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Além do Lago Viajante - Visionvox

May 16, 2023

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Khang Minh
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Prelúdio

“O aniversário dela é hoje.” Alaia disse ao fechar o livro de memórias.A janela poderia muito bem ser um quadro: a cidade jazia silenciosa em seussegredos e, se havia luzes, eram o fogo das tochas que bailavam livres nabase da estátua da aniversariante: quinze metros de mármore para sua palidez,ouro para o brilho de sua arma e um par de esmeraldas para seus olhos. Alaiapodia ver o começo de uma aglomeração na base da estátua, uma pequenamultidão de pessoas felizes, dedicando rezas e agradecimentos para ela quetrouxe luz de volta para um mundo de trevas.

Alaia desviou o olhar de imediato, não queria ficar emotiva logo nosprimeiros minutos do dia, virou a cabeça para o céu, onde as nuvens seenrolavam como cachos de cabelos azuis meia noite, brilhando contra a luzda lua minguante.

Para Alaia, aquela era a fase mais bonita da lua, pois brilhava apenaso bastante para mostrar sua presença naquele céu infindo, sem nunca roubar oespaço das estrelas. Aquilo não acontecia quando a lua estava cheia, ela setornava egoísta demais naquela fase, querendo brilhar mais que as estrelas eroubar todo o céu para si.Um reflexo de sorriso cantou em seu rosto ao lembrar do que a aniversariantede hoje disse quando ouviu essa reclamação pela primeira vez: “Mas a luamerece o espaço dela, ela era uma ninguém na lua nova, e teve que ralar pracrescer de pouquinho em pouquinho na lua crescente, por isso ela brilha tantoquando está cheia, pra mostrar que o esforço valeu a pena, e a parte maisbonita é que a lua cheia, assim como o auge das nossas vidas, é sempre suafase mais curta, aos poucos ela aprende humildade e cede o palco, até quenão haja mais espaço pra ela.”Até hoje, Alaia se impressionava com a inocência daquela mulher paradescrever as partes mais simples da vida: hoje em dia quase ninguémmencionava o quanto ela era brincalhona, apenas focavam nos grandes feitos:Como enganou Louhi, a ladra de rostos, a luta contra Tehain (que foiridiculamente aumentada pelo povo), seu encontro com Allenwick D’arlit;alguns até contavam que ela havia sozinha destruído Alexandrita, o demôniodas ilusões.

Alaia sabia que este último era mentira, mas depois de tantos anos,

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havia aprendido a apreciar a admiração que o povo tinha por sua antigaamiga.Pelo menos os livros relatam bem o que aconteceu entre ela e Gambler, onegociante de desejos.Alaia sorriu, ninguém pensava em Gambler pelo título de “negociante dedesejos” quando ela era jovem, aliás, de todos estes títulos, o único querealmente era familiar para ela era “Alexandrita, o demônio das ilusões”, masAlaia era a única nesta cidade que a chamava assim, Alexandrita tinha outronome nessa região do mundo.“Christina?” Alaia chamou, sentindo sua voz soar mais jovem do querealmente era.Não houve resposta.Alaia sorriu e fechou seus olhos: podia sentir o quarto melhor assim. Em diasnormais, teria encontrado Christina em segundos, mas estava emotiva hoje, ese deixou distrair pela beleza que pingava dos detalhes, como o timbre dorelógio no alto da catedral, e seu amor pelo fato de seu quarto ser no pontomais alto da cidade, um reflexo de sua personalidade. Às vezes se perguntavase sua mãe também gostaria de viver nas alturas; seu pai e sua tia decerto ofaziam, mas isto era uma história para outro dia.Voltando a concentrar-se, Alaia vasculhou o quarto em sua mente, sabia queChristina havia entrado há alguns minutos, aquela criança nunca foi muitodiscreta em suas entradas.Não havia nada na lareira ou no cano da chaminé, e ela não estava escondidanas cortinas nem perto do rodapé, não havia tentado se ocultar sob o carpete enão estava ao lado do quadro de Elizabeth, embaixo da cama não havia nadaalém de lembranças a se esconder, e na mesa de xadrez, jaziam velas porarder.Foi quando Alaia percebeu:“Você está atrás de mim.”Uma risada recheada de vida ecoou pelo quarto e, do nada, uma garotinhacom pele da cor de trigo acanelado apareceu atrás da poltrona de Alaia, rindocom a boca escancarada e cheia de dentes brancos, contrastando com seuslábios volumosos, cor de caramelo.“Você já foi melhor, vó!” Christina disse quando a risada começou a morrerem seus lábios “Se eu fosse um D’arlit eu teria te matado três vezes.”“Se você fosse um D’arlit, eu teria feito coisas horríveis com você antes devocê pensar em passar por aquela porta.” Alaia disse séria, parte porque

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gostava de desafiar o riso constante de Christina, parte porque era verdade “Oque você tem aí?”Christina tirou um desenho das costas.“Kuzco! O deus lhama!” Ela gritou e começou a gargalhar de novo, enquantomostrava o desenho horrível de uma lhama brilhando e várias outras lhamascom cabeça baixa ao seu redor.“Eu não acredito nisso.” Alaia disse com um olhar maravilhado em seu rosto“Você é igualzinha a ela.”“Eu não pareço uma lhama.” Christina disse, fingindo-se emburrada.“Não, sua boba.” Alaia disse finalmente desviando os olhos do desenho “Éuma longa história, mas digamos que a Harbinger da Luz teve uma amigacom o mesmo nome que você, e ela também gostava de fingir que existia umdeus lhama que mandava ela cuspir nas pessoas.”“Eu posso cuspir nas pessoas?” Christina perguntou com brilho nos olhos.“Não, à menos que queira passar uns dias com a Jane e o James.”“Sem cuspir então.” Christina disse dando de ombros e voltando seu olharpara o desenho “Você disse que a amiga da Harbinger também chamavaChristina?”Alaia fez que sim com a cabeça, seu olhar jazia perdido em direção à estátualá fora e a Fogueira de Fawkes que só se fazia crescer lá embaixo, devendoarder até o final do dia, na hora do Virar da Página.

Alaia não conseguiria tirar aquele sorriso dos lábios tão cedo.“Ela conseguia fazer isso?” Christina perguntou, ficando invisível bem nafrente de Alaia.“Quem não conseguia o quê?! Ah, não. Eu não sei se a amiga da Harbingertinha quaisquer poderes.” Alaia disse com alguma resignação na voz “Asbrincadeiras dela geralmente envolviam levar crianças para cemitérios só pradar um susto nelas, e desça da chaminé.”Depois da última frase, um baque se ouviu na lareira, e uma Christinaempoeirada se fez visível, rindo como se as cinzas estivessem fazendocócegas em sua pele.“Gostei dela! A tia Aqila conheceu ela?”“Não, não me lembro nem se o Kahsmin chegou a conhecê-la.”Alaia se distraiu: outra coisa que ninguém mais falava sobre a aniversariantede hoje eram das pessoas que haviam cercado sua vida: hoje em dia, ela haviase tornado um símbolo, um ídolo, quase todos se esqueciam que houvera umapessoa por detrás da lenda.

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Uma pessoa comum, com um passado como o de qualquer outro.Um passado com dores grandes demais para a maior parte do mundoentender.Um passado preenchido pelo vazio de todo o amor que lhe fora roubado antesda hora, e todas as vidas a quem ela dedicou-se a preencher, até que fosse suahora.Um passado do qual Alaia havia feito parte, e seu único desejo era que otempo tivesse sido generoso e permitido que elas pudessem ter se conhecidoe desfrutado por uma eternidade: teria sido tão mais justo, mas justiça nuncafora o forte da vida: a vida apenas era, não cabem adjetivos para o que éindescritível. Por mais que Alaia rogasse por forças para aceitar que a vidaera, às vezes ainda se sentia injustiçada, algumas dores são grandes demaispara serem superadas em uma única vida.

Então, só restava uma coisa para fazer: ocupar-se.“O que você está fazendo?” Alaia perguntou para Christina, que tinha o rostocolado, literalmente colado, no vidro da janela, o que era difícil de entenderuma vez que, bem, “Você sabe que não tem vidro nessa janela, né?”“Shh, estou tentando ouvir.” Christina disse com a ponta da língua para fora.

Sério, Alaia já tinha visto aquela criaturinha fazer muita coisaestranha, mas debruçar a cara no ar como se fosse vidro era novo.“Ouvir seu deus lhama?”“Não, a Harbinger da Luz.” Christina disse séria, com a orelha virada emdireção à estátua “A gente sempre celebra o aniversário dela, ouvimoshistórias sobre “A Noite Negra da Harbinger da Luz”, mas ninguém nuncaexplica como essa noite terminou, nem como ela começou, eu só sei que elamatou demônios horríveis nessa época.”“É verdade, inclusive uma míriade que aprisionava almas em fotografias eum ominoso que atormentava as pessoas com visões de tudo que elespoderiam ter sido na vida se tivessem tomado decisões diferentes no passado,ela odiava esse último. Tinha um colecionador de cabeças também, se não meengano.” Alaia contou, consciente de seu esforço para fazer o colecionadorde cabeças parecer muito menos intimidador do que ele realmente havia sido.“E o gigante de Louhi.”“Isso foi antes d’A Noite Negra, Caleb estava junto com ela nesse dia.”“Viu!?” Christina acusou “Eu quero saber essas coisas, eu quero saber quemeram os amigos dela, como foi a vida dela, o que ela sentia, mas tudo queesse pessoal sabe contar são um monte de eventos disjuntos e sem foco

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nenhum!”“Quando você aprendeu a palavra ‘disjuntos’ e a criticar os outros?” Alaiaperguntou para sua neta, genuinamente impressionada.“Eu já tenho nove anos, e eu sei ler.” A pequena Chris respondeu com umacareta, “eu também quero saber como foi a Benção de Luz para a tribo Satya,e como foi o incêndio do hospício de Virrat e...”Alaia sorriu, mas logo seu rosto se perdeu em reminiscências: aquela criançase parecia tanto com ela própria quando era mais nova, tão curiosa, tantavontade de saber, e saber é bom, saber nos ajuda a construir coisas incríveis eevita desastres monstruosos, saber nos constrói de dentro para fora, o quedecidimos aprender nos guia para o centro de quem somos e nos força aexplorar tudo que temos escondido dentro deste milagre chamado “eu”.Mas às vezes, e só às vezes, não saber é nossa melhor proteção.O que protegemos?

Inocência.Ignorando tudo isso, Alaia comentou: “Foi a Harbinger da Luz que escolheuseu nome.”Finalmente, Christina desviou seus ouvidos da estátua, havia assombro econfusão travados em seu rosto que, sem palavras, perguntava em alta voz:“quê?”Com um sorriso afável, Alaia continuou: “A Harbinger da Luz,” ela seinterrompeu, raramente referia-se à sua amiga como ‘Harbinger da Luz’, aspalavras pareciam estrangeiras tentando se acomodar entre os nativos de suaboca, “ela teve uma amiga chamada Christina, como eu já te disse, elasficaram juntas por quinze anos no antigo Orfanato das Neves.” Alaia parou esorriu para dentro, achando engraçado que um sentimento tão estúpidoquanto inveja pudesse surgir num momento como esse. “A Harbinger um diame pediu para nomear uma filha minha em homenagem à Christina, mas eusó tive dois filhos, então pedi para o seu pai te chamar de Christina. De certaforma, foi ela quem escolheu seu nome.”Os olhos de Christina brilharam ao ouvir isso.“É sério? A maior lenda viva desse mundo escolheu meu nome?”“EU sou a maior lenda viva desse mundo.” Alaia respondeu.“Desculpa, a maior lenda em geral desse mundo escolheu meu nome?”Alaia riu de leve e fez que sim com a cabeça.Christina simplesmente gritou, sem mais nem mesmo, não havia como seconter.

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Logo ela estava subindo pelas paredes como uma formiga hiperativa, Alaiasempre se divertia ao ver como Christina havia desenvolvido aquele podercedo em sua vida, embora ainda tivesse alguma dificuldade em tornar suaspróprias roupas invisíveis ou manter-se parada no teto.Na verdade, ela tinha dificuldade em se manter parada em geral.Alaia sentiu seu coração cantar de alegria ao ver a felicidade no rosto de suaneta.Então desviou os olhos para a poltrona onde estivera lendo durante a maiorparte da noite: o livro de memórias que a Harbinger da Luz escrevera, o livroque Alaia nunca teve coragem de terminar.

Por quê?Bem, para explicar isso, precisamos explicar como funcionam os

medos.Medos existem para nos proteger: o medo de altura é saudável para um anjosem asas, o medo do choro de crianças faz muito sentido se você morasozinho, o medo de aranhas é totalmente plausível se você for normal, ouconhecer Jaques Araque, o medo de entregar seu coração por completo éentendível se você não tem um, ou aprecia viver sem dor.E há o medo do fim.Não exatamente o fim da vida, mas o fim de qualquer coisa: o fim de umaamizade, de uma refeição, de uma família, de uma era, de uma história, deuma lembrança, de um sentimento, ou de uma promessa.Chegar ao fim daquele livro representava tudo isso, exceto a parte darefeição, isso era coisa da Harbinger, ela poderia comer qualquer coisa quenão fosse leite com o maior prazer do universo.Seu cérebro tentava fazê-la rir, mas Alaia sabia que, por mais que medosexistam para nos proteger, tudo que nos protege tende a se tornar uma prisão,como uma mãe super protetora, um reino protecionista, a timidez ou aignorância, e ela já vinha sendo prisioneira por mais anos do que sua sentençaexigia.Alaia pegou o livro com ambas as mãos: nunca havia reparado no quanto erapesado.“Christina, você quer saber da história de verdade, não quer?”Ela parou de correr no teto imediatamente.“Você tá brincando!” Ela disse, quase gritando de novo.Alaia percebeu tudo acontecer em apenas um segundo: Christina perdeu oequilíbrio e despencou do teto.

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Num átimo de segundo, Alaia desdobrou suas asas, tomou impulso, e apróxima coisa que percebeu foi que estava esparramada pelo chão, comChristina em seus braços e uma dor nas costas tão forte que derruboulágrimas em suas rugas.Pelo menos Christina estava bem.“Vó? A senhora usou suas asas!” A pequenina disse, tentando mostrarentusiasmo para esconder sua culpa, “Achava que você não tinha mais forçanelas.”“Força eu tenho.” Alaia disse se colocando em pé, “Mas elas nuncafuncionaram bem depois do que meu avô fez com elas.” Acrescentoulevemente amargurada enquanto massageava o ponto de suas costas de ondeas asas emergiam, “A dor que é insuportável.”“Me desculpa.” Pediu Christina, com toda a honestidade que uma criançapode ter.“Não tem problema, meu anjo.” Alaia disse, “Você está parecendo umleãozinho com esse cabelo,” acrescentou para colocar um sorriso no rosto deChristina.Deu certo em partes, Christina sorriu balançando a nuvem castanha decabelos cacheados sobre sua cabeça enquanto mostrava os dentes, comoqualquer leão faria, mas ainda havia culpa nela, e demoraria a passar.Alaia voltou para sua poltrona e fez sinal para Christina sentar-se ao seu lado.“Há muitos anos eu leio trechos soltos deste livro.” Alaia começou, “Sempreque eu o faço, eu sinto como se ela estivesse aqui, me contando cada umadestas histórias, eu me lembro do bom humor, das piadas, da Wanda, dosapelidos bobos que ela dava para os animais e objetos e...

A ira.Até hoje eu sinto calafrios ao me lembrar da primeira vez que

presenciei a ira da Harbinger da Luz, era como que se minha amiga morressee, não um demônio, mas o próprio inferno tomasse o lugar dela. Eu, quetenho sangue de anjo em minhas veias, temia a ira da Harbinger da Luz.Apenas anos mais tarde eu entendi que ela só era capaz de tamanha ira graçasà abundancia de amor que transbordava em seu peito, por isso que, sempreque contamos os feitos da Harbinger da Luz, nós dissemos:”“Demônios fogem quando uma mulher boa vai à guerra.” Christinacompletou com brilho no olhar “Exato.” Alaia disse, “esse livro, no entanto,não é apenas sobre seus feitos, é sobre a pessoa que viveu atrás da lenda daHarbinger da Luz, suas memórias contadas de uma forma que ninguém mais

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poderia fazer.”“Nem a Jane?” Christina interrompeu.“Nem a Jane. Nem mesmo eu. E agora,” Alaia disse, cutucandocarinhosamente a cabeça de Christina, “eu vou te contar um segredo: parte demim não quer terminar este livro.”“Por quê?” A pequena Chris perguntou virando a cabeça confusa.“Eu estive com ele há mais anos do que eu estive sem ele: sempre que eusinto falta da minha amiga, eu posso vir aqui e reviver suas memórias atravésdessas páginas, eu posso chorar com ela pela morte de um amigo e lutar comDe Singe e os goblinianos através da dança de suas palavras, eu posso visitara vila do Grande Escritor e descobrir povos e culturas que antes eu apenasacreditaria existir em sonhos ou em mundos muito distantes do meu, até hojeeu abro o livro em pontos onde nunca havia aberto antes e me delicio comalgo novo.”“Mas eu nunca li seu final, e nunca li ele do começo ao fim.”Alaia parou, sabia que se continuasse de imediato, sua voz falharia e seurosto sóbrio iria se desfazer.“Por que não?” A pequena Chris perguntou.“Porque seria o fim.” Alaia respondeu, se esforçando para sua voz não sequebrar nas rugas delicadas de seus lábios, “este livro é tudo que eu tenhodela, e quando não houverem mais novas histórias para dividirmos, nãohaverá mais nada senão lembranças. No passado, quanto mais eu lia o livro,mais eu o evitava, cheguei a ficar anos sem tocá-lo, achando que assim eupoderia fazê-la viver mais, mas isso é ridículo da minha parte: eu, mais queninguém, deveria saber que não há um começo sem que haja um fim.”Com isso, Alaia abriu o livro na primeira página: sem prefácio, sem índice,era apenas o Capítulo I, direto à história.“Eu ainda tenho medo.” Alaia continuou, “Tenho medo de não aguentar ficarsozinha depois disso.”“Mas você não tá sozinha.” Christina interrompeu, “eu tô aqui.”Os olhos de Alaia encontraram o caramelo dos da pequena Chris: aquelacriança não tinha ideia do que realmente estava fazendo com aquelaspalavras, e talvez nem a própria Alaia soubesse, mas o sorriso que se brotavaem seu rosto a fazia sentir que agora, finalmente, era a hora de deixar suaprisão.“Obrigada, meu anjo.”Christina mostrou todos os dentes quando sorriu, Alaia retribuiu com seu

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sorriso de lábios já não tão grossos ou firmes como foram um dia: “Então seprepare, porque esta não é a história de uma lenda, mas de uma pessoa, umaque nem em seus sonhos mais selvagens sonhou ser chamada de Harbingerda luz, se aconchegue, porque agora, eu vou te apresentar minha melhoramiga, e seja paciente com os começos, ela escrevia muito mal quandocomeçou.”

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Capítulo 1

“Wanda, acorda!” Sussurrou a garota.Wanda não respondeu.“A Christina me visitou de novo.” Ela disse enquanto tateava a parede embusca do interruptor: seus dedos tremiam de excitação, ou talvez fosse o frio.Wanda continuou sem responder.A garota parou de tatear e esperou seus olhos se acostumarem com a frágilluz da lua cheia, iluminando sem pressa as paredes brancas, desprovidas devida, e um guarda-roupas de madeira velho e pequeno.

Bem, era pequeno apenas quando estava fechado: quando aberto,parecia enorme, graças à quantidade imensa vazio que ele guardava.Entretanto, entre os vários nada que se espalhavam aqui e ali, havia um parde roupas e algumas caixas exprimidas em um canto.

Era sua porta pra Narnia com defeito.“Ela estava com a Mary e a Kristell, nós quatro roubamos biscoitosdinamarqueses da irmã Romena e conseguimos colocar a culpa na Dana!”Contou a garota, mais para si do que para Wanda, que continuava semresponder.Grossa.Seus olhos finalmente encontraram o interruptor; a lâmpada de luz âmbarganhou vida, revelando alguns livros espalhados ao redor da sua cama efazendo as estrelas lá fora difíceis de se ver.

Wanda estava deitada no chão, com os olhos verdes bem abertos,refletindo a luz.“Vem Wanda!” Disse ela, pegando Wanda pelo torso de pano e a colocandosentada na sua cama. “Sua perna tá abrindo de novo.” Comentou, enquantopegava uma agulha do criado mudo ao lado da cama para fazer um novoremendo na perna da boneca.O zumbido ocasional e irregular da lâmpada sobre sua cabeça a deixavanervosa por algum motivo: parecia lembrar de que o tempo estava acabando,mesmo tendo acordado quase uma hora mais cedo que planejara.Abrindo sua “porta pra Narnia com defeito”, pegou alguns biscoitosdinamarqueses (que, de fato, havia roubado da irmã Romena) e começou acomer, esperando que a calma viesse.

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Mas claro, ela não veio.Estava comendo o último, quando o sinal chegou: várias batidas no chão doseu quarto, feitas por alguém no andar de baixo.Ela terminou o biscoito e se apressou a bater no chão com o cabo de umavassoura.Quando terminou, a resposta veio rápida e fluente: o caminho estava limpo.“Obrigada, irmã Sarah.” Murmurou, colocando a vassoura ao lado da portado quarto.Vestiu seu agasalho e seus sapatos o mais rápido que pode, vasculhou ofundo do guarda-roupas e tirou de lá uma caixinha de madeira do tamanhodos maiores livros que já vira. De dentro, tirou uma lanterna preta com carade antiguidade, um pedaço de papel muito bem dobrado e alguns lápis de corque apontava com um pequeno estilete.Estava guardando a caixa quando seus olhos encontraram com um pequenoenvelope guardado no fundo; estivera escondido sob os lápis e a lanterna.

Parte dela queria reler suas palavras, mas isso teria que esperar.Guardou os lápis e o papel no bolso do agasalho e, tão sorrateira quantotraças nos livros, abriu a janela de seu quarto, deixando a brisa fria enrijecerseu rosto.A luz do quarto da irmã Sarah estava acesa, logo abaixo da sua janela: haviauma fina camada de neve que ainda não derretera no chão, o luar iluminava ocaminho que levaria para a Floresta Branca, que cercava quase todo oOrfanato das Neves.

Era para lá que estava indo.Pegou toda sua roupa de cama e fez com elas uma espécie de corda, queamarrou no batente de sua janela: estaria com medo de sair assim do seuquarto, não fosse o fato de já ter feito isso inúmeras vezes com Christina;imaginava que devia ser mais ou menos daquela forma que o príncipe quevisitava Rapunzel se sentia quando saía da torre da princesa usando oscabelos dela.Quando chegou no chão, a luz do quarto da irmã Sarah se apagou, a janela seabriu um pouco e a irmã sussurrou: “Não podia ter usado as escadas?”“Podia.” Respondeu no mesmo tom.“Então por que fez isso?” Perguntou apontando para a corda feita de roupa decama.“Da última vez que tentei sair pela porta, a irmã Romena descobriu, não tôafim de passar por aquilo de novo.”

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Irmã Sarah desarmou-se em sorrisos, não havia como discutir com a lógica dagarota.“Você poderia me contar por que está indo? Achei que já tinha terminadotudo.”“Eu só vou checar uma coisa, acho que eu errei alguns detalhes.” A órfãrespondeu.Os olhos da irmã Sarah deixavam claro que ela queria saber mais, mas aoinvés de fazer mais perguntas, limitou-se a sorrir e dizer: “Tome cuidado.”

E com isso, fechou sua janela e deixou a garota sozinha lá fora.Ela agradeceu em silêncio pela ajuda da irmã. Se a noite saísse comoplanejara, nunca mais precisaria se esgueirar para fora de seu quarto dessejeito.Deu uma última olhada no Orfanato das Neves, para sua corda de roupa decama, antes de acender a lanterna e seguir em frente.Deveriam ser quatro da manhã ou um pouco mais: a lua já não estava tão altano céu e sua luz só conseguia atravessar em retalhos os galhos das árvoresque cobriam a cabeça da garota.Ela parou e pegou o pedaço de papel do seu bolso, desdobrando-o comcuidado; era quase tão grande quanto aqueles mapas-múndi que havia nabiblioteca da cidade. A diferença era que este mapa não era múndi, mas daFloresta Branca, e todo desenhado à mão, com todos os lugares maisinteressantes que descobrira nos últimos meses: Incluindo o Vale dasAzaleias, onde nas noites de lua nova, centenas de vagalumes apareciam econvidavam a noite para dançar; os ninhos de corujas brancas ao pé dasmontanhas, de onde nenhum rato jamais voltou; as clareiras espalhadas pelafloresta.

Todos esses lugares recebiam destaque no seu mapa feito à mão, juntoà uma legenda no canto esquerdo, com anotações do que a garota haviaencontrado por lá.Enquanto procurava o lugar que iria visitar, seus olhos encontraram algo nasanotações do mapa que desejara poder ignorar:“Grutas Salainen: Não vá.”“Não precisa dizer duas vezes.” Ela brincou depois de chacoalhar a cabeça,tentando se livrar daquela lembrança: cerca de cinco meses atrás, haviaencontrado cavernas na Floresta Branca, havia sido uma das melhoresdescobertas que fizera até então; rochas pontudas saindo do teto, bichinhoscegos se rastejando pelo chão, gotejar de água, parecia um lugar perfeito para

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levar as meninas mais novas do orfanato e dar um susto nelas.Sim, perfeito. Até ela mesma levar o maior susto de sua vida lá

dentro.“Concentre-se.” murmurou para si mesma.Havia um pequeno, quase minúsculo trecho no seu mapa que ela ainda nãodesenhara; um lugar no centro da Floresta Branca, era para lá que estavaindo, não estava longe agora.Sua ansiedade aumentava a cada passo acelerado que dava, estava louca paracontar para Christina o que havia descoberto, dividir o mapa com a amiga,talvez com Mary Ashdown se ela também viesse, mas era pouco provável.Ela e Kristell nunca vinham.Elas podiam ser legais, mas era Chris quem dava as ideias mais divertidas:ela bolava os melhores planos para assustar as meninas mais novas, tinha odom de fazer a Ruth e a Agnes brigarem entre si, colocava ovos no sapato dairmã Romena, fazia brincadeiras de esconde-esconde que duravam até o fimdo dia.

Era pra Chris que estava fazendo esse mapa, e só tinha mais essa noitepara terminá-lo.Ainda estava perdida em devaneios quando a luz cálida da lanterna encontroualgo: Roedores coloridos (na verdade, eram rododentros, mas Wendy semprepreferiu chamar essas flores de “roedores”, não, não tem lógica) cercavamum enorme lago, com águas cristalinas, refletindo o pouco da luz da lua queatravessava os galhos.Uma mistura de admiração e temor começou a formigar na sua pele: não era aprimeira vez que visitava aquela clareira, mas era a primeira que encontravaum lago rodeado de flores.“Chris, eu devia ter acreditado em você.” As palavras saíram involuntárias echeias de incredulidade.Ela se aproximou da borda, vendo seu reflexo imitá-la na água, passando asmãos nos cabelos compridos e escuros que contornavam seu rosto pálido eolhos verdes, como eram os botões que faziam os olhos da boneca Wanda.Sua mão alcançou a água, desfazendo seu reflexo, apenas para ter certeza deque aquilo era real e, sem perder mais tempo, colocou-se a terminar o mapa.A noite não ficara nem um pouco mais clara quando ela terminara;arrependia-se de não ter trazido uma caixa consigo, teria sido um ótimo apoiopara o papel, mas estava tudo bem, terminara o desenho e escrevera aseguinte nota: “Lago Viajante: só aparece na noite de lua cheia.”

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“Acho que te devo desculpas, Chris.” ela sussurrou enquanto dobrava o mapae o escondia no fundo bolso do seu agasalho, junto com os lápis de cor.Ia se virando, quando seu coração disparou.

A luz de sua lanterna refletiu sobre os dentes e pelo de um enormelobo cinzento.Ele avançou, lento e imponente, na direção dela, rodeando-a e olhando-acomo se ela fosse um oásis num deserto. Antes que pudesse tentar sedefender, ele pulou, derrubando-a de costas contra uma réstia fina de neve.Não chegou a sentir a queda, fechou os olhos e esperou a dor aguda quesentiria quando ele começasse a arrancar pedaços de sua carne.Ao invés disso, ele começou a lamber seu rosto e, saindo de cima dela, pôs-sea correr ao seu redor, brincando, rolando na neve, como um cachorro dotamanho de um pônei.No meio da sua confusão, um pensamento claro gritou com toda sua força:EU TÔ VIVA! E começou a rir enquanto o lobo a observava como umacoruja curiosa.Não pôde resistir e acabou se distraindo, brincando com ele, quando umpensando mais elaborado cruzou sua mente: ele é treinado, deve ter um dono,e o dono deve estar aqui por perto.No mesmo instante em que pensou isso, o lobo se aquietou, como se estivesseem posição de ataque; o ar pareceu mais pesado, escuro nos pulmões dela,não gostava nada dessa sensação.Ela olhou para o lobo, cujos olhos azuis como miosótis penetravam os seus.“Volte.”Ouviu a voz rouca e suave dentro de sua cabeça. Olhou para o lobo, intrigadapor apenas um instante, e se pôs a correr na direção do Orfanato, olhandopara trás apenas uma vez, para ter certeza de que, tanto o lago quanto o lobonão haviam sido cria da sua imaginação.“Ninguém vai acreditar nisso no Orfanato das Neves.”

Não muito longe do lago, uma figura encapuzada acendia uma fogueira;apenas um sorriso fascinado pelas chamas era visível no seu rosto, enquantoo capuz preto e a capa ocultavam todo o resto do seu corpo.Ouviu um farfalhar de folhas vindo de algum lugar, mas não se preocupou

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em reagir, sequer fez questão de apagar o sorriso do seu rosto quando oimenso lobo cinzento surgiu dos arbustos.“Era ela?” Perguntou indiferente.Houve apenas o som do crepitar das chamas e o vento frio uivando baixinhono final da noite.“Por que ela estava aqui fora?”O lobo apenas balançou a cabeça negativamente.“Fomos seguidos?”O lobo assentiu.O sorriso no rosto do homem desapareceu. Levantou-se, apagou o fogo comum punhado de neve, estalou os dedos e o pescoço.“Temos trabalho a fazer.”De novo, o lobo assentiu.

Antes de começar a andar, o homem fez uma última pergunta: “Qualera o nome dela?”

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Capítulo 2

“Eu não sei o que aconteceu!”Se conteve para não gritar. Desde que voltara correndo da floresta, não pararade circular seu quarto, arrumando a cama, guardando suas coisas e sempretentando ocupar suas mãos; contando e recontando o que presenciara naFloresta Branca para Wanda.Ela podia ser grossa, mas era sua melhor ouvinte.Seu discurso foi interrompido abruptamente por fortes pancadas na sua porta,seguidas por um grito: “ABRE ESSA PORTA, WENDY!”Wendy congelou seu monólogo, engoliu seco e respondeu: “Está aberta, irmãRomena.”A porta se abriu com uma violência que não se espera de uma freira, mesmouma que pese uns cem quilos e tenha voz de sargento gripado.“Com quem está falando?!” Bradou ela.“Com a Wanda.” Confessou Wendy, apontando para a boneca sentada na suacama, olhando na sua direção.Irmã Romena, levou a mão ao rosto, como se aquela resposta fosse umgrande desapontamento na sua vida.“E o que a sua amiga Wanda te contou, Wendy?”“Nada, irmã Romena.” Respondeu, já sabendo onde aquilo ia parar.“Bom, e por que ela não te respondeu nada?”“Porque... ela é só uma boneca, irmã Romena.”“Ótimo! E que tipo de pessoa conversa com bonecas?” A malícia se infiltravanas palavras da irmã.“Bebês, criancinhas e... gente problemática, irmã Romena.” Sussurrou, suasunhas perfuraram as palmas de ambas suas mãos, mas recusou demonstrarqualquer sinal de dor ou raiva no rosto.“Incrível, e quantos anos você tem?” Continuou Romena.“Dezesseis, irmã Romena.”“Não é que você sabe contar? Agora me diga, você quer uma família? Querser adotada e levada para longe desse inferno como TODAS as suas amigasforam?”“Mais que qualquer coisa, irmã Romena.” Murmurou Wendy.“ENTÃO PARA DE AGIR FEITO LOUCA! VOCÊ TÁ ANDANDO PELO

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QUARTO DESDE ÀS CINCO DA MANHÃ CONVERSANDO COM UMABONECA E ACORDANDO TODO MUNDO! SUA DOENTE MENTAL!”Com isso, bateu a porta do quarto e saiu batendo os pés pelo corredor.Wendy não pode evitar olhar para Wanda e sentir um gosto amargo na bocadepois de ter ouvido aquilo. Quando teve certeza de que a irmã Romena jánão podia ouvi-la, disse baixinho para Wanda: “Me lembra de jogar bosta nacara dela quando eu sair daqui.”

Wendy se apressou para encontrar um lugar perto da janela para tomar caféda manhã; havia passado os últimos vinte minutos limpando os cortes que feznas mãos enquanto irmã Romena falava; haviam sido mais fundos queimaginara.E ela não estava falando só dos cortes em suas mãos.Também teve que limpar o uniforme do orfanato (uma blusa branca semgraça e uma saia azul mais sem graça ainda) pois o havia manchado comsangue quando o tirou da sua porta para Narnia com defeito.O refeitório não era grande coisa: uma sala grande começando a mofar noscantos das paredes, com várias janelas e mesas de madeira barata espalhadaspor aí, sem muita ordem, mas com bastante vida.Não apenas vidas humanas, afinal, mofo é vida, e comida também.

As meninas do orfanato falavam em voz alta e animada: umas poucastagarelando sobre livros infantis, outras sobre algum desenho que viram natelevisão que ficava no pátio principal, mas a grande maioria só conseguiafalar sobre a Festa de Inverno.Primeiro de dezembro estava oficialmente aqui: era quando podia-se esperarcomida boa na janta sem ter que rouba-la do quarto da irmã Romena.

A Festa de Inverno era um evento que as irmãs e a prefeitura dacidade faziam juntos, Wendy nunca soube porque, e sinceramente, não ligavatambém, o importante era que quase a cidade inteira estaria nas terras aoredor do Orfanato das Neves, cantando, dançando, se divertindo e ouvindo ocoro das garotas (do qual Wendy ainda faria parte, se não tivesse sido expulsapela irmã Sophie após ser acusada falsamente de tirar sarro da falta desobrancelhas da irmã).Estava tão concentrada no seu pão que não percebeu que mais quatro

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meninas, todas entre oito e onze anos, haviam se sentado na mesa, até umadelas começar a falar para as amigas: “Quero conhecer meus futuros paishoje!”“Eu também!” Disse outra.Logo todas estavam falando sobre como elas queriam que suas famíliasfossem.

Afinal, essa era a razão para a Festa de Inverno ser tão importantepara as meninas do Orfanato: por isso elas faziam (já que não tinham dinheiropara compra-los prontos) e usavam vestidos bonitos, cantavam no coro dasgarotas ou faziam qualquer coisa que as desse algum destaque: para seremvistas.

Não importava se eram os casais da cidade ou das cidades vizinhas, oque importava era se reparavam nas meninas. Se sim, talvez viessem a gostardelas e, se tudo desse certo, as tirariam daquele lugar para sempre e assimseriam uma família de verdade.

Claro, a irmã Sarah e a irmã Natalie sempre diziam que o maisimportante era se havia uma conexão verdadeira e genuína entre a criança e ocasal, e esse blablabá todo que Wendy até queria acreditar ser verdade.

Queria.Mas tudo aquilo parecia demais uma competição pra ver quem era a melhorórfã.Isso explicaria ninguém nunca ter se interessado nela, que não era grandedestaque em nada.Seus pensamentos ainda viajavam entre imagens felizes dela saindo doorfanato para sempre e ideias avulsas como “o uniforme do orfanato ficamuito melhor nas crianças que em mim” quando ouviu: “Oi, Wendy!” Dissea menina ao seu lado, enquanto as outras três ainda falavam sobre a festa.“Oi, LaVerne.” Respondeu com um sorriso. Wendy adorava a garota.

Bem, para ser bem honesta adorava quase todas elas.“Eu fiz um desenho seu com a Wanda!” E se apressou a tirar uma folha depapel de dentro de uma pequena pasta que carregava com ela em toda parte.Wendy olhou o desenho, era até que bom para uma criança de nove anos:conseguia distinguir quem era ela e quem era Wanda ali no papel, o que eraum bom começo, mas estava tendo dificuldades para entender o que era ohomem de camisa xadrez e seja lá o que fosse aquilo na cabeça dele.“Adorei! Mas o que é isso?” Perguntou apontando para o homem.“É um palhaço do mato, igual o que você contou pra gente semana passada!”

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Wendy começou a rir alto: palhaço do mato era como ela gostava de chamaros espantalhos para as crianças. “Eu vou colar na geladeira de casa, quandoeu achar uma.” Disse ela.LaVerne riu junto e passou sua pasta para Wendy, esperando que ela vissetodos os seus desenhos novos.Deslizando distraidamente os dedos pelo papel, ela ouvia LaVernetagarelando, sem fazer muito sentido, com suas amigas: Cora, Lili e Betsy, eficou impressionada ao perceber que as três entendiam perfeitamente do queLaVerne estava falando.Não podia mentir; sentiria falta dessas meninas quando finalmente fosseembora.Sentia um vazio enorme se formando no peito ao imaginar que não ouviriamais LaVerne e Cora pedindo para ouvirem histórias.“Conta a do palhaço do mato e dos roedores!” ou então “fala sobre a vez quevocê e a Christina colocaram um rato no quarto da irmã Romena!” e Wendypediria para que elas falassem baixo, já que era um segredo absoluto queestava contando para elas.E também porque a irmã Romena ainda achava que tinha sido a Dana.

Cada feito duvidoso que dissesse seria acompanhado de “Uaus”assombrados e aplausos quando terminasse as histórias.

É, sentiria muita falta delas.Em algum momento, se distraíra e deixara de ver os desenhos de LaVerne,quando pelo canto do olho, viu uma menininha de cabelos castanhosavermelhados correndo de três outras garotas, bem mais altas, indo emdireção aos quartos das irmãs.“Eu já volto.” disse Wendy, se levantando apressada e saindo da mesa.“Espera!” gritou LaVerne, mas Wendy já havia saído do refeitório. “Ah, elanão viu meu favorito.” disse chateada, devolvendo o desenho de um enormelobo cinzento com olhos azuis à sua pasta.Ela seguiu presa e predadora até a ala onde ficavam os quartos das irmãs: umcorredor estreito e sem saída, com algumas portas, tanto na esquerda quantona direita, cada uma levando para o quarto de uma das várias freiras quetomavam conta do Orfanato das Neves, exceto o quarto da irmã Romena, queficava no andar de cima, próximo ao de Wendy.No final do corredor estava a menininha de cabelo castanho curto, seencolhendo toda em um canto, enquanto outras três garotas, todas mais oumenos do tamanho e idade da própria Wendy, se revezavam, empurrando e

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batendo na criança.“Eu não fiz nada!” gritava a menininha desesperada. As outras três riamcomo se ela fosse um animalzinho fazendo barulhos engraçados.Wendy sentiu a raiva subir pelo seu corpo, mas tomou cuidado para nãocometer o erro de enterrar as unhas nas mãos de novo.O mais rápido que pode, bateu várias vezes na porta do quarto da irmã Sarahmas, antes de ouvir qualquer resposta, gritou: “Deixa ela em paz, Dana!”As três pararam. Uma das garotas, loira com nariz pequeno e uma capacidadefora do comum para fazer as roupas do Orfanato parecerem bem mais legaisdo que de fato eram, virou os olhos caramelos e raivosos para Wendy e disse:“Sai daqui, sua louca.”“Vocês estão batendo numa menina de dez anos!” gritou “Isso é baixo até pravocê!”As outras duas imediatamente largaram a menina ao ouvirem a última frasede Wendy e se colocaram, uma de cada lado, da Dana.Uma delas, a mais alta e magricela, com uma juba ruiva e sardas por todo orosto, era a Ruth, diziam que era a mais esperta das três, mas Wendy achavaque só diziam isso porque ela usava óculos.

A outra, uma garota rechonchuda (seria uma façanha incrível serrealmente gorda com a comida que eles davam por aqui) com uma franja retae preta cobrindo sua testa grande, era Agnes, cujo maior divertimento eraespancar qualquer coisa que se mexesse e tirar sarro do jeito desengonçadocomo Ruth andava.“Como disse?” perguntou Dana.“Isso é baixo até pra você!” respondeu desafiadora.Dana deu alguns passos a frente; a menininha dos cabelos castanhosaproveitou a confusão para sair daquele corredor sem ser perseguida.“E o que você sabe sobre ser baixa? Você rouba comida, quebra todas asregras desse lugar imundo–”“Eu não machuco os outros sem motivo.” cortou Wendy.“AQUELA PIRRALHA PEDIU POR ISSO!”“O que ela fez? Disse que seu sapato não combina com sua saia?”“Ela disse...” e Dana parou por um instante, olhando para Wendy como seacabasse de perceber um detalhe importante, algo que fazia toda a diferença,“foi você. Você contou pra ela.”“Quê?” perguntou Wendy, sem entender do que Dana estava falando.“Você contou pra ela!” Dana gritou e avançou na direção de Wendy, seguida

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por Ruth e Agnes.Elas estavam muito perto, quando a porta do quarto da irmã Sarah se abriu eDana bateu a cara nela, caindo no chão com a mão na testa, Ruth e Agnesconseguiram parar antes de trombarem em Dana.“Dana, vá até a cozinha, peça gelo para a irmã Clara e trate desse nariz. Ruth,Agnes vão com ela. Wendy, pare de rir. Você e eu vamos conversar.” e elaobedeceu. “Vocês três, voltem aqui quando terminarem na cozinha.” disseantes que Dana, Ruth e Agnes saíssem do corredor.

Wendy então entrou no quarto da irmã Sarah, seguida pela própriairmã. Quando esta fechou a porta, ambas se entreolharam e, após algunssegundos de silêncio, caíram na gargalhada.Irmã Sarah era a mais jovem de todas as freiras no orfanato; com seu cabelocurto, pele bem mais escura que a de Wendy e tinha um sorriso enorme norosto, a irmã Sarah vinha cuidando de Wendy como se fosse sua própriafilha: também ensinou truques que nunca se esperaria aprender de uma freira,por isso Wendy gostava de acreditar que a irmã Sarah tivesse uma identidadesecreta, apesar de nunca sair do orfanato sem as crianças.“Você deu as batidas muito rápido.” disse irmã Sarah quando parou de rir.“Eu demorei para entender o que você queria.”“Eu não consigo usar código Morse direito quando estou irritada. Você ouviuo que a Dana estava fazendo com aquela menina?” perguntou Wendy.“Eu não ouvi nada antes de você bater na porta e começar a gritar com ela. Oque aconteceu?”“Eu também não entendi, a Dana estava batendo nela e depois me acusou decontar alguma coisa pra menina, mas eu nem sei quem era aquela. Depoisdisso ela simplesmente veio pra cima de mim.” disse Wendy, tomando aliberdade de se sentar na cama da irmã, que continuava em pé, perto da porta.“Logo mais elas vão voltar aqui e eu mesma vou perguntar do que elasestavam falando. Agora eu quero saber: terminou o mapa dessa vez?”Wendy havia se esquecido da sua madrugada na Floresta Branca. Se sentiuestranha ao se lembrar, ao invés de feliz e ansiosa, como esperava. Masmesmo assim disse: “Terminei.” colocou todo o entusiasmo que conseguiafingir naquela frase.“Você não parece muito feliz com isso.” comentou irmã Sarah, Wendypercebeu que devia ter feito a sua pior atuação de todos os tempos.Esperou alguns instantes antes de falar: por um lado, a irmã Romena e quasetodas as outras achavam que Wendy tinha problemas, já que ela falava com a

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Wanda sempre que podia e, bem, tinha um dom natural para inventarhistórias que as irmãs confundiam com “mentir” ou “delirar”.

Por outro lado, não era a irmã Romena quem estava perguntando, erairmã Sarah, sua amiga, confidente, que sempre a tratou bem e ficou do seulado, mesmo quando a maioria teria feito o oposto.“Aconteceu algo muito estranho lá essa noite.” contou por fim “Eu encontreium lago, que não deveria estar lá.”“Como assim?” perguntou uma irmã Sarah com um misto de curiosidadeincrédula.“Olha, eu sei que é difícil acreditar, mas eu não tô inventando isso. Eu acheium lago no meio da floresta, cercado de flores, em um lugar que costumavaser uma clareira.”Irmã Sarah olhou bem nos olhos dela: sempre se sentia exposta quando airmã fazia isso, pois ela nunca falhava em descobrir se estavam ou nãomentindo para ela. Dessa vez, isso seria uma vantagem.“E o que aconteceu lá?” perguntou a irmã.“Quando eu cheguei, não tinha nada demais, eu sentei na margem e termineio mapa ali mesmo. Mas quando eu estava indo embora, um lobo enormeapareceu no meio do nada!”“E você está aqui inteira para me contar a história.” comentou Sarah.“Ele parecia treinado, igual um cachorro. Ficou ali, brincando comigo, e derepente ele parou e eriçou os pelos, depois virou pra mim e eu juro que euouvi uma voz na minha cabeça dizendo ‘volte’.” contou Wendy.“E o que aconteceu depois?” perguntou a irmã Sarah.“Bem, eu corri pra cá. E o tempo todo eu sentia que havia algo atrás de mim,o ar parecia pesado, eu não sei explicar, foi tudo muito estranho e sinistro.”suas mãos tremiam quando terminou a história.

Sarah percebeu.“Deixe-me ver suas mãos.”Assim que obedeceu, Wendy percebeu que havia, sem querer, reaberto algunsdos cortes que fizera mais cedo.“O que é isso?” perguntou olhando para Wendy.“Eu fiz sem querer quando a irmã Romena foi no meu quarto e começou adizer que eu era louca.” confessou Wendy. “Foi um acidente.”“Entendo.” disse a irmã Sarah, deixando as mãos de Wendy.“Você acredita em mim, não é?”A irmã Sarah ficou quieta, olhando para os lados como se esperasse ajuda de

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alguém para responder àquela pergunta, como se soubesse que Wendy não iagostar da sua resposta.“Irmã Sarah, por favor! Você não acha que eu estou louca, né?” sua voz saiumais alta do que desejava.Antes que a irmã respondesse, alguém bateu na porta: “É a irmã Clara, asmeninas estão aqui.” anunciou a irmã do outro lado da porta.“Já vou.” disse irmã Sarah. “Wendy, tudo isso que você me contou é muitopeculiar.” o punho da irmã começou a bater na madeira da cama. “Eu não seise posso acreditar nisso. Nós voltaremos a discutir esses problemas de novoantes da festa, entendeu?”Terminando isso, ela guiou Wendy para fora do seu quarto e deixou as outrastrês entrar; Dana foi por último, tendo tempo para sussurrar no ouvido deWendy: “Você não acha que eu estou louca, né?”.

Se a irmã Sarah não tivesse fechado a porta em tempo, Wendy a teriaespancado.Apesar das últimas palavras que a irmã Sarah disse parecerem dar a entenderque não acreditava em Wendy, ela só conseguia pensar na mensagem que lhefora passada através das batidas na madeira: “Perigo. Não saia.”Wendy aproveitou que a irmã Clara havia saído da cozinha e se esgueirou atélá para pegar alguns biscoitos enquanto tentava organizar os fatos: se meterano meio de algo muito estranho que envolvia um lago mágico e um lobofalante. E de alguma forma, a irmã Sarah sabia o que estava acontecendo.“Mas por que ela não me contou ali?” perguntou para Wanda, que não estavaali.

Depois de dar-se pela falta da boneca, resolveu pegá-la no quarto, iriaaproveitar e dar um toque final no vestido que usaria na Festa de Inverno, nãoque o vestido precisasse, mas ela queria ocupar as mãos, isso sempre aajudava a pensar.

Antes de abrir a porta do quarto, sentiu um abraço bem apertadovindo por trás: a dona do abraço não devia ter mais da metade da altura deWendy.“Obrigada.” disse uma voz infantil cheia de gratidão.Wendy se virou e viu a menina que havia ajudado lá embaixo abraçando suacintura.“De nada.” respondeu, acariciando a cabeça dela. “Qual o seu nome?”Ela largou Wendy: seus cabelos, quase cacheados, eram mais compridos quepareceram mais cedo, mas não passavam do pescoço. Tinha um sorriso

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travesso e se movimentava com graça, com certeza era uma das alunas debalé da irmã Natalie.

Mas nada disso chamou tanto a atenção de Wendy como os olhos dacriança: vivos, de um castanho avermelhado que ela nunca tinha visto antes.Sempre amara a cor dos próprios olhos (verde claro com umas pintinhaspretas no olho esquerdo), mas sentiu uma pontada de inveja quando viu os damenina.

“Eu sou Ally, a princesa do caos!” respondeu a criança.“Eu percebi pela confusão que você fez lá embaixo.” disse Wendy

quando conseguiu parar de rir, “eu sou Wendy, a plebeia. Deseja entrar nosmeus humildes aposentos?”

“Claro!”Ally se jogou na cama e ficou olhando os livros espalhados pelo chão,

enquanto Wendy colocou Wanda sobre o criado mudo e começou a costuraralguns detalhes no babado do seu vestido preto e branco.

“Onde você arranjou todos esses livros?” perguntou Ally.“Na cidade. A irmã Sarah sempre compra um livro usado pra mim

quando nós vamos até lá. Você gosta de ler?”“Gosto!”“Pode pegar um.” ofereceu Wendy Ally deu um grito de alegria;

pegou o primeiro livro que viu e ficou folheando ele enquanto pulava nacama. Era difícil não gostar da garota, mas havia uma preocupação estranhacrescendo em Wendy em relação a ela.

Parecia que ia amassar o livro.“O que você fez pra irritar a Dana?”“Perguntei pra ela o que ela fez para ser abandonada depois de morar com ospais de verdade por oito anos.” respondeu sem tirar os olhos do livro.Wendy deixou a agulha cair no chão e se perder em uma fenda quando ouviuaquilo.“Como você sabe?” sua voz saiu mais alta e rápida do que planejara pelasegunda vez naquela manhã.“Eu ouvi a irmã Sophie perguntando pra irmã Romena, mas eu não entendimuito, só que ela morou com os pais de verdade até os oito anos. Eu nãosabia que ela ia ficar tão brava comigo porque eu perguntei da história pra elana frente de umas amigas.”“Você é insana! A Dana morre de raiva dessa história, ela finge que nuncaaconteceu!” disse Wendy. “Por isso ela achou que eu tinha contado algo pra

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você.” esperava ter comentado baixo o bastante para Ally não ouvir.Se enganara.

“Então você sabe a história toda?” perguntou Ally, parando de pular na camae encarando Wendy com curiosidade.“Conheço.” admitiu.“Me conta?”Wendy e Dana podiam se detestar mutualmente, mas mesmo assim, Wendynão gostava de contar aquela história: sentia que se rebaixava ao nível daDana ao fazê-lo, pois era algo muito íntimo que, se possível, apagaria do seupróprio cérebro para sempre, já que ficava difícil manter a rixa que elascultivaram nos últimos seis ou sete anos quando se lembrava.

Nesse instante porém, só conseguia pensar na Dana e naquelaspalavras debochadas que ela repetiu no seu ouvido: “Você não acha que estoulouca, né?”“O nome dela é Danielly O’Hara, é a filha única dos O’Hara, já ouviu falardeles? Dominic e Alexandra O’Hara?”Ally fez que não com a cabeça.“Eles já foram o casal mais rico da cidade; parece que o avô de um dos doisfez fortuna de algum jeito e eles herdaram tudo.”“Que inveja.” comentou Ally.“Eu não sei se sinto inveja ou pena deles. Enfim, quando a Danielly nasceu,eles se dedicaram a fazer tudo por ela, deram do bom e do melhor, sempre.”“Foi assim por oito anos, então eles faliram.”“O que é ‘falir’?” perguntou Ally.“É um truque de mágica que dá errado. Eles fazem muito dinheiro sumir enão conseguem trazer ele de volta.”“A Dana continuou pedindo brinquedos, pôneis, sorvetes caros, tudo com quetinha tido desde que nasceu. Ela não reagiu muito bem quando os pais delacomeçaram a falar não.”“Ela chorava, esperneava e fazia chantagem com os pais, mas eles semprediziam que não tinham dinheiro para pagar nada do que ela queria.”“E aí, o que aconteceu?” perguntou Ally, parando de pular.“Um dia ela gritou: ‘Vocês não me amam mais! Só querem gastar com vocêsmesmos, não ligam pra mim nem pra nada que eu quero! Eu odeio vocês! Euvou embora pra sempre, pra algum lugar que me queiram, e aí vocês vão searrepender, e nunca mais vão me ver!’ Ou alguma coisa assim, e depois elasaiu de casa e foi direto para o único lugar que sabia que a receberia.”

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“Aqui?” perguntou Ally, apontando para o chão.“É, aqui no Orfanato das Neves.”“Quando ela chegou, inventou uma história para as irmãs, dizendo que ospais dela a haviam expulsado de casa porque não amavam ela mais. As irmãs,e praticamente a cidade inteira, sabiam que ela era filha dos O’Hara e queaquilo devia ser mentira, mas deixaram ela ficar mesmo assim.”“Quando o primeiro mês dela aqui terminou, Danielly resolveu sair daqui evoltar pra casa.”“Mas ela ainda tá aqui.” comentou Ally, virando a cabeça como uma corujapara Wendy.Wendy assentiu.“A casa onde ela morava havia sido vendida, junto com tudo que estava ládentro: quadros caros, móveis e até os brinquedos dela. O novo dono da casadeixou ela passar a noite lá, mas na manhã seguinte deu umas moedas emandou ela sair.”“Dana voltou pra cá. No começo ela não falava nem fazia nada. Mas depoiscomeçou a bater nas outras meninas, pegar as coisas delas, começava a chorare berrar no meio dos corredores sem motivo algum, quebrava vasos, pratos equalquer coisa que encontrasse e que fizesse um barulho legal quando batessena parede.”“Nossa. Então os pais dela não amavam mais ela de verdade?” murmurou aAlly.“Acho que sim. Por isso ela é desse jeito. E nunca mais fale com ela sobreisso.” terminou Wendy.“Não se dá ordens para uma princesa!” disse Ally, recuperando o sorrisotravesso. “Mas tá bom, não falo mais nada.”O resto da manhã foi dividido entre Ally, a princesa do caos, ordenando queWendy lesse Alice No País das Maravilhas em voz alta, fazendo caras evozes engraçadas nas falas do Chapeleiro Maluco, e Wendy trabalhando noseu vestido enquanto Ally tagarelava sobre seu mundo imaginário e caótico,como o de toda boa criança de dez anos deve ser.Vez por outra via Ally pegar e examinar Wanda com olhos e dedos curiosos,mas antes que Wendy pudesse pedir indelicadamente para ela não tocasse naboneca, Ally já havia perdido o interesse.Não era por mal, apenas odiava que tocassem em Wanda. Até hoje, só a irmãSarah tinha conseguido permissão de fazê-lo.“Ele é lindo!” comentou Ally deslumbrada quando Wendy guardou a linha e

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a agulha no guarda-roupa.“Obrigada.” em ocasiões normais teria perguntado algo como “achamesmo?”, mas dessa vez ela mesma tinha que admitir: fizera um trabalhoexcelente.O vestido misturava preto e branco da forma mais criativa que a garotaconseguira, ficou até melhor do que havia desenhado uns seis meses atrás.“Experimenta!” pediu AllyWendy já estava pronta para se trocar, quando lembrou:“Não tenho espelho aqui no quarto, tem um banheiro no final do corredor,quase ninguém usa, vamos?”Ally foi na frente, correndo, meio saltitando.

“Essa deve ser a melhor das alunas de dança da irmã Natalie.” PensouWendy, logo atrás da pequena bailarina, carregando o vestido. Ainda podiaouvir as meninas gritando lá embaixo, logo seria hora do almoço.“Por que é tão grande aqui?” perguntou Ally, enquanto Wendy trancava aporta do banheiro.“Eu não tenho ideia, mas adoro que o orfanato seja grande.” comentouWendy, colocando o vestido, sem se importar com Ally ali.Aquele banheiro era empoeirado por nunca ser usado (assim como váriassalas que Wendy e suas amigas haviam descoberto anos atrás), o que faziadele um lugar perfeito para começar um conto do Sherlock Holmes. Haviauma janela entreaberta, grande o bastante para passar a irmã Romena por ela:a vista dava para mesma direção que a do seu quarto.

Cobrindo a maior parte da parede à esquerda da entrada, estava oespelho, junto à várias pias que um dia foram brancas. Sobre uma delas,havia uma garotinha de olhos castanhos avermelhados batendo palmas.“Ele ficou lindo em você!” Ela disse.“Obrigada.” Concordou Wendy, enquanto arrumava o cabelo com o mesmopenteado que pretendia usar naquela noite.“Esse lugar deve te trazer boas lembranças.” Comentou Ally, olhando para opróprio reflexo no espelho; conseguia ver seu corpo todo por estar sobre omármore que cercava a pia.“Quê?” Perguntou Wendy, sem ter certeza se havia ou não entendido apergunta.“Você sabe.” Ally virou-se para encará-la. “Coisas legais aconteceram aqui.”“Que coisas?”“Você não se lembra?” Perguntou sorrindo, mas não havia nada de meigo

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dessa vez.De repente, Wendy percebeu: aqueles cabelos, aqueles olhos avermelhados, ojeito como andava. Wendy teria reparado com certeza, se a tivesse visto noorfanato.

Mas não havia como ter visto Ally antes: Ally nunca pertencera aoOrfanato das Neves.

“Quem é você?” Perguntou Wendy, se afastando em direção à saída.“Ally. Não tente abrir essa porta.”

