupo de espectadores se deu conta de que já haviacomeçadp a cerimonia.

- Aceitas a esta mulher? - perguntou o oadre Fogden, voltando súbutamente até Murphy umaolhada feroz.

- Não! - protestou o cozinheiro, sobressaltado - Não gosto das mulheres. Bichos sujos.- Não? - O padre Fogden fechou um olho. Olhou a Maitland - Aceita voce esta mulher?- Não, senhor, eu não. Mesmo sendo um prazer, claro - disse rapidamente o rapaz - Ele, por

favor - Apontava a Fergus, que estava lançando olhares assassinos ao sacerdote.- Está certo? Maste falta uma mão! - observou o padre Fogden, em dúvida - A moça não se

importa?- Não me importo! - assegurou Marsali imperiosa. Brilhava com um dos vestido de de

Ermenegilda, de seda azul e bordado com fios de ouro ao redor do decote. Mesmo aborrecida,estava preciosa. Seu cabelo limpo e bem escovado brilhava como uma palha fresca - Continua!

- Oh, sim - disse nervoso, dando um passo para trás. - Bem, suponho que isso não é imped…impedi…impedimento, apesar de tudo; se houvesse perdido o pênis, digo…Voce o tem, não? -perguntou com ar preocupado - Se não, não posso casá-los. Não se é permitido.

Para sufocar o iniciante alvoroço, Jamie ficou atrás de Fergus e Masali e apoiou as mãos emseus ombros.

- Este homem e esta mulher - disse sinalizando - Case-os, padre. Agora mesmo, por favor.Retrocedeu um passo, restaurando a ordem entre o público com uma cenhuda olhada.- Oh, bem,bem - O padre Fogden oscilou um pouco - Sim, bem, bem.Seguiu uma larga pausa, durante a qual o sacerdote olhou de relance a Marsali.- Teu nome - disse bruscamente - Faz falta um nome. Não posso casar quem não tem um

nome, assim como não posso casar a quem não tem pi…- Marsali Jane MacKimmie Joyce! — disse em voz bem alta.

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- Sim,sim, claro. Marsali. Mar-sa-li. É isso. Mar-sa-li, aceitas a este homem mesmo faltandouma mão e talvez outras partes que não estão a vista, como seu legítimo esposo? Para amá-lo eobedece-lo, desde agora até para sempre, com exclusão de…

Nesse ponto ele se perdeu, desviando a atenção até uma das ovelhas, que se haviaaprosimado a luz e mastigava aplicadamente uma meia de lã.

- Aceito!O padre Fogden recuperou a atenção. Depois de um infrutuoso intento de sufocar outro

arroto, transferiu seus olhos azuis a Fergus.- Voce também tens nome? E penis?- Sim - respondeu Fergu; teve a prudencia de não dizer detalhes - Fergus.O padre franziu levemente o semblante.- Fergus? Fergus, Fergus. Sim, Fergus, isso está entendido. Não há mais? Necessito mais

nomes, claro.- Fergus —repitiu em francés com a voz tensa.Seu nome era Claudel mas Jamie o havia dado o nome de Fergus ao conhece-lo, vinte anos

atrás. Era natural que um bastardo, nascido em um bordel, não tivesse sobrenome para brindara sua esposa.

- Fraser - disse uma voz grave e segura.Os noivos se voltaram, supreendido. Jamie assentiu com a cabeça, olhando ao jovem com

um leve sorriso.—Fergus Claudel Fraser — pronunciou com lentitude e clareza.Fergus pareceu se transficurar.- Fraser - confirmou ao sacerdote com a voz rouca. Pigarreou - Me chamo Fergus Claudel

Fraser.Uma breve cotovelada nas costas, aplicado por Maitland,devolveu o padre a noção de sua

responsabilidade.- Ah! Hum, bem. Marido e mulher. É isso. Os declaro marido e…Não, não está certo. Não

me disse se a aceitas. A moça tem ambas as mãox - disse para ajudar.- Aceito - afirmou Fergus.Afundou a mão no bolso para tirar um pequeno anel de ouro. Provavelmente tinha comprado

na Escócia e o guardava até então, para não consumar o matrimonio antes de ter recebido abenção…não de um sacerdote, sim de Jamie.

Estava feito. Marsali levantou o rosto radiantes e encotnrou seu espelho nos olhos deFergus. Senti o ardor das lágrimas detrás das pálpebras.<<Te amo>> Eu não sei o que tinhadito a Jamie em nosso casamento; até então eu não o queria. Mas no tempo transcorrido sei quehavia dito tres vezes: duas em Craigh na Dun e uma vez mais em Lallybroch.

<<Te amo>> Ainda o amava e nada poderia intepor entre nós dois. Ele estava me olhando;senti o peso de seus olhos azuis, escuros e ternos como o mar ao amanhecer.

- Em que estás pensando, mo duinne? - perguntou com doçura.

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Pestanejei para afastar as lágrimas, sorrindo. Suas mãos eram grandes e cálidas nas minhas.- O que te disse tres vezes é verdade.E me coloquei na ponta dos pés para dar-lhe um beijo, enquanto os marinheiros estavam em

festa.

NONA PARTE

MUNDOS DESCONHECIDOS

CAPÍTULO 53

FERTILIZANTES DE MORCÉGOS

o fertilizantes fresco de morcégos é uma substância viscosa de cor verde escura que uma vezseca se converte em poeira parda.Em ambos estados emite um cheiro a almísca, amoníaco eapodrecido que enche os olhos de lágrimas.

- Quanta desta porcaria nós vamos ter que levar? - perguntei através do lenço com o qual mecubria a boca e o nariz.

- Dez toneladas - respondeu Jamie com a voz sufocada.Estávamos na coberta superior vigiando os escravos que levavam os carrinhos de mão

carregados com a escotilha aberta da bodega.

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- Sabes como se passa alguém pela quilha, Sassenach?- Não, mas se estás pensando em Fergus te ajudarei a averiguar. A que distancia fica

Jamaica?- Tres ou quatro dias de navegação, segundo Warren — disse com um suspiro - se o tempo

se manter assim.Fergus havia obtido para o Artemis aquele primeiro contrato: uma carga de dez toneladas

cúbicas de fertilizante, de Barbados a Jamica, para ser utilizado como fertilizante na plantaçãode açucar de um tal senhor Grey.

Fergus estava supervisionando pessoalmente a operação, o esterco seco se enchia emenormes blocos que se transportavam em carrinhos até a bodega, onde se colocam a mão umpor um.

Marsali, que nunca se afastava de seu lado,estava no castelo da proa; ali estava sentada emum barril de laranjas, com o rosto envolto de um belo xale que seu marido lhe havia compradono mercado.

- Se supõe que somos um barco mercante, não? - Havia argumentado com Fergus - Temosuma bodega vazia que cheia monsieur Grey nos pagará generosamente.

- Pode ser que o cheiro se dissipe no mar - disse.- Oh, sim, Milady - me assegurou Fergus ao ouvírme - Me disse o proprietário que o cheiro

diminui uma vez que se retira o material seco das cavernas onde se armazenam.Subiu como um macaco pela cordagem para atar o lenço vermelho que chamava a bordo a

tripulação.- Fergus parece muito interresado nesta carga - comentei.- Participa como sócio - explicou Jamie - Lhe disse que tinha uma esposa que manter e devia

buscar a maneira de faze-lo. Como passará algum tempo antes de voltar a trabalhar naimpressa, terá que se dedicar nisso no momento.

- Reconheço que eu gostaria de ler a carta que Marsali escreveu a sua mãe. Primeiro, sobreFergus; logo o padre Fogden e Mamacita e, agora, dez toneladas de merda como dote.

- Quando Laoghaire souber não poderei voltar a Escócia - disse com um sorriso - Já pesnouo que vai fazer com sua nova aquisição.

- Não me lembro - disse - Onde está?- Embaixo - Jamie se distraiu observando um homem que se aproximava pelo cais - Murphy

lhe tinha dado de comer e Innes o estava procurando no alojamento. Minhas desculpasSassenach, acho que me procuram.

Saudou a um colono alto de cara vermelha e avezada, com ar de prosperidade. Sua presençadevia de ser resultado da visita que Jamie havia feito a loja maçônica de Bridgetown paraperguntar pelo jovem Ian e pedir informação sobre A Bruxa. O grande mestre havia prometidodivulgar a notícia entre os franco-maçons que frequentavam o mercado de escravos e do cais.

O observei com atenção. O rosto de Jamie expressava interesse, mas não exaltava nenhumadecepção.

Talvez não houve nenhuma notícia de Ian. Depois de ter visto o mercado de escravos no diaanterior, desejava que assim fosse.

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Lawrence, Fergus, Marsali e eu havíamos ido ao mercado de escravos, estreitamentevigiados por Murphy, enquanto Jamie visitava o Grande Mestre da loja. O irlandes, com suapaixão pela ordem e honra, insistiu que as mulheres levassem sombrinhas.

- Todas as mulheres brancas de Bridgetown usam sombrinhas - disse com firmeza enquantome dava uma.

- Não preciso - disse impaciente.Murphy me olhou escandalizado.- Querem que pense ser uma mulher pouco respeitável, que não cuida de sua fina tez?- Não penso viver aqui - disse áspera Não me importa o que pensam.- Mas vai…deixá-los…ruborizados! - protestou o cozinheiro tratando de abrir uma

sombrinha.- Oh, um destino pior que a morte, sem dúvida! - lhe espetei. Tinha os nervos ao extremo

ante os acontecimentos que nos esperava. - Bem, me dê esse traste!Pouco depois havia podido dar as graças por sua intransigência. Mesmo com o caminho

rodeado pelas altas palmeiras, o mercado de escravos era um amplo espaço sem sombra, excetopelas produzidas e desconjuntadas tendas com tetos de chapas ou de folhas de palmeiras nasquais os traficantes e leiloeiros se refugiavam ocasionalmente do sol. Se podia ver grandequantidade de corpos quase nús pertencentes a todas as raças. O fedor era espantoso, aindaestando acostumada com a fetidez de Edimburgo e com a peste de Marsopa.

- Jesus - murmurou Fergus ao meu lado, desviando o olhar. - Isto é pior que os tugurios deMontmartre.

Marsali, sem dizer uma palavra, se aproximou franzindo o nariz.Lawrence se mostrava o mais desembaraçado; provavelmente não era a primeira vez que

vinha a um mercado de escravos.- Os brancos estão no final - disse sinalizando ao lado oposto da praça - Venham;

perguntaremos se venderam homens jovens nos últimos dias.Uma negra anciana, em cócoras, alimentava com carvão um pequeno braseiro. Um grupo de

pessoas se aproximou dela: era a chefe de uma plantação acompanhado por dois negrosservidores sujos, vestidos com toscas calças e camisas de algodão. Um deles segurava pelobraço uma escrava recem adquirida. Por uma moeda, a anciã lhe ofereceu várias barras de ferroque tinha atrás de sí; escolheu dois e a entregou um dos servidores. ESte afundou as pontas dobraseiro enquanto o outro imobilizava a moça pelos braços. Uma vez quentes, retirou os ferrosdo fogo e pressionou na curva do seio direito da jovem; seu grito sonou como uma sirene. Aoretira-los ficaram marcadas as letras HB.

Fiquei parada enquanto os outros continuavam sem notar que não estava com eles. Dei avolta estremecida; atrás de mim se ouviam gritos e gemidos mas não quis olhar.Me bloqueavao passo um grupo de pessoas que escutava um leiloador enumerando as virtudes de um escravomanco, exibindo sua nudez sobre a plataforma.

- Não serve para trabalhar no campo mas é um bom investimento para cria.- Oferece garantia de virilidade? - perguntou,incrédulo, um homem que estava atrás de mim.O leiolador fingiu ofender-se pelas risadas do público.

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- Garantia? - repitiu - Veja com seus próprios olhos, homens de pouca fé!Inclinando-se até o escravo, começou a massagear vigorosamente o penis. O homem lançou

um grusnido de surpresa e tratou de se afastar mas um assistente o impediu segurando-o comfirmeza pelo único braço. Rápido, algo se revirou dentro de mim.

- Basta! - disse numa voz que não reconheci como minha.O leiloador levantou os olhos sobressaltado, dedicando-me um sorriso conquistador. Me

olhou diretamente nos olhos com um gesto obsceno.- Bom exemplar para cria, senhora. Garantiod, como podes ver.Fechei a sombrinha; depois lhe golpeei na cabeça, deixei cair minha arma e lhe assentei um

bom ponta pé.Sabia que não serviria de nada, que somente tinha feito piorar as coisas, mas não podia

deixar passar aquilo sem dizer nada. Não o fazia pela jovem marcada, nem pelo homem daplataforma: o fazia por mim mesma.

Se iniciou um barulho que me afastou do leiloador, o qual, recobrado pela surpresa e tratoude me dirigir um sorriso, desfechou uam enérgica bofetada no escravo.

Olhei ao meu redor buscando reforços e ví Fergus que abria passo entrea a multidão com acara contraída pela ira. Se ouviu um grito e vários homens se voltaram naquela direção; aspessoas começavam a se empurrar e alguém me tirou sobre os ladrilhos de pedra. Fiquei ali,confusa, já não me sentia alheia a situação senão descomposta e aterrorizada; acabava decometer uma tolice que provavelmente faria Fergus, , Lawrence e Murphy receberem uma boasova ou algo pior.

No mesmo momento apareceu Jamie.- Levanta-se, Sassenach — disse em voz baixa inclinando-se para me oferecer as mãos.Consegui fazer mesmo me tremendo as pernas. Vi o largo bigode de Raeburn a um lado e a

MacLeod atrás; vinha acompanhado por seus escoceses. Me afrouxou os joelhos mas Jamie mesustentou.

- Faça algo - disse com voz afogada - Por favor, faça algo.E ele fez. O único que podia sufocar o distúrbio e evitar danos maiores: comprou o manco.

Como ironico resultado de meu pequeno arrebato de sensibilidade, era a horrorizadaproprietária de um autentico escravo macho de Guinea, manco mas em excelente estado desaúde e com garantia de virilidade, conhecido pelo nome de Temeraire. O temerário. Nospapéis não sugeriam que demonios poderia fazer com ele.

Jamie tinha terminado de revisar os papéis que o colono lhe haviam trazido. Pelo que eu vida grade eram iguais aos que me haviam sido entegues pelo Temeraire.Os devolveu com umareverencia de agradecimento. Parecia preocupado.

- Estão todos a bordo? - perguntou ao subir pela prancha.- Sim, enhor - assegurou o senhor Warren— Içamos as velas?- Sim, por favor - Com um pqueno comprimento, Jamie o deixou para se aproximar de

mim.Sua expressão era serena mas percebi um profundo aborrecimento.Não sabia o que dizer elhe estreitei a mão que havia apoiado a grade.

- Bem, ao menos eu descobri algo. Esse homem era um tal Villiers, dono de uma grande

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plantação de açucar. Há tres dias comprou seis escravos do capitão do Bruxa. Nenhum deleseram Ian.

- Tres dias? - exclamei sobressaltada - Mas o Bruxa zarpou da La Española a mais de duassemanas!

Assentiu, frotando a bochecha.- Em efeito. E chegou aqui há cinco dias.- Ou seja que esteve em outro porto antes de vir a Barbados. Sabes onde?Sacudiu a cabeça.—Villiers não sabia. Disse que falou rápido com o capitão do Bruxa e que se mostrava

muito reservado sobre o que havia estado fazendo e onde. Não lhe chamou a atenção, pois obarco tem má fama. - sua expressão se animou um pouco - Me mostraram os papéis dosescravos que comprou. Já foi ver o seu?

- Não gosto que me digas isso - disse - Os que te mostrou eram iguais?- Não todos. Tres dos documentos não mencionava ao proprietário anterior. Villiers disse

que nenhum provinha diretamente da Africa já que todos falavam um pouco de ingles. Umconstava o proprietário anterior mas seu nome havia sido borrado e não pôde ler. os outros doishaviam pertencido a uma tal senhora Abernathy, de Rose Hall, Jamaica.

- Jamaica? - A que distância…?- Não sei - me interrompeu - Mas perguntaremos ao senhor Warren. En todo caso, acho que

agora devemos ir a Jamaica, mesmo que seja para somente nos desfazer desta carga antes deque o cheiro nos mate.

Enrrugou o largo nariz.- Quando fazes isso se parecer com um atrevido tamanduá - disse rindo.A intenção de distraí-lo teve exito. Se reclinou sorrindo na grade. Queria dizer algo a mais

mas a tosse o impediu.- Por Deus, o que é isso?O Artemis tinha se separado do cais para cruzar o porto. Ao virar o vento nos trouxe um

odor intenso e desagradável ao perceber mortos, madeira úmida, pescado, algas podres evegetação tropical. Cobri a boca e o nariz com um lenço.

- Estamos passando antes a fogueira que houve no mercado de escravos - explicou Maitlandao ouvir minha pergunta. Sinalizava a costa, odne uma fumaça branca se elevava atrás domatagal - Ali queimam os cadáveres dos escravos que não sobreviveram a viagem desde aAfrica.

Olhei a Jamie e em seu rosto encontrei o mesmo medo que devia refletir na minha.- Com quanta frequencia queimam os cadáveres? - perguntei - Todos os dias?- Não sei, senhora, mas não creio. Talvez uma vez por semana. - Encolhendo os ombros

Maitland voltou a suas tarefas.- Temos que ir - disse.Jamie estava muito pálido. Logo apertou os lábios - Sim - foi quando disse. E ordenou ao

senhor Warren que virasse até ao porto.

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Se encontrava ao cuidado da fogueira um homenzinho de cor e acento irreconhecível, noqual gritou ante a ideía de que uma senhora entrara ali. Jamie o afastou bruscamente com umacotovelada.

Era um pequeno barranco, com árvores fazendo o toldo, que se chegava facilmente a umpequeno porto projetado até o rio. Entre o verde brilhante das samambaias que se empilhavamaos barris de resinas e com monetes de lenha seca. A direita haviam formado uma pira imensa,com uma plataforma de madeira carregada de corpos impregnados de resina.

Jamie saltou a plataforma e, sem se preocupar com a fumaça e as faíscas, foi desprendendoos cadáveres e movendo com gesto cenhudo aqueles tristes restos.

- Para uam boa colheita - O homemzinho manchado de fuligem me estava oferecendoinformação com evidentes esperanças de receber uma recompensa. Sinalizava as cinzas - Fazcrescer semeado.

- Não, obrigada - disse debilmente.A fumaça escureceu a silhueta de Jamie; tive a horrível sensação de que havia caído na pira

e ardia com ela. O espantoso odor a carne assada se elevou no ar.— Jamie! —chamei— Jamie!Não respondeu, mas do fogo surgiu uma tão profunda e espasmódica. Minutos depois saiu

dando tumbos e sufocado, partindo o véu de fumaça. Desceu da plataforma e, dobrando-se,tossiu até quase cuspir os pulmões. Vinha coberto de fuligem oleoso, com as mãos e a roupamanchados de resina.

As lágrimas lhe corriam pelas bochechas, abrindo sulcos na fuligem.Dei várias moedas ao guardião da fogueira e, pegando o braço de um Jamie cegado e

convulso, o conduzi fora daquele vale da morte. Uma vez descendo nas palmeiras se colocouem joelhos e vomitou.

- Não me toques - Ofegou quando tratei de ajudá-lo. Vomitou varias vezes mais. Por fim selevantou com lentitude. - Não me toques.

Caminhou até a margem do cais e, tratou de tirar o casaco e os sapatos, se mergulhouvestido na água. Quando saiu se sentou com a cebeça nos joelhos e respirou com força.

Me inclinei para apoiar um mão em seu ombro. Ele a segurou sem levantar a cabeça.- Não estava - disse com voz rouca.

CAPÍTULO 54

O PIRATA IMPETUOSO

- Não poso ser dona de uma pessoa, Jamie - negando olhando com horror os documentosespalhados na luz da lamparina - Não posso. Não é certo.

- Eu sei, Sassenach. Mas o que vamos fazer com esse homem? - Jamie se sentou ao meulado da liteira - O mais correto era deixá-lo em liberdade, mas o que será dele? Não conhecemais que algumas palavras em ingles e frances e não tem oficio; mesmo que déssemos um

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pouco de dinheiro, poderia manter-se sozinho?- Não sei - reconheci — Lawrence me disse que em La Española tem muitos negros livres.Sacudiu a cabeça alargando a mão até um pãozinho.- Não creio. É certo que alguns negros livres podem ganhar a vida, mas são costureiras,

pescadores ou algo assim. Temeraire trabalhou cortando cana até que perdeu o braço e nãosabe fazer outra coisa.

Havia sido capturado na costa de Guinea cinco anos atrás. Meu impulso inical, era devolve-lo a sua terra, era obviamente impossivel: manco, ignorante e obrigado a viajar sozinho, nãodemoraria em voltar a ser capturado como escravo.

- Suponho que não queres vende-lo. - Jamie fez a questão com delicadeza - Poderiamosprocurar alguém que o tratasse bem.

- Não seria melhor que te-lo conosco - protestei - Pior ainda, porque não sabíamos comcerteza que sorte correia com seus novos proprietários.

- Sim, é verdade - suspirou Jamie - Mas há bondade alguma em libertá-lo para que passefome.

Jamie se levantou da liteira para se espreguiçar.- Não se preocupe , Sassenach. Falarei com o administrador da plantação de Jared. Talvez

eu possa achar algum emprego ou…O interrompeu um grito de advertencia:- Barco a vista! Estão armados! Dispara do bombordo! - anunciou desesperadamente o

vigia.- Por Deus, o que…? - Um estrondo terrível afogou as palavras de Jamie. Caiu para o lado e

minha banqueta se tombou me atirando ao chão.- Sassenach! Estás bem?- Sim - disse embaixo da mesa - E voce? O que aconteceu? Estão nos atacando?Sem responder, Jamie saltou até a porta. Da coberta chegava uma desordem de gritos e

golpes secos, enfatizadas pelos súbitos estouros das armas.- Piratas - disse brevemente - Nos abordaram. procura a Marsali e desci a bodega da popa,

onde estão os blocos de fertilizante. Se escondem atrás deles e não se movem dali.Me detive para pegar algum instrumento de medicina; talvez fosse de pouca utilidade contra

os piratas mas me sentia melhor com alguma arma na mão.- Claire? - Era a voz, aguda de medo, de Marsali.- Estou aqui. - Lhe dei um abre cartas com cabo de marfim - Toma isto, por se acaso precisa.

Vamos descer.A bodega estava escura como um breu. Avançamos com lentitude até a parte do fundo,

tossindo pelo pó e vapores do fertilizante.- Quem são? - perguntou com voz sufocda - Piratas?- Acho que sim. Vem se sentar. Só podemos esperar.Sabia por experiencia que esperar enquanto os homens combatiam era uma das coisas mais

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difíceis da vida; neste caso não havia outra alternativa.- Oh, Deus, meu Fergus - sussurou Marsali escutando os ruidos - Sálva-o, Virgem Bendita!Pensando em Jamie, me uni em silencio a sua oração. Ao fazer o sinal da cruz na escuridão

me toquei no ponto da testa onde me havia beijado minutos antes; não quis pensar que podiaser seu último beijo.

No mesmo momento se ouviu uma explosão que fez vibrar as madeiras sobre as quaisestavamos sentadas.

- Estão virando o barco! - Marsali se levantou de um salto,cheia de pânico. - Vão nosafundar! Temos que sair ou nos afogaremos!

- Espera! - lhe disse. - São somente os canhonaço.Mas ela já não escutava. Avançava, cega pelo medo e gemendo, entre os blocos de

fertilizantes.- Volta aqui, Marsali!Uma terceira vibração encheu o ar de poeira. Me limpei os olhos com a manga. Não eram

imaginaç~eos minhas: Havia luz na bodega, um leve resplandor iluminava a borda do blocomais próximo.

- Marsali? - Onde estás?A resposta foi um grito aterrorizado. Rodeei precipitadamente o bloco e sai ao espaço aberto

junto a escalera. Ali estava Marsali, nas garras de um homem meio desnudo.Estava muito gordo; suas capas de graxa bamboleante estvam decoradas com grande

diversidade de tatuagens; um colar de moedas e botões lhe rodeava o pescoço. Marsali lhe deuuma bofetada sem deixar de gritar e o homem afastou a cara impaciente. O verme dilatou osolhos, com um horrível sorriso.

- Suéltala! —ordenei em castelhano— Basta, cabrón!Era todo o espanhol que eu dominava. Lhe pareceu divertido, pois alargou o sorriso e se

voltou até mim soltando a Marsali. Lhe tirei um de meus escalpelos que quicou em sua cabeça,lhe fiz agachar-se e Marsali pode esquivá-lo e saltou até a escalera. O pirata duvidou entre nósduas mas no fim optou por ela. Subindo varios degraus com uma agilidade imprópria de seupeso, agarrou a Marsali por um pé quando já aparecia pela escotilha. A menina de um grito.

Maldizendo embaixo, corri até o pé da escalera, estendi o braço e lhe cravei no pé a faca decabo largo que usava para as amputações.O pirata deu um grito agudo.Espirrando sangue emdireção a minha cara passando por cima de minha cabeça. Fui para trás olhandoinstintivamente para baixo em busca do que havia caído. Era o dedo pequeno do pé, calejado ecom a unha cheia de terra.

O pirata saltou ao meu lado com um golpe que fez tremer as tábuas e se lançou sobre mim.Tentei me esquivar mas conseguiu me segurar pela manga. Tirei até desgarrar a tela e lhelancei um soco na cara. Surpreendido, se lançou para trás e escorregou em seu próprio sangue.Fui correndo até a escalera e me caiu a faca.

Na coberta tudo era fumaça negra e grupos de homens brigando. Procurei umas cordas etratei de subir em uma vela. Foi um erro? o compreendi quando quase de imediato pois ele eramarinheiro e não tinha o atrapalho das anáguas. As cordas me bailavam nas mãos pelas

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vibrações que produzia seu peso ao subir. Quando consegui ficar em minha altura me cuspiu nacara. Continuei trepando, impulsada pelo desespero, mas não tinha saída. O pirata se apoioucom uma mão e com a outra tirou a espada descrevendo um arco que estava a ponto de mealcançar.

Estava muito assustada para gritar e não podia me defender. Fechei os olhos com força,pedindo que o fim fosse rápido. Naquele momento ouvi um golpe seco e um grunhido. Mechegou um forte cheiro de pescado e ao abrir os olhos o pirata havia desaparecido. Em seulugar se encontrava Ping An abrindo as asas para consevar o equilibrio.

- Gua! - protestou com a crista erguida em sinal de irritação. Girou até mim o seu olhoamarelo e rangeu o bico com advertencia. Pelo visto não gostava do alvoroço e nem dos piratasportugueses.

Me sentia mareada. Continuei agarrada a corda, estremecida e sem poder mover-me.Emabixo, o estrondo era menor e o tom dos gritos havia mudado. Dava a sensação de que aabordagem chegava ao fim. Ouvi outro ruido: um chiado largo seguido de um súbito flamejadonas velas e a corda que me sustentava vibrou embaixo de minha mão. Tudo havia terminado.Vi perder-se o barco pirata no prateado céu antilhano. Lentamente iniciei a larga descida.

Jamie estava sentado em um tonel próximo do leme, com a cabeça deitada para trás e umlenço na testa, os olhos fechados e uma taça de whisky na mão. Ao seu lado, apoiado notraquete, ví o descomposto Willie MacLeod que recebia os primeiros auxílios, em forma dewhisky, do senhor Willoughby.

Tremendo dos pés a cabeça, mareada e com frio pelos efeitos do acontecimentos pensei, mecolocando ao seu lado, que não seria mal tomar um pouco daquele whisky.

- Estás bem? - perguntei inclinando-me para observar Jamie.- Sim, é somente um galo - sorriu.Tinha um pequeno corte, já fechado, na testa. No peitilho da camisa tinha algumas manchas

de sangue seco, mas a manga era de uma cor vermelha intensa.- Jamie! - disse apertando-lhe o ombro - Olha! Estás sangrando!Estava entorpecida, mas pois não senti suas mãos quando se agarrou em meus braços para

levantar-se alarmado. A última coisa que í, entre lampejos de luz, foi seu rosto que palideciapor momentos.

- Por Deus! - disse com voz assustada - Esse sangue não é meu, Sassenach!É teu!- Não vou morrer - disse irritada, - só se for de calor. Me tire um pouco disto!Marsali me suplicava entre lágrimas que eu não morresse. Me estalo parece ter aliviado-a:

deixou de chorar mas não fez nenhum gesto para retirar as capas e as mantas que me cobriam.- Oh, não posso, Claire! Papai disse que é preciso te manter abrigada.- Abrigada? Mas se estou me cozinhando viva!Esrava no camarote do capitão; incluso com as janelas da proa bem abertas, o sol e os

vapores da carga faziam a atmosfera do piso ficar sufocante.- Não se mova - disse uma severa voz escocesa. Um braço me rodeava os ombros e uma

mão me sustentou a cabeça - Deita-te em meu braço. Te sentes melhor, Sassenach?- Não - disse contemplando os pontinhos coloridos que giravam em meus olhos - Quero

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vomitar.O fiz e foi um processo muito desagradável. Com cada espasmo sentia ferozes picadas

cravando em meu braço direito.- Por todos os santos - sussurei no fim.- Se acabou? - Jamie me recostou com cuidado, depositando minha cabeça na almofada.- Se eu morri, queres dizer? Por desgraça, não.Estava ajoelhado junto a minha liteira, ainda com a camisa manchada de sangue. Como o

camarote não se movia, me arrisquei a abrir os olhos. Sorriu debilmente.- Não, voce não morreu. Fergus ficará muito contente.Como se houvesse sido um sinal, o frances mostrou sua cara aflita. Ao me ver desperta,

desapareceu com um sorriso para informar a gritos a tripulação que eu havia sobrevivido. Parameu rubor a notícia foi recebida com um grito geral de entusiasmo.

- O que aconteceu? - perguntei- O que aconteceu? - Jamie se ajoelhou ao meu lado e me levantou a cabeça para dar-me de

beber. - O que aconteceu, ainda perguntas! Isso quem quer saber sou eu! Te disse para seesconder com Marsali e , quando me descuido, cais do céu jorrando sangue. Olha-me!

Seus olhos azuis se cravaram nos meus.- Estives-tes muito próximo de morrer - disse - Tens um corte que te chega até o osso, da

axila até o cotovelo. Se não te houvesse posto uma atadura, a estas horas estarias alimentandoos tubarões. Maldita sejas! Nunca vai fazer o que te ordeno?

- Provavelmente, não - respondi mansamente.- Meu Deus - sussurou Jamie - o que não daria para te ter bem atada em um canhão…Ofegou e tirou a cabeça pela porta para chamar:— Willoughby!O chines apareceu ao trote, radiante, trazendo uma chaleira e uma garrafa de conhaque.- Chá! - exclamei me esforçando para me erguer. - Ambrosía!Mesmo com a atmosfera sufocante do camarote, o que necessitava era chá quente. Inalei seu

aroma.- Somente os chineses preparam melhor o chá até que os ingleses - disse.O senhor Willoughby me fez uma reverencia e Jamie lançou o terceiro bofido da tarde.- Sim? Bem, desfrutá-o enquanto possas.Como a frase sonava mais ou menos sinistra, o olhei por cima da borda da taça.- O que significa isso? - quis saber.- Ainda não terminei de te curar o braço - me informou dando uma olhada na chaleira -

Quanto sangue me disses-te que temos em nosso corpo?- Oito ou nove litros - disse estranhando - Por que?Deixou a chaleira cravando um olhar fuminante.- A julgar pelo que deixas-te na coberta, pode ser que te sobrou quatro. Toma um pouco

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mais - Voltou a encher minha taça e saiu dando largos passos.- Acho que Jamie está muito aborrecido comigo - comentei tristemente ao senhor

Willoughby.- Não aborrecido - me consolou - Tsei-mi muito assustado - Me apoiou no ombro uma mão

delicada como uma mariposa - Isto dói?Suspirei.- Se tenho que ser sincera, sim.Me deu umas palmadas.- Eu ajudo - disse sorrindo - depois.Uma série de ruidos no corredor anunciou o regresso de Jamie; vinha com Fergus e traziam

minha maleta e outra garrafa de conhaque.- De acordo - disse resignada - Deixe me dar uma olhada nisto.Tecnicamente, a ferida não era das piores que havia visto. Não obstante, era minha própria

carne a que estava afetada e não me sentia propensa até para investigar.- Oh - disse bastante intimidada.A descrição de Jamie era exata. Eu não sangrava muito.Ao que parece não se havia cortado

nenhum vaso sanguineo importante.Jamie abriu minha caixa de medicinas e remexeu o conteúdo com o indice.- Necessitarás fio para sutura e uma agulha - disse sobressaltada ao me dar conta de que ia

receber trinta ou quarenta pontos no braço sem anestesia a não ser o conhaque.- Não tem láudano? - perguntou com o semblante franzido.- Não. Gastei tudo no Marsopa.Derramei uma boa quantidade de conhaque na taça e bebe um trago.- Tens sido muito atencioso, Fergus - disse, mas não creio que sentiram falta das garrafas.Dada a potencia do conhaque frances de Jared, dificilmente se necessitará mais de uma taça

pequena.Me perguntava se seria aconselhável me embriagar de imediato ou me manter sóbria,Ainda que fosse pouco, a fim de supervisionar as operações. Não tinha a menor possibilidadede que pudesse me suturar com a mão esquerdar, ainda mais eu tremia como uma folha. Tãopouco Fergus poderia faze-lo com sua única mão.

Jamie interrmpeu minhas apreensões com uma sacudida de cabeça.- Esta garrafa não é para beber,Sassenach, sim para lavar a ferida.- O que?Em meu maltratado estado havia esquecido a necessidade de desinfetar. A falta de algo

melhor, lavava as feridas com um parte de alcool destilado e uma de água. E mesmo osescoceses eram estoicos, na hora de desinfetar com alcool seus alaridos se ouviam a grandedistancia.

- É…espera um momento - disse - Talvez um pouco de água fervida.Jamie me observava com compreensão.

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- Prorrogando não ganharemos nada, Sassenach — disse - Traga essa garrafa, Fergus.Antes de que pudesse protestar, me sentou em seu colo e me imobilizou o braço esquerdo

para que não pudesse me debater.Quando recobrei a consciencia, Fergus estava dizendo, pálido e com gotas de suor correndo

pelo queixo:- Por favor, milady, não grites assim! Os homens ficam nervosos!Reuni coragem e assenti debilmente. Jamie me tinha presa pela cintura; não sei qual dos

dois tremia; ambos, suponho. Com sua ajuda me carregou para chegar na ampla cadeira docapitão. Jamie tirou uma das agulhas curvas e um pedaço de tripa de gato esterilizada; pareciavacilar tanto como eu ante a perspectiva. Então foi o senhor Willoughby quem interveiosilenciosamente, pegando a agulha.

- Eu posso - disse com autoridade - Um momento.E desapareceu. Ao voltar trazia um envoltório de seda verde com que havia curado os

enjoos de Jamie.- Ah, trouxe suas agulhas? - Jamie deu uma olhada interessado nas agulhas de ouro - Não te

aflijas, , Sassenach: não doem. Não muito, ao menos.O senhor Willoughby me pegou a palma da mão direita, jogou em cada dedo fazendo estalar

as articulações e por fim apoiou duas na base da munheca, presisonando entre o raio e a unha.- Esta é a Porta Interior - disse suavemente - Aqui está quietude. Aqui está paz.Na espetada me fez dau um pulo mas me segurou a mão com firmeza e voltei a relaxar.Francamente, não sei se tinha o braço direito adormecido ou se são seus procedimentos que

me mantiam distrída; o certo é que a dor não era tão intensa… até que começou a utilizar aagulha de sutura.

Jamie, sentado em uma banqueta, me sustentava a mão esquerda sem deixar de me observar.Por fim disse rabugento:

- Solta o ar, Sassenach. Já se passou o pior.A verdade é que a dor dos pontos era suportável. Soltei cautelosamente o ar e lhe dediquei

algo parecido com um sorriso. O senhor Willoughby cantarolava algo em chines.- Por que nos atacaram? - perguntou Jamie enrrugando a testa - Não pdoe ter sido pela

carga.- Não, não acho - confirmei.- Talvez só queriam ter o barco.O Artemis se venderia em um bom preço, com ou sem

carga.Pestanejei. O senhor Willoughby havia interrompido sua canção para atar um nó.- Sabemos como se chamava o barco pirata? - perguntei - Nestas águas deve de haver

muitos, mas se o Bruxa estava por aqui até tres dias…- Nisso estava pensando - disse Jamie - A escuridade não deixava ver grande coisa, mas era

do mesmo tamanho e largo, no estilo espanhol.- Bem, o pirata que me perseguia falava…

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Me interrompeu um som de vozes no corredor.Fergus mostrou a cabeça, obviamente excitado. Algo brilhante lhe tilintava na mão.— Milord, Maitland encontrou um pirata morto na coberta da proa.- Morto? - disse Jamie.- Completamente morto, senhor - assegurou o frances com um pequeno arrepio.O marinheiro mostrou a cabeça reclamando sua parte de glória.- Oh, sim senhor! - assegurou - mas morto que minha avó; algo muito duro lhe golpeou a

cabeça.Os tres se voltaram a me olhar. Lhes dediquei um sorriso modesto.- Sassenach…- começou Jamie medindo o tom.- Vou excplicar - disse virtuosa.- Levava isto, milord.Fergus colocou na mesa um colar de pirata.Tinha os botões de prata de um uniforme militar, noz kona, varios dentes de tubarão, várias

conchas polidas, troços de madrepérola e algumas moedas, tudo perfurado e enfiado.Fergus alargou uma mão para pegar uma das moedas brilhantes. Era de prata, com as

cabeças gemeas de Alexandre: um tetradracma do século IV a.c em perfeitas condições.Totalmente esgotada pelos acontecimentos da tarde e com o cheiro embotado do conhaque,

fiquei adormecida de imediato.Despertei de noite pelas palpitações do braço inchado, acalorada e talvez um pouco de febre.