Wendy tentou: trancada. Tateou pela chave: sumira.“Engraçado o que essa coisinha pode fazer, não é?” Disse Ally,

apontando para a chave na sua mão e atirando-a pela janela. “Então você nãose lembra mesmo?”

A mesma sensação sinistra e pesada que sentira na Floresta Brancanaquela manhã estava de volta, pairando pelo ar como uma mortalha.Emanando de Ally.

“O que é você? Por que me trancou aqui?!” Gritou Wendy.“A princesa do caos. Porque eu quero. Próxima pergunta?”“Ally, abre a porta!”“Não se dá ordens para uma princesa!” Ally pulou de onde estava,

dando piruetas como uma ginasta mirim do mal, caindo e se agarrando nopescoço de Wendy. “Eu vou brincar com você.” Seus lábios tocaram a testadela e tudo ao seu redor ficou escuro.

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Capítulo 3

“Ally?” A voz de Wendy tremeu na escuridão. “Isso não tem graça.”Silêncio foi sua única resposta.Ainda estava caída no chão. Sua cabeça latejava, mas não lembrava de a terbatido; sentia também que caíra em uma poça d’água, estas se formavam nosbanheiros do orfanato tão rápido quanto aquele negócio verde e nojento queaparece no pão velho.Wendy abriu os olhos e os esfregou como se tentasse espantar os restos deum pesadelo grudado em seus olhos: Ally havia sumido, a noite caíra e tudoque podia ver eram as vagas silhuetas dos objetos ao seu redor.Ela se levantou e tateou pelo interruptor, mas as luzes deviam estarqueimadas, ou o interruptor emperrado, pois não conseguia fazê-lo se mexerpor mais que tentasse.“Ally?” Chamou mais uma vez, deixando toda a tensão do corpo se desfazerquando percebeu que a princesa do caos não iria responder.Se aproximou da janela e deixou o rugido do vento de inverno acariciar seurosto enquanto nuvens mais espessas que a sujeira que estava acostumada atirar debaixo da sua cama faziam seu melhor para esconder a lua, emborafalhassem de vez enquanto, e...Algo estava errado.Deveria haver alguma iluminação lá embaixo, mal feita, mas enorme, juntocom as vozes misturadas de mais gente que Wendy conseguiria contar.Deveriam estar rindo, cantando e se divertindo na Festa de Inverno, mas oúnico sinal de vida era o piar solitário das corujas brancas.Wendy começou a se afastar da janela, sempre mirando a noite, sacudindo acabeça e sentindo um frio ermo crescer na sua barriga, como uma imensamontanha de neve prestes a sofrer a maior avalanche dos últimos dezesseisanos.

Talvez pensassem que ela tivesse fugido durante a festa (já havia feitoisso uma, ou talvez cinco vezes), talvez nem tivessem pensado em procurá-ladentro do Orfanato.Sem desviar os olhos da janela, começou a tatear pela maçaneta, mas suasmãos deviam estar tremendo demais para a encontrar: Ally havia feitoalguma coisa. A festa já havia passado, vários dias já podiam ter passado

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enquanto ela estava ali, inconsciente, no “banheiro do segundo andar quequase ninguém usa”.

Uma corrente elétrica de desespero a fez finalmente mirar os olhos namaçaneta.

Frio, horror, pavor, tremor, choque. Todos juntos, misturados numacoisa só.Suas mãos estavam atravessando a maçaneta, bem diante dos seus olhos.“Não.” Tentou girar a maçaneta de novo.

“Não.” E de novo.“Não... não, não, não, NÃO!”

Tentou esmurrar a porta, mas seu braço, cabeça e quase todo o tronco aatravessaram.Wendy começou a se debater às cegas, tentando achar algo para segurar: Nãohavia nada além de um poço profundo feito de escuridão do outro lado daporta.Era impossível ver qualquer coisa lá, mas ver não era necessário.

No instante em que conseguiu recuperar o equilíbrio, sentiu que, ali,no fundo daquele poço, havia algo: algo maior que todos os pesadelos que játinha vivido, algo capaz de inundar o ar com o sibilo do sinistro e a sensaçãofunesta de que nada, nunca mais, voltaria a ser bom. Ela podia sentir arespiração lenta e pesada daquilo vibrando no seu peito. E no seu íntimo,sabia que esse “algo”, o que quer que fosse, tinha fome.Quando voltou para dentro da segurança do banheiro, seus olhos estavamarregalados como os de uma pintura de Margaret Keane, e cada pedacinhosem cor da sua pele rastejava em arrepios. Queria um abraço, queria a irmãSarah e a Wanda, a Christina, a Mary, a LaVerne, a Cora... até a Dana e airmã Romena, nunca quis tanto ver um rosto conhecido na sua vida quantoagora.“...socorro... SOCORRO!”Junto com sua voz, os pássaros que, há pouco dormiam, debandaram nanoite.

“AQUELA PIRRALHA ME PROVOCOU!” Esbravejou Dana para a irmãSarah.

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Sarah havia passado quase a manhã inteira conversando com Dana, Ruth eAgnes juntas no seu quarto, mas foi inútil: as três eram como monstrinhosdeterminados a fazer qualquer coisa para mudar o assunto da conversa; nãotinha certeza de como, mas começaram falando sobre porque estavambatendo na menina e terminaram numa discussão sobre pudim.Então a irmã Sarah resolveu que conversaria com uma de cada vez.

Agnes era um caso perdido, não conseguia falar cinco palavrasseguidas sem pronunciar pelo menos todas erradas, mas ao que a conversaindicava, ela só estava lá porque a Dana e a Ruth também estavam.Ruth parecia meio sem jeito sentada na cama da irmã Sarah, que se conteve omelhor que pode para não ficar corrigindo a postura da garota o tempo todo.Conseguiu uma explicação bem vaga do que aconteceu dessa vez.

E agora era a vez de Dana.“Por favor, não grite. Me explique como aquela criança te provocou,

talvez nós possamos fazer alguma coisa sobre isso.” Disse a irmã, calma eexibindo um sorriso mais amigável do que Dana merecia.

“Eu não quero.”“Dana, olhe para mim. Não há nada que você precise esconder. Nós

criamos você desde que chegou aqui.”“Eu. Não. QUERO!” Dana respondeu entre o ranger de dentes. Sarah

entendeu porque ela estava evitando fazer contato visual: seus olhos estavamvermelhos e úmidos.

Mesmo se tratando da dona do pior histórico de todos os temposdentro do orfanato (o que era um feito e tanto, já que competia com Wendy),Sarah sentiu uma enorme empatia pela garota e, acariciando seus cabelosloiros, disse, com doçura que até agora só havia usado com Wendy e suasamigas: “Dana, me deixe ajudar você.”

Ela não respondeu.“Você não quer que eu peça para a irmã Romena resolver isso, não

é?”Dana fez que não com a cabeça.Sarah sempre fazia essa pergunta quando tinha dificuldades com as

meninas, costumava dar ótimos resultados, o que era um alívio, já que odiariapedir de verdade para Romena lidar com as meninas: elas já eram órfãs, nãoprecisavam de outro trauma pro resto da vida.

“Então me explique o que aconteceu.”“Ela perguntou... ela perguntou como eu me sentia por ter sido

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deixada pelos meus pais, como era não ser amada por eles na frente de ummonte de gente e eu tenho certeza que foi AQUELA DOENTE DA WENDYQUE CONTOU.”

“Não a chame assim.” Pediu a irmã Sarah.“Por quê? É verdade. Todo mundo sabe, a irmã Romena grita com ela quasetodo dia por causa disso. Até VOCÊ acha. Eu ouvi quando ela perguntou sevocê achava que ela estava louca. Você nem tentou negar! Eu SEI que foi elaque contou.” Afirmou Dana.

“Eu não acho que ninguém aqui tenha qualquer problema. Wendy éuma ótima garota e, por mais que vocês duas tenham suas diferenças, eu nãocreio que ela teria feito algo desse tipo só para te provocar. Ela mesma nãotinha ideia do que estava acontecendo quando veio falar comigo.”

“ELA MENTIU, EU SEI–”Sarah se aproximou rápido demais, derrubando o relógio que estava

sobre o criado mudo, para ficar cara à cara com Dana e dizer: “Não. Grite.”Dana engoliu seco e não se deu ao trabalho de terminar a frase.

Quando queria, irmã Sarah conseguia ser mais assustadora que a irmãRomena.

“Ótimo.” Continuou Sarah, se afastando de Dana. “Eu vou conversarcom a menina, descobrir como ela ficou sabendo sobre os seus pais e tercerteza de que nada desse tipo aconteça de novo. Se realmente tiver sido aWendy quem contou, a irmã Romena vai cuidar disso, mas eu duvido quetenha sido ela.”

Dana concordou com a irmã, as duas se abraçaram, como Sarahsempre insistia no final dessas conversas e, antes que Dana saísse, disse: “Medesculpe por abrir a porta daquele jeito.”

“Tudo bem.” Respondeu Dana, consciente do galo na testa e de comoseu nariz sangrara.

“E mais uma coisa: qual era o nome da menina?”Dana teve que pensar um pouco antes de responder: “Abby, eu acho.

Não, Ally.” E fechou a porta do quarto, sem chegar a ver o olhar atônito equeixo caído no rosto da irmã Sarah.“Essa não.”

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Wendy deu tantas voltas no banheiro que, se continuasse, acabaria deixandoum rastro no piso de madeira, como aquelas trilhas que estava acostumada aseguir quando entrava na Floresta Branca com as amigas.

Prometera a si mesma que, se saísse de lá viva, nunca mais assustariaas meninas do orfanato ou qualquer outra pessoa, até pararia de roubar(muitos) biscoitos da irmã Romena.

Mas nada mudava naquele banheiro frio, escuro e fedido.Suas bochechas ardiam demais para continuar limpando as lágrimas

que desistira de tentar esconder, por isso, agora tinha que aguentar o gostosalgado delas invadindo sua boca.

Talvez aquilo fosse algum tipo de castigo por tudo que fizera ehaveria uma lição para aprender quando tudo acabasse, igual aconteceu comaquele velho rabugento e os fantasmas do Natal no livro do Dickens.

Ou isso, ou algo que assustava Wendy só de imaginar: a irmã Romenapodia estar certa ao dizer que ela era louca.Se pelo menos estivesse presa no seu quarto, poderia fazer aquela corda comas roupas de cama de novo e fugir dali. Mas aí vinha outro problema: se dooutro lado da porta havia “algo” estranho e faminto, o que havia lá fora?Sentiu outro arrepio querendo tomar conta do seu corpo quando percebeu queera melhor não saber a resposta.A lua conseguiu escapar das garras das nuvens quando Wendy deu-se porvencida e sentou-se perto de uma das pias, encolhendo os joelhos até pareceruma lagarta num casulo.

Não conseguia pensar em mais nada para fazer: ninguém podia ouvi-la, não podia tocar na porta, nem no interruptor, não tinha nada útil ali dentro,como cordas, passagens secretas ou bolinhas de gude para passar o tempo, sópias, espelhos e...Alguém sentado à sua frente.Nunca um grito havia machucado tanto sua garganta e seus ouvidos quanto oque soltou ao reparar na sombra de alguém que não havia visto até o luarcomeçar a se apossar do cômodo.Aos poucos, a luz ia iluminando aquele lado do banheiro, revelando umamulher cujos cabelos pretos tapavam quase todo o seu rosto, enquanto suasmãos mexiam em algo que Wendy não conseguia ver.

A mulher não reagiu, e Wendy, ao mesmo tempo em que se acalmava,começou a sentir uma pontada de inveja do agasalho que ela usava, estavamuito frio e o vestido que ela vestia podia ser bonito, mas não era exatamente

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a melhor opção para uma noite de inverno.“Você me assustou.” Disse Wendy com um sorriso aliviado.A mulher não deu sinal de ter ouvido.“Você ainda está me assustando.” Ela disse, seu sorrindo fugindo sorrateiroda boca.“Eles não vão mais machucar você.” Wendy quase deu um salto para trás aoouvir a mulher falar.

“Eu prometo.” Ela continuou com sua voz ríspida e rouca, ao mesmotempo em que olhava para a parte do banheiro onde a luz não chegava.“Quem não vai mais machucar quem?”A resposta veio antes que pudesse terminar a frase: um som agudo, meioengasgado, vindo do canto perto da porta, o mesmo som que os bebês fazemquando engolem baba demais enquanto estão dormindo, forçando-os aacordar contra à vontade.De repente, um baque surdo, tão distante que parecia ter acontecido apenas nasua cabeça, era algo insignificante demais em comparação ao que aconteceuem seguida.A mulher se levantou e Wendy sentiu que estava de frente à um espelho comdefeito: Ela tinha seus cabelos, meio desfiados na franja e na parte de trás, osmesmos lábios rosados e vívidos em torno da boca pequena, mas era maisalta, seu nariz estava enrugado como o de um cachorro raivoso.

E havia os olhos.Se Wendy sentira inveja dos olhos de Ally, era porque nunca em seus

sonhos mais selvagens imaginou que uma pessoa pudesse ter olhos tãofocados e violetas.E aquilo nas mãos dela, era... seria...“Wanda?” Wendy disse atordoada: a boneca Wanda, recém remendada, comalgumas linhas ainda sobrando aqui e ali, pendurada nas garras... mãosdaquela mulher.Se ela tinha Wanda.

Essa mulher só podia ser...“Mãe? MÃE?!”Naquele momento, Wendy se esqueceu que estava presa no banheiro, quehavia um monstro horrível do outro lado da porta e dos baques ficando cadavez mais fortes na sua cabeça; não importava se Christina estivesse lá foraesperando, se a irmã Sarah tivesse um livro novo ou se o Orfanato das Nevesestivesse servindo o melhor jantar do século lá embaixo: Wendy só queria

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abraçar aquela mulher na sua frente.Mas ela apenas a atravessou como se fosse um fantasma desengonçado.“Mãe?” Tentou chamar de novo, mas sua voz nunca poderia alcança-la.Os baques que ouvia estavam tão altos que parecia que sua cabeça iaexplodir.Wendy sentiu uma ânsia enorme ao olhar sua mãe de novo: o braço quesegurava Wanda tinha um corte horrível, de onde pingava o sangue que caíanaquela poça que Wendy pensou ser água mais cedo.“Durma bem, querida.” Sua mãe disse, se ajoelhando perto do bebê queWendy não conseguia ver. O bebê que cresceria para um dia assistir à essacena como uma assombração.“Mãe eu–”O baque não aconteceu na sua cabeça dessa vez, foi na porta, e sua visãoficou embaçada, como se brincasse de cabra-cega com uma venda feitad’água. Então a porta se abriu.Foi como se o tornado mais veloz do mundo sugasse a noite, a lua e sua mãe.Ally estava de volta, ao seu lado, e a irmã Sarah estava ali também, paradasob o portal do banheiro.“Que pena.” Começou Ally, sem parecer nem um pouco desapontada.“Estava começando a ficar divertido.”Em meio à suas gargalhadas que misturavam inocência e crueldade, Ally fezseu caminho até a janela através de saltos e cambalhotas que desafiavam asleis da física. Wendy à ouviu cair na neve e começar a correr.“Wendy!” Sentiu as mãos da irmã Sarah sob sua cabeça e o tom de urgênciana voz dela. “Você está bem?”Wendy fez que sim com a cabeça, e tombou para o lado, inconsciente.

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Capítulo 4

Seus olhos ardiam sob a luz alaranjada irritante que alguém acendera no seuquarto: estava deitada na sua cama, com a cabeça latejando e, por algummotivo do qual não conseguia se lembrar, estava usando o vestido da Festa deInverno.Wanda a encarava com um olhar impenetrável e um meio sorriso acolhedor,costurado pelas mãos da sua mãe.Mãe... banheiro... vestido...“ALLY!” Gritou Wendy: tentou se levantar o mais rápido que podia, masacabou se enroscando nos cobertores e caiu de cara em algum clássico dasirmãs Brönte que ainda não começara a ler.“Não tem nenhuma Ally aqui.” Disse a irmã Sarah. Ela estava parada emfrente à sua cama, dando uma risada meio sem graça e constrangida. Wendynão sabia se ela estava rindo por causa do seu grito ou da sua queda.“Como você consegue ler com essa luz horrível?” Continuou a irmã, sesentando na cama da Wendy.“Com a lanterna que você me deu.” Ela respondeu.

Acabara de lembrar porque estava com o vestido, mas a lembrançaparecia algo tão fantasioso que só uma hipótese parecia fazer sentido: “Eu...eu acho que eu ando dormindo.” Wendy murmurou sem jeito.A irmã riu de novo, ainda contida, mas o constrangimento não estava mais lá.“Você acha que foi tudo um sonho então?” Perguntou ela.“Não foi? Então eu estou mesmo ficando louca?” Perguntou baixinho, semtirar os olhos do chão.“Wendy.” Chamou Sarah, ficando abruptamente séria. “Você não é louca.Não importa o que a irmã Romena, Dana e qualquer outra pessoa diga.”Em situações normais, Wendy se sentiria aliviada e até feliz por saber quealguém no Orfanato das Neves estava do lado dela.

Mas quando uma criança de dez anos surge do nada e te manda pradentro de um pesadelo com um beijo mágico da morte. Bem, não havia nadade normal nessa situação.“Nós precisamos conversar.” Continuou a irmã.“Eu não gosto quando você fala isso.”“Achava que você só não gostava quando eu dizia ‘acabou café da manhã’.”

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Um resquício de sorriso apareceu na boca de Wendy; era nessas horas que agarota se lembrava porque gostava tanto da irmã Sarah: porque apenas ela,em seu mundo inteiro, seria capaz de pegar uma situação tensa e descontraí-lacom um comentário desses.Mas depois do riso, o rosto da irmã se contraiu como se as palavras que tinhaa dizer fossem um limão amargo demais para sua boca.“Você vai deixar o Orfanato das Neves esta noite.” Confessou a irmã por fim.“Eu fui adotada?!” Wendy perguntou, sem esconder uma faísca de alegria.“Não. Wendy, entenda, eu não podia falar isso no meu quarto, não com tantagente ouvindo. Elas acabariam fazendo perguntas cujas respostas sãomelhores quando não ditas.”Isso não fez bem para Wendy, ela sabia o destino de quem saía do orfanatosem família.“Vocês vão me mandar pra trabalhar na fábrica então? Mas eu ainda nãotenho dezoito, a Dana é mais velha que eu e vocês não mandaram ela emboraainda!”“Não, meu anjo. Você não está indo trabalhar na fábrica, nem sendo adotada.Você está voltando para o lugar de onde você veio.”A última frase não poderia ter feito menos sentido, a menos que vocêsubstituísse o último verbo dela por “batata”, faria bem menos sentido assim.Havia várias luzes lá fora e uma falação já começava a se ouvir: a irmãSophia estava chamando as meninas do coral em voz alta, irmã Romena, asargento rouca e gorda, dando as boas vindas ao prefeito, e várias criançasgritando, pulando e correndo por toda parte.Tudo isso a lembrava: Chris logo estaria lá, esperando por ela.“Como assim? Eu praticamente nasci aqui.” Wendy perguntou, deixando umfio de impaciência implícito na sua voz.“Está tudo bem?” A irmã Sarah perguntou.Wendy já devia ter esperado por isso: a irmã Sarah sempre percebia quandoestava triste, irritada, emburrada, com fome (não era difícil perceber),exaltada, alegre, com raiva e, obviamente, impaciente.“Não é nada, é só que eu lembrei que logo a Chris vai estar aqui, mas podecontinuar.”“Você ainda não percebeu, não é?” A irmã Sarah cortou abruptamente.“Não percebi o quê?”Wendy viu a sombra alaranjada da irmã se dirigir até a janela: a luz sépiapintava a parte branca do hábito da irmã, enquanto o rosto tornava-se cada

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vez mais sombrio ao observar a algazarra lá fora.“Christina não vai voltar, nenhuma das suas amigas vai.”De repente, o incidente Ally parecia irrelevante.“Quê? Como você sabe?”“Por que elas voltariam? Por você?” Havia sarcasmo na voz da irmã.“Você nunca fala assim.”“Eu sei.” Ela disse, espremendo as cortinas da janela em suas mãos. “Eu sei,mas eu estou cansada da sua incapacidade de ver as coisas por conta própria.”“Irmã Sarah, do que você está falando?”“Que você pode não ser louca, mas é iludida.” As mãos da irmã tremiamagarradas no batente da janela, enquanto Wendy sentia uma pancadainesperada acertar o meio do seu rosto. “Ninguém lá fora quer você! Mesmoassim você se alimentou de esperanças inúteis ao fazer esse vestido para usarna festa.”

“Os casais lá fora, eles querem as crianças, não as adolescentes queagem como crianças. E todas as mentiras que você inventou? Você lê tantoque acha que vive em um livro, acha que é a personagem principal, acha quesuas historinhas e mentiras serão impunes, deve ser bom acreditar nisso, nãoé?”

“Isso não é verdade!” Wendy disse, ficando em pé de súbito, comsuas unhas enterradas nas palmas das mãos. “Irmã Sarah, do que você táfalando?!”

“De você, e de como gosta de se enganar.” A irmã respondeu, e peloreflexo do vidro da janela, Wendy viu que ela tinha os olhos fechados e aboca tremendo. “Acha mesmo que suas amiguinhas vão vir te ver? MESMO?Quantas vieram nos últimos anos?”

Silêncio, enquanto Wendy apenas encarava o vulto alaranjado dairmã, com os dentes cerrados, com a mais estranha raiva de todas crescendono seu peito: o que a irmã dizia machucava, não só porque as palavras eramruins, mas porque era a pessoa que mais amava neste mundo quem estavaproferindo-as.

“ME RESPONDE WENDY, QUANTAS? A Kristell? Não, nuncamais pisou aqui, a Mary? Ela nem deve lembrar o seu nome. A Chris? Pff,não me faça rir. Nenhuma delas se importa com você. NE-NHU-MA. E eu?Eu senti pena de você, tanta pena da menininha solitária que virei sua amiga.Olhe suas mãos, agora.”Wendy tinha a boca aberta e o coração afundado, lágrimas nos olhos e calor

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no sangue, que era bombeado com tanta violência em suas veias que, se nãofosse pela última frase que a irmã disse, Wendy teria acertado um tapa nacara dela.Mas ela olhou para suas mãos.

E elas não estavam lá.Eram garras, violentas e pontiagudas.“AHHHHHHHH!” Ela caiu na cama com o susto, enquanto ouvia suagarganta pedindo férias desses gritos todos.

Estava ofegante e de olhos vidrados enquanto assistia as suas mãostomando o lugar das garras de volta.“O que... foi... isso?”“Esses furos nas palmas das suas mãos, você os faz quando está zangada, nãoé?”Wendy assentiu, sem desviar os olhos das próprias mãos.“A raiva é capaz de transformar você, isso acontece porque você não é comoas outras meninas daqui, porque você não é daqui, você não é humana.”Wendy desviou os olhos das suas mãos para Sarah, queria fazer milhares deperguntas e contestar o que a irmã Sarah tinha acabado de falar: comopoderia não ser humana? Ela falava, dormia, cheirava, vivia e comia comouma humana.

Certo, talvez ela não comesse e, às vezes, nem cheirasse como umahumana, mas a maioria das meninas do orfanato também não.

Por outro lado, estava curiosa, e queria fazer as garras aparecerem denovo, sair por aí rasgando cortinas e falar para Cora e LaVerne que havia ummonstro à solta.“Não sou humana?” Ela perguntou, ainda sorrindo com a ideia.“Não, você é uma mestiça.” Respondeu Sarah.“Mas a irmã Natalie ensinou que mestiços também são humanos.”A Irmã Sarah olhou longa e demoradamente para ela, tentando decifrar se elahavia falado sério ou não.“Não é esse tipo de mestiça.” Disse por fim.“Então de que tipo?”“Do tipo que tem um dos pais humano, e o outro não.”“Como assim?” Ela perguntou.“Wendy, um dos seus pais era um demônio.”

Wendy não sabia que seus olhos podiam se abrir tanto, até a irmãSarah dizer aquilo.

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“Mas eu não sou do mal! E minha mãe fez essa boneca pra mim. Ela meamava! Você e as irmãs vão me exorcizar? Eu vou começar a vomitarervilha?!”“Calma, Friedkin! Isso não quer dizer que um dos seus pais seja mau. Nemque você seja, nem que qualquer pessoa que nasça assim seja, e nem que nósvamos exorcizar você. A única coisa que isso quer dizer é que você e outrasmestiças podem fazer coisas que humanos normais não podem.”“Como isso?” Perguntou Wendy, apontando para suas próprias mãos.“E várias outras coisas.” Acrescentou a irmã Sarah.“Posso usar as garras com a Dana?”“Wendy...” Começou Sarah com desaprovação.“Desculpa.”“Não, não é isso. Wendy, agora você entende? O seu lugar não é aqui, vocêprecisa voltar para o lugar de onde você veio.”“Então, vocês vão me mandar para” Wendy engoliu seco. “Lá embaixo?” Elacompletou chocada, apontando para baixo, e ela não estava se referindo aoquarto da irmã Sarah.“Não, meu anjo, ninguém esta indo para ‘lá’. O lago que você encontrou.Você já deve saber que ele só aparece quando a lua está cheia, não é?”“Sei.” Disse Wendy.“O lago é uma passagem. Ele te leva deste lugar para um onde tudo isso queconversamos é normal. É de lá que você veio.”Se não fosse pelo que acabara de ver acontecer com as suas mãos, e pelo fatode ter visto o lago, acharia que a irmã Sarah estava lendo muito C.S. Lewis equerendo pregar uma peça nela.

Mas aquilo tudo estava fazendo mais sentido do que gostaria deadmitir. À essa altura, se dissessem que duendes contavam moedas nosbancos e vespas eram espiãs que montavam libélulas mágicas de outromundo, talvez acreditasse também.“Lá tem elfos?” Perguntou Wendy. “Eu gosto de elfos.”A irmã Sarah, em uma perfeita imitação da irmã Romena, estapeou a cara ououvir isso.“Suas perguntas, elas me assombram.”“Vou tomar isso como um elogio.” De algum jeito, conseguiu rir ao dizerisso.O coral começou a cantar Hol Mich Heim, do musical Elisabeth, DieLegende Einer Heiligen: Wendy sentiu uma vontade enorme de estar lá fora.

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Amava aquela música, amava o significado dela, “Leve me Para Casa”, e, pormais que ela não tivesse a menor ideia de como formar uma frase em alemão,conhecia aquela música e seu significado de trás pra frente.

A canção maravilhosa fazia um contraste perfeito com o silênciomortífero da visão com que a Princesa do Caos a havia presenteado.Toda a graça de seus comentários desapareceu quando se lembrou da meninade cabelos castanhos fogo.

“Irmã Sarah, o que era a Ally? O que ela fez comigo?”“Hol mich heim.” Cantava o coral lá fora.A cor sumiu um pouco do rosto da irmã Sarah.

“Ela estava torturando você, manipulando suas piores lembranças enquantoforçava você a revivê-las. Ally se alimenta do terror das pessoas, criando umtormento gigantesco em suas vítimas, perturbando-as tanto que, bem, elasacabam preferindo encerrar o sofrimento por conta própria.” A irmã abraçouforte Wendy, passando as mãos pelo vestido da garota e sussurrando “Eu nãoquero nem pensar no que teria acontecido com você se eu tivesse demoradomais.”

Wendy não sabia como responder àquilo: perceber que havia acabadode se colocar na beira do abismo da morte e acenado para o que quer queestivesse no fundo a deixava atônita e trêmula. Tanto que, quando falou denovo, sua voz saiu num gaguejo: “Então o que eu vi, aquilo era umalembrança?”

“Uma das piores, com certeza.”Isso era ainda mais perturbador.Wendy nem sabia que tinha lembranças de sua mãe até Ally aparecer.“Niemand hört, niemand kommt.” Continuava o coral, “ninguém te

escuta, ninguém está vindo” na tradução, Wendy sempre se arrepiava nestetrecho.

A mais inesperada e misturada das vontades veio: parte dela desejavanunca mais ver a Princesa do Caos, outra parte queria poder voltar paraaquela “visão” e impedir a irmã Sarah de interromper, só para saber o que iriaacontecer com a sua mãe.

Só para vê-la de novo.Uma bola de neve na janela atirou Wendy para longe de seus

devaneios e a colocou de volta no quarto, a tempo de ouvir a irmã falando:“Guarde seus livros.”

“Quê?”

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“Está quase na hora de ir, meu anjo.”“Ir? Irmã Sarah eu quero ficar aqui com você e entender o que tá

acontecendo!”“Querida, eu adoraria, mas não há tempo.” A irmã disse apressada, colocandoa mão quente sobre o ombro de Wendy. “Se há demônios como a Ally nasterras do Orfanato das Neves, quer dizer que ele já deve estar aqui para tebuscar, e ele tem que ser rápido, senão a passagem fechará.” Disse a irmãSarah.

Antes que Wendy pudesse perguntar “ele quem?”, a irmã aindaacrescentou, tirando a mão do ombro de Wendy e suplicando com os olhos:“Me desculpe pelo que eu disse sobre suas amigas e sobre você ser iludida,não era verdade, eu só queria mostrar o que você é capaz de fazer, e euprecisava te irritar para isso.”

Ninguém nunca conseguiria desarmar Wendy como a irmã Sarah.“Tudo bem, de verdade, eu só quero poder ficar com você. Por favor.”“Wendy, meu anjo, você sabe que se você fosse adotada nesta noite, vocêteria que ir embora do mesmo jeito, não sabe?”“Isso é diferente.” Começou Wendy.“Tudo bem, eu concordo, meu anjo, mas me diga: Cadê aquela aventureiraque eu conheço? Que adora explorar o mundo e se meter em todas asconfusões possíveis e impossíveis e desbravar tudo ao seu redor?”Wendy respirou fundo: irmã Sarah estava falando a verdade, e ela reconheciaisso, mas ainda assim, não era a mesma coisa, não para ela: “Tudo que eu fiz,eu fiz sabendo que estava segura, aqui com vocês: os sustos nas meninas nodia das bruxas, os quartos trancados que você me ensinou a destrancar,colocar ovos podres nos sapatos da irmã Romena–”“Foi você?!” Disse a irmã Sarah incrédula.“Vai contar pra ela?!”Irmã Sarah fez que pensou um pouco no caso, depois negou com a cabeça.“Obrigada. Até explorar a floresta e todos os lugares que vocês levam agente. É diferente, eu sempre soube que eu acabaria voltando pra cá, onde eutenho você e algumas amigas, que me conhecem e gostam de mim. Eu nãoquero perder isso ainda.” Confessou Wendy.A irmã Sarah a abraçou com muita força e Wendy retribuiu.

“Nur ein verzweifelter Schrei verhallt in Einsamkeit” O coral cantava,e Wendy traduzia mentalmente: Apenas um grito solitário, desaparecendosolitário.

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“Wendy, se você fosse adotada–”“É diferente.” Wendy a cortou, sem querer ser mal-educada. “Eu poderiavoltar.”“Você também poderá voltar de lá.”“E eu estaria sendo adotada por uma família, em segurança.”As mãos da irmã Sarah acariciavam com amor de mãe os cabelos escuros deWendy.“Meu anjo, você será acolhida por uma família inteira de pessoas como vocêquando você for.”“Mas, eu não quero ir, eu quero ficar com a LaVerne, a Cora. Eu quero ficarcom você!”“Wendy, acredite, eu também não queria que você fosse, eu nunca suspeiteique você fosse uma mestiça, mas vai ser melhor para você ir, eles têm umacidade subterrânea inteira para você explorar, Kahsmin vai te contar tudo quevocê quiser e precisar saber, ele pode até saber algo sobre seus pais, etambém, outras garotas do orfanato já foram para lá, então você não estariasozinha.”Antes que Wendy perguntasse: “que garotas?” ou “o que é um Kahsmin?”,um barulho estrondoso de uma porta sendo aberta fez as paredes tremerem.Só as pessoas lá fora pareciam não ter ouvido.“O que foi isso?” Perguntou Wendy, pensando em outra Ally, aparecendo aqualquer momento nas escadas.“Sua carona deve ter acabado de derrubar a porta dos fundos, de novo,venha.”Wendy, vencida pela falta de opções, seguiu a irmã escada abaixo, tentandoainda protestar, dizendo que não tinha feito malas.“Eu já arrumei elas pra você.”E que nada daquilo fazia sentido.“Sentido é a última coisa que essa noite vai fazer, meu anjo.”E tentou ainda argumentar que havia um monte de documentos chatos queprecisavam ser preenchidos quando uma garota era adotada ou saía doorfanato.“Eu já cuidei disso também.” Respondeu Sarah ofegante.“Mas como–”“Eu já disse, você não é a primeira mestiça a sair daqui do orfanato.”“Quem eram as outras?” Perguntou Wendy ansiosa, atravessando o hall atrásda irmã Sarah, em direção à porta dos fundos.

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“Você vai ver.” respondeu a irmã com um sorriso de quem está aprontandoalgo.“Por que você não me f–”A irmã Sarah parou sob o batente da porta que levava para uma antessala nosfundos, suas mãos taparam a boca de Wendy.“Sarah.” Disse uma voz lenta e pegajosa, como se seu dono estivesse fora desi há anos.“Fester.” Respondeu Sarah, tirando sarro descarado da forma como o homemfalava.“É um prazer delicioso vê-la aqui.” Fester continuou.“Você está mais nojento que da última vez.” Sarah respondeu num tomdesprezível que Wendy nunca a vira usar antes.Um movimento brusco e Wendy pode ver que o homem estava frente à frentecom a irmã Sarah.“Cuidado com a boca.” De repente, aquela voz lenta e pastosa pareceu muitomais ameaçadora que a própria irmã Romena no dia de pagar contas.“Posso listar seus erros?” Perguntou a irmã Sarah, batendo o indicador naprópria boca: tudo aquilo parecia uma brincadeira para a irmã.“Eu quero a mestiça.” Ele respondeu.“Primeiro erro: você derrubou a porta. Ele não vai ficar feliz.”“A garota, atrás de você.” Ele disse, Wendy sentiu os cabelos da sua nucaarrepiarem quando percebeu que ele notara sua presença.“Segundo erro: Me chamou para um encontro, me deixou esperando e me deua pior noite da minha vida.”“QUÊ?!” Wendy não se conteve.

Esqueça a Ally, o lobo gigante, o lago mágico, os olhos coloridos etudo mais: essa foi de longe a declaração mais inesperada e perturbadora danoite.Uma garra, fina, pálida e esverdeada, muito mais funesta que a que Wendyviu aparecer no lugar das suas próprias mãos, agarrou o pescoço da irmãSarah e jogou-a contra a parede, fazendo um estrondo bem mais forte que oproduzido por Agnes quando ela resolvia dar uma de brigona e bater nasparedes pra assustar as meninas.Tudo ao redor de Wendy pareceu desaparecer naquele instante: o luar, o frioentrando pelo lugar onde deveria haver uma porta, o som do coral, que agoracantava o hino da cidade, a falação e o grasnado distante dos corvos.

Só havia uma realidade: aquele homem, ou seja lá o que aquilo fosse,

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estava atacando a pessoa que Wendy mais amava nesse mundo e no próximo.Ela não percebeu suas próprias mãos se transformando em garras, ou

o tamanho do ódio que sentiu, só o ataque violento que desferiu no homempara fazê-lo largar a irmã Sarah.

A irmã ficou em pé, massageando o pescoço, enquanto Wendy bufavade raiva e se afastava do homem.“Eu vou sentir essa dor amanhã.” Começou a irmã Sarah, tossindo, enquantoo homem tentava se levantar e Wendy ia para perto da irmã. “Eu não seicomo agradecer, Wendy.” Ela disse, dando tapas nas costas da garota.Agora que conseguia ver Fester, também conseguia entender porque osuposto encontro entre ele e Sarah havia sido horrível: ele parecia umamistura cruel entre um homem adulto, alto e loiro, com uma cobra.

Havia uma mistura de orgulho e assombro em Wendy ao perceber queas marcas de unhas no rosto dele foram feitas por ela.“Você vai virar história, garota.” Sibilou Fester, tremendo de raiva.Embora Wendy estivesse apreensiva, e todo seu surto de raiva repentinaestivesse dando lugar ao medo, a irmã Sarah continuava batendo de leve oindicador nos lábios, esperando por algo.E algo veio: uivando na entrada do Orfanato, estava o imenso lobo queWendy vira naquela manhã na beira do lago, tão grande quanto um pônei ecom olhos tão azuis quanto o mar.“Como ninguém ouviu essa barulheira toda?!” Pensou Wendy, e ao longe, avoz desafinada de Dana se sobressaiu no coral, respondendo sua pergunta.“Terceiro e último erro: você deixou ele seguir você.” Ela disse, como seacabasse de vencer um argumento com uma criança impertinente.Fester tinha pupilas finas como as de um gato, e Wendy as viu se dilatandocomo um daqueles peixes engraçados e cheios de espinhos que viram umbalão quando se assustam.O que aconteceu depois foi confuso, mas pareceu que um tapete invisível foipuxado sob os pés de Fester e, antes que ele tocasse o chão, uma rajada devento, muito mais forte que qualquer outra que Wendy já vira, fez o corpotodo dele se estatelar contra a parede da antessala.Coitada da parede, ficou toda rachada com a força da pancada do corpo.Olhando de novo para onde deveria haver uma porta, Wendy viu que o lobonão estava sozinho: um homem com uma longa capa preta, cheia de fivelas ebotões nas mangas, e um capuz cobrindo os olhos e a maior parte do narizestava a acariciar o pelo do animal.

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Não tinha certeza se deveria sentir alívio ou medo, então se limitou a mantero olhar assombrado e boquiaberto que aquela figura encapuzada lhe causavaenquanto ele cruzava o caminho na direção de Fester, puxando com lentidãoas mangas de seu sobretudo.

Para a surpresa de Wendy, ele tinha mãos, não garras.“Você está com os D’arlit?” Ele perguntou com voz grave.Fester fez que sim com a cabeça.O homem encapuzado, comicamente mais baixo que Fester, agarrou-o pelorosto.“A Harbinger da Morte o mandou?”Fester assentiu, tentando lutar para se libertar da parede e grunhindoincoerente.“Diga a ela.” O um barulho igual ao de ovos queimando numa frigideira seespalhou pela sala, junto com berros desenfreados de Fester, “que a Morte empessoa manda lembranças.”Wendy fechou os olhos, desejando que pudesse fazer o mesmo com osouvidos.

A figura encapuzada largou Fester, que agora tinha uma assustadoraqueimadura no rosto, todo derretido e contorcido: poderiam dizer paraWendy que o tinham jogado na lava, ela acreditaria.

Parte dela queria se sentir mal por ele, mas o jeito como ele atacou airmã Sarah a impedia com veemência.“Wendy!” Quase gritou a irmã, abraçando a garota e abandonando todoaquele ar de ‘relaxa que eu sei o que tô fazendo’. “Eu fiquei tão preocupada,e você foi incrível, você me defendeu sem nem saber que podia! E você.” Elase dirigiu para o homem na capa preta, “por que demorou tanto?! A gentepodia ter morrido!”“Os outros me atrasaram.” Respondeu ele, arrastando o corpo de Fester parafora.“Ah.” Suspirou Sarah. “Quantos?”“Dez.”“O que você fez com eles.”O homem pegou um punhado de neve e imitou aquele chiado que coisasqueimando costumam fazer.“Você não muda.”“QUE GRITARIA É ESSA?!” Veio a voz rouca da irmã Romena do alto docorredor.

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Irmã Sarah puxou Wendy para fora o mais rápido que pode, depois, com aajuda do homem, levantou a porta derrubada e ficou segurando de forma que,para quem visse de dentro, ela ainda parecesse inteira.Os quatro e Anuk ficaram quietos como defuntos, principalmente Fester.Wendy ouviu os passos pesados como chumbo da irmã Romena vasculhandoa antessala, e ficou pedindo em silêncio “por favor não venha na janela” edepois “por favor não vá para o meu quarto” pois este ainda estava umabagunça, e não seria nada legal se a irmã encontrasse um quartodesarrumado.“Você devia deixar as pessoas vivas se espera que elas mandem lembranças.”Irmã Sarah sussurrou para o homem encapuzado.“Quê?”“Você disse ‘diga a ela que a Morte em pessoa manda lembranças’, e depoismatou ele, não é assim que você faz uma pessoa mandar mensagens.”“Ele só queria ter uma frase de efeito legal.” Wendy sussurrou em defesadele.O homem não respondeu, mas havia tentação para sorrir em seus lábios.A rala neve no chão já estava começando a fazer a sola dos seus pésformigarem de frio (os buracos na sola de seu único par de sapatos tambémnão ajudavam muito), quando ouviram os passos pesados da sargentorabugenta marchando para fora daquela antessala.Assim que tiveram certeza que estavam seguros, todos eles entraram de novo.“Você podia ter sido mais sutil dessa vez, e se ela nos visse?” Irmã Sarahdisse.“Sorte a dessa mulher que Kahsmin não deixa mais Autumn fazer essetrabalho.”Wendy não tinha ideia do que eles estavam falando, e estava ocupada demaispara tentar entender: sua mente entrara no piloto automático, tentandoabsorver tudo que acabara de acontecer nos vinte últimos minutos.Um homem cobra havia vindo de longe para sequestrá-la e, agora, ele estavalá fora, deixando a neve gelar as queimaduras no seu rosto.Morto.Parecia pesado quando ela pensava desse jeito, muito mais que quandoaconteceu.“Está tudo bem, meu anjo?” A irmã Sarah perguntou, se aproximando edobrando os joelhos para ficar na altura da garota.“Vai ficar.” Ela respondeu, forçando um sorriso. “Estamos seguras, né?”

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Rugas leves se formaram na testa magra da irmã quando respondeu,acariciando de leve o rosto da garota: “Estamos, meu anjo, agora estamos.”Ela disse doce. “Caleb!” Ela disse nada doce, e Wendy levou algunssegundos até perceber que ela estava chamando o homem encapuzado.“Venha, se apresente, vocês vão precisar se conhecer.”Vagarosamente, a figura encapuzada deixou de acariciar seu lobo e, comelegância teatral que Wendy não esperava, baixou o capuz, revelando olhostão cinzas quanto o pelo de seu animalzinho, cabelos na altura do pescoço,brancos como porcelana fina, fazendo contraste perfeito com seu rosto joveme apolíneo (Wendy não sabia ao certo o que era “apolíneo”, mas achava apalavra bonita, e isso combinava com ele).Ele se ajoelhou em frente a ela, beijou sua mão, olhou fundo nos seus olhos edisse: “Acredito que já nos vimos antes.”

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Capítulo 5

“Caleb?” A irmã Sarah interveio. “Você nunca viu Wendy antes.”Haviam se passados dez segundos inteiros desde e a apresentação estranha dafigura não mais encapuzada de mãos incendiárias e olhos cor de tempestade.Dez segundos de um silêncio longo e constrangedor que Wendy estava felizpor ver a irmã Sarah quebrar.O homem soltou a mão de Wendy sem cerimônia e se colocou em pé semesforço.“Me desculpe, eu me confundi.” Ele disse com formalidade constrangida,“Eu sou Caleb Rosengard, e este é Anuk.” Apontou para o lobo. “Ele quemachou você.”“Legal! Eu sou Wendy e não sei meu sobrenome. Você e o seu lobo são reaisou eu vou acordar no meu quarto a qualquer momento agora?” Não sabiamais o que estava dizendo, era muita coisa de uma vez só.“Ele não é meu lobo. Anuk não tem donos.” Anuk assentiu com a cabeçaquando Caleb disse aquilo. “E nós somos bem reais. As coisas dela estãoprontas?” Perguntou para a irmã Sarah.“Quase todas.” Ela respondeu.“Onde estão?”“Lá em cima, no quarto dela.”“Pode trazê-las? Precisamos ir antes que a passagem se feche.”“Claro.” E ela foi correndo para as escadas do segundo andar.

Wendy ia seguindo, mas a irmã pediu: “Espere aqui.”“Mas.” Murmurou Wendy, esperando ter protestado baixo o bastante paraCaleb não ouvir.“Fique tranquila, eu vou trazer tudo, aproveite e converse com ele, vocês vãoter uma viagem cansativa pela frente, é bom se conhecerem. Ele não é tãoestranho quanto parece.”Wendy pensou em discutir, mas Sarah estava mesmo com pressa e deixouWendy ali, pedindo em voz alta para a irmã não esquecer seus livros, alanterna e trazer alguma coisa para ela comer.Agora estava ali, parada, observando Caleb e Anuk, que pareciam conversarum com o outro, mesmo que nenhuma palavra fosse dita, o que lembravabastante o tipo de relação que ela mesma tinha com Christina, onde apenas

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um olhar bastaria para que uma entendesse o que a outra estava pensando.Será que ela teria tempo de vê-la antes de ir?“Tem alguma coisa incomodando você.” Caleb afirmou de repente, dirigindosua atenção para ela.Pega de surpresa, Wendy pensou em responder àquilo com uma narrativa doquão estressante fora seu dia, dando ênfase à sua experiência de quase mortecom a Princesa do Caos, ao fato de não ter comido nada desde o café damanhã e à confusão que ele havia feito na sua cabeça com o negócio de “achoque já nos vimos antes”, mas tudo que disse foi: “Minhas costas estãocoçando num lugar que eu não alcanço.”Era verdade, estavam mesmo.Caleb deixou o ar de seus pulmões escaparem antes de dizer: “Você vaigostar de lá.”“A irmã Sarah me disse a mesma coisa.” Sua voz deixando claro queduvidava.“A outra que levei estava tão relutante quanto você, agora ela ama o lugar.”“Outra menina? Quem?” Perguntou Wendy, sem disfarçar a curiosidade nasua voz.“Uma amiga sua eu acredito, Kahsmin disse que ela está esperando por você.Ele a chamava de Chris.”“CHRIST–” Wendy deteve o grito, sua garganta estava esgotada demais paraisso.“Quase isso. Kahsmin disse que ela estava ansiosa para encontrar “a Wendy”,há alguma outra Wendy aqui além de você?” Caleb disse com uma voz sutilcomo veludo.

A lua brilhava nos seus olhos quando ela fez que não com a cabeça.Então Christina estava lá, e ela era uma mestiça também! Fazia

sentido todo sentido do mundo, afinal, a Chris havia achado o lago primeiroque a própria Wendy, e no mesmo dia, partira sem avisar ninguém. É! Porisso ela não se despediu de ninguém, ela não teve tempo!

A ansiedade se formou como um formigueiro dentro do seu peito coma ideia de rever sua melhor amiga ainda essa noite.

De repente, ir embora não parecia tão ruim assim.“Aqui.” Disse a irmã Sarah, aparecendo na antessala e trazendo uma malasurrada, verde escura que tinha mais livros que roupas. Também traziaWanda, um pão recheado de alguma coisa que parecia frango com queijo eum agasalho, que se apressou para vestir em Wendy. “Você vai precisar.”

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“Obrigada.” Respondeu, já de boca cheia.“Já são quase onze horas, vocês vão conseguir chegar a tempo?”“Se formos agora.” Caleb respondeu, observando a lua ainda cheia.Wendy se apressou para terminar de comer.

Enquanto mastigava, não conseguia deixar de pensar no quanto tudoaquilo parecia irreal, sem mencionar que não era nada parecido com o quehavia planejado: quando sonhava com o dia que deixaria o Orfanato dasNeve, esperava uma despedida longa e calorosa, dando adeus para Cora,LaVerne, Lili, Betsy, todas as outras de quem gostava, e até a Dana, porquenenhum prazer seria maior que o de ver a cara dela quando soubesse queWendy estava partindo, e ela não.

Depois seria a vez de todas as irmãs, queria muito agradecer cada umadelas.

Não haveria tempo para nada disso, mas agora que estava ali, comapenas alguns minutos nas mãos, não havia nenhuma decepção ao saber queseus planos mudaram já que seus últimos momentos seriam com a pessoa quemais amara em toda sua vida.“É verdade que eu vou poder voltar para te ver?” Perguntou Wendy inocente,já quase tão rouca quanto a irmã Romena.“Claro, meu anjo, sempre, na lua cheia, ele te ensinará como.” Respondeu elacom ternura, apontando para Caleb.“Bem, posso dizer algo antes de ir?”“Claro que pode.”Wendy encheu o peito de ar e palavras ternas: “Eu posso não saber como écrescer com pais e ser normal, com irmãos, tios, primos e primas, mas, é bomsaber que foi você quem me criou: eu não trocaria você e o que me ensinoupor nada nesse mundo. Obrigada por tudo, irmã Sarah.”Irmã Sarah não respondeu com palavras: ela deu o abraço mais carinhoso ematerno que Wendy já recebera. Sentiu algumas gotas de água quentedeslizarem do rosto da irmã e pingarem no seu ombro quando ela sussurrouno seu ouvido: “Se cuide, meu anjo, espero te ver de novo logo.”“Você vai, eu prometo.”

“E Wendy, meu anjo, não se esqueça: medo é uma jaula, dentro dela,nada pode te atingir, mas lá de dentro, também não há nada que você possaatingir.”

“Não vou esquecer.” Wendy sussurrou de volta.

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Então elas se soltaram, se olharam sem jeito e riram dos rostos avermelhadose molhados uma da outra, enquanto Caleb bufava impaciente.

Usando de um gesto com a cabeça, a irmã mandou Wendy seguir emfrente, ao qual ela obedeceu, carregando Wanda sobre os ombros como sefosse um bebê.“Você diz pra LaVerne e as outras que eu vou sentir falta delas?” PediuWendy.A irmã Sarah fez que sim com a cabeça.“Podemos ir?” Perguntou Caleb, e Wendy assentiu.Ambos se dirigiram em frente, para a Floresta Branca, embora Wendy sófosse parar de olhar para trás e acenar quando a irmã Sarah e o Orfanato dasNeves fossem finalmente engolidos pelos densos galhos dos pinheiroscobertos de neve e boas memórias.

Agora, cá estava ela, sozinha em uma floresta coberta de neve, comum estranho e seu lobo super-crescido, ambos dispostos a não fazer nenhumcomentário sobre o fato de ela ter passado metade do percurso tentando pararde soluçar enquanto acariciava Wanda e murmurava coisas sem sentido paraa boneca.Já estavam na parte da floresta onde as árvores cresciam tão alto que o luarficava invisível atrás das nuvens de folhas cristalizadas de neve quandoWendy finalmente resolveu que era seguro tentar conversar sem fazerescândalos.E claro, ela quebraria o gelo como toda pessoa normal no lugar dela faria:“Irmã Sarah e Fester se conheciam?”“Eu não sei.” Ele respondeu indiferente.“Parecia que se conheciam, ele era um ex-namorado perseguidor maluco.”“Aham.”“Você não sentiu remorso?”“Quê?”“Quando você fez aquilo com Fester.”“Se eu não fizesse, você não estaria aqui agora. Você sentiu?”“Eu queria ter sentido, mas eu fiquei aliviada quando você fez, bem, aquilo.”“Eu imaginei.”“Eu vou ter que namorar homens lagartos quando eu for pra lá com você?”“Não.”“Como você descolore o cabelo?”“Você não segue uma linha lógica de raciocínio, não é?”

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“Raramente.” Wendy respondeu.Caleb bufou e continuou respondendo, enquanto fiapos de neve começavam ase enroscar nos seus ombros e pelo de Anuk: “Meu cabelo nasce nessa cor.”“Queria ter cabelo legal assim.”“Não diria isso se soubesse porque ele nasce assim.”“Por quê?”“Não vale a pena saber.” Caleb disse ansioso para mudar de assunto. “Vocêparece bem ligada à Sarah.”“Ela é quase uma mãe pra mim.” Respondeu Wendy, também ansiosa paramudar de assunto, não queria ficar sentimental daquele jeito de novo. “Comoa Chris está?”“Eu não sei, não a vejo, mas ela deve estar esperando por você.”Wendy conseguiu abrir um sorriso ao ouvir aquilo, que continuou no seurosto por vários minutos, enquanto suas mãos brincavam com o pelo macio egelado de Anuk, era difícil resistir àquele cachorro gigante alegre.“Então, por que você acredita que já nos vimos antes?”“Longa história.” Caleb cortou, e Wendy resolveu que não valeria a penainsistir.“Você disse que havia outros demônios como o Fester aqui?” Ela perguntou.“Havia, não há mais, eu teria demorado menos se eles não tentassem fugir.”“Por que você não deixou eles fugirem? Não ia ser mais fácil?”A fumaça que saiu de suas bocas jazia fria e quase invisível entre os galhosdas árvores quando Caleb resolveu responder: “Eles eram D’arlit.”Wendy ficou olhando com cara de interrogação para ele até ele explicar o queaquilo queria dizer, o que ele fez sem nenhuma vontade: “Existe um reino dedemônios que vem entrando em guerra após guerra com todas as cidades donosso mundo, um reino determinado a livrar o nosso mundo de todos osmestiços e humanos para permitir que apenas ‘os melhores sobrevivam’.”“Estes são os D’arlit.” Caleb continuou. “Há mais ou menos duas décadas,incontáveis mestiços como você foram escondidos em mundos como estepara que pudessem crescer em segurança e afastados dos D’arlit. Vocêsforam escondidos em mundos ligados ao nosso através de passagens como ado Lago Errante e a do Salgueiro Escarlate, passagens que, até então, apenaso Anuk aqui e alguns poucos humanos e mestiços sabiam da existência.”Anuk soltou um grunhido rouco e assentiu com Caleb.“Os demônios que me seguiram estavam atrás de Anuk, pois sabiam que eleos guiaria, cedo ou tarde para o mundo onde os mestiços estavam. Se eu os

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tivesse deixado sobreviver, eles relatariam o que descobriram para os D’arlit,e então, eles invadiriam, e você poderia dizer adeus para o Orfanato dasNeves e sua cidade inteira.”Uma breve imagem passou na frente dos olhos de Wendy: o orfanatoqueimando, as irmãs sendo atacadas por demônios tão horríveis quantoFester, enquanto as meninas tentavam em vão correr para se salvar.Foi a visão do horror e caos.O que lembrava.“Você pegou a Ally também?”Caleb bufou derrotado ao ouvir essa pergunta.“Não, mas eu não me preocuparia com ela: Ally não está com os D’arlit,prefere agir sozinha, quando quer, porque quer, sem pessoa alguma paraatrasá-la ou discutir; ninguém sabe bem ao certo o que move aquela criatura,ou sequer se existe lógica nas suas ações.”“Nem me fale.” Suspirou Wendy, lembrando da voz inocente daquela criaturaestranha dizendo “eu sou a Princesa do Caos”, se pelo menos ela tivesselevado o aviso à sério, poderia ter prendido a menina dentro de uma gaveta,na sua porta para Narnia com defeito ou qualquer lugar do tipo.“E o que é Ha... Hari... Harb”“A Harbinger da Morte?”“Isso! O que é isso?”Ele não parecia nada feliz tendo que responder àquela pergunta: “Harbinger éum título: quer dizer ‘aquela que traz’. A Harbinger da Morte é uma mulhervil e cruel que lidera os melhores exércitos dos D’arlit, nunca foi derrotada,nunca.” A voz de Caleb foi ficando sombria à medida que continuava.

“Ela gosta de humilhar e matar tudo que vê pela frente, por isso essetítulo: a morte paira ao redor dela.”O silêncio veio, e quanto mais fundo eles se adentravam nele, mais barulho amente de Wendy fazia, disparando alertas sobre aquela história tão altos queparecia uma piada que Caleb não os ouvisse, até Wendy os verbalizar:“Então, vocês estão me tirando do Orfanato das Neves e me colocando nomeio de uma guerra?” Perguntou assustada.“Estamos em um lugar seguro agora, e nós precisamos de toda ajuda quepudermos encontrar, e se Anuk encontrou você, é porque você pode nosajudar.” Disse Caleb.“Mas como?”“Eu não sei também, mas sempre há um jeito de ajudar. Bem, nós

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chegamos.”Lá estava o lago mágico viajante do além, rodeado pelas flores que Wendychamava de roedores e um ar místico que cercava suas margens com a maisdelicada beleza que ela jamais vira.“Temos que nos apressar.” Caleb disse, desabotoando a capa que usava.Wendy olhou de novo para o lago e reparou algo diferente de hoje cedo: asflores estavam morrendo, a grama estava amarelada ao redor dele e, à luz dalua cheia, o lago parecia vivo, mas velho e cansado, no entanto, ela nãosaberia dizer exatamente o que o fazia parecer envelhecido.“Ele está prestes a sumir.” Avisou Caleb e com isso, se jogou nas águas,seguido de Anuk.“Você tá de brincadeira, né?” Perguntou Wendy que, por algum motivo, nãoesperava que fosse ter que realmente entrar no lago, apenas fazer um ritualbizarro com ervas e palavras sem sentido para então atravessá-lo por umaponte mágica feita de cipós que brotariam da terra ou coisa do tipo.Caleb e Anuk se entreolharam, logo o lobo saiu da água e, encharcado, elecomeçou a circular Wendy, como que pedindo carinho, mas apenas o fez paradistrair a menina o bastante para jogá-la com as patas para o lago, junto coma mala e a boneca.“MEUS LIVROS!” Wendy gritou desesperada, se arrependendo de gritarlogo em seguida.“Eles vão ficar bem, vamos.” Caleb e Anuk mergulharam, o lobo levando amala da garota na boca.Por um segundo, Wendy hesitou: até pouco tempo, ainda tinha uma vagaesperança de que iria acordar no seu quarto e contar a história do sonho maisradical que já teve, mas se deu conta de que, se fosse um sonho, a água a teriaacordado.

Droga.Se havia havido uma boa chance para fugir, era aquela: estaria

mentindo se dissesse que não pensou em deixar que Caleb e Anukmergulhassem e sumissem nas profundezas do Lago Errante enquanto elavoltava para o Orfanato das Neves, para suas amigas, e sua vida normal.

Sim, a tentação estava ali, mas não foi ela a guiar suas decisõesquando Wendy prendeu a respiração e mergulhou fundo.

Quem guiou foi o fato de que Anuk estava com seus livros, ela nãovoltaria pro orfanato sem eles.

Mais ou menos ao mesmo tempo em que os alcançou, ela percebeu

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que algo estava diferente: foi como se o mundo fosse uma enorme ampulhetaque alguém acabara de virar, pois ela não sentia mais que mergulhava emdireção ao fundo do lago, mas para cima, embora, em momento algum, ela ouCaleb tivessem mudado de direção.Caleb e Anuk emergiram, Wendy logo em seguida.

Quando tirou a água que tapava os olhos, sentiu-se tão perdida quantoum vegetariano numa churrascaria: ela conhecia cada centímetro da cidadelaonde crescera, cada quarto e vista do Orfanato das Neves e, oficialmente, nãohavia trecho algum da Floresta Branca que não tivesse visitado ao menosuma vez.

O problema era: não estava mais na Floresta Branca.Caleb estendeu a mão para ajudar Wendy a sair da água: por um instante,pensou que queimaria igual o rosto de Fester, mas nada aconteceu; erammãos quentes, mas não ao ponto de a transformar em Wendy à Milanesa.Ela saiu do lago bem a tempo de ver acontecer: parecia que um monte deareia invisível estava sendo jogada na água, a tornando cada vez maismarrom e lamacenta, enquanto as flores ao redor murchavam e eram sugadasde volta para a terra.

Logo, não havia mais um único sinal de que existira ali um lago.“Por isso eu disse para se apressar, não gosto de imaginar o que aconteceriase estivéssemos lá dentro quando isso acontecesse.” Disse Caleb, ajudandoWendy a se levantar.

Wendy tinha que admitir, adorou ouvir aquela voz sutil se tornar tãosombria, podia sentir o timbre dela fazendo sua pele arrepiar.

Ela esperava estar tremendo de frio, no entanto, estava seca, comoantes de entrar no lago, talvez fosse parte da magia estranha do lugar.Estavam cercados de árvores gigantescas que Wendy nunca vira na vida, umchão de folhas mortas e mato, alguns arbustos maiores que Anuk, barulhosdos mais diversos animais assaltando seus ouvidos e um caminho tortuosopela frente. Também percebeu que deviam estar entre montanhas, pois ocaminho subia e descia em toda parte, iluminado em certos trechos por réstiasda lua.Ela respirou fundo aquele ar frio: era peculiar esse lugar, ela se sentiadiferente aqui: seu corpo parecia mais leve, seus olhos mais descansados, seunariz sentindo o cheiro forte da terra e grama, misturado com o sereno danoite, era como se...“Todos tem essa sensação quando chegam aqui pela primeira vez. Kahsmin

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acha que é porque seus corações se alegram ao saber que estão em casa.”Caleb disse.“Você se sente assim sempre que volta pra cá?”De novo, seu olhar se tornou sombrio e oco: “Eu não me sinto em casa fazmais tempo do que eu gosto de lembrar. Vamos, estamos perto agora.”Por algum motivo, certamente ligado à Ally, Fester e à indigestão que sentiapor nadar depois de comer, esperava encontrar algo estranho e bizarroquerendo comer seu cérebro sempre que viravam numa curva escura.

Foi uma surpresa quando viu que o caminho estava infestado, não demonstros, mas pelos mais lindos vagalumes que já vira, iluminando ocaminho e entrando, todos de uma vez, dentro do seu agasalho para brincarcom ela e a transformar numa enorme lanterna humana.“Eu nunca tinha visto eles fazerem isso.” Caleb disse intrigado.Wendy os olhou de perto: eram muito maiores que os que estava acostumadaa ver no orfanato, talvez fosse um dos encantos desse lugar: animaispequenos gigantes, como cachorros do tamanho de árvores e gatos grandescomo casas.

Será que haveria lasanhas gigantes também? Ela poderia comer umaagora.“Aqui você vai aprender a controlar sua transformação por completo, talvezdemore um pouco, mas quando acontecer, você poderá enfrentar quasequalquer coisa, e Kahsmin provavelmente vai querer que você estude algumtipo de arte também.”“Uma arte? Por quê? E o que é Kahsmin?”“Arte ajuda a criar disciplina e controlar o que você sente, ele diz. Quasetodos os mestiços aprenderam alguma coisa com essa finalidade. Controlar oque sentimos é a chave para a transformação.”“Por que uma arte?” Wendy perguntou.“Guerreiros dos tempos mais remotos têm aprimorado suas habilidades tantocom a espada quanto com as palavras e as melodias, de uma forma que umcomplete o outro e, bem, eu não sei porque, Kahsmin leu isso em um doslivros da Autumn e achou que, se funcionou no passado, deve funcionar hojetambém.”“Sério? E funciona mesmo?”“No final das contas, artes ajudam os mestiços a controlarem melhor o quesentem, e isso ajuda muito na hora da transformação, sem falar que Kahsmine Autumn acham que cria uma certa disciplina.” Caleb disse, como se tudo

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aquilo fosse banal e ele é quem tivesse o fardo de contar tudo para a novata.“Você também sabe uma arte?”Caleb assentiu.“Piano.”Um sorriso involuntário surgiu nos lábios de Wendy, existiam pianos nessemundo! E imaginar Caleb tocando num salão à luz de velas com uma plateiabem pequena também não era nada mal, principalmente se ela pudesse–“Também vai ter que aprender a usar uma arma.”“Oi? Arma? Quero?” Wendy disse ao sair do seu devaneio.“É, qualquer coisa que te ajude a se defender é válido, mas pensando bem,acho que nem todos precisam aprender a usar uma ar–”“E eu posso escolher minha arma?” Interrompeu Wendy ansiosa.Caleb pareceu subitamente interessado na garota.“Pode.”Wendy fingiu pensar por um instante, batendo o indicador no queixoenquanto observava os vagalumes brilhando pelo caminho.“Eu quero um arco e flecha!” Era para ter sido um grito, mas foi um sussurrorouco.“Por quê?” Perguntou intrigado, erguendo uma sobrancelha para a garota.“Tá brincando? É a arma mais nobre, elegante e bonita de todas! E porquetodos os elfos usam arco e flecha. Aliás, tem elfos por aqui?”Para o desapontamento de Wendy, Caleb disse que não, mas continuouolhando para ela, avaliando se ela estava mesmo falando sério.

No final, deu mais alguns passos, apenas para dizer:“Chegamos.”

Wendy não havia percebido quando a floresta em que estavam tinhasumido, nem que, em algum ponto, os vagalumes haviam raleado e que agoraera a lua quem fazia a maior parte do trabalho de iluminar o caminho.Ela se aproximou de Caleb... e se arrependeu amargamente, pois descobriuque não estavam só no topo de uma montanha, mas também na beirada.Sentiu uma tontura vertiginosa e se agarrou em Caleb e Anuk, com mãostrêmulas e se afogando em suor frio, o rosto perdendo a pouca cor que tinha eo estômago ameaçando devolver tudo que estava escondendo nas suasprofundezas.“Respire.” Pediu Caleb abanando o rosto de Wendy.“Tá difícil.”Caleb ajudou Wendy a sentar e, com um gesto, fez uma corrente de ar

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ventilar o rosto da garota, que se sentiu imensamente grata por isso.“Você pode fazer vento!” Ela afirmou tão alegre quanto sua rouquidãopermitia.“Eu posso controlar o ar, na verdade.”“Foi assim que você fez o Fester cair e ser jogado contra a parede.”Caleb assentiu.“Você é um mestiço também?”Ele assentiu de novo.“Quem era o humano da relação.” Ela perguntou, sua respiração voltando aonormal aos poucos.“Quê?”“Seus pais, quem era o normal?”“Os dois eram normais, mas minha mãe era a humana.” Murmurou emresposta.Quando Wendy começou a se sentir melhor, ele a ajudou a ficar de pé, o quea ajudou muito a dar uma boa olhada na cidade abaixo.Era uma cidade beira mar! Wendy mal a conhecia e já estava apaixonada.

Havia um enorme farol desligado lá embaixo, e mais para frente, umpíer com um barco solitário, mais casas que Wendy poderia contar seespalhavam aqui e acolá, e a maior construção que já vira na sua vida faziasombra bem no meio da cidade: poderia muito bem ser um castelo, comtorres que pareciam competir com a montanha onde ela estava em termos dealtura, e perdendo por muito pouco.

Wendy queria entrar ali, agora, naquele instante.“Bem-vinda à cidade de Tuonela.” Anunciou Caleb, sem muito entusiasmona voz.“Ela é linda.” Admirou Wendy, mas logo, notou que algo não batia, algo quea irmã Sarah havia dito parecia destoar com o que seus olhos viam. “Mas elanão era subterrânea?”“Você não está vendo a cidade inteira.” Respondeu ele com um pequeno tomde suspense, o que serviu apenas para fazer Wendy querer mais ainda estardentro daquela cidade.Caleb lançou um olhar da torre do castelo para Wendy e continuou: “Estávendo aquela torre lá embaixo, a mais alta delas, com um relógio marcandoquase uma da manhã?”Wendy apertou os olhos, a torre era tão alta que podia realmente ver o relógioe até uma janela sob ele.

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“Estou.”“Veja isto.”Ele se afastou alguns passos e se virou na direção do penhasco: Wendypensou que ele ia se jogar, mas ao invés disso, ele ergueu a mão esquerda,que parecia segurar algo invisível bem à sua frente, enquanto a direita pareciapuxar um fio que também não estava ali.Nada poderia ter preparado Wendy para o que estava prestes a presenciar(exceto talvez um aviso dizendo “ei Wendy, eu vou fazer isso, isso e aquilo,não se espante nem saia correndo de medo por aí” ou coisa do tipo.) Nasmãos de Caleb, um brilho cegante surgiu onde seus punhos estavam fechadose, ao redor deles, a luz ganhava forma: a forma inconfundível de um arco eflecha.Caleb apontou o arco e flecha de luz na direção da torre, e soltou uma flechaque passou zunindo como raio: Wendy a assistiu atravessar a imensadistância entre Caleb e o relógio da torre.“Você acertou o relógio bem em cheio e derrubou os DOIS ponteiros nochão.” Disse Wendy, com uma voz vaga e impressionada.“Você daria uma boa narradora do óbvio.” Caleb comentou em resposta.“Com uma flecha de luz.” Ela completou, ignorando o comentário.“Isso.”Wendy correu na direção de Caleb, deu a ele um abraço muito apertado e,disse com a pouca voz que restava: “Você é um elfo!”Caleb ficou confuso e Anuk parecia rir com gosto, se é que lobos podem rir.“Ah, elfos não exis–”“CALA A BOCA, você é um elfo e pronto.” Disse Wendy brincando, Calebse deu por vencido e resolveu rir junto com ela, Anuk se juntou a eles eWanda, bem, ela tinha um sorriso perpetuo na boca.“Então, se realmente quer o arco e flecha, eu sou a única pessoa em Tuonelaque pode te ensinar. Você quer?”“Claro que quero!”Caleb ficou satisfeito com o que ouviu e deu uns tapinhas no ombro daWendy.“Garota peculiar e curiosa, isso vai ser, no mínimo, interessante. A propósito,você quer caminhar por mais algumas horas ou pegar um atalho?” Calebperguntou, apontando a cidade abaixo.A dor nas pernas de Wendy respondeu por ela: “O atalho, por favor.”“Tem certeza?”

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Wendy deveria ter prestado atenção em Anuk, que estava gesticulando um“NÃO” violento e desesperado com a cabeça, mas–“Sim, não aguento mais andar.”“Ótimo.”Em uma fração de segundos, Caleb agarrou Wendy pela mão e a puxou comele na direção do desfiladeiro à frente.“Ele não vai fazer isso, ele não vai fazer isso... não... NÃO!” Foram seusúltimos pensamentos antes de ser arremessada do alto de uma montanha demais de seiscentos metros de altura, junto com a mala, a boneca, o elfo e olobo.

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Capítulo 6

Mesmo sabendo que a queda livre causaria a destruição total do seu cabelo etodos os ossos do seu corpo, teve que admitir que a sensação era muitodivertida: o vento congelando todas as extremidades do seu corpo, o cheiro,mais salgado que as lágrimas da Dana no dia dos pais, e a vista panorâmicade cima para baixo daquele castelo cheio de torres na sua frente pintavam umquadro que nunca imaginou ver fora de um museu.Quando estavam perto do solo, Caleb fez seu truque e rajadas de arsuavizaram a queda, até que tocaram o chão com o mesmo impacto queWendy sentia quando dava pulinhos pelos corredores do Orfanato das Neves.Seu estômago, porém, não tinha gostado nada da surpresa e resolveu elepróprio fazer uma surpresa para todos.“Ah, desculpe por isso.” Disse Caleb, se apressando para segurar o cabelo deWendy.“Tudo bem, eu vou sobreviver, mas um aviso–” a ânsia a impediu decontinuar e a fez sujar todo o chão ao seu redor, “teria sido bom.”Caleb tirou um lenço de dentro da sua roupa estranha e ajudou Wendy a selimpar.“Obrigada.” Ela sussurrou.Não precisaram andar muito para chegarem na entrada da cidade.“Talvez seja melhor fechar os olhos agora.” Caleb disse.“Por quê? A entrada é secreta ou coisa do tipo?”“Não, mas há coisas que nem eu gosto de ver aqui.”“Aquela voz sombria, ah Caleb, por que você não fala sempre assim?”Tomou cuidado para manter isso apenas em pensamento.“Eu tenho dezesseis anos, aprendi a reclamar que todos os meus sonhos eplanos foram destruídos e que minha vida é um inferno, nada mais pode serrealmente feio ou sombrio pra mim.” Ela disse no que pareceu uma ideiabrilhante para uma resposta, até ouvir em voz alta.Caleb ergueu uma sobrancelha (ou tentou, parecia que não conseguia fazerisso sem mexer a outra).“Que foi? A irmã Romena sempre fala assim da vida dela.” Wendy disseironicamente, soando como a própria irmã Romena soaria.Ele suspirou sem vontade de argumentar e a guiou.

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Wendy se arrependeu no ato por não obedecer Caleb.Em toda parte, apenas destroços do que um dia haviam sido centenas

de casas.Uma delas teve a parede lateral inteira arrasada, e perto de um relógio

congelado para sempre na quarta hora da noite, havia vários retratos sobreuma espécie de mesa, com fotos do que parecia ser uma família: existia a mãesorridente, as filhas brigando sem motivo aparente e o pai de rosto apagado ear respeitável Todas as fotos cobertas de sangue.

Sangue seco misturado com fuligem, assim como a mesa, as paredes eaté o relógio.

Quando tinha sete anos, Wendy resolveu alegremente assistir umfilme no especial de Halloween. Depois de três semanas dormindo com airmã Sarah, achou que nunca mais veria algo que a faria ter pesadelos.

Ah, como ela estava errada.Uma outra casa não tinha parede alguma, apenas o piso onde deveria

haver um quarto, com camas ainda cobrindo pessoas.Wendy tentou evitar com todas as forças, mas acabou vendo um rosto

coberto de pó, frio e paralisado sobre uma das camas. Ele tinha olhosfechados, tão apertados que faziam a testa ficar toda enrugada, e uma bocaaberta como se estivesse chorando.

Era um menino de cabelo preto, não devia ter mais de quatro anos.“Me diz que aquilo é um boneco.” Pediu Wendy com a voz fraca e

débil.Caleb fez que não com a cabeça.

Wendy fechou os olhos e tapou os olhos que não podiam ver de Wanda.No entanto, era tarde, aquele menino já estava escondido atrás de sua retina:ele poderia ter sido qualquer um: Um desenhista, um cozinheiro, um marujo,um idiota adorável, um bom filho, ou o cara que casaria com a sua melhoramiga daqui uns anos. Talvez ele nem fosse muito diferente de alguém comoa LaVerne, com aquele ar alegre e meio perdido.

Porém agora, ele era apenas uma memória na mente daqueles que oconheceram.“Foi quando a guerra chegou em Tuonela.” Começou Caleb, “não temospermissão para reconstruir ou limpar essa parte da cidade, os D’arlit saberiamque estamos aqui.”“Eu não gosto daqui.” Murmurou Wendy.“Ninguém gosta, a vasta maioria do povo da cidade mora na parte

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subterrânea e só sobem na época de visitas.”“Visitas?”

“Os D’arlit visitam Tuonela, e nós temos que fazer parecer que acidade ainda é deles, por isso deixamos essa parte da cidade assim, por ordemdeles, é o jeito que eles têm de nos lembrar quem são os conquistadores e osconquistados. Me dê a mão antes que você caia.”

Wendy obedeceu.“Caleb?”“O quê?”“Eu quero acabar com a vida desses caras.” Ela disse com tremor na voz.Imaginou que Caleb estivesse sorrindo, porque ele demorou para responder.“Todos queremos. Você vai gostar daqui, ia se importar de fazer essa garravoltar ao normal?” Disse Caleb, Wendy não havia percebido que estavaficando com raiva, sorte que aprenderia a controlar a transformação aqui.Vários minutos, tropeços e pedras nos sapatos depois, Caleb disse: “Já podeabrir os olhos.”Wendy o fez: as casas estavam inteiras aqui, uma ou outra até tinham luzesacesas, mas o melhor de tudo: estava à três passos da praia.

O farol estava bem à sua frente: grande, imponente, feito de tijoloscor de barro feioso e coberto, na parte de baixo, de plantinhas verdes queWendy não sabia o nome.“Por que ele não está aceso?” Perguntou Wendy.“Ele está desativado, não espere ver ele funcionando.”“Ah.” Ela murmurou desapontada. “Por isso ele tem essa cor de vômito?”“Ei, eu moro aí.” Caleb disse ofendido.“Não é porque você mora aí que sua casa precisa parecer você.” Às vezes,Wendy achava que deveria aprender a calar a boca, até lembrar que sedivertia mais desse jeito. “Desculpa, é brincadeira, mas por que ele nãofunciona mais?”“Não há mais navios que venham para cá, graças aos D’arlit.” Calebmurmurou, sem desacelerar o passo.Passaram pelo píer com um único barco, onde Wendy teve certeza de queouviu um barulho de animais peçonhentos grunhindo, prontos para atacar umao outro.

Caleb disse em voz alta: “Boa noite, tio Winslow.”O barulho parou no mesmo instante e um homem gorducho, com costeletasgrossas que se emendavam no bigode e a pele mais bronzeada que Wendy já

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vira, se levantou devagar e começou a falar com voz de marinheiroembriagado.“Eu deveria colocar um pano com piche na sua boca e queimar você vivocom...” Ele grunhia, com a mão balançando tão molenga que Wendy pensouque ele não tinha ossos.Pensava Wendy que a voz rabugenta da irmã Romena era grande coisa, atéouvir esse cara.“Estava roncando de novo. Eu trouxe a garota nova.”“O QUE EU TENHO COM ISSO? Eu não quero saber, eu não gosto dela.Nem de você. Nem de nada! Agora morre!” Com isso, ele voltou para obarco, junto com um ronco que parecia uma luta de espadas com motosserras.“Seu tio?”“Meio irmão da minha mãe. Ele só é rabugento quando o acordam, vai estarmelhor amanhã.”“A mão dele não tem ossos?” Perguntou Wendy.Caleb suspirou envergonhado e disse: “Aquilo” Caleb suspirou antes decompletar a frase, “era um frango de borracha.”Wendy não conseguiu controlar as gargalhadas, nem Anuk.“Por que ele estava com aquilo?”“Um dia ele voltou de uma viagem com El Pollo Diablo. Nunca mais sesepararam.”“El Pollo Diablo?” Wendy repetiu.“Não me pergunte.” Caleb disse, seguindo em frente.“Tá, mas é estranho.” Wendy disse, lembrando que conversar com objetosinanimados também não era a coisa mais normal do mundo. “Se seu tio estáaqui, então, sua mãe também está?”O resto de Caleb delatava que aquele era território perigoso. “Não, ela morreufaz dezoito anos, era ela quem cuidava do farol.”Mesmo se divertindo com seus comentários e perguntas, Wendy resolveu nãotocar mais no assunto “farol” e “pais” por um tempo com ele, não pareciahaver felicidade para Caleb naqueles temas.Saíram da praia e agora Wendy já estava ficando com dor no pescoço detanto olhar para aquelas torres enormes.

Impossível não reparar que, em toda rua que viravam, as poucas casasque tinham luzes se apagavam, seguidas de cortinas sendo fechadas; Calebvestiu o capuz depois de perceber isso e apertou os lábios tão forte queWendy pensou que iam sangrar.

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“Alguém está nos seguindo.” Ele sussurrou no ouvido dela.Wendy se virou tão rápido que quase perdeu o equilíbrio, mas não viu nadaatrás dela além de Anuk.“Olhe duas vezes.” Caleb disse.Wendy vasculhou tudo ao seu redor: casas com luzes apagadas, um lugarenorme chamado Taverna do Fim dos Tempos (nota mental: visitar esse lugarcaso eu sobreviva) e até um estranho salgueiro que estava no meio de umapequena praça.Nada ainda.Estava começando a sentir aquela mesma aura sinistra que sentiu no seuprimeiro encontro com Anuk, foi quando uma sombra cruzou o luar.

Wendy olhou para cima, apenas um céu estrelado com poucas nuvens.Talvez tivesse sido apenas um pássaro ou...

“Ali.” Caleb disse apontando para o alto de uma casa.Havia um vulto estranho sobre o telhado, estranho no sentido de que sombraspareciam cercá-lo, como se fosse imune à luz. Wendy não conseguia parar deolhar para ele.E então, ele sumiu, se perdendo no meio da noite.Caleb não disse nada e era impossível ler seu rosto, pois o capuz o tapava.“Anuk e eu cuidaremos disso depois.”“Mas aquilo pode–”“Eu sei o que é aquilo, nada que possa machucar você ou as pessoas dacidade.”Ele não deu abertura para Wendy falar, mas também não conseguiu esconderque suas mãos estavam tremendo.

Assim como as dela.A noite estava tão clara que só agora percebera que não havia postes nacidade. Desde pequena ela desejava saber como seria viver numa cidadeassim, calma, pacata, sem luzes nas ruas.

Bem, quem disse que sonhos não se realizam?“CALEB!” Uma voz alta e forte chamou por ele, atrás dela, veio um homemagasalhado correndo na direção deles.“Você quebrou o relógio DE NOVO!” Ele gritou ofegando, parando bem nafrente deles.“Ele estava três minutos atrasado.” Respondeu ele.Wendy esperou que o homem fosse tentar dar um soco na cara de Caleb, aoinvés disso, ele acabou rindo, pelo visto, havia uma piada interna entre eles.

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“Esta é Wendy.” Apresentou Caleb.O homem se abaixou para vê-la: ele tinha cabelos compridos, ondulados e deum castanho avermelhado desconfortavelmente parecido com o de Ally, masas semelhanças acabavam aí, ele tinha olhos castanhos normais, barba cheianormal, ou quase, e um nariz nor... grande demais para Wendy chamar denormal.“A Chris vai adorar saber que você chegou.” O estranho barbudo afirmou.Wendy já tinha se esquecido da Christina.“Onde ela está?!”“Em algum lugar ali dentro.” Ele respondeu, apontando para o castelo.O queixo de Wendy deve ter caído, pois só isso explicaria o estranho ter dito:“Feche a boca garota, vai acabar entrando uma mosca aí.”

Ela não havia percebido que já estava na frente do castelo, o ser desombras estranho a distraíra demais para detalhes pequenos como esse.“Eu nunca vi nada parecido.” Ela confessou.“Wendy,” chamou Caleb. “Este é–”“Kahsmin! O Grande Magnânimo!” Completou ele, abrindo os braços para oalto, como se pudesse abraçar a cidade inteira dessa forma.“Ele é responsável por tudo nessa cidade: segurança, sobrevivência, mantê-laescondida dos D’arlit, resgatar crianças perdidas e tomar decisõesimportantes que ninguém quer tomar.”“Como você esconde uma cidade ao ar livre?” Perguntou Wendy.“Que lugar melhor para esconder alguma coisa que debaixo do nariz de quemprocura?” Respondeu ele com um sorriso maroto e brilho de criança nosolhos. Wendy gostou de imediato desse homem, parecia alguém que topariafazer travessuras com ela, mesmo sendo no mínimo trinta anos mais velho.“Kahsmin.” Chamou Caleb. “Você pode assumir daqui? Eu e ela fomosseguidos.”Kahsmin ergueu as sobrancelhas quase invisíveis.“Você derruba o relógio, mas não atira num intruso!?”.Wendy tinha que concordar com essa lógica.“É um conhecido meu, um que anda nas sombras, se é que me entende.”Kahsmin entendia, ao contrario de Wendy.

“Certo. É melhor ir agora.”Caleb assentiu.“Até logo, Wendy, se cuide.” Não sabia se era porque não podia ver seusolhos, mas ele pareceu extremamente seco ao se despedir.

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“Tchau elfo!”Ele não respondeu.“Tá tudo bem com ele?” Ela perguntou quando Caleb desapareceu entre ascasas.“Nem um pouco.” Respondeu Kahsmin honesto.“Mas ele parecia ótimo até chegar aqui.”“Até chegar aqui.” Repetiu com ênfase.“Qual o problema com ‘aqui’?”“Você vai viver aqui de agora em diante, se quiser uma resposta que teconvença, observe as pessoas, elas vão te responder, e farão isso melhorainda se você não perguntar.”“Você gosta de bancar o misterioso, né?”Kahsmin voltou a sorrir:“Gosto.”Ele a guiou para exatamente onde ela queria ir: dentro do castelo.O hall estava vazio, o que fazia o lugar parecer ainda maior. Vitrais coloridosameaçavam esmaga-la de todos os lados e havia algo parecido com um altar,onde havia uma mesa e várias cadeiras almofadadas vermelhas.

Não haviam lâmpadas ali, só o fogo de vários lampiões e a luz da luaencontrando seu caminho entre o azul safira e vermelho rubi dos vitrais.“Sente-se e coma à vontade.” Ofereceu Kahsmin, puxando a cadeira.Os olhos de Wendy brilharam.“PIZZA! VOCÊS.” Sua garganta a castigou por gritar, “vocês têm pizzaaqui!”“Pizza é amor traduzido em comida!” Kahsmin disse alegre, servindoWendy.Ambos comeram em silêncio até não haver mais nada no prato.“Então,” recomeçou ele enquanto Wendy engolia o último pedaço, “vocêdeve estar cheia de perguntas, e morrendo de sono, então, com meus poderesmísticos de ler mentes de mestiças confusas, eu vou contar a novidade quevocê mais quer ouvir: Nós vamos descobrir quem são seus pais dentro dealguns dias, se estiver tudo bem.”“Sério?! Você pode mesmo fazer isso?!”“Claro que posso, eu sou o Grande Magnânimo desta cidade e eu posso fazerTUDO!”“E você pode me ensinar a ler mentes igual você?” Wendy perguntouansiosa.

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Kahsmin tinha um sorriso bondoso, mas um pouco constrangido quandodisse: “Eu menti nessa parte, eu não sei ler mentes, é que todos os mestiçosque chegam do Orfanato das Neves ou Da Irmandade dos Garotos Sem Nomequerem saber quem eram os pais.”“Ah.” Wendy murmurou, mais desapontada por ter caído naquela piada doque por saber que não ia aprender a ler mentes. “Como vocês podemdescobrir quem eles eram? Existe um oráculo ou um conselho dos elfos?”“Não, nada tão fantasioso, você apenas pega um barco com Winslow, que alevará até Mortimer Von Schenzel. Ele é um ex-olheiro dos D’arlit, mas sevirou contra eles e fugiu antes que fosse executado.”

“Ele tem uma memória fantástica, conseguiu identificar quem eram ospais de quase todos que levamos até ele, apenas examinando os rostos deles.”“Parece assustador.”

“Agora que você disse, eu concordo, mas isso não muda o fato de queele é excelente no que faz.”

Um pensamento mais que feliz passou pela cabeça de Wendy: “Então,talvez meus pais estejam vivos e eu possa encontrar eles?” Perguntou alegre.“Eu não posso prometer isso, Wendy.” Kahsmin admitiu, já devia esperar porisso.“Tudo bem, nunca se sabe, né?” Ela disse tentando deixar todo e qualquersentimento do lado de fora de suas palavras. “E o que é um olheiro?”“Antes de responder, quero pedir que não odeie Mortimer, ele mudou.”“Nunca pensei que ia ver uma frase capaz de auto sabotagem.” Wendy disseem tom de brincadeira, “mas eu vou tentar.”Kahsmin suspirou pesado antes de responder.

“Os olheiros dos D’arlit são demônios encarregados de encontrardesertores. Um ‘desertor’, aos olhos dos D’arlit, são outros demônios que seenvolvem com humanos, ou mestiços. Assim que os olheiros descobremnovos desertores, começam a persegui-los para matá-los, quase sempre empúblico, para usar de exemplo, entende?”

“Mortimer era um deles.” Kahsmin continuou, “mas de novo, nãoodeie ele. Ele não sabia o que estava fazendo, os D’arlit o convenceram deque era um trabalho para o bem, e eles são muito bons em persuasão.Mortimer vem se redimindo ao nos ajudar desde então.”“Esse é mesmo o único jeito de descobrir quem são meus pais?” Wendyperguntou entre reservas e receios.“É o único que conhecemos.”

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“Bem,” Wendy decidiu engolir a vontade de colocar a cabeça desse tal deMortimer num moedor de carne. “Tudo bem, pelos meus pais.”“Ótimo, agora, eu sei que está tarde, mas por favor, fale sobre você, seusgostos e histórias, Autumn me mataria se eu trouxesse uma pessoa nova pracá sem saber nada sobre ela, e teremos torta de framboesa de sobremesa.”Wendy não estava nada afim de falar, e seu cansaço havia triunfado sobre suacuriosidade pra perguntar quem era Autumn, mas interrompeu seu bocejoquando ouviu a palavra ‘sobremesa’. Nunca havia visto uma torta ou umaframboesa, muito menos as duas juntas, mas o nome fazia sua barriga feliz.Então, de bom grado, começou a narrar.

“Ele está aí?” Caleb perguntou para Anuk.O lobo fez que sim com a cabeça.Ele abriu e entrou no farol, subindo as escadas como um homem que caminhapara a forca.Acendeu as luzes do quarto no último andar, abaixo das luzes do farol. Láestava ele, sentado no piano.

Ele não tinha sombra, ele era uma.“Eu prevejo que Caleb Rosengard não manterá o acordo.” O espectro sibilou,sua voz parecia um vestígio de agonia enroscado nas pregas vocais.“Caleb Rosengard gostaria de ganhar um dia de vida sempre que escuta isso,ele já seria imortal à essa altura.” Caleb respondeu irritado.Sem perceber, falou no mesmo tom de sussurros guturais que seu não-tão-amigo esfumaçado.“Preciso lembrar a Caleb Rosengard o que acontecerá caso não faça suaparte?” A sombra ameaçou, enquanto os dedos arpejavam o acorde de dómenor mais grave possível. Suave e repetitivo, do jeito que Caleb odiava.“Não, não precisa.” Caleb respondeu, segurando a imensa tentação de lançá-lo para cima com uma lufada de ar e perfurá-lo com uma flecha, ou quarenta,para ter certeza.“Talvez eu o deva fazer assim mesmo.” Ele sussurrou, levantando-se dobanco e deixando o piano de lado.

Anuk começou a rosnar à medida que ele se aproximava.“Tão pouco sobrou da antiga vida e liberdade de Caleb Rosengard, tão pouco

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sobrou do amor que os cidadãos de Tuonela tinham por Caleb Rosengard.Caleb Rosengard se esquece que, se descumprir o acordo, até isso lhe serátomado, e Caleb Rosengard perderá sua vida, mas continuará vivo, servindopara–”“Você deve realmente amar meu nome.” Caleb interrompeu.“Caleb Rosengard falha em esconder que toquei seu ponto fraco, eu sei.” Oespectro usava um capuz ainda maior que o dele, mesmo assim, dava para verque ele sorria com prazer. “No momento em que quebrar seu acordo, nãohaverá mais proteção para Tuonela e tudo que nela vive, todas as vidas quesobraram aqui se perderão sem o guardião Caleb Rosengard, que não estarámais aqui depois de quebrar seu acordo.”“Desejo que Caleb Rosengard saiba: quando o acordo for quebrado,saberemos.”O espectro se transformou em fumaça preta e, como neblina, se misturou coma noite, deixando Caleb e Anuk sozinhos no farol.

“Sério? Uma freira te chamou de esquizofrênica?” Kahsmin perguntouabismado.“E várias outras coisas.” Ela respondeu um pouco chateada.“Isso é horrível. Você entende o que é uma pessoa esquizofrênica?”“Alguém com amigos imaginários demais?”Kahsmin riu um pouco e disse:“Quase isso. Gostei de como você lidou com sua amiga Dana hoje.”“Ela não é mais minha amiga.” Wendy disse, acabando de comer. “Amei essenegócio!”“Eu também gosto, e você sabe código Morse, me lembro de quando ensineiisso para Sarah.”“Foi você?!” Sua admiração por aquele homem não parava de crescer.“Eu mesmo! Anos atrás, não imaginei que ela ensinaria para mais alguém,mas fico feliz por ter errado.” Ele disse com orgulho evidente na voz e norosto.“Por que você ensinou código Morse e como destrancar portas pra ela?”“Morse foi porque é bem útil, quase todos sabem usar Morse em Tuonela.Destrancar fechaduras era algo que ela fazia por diversão.”

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Por alguns momentos, ninguém disse nada: Wendy ficava imaginandose a irmã Sarah teria sido aventureira e curiosa como ela na infância, teriasido legal jogar pimenta no travesseiro da Dana junto com ela.

Antes que a nostalgia e saudades viessem à tona, a comida acabou.“Obrigado por ter me dito tudo que disse, Wendy.” Kahsmin disse,

juntando os pratos e a tigela vazia onde lutou até a morte uma valente torta deframboesa, derrotada por dois esfomeados que pareciam nunca ter vistocomida na frente. “Eu vou levá-la para o seu quarto, e espero que não seimporte, mas sua amiga insistiu para passar a noite com você.”

Wendy, que estava quase roncando sobre a mesa, se levantou tãorápido quanto uma flecha: ela tinha que ver, conversar, abraçar, trocarnovidades, planejar explorar o lugar e maneiras de atormentar outras pessoascom a Christina.

“Por aqui.” Kahsmin chamou, apontando uma escada espiral cujofinal ela não era capaz de ver.

Onde estava Caleb para fazê-la voar quando ela precisava?Kahsmin carregava um lampião que iluminava as paredes ao redor da

escadaria.Wendy sentia um certo orgulho das suas habilidades com os lápis de

cor: conseguiu fazer um mapa muito bom com elas.Mas nada do que ela já tinha desenhado ou visto poderia se comparar

às pinturas ao seu redor: parecia que anjos e demônios iam sair voando assimque ela parasse de olhar, até o velho que pintou a Mona Lisa teria inveja dequem tinha dado vida àquelas paredes.

“Isso não é um castelo, é?” Wendy perguntou.“É uma catedral.”“Ah. Se há demônios, então, há anjos por aqui também?” O sono não

podia estar mais óbvio na sua voz.“Claro! Eles costumavam viver entre nós, foram tempos de paz

aqueles.”“O que aconteceu com eles?”“Allenwick D’arlit aconteceu.”“O rei dos D’arlit ou coisa assim, não é? O que ele fez?”Kahsmin parou um instante, como se a resposta daquela pergunta o

tivesse congelado na escada: “Allenwick foi o primeiro e único demônio atirar a vida de um anjo. Antes disso, ele era apenas um demônio comum,apesar de ter uma habilidade anormal de convencer as pessoas a seguirem à

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vontade dele.”“Depois que matou o anjo, os poderes dele se tornaram

incomparáveis. Todos os outros anjos deixaram essa terra quando aconteceu,eles estão muito longe daqui agora, em ilhas ou continentes deferentes,ninguém sabe ao certo.”

“Se ainda estivessem aqui, talvez a tomada de Tuonela pelos D’arlitnunca tivesse acontecido, nem nenhuma das outras cidades.”

“Como eles poderiam impedir isso?” Wendy quis saber, cuja mente jáse contaminava com raiva dos anjos por não terem impedido que aquelemenino nos escombros tivesse morrido.

“Anjos têm vantagens que beiram o desonesto numa luta contrademônios, pois estes queimam quando tocados por anjos, a menos que osanjos não queiram machucá-los.”

Algo bateu no fundo cérebro de Wendy.“Espera, então, Caleb é–”“Caleb Rosengard é um dos únicos mestiços de anjo que existem no

mundo.”Wendy achou que não poderia ter mais surpresas hoje.Obrigada por sempre mostrar que Wendy sempre está errada, vida.As escadas acabaram, e agora Kahsmin guiava Wendy por um

pequeno labirinto, cheio de portas de madeira simples, não tão diferentes dasdo Orfanato das Neves, com suas fendas, maçanetas redondas e cor escuraindefinida.

Wendy fez questão de decorar quais eram as tábuas que rangiam sobseus pés e quais eram ‘seguras’, enquanto seus ouvidos se divertiam com osom do mar brando lá fora e seus olhos apreciavam a iluminação fraca dolugar, feita de pequenos lampiões cuja chama trazia mais sombras que luz.Estava ficando tão acostumada com essa caminhada silenciosa que seassustou ao perceber que Kahsmin ainda estava com ela.

“Aqui estamos.” Ele anunciou parando na frente de uma porta nãomuito diferente das outras, bateu três vezes nela. “Chris! A Wendy estáaqui!”

Wendy ouviu um grito excitado e passos rápidos correndo em direçãoa porta.

Ela própria, mesmo com sono, estava lutando para não berrar (outentar), chorar, desmaiar ou coisa do tipo. Apenas ficar calma, era só a suaamiga, sua melhor amiga, que não via há um ano, dentro daquele quarto!

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MEU DEUS ABRE LOGO ESSA PORTA.A porta se abriu, e Wendy não poderia ter ficado mais decepcionada.

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Capítulo 7

“Kristell Sinnett?”“WENDY!” Kristell pulou em Wendy, a derrubando no chão sem dó nempiedade. “Você tá tão LINDA! Eu não acredito que você tá aqui! Eu nuncaimaginei que você viria e agora nós vamos morar juntas e vamos nos divertire vai ser demais e–”“Não respiro.” A voz de Wendy quase não saiu.“Ah, foi mal.” Chris, não, Kris disse, saindo de cima de Wendy e a ajudandoa se levantar. “E aí? Viajou bem? Também pensou que todo mundo tinhapirado na batatinha quando falaram que você era uma mestiça e essas coisas?Eu achei, e...”Wendy foi ouvindo e fazendo que sim de vez em quando, sem prestar muitaatenção.

A decepção de descobrir que “Chris” era Kristell e não Christina foimaior que a que sentiu quando Mary disse que tinha bolo de chocolate nocafé da manhã, quando na verdade ela tinha feito um bolinho de lama ecolocado granulado em cima.

Ou seja, a decepção não só era grande, como também era diretamenteproporcional à vontade que Wendy sentia de mandar Kristell calar a bocanaquele instante, sorte Wendy ter aprendido uma coisa ou outra sobreeducação com a irmã Sarah.“Wendy? Tudo bem Wendy?” Kristell perguntou, chacoalhando o ombro daamiga.“Quê? Ah, é que eu tô morrendo de sono. Eu cansei muito hoje.” Eraverdade.“Que aconteceu com a sua voz?”Wendy suspirou e respondeu essa e mais uma enxurrada de perguntas, com aajuda de Kahsmin, sem perceber que, aos poucos, seu súbito mau-humor edecepção foram baixando o bastante para que pudesse sorrir.Uma memória: fazer os outros sorrirem parecia ser a razão de viver daKristell, sempre fora assim: Kristell, com os cabelos loiros no meio dascostas (morra de inveja, Dana), os olhos caramelo mais cativantes que Wendyjá vira e, agora que tinha crescido, o corpo e animação de uma líder detorcida, só se dava por satisfeita quando todos ao seu redor estavam tão

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felizes quanto ela.Essa era a Kristell.E não Christina.“Você roubou os biscoitos da Romena e não trouxe NENHUM pra mim!? Tôde mal.” Disse Kris ficando emburrada por um segundo e rindo no outro.“Kris, amanhã você pode mostrar a cidade e explicar como as coisasfuncionam por aqui para Wendy? Por favor?” Kahsmin pediu.“Claro. O que ela conhece da cidade?”“Só a superfície.”

“Ótimo! Eu vou mostrar a melhor parte pra ela! A gente vai comernum lugar muito bom e...” Ela foi falando e falando até começar a bocejar.

O sono parecia ter chegado para todos aqui.Kahsmin desejou boa noite e deixou as duas sozinhas.

Wendy olhou para sua mala e para o pequeno guarda-roupa: por umsegundo, considerou desfazer sua mala e colocar as coisas lá dentro.

Por um segundo apenas.“A gente vai ter que dormir na mesma cama, igual quando a gente erapequena.” Kristell disse já se cobrindo, enquanto Wendy agradecia pela camaser maior que a do orfanato.“Esse quarto vai ser meu pra sempre?” Ela perguntou, vestindo seu únicopijama.“Acha? Credo, tem coisa muito melhor pra gente lá embaixo, eu e o pessoalda trupe costumamos dormir na casa do Edgar, você vai conhecer ele maistarde, e tem vários outros lugares, tipo o dormitório! A gente faz as melhoresguerras de travesseiros de toda Tuonela no dormitório! Aliás, esse pijamadeixa você muito bonita!” Kristell nunca perderia a mania de falar que aspessoas estão lindas.“Então por que a gente tá aqui em cima? Eu quero uma guerra de travesseirostambém.” Wendy disse, apesar de, na verdade, querer apenas os travesseiros.“Você não pode passar sua primeira noite em Tuonela no dormitório. É amaldição.”“Uma maldição no dormitório?” Wendy perguntou, deitando-se ao lado deKristell.“Aham, se você passar sua primeira noite no dormitório, você morre.” Eladisse com uma voz sombria que não combinava com ela.“Sério?”“Não, elas só tão sem camas sobrando lá, aí acho que não ia rolar hoje.”

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“Ah, entendi.”“Ei, melhor a gente dormir, amanhã o dia vai ser longo pra nós duas, amiga.”Kristell disse sorrindo e dando um beijo de boa noite na testa de Wendy,como a irmã Sarah costumava fazer.Wendy desejou boa noite de volta, com um sorriso de verdade nos lábiosagora.Ela fechou os olhos e foi tomada por lembranças de quando ela, Mary,Kristell e Christina eram tão pequenas que cabiam as quatro numa cama.

Ficavam acordadas até tarde, fazendo brincadeiras idiotas semsentido.Eram bons tempos, quando Wendy ou Mary começavam a inventar umahistória no meio da noite e depois a menina deitada ao lado tinha quecontinuar da onde a primeira parou, sempre que chegava na vez da Christina,ela matava todos os personagens e mandava as amigas calarem a boca paraela dormir.

Mary e Wendy, que ficavam loucas da vida porque queriam continuara história, acabavam começando uma discussão que acabava com ataques decócegas.

Incrível o que estar com uma velha amiga faz com a memória.Queria ter certeza de que Kristell já estava dormindo, para não precisaresconder as lágrimas de saudades, medo, raiva e decepção que tinha em seurosto.

Saudades do Orfanato e tudo que ficou para trás quando mergulhounaquele lago.

Medo do que viria pela frente, essas coisas estranhas que pareciam tersaído da imaginação de um escritor nada criativo: anjos, demônios, mestiços,nenhum elfo, guerras, aquele garoto nos escombros.

Raiva dos D’arlit por motivos óbvios.Decepção, por não encontrar sua amiga Christina, que deveria estar lá

no Orfanato, no meio da Festa de Inverno, perguntando “cadê a Wendy?” E airmã Sarah inventando uma história furada sobre seu paradeiro.

Será que diria que Wendy fora adotada? Ou que fugira?Não, não queria pensar em como, na verdade, era ela quem decepcionaraChristina por não estar lá, queria apenas dormir e aproveitar os poucosmomentos em que não existia para o mundo.E como ela queria.Mas Ally invadiu seus sonhos.

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“Xeque-mate.” Sussurrou a senhora com o sorriso enrugando aindamais seu rosto.

“Odeio esse jogo.” Sua oponente irritadiça.“Não, você odeia perder.”Era verdade, mas não ia dar à velha a satisfação de ouvi-la confessar isso, seconcentrou apenas em guardar as peças do jogo, mantendo o rosto ilegívelenquanto a vencedora ria.“Você está melhorando.” A velha disse.“Você diz isso faz mais de cinco anos.” A perdedora respondeu, guardandoas peças numa gaveta escondida sob a mesa de xadrez, para depois seaproximar da janela do seu quarto.Era verdade que evitava sentir apreço já havia mais tempo que se importavaem registrar em sua mente, mas esta noite, olhando pela janela, não seriacapaz de negar: o céu estava lindo, as estrelas pareciam girar em torno deuma lua alaranjada que ela quase podia segurar na palma da mão.

E a cidade lá embaixo, ah como gostava de poder ver a cidade do altodo seu quarto, tão calma e tranquila, só algumas pessoas cantando nas ruas,comemorando o aniversário do rei com gargalhadas altas que chegavam aosseus ouvidos como um eco distante, contagiante, quase fazendo-a rir juntocom eles, sem motivo algum.

“Como estão os planos para Jussarö?” A velha perguntou, trazendo-ade volta.“Agradeço, Stefanova, por não insistir em falar sobre xadrez esta noite.” Eladisse, fechando as cortinas com rispidez e limpando qualquer vestígio dealegria do rosto. “Os planos estão prontos, partiremos daqui dois dias.”“Quantos homens você vai levar?”“Dois.”Um sorriso satisfeito se formou ao ver a cara de espanto de Stefanova.“Por que só dois?”“Preciso de testemunhas para escreverem e corroborarem a história de comotomei a cidade sozinha.” Ela disse, gostando da vitória soando na própria voz.“Isso é loucura! Seu pai sabe disso?”“Ele vai saber quando estiver feito.”“Você não precisa fazer isso.” Stefanova disse, mais preocupada do quedeveria.

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Ela abriu as cortinas que escondiam sua cama.“Eu sei que não preciso, mas eu quero, e eu posso. Agora saia, eu vou dormir.E antes que sua preocupação irritante comece a guiar suas atitudes, eu aproíbo de contar qualquer detalhe do plano para o meu pai.”Esperava colocar um ponto final naquela conversa com a ordem direta, mas oolhar assustado e preocupado de Stefanova ainda estava visível na pouca luzdo quarto, juntos com as rugas no rosto de pele escura e as mãos que só nãotremiam quando estavam sobre peças de xadrez.“Você não tem que provar nada para ninguém, querida.” Ela disse e, semesperar resposta, saiu do quarto.“Quem me dera, Stefanova.” Ela sussurrou, apenas quando soube queninguém mais podia ouvi-la. “Quem me dera, mas as pessoas esperam coisasde mim, é o fardo de ser a filha de Allenwick D’arlit.”“O fardo de ser a Harbinger da Morte.”

Wendy acordou pela terceira vez, suando frio e pensando que estava morta oucoisa pior, como ficar presa num lugar onde os chocolates tivessem gosto derúcula.Nas primeiras duas vezes que acordou, ficou completamente perdida, seperguntando quem tinha mudado a cama dela de lugar; porque o quartoparecia tão alto; quem colocou uma praia na janela e quem tinha sido o serhumano sem amor no coração que colocara a Dana na mesma cama que ela.

Até perceber que era Kristell.Ally parecia recusar-se a deixar os seus sonhos, era como se a Princesa doCaos estivesse aqui, fazendo Wendy voltar de novo para aquele banheirocomo um fantasma, colocando um monstro estranho do outro lado da porta eforçando Wendy a assistir sua mãe costurando Wanda enquanto seu braçosangrava.De algum jeito, Kristell continuava dormindo na cama, o que era ótimo: nãoqueria ter que explicar para a amiga seus pesadelos.Wendy fez de tudo para voltar a dormir: contar carneiros teria dado certo, sepudesse fazer o rosto de Ally parar de aparecer na cabeça de cada um doscarneirinhos. Depois tentou encontrar desenhos escondidos nas linhas dotelhado, mas sempre acabava vendo o rosto da menina dizendo “Bu” e rindo

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feito a maníaca que ela era.Bem, Wendy não podia mais mentir para si mesma, era a hora da verdade, elasimplesmente não podia mais negar a crua realidade de que não conseguiadormir.“Me ajuda, Wanda.” Ela sussurrou.Wanda se expressava muito bem com o silêncio.“Não, a gente não pode voltar agora, você viu o lago sumindo.”Wanda não disse nada, pensativa.“Está muito escuro pra ler a carta, e a Kristell está dormindo.”A boneca estava ficando sem ideias.“Espera, fala isso de novo.”Wanda não disse nada, de novo.“Boa ideia, ótima ideia, Wanda! Tem um monte de portas lá fora, deve teralguma coisa legal por aqui.”Wendy deslizou pela cama até onde sua mala estava e pegou a lanterna queestava lá dentro. Considerou acordar Kristell para ir com ela, mas ela pareciatão tranquila na cama que achou melhor não.Se fosse a Christina, com certeza teria arrastado a garota da cama até o fim domundo e além, porque a boa e velha Chris mataria Wendy se ela se metesseem encrencas sozinha.Antes que o medo do que vira nos seus sonhos a fizesse mudar de ideia, eladeslizou para fora do quarto e deixou Kristell dormindo em paz.

Era uma guerra no lado de fora do quarto.A filha de Allenwick se levantou, ouvindo homens lutando e berrando naporta do seu quarto, esbarrando em paredes, usando os poderes uns contra osoutros. Deveria ser outra briga patética porque alguém roubou num jogo decartas idiota, uma briga daquelas em que ela tinha que sair da cama paracolocar fim, só tinha que decidir qual dos desgraçados ia usar de exemplodesta vez.Antes que tocasse a porta, veio um último grito, tão agudo e desesperado quesua mão congelou na maçaneta.

Mesmo em quase dezoito anos esmagando crânios com as própriasmãos, nunca tinha ouvido algo que a tivesse chocado tanto quanto aquele

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som.Só não era pior que o som seguinte: o som do silêncio.

Ela se afastou da porta, esperando, paciente como seu pai a forçou a ser,pronta para mostrar porque a chamavam de Harbinger da Morte.Alguns passos silenciosos e rápidos do outro lado e a porta se abriu.“Oi! Acordei você?” Perguntou uma pirralha com um sorriso inocente e olhoscastanhos, meio vermelhos. Não devia ter mais de dez anos, nem qualqueramor à vida.“Sabe o que acabou de fazer?” A voz fria e baixa da Harbinger soou peloquarto.“Fiz você sair da cama, preguiçosa!” Respondeu a pirralha rindo da cara dela.“Eu devia fazer você comer seus olhos por–”“Eu sei. Eu sei: ‘Eu devia fazer você comer seus olhos por atrapalhar meusono, criança insolente, blábláblá, eu sou a princesa D’arlit, blábláblá, servirde exemplo, blábláblá minha irmã era bem melhor que eu’, troca o disco,amiga.” Cortou a menina zombeteira. “Aqueles ali queriam me matar oucoisa assim, eu quase fiquei com peninha deles.”A Harbinger não entendeu do que a menina estava falando até olhar para ocorredor atrás da porta: todos os seus guardas estavam espalhados no chão;olhos opacos; bocas entreabertas, baba escorrendo e sangue escorrendo.“Você matou meus guardas?” Sua voz soou neutra, mas seus olhos estavaminjetados na pirralha infeliz.“Claro que não!” Quando essa coisa ia parar de rir enquanto falava? “Eu fizeles se atacarem e fiquei assistindo. Achei que ia ser mais divertido, mas foimeio rápido e–”Em um segundo, a Harbinger agarrou a criança pela cabeça e a bateu contra aparede.

Plaft.Sentindo o impacto contra a madeira.Plaft.Deliciando-se à cada estalo.Plaft.Sentindo ossos quebrarem sob sua mão.Plaft.Até os nós dos seus dedos arderem de dor.Plaft Plaft Plaft Plaft Plaft Plaft PLAFT PLAFT!

A menina ficou mole e silenciosa.

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“Quem está rindo agora?” A Harbinger disse satisfeita.A risada da pirralha ressoou do outro lado do quarto.“C’est moi!” Ela disse.A Harbinger se virou e viu a menina pulando sobre sua cama, e pendurada nolustre, e olhando a cidade pela janela, e duas delas jogando xadrez uma com aoutra.Havia um monte delas, em toda parte, todas elas rindo.Engoliu seco e mordeu os lábios para eles pararem de tremer: odiavademônios que podiam se multiplicar mais que odiava jogar xadrez com aStefanova.Ela fechou os olhos tentando sentir alguma coisa diferente: um som, umapontada, um sinal, qualquer coisa que indicasse onde a verdadeira estava,mas, mesmo de olhos fechados, conseguia ver todas elas, brincando, pulando,apontando e rindo dela.

Rindo da perdedora patética.“Psiu.” Uma das cópias disse no seu ouvido.Ela tentou atacar, mas seu golpe só achou o ar e alguns móveis ao seu redor.A anãzinha diabólica continuou provocando, cutucando ou sussurrandocoisas sem sentido, enquanto a filha de Allenwick destruía o quarto, incapazde acertar a pirralha uma única vez.

A voz da menina riu maquiavélica e disse onipresente: “Eu estou nasua mente.”A última coisa que sentiu foi um par de lábios na sua testa.

“Uau.” Wendy disse admirada.Era a terceira sala em que ela havia entrado naquela noite, graças aos truquescom grampos de cabelo que a irmã Sarah tinha ensinado, e ao fato denenhuma das portas estar trancada até agora.A primeira sala estava cheia de instrumentos musicais: violinos, violinosmaiores, violinos maiores ainda, flautas, flautas diferentes das primeirasflautas, oboés, até harpas! Wendy se segurou para não tentar tocar todosaqueles instrumentos.A segunda sala estava cheia de pinturas tão bonitas que faziam suashabilidades com os lápis parecem coisa de criança (sem ofensas, LaVerne).

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Quadros de sapatilhas vermelhas com asas, um poeta escrevendo à luzde uma vela que ficava dentro de uma caveira, uma paisagem que parecia apraia de Tuonela vista de cima. Se era verdade que tinha que aprender umaarte, pintura era uma candidata bem forte.

Junto com todas as outras.Agora estava em uma sala com coisas que ela achava que só veria nos livrosdas Crônicas de Júpiter: um telescópio, que parecia ter saído direto daimaginação de alguém em 1730, bem ali na janela, e um monte do quepareciam ser aqueles jogos de ligar os pontos colados na parede, formando asconstelações do céu, a ursa maior, a ursa menor, as outras cujos nomes elanão sabia.Wendy se aproximou da parede, tinha um painel bem grande com uma listade planetas que ela nunca tinha ouvido falar, cada um deles com coisas maislegais que os outros.“Olha Wanda! Esse aqui tem neve que pega fogo! Sabe que isso quer dizer?!”Wanda não sabia.“A melhor guerra de neve do mundo!”Quando ela terminou os planetas, estava pronta para ver o telescópio, masantes de sequer colocar a mão nele, ouviu um som, um dos mais bonitos quejá escutara na sua vida.Alguém estava tocando violino ali perto.Wendy se esgueirou até a sala de música que achou mais cedo, mas antes deentrar lá, percebeu que a música vinha de outro lugar: de algum dos várioscorredores que se ligavam ao que ela estava.“Bonito, não acha, Wanda?”Wanda, além não falar muito, também não devia ter um ouvido muitorefinado.“Sua porca sem cultura.” Wendy resmungou baixinho, entre risadas roucas, esaiu correndo na direção da música.

A Harbinger acordou com uma dor latejante na cabeça, se sentindo um poucoperdida e sem entender porque parecia que um elefante tinha esmagado suamão. Abriu os olhos e viu que já passava das quatro horas da manhã no seurelógio.

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“Oi de novo!” A maldita pirralha disse.Seu rosto se tornou o de um cão raivoso quando lembrou que foi humilhadapor uma peste de dez anos. Tentou se levantar, mas suas pernas e braçosestavam presas, enquanto a pirralha ria, sentada na de xadrez.“Quem é você?” Ela perguntou com toda autoridade que uma mulheramarrada numa cama consegue por na voz.“Ally, Princesa do Caos! Prazer.” Disse brincando atrás de olhos castanhosem chamas.“E você veio matar a Harbinger da Morte?”“Claro que não, sua tonta! Você nem vai ter pesadelinhos comigo igual osoutros que me viram!”

“Veio me humilhar ao me manter presa no meu próprio quarto?”“Não tem nada de humilhante se só eu sei que aconteceu.” Ally disse

rindo e saltitando pelo quarto como uma bailarina. “Eu vim ajudar você.”“Matando meus guardas, me prendendo na minha cama e me fazendo destruirmetade do meu quarto?!”“Seus guardas foram grossos comigo e não me deixaram passar, e vocêtentou esmagar minha cara na parede, foi muito feio da sua parte, vocêdeveria pedir desculpas.” Ally disse.A princesa D’arlit tremia e bufava violentamente. Estava pronta paraarrebentar aquela cama e estrangular aquela pirralha até os olhos delasaltarem do rosto.Mas a lembrança do que aconteceu da última vez que tentou a fez desistir daideia.

Não tinha ideia do que essa menina era capaz de fazer, ela não semultiplicava como os demônios normais, não dava sinal de onde estava eentrava na sua mente sem dificuldade nem restrições.

“Eu estou esperando, não precisa enrolar e fazer um pedido longo, émuito chato, só diga ‘me desculpa, Ally’, e aí a gente volta a se falar, comoboas amigas, ou eu posso fazer da sua vida um sonho muito ruim.”A Harbinger sentiu anseio ao ser abatida com a lembrança do que viraquando desacordada, sonho ou memória antiga, ela não sabia, só sabia que serepetia e se repetiu tanto que achou que morreria presa, presa de um depesadelo.“Não precisa fazer essa cara de tonta.” Ally disse risonha. “Quando eu beijeisua testa, você ficou presa no pior do seu passado. Se eu quisesse, podia fazerisso até você ficar louca e se jogar para o abismo ou coisa do tipo. Não é

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legal?”Ela se manteve quieta e impassível.