Ao outro lado do camarote havia uma jarra de água. Tirei os pés da liteira, mareada e fraca;meu braço protestou de imediato. Devia ter feito algum ruido, pois a voz de Jamie surgiu pelaescuridade.

- Te doi, Sassenach?- Me alegro.- Como que te alegras? - me indgnei.- Quando uma ferida dói é que está se curando. Quando te fizeram isso não sentistes nada,

não é?- Não-reconheci.- Isso foi o que me assutou. As feridas mortais não se sentem, , Sassenach — afirmou

suavemente.- Como sabe disso? - perguntei tratando de me servir pagua com a mão esquerda - Não é

algo que possas conhecer por própria experiencia.- Quem me disse foi Murtagh. Em Culloden. — A voz de Jamie era apenas audível por cima

do estalo das madeiras e do zumbido do vento - Fui a Culloden decidido a morrer. Por queClaire?

Por que sobrevivi e eles não?- Não sei - respondi suavemente - Talvez por tua irmã e tua família. Talvez por mim.

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- Eles também tinham uma família. Esposas, noivas, filhos. Mas se foram. E eu continuoaqui.

- Não sei, Jamie - Lhe toquei o queixo áspero pela barba crescida - E voce tão poucosaberás.

Suspirou.- É verdade. Mas não posso deixar de perguntar cada vez que penso neles. sobretudo em

Murtagh. Deveriamos ter descido antes; os homens estavam em pé havia horas, com fome emeio congelados, esperando que Sua Alteza desse a ordem de atacar. E Carlos Stuart,empinado em sua rocha, são e salvo, vacilava e perdia o tempo. Mesmo, com os canhõesingleses abrindo fogo contra as filas de esfarrapados montanheses. Todos sabiam que a causaestava perdida e que podiamos se dar por mortos. Mas seguiamos ali, olhando os canhões queabriam fogo. Nada falavam. Somente se ouvia o vento e os gritos dos ingleses do outro lado.

Fez uma pausa.- Eu me sentia feliz - reconheceu um pouco surpreendido - Depois de tudo, queria morrer.

Não tinha nada a temer. Quando morresse terminaria tudo e poderia me reunir contigo.Me paroximei a ele e sua mão procurou a minha na escuridão.- Os homens caiam um a um; as balas passavam roçando-me a cabeça mas nenhuma me

tocou. O chão tremia embaixo de meus pés; estava quase surdo pelo ruido e não podia pensar,rapidamente me dei conta de que estava detrás dos canhões ingleses - Me chegou seu risosufocado. - Mal lugar para morrer, não?

Voltou a cruzar o páramo para se reunir com os montanheses mortos.- Encontrei Murtagh sentado em uma mata, no meio do campo de batalha. Havia recebido

dez ou doze disparos e tinha uma horrível ferida na cabeça. Achei que estava morto.Mas quando Jamie caiu de joelhos junto ao seu padrinho para segurá-lo nos braços, Murtagh

abriu os olhos, sorriu e lhe acariciou o queixo. «Não temas, a bhalaich», havia dito, usando oapelido carinhoso que se aplica aos meninos. «Morrer não dói nada.»

Fiquei em silencio sem soltar a mão de Jamie. Sua outra mão se fechou com suavidade emtorno do meu braço ferido.

- Sabia que quando vivia com Laoghaire rara vez queria voltar a casa - disse - Mas ao menossempre a encontrava onde lhe havia deixado.

- Ah é? é esse tipo de esposa que desejas? A que fique onde desejas?Emitiu um ruido, mescla de riso e tosse, mas não respondeu. Segundos depois, sua

respiração se converteu em um suave e ritmico ronquido.

CAPÍTULO 55

ISHMAEL

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Naquela noite não dormi bem, despertei tarde com febre e dor de cabeça, assim não protesteiquando Marsali insistiu em me refrescar a testa.Com os olhos fechados, agradeci o contatofresco do pano encharcado em vinagre sobre as temporas. Fiquei tão relaxada que voltei aadormecer quando se retirou, até que um súbito estrondo disparou um raio de dor através deminha cabeça e me fez sentar na cama.

- O que aconteceu? - exclamei segurando a minha cabeça com as mãos - O que foi isso?Ao outro lado do camarote, uma figura grande também segurava a cabeça com evidente

agonia.Por fim falou, soltando uma serie de palavras numa mescla de chines, frances e gaélico.- Maldita seja! - concluiu reduzindo os apelativos em um suave ingles.Jamie se aproximou da janela sem deixar de esfregar a cabeça que havia golpeado na quina

do armário. Afastou a manta que cobria o olho de boi e ao abriu de par em par, deixando entraruma rajada de ar fresco e um incomodo clarão.

- Por todos os diabos, o que voce fez? - disse com aspereza.- Buscava tua caixa de medicinas - respondeu com uma careta - Meu Deus, olha isto! Eu

afundei meu cranio.Meu colocou embaixo do nariz dois dedos manchados de sangue, os cobri com o pano

molhado em vinagre e me deixei cair sobre a almofada.- Para que necessitas minha caixa? Por que não me pedis-te em vez de andar como um

zangão em uma garrafa?- Não queria te despertar - me confessou tão mansamente, que me pus a rir apesar das

marteladas que castigavam toda minha anatomia.- Não importa; não era um sono agradável - lhe assegurei - Para que necessitas a caixa? Há

algum ferido?- Sim: eu - disse tocando timidamente a coronilha com o pano; observou o resultado. - Não

queres me olhar isto?<<Não muito>>, gostaria de dizer, mas inspecionei sua cabeça: tinha um galo considerável.- Não tem fratura, tens a cabeça mais dura que eu tenha visto em toda minha vida.Impulsionada por um instinto materno lhe beijei suavemente o galo. Ele levantou a cabeça

surpreendido.- Imagino que assim se sentirás melhor - expliquei.- Oh, bom. Sendo assim…- Se inclinou para beijar-me suavemente o braço ferido - Melhor?- Muitíssimo melhor.- Procurava isso que usas para lavar os arranhões e coisas assim - me explicou.- Loção de oxiacanta. Não a tenho preparada porque não se conserva - expliquei

incorporando-me- Mas se és urgente posso te preparar um pouco. Não demora muito em faze-la.

- Não é urgente - me assegurou - Mas temos na bodega um prisioneiro que está um poucomachucado.

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- Um prisioneiro? De onde tem saído?- Do barco pirata. Mas não creio que seja um pirata.- Então quem é?- Não sei. pelas feridas que tem nas costas parece um escravo fugitivo,mas isso não explica

sua atuação.- O que fez?- Se jogou do Bruxa ao mar. MacGregor o vio mergulhar e lhe arremessou uma corda.- Que curioso! Por que fez isso? - perguntei com interesse.Jamie passou os dedos pelo cabelo e fez um gesto.- Não sei, Sassenach — reconheceu alisando as mechas. - É improvável, a simples vista, que

uma tripulação como a nossa aborde um barco pirata; qualquer mercante se limita a defender-se. Se não o fez para escapar da gente, talvez queria fugir deles, não?- Se está ferido, posso daruma olhada - sugeri.

Dada a conduta que Jamie havia exibido ao dia anterior, imaginei que me seguraria na camae chamaria a Marsali para que se sentasse sobre meu peito. Em troca assentiu com ar pensativo.

- Bem. Tens certeza que podes caminhar?Não estava certa em absoluto mas tentei. No camarote dei um tombo; ante os olhos me

bailavam pontos negros e amarelos, mas consegui me erguer.- Bem, vamos - disse respirando fundo.O prisioneiro estava embaixo de um lugar da coberta inferior que a tripulação chamava de

solado. Ali faltava ar e luz, mareada outra vez, avancei lentamente atras do resplendor dalamparina de Jamie.

Ao abrir a porta do improvisado calabouço não se via absolutamente nada. Logo um brilhode olhos revelou a presença de um homem. Não me estranhou que Jamie o tomasse por umescravo fugitivo, pois não parecia nativo das ilhas, senão africano. Sua pele negra tinha um tomavermelhado e sua atitude não era de um homem criado na escravatura. Seu corpo magro emusculoso estava tenso, preparado para o ataque ou a defesa mas não para a submissão.

Jamie me indicou por sinais que me mantivesse contra a parede e se pos em cócoras ante opreso olhando-o nos olhos.

- Amiki — disse mostrando as mãos vazias. - Amiki. Bene bene.<<Bom amigo>> era taki-taki, o idioma universal que todos os marinheiros falavam nos

portos, desde Barbados a Trindade.O homem me olhou impassivel.— Bene-bene, Amiki? — repetiu com ironia sinalizando os pés atados.Jamie afogou divertido.- Nisso tens razão - disse em ingles.- Fala ingles ou frances? - Me aproximei um pouco. O preso me olhou e desviou os olhos

com indiferença.- Seja o que for não está disposto a admiti-lo. A noite Picard e Fergus tentaram falar com

ele, mas se limitou a olhá-los. Isto foi a primeira vez que pronunciou desde que chegou a

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bordo.Num momento se voltou até o prisioneiro.- Falas espanhol? - tentou. Não houve resposta. Nem sequer o olhou.- Sprechen sie Deutsche? - provavelmente não - Suponho que holandes tão pouco.- Não posso dizer-te muito dele, Sassenach, mas estou bastante seguro que não é holandes -

disse Jamie com uma olhada ironica.- Em Eleuthera há escravos, não? É uma ilha holandesa e Santa Cruz, dinamarquesa. Sabes

o suficiente taki-taki para preguntar por Ian?Jamie sacudiu a cabeça. Rápido disse:- Que diabos…Desembainhou o punhal para cortar as cordas do prisioneiro e se sentou sobre os

calcanhares com a faca cruzada sobre a coxa.—Amigo —disse em taki-taki com firmeza— Bom?O aprisioneiro não respondeu. Num momento fez um gesto curiosamente interrogante.- No canto tem uma bacia - informou Jamie em nosso idioma enquanto se erguia - Úse-a.

Depois minha esposa te curará dessas feridas.Fez um gesto afirmativo, aceitando a derrota. E nos deu as costas fuçando sua braguilha.

Olhei de relance a Jamie.- Uma das piores coisas de estar atado assim - me explicou tranquilamente - é que não podes

mijar sem ajuda. Isso e a dor nos ombros. Tem cuidado quando o tocar, Sassenach.Assenti. Todavia estava mareada e a falta de ar me havia voltado a provocar dor de cabeça;

mas estava melhor que o prisioneiro que, obviamente, havia sido maltratado durante suacaptura. Suas feridas pareciam superficiais: um galo na testa, um ombro com arranhões e semdúvida, manchas roxas difíceis de destinguir pela escuridão do lugar e o tom de sua pele.

Senti sua carne embaixo dos dedos, quente e suave pelo suor. Eu também me sentia quente,suada e descomposta. Tive que me apoiar em suas costas para não perder o equilibrio. Umateia de chicotadas lhe cruzava os ombros. Sentia nauseas, mas continuei com meu exame.

O homem me ignorava por completo, incluso quando tocava lugares que deviam lhe doer.Não afastava os olhos de Jamie, quem o observava com a mesma intensidade.

O problema era obvio. Devia de ser um escravo fugitivo e não queria falar por medo que seuidioma revelasse o lugar de onde vinha, permitindo identificar o seu proprietário e devolve-loao cativeiro. Sabiamos que entendia o ingles e isso redobrava sua desconfiança. Dadas ascircunstancias, estaria dificil convence-lo de que não tinhamos intenção de escravizá-lonovamente. Por outra parte, representava a melhor oportunidade de averiguar o que havia sidode Ian Murray a bordo da Bruxa. Talvez a única oportunidade.

Quando terminei de vedar o pulso e os tornozelos, Jamie me ajudou a me levantar e disse aoprisioneiro:

- Imagino que tenhas fome. Acompanha-nos ao camarote e comerás conosco.Sem esperar resposta, me segurou pelo braço são e se voltou até a porta. O escravo nos

seguia a pouca distancia em silencio.

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Fomos ao meu camarote sem pretar atenção as olhadas curiosas dos marinheiros. Somentenos deteve para ordenar a Fergus que nos enviassemos a comida.

- Volta a cama, Sassenach - me disse Jamie com firmeza.Não discuti. Se continuasse assim teria que usar um pouco de minha preciosa penicilina para

combater a infecção do braço. Jamie serviu um pouco de whisky para mim e outro para nossoconvidado. O aceitou desconfiado. Depois do primeiro trago abriu os olhos surpreendido; owhisky escocés devia de ser uma novidade para ele. Jamie sinalizou assentindo,do outro ladoda mesa, e se estalou com sua taça.

- Me chamo Fraser - disse - Sou o capitão e ela é minha esposa.O prisioneiro vacilava. Por fim deixou sua taça com ar decidido.- Me chamam Ishmael — disse - não sou pirata, sim cozinheiro.- Cozinheiro do barco? - perguntou Jamie com ar indiferente.- Não, homem, não tenho nada haver com este barco! - Ishmael se mostrava veemente - Me

pegaram na costa, dizem que me matariam, não estou muito tempo com eles. Não sou pirata! -repetiu.

Demorei em compreender que a pirataria se castigava com a forca e por isso temia que otomássemos por um deles.

- Sim, compreendo - O tom de Jamie era entre reconfortante e céptico - Como viras-tesprisioneiro do Bruxa? Não te pergunto onde, sim como. Não me interessa saber de onde veio,somente como te pegaram e quanto tempo estivestes neste barco, posto que não era um deles…

A insinuação era obvia: Não queriamos devolve-lo ao seu proprietário mas se não nosproporcionar informações, o entregaríamos a Coroa por pirataria.

Seus olhos se escureceram. Não era tonto e havia captado a intenção.- Eu estava pescando no rio - disse - Barco grande vinha navegando lento, botes se

jogaram.Homens num bote, me viram, gritam. Deixo o pescado, corro, mas me alcanção.Homens me apanharam junto as canas, creio que me levavam para vender. Isso é tudo, homem.

Se encolheu de ombros, dando o relato por terminado.- Compreendo - Jamie não afastava os olhos do prisioneiro. Duvidava em perguntar qual rio

era por medo que Ishmael voltasse a emudecer. - Enquanto estavas a bordo no barco, haviaalgum menino entre a tripulação como prisioneiro? Meninos jovens?

- Sim, homem, meninos tinham. Por que? Queres um?- Sim - confirmou Jamie sereno. - Procuro um jovem parente que foi capturado pelos piratas.

Quem me ajudar a achá-lo contará com toda minha gratitude.- Sim? O que farás por mim se eu ajudar a encontrar esse menino?- Te desembarcaria no porto que tu escolhesses com um boa quantidade de ouro. Mas

necessitará provas de que conheces o paradeiro de meu sobrinho, entendes?- Ah tá - O prisioneiro ainda desconfiava mas começava a relaxar - Diga, homem, como és o

menino?Jamie mexeu a cabeça.- Não. Me descreva voce os meninos que havia no barco pirata.

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O fugitivo olhou a Jamie e deu uma gargalhada.- Nada tonto, homem, não é?- Me alegro de que se deu conta - replicou Jamie - Diga-me.Ishmael cumpriu.- Havia doze meninos falando raro, como voce.Jamie trocou comigo uma olhada atonita. Doze?- Como eu? Meninos brancos, ingleses? Ou escoceses queres dizer?Ishmael sacudiu a cabeça sem compreender.- Como cachorros brigando - explicou — Grrrr! Guf!- Escoceses, sem dúvida - esclareci tratando de não rir.- Perrrfeitamente - disse Jamie exagerando seu acento natural - Doze meninos escoceses.

Como eram?Ishmael deu uma mordida em sua maga com ar de dúvida.- Somente ví uma vez, homem. Mas te digo tudo o que vi - Fechou os olhos cenhudo. -

Quatro meninos cabelo castanho-claro, seis castanhos, dois de cabelo negro. Dois mais baixosque eu, um como esse chiflado - sinalizava a Fergus, que se pos teso de indignação ante oinsulto - Um grande, não tanto como voce…

- Sim, e como estavam vestidos?Lenta e cuidadosamente Jamie lhe foi tirando as descrições. Pedindo detalhes que obrigada a

comparar, dissimulando o rumo de seu interesse.Já não me doia a cabeça, mas o cansaço me achatava os sentidos. Fechei os olhos

adormecida pelas vozes graves. A de Jamie sonava como a de uma cachorro grande e feroz,com suaves grunhidos e abruptas consonantes. A voz de Ishmael era igualmente grave, masmais suave e baixa. Me arrulhava até eu adormecer. Se parecia com a de Joe Abernathy quandoditava as informações de uma autopsia.

Despertei subitamente com o coração acelerado, ouvindo o eco da voz de Jamie a uns doismetros de distancia.

- Não! - exclamei.Os tres homens se interromperam e me olharam surpreendidos. Joguei o cabelo úmido para

trás.- Não me deem importancia. Eu estava sonhando - Voltei a fechar os olhos mas o sono havia

desaparecido.Não havia ninguém parecido fisicamente entre eles. Joe era corpulento e Ishmael esbelto e

fraco, mesmo a curva musculosa das costas sugeria uma força considerável. Mas se fechasse osolhos por completo voltava a ouvir a voz de Joe, exceto pela entonação caribenha de seuingles.

Ao abrir os olhos para buscar algum parecido compreendi algo:o que havia tomado por umforte arranhão era em realidade uma profunda queimadura sobreposta em uma cicatriz larga eplana em forma de quadrado. A marca estava quase cicatrizada. Tentava me lembrar: <<Nãoquer um nome de escravo>>, havia dito Joe referindo-se ao seu filho. Obviamente, Ishmael

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havia borrado a marca de seu proprietário para que não o identificassem em caso de sercapturado. Mas de quem era aquela marca? E o nome de Ishmael não podia ser outra coisa queuma coicidencia, mas talvez não tão descabelada. Era pouco provável que fosse seu verdadeironome. <<Me chamam Ishmael», havia dito. Esse também era um nome de escravo que lhehavia posto algum proprietário. E se o jovem Lenny havia estado investigando sua árvoregenealógica, como parecia, não era muito provável que houvesse elegido ele de um de seusantepassados a um modo simbólico: Nesse caso…

Jamie continuava interrogando o homem sobre a tripulação e a estrutura do Bruxa. Eu haviadeixado de prestar atenção. Me incorporei com cautela e chamei por sinais a Fergus.

- Necessito de ar - lhe disse - Ajuda-me a sair a coberta, por favor?Saí segurada em seu braço dando um sorriso para tranquilizar o Jamie.- Onde estão os papeis do escravo que compramos em Barbados? - perguntei quando

estávamos fora do camarote - E o escravo, onde está?- Fergus me olhou com curiosidade buscando embaixo de seu casaco.- Aqui está os papéis milady. Quanto ao escravo, creio que está no alojamento da tripulação.

Por que?Ignorando a pergunta, procurei entre os sujos e repelentes papeis.- Aqui está - disse ao identificar o fragmento que Jamie me havia lido. - Abernathy! Era

Abernathy! Marcado no ombro esquerdo com uma flor de lis. Reparas-tes nessa marca?Fergus sacudiu a cabeça um pouco desconcertado.- Não, milady.- Acompanha-me. Quero ver que tamanho tem.A marca que tinha Temeraire no ombro media uns sete centímetros de lado: era uma flor

coronada pela inicial A. O tamanho e o lugar se correspondiam com a cicatriz de Ishmael.Masnão era uma flor de lis, sim a rosa de dezesseis pétalas: o emblema jacobita de Carlos Stuart.

- Acho que deverias voltar a cama, milady - observou Fergus enquanto Temeraire suportavaminha inspeção tão firme como sempre - Estás com uma cor pálida, o milord não gostaria ver-te caida na coberta.

- Não vou cair - lhe assegurei - E pouco importa a minha cor. Creio que tivemos uma tacadade sorte. Escuta Fergus, quero que faças algo por mim.

- Pode dizer, milady. - Me segurou pelo codo para impedir que um movimento do barco mearroja-se ao outro lado da coberta, subitamente inclinada. -Mas quando estiver sana e salva emvossa cama.

Não me sentia bem e me deixei levar ao camarote enquanto lhe dava as instruções.- Te sentes bem - Sassenach? - perguntou Jamie - Tens uma cor horrível.- Estou perfeitamente - disse entre dentes, recostando-me na liteira com cuidado de não

mover o braço. - Já terminou com o senhor Ishmael?Jamie trocou uma olhada com o prisioneiro. A atmosfera não era hostil, mas sim carregada.- No momento, sim - se voltou até Fergus - Acompanha o nosso hospede embaixo e ocupa-

te de que lhe deem roupa e algo para comer - Logo se sentou ao meu lado - Tens um mal

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aspecto.Quer um tonico ou algo assim?- Não. Escuta Jamie, creio saber de onde tem saído nosso amigo Ishmael.- É mesmo? - disse levantando uma sombrancelha.Lhe expliquei a cicatriz e a marca do escravo Temeraire, sem mecionar-lhe de onde havia

tirado a ideia.- Aposto cinco em um que pertence a mesma pessoa: essa tal senhora Abernathy de Jamaica.- Pode ser que tenhas razão, Sassenach, tomara, pois esse maldito negro não quis me dizer

de onde vinha. Não o culpo - disse - Se eu houvesse escapado de semelhante vida não haverianada na terra que me obrigasse a voltar a ela.

- Não, eu tão pouco lhe culpo - disse - Mas o que ele disse dos meninos? Viu Ian?- Estou quase certo. Dois dos meninos que descreveu poderia ser Ian. Sabendo que esse

barco era o Bruxa, não pode ser de outro modo. Por que demonios queria sequestrar dozemeninos escoceses?

- Para algum colecionador? - disse me sentindo cada vez mais enjoada - Moedas, pedraspreciosas e meninos escoceses.

- Achas que quem sequestrou Ian tem também o tesouro? - disse me olhando comcuriosidade.

- Não sei - disse. Me sentia muito cansada e bocejei até me deslocar. - Mas podemoscomprovar pelo Ishmael.Eu pedi a Fergus que observasse como reagiria Temeraire ao velo. Sesão do mesmo lugar…

Bocejei outra vez. Meu corpo buscava o oxigenio que me faltava pela perdida de sangue.- Muito sensato, Sassenach. — Jamie me deu um apalmada na mão e se levantou - Por agora

não te preocupes, descansa. Te enviarei um pouco de chá com Marsali.— Whisky —pedí.- Bem, bem, Whisky - rio afastando-me o cabelo e me beijou a testa quente - Melhor?- Muitíssimo.Lhe devolvi o sorriso e fechei os olhos.

CAPÍTULO 56

SOPA DE TARTARUGA

Despertei tarde. Me doia todo o corpo. Havia tirado as mantas e tinha a pele quente e seca.A dor do braço era horrível; os quarenta e tres pontos do senhor Willoughby eram comoalfinetes cravados na carne. Não tinha mais remédio: teria que usar a penicilina.

O breve passeio até o armário onde estava minha roupa me deixou suada e tremula. Tive queme sentar bruscamente para não cair.

- Sassenach! Te sentes bem? - Jamie havia mostrado a cabeça pela porta com cara de

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preocupação.- Não. Vem um momento, por favor? Necessito que me faças algo.- Quer vinho? Um biscoito? Murphy te preparou um caldo especial - Em um segundo estava

ao meu lado, com a mão fresca em minha bochecha - Por Deus, voce está ardendo!- Sim, mas não se preocupe. Tenho um remédio.Tirei o estojo com as seringas e as ampolas. O braço direito me doia tanto que cada

movimento me obrigava a apertar os dentes.- Agora tens a oportunidade de se vingar - disse com ironia.- O que! - exclamou - Pretendes que eu te crave uma dessas estacas?- Sim, mas preferia que o fizesses de outro modo.- No traseiro?- Sim, homem!Me olhou inclinando a cabeça.- Diga-me o que devo fazer.Indiquei cuidadosamente como preparar a injeção.- Tem certeza? - duvidou - Não sou muito hábil com as mãos.Apesar da dor no braço, me pus a rir. Lhe havia visto fazer de tudo; sempre com o mesmo

toque delve e hábil.- Olha, eu lhe apliquei, não foi tão ruim, não é?- Hummmm - Com os lábios apertados se ajoelhou a cama limpando o meu traseiro com

algodão molhado em conhaque. - Assim está bom?- Sim. Pressiona com a ponta em ângulo, afundando meio centímetro e aperta o êmbolo bem

devagar.Esperei com os olhos fechados. Quando olhei para trás, Jamie estava pálido e com os

pômulos brilhantes do suor.- Não importa - Me ergui lutando contra a ânsia - Me dê.Tirei o algodão para molhar um ponto da extremidade. Devido a febre a mão me tremia.- Mas…- Cala-te!Peguei a seringa e a cravei como pude com a mão esquerda. Doeu. E me doeu mais quando,

ao pressionar o êmbolo, me escorregou o polegar. Jamie tive que atuar. Com uma mão mesegurou a perna e com a outra pressionou lentamente o êmbolo até que a última gota do liquidobranco desaparecesse do tubo. Quando retirou a agulha respirei fundo.

- Obrigada.- Eu sinto muito - sussurrou.- Não importa.O observei em silencio: reclinado na cadeira com os olhos fechados, suas pestanas ruivas

pareciam absurdamente infantis em contraste com as orelhas e as rugas marcadas na comissura

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dos olhos.Estava cansado; apenas havia dormido desde o encontro com o barco pirata.O ar estava viciando no camarote fechado. Se levantou para abrir um olho.- Jamie - disse - o que gostarias de fazer?- Oh…uma laranja não me seria mal - disse - Tenho algumas no escritório. Mas uma para

voce?- Tudo bem - sorri - mas não me referia a isso. O que gostaria de fazer quando tivermos

recuperado Ian?- Ah - Se sentou na liteira com a laranja na mão.- Creio que ninguém me havia feito nunca

uma pergunta assim.Parecia um pouco surpreendido.- Poucas vezes tens podido decidir, não é? - observei - Mas agora podes.- Sim, é verdade. - Girou a fruta entre as mãos.- Tens compreendido, não é? Não podemos

voltar a Escocia durante algum tempo.- Por isso minha pergunta.Seu último refúgio havia sido sempre em Lallybroch,mas agora o havia perdido. Ainda que

Lallybroch fosse sempre seu lar, já não lhe pertencia.- Tão pouco Jamaica nem as ilhas que pertencem a Inglaterra - disse melancolico - Mesmo

Tom Leonard e a Marinha Real nos dando como mortos; se ficarmos por aqui não demorarãopara nos encontrar.

- Tens pensado na América? - perguntei com delicadeza - Nas Colinas, quero dizer.Esfregou o nariz em dúvida.- Não, não havia pensado. Provavelmente ali estaríamos a salvo da Coroa, mas…- Ali ninguém o persegueria: sir Percival não tem interesse em te deter fora da Escócia, a

Marinha britanica não pode te seguir por terra e os governadores das Antilhas não temautoridade alguma nas Colonias.

- É verdade - disse lentamente - Mas aquele território é selvagem, não? Não gostaria de porvoce em perigo.

Me pus a rir. Ao adivinhar meus pensamentos esboçou um sorriso triste.- Bem, bastante perigoso tem sido arrastar-te pelo mar e deixar que te sequestrassem em um

barco assediado por uma epidemia. Mas ao menos aqui não existe caníbais.- Na América não existe canibais - observei.- Claro que sim! - replicou acalorado - Imprimi um livro para uma sociedade de

missionários católicos onde se falava dos pagões iroqués do norte. Amarram seus cativos e lhescortam em pedaços. Depois lhe arrancam o coração para come-lo ante seus proprios olhos.

- Primeiro lhes comem o coração e depois os olhos, não? - Minha risada o aborreceu - Tudobem, desculpe. Mas não podes acreditar em tudo que se lê. E por outro lado…

Não pude terminar. Me apertou o braço com tanta força que me fez gritar.- Escúta-me, diabos! Isto não é uma brincadeira!

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- Claro que não - balbuciei - Não era minha intenção rir de voce, Jamie, mas passei quasevinte anos em Boston. Voce nunca foi a America.

- E achas que o lugar onde vivias se parece em algo como é agora, Sassenach?- Bem, não - admiti - Mas o território não é todo selavagem. Há cidades, algumas

importantes.Disso estou certa.Me soltou o braço. Ainda tinha alaranja na outra mão.- Não sou tonto, Sassenach. Não acredito em qualquer coisa que digam os livros. Eu mesmo

os imprimo.- É curioso - comentei com melancolia - Quando decidi voltar para voce, li tudo o que pude

sobre como era nesta época na Inglaterra, Escócia e França para saber o que devia esperar. Eagora estamos em um lugar que eu não sei nada, porque nunca me ocorreu cruzarmos ooceano; sabendo sobre seus terríveis mareios…

Isso o fez rir de má vontade.- Acredita-me, Sassenach: quando recuperar Ian são e salvo, não votlarei a pisar num barco

em toda a minha vida, exceto para voltar a Escocia quando tiver passado o perigo.Me ofereceu um pedaço da laranja que eu aceitei como prenda de paz.- Falando em Escocia: ainda tens tua imprensa ali - observei - Poderiam te enviar se nos

estabelecéssemos em uma das grandes cidades amricanas.- Achas que seria possível ganhar a vida com uma imprensa? Existe tanta gente lá? Somente

as cidades importantes necessitam de um impressor e alguém que venda livros.- Sim. Em Boston, em Filadélfia…em Nova York ainda não.Comeu lentamente um pedaço da fruta e perguntou bruscamente:- E voce?- Eu o que?- Gostaria de se estabelecer em um lugar assim? Porque voce também tens um trabalho. Em

París descobri que não poderias renunciar ele. Podes curar nas Colinas?- Creio que sim - sussurrei - No fim das contas, em todas as partes existem enfermos. - O

olhei com curiosidade. - És um homem muito estranho, Jamie Fraser.Comeu o resto da laranja rindo.- É mesmo? - Por que dizes isso?- Frank me amava, mas havia…partes de mim com as quais não sabia o que fazer. Coisas

que não compreendia ou que o assustavam. A voce não assustam.- Não, Sassenach, não me assustam. Somente quando vejo que podem ser perigosas.Ofeguei.- Voce me assusta pela mesma razão mas suponho que não posso fazer nada para solicioná-

lo.- Como eu tão pouco posso, não devo me preocupar.

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- Eu não disse que não devas te preocupar. Por acaso achas que eu não me preocupo? Mas éverdade que não podes fazer nada.

Abriu a boca para discordar mas mudou de idéia.- Bem, talvez não, Sassenach — riu - Mas eu já vivi o suficiente para que não me importe

tanto…enquanto puder te amar.Emudecida pelo suco da laranja, o olhei surpreendida.- Eu te amo - disse suavemente enquanto se inclinava para me beijar - Agora descansa.Daqui a pouco te trarei um pouco de caldo.Dormi varias horas. Quando despertei, ainda com febre, tinha fome. Jamie me trouxe o

caldo do Murphy: uma rica sopa vegetal, com bastante menteiga e odor a xerez. Apesar dosmeus protestos, insistiu em me dar a colheradas na boca.

- Quer mais? - me perguntou depois da última colherada. - Precisa recuperar as forças - Semesperar resposta destapou a pequena sopa e voltou a encher meu prato.

- Onde está Ishmael? — perguntei.- Na coberta da popa. No entrepiso não se sentia cômodo… E não sei se posso sencurar

depois de ter visto os barcos negreiros em Bridgetown. Fiz que Maitland arranjasse uma cama.- Te parece prudente dar-lhe tanta liberdade? Ouve, do que é essa sopa? - A última

colherada me havia deixado um gosto delicioso na lingua.- De tartaruga; anoite Stern pegou uma bem grande. Disse que guardou a carapaça para fazer

pentes-Jamie enrrugou a testa. - E quanto ao begro, Fergus se encarrega de vigiá-lo.- Fergus está em plena lua de mel - protestei - Não deverias obriga-lo a isso. Então assim

que é a sopa de tartaruga? É a primeira vez que provo. Deliciosa.- Bem, o matrimonio é muito longo - disse - Não ficará mal com as calças postas durante

uma noite. Além do mais, dizem que o coração se fortalece com a abstinencia, não?- Com a ausencia - corregi esquivando a colher-Se algo se fortalecer com a abstinencia, não

será justamente o coração.-Isso não é maneira de falar para uma mulher casada! - me reprovou Jamie - E és muito

desrespeitosa, tendo em conta que eu também estou bastante fortalecido nestes momentos.Quer mais sopa?- Não, obrigada. Mas eu gostaria de saber mais dessa força tua.- Não podes. Estás enferma e embriagada pelo xerez da sopa.- Me encontro muito melhor - lhe assegurei - Quer que eu dê uma olhada?Na larga calça de marinheiro havia conseguido esconder facilmente tres ou quatro

salmonetes mortos, imagine a referida força.- Nada disso - protestou um pouco escandadlizado - Pode vir alguém e não acho que

olhando poderás me aliviar.- Bem, sempre se pode provar. Quer fechar a porta? - Estendi com bastante pontaria a mão

esquerda.- Solta-me - sussurrou dando uma olhada nervosa na porta - Em qualquer momento verá

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alguém.- Te disse para trancar a porta. - Não o soltei. O «salmonete» dva mostras de uma notável

vitalidade.Me olhou com os olhos entreabertos.- Não quero usar a força com uma enferma - disse entre dentes - mas apertas muito forte

para quem está com febre, Sassenach.- Te disse que estava melhor. Façamos um trato: se correr para fechar a porta, te

demosntrarei que eu não estou embriagada.Como prova de boa fé o soltei, mesmo de má vontade. Foi trancar a porta e , quando voltou,

havia abandonado a liteira e estava de pé, um pouco tremula. Me observou com ar crítico.- Não vamos poder, Sassenach — disse com pena - Não podemos nos manter em pé com um

marulho como este e sabes que essa liteira é muito pequena.- Podemos fazer no chão - sugeri esperançosa.- Não. Te doiria o braço. - Esfregou o labio inferior pensativo.Decidida a tomar a iniciativa, dei dois passos para me paroximar. O balanço do barco me

atirou sobre ele, que me segurou pela cintura mantendo a duras penas seu próprio equilibrio.- Cristo! - protestou cambaleando-se.Logo, tanto por reflexo como por desejo, baixou a

cabeça para me beijar.Foi assombroso. Estava acostumada ao calor de seu abraço mas agora era eu que ardia

enquanto ele estava fresco. Me pus de joelhos, buscando com a boca o interior de suabraguilha.

- Oh, Deus! - exclamou - Issó é como fazer amor no inferno…com uma diaba.Rí, no qual foi bastante difícil dadas as circunstancias.- Achas que asseim fazem os spucubos?- Não duvido - Tinha as mãos em minha cabeça, incentivando a continuar.Um golpe na porta o deixou que nem pedra. Eu sabia que a porta estava trancada.- Sim? Quem é? - perguntou, com uma eligiável calma dada a sua situação.- Fraser? - Era a voz de Lawrence Stern— Disse em frances que o negro está dormindo e

quer saber se pode deitar.- Não. Que fique ali. Daqui a pouco urei ver.- Ah… - Stern parecia vacilar - Bem, é que su…hum…sua esposa parece…muito desejosa

de que ele fosse se deitar agora mesmo.Jamie respirou fundo. A tensão se evidenciava em sua voz.- Diga que ira´…em seu devido tempo.- Eu direi. E…a senhora Fraser se sente melhor?- Muito melhor - assegurou Jamie com sinceridade.- Ela gostou da sopa de tartaruga?- Muito, obrigado - lhe tremiam as mãos em minha cabeça - Boa noite, senhor Stern!

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Me pus em pé, me apoiou na liteira e se ajoelhou detrás de mim, levantando me acariciandoem minha camisola.