“Bem.” Continuou Ally. “Agora, peça desculpas e eu vou ajudar você. Ouvocê pode ficar quieta e começaremos tudo de novo.”Tentando manter-se digna, não disse nada por um bom tempo: bolou planospara se livrar de Ally até perceber que eram inúteis.

Pela primeira vez em eras, não conhecia o inimigo, não sabia do queela era capaz e começou a se debater de raiva quando percebeu que estavaencurralada por uma pirralha idiota, da mesma forma que Stefanova aencurralara mais cedo com duas torres e um cavalo.“Você já não me humilhou o bastante?” Ela perguntou, sua voz anunciava aderrota.“Não é humilhar, sua boba, são boas maneiras. Anda. Estou esperando!” Allypraticamente cantou a última frase, com prazer infantil na voz.

Wendy tinha corrido e virado em tantos corredores que ficou com medo de seperder quando voltasse pro quarto, mas não podia parar agora.Quanto melhor ouvia a música, mais podia senti-la: havia sem dúvida belezanela, mas tristeza também jazia ali, entre notas e pausas, como se mil almasperdidas se juntassem para cantar os seus lamentos. Era um som tão puro queparecia conversar diretamente com a alma de Wendy, que se pegou inúmerasvezes arrepiada com o que ouvia.De repente, ela virou em um corredor e a música sumiu, não tinha acabadonem nada, apenas parou, como se nunca tivesse existido.Ela olhou ao seu redor e viu que estava na frente de uma porta muito maiorque as outras, feita de uma madeira mais grossa que o recheio da torta quecomeu mais cedo, com duas argolas de ferro que substituíam as maçanetas.Estava trancada, como toda grande porta que esconde segredos legais.Wendy já estava tirando o grampo que escondia no cabelo de Wanda (semnotar a falta de fechadura), quando ouviu o som típico de coisas fáceis dequebrar quebrando.Ali, no fim do corredor havia uma porta entreaberta com uma luz amareladasaindo dela, junto com algumas vozes. Wendy tirou seus sapatos e caminhouna ponta dos pés até a porta, tomando todo cuidado do mundo para não fazer

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nada ranger sob seus dedos.Era uma sala grande e mobiliada, perfeita para brincar de esconde-esconde.Tinha um sofá sete passos à sua frente, e ele deveria estar entre Wendy ealgum tipo de lareira, porque havia um brilho oscilante ao redor dele.“Meu, faz as coisas direito.” Um rapaz disse, do outro lado do sofá. Peloaborrecimento na voz, Wendy supôs que ele fosse o dono do que quer que elativesse ouvido quebrar agora pouco.“Foi mal, Fawkes, ele escorregou.”“É, tenta com esse!” Duas crianças disseram, ou pelo menos pareciamcrianças.“Fawkes, nome legal.” Wendy murmurou para Wanda.Ela engatinhou para o sofá: sabia que, na maior parte do tempo, seus passoseram pesados como a irmã Romena, mas em compensação, quando precisava,sabia usar o silêncio dos gatos.Ela ergueu a cabeça por sobre o sofá: o mais velho e uma das criançasestavam juntando cacos de vidro branco, enquanto o terceiro estavacolocando um vaso no meio dos três.

Engraçado, Wendy podia jurar que haveria uma lareira aqui, masagora estava tudo escuro e– “Faz com esse!” A criança pediu de novo.O mais velho, Fawkes, colocou as mãos ao redor do vaso enquanto os outrosdois, e Wendy, observavam, esperando alguma coisa acontecer.E aconteceu: a sala começou a ficar mais quente e o vaso a brilhar.

Era fogo, várias chamas entravam e saíam de buracos invisíveis novaso, iluminando tudo na sala, principalmente Fawkes, que vestia umsobretudo parecido com o de Caleb, mas sem correntes, fivelas ou capuz;tinha os cabelos ruivos (que surpresa) muito mais bonitos e brilhantes que osda Ruth, espetados como uma almofada de alfinetes; um sorriso triunfante e,por algum motivo desconhecido, um óculos de nadador na cara.

As crianças (e Wendy) erguiam a cabeça em excitação para perto dovaso na medida em que ele ia ficando cada vez mais vermelho: o ar ao redordele ondulava como fazia ao redor de uma chaleira acesa e– BOOM! O vasoexplodiu, cacos voaram por toda parte, quase acertando Wendy, que seabaixou bem a tempo atrás do sofá.“Vocês dois estão bem?” Fawkes perguntou.“Só uns arranhões.” Os dois disseram ao mesmo tempo.Isso. Foi. DEMAIS! Wendy queria sair do esconderijo e gritar, pedindo paraele fazer de novo, igual as duas crianças estavam fazendo agora.

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“Explode esse aqui agora!”“Explode esse troféu!”“Explode o sofá!”“Explode ELE!” Uma das crianças disse apontando para a outra.“EXPLODE ESSE QUARTO!”Wendy adorou a ideia, durou até se lembrar que estava dentro do quarto.Fawkes ria sem graça enquanto pegava o outro vaso da mão de umas dascrianças e se preparava para fazer seu truque, quando uma das crianças disse:“Ei, coloca o vaso na janela e atira nele daqui!”“Vai com calma aí galera, eu só aprendi a fazer isso ontem e –”“QUEM LIGA?! Anda Fawkes, a gente quer ver!” Uma das crianças cortouFawkes.“É, a gente quer ver!” A outra concordou.“É, vai logo, Fawkes!” Wendy se segurou para não dizer isso em voz alta.Wendy conhecia aquele olhar no rosto dele, estava dividido entre a vontadede fazer o que eles pediram e o medo de alguma coisa dar errado.Claro que, como todo bom adolescente, ele acabou ignorando o medo dealguma coisa dar errado e colocou o vaso sobre o batente da janela, estava tãoconcentrado no que estava prestes a fazer que sequer reparou na menina atrásdo sofá.

Bem, talvez o escuro tenha ajudado a mantê-la invisível, só talvez.Fawkes estava de pé no lugar onde explodira o primeiro vaso, a mão na alturado rosto, fazendo mira.Pequenas chamas de fogo começaram a circular ao redor do seu pulso,seguindo um caminho invisível através da mão dele: todas as veias de chamasse juntavam na palma de sua mão, criando uma bola de fogo quase tão grandequanto a cabeça de Wendy.Ela viu acontecer: Quando Fawkes estava pronto para arremessar a bola, onervosismo levou a melhor sobre ele, fazendo sua mão vacilar.

Ele acertou a bola de fogo quase dois metros ao lado da janela,abrindo uma segunda janela parede.

Sorte o fogo ter se apagado.Wendy tinha experiência o bastante para saber que nesse exato momento,todos os presentes na sala estavam encrencados e, por isso, começou aengatinhar para fora da sala, enquanto Fawkes ainda olhava atordoado para oburaco na parede e as crianças falavam: “Ei Fawkes, você tá bem?”“Isso.” Fawkes disse sem fazer sentido.

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“Fawkes, tudo bem?”“Isso... foi INCRIVEL!” Ah, ele ainda conseguia completar as frases, isso ébom, por um instante, Wendy achou que ele nunca mais seria o mesmo.“É! Faz de novo?!” Pediram os dois ao mesmo tempo.“A gente precisa sair daqui antes que alguém chegue.” Fawkes disse, semtirar os olhos do buraco que ele mesmo fez.“Você vai pedir para ela não contar nada?”“Quê?”“Tem uma menina aqui com a gente faz uns dez minutos. Ela viu tudo.”Fawkes virou os olhos para a porta, exatamente onde Wendy estava: “Ah,oi?”

“Eu já pedi desculpas, Ally.” A Harbinger disse com os dentes cerrados.“Eu sei! Eu achei lindo, está perdoada!”Ally a fez se desculpar três vezes em voz alta. Igual seu pai fazia.“Não se sente melhor agora?” Ally provocou. “Vamos, respira comigo, sintaa leveza e as coisas boas entrando no seu corpo graças ao poder do perdão!”

A Harbinger só sentiu a pureza do seu ódio pelas covinhas no rosto dapirralha tomarem conta dela.“Não vai dizer nada?” A pirralha continuou no tom de ameaças.“Sim, me sinto muito melhor, Ally, agradeço por sua graça.” A Harbingerdisse, mas disse na mesma entonação que teria usado para dizer: “Por quevocê não chega mais perto para eu fazer você virar história, Ally?”“Ótimo, agora preste atenção, eu tenho duas coisas legais pra contar.” Allydisse.“Estou ouvindo.”“Eu sei que está, boboca, senão eu já tinha parado de falar.” Ela deu maisuma gargalhada, saboreando a raiva da Harbinger, “mas, falando sério, vocêjá ouviu falar no Orfanato das Neves?”

“Espera, deixa eu ver se entendi: você seguiu o som de um violino até aqui. Éisso?”

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Wendy passou os últimos minutos explicando para o Garoto CactosVermelho como tinha encontrado o esconderijo secreto das experiênciasmacabras de Fawkes e seus seguidores. Isso, claro, depois de tentar fugirpelos corredores.

Ela era rápida (precisava ser se quisesse chegar na mesa de café damanhã enquanto a comida boa ainda estava na mesa), mas ser rápida nãoadiantava nada quando não conseguia lembrar o caminho de volta para oquarto.

Saber que tinha um cara com a mira do Mr. Magoo capaz de soltarbolas de fogo atrás dela também não ajudou muito.“Isso, a música parou quando eu passei na frente daquela porta enorme demadeira lá fora.” Wendy disse. Ela e Fawkes estavam terminando de recolhertodos os cacos de vidro quente e madeira chamuscada espalhados pelo chãoda sala.“Por que você fugiu quando eu te chamei?” Ele perguntou.“Força do hábito, culpa de uma longa vida recheada de encrencas por fazercoisas erradas e estar em lugares onde eu não devia.” Apesar de suasencrencas resultarem apenas em broncas, e as vezes tapas na cara (cortesia dairmã Romena), Wendy gostou de como sua resposta soou como algo que umespião saído dos livros da Agatha Christie diria, e sua voz meio rouca ajudouno suspense. “Minha vez de perguntar. Por que esses óculos?”Fawkes ergueu uma sobrancelha, tentando entender do que ela estavafalando, então se tocou que tinha um trambolho enorme na cara.“Olha ele de perto.” Ele disse tirando os óculos. Wendy quase esperou verolhos vermelhos atrás daquelas lentes, ia combinar muito com ele, mas eramazuis, normais. Nada contra, eram legais também, mas iam ser mais legais sefossem vermelhos.Quando parou de prestar atenção no rosto dele, viu que haviam dois cacos devidro cravados nos óculos. Foi o bastante para Wendy entender que Fawkesnão era tão louco quanto parecia.“Capitão e Terror também estavam usando, eles não tiram nunca na verdade,não faz sentido pra mim.”Foi sorte Wendy não estar bebendo nada quando Fawkes disse que as duascrianças se chamavam “Capitão e Terror”, senão teria espirrado tudo na carade alguém, pelo nariz.“Eles são crianças, tudo faz sentido pra eles.” Wendy disse, pensando emCora, poderia dizer para aquela menina que o céu era azul porque melancia

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não dá em árvore e Cora acharia que aquilo fazia todo o sentido do mundo.“Onde você mandou eles irem?” Wendy perguntou, entregando um monte delixo para Fawkes que, num ataque de brilhantismo, jogou tudo pela janela, aque ele mesmo fez.“Eu pedi pra eles ficarem de olho lá fora, sabe, pra caso alguém apareça.” Eledisse descontraído.A resposta parecia plausível, mas Wendy sentiu que havia outros motivospara Fawkes mandar os dois para fora e, convenientemente, deixá-la a sóscom Fawkes, não que ela tivesse uma vasta experiência sobre “como garotosagem perto de garotas”, mas tinha uma TV no Orfanato.Eles fizeram a sala parecer nova em folha, exceto pelo buraco na parede echeiro de queimado. Wendy estava começando a sentir o sono voltando atrásdos seus olhos, mas uma voz na porta a deixou mais alerta que umdespertador às sete da manhã.“A CASA CAIU!” Gritaram Capitão e Terror.Wendy e Fawkes saíram correndo daquela sala: Capitão e Terror haviam seescondido em alguma das inúmeras portas dos corredores, enquanto Fawkescorria na frente de Wendy, com fogo nas suas mãos para iluminar o caminho;guiando-a em direção do quarto dela.

Wendy olhava para trás, nunca vendo ninguém, sempre ouvindopassos.Fizeram todo o caminho até a porta do quarto temporário de Wendy.“Te vejo amanhã?” Perguntou Fawkes apressado enquanto Wendy abria aporta.“Pode ser, como te encontro?” Wendy perguntou de volta, já entrando noquarto.“Eu te encontro. Bons sonhos.” Fawkes disse, fechando a porta, Wendy ouviuseus passos se afastando na direção das escadas ali perto, e nada mais.Ela foi para a cama, ainda respirando alto e surpresa por Kristell não teracordado com o barulho, pelo visto o sono pesado que ela tinha no orfanatoainda estava aqui.Uma vez na cama, passou vários minutos tentando parar de sorrir, afinal,quem consegue parar de rir depois de conhecer duas crianças chamadasCapitão e Terror? Não dá, a menos que seu senso de humor seja igual ao deuma pedra.Mas o melhor era: estava ali havia menos de vinte e quatro horas e já tinhauma pessoa com quem poderia contar para se meter em encrencas, talvez a

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irmã Sarah estivesse certa.Talvez esse lugar realmente fosse algo bom para ela.

“Por que está me contando tudo isso? Como eu vou saber se é verdade?”A princesa D’arlit quase se esqueceu que estava com raiva de Ally depois detudo que a menina narrou. Um lago nas montanhas ao redor de Tuonela, umorfanato cheio de meninas mestiças, lua cheia, e só ela sabia.“Porque eu estava entediada!” Ally falou alto e com voz de travessura.“Vocês são muito lerdos pra descobrir as coisas sozinhos, seus bobalhões sóserviam pra seguir o lobo e morrer.”“Não respondeu como eu vou saber se é verdade.” Insistiu a mulher.“Porque eu sou um anjinho, eu não minto!”Ela disparou um olhar afiado em Ally. Não esperava que fosse fazer efeitoalgum, mas a menina diabólica começou a falar, com uma voz muito maisséria que tinha usado até agora: “Eu deixei algo sobre a mesa explicando oque você deve fazer quando chegar no lago.” Ela disse abrindo a janela. “Senão acredita, mande um dos seus guardas pra lá. Ele vai confirmar tudo. Nalua cheia, é claro.”Ally estava preparada para pular, mas se deteve no último segundo.“Mais uma coisa. Você sempre manda seus homens atrás do lobo, e você fazisso porque sabe que ele resgata mestiços que estão perdidos por aí, não é?”A princesa D’arlit assentiu.“Como você descobriu isso?” Ally não parecia realmente curiosa.“Um boato que circula por tempo demais não pode ser ignorado.” D’arlitrespondeu.“Boatos, certo. E você nunca achou estranho que nenhum de seus homensvoltasse depois que você os mandava atrás do lobo mau?” Ally perguntoucom brilho nos olhos.“No começo, sim, mas contornei isso mandando apenas homens que gostariade ver mortos, e o resto parou de ser importante.” Ela disse, sorrindo aolembrar que nunca mais teria que ver Fester.“Ah, entendi! Sigam o lobo mau e sumam da minha vida, você é menosbobalhona do que parece.” Ally disse, então fechou a cara. “Anuk sozinhonão seria capaz de parar dez homens seus, você sabe que ele não está

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sozinho.”A mulher na cama ficou encarando Ally.“Outros mestiços?”“Não, outros não, só um. E você deveria se preocupar com ele.”“Qual o seu problema em falar nomes sua–” algo a fez parar, uma onda degelo e compreensão amortalhou sua pele e um nó prendeu sua respiração.“Um lobo não seria capaz de parar dez dos meus homens, mas um únicomestiço sim. Está dizendo que ele está...”Ally riu descontroladamente do desespero estampado na cara da mulher.“Você realmente não é tão boboca. Sim, Caleb Rosengard está vivo.”

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Capítulo 8

Kahsmin abriu a janela do seu quarto: Papagaios-do-mar e cigarras cantavamem toda parte, o sol, recém-acordado de seu sono, já brilhava alaranjadocontra as montanhas e uma brisa com cheiro gostoso de sal invadia seuquarto. Dava até para esquecer que metade da cidade estava em pedaços eque o mundo estava em guerra.Ele começou a fazer um pouco de chá e riu sozinho, se achando um gênio porter colocado um fogão dentro do quarto para poder cozinhar quando quisesse.Sua mãe nunca teria aprovado isso.Alguns goles e poderia começar bem o dia, não fosse o fato de seu chá serpior que café coado com meias suadas, e também por ele ter cometido doiserros que fizeram seu coração afundar no peito com o peso de todo o ferrousado na Catedral de Tuonela: 1 – Olhar o calendário: Sete de Dezembro.

2 – Virar os olhos na direção errada enquanto olhava pela janela.Gostaria de desver o que viu, mas era tarde, pois lá estava ele, na base dasmontanhas que cercavam o que um dia foi Tuonela: o Casarão Branco,intacto exceto pela poeira e uma única parede que desabou durante a batalha.Só uma.Por um instante, ele viu o céu vermelho: o fogo engolindo a cidade; as cinzascaindo como penas de corvos; Os D’arlit invadindo como gafanhotos;humanos comuns, como ele mesmo, tentando se salvar enquanto os poucosque sabiam lutar tentavam proteger a cidade; seus amigos caindo aos seus pésenquanto ele corria.

Aquele dia custou tanto as vidas dos que se foram quanto as dos queficaram.Um piscar de olhos e o dia estava ensolarado de novo, nada de fogo, cinzas,ou medo no ar: mesmo assim, seus dedos tremiam e sua testa suava.Sete de Dezembro, um péssimo dia para se ter memória, era o que Kahsminpensava quando pegou uma rosa de um vaso que deixava no seu criado-mudo, arrancou suas pétalas com as mãos, jogou todas para o céu e desejounum murmúrio sem força: “Feliz aniversário, Meggie.”Ficou ali, sentindo metade da sua alma se esfarelando ao vento, comprimindoos lábios, até que as pétalas já estavam longe demais para serem vistas porolhos humanos.

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Uns últimos goles e seu chá já não parecia tão ruim quanto o gostoamargo que ia ficar na sua boca pelo resto do dia.Seu quarto era virado para as montanhas, o que fazia normal ver o sol só nocomeço da tarde, mas mesmo assim, era claro ali dentro o dia todo.Ou deveria ser.

Não tinha certeza de quando começou, mas havia algo se espalhandopelo quarto, algo frio, funesto e mórbido que fazia sua pele arrepiar e seusangue virar cobre derretido em suas veias. Ele suspirou abatido, limpou agarganta e disse em voz alta: “Quer chá, Autumn?”

Um dos cantos do quarto estava tão escuro que parecia que umpedaço da noite havia se instalado ali, parasita viscoso pronto para sealimentar da devastação de Kahsmin, embora ele soubesse que não fossenada disso.

No meio das sombras, surgiu um rosto severo: “Quer me matar,Kahsmin?” Autumn perguntou, ironia escorrendo no canto da boca.“Às vezes.” Ele disse brincando e deixando a xícara de lado. “Aconteceualguma coisa?”As sombras na parede sumiram assim que ela se aproximou da cama:Kahsmin achava incrível que uma mulher adulta com cabelos rosas tambémpudesse parecer prestes a arrancar seu fígado e dá-lo aos mergulhões epapagaios-do-mar.Mas claro, ela era bem mais que cabelo rosa em um penteado complicadodemais para sua pobre mente limitada de homem entender: Autumn tinha orosto pálido como um floco de neve, mas tão angular que, não importava poronde a luz tocasse seu rosto, sempre haveria uma sombra em algum lugar.Parte das roupas de Autumn pareciam ter vindo diretamente da épocavitoriana, e ficado um pouco surradas na viagem, eram um vestido simplescom corpete, surrados e rasgados como se tivessem passado por uma guerra,e dando pouco espaço para alguém reparar nas meias sete oitavos rosadas quecobriam toda parte visível de suas pernas.“Algumas crianças sumiram em Virrat, os D’arlit vão atacar Jussarö amanhã,Neri deve chegar daqui uma semana e algum demente abriu um buraco naparede da sala perto do campanário.”“Você viu quem foi?”“Kahsmin, fico feliz por sua inteligência não o impedir de ser um completoidiota.”Kahsmin deu uma risada sem graça: Autumn andava sozinha com tanta

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facilidade que era difícil lembrar que ela era cega, embora usar uma venda derenda branca nos olhos devesse ser lembrete mais que o suficiente.“Me desculpe.” Disse por fim.“Na verdade, eu sei exatamente quem foram, mas você quer se divertirdescobrindo por conta própria, não tente negar.” Autumn acrescentou.“Você vai me dar uma pista?” Kahsmin perguntou.“São quatro, agora, ao que interessa.”Eles ficaram algum tempo discutindo se havia algum jeito de ir até Virratdescobrir onde as crianças sumidas poderiam ter ido, afinal, a cidadela era aliperto. Sobre Jussarö, ambos sabiam que não havia nada a ser feito, não emtão pouco tempo.Em geral, Kahsmin mostraria toda a prontidão do mundo para resolver todosos problemas que viessem até ele, mas hoje, nada daquilo era importante. Defato, quanto mais aquela conversa se prolongava, mais Kahsmin pareciaausente dela, e Autumn percebeu isso.“Está pensando na sua filha de novo, é aniversário dela hoje.”“Como você sabe?”“Eu sou cega, não estúpida. Você disse ‘Feliz aniversário, Meggie’ antes deme oferecer veneno, sem mencionar que eu conheço você: essa é a únicaépoca no ano inteiro em que você ignora por completo a cidade para seperder no seu luto idiota. Eu não teria nada contra, se você não virasse uminútil completo nessa época.”Kahsmin bufou pesado: sabia que era verdade, o que sobrou de Tuonelacontava com ele para sobreviver, e ele sempre fez tudo que era necessáriopara a cidade continuar bem, mesmo que precisasse esquecer de si mesmo namaior parte do tempo.

Por isso todos o aceitavam como líder, porque podiam contar com ele.Menos hoje.Autumn se aproximou da parede por onde entrara, deixando que seu corpo eaquela parte do quarto se tornassem sombras de novo: com certeza percebeuque qualquer conversa naquela manhã seria uma perda de tempo.“Kahsmin.” Ela chamou antes de entrar por completo nas sombras.“Que é?” Ele murmurou, olhando para o chão.“Quantos anos ela tinha?”“Ah, seis.”“Você sabe o que eu penso disso?”“Sim. Eu sei. E nem comece, não quero ouvir de traição. Ninguém traiu

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ninguém aqui. Me poupe do seu sermão sobre o que eu deveria ter feito efazer agora.” Ele rebateu irritado.

“Tem medo de que vá concordar comigo dessa vez?”Kahsmin mordeu forte os lábios: não queria responder, e não

precisava também. Os dois sabiam que Autumn estava certa: Ele estavamorrendo de medo de concordar com ela dessa vez.

Por sorte, foi ela mesma quem mudou de assunto.“A menina que chegou ontem.”“O que tem ela?”“Eu não gosto dela.”“Você não gosta de ninguém, mas por quê?”Autumn respondeu em tons de veneno: “Fique perto dela, você vai perceber.”Com isso, ela sumiu junto com as sombras na parede, mas nem um segundodepois, a cabeça dela reapareceu no quarto e disse: “Aliás, eu diria que elaestá envolvida com o rombo na parede, esta é minha última pista.” E sumiude novo, deixando Kahsmin sozinho com seu chá e o gosto amargo na suaboca.

Wendy ainda estava tentando parar de rir quando Kristell começou a falar:“Wendy, conta pra eles da vez que a irmã Romena e a irmã Natalie levaramum psicólogo no orfanato!”Mais cedo, Kristell tinha praticamente jogado Wendy fora da cama, gritando“Se troca logo! Já passou do meio-dia!” Não que fosse um problema paraWendy se arrumar rápido, já que seu cabelo ficava melhor desarrumado e elasó tinha que escolher entre três roupas e o vestido que ela fez.

O problema era que aquela cama era um pedacinho perdido doparaíso.“O cabeçudo que a irmã Romena queria que me levasse embora?” Wendyperguntou, começando sua sobremesa.“Esse mesmo!”Ainda pensando em como aquele dia começou: Kristell arrastou Wendyescadaria abaixo, levou-a até o altar onde ela e Kahsmin jantaram na noitepassada, abriu um alçapão escondido que Wendy poderia jurar que não estavalá ontem.

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Dentro dele havia, adivinhem? Isso! Uma mistura super agradável eacolhedora de escuro e escadas!

O que esse pessoal tinha contra tobogãs e luzes? Sorte que havialevado a lanterna.“Por que essa Romena queria que levassem você?” Perguntou um dos amigosda Kristell, um que estava com uma menina que parecia ter deixado matocrescer na cabeça ao invés de cabelo.“Olha, vamos dizer que eu e a irmã Romena partilhávamos um sentimentoprofundo, honesto, terno e mútuo de desprezo.” Wendy explicou.Quando Wendy e Kristell chegaram no final das escadas, ficaram frente-a-frente com uma parede de pedra e terra. Wendy prometeu que ia espancarKristell, com as garras, se ela dissesse algo do tipo “ih, errei o caminho” e afizesse subir as escadas de novo.

Mas isso não aconteceu: Kristell bateu bem de leve na parede. Semtardar, Wendy reconheceu aquelas batidas, código Morse, soletrando apalavra “ABRA”.

A parede se desfez como se fosse feita de areia, bem na frente dosseus olhos.Wendy quase sentiu seu queixo tocar o chão: Estava dentro de uma cavernamuito alta, talvez coubesse a torre Eiffel ali dentro (ok, nem tanto) e omelhor: havia uma cidade inteira escondida lá, igual a irmã Sarah tinha dito.

Era tão grande e bonita que nem Tolkien teria paciência de descrevê-la inteira.Casas se misturavam com as paredes da caverna; vozes e pessoas, praças elojas estavam em toda parte, com crianças correndo por ali e aqui.

Kristell disse alguma coisa do tipo “é linda, não é?” E Wendyconcordou logo antes de ter o braço sequestrado pela amiga, que a arrastoupelas ruas dizendo que ela ia ter o melhor almoço da história dos melhoresalmoços da história.Assim, elas chegaram na versão subsolo do lugar que Wendy mais queriavisitar quando chegou na cidade: a Taverna do Fim dos Tempos.O lugar era muito mais espaçoso e limpo que o nome dava a entender:haviam relógios antigos espalhados em todas as paredes, a maioria deles semponteiros e com as palavras “Fim dos Tempos” escritas, até as mesas eramredondas e pareciam com relógios, e tudo feito à mão, mas isso nãoimportava tanto quanto o cheiro delicioso de comida feita na hora.Kristell a levou até uma mesa com três pessoas sentadas, dois rapazes e a

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garota com uma trepadeira verde na cabeça, apresentou todo mundo ecomeçou a narrar história pós história sobre as coisas que elas faziam.“Então, a mulher queria que um psicólogo dissesse que você era doida parapoder te levar embora do orfanato? É isso?” Perguntou Allan, o rapaz decabelo preto bagunçado e olhos escuros que estava com a garota ervavenenosa colada no braço.“Isso aí, mas ele acabou me achando normal perto da minha amiga.”Allan franziu as sobrancelhas grossas enquanto Wendy e Kristell riam.“Wendy, conta o que a Christina fez com aquele cara.” Kristell sussurrou.Wendy começou a rir mais alto só de lembrar daquela história:Christina passou o dia inteiro quieta e afastada das outras meninas quando ocara estranho de jaleco cor-de-neve veio falar com as meninas. Ela, Mary,Wendy e Kristell não tinham mais que doze anos nesse dia.As irmãs estavam chamando por ordem alfabética, então a Christina foi aprimeira das amigas a entrar na sala, enquanto as outras resolveram esperardo lado de fora do orfanato, para espiar pela janela e olhar de perto o que iaacontecer.Antes do homem se apresentar, a Christina disse: “As vozes na minha cabeça,elas estão mais altas do que nunca.”“Vozes?”“Elas estão dizendo... pra eu... pra...”“Para você o quê?!”“Pra eu cuspir na sua cara em nome do deus Lhama!” Christina disseexaltada.“Como é?”Christina cuspiu na cara do homem com jaleco e saiu gritando “DEUSLHAMA” pelos corredores do orfanato.

Todos na mesa, e alguns da mesa ao lado, riram como se fosse o fim dostempos.“Gostei dela.” Allan disse, fazendo a menina catarro, Victoria, ficaremburrada na mesma hora.“Ela dissimulou uma personalidade desequilibrada em demasia, tem meuapreço.” Murmurou Edgar, que também tinha cabelo e olhos escuros, apesarde essa ser a única semelhança entre ele e Allan.“E ela cortava o cabelo dela com um canivete, sério?” Allan perguntou.

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“SEMPRE!” Wendy disse exasperada. “E ela não desgrudava do canivete pornada! Era tipo eu e a Wanda!”“Me pergunto que classe de patologia assolava essa alma rota.” Edgarcomentou.“Você sente falta dela?” Perguntou Allan.“Ela era minha melhor amiga, eu ia rever ela ontem, mas não deu.” Wendydisse.“Ela não tá mais no Orfanato?” Kristell perguntou surpresa.“Faz mais ou menos um ano que não.”“Talvez o Deus Lhama precisasse dela.” Allan comentou, arrancando maisum sorriso de quase todos na mesa.

Todos, menos Wendy.Enquanto comiam, ela não pôde deixar de reparar em Victoria, que não tiravaos olhos de Allan, com rápidas olhadas de esguelha para Wendy. Victoriaparecia meio que completamente antipática, anti-feliz e anti-sã. Não entendiacomo alguém como o Allan poderia estar com ela.

Mas tinha que admitir, ela se vestia com estilo: roupas rasgadas,escuras e com estampas bonitas e palavras aleatórias sem sentido, comoBeeshop, que deveria ser um lugar que vendia mel.“Allan.” Edgar chamou quando terminou de comer. “Sobre nosso roteiro,finito questo, quando começamos?”“Agora mesmo!” Respondeu Allan. “Vocês duas vêm?”“Não vai dar.” Kristell disse para satisfação de Victoria, “eu prometi aoKahsmin que iria apresentar a Tuonela para Wendy.” Acrescentou dando umtapa no ombro da amiga.Os três conversaram mais um pouco, disseram para Wendy o quanto ela iaadorar a cidade, explicaram que “finito questo” queria dizer “está pronto” e,quando eles saíram, Wendy enterrou a cara num pudim de doce de leite egranulado, perguntando de boca cheia: “Pra que eles vão ensaiar?”“Ah! Esqueci de contar, o Edgar escreve peças e poesias, ele é simplesmenteo melhor que há! Quando ele termina um roteiro, o Allan e alguns outros sejuntam pra ensaiar e apresentar as peças no meio da cidade! É muito legal, àsvezes tem dança, fogo, gente voando, e o Edgar, que escreve bem pacas, e élindo.”Wendy quase engasgou com o pudim quando ouviu a última frase.Não é que não achasse que Edgar fosse bonito, é que ele realmente não era: orosto dele era meio chupado, parecida que ele tinha lambido um limão e

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congelado numa careta estranha pra sempre. Allan era bem melhor, masWendy não comentou isso, pois aquela era uma daquelas horas que, anos deromances ruins e shows baratos na TV a ensinaram, era melhor ficar quieta.“Você também se apresenta com eles?” Wendy perguntou.“Aham, e, modéstia aparte, eu sou ótima.”Como Christina fazia falta nessas horas para dar uma resposta à altura.Wendy e Kristell saíram da Taverna do Fim dos Tempos, já deviam ser trêsda tarde e ainda parecia que vários pedacinhos do sol estavam pendurados láem cima, iluminando tudo. Ela tinha que descobrir como eles faziam isso.

De vez em quando, via pessoas bem diferentes das normais, algunsnem pareciam pessoas: eram ou muito grandes ou tinham um rosto comtraços diferentes, mais afiados, se é que isso faz sentido.

Alguns a cumprimentavam e sorriam, outros pareciam não a ver, nãoera nada diferente do Orfanato das Neves, na verdade, era bem normalquando você ignorava as garras e as bem ocasionais pessoas misturadas comanimais.

Apesar de tudo isso, o que era realmente interessante para Wendy eraaquela cidade ser, de fato, subterrânea: ela borbulhava de alegria só deimaginar as centenas de passagens secretas que deveriam levar para oslugares mais estranhos e divertidos que ela já vira.

Seus olhos curiosos não demoraram a perceber que havia váriostúneis nas paredes da caverna, a maioria, sobre as casas.

Antes que chamasse a Kris para perguntar o que eram, viu duascrianças com capacetes e óculos de natação, aos tapas uma com a outra, emcima do telhado da taverna, até perceberem que Wendy estava olhando.

Capitão e Terror acenaram para ela e correram para dentro do túnelmais próximo.

“Kris, o que são esses túneis?”“Ah, isso aí? São rotas de fuga, pra caso alguma coisa tensa aconteça,

tipo os D’arlit encontrarem esse lugar. Cada um deles leva pra um cantodiferente, bem longe da cidade. Dá pra parar em quase qualquer lugar quevocê imaginar. Eu não gosto muito deles. Quer fazer alguma coisa agora?”Antes que Wendy respondesse, Kristell continuou, “JÁ SEI! Quer roupasnovas?! Você vai ficar LINDA com um chapéu que uma amiga minha fez.Ele é todo preto com uma faixa branca, vai combinar demais com você, vemcá pra eu –”

Kristell foi interrompida por alguém que apareceu correndo no meio

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do nada e começou a falar rápido e bufando: “Kristell Sinnett... Kahsminquer... falar com você... importante.”

“Por quê?”“Ele disse... que era importante.”“Mas eu tô mostrando a cidade pra ela, o que ele quer?!”O garoto estranho se esforçou pra recuperar o fôlego, então sussurrou

alguma coisa que Wendy não conseguiu ouvir.“Sério?!” Kristell começou indignada. “Ah, Wendy, me desculpa, eles

querem falar comigo à sós, e parece meio sério. Quer dar uma olhada nacidade enquanto eu estou lá? Se você for por ali...”

E Kristell deu uma descrição detalhada de como chegar em várioslugares legais da cidade, incluindo o arsenal de armas da cidade, o alfaiate (oque quer que fosse isso), a casa do Edgar e o famoso dormitório das garotas ea praça. Depois ela foi embora, atrás do cara estranho e roliço.

Claro, Wendy não foi para nenhum desses lugares normais e seguros,apesar do arsenal parecer bem legal. Ao invés disso, ela rodeou a taverna,procurando um jeito de escalar o lugar. Por sorte, havia uma escada no lugaronde a taverna se misturava com a parede da caverna.Depois de checar se não havia ninguém por perto, Wendy subiu rápido até otelhado e cuidou para entrar no túnel na parede chamando o mínimo deatenção possível.Seguiu em frente por tanto tempo sem ver nada que começou a se perguntarse ela tinha de fato visto Capitão e Terror ou se tinha sonhado acordada, oque não era muito improvável.“Wanda, o que você acha que eles querem com a Kristell?”Wanda não tinha ideia.“Será que tem a ver com o que eu fiz ontem à noite?”Ela continuava sem ideia.“Eu gostei dos amigos da Kris, e você?”Wendy já deveria esperar essa resposta.“É, eu também não gostei muito da garota escarola, mas você viu as botasdela? Eu sempre quis ter botas.”Wanda foi sensível o bastante para não fazer comentários sobre como écrescer num orfanato, onde ninguém dá roupas bonitas para você.“É, que bom que a Kristell sabe onde arrumar roupas, você acha que eu iaficar bem de chapéu, igual ela falou?”O túnel ficou tão escuro que ela teve que ligar a lanterna, mas já tinha

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desistido de achar qualquer coisa ali dentro além de raízes, pedras, terra,insetos estranhos...E vozes.“Finalmente.” Ela murmurou, desligando a lanterna.“Eu tô falando! Cavalos de Vento existem!” Disse Capitão, ou Terror, umdos dois.“Tá, tá, que seja, outra hora a gente fala disso. Foram vistos?” Fawkesperguntou.Wendy riu daquilo alto o bastante para que sua voz ecoasse pelo túnel,acendeu de novo a lanterna e andou mais alguns passos, dizendo: “Foram.”O túnel era bem mais espaçoso onde Fawkes estava, o que era ótimo, poisWendy já estava se sentindo presa numa caixa de fósforos lá dentro.“Mais um encontro do clube secreto de Fawkes?” Wendy perguntou.“Aham, estava esperando você.” Ele disse, abrindo um meio sorriso.“Sei.” Ela respondeu, erguendo uma sobrancelha e cruzando os braços.“Eu disse que ia achar você.”“EU que achei você! De novo.”“Por que eu pedi pra esses dois fazerem você seguir eles.”Não havia como argumentar com aquilo.“Ele gosta de você.” Capitão começou.“Ele adora você.” Terror emendou.“Ele quer você.”“Pra sempre.”Fawkes bateu a cabeças dos dois uma contra a outra com tanta força queWendy sentiu a dor nela. Depois ele riu meio sem graça e disse: “Ignoraeles.” Fawkes disfarçava as situações muito mal.Agora que conseguia ver de perto, Wendy notou que Capitão e Terror erammeio diferentes de pessoas normais, e não estava falando isso por eles usaremcapacetes e óculos de natação: algo no rosto dos dois parecia animal, comoFester, mas menos feio.

Pareciam duas toupeiras. C.S. Lewis adoraria isso.“O que são Cavalos de Vento?” Wendy perguntou, e o rosto dos dois seiluminou como as mãos de Fawkes.“São fortes!”“E destemidos!”“Dizem que as estrelas se apagam!” Começou Capitão, “e que a lua queima!”Seguiu Terror. “Quando eles aparecem! Espalhando o terror e o loucura nas

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vidas dos injustos e opressores!” Disseram os dois juntos, deviam terensaiado aquilo inúmeras vezes.

“São uma lenda.” Cortou Fawkes.Wendy fechou a cara e considerou dar um soco no braço dele, nada

muito forte, só o bastante para ele perceber que tinha sido um idiota porcortar as crianças, ela nunca deixaria alguém interromper uma história sua noorfanato.“Onde estamos?” Wendy perguntou.“Se eu estiver certo, perto do arsenal abandonado do Kullervo. Ou entãoperto de um ninho de aranhas gigantes.” Fawkes disse.“Coala quem?”“Kullervo. O maior ferreiro que já existiu em Tuonela. Dizem que as armasdele eram tão poderosas que podiam perfurar anjos.” Ele disse com um brilhono olhar Falando em olhos, Wendy ainda queria que os dele fossemvermelhos.“Eu daria minha vida,” continuou Fawkes, “pra usar uma arma, qualquer umaque o Kullervo fez contra os D’arlit.”Com essas palavras, ele havia ganho a atenção dela.“Você também quer acabar com eles?”“Todos com um pingo de inteligência querem. Se não fosse por eles, eupoderia estar com meus pais agora: ia poder mostrar o que aprendi pra minhamãe, com o fogo, ela ficaria orgulhosa de mim, diria coisas legais e meabraçaria de novo.” Seu rosto escureceu com aquelas palavras. “Desculpa, eunão tô afim de falar disso.”“Tudo bem.” Wendy disse, e sem perceber, estava quase abraçando ele. “Eutambém queria estar com meus pais, saber como eles eram. Você pelo menosconheceu os seus.” Ela disse, apesar de ter uma ideia muito boa de como suamãe era agora. Obrigada, Ally.Fawkes fez que sim com a cabeça e, num piscar de olhos, seu olhar franzidosumira.

“Agora vamos, o arsenal do Kullervo tá por aqui. Capitão! Terror!”Ele gritou.Wendy viu ao redor da caverna, montes de terra se mexendo como se algo semexesse sob ela, igual nos desenhos animados que passavam sábado demanhã na TV.Capitão e Terror brotaram um de cada lado de Fawkes.“Eles são mesmo garotos toupeiras?” Wendy perguntou.

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“Caçadores de Tesouros!” Os dois corrigiram juntos.Justo, fazia sentido.“Já encontraram algo?”Eles se entreolharam e fizeram que não, com rostinhos tristes e sujos decriança.“Ainda.” Fawkes corrigiu. “Hora de mudar isso.”“Então, o arsenal fica onde?” Wendy começou.Fawkes deu um sorrido convencido, apontou para cima e disse: “Pega a mãodo Terror.”

Wendy olhou assustada de Terror para Fawkes, e depois para Terrorde novo, antes de dar a mão para ele. Fawkes fez o mesmo o mesmo comCapitão.

Sem nenhum aviso, eles mergulharam terra abaixo.Foi a pior viagem da vida dela, contando a vez que Caleb a arremessou dopenhasco.

A terra não chegava a tocá-la de verdade enquanto Terror a arrastavapor um caminho que só ele podia ver, já que ela não tinha coragem de abriros olhos, não queria um caminhão de areia neles. E será que ia matar se elefosse mais devagar?Antes que ela acabasse entrando em histeria, acabou.Ela sentiu a luz do sol querendo atravessar suas pálpebras, o cheiro de flores,os bichinhos andando sob as mãos dela, o vento que já não carregava o cheirodo mar, e o enjoou da viagem.Ela respirou fundo, abriu os olhos...E fechou de novo, rezando para que o que tinha visto não fosse real.

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Capítulo 9

“Você tá doido da cabeça se acha que o Edgar vai ajudar só porque vocêpediu.” Kristell rebateu irritada. “Eu não tô crendo que você me fez deixar aWendy sozinha pra isso.”Kahsmin já estava com dor de cabeça por causa daquela conversa.

Kristell estava certa: se fosse ele quem pedisse ajuda para Edgar, orapaz nunca concordaria, por isso...“Por isso quero que seja você a falar com ele. Você é a única em todaTuonela em quem eu confiaria para convencê-lo.”“Não te ocorreu em momento algum que talvez, sabe, exista uma pequena,ínfima, diminuta, possibilidade de EU NÃO QUERER SER PARTE DISSO?Se você quisesse fazer algo inteligente, tipo, sei lá, matar a droga dos D’arlitenquanto eles estão aqui, acho que a cidade toda ia fazer fila pra ajudar, masvocê quer FAZER UMA HOMENAGEM PRA ELES!”“Kris.” Kahsmin começou, esfregando as têmporas com a ponta dos dedos.“Eu, mais que qualquer um nesse mundo e no próximo, quero emboscar osD’arlit no instante em que eles pisarem na minha cidade.”“ENTÃO FAZ ISSO! Nós estamos mais que prontos pra eles!” Kristell disseexaltada, sem perceber que seus cabelos se eriçavam, olhos avermelhavam emãos se tornavam garras.Estranhamente, Kahsmin a achava mais bonita assim.Maldito complexo de Édipo.Kristell realmente lembrava sua mãe quando estava irritada.“Kris, por favor, sente-se.”“NÃO, VOCÊ VAI ME OUVIR AGORA, SEU COVARDE INUTIL.” Elaberrou com uma voz que não era a dela, apontando a garra pontiaguda nomeio da testa de Kahsmin, fazendo-o desejar que Autumn ainda estivesseaqui. “NÃO VAMOS MAIS NOS ESCONDER COMO INSETOSENQUANTO AQUELES DESGRAÇADOS DESTRÓEM TUDO!” Kristellera um demônio completo, na frente de Kahsmin. “Nós vamos atacarAGORA!”Kahsmin percebeu que ela não viu de onde veio o tapa que acertou seu rosto,e nem percebeu que Caleb tinha entrado na sala.“Nunca mais erga a voz para Kahsmin.” Caleb disse, e a ameaça soava muito

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mais pesada com a entonação especial que ele dava à palavra “nunca”.Kristell parecia perdida, olhando para todos os lados do quarto, enquantovoltava ao normal aos poucos.“Me desculpa, Kahsmin, eu–”“Tudo bem, eu sei, ainda não tem todo controle. Está tudo bem, e obrigado,Caleb.” Kahsmin disse, escondendo o quanto ele realmente estava aliviadoenquanto terminava a última xícara de chá.“Eu quase ataquei você.” Ela disse com a voz trêmula, caindo de joelhos nochão.Kahsmin sabia o que ia acontecer agora, por isso se apressou e abraçou-aantes que ela começasse a chorar.“Tudo bem Kris, isso é uma coisa boa.”Kristell não disse nada, mas Caleb olhou estranho para ele.

“Me escute, isso quer dizer você tem um bom coração.” Ele dizia comanimação que não sentia na voz. “Você apenas tem ideias diferentes sobre oque é certo, e isso é normal. Você ficou com raiva porque sentiu que euestava impedindo o que é certo. Não tem porque chorar, você é uma boapessoa, eu sei que é.”

Dizer que ela não tinha porque chorar pareceu ser razão o bastantepara ela o fazer e, apesar de Kahsmin sentir que merecia um prêmio demelhor atuação por não deixar transparecer o quanto estava assustado com ofato de Kristell quase tê-lo atacado, não conseguia deixar de se perguntarporque tinha que aguentar esse tipo de coisa logo hoje.“Kris, eu vi pessoalmente o quanto todo mundo nessa cidade treinou, oquanto você evoluiu desde que chegou: você é uma lutadora impressionante,todos os seus amigos são, mas o exército dos D’arlit está maior do quenunca.” Ele pausou, esperando Kristell dar algum sinal de que tinha ouvido,só continuando quando ela silenciou o choro e se desvencilhou do abraço.“Eles são capazes de coisas inimagináveis, com poderes absurdos. AHarbinger da Morte sozinha seria capaz de lutar com nossa cidade inteira evencer. Nós não temos chances contra eles agora.”“Mas, nós temos ele.” Kristell disse apontando para Caleb, com a voz aindaquebradiça, mas muito mais perto do que Kahsmin estava acostumado aouvir.“Eu não sou suficiente para vencê-la.” Caleb disse no mesmo tom que usariapara dar uma notícia de falecimento.Kristell não sabia, mas Kahsmin estava ciente de que Caleb mentira: em

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circunstâncias normais, ele seria sim capaz de vencer a Harbinger da Morte.Mas nada é normal quando se trata dela.“Por isso, Kris, nós precisamos continuar fingindo que Tuonela pertence aosD’arlit, até termos aliados o bastante, entende?” Kahsmin perguntou.“Eu... eu entendo.”“Certo. Ontem foi aniversário de Allenwick, e o representante dos D’arlit,Neri, deve chegar aqui em cinco dias. Eu preciso que você convença o Edgare o amigo dele a fazerem uma homenagem aos D’arlit para eles. Podem usaro que quiserem: gente voadora, lutas falsas, armas de verdade, o que elesquiserem mesmo. Tudo bem?”“Mas Kahsmin, não acho que... tudo bem, eu entendi. Vou falar com eleagora.” Kristell disse por fim.“Ótimo.” O alívio nunca esteve tão óbvio na voz dele, “me avise quandoconseguir, certo?”Ela fez que sim e deixou o quarto com uma expressão devastada no rosto.“Kristell, espere.” Ele disse.Ela parou na porta.“Obrigado pela ajuda.”Ela tentou sorrir, mas as linhas de sua boca pareciam ter esquecido ocaminho, apenas vacilaram no seu rosto antes que ela fechasse a porta numbaque forte.“Um covarde inútil.” Kahsmin repetiu as palavras quando tinha certeza deque ela estava longe demais para ouvir, “Eu esperava isso de Autumn, masnão da Kristell.”“Achei que você fosse jogar seu chá nela e esperar fazer efeito quando elagritou.”“Agradeceria se parassem com as piadas sobre meu chá por hoje.” Kahsmindisse, se sentindo muito mais velho que seus quase cinquenta anos realmenterepresentavam. “Ela não foi a primeira pessoa a me chamar assim hoje.”“E não vai ser a última.”“Está me chamando de ‘covarde inútil’ também?”“Eu não acho que fui chamado aqui para isso.”“Está me chamando de covarde inútil, Caleb?” Kahsmin repetiu irritado.Caleb colocou uma mão sobre o ombro de Kahsmin antes de responder.“Eu vi o que você fez para tirar a cidade do poder dos D’arlit. A emboscadaque planejou e liderou, mesmo você sendo um humano contra um exército dedemônios, eu nunca esperaria isso de um covarde inútil.”

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“Você não pode comparar o homem que eu era naquela época com o homemque sou hoje, Caleb.” Kahsmin disse, sentindo-se esmagado por forças quenão podia controlar. “Me desculpe, eu não estou me sentindo eu mesmo hoje,e não, não te chamei aqui para isso.”“Eu imaginei.”“A verdade é que crianças desapareceram em Virrat, haverá um ataque emJussarö, nós descobrimos tarde demais para impedi-lo e... Autumn acha quetem algo errado com a garota nova, Wendy.”

“Eu devia ter ficado no orfanato. Eu devia ter ficado com a irmã Sarah. Eudevia ter ficado na minha jaula, nada pode me atingir na minha jaula.”Wendy balbuciava, tremendo com as lanças apontas nas suas costas,forçando-a a caminhar.“Você ficava numa jaula?” Fawkes perguntou, e recebeu um baque com ascostas da lança por isso.“Irmã Sarah dizia que medo é uma jaula, nada pode te atingir dentro dela,mas também não há nada que você possa atingir de dentro dela.” Wendyrespondeu, tentando recitar as palavras da irmã Sarah, e também tentando nãoter um ataque de nervos, “Fawkes, isso é sua culpa.”“Eu tenho tudo sobre controle.” Ele disse, erguendo a cabeça com ar desuperioridade, só para levar outra pancada com a lança e voltar a baixar acabeça.

“Então porque ainda não queimou as cordas?” Wendy sussurrou comsua voz rouca de criatura cavernosa.Fawkes olhou para trás, onde seus punhos estavam amarrados.“Não sei como vou dizer isso, mas eles não nos prenderam com cordas.”Os olhos da Wendy se arregalaram como se um despertador a estivesseacordando às cinco e quinze numa manhã de domingo. Não sabia se queriamesmo saber com o que esses caras a haviam amarrado.Quando Capitão e Terror trouxeram Wendy e Fawkes para a superfície, elesforam parar bem no meio de um aglomerado de índios, ou pelo menospareciam índios, com pinturas estranhas na cara e ossos no lugar de brincos.

E é claro: lanças, dezenas delas, apontadas entre os olhos de Wendy.Capitão e Terror fugiram terra à baixo, deixando Wendy e Fawkes ali.

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Nessas horas que a gente vê quem é amigo de verdade.Wendy respirou fundo e tomou coragem para olhar seus pulsos, tambémamarrados nas suas costas e, realmente, não era uma corda que a prendia.

Era uma cobra, vermelha e preta, deslizando em um nó firme em seuspulsos.“Por que comigo?!” Wendy começou a espernear. Cobras eram uma das trêscoisas que mais tinha medo no mundo, junto com falar em público emímicos.“Fica quieta.” Fawkes pediu.“Se a gente sobreviver, eu vou matar você.” Wendy disse mais histérica doque gostaria de admitir.

“Não era você que estava ansiosa para uma aventura?”Wendy rangeu os dentes de raiva e frustração: ele estava certo, ela

queria aventura.Mas talvez ainda estivesse esperando uma aventura segura, com neve,

garotas sendo assustadas aqui e ali, encontrar um lobo treinado no meio dafloresta, visitar a biblioteca da cidade sem ninguém saber, e as outrasaventuras tranquilas do Orfanato das Neves.

“Medo é uma jaula, meu anjo.” Wendy relembrou mais uma vez daspalavras da irmã Sarah, e naquele momento, percebeu que uma jaula entre elae este mundo era exatamente o que precisava agora.

“Não fique histérica, não tem motivo pra ficar histérica.” Sussurroupara si mesma.

Seu cérebro respondeu: Sempre há motivos para histeria.E o fez com a voz de Ally.Wendy desmoronou, os fiapos que ainda sobraram de sua voz se

arrebentaram em gritos contra seus sentidos: a cada fio que se arrebentava,menos contato com aquele mundo ela tinha, e a sensação era boa.

Até as costas da lança acertarem sua nuca: por momentos, Wendyperdeu os sentidos.

Quando voltou a si, foi posta a andar novamente, na entrada do quesua mente entorpecida acreditava ser a tribo. Ela, Fawkes e seus captorespassaram por portões de madeira com várias figuras estranhas entalhadas:insetos de fogo, rostos bisonhos, mais fogo e toda uma sorte de fauna queWendy nunca vira, sequer em seus mais selvagens sonhos.Logo ela percebeu porque tanto apreço pelos animais: eles estavam em todaparte dentro da tribo, talvez houvessem mais deles que pessoas.

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Gatos do crime (conhecido por pessoas normais como guaxinins)perambulavam com comida nas mãos; alguns animais, que pareciam misturasentre tigres e leões, os observavam como Wendy observava sua janta;macacos tinham se desenvolvido como esquilos voadores, e planavam sobresuas cabeças, enquanto havia alguns outros bichos tão diferente de tudo queWendy já havia visto que não tinha palavras para descrevê-los.Quanto mais se adentravam na tribo, mais quente ficava, e com o calor, ocheiro de comida assada se intensificava.“Alguém em Tuonela vai sentir a nossa falta, não é?” Wendy perguntou.“Mesmo se sentirem, e mesmo esse terreno fazendo parte de Tuonela, achoque eles não iam saber que a gente tá aqui.” Fawkes respondeu. “À menosque Capitão e Terror tenham ido buscar alguém.”“Por que há índios nos terrenos de Tuonela?” Ela sussurrou, percebendo queestava estranhamente mais calma que estivera antes da pancada na cabeça.“Não haviam, isso é novo.”Ela suspirou baixinho, ainda senhora de si, mas torcendo para Kristell já terpercebido seu desaparecimento: com sorte, já teria organizado um grupo debusca, como irmã Romena fez nas primeiras vezes duas vezes que Wendyfugira do orfanato.Com sorte.Eles foram guiados até a fonte de calor mais complexa e misteriosa que umser já foi capaz de criar: uma fogueira.Uma fogueira grande o bastante para assar uma girafa em pé.

Havia três crianças dançando e gritando em volta do fogo, compinturas brancas e pretas no corpo todo, assim como os adultos, que asrodeavam e emanavam cantos tribais em suas vozes, ora guturais e ásperas,ora empoladas e estridentes.Algo naquele fogaréu gigante chamou a atenção de Wendy, um calafriopercorreu suas costas com a violência de um raio atingindo a torre de umaigreja numa madrugada de outono quando seus olhos entenderam o que ardiaali.

Dentro da fogueira havia três toras ardendo.Queimando em cada uma delas, havia uma pessoa amarrada.

“A gente vai morrer.” Wendy murmurou com uma voz quebradiça, sentindoseu estômago embrulhar quando percebeu que o cheiro de comida assadaera... carne de gente.“Não, não vamos.” Fawkes disse. “Olha aqui.”

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Wendy olhou para onde ele apontava.Fawkes havia conseguido segurar e queimar a cabeça da cobra que o

prendia.Foi um daqueles momentos em que você não consegue impedir o sorrisovitorioso de invadir seus lábios.De repente, todos os índios e animais cessaram o canto, permitindo apenas oroncar grave dos tambores derramar-se em expectativa nos peitos destituídosde certeza daqueles que assistiam.Então, Wendy o viu.Junto à uma súbita explosão de gritos de toda a tribo, uma silhueta de umquarto homem surgiu em meio aos que ardiam na fogueira gigante Este, noentanto, não estava preso à uma tora, mas andando, livre como as chamas aoseu redor.

Ele era apenas uma sombra atrás de uma cortina ululante de flamas.Seus passos e movimentos eram como uma daquelas coreografia que a irmãNatalie ensinava perto do Natal: leve, solto, simples, e impossíveis de seremreplicados.

Parecia até que o fogo não o queimava, apenas deslizava pela peledele, sem fazer mal algum.O estardalhaço que as pessoas fizeram foi maior que o de um bando debabuínos quando o homem que dançava nas chamas pulou para fora dafogueira, caindo como uma bola de fogo e fumaça bem na frente de Fawkes.Sua pele era vermelha como uma lagosta assada, cicatrizes e pulseiras compenas cobriam os braços, pulsos e tornozelos dele, e...E... é...Ele tinha um limão na cabeça.Uma máscara de limão amarelo que cobria a totalidade do seu crânio, comdois buracos no lugar dos olhos. Por que ninguém estava rindo daquilo?“Vou te chamar de Azedinho.” Wendy pensou em voz alta.Os índios estavam prestes a derrubar a vila com o espalhafato deles, quando oAzedinho ergueu as mãos e, sem usar palavra, trouxe o silêncio.Gestos e movimentos se complicavam em seus braços e pernas, mas nãodemorou para Wendy entender o porquê deles: no meio da fogueira,acompanhando o deslizar de seus braços e vibração do ar que respirava, umaserpente de fogo se ergueu, rastejou e deslizou-se no ar até parar ao lado dele,crescendo enquanto o fogaréu a alimentava, até ficar grande o bastante parafazer o corpo de Wendy gelar em frente ao fogo.

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Ela guinchou baixinho, por um momento, achou que ia desmaiarquando sentiu até seus lábios gelarem ao ver o vermelho rubro que formavaos olhos daquela serpente de fogo colossal.