- Oh…- Lawrence parecía um pouco decepcionado - Suponho que a senhora dorme.- Se rires te estrangulo - me sussurrou Jamie ao ouvido - Em efeito, senhor Stern. Quando

despertar lhe darei vossos saudos.- Confio que irá descansar bem. O mar parece um pouco agitado.- Eu…Eu também notei, senhor Stern.- Bom,os desejo uma boa noite.Jamie soltou o ar em um largo estremecimento.- Senhor Fraser?- Boa noites, senhor Stern! - gritou.- Oh, e…! Boa noite!O spassos do científico se afastaram até se perder o ruido das ondas que se batiam contra o

casco. Cuspi a colcha que havia estado mordendo.- Oh…Deus…meu!Colocou suas grandes mãos, duras e frescas sobre minha carne ardente.- Tens um traseiro mais redondo que eu já ví em minha vida!Um sacudida do Artemis lhe ajudou em seus esforços até tal ponto que dei um grito.- Cristo! - Me cubriu a boca com uma mão apertando-me contra a liteira com todo seu peso.Me estremeci em seus braços.Num instante, sua respiração se fez mais serena e se afastou, levantnado-me como a uma

boneca de trapo cpara me por na cama.-Como está teu braço?- Que braço? - murmurei.Me sentia como se me houvessem afundado e volcado em um

molde.- Bem - disse com uma sorriso - Podes se manter em pé?- Nem por todo o chá da China.- Vou dizer a Murphy que voce adorou a sopa.Coloquei minha mão sobre a testa, já fresca. Não o ouvi sair.

CAPÍTULO 57

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A TERRA PROMETIDA

- Isto é uma perseguição! - exclamou Jamie, indignado.Olhava pela borda do Artemis. A nossa esquerda se estendia o porto de Kingston, reluzente

como um safira líquida a luz da manhã. Em cima, a cidade se fundia num verdor, dos quais sesobressaiam uma série de cubos de marfim amarelado e quartzo rosado. Embaixo, ummajestoso barco de tres mastros flutuava com as velas pregadas e o bronze de seus canhõesbrilhando ao sol: a cañonera Marsopa.

- Esse maldito barco está me perseguindo - disse enquanto passávamos a certa distancia.Onde quer que eu vá, ali está.

Me pus a rir, ainda que realidade a sua presença me deixava nervosa.- Não acho que seja nada pessoal - observei - O capitão Leonard disse que vinham a

Jamaica.- Sim, mas por que não foram diretamente a Antigua? Ali estam as barracas e os astilheiros

da Marinha. Quando os deixei necessitavam de uma reparação.- Tinham que passar por aqui primeiro - expliquei - Traziam o novo governador da colonia.- Sim? Quem será? - Jamie parecia distraído. Dentro de uma hora chegaríamos a Sugar Bay,

onde Jared tinha sua plantação. Sua mente estava atarefada fazendo planos para encontrar Ian.- Um tal Grey - informei afastando-me da grade - é um bom homem. O conheci no barco.- Grey? - jamie me olhou com sobressalto - Não seria lord John Grey por acaso?- É, assim se chama. Por que?O vi observar o Marsopa com renovado interesse.- Conhece a lord John; é meu amigo.- Que sorte. De onde o conheces?- Foi o carcereiro da prisão de Ardsmuir. — Isso me surpreendeu.- E é seu amigo? - Sacudi a cabeça - Jamais entenderei os homens.Se voltou sorrindo.- Um homem faz amigos onde os encontra, Sassenach - Entornou os olhos olhando até a

costa. - Tomara que possamos fazer amizade com a senhora Abernathy.Enquanto rodeávamos o promontório, junto a grade apareceu uma esbelta silhueta negra.Vestido com roupas de marinheiro que lhe cobriam as cicatrizes, Ishmael parecía muito

mais pirata que escravo.- Vou embora - anunciou bruscamente.Jamie levantou uma sombrancelha.- Quando quiser - disse cortesmente - mas, não preferes faze-lo em um bote?Um lampejo de humor chispeou por um instante os olhos do negro, sem turvar o contorno

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severo de sua cara.- Disse que me deixarias onde eu quisesse se eu dissesse algo sobre os meninos. Quero ali.Jamie passou os olhos entre Ishmael e a costa desabitada. Finalmente assentiu.- Farei baixar um bote - Se voltou até o camarote - Também prometi ouro, não?- Não quero ouro, homem.Jamie se deteve em seco.- Tens pensado em alguma outra coisa?- Quero esse negro sem braço. - Olhava com audacia a Jamie, mas não podia ocultar certa

timidez.- O Temeraire? Por qué?- A voce não serve, homem; não pode trabalhar no campo nem no barco; tem um só braço.Jamie o olhou. Sem responder, se voltou para ordenar a Fergus que trouxesse o escravo

manco.Temeraire apareceu na coberta tão inexpressivo como um bloco de madeira.- Este homem quer que voce vá com ele a essa ilha - lhe disse Jamie em lento e claro frances

- Aceitas?Temeraire pestanejou e abriu os olhos assombrado.- Não és obrigado a ir com ele. Se quiser continuar conosco te cuidaremos e vamos te

proteger.A decisão é sua.O escravo vacilava. Foi Ishmael quam decidiu a questão. Cruzando os braços em uma

espécie de cauteloso desafio, disse algo em uma lingua estranha, cheia de vogais e sílabas quese repetiam como um toque de tambor. Temeraire caiu de joelhos a seus pés, com umaexclamação afogada e tocou a coberta com a testa.

- Vem comigo - informou.E assim foi. Picard os levou a remo até as rochas, e os deixou ali com uma pequena bolsa de

abastecimento e suas facas.- Por que ali? - me perguntei em voz alta, contemplando as duas pequenas silhuetas que

subiam pela costa florestada.- Não há nenhuma povoação próxima, nem plantações.- Plantações sim - me assegurou Lawrence — Em terra adentro se cultiva café e anil. Mas é

mais provável é que eles querem unir-se a algum bando de selvagens.- Na Jamaica também tem selvagens? - perguntou Fergus interessado.O naturalista sorrio com o cenho franzido.- Onde há escravos há selvagens, meu amigo. Sempre há quem prefere morrer como um

animal antes que viver como um escravo.Jamie voltou bruscamente a cabeça olhando-o, mas não disse nada.A plantação de Jared se chamava Blue Mountain House, possivelmente pelo pico nebuloso

que se elevava atrás dela, a um ou dois quilometros terra adentro. A fazenda estava próxima a

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costa, na curva da baia. Na realidade, as colunas de sua galeria surgiam de uma pequena lagoarepleta de esponjosas plantas aquáticas.

Nos esperavam. A carta de Jared havia chegado a um mes antes de nós. O capataz e suaesposa, um corpulento casal escoces de sobrenome Maclver, se sentiram aliviados ao nos ver.

Em uma pequena galeria havia uma autentica banheira cheia (mirabile dictu!) de águaquente graças aos bons ofícios de duas escravas, que haviam esquentado o patio com grandesrecipientes cheios de água. O remorço por essa exploração humana deviam ter me impedido dedesfrutar o banho, mas não foi assim. Me submergi com prazer, esfreguei a pele com umaesponja vegetal para tirar o sal e o sebo, lavei a cabeça com um xampu preparado pela senhoraMacIver com camomila, azeite de geranio, restos de sabão e uma gema de ovo.

Perfumada, com o cabelo brilhante e languida de calor, me derrubei agradecida na cama queme haviam resignado. Quase não tive tempo de notar o quanto é bom esticar todo o corpo antesde adormecer.

Quando despertei, as sombras do entardecer estavam reunindo, ante as janelas de meudormitório. Jamie estava nú ao meu lado, com as mãos cruzadas sobre o ventre, respirandoprofundamente. Alonguei uma mão até sua boca e o despertei. Também se tinha banhado echeirava a sabão e a cedro.

- Dormistes bem, Sassenach — murmurou com a voz rouca pelo sono - Vem aqui.- Faz meses que não temos tempo nem lugar para fazer amor como é devido - disse - Assim

que agora não nos farão apressar, de acordo?- Me pegas em desvatagem, Sassenach — murmurou movendo com urgencia seu corpo

debaixo do meu - Não poderíamos deixar isso para a próxima vez?- Não. Agora. Não se move.Suspirou e , deixando cair as mãos para os lados, voltei ao meu trabalho. Por fim me

levantou sobre os cotovelos.- Acho que já é o bastante - decidi me afastar o cabelo dos olhos.Como se lhe tivesse dado um estímulo, se incorporou, me atirando de costas e me

imobilizando com o peso de seu corpo.- Assim é que não devemos ter pressa - Me olhou entornando os olhos - Terás que me

suplicar para acabar logo.Me retorci cheia de expectativa.- Ooh, misericordia. Que brutalidade…Chegamos tarde ao jantar.Enquanto comíamos, Jamie não demorou em perguntar pela senhora Abernathy, de Rose

Hall.- Abernathy? —MacIver franziu o cenho enquanto dava golpes na mesa com a colher para

incentivar sua memória. - Sim, eu acho que ouvi esse nome.- Oh, conheces bem Rose Hall —interrumpeu sua esposa, que estava dando indicações a um

servente. - é aquele lugar nas montanhas, sobre o rio Yallahs. Cultivam cana, mas também umpouco de café.

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- Oh, sim, é isso! - exclamou o marido - Que memória a tua Rosie!- Bom, eu tão pouco o havia recordado - disse modesta - a não ser porque esse ministro, o da

igreja da Nueva Gracia, esteve perguntando por ela.- De qual ministro se trata, senhora? - perguntou Jamie servindo meio frango assado.- Tens boa apetite senhor Fraser! - exclamou a mulher admirada - É o ar da ilha, suponho.Jamie , com as orelhas vermelhas, teve a prudencia de não me olhar.- Suponho que sim. Quanto ao ministro…- Ah, sim. Campbell, se chama. Archie Campbell. — Me olhou curiosa ao notar que eu dava

um sobressalto-O conheces?- Em uma ocasião nos encontramos em Edimburgo.- Está aqui como missionário, para levar aos negros pagãos a salvação de Jesus, Nosso

Senhor - Falava com admiração enquanto lançava uma olhada fulminante ao seu esposo, quehavia soltado um bufido - Nada de comentários religiosos, Kenny! O reverendo Campbell é umsanto.E um grande erudito, por acrescimo. Eu pertenço a Igreja Livre - me explicou em tomconfidencial - Quando me casei com Kenny, que é católica, meus pais me deserdaram, mas lhedisse que, cedo ou tarde, acabaria por ver a luz.

- Muito, mas muito tarde - comentou seu esposo servindo geléia.- Como o reverendo é um grande erudito, a senhora Abernathy lhe escreveu a Edimburgo

para fazer algumas consultas. Agora que está aqui tem intenção de ir visitá-la. Mesmo comtodo o que haviam dito Myra Dalrymple e o reverendo Davis, me surpreenderia muito quepisasse nessa casa - disse a senhora Maclver.

- Por minha aprte, não tenho muita fé no que diz o reverendo Davis - disse seu esposo - Éstão santo que não caga.Myra Dalrymple, em compensação é uma mulher sensata.Ai! — disseenquanto afastava bruscamente os dedos, os que sua mulher acabava de acertar com um golpede colher.

- O que disse a senhora Dalrymple da senhora Abernathy? —Jamie se apressou a intervirantes de que estourasse uma guerra conjugal.

A senhora MacIver estava ruborizada, mas desenrrugou o cenho.- Bem, em parte é puramente fofoca mal intencionada - admitiu - O tipo de coisa que sempre

diz as pessoas quando uma mulher vive sozinha. Que gosta muito de escravos jovens, porexemplo.

- Mas também houve rumores quando morreu o marido - interrompeu Kenny - Agora orecordo muito bem.

Barnabas Abernathy, proveniente de Escocia, tinha comprado Rose Hall cinco anosatrás.Administrava a propriedade, da qual extraia um pequeno rendimento em café e açucar,sem provocar comentários entre seus vizinhos. Há tres anos se casou com uma desconhecidaque trouxe de Guadalupe.

- Seis meses depois estava morto - concluiu a senhora Maclver com sombria satisfação.- E se supões que a senhora Abernathy teve algo haver com isso? - perguntei, conhecendo a

grande variedade de enfermidades tropicais que atacavam os europeus naquelas terras.

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- Veneno - informou Rosie em voz baixa, dando uma olhada na porta da cozinha - Disse omédico que o atendeu. Claro que podem ter sido as escravas. Corriam comentários sobreBarnabas e suas escravas. Mesmo que doa reconhecer, não é tão raro que alguma cozinheiradeslize algo a comida, mas…

Se interrompeu ao ver que estrava uma moça para deixar na mesa uma fonte de vidrolapidado. A moça se retirou em meio do silencio geral.

- Não se preocupem - nos tranquilizou a dona da casa - Aqui temos um moço que prova tudoantes de nos servir. Não corremos perigo.

Traguei com dificuldade o pedaço de pescado que tinha na boca.- E o revrendo Campbell foi visitar a senhora Abernathy? — perguntou Jamie.- Não, não creio. No dia seguinte foi quando aconteceu aquilo com sua irmã.Na excitação de rastrear a Ian e a Bruxa, havia esquecido por completo da Margaret Jane

Campbell.- O que aconteceu com sua irmã? - perguntei com curiosidade.- A pobre desapareceu! - Os olhos azuis da mulher se encheram de impotencia.- O que? - Fergus, que estava devotamente concentrado em seu prato, levantou a cabeça -

Desapareceu? Como?- Em toda ilha não se fala em outra coisa - interveio Kenny - Parece que o reverendo havia

contratado uma dama de companhia, mas a mulher morreu de febre dutante a viagem.- Oh, que pena! - Senti verdadeiro pesar por Nellie Cowden, a de cara larga e agradável.- Sim - assentiu Kenny despreocupado - O caso é que o reverendo buscou um alojamento

para sua irmã. Tenho entendido que não estava bem da cabeça, verdade? - M eolhou elevandouma sombrancelha.

- Não muito bem.- Bem, parecia bastante tranquila, assim a senhora Forrest a sentava na galeria para que

tomasse ar fresco. Na terça feira passada, a senhora Forrest recebeu a notícia de que anecessitavam em casa de sua irmã, que ia ter um menino. Saiu imediatamente e , quandorecordou que havia deixado a senhora Campbell na galeria e enviou a alguém…, a mulher jáhavia desaparecido. Desde então não se sabe nada dela, ainda o revrendo está revirando céu eterra.

- Myra Dalrymple aconselhou o reverendo que pedisse ajuda ao governador para procurá-la- disse a senhora MacIver—. Mas ele acaba de chegar e ainda não está pronto para receber aninguém. Na quinta oferecerá uma grande recepção para conhecer todas as pessoas importantesda ilha.Myra disse que o reverendo deveria ir e aproveitar a oportunidade para falar com ele,mas não está convencido, por ser uma ocasião tão mundana.

- Uma recepção? - Jamie olhou com interesse a senhora MacIver— É necessário convite?- Oh, não. Pode ir quem quiser, pelo que eu entendi.- É mesmo?- Jamie me olhou sorrindo - O que te parece, Sassenach? Gostaria de ir comigo a

residencia do governador?Será uma boa oportunidade para perguntar por Ian. É possível quenão está em Rose Hall, sim em outra parte da ilha.

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- Bem, além de eu não ter nada que vestir…- disse tratando de imaginar o que tinha emmãos.

- Oh, isso não é problema - me assegurou Rosie -Tenho uam das costureiras mais hábeis dailha. Ela se encarrega de fazer em um abrir e fechar de olhos.

Jamie assentiu pensativo.-Seda violeta te ficará bem - opinou afastando delicadamente as espinhas do pescado - E

enquanto o outro , Sassenach, não se preocupe. Tenho uam ideía. Verás.

CAPÍTULO 58

A MÁSCARA DA MORTE VERMELHA

Jamie colocou a peruca e me olhou através do espelho. Estava fascinada com suatransformação: sapatos vermelhos de salto, meias de seda negra, calça de cetim cinza comfivelas de prata nos joelhos e uma camisa branca com quinze centímetros de renda de Bruxelasnos pinhos e no pescoço. O casaco, uma obra de mestre cinza com punhos de cetim acul ebotões de prata, esperava a vez pendurado detrás da porta. Quando acabou de empoar-se orosto, se impregnou na ponta do dedo para pegar uma pinta postiça, o untou com gomaarábicae o fixou junto no canto da boca.

- Pronto - disse girando pelo banquinho - Pareço um ruivo escoces contrabandista?- Pareces uma gárgula - repliquei.Em seu rosto floreceu um largo sorriso.- Non! - se indignou Fergus - Parece um frances.- É mais ou menos a mesma coisa - decidiu Jamie dando um espirro - Com perdão, Fergus.Se levantou para por o casaco. Os saltos de sete centímetros o faziam alcançar quase um

metro e noventa de estatura.- Não sei - disse em dúvida - Eu nunca ví um frances tão alto.Jamie encolheu os ombros.- Não tem jeito de dissimular minha estatura. Mas enquanto manter o cabelo oculto, não

acho que terei problemas. Além do mais - disse observando-me com aprovação - as pessoasnão se fixaram em mim.

Fique de pé para eu te ver, por favor?Para dar-lhe o gosto, girei lentamente exibindo a larga anágua de seda violeta. Um veú de

encaixe me cobria o decote com uam serie de furos. Cascatas iguais pendiam nos cotovelos medeixando os pulsos descobertos.

- É uma pena que não tenho as pérolas de sua mãe - comentei recordando que as haviadeixado com Brianna.

- Eu já tinha pensado isso - Como um mágico, Jamie tirou do bolso uma caixinha que me

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ofereceu com sua melhor reverencia, ao estilo de Versalles.Continha um pequeno peixe lapidado em um material negro brilhante, com toques de ouro

nas bordas das escamas.- É um broche - explicou - mas podes colocá-lo no pescoço com uma fita.- É lindo! - disse encantada - É de ébano?- De coral negro. O comprei ontem na baia de Montego - Junto com Fergus, havia levado o

Artemis ao outro lado da ilha para entregar a carga de fertilizantes.Busquei um pedaço de fita acetinada, que Jamie me amarrou ao redor do pescoço; se

inclinou por cima de meu ombro para me ver ao espelho.- Não, ninguém me olhará - confirmou - A metade da concorrencia estará olhando para

voce, Sassenach e a outra metade ao senhor Willoughby.- O senhor Willoughby? Não tem perigo? Porque… - Dei uma olhada no pequeno chines,

que esperava pacientemente envolto emseda azul, e baixei a voz - Serviram vinho, não é?Jamie assentiu.-E também whisky, vinho do porto e champagne. E haverá também um barril do melhor

conhaque frances, por cortesia de Monsieur Etienne Marcel de Provac Alexandre. — Colocoua mão ao peito e voltou az inclinar-se em uma exagerada representação - Não se preocupe.Willoughby prometeu se comportar bem se não irei tirar dele o seu globo de coral;

- É necessário ir?- É necessário.- Me tranquilizou com um sorriso - Se tiver alguém do Marsopa,não é

provável que me reconheça - Esfregou com vontade a peruca por cima da orelha esquerda. - Deonde tiras-tes isto, Fergus? Acho que tem piolhos.

- Oh, não, milord. O cabelereiro me assegurou que estava bem guardada para protege-la depossíveis pragas.

Fergus luzia sua própria cabeleira bem cheia. Ainda menos chamativo que Jamie, estavamuito bem com seu traje novo de veludo azul escuro.

Se ouviu uma batida na porta. Era Marselli, resplandecente com seu vestido rosa apertadopor um tom mais intenso. Na realidade, não resplandecia somente pelo vestido. Me virei paramurmurar em seu ouvido:

- Estás com azeite de atanasia?- Ah? - sussurou com ar distraido, olhando a Fergus - Dizias…?- Não importa - disse resignada.Esse era o menso de nossos problemas.A mansão do governador estava totalmente iluminada. Havia lamparinas penduradas ao

longo da galeria e nas árvores que bordeavam os caminhos do jardim. Os apurados visitantesdesciam de suas carruagens sobre uma vereda de conchas e entravam na casa por um par deenormes portas de cristal.

No hall estavam personalidades da ilha recebendo os convidados. Me adiantei a Jamie parasaudar com um sorriso o alcaide de Kingston e sua esposa. O seguinte era uma almirante cheiode condecorações que demonstrou um vago assombro ao estreitar a mão ao gigantes frances e o

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pequeno chines que me acompanhavam. Continuando se encontrava meu conhecido doMarsopa.

Mesmo esta noites Lord John tinha escondido seu cabelo loiro numa peruca formal,reconheci de imediato suas feiçoes finas e seu corpo leviano e musculoso. Estava sozinho, umpouco afastado dos outros dignatários. Segundo os rumores, sua esposa tinha se negado aabandonar a Inglaterra para acompanhá-lo a este destino. Se voltou para me saudar com umaexpressão de cortesia formal, mas ao me ver um cálido sorriso iluminou seu rosto.

- Senhora Malcolm! — exclamou me segurando as mãos - É um prazer ve-la aqui!- O sentimento é mútuo, acredita-me - Sorri - A última vez que nos vimos ignorava que

fosses o novo governador. Temo não ter sido suficientemente correta.Se pos a rir e pude observar como era charmoso.- Tinhas uma desculpa excelente - disse - Esperava ve-la antes de desembarcar, mas quando

perguntei por voce ao senhor Leonard me disse que estavas indisposta. Vejo que estásrecuperada. Estás com um ótimo aspecto.

- Oh, por completo - lhe disse divertida. Ao que parece, Tom Leonard nãoe stava disposto aadmitir que havia escapado - Me permitas apresentar meu esposo?

Vi Jamie avançando até nós. Quando me voltei de novo até o governador, ele nos olhavaverde como um limão.

Jamie se deteve ao meu lado, inclinando graciosamente a cabeça.- John - saudou com suavidade - que alegria te ver.O governador abria e fechava a boca sem emitir som algum.- Mais tarde teremos a ocasião de falar - murmurou Jamie - Por agora…me chamo Etienne

Alexandre. — Me segurou o braço com uma reverencia formal - Permita-me a honra deapresentar minha esposa…Claire - disse em frances em voz alta.

- Claire? - Lord John me olhava com os olhos desorbitados -Claire!- É…sim – confirmei sem saber por que o meu nome de batismo o afetava tanto.Os seguintes convidados esperavam. Passamos ao enorme salão principal cheio de pessoas

barulhentas e chamativas; parecia uma jaula cheia de papagaios. Em um lado, próximo asportas abertas ao terraço, tocava uma pequena orquestra.

Não conheciamos ninguém nem tinhamos quem nos apresentasse. Tão pouco nos fezfalta.Pouco depois de entrar, as mulheres começaram a agitar-se ao nosso redor, fascinadaspelo senhor Willoughby.

- Um conhecido meu, o senhor Yi Tien Cho — disse Jamie para uma roliça jovem envoltaem cetim amarelo - originário do Reino Celestial de la China, Madame.

- Oh! - A jovem agitou o abanador impressionada - Da China, é mesmo? Oh, A quedistancia tão grande deves ter percorrido! Bem vindo a nossa pequen ilha senhor…senhor Cho?

O senhor Willoughby se inclinou com as mãos no interior das mangas e disse algo emchines. A jovem parecia emocionadíssima. Jamie aproveitou a oportunidade para se presentarem um ingles com forte acento estrangeiro:

- Etienne Alexandre, aos seus serviços, Madame. Permita-me apresentar Claire, minha

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esposa.- Oh, sim, encantada! - A mulher me estreitou a mão, corada pelo entusiasmo - Sou

Marcelline Williams. Eu vim passar uma temporada com meu irmão Judah, o dono de Twelve-trees.

- Temo que não conhecemos a ninguém - me desculpe - Acabamos de chegar… daMartinica, onde meu esposo tem uma fazenda.

- Oh! - exclamou a senhora Williams— Os apresentarei aos meus melhores amigos, osStephen!

Um hora depois me havia apresentado a dezenas de pessoas e ia de grupo em grupo. Aooutro lado do salão, entre um grupo de prósperos comerciantes, assomava a cabeça e os ombrosde Jamie, viva imagem da dignidade aristocrática. fergus e Marsali, sem procurar maiscompanhias que a mútua, bailavam no outro extremo. Enquanto o senhor Willoughby, emtriunfo sical sem precedentes, era o centro das atenções das senhoras, que rivalizavam emoferecer-lhe comidas e bebidas. Seus olhos brilhavam e um leve rubor se apreciava em suasbochechas.

O rechonchudo plantador ingles com quem havia bailado me deixou com um grupo desenhoras e se ofereceu galantemente em me trazer uma taça de vinho. Então voltei a minhamissão daquela noite: informar-me sobre os Abernathy.

- Abernathy? — A senhora Hall, uma matrona ainda jovem, se abanou xom ar inexpressivo -Não, não creio que os conheça. Sabes se tem muita vida social?

- Oh, não, JOan! - A senhora Yoakum demonstrou esse tipo de horror que precede asrevelações mais interessantes - Claro que sabe quem são os Abernathy! Não se lembra? Ohomem que comprou Rose Hall, junto ao rio Yallahs.

- Ah, sim! - A senhora Hall alargou seus olhos azuis - Ele que morreu pouco depois decasar-se!

- Ele mesmo - interveio outra senhora - Disseram que foi malária, mas eu falei com omédico que o atendeu. Veio em minha casa para ver a perna enferma de mamãe; és um mártirda hidropesia, pobre. E me disse, em estrita confidencia, claro…

As linguas se soltaram alegremente. O informante de Rosie MacIver tinah sido muito fiel.- A senhora Abernathy, emprega pessoas contratando como servidores, além dos escravos?Enquanto isso, as opiniões foram mais confusas. Algumas achavam que a mulher tinha

vários servidores embaixo contrato; outras, que era somente um ou dois. Na realidade,ninguém tinha estado em Rose Hall, mas as pessoas comentavam…

Posu depois, quando a fofoca tomou outra direção, me desculpei para me retirar nahabitação das damas. Me doiam os ouvidos. Até aquele momento não havia descoberto nadanovo sobre a plantação dos Abernathy, mas contava com uma lista das plantações próximasque contratavam servidores. O que mais me preocupava era a reação de Lord John ao conhecerminha identidade; qualquer um haveria dito que tinha visto um fantasma.

Depois de piscar sedutoramente a minha própria imagem no espelho, arrumei o cabelo evoltei ao salão, rumo as largas mesas onde se encontrava a comida. Quando me afastava deuma levando distraidamente um prato de frutas, choquei com um jaleco de cor escura. Aodesculpar-me ante seu proprietário, cheia de confusão, me encontrei frente a frente com a azeda

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cara do reverendo Archibald Campbell.- Senhora Malcolm!@ - exclamou atônito.- Ah…que surpresa, reverendo Campbell — respondi debilmente.Olhou com frieza meu decote.- Confio em que estejas bem, senhora Malcolm.- Sim, obrigada. - Tomara que deixe de me chamar senhora Malcolm; podia ouvir alguém

que me conheceu como Madame Alexandre» — Lamento muito sobre a sua irmã - disse com aesperança de distraí-lo - Tens sabido algo dela?

- Não. E minhas possibilidades de iniciar uma busca são limitadas. Estou aqui com aintenção de apresentar meu caso ante o governador.

- A senhorita Cowden me contou ago sobre a tragédia de vossa irmã, reverendo. Se pudesseter ajudado…

- Ninguém pode ajudá-la - me interrompeu com olhos tristes - Foi culpa desses católicos dosStuart e dos libertino montanheses que os seguiam. Não, niguém pode ajudar, exceto Deus. Eletem destruido a casa dos Stuart e destruirá também a esse Fraser e, quando isso ocorrer, minhairmã estará curada.

- Fraser? - Começava a me inquietar.Dei uma olhada pelo salão mas Jamie, afortunamente,nãoe stava a vista.

- Assim se chama o homem que seduziu a Margaret, afastando-a de sua família e dasalianças estipuladas. Sim, Deus julgará James Fraser.

- Oh, não dúvido - murmurei - Se me desculpas, me parece que eu ví um amigo…- Deus não permite que a luxúria perdure eternamente - prosseguiu o reverendo.Seus olhos cinzas se pousaram com glacial desaprovação em um grupo próximo: váras

senhoras se agitavam em torno do senhor Willoughby como borboletas ao redor de umacampânula chinesa.

- As mulheres devem se comportar com sobriedade - entonou o reverendo - evitando chamara atenção com suas roupas e seus peitos. Olha a senhora Alcott, uma viúva que deveria estardedicada as obras caridosas!

Seguindo a direção de seus olhos, ví uma mulher gorda de uns trinta anos com cabeloscastanhos e aspecto alegre, que ria infantilmente junto ao senhor Willoughby, o qual, dejoelhos no chão, fingia procurar um pendente perdido, provocando gritos de alarme na senhoraAlcott cada vez que se aproximava a seus pés. Pensei em procurar Fergus para que afastasseele dali antes de que as coisas fossem muito longe.

Obviamente ofendido pelo espetáculo, o reverendo deixou bruscamente sua limonada eandou até o terraço, abrindo passos com vigorosas cotoveladas. Rapidamente ví a silhueta deJamie que cruzava uma porta aooutro lado do salão; provavelmente ia as habitações privadasdo governador. Fui me reunir com ele.

O corredor estava em silencio; um tapete turco apagava o ruido de meus passos. Adiantepercebi um murmúrio de vozes masculinas, provenientes do que devia de ser o escritório dogovernador. Ouvi a voz de Jamie.

- Oh, JOhn, por Deus!

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Me detive em seco, não tão impressionada por suas palavras como pelo tom de sua voz,derrotada por uma emoção desconhecida para mim. A porta entre aberta mostrava Jamie que,com a cabeça inclinada, estreitava a Lord John Grey em um abraço.

Permaneci imóvel, totalmente incapaz de falar nem de fazer nada. Eles se separaram. Jamieestava de contas para mim, mas lord John me haveria visto com facilidades se não tivesse osolhos fixos em Jamie com uma paixão que fez meu sangue subir pelas bochechas.

Me caiu o leque. O governador girou a cabeça, sobressaltado pelo ruido. Então me pus acorrer até o salão. com o coração saindo-me do peito.

Me detive atrás de uma palmeira, tremendo.Tinha as mãos frias e me sentia um poucodescomposta. Que diabo estava acontecendo?

«Era o alcaide da prisão de Ardsmuir», había dito Jamie. E em outra ocasião: «Sabes o quefazem os homens encarcerados?»

Eu sabia, mas tinha jurado pela vida de Brianna que Jamie era incapaz de fazer em qualquercircunstancia. Não obstante, se sua relação com Grey era somente amizade, por que não mehavia falado dele? Por que ficou tão incomodado para ve-lo, ao saber que estava na Jamaica?Me senti mareada. Necessitava me sentar.

Então se abriu a porta e o governador saiu, de regresso a festa. Estava ruborizado e com osolhos brilhantes. POuco minutos depois voltou a abrir para dar passo a Jamie. Haviarecuperado sua máscara de fria reserva, mas pude detectar embaixo dela uma forte emoção.Começou a passear pelo salão procurando alguém. A mim.

Traguei saliva com dificuldade. Não podia enfrentar ele diante dde tanta gente. Permanecionde estava, observando-o, até que saiu ao terraço. Então abandonei meu esconderijo para ir atoda velocidade até a habitação das damas.

Atrás da porta, me relatou imediatamente o aroma reconfortante dos pós e pefumes. Poucodepois percebi outro cheiro familiar de minha profissão. Não esperando ali.

Mina Alcott jazia esparramada no divã de veludo vermelho, com a cabeça pendurada e asanáguas elevadas até o pescoço. Tinha os olhos abertos e fixos. O sangue do corte que tinha nopescoço havia enegrecido ao veludo e formava um grande charco embaixo da cabeça.

Fiquei petrificada, sem poder sequer gritar para pedir ajuda. Ouvi vozes açegres no corredose a porta se abriu. Houve um momento de silencio. Em pouco tempo começou os gritos. Entãoví as pegadas de pisadas que iam até a janela: era de um pé calçado de feltro, pquenos, nítidos edesenhados pelo sangue.

CAPÍTULO 59ONDE É MUITO REVELADO

Tinham levado a Jamie. A mim tinham deixado, tremendo, no escritório do governadorjunto a Marsali, que tratava de refrescar-me a face com uma toalha úmida mesmo com a minha

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resistência.—Não podem crer que papai teve algo a ver com isto! —repetiu pela quinta vez. Por fim me

dominei o suficiente para responder.—Não, acham que foi o senhor Willoughby. E foi Jamie quem o trouxe.—O senhor Willoughby? —Olhava-me com horror. —Não é possível!—Isso é o que eu acho também. — Disse olhando a grande escrivaninha. Ainda podia ver a

Jamie e lorde John como se estivessem pintados na parede. —Não, não creio —disse em vozalta, sentindo-me ligeiramente melhor.

—Eu também não —assegurou Marsali. —É um pagão, mas convivemos com ele e oconhecemos… Ou conhecíamos? Conhecia a Jamie? Teria jurado que sim, e não o bastante…—Não, não estou errada —murmurei. Se Jamie era o amante de lorde John, então não era nempor acaso o homem que eu conhecia. Tinha que ter outra explicação, sem dúvida. Passei umamão pelo rosto, tratando de aliviar a confusão e o cansaço. —Estão demorando muito.

O relógio de parede marcava duas da manhã quando Fergus entrou no escritório junto a ummilitar.

—Já podemos ir, chérie —disse a Marsali baixinho. E voltando-se a mim. —Quer virconosco, milady, ou esperar a milord?

—Esperarei —disse. Não pensava deitar-me sem ver a Jamie.—Vos enviarei a carruagem — prometeu pegando a Marsali pelos ombros.Uma hora depois entrou o governador, tão formoso como uma camélia branca, ainda que

começasse a murchar pelas bordas. Deixei a taça de conhaque intacta e me pus em pé.—Onde está Jamie?—Ainda o estão interrogando. — Deixou-se cair em sua cadeira, desconcertado. —

Ignorava que dominasse tão bem o francês.—Suponho que não o conheces o suficiente —observei jogando um verde.—Acreditas que será capaz de representar o papel até o final? —perguntou-me. Então me

dei conta da pouca atenção que eu prestava ante o assassinato ocorrido e a situação de Jamie.—Sim. —assegurei. —Onde o mantêm?

—Na sala de reuniões, mas não creio que devas…Sem prestar-lhe atenção, fui ao corredor, mas tive que voltar rapidamente batendo a porta.

Por ali se aproximava o almirante que tínhamos visto à entrada, acompanhado por umapatrulha de oficiais jovens entre os quais reconheci Thomas Leonard. Procurei freneticamenteonde me esconder, mas não tinha nenhum lugar adequado. O governador me observava com asloiras sobrancelhas arqueadas pelo assombro. Voltei-me para ele, levando um dedo aos lábios.

—Não me denuncies se aprecias a vida de Jamie! —sussurrei de modo melodramático. Ditoisto me atirei no sofá, cobri a face com uma toalha úmida e relaxei todos os membros. Depoisouvi o ruído da porta e a voz do almirante.

—Lorde John… —Então reparou em minha silhueta. —Oh, vejo que tens companhia.—Não é precisamente companhia, almirante. —Tinha que reconhecer que Grey tinha bons

reflexos. Parecia completamente dono de si. —A senhora não resistiu a impressão de ver um

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cadáver.—Ah! —A voz do almirante se tornou compreensiva. —Um golpe horrível para uma

senhora, sem dúvida —disse sussurrando. —Dorme, talvez?—Suponho que sim — lhe assegurou o governador. —Bebeu conhaque suficiente para

tombar um cavalo.—Oh, é o melhor para estes casos. Queria dizer-vos que mandei trazer tropas de Antiga… a

vossa disposição… guardas para revisar a cidade… se os milicianos não o encontraremprimeiro. Estarei na cidade, no hotel de MacAdams. Não vacile em me chamar se precisar deajuda, Excelência —sussurrou.

Com um murmúrio geral, os oficiais se retiraram, respeitando meu sonho. Foi feito ummomento de silêncio.

—Já pode se levantar. Suponho que não estas realmente prostrada pelo golpe —adicionoucom ironia. —Não creio que baste um simples assassinato para acabar com uma mulher que foicapaz de enfrentar sozinha a uma epidemia de tifo.

Tirei a toalha da cara, incorporando-me para olhá-lo. Estava apoiado na escrivaninha, com oqueixo entre as mãos.

—Há golpes e golpes —disse olhando-o fixamente. —Não sei se me entendes. Ficousurpreso, mas depois pareceu entender. Abriu uma gaveta para tirar meu leque.

—É seu? Encontrei-o no corredor. —Torceu a boca com ironia.—Já entendo. Então podescompreender a impressão que sofri ao ver-los esta noite.

—Duvido-o muito — disse —Não sabia que Jamie era casado?—Ele me disse (ou ao menos, deu-me a entender) que tínhas morrido. Ele nunca falou de

mim?Ao meu pesar, senti pena por ele.—Sim. Disseme que eram amigos. Seu rosto iluminou ligeiramente.—Verdade?—Tens que entender —expliquei —Ele… eu… A guerra nos separou, o Levantamento.

Cada um achou que o outro tinha morrido. Reencontramo-nos faz … Por Deus, só fazemquatro meses? Na cara de Grey se apagou um pouco a tensão.

—Compreendo — disse lentamente —Assim não o via desde faz… Caramba, vinte anos! —Olhou-me estupefato. —Quatro meses? Por que… como…? —Sacudiu a cabeça para descartaras perguntas. —Bem, isso não vem ao caso. Mas ele não te contou… isto é… Não falou deWillie?