“Por que cobras? Por que não lhamas?” Pensou consigo mesma.“Zawich!” Azedinho disse, ou foi o que Wendy entendeu ele dizer.“Eles não falam nossa língua.” Fawkes murmurou para Wendy.“Você jura?” Ela respondeu sem tirar os olhos do Azedinho.As pessoas ali deram um berro ao ouvir aquela palavra.O cara de lima berrou mais palavras que Wendy sequer tentou decifrar, aindacom a voz abafada pela fruta gigante tampando a dele cabeça.Mais gritos da tribo.Azedinho e seu limão gigante ficaram frente à frente com Wendy, o que seriahilário, se não fosse pelo fato de que não era. Com um dedo apontado para osdois, ele berrou de novo e, dessa vez, a palavra foi perfeitamente clara.“D’ARLIT!”Várias vaias vieram da aldeia inteira, junto com o cântico que soava comoisso: “TEHAIN, TEHAIN, TEHAIN, TEHAIN!” Wendy podia não ter ideiado que estavam dizendo, mas detestava o jeito que estavam dizendo.“Mas, não! NÃO SOMOS D’ARLIT!” Ela tentou fazer sua voz se sobressairàs vaias, o que ela descobriu ser uma ideia bem idiota quando você estárouca, com a garganta seca, e não sabe a língua deles.“Wendy.” Fawkes chamou. “Fica esperta.”Ela olhou confusa para ele, seus olhos traduzindo a pergunta “Quê?”, mas elenão estava mais olhando para ela.Dois dos índios trouxeram troncos de árvore e cordas, e Wendy duvidava queiam usar aquilo pra fazer artesanato.Azedinho se aproximou de Fawkes, sua serpente de fogo pairava ao redor desuas pernas, fazendo o mesmo barulho que a cara do Fester fez quando Caleba queimou.“Zaha tai tai D’arlit liam TEHAIN!” Foi mais ou menos o que ele disse e, denovo, todos ali começaram a gritar: TEHAIN, TEHAIN.”Tudo aconteceu rápido demais para ela acompanhar: Azedinho tentou agarrarFawkes pelo ombro, mas ele se desviou e jogou a cobra morta direto ondedeveriam estar os olhos do cara de lima.“Por que não correu ainda?!” Ele gritou para Wendy, sem tirar os olhos deAzedinho.Porque estava paralisada, é claro: não conseguia acreditar que Fawkes tinha

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acabado de atacar aquele cara. Ela até se achava corajosa e já até tinhaatacado uma pessoa, mas nunca numa situação como essa, cercada deinimigos, com lanças, fogo e cobras. E quando ela atacou Fester, foi por puroimpulso, não achava que teria a coragem que Fawkes estava tendo decontinuar a luta.Azedinho não estava exatamente satisfeito, apesar de sua postura ser a de umhomem que é dono do destino daqueles que o desafiam: mais gestostrançaram seus caminhos entre suas pernas, braços e tronco, e com eles, maisserpentes de fogo surgirem ao seu redor: quatro, cinco... nove, se erguendodiante do garoto ruivo, cujo azul dos olhos se misturava com o vermelho daschamas.Quatro serpentes deram bote ao mesmo tempo, duas delas queimando seuombro e a lateral da barriga. Ele não gritou, mas Wendy viu a dor estampadano rosto dele.“Eu disse pra correr!” Ele insistiu.“OLHA PRA FRENTE!”Fawkes se abaixou rápido como o som, enquanto a quinta serpenteatravessava como uma flecha o lugar onde seu rosto estava à menos de umsegundo.Ele investiu como um touro na direção do Azedinho, acertando socos rápidos,precisos e vorazes contra o corpo avermelhado dele.Um chute no pescoço do Azedinho terminou a série e o jogou para dentro dafogueira.Apenas o crepitar das chamas e alguns grilos ousaram quebrar o silencio,Wendy tinha certeza de que seu queixo tinha caído no chão. Por um instante,todo o medo que estava sentido fora substituído por fascínio e desejo deaprender a lutar desse jeito.As estrelas cobriam o céu como granulado cobre um bolo: tudo que era vivonaquela tribo sussurrava em sustos mais que em palavras, como se nãoacreditassem no que estavam vendo.Wendy sentiu pernas formigarem e sua respiração perder o compasso:Fawkes tinha acabado de chutar o pescoço daquele cara e o atirara contra ofogo. E agora estava ali, completamente vulnerável, bufando na frente dafogueira.

E mesmo assim, ninguém ousou atacá-lo.Impossível que isso fosse um bom sinal.

“FAWKES CUIDADO!”

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Wendy foi a primeira a ver a fogueira transformar-se em centenas daquelasserpentes de fogo, se juntando e formando uma enorme garra de chamasimpiedosas.Fawkes foi erguido pela garra, incapaz de conter o grito dessa vez enquanto ofogo queimava sua pele.

Ele foi arremessado contra uma das cabanas, parecendo um enormecometa incandescente, abrindo e cicatrizando uma ferida de fogo no azulmeia noite do céu estrelado.A cabana onde ele bateu ficou em pedaços e se incendiou em segundos,Wendy quis gritar e correr até ele, mas estava rouca, e seu desespero haviacongelado suas pernas.

Antes que Fawkes se levantasse, as serpentes de fogo o envolveramde novo, destruindo quase toda a sua roupa. Elas giraram rápida eviolentamente ao redor dele, até se transformarem em um tornado inflamado,indo cada vez mais alto.

Wendy viu Fawkes girando naquele funil incendiário antes de serarremessando para as alturas e ficar quase do tamanho de uma estrela.Azedinho estava em pé de novo, cercado por suas crias ardentes e pelaadmiração silenciosa da tribo.Fawkes caiu como um avião atingido, fazendo um baque horrível e rolandona terra seca até parar bem aos pés dele: embora invisível através da máscara,Wendy estava certa de que Azedinho estava rindo.As serpentes de fogo voavam ao redor do Fawkes, queimando-o mais umavez, embora ele se recusasse a demonstrar qualquer dor agora. Ou talvezsimplesmente não conseguisse mais. Wendy não queria saber qual opçãoestava certa.O Azedinho o agarrou pelo pescoço e o levantou no ar, fazendo-o engasgar esufocar. Pelo menos ele ainda estava vivo, embora pelo seu estado, Wendypensou, por um instante, que talvez fosse melhor que estivesse morto: asqueimaduras em seu corpo a chocavam como se fossem um pesadeloimplorando para morrer. Achava que, por ele poder fazer bolas de fogo, elenão se queimaria, igual Azedinho, talvez fosse um tipo de fogo diferente.Ou talvez fosse uma prova do quão pouco ela sabia, e do quanto ela morreriasem saber.“Tehain, D’arlit!” Gritou Azedinho, fazendo mais serpentes girarem em tornode Fawkes, escondendo quase todo o corpo do garoto, exceto pela cabeça,que girava mole sobre o pescoço na direção da multidão.

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“FAWKES!” Wendy sentiu sua voz a deixando, “FAWKES FAZ ALGUMACOISA.”Mas não havia nada a fazer, e à essa altura, duvidava que “Tehain”significasse chocolate.Ele estava ficando roxo e já tinha parado de se debater: Homens traziamcordas e um tronco para amarrá-lo, por mais que uma parte cética de Wendyduvidasse que fosse necessário amarrá-lo.Uma parte dela à qual Wendy não podia se dar ao luxo de dar ouvidos:“FAWKES, REAGE!” Ela implorou, sem se importar com a dor na suagarganta.Azedinho fez um gesto com a mão livre e um dos guardas tapou a boca dela.Ele então abaixou Fawkes, até que ele ficasse na altura de seus olhos.Por de baixo da gritaria da plateia, ela ouviu Azedinho dizer, na língua deles,com um sotaque bem forte: “Últimas palavras?”Para sua surpresa, Fawkes ergueu o pescoço e abriu os olhos frios pararesponder: “Surpresa.”Se Wendy pudesse ver os olhos do Azedinho, com certeza eles estariammaiores que ovos de codorna quando Fawkes conseguiu jogar uma bola defogo no meio do peito dele.Levou um segundo inteiro para entender o que acabara de ver: quandoFawkes parou de se debater e as serpentes começaram a rodear seu corpo, elepode esconder as mãos e ter tempo para fazer seu próprio fogo sem queninguém percebesse.

Foi incrível.“CORRE!” Ele gritou para ela, e dessa vez, ele mesmo saiu correndo,desviando dos índios ainda abobalhados com o que tinha acabado deacontecer.

Wendy não conseguia acreditar que, mesmo no estado em que eleestava, ainda conseguisse sequer ficar de pé.“Dihza Hagen!” Azedinho gritou, e pelo número enorme de pessoas correndona direção de Fawkes, Wendy concluiu que aquilo queria dizer “atrás dele”ou “sorvete grátis”.Ela tentou segui-lo, mas um dos guardas a agarrou pelo braço, e antes quetivesse tempo de entender o que estava acontecendo, haviam três brutamontesa segurando, enquanto outros cinco apontavam aqueles palitos de dente dedinossauro que chamavam de lança contra o rosto dela.

Wendy foi amarrada no tronco que os índios haviam trazido para

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Fawkes.Os que ainda estavam ali começaram a gritar de novo, erguendo lanças,panelas de barro e rastelos. Ela não precisava falar a língua deles para saberque estava sendo xingada por uma multidão revoltada.Wendy viu que Fawkes tinha queimaduras feias no corpo, ela esperava ver amesma queimadura no peito do Azedinho, mas lá não havia nem sinal de quefora queimado.Talvez porque ele já parecesse todo queimado com aquela pele cor depimenta.“Mogi mugi, kazte D’arlit zaha tai tai, zaha dar’an, du hur...”Azedinho fazia um discurso, com pausas estratégicas para a plateia gritar suarevolta junto com ele, enquanto dois caras colocavam palha sob o troncoonde ela estava. Pelo visto, ela não era digna de dividir a mesma fogueiraonde os outros três ainda queimavam.As crianças já não dançavam, apenas olhavam para a fogueira e depois paraWendy, como se não conseguissem entender porque ainda não a jogaram nofogo grande, ao invés de queimá-la separada, ou talvez estivessem seperguntando que gosto ela tinha.Algo que ela mesma sempre quis saber.Aliás, não, ela não queria saber. Não queria saber de nada além de comodestruir essas cordas.Por que não conseguia sentir raiva agora que ela queria? Agora queprecisava, poderia usar aquelas garras para cortar as cordas e a cara dequalquer um que aparecesse na sua frente.Mas não conseguia sentir nada além de pânico e desespero.“Wanda, consegue me ouvir?” Ela sussurrou para a boneca, guardada dentrodas suas roupas. “Eu preciso de ajuda.”“...” Wanda disse.“Eles vão me transformar em churrasco.”“...” Wanda repetiu.“... porque eu ainda tento... tudo bem, ótimo, não diga nada, assim a gentevira jantar juntas. Espero que você fique boa com molho de churrasco.”Wanda seguiu seu silêncio monástico.“É, eu sei, mas eu não sei falar com eles, eu não sei como provar que não souuma D’arlit, eu só sei falar ‘tehain’ e ‘dihza hagen’ na língua deles. Se pelomenos Caleb estivesse aqui.”Wendy não sabia porque ele foi a primeira pessoa em quem pensou, mas

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gostava da ideia de ele aparecer voando no meio do céu e acertando flechasem todo mundo. Ou talvez algo mais discreto, como caminhar encapuzadopela vila, com passos largos e deixando só sua boca visível no rosto, tirandotodo o ar que alimentava o fogo e deixando-a morrer em segundos, apenaspara depois caminhar intocável em sua direção e tirá-la de lá.Seria épico.Mas improvável. Ela não conseguia deixar de se sentir uma completa inútil,como a irmã Romena dizia, por não conseguir fazer nada além de pensar emser salva enquanto esses caras estavam prestes a cozinhá-la viva.“Zugir tehain!”Todos gritaram. O discurso estava acabado, e agora Azedinho a encarava,com as serpentes de fogo rastejando pelo ar, perto o bastante para fazeremarder a pele de Wendy.“Por favor, não.” ela sussurrou.“Tehain, D’arlit.” Azedinho respondeu.O calor já a estava fazendo passar mal, sua cabeça ardia, olhos pareciamquerer derreter e aquele ar chamejava seus pulmões com cinzas.A palha seca se incendiou, vestígios de sua voz rasgaram por sua gargantaquando o fogo começou a queimar seus pés.“Caleb, irmã Sarah...” os nomes começaram a correr pela sua cabeça,enquanto seu suor se misturava com sua saliva e lágrimas no seu rosto,“Kahsmin, Kristell, Christina, Mary, LaVerne, um bombeiro, qualquer um,por favor, pelo menos tire Wanda daqui.”A fumaça escura era espessa como um pesadelo, a impedindo de respirardireito e a deixando tão tonta que já não tinha certeza se estava ou nãoconsciente.“Por favor...”“Clame Jonaki Satya.” uma voz familiar respondeu na sua cabeça.“Como é?”“Só grite as palavras Jonaki Satya!” ele insistiu.“Anuk, eu não posso.” Ela disse, sentindo a garganta tapada pelas cinzas erouquidão.“Sim, pode, grite Jonaki Satya!”“Anuk, o Caleb tá aí?” Wendy não estava mais conseguindo pensar direito,nem ver nenhum dos rostos na sua frente por causa da fumaça, ou talvezapenas não conseguisse mais abrir os olhos “diz pra ele que–”“GRITE JONAKI SATYA AGORA!” A voz veio com tanta força que quase

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rachou seu crânio.“Jonaki... Satya.” Ela murmurou, tão baixo que nem teve certeza se aspalavras tinham sido realmente ditas.“MAIS FORTE!” Anuk era um lobo, mas rugiu essas últimas palavras comoum leão.Wendy abriu a boca mais uma vez, mas antes que qualquer voz saísse dosseus lábios, sentiu o resto da sua consciência a abandonando na escuridão.

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Capítulo 10

“Então, ela sumiu?” Perguntou a garota loira, com dissimulada falta deinteresse.“Isso, isso. Fugiu assim que ficou sozinha.”Isso era tão a cara dela.“E pra onde ela foi? Alguém viu ela saindo?”Sua confidente pensou um pouco antes abrir a boca.“Não sei.” Disse em voz baixa, parecia sentir-se mal por não ter nada mais adizer.A queridinha do orfanato, ela sempre fazia isso. Sempre querendo aparecer.Só a irmã Romena parecia ver o que Wendy realmente era: uma meninadoente e carente que colocaria fogo no próprio quarto se soubesse que iachamar atenção assim.Sempre aprontando com as mais novas, assustando elas, roubando comida dacozinha, irritando as irmãs de todos os jeitos imagináveis, e algunsinimagináveis.Não que ela própria não fizesse essas coisas, e mais algumas.

Mas todas essas idiotas do Orfanato das Neves lambiam o chão poronde Wendy passava.

Era irritante, e nojento.Por que elas não faziam isso com ela? Essa atenção pertencia à ela,

Danielly O’Hara, não à uma menina de dezesseis com mentalidade de cinco.E traidora. Se pudesse usar uma só palavra para defini-la, seria essa, e

talvez retardada.“Tá bom, Ruth. Qualquer coisa, me avisa.” Danielly O’Hara disse,

enquanto a garota ruiva saía para fazer sabe-se Deus o que.Dana sentia um pouco de pena dela: Ruth era tão feia com aquele bolo

de teia de aranha ruivo na cabeça e manchas marrons impregnando sua cara,devia sentir-se mal quando ficava ao lado de alguém tão deslumbrante comoela, Danielly O’Hara, mas tudo bem, com certeza era assim que todas asoutras se sentiam, ou deveriam se sentir.Dana desfilou pelos corredores até o seu quarto: até onde sabia, ela era aúnica órfã com um quarto só pra ela, agora que Wendy não estava mais lá, eera exatamente isso que ela merecia: ser a única.

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Bem, talvez um quarto fosse pouco demais, talvez ela merecesse dois,ou quatro. Ou todos. Seus pais com certeza teriam providenciado isso nopassado.Balançou a cabeça violentamente para se livrar daquela ideia: seus pais sedesfizeram dela como um brinquedo usado: eles pararam de dar presentes, enunca mais voltaram.Ela se sentou na cama: a ideia de que Wendy não estava por perto era tãodeliciosa quanto abrir seu quinto presente na manhã do seu aniversário, nãoque ela precisasse esperar pelo aniversário para ganhá-los.Uma parte dela, porém, queria que a garota estivesse aqui. Para poder levar asurra que merecia por contar sobre seus pais praquela pirralha de cabeloestranho ontem.Traidora.E apanhar mais ainda por ter feito aquela baba-ovo da irmã Sarah bater nelacom uma porta.Um bando de pássaros estúpidos continuava fazendo um barulho dos diaboslá fora. Como se atreviam a estar felizes quando ela estava presa pela neve?Fora impedida de sair para a cidade hoje por culpa dessa porcaria.

Mas por hora, tudo bem. Autocontrole era tudo.Tudo que ela não tinha.

Seus lábios desenharam um sorriso sem humor.Sua mão foi até o bolso no uniforme do Orfanato das Neves (era a primeiravez que tocava o uniforme sem reclamar de como o tecido era vagabundo oucomo o nome do lugar era simplório) e tirou de lá um bilhete que achou emcima da sua cama ontem à tarde.Quando viu o pedaço de papel sobre sua cama depois da Festa de Inverno,pensou: Tudo bem, eu sou incrível, todos deveriam desejar ser como eu,quisessem eles ou não, mas, me mandar bilhetes?

Nunca esperou receber cartas de garotas querendo ser igual a ela. Ouseria um admirador secreto? Podia ser, ela mais que merecia um (não que elefosse receber qualquer atenção ou coisa do tipo), e durante a Festa, o lugarestava cheio de rapazes.Para sua surpresa, no entanto, não era uma carta de uma pirralha remelentaquerendo ser igual a ela quando crescesse, nem um admirador secreto, masum bilhete estranho, com uma mensagem sem sentido que parecia mais umapiada idiota que não valia a pena ser levada à sério.E seria exatamente o que Dana teria feito: pensado que era uma piada idiota e

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jogado o bilhete fora.Não fosse pela última linha.Ela desdobrou o pedaço de papel, não antes de ter certeza de que estavasozinha e que as janelas estavam fechadas. Afinal, aquela era a maior provade que ela era uma pessoa especial, diferente, única.Começou a reler, mas seus olhos não conseguiam passar das primeiras linhas(quem quer que tivesse escrito isso usava demais as palavras “bobalhona” e“tonta” para querer ser levada à sério), seus olhos perfeitos só conseguiamrealmente ler:“... deixará o Orfanato na próxima lua cheia, e vai receber tudo que umaprincesa como você merece: presentes, pessoas pra lamber o chão onde vocêpassa, e se você não for boboca, poder.Poder como você nunca sonhou em ter.Se não acredita que você é diferente das outras, dá uma olhada nas suas mãosquando estiver com raiva. E tente não gritar.”

Dana leu essa última linha com prazer, passando os dedos nas marcas desangue coagulado na palma das suas mãos, ainda saboreando a lembrança domomento em que vislumbrou suas garras pela primeira vez.

“Biscoitos dinamarqueses.”Wendy não tinha ideia se estava acordada, dormindo, morta, em coma numhospital onde um cara de branco a acordaria a qualquer momento para avisarque toda sua vida tinha sido um sonho, ou qualquer outro desses lugaresestranhos que as pessoas falavam sobre na TV, nos programas que a as irmãsRomena e Clara assistiam depois das onze.Tudo que sabia é que ainda tinha uma voz rouca, e fome.“Pizza...” e para deixar tudo mais legal, sua voz parecia ter um eco meiodistante, igual quando ela gritava numa sala vazia ou num banheiro.“Lasanha, espera. EU SOU UM FANTASMA!” Ela disse.“Wendy, abra os olhos.”“Anuk? É você? Você consegue falar com os mortos?”“Wendy.”

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“Meus pais tão aqui? Por favor diz que não.”“Wendy!”“Como eu vou achar a Christina agora?!”Um uivo ridiculamente alto rechaçou seus ouvidos, como se Anuk estivesseuivando na sua cara.E ele estava:

O enorme lobo com olhos lápis-lazúli estava lá, lambendo seu rosto.Ela tentou se levantar, mas suas pernas disseram “hoje não, querida, beijos,liga mais tarde.” Wendy olhou para elas: seus pés e um pouco do seutornozelo esquerdo estavam queimados e quase na carne viva, vermelhos,cheio de bolhas e... ela resolveu que não queria mais olhar.Anuk encostou a cabeça nas mãos de Wendy, que fez carinho atrás da orelhadele e riu de como o lobo batia a pata no chão e abanava o rabo, era umcachorro gigante.“Você está bem?” Não era a voz do Anuk, mas de um garoto.Wendy ergueu um pouco o pescoço para ver quem era.

O que viu foi muito mais legal do que esperava: Aquela tribo inteirade índios comedores gente, inclusive o Azedinho, estavam de joelhos nochão, como se estivessem a venerando, igual os egípcios faziam com osdeuses deles.

Ela sempre achou que os egípcios deviam ser as pessoas mais legaisdo universo, os deuses deles eram gatos! Isso era um onze numa escala dezero à dez em “legalzisse”.

Christina costumava falar isso.“Você está bem?” Perguntou o garoto de novo, com voz de fim deadolescência.“Vou estar depois de comer.” Ela virou a cabeça e viu que o garoto estava dolado do Anuk, atlético e gentil como a irmã Romena só seria em sonhos.“Como eu saí do fogo, e porque eles estão fazendo isso?” Ela perguntouapontando para os índios.O garoto e Anuk se entreolharam: foi o lobo que apontou para cima com acabeça.Wendy sentiu seus olhos lacrimejarem e dedos tremerem quando viu osmilhares de vagalumes voando e brilhando tanto que parecia dia.

Agora que ela tinha dado atenção a eles, todos os vagalumesdesceram na direção dela, rodeando-a, entrando dentro da sua roupa efazendo-a brilhar como um farol numa noite desluada, assim como

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acontecera ontem, quando Caleb a trouxe para Tuonela.“Jonaki Satya, a Verdade dos Vagalumes.” Disse o garoto, que Wendy notouser mais alto que ela, o que não era difícil.“Isso não responde nenhuma das minhas perguntas.” Wendy disse.“Vagalumes são sagrados, trazem luz na escuridão, verdade na mentira.Quando vagalumes atenderam seu pedido na frente de meu povo, você virousagrada.” Ele disse, Wendy tentou se concentrar na parte que dizia que ela erasagrada, mas era difícil com o sotaque de Tarzan do garoto.Sem mencionar o quanto aquilo era estranho: ela não sabia nem se realmentetinha dito as palavras e também, essa não era a primeira vez que essesvagalumes do tamanho de bolas de gude à cercavam e ficaram brilhando aoredor dela.

Mas ela estava viva, era o que importava.“Então, vocês já sabem que eu não sou uma D’arlit?” Ela perguntou sesentando.“Sim, pedimos desculpas. Daze zaha ja liake!” Ele gritou para todos osajoelhados.“JA LIAKE.” Eles gritaram de volta.“Eles, ah, pediram seu perdão.” Ele disse devagar, tentando lembrar comcuidado as palavras.Em um momento inspirado por um filme que passou na TV semana passada,Wendy, se forçou a ficar em pé, embora seus pés a odiassem por isso,mancou até onde eles estavam abaixados, a venerando, ergueu a mão, prontapara dizer falar improvisar um discurso.

Ao erguer a mão, centenas dos vagalumes que a rodeavam voaramsobrevoaram sobre a tribo, como um mar de luzes, fluido como pétalas aovento.Isso não era exatamente o que planejara: a ideia era dizer que todos elesdeveriam ser executados por tentarem matá-la, mas o efeito dos vagalumesfoi legal também, as pessoas ficaram maravilhados e soltavam “ohs” e “ahs”o tempo todo.

Foi bonito.“Diga que estão perdoados.” Wendy disse se sentando.O garoto disse, e depois se voltou para Wendy: “Meu nome Tupã, quer dizertrovão. Um dia, eu serei, ah, líder do meu povo. Você é?”“Quê? Ah, Wendy, quer dizer... Wendy.” Nota mental, descobrir osignificado de Wendy.

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“Aceita comer?” Tupã perguntou.“SEMPRE!”Tupã gritou alguma coisa que Wendy sequer tentou transcrever em suamente.

Em algum lugar nas costas da sua cabeça, estava preocupada comvoltar para Tuonela. Kristell com certeza ia ficar sem reação quandodescobrisse que ela quase virou comida de índio no primeiro dia dela emTuonela, mas agora, tudo que importava era que estava viva, e que ia comer.No chão, bem perto dela, eles colocaram um pano feito com palha trançada,igual aquelas cestas de 1820 que as mulheres usavam quando iam colher ovosna granja, o que foi muito bom, já que não queria tentar andar de novo.

Em cima daquele pano trançado, eles colocaram, sim, você acertou,comida: Ovos; saladas; batatas; uma raiz que, se não estava enganada, a irmãClara chamava de aipim, e era horrível; coisas estranhas que não pareciamcomestíveis; coisas menos estranhas que até pareciam comestíveis e algumasfrutas, mas sem limões.Wendy ia começar a comer, quando notou que algo estava terrivelmenteerrado naquele lugar: como se estivesse faltando alguma coisa importante,algo mais, como era a palavra? Mais substancial.

Algo vermelho.“Vocês não têm carne?” ela perguntou, com uma das batatas assadas nasmãos.“Sem carne. Animais são amigos.” Tupã respondeu, comendo uma coisa queWendy realmente não queria saber o que era.“Que pena.”“Somos Tribo Satya, falamos com animais. Animais e Tribo Satya viraramamigos e vivemos juntos. Ajudamos animais que precisam, animais ajudampessoas que precisam. É como deve ser.” Tupã terminou, apontando para oshíbridos de leão e tigre, que olhavam famintos para os guaxinins.“Nem bacon? Bacon é bom pacas.” ela disse de boca cheia.“Nem bacon. Temos morangos.”“Eles nem se parecem com bacon.” ela disse de boca cheia. “E por que vocêsqueimam pessoas? O que aqueles caras na queimando na fogueira fizeram?”Wendy disse, apontando para as três toras queimadas logo atrás dela.“Não eram pessoas, eram bonecos feitos de fruta. Cabeças eram melancias ouabacaxis, os braços eram pepinos e abobrinhas.” Ele disse com um orgulhoesquisito na voz.

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“Pra quê?”“Ritual de passagem. Os garotos que dançavam em torno do Grande Fogo,eles fizeram os bonecos. Bonecos são símbolos de quem foram no passado.Crianças os queimaram, isso mostra estarem prontos para abandonar quemforam e abraçar quem serão na vida adulta.” Wendy achou que Tupã jádeveria ter explicado isso inúmeras vezes, pois mesmo com o sotaque deTarzan, ele explicou tudo muito bem.

De repente, fazia sentido que ela não fosse ser queimada na mesmafogueira dos outros três, ela ia estragar o “ritual” das crianças.

Wendy nunca foi muito fã de reparar no que as pessoas vestem lá noorfanato, até porque, todos usavam um uniforme azul e branco, ou preto ebranco se você fosse uma irmã, ou só preto se você fosse a irmã Romena.

Mas a tribo Satya, e esses animais lindos... tinha algo muito erradocom aquilo.

Ela começou a tremer de frio: suas mãos estavam geladas, agarrandoa comida vegetariana no tapete trançado no chão, iluminado por vagalumes elua minguante.

Frio, casas feitas de palha e qualquer coisa que pudessem achar nochão, quase não tinham roupas, todos com fogueiras pequenas perto daentrada das casas, acesas pelo Azedinho para que eles não passassem a noitecongelados.

De súbito, Wendy se lembrou do que ouvira mais cedo: “Vocês nãosão daqui.” Wendy afirmou.“Não. Somos de longe, de onde é quente o ano inteiro. Estamos aqui atrás doNetã, nosso líder, meu papai.”“Netã é como se diz líder na sua língua ou o nome dele?”“Como chamamos líder, nome é Ícas.”“Certo, e o que aconteceu com seu pai?” Wendy perguntou. Costumava odiaras respostas que aquele tipo de pergunta trazia.“D’arlit, eles levaram Ícas.” Tupã disse, seu rosto escurecendo um pouco,mesmo que os vagalumes ainda estivessem ali perto.“Sinto muito.” disse sincera. “Por que eles fizeram isso?”“Todos na tribo falam com animais. D’arlit querem nos usar. Fazer todos osanimais seus escravos de guerra.”“Mas Ícas recusou quando a mulher má veio. Então D’arlit levaram Ícas.Dizem que temos até próxima noite sem lua para decidir. Se aceitamos,viramos escravos de guerra deles, mas Ícas vive. Se recusamos...” A voz de

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Tupã morreu, Wendy não precisava que terminasse a frase.Ela ficou quieta o resto da janta, de fato, tinha perdido a fome por completo.

Estava ocupada remoendo o quanto odiava os D’arlit: como pessoaspodiam ser tão baixas ao ponto de querer usar até os animais como armas,como podiam ser tão cruéis para esmagar famílias como se estivessemesmagando espinhas antes de saírem para um baile?

Separaram Wendy dos pais, Tupã do pai dele, a família do garoto nosdestroços de Tuonela, e tantos outros que ela sequer conseguia começar aabsorver essa informação com clareza.

Aquilo era maldade como ela nunca tinha visto. Nem a Dana ou airmã Romena eram tão baixas.Wendy demorou a perceber, mas suas mãos e até um pouco dos seus braçosestavam se transformando em garras.Se Tupã percebeu alguma diferença, não demonstrou.O que levantava a pergunta: por que era tão fácil Wendy se transformarquando não estava em real perigo?

Ela conseguiu comer a última batata empanada, já sem gosto,lembrando o que dissera ontem para Caleb: “Eu quero acabar com osD’arlit.”Quando Tupã acabou de comer, Wendy, que já não sentia tanta dor nos pés etentava disfarçar a pequena inclinação para destruição que estava sentindo,perguntou para Tupã porque o Azedinho usava um limão na cabeça.

Descobriu que o senhor citros ali se deu o nome de Tehain (quetambém queria dizer “queimar” na língua deles, criativo), quando ele eracriança, queimou o rosto com o próprio fogo e, na época, ele ainda não faziaos truques legais de brincar na brasa sem se queimar, então, seu rosto setornou uma cicatriz gigante.

Agora, onde ele achou um limão gigante pra usar na cabeça e porquenão usar uma das máscaras tribais legais que eles faziam, isso eram mistériosalém da compreensão de Tupã, e de toda tribo Satya.

Falando na tribo: seria legal se eles parassem de olhar para ela e fazergestos de adoração. No começo era divertido, mas já não estava se sentindotão bem com aquilo.

Também descobriu que, um dos três garotos que estava passando peloritual era irmão de Tupã, Tupim (queria dizer pequeno trovão, criatividadenão era o forte por aqui).

Tupim e os outros dois acharam Wendy a pessoa mais linda que eles

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já tinham visto, pelo visto eles não viam muitas garotas do norte (embora,pensando bem, Wendy já não tinha certeza se ela era do norte, só pensavaque era porque o Orfanato das Neves ficava em um dos países mais nortenhosdo seu mundo, e ela se misturava bem com as mulheres de lá). Eles eramadoráveis pessoinhas com pinturas tribais e ossos de passarinho no nariz.

Todos eles abraçaram Wendy como se ela fosse uma daquelasalmofadas gigantes que eles deixam nas livrarias pras pessoas deitarem,talvez fosse assim que a irmã Sarah se sentisse quando as meninas aabraçavam.

Talvez fosse assim que uma mãe de verdade se sentiria com umabraço de criança.

Wendy se livrou dos abraços antes que começasse a ficar emotiva ali.“Acham que você é anjo.” Tupã disse quando ficaram sozinhos.

“Acham você é sinal de boa sorte.”Wendy precisava mudar de assunto. Ela não era nada dessas coisas, e

só a irmã Sarah a chamava de anjo.“Onde você estava mais cedo? Se você estivesse aqui, poderia ter

avisado a tribo que eu não era uma D’arlit.” Wendy disse, de novo com aestranha sensação de que estava esquecendo algo importante, embora Wandae a lanterna da irmã Sarah ainda estivessem com ela.

“Ontem, antes da estrela mãe tomar os céus, fui para Virrat, VelhoSábio vive lá. Lembro que havia um pássaro preto com asas azuis voandopelo meu caminho. São raros, sinais de boa sorte. Fui pedir conselhos paraVelho Sábio, ajuda para salvar Netã. Não o encontrei o dia todo. Hoje, iaprocurar de novo, mas Anuk me encontrou. Anuk disse problema aqui, volteirápido.” Tupã terminou. Agora que a lua estava alta, Wendy conseguia verque ele tinha olhos negros ônix, e era bem mais forte do que havia parecidona primeira olhada que dera nele.“Obrigada por voltar, senão eu seria carvão agora.” Ela disse.Um grito veio logo de trás de Tupã. Uma daquelas frases longas e estranhasque Wendy não se dava mais ao trabalho de tentar entender.Três dos índios caminharam até ele, trazendo o que parecia um animal ferido,amarrado num bambu.“Quem é esse?” Tupã perguntou, sem perceber que ainda falava a língua deWendy.“FAWKES!” Wendy gritou e foi correndo até ele, tentando lembrar a simesma que não podia, em hipótese alguma, dizer que tinha se esquecido dele.

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Um dos guardas apontou a lança para ela, mas Tupã disse alguma coisa eapontou para os vagalumes que ainda pairavam sobre o lugar: no mesmoinstante, os guardas caíram de joelhos e pediram “Liake”, igual a tribo todafez mais cedo.A própria Wendy desamarrou Fawkes do bambu: ele estava mais acabadoque briga de galo, o ombro dele tinha um negócio branco e pegajoso onde abola de fogo o acertou, e todo o corpo dele estava infestado de queimaduras ecortes horríveis. Wendy se forçou à olhar só o rosto dele, sem cortes, quasesem queimaduras.“Perdi a festa?” ele perguntou, e Wendy conseguiu sentir o quão acabado eleestava quando ouviu a exaustão na voz dele.Ela o abraçou forte, ignorando os sons de dor do garoto, e o olharconstrangido de Tupã. Depois o ajudou a se levantar, dizendo que ela mesmademorou um bocado pra conseguir se colocar de pé.“Você foi incrível acertando o Azedinho! Foi demais!” Wendy diziaenquanto ele reclamava de dor.“Você devia ter corrido.”“Tinha uma cobra nos meus pulsos!” ela respondeu com uma irritação maisfalsa que as promessas do prefeito para aumentar o orçamento do orfanato.“O que aconteceu? O pernas fortes ali te transformou na princesa deles?”Fawkes perguntou apontando pro Tupã.“Não sou uma princesa, eu sou uma Khaleesi.” ela disse com toda a classeque uma garota rouca pode ter.“Isso quer dizer “princesa” na língua deles?”Wendy riu o máximo que sua garganta permitiu antes de responder: “Oslivros do meu mundo não fazem muito sucesso aqui, né? Não, ninguém metransformou em princesa de ninguém, eu só clamei a verdade dos vagalumes,aí eles viram que eu era inocente e agora acham que eu sou um anjo que trazboa sorte.”“Como é?” Fawkes perguntou, caindo no chão e gemendo de dor de novo.Wendy fez o melhor que pode para explicar o lance dos vagalumes, como oAnuk trouxe o Tupã, filho do líder da tribo e única pessoa no lugar todo afalar sua língua. Também explicou o que os D’arlit fizeram e que eles eramvegetarianos.“Como vocês vivem sem bacon, cara?” Fawkes perguntou depois de ouviraquilo.Eles conversaram um pouco, até Wendy começar a bocejar (e contagiar a

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todos ali perto: engraçado como o bocejo se espalha pra todo mundo que vêalguém bocejando, ou pra quem lê a palavra bocejo, né, leitor?).“Quer dormir aqui?” Tupã ofereceu.“Não podemos, precisamos voltar e–” Fawkes ia dizendo.“Oferta foi pra ela, não você.” Tupã cortou.“Eu não posso dormir aqui sozinha, coisas estranhas acontecem quando eudurmo.”Fawkes a olhou intrigado, Wendy não tinha contado sobre seus sonhos, eTupã perguntou: “Estranhas?”“Pesadelos.” Ela disse, sem um pingo de vontade de entrar no assunto.“Vá até Virrat. O Velho Sábio vai ajudar.”“Obrigada, mas não vou incomodar com um problema tão pequeno.”“Sonhos ruins não são problemas pequenos. São sementes de problemasgrandes. E Velho Sábio resolve qualquer problema.” Tupã disse convencido.“Posso levá-la.”“Você não achou o cara procurando o dia inteiro e quer levar ela?” Fawkesinterpôs.Tupã o olhou como se estivesse pensando em arrancar os dentes dele.“Que seja, voltarei para lá, procurar o Sábio e encontrar meu pai.” Ele dissepor fim.“Divirta-se com seu velho, nós precisamos voltar agora. Vamos Wendy.”Fawkes disse, com um riso que acabou virando uma careta.“Como?” Ela perguntou.Fawkes olhou para ela e, de algum jeito, mesmo estando mais acabado queuma criança depois de uma surra da irmã Romena, ele sorriu.

“Com eles.” Ele disse, batendo os pés em código Morse: S-u-b-a-m.A terra tremeu sob seus pés, e logo, lá estavam eles.“Capitão.”“E Terror.”“Se apresentando! AH! Zaha figu gara gara Tupã?” Os dois disseram aomesmo tempo.Tupã desarmou a carranca, riu e respondeu com gosto ao que quer queCapitão e Terror disseram. Logo os três estavam rindo, o que Wendy achouridiculamente injusto, ela queria rir também e... espera.“Vocês dois falam a língua deles?” Ela perguntou, como quem não quernada.“Aham.” Disse Capitão.

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“Aprendemos.” Completou Terror.“É divertido.”“Faz cócegas na língua.”“Podemos xingar o Fawkes.”“Sem ele saber.” E os dois riram.Antes que Fawkes pudesse dizer alguma coisa, Wendy disse: “Então, vocêspodiam ter avisado desde o começo que nós não éramos D’arlit?”“Isso mesmo!” Eles disseram juntos.“E mesmo assim, vocês deixaram nós dois sozinhos com esses caras, prasermos queimados vivos?”Capitão e Terror se entreolharam antes de responder: “A gente não gosta delanças.”“EU VOU MATAR VOCÊS DOIS!” Wendy disse com sua voz de bichopapão, pulando na direção do Terror, que se escondeu debaixo da terra ereapareceu atrás dela. Foi o único momento em que Fawkes e Tupã riramjuntos. Wendy tentou fazer aquilo durar, mas pelo visto, seria a primeira eúnica vez.Os três tiveram uma despedida mais amena, sem Fawkes e Tupã querendomatar um ao outro, onde Wendy agradeceu por toda a ajuda, comida, ahistória dos vagalumes e, principalmente, por tornar ainda mais forte suaconvicção de que ela tinha que ajudar a destruir os D’arlit.

Ou morrer tentando.Fawkes ofereceu sua mão para Tupã, que após um pouco de confusão,aceitou e apertou com firmeza a mão de Fawkes. Wendy se perguntou seTupã entendia aquele gesto, uma vez que era óbvio que não fazia parte dacultura da tribo Satya.Uma última olhada nos arredores: os vagalumes já a haviam se espalhado equase não se via mais deles no céu agora, e Anuk não estava em nenhumlugar por perto. Não que Wendy acreditasse que o lobo fosse aceitar umacarona subterrânea até Tuonela.Antes de ir, porém, sentiu alguém puxando sua saia.Tupim estava lá: ele era bem mais bonitinho sem as pinturas e a ossada nacara.“Volta?” Ele disse com aquela voz de criança fofa e brilho nos olhos.Wendy se sentiu quente e estranha por dentro quando sorriu e, ignorando osolhares confusos de Fawkes, Tupã, dos garotos toupeira e do Azedinho,respondeu: “Volto.”

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Tupim se afastou: ela continuou sorrindo para o garoto até sentirCapitão (ou Terror) agarrar suas pernas e a arrastar de volta pra baixo daterra.

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Interlúdio 1

“O que está achando, meu anjo?” Alaia perguntou, ainda levemente perdidano sabor daquelas memórias, distantes como um prelúdio e um epílogo,próximas como a página seguinte, tão quentes em suas mãos, fazendo tantofrio em sua barriga: ela quase podia sentir a inocência com a qual Wendyhavia narrado os primeiros capítulos do resto de sua vida, mas o que Alaiasentia dentro de si mesma não cabia em palavras, apenas em gestos: umsorriso contentado em suas dores, olhos marejados cercados por suas rugastriguenhas, saudades de tudo que foi, desejo por tudo que poderia ter sido.“Meu anjo?” Alaia chamou novamente, quando percebeu que Christina nãoestava respondendo.Sua neta estava sentada sobre a mesma mesa onde ficava o quadro deElizabeth, o vagalume que Wendy havia tentado pintar junto com LaVerne.“O que está fazendo?” Alaia perguntou, reconquistando a compostura dadama que era.“Desenhando!” Christina respondeu alegre, enquanto concentrava-seavidamente nos seus traços: Alaia se impressionava como ela podia sededicar tanto e ainda assim fazer desenhos tão ruins, mas pensando bem,Wendy também não era a artista que dizia ser no livro, e a prova disse era oquadro de Elizabeth.Embora, em defesa dela, havia sido LaVerne quem fez os traços dovagalume.“Desenhando o que, minha querida?”“A princesa do caos!” Christina respondeu com sua boca cheia de dentes elábios cheios de vida, mostrando uns rabiscos fidedignos da descrição queWendy e Alaia faziam de Ally: o que poderia ser uma gracinha, se não fosseperturbador.“Por que ela?” Alaia perguntou com preocupação constrangida na voz.“Eu gostei dela! Ela é uma criança, eu aposto que a gente ia ser amigas!”Christina respondeu vívida e alegre. “Vó, eu posso ter um canivete?”“Não.” Alaia respondeu.“Mas a Christina do livro tinha um!”“E se eu fosse vó dela, eu também não deixaria ela ter um canivete, pelomenos não na sua idade, você pode se machucar, ou machucar alguém.”

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Alaia disse, se divertindo mais do que deixara transparecer ao ver o olhar e areação de Christina àquela frase.“Vocês me treinaram para lutar com cimitarras desde que eu tinha cincoanos!”“Suas cimitarras não têm fio e sempre tem alguém te acompanhando quandovocê está com uma na mão, eu tenho medo só de pensar que tipo de loucuravocê ia fazer com um canivete.”“Eu ia cortar o cabelo!”“Mas seu cabelo é perfeito assim, Christina, você parece mesmo umleãozinho com a juba escura, o meu era exatamente assim quando eu erajovem e–”“Só porque você acha ele perfeito não quer dizer que eu ache o mesmo, ouque eu não possa mudar ele pra algo que eu prefira, vó, eu quem tenho quegostar dele, não a senhora.”“... e eu sei que você ia querer usar o canivete pra brigar com a neta da Jane.”“A Alice tem pele metálica! Ela não ia sentir nada, ela nunca sente nada!”“Não existe um único ser capaz de não sentir anda, meu anjo.” Alaia disse,em parte porque sabia que não importava o quão dura a pele um demôniopudesse ser, sempre haveria uma forma de fazê-los sentir dor, e em parteporque que qualquer ser com uma amígdala cerebral saudável estava sujeito asentir o melhor e o pior do mundo das emoções.Eram nove horas, o sol estava começando a raiar lá fora: ele sempredemorava a aparecer nessa época do ano, como um visitante de honra quefazia questão de se atrasar, apenas para criar expectativas e desfilar umaentrada triunfal, agraciando todos os que o esperam com sua luz eirreverencia.A comemoração pelo aniversário da Harbinger da Luz se intensificava,rododentros, lírios e rosas eram jogados aos pés de sua estátua, junto comcartas e desejos escritos, pedidos feitos com fé para melhoras de um enteadoentado, orações de pessoas perdidas nas inúmeras e traiçoeiras teias davida, pedindo apenas uma luz que os guie para o caminho que mais condizcom suas vontades e desejos.E histórias, Wendy foi uma amante ávida de histórias em vida, tanto históriasfictícias, quanto histórias reais, de pessoas reais, e por isso, havia aqueles queacreditavam que a melhor forma de estar perto da grande Harbinger da Luzera dividindo com ela suas histórias.Histórias que não precisavam ser necessariamente escritas: vez por outra,

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pessoas se sentavam perto da grande estátua e começavam a contar suashistórias: muitos deles juravam de pé junto que podiam ouvir a Harbinger daLuz rindo em partes e perguntando “e o que aconteceu aqui?” em outras.Alaia queria acreditar nisso, queria acreditar que, se narrasse uma história desua vida em voz alta para compartilhar com a pessoa que mais amara eadmirara em vida, essa pessoa estaria de fato ouvindo, sorrindo, fazendopequenas perguntas a todo momento, como ela teria feito em vida: seria umpensamento que aqueceria seu coração como nada mais poderia fazer.Mas Alaia não acreditava nisso, ou pelo menos, a maior parte dela nãoacreditava nisso: havia, sim, uma ínfima dúvida no âmago de seu ser, umapartícula dela que queria dizer “Sim! Ela fala comigo!”, mas era uma dúvidatão pequena que Alaia não se atreveria a explorá-la: era uma porçãoinfinitesimal de fé, e ela acreditava que a única forma de a manter viva seriamantê-la em dúvida, já que a certeza da realidade provavelmente adecepcionaria de uma forma que ela simplesmente, depois de todos essesanos, ainda não estava pronta.

“O que é complexo de Édipo?” perguntou Christina, tirando Alaia deseu devaneio.

“Onde você ouviu isso?”“Você disse isso na parte que o Kahsmin disse que a Kristell ficava

mais bonita quando ficava com raiva.” Christina disse indiferente enquantoterminava de desenhar os olhos de Ally.“Ah, melhor perguntar pro Vincent, ele é primo de segundo ou terceiro graudo Kahsmin, vai saber explicar melhor.” Alaia, que sabia perfeitamente o queera complexo de Édipo, respondeu.

“Tá bom, posso fazer mais perguntas?” Christina perguntou, piscandorápido os grandes olhos de leãozinho pidão para Alaia.

“Claro meu anjo, nunca cale sua curiosidade, apenas um péssimoprofessor incentivaria isso.” Alaia respondeu, embora houvessem ressalvas:nos tempos em que ela ensinara, sempre se deliciou com perguntas, à menosque elas fossem feitas fora de hora, ou não tivessem uma única relação com oque estivesse falando.

“O Caleb contou que os mestiços tinham que aprender uma arte pracriar disciplina, e eu acho que alguém vai falar que isso ajuda muito acontrolar a transformação dos mestiços, né?” Christina perguntou,observando atentamente seus lápis e o pedaço de carvão que tinha.

“Sim, Autumn defendia isso que você acabou de falar.”

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“Então, a pergunta é: ainda é por isso que a gente estuda um tipo dearte? Pra gente se controlar melhor e tudo que você falou? A gente não podeaprender só porque a gente quer?

“Sabe, meu anjo, eu queria que Wendy estivesse aqui: ela ia amarvocê e as perguntas que você faz.” Alaia comentou com um sorriso de vó,cheio de orgulho restringido por outros sentimentos que palavras jamais serãocapazes de retratar, “hoje em dia só existe um motivo para você e qualqueroutra pessoa, mestiça ou não, aprenderem alguma coisa: a vontade de vocês.”

“Wendy foi criada num mundo em que aprender tinha que ser chato eforçado, ela não podia escolher o que aprender e nem a forma como iaaprender, era o mesmo ensino para todas as pessoas, e de acordo com o queela me contou, a única coisa realmente útil de tudo que ela aprendera antes dechegar em Tuonela foi ler e escrever.”

“Mas, se ela não podia aprender o que ela quisesse, como ela podia sedescobrir, crescer, melhorar os talentos dela e dividi-los com o mundo, quenem a gente faz aqui? Como eles fazem lá?” Christina perguntou, realmenteconfusa com a ideia toda de que uma pessoa não pudesse ser o que elaquisesse.

“O mundo onde Wendy viveu ainda não aprendeu que as pessoasdevem crescer para serem elas mesmas, por isso o mundo onde viveu estádoente, uma pessoa normal é uma pessoa infeliz com seu trabalho e feliz como pouco tempo livre que têm, você consegue imaginar isso, meu anjo? Ummundo onde você tem que ser como os outros querem, e não como vocêquer?

Christina, que era a criança mais alegre, enérgica e forte que Alaiaconhecia, murchou como uma folha no outono só de começar a entreter essasideias na cabeça.

“Parece horrível.” Christina respondeu por fim.“Você não tem ideia de quão horrível: ensinar crianças que elas têm

que ser todas iguais destrói a maioria delas: estas crianças crescem pensandoque elas só têm valor se conseguirem se encaixar num padrão artificial, epadrões matam a individualidade, padrões existem apenas para beneficiaruma pequena minoria que tira vantagem deles.”

“Esses padrões deixaram o mundo de onde Wendy veio doente,pessoas andam confinadas em prédios e em roupas que não condizem comquem realmente são, fazendo trabalhos dos quais não sentem orgulho nemvontade de realizar, para se encaixarem num padrão que não tem nada a ver

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com eles, matando aos poucos as pessoas maravilhosas que nasceram pararser, ficando cada dia mais frustrados com quem se tornaram, até que um dia,eles aprendem que a vida é assim mesmo e ensinam isso pros próprios filhos,e o ciclo se repete.”

“A irmã Romena do livro é um pequeno exemplo disso: ela é umamulher frustrada que nunca quis cuidar de crianças ou ser freira, e há pistassobre isso espalhadas pelo livro, pistas sobre o desgosto da mulher que nuncaviveu a vida que quis viver, por isso ela era irritadiça, grossa, sem grandecriatividade ou empatia pelas crianças de quem deveria cuidar. O mundo deonde Wendy veio está, infelizmente, cheio de Romenas, e foram eles mesmosque criaram essa doença quando não deram liberdade para as crianças seremquem nasceram para ser desde cedo.”

“Para piorar, quando eles ensinam, é apenas um professor falando e oresto fica ouvindo e anotando em silêncio, nada mais, não é como aqui ondeos professores fazem experiências, onde todos os alunos tem vozes e dividemo que aprendem ou discutem suas ideias, nossas aulas de química quasesempre têm explosões porque nós gostamos de mostrar o que realmenteacontece, se Wendy um dia viu química no mundo dela, ela provavelmente sóviu números sem sentido numa lousa branca e não viu nenhum valor emsaber nada daquilo.”

“Isso é MUITO horrível!” Christina disse, com as mãos sujas decarvão.

“Eu sei, Wendy também achava, a forma como você aprende hoje foiidealizada por Wendy, sabia?”

“O que é ‘idealizada’?”“Quer dizer que foi ideia dela.” Alaia explicou da forma mais simples

possível. “Você poder assistir várias aulas de inúmeros assuntos diferentesdesde os seus cinco anos, para depois escolher de quais você quer continuarparticipando, isso foi totalmente ideia dela.” Alaia explicou.

“Eu achava que tinha sido sua ideia, vó.” Christina disse, tentandolimpar o carvão nas roupas e fazendo uma sujeira maior ainda.

“Fui eu quem fez isso acontecer, com muita ajuda de muitos amigos,mas a ideia foi de Wendy.” Alaia explicou, com certo orgulho na voz. Nofundo, sabia que Wendy gostaria de ver o que sua pequena existência haviafeito nesse vasto mundo.

Uma pena ela nunca ter encontrado elfos.“Vamos continuar, Christina?” Alaia perguntou.

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“Espera! Eu tenho mais perguntas! Por que a Autumn não gostava daWendy? Por que a Ally foi falar com os D’arlit se ela não estava com eles? Oque Wendy tinha contra mímicos? E não tinha sido ela quem escreveu esselivro? Por que tem trechos de outros personagens?”“A gente vai ver a resposta de quase tudo isso no livro, e Wendy não gostavade mímicos porque quando ela tinha cinco anos, um mímico prendeu elanuma caixa invisível e ela começou a chorar porque não conseguia sair.”Alaia comentou, sem conseguir conter o sorriso ao lembrar dessa tonteira.

Claro, seu sorriso não era nada comparado com as gargalhadas deChristina: Alaia tinha que admitir, não se lembrava se em sua própria infânciaela havia despojado risadas tão quentes, coquetes e cheias de vida. Lembrava-se claramente de ela mesma ser quente, coquete e cheia de vida, e haviatrechos nesse livro que provavam a existência deste passado, mas essaalegria, essa despreocupação com o mundo lá fora que se manifestava à cadagargalhada de Christina, ela não conseguia lembrar de momentos livres esoltos assim em sua própria infância, nem na maior parte de sua vida.

“Espero que você nunca cresça.” Alaia sussurrou enquanto Christinaterminava de rir “Mais alguma pergunta?” Perguntou em voz alta.

“Como a irmã Sarah teve um encontro com Fester?” Christinaperguntou.

“Excelente pergunta, eu temo não saber respondê-la: só sei que ela erahumana e viveu boa parte da vida em Tuonela, mas não tenho ideia de comose conheceram, tampouco tinha Wendy.”

“Quando a Wendy vai se reencontrar com a Christina do livro?”“Eu não posso dizer.” Alaia disse em tom de suspense.“Ela era a Harbinger da Luz porque os vagalumes seguiam ela?”“Mais provável que isso fosse uma consequência, não um motivo.”“Quando é a Batalha de Khaleel?”“É a última batalha no período d’A Noite Negra da Harbinger da Luz,

eu estava lá.”“Eu sei, nossos professores contam, e sempre apontam pra mim

perguntando se eu não posso te levar para falar com as suas palavras o queaconteceu. Aliás, você quer ir, vó?”

“Eu já não tenho paciência para essas coisas.” Confessou Alaia, quehavia perdido essa paciência mais ou menos na mesma época em que omundo dos vivos perdera Wendy.

“Eu posso levar esse livro pra aula então?”

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“Por cima do meu cadáver frio e morto.” Alaia respondeu, e ela falousério.

“Mas, por quê?” Alaia perguntou, deixando claro na voz que estavachateada e que planejara aquele momento havia um bom tempo “Esse livro éo pertence mais precioso que tenho nesta vida, minha neta, centenas debiógrafos vieram até mim por causa dele. Além desse livro, eu tenho emminha posse as cartas de Helena, Caleb e Kahsmin, relatos de Jane datados dequando ela ainda era uma criança, reflexões do velho sábio e até as poucasdeclarações entalhadas em braile por Adim Ava para Autumn, todas estãoguardadas ali.” Alaia disse, apontando para a parede ao lado da lareira, queambas sabiam ser uma passagem secreta para um cofre onde guardava seusmaiores tesouros, incluindo o próprio livro de memórias de Wendy. “Eudeixei que eles examinassem tudo, exceto o livro, ele é pessoal demais, umaparte da alma dela vive nessas páginas e na tinta das palavras, eu não queroque ninguém destrua isso.”

“Não acha isso egoísta, vó?” Christina perguntou, virando a cabeçaum pouco de lado e deixando sua juba cacheada cair sobre seus ombros,como pequenas cascatas onde, quando ela fosse mais velha, pessoasansiariam por mergulhar.

“Você gostaria de dividir as pessoas que você ama com o mundo?”“Eu não vejo prova de amor maior que essa, por isso sempre

apresento a senhora para os meus amigos.”Alaia ficou sem palavras: sua primeira reação foi sorrir com a

declaração involuntária da neta, depois uma pequena ponderação: ela deviasaber que Christina era inteligente além dos anos que havia vivido, afinal,Alaia não havia sido diferente no passado, mas ainda assim, era tão fácil seperder nos surtos de hiperatividade ou nas perguntas bestas daquela criança,que sempre vinha como uma surpresa para Alaia quando Christinademonstrava, em sua inocência infantil, o quanto realmente entendia sobreamor e dividir.

Só agora, Alaia começava a entender porque o Velho Sábio sempredizia para qualquer criança que encontrasse: eu tenho muito que aprendercom você.

“Ela já tinha as listras nas bochechas?” Christina perguntou de súbito.“Desculpe, o quê?” Alaia disse, tendo sido pega de surpresa pela

mudança de assunto.“Os três pares de listras que ela tinha, quase todas as pinturas e fotos

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dela mostram as listras nas bochechas, até aquela estátua tem. Eu quero tertambém!” Christina disse, pegando um pedaço de carvão e passando no rosto.

“Você não vai insistir para levar o livro e ler para os seus amigos?”Alaia perguntou desconcertada e achando tudo aquilo muito suspeito.

“Não, você vai perceber que eu tô certa e vai acabar me emprestandoo livro.” Christina disse, cuspindo um pouco do carvão que entrou sem quererna sua boca.

Alaia riu com molto gusto daquele delírio: “Sonhar é bom, Christina,continue assim. Aliás, você sabe o que essas marcas representam?” Alaiaperguntou com ar de quem não espera uma resposta correta.

“Que eu sou uma tigresa agora? RAWR!” Christina gritou, deualgumas voltas pelas paredes e, quando chegou no telhado, pulou sobre Alaia,que instintivamente se levantou e abriu as asas, como faria se fosse umataque de verdade. “Te assustei, vó?”

“Você sempre me assusta.” Alaia disse, com uma pontada de dor nascostas onde suas asas começavam. “Essas são marcas que apenas umamestiça como Wendy poderia ter, em todos os nossos milhares de anos dehistória, desde os tempos de Louhi, só houve uma outra mestiça capaz de setransformar em algo tão completo à ponto de fazer tais marcas visíveis.”

“Quem?” Christina perguntou com os olhos castanhos brilhando.“Que tal continuarmos o livro até encontrarmos a resposta?”

Perguntou Alaia, sentindo-se satisfeita com a atenção reconquistada.“É um dos Índios? É o Azedinho?” Insistiu Christina, enquanto

sentava-se no colo de Alaia para ouvir melhor a história que estava por vir.“Não sei, vamos descobrir.”

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Capítulo 11

“Mas eu não tô com sono!” A menininha disse emburrada.“É, vocês nunca nos mandam pra cama cedo!” Disse o menino, irmão dela.A mãe deles estava tão nervosa que parecia um milagre os garotos nãoperceberem.

Seu terceiro filho, o mais velho, percebeu que ela não ia conseguirinventar uma história para acalmá-los e que ia acabar dizendo algo e assustá-los com seu medo, perfeitamente racional, embora irritante do mesmo jeito.“A semana de Nicolau está chegando.” Disse antes que sua mãe pudesse abrira boca, e era verdade, já começara a segunda semana de dezembro. “A gentevai preparar a cidade para o começo das festas amanhã cedo e, se vocês nãodormirem, vão estragar a surpresa.”“Mas Halloway, a gente ajuda! A gente ajudou ano passado!” Disse amenininha.“É, a gente gosta de ajudar.” O irmão completou.A mãe deles estava no outro canto do quarto, Halloway agradeceu por isso,não queria que os dois vissem como ela estava tremendo.“Jane, James, olhem.” Ele disse apontando para a janela. “Vocês estão vendoalguma criança?”Jane e James olharam, e um retrato próximo do que viram seria um monte dehomens e algumas mulheres na frente de suas casas: rastelos e pás nas mãos,para preparar a terra dos jogos, e tochas para conseguirem enxergar o queestavam fazendo.