—Quem é Willie?Abriu uma gaveta da escrivaninha e tirou um pequeno objeto, indicando-me que me

aproximasse. Era um retrato, uma miniatura oval com moldura de madeira escura. Ao veraquela cara, meus joelhos se dobraram e tive que me sentar. «Poderia ser irmão de Bree», foimeu primeiro pensamento. O segundo foi como um golpe no plexo solar: «Deus, é irmão deBree!» Não restava dúvida. O menino do retrato tinha nove ou dez anos e seu cabelo não eravermelho, mas sim castanho. Mas os olhos azuis e enviesados olhavam com audácia acima dosaltos pômulos de viking. O nariz era reto e talvez muito longo. A cabeça tinha o mesmo porte

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confiado do homem de quem tinha herdado essa cara. Grey me observava com simpatia.—Não sabia? —perguntou.—Quem…? —a surpresa me tinha emudecido. Tive que pigarrear. —Quem é a mãe? Grey

vacilou e se encolheu de ombros.—Era. Morreu.—Quem era?—Chamava-se Geneva Dunsany. Era irmã de minha esposa. A cabeça me dava voltas

tratando de encontrar sentido ao que acabava de dizer.—Tens esposa! —exclamei, olhando-o com os olhos desorbitados. Suponho que meu tom

não foi muito diplomático. Apertou os olhos enrubescido.—Explica-me de uma vez que diabos tens a ver com Jamie, com essa tal Geneva e com este

menino —disse recolhendo o retrato.—Não creio ter nenhuma obrigação —observou, outra vez frio e reservado. Tive que

respirar fundo várias vezes para me acalmar.—É verdade. Mas ficaria muito agradecida. Por que me mostrou este retrato se não querías

que eu soubesse? Jamie pode contar-me o resto. E voce pode me contar a sua parte agora.Temos tempo.

—Suponho que sim. —Desviou a mão para a garrafa. —Você quer conhaque?—Por favor —disse de imediato. —E sugiro que também beba. Creio que o precise tanto

quanto a mim.—É uma opinião médica, senhora Malcolm? —perguntou com um sorriso.—Claro. Estabelecida a trégua, recostou-se em seu assento. —Disse que Jamie tinha falado

de mim. —Devo ter feito alguma careta ao ouvir-lhe pronunciar o nome, pois franziu o cenho—prefere que utilize o sobrenome? Francamente, não saberia qual usar.

—Não. É verdade que te mencionou. Disse que tinha sido o alcaide de Ardsmuir e que podiaconfiar em sua pessoa.

—Me alegro saber — disse com suavidade. —Nos conhecemos em Ardsmuir. Quando aprisão foi fechada e os internos foram enviados a América, dispus que Jamie pudessepermanecer, sob palavra, numa fazenda inglesa de propriedade de uns amigos de minhafamília. —Olhou-me vacilante.

—Não suportava a idéia de não voltar a vê-lo.Em poucas palavras, me falou sobre a morte de Geneva e o nascimento de Willie.—Estava apaixonado por ela? —perguntei.—Nunca me disse, mas tendo conhecido a Geneva, eu duvido. —Torceu a boca num gesto

irônico. —Corriam certos rumores sobre ela e seu ancião esposo. Quando Willie atingiu osquatro anos o parecido era evidente… para quem quisesse vê-lo. —Bebeu um longo trago deconhaque. —Suspeito que minha sogra o saiba, mas jamais dirá uma palavra.

—Porquê?—Que preferiria para vosso único neto: que fosse conde e herdeiro de uma rica propriedade

ou o filho bastardo de um presidiário?

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—Entendo.—Jamie também entendeu —disse Grey. —E teve a prudência de abandonar a zona antes de

que todo mundo se desse conta.—Foi então quando voltou a entrar em cena, verdade? Com os olhos fechados, fez um gesto

afirmativo.—Assim foi. Jamie me entregou o menino.O estábulo de Ellesmere era cálido no inverno e fresco no verão.—Isabel está muito chateada contigo —disse Grey.—De verdade? —disse Jamie com indiferença.—Willie está muito alterado. Passou o dia chorando. Não teria sido melhor não lhe dizer que

partiria?—Suponho que sim… para lady Isabel.—Jamie… —Grey lhe apoiou uma mão no ombro. — Estás certo em ir. Nos olhos de Fraser

se acendeu o alarme, rapidamente suplantada por cautela.—Você acha mesmo?—É evidente. Se alguém prestasse atenção aos moços do estábulo, isto já teria sido

descoberto há muito tempo.—Deu uma olhada ao potro baio —Há sementes que deixam seu sinal. Tenho a impressão

de que teus descendentes são inconfundíveis. Fraser se voltou, olhando-o com decisão.—Me acompanhas em um passeio?Saiu do estábulo sem esperar resposta. Deteve-se num clarão ensolarado enfrentando a Grey

sem preâmbulos.—Quero pedir-te um favor.—Se temes que o diga a alguém… — começou o inglês.—Não. —Um sorriso curvou a boca de Jamie —Sei que não fará isso. Mas quero pedir-te…—Sim—respondeu Grey imediatamente.—Não queres saber primeiro do que se trata?—Imagino-o: queres que cuide de Willie e que te comunique como ele está.Jamie lançou um olhar à casa, meio oculta entre os arcos.—Seria muito incomodo que viesses até Londres para vê-lo de vez em quando?—Em absoluto. Tenho que te dar uma notícia. Vou me casar.—Casar? —A surpresa de Fraser foi evidente.—Com uma mulher?—Não creio que tenha muitas opções —replicou azedo o inglês. —Com lady Isabel.—Por Deus, homem! Não podes fazer isso!—Posso —o tranqüilizou Grey com uma careta. —Em Londres pus a prova minha

capacidade; serei um esposo adequado, acredite-me. Não é necessário desfrutar do ato parapoder executá-lo. Já o deves saber. Jamie abriu a boca e voltou a fechá-la, pensando melhor.

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—Dunsany é muito velho para seguir administrando a fazenda — explicou John —, Gordonmorreu, Isabel e sua mãe não podem se manter sozinhas e nossas famílias se conhecem hámuitos anos. É uma aliança muito conveniente.

—É mesmo? —comentou Jamie com cepticismo.—De verdade —contestou Grey áspero. —O casal não é só amor carnal. Existe bem mais do

que isso. O escocês se afastou voltando-lhe as costas. Grey aguardou com paciência até queFraser voltou cabisbaixo.

—É verdade —reconheceu baixinho. —Não tenho direito de pensar mal de ti se não tensintenções de desonrar a garota.

—Mas claro que não —assegurou John. —Ainda mais, isso significa que estareipermanentemente aqui para cuidar de Willie.

—Renunciarás ao exército?—Sim. —Sorriu com certa melancolia. —Em certo modo, será um alívio. Creio que não sou

apto para a vida militar.—Nesse caso, te agradeceria que atuasses como padrasto de… de meu filho. —

Provavelmente era a primeira vez que dizia essa palavra em voz alta. O som pareceuimpressioná-lo —Lhe ficaria… muito agradecido.

Grey o olhou com curiosidade, notando que sua tez ia tomando um tom avermelhado.—Em troca… se quiser… Isto é, estaria disposto a… Dominando um súbito riso, apoiou a

mão no braço do escocês e notou que este fazia autênticos esforços para não o retirar.—Meu querido Jamie —disse entre o riso e a exasperação—, me estás oferecendo teu corpo

em troca de que te prometa cuidar de Willie? Fraser tinha enrubescido até a raiz do cabelo.—Sim —disse com os lábios tensos. —Queres ou não?Grey não pôde conter a gargalhada.—Oh, Deus —disse por fim—, o que tenho vivido para escutar isto!Acreditou ver um vago gesto de humor e profundo alívio naquela cara avermelhada.—Não me quer?—É provável que te queira até o dia de minha morte —disse Grey objetivamente. —Mas

apesar da tentação… —Sacudiu a cabeça. —Achas que poderia aceitar algum pagamento poresse favor? Na realidade, me sentiria ofendido por esse oferecimento se não fosse porquecompreendo o fundo sentimento que o inspira.

—Não era minha intenção ofender-te —murmurou Jamie. Grey não sabia se ria ou chorava.Tocou-lhe suavemente a bochecha, que já ia recobrando seu claro tom bronzeado.

—Além disso —disse baixando a voz—, não podes dar-me o que não tens.Jamie, mais descontraído, disse suavemente:—Posso dar-te minha amizade, se tem algum valor para ti.—Um enorme valor. —Guardaram silêncio durante um momento. Por fim Grey soltou um

suspiro. —Está perdendo seu tempo. Suponho que hoje tens muito o que fazer.Jamie pigarreou.

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—Sim. Deveria estar ocupando-me de meus assuntos. Grey arrumou o colete preparando-separa voltar, mas Jamie se atrasava. De repente, decidido, aproximou-se um passo. John sentiuaquelas mãos grandes e quentes em sua cara e a boca larga e suave de Jamie tocou a sua. Teveuma fugaz impressão de ternura, de força contida e sabor de cerveja e pão recém saído doforno. Desapareceu naquele momento. John Grey ficou piscando sob o sol intenso.

O governador calou-se. Depois levantou os olhos com um triste sorriso.—Essa foi a primeira vez que me tocou por vontade própria —disse baixinho. —E a

última… até esta noite, quando lhe dei a outra cópia do retrato.Tinha ficado completamente imóvel, com a taça de conhaque esquecido na mão. Não estava

segura do que sentia: surpresa, fúria, horror, ciúmes e compaixão; em ondas sucessivas. Faziapoucas horas, uma mulher tinha morrido violentamente a pouca distância e, no entanto, aquelacena parecia irreal comparada com o pequeno retrato. O governador me estudavaatenciosamente.

—Deveria ter-te reconhecido no barco —disse. —Claro que acreditava estar morta.—Bem, estava escuro —disse estupidamente. Então me dei conta. —Reconhecer-me?

Como, se jamais tinha me visto?Ele vacilou.—Recorda-se de um bosque escuro, cerca de Carryarrick, há vinte anos? E a um jovem com

o braço quebrado? Você me curou.—Por todos os santos… —Bebi um trago de conhaque que me fez tossir. Olhei-o, piscando

com os olhos cheios de lágrimas.—Nunca tinha visto os peitos de uma mulher —comentou. —Foi um verdadeiro golpe.—Do que parece ter-se reposto —observei friamente. —Pelo visto, perdoastes a Jamie pela

fratura do braço e por ameaça-lo de morte.Passamos um momento em silêncio, sem saber o que dizer. Ele mantinha os olhos fixos em

suas mãos.Por fim disse suavemente:—Sabe o que significa amar a alguém e não poder oferecer-lhe paz, alegria ou felicidade?—

Levantou a cabeça; seus olhos estavam cheios de dor. —Não poder fazer-lhe feliz, não porculpa sua ou dele, senão só porque não é, por nascimento, a pessoa adequada?

—Eu sei, sim —murmurei apertando as mãos no colo. «Oh, Frank —pensei—, perdoa-me.»—Suponho que eu estou perguntando se existe a fatalidade —prosseguiu lorde John com a

sombra de um sorriso revolto na cara.—Parece a pessoa mais indicada para dizer-me.—Isso lhe parece verdade? —reconheci com tristeza —Mas não sei mais do que voce.Sua expressão se suavizou ao contemplar o retrato que sustentava na mão.—Talvez tenha sido mais afortunado do que a maioria —sussurrou. —Só aceitou uma coisa

de mim. E em troca me deu algo precioso. Sem dar-me conta pus os dedos sobre o ventre.Jamie me tinha dado o mesmo dom… pagando a troca a um custo igualmente enorme. Nocorredor se ouviu ruído de pisadas amortecidas pelo tapete. Depois de um rijo golpe na porta,um miliciano assomou a cabeça.

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—Se a senhora já está reposta, o capitão Jacobs concluiu seu interrogatório e a carruagem deMonsieur Alexandre está esperando. Levantei-me precipitadamente.

—Estou bem. —Voltei-me para o governador sem saber o que dizer-lhe. —Agradeço… istoque… Fez-me uma reverência formal.

—Lamento muitíssimo que tenha tido que passar por uma experiência tão desagradável,senhora —disse diplomaticamente. Já na soleira da porta me voltei por um impulso.

—Aquela noite, a bordo do Marsopa… me alegro que não sabias quem eu era. Aprecio-o…desde então.

—Eu também vos aprecio —disse perdendo a máscara diplomática. —Desde aquelemomento. Era como se viajasse junto a um desconhecido.

No céu começava a clarear, fazendo visível, em exceto à penumbra da carruagem, o cansaçona cara de Jamie.

—Achas que foi ele? —perguntei só para dizer algo. Encolheu os ombros sem abrir osolhos.

—Não sei. —Parecia exausto. —Esta noite me perguntei isso mil vezes… e me perguntarammuitas mais. Não posso imaginar-lhe fazendo algo assim. E no entanto… já sabes que quandoestá bêbado é capaz de qualquer coisa. Não seria a primeira vez que mata nesse estado.Recordas, no bordel? Mas isto é diferente. Se essa tal senhora Alcott esteve brincando comele…

—Fez —disse—Eu a vi.—Só Deus sabe. Eu não. —Passou uma mão pela cabeça. —Há algo mais. Fui obrigado a

dizer que mal conhecia a Willoughby, que nos conhecemos na viagem da Martinica e o trouxepor cortesia, sem saber de onde vinha ou que tipo de pessoa era.

—E acreditaram nisso?—Sim. Mas o paquete volta dentro de seis dias. Quando interrogarem ao capitão,

descobrirão que nunca tinham visto a Monsieur Etienne Alexandre nem a sua esposa e muitomenos a um pequeno assassino amarelo.

—Isso poderia ser bastante incômodo —observei. —Este assunto está pondo a gente nacontramão.

—Pior será se passar seis dias sem que o tenham encontrado —me assegurou. — Então já sesaberá em Kingston quem são os visitantes do casal Maclvers. Todos seus serventes conhecemnosso nome.

—Merda!Isso o fez sorrir.—Muito expressiva, Sassenach. Isso quer dizer que temos seis dias para encontrar a Ian.

Chegamos a Blue Mountain House sem falar e caminhamos na ponta dos pés até nossodormitório.

As revelações de John Grey tinham despejado a maior parte de minhas dúvidas e temores;não obstante, ficava em pé o fato de que Jamie não tinha me contado de seu filho. Tinha bonsmotivos para mantê-lo em segredo, mas não acreditava que ele fosse capaz de guardar segredo?Me ocorreu que talvez o tivesse feito pela mãe, que talvez a tivesse amado. Engoli o nó que

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sentia na garganta, reunindo coragem para perguntar-lhe.—Em que pensas? —perguntei por fim.—Me ocorreu algo —disse contemplando a lagoa. —Com respeito a Willoughby. Ao

princípio me parecia impossível que ele o tivesse feito, mas… —Voltou-se para mim,atribulado. —Estava só, muito só. Num país desconhecido —disse baixinho. —Quando umhomem está tão só… talvez seja indecente dizê-lo, mas fazer amor com uma mulher pode ser aúnica maneira de esquecer. Por isso me casei com Laoghaire. Não foi por insistência de Jenny,nem por piedade por ela e as pequenas, nem tão sequer por deitar-me com ela. Foi paraesquecer que estava só.

Voltou-se para a janela, inquieto.—Se o chinês procurava isso… e ela o recusou… talvez possa tê-lo feito. Calamos durante

vários minutos. Não sabia como levar a conversa para o que tinha visto e ouvido na casa dogovernador. Na cara de Jamie tinha sinais de cansaço mas também a mesma decisão de antesde iniciar uma batalha.

—Claire —disse.Pus-me rígida. Só nos momentos mais graves me chamava por meu nome. —Claire, devo te

dizer algo.— O que?Agora não queria ouvi-lo. Quis me afastar dele mas me segurou pelo braço e me pôs algo na

mão. Sem olhá-lo, soube de que se tratava.—Claire… tenho um filho.Abri a mão sem dizer nada. Era a mesma cara que tinha visto no escritório de Grey: uma

versão infantil do homem que tinha ante mim.—Deveria ter-te dito antes. —Estudou-me o rosto, tratando de adivinhar o que eu sentia. Por

uma vez, meu traiçoeiro semblante deve ter permanecido completamente inalterável.—Não o disse a ninguém. Nem sequer a Jenny.—Jenny não sabe? —disse sobressaltada.Sacudiu a cabeça.—Foi na Inglaterra. É… não podia dizer que era meu. É bastardo, compreendes? —quisera

fosse o sol o que lhe avermelhava as bochechas. —Não o vejo desde que era pequeno e nãocreio que volte a vê-lo.

Pegou-me o retrato e o acalentou na palma de sua mão como se fosse a cabeça de um bebê.—Tinha medo de dizer-te —reconheceu baixinho. —Podias pensar que eu tinha engendradobastardos por todas partes e que não me interessaria tanto por Brianna se tivesse outro filho,mas a quero bem mais do que posso expressar. —Levantou a cabeça para olhar-me de frente.

—Me perdoa?—Ela…? —As palavras me sufocavam, mas devia pronunciá-las. —Você a amava?Sua cara se encheu de tristeza.—Não —disse baixinho. —Ela… me desejava. Devia ter procurado o modo de dissuadi-la,

mas não pude. Quis que me deitasse com ela e o fiz e… isso a levou à morte. Então baixou a

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cabeça, ocultando os olhos sob suas longas pestanas.—Sou culpado ante Deus de sua morte, talvez mais culpado porque não a amava.Sem dizer nada, levantei uma mão para tocar-lhe a bochecha.—Como é? —perguntei suavemente.—Teu filho.Sorriu sem abrir os olhos.—Teimoso e malcriado; com maus modos; grita e tem mau caráter. —Engoliu saliva. —E é

formoso, alegre e forte —concluiu baixinho.—E teu —adicionei.Apertou-me a mão.—E meu.—Deverias ter confiado em mim —disse.—Talvez. Mas não sabia como contar-lhe tudo: sobre Geneva, sobre Willie e John… Sabes

sobre o John? —Franziu o cenho mas se tranqüilizou ao ver que assentia.—Ele me contou tudo.—Quando descobriste sobre Laoghaire, como podes explicar-te a diferença?—Que diferença?—Geneva, a mãe de Willie, queria meu corpo —explicou suavemente. —Laoghaire, meu

sobrenome e o trabalho de minhas mãos como sustento. John… bom. —Encolheu-se deombros. —Nunca pude dar-lhe o que desejava… e como é um bom amigo, não me pediu. Mascomo posso explicar-te tudo isto e depois dizer-te que só amei a ti? Que devo fazer para queme acredites?

—Se assim me diz, eu acredito em voce.—Jura? Por que? —disse atônito.—Porque és um homem sincero, Jamie Fraser —respondi, sorrindo para não chorar. —E

que o Senhor tenha piedade de ti.—Só a voce —repetiu baixinho. —Para adorar-te com meu corpo e com minhas mãos. Para

dar-te meu sobrenome e toda minha alma. Só a voce. Porque não me deixas mentir… e mesmoassim me amas. Só então o toquei, apoiando-lhe uma mão no braço.

—Já não estás só, Jamie.Segurou-me pelos braços, olhando-me no rosto.—Te jurei quando nos casamos .—disse—Então eu não sentia, mas jurei… e agora eu sinto.“Sangue de meu sangue”… —sussurrei juntando meu punho com o seu.—“Carne de minha carne”. — Seu murmúrio soou grave e sensual. Ajoelhou-se ante mim

para pôr suas mãos cruzadas entre as minhas; era o gesto com o que os escoceses das TerrasAltas juram lealdade a seus chefes.

—Dou-te meu espírito —acrescentou com a cabeça inclinada.—Até o final de nossas vidas —completei suavemente. —Mas não terminou ainda, Jamie,

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não é?Então se incorporou para tirar-me a camisa. Estendi-me nua na cama atraindo-o para mim.

Nenhum dos dois esteve só.

CAPÍTULO 60

O AROMA DAS PEDRAS PRECIOSAS

Rose Hall se encontrava a quinze quilômetros de Kingston. O caminho que subia até asmontanhas azuis era uma serpenteante trilha, empinada e cheia de poera avermelhada, invadidapelas ervas e tão estreita que tivemos que percorrer uma por trás da outra a maior parte dotrajeto. Eu seguia a Jamie pelo escuro e nos túneis perfumados de ramos, sob cedros queatingiam os trinta metros de altura. Mesmo à intensa procura que realizava na cidade a milíciada ilha, não tinham encontrado o senhor Willoughby e naquele momento se esperava a chegadade um destacamento especial da Marinha, enviado desde a Antiga. Enquanto, as casas deKingston permaneciam fechadas como abóbadas bancárias e seus proprietários armados até osdentes.

A cidade tinha um aspecto perigoso e tanto os oficiais da Marinha como o coronel da milíciaopinavam que, se o chinês fosse capturado, dificilmente sobreviveria para chegar à forca. Estaquestão continuava preocupando a Jamie, mas não podíamos fazer nada. Se era inocente nãopodíamos salvá-lo e se era culpado, também não podíamos entregá-lo. Nossa esperançaradicava em que não fossem capazes de encontrá-lo. E enquanto isso contávamos com cincodias para encontrar a Ian. Se estava em Rose Hall, tudo sairia bem. E se não… Uma cerca e umpequeno portão separavam a plantação da floresta circundante. No interior tinham substituído omato por cana de açúcar e café. A certa distância da casa se levantava um prédio que pareciaser a refinaria. A grande imprensa de açúcar, de aspecto primitivo, não estava emfuncionamento. Em cima tinha dois ou três homens.

—Como transportam o açúcar desde aqui? —perguntei— Nos lombos de uma mula?—Não —respondeu Jamie distraído— Em barcaças, aproveitando a descida do rio. Pronta,

Sassenach?Rose Hall era uma casa de duas plantas, longa e de grandes proporções; o teto não era de

chapa, sim de uma cara ardósia. Junto à porta principal crescia um grande roseiro amarelo, cujoperfume dificultava a respiração. Enquanto esperávamos que nos atendessem olhei a meuarredor, tratando de divisar alguma silhueta de pele branca próxima da refinaria.

—Sim, senhor? —Uma escrava madura tinha aberto a porta e nos olhava com curiosidade.—Somos o senhor Malcolm e a senhora Malcolm. Nos agradaria ver à senhora Abernathy

—disse Jamie cortês.A mulher pareceu desconcertada. Não deviam de receber visitas habitualmente; finalmente

abriu a porta.

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— Passe ao salão, por favo, sinalizou. Vou perguntar a ama se pode receber.A ampla habitação estava ilumiada por enormes janelas que se abriam em um lado. A

parede do fundo estava quase totalmente ocupada pela chaminé, uma enorme estrutura comestante de pedra. Tinha cadeirões de vime e cana com grandes forros. No parapeito de uma dasjanelas se alinhavam segundo o tamanho várias campainhas de prata. Na mesa lateral vi umgrupo de figuras de pedra e esculturas que pareciam fetiches ou ídolos primitivos em forma demulher grávida, de uma sensualidade perturbadora; ainda que aquela não era uma época muitomoralista quanto ao sexo, também não era habitual encontrar semelhantes objetos num salão.As relíquias jacobitas, em mudança, resultavam mais ortodoxas e alentadoras: se a dona dacasa simpatizava com os Stuart, talvez estivesse disposta a ajudar a um compatriota escocês.

Soou um ruído de pisadas que se aproximavam pela porta que tinha junto ao lar, e a dona dacasa entrou no salão. Pus-me em pé de um salto e Jamie soltou um rosnado, como se tivesserecebido um golpe; a impressão fez que a xícara de prata que eu tinha na mão caísse no chão.

—Vejo que conservas a imagem, Claire. —Olhava-me com a cabeça inclinada e olhosdivertidos.

Ainda que a surpresa me impedia de falar, não teria podido dizer o mesmo dela. GeillisDuncan sempre tinha tido peitos volumosos e curvas abundantes. Ainda conservava a peledensa, mas suas dimensões se tinham voltado bastante mais generosas. Vestia uma folgadatúnica de muselina sob a qual se apreciava o movimento das carnes macias. Seus olhosseguiam cheios de humor e malícia. Respirei fundo tratando de recobrar a voz.

—Espero que não penses mau —disse deixando-me cair no sofá de vime—, mas voce nãomorreu?

— Achavas que deveria ser assim? Não és a primeira e suponho que não serás a última.Uma xícara de chá? Depois eu poderei ler o borro da xícara. Tenho boa reputação comovidente.

Riu outra vez.Se minha presença a tinha surpreendido tanto como a mim a sua, sabia dissimulá-lo.—Chá —ordenou à escrava que foi ao seu chamado — Do especial, com bolos de noz. —

Voltou-se para mim— Esta é uma ocasião especial. Perguntava-me se voltaríamos a nos ver depois daquele dia

em Cranesmuir. Minah estupefação começava a ceder ante a curiosidade.— Me conhecias já quando nos encontramos em Cranesmuir? —perguntei.Sacudiu a cabeça.—Ao princípio, não. Eras muito estranha… e não era a única que pensava. Cruza-ste através

das pedras sem estar preparada, não é? Não o fizeste a propósito. «Então não», ia dizer, masme contive.

—Foi por acidente. Mas voce o fez conscientemente desde 1967, não?

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Assentiu enquanto me estudava com atenção.—Sim, para ajudar ao príncipe Tearlach. —Cuspiu subitamente a um lado— Esse italiano

covarde! Se eu soubesse,teria ido a Roma para matá-lo a tempo. Claro que seu irmão Enriquenão teria sido melhor. De qualquer modo, depois de Culloden era inútil qualquer Stuart. —Fezum gesto de impaciência — Mas isso já acabou. Vieste por acidente; cruzaste as pedras pelasdatas de um Festival de Fogo, não? Assim costuma ocorrer.

— Sim —disse surpresa— Cruzei na Festa Maia. Mas que queres dizer com assim costumaocorrer? Há muitos como nós?

Sacudiu a cabeça distraída. Parecia estar pensando algo, mas talvez fora só no chá, pois fezsoar a campainha com violência.

— Maldita Clotilda! Como nós? Não, só uma mais, que eu saiba. Quando vi a cicatriz davacina no seu braço, poderias ter-me derrubado por um sopro. Ao dizer que costuma ocorrerme baseio nas lendas. Gente que desaparece em círculos embruxados e anéis de pedras.Geralmente cruzam na Festa Maia ou em Todos os Santos; alguns, nos Festivais do Sol ou ossolstícios de verão ou de inverno.

—Essa era a lista! —exclamei recordando o caderno que tinha deixado a Roger Wakefield— Tinhas uma lista de datas e iniciais: quase duzentas.

— Voce encontrou meu caderno? —Observava-me fixamente— Por isso me procuravas emCraigh na Dun? Porque foste voce, não é?, A que gritou meu nome quando ia cruzar pelaspedras. —Gillian —disse. Vi que suas pupilas se alargavam ao ouvir seu antigo nome

— Gillian Edgars. Fui eu, sim.—Não te vi. Mas quando te ouvi gritar durante a bruxaria, pareceu-me reconhecer tua voz. E

depois, ao ver-te a marca no braço… —Encolheu-se de ombros— Quem te acompanhavaaquela noite? —perguntou curiosa— Tinha duas pessoas: um jovem moreno e uma moça. Elame era familiar, mas não pude identificá-la. Quem era?

— Senhora Duncan… Ou devo chama-la de senhora Abernathy? —interrompeu Jamie comuma reverência formal.

Olhou-o como se o visse pela primeira vez.— Caramba, mas se é a pequena raposa! —exclamou divertida— Viras-te um homem muito

charmoso, não? Tens todo o aspecto dos MacKenzie, moço. Sempre tivestes, mas agora separece melhor com seus dois tios.

— Não duvido que Dougal e Colum se alegrariam de saber que os recordão tão bem —disseJamie olhando-a fixamente.

A chegada do chá impediu a resposta. Geillis se comportou como um dona de casaconvencional que serve o chá a seus convidados.

— Se me permites a pergunta, senhora Abernathy —continuou Jamie—, como chegastesaqui? Calava por cortesia a pergunta mais importante: «Como se livrou de que vos queimassempor bruxa?» Ela se pos a rir piscando com faceirice.

— Bem, talvez recordes que então, em Cranesmuir, estava esperando um filho.— Sim, creio recordá-lo. —Jamie ruborizou um pouco.Ela tinha arrancado a roupa no meio do juízo, revelando o vulto secreto que lhe salvaria a

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vida, ao menos durante um tempo.— Tiveste filhos? —perguntou-me.— Sim.—Um esforço terrível, não? Arrastar-se como uma porca embarrada. E depois, que te rasgue

algo que parece uma rato afogado. —Sacudiu a cabeça com um rosnado de desgosto— Oh, asmaravilhas da maternidade! Ainda que não deveria queixar-me, porque esse rato me salvou avida. Por mais mau que seja o parto, pior é a fogueira.

— Suponho que sim, ainda que não provei o último —disse.Geillis se engasgou com o chá, divertida.— Bem, eu também não, mas vi arder,o pulso. É pior do que estar num buraco cheio de

barro vendo como te cresce a pança.— Quanto tempo estiveste no buraco dos ladrões? —Eu tinha passado três dias ali com

Geillis Duncan, acusada de bruxa.—Três meses —respondeu contemplando sua xícara— Três meses com os pés gelados e

cheia de parasitas. —Levantouos olhos com um gesto de amarga diversão — Mas o meninonasceu com todos os luxos. Quando comecei a ter dores me tiraram de lá. Naquele estado nãotinha perigo de que fugisse, não é? E o menino nasceu em meu antigo dormitório da casa dopromotor, a melhor da aldeia.

De repente soltou um riso feio.— Que tontos são os homens! Se os segurarem pela vara levaram eles a qualquer lugar…

durante um tempo. Depois, dá-lhes um filho e os tens novamente pegados pela vara. Os negrossabem: traçem seu favorito que são de pura pança,xoxota e tetas, e terão a decência de adorá-los.

— Muito perspicaz, senhora… Abernathy? —disse Jamie com acalma. Ela levantou acabeça com um sorriso torto.

— Abernathy,é isso. Em Paris tinha outro nome: Madame Melisande Robicheaux. Teagrada? A mim me parecia algo grandiloquente, mas como me foi teu tio Dougal que me pôs,conservei-o por razões sentimentais.

Apertei o punho entre os vincos da saia. Quando vivíamos em Paris tinha ouvido falar deMadame Melisande. Não fazia parte da alta sociedade mas tinha certa fama como adivinha e asdamas da corte a conferiam em segredo.

— Foi Dougal quem a tirou de Cranesmuir? —deduziu Jamie.Ela assentiu, sufocando um pequeno arroto.— Veio para levar o menino…, por medo que alguém se inteirasse de que era seu. Mas

neguei a dar. Quando se aproximou para tirar-me, peguei seu punhal do cinto e o apoiei nopescoço da criança. —Um sorriso de satisfação curvou aqueles lábios encantadores— Disse-lhe que o mataria se não jurava pela vida de seu irmão e por sua própria alma tirar-me dali sã esalva.

— E acreditou? —perguntei um pouco enjoada.—Oh, sim. Dougal me conhecia. Sudoroso, sem poder afastar os olhos daquela cara

pequena, Dougal não pôde negar-se. Por meio de discretos subornos, assegurou-se de que a

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figura encapuzada que levariam em andarillas à fogueira, à manhã seguinte, não fora a deGeillis Duncan. — Supus que colocariam palha —disse ela—, mas foi astuto. Naquela mesmatarde deviam enterrar à velha Joan MacKenzie, que tinha morrido três dias antes. Puseramumas pedras no ataúde e assim tiveram um autêntico corpo para queimar. —Bebeu entre risoso resto de seu chá— Não é todo mundo que pode ver sua própria execução. — Estavas ali? —exclamei.

— Claro que sim! Envolvida numa capa, como todo mundo, porque fazia frio. Não iaperder!—assentiu satisfeita.

Aproximou-se à janela com passo inseguro e fez soar uma campainha.— E então Dougal os levou A França —apontou Jamie— Mas como chegastes às Antilhas?—Isso foi depois de Culloden. —Sorriu para nós dois— Que os trouxe a este lugar? Não

creio que seja o prazer de minha companhia.Joguei uma olhada a Jamie; sua postura era tensa, mas mantinha o semblante sereno.— Viemos em procura de um jovem —explicou— Ian Murray, meu sobrinho. Temos

motivos para pensar que se encontra aqui, com contrato de servidão.Geillis enrugou a testa.— Ian Murray? —Sacudiu a cabeça desconcertada— Não tenho nenhum branco sob

servidão, de fato não há brancos na propriedade. O único homem livre é o capataz, e équarentão.

Geillis Duncan mentia muito bem. Mas tanto Jamie como eu nos demos conta de que nãonos dizia a verdade. Pelos olhos de Jamie cruzou um raio de fúria, rapidamente contida.

—Verdade? —disse cortês.—E não tens medo de estar aqui sozinha com seus escravos, tãolonge da cidade?

—Oh, não, em absoluto.Com um amplo sorriso, agitou a papada em direção à sacada. Ao voltar a cabeça vi que a

porta-janela estava ocupada, desde a soleira do dintel, por um enorme negro, várioscentímetros mais alto do que Jamie e com uns braços que pareciam verdadeiros troncos deárvore, pela dureza que formavam seus músculos.

—Apresento Hércules — riu Geillis. —Tem um irmão gêmeo.—Se chama Atlas por acaso? —perguntei.— O adivinhaste! É astuta tua mulher, não, raposa? —Dedicou a Jamie uma piscada de

conspiração. Ao voltar a cabeça com a luz iluminando-a de lado, pude distinguir a teia dearanha de capilares rompidos que lhe enrubescia a papada. Hércules parecia não ver nada, nãotinha vida naqueles olhos afundados. Vê-lo era como passar junto a uma casa enfeitiçada ondealgo espreita por trás das janelas a escuras.

—Podes voltar ao trabalho Hércules. —Geillis fez soar suavemente a campainha uma sóvez.

Sem dizer nada, o gigante se afastou pesadamente da galeria.—São os escravos que têm medo de mim — explicou ela. —Crêem que sou uma bruxa.

Divertido, não? Seus olhos chuviscavam atrás das bolsas de gordura.

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— Geillis, esse homem… —Vacilei. Sentia-me ridícula fazendo essa pergunta. —É um…zumbi?

— Zumbi, por Deus! Bem, reconheço que não és muito inteligente. Mas também não estámorto! —exclamou rindo e dando palmadas.

Jamie me olhou sem compreender.—Zumbi?—Nada, nada —estava tão corada como Geillis.—Quantos escravos tens aqui? —disse

mudando de assunto.—Oh, uma centena, mais ou menos. A fazenda não é muito grande.Percebi a tensão de Jamie; estava tão seguro como eu de que Geillis sabia algo sobre Ian

Murray. Pelo menos não se tinha surpreendido ante nossa aparição. Retirou-me de meuspensamentos uma pergunta de Geillis.

—Quando nos conhecemos na Escócia, tinhas muito talento para curar. Continuas tendo?—Claro que sim. —Olhei-a com cautela. Precisas de atendimento? Era evidente que sua

saúde não era boa.—Por enquanto não é para mim. Mas tenho dois escravos enfermos. Terias a bondade de

examiná-los? — disse adivinhando meus pensamentos.Olhei a Jamie, que fez um leve gesto afirmativo. Era uma oportunidade para iniciar contato

com os escravos e averiguar algo sobre Ian.—Ao vir para cá vi que tinhas problemas com a prensa de açúcar — disse Jamie levantando-

se bruscamente. —Poderia vistoriá-la enquanto minha esposa atende aos enfermos. —Semesperar resposta, pendurou o casaco num cabideiro e saiu à galeria.

—É hábil, não? —Geillis o seguiu com um olhar divertido. —Meu esposo Barnabastambém era dos que não podiam ver uma máquina sem meter-lhe a mão…, nem uma escrava— acrescentou. —Acompanha-me. Os enfermos estão atrás da cozinha.

A cozinha era um pequeno prédio ligado à casa por uma pérgula coberta de jasmins em flor.Detive-me a contemplar o clarão que tinha entre os canaviais, onde Jamie observava asgigantescas barras cruzadas da prensa. Junto a ele tinha um homem que devia ser o capataz. Nacozinha tinha três ou quatro mulheres amassando pão e limpando ervilhas. A mais jovem meolhou e a saudei com um sorriso, pensando que talvez tivesse oportunidade de falar com elamais tarde. Imediatamente baixou os olhos para a cumbuca que tinha no colo. Um pequenovulto no ventre delatava sua gravidez.

Entramos numa pequena despensa. Jogado num colchão de palha, sob uma prateleira cheiade queijos, encontrava-se um jovem de pouco mais de vinte anos; o súbito raio de luz lhe fezpiscar.

—O que acontece com voce? Por que estás no escuro? Como que respondendo a minhapergunta, o escravo deixou escapar um grito e começou a enroscar-se e desenroscar-se comoum iô-iô, golpeando a cabeça contra a parede.

—Tem um verme loa-loa —explicou Geillis. —Vive no globo ocular, bem embaixo da pelee passa de um olho ao outro; dizem que seus movimentos através da ponte do nariz são muitodolorosos. A escuridão faz com que não se mova muito. Tem que retirar com uma agulha de

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costura quando entra, enquanto está próximo da pele. Voltou-se para a cozinha pedindo a gritosuma lamparina.