A lua se escondia tímida atrás nuvens violetas, densas comopesadelos.

Alguns dos homens tinham espadas, aquelas sem corte que usaramnos jogos do ano passado.

Pelo menos era o que Halloway esperava que as crianças pensassem.“Não.” Os dois responderam juntos.“É porque amanhã o dia vai começar bem cedo pra vocês.

Entenderam? Amanhã vocês não vão nem reconhecer esse lugar!” Hallowaydisse, impressionado com o entusiasmo que conseguiu colocar na própriavoz.

“Vai ter tocas de coelho? Igual ano passado? Daquelas enormes que

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parecem um labirinto embaixo da terra?” Perguntou James.“Ou aquelas bonecas do tamanho de gente de verdade, com aquelas

cordinhas pra gente poder brincar?” Perguntou Jane.Halloway sorriu sem graça e disse: “Sim, vai ter tudo isso, e

adivinhem? Quem acordar primeiro, vai brincar com tudo primeiro! Queremser esses ‘primeiros’?”

“QUEREMOS!” Os dois disseram tão alto que encobriram um soluçoabafado da mãe deles, ainda no canto do quarto.

“Então durmam, amanhã, a semana de Nicolau começa.” Ele dissesorrindo.

“YAAAAY! Boa noite Halloway, boa noite mãe.” os dois disseram, ese viraram nas cobertas.

Halloway fechou a janela e deixou o quarto com a mãe.“Você podia aprender a ser discreta.” Halloway disse quando pisaram

fora de casa, sua voz deixara qualquer traço de entusiasmo para trás.“Eu não quero que você vá, nem seu pai, e eu não quero deixar os

dois sozinhos.”“É melhor que eles não vejam. Quando amanhecer, eles não vão nem

reconhecer esse lugar.” Halloway disse, sentindo a verdade daquelas palavrasse desfazer no ar denso da noite.

Os dois se mergulharam em quietude ressentida e hesitação muda:Halloway era um demônio, olhos sem vida como os de uma gárgula e umfunil de dentes serrilhados se escondia atrás dos seus lábios.

Sem mencionar que, com sua mente, podia fazer objetos pesadosvoarem por aí e atingirem outros objetos pesados, ou pessoas. Foi o poderque veio ao mundo junto com ele.

Enquanto sua mãe era apenas uma humana. Humilde, em diasnormais, feliz, com um rosto enrugado que um dia fora meigo e leve, emborahoje fosse a personificação do luto.

“Eu ouvi dizer que só duas pessoas estão vindo com ela. Nós vamosvencer.” Halloway disse. Ao longe, uma tempestade silenciosa e sorrateiraem seus tons violetas se aproximava.Sua mãe não disse nada, ela sequer se esforçou para fingir ter algumaesperança.“Mãe, olhe ao seu redor.” Ele disse, usando as garras com cuidado para não aassustar “Somos uma cidade inteira contra três. Não temos como perder.”O que ele daria para ver aquela mulher se virar para ele e, com um sorriso no

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rosto, dizer “terminem antes do café da manhã, eu vou fazer ovos mexidos.”ou “eu acredito, apenas se cuidem.” Qualquer um teria feito bem para seupeito.Ao invés disso, ela se desviou do toque dele e, sem dizer palavra, voltou paracasa, onde ele sabia que ela ficaria deitada na cama até não haver mais nada aser feito.Geralmente haveriam animais correndo comuns em torno da cidade, corujaspardas e morcegos enchendo os céus, cachorros latindo e gatos miando aqui eali, talvez até sapos coaxando, ele gostava do som de sapos na calada danoite, tinham um eco gostoso que o ajudava a dormir.Mas esta noite, apenas o lamento dos mergulhões se atrevia a fazer-se ouvir.Era o lamento de toda Jussarö, aguardando a chegada da Harbinger da Morte.

“Eu quero ir de novo!” Wendy disse animada, depois da viagem mais“underground”, radical e longa da sua vida. “Espera, não, não quero não.”Completou depois de perceber que queria, como dizer isso sem ser nojento,tirar uma salada de frutas da barriga, pela boca.“Você se acostuma.” Fawkes disse, esfregando uma queimadura enorme nopescoço.“Diz isso pros seus pés.”“... o que tem os meus...”Wendy o cortou, derramando “salada de frutas” em cima deles.“Okay, isso foi nojento.” Fawkes reclamou, enquanto Capitão, Terror eWendy riam como hienas.“Desculpa, mas olha o lado bom, tô bem melhor agora.” Wendy disse.“Diz isso pros seus pés.” Fawkes brincou, apontando para os pés de Wendy,envolvidos em algum tipo de gaze feito de folhas medicinais que a triboSatya tinha, parecia aliviar bem a dor da garota.Eles estavam do lado da Taverna do Fim dos Tempos, que ainda estavaaberta, e com uma placa bem grande, escrito: Fechamos no Fim dos Tempos(e depois das oito nas terças).Mais cedo, havia visto bolas de luz no topo da caverna, que pareciam váriospequenos sóis: agora que a noite caíra, não havia mais luz lá em cima, mesmoassim, o lugar não cedeu ao escuro, pois as pedras da caverna brilhavam com

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uma luz azulada, como se as paredes tivessem luz própria, feita de safira ediamante.Wendy não conseguiu evitar pensar na irmã Sarah: ela disse que Wendy iagostar do lugar, mas nunca imaginou que veria algo que pudesse fazer seucoração ficar tão leve sob seu peito, sua alma ansiava por sair de seu corpo ebanhar-se nos tons índigos que acariciavam a calada da noite subterrânea.“De dia, a luz do sol entra por uns buracos nos telhados das casas nasuperfície de Tuonela, um amigo do Edgar fez um esquema com espelhos láem cima pra luz do sol cair aqui embaixo o dia todo, e agora à noite, bem, jáviu aqueles brinquedos que brilham no escuro?” Fawkes perguntou derepente, limpando o pé na roupa do Capitão, sem ele perceber.“Aham.” Ela respondeu, de repente fora do transe causado pela caverna.“É mais ou menos isso que acontece aqui embaixo, as pedras que brilhamaqui embaixo se chamam “Lambda de Lua”, elas guardam a luz do sol ebrilham assim a noite toda. Dizem que uma pessoa sozinha espalhou isso nacaverna toda. Legal né?” Fawkes disse, com um tom óbvio de “queroimpressionar você”, misturados com gemidos involuntários de dor.“É, bem da hora, e você devia ir pra um hospital.” Wendy disse.“Você também.” Fawkes respondeu.“Você tá bem pior que eu.” Wendy devolveu.“Já estive pior que isso.” Fawkes deu de ombros. “Se eu precisar de algo, euprocuro a Paloma, ela tem poderes de cura, você vai gostar dela. Aliás,devem estar procurando você, já passou da meia-noite.”“MINHA NOSSA! A Kristell vai me matar!” literalmente, ou de tanto meabraçar, ela completou na sua cabeça. “Eu preciso achar ela! Obrigada porlembrar, mas, você vai ficar bem? Eu não posso te deixar sozinho assim.”“Vai por mim, vou ficar ótimo e... você disse Kristell?” Fawkes repetiu onome, como se soasse como um estrangeiro procurando um lar na boca dele.“Isso, minha amiga. Loira, bonita, da sua altura, cabelo no meio das costas,gosta de abraçar tudo que respira até pararem de respirar. Conhece?”“Amiga do Edgar?” Fawkes disse.“Essa mesma.”“Deve tá na casa dele, ou no dormitório.”“Ou me procurando feito doida. Valeu Fawkes.” ela disse, já se afastando.“Espera!” ele chamou.“Que é?” ela perguntou apressada.Wendy nunca tinha visto um cara hesitar para fazer uma pergunta, achou

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fofo.“Você, bem, o que rolou com você e o Tupã?” ele perguntou por fim.Okay, Wendy não esperava isso.

“Nada. Ele é legal. Quer salvar o pai, gosto de gente que se importacom família, e ele não deixou a galera lá me matar, então, fica difícil nãogostar dele, mas não rolou nada.”

Fawkes a encarava como se procurasse algum sinal de mentira norosto dela. Quando não achou nenhum, disse, visivelmente aliviado: “Tudobem.”

Capitão e Terror deram sinal de que iam começar com palhaçada, masFawkes tinha faíscas nas mãos, apontadas para os dois.

E Wendy, incapaz de controlar os impulsos de curiosidade que aassolavam desde que era blastocisto, fez aquela pergunta que nenhum homemgosta de ouvir: “Por quê?” Quase completou a frase com “tá com ciúmes?”mas não queria parecer arrogante, prepotente, e todas as outras qualidadesque definiam Danielly O’Hara.“Curiosidade. Te vejo por aí outro dia. Até mais.” Despediu-se ele.

Antes que Wendy perguntasse onde, quando e como o encontraria, elesegurou a mão de ambos Capitão e Terror e foi levado para as profundezas daterra.

“Você acha que ele vai ficar bem, Wanda?”Wanda ficou parada sob a camisa dela.“É, eu também espero.”Wendy tinha que admitir, ele tinha estilo, e ela gostava de como ele

mantinha esse mistério de “não me encontre, eu te encontro”, era muito legal.Lutava muito bem também, apesar de ter levado uma surra violenta do senhorfrutinha, uma pena que não tinha olhos vermelhos ou...

“Eu não acredito que ele tem coragem de mostrar a cara aquiembaixo.” um homem sussurrou copioso para outro enquanto andava parafora da Taverna do Fim dos Tempos.

“Há pessoas ouvindo aqui.” censurou o outro enquanto se apressavapara sair dali.

Wendy deveria ter entendido isso como a deixa perfeita para começara procurar Kristell e terminar de vez esse dia quase suicida com um banho,comida e umas boas risadas.

Mas ela preferiu descobrir o que estava acontecendo na taverna.Ela se esgueirou pelas ruas até chegar à janela da taverna, onde ela viu

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um lugar não tão cheio de pessoas, embora ainda houvessem algumas, comseus pratos intocados sobre as mesas em forma de relógio.

Todos tinham uma expressão presa entre desconforto e raiva em seusolhos, que convergiam para uma única direção.

A direção de um homem encapuzado, metido em um sobretudopesado.

“Por que eles estão olhando assim pra ele?” Wendy perguntou.Sem esperar resposta de Wanda, ela entrou na taverna, atraindo não

mais que um rápido olhar de esguelha dos mais curiosos, que logo voltaram-se disfarçadamente para Caleb, ou, em alguns poucos casos, para seus pratos.

Era impossível não ouvir um muxoxo de sussurros em toda a taverna,mas Wendy não conseguiu entender uma única palavra do que eles estavamdizendo.

Até se aproximar de Caleb, quando ouviu um senhor de chapéu ebarba branca falar mais alto do que planejara: “Traidor.”

Só para sair mancando do estabelecimento.Ninguém mais trocou uma só palavra até Wendy chamar: “Caleb?”Ele se virou pra ela e, por mais improvável que pareça, estava

sorrindo.“Estiveram procurando você.” ele disse.Ficou tentada a tirar aquele capuz da cara de elfo dele, mas ele devia

ter um bom motivo para usá-lo agora.“Onde você estava?” ele perguntou, mas antes que Wendy pudesse

responder, ele a impediu e disse. “Não, você vai ter que contar essa históriapara os outros, melhor esperar.”

“Tá bom, você se importa em me dizer o que aconteceu aqui?”Wendy perguntou, largando, contra a vontade, o abraço.

“Eu estava perguntando sobre você para algumas dessas pessoas.”Caleb respondeu “Vamos sair daqui.”

Wendy obedeceu, percebendo que ela não teria uma resposta decentecom tanta gente olhando para eles.

Uma vez longe da Taverna, ela voltou a perguntar.“Por que todo mundo estava olhando daquele jeito?”Ele não hesitou em responder, mas também não se deu ao trabalho de

descobrir o rosto ou de encontrar os olhos de Wendy.“Autumn DeLarose Liddell.” o nome escapou seus lábios. “Alguns

meses depois de Kahsmin se livrar dos D’arlit, dezoito anos atrás, pessoas

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começaram a apontar os dedos uns para os outros para achar culpados.Ninguém foi poupado, nem mesmo o próprio Kahsmin.”

“No entanto, nenhuma acusação foi tão bem recebida quanto a deAutumn: ela fazia questão de apontar a todos que a invasão dos D’arlit haviasido minha culpa, pois eu estava fora do meu posto.”

“Posto?” Wendy interrompeu curiosa.“Eu e Autumn éramos, e de certa forma ainda somos, os guardiões de

Tuonela, somos responsáveis por manter a cidade segura, nós à protegemosnão apenas dos D’arlit, mas de qualquer ameaça que possa surgir.”

“Mas na noite em que os D’arlit invadiram, eu não estava emTuonela.”

Uma pausa foi se prolongando em silêncio inconclusivo na medidaem que Caleb e Wendy caminhavam, ela já estava para quebrá-lo quando queele retomou a palavra: “Houveram duas pessoas a quem eu amei mais que àminha própria vida. Na noite que antecedeu a invasão dos D’arlit, eu perdi asduas.” Caleb comentou, com seu semblante totalmente oculto nas sombrasagora. “Eu não estava em Tuonela porque estava longe, com todas as forçasdrenadas pelo desespero que é tentar salvar alguém que não pode mais sersalva.”

“Autumn fez o melhor que pode durante a invasão, mas seria patéticoacreditar que uma mulher, mesmo uma com o poder de Autumn, poderiaproteger a cidade do exército dos D’arlit. Para piorar, Autumn não só foiincapaz de conter a invasão, como também foi incapaz de salvar o que muitosdizem ter sido o único bem de valor que ela teve na sua vida.”

“O que ela não conseguiu salvar?”Caleb olhou para ela, tornando fácil ler seus lábios quando ele disse:

“A irmã.”“Ai.” Wendy murmurou, ela mesma se pegava pensando de vez em

quando como seria a dor de perder alguém com quem vivera por toda a vida,como a irmã Sarah, e sempre chegava à conclusão de que seria uma daspiores que um coração poderia sentir.

Uma irmã não poderia ser diferente.“Autumn me chamou publicamente de traidor.” Caleb continuou

amargo. “E se tem algo que nenhuma pessoa deseja é ser alvo dos distúrbiosde raiva de Autumn: a maioria das pessoas desejaria que ela apenas osmatasse, seria menos humilhante, mas parece que ela sabe que as palavrasdela são um castigo muito melhor.”

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“Eu era o traidor por não estar em Tuonela, por não salvar sua irmã eaparentemente por toda a invasão ter acontecido. O resto da cidade acolheu aopinião dela de braços abertos, me culpando por todos os entes queridos queperderam.”

“Como aquele garoto nos escombros?” Wendy perguntou.“Nenhum deles se importou com o que eu perdi.” Caleb murmurou,

sem reparar que Wendy havia falado.Seria preciso ser um idiota para não ver que Caleb estava começando

a sentir uma certa raiva silenciosa enquanto relembrava os eventos daquelesdias e, por isso, Wendy, suprindo toda a curiosidade e perguntas que tinha afazer sobre esse evento, mudou radicalmente de assunto.

“Quantos anos você tem?”Caleb parou um instante, como se Wendy tivesse, de alguma forma

que nem ela era capaz de entender, bloqueado uma corrente de pensamentosna cabeça dele, uma que estava pronta para acorrentá-lo nas profundezas desuas piores memórias, como Ally faria se tivesse a chance.

“Trinta e seis.” Ele respondeu em voz amena.“Você parece mais novo.” Wendy disse surpresa, para não dizer

“desconfortável” com a nova descoberta.“Mestiços envelhecem mais devagar depois de uma certa idade, como

você vai perceber com o tempo.” Ele disse, voltando a caminhar. “É melhor airmos, sua amiga Kris ainda deve estar procurando.”

Caleb guiou Wendy pela cidade subterrânea, o que foi muito bom,porque todas as instruções que Kristell dera mais cedo sobre como andar nacidade haviam se perdido em algum canto escuro, sombrio e inabitado de suamemória, igual a maioria das notas mentais que fazia para si mesma.

Ela queria parar pra apreciar o quanto a cidade era linda à noite, fazermil perguntas sobre sua história, e mais mil perguntas sobre ele, seu passado,essa tal de Autumn que todo mundo fala sobre, e também estava morta devontade de saber quem eram as duas pessoas que Caleb perdeu.

Foi um inferno conter sua curiosidade.Quanto mais o sono ia chegando de mansinho, mais ia ficando difícil

evitar lembrar da Princesa do Caos: tivera muita dificuldade na noite passadapara pegar no sono, pois sempre que estava sonhando, seu sonho setransformava na memória que Ally a havia forçado a ver.“Chegamos.” Ele disse, parando em frente à uma das casas que semisturavam com as paredes da própria cidade subterrânea.

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Era como as casas que Wendy lia sobre nos romances vitorianos lá noorfanato, alta, com adornos elegantes e de muito bom gosto em todas asjanelas e portas. Era engraçado pois até as cores pareciam ter vindo dessaépoca: não eram fortes, mas de certa forma, imponentes, respeitosas, como serepresentassem o melhor da vida de um aristocrata.Não que Wendy soubesse ao certo o que era um aristocrata, só gostavabastante da palavra.

“Lugarzinho grande. Aí que é o dormitório?”“Casa do Edgar.” Caleb corrigiu, tocando um sino que estava na

porta.“Quem tá aí?” Perguntou uma voz familiar de dentro da casa.“Diga seu nome.” Caleb sussurrou para Wendy.Mas ela teve uma ideia melhor.“Pizza para Kristell Sinn–” Antes da Wendy terminar, a porta se

escancarou e Kristell pulou em cima dela com a violência de dois tigres e umpanda, a derrubando no chão e a abraçando como se fosse a coisa maispreciosa do mundo.

“ONDE VOCÊ TAVA?! EU ACHEI QUE TIVESSE MORRIDO!VOCÊ TÁ ACABADA! CADÊ A PIZZA?! POR QUE SUA VOZPIOROU!? E COMO VOCÊ QUEIMOU OS–”

“Kris, ar.” Wendy sussurrou.“Foi mal. Mas como você ficou assim?” Kristell perguntou, deixando

Wendy se levantar, enquanto Edgar, Allan e Victoria apareceriam um a umna porta.

Wendy resumiu as aventuras dela em busca do Arsenal Coala(Kullervo, Edgar corrigiu), uma aventura envolvendo índios com cara defruta que soltam fogo pelas ventas e D’arlit que querem usar animais nosexércitos.

Nada demais.“Você disse ‘Fawkes’?” Kristell perguntou intrigada quando a

narrativa acabou.“É, ele e duas crianças toupeira me levaram e trouxeram.” Wendy

disse.“Entendi, quer entrar?”“Ah, Kristell, acho melhor–” Edgar ia dizendo.“Acha melhor ela entrar e deitar um pouco, não é?” Kristell disse, e

Wendy teve um vislumbre de quem realmente mandava ali.

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“É.”“Espere.” Caleb disse, assustando a todos ali presentes.

Aparentemente, não haviam notado a presença dele até então. “Você disseque os D’arlit sequestraram o líder deles?”

“Isso.” Wendy disse.“Melhor alertar Kahsmin sobre isso, ele conhece Tupã e o pai dele há

décadas.”“Como eles se conheceram? Eu pensava que esses índios fossem do

sul e estivessem aqui só porque eles querem reaver o líder deles.”“Eu não sei, nunca perguntei.” Caleb respondeu seco.Edgar e Allan chamaram Kristell para discutir alguma coisa sobre

Wendy dormir na casa, e Victoria se apressou para estar do lado de Allan,indisposta a deixá-lo por um momento que fosse com outra mulher sem queela própria estivesse presente.

Caleb aproveitou para chamar Wendy mais perto, queria dizer algo:“Amanhã, logo depois do nascer do sol, vá até o farol.”

“Por quê?” Wendy sussurrou intrigada de volta.Foi o primeiro (na verdade, segundo) sorriso que ela viu na boca de

Caleb naquela noite: “Ainda quer aprender a usar o arco e flecha?”“Quero!” Wendy disse com seus olhos brilhando de alegria. “Sim, eu

vou! Obrigada Caleb!” Ela disse, o abraçando e derrubando o capuz dele,quase não percebendo o suspiro mútuo de susto dos seus amigos, mas bemciente de que ele não retribuíra o abraço.

“Não se atrase. Boa noite.” Ele disse, quando Wendy o deixou emliberdade. Logo, ele já havia sumido entre as casas e a noite.

“O que ele disse que vai te ensinar?” Allan perguntou intrigado.“Como ser uma elfa.” Wendy respondeu como quem diz “bom dia”

para estranhos na rua.Allan e Edgar se entreolharam, mais confusos que ela própria

tentando resolver uma equação de segundo grau.“Arco e flecha.” Kristell explicou, e Wendy se sentiu muito feliz pelo

fato da amiga de infância ainda entender como sua cabeça malucafuncionava. “Vamos entrar.”

A casa de Edgar era tão esplêndida por dentro quanto por fora, elembrava bastante uma outra casa que Wendy visitou ano retrasado com oOrfanato, quando ela e a Christina ainda estavam juntas e ainda eram loucaspara aprontar, mas isso é história para mais tarde. Havia uma escadaria

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branca que ligava os dois andares da casa, vários móveis de época com coresamenas combinando com as paredes e janelas tão grandes que Wendy poderiaficar em pé em uma delas.

Linda, grande e espaçosa, não havia como não gostar.“Você não se sente estranha tendo aulas com o Caleb?” Allan perguntou.“Por que eu deveria?”“Porque ele é sinistro, ele anda feito a morte com aquele capuz, só o Kahsmingosta dele. Sem mencionar a traição.”“Eu já ouvi essa história da traição hoje, eu não acho que ele teve culpa denada, e ele é um ótimo elfo e vai me ensinar a ser tão boa quanto ele.” Wendynão percebeu de imediato, mas estava ofendida pelo fato de Allan não gostardo Caleb.Allan deu de ombros e se afastou dela, junto com a namoradinha do cabeloverde.Wendy viu que móveis foram afastados para dar espaço no meio da sala,igual a irmã Natalie fazia na sala principal do Orfanato das Neves, quandoqueria que as garotas dançassem balé ali dentro.“O que vocês estão fazendo aqui?” Wendy perguntou.Todos eles olharam uns para os outros, como que buscando um eleito paraexplicar que algazarra toda era aquela.“Kahsmin já te explicou como Tuonela se esconde dos D’arlit?” Kristellcomeçou.“Mais ou menos.”“Olha, é assim: de vez em quando, os D’arlit mandam uns caras pra cá, prarepresentar o rei e a filha dele.”

“Quem vem pra cá é um cara chamado Neri e mais os Sete Favoritosde Allenwick, sempre que eles vêm, Kahsmin se passa por um dos generaisD’arlit. Ele fica com os D’arlit de verdade o tempo todo, mostrando a cidadee as pessoas, para agradar a Neri e os outros.”

“Como foi aniversário do rei Allenwick ontem, Kahsmin pediu pragente fazer uma apresentação em homenagem a ele. Tem que ficar pronta emcinco dias. A gente tá aqui preparando tudo.” Kris explicou e os outros trêsassentiram, concordando com tudo que ela falou.“Não gostei da ideia.” Wendy comentou.“Nem eu.” Kris murmurou.“Tampouco apetece minha pessoa.” Edgar comentou de uma escrivaninha.“Me vi forçado a perverter um de meus egrégios trabalhos, um de capricho

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indubitável, e adequá-lo ao gosto filisteu desses brutos, entretanto, nãohaveria de haver tempo remanescente para os preparativos caso eu decidisseque o ideal viesse a ser criar uma peça a partir da estaca zero. Um dilemainoportuno.”Wendy olhou estranho para ele e disse: “Uma vez eu li um livro que falavaigual você.”“Creio eu que tenha sido um deleite.”“Foi bem chato na verdade.” Wendy disse no mesmo tom sarcástico queChristina usava em algumas de suas brincadeiras não tão doces.Ela não pode deixar de sorrir ao perceber que, mesmo um ano depois de seseparar da amiga, ainda havia vestígios de sua convivência em suapersonalidade.“Bem eu... desculpe-me.” Edgar pediu como se realmente se sentisseculpado. No mesmo instante, Wendy se arrependeu de ter feito o comentárioe percebeu que talvez aquele não fosse o melhor vestígio da convivência delacom a Chris.“Wendy, eu vou falar com ele mais tarde, agora bora lá pra cima.” Kristellchamou, e ela foi sem objeção.Aquele era sem dúvida o quarto mais demais, no sentido chique e refinado dapalavra, em que ela já estivera, com direito à uma cama de casal comabajures, que pareciam estar acesos com uma espécie de fogo mágico, deambos os lados e o que realmente havia chamado a atenção de Wendy:LIVROS. EM TODA. PARTE.Ela correu para pegar um, mas seu entusiasmo sumiu antes que pudesse ler otítulo.“Eu ofendi muito o Edgar?” Wendy perguntou.“Ah Wendy, não liga pra isso agora, eu já disse que vou falar com ele. OEdgar é lindo, mas também é inseguro pacas. Ele fica assim quandocomentam o jeito que ele fala, sabe? Fica se sentindo muito diferente de genteigual a gente, que fala mais normal e errado, mas ele tá bem sim, relaxa.”Kristell disse com um sorriso caridoso.“Se eu soubesse, não teria dito nada.”“Fica de boa que logo mais ele esquece, ou você pode pedir desculpas pra elequando encontrar com ele de novo.” Kris disse, e de repente, seu sorrisosumiu e sua voz ficou séria e inquisitória. “Agora, me fala, como achou oFawkes?”Wendy contou sobre a noite que viu ele fazendo bolas de fogo, abrindo

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rombos na parede, conversando com ela e dizendo coisas legais como “nãome encontre, eu te encontro”.“Olha, legal que vocês ficaram amigos, mas fica longe dele.” Kristell avisoucom preocupação genuína nos olhos.“Por quê?”“Porque ele é mal, egoísta, estúpido, se acha pacas, não tem tato nenhum,não–”“Ele é seu ex-namorado.” Wendy interrompeu, seguindo sua sabedoriaadolescente.“Detalhes. Ele é passado, eu vivo do presente.” Ela disse com voz dignada.“E Wendy, eu adoro você, eu tô mó feliz porque você tá aqui comigo depoisde quatro anos e,” ela começou a abraçar Wendy de novo, “você é linda einocente e eu não quero que se envolva com ele. Ele vai te usar e jogar foraigual chiclete mascado. Você não merece passar por isso.” Kristell emendou,olhando Wendy com aqueles olhos caramelo suplicantes.“Qual é, não pode ser tão ruim assim.”‘Meu, você não tem noção, se você se envolve com ele, ele te usa até ficarafim de te trocar por outra. Ele é o maior canalha. Você não precisa disso nasua vida.” Kris disse com um nojo na voz que a deixava desagradavelmenteparecida com a Dana. “Promete que não vai se envolver com ele? Por favor?Por mim?” Ela pediu olhando com olhos do gato do Shrek pra Wendy.“O que você quer dizer com envolver?”“Já viu Allan e a Victoria?” Kristell perguntou, respondendo à pergunta deWendy.“De onde você tirou que eu iria me envolver desse jeito com ele?”“Apenas me prometa.” Kristell pediu.

“Tá, eu prometo.” Wendy respondeu sem pensar: estava maisinteressada na cama que na opinião impregnada de “raiva de ex” de Kristell.

Além de tudo, ela nem tinha interesse em se envolver com o Fawkes.Só queria sair por aí e se aventurar neste mundo. Ele foi o primeiro (e únicoaté então) a se candidatar para fazer isso com ela. Em momento algum eledeu sinal de interesse por ela.Exceto quando perguntou se tinha rolado algo com o Tupã.E quando tentou impressioná-la falando sobre as luzes da cidade.E quando disse que iria encontrá-la de novo.Okay, ele deu vários sinais de interesse.“Você parece cansada.” Kristell comentou, depois que Wendy deu um bocejo

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longo e pesado.“É eu sei, e eu preciso dormir.”“Ótimo! A gente vai dormir aqui, se você não se importar. Geralmente agente arranja um quarto pra cada um aqui no Ed, mas como a trupe tá quasetoda aqui, não sobrou nenhum quarto, aí eu disse que dividia esse com vocênuma boa, você liga?” Kristell disse com o mais largo dos sorrisos.“Não! Eu acho ótimo.” Wendy confessou, ela ainda não se sentia pronta paradormir sozinha, e não se sentiria até parar de ter esses pesadelos com Ally.“Por que tem tanta gente dormindo aqui?”“Pra não perder tempo! A gente tem que terminar o roteiro da apresentação emarcar os ensaios, e eu que ajudo o Edgar a fazer os dois! Quando os ensaioscomeçarem, você vai ver essa casa mais lotada ainda de gente dormindo emtodos os cantos, o tempo que eles perderiam indo e vindo pra cá é preciosodemais para ser perdido.” Kristell explicou, acrescentando um toquedramático na sua voz na sua última frase que fez Wendy rir.

“Bem melhor que ter que subir as escadas até lá em cima.” Wendydisse ainda rindo.

“Concordo, e você pode tomar banho naquele banheiro ali e usar umdesses pijamas.” ela disse, abrindo uma gaveta cheia de camisolas e pijamas.“Por que o Edgar tem pijamas de mulher?”“Eu é... boa pergunta, se pá é parte do figurino de alguma coisa que eleescreveu. Você pode usar qualquer um.”Wendy escolheu um pijama verde. Tomou um banho curto e quente, sem seimportar em tentar descobrir como havia água quente, mas nenhum sinal deeletricidade em Tuonela. Com certeza haveria alguma explicação lógica ecomplicada para isso.Quando voltou pro quarto, estava pulando de alegria por estar limpa echeirosa pela primeira vez em... na verdade não fazia muito tempo desde aúltima vez que esteve limpa e cheirosa.Kristell e Edgar entraram no quarto quase no mesmo instante.“UAU, Wendy, você fica um arraso de verde.” Ela disse, e Wendy imaginouse a Victoria também tinha que ouvir esses elogios da amiga.“Oi Kris, oi Edgar, obrigada por me deixar ficar aqui essa noite, e desculpapelo que eu falei lá embaixo, não era pra ofender nem nada.”“Tudo bem.” Ele disse erguendo os braços.“Ah, Wendy, eu vou ter que terminar as coisas com os rapazes, você liga seeu demorar um pouco para vir dormir?”

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“Claro que não, Kris.” Ela mentiu, ficar sozinha de noite não ia ser legal.Enquanto elas conversavam, Edgar fuçou no meio de seus livros atéencontrar um em especial, com a capa preta, grosso, do jeito que Wendygostava de ler.“Achou, Ed?” Kristell perguntou.“Achei.”“Ótimo, bora lá pra baixo. Wendy, mais tarde eu volto, prometo, tá bom?”Ela disse.Wendy acenou para a amiga até ver seus cachinhos dourados de líder detorcida saírem pela porta.Sozinha naquele quarto, Wendy, ouvindo o vago ruído de conversa vindo láde baixo, colocou Wanda sobre a cama e guardou a lanterna sobre o criadomudo, queria saber se aqui havia pilhas ou se teria que voltar para seu mundopara conseguir mais.Sob as cobertas, seus olhos se fecharam e, antes que pudesse contar até dois,estava dormindo. Enquanto dormia, sonhava com o orfanato, e com suas trêsamigas.

Nunca se dera conta de como sentia falta daquilo: aquele pedacinhode infância e diversão aprisionado num passado muito ausente no presente.

Por isso amava sonhar: podia ouvir a voz da Christina contando atécem (contar até dez é para os fracos) no salão do Orfanato das Neves,enquanto via Mary se escondendo no quarto da irmã Romena e a Kristell sevestindo de freira, pra poder ficar andando por aí sem a Christina notar.Kristell já era alta aos onze anos, dava pra se passar por uma freira baixinhasem problemas.

Aliás, esconde-esconde sempre dava raiva quando a Kristellparticipava.

Wendy resolveu se esconder no banheiro do segundo andar, semperceber o dia se tornando escuro como as cinzas do tempo, mas totalmenteciente do riso de uma garotinha de dez anos ecoando no seu ouvido, juntocom um olhar avermelhado refletido no espelho do banheiro.

Wendy abriu os olhos suando frio: não sabia quanto tempo tinhadormido, mas não haviam mais vozes vindas lá de baixo.Antes que pudesse fazer algo, a porta do quarto se abriu.“Kris.” Ela tentou chamar, mas sua rouquidão impediu sua voz de sair.“Shh. Não acorda ela.” Kristell pediu.“Como queira, todavia, me pego em cisma constante: de fato crê que esta

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venha a ser a melhor forma de intervir?”“Claro que sim. Você não?”Wendy não ouviu Edgar respondendo, mas teve certeza que ele concordou.“Ótimo. Os D’arlit nunca vão esperar um ataque no final do segundo ato.”Kristell disse num tom sombrio que, dessa vez, realmente combinou com ela.

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Capítulo 12

“Wendy, sua linda, levanta.” Kristell disse com uma alegria que Wendynunca conseguiria imitar no começo da manhã.“Não posso.” Ela respondeu com voz de zumbi.“Por que não?”“Eu tô com dysania.”“Você leu o dicionário antes de dormir de novo?” Kristell perguntou, parandode se trocar no instante que ouviu aquilo.“Dysania é quando a cama suga a alma de quem dorme nela: eu e essecolchão somos um agora.” Wendy murmurou, soando um pouco menos comouma criatura cavernosa nesta manhã.“... você fica muito fofa quando inventa essas doideiras.” Kristell sussurrouno ouvido dela e...TickUm jato de luz branca infernal penetrou os olhos da Wendy como umaespada penetra um pedaço de madeira. Era como se o diabo quisesse castigá-la por todo o mau que fizera em vida. Um diabo maníaco, sádico e cruel,igual as piadas que a irmã Romena contava para o prefeito sobre as meninasdo Orfanato.“Apaga essa desgraça!” Wendy esbravejou e cobriu o rosto com otravesseiro.Kristell fez um barulho de reprovação com a boca e tirou Wendy de baixo dotravesseiro com a delicadeza de um lutador de sumo. Pelo menos ela teve otato de apagar a lanterna.“Tem mó galera lá embaixo. Se veste bem, tem uns caras bem gatos lá.” Kriscomentou.“E parece que eu me importo com isso?!” Wendy disse, apontando para seurosto remelento, cheio de olheiras de uma noite mal dormida. Isso, somadocom sua voz de buldogue a fizeram parecer uma professora no final do ano.Nota ao leitor: Se seus professores não ficam roucos e sem dormir no final doano, eles estão errados.“Wendy, sua fofa, caras são o motivo para garotas se arrumarem e ficaremlindas.” Kristell disse, parecendo a Glinda do Mágico de Oz.“Não, medo do que outras garotas pensam são o motivo de garotas tentarem

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ser lindas.” Wendy não chegou a dizer isso, iria ofender Kristell e isso nãoera o que ela queria. O que realmente disse foi. “Eu sou tipo a BelaAdormecida, eles que venham até mim, enquanto eu durmo.”Kristell fez uma cara de “que que cê tá falando véi?!” e Wendyimediatamente percebeu o quão errado o que ela tinha acabado de dizer soara.Com a destreza e agilidade de uma múmia, ela se levantou e foi pegar suasroupas, quando percebeu que...

“Minhas roupas estão lá em cima.” Não que trazê-las para baixo fossemudar algo, pois as únicas roupas que tinha eram um uniforme do Orfanatodas Neves, duas roupas usadas que a irmã Sarah conseguiu para ela e ovestido que havia costurado para o Baile de Inverno.

“Relaxa, você tá na casa dos artistas, não falta roupa aqui.”Kristell revirou as gavetas de Edgar e arrumou uma camisa branca

fosca, dessas que deixam um ombro amostra, junto com uma saia feita à mãopor alguma costureira muito talentosa. Pelo visto, pijamas não eram as únicasroupas femininas escondidas na casa de Edgar.

Tentando ignorar o quanto aquelas roupas a faziam se parecer comsua amiga, Wendy lavou o rosto e ficou se olhando no espelho: se sentia maisvelha que a irmã Clara (que devia ter mais de oito mil anos) com aquelescírculos escuros nos olhos.

Não tinha dormido bem, de novo.Ally, maldita pirralha invadidora de sonhos.Wendy precisava falar com alguém, Kahsmin, talvez ele soubesse o

que fazer para dar um fim naqueles sonhos caóticos. Ou Tupã, ele queriaajudar ontem.

Wendy enxugou o rosto e, pelo espelho, viu o reflexo da Kristell,ainda dentro do quarto. A memória veio como uma indigestão dentro dapiscina.

Kristell e Edgar estavam planejando um ataque no final do segundoato.

Aquela mesma Kristell, sorridente, que diz que tudo e todos sãolindos e abraçaria até um cacto se resolvesse que ele é fofo.Algo cheirava mal nessa história, e não era só o hálito matinal de Wendy,nem o par de meias jogado sobre a pia do banheiro, embora esses doistambém estivessem bem tensos.O ponto era: a Kristell que Wendy conhecera era dócil demais para planejarum ataque, mesmo contra pessoas que mereciam ser atacadas. Será que

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quatro anos em Tuonela a fizeram mudar tanto assim? E por mais que aprópria Wendy quisesse atacar os D’arlit com todas as suas forças, o fato deque Kris tinha que planejar isso aos cochichos com Edgar à incomodava umpouco.“Tá pronta?” Kristell perguntou.“Tô sim!” Wendy se assustou e esbarrou em um monte das coisas sobre a pia.“Amiga, você continua um desastre.” Kristell disse rindo, e por apenas umsegundo, teve certeza de que imaginou o que ouvira na noite passada.

“Wendy, esses são Marco, Elizeu, Mano Pamonha...” Kristell estava tentandoapresentar todo mundo para Wendy, mas qualquer coisa que ela disse depoisde “Mano Pamonha” era irrelevante e se perdeu no meio do ataque de risohistérico da Wendy.“... desculpa, mas porque chamam você assim?” Ela perguntou pro rapaz,embora a resposta estivesse óbvia: ele quase era uma pamonha, com aquelecabelo loiro escorrido saindo debaixo do boné e seu corpo rechonchudo.Logo Wendy o reconheceu como o cara estranho que havia chamado Kristellontem.“Eu não sei.” Ele respondeu feito uma pamonha.“O que essa galera toda tá fazendo aqui?” Wendy perguntou, se afastando umpouco deles com Kristell.“Ensaiando, a gente quase não dormiu pra fazer todo mundo chegar aqui hátempo, e agora essa galera vai morar aqui até a gente acabar.” Quase nãodormiu, mesmo assim o rosto dela parecia super descansado, que tipo demagia negra era aquela? “A gente só tem quatro dias pra fazer a apresentaçãopros D’arlit!”“E como vocês vão fazer tudo em tempo? Magia? Elfos? Elfos Mágicos?”“Melhor. TRUPE, COMO SE FAZ MUITO TRABALHO EM POUCOTEMPO?” Kristell gritou.“CAFÉ!” Todos responderam, erguendo suas xícaras de café, cada umapersonalizada para parecer um pouco com o próprio dono. Desnecessáriodizer que, no instante em que Wendy as viu, ela quis uma para ela, mesmoque odiasse café.“Café!” Mano Pamonha respondeu uns três segundos depois dos outros.

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“É sempre assim.” Kristell disse sorrindo, e Wendy se lembrou de quando elae Christina resolveram tomar café para ficar acordadas a noite toda. Foi a piorideia de todas as ideias ruins que elas já tiveram.Falando em “piores ideias de todas”, Wendy lembrou de um certo “ataque”na peça.“Sobre a apresentação, eu queria perguntar–”“Amiga, você não tinha que ver o Caleb hoje cedo?” Kristell interrompeu,deixando sua própria xícara de lado.Os olhos da Wendy se arregalaram como se tivessem alargadores.“Que horas são?!” Wendy perguntou afobada.“Seis, eu acho, dá tempo de você tomar café da manhã. Eu sei que é a suarefeição favorita.” Kristell disse piscando um olho e apontando a mesa, ondeumas garotas, Victoria Verde Neon inclusa, estavam comendo.Aquele lugar parecia um hotel: a mesa era apenas onde a comida estava, nãoonde ela era comida: em porcelana fina, azul e branca, eram servidastorradas, manteiga, pães de mel, biscoitos (não dinamarqueses), leite...

Wendy odiava leite: era branco, inconsistente, ardiloso e dava ânsiasó de pensar em colocar aquilo na boca (e também foi um dos apelidos peloqual Dana a chamou durante a maior parte da sua vida, até descobrir quequestionar sua sanidade mental era muito mais efetivo).Enquanto comia, Wendy não conseguia não se distrair com a quantidadeabsurda de gente ali dentro: uns estavam cortando e desenhando cenários,outros costurando roupas, fazendo armas falsas. Kahsmin não estavabrincando quando disse que todo mundo em Tuonela aprendia a dominar umaarte, seja qual fosse.Depois de quase engasgar com um pão de mel, ela começou a reparar nessaspessoas, quem estava em que grupo de amigos, quem falava com quem, essetipo de coisa que pessoas solitárias acostumadas a não se socializaremaprendem a fazer com o tempo.Allan e Edgar chamaram sua atenção primeiro: enquanto Edgar pareciaafogado em um mundo só dele, escrevendo, Allan estava ali do lado,conversando, dizendo como as coisas deveriam ser feitas e, ao mesmo tempo,escrevendo também, mas totalmente presente naquela sala.Wendy já estava quase desviando o olhar deles, quando viu: um gestoinconsciente e simultâneo entre os dois, uma daquelas coisas tão pequenasque eram fáceis de passar despercebidas, mas não para ela: Edgar e Allan nãoestavam confortáveis trabalhando lado a lado.

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Curioso.Encostado em uma das paredes, havia um rapaz, Kris disse que ele sechamava Marco mais cedo: quieto, com roupas escuras e uma toca preta poronde seu cabelo castanho, muito mais bem cuidado que o de Mano Pamonha,escorria.Marco estava tentando ser invisível, Wendy sabia, ela já tinha tentado issodurante uma fase bem curta da sua vida: usava aquela toca e o livro comoescudos, roía as unhas, estava ansioso, mas não sabia porque. Wendy queriair falar com ele.“Não perca seu tempo.” Disse uma garota com voz abafada ao seu lado.“Quê?”“É inútil sentir pena do Marco.” Victoria Cabelo-Neon disse.“Ah, oi, eu–”“Eu não odeio você.” Victoria a interrompeu, “mas não quero você perto doque é meu.” Disse olhando para o Allan, que foi trocar uma palavra com aKristell.Wendy não disse nada, só limitou a detestar o tom arrogante que a meninausava.“Ótimo, podemos ser colegas. Eu sou Victoria Vihreä, você é Wendy o quê?”Ela perguntou calma em seu tom de contralto, com um leve sotaque queWendy não conseguia identificar.“Eu não sei meu sobrenome.”“Não perde muita coisa, espero que você seja melhor que sua amiga ali.”“A Kris? Por quê?” Wendy perguntou, imaginando que Victoria tivesse medode Kris roubar seu namorado.“Olha pra ela, o jeito que ela trata o Edgar, é tão falso.” Victória disse comnojo na voz.“Você... como assim?”Pela primeira vez, a menina olhou Wendy nos olhos, e ela se sobressaltou aover que os olhos da Victoria tinham a mesma cor que os seus.“Sua amiga ali é uma interesseira. Ela não gosta do Edgar. Só finge que gostapra conseguir papéis importantes nas peças e ser vista na cidade inteira.Espero que você seja melhor que isso.” Com isso, Victoria saiu da mesa“Seria inteligente não mencionar essa conversa com ela.” E foi para o lado doAllan, onde parecia quase feliz.Wendy, estranhando demais a conversa totalmente aleatória e impregnada deódio gratuito que tivera com Victoria, terminou de comer sem engasgar-se

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nenhuma vez. Seus olhos iam o tempo todo de Kristell para Edgar e depoispara Victoria.Não conseguia acreditar que Kris fosse falsa, mas também achava difícilacreditar que ela realmente gostasse do Edgar: eles simplesmente nãocombinavam, não tinha nenhuma química ali.Por outro lado, era bem esquisito que a cabeça de rabanete tivesse sentadobem do lado dela só para falar que Kristell era falsa.Anos de séries ruins indicavam que havia algo errado aí.Wendy se despediu de Kris e recusou a oferta da amiga para guiá-la até lá emcima, dizendo que ela era mais importante aqui em baixo que lá em cima.O que era verdade.O resultado foi Wendy perdida por quase uma hora na cidade subterrânea,procurando o caminho até a saída. Teria sido mais fácil se as pessoas comquem topou na rua soubessem indicar o caminho. Também teria sido maisfácil se Wendy tivesse perguntado pra elas em primeiro lugar, mas sabe comoé, né?Finalmente, chegou naquele muro que Kristell abriu com código Morse nodia anterior, estava prestes a fazer o mesmo, quando...“Vai pra cima?” Capitão e Terror perguntaram, aparecendo do nada no chão equase matando Wendy de susto.“Sim.”“Nós não.” Eles disseram, entraram embaixo da terra e sumiram.“Sério que vocês fizeram–” duas mãos a agarraram pelos tornozelos e alevaram para baixo da terra.Ótimo, viagem underground surpresa, logo depois do café da manhã, tudoque ela precisava.Pelo menos acabou antes do que ela esperava: ela foi parar na praia, perto dopíer, com o pescador Winslow e seu frango de borracha da morte.“Vocês vão morrer se me avisarem antes de me arrastarem pra baixo daterra?” Ela perguntou, esfregando a cabeça com a ponta dos dedos.Mas ela estava sozinha: Capitão e Terror já haviam voltado para baixo daterra.“... estranho.” Wendy murmurou para si mesma.Talvez Fawkes tivesse mandado os dois ficarem de olho nela, seria bem acara dele.

Enquanto caminhava até o farol, Wendy se pegou rindo sozinha,lembrando de uma fantasia que teve fazia alguns anos: Na fantasia, ela era

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Arya, a elfa dos livros do Eragon, e usava uma armadura feita com cascas deárvores. Seria uma elfa justa e que gosta de acabar com o sofrimento daquelesque sofrem.“Acabar com o sofrimento daqueles que sofrem”, ela merecia um Pulitzer porcausa dessa frase, sério.

Era difícil não comparar aquela lembrança com o que estavaacontecendo agora.Não que acreditasse que um dia fosse atirar melhor que Caleb, mas sua menteestava se divertindo, entretendo ideias de como ela poderia salvá-lo emsituações de quase morte usando o arco e flecha, deixando-o impressionado eeternamente grato.É, ia ser legal...Um zunido quente passou bem ao lado da sua orelha, tão agudo e tão pertoque todo o seu corpo ficou arrepiado com o barulho, arrancando-a de seusdevaneios à força bruta.“Está atrasada.” Caleb disse, apontando para o sol nascente. “Atençãoconstante é a primeira regra de um arqueiro.” ele continuou. Estava paradoem frente ao farol, com um arco e flecha de madeira apontado na direção deWendy.“VOCÊ ATIROU EM MIM!” ela gritou rouca e indignada.“Eu não ia acertar você.’ ele disse confiante. “Pegue a flecha e venha.” dissevirando de costas para a garota.“Mas a flecha tá muito longe!”Caleb suspirou e, sem olhar para ela, ele ergueu uma mão. Wendy sentiu umarajada de vento e a flecha passou zunindo, de novo, bem do lado da suacabeça, até parar na mão dele.

Exibido.O sol estava baixo sobre o mar, como um imenso olho laranja, igual os que oFawkes deveria ter, observando os pássaros cantando, os peixes nadando, acidade acordando, a praia... praiando, e uma menina, que sonha em atirarcomo uma elfa, apanhando para segurar o arco enquanto um cara desobretudo observava tudo.Caleb havia montado vários alvos sobre a praia, e agora ele estava ensinandoWendy, pela quarta vez, como segurar o arco sem deixar a flecha escorregar.

Dizer que ela estava tendo problemas era um eufemismo.“Você é destra, não é?”“Não.” Wendy respondeu.

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Caleb então a instruiu a segurar o arco com a mão direita, ao invés daesquerda. Wendy fez a troca e, sem querer, atirou uma flecha que caiu no mare sumiu na correnteza.Wendy e Caleb se entreolharam, ela riu sem graça e ele disse: “Foi seumelhor tiro até agora.”Também havia sido seu único tiro até agora.Nenhum deles notou o peixe morto com uma flecha transpassada boiando naágua.“Kahsmin não dormiu a noite toda.” Caleb comentou enquanto Wendytentava não derrubar a flecha no pé.“Nem eu.” ela disse, deixando o arco cair no seu pé. Para sua não tão grandesurpresa, arcos eram muito mais pesados que flechas.“Você tem que segurar assim.” Caleb se abaixou do lado dela e colocou asmãos dela, um pouco à baixo do ponto onde a flecha ficaria.

Contra sua vontade, as fantasias de que Wendy era Arya e salvavaCaleb de um perigo mortal voltaram à sua cabeça.“E você segura a flecha entre o anelar e o...” ela até podia ver como ele aabraçaria depois que ela o salvasse, seria igual nos livros: ela, a elfa arqueiraque não envelhecia e ele o seu...“...Wendy?”“QUÊ?! Que foi? Que aconteceu? Eu matei alguém?” Ela perguntousubitamente alerta.“Você estava deitando no meu ombro.”Wendy olhou para ele desconcertada: não percebera que tinha feito isso e,agora que pensou no assunto, não tinha arrependimento algum também.“Eu disse que eu não dormi nada essa noite.”Wendy explicou sobre como continuava tendo sonhos com a princesa do caossempre que fechava os olhos para dormir.“Você deveria falar com o Kahsmin sobre isso, ele vai te dizer como chegarao Velho Sábio, que vai poder te ajudar de verdade.”“Tupã me falou desse Velho Sábio ontem, aliás, por que Kahsmin nãodormiu?” ela disse enquanto esticava a flecha no arco.“Bem, ele recebeu notícias de que–”“AAAAÍ!” Wendy disse, e xingou todos os palavrões que aprendeu com airmã Romena, quando deixou a corda do arco levar uma lasca da sua unha.“ISSO. DÓI. Desculpa, continua.”Mas Caleb já tinha tirado um pano de dentro de seu sobretudo para limpar o

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corte e aliviar um pouco a dor. Só quando ela parou de gemer foi que elecontinuou.“Os D’arlit atacaram ontem.”“Aqui?! Mas ninguém disse nada.”“Eles atacaram a cidade de Jussarö. Fica longe daqui, para o leste.” Calebapressou-se em corrigir ‘Eles têm atacado cidades assim há mais de dez anos,mas o que fizeram dessa vez...’ Caleb desviou o olhar na direção do mar,“chega a ser perturbador.”“O que eles fizeram?”Caleb andou distraído entre os alvos, recolhendo as flechas que Wendy tinhaatirado.“Eu espero que esteja errado, embora eu duvide da possibilidade: os relatosque Kahsmin recebeu, eles dizem que a cidade não existe mais.”Wendy não sentiu aquelas palavras, pareciam abstratas e sem sentido: comouma cidade podia deixar de existir? Mesmo Tuonela, que pelo que entendia,havia sido atacada por um exército, ainda estava quase toda em pé excetopela periferia da cidade.“Ao que tudo indica, não houveram sobreviventes.”“Nenhum?”Caleb fez que não com a cabeça. O vento soprou mais forte e mais alto quetodos os sons na praia naquele instante.“Se ninguém sobreviveu, quem fez os relatos?” Wendy perguntou.“Autumn.” Caleb respondeu, e antes que Wendy pudesse perguntar “como?”ele completou a frase. “Autumn tem um talento raro que a permite conversarcom pássaros, alguns dos pássaros dela, papagaios do mar, mergulhões,dentre outros, sobrevoaram antes e depois do ataque, daí que vieram osrelatos. Não sobrou nada de Jussarö.”Wendy arregalou os olhos: ela queria falar com pássaros também!“Mas não é isso que realmente me perturba.” Caleb continuou.“O que é então?” perguntou Wendy, sem saber se realmente queria saber.“Jussarö tinha alguns guerreiros incríveis, Jim Nightshade, W. Halloway,vários, eu conheci eles. Eram capazes de coisas que ninguém em Tuonelaconseguia quando foi atacada. Era verdade que não eram o bastante paraenfrentar o exército dos D’arlit, mas este é o problema.” Embora Calebestivesse usando aquela voz que Wendy adorava, não estava gostando dodestino dessa história.“O quê?! O que é o problema?!”

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Caleb finalmente voltou a olhar Wendy, seus olhos cinzas mergulhados ememoções que ela podia apenas sonhar em compreender.“Eles não enfrentaram um exército. A destruição de Jussarö, ela foi obra deuma única pessoa.”Wendy sentiu os pelos atrás da nuca se arrepiarem com aquela notícia.“A Harbinger da Morte fez tudo sozinha.” ele disse, deixando as flechas querecolheu caírem perto de Wendy.“Mas como?” Ela perguntou, admitia que não sabia nada desse mundoestranho onde estava, mas nunca imaginou que poderia haver alguém comtanto poder.E a ideia a fez tremer.“Eu não sei. Não sabemos se é verdade.” Caleb disse se sentando perto daWendy. “Kahsmin e Autumn vão para Jussarö amanhã para tentar descobrir oque aconteceu.”O silêncio, quebrado apenas pelas ondas se quebrando e pelos mergulhões ealbatrozes passando por ali, lavrou-se entre os dois.E foi Caleb quem o quebrou:“Você não vai sair daqui até acertar pelo menos três flechas seguidas perto doalvo.”

O meio-dia veio e foi num piscar de olhos: o sol não era tão quente por aqui,mas Wendy estava suando mais que a irmã Romena no verão.Queria dizer que a aula tinha sido produtiva, mas deixar o pé achatado detanto deixar o arco cair nele; perder um pedaço da unha; quase acertar umapessoa por acidente (teria acertado, Caleb e seu reflexo monstruoso fizeramaquele truque que ele faz com o vento para desviar a flecha); e, pior de tudo,perder o almoço, não eram exatamente a definição de “aula produtiva” queela tinha.Odiava admitir, mas estava muito longe da sua fantasia de ser Arya, a elfaarqueira. Talvez ela devesse ser a donzela indefesa a ser salva no fim dascontas, apesar de detestar essa ideia.Quando chegou perto da catedral, lembrou que suas roupas ainda estavam láem cima, e que talvez devesse ir até lá e pegar suas coisas.Por sorte, quando chegou no quarto, encontrou Kristell, que disse ter levado

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todas as coisas dela para a casa do Edgar.“Eu subi até aqui atoa?” Wendy perguntou, e as duas riram enquanto iampara a taverna.Almoçaram caladas: Wendy estava com uma fome voraz que só dezesseisanos de comida ruim e escassa no Orfanato das Neves poderiam explicar,enquanto a Kris... ela parecia bem, mas sob efeito de vinte xícaras de café.“Como foi a aula com... ele?”“Legal.”“Conseguiu acertar as três flechas no alvo?” Kristell perguntou terminando oprato.Wendy considerou mentir, mas estava com sono demais para soarconvincente.“Não, a gente parou porque eu já tinha jogado quase todas as flechas dele nomar.”Quando ambas saíram da Taverna do Fim dos Tempos, Kristell disse:“Amiga, enquanto eu levava suas roupas pra casa do Edgar, eu vi que... sabe,sem ofensas nem nada, mas você precisa de umas novas, vem comigo que eumostro o MELHOR lugar de TODOS pra resolver esse problema.” A ênfasede Kristell a deixava MUITO parecida com as patricinhas dos filmes queassistia quando era mais nova.“Você não tem que ensaiar?”“Wendy, sua fofa, você é mil e três vezes mais importante que uma peça feitapra um bando de (insira um palavrão aqui), e eu ajudei a fazer o roteiro, já seitodas as minhas falas.”“Parece com o que Victoria avisou que Kristell faria.” a mente de Wendycompletou, embora ela tentasse se livrar da ideia.

Uma parte dela queria fugir: nunca se sentiu confortável escolhendoroupas, mas não podia recusar uma oferta da amiga.“Tá bom.”Kristell deu um berro e um salto de alegria e puxou Wendy consigo pelacidade.Ela não tinha mentido: Tuonela podia ser uma cidade escondida sob a terra,mas a comida e as lojas eram fantásticas aqui.

Empório da Tentação era o nome do lugar onde as duas foram parar,onde a mente de Wendy só conseguiu alimentar um único pensamento: Medodo tipo de roupa que eles deveriam vender.Kris fez o trabalho das atendentes e pegou as roupas que pareciam combinar

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mais com Wendy.E não, não havia nada para ter medo nessas roupas, elas eram normais.Enquanto experimentava uma roupa branca lisa que a amiga encontrara,Wendy comentou: “Então, você e o Edgar têm alguma coisa?”“Ele é meu marido, só não sabe disso ainda.” ela respondeu alegre.“Entendi.”Kristell colocou várias roupas, uma mais chamativa que a outra, comestampas de caveiras e corujas, na frente da Wendy.“Ei, Wendy.”“Que é?”“O que a Victoria te disse na mesa enquanto vocês tomavam café da manhã?”Se Wendy não conhecesse Kristell, não teria percebido a inflexão sinistra navoz alegre da amiga. Mas percebeu, e isso a perturbou de verdade.“Nada! Ela só... me mandou ficar longe do Allan.”Kristell parou o que estava fazendo e, num movimento mais rápido do queparecia possível, ficou cara a cara com Wendy.“E foi só isso que ela disse, Wendy?” Os olhos de Kris perfuravam os seusenquanto o hálito de café invadia suas narinas, congelando a resposta e ospensamentos da Wendy por um momento ou outro.“Ela disse para eu não sentir pena do Marco e quis saber o meu sobrenome.”Wendy sentiu a amiga estudando-a.“Tudo bem.” ela disse por fim, se afastando. “Só quero que me diga caso elainventar alguma coisa sobre mim.”“E por que ela faria isso?” Wendy perguntou, querendo genuinamente saircorrendo dali, odiava estar envolvida nessas teias de segredos: em todos oslivros, alguém acabava morrendo por causa dessas coisas.“Ela tem inveja de mim, e tenta destruir tudo que é meu: relacionamentos,amizades. Não importa o que ouvir, não acredite, eu sou sua amiga, e adoro oEdgar.” Kristell disse abraçando a amiga com força, mas Wendy não sentiu oaperto esmagador dessa vez.“Tudo bem.” Wendy disse convincente, e na sua ansiedade para mudar deassunto, acrescentou. “Caleb disse que uma cidade inteira foi–”“Jussarö, destruída pela Harbinger da Morte, sem ajuda: todo mundo jásabe.” Kristell disse colocando mais uma pilha de roupas do lado de Wendy.O humor dela não tava muito normal hoje. Talvez estivesse naquela época domês.

Coisa de mulher.

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“Por que os D’arlit fizeram isso?”“Porque eles podem. Olha essa saia!” Disse Kris erguendo uma saiacomprida o bastante para chegar no joelho da Wendy.Era tão bonita que Wendy quase não percebeu...“Você tá bem?”“Por quê? Você não gostou? Tá todo mundo usando e–”“Suas mãos.” ela disse apontando para as garras tremulas segurando a saia.Kristell ficou muda e confusa por um instante. Então a compreensão veio eela suspirou como se tirasse muito peso do corpo de uma só vez: “Medesculpa, eu só... eu detesto eles, detesto o que fizeram com a cidade,comigo, com o que sobrou da minha família.”“Família?”“Esquece. Toma, experimenta essa.” Kris disse passando uma roupa comuma estampa que dizia “mamãe diz que sou especial”.“Você tem família ainda?” Wendy perguntou num ataque de curiosidade.Kristell olhou para Wendy: as duas estavam no provatório, havia uma falaçãosem fim lá fora e Wendy estava empoleirada na amiga, usando o poder dosseus olhos verdes suplicantes para fazê-la falar.“Eu tinha.” ela disse, olhando para baixo.“Como assim?” Wendy disse em um ataque de curiosidade que nãoconseguiria, nem queria, refrear.Kristell deixou o cabelo esconder seu rosto por completo antes de abrir aboca e sussurrar: “Meus pais foram torturados, eles estavam presos junto comum monte de outros mestiços e demônios que se rebelaram contra os D’arlit.”“Os D’arlit os mantinham nas masmorras, sem ver a luz do sol... eu... eu sóos vi uma vez. Minha mãe não me reconheceu, não me ouvia, não entendiaquem eu era... meu pai apenas me mandou fugir antes que eles voltassem.”“Então eles... não tiveram a melhor sorte de todas: alguém disse que meu paitinha bolado um plano pra libertar os prisioneiros, e depois tomar a cidade...os D’arlit descobriram.” a voz de Kristell eram soluços trêmulos e inteligível.Embora seu cabelo escondesse seu rosto, Wendy viu uma lágrima escorrer noqueixo da amiga. Era o bastante para entender o que aconteceu depois.“Eu nunca mais vou vê-los.” Kristell disse por fim, tirando o cabelo da frentedo rosto, sem conseguir disfarçar os olhos vermelhos e úmidos.“Kris, eu sinto muito.” Wendy disse abraçando a amiga, que pela primeiravez na vida, não o retribuiu. O que era pior do que quase morrer sufocada nosbraços dela.

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“Kahsmin disse que vai ajudar a descobrir quem são seus pais, não disse?”“Sim.” Wendy murmurou, ainda esperando Kris retribuir o abraço.“Eu não perderia tempo se fosse você, Wendy.” Kristell disse, com uma vozoca e sem emoção que a tornava quase irreconhecível.“Kris, como assim? Eu preciso saber quem eles são, se eles ainda estão vivos,isso é só o que importa pra mim.” Ela disse, apertando o abraço.“Você tem esperança de revê-los?” Kris perguntou fria.“Claro que tenho! Kahsmin disse que podia me ajudar e–”“E você gosta dessa esperança?” Kris a cortou como uma faca no zeroabsoluto.“Sim eu...”“Então não os procure.” Kris murmurou. “É mais fácil ter esperança quandovocê não sabe a verdade.”Kristell finalmente retribuiu o abraço, mas agora era Wendy quem não sentiamais nada, pois ela entendera exatamente o que Kristell quis dizer.E se seus pais realmente estivessem mortos, e se eles não a reconhecessemmais? Qual das duas opções seria de fato a pior? Ela não sabia responder.Um barulho alto no provador fez Wendy e Kris soltarem o abraço. Por fim asduas saíram com as roupas estampadas em corujas e lhamas, e Kristell fezquestão de que Wendy levasse um chapéu branco com uma faixa preta feitopor uma amiga.“Queria que meu rosto fosse bonito igual o seu pra poder usar chapéus.” Krisdisse.Quando as duas saíram da loja já eram quase quatro horas.“Você vai voltar pra ver os ensaios?” Kris quis saber.“Depois, eu preciso falar com o Kahsmin antes. Sobre meus problemas pradormir.” disse Wendy, dessa vez, era ela quem tinha problemas em colocarqualquer emoção na voz.“Tudo bem, aparece lá depois.” Kristell disse com um daqueles abraços mataleão dela.

Logo, a amiga havia sumido nas ruelas da cidade, entre tantas casas,tantas pessoas, tantos demônios... que no fim das contas, também eram sópessoas.

E nenhuma dessas pessoas sabia o quanto Kristell havia acabado deesmagar suas esperanças.

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“Oi moço, posso falar com a bobalhona da filha do rei?” A Harbinger ouviuAlly falando atrás da sua porta, e antes que perdesse mais um guarda,ordenou:“Deixe-a entrar.”Sua cabeça parecia prestas a explodir, e suas garras não paravam de doerdesde a noite passada.“Obrigada, você não é tão boboca assim.” Ally disse alegre e sorridente,saltitando pelo quarto como um grilo infernal e barulhento.

“Ah por que era tudo tão barulhento?” ela se perguntava em um tomingrato de voz.“O que você quer?” A Harbinger perguntou, sua voz tinha toda a firmeza erespeito que uma princesa pode desejar impor.“Parabenizar você, tonta!” Ally disse, abraçando a Harbinger, que só não feznada porque a lembrança do que aconteceu da última vez ainda estava bemviva na sua mente.“O que você realmente veio fazer?”Ally soltou o abraço, com uma cara emburrada que só uma pirralha diabólicade dez anos conseguiria fazer.“Você me magoa assim.” Ela disse, fazendo o truque de se multiplicar peloquarto, e sentar na mesa de xadrez da Harbinger. “Quero saber se já temalgum plano, agora que você sabe que o Caleb tá vivo, te dar os parabéns porJussarö, sabe, essas coisas que boas amigas contam umas pras outras. Somosboas amigas, não somos?” Ally perguntou, saltando da cadeira para a cama.“Afinal.” continuou Ally, “eu sei seus segredos agora, tudo bem aqui.”Sumindo da mesa de xadrez e reaparecendo na frente da Harbinger de novo.“Eu não tenho um plano ainda.” Ela admitiu, tentando se afastar de Ally.“YAAAY! Vem cá então!” Ela disse, segurando a Harbinger pela mão eapontando para a cadeira. “Eu vou te dar uma ideia muito boa.”A Harbinger desejou que estivesse se sentindo tão poderosa como estavaontem, sob a luz dos relâmpagos... dominando a tempestade e destruindo tudoao seu redor, assim poderia fazer picadinho da– “Viu, eu posso ler sua menteenquanto seguro sua mão, para de querer me matar e senta logo.”A Harbinger levantou uma sobrancelha, mas antes de se perguntar seacreditava na garota, se sentou com ela.“O que você vai fazer daqui quatro dias?” Ally perguntou, fazendo

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malabarismo com o rei, a dama e o bispo do tabuleiro.“Há uma reunião com os planos do que será feito com Jussarö e–”“Desmarque. Você tem novos planos.” Ally disse, acrescentando as duastorres no seu malabarismo.Como ela desejou arrancar a cabeça da garota e a enfincar numa estaca nomomento em que ela disse aquilo. Ninguém dava ordens diretas para ela,tirando seu pai.Ally de repente parou de fazer malabarismo e deixou todas as peças dexadrez caírem. Uma a uma, pareciam cair em câmera lenta, com baques tãoaltos que ameaçavam rachar seu crânio de tanta dor.“Você vai para Tuonela com Neri.” Ally disse, colocando a dama de volta notabuleiro, no lugar do rei.

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Capítulo 13

“Eu estou desapontado, Zacarias.” Allenwick D’arlit disse, circulando o anjoacorrentado no pilar.

A testa de Zacarias sangrava com profundos ferimentos, escondendoo rosto todo numa massa fria mergulhada em tons lavanda escarlate comgosto ferrenho de ferro. Suas asas não respondiam aos seus comandos, nemseus músculos.

“Tem um apontador no meu bolso.” Zacarias respondeu, sentindo seucorpo berrar de dor com o esforço insignificante que fez para falar.

Allenwick segurou a cabeça do anjo e, com a força de um Hércules, aaçoitou contra a pedra sólida da coluna onde Zacarias estava preso: lascas demármore puro voaram da parede e caíram ao redor do anjo que lutava paramanter-se consciente.

Não havia mais dor, e não via mais seu sangue, apesar de ainda sentirseu gosto e cheiro ferroso impregnando seu ser: talvez fosse esta a loucuraque se sentia perante a morte.

A loucura de sentir-se rindo e não ouvir sua voz.“Meu caro.” Allenwick continuou. “Eu o admiro por ainda estar vivo,

e somente por este motivo, serás agraciado com uma chance de permanecerassim.”

Foi o que Zacarias pensou ter ouvido. Ele, porém, se deu permissãopara ficar calado.

“Onde,” continuou Allenwick, “está o anjo Ezequiel?”“Eu... eu não sei.” ele disse, cuspindo uma bola de sangue no chão.

“Ezequiel não é mais um de nós, foi exilado.”“Está mentindo.” Allenwick respondeu polidamente.Foi a primeira vez que Zacarias notou a voz de Allenwick: era grave,

mas suave, sutil como uma lâmina forjada pelas mãos de Kullervo. Tinha ospassos controlados, movimentos perfeitamente calculados e, apesar de osangue que secava em seu rosto não o permitir ver mais que uma silhueta semfeições, o anjo sabia que havia um par de olhos maniacamente calmosesperando uma resposta.

“É uma péssima ideia contar mentiras para mim.” Allenwickcontinuou.

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“Não é mentira.”“Por que ainda o está protegendo?” Allenwick perguntou calmo. “O

último anjo que protegeu o entregou quase morto a mim.”Zacarias estremeceu com a verdade que havia acabado de ser dita.“Eu não vou durar muito.”Allenwick enterrou sua mão grossa no pescoço do anjo, que sentiu a

consciência escorrendo pelos seus dedos.“Eu tenho meios de fazê-lo durar uma eternidade, se necessário. Uma

eternidade de dor e agonia até fazê-lo falar.” Allenwick urrou, soltando opescoço de Zacarias.

“Gostaria de vê-lo tentar.”“Será um prazer.” Allenwick saboreou sua ameaça como se fosse

fogo no frio.Zacarias viu o momento em que o rei dos D’arlit tirou suas luvas,

havia fogo atrás dele, fogo vivo e pulsante, respondendo à cada dedo queAllenwick estalava com labaredas incandescentes explodindo em direção aocéu.

“Foi um prazer tratar negócios com você, Zaca...” uma flechatranspassou seu pulso: ele a encarou com mais surpresa do que dor.

“EZEQUIEL!” Zacarias gritou após vê-lo no alto da torre do castelo.Ezequiel, está foi a última palavra que disse Zacarias. Com único

golpe, Allenwick quebrou seu pescoço, e toda a vida se esvaiu do corpo doanjo.

“PERFEITO!” Kristell gritou da sua cadeira. “AMEI o final do segundo ato.”Wendy bocejou alto, e todo mundo ao redor a imitou (você também, leitor),viu alguns mestiços apagando o fogo, alguém ajudando a desamarrar o rapazque fez papel de Zacarias.Elizeu, que fazia o papel do anjo Ezequiel, estava descendo as escadas atrásdo cenário, com seu arco e flecha falso.

Não sabia quem era o ator de Allenwick, talvez tivessem sidoapresentados, mas ela não lembrava, o importante era que o rapaz foiconvincente o bastante para fazê-la querer acertar a cara dele com ummachado.

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Que ator bom.“Então, esse é o ataque do final do segundo ato?” Wendy perguntou

para Kris.“Sim, Ezequiel tenta salvar Zacarias, mas Allenwick o mata, e assim

se torna imune ao toque dos anjos.” Kris disse, distraída, ajudando os garotosa servirem comida. “Wendy, sua cara tá péssima, quer café?”

Wendy fez que não, tudo que queria era dormir feito uma pedra pordezoito horas seguidas.

Tinha que admitir que estava um pouco surpresa ao descobrir que aamiga não planejava de fato ATACAR os D’arlit no final do segundo ato,mas sim incluir o ataque na peça. Ao que tudo indicava, não era uma tradiçãomuito grande entre os D’arlit retratar o momento exato em que Allenwick setornou imune ao toque dos anjos. Por que não era comum? Excelentepergunta que Wendy se esqueceu de fazer quando teve a chance.

“Como o Allenwick estava tocando Zacarias antes de matar ele?”Perguntou ela.

“As luvas.” Kristell respondeu, apontando para o ator parrudo que fezAllenwick. “Dizem que o anjo que traiu Zacarias, Raziel, entregou essasluvas especiais pro Allenwick, que o permitia tocar em anjos. Depois quematou Zacarias, nunca mais as usou.”

“Entendi.”“Ei, Kristell!” O ator que fez o Zacarias foi correndo até ela. Wendy

não conseguiu deixar de notar que todas as garotas na sala, com exceção daVictoria, estavam olhando para ele e dando risadinhas. “Eu queria pedir umacoisa.”

“Que foi, Percival?” Kristell respondeu.“Essa fala do Zacarias, ‘tem um apontador no meu bolso’, será que

não dá pra mudar ela? Colocar alguma coisa que combine mais com a cena?Eu não acredito que o Zacarias de verdade diria algo tão infantil.”

“Não, Percival, a fala fica. Mais alguma coisa?” Kristell respondeuinabalável. Quem diria que havia uma veia mandona nela tão forte quanto ada senhorita Danielly O’Hara?

Ele fez que ia falar, mas pensou duas vezes e resolveu se afastar.Enquanto ele andava, Wendy entendeu porque todos estavam olhando

pra ele: tinha um bilhete nas costas dele dizendo: aponte pra mim e ria.Genial!Ele era bonito. Tinha a pele da mesma cor parda escura e brilhante

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que a irmã Sarah, o que fez Wendy sentir imensa nostalgia ao olhar pra ele, ede longe, era o melhor ator da trupe.

“Por que você vai deixar a fala do apontador?”“Porque eu que escrevi ela.” Kristell respondeu. “Quer croissant? Foi

a Paloma que fez.”Wendy aceitou, até porque, ela nunca negaria comida, mas não

conseguiu dar uma só mordida sem que as palavras que a Victoria disse maiscedo não se repetissem na sua cabeça.

Parecia mesmo que Kristell usava seu “relacionamento” com Edgarpara conseguir algumas vantagens. Até que ponto será que ela usava essainfluência? E será que...

“Tá gostoso?”“PERFEITO!” Wendy disse de boca cheia. Havia mais de três tipos

de queijos diferentes e derretidos naquilo, não havia como não ser perfeito.O ensaio acabou por ali mesmo. Se continuassem naquele ritmo, tudo

estaria pronto para apresentação um dia antes da visita dos D’arlit.Mais tarde, Percival, Hulligan (garoto que fez Allenwick) e todos os

outros membros da trupe haviam se retirado para os quartos espalhados nosprimeiro e segundo andares da casa de Edgar para dormir a primeira noite desono deles nas últimas 48 horas.

Kristell e Wendy não foram diferentes, em minutos, estavam nomesmo quarto que em dormira na noite passada.

Lá, Wendy contou sobre sua conversa com Kahsmin.“Como ele tava?” Kristell perguntou.“Alegre. Eu não consigo imaginar ele de outro jeito pra falar a

verdade.”“E? O que ele disse?” Kristell perguntou hesitante, como se aquela

não fosse a pergunta que queria fazer.“Ele tirou sarro de mim quase o tempo todo, e depois me deu o

mesmo conselho que Tupã e Caleb me deram.”“Tu quem?!”“O índio que impediu que eu morresse queimada.”“Já lembrei, continua.” Kristell disse, Wendy achava engraçado o

quanto Kristell odiava ouvir sobre aquela história, achava mais engraçadoainda que o motivo pra tanto ódio no seu coração fosse Fawkes.

“Ele quer que eu vá pra Virrat amanhã. E–”“Eu vou com você!” Kristell se ofereceu.

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“Você não tem que cuidar da peça?”“Wendy, você é mais importante, e eu já sei todas as minhas falas de

cor.”Wendy olhou apreensiva para a amiga.

“É que... o Caleb vai comigo.”Kristell arregalou os olhos e seu sorriso virou um enorme “O” no seu rosto.“Sério?”“Por que você faz essa cara de susto sempre que eu falo que eu vou fazeralguma coisa com ele?” Wendy perguntou enquanto procurava um pijama nomeio das roupas que Edgar escondia nas gavetas. Embora uma parte delaestivesse desconfiada de que, na verdade, essas roupas fossem da Kristell, eque ela já tinha esse quarto como dela há muito tempo.“Bem... porque ninguém na cidade gosta muito dele, muito menos falam comele. Só o Kahsmin, e o pescador as vezes.”Wendy ergueu uma sobrancelha para a amiga.“Isso não parece justo.”“Eu sei que não amiga, mas fazer o que, ele deu mancada com o povo, é bemdifícil contornar esse tipo de problema, mas se serve de consolo, pra mim eleé só um cara muito bizarro, com aquela capa e tudo mais, acho que ontem foia primeira vez que eu ouvi a voz dele.”“Ele não falou com você quando te buscou no orfanato?”“Não, foi a Autumn que me buscou, parecia que ele tava meio ocupado nodia com alguma coisa que o Kahsmin mandou ele fazer.” Kristell comentou.“Entendi.”“MAS, não fuja do assunto: eu vou com você de qualquer jeito.”“Foi você quem mudou de assunto, e por que você quer tanto ir pra Virrat?”“Duas crianças sumiram lá, uma delas é filho do dono da Taverna do Fim dosTempos. Eu prometi pra ele que, se tivesse chance, iria lá procurar.” Kristelldisse com a tranquilidade de alguém que anuncia o café da manhã na mesa.“Por que você faria isso?”“Kahsmin pediu.” Ela disse orgulhosa, “ele sempre confia esse tipo deserviço às pessoas em quem ele acredita serem capazes: resgatar genteperdida, procurar vestígios dos D’arlit, rolam até umas lutas de vez emquando.” Wendy ergueu os olhos nessa última parte “Que foi? Eu consigocontrolar minha transformação e aprendi a lutar aqui, e você também vai, suafofa.”“Você consegue controlar sua transformação sempre?” Wendy perguntou

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com uma pontada de inveja na voz.“Quase sempre, às vezes coisas acontecem.” Kris disse, dando sinais de quenão se adentraria mais no assunto.Wendy considerou tentar convencer Kris a não ir, mas sabia que era tão útiltentar fazê-la mudar de ideia quanto persuadir um leão a virar vegano.

Também fez uma nota mental para perguntar a alguém sobre o queKahsmin tinha na cabeça, porque mandar adolescentes para procurar osD’arlit parecia um ingrediente crucial para uma receita chamada “ComoFazer sua Vida Dar Errado Em Cinco Passos Simples”.

Na sua cabeça cansada, imaginava Kahsmin pedindo ajuda daseguinte forma:

“Kahsmin: OI KRIS! BOM DIA, TÁ LIGADA NO REBENTO DODONO DA TAVERNA? Então, o cabra deu os cano, tomou chá de sumiço,não tá afim de procurar ele?”

Kristell: CLARO, eu ADOOORO fazer favores pra estranhosaleatórios!

Kahsmin: Ah, e você pode morrer no caminho.Kristell: Relaxa tio, eu sou imorrível, manda o cara caprichar no meu

prato quando eu voltar com o gurizinho dele!”

Uma vez que pensou melhor, não fazia sentido não querer que Kristell fosse.Ela era sua amiga, afinal.“Você queria que ela não fosse para ficar sozinha com o ele.” Sua mentesussurrou.Wendy tentou negar, dizendo que não tinha nada a ver, que só preferiria queKristell cuidasse da peça, isso e mais um quinquilhão de motivos que,verdade seja dita, cada vez mais se distanciavam de serem convincentes.Wendy tomou banho e vestiu um pijama que parecia mais com um vestido.Kristell a fez trocar porque, bem, porque era horrível mesmo, edesconfortável.Sob as cobertas, podia sentir Kristell respirando tranquila em seu sono, e ainvejou como Dana invejava pessoas mais bonitas que ela.

Wendy daria qualquer coisa para que nada a perturbasse nesta noite,nada além dos sonhos com Christina que estava tendo antes de sair deTuonela.

Mas não seria assim.

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Não, uma vozinha no seu peito sussurrava nos ouvidos de sua alma: “Só vaipiorar agora.”

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Capítulo 14

“Não há vida aqui.” Kahsmin murmurou quando avistou Jussarö.Não era só na paisagem que podia perceber a mudança, mas em seus ossos.Sentiu seu corpo rijo com o peso opressivo e sufocante das mais de vinte milalmas que se perderam em uma só noite.E não era só a terra arrasada e todas as casas estraçalhadas, algumas aindaardendo em chamas, que apunhalavam sua esperança e ungiam suas feridascom o negrume languido da melancolia e desalento.

Ah não.Eram os corpos, os olhares vidrados, fitando sem esperança um céu

que não podiam ver. Eram as bocas entreabertas que nunca poderiam contar ahistória do que viram, nem sentir o frescor da chuva fresca que bailava emseus lábios.Kahsmin continuou andando, não queria ter tempo o bastante para olhar essaspessoas nos olhos: empatia com os mortos só tornaria sua missão mais difícil.Afinal, sabia o que aconteceria se o fizesse: seria exatamente igual aodesfecho da grande batalha de Tuonela, e Kahsmin não queria reviver isso.Mas, como aprendera no frescor da juventude, é inútil tentar evitar oinevitável.

Uma criança, com cabelos castanhos compridos, parecidos com osseus próprios, estava deitada com o torso dobrado num ângulo que lheemprestava a mórbida semelhança com a letra “L”.

Seus olhos abertos tinham a cor das castanhas mais escuras.Tão iguais aos da sua...“Meggie.” Seus lábios tremeram ao som involuntário do nome da sua filha.Ele se ajoelhou ao lado da criança sem vida, sentido o peso daquela tragédiase instalar no seu peito com uma força tão poderosa que talvez nem mesmo aprópria Harbinger da Morte seria capaz de se equiparar.

Ele fechou os olhos da criança.Assim parecia que ainda estava dormindo.Como sua Meggie. Apenas dormindo.“Que seu espirito encontre o caminho para a felicidade que lhe foi tirada emvida.” Ele disse em tom de prece, enquanto se esforçava para juntar todos osvestígios de força que ainda tinha para se colocar em pé.

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Foi exaustivo manter-se firme: ele tinha ideia do que iria encontrar quando seadentrasse no cadáver de Jussarö, mas uma ideia não se equipara à imagemda verdade.E a verdade de Jussarö era sombria como uma alma carecida de esperança.A carência de esperança nos olhos das crianças que cantavam...Não importava quem era criança com que se deparava naquele campo minadode pesadelos, era o rosto de sua Meggie via em todas elas.

Tudo isso apenas dois dias depois do aniversário da sua filhinha.Kahsmin não percebeu, mas estava cantarolando a última canção que

o monstro que um dia chamou de pai o havia ensinado, deixando todo ohorror funesto reminiscente da melodia gemer e soprar entre os ventosgélidos do inverno.De repente, ele relembrou como era fácil entender o desejo voraz que Kristellentretinha atrás daquela cabeleira loira, o desejo de assassinar Neri e todos osD’arlit que estariam presentes em Tuonela no dia 12 de Dezembro.

Naquele momento, ele vislumbrou e partilhou o mesmo desejo.Mas não faria isso. Não podia arriscar começar uma nova guerra agora.Ainda não tinham se recuperado da primeira.

Ao menos, ele não tinha.“Covarde. Autumn sabe, Kristell sabe. Tuonela sabe. Você é um covarde.”sua mente sussurrou, e ele não lutou para desmenti-la.Só podia ficar ali, absorvendo o esqueleto de Jussarö, cujos ventosimploravam por vingança em seus ouvidos.Assim como aquela criança, assim como sua Meggie.“Eu não teria tanta certeza.” Autumn disse austera.“Quê?” Kahsmin ouviu mal, mas agradeceu por Autumn o tirar de seu trancesombrio.“Posso sentir vida, parece uma criança.”“Onde?!” Kahsmin perguntou, sem realmente conseguir ver mais que umasilhueta da mulher que era Autumn. Seu corpo se misturara com a escuridãodas nuvens que escudavam a lua e o sol.“Por ali.” Autumn apontou para os destroços de uma casa bem à sua frente.Kahsmin correu, se agarrando à cada fio de esperança que aparecia à suafrente.“Preciso salvar um, por favor me deixe salvar pelo menos um.”Ele começou a tirar uma pilha de escombro de madeira do chão, indiferenteàs farpas, indiferente ao cansaço que sua idade lhe impunha... apenas... tinha

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que salvar um, pelo menos um.De súbito, parou. Estava procurando no lugar errado. Foi preciso só

um erguer de olhos para perceber.Uma criança estava sentada no que restou de uma cama: a chuva

encharcava a poeira dos escombros que se alastrava sobre seu corpo, mas eleparecia indiferente, tanto à água, quanto à imundice. Estava de costas e não sevirou ao ouvir os passos de Kahsmin e Autumn se aproximando.Mas estava vivo.“Ei rapazinho.” Kahsmin começou, vestindo o melhor sorriso que a ocasiãopermitia, “você está bem?”Ele não reagiu, apenas continuou mexendo nas cobertas na cama à frente.“O que tem aí? Seus brinquedos ou–”“Acorda logo, Jane!” ele disse, e sua voz oca, junto com o súbito vestígio deum sorriso em seu rosto, contrastando com suas as lágrimas, quasederrubaram Kahsmin. “Nós vamos perder o primeiro dia de Nicolau!Halloway estava certo! Eu nem consigo reconhecer a cidade!”

Wendy: Nome de origem inglesa. Apareceu pela primeira vez nos livros naestória intitulada Peter Pan. O nome tem origem na palavra galesa“GWENDOLEN” e significa “brancura”, “abençoada” e “justa”.

Na cultura germânica, é contado que o nome tem origem da palavra“WANDERER” e significa “caminhante”, “sonhadora”.

Pelo menos era o que o dicionário de nomes que ela encontrou no quarto doEdgar dizia, e ela teve que encontrar uma versão do seu próprio mundo, jáque os dicionários desse mundo estranho não tinham o nome dela.Sua falta de sono a fez lembrar quando Tupã se apresentou e disse osignificado do nome dele (rio, tempestade, trovão, alguma coisa assim).Wendy havia feito uma nota mental na ocasião: descobrir o que seu nomesignificava e, PASMEM, ela se lembrou. Quando fosse escrever seu livro,“Os Incríveis Feitos de Wendy”, citaria esse feito, junto com a vez queconseguiu cozinhar sem se queimar e o dia em que conseguiu dormir antesdas três da manhã.

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Quando finalmente chegou a hora do café da manhã, Wendy aceitou sempensar duas vezes as três xícaras de café que a amiga passou pra ela.Era tão ruim quanto ruim pode ser, mas precisava ficar acordada, só maishoje, então, se tudo desse certo, o tal do sábio daria um jeito no problema.A casa de Edgar parecia muito mais dura e rígida sem a presenta da trupe,que ainda dormia, ela sentia que todos os móveis, em sua seriedade vitoriana,a encaravam e reprovavam cada um de seus movimentos... ou talvez ela sóprecisasse realmente dormir.Mas olha o lado bom: sua voz estava quase toda de volta.Kristell e Wendy foram caminharam em aparente silencio até a saída dacidade subterrânea.Digo “aparente” porque, na verdade, as duas estavam conversando, estalandoos dedos e batendo palmas em código Morse, igual faziam no Orfanatoquando não queriam que ninguém além da irmã Sarah as entendesse.Wendy tinha que admitir: estava impressionada com o fato de Kristell aindaconseguir manter uma conversa num ritmo tão rápido.“Todos aqui sabem Morse?” Wendy perguntou, com as mãos.“Olha, um tanto bom de gente sabe. Kahsmin usou isso para livrar a cidadedos D’arlit que invadiram a cidade na batalha de dezoito anos atrás, eTuonela tem alguns segredos que só quem sabe Morse pode descobrir, achoque por isso que a irmã Sarah aprendeu esse negócio.” Kristell respondeucom a voz.Quando as duas emergiram na catedral, Wendy reparou que só a tinha vistono dia em que chegara em Tuonela, o que parecia ter sido uma eternidadeatrás.Embora este fosse só seu terceiro dia, se contasse a noite quando chegou.“Como ele fez?” Wendy perguntou, com a voz também.“Como quem fez o quê?”“Kahsmin, como ele se livrou dos D’arlit com Morse?”“Ele me mataria se eu contasse essa história.” Kris respondeu risonha.“Pergunta pra ele quando ele voltar. E nossa! Sua voz tá bonita! Eu só tinhaouvido a versão rouca de você até agora.”Wendy agradeceu, tentando não pensar no que Victoria tinha dito ontemsobre as intenções de Kristell para com Edgar, por mais que Wendy nãotivesse nada com a história, se sentia um desconfortável sabendo o que aamiga estava usando Edgar.

As duas foram até o farol, passando pelas poucas pessoas que

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caminhavam na parte de cima da cidade.Porém, Caleb não estava lá.“Acho que a gente devia ir sem ele.” Kristell sugeriu inocentemente.“Calma, ele deve estar vindo. OLHA!”Anuk vinha correndo na direção das duas: Wendy nunca imaginou que umlobo pudesse parecer bonito na luz do dia, até ver o pelo do lobo reluzindo aosol da manhã.Parecia o cabelo de Caleb.Ele parou em frente à garota.“Que isso, garoto?” Wendy perguntou: havia uma carta amarrada na pata deAnuk, Wendy a desamarrou e começou a ler.

Wendy, sinto muito não poder acompanhá-la até Virrat hoje.Recebi um pedido urgente de Kahsmin me convocando para Jussarö.

Em meu lugar, leve Anuk, ele fará qualquer coisa para ajudar.Cuide-se.

-Caleb P.S.: Leve o arco e flecha.Está dentro do farol.

Foi engraçado ver que, ao mesmo tempo que Wendy estava frustrada, Kristellparecia aliviada ao saber que Caleb não estaria lá.

Chata.“Por que ele quer que eu leve o arco e flecha?”“Ah, eu não sei como te dizer isso, mas, Virrat não é o lugar mais seguro domundo. Aliás, praticamente nenhum lugar além de Tuonela é.”“Não tá ajudando, Kris.” Wendy murmurou subitamente mal humorada.Wendy fez, sem muita vontade, um pouco de carinho em Anuk, e entrou compassos fortes no farol.“Você não vem?” Perguntou à Kristell.“Ah, tô afim de entrar aí não.” Ela respondeu, e Wendy ficou ainda maisirritada.Uma parte dela esperava que o farol fosse maravilhoso por dentro, algo

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parecido com uma versão gótica da casa do Edgar: menor, mal iluminado,com escrivaninhas talhadas em mogno e caveiras que mantinham ocultasalgumas velas de cera vermelha, onde ele se sentaria à noite e espalharia seuspensamentos mais obscuros sobre pergaminho, usando uma pena e tintavermelha como sangue.Tipo o que imaginava quando lia o poema “O Corvo” do senhor Poe.Ficou bem desapontada quando viu que, na verdade, o interior do farolpoderia pertencer à uma tia avô de uma prima distante: branco caiado, umsofá velho sem cor, alguns livros numa estante de madeira próxima à janelaque dava para o mar, algumas roupas espalhadas pelo chão (homens...) eclaro: o arco e flecha junto com uma aljava cheia de asas de frango frito.

Brincadeira, eram flechas, tudo pendurado num mancebo.Wendy puxou o arco com todo o cuidado que três noites em claro e trêsxícaras de café permitiam e, bem, não deve ser surpresa para você que elaacabou derrubando tudo com um baque alto e... metálico?“Tá tudo bem aí?” Kristell perguntou lá de fora.“Aham.” Wendy murmurou alto o bastante para a amiga ouvir.Ela reergueu o mancebo com cuidado, recolhendo todos os sobretudos quecaíram dele, imaginando que o som metálico que ouvira tinha vindo dascorrentes e botões que bateram no chão.Até suas mãos encontrarem algo duro demais para ser uma roupa.Wendy olhou bem para o monte de roupas pretas no chão, demorando paraperceber o que realmente estava segurando.Uma espada.Ela se perdeu nos adornos arabesques na bainha. Pareciam com os adornosque ela fizera no vestido que ia usar no Baile de Inverno... ela seguiu osdedos sobre os contornos finos, talhados à mão.“Tudo bem aí?” Kris perguntou lá fora.“Tudo, eu só derrubei algumas coisas.” Respondeu, se certificando de que aamiga não estava olhando para dentro.Ela era apaixonada por arco e flecha desde que se conhecia por gente mas,aquela espada, algo nela parecia chamar por ela. Como se desejasse ser usadapor suas mãos.Ela desembainhou a espada, com um ruído metálico que fez a sua nuca ficararrepiada.Era uma lâmina fina, mais ou menos do tamanho de uma flecha, com um azulmetálico que refletia o sol em todo o quarto. Wendy se deliciou com peso

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dela no seu braço, vendo seu reflexo perfeito na faixa metálica: a largura eraapenas o bastante para refletir seus olhos verdes com pintas castanhas e–“Ah!” Wendy suspirou assustada, deixando a espada cair.“Wendy, que aconteceu?!” Kris perguntou preocupada, mas sem se atrever aentrar no farol.“Nada, eu só tô apanhando um pouco pra colocar tudo no lugar.” Elarespondeu, embainhando a espada, com as mãos trêmulas, e a escondendoatrás do mancebo, jogando as roupas do jeito mais próximo de “arrumado”que conseguiu. Então saiu correndo com o arco e a aljava de flechas nascostas.“Amiga, você continua mesmo um desastre. O que foi isso tudo?”“Eu puxei a coisa errada do lugar errado e foi tudo pro chão.” Wendyrespondeu com a voz ausente, esquecendo que estava irritada, esquecendoque Kristell desprezava Caleb, esquecendo tudo.

Menos a espada.“Anuk, por onde vamos? Aliás, como vamos?” Wendy perguntou

firme.Anuk não deu sinal de que tinha entendido, mas Kristell deu.“Nós vamos de barco, com o Winslow.”Algo nisso não parecia certo.“As crianças que se perderam lá, elas foram de barco também?”“Não, não, elas foram pelos túneis de fuga de Tuonela. Sabe, aqueles buracosnas paredes que você entrou em um com um certo cretino.” Kristell dissecom desprezo na última palavra.“Então por que não vamos pelos túneis?!”“Ir pelo mar é mais fácil, e mais seguro, sabe?” Kristell disse, e Wendyentendeu a mensagem implícita: “mais seguro pra você”.“Tudo bem, vamos.” Ela disse, inconsciente do imenso mau-humor na suavoz.Como sempre, um mau-humor que escondia algo muito maior.Muito maior que as noites mal dormidas.Escondia o sentimento de traição.Igual o homem da taverna havia dito: Caleb era um traidor.Por que mais ele teria uma espada com a palavra “D’arlit” entalhada nalâmina?

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Capítulo 15

“NÃO! PARA! ELA NÃO VAI PODER BRINCAR SE ELA FICAR AÍEMBAIXO!” O garoto berrou enquanto Autumn o prendia pela sombra.“Ela vai poder brincar com você sempre que você quiser.” Kahsmin disse,sem coragem de emendar “em seus sonhos” no fim da frase.Cavar uma sepultura teria sido bem mais fácil se o moleque não ficassetentando desenterrar a irmã sempre que ele começava a jogar areia.“ELA VAI FICAR COM FRIO LÁ, DEIXA ELA COMIGO, NÓS VAMOSSER OS PRIMEIROS–” Autumn fez o que Kahsmin nunca teria feito, ecalou a boca do garoto com um tapa.“Deveríamos enterrar ele também.” Autumn disse.“Ele só está em choque.” Kahsmin afirmou categoricamente, “vai passar, e aío rapazinho vai nos contar o que aconteceu aqui.”“Não é óbvio? Os D’arlit aconteceram, a Harbinger da Morte aconteceu.”“Eu sei essa parte, eu quero saber o como.” Kahsmin queria berrar aquelaspalavras.

A verdade era que ele estava apavorado com a ideia de uma pessoasozinha ser capaz de fazer isso e se agarraria a qualquer coisa que pudessecontrariá-lo.Seu trabalho estava feito, Autumn soltou o garotinho, tentando não prestaratenção no que ele dizia, pois suas palavras berravam sua descrença na morteda irmã.“Acho que podemos ir embora.”“NÃO! A Jane tem que ir comigo, ela não gosta de ficar sozinha de noite!”O garoto, James era o nome dele, começou a chorar de novo. Antes queAutumn pudesse tomar alguma medida, Kahsmin o ergueu no colo e se pôs aniná-lo.Odiava o quanto a cena era familiar: caminhar sobre uma cidade devastadacom uma criança em seus braços. A diferença era que aqui chovia água, emTuonela, chovera fogo.“Kahsmin.” Autumn chamou, um pouco de animação surgindo naquela vozenfastiada.“Que é?”“Os D’arlit estão vindo.” Ela disse entre sorrisos e respingos.

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Uma ventania passou pelos dois, a água castigou seus corpos como se fossegranizo.“Quantos?” Ele se esforçou para ver através da cortina d’água.“Dezenas. Talvez centenas.” Ela disse com espasmos nos dedos.“Vamos embora.”“Não.” Ela disse firme.“Autumn, não podemos–”Autumn tapou a boca de Kahsmin com uma mão nua.“Você não pode.” Ela o corrigiu. “Eu posso, e esperei tempo demais paracomeçar.”“E o garoto?!”“Faça o que quiser com ele. Corra, você é bom nisso. Não tem ninguémnaquela direção.” Autumn disse, apontando para o caminho de onde elesvieram.Kahsmin a encarou: não podia ver os olhos dela, mas teve certeza de que elesestariam brilhando por de trás daquela venda, e a ideia o fez arrepiar-se sob ofrio do temporal.Um suspiro precedeu a aceitação, ele deveria saber que ela não agiria deforma diferente, afinal, Autumn DeLarose Liddell era, desde antes de nascer,o Cisne de Tuonela.A maldição não a permitiria ser diferente.Não enquanto ela ainda fosse capaz de ouvir àqueles que– As rajadas devento o trouxeram para a realidade, e ele pode finalmente ver os primeirosD’arlit: não estavam realmente armados, não esperavam lutar, e sim colonizaras ruinas de Jussarö.Como tentaram fazer em Tuonela.“Hoje não.” Autumn mergulhou nas sombras, deixando Kahsmin com acriança.

“Sinto a força de vontade de Caleb Rosengard vacilando.”Realmente estava, Caleb estava prestes a quebrar o nariz daquela desgraçaque se ousava chamar-se “criatura”.A criatura de sombras, a mesma que Wendy vira na noite em que chegara emTuonela, resolvera fazer uma visita inesperada para o café da manhã, e agora

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estava sentado no banco do piano. Havia forçado Caleb a se sentar ao lado.“Estou curioso. O que há nessa garota? O que há de tão especial nela à pontode fazer Caleb Rosengard não se importar com as consequências que CalebRosengard e os poucos que ama sofrerão quando quebrar o acordo?” Eleprovocou, voz pantanosa, perdida eternamente entre um sussurro e um berro.Caleb poupou palavras, mas suas mãos deslizaram uma melodia no piano.O sol já estava alto sobre o mar, iluminando o quarto de Caleb, no segundoandar do farol: luz caía sobre os quadros (escondidos por panos de seda), oslivros, o piano.Mas réstia nenhuma daquele sol empoleirado tocava a criatura malnascida.Ele não era como Autumn.

Autumn podia entrar nas sombras e era um demônio por completo,enquanto... isso, era apenas um espectro rastejante, criado unicamente paraperturbar.“Onde ela pensa que Caleb Rosengard está?” Ele quis saber.“Jussarö.” Caleb murmurou, enquanto cantarolava a melodia que suas mãostocavam.A sombra entrou no jogo: enquanto a melodia que Caleb tocava era simples eangelical, as mãos da criatura começaram a acompanhá-lo com acordos feios,atonais, fugitivos de qualquer lógica harmônica, tornando a melodia umpesadelo.“Vamos, Caleb Rosengard. Me conte: o que há de tão especial nela? O quefez Caleb Rosengard pensar que já havia visto aquela menina antes? Nãoprecisa de se acanhar. Eu sei como foi: um beijo na mão da garota, disse queachava já a ter visto antes–”“Cuidado com o que fala.” Caleb disse, duro e frio como a morte em pessoa.“Por que eu deveria?” O espectro continuou, provocando como a serpentetentou Eva, ou como Mara tentou o Sidarta. “Ela é tão familiar, não é? Elastêm o mesmo rosto, nariz, cabelo.” Ele disse, deslizando os dedosenfumaçados pelos cabelos brancos de Caleb, “só os olhos são diferentes–”“Eu disse: cuidado com o que fala.” Caleb continuou tocando, mais pra forteque piano.“Ora, ora.” O espectro deixou de acompanhar a música sinistra que vinhaconstruindo, para rondar ao redor dele, “eu sinto que Caleb Rosengard estáprestes a trair o acordo, ora, está sim, e está porque persegue ilusões dopassado em alguém no presente.”Foi rápido demais para alguém entender o que aconteceu: Caleb acertou um

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murro no meio da boca do espectro, sentindo pela primeira vez que ele era decarne e osso. Ele foi arremessado para o outro lado do farol, a cabeçaenterrada tão funda contra a parede.O espectro riu, e foi Caleb quem cuspiu uma bola de sangue.

Sentia a dor da pancada no próprio corpo, mas a raiva o queimavacom muito mais ardor.“Já deveria ter aprendido, depois de todos esses anos: Caleb Rosengard nãopode me ferir. Só a si mesmo.” O vulto continuou rindo enquanto Caleb sesentava, ignorando a dor e o corte nos seus lábios.Mas antes que ele pudesse se recuperar, o espectro se colocou cara a caracom ele, segurando-o pelos cabelos com suas mãos podres como defuntos.“Acho... que Caleb Rosengard precisa de um pequeno incentivo paraaprender a não descumprir os acordos que fez com meu mestre.”Caleb não gostou disso, e o espectro percebeu: a criatura só tinha um traço dorosto visível: a boca, e esta arqueou-se em um sorriso beirando a demência.“Você não pode barganhar com um anjo.”“Caleb Rosengard não é um anjo!” Ele disse, jogando Caleb pelos cabelos nochão, onde o sol o atingia, mas não aquecia. “Eu vou deixar um pequenolembrete do que vai acontecer quando você quebrar o acordo, CalebRosengard. A menina vai servir bem.”“... o quê?”“Sim, perder a vida não é importante para Caleb Rosengard, mas o queacontecerá com os outros caso Caleb Rosengard não possa mais protegê-los,isso é importante.” Sua voz era um brejo de tormentos uivantes. “A garota vaiservir de exemplo.”“Ela não tem nada com isso!” Caleb investiu contra o espectro de novo mas,dessa vez, foi arremessado contra o quarto: paredes tornaram-se sombras emtorno de seu corpo e engoliram seus pulsos e tornozelos.“A garota tem... tudo com isso. Aliás, este é um poder novo que o mestre meconcedeu, Caleb Rosengard aprova? O mestre achou que poderia ser útilhoje. O mestre sempre sabe o que é melhor.”Caleb não respondeu, um pouco de bom-senso confidenciou-lhe que seria apior coisa a fazer.“Contemple, Caleb Rosengard.” O espectro de sombras disse por de baixo docapuz e, com movimentos fluidos como neblina, lembrando os feiticeiros dasantigas lendas de Kalevala, fez a janela do quarto escurecer: o céu não estavamais lá fora, o caixilho agora era uma moldura de sombras esfumaçadas onde

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uma imagem distorcida se formou aos poucos.A imagem de um barco.“Wendy.” Caleb suspirou quando a reconheceu sobre o barco do tioWinslow, com Anuk e a menina loira que tinha virado um demônio outro diae quase atacado Kahsmin.“Sim. Vou deixar Caleb Rosengard à sós com uma lição a aprender.”“ELA NÃO TEM NADA COM ISSO!”“Não, a garota é inocente. Caleb Rosengard por outro lado, é culpado, e paracastigar Caleb Rosengard, o mestre não tem escrúpulos em usar inocentes.Não perca tempo tentando se soltar. Vai ser cansativo e inútil. As algemassumirão quando estiver tudo acabado. Até mais, Caleb Rosengard.” Ele dissecom um sorriso nefasto enquanto desaparecia do quarto.E Caleb ficou ali, paralisado, sentindo a boca latejando enquanto via o barcode seu tio Winslow chegando em Virrat.

“Ouviu isso?” Wendy perguntou para Kristell.“Parece choro de baleia.” Winslow foi quem respondeu. “Na minha época,elas apareciam nas praias de Tuonela e nós costumávamos...”Wendy achou justo mencionar que, como essas palavras estão sendo escritasdo ponto de vista dela, tudo que é dito pelo senhor Winslow está sendotranscrito de forma entendível por ela.

Na verdade, Winslow fala igual um pirata, com linguajar de bucaneiroe palavrões que nem a irmã Romena sonharia em usar.

Então, sempre que lerem falas do senhor Winslow, assuma que eleresmungou, falou uns seis palavrões junto e que o bafo dele fede mais que...que... que o show de horrores que Wendy encontrou nas grutas Salainen.“Eu não gosto dessa chuva.” Kristell comentou por cima de Winslow, queestava falando alguma coisa sobre laçar baleias e montá-las pelo mar, ou foi oque Wendy entendeu pelo menos.“Eu tô adorando.” Wendy disse sendo cem por cento honesta, a chuvaapaziguava o mal humor que sentira mais cedo, embora a lembrança daespada dos D’arlit entre os pertences de Caleb ainda a perturbasse.“Amiga, eu sei que você ama chuva, mas tipo assim... essa aqui... ela não énormal.”

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Wendy olhou ao redor e imediatamente entendeu o que Kristell queria dizer:as nuvens faziam um circulo cinzento no céu, um circulo que se encaixavacomo uma luva sobre a cidade de Virrat.Fora daquele circulo, o céu estava limpo como o quarto da Wendy depois deouvir a irmã Romena acordando.“A natureza não fez essa chuva.” Winslow disse.Aquelas palavras a deixaram atenta: a mesma sensação sinistra que sentiraquando encontrou o Lago Viajante pela primeira vez estava aqui, seespalhando pelo seu corpo como um mau presságio.“Chegamos.” Winslow anunciou (lembra que eu disse que deveriam haverpelo menos seis palavrões omitidos nas frases dele? Então...) Wendy achavaque a destruição de Tuonela tinha sido a maior que já vira.

Até conhecer Virrat.A cidade deve ter sido bonita, com suas casinhas coloridas e tetos altos, maso tempo e a água desbotaram suas cores e roubaram sua vitalidade: tudo eraopaco, cinza, lamacento, infausto e... quanto mais Wendy olhava, mais sentiaque a cidade olhava de volta, com olhos famigerados e sorrisos pontiagudos,disfarçados sob uma grossa camada de água e lama.

Era como aquele monstro que esperava por Wendy atrás da porta dobanheiro, na lembrança em que Ally a havia prendido: sonolento, invisível,grande e faminto. Tipo a Wendy, se ela fosse grande e invisível.“O que os D’arlit fizeram aqui?” Wendy perguntou.“Isso? Não foram os D’arlit. Foram as pessoas de Virrat que fizeram isso.”Kristell respondeu.“Mas por quê?”“Pra não serem atacados.” Winslow respondeu. “A maioria dessas casas aíestão abandonadas. Os Marley, moravam ali.” ele disse apontando para o caisao lado com o frango de borracha, “e Rosemari,” continuou, pronunciando o“R” de “mari” com um gutural que doeu até em Wendy, “ela morava naquelacasa beira-mar, amava o mar a pobre diaba, pena nunca ter tido uma chance.”Winslow caiu num silêncio aziago, o castanho de seus olhos colidiu pesadocontra a casa beira-mar, suas costeletas e pele eternamente bronzeada derepente eram dez anos mais velhos, talvez até mais, assim como deveriam seras reminiscências nas quais mergulhara.“E deu certo?” Wendy perguntou.“O que deu certo?” Winslow retrucou, sendo puxado para fora das águas deuma memória que o envelhecia em silêncio.

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“Destruir a cidade pra enganar os D’arlit, deu certo?”Winslow olhou em volta, baixou a cabeça para seu frango de borrachaamarelo com crina vermelha e respondeu, dessa vez só com um palavrãoomitido: “Não.”“Havia um espião dos D’arlit em Virrat, quando o povo da cidade estavapronto para fugir do continente em navios para Mångata, a própria Harbingerda Morte veio, com um exército, e as coisas que ela fez... você não quersaber.” Kristell estava com ânsia, e Wendy desejou com todas as forças que omotivo fosse a viagem de barco, e não o que havia acontecido aqui.“Esse lugar tá me dando calafrios.” Wendy confessou.“Em mim também amiga, é pior que a periferia de Tuonela.” Kris respondeu,seu rosto recobrando a cor que perdera ao se lembrar do que a Harbinger daMorte fizera aqui.“É, a periferia de Tuonela me dá calafrios, mas esse lugar, ele parece que távivo.” Wendy sussurrou as últimas palavras.“Deve ser a maldição.” Winslow murmurou debaixo de um pigarreio.“WINSLOW!” Kristell lançou um olhar de “vou te matar” para ele.“Quê?” Toda a extensão da pele de Wendy se arrepiou naquele instante.Kristell olhou furiosa e perdida de um lado pro outro: o estrago estava feito.“A Harbinger da Morte e o exército dos D’arlit cercaram a cidade, afundaramos navios que vinham de Mångata e... e eles executaram os líderes da cidade,e forçaram os membros das famílias a comerem... você sabe.” Kristell nãoconseguiu completar a frase, “um garoto que assistiu tudo foi tomado por umódio grande o bastante para lançar uma maldição sobre a cidade: D’arlitalgum sobreviverá mais que um dia inteiro nas terras de Virrat.”“Acreditamos que a alma do garoto circule a cidade, caçando e preparando amorte de qualquer D’arlit que se atreva a residir aqui.”“Por isso essa cidade tá abandonada, ninguém que seja ou se denomine umD’arlit consegue viver aqui por mais de um dia, e os que não são tem medodemais dos efeitos da maldição. Maldições são bem sérias neste mundo, e nonosso também Wendy, a gente que não se deparava com muitas quando agente tava no orfanato.”Choque estava estampado no rosto de Wendy.“Por que pessoas que não têm nada a ver com os D’arlit têm medo dacidade?” Sua curiosidade perguntou entre seu medo e apreensão.“Maldições deixam rastros.” Winslow respondeu. “Como memórias chorandono vento, e esses rastros atraem o que há de mais tenebroso neste mundo e no

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próximo, míriades, devoradores de sonhos, ominosos, até kayzenghasts,Virrat é uma porta aberta para todos eles.”“Kayzenghasts não têm como sair do mundo das sombras, Winslow, para deassustar a minha amiga.” Kris pediu, obviamente irritada com o caminho queaquela conversa tinha tomado.“O que são ominosos? E uma míriade?” Wendy perguntou.“Míriades são demônios diversos que têm mais de mil formas de torturar edevorar almas daqueles que encontram, ominosos são demônios que podemler e mexer com mentes de uma certa forma, não chega a ser controle mental,mas é bem ruim, tem bastante gente que acha que Ally é uma mistura dosdois.” Kristell explicou.“Eu quero ir pra casa.” Wendy disse em súplica.“Wendy a gente já tá aqui, eu prometo que vou cuidar de você enquanto agente estiver por aqui: a gente só acha o Velho Sábio, ele te ajuda e a gentevai embora, eu sempre venho aqui procurar crianças que se perdem nos túneisde Tuonela e nunca vi nada dessas coisas, é só meio assustador, beleza até aí,mas você lembra o que a irmã Sarah dizia sobre medo ser uma jaula, nãolembra?”“Lembro.” Wendy murmurou envergonhada.“Então, vamos?”Antes que Wendy respondesse, Anuk saltou do barco e sumiu dentro dacidade.“Onde ele foi?”“Ele sempre faz isso, não gosta de ficar no barco, logo ele volta, se eu fossevocês, faria o mesmo.” Winslow cuspiu em resposta.

Desnecessário dizer que Wendy não gostou nada da ideia de ficarnuma cidade desolada sem Anuk. De fato, teve o mesmo pensamento que naprimeira vez que foi nadar sozinha: “é aqui que eu morro”.O píer onde as duas desceram estava em pedaços, escorregadio, ripas ereboco faltava aqui e acolá. Se a chuva continuasse, logo ia ser um píersubmarino.Será que eles tinham submarinos fantasmas aqui?“Vamos.” Kristell disse, seguindo em frente. “Eu lembro onde o sábio mora.”“Mas, e o Winslow?”“Eu não ponho pé nessa terra não.” Ele disse, balançando o frango deborracha.Kristell deu de ombros e ambas começaram a se adentrar no cada vez mais

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espesso monstro adormecido que Virrat parecia ser. Anuk não parecia estarem lugar nenhum, aliás, nada parecia estar em lugar nenhum por aqui.“Wendy.” Kristell começou. “Você consegue se transformar?”“Transformar?” Wendy demorou a entender o que a amiga queria dizer.“Não... nunca consegui mais que as garras, por quê?”Kristell baixou a cabeça enquanto ambas caminhavam sob a chuva.“Me desculpa amiga, é minha culpa. Kahsmin me pediu tanto pra pelo menoscomeçar a treinar você, ou achar alguém que pudesse, mas, ah você viu comotá a peça e tudo naquela cidade, eu não consegui.” Ela disse, e a culpa na vozdela era honesta.“Tudo bem Kris.” Wendy disse enquanto ambas passavam por um monte deentulho cheirando à “irmã Clara”.Irmã Clara era velha e não gostava de banhos.Antes que sua imaginação pudesse ir mais longe, o som mais sinistros queWendy já ouvira rompeu dos céus e rasgou mais fundo que sua alma.

Um lamento, canto de criança.Foi o bastante para congelar todos os sentidos de Wendy numa fina camadade pânico.“O que, o que foi isso?”“O motivo pela qual eu deveria ter pelo menos começado a te ajudar a setransformar, isso é uma míriade.” Ela disse agarrando a mão de Wendy.“O que ela quer?!”“Nada de bom, corre!”Ambas começaram a correr para a direção oposta ao som, encharcando ossapatos até parecer que tinham pântanos no lugar dos pés.

“É aqui.” Kristell apontou para uma casinha, bem menor que asoutras, mas inteira pelo menos. As duas subiram a pequena soleiraencharcada.Kristell bateu a porta... que caiu para trás com um baque surdo.“Arme o arco.” Kristell ordenou quando as duas entraram. De repente, suavoz não tinha nada haver com a menina loira sorridente distribuidora deabraços que Wendy estava acostumada. “Tá muito estranho mesmo aqui.”

Wendy pegou uma flecha: suas mãos estavam começando a seacostumar com a arma, mas ainda sentia dor em todas as partes do corpo queenvolviam atirar e achava que não ia conseguir lançar uma flecha mais longeque alguns metros.

Muito menos acertar algo.

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Kristell meteu a mão no bolso de Wendy sem permissão, pegando eacendendo a lanterna da amiga, iluminando vários livros jogados, páginasrasgadas espalhadas pelo chão empoeirado, papel de parede havaiano comvários arranhões de fora a fora. Parecia que dois gatos gigantes estiverambrigando ali.“Kris, tem certeza que é aqui?” Wendy perguntou, protegendo os olhos dosúbito raio de luz branca que Kristell jogou nos seus olhos.“Aham. A casa sempre pareceu meio destruída.” Disse um pouco maistranquila. “Mas já era pra ele ter aparecido.”“Alguém me disse que o sábio tinha que querer aparecer pra gente.” Wendycomentou, não lembrava se tinha sido Tupã ou Anuk. Podia até ter sido suaimaginação fértil, ou talvez Wanda, não que Wanda fosse muito diferente deimaginação fértil, mas.“Quem disse isso não sabia onde procurar, ele se abriga em Virrat pra não terque lidar com os D’arlit, e sabe se virar bem com a maldição, a gente nãochama ele de sábio atoa.” Kristell abriu a porta e foi andando por umcorredor.“Ele tem nome? Ou é só ‘o velho sábio’?”“Fred.” E, por mais impossível que pareça, Wendy riu, imaginando um velhobarbado tipo o Gandalf segurando um taco de golfe, tava engraçado, maslogo a casa reprimiu seu riso.Os quadros tinham sido quase todos destruídos: o que era muito bom, porquetodos eles eram horríveis, exceto um que tinha dois caras remando uma balsapara dentro de uma ilha que, se você olhasse nela do jeito certo, parecia umacaveira.

Aquele era legal.“Aqui é onde o sábio medita.” Kristell disse, já ia abrindo a porta, masWendy a segurou. “O que foi?!”“Tá trancada.” Wendy disse, apontando a fechadura.

“Eu sempre esqueço que você é ótima com essas coisas.” Kristelldisse, fez que ia abraçar Wendy, mas, por algum motivo além dacompreensão humana, desistiu da ideia. “Quer fazer as honras?”“Com prazer.” Wendy tirou um grampo do cabelo encharcado de Wanda efez seu truque, ouviram a chave do outro lado na porta cair no chão com umbaque metálico, o mesmo som que as duas sempre ouviam antes de roubarbiscoitos dinamarqueses da irmã Romena.