—Trouxe a agulha, para se for o caso —adicionou entregando-me.—Estás louca? —Olhei-a com horror.—Não. Não disse que sabes curar?Dei uma olhada ao escravo com a vela que me ofereceu uma das moças.—Traga-me um pouco de conhaque e uma faca pequena e bem afiada. —Enquanto dava as

indicações, revisava os olhos daquele homem. Realmente tinha um pequeno filamentotranslúcido que se movia sob o tecido conjuntivo. A operação, ainda que desagradável àimaginação, resultou assombrosamente singela. Bastou uma pequena incisão para que o verme,ondulando preguiçosamente, saísse pela abertura. Então o peguei com a agulha como se fosseum fio de linha. Depois de cobrir-lhe o olho com um curativo, incorporei-me, bastantesatisfeita com minha primeira incursão na medicina tropical.

—Perfeito —disse afastando o meu cabelo da testa. —Onde está o outro?O segundo paciente, um homem maduro e grisalho, já tinha morrido. A causa era óbvia:

uma hérnia estrangulada. Cravei em Geillis um olhar furioso.—Pelo amor de Deus, estivemos batendo papo e tomando chá enquanto isto acontecia?

Morreu faz menos de uma hora! Por que não me trouxe antes?—Esta manhã já estava meio morto —disse sem alterar-se. —Não teria podido fazer nada.Tinha razão; ainda que lhe tivesse operado, as possibilidades de salvá-lo eram quase nulas.

O que não impedia que experimentasse essa sensação de fracasso que sentia sempre napresença da morte. Limpei as mãos com um trapo molhado em conhaque. Um ponto a favor,outro contra… e ainda não sabíamos nada de Ian.

—Já que estou aqui, poderia dar uma olhada nos outros escravos —sugeri —Mais valeprevenir do que curar.

—Oh, estão bem. Mas se fazes questão terá que ser mais tarde. Esta tarde espero visitas equero falar mais um momento contigo. Vamos à casa. Na cozinha, me aproximei da escravagestante.

—Pode ir na frente enquanto dou uma olhada nesta moça. Tem aspecto de ter sofrido umaintoxicação e não te convém que aborte. Geillis me olhou com curiosidade, mas acabou porencolher-se de ombros.

—Já pariu duas vezes sem dificuldades mas tu saberás. Não demore muito; o pároco disseque viria às quatro. Fingi examinar à estranha jovem até que Geillis desapareceu pela pérgula.

—Escute —disse: —procuro um jovem branco chamado Ian, é meu sobrinho. Sabes ondepossa estar? A garota, sobressaltada, olhou para uma das escravas maiores, que tinha deixadoseu trabalho e se aproximava.

—Não, senhora —disse a mulher sacudindo a cabeça. —Aqui não há garotos brancos.Nenhum.

—Não, senhora —repetiu a jovem obediente mas sem olhar-me nos olhos. —Não sabemosnada de vosso garoto.

Não podia atrasar-me mais sem que Geillis voltasse. Tirei uma moeda de prata do bolso e o

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pus na mão.—Se ver a Ian, diga-lhe que seu tio veio procurá-lo. Sem esperar resposta, saí

precipitadamente da cozinha. Da pérgula olhei para a fazenda. Não tinha sinais de Jamie nemdo capataz. Teria voltado à casa? Ao entrar no salão me detive em seco. Geillis estava sentadano cadeirão de vime com o casaco de Jamie pendurado no braço e as fotografias de Briannadisseminadas em seu colo.

— Que jovenzinha tão linda! Como se chama?—Brianna. —Tive que me conter para não lhe arrancar as fotos e sair correndo.—Se parece muito com seu pai, não? Resultou-me conhecida naquela noite em Craigh na

Dun. É sua filha, não?—Sim. Me dê isso. —De nada servia, pois já tinha visto as fotos, mas não suportava ver a

cara de Brianna entre aqueles gordos dedos. Torceu a boca como se fosse negar, mas as pôs emordem e me entregou.

—Sente-se, Claire. Trouxeram o café. Indicou-me por sianais que o servisse e pegou suaxícara sem dizer nada. —Duas vezes —disse de repente. Parecia sobressaltada.

— Cruzaste duas vezes, Meu Deus ! Não: três, já que estás aqui. —Sacudiu a cabeça,maravilhada, sem afastar seus olhos dos meus. —Como pode fazê-lo?

—Não sei. —Vi sua expressão de duro cepticismo e repeti, como que defendendo-me: —Não sei! Passei, isso é tudo.

—Não sentiste terror ali no meio? Com aquele ruído que parece que te rompe o crânio e terasga o cérebro?

—Sim, foi assim. —Não queria nem sequer pensá-lo. Minha mente o tinha bloqueado.—Tinhas sangue para proteger-te? Pedras? Não creio que tenhas coragem para procurar

sangue, mas talvez me equivoque. Deve de ser muito forte se sobreviveu.—Sangue? —Sacudi a cabeça confusa. —Não. Dissete que… cruzei sem mais nem menos.

—Então recordei aquela noite de 1968 em que ela tinha passado: a fogueira em Craigh na Dun,sua silhueta retorcida e negra no centro do fogo. —Greg Edgars —Era o nome de seu primeiroesposo. —Não o mataste só porque tinha te descoberto e tentava de deter-te, verdade? Elefoi…

—…o sangue. —Observava-me com atenção. —Não sabia que poderia cruzar sem sangue.Os antigos sempre o usavam. Além do fogo. Construíam grandes jaulas de vime, que enchiamde cativos e lhes tacavam fogo em círculos. Pensava que assim se abria a passagem.

Tinha os lábios e os dedos frios; tratei de esquentar-me com a xícara. Em nome de Deus,onde estava Jamie?

—E também não usou pedras?—Que pedras?Olhou-me como se duvidasse em me contar. Depois abandonou a cadeira para aproximar-se

à grande chaminé da sala fazendo-me sinais para que eu a seguisse. Agachou-se parapressionar uma pedra esverdeada que ao mover-se deixou ouvir um estalo e uma das lajes dalareira se levantou suavemente.

—Um mecanismo de mola —explicou Geillis tirando da cavidade uma caixa de madeira de

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uns trinta centímetros de comprimento. Ao vê-la mordi os lábios, tratando para que minha caranão me denunciasse. Já não tinha nenhuma dúvida sobre o paradeiro de Ian. Ou estava muitoequivocada, ou aquele era o tesouro das focas.

—Um indiano de Calcutá me ensinou a fazer medicamentos com pedras preciosas. Suascinzas se chamam bhasmas e se usam na medicina. Quer ver se consegue abrir esta malditacaixa? O fechamento se dilata com a umidade.

Colocou-a nas minhas mãos e se levantou pesadamente. O fechamento era um quebra-cabeça bastante singelo: um pequeno painel deslizante destravava a tampa. Mas a madeiratinha inchado e não corria pela ranhura.

—Rompê-las traz má sorte —me advertiu Geillis. —Do contrário já a teria feito caco paraacabar com o assunto. Isto pode servir. Entregou-me um pequeno abridor de cartas com o quepouco a pouco consegui deslizar o pequeno retângulo de madeira. Tinha-se aproximado àjanela para fazer soar outra de suas campainhas.

—Aqui está —disse devolvendo-lhe a caixa.A pôs na mesa, abriu-a e meteu a mão. Em sua palma cintilavam seis ou sete pedras

preciosas: fogo, gelo, fulgor de água sob o sol. E uma grande pedra dourada, como o olho deum tigre à espreita.

—A princípio as queria por seu valor —dizia enquanto as revolvia com satisfação. —Sãomais fáceis de trocar do que o ouro ou a prata. Mas não imaginava que tivessem outros usos.—Assinalou com a cabeça uma porta. —Acompanha-me ao meu laboratório. Tenho alialgumas coisas que podem te interessar.

O quarto era grande e luminoso. Tinha maços de ervas secas pendurados em ganchos eestantes ao longo de uma parede. Nas outras, armários, gaveteiros e uma pequena vitrine.Parecia-se muito com o quarto no qual Geillis trabalhava na casa de seu primeiro… não, de seusegundo esposo.

—Quantas vezes se casou? —perguntei por curiosidade. Fez uma pausa para contar.—Oh, desde que estou aqui, cinco.—Cinco? —Os trópicos são muito perigosos para os ingleses. —Sorriu astuta. —Febres,

úlceras, infecções… Qualquer tolice os leva — disse acariciando um frasquinho.Não tinha etiqueta mas reconheci seu conteúdo: arsênico.—Isto vai interessar-te —prometeu, empinando-se para baixar um frasco da estante

superior. Continha um pó grosso, mistura de substâncias de diversas cores.— O que é?—Veneno zumbi —disse rindo.— É? Não me disseste que não existia?—Disse que Hércules não estava morto, e não está. —Voltou a pôr o frasco em sua estante.

—Mas não posso negar que fica bem mais fácil de maneja-lo se toma uma dose desta misturano café da manhã uma vez por semana.

—Que diabos é?—Um pouco disto e uma pitada daquilo. O ingrediente principal parece ser um peixe de

aspecto muito curioso, mas contém outras coisas. Oxalá soubesse quais.

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—Não o sabe? —Olhei-a com atenção. —Não foi você quem o preparou?—Não. Tive um cozinheiro… Nunca teria me atrevido a provar o que preparava aquele

demônio de Ishmael. Era um houngan, assim chamam os negros a seus feiticeiros.—Ishmael? —Umedeci-me os lábios. —Veio com esse nome?—Oh, não. Eu o pus pelo que o vendedor me contou. Ishmael tinha sido capturado na África

e amontoado no entrepiso de um barco negreiro que ia para Antigua. O barco naufragou frenteà ilha de Grande Inagua e a tripulação mal teve tempo de escapar nas chalupas. Todos osescravos, encadeados e indefesos, afogaram-se; salvo um ao que tinham levado à coberta paraque ajudasse na cozinha; este sobreviveu agarrando-se a um tonel e chegou à costa dois diasdepois. Os pescadores que descobriram o sobrevivente estavam mais interessados no tonel queno escravo, mas ao abri-lo descobriram com horror que continha o cadáver de um homem maisou menos conservado pelo licor que o cobria.

—Terão bebido o creme de menta? —sussurrei.—Me atreveria a dizer que sim —comentou Geillis incomodada pela interrupção. —Por isso

chamei Ishmael o escravo, pelo ataúde flutuante, compreende?—Muito sagaz — a felicitei. —Esse Ishmael parece um tipo interessante. Ainda o tens aqui?—Não — respondeu indiferente. —Fugiu, o grande cretino. Mas foi ele quem preparou o

veneno zumbi. Apesar de tudo o que lhe fiz, não quis ensinar-me — adicionou com um risobreve e seco que me recordou as cicatrizes de Ishmael. —Mas não era isso o que te queriaensinar.

Tirou as pedras e pôs cinco na mesa, formando um círculo. Depois baixou de uma estanteum gordo livro encadernado em couro.

—Sabes alemão? —perguntou abrindo-o com cuidado.—Não muito. —Aproximei-me para olhar acima de seu ombro. Hexenhammer, dizia em

fina letra manuscrita. —Percutor das bruxas? São feitiços? Magia? Meu ceticismo devia seróbvio, pois me fulminou com um olhar.

—Olhe, estúpida — disse. —Quem és tu? Ou, melhor dizer, o que és? O que eu sou? Abri aboca para responder, mas calei. —Isto é —disse com suavidade —Nem todos podem passarpelas pedras, verdade? Por que nós sim?

—O ignoro — reconheci. —E voce também, sem dúvida. Mas isso não significa quesejamos bruxas!

—Não? —Voltou várias páginas do livro. —Há pessoas que podem abandonar o corpo epercorrer muitos quilômetros. Há quem os vê e os reconhece e, no entanto, eles podemdemonstrar que a essa hora estavam bem agasalhados em sua cama. Outros têm estigmas quese podem ver e tocar…, eu mesma os vi. Mas isso não sucede a todo mundo. Só a certaspessoas. Virou outra página. —Se todo mundo pode fazê-lo, é ciência. Se só podem fazer unspoucos, é bruxaria, crendice ou como queiras chamá-lo. Mas é real. —Seus olhos verdespercorriam o decrépito livro como uma serpente. —Nós somos reais, Claire, eu e você. Eespeciais. Nunca te perguntaste por que?

Eu mesma me tinha perguntado muitíssimas vezes sem achar resposta. Ao que parece,Geillis achava tê-la. Voltou-se para as pedras que tinha depositado na mesa e as foi assinalando

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uma a uma: —Pedras de proteção: ametista, esmeralda, turquesa, lápis-lazúli e um rubi macho.—Macho?—Plínio diz que os rubis têm sexo. Quem sou eu para discutir? Usam-se os machos, as

fêmeas não servem. Fiquei com vontade de perguntar-lhe como se distinguia o sexo dos rubis.—Não servem para que?—Para a viagem. Protegem voce de… o que quer que seja que há ali. Mudou o tom de voz

ao pensar no cruzamento do tempo. Compreendi que lhe tinha um medo mortal. Não meestranhava.

—Quando vieste? A primeira vez —perguntou olhando-me aos olhos.—Em 1945 — respondi. —Cheguei em 1743, se é o que quer saber. Ainda que me resistia a

revelar-lhe muito, minha própria curiosidade me constrangia. Ela tinha razão num aspecto: nãoéramos como todo mundo. Talvez não me fosse apresentada outra oportunidade de falar comalguém que estivesse na mesma situação. Por outro lado, quanto mais tempo a mantivesseentretida, mais tempo teria Jamie para procurar a Ian.

—Hum —grunhiu satisfeita. —Muito aproximado. Segundo as lendas das Terras Altas, sãoduzentos anos. Quando alguém adormece em lugares enfeitiçados e dança toda a noite com osAntigos, geralmente viaja duzentos anos atrás.

—Em teu caso não foi assim. Vieste desde 1968, mas quando cheguei a Cranesmuir faziavários anos que estavas ali.

—Cinco anos. —Assentiu com ar distraído. —Bem, isso foi pelo sangue. O sacrifício te dáum maior alcance e um pouco mais de controle, desse modo tens alguma idéia de onde vais.Como fizeste para ir e vir três vezes sem sangue? —interpelou.

—Eu… vim, simplesmente. —A necessidade de averiguar o máximo possível me induziu aadmitir o pouco que eu sabia. —Talvez influa o fato de poder fixar a mente numa pessoa queestá onde tu queres ir.

—Será? —murmurou. —Tenho que pensar. Poderia ser. Mas o lance das pedras tambémdeveria funcionar. Há que fazer um desenho com elas, sabe? Tirou outro punhado do bolso e oespalhou na mesa. —As pedras de proteção formam as pedras gemas diferentes, segundo otempo ao qual queres viajar. Depois se traça entre elas uma linha de mercúrio e lhe ateia fogoenquanto pronuncias os feitiços. Também tem que desenhar o pentágono com pó de diamante,por suposto.

—Imagino —murmurei fascinada.—Sente o cheiro? —perguntou olfateando. —Ninguém diria que as pedras têm cheiro,

verdade? Só se aprecia uma vez reduzidas a pó.Inalei profundamente; percebi um aroma leve e desconhecido entre o perfume das ervas

secas. Geillis levantou uma pedra com um pequeno grito de triunfo.—Esta! Esta é a que preciso! Não pude encontrar nenhuma nestas ilhas e pensei na caixa

que tinha deixado na Escócia.—Que é?—Um diamante, o diamante negro que usavam os antigos alquimistas. Segundo os livros, o

adiamante permite conhecer o prazer em todas as coisas. —Emitiu um riso breve e áspero,

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desprovida de seu habitual encanto juvenil. —E se algo pode permitir-me conhecer o gozonessa viagem no tempo, preciso-o!

Ainda que tarde, começava a dar-me conta do que queria. Em defesa de minha lentidão sóposso alegar que, enquanto escutava a Geillis, estava atenciosa a qualquer possível sinal deJamie.

—Então, queres regressar? —perguntei com tanta indiferença quanto pude.—Talvez. —Esboçou um leve sorriso. —Agora que tenho tudo o necessário… Asseguro-te,

Claire, que sem elas não me arriscaria. —Olhou-me fixamente mexendo a cabeça. —Trêsvezes e sem sangue —murmurou. —Assim que se pode… De repente recolheu as pedras paraguardar em seu bolso.

—Bem, será melhor descermos. Sua raposa já deve ter regressado. Fraser, chama-se, não?Clotilda disse outra coisa, mas essa estúpida deve ter ouvido mal. Voltou-se para sair.

—Perguntaste se eu sabia por que podemos cruzar através das pedras —disse a suas costas.—Você sabe, Geillis?

— Claro, para mudar as coisas! —exclamou surpresa—, Para que, se não? Ande, vamos.Pelo que ouço, teu homem está lá embaixo.

Jamie devia de ter feito algum trabalho pesado, pois tinha a camisa molhada de suor ecolada aos ombros. Estava observando a caixa-quebra-cabeça de Geillis. Por sua expressão eraóbvio que se tratava da caixa escondida na ilha das focas.

—Creio que consegui arrumar vossa prensa, senhora —disse com uma inclinação cortês. —O problema era um cilindro rompido. Conseguimos pôr-lhe umas cunhas, mas temo que cedoprecisarás mudá-lo.

Geillis franziu as sobrancelhas divertida. —Estou em dívida contigo, Fraser. Posso oferecer-te algum refresco depois de tanto trabalho?

— Agradeço, senhora, mas devemos ir. Estamos longe de Kingston e queremos chegar antesque escureça. De repente seu semblante perdeu a expressão. Compreendi que tinha descobertoa falta das fotografias em seu bolso. Me deu uma rápida olhada e lhe respondi com um gestoafirmativo, tocando a minha anágua.

—Obrigada por tua hospitalidade — disse a Geillis enquanto recolhia meu chapéu paradirigir-me para a porta. Queria afastar-me quanto antes de Rose Hall e de sua proprietária. MasJamie se atrasou um momento.

—Já que vivestes em Paris, senhora Abernathy, talvez tenhas conhecido o duque deSandringham. Olhou-o inquisitivamente, mas como ele não disse nada mais, assentiu:

—Conheçi, sim. Por que?Jamie lhe obsequiou com o mais encantador de seus sorrisos.—Só por curiosidade, senhora.Quando cruzamos o portão, o céu estava completamente encoberto; era óbvio que não

chegaríamos a Kingston sem molhar-nos, mas em tais circunstâncias não me importava.—Tens as fotos de Brianna? —Foi a primeira coisa que me perguntou Jamie.—Aqui —disse dando uma palmadinha em meu bolso. —Encontraste algum rasto de Ian?

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—Não pude averiguar nada com o capataz nem com os escravos. Essa mulher lhes inspiraterror. Mas sei onde está.

—Onde? —Ergui-me um pouco na cadeira. —Podemos voltar a procurá-lo?—Agora não. Precisarei de ajuda. Com o pretexto de procurar material para consertar a

imprensa, Jamie tinha visto a maior parte da plantação sem maior interferência do que algumolhar curioso ou hostil. Salvo os arredores da refinaria.

—Aquele negro enorme estava sentado lá fora —disse. —Quando me aproximei o capatazme advertiu, muito nervoso, que não me aproximasse muito dele.

—Parece um bom conselho —disse estremecida. —Mas crês que tem alguma relação comIan?

—Estava sentado frente a uma portinhola aberta no solo, Sassenach. Deve ser a entrada deum porão. Se Ian está na propriedade, é nesse lugar.

—Estou segura de que está ali. —Contei-lhe rapidamente os detalhes de minha visita. —Não sei para que o quer Geillis, mas não tem de ser para nada bom se o tem escondido.Assentiu com a cabeça.

—O capataz não quis falar de Ian mas me contou outras coisas que te colocariam os cabelosde pé. —Voltou-se para me olhar. —Pelo tempo que está agora, se diria que vai chover daqui apouco.

—Muito observador —comentei sarcástica. Pesadas nuvens já cruzavam a baía, seguidospor uma escura cortina de chuva.

—Será melhor procurarmos abrigo quanto antes, Sassenach —disse. —Siga-me.A pé, levando aos cavalos pela brida, abandonamos a senda para adentrar-nos na selva.

Pouco depois Jamie achou o que procurava: um pequeno arroio de altas bordas, onde cresciamsamambaias e alguns arbustos ternos. Formou uma estrutura arqueando alguns arbustos eatando-os a um tronco caído e o cobriu com ramos e folhas de samambaias. Não eraexatamente impermeável, mas muito melhor do que estar a céu aberto. As tormentas dasAntilhas são muito fortes. A chuva castigava as samambaias e uma leve bruma enchia nossorefúgio. Entre o ruído da água e o constante tronar nas colinas, falar era impossível. Jamie tirouo casaco para me cobrir e me rodeou com um braço. Sentime protegida e em paz, livre datensão dos últimos dias.

A chuva cessou tão bruscamente como tinha começado. Pássaros e insetos voltaram a cantare o ar parecia cheio de vida. Jamie pegou seu casaco e se deteve em seco.

—As fotos de Brianna —disse.—Ah, tinha-me esquecido. Quando as devolvi, olhou-as rapidamente, deteve-se e voltou a

revisá-las com mais atenção.—Que foi? —perguntei alarmada.—Falta uma.—Tem certeza?—Conheço-as tanto como tua cara, Sassenach. Estou seguro, a que está junto ao fogo.Recordava bem aquela fotografia. Brianna, já adulta, estava sentada numa rocha junto a uma

fogueira.

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—Geillis encontrou as fotos em teu bolso enquanto eu estava na cozinha. Seguramente apegou nesse momento.

— Maldita mulher! —Jamie se voltou para o caminho, com os olhos sombrios. —Para quevai querer?

—Talvez só seja curiosidade —disse, ainda que o medo não me abandonasse. — O quepoderia fazer com ela? Não tem a quem mostrá-las.

Em resposta a minha pergunta, a certa distância apareceu uma silhueta a cavalo. Era umhomem vestido de negro. Então recordei o que tinha dito Geillis: «Espero visita. O párocodisse que viria as quatro».

—Disse que esperava a um pároco —expliquei.—É Archie Campbell —adivinhou Jamie carrancudo. —Que diabos…? Ainda que não sei

se devo utilizar essa expressão, tratando-se da senhora Duncan.— Talvez vem para exorcizá-la —sugeri com um riso nervoso. — Pouco trabalho lhe

espera! A silhueta desapareceu entre as árvores.—Que tens planejado com respeito a Ian? —perguntei-lhe uma vez voltando ao caminho.—Preciso de ajuda —respondeu energicamente. —Penso em voltar ao rio acima com Innes,

MacLeod e os outros. A pouca distância da refinaria há um embarcadouro. Ali amarraremos.Depois de ocupar-nos de Hércules (e também de Atlas se for necessário), abriremos o porão eliberaremos a Ian. Dentro de dois dias terá lua nova. Me agradaria fazê-lo antes, masprecisaremos desse tempo para conseguir uma embarcação adequada e as armas necessárias.

— Com que dinheiro? —perguntei sem rodeios.A aquisição de roupa e calçado tinha requerido uma boa percentagem da parte que tinha

correspondido a Jamie pela venda do fertilizante. Restava-nos o justo para comer uns dias e,talvez, para alugar uma embarcação por pouco tempo, mas não daria para comprar armas.

Fez uma careta e me olhou de soslaio.—Terei que pedir ajuda a John —disse singelamente.—Suponho que sim. —A idéia não me agradava mas o que importava era a vida de Ian.— Uma coisa, Jamie.—Sim, já o sei —disse resignado. —Queres vir comigo, não?—Sim. Depois de tudo, se Ian estiver ferido ou enfermo…— Virás! —exclamou irritado.—Mas faça-me um pequeno favor, Sassenach. Trata de que

não te matem nem te cortem em pedaços, sim? Se ainda te resta alguma sensibilidade.—Farei o possível —prometi com casualidade. E aticei o meu cavalo para me aproximar

dele, sob as árvores que gotejavam.

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CAPÍTULO 61

A FOGUEIRA DO CROCODILO

Fizemos a viagem rio acima a bordo de um pequeno veleiro no qual mal cabíamos as novepessoas que viajávamos nele: Jamie, os seis contrabandistas escoceses, Lawrence Stern, quetinha feito questão de nos acompanhar e eu. Foi ele quem me explicou, ante minha surpresa porcruzar-nos com duas pequenas embarcações e uma barcaça, que as plantações das colinasutilizavam o rio como via de transporte para Kingston e o porto.

— És muito amável em vir, Lawrence — disse Jamie.— Bem, confesso que sinto certa curiosidade. —O naturalista alargou a camisa tratando de

refrescar seu corpo suado — Conheço essa mulher, sabes?— À senhora Abernathy? —Fiz uma pausa antes de perguntar, com delicadeza —: E… o

que te pareceu?—Oh, uma senhora muito agradável, sumamente… cordial.Sua voz tinha um ar estranho, entre comprazido e assustado. Compreendi que a viúva

Abernathy lhe devia ser muito atraente. Mas Geillis nunca tratava bem a um homem se não erapara obter algum proveito.

— Onde a conhecestes? Em sua casa? —Sim, em Rose Hall. Fui pedir-lhe permissão pararecolher um inseto da família Cucurlionidae que tinha encontrado na plantação. Convidou-me apassar e… atendeu-me com muita amabilidade.

— Que queria de voce ? —perguntou Jamie, que sem dúvida tinha chegado às mesmasconclusões que eu. — Mostrou-se muito interessada nas espécies de flora e fauna que tinhacoletado. E também me interrogou sobre as virtudes de certas ervas. —Suspirou commomentâneo pesar— Custa-me crer que uma senhora tão encantadora possa ter uma condutatão reprovável como a que descreves, James.

— Sim, eh? Creio que te rendeste aos seus encantos, Lawrence.Na voz do cientista se notou o mesmo sorriso.— Observei certo tipo de mosca carnívora, amigo James, cujo macho, quando decide

cortejar a uma fêmea, encontra incomodo de levar alguma pequena presa envolta em seda.Enquanto a fêmea está entretida desembrulhando o pequeno presente, ele se precipita sobre ela,cumpre com sua obrigação copulatoria e se afasta apressadamente. Se não fosse pelopresente… ela o comeria. — Ouviu-se um suave riso na escuridão— Foi uma experiênciainteressante, mas creio que não voltarei a visitar à senhora Abernathy.

— Não, se temos sorte —disse Jamie. Os homens me deixaram na orla com instruções deque não me movesse dali e se perderam na escuridão. Jamie me tinha dado uma pistolacarregada com a ordem de não disparar em nenhum um pé. Seu peso era reconfortante, mascom o decorrer do tempo, a penumbra e a solidão se faziam cada vez mais opressivas. Podiaver a casa. Tinha três janelas aluminadas no térreo. Enquanto a observava vi cruzar umasombra ante uma delas. Não era Geillis pois se tratava de uma silhueta alta, estreita e

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estranhamente angulosa. Olhei a meu arredor nervosa. Queria avisar-lhes mas já era muitotarde. Os homens estavam fora do alcance de minha voz, caminho da refinaria. Não tinha outroremédio: recolhendo-me as anáguas, me meti na escuridão.

Quando cheguei à galeria tinha o coração acelerado e estava empapada em suor. Fui até àjanela tratando de não me deixarem ver. Dentro, tudo estava em ordem e em silêncio. A portaprincipal estava aberta. Detive-me a escutar. Acho que tinha ouvido um vago sussurro queprovia do salão, como se alguém estivesse passando as páginas de um livro. Reunindo todominah coragem, cruzei a escuridão. Cada vez era mais intensa a sensação de abandono: tinhaflores secas num vaso e uma xícara com os borros secos do chá na mesa. Onde diabosestavam? Ante a porta do salão me detive a escutar outra vez. Percebi o calmo crepitar do fogoe de novo o leve sussurro. Assomei a cabeça.

Tinha alguém sentado frente a escrivaninha, alguém inegavelmente masculino, alto e deombros estreitos, com a cabeça inclinada sobre o móvel.

— Ian! —sussurrei— Ian! A silhueta deu um respingo e se levantou de um salto. — MeuDeus! —exclamei.

—Senhora Malcolm? —O reverendo Archibald Campbell parecia atônito— Que estasfazendo aqui?

—Procuro o sobrinho de meu esposo —disse.Mentir não fazia sentido e talvez ele soubesse onde estava Ian. A habitação estava deserta— Onde está a senhora Abernathy?—Não tenho nem idéia —respondeu cenhudo — Parece ter saido. Que dizías do sobrinho de

seu esposo? —Ela saiu? —pisquei— Onde foi?—Não sei —disse preocupado— Nesta manhã, quando me levantei, tinha desaparecido

junto com todos seus serventes. Bonita maneira de tratar a um convidado!—Bom, admito que não é um comportamento muito hospitalar —disse um pouco mais

aliviada— Por acaso, vistes algum jovenzinho de uns quinze anos, alto, delgado, e com ocabelo castanho escuro? Não, já o iamginava. Nesse caso, tenho de despedir-me…

—Um momento! — me segurou com força pelo braço— Qual é o verdadeiro nome de seuesposo?

—Bom… Alexander Malcolm, como bem sabes —respondi tratando de me soltar.—E como é possível que, ante minha descrição, a senhora Abernathy me tenha dito que

vosso esposo é na realidade James Fraser?—Oh… —Respirei fundo tratando de achar uma resposta razoável.—Onde está seu esposo, mulher?—Escuta —roguei—, estas muito equivocado com respeito a Jamie. Ele não teve nada haver

com sua irmã. Me disse que…—Falastes de Margaret com ele? —Afastou-me com mais força.—Sim. Assegura que ela não foi a Culloden para vê-lo, senão a um amigo seu, Ewan

Cameron.—Mentis —replicou secamente— Ou mente ele. Pouco importa. Onde está? —disse

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sacudindo-me.—Já disse que não teve nada que ver com sua irmã! —Retrocedi, pensando como poderia

escapar sem que se lançasse depois de mim em procura de Jamie.—Onde está? —O reverendo avançava para mim com os olhos fincados nos meus.—Em Kingston! Olhei para um lado. A porta-janela estava perto. Então minha mente

registrou algo que tinha visto na galeria. Voltei bruscamente a cabeça. Tinha um grandepelicano branco pousado no balaústre, com a cabeça sepultada sob o asa. A plumagem de PingAn brilhava na noite pela escassa luz que saía pela porta.

—Que passa? —inquiriu o reverendo Campbell— Quem é? Quem está aí? —Só uma ave —disse voltando-me.

O coração me batia muito depressa: o senhor Willoughby devia de estar perto.—Duvido muito que vosso esposo esteja em Kingston. —O reverendo me olhava suspicaz

— Mas se é assim, virá procurar.—Oh, não! —assegurei— Jamie não virá. Vim por minha conta para visitar a Geillis… à

senhora Abernathy. Meu esposo não me espera até dentro de um mês.—Significa que estas alojada aqui?—Sim —disse, alegrando-me de conhecer a distribuição da casa o suficiente para fingir-me

hóspede. —Bem —disse assentindo de má vontade— Nesse caso deves saber onde foi nossaanfitriã e quando pensa regressar. Sobre a questão começava a ter uma idéia inquietante, masnão era com Campbell com quem podia compartilhá-la.

—Não, temo que —não vacilei— Eh… ontem fui de visita à plantação vizinha. Acabo devoltar.

—Compreendo. Hum… bem. —Fechava e abria as mãos ossudas, como se não soubesseque fazer com elas. —Não se incomde por mim —disse assinalando a escrivaninha com umsorriso encantador— Sem dúvida tens coisas importantes para fazer.

Com os lábios franzidos, parecia uma coruja contemplando um rato.—Meu trabalho já está feito. Só estava preparando cópias de alguns documentos que me

solicitou a senhora Abernathy.—Que interessante! —comentei automaticamente. Com sorte, depois de uma breve palestra

poderia retirar-me a ao meu teórico quarto e escapar em procura de Jamie.—Por ventura, compartilhas nosso interesse pela história escocesa? —Seus olhos eram mais

penetrantes.Reconheci neles o fanatismo do pesquisador apaixonado.—Bom, sem dúvida é muito interessante —sussurei aproximando à porta—, mas realmente

não estou muito introduzida no assunto.Então vi um dos documentos que tinha sobre a mesa e me detive em seco. Era uma árvore

genealógica. A árvore genealógica da família Fraser (o tinha titulado «Fraser de Lovat»).Iniciava-se por volta de 1400 e se estendia até a atualidade. Num canto, com o tipo de anotaçãocorrespondente aos filhos ilegítimos, figurava Brian Fraser, o pai de Jamie. E embaixo dele,com firmes letras negras, James A. Fraser. Um arrepio me percorreu as costas. O reverendo,que tinha consertado em minha reação, observava-me divertido.

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—É interessante que se refira aos Fraser, não?—Que… que se refere aos Fraser? —perguntei.—A profecia —respondeu surpreso—. Não estas sabendo? Claro que sendo vosso esposo

um descendente ilegítimo…—Não sei nada disso.—Ah… —O reverendo não deixou passar a oportunidade de me por dentro do assunto .

Supus que a senhora Abernathy a teria falado disso; seu interesse é tal que me escreveu aEdimburgo. —Folheou os papéis para extrair um que parecia escrito em gaélico—. Este é alinguagem original da profecia —disse pondo-me sob os narizes a Prova A. — Talvez tenhasouvido falar do Vidente de Brahan.

Ainda que seu tom era cético, conhecia-o: era um profeta do século XVI, uma espécie deNostradamus escocês.

—Efetivamente. Se trata de uma profecia referida aos Fraser?—Aos Fraser de Lovat. Utiliza uma linguagem poética, como já assinalei à senhora

Abernathy, mas seu significado é bastante claro. —Mesmo suspeitando de mim, começava aentusiasmar-se—. A profecia afirma que a geneologia de Lovat surgirá um novo governante deEscócia. Isto sucederá depois do eclipse de «os reis da rosa branca»: uma óbvia referência aesses católicos dos Stuarts. —Assinalou com a cabeça as rosas brancas tecidas no tapete— Naprofecia aparecem referências mais crípticas: a época na que aparecerá este governante, se temde ser um rei ou uma rainha…

Existe certa dificuldade para interpretá-lo, devido a uma má utilização do original…Seguiu falando, mas eu já tinha deixado de escutar. As dúvidas sobre o paradeiro de Geillis

desapareciam rapidamente, dada sua obsessão pelos governantes de Escócia. Mas onde iria?De novo a Escócia para relacionar-se com o herdeiro de Lovat? Não, já que se estavapreparando para dar novamente o salto no tempo: reunindo seus recursos, recuperando otesouro das focas e completando suas investigações. Observei o papel entre o espanto e afascinação. A genealogia, desde depois, só estava registrada até o presente. Saberia Geillisquem seriam os descendentes futuros de Lovat? Levantei a cabeça para fazer uma pergunta aoreverendo Campbell, mas fui incapaz de pronunciar uma palavra. Na porta que dava à galeriase encontrava o senhor Willoughby. Levava a roupa rasgada e suja e sua cara refletia sinais defome e cansaço. Todo sua atenção ia dirigida ao reverendo Campbell.

—Homem muito santo! —disse num tom provocante que nunca lhe tinha ouvido.O reverendo se deu a volta bruscamente golpeando um vaso com o cotovelo. A água e as

rosas amarelas caíram formando uma cascata sobre a escrivaninha. Com um grito de ira, oclérigo pegou os papéis salvando-os da inundação e os sacudiu freneticamente para tirar-lhes aágua antes de que se escorresse a tinta.

—Olha o que fizeste, maldito assassino pagão!O senhor Willoughby se pos a rir. Não com seu habitual risida aguda, senão com um riso

sufocado. Não parecia divertido em absoluto.—Eu assassino? —Moveu lentamente a cabeça com os olhos fincados no reverendo. —Eu

não, homem santo. Assassino, tu.—Vá embora, amigo —ordenou Campbell friamente— Como se atreves entrar na casa de

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uma dama?—Te conheço. — O chinês falava com voz baixa e serena— Vejo-te. Vejo-te em salão

vermelho, com mulher que ri. Vejo-te também com ramera barata em Escócia. —Levantoumuito devagar a mão, pondo-se no pescoço como uma espada— Matas muito, homem santo.

O reverendo Campbell estava pálido, pela impressão ou pela ira. Eu também palidecí, maspelo medo. —Senhor Willoughby…

—Willoughby não -disse sem olhar-me— Yi Tien Cho.—Sai daqui! —A palidez do clérigo se devia à ira.Avançou para o chinês com os grandes punhos apertados. O senhor Willoughby não se

moveu.—Melhor ir, Primeira Esposa —disse com suavidade—. Homem santo agrada de mulheres,

mas não com varão.Com faca.—Abobrinha! —replicou o reverendo— Te disse para ir ou…!—Não se mova, reverendo Campbell —disse. Com mãos tremulas, tirei do bolso a pistola

que Jamie tinha deixado e lhe apontei. Para minha surpresa, ficou imóvel, olhando-me como setivesse me brotado uma segunda cabeça.

—Senhor… Yi Tien Cho, viu o reverendo com a senhora Alcott no baile do governador?—Vejo. Ele mata. Melhor disparar, Primeira Esposa.— Não seja ridículo! Minha estimada senhora Fraser, não pode crer na palavra de um

selvagem ao que… —O reverendo se voltou para mim, tratando de adotar uma posição desuperioridade.

—Pode ser que eu lhe acredite —disse. — Voce estava lá, eu te vi. E também estavas emEdimburgo quando mataram à última prostituta. Nellie Cowden me disse que levava dois anosdali: o mesmo período durante o qual o Diabo esteve assassinando moças. —Sentia oescorregadio gatilho sob meu dedo.

— Ele também vivia ali então! —O reverendo estava perdendo sua palidez. Sinalizou aochinês com a cabeça. —Aceitaria a palavra do homem que traiu seu esposo?

—Quem?— Ele! —A exasperação enrouquecia a voz do clérigo. —Foi esta perversa criatura quem

denunciou a Fraser ao sir Percival Turner. Foi o próprio sir Percival que me disse!Estive a ponto de deixar cair o revólver, mas o levantei com intenção de ordenar ao

reverendo que fosse para a cozinha; não me ocorria outra coisa que não o trancar numa dasdespensas.

—Creio que o melhor… Então se lançou sobre mim. Como um ato reflexo, meu dedoapertou o gatilho produzindo um forte estalido; a arma caiu de minha mão. Não acertei namosca. Depois do sobressalto da explosão, sua cara adquiriu uma expressão satisfeita. Semdizer nada, afundou a mão sob o casaco para tirar um estojo metálico, de uns quinzecentímetros, onde assomava um cabo de chifre branco. Estava consciente de tudo, com umahorrível clareza, desde o encaixe da lâmina que saía de sua bainha até o perfume da rosa quepisou enquanto me aproximava.

Não podia fugir. Preparei-me para lutar sabendo que seria inútil. De repente passou um

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reflexo azul no limite de meu campo visual e soou um tunc!, como se tivessem deixado cair ummelão de certa altura. O reverendo girou lentamente sobre um pé, com os olhos abertos einexpressivos. Naquele momento seu parentesco com Margaret se fez evidente. Depois caiu.Na têmpora tinha uma horrível depressão. Sua cara mudou de cor: do vermelho provocado pelacólera ao branco cerúleo. Seu peito se elevou e voltou a descer um monte de vezes. Tinha osolhos e a boca aberta.

—Tsei-mi aqui, Primeira Esposa? —disse o chinês guardando na manga o saquinho com asbolas de pedra.

—Sim, aí fora. —Sinalizei vagamente na direção da galeria. —Que… ele… foi voce…? —perguntei fechando os olhos. —O que disse, era verdade? Foi voce quem revelou a sir Percivalo encontro em Arbroath? Quem lhe disse sobre de Malcolm e a tipografia? Não tive resposta.Depois de um segundo abri os olhos. Continuava ali, observando o reverendo Campbell, queainda não tinha morrido.

—Não era um homem inglês —disse—, senão um nome inglês. Willoughby.—Não Willoughby —exclamou com aspereza. — Yi Tien Cho!—Por que? —inquiri quase gritando. —Olha-me, maldito sejas! Por que? Então me olhou.

Seus olhos tinham perdido o brilho.—Em China… contos. Profecia. Dizem que um dia virão fantasmas. Todo mundo teme

fantasmas. Sai China para salvar vida. Muito tempo acordo, vejo fantasmas. Por todas partes,fantasmas —continuou com suavidade. —Vem fantasma grande: cara branca, horrível, cabelode fogo. Creio me comer a alma.

Elevou para mim os olhos remotos e serenos.—Tenho razão —disse simplesmente. —Ele me come a alma, Tsei-mi. Não mais Yi Tien

Cho.—Mas te salvou a vida —assinalei. Assentiu mais uma vez.—Eu sei. Melhor morrer. Melhor morrer do que ser Willoughby. Willoughby! Puaj! —

Girou a cabeça para cuspir com a cara contraída. —O fala minhas palavras, Tse-mi! Come aalma! Seu arrebato de cólera desapareceu com a mesma seriedade. Passou uma mão tremulapela cara suada.

—Veio um homem na taberna. Pergunta por Mac Dub. Eu embriagado —informouobjetivamente. —Quero mulher, nenhuma mulher vem. Ri, dizer verme amarelo… —Moveuuma mão para as calças, mexendo a cabeça. —Gwaofei todos iguais. Eu embriagado. Homemfantasma quer Mac Dub, me pergunta. Digo sim, conheço Mac Dub. —Encolheu-se deombros. —Não importa nada.

O peito magro de Campbell caiu uma vez mais e ficou imóvel. Yi Tien Cho sinalizou ocorpo. —É dívida. —disse —Eu desonrado. Eu estrangeiro. Mas pagamento. Tua vida porminha, Primeira Esposa. Diga a Tsei-mi.

Voltou-se para a escura galeria onde tinha um sussurro de penas. Já no escuro acrescentousuavemente: —Quando desperto em docas, penso fantasmas vem, todos arredor. Mas não. Soueu. Eu sou o fantasma. Com rápidas pisadas se afastou pela galeria. Todos os acontecimentosda noite se misturavam em minha cabeça como cacos de vidro num caleidoscópio. Não tinhatempo para procurar sentido em tudo aquilo. Mas recordei o que tinha dito o reverendo antes

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que entrasse Yi Tien Cho. Se existia alguma pista que indicasse onde tinha ido GeillisAbernathy, devia estar lá em cima. Depois de acender uma vela cruzei a casa para a escada.Sentia muito frio.

O laboratório estava a escuras, mas no extremo da mesa se via um vago resplendor lívido.Um estranho cheiro de queimado me invadiu o nariz fazendo-me espirrar. Mercúrio, mercúrioqueimado. Seus vapores, ainda que fantasmagoricamente belos, eram muito tóxicos. Tirei umlenço para pôr na boca e o nariz antes de me aproximar. As linhas do pentágono tinhamchamuscado a madeira da mesa. Se Geillis tinha utilizado pedras para formar a figura, já nãoestavam ali. Mas tinha deixado outra coisa. A fotografia tinha as bordas chamuscadas, mas ocentro permanecia intacto. Apertei contra meu peito, furiosa e cheia de pânico, a cara deBrianna. Que significava aquilo?

Sem dúvida se tratava de magia… na versão de Geillis. Tentei freneticamente recordarnossa conversa. Tinha curiosidade em saber como tinha viajado através das pedras e lherespondi com alguma imprecisão sobre fixar a atenção numa pessoa que vivesse no momentopara o qual se queria viajar. Indubitavelmente, Geillis tinha decidido unir minha técnica à sua,utilizando a imagem de Brianna como ponto de concentração para sua viagem. Ou se não…

Ao pensar nos manuscritos do reverendo, em suas cuidadosas genealogias, sentime à beirado desvanecimento. «Uma das profecias do Vidente de Brahan», tinha dito, «afirma que nageneologia de Lovat surgirá um novo governante da Escócia». Graças às investigações deRoger Wakefield, sabia (e Geillis seguro que também, dada sua obsessão pela história daEscócia), que a descendência direta de Lovat se tinha perdido, aparentemente, em torno do anode 1800. Na realidade, em 1968 só restava um sobrevivente dessa geneologia: Brianna.

Depois de guardar a foto mutilada no bolso de minha anágua, corri para a porta como se oquarto estivesse habitado por demônios. Tinha que encontrar Jamie…, imediatamente.

Não estavam ali. O bote boiava, vazio, à sombra de um grande cedro. Não havia sinais deJamie e os demais. Um arrepio de ansiedade me percorreu o corpo. Tinham tido temposuficiente de regressar.

Junto ao portão principal de Rose Hall ardiam duas tochas. Eram pequenas partículas de luza distância mas tinha uma luz mais próxima, à esquerda da refinaria, cuja intensidade sugeriauma grande fogueira. Jamie e seus homens teriam tido alguma dificuldade? Pareceu-me ouvirum canto proveniente daquela direção. Algo na noite me inspirava inquietude. Fui conscienteentão de um fedor enjoativo que se impunha ao dos agriões e o açúcar queimado. Reconheci-oimediatamente como de carne podre. De repente o inferno se abriu sob meus pés.

Foi como se um fragmento da noite se separasse do resto à altura de meus joelhos. Algomuito grande se agitou junto a mim derrubando-me de uma vez sobre as panturrilhas. Meuinvoluntário grito coincidiu com um sussurro forte. Encontrava-me muito próxima de algo vivoe de grande tamanho que cheirava a carniça. Ainda que não soubesse do que se tratava, sabiaque não queria ter nenhum contato com aquilo. Levantei-me como pude e me pus a correr. Derepente, a luz de uma tocha apareceu ante mim. Trombei com o homem que a levava, e a tochacaiu, apagando-se na umidade das folhas úmidas. Umas mãos me seguraram pelos ombros. Aolevantar a cabeça me encontrei cara a cara com um alto escravo negro que me olhava perplexo.

—Senhora, que está fazendo aqui? —disse.Antes que pudesse responder, desviou sua atenção para algo que acontecia por trás de mim.

Virei-me para olhar. Seis homens, dois com tochas e outros quatro vestidos com uma simples

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tanga, caminhavam cautelosamente formando um círculo em torno do animal que me tinhagolpeado as pernas. Levavam paus acabados numa ponta afiada. A cena conseguiu que meusjoelhos estivessem a ponto de ceder de novo. O animal media uns três metros e meio e seucorpo como uma couraça parecia um tonel de rum. A enorme calda se desviou lançando umaçoite e o homem mais próximo teve que saltar para um lado dando um grito de alarme. Ocrocodilo girou a cabeça, abriu a goela e emitiu outro sussurro.

O escravo o cercou com cautela. Os homens estavam atiçando o animal com evidenteintenção de irritá-lo. Pareciam ter sucesso. O crocodilo fincou as fortes extremidades na terra ese lançou à com assombrosa rapidez. O homem que estava na frente retrocedeu de um salto,mas escorregou no lodo. Então, o grande escravo negro se lançou pelo ar aterrizando sobre olombo do animal. Enquanto os outros o alentavam com gritos, se refizeram para segurar comuma mão o extremo do focinho mantendo-se fechado. De repente, uma figura na qual não tinhareparado saiu entre as canas e se ajoelhou junto ao animal. Sem vacilar, deslizou-lhe um nócorrediço no focinho. Os gritos se converteram num alarido triunfal, até que o homemajoelhado o interrompeu com uma palavra seca. Levantou-se repartindo ordens a gritos. Suapreocupação era óbvia: a grande calda seguia solta, lançando golpes capazes de derrubar tudo oque se pusesse ao seu alcance. Surpreendi-me de não ter fraturado as pernas.

Imediatamente, os homens armados com varas se aproximaram. Esquecida no calor da cena,não me surpreendeu reconhecer o líder no qual chamavam Ishmael.

—Huwe!Dois dos homens passaram as varas por baixo do crocodilo. Outro, depois de esquivar a

cabeça, colocou-lhe sua lança sob o peito. Os três empurraram com força e, com um chapinhar,o réptil caiu sobre o lombo, com a branca e reluzente pança à luz das tochas.

Ishmael aplacou os gritos com uma só palavra e alongou a mão. Não sei o que disse, masbem pôde ter sido: «Bisturi!» A entonação e o resultado foram os mesmos: um dos portadoresde tochas se apressou a tirar uma faca da tanga e o plantou na mão de seu chefe. Este girousobre seus calcanhares e, com o mesmo impulso, afundou a lâmina no pescoço do animal, ondeas escamas da mandíbula se unem às do pescoço.

Um jorro de sangue, negro à luz do fogo, brotou do pescoço do crocodilo. Todosretrocederam a uma distância prudente para contemplar com uma mistura de respeito esatisfação ao réptil moribundo. Eu tinha permanecido em pé durante todo aquele tempo, masminhas pernas não agüentaram mais e caí sentada no solo lamacento com as agitadas anáguas.O movimento atraiu a atenção de Ishamel, que se voltou para mim.

Eu não lhe prestava atenção. Respirava com o mesmo folego que o crocodilo. As perguntase os comentários adquiriram um tom preocupado, mas já não os escutava. Na realidade nãotinha perdido a consciência; tive uma vaga impressão de corpos empurrando-se e luzespestanejantes; depois, uns braços me alçaram, estreitando-me com força. Tinha um tagarelandoexcitado, mas só pude captar palavras soltas.

Quando entramos num clarão, junto as cabanas dos escravos, já tinha recuperado a visão eera consciente. Além de alguns arranhões e machucados, não estava ferida. Não obstantemantive os olhos fechados e o corpo frouxo. Levaram-me ao interior de uma cabana. Lutavacontra o pânico com a esperança de que me ocorresse um plano sensato antes de ver-meobrigada a acordar oficialmente.

Onde diabos estavam Jamie e os outros? Que fariam quando, ao regressar ao bote,

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descobrissem os restos de luta e que eu tinha desaparecido? E nosso amigo Ishmael, que estavafazendo? Só uma coisa era certa: não estava ali para cozinhar.

Fora da cabana, o alvoroço tinha um tom festivo e me chegava o cheiro do álcool. Frente àporta não paravam de ir e vir sombras; não podia sair sem ser vista. De repente, depois de umberreiro triunfal, as silhuetas desapareceram bruscamente. Provavelmente estavam fazendoalgo com o crocodilo.

Incorporei-me com cautela. Seria possível escapulir-me enquanto todos estavam ocupados?Meus pensamentos foram interrompidos por uma sombra que apareceu na porta bloqueando aluz. Levantei-me bruscamente, lançando um grito. O homem entrou rapidamente e se ajoelhoujunto ao meu colchão de palha.

—Não faças ruído —disse Ishmael. —Sou eu.—Eu sei —disse coberta de suor frio e com o coração como batidas pneumáticas.— Soube desde o princípio.Com um chapéu levava a enorme cabeça do crocodilo que acabavam de caçar. Tinham-lhe

cortado a língua e a base da boca. Os olhos de Ishmael eram um pequeno brilho sob os dentes.A mandíbula lhe ocultava a metade inferior da cara.

—O egungun, não vos fez dano? —perguntou.—Não, graças a estes homens —disse—. Eh… suponho que não aceitarias tirar isso,

verdade? Ignorando minhas palavras, sentou-se sobre os calcanhares, expressando com cadalinha do corpo uma profunda indecisão.

—Que faz aqui? —perguntou enfim fim.A falta de uma idéia melhor, o expliquei.—Ah… a senhora não está — explicou como se duvidasse em confiar-me essa informação.—Sim, eu sei. —Recolhi os pés sob o corpo, disposta a levantar-me. —Alguém poderia

levar-me até a árvore grande, junto ao rio? Meu esposo deve estar me procurando —acrecenteicom intenção.

—Creio que levaram o moço —prosseguiu Ishmael sem me prestar atenção.—Levaram Ian? Por que?Dentro da máscara, seus olhos brilharam divertidos.—À senhora lhe agradam os moços —disse. Seu tom malicioso deixava muito claro o que

isso significava.—Ah, sim? —Foi meu inexpressivo comentário. —Sabes quando voltará? O longo focinho

dentado se empinou subitamente mas antes que ele pudesse responder percebi a presença dealguém a minhas costas. Voltei-me subitamente no colchão.

—Eu a conheço —disse ela com uma pequena ruga que lhe cruzava a ampla frente. —Meequivoco?

—Nos vimos uma vez —confirmei, tratando de engolir o coração que o sobressalto me tinhafeito subir à boca. —Como… como estas, senhorita Campbell?

Melhor do que em nosso encontro anterior, obviamente, apesar de seu belo vestido de lãtinha sido substituído por uma túnica de tosco algodão branco, que cingia com uma larga tira

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da mesma tela tingida com anil. Estava mais delgada e tinha perdido o aspecto macilento quelhe provocava o aprisionamento.

—Estou bem, obrigada, senhora —respondi cortesmente. Seus olhos descoloridos tinham amesma expressão distante e descentrada. O sol tinha dado à sua pele uma nova cor, mas eraevidente que a senhorita Margaret Campbell não estava integralmente bem da cabeça.

—És muito gentil em visitar-me, senhora —disse. —Posso oferecer algum refresco? Umaxícara de chá, talvez? Não temos vinho. Meu irmão opina que os licores são o caminho que nosleva às luxúrias da carne.

—Creio que tem razão —confirmei, ainda que naquele momento não me teria vindo mal umtrago. Ishmael lhe fez uma profunda reverência, sustentando-se como pôde a enorme cabeça.

—Pronta? —perguntou baixinho. —O fogo espera.—Fogo. — repetiu ela. —Sim, claro. —Voltou-se para mim para perguntar-me

amavelmente: —Me acompanhas, senhora Malcolm? O chá não demorará. Encanta-mecontemplar um bom fogo.

—Pegou-me pelo braço. —Não te parece que alguma vez viu coisas nas chamas?—De vez em quando —reconheci olhando a Ishmael. Sua postura denotava indecisão mas

como a senhorita Campbell avançava inexoravelmente para ele levando-me pelo braço,encolheu-se de ombros e se afastou para o lado.

No centro da clareira ardia uma pequena fogueira. A pouca distância tinha mais de trintapessoas, entre homens, mulheres e meninos, rindo e conversando. Um homem cantavasuavemente, curvando-se sobre uma maltratada viola. Quando aparecemos, alguém nos viu edisse algo como: «Jau!» De imediato cessaram as conversas e risos e entre a multidão reinouum respeitoso silêncio.

Ishmael se aproximou lentamente; a cabeça do crocodilo sorria com prazer. Próximo dofogo tinha um pequeno banco, instalado numa espécie de plataforma feita com tábuasempilhadas. Obviamente, era o lugar de honra, pois a senhorita Campbell se dirigiu para ali,indicando-me cortesmente que me sentasse ao seu lado. Observei dissimuladamente o círculode rostos: eram as caras da África, alheias a mim. Senti o peso de seus olhares, que iam desde ahostilidade até uma cautelosa curiosidade, mas o centro de atenção era a senhorita Campbell.

O homem tinha deixado a viola e tinha agora um pequeno tambor entre os joelhos. Começoua batê-lo suavemente, com um ritmo entrecortado que imitava o palpitar de um coração. Olheià senhorita Campbell que contemplava calmamente as chamas com as mãos cruzadas no colo.A multidão de escravos se abriu ante a aparição de duas meninas carregadas com um grandecesto, cuja alça tinha rosas brancas entretecidas. A tampa se sacudia, agitada por ummovimento interior. Deixaram o cesto aos pés de Ishmael, olhando com respeito seu grotescopenteado. Então o povo se acercou, esticando o pescoço para ver que passava. O ritmo dotambor, ainda que suave, fazia-se mais rápido. Uma das mulheres se adiantou para entregar aIshmael uma garrafa de pedra e voltou a confundir-se com a multidão.

Ishmael caminhou cuidadosamente ao redor da cesta vertendo uma pequena quantidade delicor no solo. O cesto, que momentaneamente tinha ficado quieto, sacudiu-se de um lado aoutro agitado pelo movimento ou pelo penetrante aroma do álcool. Um homem se adiantoucom uma vara envolta em trapos e o sustentou sobre a fogueira até que os farrapos começarama arder.

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Depois de uma palavra de Ishmael, deixou cair a tocha no solo, onde tinha vertido licor. Oanel de fogo azul que apareceu provocou uma exclamação dos espectadores. Do cesto surgiuum forte «kikirikí». A senhorita Campbell se moveu ao meu lado observando a cesta comsuspicácia. Como se o canto do galo tivesse sido um sinal (talvez foi) elevou-se o som de umaflauta e o tagarelar da multidão atingiu um tom mais agudo.

Ishmael se aproximou da nossa improvisada plataforma com um lenço vermelho. Amarrouao punho de Margaret e voltou a deixá-lo suavemente no colo.

—Ah, aqui está meu lenço! —exclamou ela, levantando o braço para limpar-se sem rodeioso nariz. Todos estavam atenciosos a Ishmael, que se erguia ante a multidão falando numidioma que não reconheci. O galo voltou a cantar dentro do cesto e as rosas brancas da alça seestremeceram violentamente.

—Oxalá que não fizesse isso — disse Margaret Campbell. —Se fazer outra vez serão três eisso traz má sorte, não?

—É mesmo? —Vi que Ishmael estava vertendo o resto do licor em torno da plataforma.—Oh, sim, é o que diz Archie. «Me trairás antes que o galo cante três vezes.» Archie diz

que as mulheres sempre traem. Achas que é verdade?—Depende do ponto de vista —murmurei. Minha colega parecia não reparar nos escravos

cantores, nem no cesto movediço, nem na música nem em Ishmael, que recolhia pequenosobjetos de mãos dos presentes.

—Tenho fome —comentou. —Espero que o chá não tarde. Ishmael a ouviu e, para surpresaminha, afundou a mão num dos sacos que levava na cintura e sacou uma pequena trouxa queparecia ser uma xícara de porcelana lascada. Depositou-a cerimoniosamente no colo deMargaret.

—Oh, que bom. —Bateu palmas com alegria. —Oxalá tenha bolos. Ishmael voltou a dizeralgo e a tocha baixou outra vez. Uma súbita labareda azul se alçou em torno da plataforma.Enquanto se apagava, deixando no ar noturno um cheiro de terra cozida e licor queimado, abriuo cesto para tirar o galo. Era um animal grande e saudável; suas plumas negras brilhavam à luzdas tochas. Gritava e forcejava enlouquecido, mas tinha as patas bem atadas com tiras de panopara evitar arranhões. Ishmael o entregou a Margaret com uma reverência.

—Oh, obrigada —exclamou amavelmente. O galo esticou o pescoço com um fortecacarejar. Margaret o sacudiu. —Galo malcriado! — protestou irritada enquanto o levantavaaté sua boca e lhe fincava os dentes por trás da cabeça. Ouvi o suave ranger dos ossos e opequeno rosnado que ela emitiu ao arrancar a cabeça da indefesa ave. Depois apertou contra sio corpo que se debatia.

—Bem, bom, já está bom, querido. O sangue lhe manchava o vestido e enchia a xícara dechá. A multidão, depois de uma primeira exclamação, observava em silêncio. Também a flautatinha calado, mas o tambor continuava soando, bem mais forte que antes.

Margaret deixou de lado o animal ensangüentado. Um menino saiu precipitadamente domeio da multidão e o retirou enquanto ela pegava distraidamente a xícara com uma mãobanhada de sangue.

—Os convidados primeiro — recordou cortesmente. —Um torrão ou dois, senhoraMalcolm? Não pude responder graças à afortunada intervenção de Ishmael, que me pôs nasmãos uma tosca xícara de osso, indicando que a bebesse. Ante a alternativa, levei-a a boca sem

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vacilar.Era rum recém destilado, tão forte que me engasguei. Desde o fundo de minha garganta

ascendeu o gosto áspero de uma erva; tinham misturado algo com o licor que não eradesagradável. Outras xícaras como a minha passavam de mão em mãos entre a gente. Ishmaelme fez um gesto brusco para que bebesse mais. Obediente, levei o osso aos lábios deixandoque o forte líquido me tocasse a boca sem engolir. Ignorava que estava sucedendo ali, masprecisava toda a lucidez possível. Ao meu lado, a senhorita Campbell bebia de sua xícara atragos melindrosos. A expectativa aumentava cada vez mais. Uma mulher tinha começado acantar com voz grave e rouca, fazendo contraponto no tambor.

A sombra de Ishmael caiu sobre mim fazendo-me levantar a vista. Ele também se balançavasuavemente para frente e para trás, com a camisa branca colada ao peito pelo suor. De repentelevantou as mãos e começou a cantar. Assim, com a cara oculta, sua voz poderia ter sido a deJoe: grave e melíflua, capaz de atrair toda a atenção. Se fechasse os olhos era realmente Joe,com o suave brilho de seus óculos. Quando os abri me impressionou novamente o sinistrobocejo do crocodilo e o verde dourado daqueles olhos frios e cruéis.

A noite estava cheia de olhos negros e refulgentes pelo fogo; leves gemidos e gritosmarcavam as pausas de seu cântico. Sacudi a cabeça com força, apertando a beira do bancopara aferrar-me à realidade. Não estava bêbada, sem dúvida, mas a erva misturada com o rumme produzia estranhos efeitos. Sentia-a arrastar-se como uma víbora por minhas veias. Mantiveos olhos apertados resistindo-me ao seu avanço. Mas não podia deixar de escutar o som dessavoz que subia e baixava.

Não sei quanto tempo passou. Voltei por mim com um sobressalto, notando que o tambor eo canto tinham cessado. O silêncio era absoluto em torno da fogueira. Os efeitos da droga iamcessando. Senti que a clareza voltava aos meus pensamentos. Com as pessoas não ocorria omesmo; os olhos permaneciam fixos numa só mirada, sem piscadas, como se tivesse um murode espelhos. Então pensei nas lendas vodus dos zumbis e os houngans que os faziam. «Todalenda tem um ponto para valer», tinha dito Geillis. Ishmael falou. Tinha tirado a cabeça decrocodilo, que jazia no solo, a nossos pés. —Iis sont arrivés —disse baixinho.

—Quem pergunta?Uma jovem com turbante se acercou sem deixar de balançar-se, deixou-se cair ante a

plataforma e apoiou a mão numa das imagens essulpidas: um tosco ícone de madeira com aforma de uma mulher grávida. Levantou os olhos cheios de esperança.

—Aia, puta. —A voz tinha soado junto a mim, mas não era a de Margaret Campbell, senãoa voz de uma anciã, cascata e aguda, mas cheia de confiança na resposta. A jovem lançou umaexclamação de gozo e se prostrou ante a plataforma. Ishmael a incitou suavemente com um pée retrocedeu para a multidão, aferrada ao seu pequeno ídolo.

O seguinte era um garoto.—Grandmére, a mulher que amo, corresponde ao meu amor?A mulher sentada ao meu lado riu com muita ironia, mas também com bondade.—Certainement —respondeu. —Corresponde ao teu e ao de outros três homens. Procura a

outra. Menos generosa mas mais digna.O jovem se retirou, desanimado, deixando lugar a um homem de mais idade. Falou num

idioma africano que não reconheci. Tinha uma nota de amargura em sua voz.

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—Setato hoye —disse… quem? A voz tinha mudado. Agora era a de um homem adulto querespondia no mesmo idioma, com um tom colérico. Olhei de soslaio. Mesmo ao calor daschamas, um arrepio me percorreu os braços. Ainda que as feições fossem as mesmas, aquela jánão era a cara de Margaret. Os olhos brilhavam sobre uma boca apertada com autoridadeenquanto o pálido pescoço se inchava como o de uma rã.

«Eles chegaram», tinha dito Ishmael. Vi que me olhava um momento e seus olhos voltaramde imediato a Margaret… ou ao que queira que fosse Margaret. Um a um, os presentes seadiantavam para ajoelhar-se e perguntar. Uns falavam em inglês; outros, em francês, no dialetodos escravos ou em alguma língua africana. A cara e a voz do oráculo sentado junto a mimmudava segundo mudavam «eles». Eram homens ou mulheres, quase sempre maduros ouanciões, e suas sombras dançavam na cara de minha colega ao compasso do fogo.

Então compreendi por que Ishmael tinha voltado àquele lugar arriscando-se a ser capturadoe devolvido à escravatura. Não era por amizade, por amor ou por lealdade para os outrosescravos, senão por poder. Que preço se pode pagar pelo poder de predizer o futuro? Qualquer,era a resposta que via nas caras absortas da congregação. Ishmael tinha voltado por Margaret.Por fim fez um gesto com a cabeça e se voltou para ela.

Durante essa pausa, a cara de Margaret ficou em branco; não tinha ninguém ali.—Bouassa —disse ele. —Vêem, Bouassa. Afastei-me involuntariamente. Quem quer que

fosse Bouassa, tinha ido rapidamente.—Escuto. —Era uma voz tão grave como a de Ishmael, mas desagradável. Um dos homens

retrocedeu um passo. —Diga-me o que quero saber, Bouassa.Margaret inclinou levemente a cabeça, com um brilho divertido nos olhos.—Que queres saber? —disse a voz com suave desdém. —Por que, homem? Irá também, não

importa o que te diga.O ligeiro sorriso de Ishmael foi um reflexo do de Bouassa.—Diz a verdade —reconheceu ele suavemente. —Mas estes… —Assinalou com a cabeça

aos seus colegas, sem afastar o olhar.—Virão comigo?—Por que não? —disse com um cacarejo desagradável. —A Bruxa morre em três dias. Não

têm nada que fazer aqui. Isso é tudo? —Sem esperar resposta, Bouassa bocejou. Da primorosaboca de Margaret surgiu um forte arroto. Depois fechou a boca e a seus olhos voltou o olharvago, mas os homens já não prestavam atenção, perdidos numa excitada conversa fiada.Ishmael os aplacou assinalando-me com uma olhada significativa. Então se retiraram entremurmúrios. Quando o último deles se foi, Ishmael fechou os olhos e seus ombros cederam. Eutambém me sentia esgotada.

—Que…? —Mas me interrompi. Ao outro lado do fogo, um homem tinha abandonado seuesconderijo no canavial. Era Jamie, com a cara e a camisa enrubescidas pelas chamas. Levouum dedo aos lábios e eu fiz um gesto de consentimento. Podia levantar-me e correr para ocanavial antes que Ishmael me atingisse, mas e Margaret? Quando me voltei para ela, sua caratinha voltado a retomar vida. Tinha os lábios entreabertos e os olhos encostados.

—Papai? —disse a voz de Brianna, ao meu lado. Meus cabelos ficaram de pé. Era a voz deBrianna, a cara de Brianna e seus olhos azuis escuro cheios de ansiedade.

—Bree? —sussurrei. Voltou-se para mim.

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—Mamãe —disse a voz de minha filha da garganta do oráculo.—Brianna —disse Jamie pálido pela impressão. Ela girou bruscamente a cabeça para olhá-

lo.—Papai —repetiu. —Sabia que era voce. Tenho estado sonhando contigo. Não deixes que

mamãe vá só, acompanha-a. Eu te protegerei.Só se ouvia o crepitar do fogo. Ishmael estava transfigurado, com a vista fincada naquela

mulher que voltou a falar com o tom suave e sensual de Brianna.—Te amo, papai. A ti também, mamãe. Quando se inclinou para mim percebi o cheiro do

sangue fresco. Seus lábios tocaram os meus e gritei. Não estava consciente de nada quando melevantei de um salto e cruzei a clareira. Só me recobrei quando estava segura com Jamie, com acara escondida em seu casaco e tremendo. Creio que ele também tremia.

—Já passou —disse tratando de dominar a voz. — Se foi.Obriguei-me a olhar para a fogueira. Margaret Campbell cantarolava sentada junto ao fogo.

Ishmael, atrás dela, acariciava-lhe o cabelo com algo que podia ser ternura enquantomurmurava algo.

— Oh, não estou nada cansada! —assegurou ela afetuosa. —Bonita festa, não? Duasmulheres com turbante vieram para levar à Margaret com murmúrios carinhosos. Ishmael nosobservava acima do fogo, imóvel como um símbolo esculpido na noite.

—Não vim só —disse Jamie, fazendo um gesto para o canavial, como se o seguisse umregimento armado.

—Oh, estás só, homem — replicou Ishmael com um leve sorriso. —Não importa. Tua loafala por ti. Comigo estás seguro. Primeiro vê que uma loa fala a um buckra. Agora vá —dissesacudindo a cabeça.

—Ainda não. —Jamie se ergueu ao meu lado. —Vim procurar meu sobrinho. Não partireisem Ian.

—Esquece-o —disse Ishmael. —Se foi.—Onde?—Com a Bruxa, homem. E onde ela vai, não vás. O garoto se foi, homem. —Fez uma pausa

para escutar. Ouvia-se o bater de um tambor. —E se és sábio, vais-te também. Os outros vêmcedo. Comigo não há perigo, homem; com os outros sim.

—Quem são os outros? —perguntei.—Selvagens, suponho —disse Jamie.Ishmael assentiu com a cabeça.—Isso. Escutaste a Bouassa? Sua loa nos abençoa, assim que formos. —Assinalou as

colinas escuras—O estábulo chama para que descem os que estão fortes e poderam ir. Voltou-nos as costas indicando-nos que a conversa tinha terminado.

— Espera! —pediu Jamie— Diga-nos onde foi a senhora Abernathy com o moço. Ishmaelse voltou com os ombros cobertos pelo sangue do crocodilo.

—A Abandawe —disse.—E onde fica isso? —inquiriu Jamie impaciente.

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Lhe pus uma mão no braço.—Eu sei onde está. Em La Española. Isso disse Lawrence. Isso era o que Geillis desejava

dele: saber onde estava Abandawe.—Mas o que é? Uma cidade, uma aldeia?—Uma gruta. —Senti frio ainda que próxima do fogo. —Uma antiga gruta.—Abandawe, lugar mágico —interveio Ishmael suavemente, como se temesse elevar a voz.

Olhou-me examinando-me—. Diz Clotilda que a Bruxa te levou ao quarto de cima. Sabes quefaz ali?

—Mais ou menos. —Senti a boca seca ao recordar as mãos de Geillis traçando figuras comas pedras. Como se tivesse captado esse pensamento, Ishmael deu um passo para mim.

—Pergunto-te, mulher: ainda sangras? Jamie deu um respingo, mas lhe apertei o braço.—Sim — disse —Por que? O que tem haver com isso?Seu desassossego era óbvio.—Se uma mulher sangra, mata magia. Voce sangra, tens poder de mulher, a magia não

funciona. São as velhas que podem fazer magia: Feitiçar alguém, chamar o loas, enferma, cura.—Olhou-me mexendo a cabeça— Não faças magia, como a Bruxa. A magia mata, sim, masmata a voce também. Não ouviu a Bouassa? Diz que a Bruxa morre em três dias. Levou ogaroto, o garoto morre. Se o seguir, também morto, homem. Seguro.

Levantou as mãos frente a Jamie, com os pulsos cruzadas como se as tivessem atadas.—Estás avisado, amiki. —E se voltou bruscamente desaparecendo na escuridão.—Que São Miguel nos proteja —murmurou Jamie— Conheces esse lugar, Sassenach? Onde

estão Geillis e Ian?—Só sei que está nas colinas de La Española e que cruza um ribeiro.—Nesse caso, teremos que levar Stern —disse com decisão— Vamos, os rapazes nos

esperam no bote.Junto à beira do canaveral me detive para olhar atrás.—Jamie! Olha! Além de Rose Hall, o céu resplandecía com um fulgor encarnado. —Deve

de ser a propriedade de Howe. Está ardendo —disse com calma e sinalizou para a esquerda,para uma mata alaranjada no flanco da montanha— E isso deve de ser Twelvetrees. Umapequena fila de escravos descia desde as cabanas, carregados de vultos e meninos. Uma moçalevava no braço, com cuidadoso respeito, a Margaret Campbell. Ao vê-la, Jamie se adiantouum passo.

—Senhorita Campbell! Margaret! A mulher e seu colega se detiveram.—Margaret —repetiu Jamie—, não me reconheces? Sua olhada parecia vazia. Com muita

lentidão, ele lhe tomou a cara entre as mãos.—Me ouves, Margaret? Me reconheces? Depois de piscar uma ou duas vezes sua voz soou

tímida e temerosa.—Sim, Jamie, reconheço-te. —Olhou-o aos olhos— Tens notícias de Ewan? Está bem?Jamie ficou em silêncio durante um momento; as vezes seu rosto podia ser uma máscara

com a que dissimulava suas emoções mais fortes.

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—Está bem —sussurrou no fim . Muito bem, Margaret. E me deu isto para dar a voce. —Inclinou a cabeça para beijá-la com delicadeza.

As mulheres, protetoras e desconfiadas, fecharam o círculo em torno dela. Margaret sorria.— Obrigada, Jamie! —disse enquanto seu assistente a pegava por um braço para leva-la.— Diga a Ewan que em breve estarei com ele!Desapareceram como fantasmas na escuridão do canavial. Jamie fez sinal de seguí-las, mas

o detive. —Deixa-a —sussurrei pensando no que jazia no salão da casa— Deixa-a ir, Jamie.Não podes detê-la. Está melhor com eles. Fechou os olhos e assentiu.

—Sim, tens razão.Mas se deteve subitamente. Tinha luzes em Rose Hall. Luzes de tochas que piscavam depois

das janelas. Um lúgubre resplendor começou a crescer nas janelas do gabiente.—Já deveríamos ter ido —disse Jamie.Submergimo-nos no escuro canavial, onde o ar cheirava a açúcar queimado.

CAPÍTULO 62

ABANDAWE

—Podes usar a pinaça do governador; é pequena, mas navega bem. —Grey remexeu nagaveta de sua escrivaninha— Darei uma ordem para que apresentem aos empregados do cais.

—Precisamos de um barco. O Artemis é de Jared e não posso arriscar que lhe ocorra nadaacho que o melhor será roubarmos, John. —Jamie tinha as sobrancelhas franzidas— Muitosproblemas já tens para que por cima te possam se relacionar comigo.

Grey sorriu.—Problemas? Suponho que sim: quatro plantações incendiadas e mais de duzentos escravos

fugitivos. Sabe Deus por onde andarão! Mas duvido muito que, em tais circunstâncias, alguémse interesse por minhas relações sociais. Entre o medo aos selvagens e ao chinês fugitivo, opânico que reina na ilha faz que um simples contrabandista não seja mais do que umatrivialidade.

—É um grande alívio que me consideres uma trivialidade —comentou Jamie muito seco—Ainda assim roubaremos o barco e se nos prenderem nunca ouviste meu nome nem minha cara,entendido?

Grey o olhou fixamente. Por fim disse:—Se te prenderem, queres que deixe que te enforquem sem dizer uma palavra, por medo de

manchar minha reputação? Pelo amor de Deus Jamie, por quem me tomas?—Por um amigo, John —disse Jamie— E se aceito tua amizade e teu condenado barco, faz

o favor de aceitar a minha e guardar silêncio. Certo?— De acordo —disse o governador— Mas me farias um grande favor se não te deixarem

capturar.— Farei o possível, John.

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O governador se sentou, fatigado. Tinha grandes olheiras e a camisa enrugada. Era evidenteque não tinha mudado de roupa desde o dia anterior.

—Bem. Não sei onde vais e provavelmente seja melhor que eu não saiba. Mas se forpossível, não se aproxime às vias navegáveis do norte da Antigua. Esta manhã enviei um barcopara pedir que me trouxessem a todos os homens que estavam nas cabanas. Depois de amanhã,não mais tardar, virão aqui para custodiar a cidade e o porto. É provável que tenha umarebelião de selvagens.

Olhei a Jamie com um gesto interrogante e ele sacudiu imperceptivelmente a cabeça.Tínhamos informado ao governador sobre o levantamento do rio Yallahs e a fuga dos escravos,mas não mencionamos o que tínhamos visto aquela mesma noite escondidos numa pequenaensenada. A noite era escura. Só um pequeno resplendor aparecia na superfície do rio.Ouvimos-os chegar e tivemos tempo de nos esconder antes de que o barco se pusesse a nossaaltura. Um bater de tambores e selvagens vozes exaltadas ressoavam pelo vale enquanto oBruxa passava frente a nós, levado pela corrente. Sem dúvida alguma, os cadáveres dos piratascomeçavam a podrecer apacivelmente rio acima, entre os cedros e os franchipaneiros. Osescravos fugitivos do rio Yallahs não tinham entrado nas montanhas de Jamaica senão quesaíam ao mar, provavelmente para unir-se aos seguidores de Bouassa, em La Española. Aspessoas de Kingston não tinham nada que temer. Mas era muito melhor do que a Marinha Realconcentrasse seu atendimento ali e não em La Española, onde nos dirigíamos.

Jamie se levantou para despedir-se, mas Grey o deteve.—Espera. Não precisas um lugar seguro para deixar a tua… à senhora Fraser? Me sentiria

muito honrado se a deixasses sob minha proteção. Poderia esperar aqui; na residência ninguéma incomodaria.

Jamie vacilou, mas não tinha maneira suave de dizê-lo.—Tem que me acompanhar, John —disse— Não há alternativa.Grey me olhou fugazmente.—Sim —disse engulindo saliva— Compreendo.Jamie lhe alongou a mão. Ele vacilou um momento antes de aceitá-la.—Boa sorte, Jamie —disse com voz rouca— Que Deus te acompanhe.Mais difícil tinha sido Fergus compreender; fazia questão de nos acompanhar. Seus

argumentos se tornaram mais veementes quando descobriu que os contrabandistas escocesesviriam conosco.

—A eles vais levar e a mim não? —Sua cara ardia pela indignação.— claro —confirmou Jamie— Os contrabandistas são solteiros ou viúvos. Voce está casado.

—Olhou a Marsali, que presenciava a discussão com a cara tensa pela ansiedade.— Me equivoquei ao pensar que ela era muito jovem para casar-se mas estou seguro de que

é muito mais jovem para ser viúva. Ficas.Lhe voltou as costas, dando o assunto por finalizado. Já tinha escurecido quando zarpamos

na pinaça de Grey, deixando dois homens amarrados e amordaçados no embarcadeiro. Aindaque a embarcação, com seus trinta pés e sua única coberta, era maior que o bote pesqueiro noque tínhamos remontado no rio Yallahs, dificilmente se lhe podia chamar aquilo de «barco».Ainda assim navegava bem e rápido estávamos fora do porto, rumo a La Española. Os

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contrabandistas se ocuparam do leme e Jamie, Lawrence e eu nos sentamos para conversarjunto à borda. Logo se fez o silêncio e permanecemos absortos em nossos própriospensamentos. Jamie bocejou várias vezes; por fim, ante minha insistência, consentiu emtombar-se no banco com a cabeça apoiada em meu colo. Por minha parte, estava muito tensapara dormir. Também Lawrence permanecia desperto, contemplando o céu com as mãoscruzadas por trás da cabeça.

—Esta noite há umidade no ar —comentou sinalizou a lua crescente em forma de foice—.Ves essa bruma que rodeia a lua? É possível que chova antes do amanhecer, ainda que não éhabitual nesta época. O tema era bastante aborrecedor para acalmar-me os nervos.

—É mesmo? —comentei— Tanto voce como Jamie sabem prever o clima observando océu. Eu só conheço o velho dito: «Céu vermelho ao anoitecer, o marinho sente prazer; pelamanhã encarnado, o marinho põe cuidado.» Mas não vi de que cor estava o céu ontem à noite.

—Bastante púrpura —aclarou Lawrence rindo— É surpreendente mas esses sinaiscostumam ser dignos de confiança. Claro que encerram um princípio científico: a refração daluz na umidade do ar.

—E daí sabes dos fenômenos estranhos? —perguntei— Coisas sobrenaturais onde as regrasda ciência não parecem ter aplicação.

—Por exemplo?Depois de pensar, utilizei os exemplos de Geillis.—Por exemplo, essas pessoas que têm estigmas sangrantes, as viagens astrais, as visões, as

manifestações sobrenaturais… Lawrence se acomodou ao meu lado no banco.—Bom, à ciência só lhe corresponde observar —disse— Procurar as causas onde possa, mas

recordar sempre que no mundo existem muitas coisas para as quais não se encontrarãorespostas. Não porque não existam, senão porque sabemos muito pouco.

—Isso não está na natureza humana —objetei— A gente sempre quer explicações.—Por isso os cientistas constroem hipóteses, mas é preciso não confundir a hipótese com

uma explicação provada. Em minha vida vi muitas coisas que se poderiam considerarpeculiares. Chuvas de peixes, por exemplo: muitos peixes da mesma espécie e do mesmotamanho caem subitamente do céu despejado sobre a terra seca. Não parece ter uma causaracional, mas por isso há que atribuir o fenômeno a uma intervenção sobrenatural?

—Voce viu pessoalmente algo assim? —perguntei interessada.Se pos a rir.— Fala a mente científica! O primeiro que pergunta um cientista é: «Como sabes? Quem o

viu? Posso vê-lo também?» Sim, eu vi; três vezes e numa ocasião eram peixes sem cabeça.—Estávam próximo do mar ou de algum lago?—Uma vez próximo da costa e outra próximo de um lago, mas a terceira chuva foi a uns

trinta quilômetros do lugar mais próximo onde tinha água; no entanto, os peixes eram de umaespécie que só se encontra em águas marinhas profundas. Há coisas que devem ser aceitas sempoder demonstrá-las. A fé é uma força tão poderosa como a ciência —concluiu com voz suave—, mas bem mais perigosa.

Ficamos contemplando em silêncio a mancha negra que dividia a noite. Era a ilha de La

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Española, que se aproximava inexoravelmente.—Onde vistes os peixes sem cabeça? —perguntei subitamente. Não me surpreendeu vê-lo

sinalziar com a cabeça para proa.—Ali. Vi muitas coisas estranhas nestas ilhas, mas nessa mais do que em nenhuma. Há

lugares assim.Calei perguntando-me que o nos esperava. Tomará que fosse realmente Ian quem tinha

acompanhado a Geillis a Abandawe. Levava vinte e quatro horas tratando de afastar uma idéiade minha mente.

—Os outros meninos escoceses, Lawrence… Ishmael nos disse que tinha visto doze, inclusoIan. Quando revisastes a plantação, encontrastes algum sinal deles?

Respirou profundamente, atrasando a resposta. Me dei conta de que procurava as palavrasadequadas para explicar o que um arrepio já me tinha revelado. A resposta não saiu dele, senãode Jamie.

—Nós encontramos —disse suavemente estreitando-me o joelho— Não perguntes mais,Sassenach, porque não vou dizer-te nada.

Compreendi. Tinha que ser Ian o que Geillis tinha levado consigo, pois Jamie não suportariaoutra possibilidade. Apoiei uma mão em sua cabeça.

—Bem aventurados os que não viram —sussurrei baixo —, mas creram.Ancoramos perto do amanhecer numa pequena baía sem nome, no norte de La Española.

Era uma praia estreita rodeada de alcantilados. Através de uma greta na rocha se via umaestreita senda de areia que conduzia ao interior da ilha. Jamie me levou nos braços até a costa ese voltou para Innes, que chapinava carregado com um pacote de comida.

—Obrigado —disse formalmente— É hora de separar-nos. Se a Virgem nos permitir nosreuniremos aqui dentro de quatro dias.

A cara enxuta de Innes se contraiu desiludida; depois pareceu resignar-se.—Me ocuparei da embarcação até que voltes.Jamie mexeu a cabeça sorrindo.—Não estarás só. Ficarão todos exceto minha esposa e o judeu.A resignação desapareceu, substituída pela surpresa.— Por que ficamos todos? Mas não nos precisarás, Mac Dubh? —Olhou nervoso os

alcantilados, cheios de enredadeiras em flor— Dá medo aventurar-se por aí sem amigos.—A melhor mostra de amizade que podes me dar é esperar aqui. Innes inclinou a cabeça

num gesto de aquiescencia.—Como quiser, Mac Dubh. Mas já sabes que estamos dispostos. Todos.Jamie afastou a vista.—Eu sei, Duncan. —Innes o abraçou torpemente com seu único braço— Se aproximar um

barco, deves pôr-vos a salvo. A Marinha Real deve de estar procurando esta pinaça. Duvidoque venham até aqui mas se algo o ameaçar, seja o que for, iça as velas e escapam de imediato.

—Deixando-te aqui? Não. Podes ordenar-me o que quiser, Mac Dubh, que o farei. Mas issonão.

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Jamie sacudiu a cabeça. O sol nascente arrancou chispas de seu cabelo e sua barba crescida.—Não nos farás nenhum favor, nem a minha esposa nem a mim, se te matarem, Duncan.

Obedece se vir um barco, vai embora.Depois lhe voltou as costas para despedir-se dos outros escoceses. Innes lançou um

profundo suspiro de reprovação mas não voltou a protestar.O clima da selva era caloroso e úmido. Avançávamos terra adentro quase sem conversar.

Não podíamos fazer nenhum plano antes de ver o que tinha em Abandawe. Ao meio diaconseguimos chegar. Ante nós se elevava uma ladeira empinada e rochosa cheio de mato epontiagudos áloes. E, no cume, vimos grandes pedras erguidas, megalitos que formavam umcírculo irregular.

—Ninguém disse que tinha um círculo de pedras —sussurrei. Sentia-me débil, e não só pelocalor e a umidade.

—Se sentes bem, senhora Fraser? —Lawrence me olhava alarmado.—Sim. —Mas a cara deve me denunciar, como sempre, pois Jamie me segurou pela cintura.—Por Deus, Sassenach, tem cuidado —murmurou — Não te aproximes aí.—Temos que averiguar se Geillis está aí com Ian —disse—. Vamos.Pus em movimento meus arredios pés. Jamie me seguiu murmurando algo em gaélico.

Suponho que era uma prece.—Colocaram-nas faz muito tempo —comentou Lawrence quando chegamos ao cume—

Não foram escravos, senão os aborígenes destas ilhas.O lugar estava deserto e tinha aspecto inofensivo. Parecia tão só um círculo irregular de

grandes pedras postas em ponta, imóveis sob o sol.Jamie me observava nervoso.—As ouve Claire? —perguntou.Lawrence pareceu sobressaltado mas não disse nada. Avancei com prudência para a pedra

mais próxima.—Não sei —disse— Não estamos num Festival do Sol nem do Fogo. Talvez não esteja

aberto. Não sei. Agarrada à mão de Jamie, adiantei-me um pouco para escutar. Parecia ouvirum leve zumbido no ar mas talvez fora só o dos insetos da selva. Com muita suavidade, apoieia mão na rocha.

Notei vagamente que Jamie me chamava. Minha mente lutava conscientemente em abrir efechar as válvulas do coração e em engulir ar e expulsá-lo. Um zumbido palpitante, muitograve para chamá-lo de som, enchia-me os ouvidos e me sacudia até a medula dos ossos. Emalgum lugar pequeno e silencioso, no centro daquele caos, estava Geillis Duncan com seusolhos sorridentes fincados nos meus.

—Claire!Estava no solo, com Jamie e Lawrence inclinados sobre mim. Tinha as bochechas molhadas

e um fio de água me corria pelo pescoço. Pisquei, movendo as extremidades para comprovar seainda as tinha. Jamie deixou o lenço com o que me molhava a cara e me ajudou a meincorporar.

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—Estás bem, Sassenach?—Sim — disse confusa — Está ali, Jamie!—Quem? A senhora Abernathy? —Lawrence disparou para cima as sobrancelhas e jogou

uma olhada para trás, esperando vê-la materializar-se.— Eu ouvi ela… Eu a vi… o que seja. —Começava a recuperar lentamente minhas

faculdades— Está aqui. Mas não no círculo. Perto.—Onde? —Jamie tinha a mão apoiada no punhal e olhava para um lado a outro.Sacudi a cabeça e fechei os olhos, tentando de má vontade recuperar a visão. Tive variada

sensações: escuridão, frescura úmida e o reflexo de uma tocha vermelha.—Creio que está numa gruta —disse surpresa— Há alguma perto, Lawrence?—Sim —confirmou observando-me com curiosidade— A entrada está a pouca distância

daqui.—Leva-nos. —Jamie já se tinha posto em pé e me ajudava a me levantar:—Jamie. — O Detive apoiando-lhe uma mão no braço.—Sim?—Jamie… ela também sabe que estou aqui. Isso o deteve. Eu o Vi engulindo a saliva e

apertando os dentes com um gesto afirmativo.— A Mhicheal bheannaichte, dion sinn bho dheamhainnean —disse suavemente enquanto

girava para a borde da colina. «Miguel bendito, defende-nos dos demônios.»A escuridão era absoluta. Levei as minhas mãos ao rosto e senti o atrito da palma no nariz,

mas sem vê-la. O passadiço era desigual, com pequenas partículas duras que rangiam sob ospés. Em alguns trechos os muros se estreitavam tanto que me perguntava como teria feitoGeillis para passar. Ainda nos lugares em que o passadiço era mais largo, onde as paredes seseparavam tanto que não chegava a tocá-las com as mãos estendidas, se as podia perceber. Eracomo estar num quarto escuro com outra pessoa que guarda silêncio mas cuja presença se podesentir ao alcance da mão.

Os dedos de Jamie me apertavam o ombro; o sentia por trás de mim como uma brisa cálidano fresco esvaziamento da gruta.

—Vamos bem? —perguntou quando me detive para recuperar o alento — Há passadiçoslaterais. Noto ao passar. Como sabes onde vamos?

—Porque ouço. Voce não?Falar e formar pensamentos coerentes requeria um esforço. O chamado era diferente: não

um som de colmeia como em Craigh na Dun, senão um rumor parecido à vibração do ar depoisdo tinar de um sino grande. Sentia-o ressoar nos ossos do braço e me produzia ecos nascostelas e na coluna vertebral.

Jamie me segurou o braço com força.—Não se afastes de mim! —disse— Não deixe que te pegue, Sassenach. Fica!O procurei ele às cegas e me apertou contra seu peito.—Jamie. Me segura, Jamie. —Nunca tinha tido tanto medo— Não me solte. Se me levar,

Jamie, não poderei voltar nunca mais. Cada vez é pior que a anterior. Me matará, Jamie!

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Me afastou suavemente para adiantar-se sem retirar a mão de mim.—Eu irei na frente —disse— Mete a mão sob meu cinto e não o soltes por nada.Avançamos lentamente na escuridão. Jamie não tinha permitido que Lawrence nos

acompanhasse. Esperava-nos na boca da caverna com ordens de voltar à praia se nãovoltássemos a tempo para ir ao encontro com Innes e os outros escoceses.

—Claire —disse com suavidade— Há algo que devo te dizer. Se tiver que escolher entre elae um de nós, serei eu. Voce sabe,não é verdade?

Efetivamente, eu sabia. Se Geillis estava ainda ali e um de nós devia morrer para detê-la,seria Jamie quem correria o risco. Morto ele, ainda estaria eu para seguí-la através das pedras,onde ele não podia ir.

— Eu sei —sussurrei por fim.— Me dá um beijo, Claire —sussurrou—. Lembras que para mim vales mais do que a

minha vida. Não tenho nada a perder.Beijei-o na mão e na boca. Depois me voltei para o túnel à esquerda.—Por aqui —disse.Dez passos além vi uma luz. Era só um vadio resplendor nas rochas mas bastava para

devolver-nos a vista. Soltei um suspiro de alívio e de medo e avancei para a luz e a suavevibração de sino. Então se fez mais potente, mas voltou a diminuir quando Jamie se deslizouadiante de mim, bloqueando-me a vista. Depois se agachou para franquear uma arcada depouca altura. Eu o segui. Chegamos a uma câmara de um tamanho considerável. As paredesmais afastadas da tocha retinham a fria negrura do pesado sonho da caverna. Mas a que estavaante nós tinha acordado. Nela cintilavam partículas minerais que refletiam as chamas de umatocha de pinheiro metida numa greta.

—Voce veio, Heim? —Geillis estava de joelhos, com a vista fixa num relumbrante jorro depó branco que caía de seu punho, desenhando uma linha no solo.

Ouvi uma exclamação de Jamie, entre alívio e terror: tinha visto Ian. O garoto estava nocentro do pentágono, tombado na margem, com as mãos atadas às costas e amordaçado comum lenço branco. Junto a ele tinha um machado de pedra negra e reluzente como a obsidiana,com o filo agudo e dentado. O cabo estava coberto por um vistoso desenho africano de bandose bicos.

—Não se aproxime mais, raposa —disse Geillis sentando-se sobre os calcanhares.Mostrou os dentes a Jamie com algo que não era um sorriso. Tinha uma pistola na mão e

outra, carregada e fixa, no cinto de couro que levava.Com os olhos fincados em Jamie, afundou a mão no saco que levava pendurado do cinto e

extraiu outro punhado de diamantes em pó. Vi gotas de suor em sua frente branca. Devia deestar percebendo o zumbido passando temporáriamente, tal como eu percebia. Estavadescomposta; o suor me corria pelo corpo sob a roupa. O desenho estava quase concluído. Semdeixar de nos apontar cuidadosamente com a pistola, foi deixando cair o pó brilhante até tercompletado o pentágono. As pedras cintilavam com chispas de cor, unidas por uma linha demercúrio.

—Bem, já está. —Lançou um suspiro de alívio jogando-se o cabelo para trás com uma mão.— A salvo. O pó de diamante impede a chegada do ruído —me explicou— Horrível, não? Deu

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umas palmadas em Ian, que jazia frente a ela com os olhos dilatados pelo medo.—Bom, bom, mo chridhe. Não te aflijas que logo terminará tudo.—Afasta tuas mãos dele, maldita bruxa! —Jamie deu um passo impulsivo para diante com a

mão no punhal, mas se deteve ao ver que Geillis levantava a pistola.— Me lembra o seu tio Dougal, a sionnach —disse com ironia — Pegas o que queres e que

o diabo te leve a quem estorvar um passo.Jamie olhou Ian, encolhido no solo, e depois a Geillis.— Pego o que é meu —corrigiu suavemente.—Mas agora não podes, não é? Um passo mais e te mato. Se te deixo viver é só porque

Claire parece ter carinho por voce. — Sua olhada se desviou para mim, que permanecia nasombra, por trás de Jamie — Uma vida por outra, doce Claire. Uma vez, em Craigh na Dun,tratou de me salvar. Eu te salvei do juízo por bruxaria, em Cranesmuir. Estamos em paz, não é?

Geillis pegou uma pequena garrafa, a abriu e verteu cuidadosamente o conteúdo sobre aroupa do moço. O cheiro a conhaque se elevou, forte e embriagante. Quando os vaporesalcoólicos chegaram até a tocha, a chama se elevou com mais potência. Ian deu um respingo,pateando e emitindo ruídos de protesto até que Geillis lhe deu um forte pontapé nas costelas.

— Quieto! —ordenou.— Não faças isso, Geillis —intervim sabendo que de nada serviria.— Não há mais remédio —replicou serena— Tenho que fazer. Lamento ter que me apoderar

da garota mas te deixarei o homem.— Que garota? —Jamie tinha os punhos apertados.— Brianna. Chama-se assim, não? —Jogou-se para atrás a densa cabeleira— A última da

descendencia de Lovat. — me sorriu — Que sorte que vieram me visitar! Caso contrário nãome teria inteirado. Achava que todos tinham morrido antes do século XX.

Me deu um arrepio. Senti que o mesmo estremecimento percorria nos músculos de Jamie.Deve ter refletido em seu rosto, pois Geillis gritou e deu um salto. Disparou em pleno ataquede Jamie. A cabeça ruiva foi para atrás e o corpo se contraiu com as mãos ainda alongadas parao pescoço da mulher. Depois caiu, lasso, cruzando a borda do pentágono. Ian lançou umgemido afogado. Senti o som que estourava em minha garganta. Não sei o que disse masGeillis se voltou para mim sobressaltada. O fogo iluminava um pouco mas nem a escuridãototal tivesse podido ocultar sua expressão ao compreender o que se aproximava. Tirou a outrapistola do cinto e apontou para mim. Vi com clareza o buraco redondo da arma… e não meimportou. O rugido do disparo ressoou em toda a gruta, desprendendo uma chuva de pó epedras, mas já me tinha apoderado do machado.

Ouvi um ruído por trás de mim, mas não olhei. Os reflexos do fogo ardiam nas pupilas deGeillis. Não senti medo, ira nem dúvida. Só o movimento em arco do machado. O impacto mepercorreu todo o braço. Soltei o machado, com os dedos dormentes, e fiquei muito quieta. Nemsequer me movi quando Geillis avançou para mim, com dificuldades. O sangue, à luz do fogo,não é vermelha senão negra. Deu um passo para diante e caiu com os músculos descontraídos,sem fazer tentativa alguma para salvar-se. O último que vi de sua cara foram os olhos:separados, formosos como pedras preciosas, marcados pelo conhecimento da morte.

Alguém estava falando, mas as palavras não faziam sentido. A greta aberta na rocha emitia

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um zumbido potente que me enchia os ouvidos. A tocha piscou, lançando uma labaredasubitamente amarela ante a corrente de ar. «O bater de asas do anjo negro», pensei. O som serepetiu por trás de mim. Ao voltar vi Jamie. Cambaleava-se sobre os joelhos. O sangue que lhechorreava do cabelo lhe tingia de vermelho e negro um lado do rosto; o outro estava branco;parecia a máscara de um arlequím. «Detém a hemorragia», indicou-me o instinto.

Procurei um lenço mas Jamie já se tinha arrastado até Ian para soltar as correias, salpicando-lhe a camisa com gotas de sangue. O moço se pôs em pé e alongou uma mão para ajudar o seutio.

Pouco depois a mão de Jamie se apoiava em meu braço. Levantei os olhos, aturdida, paraoferecer-lhe o lenço. Pegou-o para limpar-se um pouco a cara. Depois me pegou no braço,levando-me para a boca do túnel. Tropecei e estive a ponto de cair. Isso me devolveu aopresente.

— Vamos! —estava-me dizendo — Não ouves o vento? Aproxima-se uma tempestade.«Vento?», pensei. «Numa gruta?» Mas tinha razão; a corrente de ar não tinha sido

imaginária; a leve exalação que provinha da gruta se tinha convertido num vento que ressoavacomo um gemido no estreito corredor. Voltei-me para olhar mas Jamie me empurrou parafrente. Minha última visão da gruta foi uma imprecisa impressão de azeviche e rubis com umasilhueta branca no centro. Depois a corrente de ar chegou com um rugido e apagou a tocha.

—Cristo! — Era a voz de Ian, cheia de terror— Tio Jamie!—Aqui —disse Jamie assombrosamente sereno— Aqui, filho. Vem. Não tenhas medo. É só

a respiração da caverna.Quando ele disse pude sentir o alento frio da rocha em meu pescoço me arrepiava o cabelo

da nuca. A imagem da gruta como algo vivo, que respirava cega e malévola ao nosso redor,gelou-me o sangue nas veias. Ao que parece, esta idéia aterrorizava tanto a Ian como a mim,pois ouvi uma leve exclamação e senti sua mão tentando me agarrar. Peguei-lhe a mão eprocurei na escuridão com a outra até encontrar o tranqüilizador corpo de Jamie.

—Tenho Ian —disse— Por Deus vamos sair daqui!Como resposta, pegou-me a mão. Desandamos juntos no túnel serpenteante, tropeçando na

escuridão e pisando nos calcanhares. Durante todo esse tempo o vento não deixou de gemer asnossas costas. Não via nada: nem a camisa de Jamie adiante de mim nem o movimento deminhas próprias anáguas. Tentava afastar a recordação do que deixamos para trás, a morbosafantasia de que o vento trazia vozes susurrantes e secretas que não se deviam escutar.

— Eu ouço —disse Ian subitamente com a voz rompida pelo pânico— Ouço! Oh, Deus,meu Deus! É Geillis! Vem para cá!

Um grito se afogou em minha garganta. Sabia perfeitamente que não era ela, senão o vento eo medo de Ian, mas isso não mudou o arrebato de terror que me brotou desde a boca doestômago, fazendo que meus intestinos se convertessem em água. Eu também sabia que ela seaproximava, gritando a pleno pulmão. Então Jamie nos abraçou tampando-nos os ouvidoscontra o seu peito. Cheirava a fumaça de pinheiro, a suor e a conhaque. Estive a ponto dechorar de alívio.

— Silêncio! —disse com fúria— Não vou permitir que toque voces. Jamais! Vamos —continuou em voz mais baixa— É só o vento. Quando muda o clima na superfície, as grutasofegam por suas gretas. Não é a primeira vez que o ouço. Fora que se aproxima uma

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tempestade. Vamos!A tormenta foi breve. Quando chegamos à superfície, cambaleando, a chuva tinha cessado e

nos cegou a luz do sol. Lawrence estava próximo da entrada, protegido sob uma palmeira. Aonos ver se levantou de um salto e uma expressão de alívio amaciou as rugas de sua cara.

—Tudo bem? —perguntou.Jamie assentiu com um semisorriso.— Tudo bem —confirmou sinalizando a Ian— Posso te apresentar Ian Murray, meu

sobrinho? Ian, este é o doutor Stern; nos foi de grande ajuda em tua busca.— Estou muito agradecido, doutor —disse o menino inclinando a cabeça. Depois adicionou

com um sorriso trémulo, passando a manga pela cara suja— Tinha certeza que virias, tioJamie. Mas demoraste um pouco, não? — O sorriso se alargou e começou a tremer, piscandopara conter as lágrimas.

— É verdade, Ian. Desculpe. Vêem aqui, a bhalaich. —Jamie o estreitou num abraço dando-lhe palmadas nas costas, entre murmúrios em gaélico.

— Demorei um momento me dando conta de que Lawrence estava falando comigo.— Estas bem, senhora Fraser? —Sem aguardar resposta, segurou-me pelo braço.— Não estou certa. —Estava completamente exausta, como depois de um parto, mas sem a

mesma exaltação. Tudo me parecia irreal: Jamie, Ian e Lawrence eram como brinquedos que semoviam e falavam ao longe, emitindo sons que me custava entender.

— Creio que devemos sair daqui observou —Lawrence olhando a boca da gruta. Estava umpouco intranqüilo. Não perguntou pela senhora Abernathy.

—Tens razão.Ainda que tinha fresca na mente a imagem da caverna, parecia-me tão irreal como a verde

selva e as pedras que nos rodeavam. Girei e comecei a andar sem esperar os homens. Para ocrepúsculo nos detivemos num pequeno clarão, próximo de um ribeiro e instalamos nossoprimitivo acampamento. Já tinha descoberto que Lawrence era uma presença utilíssima nessasexcursões. Não só tinha tanta habilidade como Jamie para procurar refúgio ou construí-lo:ainda mais, por estar familiarizado com a flora e a fauna da zona, era capaz de mergulhar naselva e voltar rápido em meia hora com punhados de raízes, fungos e frutas comestíveisaumentando as espartanas rações de nossas mochilas.

Enquanto Lawrence procurava alimentos, Ian saiu em procura de lenha. Eu me sentei comJamie para curar-lhe a ferida da cabeça. Depois de lavar o sangue, descobri com surpresa que abala tinha perfurado a pele acima da linha onde começa a nascer o cabelo mas que não tinhasinais de saída, como se tivesse desaparecido dentro da cabeça. Remexi no couro cabelludo atéque um grito do paciente me anunciou que tinha encontrado a bala. Tinha um vulto na partetraseira da cabeça. A bala tinha viajado sob a pele, seguindo a curvatura do crânio, até deter-seperto do occipício.

— Santo Céu! —exclamei— Tinhas razão ao dizer que tua cabeça era de osso maciço. Essamulher te disparou a queima roupa e esse maldito projétil não pôde atravessar-te o crânio.

Jamie emitiu um bufido como queixa.— Tenho a cabeça dura, mas isso não teria bastado se a senhora Abernathy tivesse usado

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uma carga completa de pólvora.— Te dói muito?— A ferida não, mas tenho uma horrível dor de cabeça.— Não me estranha. Agüenta um pouco que vou extrair a bala.Como ignorávamos as condições em que encontraríamos a Ian, tinha levado a menor de

minhas caixas de primeiros socorros que, felizmente, continha um frasco de álcool e umpequeno bisturí. Rasurei uma parte do couro cabeludo e o molhei com álcool. Sustentando apele tensa entre os dedos da mão esquerda, fiz um corte rápido e pressionei o inchaço com opolegar direito. A bala caiu em minha mão esquerda como uma uva. Pus uma gaze na pequenaferida e a sujeitei com uma venda ao redor da cabeça. Então, sem poder resistí-lo mais me pusa chorar. Ainda que era consciente destas sensações, não podia evitar ao me sentir, ainda, forade meu corpo.

— Sassenach, estás bem? —Jamie me olhava com preocupação sob a vendaje de pirata quelhe tinha feito.

— Sim - respondi babuciando aos soluços.- Não sei porque choro. Não sei!— Vem aqui. - Me pegou a mão para me sentar em seus joelhos e me estreitou entre seus

braços. - Tudo está bem, Mo Duinne, tudo está bem.De repente me encontrei de novo dentro de meu corpo, quente e estremecida. Pouco a pouco

deixei de soluçar e me recostei em seu peito para sentir a paz e o consolo de sua presença. Nãopercebi o regresso de Lawrence e Ian até que ouvi que o garoto dizia, com mais curiosidadeque alarme:

— Corre sangue pelo pescoço, tio Jamie.— Terás que me pôr outra vendaje, Ian — disse Jamie sem se preocupar— Eu estou

ocupado abraçando a sua tia.Pouco depois fiquei dormida, envolvida em seus braços.Acordei encolhida num cobertor, junto a Jamie. Ele estava recostado numa árvore com uma

mão apoiada em meu ombro. Ao notar que eu acordava me apertou um pouco. Estava escuro.A pouca distância se ouvia um ronquido rítmico que devia de ser Lawrence, pois a voz de Ianse ouvia do outro lado.

— Não, no barco não passei tão mau — dizia baixinho— Tinha a companhia dos outrosmoços. Nos davam de comer decentemente e nos deixava caminhar pela coberta, de dois emdois. Estávamos assustados, pois não sabíamos onde nos levavam, mas não nos maltrataram.

O Bruxa tinha remontado o rio Yallahs para entregar sua carga humana diretamente emRose Hall. Ali, os desconcertados meninos receberam as cálidas boas vindas da senhoraAbernathy, que imediatamente os meteu numa nova prisão.

O porão da fazenda estava bem preparado, com camas e bacias. Era bastante cômodo apesarde ter que suportar o ruído que se fazia acima durante as horas do dia. Nenhum dos moçostinha idéia do por que estavam ali. Fizeram muitas deduções, a cada uma mais improvável doque a anterior.

— De vez em quando, um negro gigantesco descia com a senhora Abernathy. Sempre lheimplorávamos que nos dissesse o que estávamos fazendo ali e por que não nos deixava sair,

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mas ela se limitava a sorrir, dava-nos umas palmadas e nos dizia que já sairíamos em seumomento. Depois escolhia um moço; o gigante o pegava num braço e o levava. —A voz de Iansoava afligida.

— Voltavam esses moços? —perguntou Jamie.— Não, geralmente não. Isso nos assustava muitíssimo. Decorrido umas oito semanas

chegou o momento de Ian. Já tinham desaparecido três dos garotos quando os olhos verdes dasenhora Abernathy se posaram nele. Ian não estava disposto a cooperar.

— Chutei o negro e até lhe mordi a mão — disse melancólico—, mas não serviu de nada.Limitou-se a dar um golpe em minha cabeça com tanta força que me deixou um apito nosouvidos, e me pegou nos braços como se fosse uma criança.

Tinhamo levado à cozinha, onde o banharam e o vestiram com uma camisa limpa antes delevá-lo à parte principal da casa.

— Era de noite e todas as janelas estavam iluminadas. Parecia-se muito a Lallybroch quandodescia das colinas, ao escurecer, onde mamãe acendendia seu lamento. Isso me partiu ocoração.

Mas não teve muito tempo para nostalgias. Hércules (ou Atlas) levou-o ao andar superior,onde estava o dormitório da dona. A senhora Abernathy o esperava vestida com uma espéciede túnica com estranhas figuras bordadas. Mostrou-se cordial e lhe ofereceu um pouco debeber. Tinha um cheiro estranho, mas não tinha mau sabor. Como Ian não podia decidir aorespeito, bebeu.

No quarto tinha duas cômodas cadeiras, com uma mesa baixa em meio e uma grande camaao lado com dossel digno de um leito real. Ocuparam os cadeirões e ela lhe fez váriasperguntas.

—Que tipo de perguntas? —perguntou Jamie ao notar que vacilava.—Bom, sobre meu lar e minha família. Perguntou os nomes de todos os meus irmãos e

meus tios. — Dei um respingo: por isso Geillis não tinha se surpreendido ao ve-los!— Todotipo de coisas, tio. Depois me… perguntou se alguma vez… se alguma vez me tinha deitadocom uma garota, como se me perguntasse o que tinha comido pela manhã! Não queriaresponder, mas não pude evitá-lo. Sentia muito calor, como se tivesse febre, e me custava memover. Respondi a todas suas perguntas enquanto ela continuava sentada, simpática,observando-me com seus grandes olhos verdes…

—Assim lhe disseste a verdade.—Sim, sim. — Ian falava com lentidão, revivendo a cena— Disse-lhe que sim e lhe falei…

de Edimburgo, da tipografia, do bordel… de Mary, de tudo.Então Geillis pareceu desagradar-se; lhe endureceu a expressão e entornou os olhos. Ian teve

muito medo e queria fugir, mas o impediam o peso de seus membros e a presença daquelegigante imóvel ante a porta. —Levantou-se para passear a grandes passos, dizendo que se eunão era virgem estava arruinado e o que tinha que fazer com um menino como eu, deitando-mea perder com as mulheres. De repente se deteve para beber um copo de vinho. Então pareceuserenar, se pos a rir olhando-me com atenção e disse que talvez nem tudo estava perdido. Senão lhe servia para o que tinha pensado, talvez lhe servisse para outras coisas.

A voz de Ian soava um pouco sufocada, como se lhe apertasse o pescoço da camisa. Como

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Jamie emitisse um som interrogante, ele tomou alento, decidido a continuar:— Me… ofereceu-me a mão para levantar-me, tirou-me a camisa e… Te juro que é verdade,

tio! Ajoelhou-se no solo e meteu meu penis na boca. Ainda que a mão de Jamie se tensionousobre meu ombro, sua voz não revelou mais do que um suave interesse.

— Acredito em voce, Ian. E fez amor?— Amor? — O garoto parecia aturdido— Não… isto é, não sei. Se… ela… bom, fez que

me empinasse, depois me levou à cama e seguiu fazendo coisas. Mas não foi como com Mary,não!

—Não, claro que não — comentou o tio.— Deus, que estranho! —No tom de Ian se percebia um arrepio — No meio do

acontecimento, levantei a cabeça e ali estava o negro, em pé junto à cama, com uma vela. Elalhe indicou que a levantasse um pouco mais para ver melhor. Fez uma pausa para beber água edeixou escapar um longo suspiro.

— Tio, alguma vez… voce se deitou com uma mulher sem querer fazê-lo?Jamie vacilou um segundo antes de responder.— Sim, Ian.— Ah. —Ouvi que o garoto coçava a cabeça— Sabes o que se sente, tio? Podes fazê-lo, não

queres e te parece detestável, mas… mas te agrada? Jamie deixou escapar um riso breve e seco.— Bom, Ian, o que sucede é que essa parte do corpo não tem consciência, mas voce sim. —

Soltou-me o ombro para olhar ao seu sobrinho— Não te aflijas. Não podias evitá-lo e o maisprovável é que isso te tenha salvado a vida. Os outros garotos, os que não voltaram ao porão…,sabes se eram virgens?

— Tínhamos muito tempo para conversar e acabamos por nos conhecer bastante. Uns simeram e outros achavam ter estado com uma garota, mas pelo que me diziam pareceu que nãoera verdade. Fez uma pausa, obrigado a fazer uma dolorosa pergunta.

— Sabes o que aconteceu com eles, tio? Dos moços que estavam comigo?— Não, Ian —respondeu Jamie sem alterar-se— Não tenho nem idéia. —Voltou a reclinar-

se na árvore com um profundo suspiro— Poderás dormir, pequeno? Te fará falta. Amanhã nosespera uma boa caminhada até a costa.

—Oh, claro que posso dormir, tio —lhe assegurou Ian— Mas não queres que monte guarda?É voce que deve descansar com esse disparo na cabeça. —Teve um silêncio. Depoisacrescentou com timidez— Não te disse obrigado, tio Jamie.

— Não tens o por que, Ian —disse depois de soltar uma gargalhada— Deita e dorme. Eu teacordarei se fizer falta.

Ian se encolheu e em pouco momento dormia profundamente.— Queres dormir também, Jamie? — Incorporei-me ao seu lado— Já que estou desperta

posso montar guarda. Tinha fechado os olhos. A luz da fogueira, já quase apagada, dançava-lhenas pálpebras. Sorriu procurando minha mão às apalpadelas.

— Não, mas podes vigiar um pouco. Se mantenho os olhos fechados me dói menos acabeça.

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Passamos um momento em silêncio pegados na mão. Ocasionalmente se ouvia algum ruídoou um grito longínquo na escuridão, mas nada parecia nos ameaçar.

— Voltaremos a Jamaica até Fergus e Marsali? —perguntei ao fim.— Não. Creio que iremos para Eleuthera. É colônia holandesa, terra neutra. Enviaremos

Innes no barco de John para que lhe diga a Fergus que se reúna conosco. Preferiria não voltar apisar a Jamaica.

— Claro —calei um momento.— Como vai se virar o senhor Willoughby? Digo, Yi Tien Cho. Se ficar nas montanhas, não

creio que o encontrem, mas…—Oh, se arrumará perfeitamente —interrompeu Jamie— Afinal de contas, tem esse

pelicano para que pesque por ele. E se é astuto irá para o sul, à Martinica. Ali há uma pequenacolônia de mercadores chineses. Falei-lhe dela e me ofereci a levá-lo uma vez que tivéssemosresolvido nossos assuntos na Jamaica.

— Já não estás mais aborrecido com ele? —disse com curiosidade.Encolheu um ombro, acomodando-se melhor.— Oh, não. Não creio que pensasse no que fazia, nem como podia terminar tudo isto. Além

disso, seria absurdo odiar a um homem por não te dar o que nunca teve. Abriu os olhos comum leve sorriso. Compreendi que estava pensando em John Grey. Depois olhou ao seusobrinho.

— Graças a Deus —disse—, este voltará com sua mãe no primeiro barco que zarpar paraEscócia.

— Não sei —disse sorrindo— Depois de tantas aventuras, talvez não queira regressar aLallybroch.

— Pouco me importa o que queira —afirmou Jamie— Irá, ainda que seja preciso embalá-lonuma gaveta. Procuras algo, Sassenach?

— Já o encontrei —disse tirando o estojo de seringas de meu bolso. Abri para verificar seuconteúdo à escassa luz da fogueira— Oh, bom, fica o suficiente para uma dose. Jamie seincorporou um pouco.

— Não tenho febre —advertiu desconfiado— E se estás pensando me fincar essa porcariana cabeça, já podes ir mudando de idéia, Sassenach.

— A voce não — esclareci— A Ian. Ou queres devolvê-lo a Jenny lotado de sífilis e outrasdoenças sexuais?

Jamie levantou as sobrancelhas. A dor ocasionada pelo gesto lhe arrancou uma careta.— Ai! Sífilis? Voce acha?— Não me surpreenderia. Um dos sintomas dessa doença, em sua etapa avançada, é uma

profunda demência. No caso de Geillis não é fácil determiná-lo. Em qualquer caso, mais valeprevenir do que curar, não?

Jamie soltou um riso.— Bom, assim o jovem Ian aprenderá qual é o preço da diversão. Será melhor que eu

distraia a Stern enquanto tu levas o moço depois dos arbustos. Lawrence é um bom homem,

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mas muito curioso. Não quero que te levem A Kingston para te queimar como bruxa.Suponho que seria incomodo para o governador — apontei secamente—, ainda que

pessoalmente o desfrutasse. — Não creio que desfrutasse, Sassenach — disse tão seco como eu— Tens meu casaco a mão?

— Sim. —Recolhi para dar — Tens frio?— Não. —Recostou-se para atrás com a jaqueta cruzada nos joelhos— Mas queria sentir as

crianças próximos de mim enquanto durmo. —Cruzando suavemente as mãos sobre o casaco eos retratos, voltou a fechar os olhos — Boa noite, Sassenach.

CAPÍTULO 63

DAS PROFUNDIDADES

Pela manhã, recuperados pelo descanso e por um café da manhã composto de bananas ebolos, continuamos a caminhar para a costa. Ao pouco momento, Ian inclusive deixou dereclamar. Mas ao descer pelo desfiladeiro que conduzia à praia nos encontramos com umsurpreendente espetáculo.

— Meu Deus, são eles! —balbuciou Ian— Os piratas! Deu meia volta para fugir de novopara as colinas mas Jamie o segurou pelo braço. —Não são os piratas —disse— São escravos.— Olhe! Pouco hábeis para pilotar grandes navios no mar, os escravos fugitivos tinham feitoencalhar o barco na costa de La Española. O Bruxa jazia inclinado na baixada, com a quilhaafundada no lodo arenoso. Um grupo de negros corria dando gritos pela praia, outrosprocuravam refúgio na selva e uns poucos ajudavam o resto a descer do barco.

Uma rápida olhada ao mar nos mostrou a causa da agitação. No horizonte tinha uma manchabranca que se ia fazendo cada vez maior.

— Uma canhoneira —disse Lawrence com interesse.Jamie murmurou, para horror de seu sobrinho, algo em gaélico.—Vamos sair daqui — ordenou —secamente, empurrando Ian desfiladeiro acima.— Um momento! —Lawrence protegeu os olhos com a mão— Vem outro barco, menor.Era a pinaça privada do governador de Jamaica, que se inclinava, com as velas inchadas

pelo vento, formando um perigoso ângulo para rodear a curva da baía. Jamie dedicou umafração de segundo pensando nas possibilidades e me pegou pela mão.

—Vamos! Quando chegamos à orla, o pequeno bote da pinaça se acercava pela baixada,com Raeburn e MacLeod aos remos. Ofegando, com as pernas débeis pela correria, corri paraas ondas até que Jamie acabou levantando-me apreensivo; seguiam-nos Lawrence e Ianbufando como baleias.

Ao ver a Gordon na proa da pinaça, que nos esperava vários metros além, apontando seumosquete para a costa, compreendi que nos seguiam. O arma lançou uma baforada de fumaça eMeldrum, que estava depois dele, alçou o seu para disparar. Os dois se alternaram, cobrindonossa caminhada, até que mãos amigas nos içaram desde a borda e nos subiram à pinaça.

—Vira! —ladrou Innes da margem.

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A espicha girou para o lado oposto e as velas se incharam de imediato. Jamie caiu ao meulado no banco, ofegando.

—Santo Deus, Duncan, não te disse que te mantivesses longe?—Poupa saliva, Mac Dubh —replicou Innes sorrindo sob o bigode. Gritou algo a MacLeod

e este manipulou as cordagens.A pinaça inclinou mudando de curso e pôs proa para mar aberto… apontando diretamente

para a canhoneira, que já estava perto o bastante para que pudéssemos distinguir o marsopa degordos lábios sob o bauprés. MacLeod bradou algo em gaélico, com uma ênfase que nãodeixou dúvidas sobre seu significado. Com um triunfal grito montanhês emitido por Innes,passamos como uma flecha diante da proa do Marsopa, tão perto que chegamos a ver as carasassombradas da tripulação no balaústre. Uma vez fora da enseada vi que a canhoneiracontinuava para a terra.

—Vão atrás do barco dos escravos —explicou Meldrum— Estávamos ali quando o viram, acinco quilômetros da ilha. Pensamos que enquanto eles estavam ocupados perseguindo-o, nóspoderíamos aproveitar para pegar voces.

—Bem pensado —disse Jamie com um sorriso— Espero que o Marsopa continue ocupadoum bom momento.

Um grito de advertência de Raeburn nos indicou que não era assim. O brilho do bronze dedois canhões apareceu na popa. Estavam-nos apontando. A sensação de receber um disparo aqueima roupa não foi muito agradavel. Mas nós seguíamos afastando-nos a toda velocidade.Innes moveu o leme com violência justo no momento em que se ouviu o tronar dos canhões.Ato seguido, um jorro de água se levantava a vinte metros a bombordo, muito perto para nossogosto: um projétil de vinte e quatro quilos podia atravessar o fundo da pinaça sem nenhumadificuldade, fazendo que nos afundássemos como uma pedra. Innes, entre maldições, curvava-se sobre o leme. Nossa correria se tornou mais errática ainda e os três projéteis seguintescaíram bastante longe. Então ouvimos um potente canhonaço e o flanco do Bruxa voou feitolascas: o Marsopa tinha apontado os canhões de proa para o barco zarpado.

Uma chuva de metralha varreu a praia em direção a um grupo de fugitivos. Corpos inteiros etroncos voaram pelos ares e caíram na areia como palitos negros, tingindo de vermelho.

—Santa María, Mãe de Deus. —Ian se benzeu horrorizado.Outros dois disparos abriram um grande buraco no flanco do Bruxa. Varios caíram na areia

e outros dois fizeram alvo entre as pessoas que fugiam. Então rodeamos o promontório quepunha fim à ensenada e a praia e seu açougue ficaram ocultas a nossa vista.

—Roga por nós, pecadores, agora e na hora de nossa morte —concluiu Ian num sussurro.Jamie indicou a Innes que se dirigisse a Eleuthera e este conferiu com MacLeod o rumo que

devíamos seguir. Nós estávamos muito horrorizados para conversar. Fazia bom tempo e umaforte brisa nos impulsionava. Ao cair o sol, La Española já tinha desaparecido no horizonte e aGrande Turca se elevava à esquerda.

Depois de comer minha pequena porção de bolo e água, me encostei no fundo do bote, entreIan e Jamie. Innes, bocejando, acomodou-se na proa enquanto MacLeod e Meldrum sealternavam no leme. Pela manhã, um grito fez que me colocasse sobre um cotovelo, sonolentae dolorida pela noite passada sobre aquelas tabuas úmidas. Jamie estava em pé, com o cabeloagitado pela brisa.

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— Que houve? —perguntei.—Não posso acreditar —disse olhando para popa— Outra vez essa maldita canhoneira! Era

verdade; para proa se viam umas diminutas velas brancas.— Estás seguro? —inquiri preocupada— Como sabes está tão longe?— Eu não sei —reconheceu Jamie—, mas Innes e MacLeod dizem que é esse condenado

barco inglês. Já liquidaram aos pobres negros e agora vêm atrás de nós. —Encolheu-se deombros— Não há muito que fazer; tomará que possamos manter a distância. Diz Innes que, sechegarmos à Ilha do Gato ao escurecer, poderemos nos salvar.

Durante todo o dia nos mantivemos fora do alcance dos canhões, mas Innes parecia cada vezmais preocupado. Entre a Ilha do Gato e Eleuthera, o mar era pouco profundo e estavasemeado de recifes coralinos. Um navio de guerra jamais poderia seguir-nos por aquelelabirinto… mas dificilmente poderíamos navegar à velocidade suficiente para evitar que oMarsopa nos afundasse com seus canhões. Uma vez ali constituiríamos um alvo fácil. Por fim,de má vontade, decidimos pôr proa ao leste, a mar aberto; não podíamos nos arriscar a perdervelocidade e tinha uma pequena possibilidade de iludir à canhoneira durante a noite. Ao chegaro dia, todo rasto de terra tinha desaparecido. O Marsopa, por desgraça, não. Até então não tinhaencurtado a distância, mas ao levantar-se o vento do amanhecer içou mais velas e começou anos alcançar. Nós já íamos a toda vela e não tínhamos onde ocultar-nos; só podíamos seguiradiante… e esperar.

Durante as longas horas da manhã, o Marsopa se foi fazendo cada vez maior. O céucomeçava a se carregar e se tinha levantado um forte vento que ajudava à canhoneira, com seuenorme velame, bem mais do que a nós. Para as dez já estava bastante próximo para arriscarum disparo. Caiu longe mas conseguiu assustar-nos. Innes olhou para apreciar a distância e,sacudindo a cabeça, concentrou-se no leme. Nada ganharíamos navegando em zig-zag;tinhamos que continuar em linha reta tanto tempo como pudéssemos, reservando as tentativasde esquivar-lhes para quando não nos ficasse outra coisa.

Às onze tínhamos o Marsopa a quatrocentos metros. Cada dez minutos soava o monótonotronar de seus canhões de proa provando pontaria. ÀS onze e meia tinha começado a chover eo mar era agitado. Uma rajada nos atingiu de lado, fazendo-nos inclinar até pôr o balaústre debombordo a trinta centímetros da água. Enquanto nos desenredávamos na coberta, Innes eMacleod endereçaram habilmente a pinaça. Dei uma olhada para trás (coisa que fazia cadapoucos minutos) e vi correr os tripulantes do Marsopa, arriando as velas.

— Isso sim que é sorte! —gritou-me MacGregor ao ouvido— Assim se atrasarão.Ao meio dia, o céu tinha um subito tom purpúreo e o vento se tinha convertido num gemido

espectral. A canhoneira seguia arriando velas mas ainda assim se lhe desprendeu uma, que seafastou esvoaçando como um albatros. Fazia tempo que não nos disparava. Era impossívelapontar a um alvo tão pequeno no meio daquele mar agitado. Eu me segurava à borda com umamão e à mão de Ian com a outra. Jamie, encurvado por trás de nós, rodeava-nos com os braçospara nos proteger. A chuva caía de lado com tanta força que nos fazia dano. As ondas atingiamuma altura de doze metros e a pinaça se elevava ligeiramente, alçandonos a alturas vertiginosaspara descer depois bruscamente. Jamie estava pálido à luz da tormenta, com o cabelo colado aocrânio pelo água.

Estava escurecendo quando sucedeu. Tinha um fantasmagórico resplendor verde nohorizonte, sobre o que se recortava a figura esquelética do Marsopa. Atingidos por outra rajada

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lateral, demos um tombo no alto de uma imensa onda. Enquanto nos levantávamos de outrodoloroso revolto, Jamie me pegou no braço, sinalizando para atrás. O mastro maior do Marsopaestava torto e continuou inclinando-se até que a parte superior se rompeu e caiu ao mararrastando a cordagem e as vergas. Tudo junto atuou como se fosse uma âncora improvisada,fazendo que a canhoneira girasse pesadamente. Naquele momento, uma onda caiuviolentamente sobre ela pegando-a no costado. O Marsopa inclinou e deu uma virada completa.A onda seguinte caiu sobre a popa rompendo os mastros como se fossem pequenos ramos.

Bastaram mais três ondas para afundá-lo; não teve tempo para que a indefesa tripulaçãoescapasse mas sim para que nós compartilhássemos seu terror. Jamie estava rígido como o aço.Olhávamos paralisados pelo espanto. Só Innes se mantinha teimosamente aferrado ao leme,enfrentando às ondas uma a uma. Outra onda se levantou junto ao balaústre; suspendidos nelaapareceram os restos do naufrágio, com os homens da tripulação formando um grotesco emacabro ballet. Vi o corpo inerte de Thomas Leonard a uns três metros de distância, com aboca aberta pela surpresa e o longo cabelo loiro em torno do pescoço.

Então nos sacudiu uma onda enorme que me arrastou da coberta. De imediato me videvorada pelo caos; surda, cega e incapaz de respirar, ia dando tombos com os braços e aspernas a graça da força da água. Tudo estava escuro; só tinha intensas e confusas sensações:pressão, ruído, frio. Não sentia os puxões da corda que me tinham atado à cintura. De repentealgo quente me percorreu as pernas: «urina», pensei sem saber se era minha ou de outro corpo.Golpeei a cabeça com algo; o rugido foi horrível. De repente me encontrei de novo na cobertada pinaça, tossindo até quase cuspir os pulmões. Incorporei-me pouco a pouco, com a corda tãoapertada à cintura que podia ter-me fraturado as costelas. Atirei debilmente tratando deafrouxá-la para respirar. Então Jamie me rodeou com o braço, procurando à sua faca.

— Estás bem? -gritou tratando de se impor ao uivo do vento.— Não! —sussurrei sacudindo a cabeça e tocando-me a cintura. Jamie cortou a corda; sua

cabeça empapada tinha adquirido uma cor mogna. Por fim pude respirar uma baforada de ar,ignorando a apunhalada nas costas e a ardência da carne esfolada na cintura. O barco sebamboleava selvagemente, com a coberta convertida num escorregador. Jamie me arrastavagateando para o mastro. A onda me tinha empapado as roupas, colando-me ao corpo, e o ventoera tão forte que as fazia revoltear até minha cara como asas de ganso. O braço de Jamie mesegurava pelo torso como uma cinta. Me segurei a ele. Tratava de impulsionar-me com os pés eajudar-lhe a avançar quando umas mãos nos arrastaram o último par de metros para o relativoamparo do mastro.

Falar era impossível… e desnecessário. Raeburn, Ian, Meldrum e Lawrence se tinhamatados ao mastro. Por mau que fossem as coisas na coberta, ninguém queria descer à escuridãoda bodega sem saber o que sucedia acima. Sentei-me com as pernas separadas e o mastro àscostas. O céu tinha adquirido um cinza plúmbeo por um lado e um verde luminoso e intensopelo outro; os relâmpagos caíam a esmo sobre a superfície do oceano. O vento era tão forte queaté os trovões chegavam apagados, como canhões disparados ao longe.

De repente, um raio caiu junto ao barco, tão próximo que vimos como a água começava aferver. Não podia ouvir o que Jamie me gritava, só pude sacudir a cabeça emudecida pelohorror. O cabelo, como as anáguas, me secava ao vento e dançava ao redor da cabeça, atirandodas raízes e rangendo pela eletricidade estática. Os marinheiros que me rodeavam se moveramsubitamente. Quando levantei os olhos vi que as vergas e o cordagem estavam banhados pelafosforescencia azul do fogo de San Telmo. Uma bola de fogo caiu a coberta e começou a rodar

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para nós até que Jamie lhe deu um pontapé que a fez saltar pela borda, deixando depois de sium cheiro a queimado. Jamie tinha os cabelos arrepiados, cobertos de fogo, como se fosse umdemônio; ao tocar-se com os dedos, se recobriu um feixe de luz azul. Quando me pegou a mão,a ambos nos sacudiu uma descarga elétrica, mas não me soltou.

Não sei quanto tempo durou aquilo: horas, dias. O vento nos secava a boca, já pastosa pelasede. O céu passou de cinza a negro, mas não tinha modo de saber se era de noite ou se iachover. Quando chegou a chuva, recebemos-a agradecidos. Melhor ainda: não foi chuva, senãopedrisco; não me importou que me golpeassem o crânio com pedras: reuni aqueles granizoscom ambas mãos e enguli antes de derreter. Me deu um fresco alívio para minha gargantatorturada. Meldrum e MacLeod, gateando pela coberta, recolheram o granizo em cântaros,caçarolas e qualquer objeto capaz de conter água. Às vezes dormia com a cabeça apoiada noombro de Jamie; ao acordar, o vento seguia uivando. Insensível ao medo, limitava-me aesperar. Viver ou morrer não era importante se aquele ruído horrível cessasse de uma vez.

Por fim o vento atenuou um pouco. A mar seguia muito agitado e a pequena embarcação seagitava como uma casca de noz, mas o ruído tinha diminuído. Pude ouvir a MacGregor pedir aIan que lhe passasse uma xícara de água. Os homens tinham a cara esfolada e os lábiospartidos, mas sorriam.

— Já passou —disse a voz de Jamie, grave e rouca, em meu ouvido— A tormenta passou.Era verdade. Tinha gretas no céu plúmbeo e alguns reflexos azuis. Supus que era pela manhã,algo depois da aurora, mas não tinha modo de assegurá-lo. Ainda que o furacão tinha cessado,o vento ainda era forte e a corrente nos levava a grande velocidade. Meldrum se fez cargo doleme; ao inclinar-se para conferir a bússola deu um grito de surpresa. O fogo de San Telmo nãotinha prejudicado ninguém, mas tinha convertido a bússola numa massa de metal fundido; noentanto, o suporte de madeira seguia intacto.

— Assombroso! —comentou Lawrence tocando-a com ar reverente.— Sim, mas é um grande inconveniente — completou Innes secamente.Deu uma olhada para os restos das nuvens.— Sabes se orientar pelas estrelas, senhor Stern? Depois de muito analisar o sol nascente e

as poucas estrelas matutinas, determinou que íamos rumo ao nordeste.— Devemos virar para o oeste —disse Stern inclinado com Jamie e Innes sobre os toscos

mapas— Ainda que não sabemos onde estamos, a terra estará ao oeste.— Assim será. Sabe Deus quanto tempo levaremos navegando em mar aberto. O casco

segue inteiro mas isso é tudo o que posso assegurar. Quanto ao mastro e as velas… bom, talvezresistam um tempo. —Parecia ter grandes dúvidas— Quem sabe onde terminaremos.

Jamie lhe dirigiu um amplo sorriso, limpando o sangue do lábio machucado.— Desde que encontremos terra, Duncan, não sou muito exigente.Innes levantou uma sobrancelha com um leve sorriso.— Sim? E eu que pensei voce ter se decidido a viver como marinheiro, Mac Dubh! Não

vomitaste uma só vez nos dois últimos dias!—Porque durante esse tempo não comi nada —observou Jamie irônico — Quero chegar a

alguma ilha, pouco me importa que seja inglesa, francesa, espanhola ou holandesa…, masagradeceria que fosse um lugar onde tivesse comida Duncan.

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Innes passou uma mão pela boca e enguliu saliva com dificuldade. A todos nos fez dar águaa boca.

— Farei o que posso — prometeu.— Terra! Terra à vista!Cinco dias depois chegou, por fim, o anúncio, com uma voz tão enronquecida pelo vento e a

sede que parecia um grasnido, mas cheio de júbilo. Subi correndo, escorregando nos degraus.Todos estavam assomados ao balaústre observando a forma negra que se curvava no horizonte.Estava longe, mas indiscutivelmente era terra sólida. Innes ordenou ao timoneiro que virassenum ponto mais para o vento.

Vi uma fileira de grandes aves que voavam em majestosa procissão, se encostando numacosta longínqua. Eram pelicanos que pescavam na baixada, com o sol cintilando nas asas.Peguei Jamie na manga sinalizando.

— Olha… — mas não pude dizer mais. Teve um forte rangido e o mundo estourou em fogoe negrura. Quando reagi estava na água, aturdida e meio afogada. Tinha algo preso nas pernasque me empurrava para baixo.

Esperneei enlouquecida, tratando de liberar as pernas. Algo passou boiando junto a minhacabeça e me lancei nele. Madeira, bendita madeira, algo para me agarrar no meio das ondas.Uma forma escura passou por embaixo da água e a dois metros de mim emergiu uma cabeçavermelha.

— Se segura! —exclamou Jamie. Chegou até mim em duas braçadas e mergulhou sob opedaço de madeira que me sustentava. Senti um puxão na perna e uma dor aguda; depois atensão cessou. A cabeça de Jamie voltou a emergir junto ao tronco. Me segurou os pulsos eficou ali, respirando grandes baforadas de ar enquanto as ondas nos arrastavam. O barco já nãoestava à vista; teria afundado? Uma onda rompeu sobre minha cabeça e Jamie desapareceu.Sacudi a cabeça, piscando e ali estava outra vez, sorrindo-me com esforço enquanto seus dedosme apertavam os pulsos com mais força.

— Se Segura! —grasnou outra vez. Agarrei-me à madeira estilhaçada com todas minhasforças. Boiávamos à deriva meio cegados pela chuva, como um refugo do mar; as vezes via acosta longínqua; as vezes, só o oceano aberto e quando as ondas rompiam sobre nós não viamais do que água. Sentia algo na perna: um estranho entumecimiento com apunhaladas de dor.Pela mente me passou a perna de pau de Murphy e o sorriso afiado de um tubarão. E se umadaqueles animais me tinha arrancado a perna? Pensei em minha pequena provisão de sanguequente brotando a jorros de um coto e perdendo-se nas frias águas. Presa de pânico, tratei dearrancar a mão entre os dedos de Jamie para me tocar e averiguá-lo.

Berrou algo ininteligível e me segurou os pulsos com obstinação. Depois de um momentorecobrei a razão: se tivesse perdido a perna estaria inconsciente. Em realidade, era o quecomeçava a suceder. Meu campo visual tinha uma margem cinza e via pontos brilhantes nacara de Jamie. Estaria realmente sangrando ou era efeito do frio e a impressão? Importavamuito pouco; o efeito era o mesmo. Invadiu-me uma sensação de languidez, de paz absoluta. Jánão sentia os pés nem as pernas; só a tremenda pressão de Jamie me recordava que tinha mãos.Quando minha cabeça ficou sob o água, custou-me recordar que devia reter o folego.

A onda passou e o madeira se elevou um pouco,me tirando o nariz da água. Ao respirar medespejou um pouco a visão. A trinta centímetros de distância estava a cara de Jamie com o

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cabelo colado à cabeça e as feições contraídas.— Se segura! —rugiu— Resiste, maldita sejas!Sorri com doçura. Essa sensação de paz me levava acima do ruído e o caos. Já não tinha dor.

Nada importava. Outra onda se abateu sobre mim. Esta vez esqueci de reter o folego. Asensação de aperto me reanimou o suficiente para ver o reflexo de terror nos olhos de Jamie.Depois tudo voltou a escurecer.

— Maldita sejas, Sassenach! —disse ele muito longe— Maldita sejas! Se morrer, eu temato!

Estava morta. Ao meu redor tudo era de um branco deslumbrante; percebi um ruído suave,susurrante, como o que devem fazer as asas de um anjo. Sentia-me em paz, sem corpo, livre deterror, de ira e cheia de felicidade. Então tossi.

Não carecia de corpo. Depois de tudo me doía a perna. Doía muitíssimo. Gradualmente, fuitomando consciência de muitas outras coisas que também me doíam, mas a perna esquerda seelevava sem dúvida alguma. Tive a clara impressão de que me tinham tirado o osso parasubstituí-lo por um atiçador ao vermelho vivo. Ao menos, era óbvio que a perna estava ali.Quando entreabrí os olhos, a dor era quase visível, ainda que talvez fora só um produto de meuaturdimento geral. Fosse mental ou físico em sua origem, o efeito era uma espécie de brancuraatravessada por reflexos de uma luz mais intensa. Como me feria os olhos, voltei a fechá-los.

— Acordas-te, graças a Deus! —disse uma aliviada voz escocesa próximo de meu ouvido.— Não é verdade —disse. Minha própria voz era um croar com incrustação de salitre. Tossi

outra vez. O nariz começou a chorrear em abundância. Então espirrei.— Aj! —protestei com asco pela cascata que me invadia o lábio superior. Minha mão

parecia remota e insustancial mas fiz o esforço de levantá-la para limpar o rosto. Jamie tinha ocabelo revolto e teso pelo sal e uma grande ferida na nuca. Não levava camisa; cobria-se comuma espécie de cobertor.

— Te sentes muito mau? —perguntou. — Horrivelmente —grasnei. Ao ouvir minha voz tãorouca, Jamie alongou a mão para uma jarra de água que estava junto a minha cama. Pisqueiconfusa. Era realmente uma cama, não uma liteira nem uma rede. Os lençóis de fiocontribuíam a dar aquela abrumadora impressão de brancura, reforçada pelas paredes e o tetopintado e as longas cortinas de musselina torcidas pela brisa. Os reflexos de luz eram osreflexos que reverberavão contra o teto; ao que parece tinha água perto, refletida pelo sol.

— Creio que voce quebrou a perna, Sassenach — me disse Jamie desnecessariamente—Será melhor não te mexer muito.

— Obrigada pela advertência — sussurei apertando os dentes— Onde diabos estamos?Encolheu-se de ombros.— Não sei. Só posso dizer que é uma casa bastante grande. Não prestei muito atenção

quando nos trouxeram. Um homem disse que o lugar se chama Lhes Perles. —Aproximou-mea xícara aos lábios e bebi com gratidão.

— O que aconteceu?Enquanto não me movesse, a dor da perna era suportável. Automaticamente me levei dois

dedos ao pescoço para comprovar o pulso que era tranquilizadoramente firme. Se não estavadesmaiada, a fratura não devia ser muito grave. Jamie esfregou a cara. Parecia muito cansado e

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notei que a mão lhe tremia pela fadiga. Tinha um grande hamatoma na bochecha e uma linhade sangue seco pelo pescoço.

— Acredito que se rompeu o mastro superior. Uma das vergas, ao cair, te atirou pela borda.Voce afundou como uma pedra e me atirei depois de voce. Pude te segurar… e também àverga, graças a Deus. Tinhas parte da cordagem enredado na sua perna empurrando voce paraabaixo, mas consegui desprendê-lo.

Lançou um profundo suspiro.— Não fiz mais que te segurar. Depois de um momento senti areia sob os pés e te levei à

costa. Ali nos encontraram uns homens e nos trouxeram aqui. Isso é tudo. — Encolheu-se deombros.

Senti frio, mesmo com à brisa cálida que entrava pelas janelas.— O que foi do barco? Os homens? Ian? Lawrence?— Creio que estão salvos. Com o mastro rompido não puderam se aproximar de nós.

Quando conseguiram improvisar uma vela nós já tínhamos desaparecido. —Tossiu esfregando-se a boca com o torso da mão— Mas estão a salvo. Os homens que nos encontraram dizem tervisto uma embarcação pequena zarpada num pântano a quatrocentos metros daqui; já foramresgatá-la e foram trazer os homens. Bebeu um sorvo de água e foi à janela a cuspí-lo. —Tenhoareia nos dentes —protestou com uma careta—, nas orelhas, no nariz e provavelmente tambémno rego da bunda.

Voltei a pegar-lhe a mão calejada, com marcas de bolhas arrebentadas e ensangüentadas.— Quanto tempo me sustentaste na água? —perguntei seguindo suavemente as linhas da

mão inchada. — Bastante —respondeu com singeleza. Sorriu e me estreitou a mão. Então medei conta de que estava nua, pois sentia os lençóis suaves e frescos na pele.

— O que passou com minha roupa?— Como não podia te sustentar com o peso das anáguas, arranquei. O que ficava não valia a

pena.— Suponho que não — disse lentamente — Mas e voce, Jamie? Onde está teu casaco?Encolheu-se de ombros com um sorriso melancólico. — No fundo do mar, suponho. Com os

retratos de Willie e de Brianna.— Oh, Jamie, sinto muito. — Estreitei-lhe a mão com força e afastou a vista piscando.— Bem —disse baixinho— Não creio que os esqueça. Em todo caso bastará com que me

olhe ao espelho, não? Soltei um riso que era quase um soluço, enquanto ele engulia saliva comdificuldade, sem deixar de sorrir. Depois olhou as calças rasgadas e pareceu recordar algo.

— Não vim com as mãos vazias —comentou procurando no bolso— Ainda que prefeririaconservar os retratos e ter perdido isto. Abriu a mão e em sua palma lesionada apareceu umacintilação: pedras preciosas de primeira qualidade: uma esmeralda, um rubi (masculino, supus),um grande ópalo, uma turquesa tão azul como o céu que se via pela janela, uma pedra douradacomo sol atrapado no mel e a estranha pureza cristalina do diamante negro.

— Tens o diamante — me estranhei roçando-o. Mantinha-se flamante mesmo a ter estadotão próximo de seu corpo.

— Sim. —Não olhava a pedra senão a mim — Para que servem os diamantes? Para

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conhecer o gozo em todas as coisas? —Isso me disseram. —Acariciei-lhe o rosto comsuavidade— Temos a Ian. E nos temos o um ao outro. —Sim, é verdade.

O sorriso lhe chegou aos olhos. Deixou as pedras na mesa e se reclinou na cadeira pegandominha mão entre as suas. Relaxei-me. Uma paz cálida começava a invadir-me em exceto pelosarranhões e a dor da perna. Estávamos vivos, juntos e a salvo, o resto não importava: nem asroupas nem uma tíbia fraturada. Tudo isso se arrumaria ao seu devido tempo. Agora não. Poragora bastava respirar… e olhar a Jamie. Passamos um momento em aprazível silênciocontemplando as cortinas ensolaradas e o céu aberto. Depois de dez minutos ou talvez de umahora ouvimos pisadas ligeiras e um delicado toque na porta.

— Entre —disse Jamie incorporando-se sem soltar-me a mão.Se abriu a porta e entrou uma mulher de rosto simpático, iluminado pelas boas vindas e

tingido de curiosidade.— Bom dia —disse com certa timidez— Devo pedir perdão por não vos ter atendido antes.

Estava na cidade e ao regressar, faz um momento, soube de vossa… chegada. —Sorriu ao dizeressa palavra.

— Estamos sinceramente agradecidos, senhora, pelo amável tratamento que se nos brindou—disse Jamie levantando-se para fazer-lhe uma reverência formal— Ao vosso serviço. Tensnotícias de nossos colegas?

Ela se ruborizó um pouco. Era jovem, de uns vinte anos, e não parecia saber comocomportar-se ante aquela situação. Tinha a pele clara e rosada e levava o cabelo recolhido numlaço. Seu acento me chamou a atenção.

— Oh, sim —disse— Meus criados os trouxeram do barco e agora estão comendo nacozinha.

— Obrigado —disse sinceramente— É muito amável. Ruborizou aturdida.— Em absoluto —murumurou olhando-me com timidez— Devo pedir perdão por meus

maus modos, senhora. Ainda não me apresentei. Sou Patsy Olivier, a esposa de Joseph Olivier.Olhou a Jamie como se esperasse um gesto equivalente. Trocamos uma olhada. Onde

estávamos? A senhora Olivier era obviamente inglesa e seu esposo tinha sobrenome francês. Abaía não nos oferecia nenhuma pista. Podia ser qualquer das ilhas de Barlovento, ou dasBarbados ou as Bahamas, ou Exuma, ou Andros… inclusive poderiam ser as Ilhas Virgens.Então me ocorreu que o furacão podia ter-nos desviado para o sul; neste caso bem podíamosestar em Antiga (no colo da Marinha Britânica!), a Martinica ou as Granadinas. Olhei a Jamie,encolhendo-me de ombros. Nossa anfitriã nos observava expectante. Jamie, respirando fundo,apertou-me a mão.

—Confio em que esta pergunta não te pareça muito estranha, senhora Olivier, mas poderíasnos dizer onde estamos?

A jovem elevou as sobrancelhas piscando com assombro.— Pois… sim. Isto se chama Lhes Perles.— Obrigado —intervim vendo que Jamie tinha intenção para continuar— O que queremos

saber é em que ilha estamos.Um amplo sorriso de entendimento inundou sua cara redonda e rosada.

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— Ah, compreendo! A tempestade desviou voces. Ontem à noite meu esposo me dizia quenunca tinha visto um vento tão terrível nesta época do ano. Que sorte que voces se salvaram!Voces vieram das ilhas do sul?

O sul. Então não estávamos em Cuba. Talvez tínhamos chegado a Santo Tomás ou à atémesmo a Florida? Trocamos uma rápida olhada. Senti bater o pulso no pulso de Jamie.

A senhora Olivier sorriu com indulgência.— Não estas em nenhuma ilha, senão no continente. Na colônia de Geórgia.— Geórgia —repetiu Jamie — Em América? Parecia um pouco aturdido, e com razão, pois

a tempestade nos tinha desviado quase mil quilômetros.— América — repeti suavemente— O Novo Mundo.O pulso se tinha acelerado sob meus dedos, como um eco do meu. Um novo mundo.

Refúgio. Liberdade.—Sim —confirmou a senhora sem ter nem idéia do que significava essa notícia para nós,

mas nos sorriu com amabilidade— Isto é América.Jamie ergueu os ombros e lhe devolveu o sorriso. A brisa limpa e brilhante lhe agitava o

cabelo como se fossem chamas.— Nesse caso me apresentarei senhora —disse— Chamo-me Jamie Fraser.Depois me olhou com os olhos azuis e brilhantes como o céu que se estendia a suas costas.

Notava batidas de seu coração na palma de minha mão.— E ela é Claire. Minha esposa.

FIM