Estava quase sendo tomada por nostalgia, quando destrancou a porta

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com sucesso.“Você não mudou nada.” Kristell disse, com um sorriso que logo sumiu doseu rosto “Vamos, espero que esteja mais quente aí dentro.”Wendy honestamente esperava encontrar o velho sábio trancado ali dentro,meditando ou fazendo alguma coisa embaraçosa demais para ser feita com asportas abertas.O que acharam, no entanto, foi uma sala em pedaços: almofadasestraçalhadas, centenas de objetos estranhos estavam esmigalhados ao chão,havia buracos por todas as paredes e, por incrível que parecesse, estava muitomais frio aqui que na chuva.Kristell acendeu uma luminária estranha na parede: o fogo começou numcanto da sala, mas se espalhou pelas paredes e logo o cômodo todo estavabanhado em luz vermelha.Era lindo ver como as paredes pareciam estar em um ziguezague de fogo,sem realmente queimar a casa. O calor súbito foi bem vindo também.

Mas algo estava errado.Wendy gemeu quando percebeu aquele tipo de coisa que só uma

leitora ávida de Agatha Christie e Arthur Conan Doyle perceberia.“Kristell...”“Que é?”“Alguém esteve aqui agora pouco.”“Como você–”“A casa inteira está empoeirada, menos aqui.” Ela disse passando o dedosobre as paredes. As duas se entreolharam, compartilhando um calafrio.

“Vamos sair daqui.” Wendy disse, sem perceber que estavaassumindo a liderança, assim como fazia nos tempos do Orfanato, pregandopeças nas crianças mais novas dentro de casas abandonadas. Ou quando sejuntava com Christina para assustar a Dana no Halloween, enquanto a Mary ea Kristell roubavam os doces dela.Sua mão quase alcançou a maçaneta, mas Kristell a deteve, e, tapando a bocade Wendy, ela sussurrou no ouvido da amiga, apontando para o vão embaixoda porta: “É uma armadilha. Estamos cercadas.”Wendy sentiu todos os seus neurônios virarem uma geleia de gelo,escorrendo pelo seu corpo e deixando um rastro frio e gosmento por suasentranhas, como caracóis polares fariam (se existissem), quando ouviuaquilo.

Haviam pés no vão da porta.

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De repente, estava de volta aos seus pesadelos: algo horrível estava dooutro lado da porta, só esperando para tornar sua vida um inferno.

Kristell se afastou, ficando no centro da sala redonda, iluminada porcorrentes de fogo.

“Wendy, não se assuste, tá bom?”Ela fez que sim, e Kristell sorriu para a amiga.Então fechou os olhos.

Wendy nunca tinha visto acontecer com alguém além dela própria, então foium choque enorme ver Kristell murmurando umas palavras tão baixo que sóum cachorro poderia sonhar em ouvir.

Logo, a transformação começou: mãos em garras, dentes em presas,cabelos eriçados, ficou mais alta, o rosto ganhou ângulos e, mesmo assim,continuava lindo, mas não daquele jeito “líder de torcida” dela, e sim como ode uma assassina de olhos vibrantes, adulta e raivosa em todas as suasfeições.

“Wendy.” Kristell disse em Morse, batendo o pé no chão.Wendy respondeu com um olhar.“Abra a porta, afaste-se.”Wendy não pensou duas vezes, se o fizesse, ia hesitar e, de algum

jeito, estragar tudo.Colocou a aljava e o arco no chão.A mão congelada sobre a maçaneta.Um único segundo para respirar fundo.Escancarou a porta e correu para fora do caminho.Algo passou rasgando na direção de Kristell.O fogo foi extinto.E o grito de Kristell ecoou na escuridão.

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Capítulo 16

Kahsmin cobriu os olhos do garoto e, por mais improvável quepareça, ele dormiu.

Kahsmin o invejou por um instante por conseguir dormir enquantoAutumn lutava.

Ela emergia das sombras entre os D’arlit, assoviando a morte antes deentrar em ação: se esquivava dos ataques com a destreza de uma ladina; aslâminas que usava penetravam os demônios com mais graça que violência.Era como se tivessem vida nas mãos dela e soubessem, por natureza, ondedeveriam cortar.

Sutil e fatal. Sempre foi seu estilo.Autumn se libertava quando lutava: era como ver um cisne abrindo as

asas pela primeira vez. Girando as lâminas nos dedos como um percursionistafaz com as baquetas, sem nunca se cortar, só esperando o próximo infeliz quedeseje uma faca enfincada no pescoço.

Sua expressão era quase sempre uma das seguintes: Ou havia umsorriso ao sentir sangue espirrando em seu rosto, ou a boca ficava entreaberta,indiferente, enquanto dançava com seus inimigos. Poderia estar pensando emuma música para guiar seus passos, tendo um devaneio, ou sentindo umparceiro imaginário que a conduzia.

Era impossível saber ao certo.Quando estava cercada, mergulhava nas sombras, e a próxima coisa

que Kahsmin ouvia era o som de alguém se engasgando, seguido pelo baquesem melodia de um corpo caindo sem vida, como a baqueta de um tambor nofinal de um concerto.

Autumn partira o pescoço dele, através das sombras.Era sempre bom lembrar porque ter medo da Autumn. Demônios

maiores que armários, capazes de voar, e até com capacidade mexer com suamente se você os olhasse fundo nos olhos, nenhum deles tinha a menorchance com Autumn.

“Cisne de Tuonela.” Kahsmin pensou consigo mesmo “A lenda fazjus à realidade.”

James, o garoto, começou a murmurar alguma coisa enquanto dormia,e Kahsmin praticamente pôde ouvir Autumn o chamando de idiota, de novo:

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ele e a criança não deviam estar tão perto.Ele pôs James no colo e começou a carregá-lo enquanto ouvia, um a

um, os D’arlit caindo, com baques cada vez mais abafados pela chuva pesadaque assolava a carcaça de Jussarö.

Kahsmin e James estavam escondidos dentro de uma das poucas casasque ainda estavam de pé. Bem, mais ou menos em pé, e Kahsmin fez o quepode para secar James, se perguntando quando foi a última vez que o meninocomeu alguma coisa.

Ele o deixou no que parecia ser um colchão, sem ligar para sujeiraque o cercava.

Sem ligar para nada, na verdade.Não estava realmente pensando enquanto procurava comida na casa.

Parecia que qualquer capacidade de raciocínio lógico se esvaía na mesmaproporção em que a batalha entre os D’arlit e Autumn se aproximava.

Ele abriu um armário: nada lá.Ele o fechou e, de repente, não estava mais na cozinha daquela casa

deprimida.Estava na sua casa branca, e ele... ele via fogo.A chuva de flamas ululantes que caía sobre Tuonela. Estava de novo

no casarão branco, na encosta das montanhas da cidade. Onde ele criaraMeggie e guardava lembranças de sua própria mãe e do monstro que obatizara.

“Meggie.” ele chamou baixinho. Nada respondeu além do crepitar dofogo.

“Feche os olhos, Kahsmin.” ele pensou, se colocando sem perceber, acantarolar uma melodia assombrada, tentando se agarrar a qualquer vestígiode realidade, sabendo no fundo que era impossível fazer isso quando tudo queseus olhos mostravam eram os brinquedos da filha no quarto, em contrasteperfeito com a chuva de fogo lá fora.

“Meggie?”Sentia o pânico martelando seu peito com a força de Kullervo,

forjando o maior temor que já sentira, enquanto seus olhos mostravam o povode Tuonela, um a um, caindo como soldados de brinquedo, enquanto osD’arlit, as crianças alegres que eram, riam com gosto enquanto seusbrinquedos eram esmigalhados.

“MEGGIE!”“... pai?” uma voz de criança chegou aos seus ouvidos.

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Tudo ficou branco, tudo ficou mudo, inodoro e sem gosto. Meggie,estava no quarto.

Ele tinha que tirá-la de lá. Dessa vez.“FIQUE AÍ MEG...” e sua voz foi cortada, uma das paredes da casa

caiu em cima dele, tudo ficou escuro e...Estava de volta a Jussarö, na casinha deprimida. Percebeu que tinha

arrancado a porta de um dos armários da cozinha.Seus dedos longos tremiam mais que os da sua tia vó Magnólia

quando servia comida nos feriados. Ela era a única pessoa que fazia um chápior que o dele.

Kahsmin se sentiu surpreso quando percebeu que havia uma criançaali, uma que não era Meggie.

Ele precisou de mais tempo do que era confortável para lembrar onome.

“James.” Kahsmin sussurrou. “Me desculpe por te assustar, amigão.”Por milagre, ele continuava dormindo, e a tranquilidade no rosto dele

abriu um sorriso na boca de Kahsmin.Olhou pela janela: A tempestade engoliu Autumn e os D’arlit, eram

apenas vultos cinzentos no horizonte agora.Ele respirou fundo. Se sentou ao lado do garoto e fechou os olhos. A

batalha lá fora o incomodava menos do que a que revivera há poucossegundos. Devia estar, finalmente, ficando louco.

Pensou em Wendy dizendo que precisava de ajuda ontem, e de comoele recomendou que visitasse o velho sábio em Virrat. Conhecia o Fred desdeantes de ele ser velho. Sempre teve um dom para ajudar pessoas comproblemas na cabeça, fossem sonhos, pesadelos... alucinações.

Talvez fosse hora de seguir o mesmo conselho que dera à Wendy....Talvez.Wendy... Autumn... Kahsmin se lembrou de repente de Autumn

dizendo que não gostava da garota, mas ele não via nada de mal nela: Wendyera um doce, bonita, educada, talvez um pouco magra demais, mas todas quevinham do Orfanato das Neves eram assim. Se tudo desse certo, em algunsdias, ela estaria indo visitar o Mortimer para descobrir quem eram seus pais.Aprenderia a se defender, como Kristell, como toda Tuonela. Não faziasentido alguém não gostar dela.

Até o Caleb parecia gostar dela.“Não é, James?” ele começou, tentando soar descontraído, tentando

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soar são, apesar das risadas nervosas que dava de frase em frase. “Vocêtambém ia gostar dela. Ela gosta de Pizza, também perdeu a família, e pareceque ela leva jeito com as crianças. Só não chega perto quando ela estiverpraticando o Arco e Flecha. Ela é péssi... destreinada ainda, mas é boa, e...”

... até o Caleb parece gostar dela.

... até... Caleb.“Uhn, estranho.” ele disse, abrindo os olhos de repente, sentindo que

estava chegando perto de alguma coisa, uma ideia, ou uma lembrança, que jádeveria ter vindo à tona faz algum tempo.Enquanto isso, James ainda dormia ao seu lado.

Sangue... sangue em toda parte.Wendy sabia que o arco estava em suas mãos, mas não conseguia saber sesuas mãos ainda faziam parte do seu corpo.Tanto sangue.Ela estava caída numa poça de lama, indiferente para a chuva que lavava seurosto ou para os gritos assombrosos da luta entre os demônios que invadirama casa do velho sábio e... sua memória estava tão nublada...A casa do velho sábio estava em ruínas: de onde estava, Wendy podia ver ocômodo onde estivera havia apenas alguns segundos, agora com um rombogigantesco na parede.E eles... acertaram seu braço.Uma olhada para baixo e, para seu alívio, sua mão esquerda ainda era partedo seu corpo, mas Wendy ainda não conseguia mexer os dedos. Esperava quenão fosse permanente, e que o corte fechasse sozinho.“WENDY!” Kristell berrou de algum lugar, era Kristell que estava lutando.Se ao menos Wendy pudesse se levantar, mas parecia que sua perna haviasido pisoteada por uma manada de elefantes.Ela se virou para ver o que estava acontecendo com Kristell, sentiu algo fazerpressão contra seu peito e demorou para perceber que era a boneca Wandaque estava ali.“Desculpa te botar nessas furadas, Wanda.” Wendy sussurrou.“Tudo bem.” Wanda não respondeu, mas Wendy quase pode ouvir aspalavras.

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“ERGUE UMA FLECHA!” Kristell berrou, e Wendy, automaticamente,pegou uma flecha com a mão boa e a ergueu para cima.Alguém, ou alguma coisa tropeçou na ponta da flecha e urrou de dor quandocaiu no chão. Wendy não conseguia ver direito, mas o que quer que fosseaquilo, era grande e tinha chifres.“ACABA COM ELE!” Kristell ordenou. Wendy ainda não sabia exatamenteonde a amiga estava, culpa da tempestade que devastava a terra de Virrat.“COMO?” Wendy berrou.“COM AS FLECHAS.”Wendy pegou mais algumas flechas e começou a se arrastar para onde acriatura estava.A criatura gemia como se estivesse dando à luz à um filhote: era horrível dese ouvir. E para piorar, quando Wendy chegou perto o bastante, viu que orosto da criatura era humano.Era como Fester, meio gente, meio animal, só que a metade animal era a deum cervo, não de uma cobra.E os chifres dele: tinham manchas de sangue, Wendy teve certeza que foiaquilo que cortou seu braço, e os cascos que ele tinha no lugar de pés atinham pisoteado e tornado cada tentativa que fazia de andar semelhante à umpedacinho do inferno.Mesmo assim, quando viu o rosto dele, perdeu toda a força que estava prestesa usar para enfincar uma dúzia de flechas no pescoço da criatura.“RÁPIDO WENDY!” Kristell berrou com a voz nada humana que ela agoratinha, seguida de uma trovoada tão violenta que fez o chão tremer.Wendy agora podia vê-la: estava lutando com mais violência que qualquercoisa que Wendy tivesse visto na TV depois das onze.“Eu não posso.” Wendy murmurou, deixando as flechas caírem no chão.E uma nova onda de dor à atingiu: o homem cervo deu coice na sua barriga, ajogando para longe na lama, enquanto ele fugia no meio da tempestade.Wendy tossiu com força e sentiu suas mãos tremerem quando uma bola desangue saiu da sua boca. Ela queria chorar, ou que qualquer coisa acontecessepara ela poder acordar no Orfanato das Neves, sabendo que tudo isso era umsonho.Um estrondo a trouxe de volta à realidade.Por um segundo, achou que fosse um trovão, então viu que a parede da casaao lado dela desabara. Em questão de segundos, Kristell saiu debaixo dastábuas de madeira.

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Não estava muito melhor que Wendy: havia cortes profundos, comose um cachorro gigante a tivesse arranhado do pescoço até a barriga, e váriosarranhões menores nos braços e nas pernas.

Então Wendy viu o ser contra o que Kris estava lutando, correndo nadireção da Kristell com a ferocidade de um jaguar.

Até porque, é o que ele era: um homem com cabeça e garras dejaguar.

Os hematomas que Kristell deixou no corpo dele pareciaminsignificantes comparados com o estado dela, mas não eram só hematomasque a mestiça loira havia feito com ele.

Também tinha arrancado uma orelha do homem jaguar. Pelo menosWendy achou que tinha sido ela, só isso explicaria o buraco sangrento nolugar onde deveria haver uma orelha.

Nada mal.O jaguar estava à menos de dez metros de Kristell quando ela saltou:

Wendy ficou sem reação quando a viu pular, no mínimo, quatro vezes aprópria altura, ficando mais alta que muitas das casas que ainda estavam empé em Virrat.

Com um mortal de costas fenomenal, ela caiu em pé sobre os ombrosdo Homem Jaguar que, de algum jeito, conseguiu se manter em pé.

Foi quando Kristell sorriu vitoriosa.“Doeria menos se você tivesse caído.” Wendy ouviu Kris dizer.Ela cravou os pés no pescoço dele e, produzindo um estalo muito

mais violento que os trovões que assolavam a cidade, ela mergulhou emdireção ao chão.

Quando os braços de Kristell tocaram a terra, Wendy viu, por umsegundo, um arco perfeito: metade do arco era sua amiga, metade era umhomem jaguar perdendo o equilíbrio.

O segundo passou e, com a força das pernas, Kristell jogou a criaturapara longe.

Wendy o viu atravessar as paredes de várias casas antes finalmenteparar. Ele não se levantou de novo.

Enquanto isso, Kristell ainda estava com as mãos no chão,sustentando seu corpo.

“Isso foi incrível!” Wendy murmurou, se sentando na lama enquantovia Kristell voltar a ficar de pé como uma pessoa normal.

“É o tipo de coisa que você aprende em Tuonela.” Kristell disse, se

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aproximando de Wendy e se transformando aos poucos em humana de novo.“Você tá bem?” Wendy perguntou preocupada, olhando o semblante

cansado e os cortes feios no corpo da amiga.“Já estive melhor...” ela disse, e não foi nenhuma surpresa quando ela

caiu de joelhos ao lado da Wendy, a abraçou com força, e continuou falando,“desculpa te meter nessa, eu devia ter te ouvido, a gente devia ter voltado.”

“Olha Kris, por pior que seja, enfrentar quimeras meio que alivioumeu medo da maldição.” Wendy respondeu com um sorriso que traduzia dore contentamento.

“Como você sabe?”“Como eu sei o quê?”“Quimeras, é como a gente chama esses demônios meio gente meio

bicho.”“... é como qualquer coisa meia humana meio animal é chamada em

qualquer lugar do mundo do Orfanato das Neves, e pelo visto aqui também.”Wendy disse rindo, retribuindo o abraço da amiga.

“É que, bem, eu meio que esperava que algo ruim acontecesse. Foimuito idiota trazer você aqui sem você ter aprendido nada ainda. Medesculpa, Wendy.” Ela disse apertando mais forte a amiga, e oarrependimento na sua voz nunca foi tão sincero.“Você esperava algo ruim e me trouxe aqui do mesmo jeito?!”“Eu achei que eu ia conseguir te ajudar sozinha, é sério Wendy, me desculpa,eu só não suporto ver você tendo pesadelos à noite toda, sabe, eu já acordei asquatro da manhã ouvindo você chorando do meu lado por causa do que aAlly fez com você, eu queria mesmo achar o Fred pra ele resolver os seusproblemas, e eu sempre consegui me virar muito bem em Virrat sozinha, mashoje... me desculpa por você estar assim amiga.”A maior parte de Wendy estava furiosa com Kristell, mas... era de Kristellque estavam falando, nenhuma raiva contra ela amiga poderia durar mais quealguns segundos.“Tudo bem, Kris, só me tira daqui agora.”Kristell ajudou Wendy a se levantar: sentia que sua perna estava quebrada,mas se tudo fosse como ela imaginava, haveria um médico mágico emTuonela que faria seus ossos voltarem ao normal, igual nos livros do HarryPotter.Por favor, não deixe o médico se chamar Lockhart...

Pela primeira vez, ela sentiu a chuva caindo sobre seu corpo: uma

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olhada no seu braço e viu que tinha parado de sangrar, mas com certezaaquilo ia deixar uma cicatriz. Se tudo continuasse assim, logo ela poderia teruma coleção delas.O barco de Winslow estava quase à vista, e Wendy agradeceu em silêncio pornão ter ido para Virrat pelos tuneis subterrâneos de Tuonela. Nunca iaconseguir voltar do jeito que estava.

Ela já tinha passos pesados antes, de acordo com a irmã Sarah, masagora parecia até que pesavam uma tonelada, tamanho era o som que seus pésfaziam quando tocavam o chão.“Wendy.” Kristell parou de andar de repente.“Que foi?” Ela perguntou assustada.“Você matou o outro, não é?”Se já não estivesse com tanto frio, Wendy teria gelado com aquela pergunta.“Ah, não, eu não tive coragem, ele me deu um...”“WENDY!”Ela foi jogada por Kristell para o lado: tudo que Wendy viu foi Kristell sendoacertada pelos chifres do homem cervo nas costas, caindo imóvel na lama.A raiva veio da mesma forma que veio quando Fester atacou a irmã Sarah:Suas mãos viraram garras, e sentiu que não estava mais no controle quandoatacou.Sua perna ainda doía e a deixava devagar, mas não importava, a dor parecianão chegar até ela: só existia um instinto animal de vingança.Wendy sentiu suas garras rasgando a pele do rosto, mas não sentiu o segundocoice na barriga que levou. Havia imenso prazer quando partiu um doschifres da quimera, mas não se lembrava porque sua boca doía tanto.O homem cervo fugiu, deixando sangue demais para trás, Wendy tentoupersegui-lo, mas sua perna a traiu.Estava bufando, suas mãos já tinham voltado ao normal e, de repente, pareciaque tinha levado vários socos na cara, anos de brigas com Dana e a Agnesfaziam essa sensação horrivelmente familiar.“Kristell?” Wendy sussurrou, sentindo o desespero crescer ao ver a amiga nochão.

Wendy se arrastou pelo barro para chegar até sua amiga.Mas algo a agarrou pelo pescoço.Uma descarga de eletricidade passou pelo seu corpo, roubando-lhe a

consciência.

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Capítulo 17

“Wendy? Tá acordada?” Ouviu Kristell dizer.Sua cabeça latejava como se tivesse acabado de estudar matemática porquatro horas seguidas, suas pálpebras pareciam coladas nos olhos e tudo noseu corpo gritava com a dor insuportável que sentia.“Kris... eu quero ir pra casa.” Ela murmurou.“Eu também quero.”“Não, eu não quero voltar pra Tuonela, eu quero o orfanato, com a irmãSarah, com a LaVerne, a Cora, Lili, Betsy e as outras crianças.” Wendy nãotinha percebido o quanto aquilo era verdade até o momento em que aspalavras saíram da sua boca. “Até a Dana, a Agnes e a Ruth. Eu não aguentomais esse negócio de quase morrer todo dia... eu só queria saber onde meuspais estão e parar de sonhar com a Ally. Queria nunca ter descoberto que asmarcas nas minhas mãos eram garras. E...”Ela não conseguia mais falar.

“Você nunca quis desistir de nada quando a gente tava no orfanato.Mesmo quando tudo ficava difícil.” Kristell disse.

“Kris, era seguro no orfanato, e eu tinha vocês três comigo, era tãosimples quando a gente tinha dez anos, a vida era só brincar, pregar peças emqualquer lugar, de qualquer jeito, e era bom, porque nada era sério, nemnossas brigas eram sérias.” Wendy sentiu seu coração naquelas palavras.

Todos os sentimentos que vinha guardando desde que se despediu dairmã Sarah a atacaram de uma só vez, e a força desse ataque era algo que nema Harbinger da Morte e todo o exército dos D’arlit poderia sonhar em infligirnuma pessoa.

“Sabe, às vezes eu também penso em voltar: eu ganhei cicatrizes emlugares que eu não sabia que podiam ser marcados: algumas delas estão naminha pele, mas a maioria fica sob ela.” Kristell disse, no mesmo tom de vozda amiga. “É tudo parte do que chamamos de crescer.”

“Eu tive inúmeras chances de voltar, mas eu... não sei explicar, maseu não podia.”

“Como assim?” Wendy perguntou, envergonhada da sua vozchoramingada.

“Eu fiz amigos aqui, conheci coisas que eu nunca conheceria no

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orfanato... eu me encaixo aqui, e você também, nós somos mestiças.”“Eu vivia muito bem como humana no orfanato.” Rebateu Wendy.“Você vivia protegida no orfanato, Wendy.” Kristell respondeu. “Era

seguro, mas logo você ia precisar sair, você também ia precisar crescer e seencaixar no mundo. Você não poderia ficar a vida inteira pregando peças nasgarotas mais novas e roubando biscoitos dinamarqueses.”

“Eu poderia virar uma irmã e ajudar a cuidar do lugar, seria um ótimocrescimento.”

Kristell suspirou pesada, e Wendy percebeu quanta dor havia nocorpo da amiga.

“Você realmente acha que seria capaz de se tornar uma irmã noOrfanato das Neves?”

Wendy sabia a resposta para aquela pergunta.“Você nunca teria ficado lá.” Kristell continuou. “Você nasceu para

explorar o mundo à sua volta, conhecer tudo que há ao seu redor e tudo quese esconde dentro de quem você é. Você só ia ficar frustrada com vocêmesma se tivesse decidido se tornar uma irmã pelo resto da vida.”

A verdade doía quando era dita pela boca de outras pessoas.“Mesmo se você tivesse ficado no mundo do Orfanato das Neves, você ia serincompleta lá, você nunca ia poder explorar seu potencial em um mundo tãopequeno quanto aquele, onde pessoas não entendem pessoas diferentes comoa gente.” Kristell continuou seu discurso. “Você nasceu para algo muitomaior que isso, Wendy, eu sei disso, a Mary, a Christina e a irmã Sarahtambém sabiam.”“Tuonela, Virrat, quase tudo neste mundo pode ser perigoso, mas é o melhorlugar para você crescer e realizar tudo que você nasceu pra realizar, e vocênão pode arriscar ser uma pessoa grande sem se colocar em perigo de vez emquando. Por isso a irmã Sarah sempre dizia: Medo é uma jaula, lá dentro,nada pode te atingir, mas lá de dentro, não há nada que você possa atingir.”“Mas e se alguma de coisa ruim acontecer?” Wendy perguntou.“Coisas ruins sempre entram no caminho das coisas boas.” Kristell disse,apontando com a cabeça pra brancura daquele lugar onde estavam. “E ascoisas ruins só vão piorar se não fizermos nada, a nossa vida que tá em jogoaqui, a gente tem que fazer alguma coisa.”Wendy estava à beira das lágrimas: nunca esperou que Kristell Sinnettpudesse ter palavras tão profundas escondidas atrás daquele sorrisoencantador e corpo de líder de torcida.

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“Tuonela precisa de você, Wendy.” Kris murmurou por fim.Wendy olhou confusa para a amiga.“Como assim?”“Tuonela é o que sobrou do mundo ao qual nós duas e todos os mestiçospertencem, é onde nós pertencemos, e só nós podemos proteger o que énosso, seja isso um lar, um amor ou um sonho, e Tuonela se encaixa nos trêspra mim.”“Mas Kris, eu sequer sei lutar.”

“Não é só lutando que você pode ajudar Tuonela. Quando eu percebiisso, eu estava bem na frente daquele lago que liga este mundo com o doOrfanato. Enquanto me olhava na água, eu senti que não podia voltar, quenão seria certo.” Kristell confessou.

“Por quê?”“Eu disse que eu não sei explicar, mas eu sentia que eu fazia diferença aqui:eu comecei a ajudar o Kahsmin em tudo que eu podia, conheci o Edgar, e eumeio que salvei ele. Ou pelo menos o lado criativo dele.”“... como assim?”“Ele escreve, e é lindo,” Wendy rolou os olhos ao ouvir essa parte, aindaestava encucada com o que a Victoria disse sobre a Kris tirar vantagem doEdgar, “mas é mais inseguro, a autoestima dele é uma lástima. Da pra ver,né?”“Aham.”‘Um dia ele tava escrevendo um poema, sobre um corvo falante, e eu li porcima do ombro dele e... nossa, eu achei fantástico, e você sabe que eu detestopoemas.”“Você detesta ler em geral.”“A gente muda com o tempo. Eu elogiei aquele poema e descobri que eleestava pronto pra jogar ele fora, ou deixar o Allan mudar o que ele escreveu.”“Como assim mudar?”“O Allan é um chato com essas coisas, ele pega tudo que o Edgar faz, falaque não tá bom porque ninguém vai entender nada, e muda tudo. Quando eletermina, fica parecendo que uma criança que escreveu, e o Edgar aceitavatudo que ele falava porque as pessoas gostam mais do Allan.”“Que deprimente.”“Eu sei. Tudo que ele precisava pra mudar era um elogio. Ele viu que nãoprecisava ceder à vontade do Allan para as pessoas gostarem dele, e ele diz otempo todo que só mudou por minha causa. Ele precisava de mim. Eu nunca

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fiz uma diferença assim no Orfanato.”“Sabe, ele ainda não é perfeito nisso, eu ainda tenho que intervir às vezes,tipo naquela piada sobre o anjo ter um apontador no bolso, Edgar chorou derir quando escreveu aquilo, mas eu assumi aquilo como meu porque ele nãose sente seguro o bastante pra defender seu próprio humor.”

“Eu sei que nada disso parece grande coisa, mas pra ele foi como se avida dele tivesse sido salva, e é isso que realmente importa, Wendy, ele estámais feliz agora, ainda precisa de ajuda, mas tá melhorando. E ele não foi aúnica pessoa que eu consegui ajudar desde que cheguei aqui, só a primeira, etudo que eu fiz foi ser eu mesma... ser eu mesma em Tuonela fez a diferençana vida de tantas pessoas, e eu acredito que você é capaz do mesmo, Wendy,até mais.”Wendy viu onde a amiga estava chegando.“Mas, e as lutas, os D’arlit, como você aguenta tudo isso?”“Eu já te respondi isso! Olha, o Kahsmin me disse que as vezes existe umpreço a pagar pra viver a vida que você quer e, sabe, sentir que eu sou útil praquem me cerca vale qualquer preço nesse mundo ou no próximo.”Wendy não disse nada por um bom tempo, havia um tempo, seus olhos sefecharam de novo enquanto ela engolia as palavras da amiga: nunca esperouque Kristell Sinnett um dia diria essas coisas, e achou lindo ver como a amigaestava mudada.A dor no seu corpo diminuiu e ela decidira reabrir os olhos, se arrependendono mesmo instante, quando uma luz branca maligna penetrou como umabritadeira pela sua retina.“Arg, isso é uma lâmpada.”“Aham.” Kristell disse.“Eu achei que não tinha eletricidade por aqui.” Wendy disse confusa.“Por quê?”“Porque eu não vi nada elétrico em Tuonela.”“Ah, desculpa, eu deveria ter avisado isso também: existe sim eletricidadeaqui, a gente só não usa ela de um jeito normal em Tuonela porque os D’arlittêm meios de rastrear essas coisas: se eles descobrissem que existe umacidade clandestina no subterrâneo, bem, não seria bonito.” Kristell disse.“Entendi.” Wendy disse.Quando seus olhos se reacostumaram com a luz, decidiu prestar mais atençãono cômodo: era um quarto pálido como aquelas larvas que vivem no fundodas cavernas, com um cheiro de limpo tão forte que a deixou com vontade

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de... isso aí que você tá pensando. Havia armários, uma pia, uma janela e umaporta ali no quarto.“Então... onde estamos?” Wendy perguntou.“Olhe as janelas.” Kristell respondeu, e Wendy viu um enorme pássaro pretocom asas azuis bicando o vidro, através de enormes barras de metal.“Isso é uma prisão?”“Uma das piores.” Kristell disse sombria. “Estamos no Hospício de Virratpara Demônios.”Wendy arregalou os olhos: por ironia do destino, seu primeiro pensamentofoi a senhorita Danielly O’Hara dizendo que ela ainda ia acabar numhospício.“Como a gente veio parar aqui?”“Goblinianos: um tipo de demônio da altura do seu joelho, feio que dói dever. Um deles pulou no seu pescoço e te deu um choque, você desmaiou eentão eles nos trouxeram pra cá e nos prenderam aqui.” Kristell disse comose aquilo fosse a coisa mais normal do mundo.“... por quê?”“Eu não sei. Nada de bom com certeza.”“Como a gente sai daqui?”“Com um milagre.”“Como assim?!” Wendy perguntou.“Anos antes dos D’arlit atacarem Tuonela, esse lugar servia pra prender tantodemônios loucos quanto demônios ominosos, desses com poderes pra deixaros OUTROS loucos. Nada legal, mas funcionava bem pelo que o Kahsminconta. Isso até Ethan Blakewood chegar. Depois dele, as coisas mudarambastante por aqui.”

“Por quê?”“Você vai odiar isso, mas ele era o espião e olheiro dos D’arlit, e

Kahsmin acredita que ele tomou esse lugar, deu um fim nos médicos e agoracaptura mais gente pra aumentar a coleção de loucos que ele mesmo criaaqui.”

Kristell estava certa: Wendy odiou isso, mas...“Se ele era um D’arlit, então ele não tá mais aqui, certo? A maldição

teria matado ele, né?”“Pode até ser, mas lembra que o Winslow disse que maldições atraem

os ominosos?”Sem aviso nem cerimônia, o pássaro preto de asas azuis voou da janela.

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Wendy não conseguiu acompanhar tudo ao mesmo tempo: As luzes seapagaram, a porta se abriu, sua cama começou a ser arrastada pelo corredorafora.

“WENDY!” Kristell gritou. “O QUE QUER QUE ELES FAÇAM,SEJA FORTE!”Ela usou toda sua força para gritar. Um grito repetido e ecoado por tudo quevivia dentro dos quartos do Hospício Para Demônios de Virrat.

“Por que estamos indo embora?” Kahsmin gritou para Autumn pelatempestade.“Estou sem facas e não consigo achar as que joguei nessa chuva.” Autumndisse tão baixo que ele quase não conseguiu ouvir. “Mas se quiser voltar elutar sozinho, divirta-se.”Autumn estava tremendo sob a chuva: era difícil para Kahsmin lembrar quealguém como ela pudesse sentir coisas tão triviais como frio, e que ficar semarmas realmente a incomodasse. Curioso como fosse, porém, uma parte deleficava aliviado com isso, fazia dela um pouco mais humana, como ele.Mais de meia hora atrás, ela surgiu entre as sombras dentro da casa onde ele eJames estavam, dizendo que eles tinham que ir. Ambos saíram correndo sob achuva, Kahsmin com James no colo. Estava começando a suspeitar que haviaalgo errado com o garoto. Não era normal conseguir dormir naquela chuva.“Descobriu alguma coisa?” Kahsmin perguntou.“Descobri que você é idiota o bastante pra achar que eu vou descobrir algoenquanto estou lutando.”Em outras palavras “sim, mas eu conto depois”.Autumn o fez parar tão rápido que ele quase derrubou o garoto no chão.Antes que pudesse dizer qualquer coisa, ela colocou um indicador no seunariz, pedindo silêncio... e Kahsmin tentou não rir quando percebeu que elatinha mirado sua boca.“Temos companhia.” Ela sussurrou.Duas palavras capazes de deixá-lo mais alerta que um cão de guarda numaprisão.Ele forçou sua visão o máximo que pode, mas só via um caminho vasto,abandonado e até um pouco deprimente pela frente.

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Pensou que haveria algo quando fosse olhar para os lados, mas não havianada além de uma mulher com cabelo rosa encharcado e rosto extremamentealerta e anguloso. Ele não podia negar que achava Autumn uma mulher de...enorme beleza, mas evitada pensar nisso por mais que alguns segundos: elasempre percebia, e não reagia bem.Um som, um rugido tempestuoso o trouxe de volta à desolação de Jussarö.Kahsmin começou a procurar ainda mais desesperado ao seu redor: água,água, Autumn, água, lama... um segundo rugido, mais próximo, soando comouma mistura de grasnado de ave e com a ferocidade de um leão.Uma sombra passou sobre ele, e não era Autumn.Havia algo enorme no céu, circulando os dois.“... me diz que aquilo não é o que eu tô pensando que é.”“Não é.” Autumn disse seca.“Obrigado.”“Dragões estão extintos, aquilo é uma Serpa.”Um terceiro rugido ensurdeceu Kahsmin, que sem perceber, caiu de joelhosao sentir a imensidão da criatura voando sobre eles, quase ignorando porcompleto a lama que atravessava suas roupas e a chuva que açoitava seurosto.“Estamos mortos.”“Fale por você.” Autumn disse, e entrou nas sombras mais uma vez.“AUTUMN!” Kahsmin se arrependeu de gritar: a Serpa deu um rasante bemna sua direção quando ouviu a voz dele.Ele se abaixou quando o monstro passou por cima dele: a Serpa era quaseigual um dragão, mas com duas patas ao invés de quatro, tinha bem menosescamas e, se ele não estava errado, não cuspia fogo, mas tinham veneno.A Serpa estava levantando voou e pronta para atacar de novo.

Quando alguma coisa deu errada.E Kahsmin sabia exatamente para onde olhar dessa vez.Havia no chão uma sombra de uma mulher segurando a sombra da cabeça dacriatura, que se debatia como uma galinha no abate, caindo sem graça sobre olamaçal.Ele sentiu o chão tremer enquanto a Serpa de uns oito ou nove metros sedebatia no chão: tão grande, tão indefesa.Finalmente, a cabeça da criatura parou de se mexer e Autumn ressurgiu dassombras quase que inteira, exceto as mãos, que continuavam segurando acabeça da Serpa através da escuridão.

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“Achei que ia me deixar virar comida.” Kahsmin disse aliviado.“Tentador. Temos carona agora. Suba.” Ela ordenou, enquanto subia pelopescoço da Serpa.Kahsmin obedeceu hesitante e, desde aquela hora, estavam voando de voltapara casa.

Ele não conseguia se lembrar quando a chuva parara, nem quando osol ficou visível no horizonte, tampouco quando fora a última vez que sentirao vento bater na sua cara com tanta força. Só se tornou ciente dessas coisasquando Autumn disse: “Os D’arlit estão com medo.”Ele franziu a testa.“Você sabe por quê?”Autumn tossiu com força. Kahsmin podia estar errado, mas tinha quasecerteza de que tinha visto algumas facas guardadas sob as roupas delaenquanto ela se inclinava com a tosse.“Odeio essa chuva.” Ela disse por fim, limpando a boca no braço. “Pareceque alguém penetrou o castelo de Allenwick algumas noites atrás, matoutodos os guardas no caminho. Não sabem porque, nem quem foi oresponsável. Eles estavam discutindo isso antes de eu atacar.”“Interessante. Talvez eu descubra algo quando Neri for a Tuonela.” Kahsmindisse, se distraindo por uns momentos com a beleza da vermelhidão do solpoente: nunca imaginou que o veria do topo de uma miniatura de dragão.Mas algo tirou toda sua atenção do horizonte. Um pequeno comichão na suacabeça que precisava ser posto pra fora, aqui, e agora.“Sobre a–”“Stacy.” Autumn o cortou.“Como é?”“Essa Serpa se chama Stacy.” Autumn disse como se fosse óbvio.“... certo.” Kahsmin disse desconcertado, “Autumn, eu queria fazer umapergunta.”“Espero que tenha pensado antes de fazê-la.”“Você não gostar da Wendy tem alguma coisa relacionada ao Caleb?”Kahsmin perguntou, ignorando por completo o tom cínico irritante dela.Autumn se virou para Kahsmin tão rápido que ele achou que alguma coisatinha dado terrivelmente errado.“Você estudou para ser burro? Que tipo de pergunta medíocre é essa?”A Serpa rugiu para o sol, finalmente sumindo no horizonte, enquantoKahsmin começava a reconhecer as montanhas que cercavam Tuonela.

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“É apenas uma ideia que eu tive, uma nada agradável.” Kahsmin disse porfim.

“Bonsoir mon ami, je sois le docteur De Singe, e você está apresentandosinais claros de demência.” Declarara o homenzinho afetado que entrou nonovo quarto de Wendy.Wendy percebeu em meio segundo que não gostava desse cara, com a perucae roupas roubadas de algum museu do século XVII, vozinha afetada esotaque difícil.“Isso não faz sentido!” Wendy quase gritou, mas o bom-senso a impediu.Não gostava dessa sala, da lâmpada âmbar pendurada sobre sua cabeça,balançando igual minhoca na boca de criança, não gostava de como amaquiagem daquele cara fazia ele parecer um cientista louco surgido daimaginação decrépita de alguém que passou a vida numa solitária.“Silence, enfant! Dói ver alguém tão jeune sofrer de démence. C’est la vie,cruelle vie.” Ele falou enquanto dava uns pulinhos e risadas ao redor da mesa.Odiava o fato de estar sem a Kristell e odiava todas as perguntas que essecara fizera para ela desde que chegara, e não entendia porque concordou emresponder.Mas, acima de tudo...“Eu não sou louca.” Wendy murmurou.“Oh s’il vous plaît mon chéri,” ele disse entre mais risadinhas agudas, “vocêacredita que veio aqui por um lago mágico e que uma enfant de dez anos vema ser a causa de seus pesadelos, e você tem o mesmo rêve quand vousdorme.”“O lago existe!” Bom senso falhou em silenciá-la desta vez.Wendy tinha que admitir, o magrelo era bem forte: o tapa que recebeu depoisde dizer aquilo doeu quase tanto quanto qualquer um que tivesse recebido dairmã Romena.“Sem gritar, enfant. Este tal lago não existe, nem seus pesadelos ou estaAbby de quem você fala.” De Singe disse com um olhar malicioso.“Ally! O nome dela é Ally!”Antes de dizer mais alguma coisa, Wendy se lembrou de Kahsmin dizendoque poucos sabiam do lago. E se esse cara fosse um D’arlit? E se a maldição

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fosse só uma lenda e tudo isso fosse um truque deles para descobrir ondeestão os outros mestiços? Será que Wendy havia acabado de destruir osegredo que Tuonela vinha guardando há quase duas décadas?“Ah, une dernière chose, enfant. Com quem estava falando antes de euentrar?”...ela odiava...“Não estava falando.” Wendy disse.“NE MENS PAIS!” Um segundo tapa acertou seu rosto, e esse merecia oprêmio de “tapa mais dolorido do mundo”, a irmã Romena teria inveja. “Jesuis désolé. Mas...” ele disse, recuperando a compostura e rindo afetado denovo, “não minta para De Singe, eu ouvi você falando. Quem era?”“Wanda.” Wendy disse, sem tirar os olhos dele enquanto ele rodeava suamesa/cama.“Ah, une amie. E onde está Wanda. Eu não a vejo!” Ele disse, esfregando asmãos e fingindo procurar alguém no quarto.“Só os inteligentes podem vê-la.” Wendy disse com um riso maroto. Umterceiro tapa e ela começou a sentir o gosto do sangue na sua boca.Lágrimas ameaçaram cair dos seus olhos. Apenas o pedido de Kristell paraque ela fosse forte evitava que elas caíssem.“Eu pareço estar brincando, mademoiselle Wendaline?” De Singe perguntoucom o tom mais sério que suas roupas ridículas e sua maquiagem de bonecade porcelana permitiram.“Meu nome é Wendy. Só Wendy.”“Você é uma pobre victime da demência, incapaz de se lembrar seu nomecompleto: acredita que existem lagos mágicos, presa no seu mondeimaginaire, com seu Orphelinat das Neves.”... ser chamada de...“Que tipo de demônio é você?” Wendy perguntou, deixando um pouco dosangue na sua boca escorrer.“Excuse moi?! Eu sou um estudioso, eu sou capaz de reconhecer umelemento podre quando tropeço em um, mademoiselle Wendaline.”Wendy cuspiu a maior bola de saliva, sangue e catarro que conseguiu fazerna cara dele.“Meu. Nome. É. Wendy.”De Singe não reagiu dessa vez, não fez seus gestos afetados, apenas tirou umdaqueles lenços bordados, que Wendy via os homens usando em qualquerfilme que se passasse em 1800, e limpar o rosto, criando uma falha bem

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grande na sua maquiagem branca.“Igor.” Ele chamou, sem tirar os olhos de Wendy, que retribuiu o favor.A porta se abriu e um duende entrou por ela. Wendy acreditou que aquilo erao que Kristell havia chamado de Gobliniano mais cedo.Ele subiu na mesa, onde Wendy podia vê-lo sob a luz: era como uma gárgulamisturada com ogro: cinza, feio, com roupas surradas e um capuz tão finoque não devia protegê-lo de nada.“Tratamento de choque. Lateral do crânio. Mantenha-a acordada. Faça doer.”De Singe disse se afastando.“Que?! Espera, não! NÃO!” Wendy continuou protestando enquanto acriatura horrenda e babona colocava os dedos frios e gosmentos nas suastêmporas.“Un moment, Igor.” De Singe disse, e Igor se afastou frustrado dela,enquanto ele se aproximou até ficar cara a cara com Wendy. “Nada disso,Wendaline, aconteceria se você não se comportasse como uma...”E ele colocou a boca no ouvido dela, para dizer num cochicho brincalhão.“... louca.”Wendy deixou de ver claramente. Seus pés foram os primeiros a se soltaremda cama, a tempo de acertar um chute no queixo do De Singe.

Sentiu os seus pulsos se cortarem quando quebrou as correntes que aprendiam, mas a dor não incomodou.Viu quando arremessou De Singe contra a parede com tanta força que elarachou ao redor dele.Então o choque, na sua cabeça, cortesia de Igor.Ela caiu no chão frio, viu suas mãos voltando ao normal, e De Singe selevantando.Ele riu como um maníaco enquanto caminhava para um canto escuro demaispara Wendy ver o que era.“Mademoiselle, existem traitements até para os piores casos.” Ele disse decostas, o corpo dele tremia tanto quanto o dela. Igor começou a rir como omonstro grotesco que ele era. “Sua mente, no entanto, foi affecté de unmanière que vai além dos meus méthodes traditionnels.”Ele se virou para Wendy: olhos brilhando roxos, sorriso mais afiado que alíngua de LaVerne depois de assistir filmes depois das onze na televisão, esuas mãos...Seringas com agulhas tão finas que ela só podia vê-las quando a luz refletiano metal.

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“O que é isso?” Sua voz era todo o desespero do mundo naquele instante.“Seu traitement avec moi.” Ele disse com a voz tão aguda e estridente quechegou a machucar os ouvidos de Wendy.

Sob a luz, Wendy podia vê-lo como um demônio agora. Não havianada naquele rosto que dissesse algo diferente de “eu vou fazer coisas ruinscom você”. Ela teve certeza naquele instante que, mesmo se não tivesselevado um choque, não conseguiria fugir daquele olhar.

“Você vai sentir un piqûre no pescoço. E quand acordar, sua memóriaestará zerada, assim começará o traitement.” Ele disse, se agachando ao ladodela.

“Não... você não vai...” Wendy disse chorando.Ela sentiu a agulha penetrar seu pescoço.“EU NÃO QUERO ESQUECER!” Ela berrou com toda a força dos

seus pulmões.“Au revoir, Mademoiselle Wendaline.”Wendy pensou cinco coisas de uma vez: Christina, Caleb, Kristell, IrmãSarah e Fawkes.Então tudo ficou branco.

Uma explosão de luzes, sons, memórias.Todas elas.Ficando cada vez mais distantes.

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Capítulo 18

Caleb não percebeu quando suas mãos foram soltas, quando seuqueixo caiu ou quando a imagem de Wendy realmente sumiu da sua janela,muito menos sabia dizer em que momento o espectro havia reentrado em suamorada.

“Ah, Caleb Rosengard começa a sofrer as consequências.” O espectrosibilou enquanto perambulava pelo quarto. “O mestre é sábio, o mestre sabemandar uma mensagem e mostrar o que está em jogo, o mestre mostra àCaleb Rosengard o que acontecerá com as pessoas que tenta deliberantementeproteger caso o acordo seja quebrado.”

Caleb estava tendo dificuldade para pensar: não conseguia ver nadaalém da expressão de horror no rosto de Wendy nos últimos segundos,estampada em sua memória.

Ele foi incapaz de ajudar.Como fora dezoito anos atrás.“Ela ainda está viva?” Caleb perguntou, sem tirar os olhos do vulto

sombrio que perambulava ao redor do quarto, desinteressado de tudo.“Não vejo como apagar memórias pode matar alguém.” O espectro

zombou.Algo na voz dele trouxe Caleb de volta a si.Gambler é um mentiroso, o espectro é um mentiroso, então isso que

acabou de ver...“Isso não aconteceu, não é?” Caleb perguntou com raiva, segurando o

espectro contra a parede.“Ora bem,” o espectro disse com um sorriso viscoso, “Caleb

Rosengard é livre para descobrir sozinho.”Claro, a única verdade era: Wendy e Kristell estavam em Virrat. Onde

ele também deveria estar.Antes que o espectro pudesse perceber o que estava acontecendo,

Caleb o agarrou pelo pescoço e arremessou-o brutalmente contra chão,fazendo-o estatelar-se como o peso morto que era.

Caleb sentiu toda a dor que deveria ser do espectro, e a estancou comsua fúria.

Vestiu seu sobretudo pesado, ignorando o ser cambaleante enquanto

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abotoava apertava as fivelas nas mangas.Já tinha jogados os cabelos brancos para trás, pronto para esconde-los

com o capuz, mas desistiu da ideia quando percebeu o quanto ficaria parecidocom aquela coisa.

Estava em pé sobre o batente da janela quando o espectro o chamou.“Onde Caleb Rosengard vai?” Sibilou o espectro.“Virrat, onde sou livre para descobrir sozinho o que aconteceu.”

“Ora Caleb Rosengard! Como devo interpretar esta decisão que tomou?”“Como quiser.”Estava pronto para pular para os céus, mas o espectro se materializou na suafrente, sempre a sorrir sob a capa: “Espero que Caleb Rosengard saiba: possointerpretar isso como quebra de contrato.”“Como queira.” Ele respondeu seco. Tentou se desvencilhar mais uma vez,mas a criatura foi insistente, colocando a mão quase-humana no peito deCaleb.“Acho que Caleb Rosengard não entende a gravidade da situação. Se CalebRosengard deixar de ser o dono da própria vida, não poderá fazer mais nadapela garota, ou por Tuonela. Caleb Rosengard conhece os poderes do mestre,não acredito que gostaria de desafiá-lo.”Caleb ficou paralisado, os olhos cinzas injetados na criatura grotesca. Partedele acreditava que aquilo era um blefe, mas sabia o que estava em jogo casonão fosse: sem ele, Autumn não seria o bastante para proteger Tuonela casoos D’arlit fizessem um novo ataque.

E se os D’arlit realmente atacassem, a história de dezoito anos atrás serepetiria.A culpa seria dele.

De alguma forma, a cidade descobriria do seu acordo, descobriria queele o havia descumprido e que, por sua culpa, Tuonela agora estava à mercêdos D’arlit. Se houvessem sobreviventes, a única memória que teriam deleseriam de como “aquele que deveria nos proteger” os traiu.

Pela segunda vez na vida, ele seria o traidor.A ideia era insuportável.“Então, Caleb Rosengard. Como devo interpretar sua decisão?” O

espectro repetiu.No entanto, havia Wendy: a primeira pessoa a abraçá-lo desde de a

invasão de Tuonela (e também a única que o chamava de elfo), os olhosverdes com pintinhas castanhas, o jeito que ela ria de tudo.

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Ela não achava que ele era um traidor.Ela estava em perigo, agora.Caleb atirou uma rajada violenta de vento contra o espectro, que voou

cambaleante pela janela: quando ele estava sobre a praia, Caleb conjurou eatirou flechas de luz, sentindo o barulho de cada uma delas perfurando asroupas dele na velocidade do som, com um prazer que não sentia desde que...na verdade, não se lembrava da última vez de viver um prazer.

Nenhuma flecha o atravessou, mas os arranhões foram fundos e Calebsentiu todos eles, mas a dor não era nada perto do deleite que sentia ao atacaraquela coisa.

Antes que o espectro caísse no mar, Caleb o ergueu com o vendaval.Ele sorria de verdade quando começou a girar o ar ao redor do

espectro, mais e mais rápido, forte e mortífero, fazendo janelas, areia,pedaços de madeira voaram em direção ao pequeno furacão que criara napraia.Um toque final: água.

Caleb fez seu furacão tocar o mar, e logo, ventos e águas se uniram.Antes que a cidade toda começasse a ser arrastada pelo tornado em fúria nabeira da praia, Caleb, com um único gesto, mandou os ventos para longesobre o mar, de onde nenhuma criatura normal teria chance de sair com vida.“Interprete assim.” Ele bufou.Sem perder tempo, Caleb pulou, deixando o ar o envolver, sustentando-osobre a praia e, o mais rápido que sua força permitia, alçou voou em direção àVirrat. Deixando nada além de um estrondo de som para trás.

Alguns minutos antes.

“Por que eu tô aqui?!” Fawkes perguntou para o lobo que corria sobre a terramolhada.Claro, Anuk não respondeu, ele só fazia isso com Caleb.O lobo aparecera nos túneis subterrâneos de Tuonela e, quando encontrouFawkes, praticamente o arrastou por uma das cadeias de cavernas mais

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longas que ele já atravessara.“Anuk... onde a gente tá, amigão?” Ele disse, agradecendo em silêncio pornão estar mais chovendo aqui, ia acabar com o cabelo dele.O lobo o fez correr entre casas destruídas, cheirando madeira podre, semnenhuma vida além deles próprios e de um pássaro azul e preto sobrevoandoa cidade abandonada.Então, de súbito, pararam. Seu coração gelou... quando viu seu reflexo numajanela e notou que suas sobrancelhas não tinham crescido muito desde o“acidente” com uma bola de fogo em Tuonela.Anuk o arrastou pela roupa da janela e apontou com a pata para cima.

O arrependimento cresceu dentro dele como fogo em folha secasquando leu, em enormes letras douradas, as palavras “Hospício ParaDemônios de Virrat”.

“Eu não vou entrar aí.” Fawkes disse, jogando os braços pro ar ecomeçando a retornar pelo caminho que levava para o túnel entre Virrat eTuonela.Anuk mordeu sua manga para segurá-lo.“O quê? Você tá louco pra me querer aí dentro?!”O lobo apenas puxou sua roupa para mais perto da janela gradeada.“Véi, eu não vou entrar aí. E se o Ethan tá aí dentro?”Anuk o olhou com uma cara que parecia dizer “E daí?!” e continuouapontando para o hospício.“E daí que ele é um D’arlit! Eu não acredito na maldição de Virrat, e vocênão sabe quanta gente morreu só porque esse cara disse os nomes delas, nãoé?! A melhor parte da minha família virou história por causa desse monstro!”Anuk continuou olhando com cara de “E daí?!”“E DAÍ QUE ESSA DROGA É UMA ARMADILHA GIGANTE!”A expressão do rosto do lobo mudou, e Fawkes reconheceu aquele olhardesafiador, aquele que ele mesmo sempre usava quando pergunta “está commedo?”.“Eu não tenho medo. Só não tenho um motivo pra entrar aí.”Um grito, horrivelmente familiar, ecoou de dentro do Hospício paraDemônios de Virrat.“Isso foi... Wendy?”Anuk fez que sim com a cabeça peluda.‘Ela tá aí dentro?’ Fawkes perguntou, apontando para o hospício.O lobo assentiu de novo.

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Fawkes suspirou tão devagar que parecia que sua vida acabaria quando todoar escapasse os seus pulmões. Anuk sabia que Fawkes tinha mentido quandodisse que não tinha medo. Nunca é seguro entrar num covil de ominosos.

Entrar aí seria o mesmo que convidar a morte para jantar, prepararcogumelos venenosos para dois e servi-los com suco de laranja com açúcar eveneno de cobra, enquanto alguém lia Shakespeare em voz alta ao fundo(pessoas morrem de tédio também).Um olhar pela janela: goblinianos arrastando uma mesa de metal com o queele tinha certeza ser Wendy, entrando em um quarto com um número que elenão conseguia ver.Se ele não fizesse nada, ninguém faria.“Beleza lobo, é hora do herói.” Ele murmurou.E com toda sua engenhosidade relâmpago, bolou um plano infalível,invejável, inimaginável, impenetrável e totalmente imprevisível pra fazer suaentrada triunfal no hospício.Começou a lamber o vidro da janela.

“Você gritou.” Stefanova disse, mexendo o peão para e4.A Harbinger não respondeu, mas bateu o seu próprio peão na e5.“O que acontece quando você deixa suas emoções te controlarem?” Peão parad4.“Meu adversário ganha.” Respondeu, descontando toda sua raiva na forçacom que colocou seu peão no d6, fazendo as outras peças pularem para cima.“Sobre o que conversaram?” Cavalo f3.“Primeiro, ele se enfureceu porque ataquei Jussarö sem o consentimento dele,depois ele me humilhou por ter gasto toda minha força em um ataque,permitiu que todos os presentes rissem da minha fraqueza por ter adoecidoapós o ataque e... ele deu a entender que não acreditava que eu agi sozinha.”Peão para d4, tomando o peão de Stefanova.“Não podia ter ficado quieta, só desta vez? Ia ferir demais seu orgulho?!”Stefanova disse suplicante, peão para c3.“Eu não ia dizer nada, mas,” ela comeu o peão de Stefanova em c3 também,“ele tinha que esfregar na minha cara como minha irmã nunca teria sido tãoidiota a ponto de se esgotar numa batalha tão insignificante e apontar na

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frente de todos, como ela era superior a mim, em tudo que fazia. Eu nãotenho controle quando sou humilhada.”“Ele sabe disso.” Stefanova comentou, tomando o peão da Harbinger com ocavalo na c3.“Eu só fiz aquilo para mostrar que eu sou boa,” a Harbinger continuou, “queeu sou capaz do mesmo que minha irmã, que posso ser melhor que ela foi,mas por melhor que eu seja, só existem defeitos para ele em tudo que eu faço,ele não vê nada além de defeitos em mim,” ela arquejou, mexendo seu bispopara g4 distraidamente, “eu não sei porque ainda tento.”“Querida, você é a maior guerreira de todo o reino que seu pai construiu.Duvido que ele mesmo teria qualquer chance lutando com você.” Stefanovadisse, bispo para f4.“Ele não precisa lutar para ganhar de mim.” Ela disse, sentindo a melancoliadar lugar para a raiva de novo, cavalo para d7. “Por que ele precisa mecomparar com ela? Minha irmã nos traiu e está morta agora, eu obedeço a ele,eu me excedi em todas as campanhas que ele me designou, por que... por queele me odeia tanto?!”“Acalme-se, princesa.”

“Não me chame de princesa!” A princesa berrou.O silêncio ecoou entre as duas, orgulho estancava a vergonha da

Harbinger por ter gritado, enquanto resignação soturna espalhava-se comotinta na água no rosto de Stefanova.

“O que você vai fazer em Tuonela, querida?” Stefanova perguntoupor fim, rainha c2.“Recebi informações de que há um abrigo de mestiços escondido em algumlugar da cidade, eu quero checar por mim mesma.” Ela respondeu, rainhapara f6.“Entendo, e caso encontre algo, o que fará? Qual é o plano?” Bispo para g5.“Informar Allenwick.” Ela disse desgostosa.“E caso não haja tempo para isso? Caso os mestiços e prováveis rebeldes deTuonela ataquem? Qual é o plano?”“Eu não tenho plano.” Ela murmurou distraída, rainha para g6.“Por que não?” Cavalo para d5.“Planos são a primeira baixa num campo de batalha.” Peão c6.“Por isso você precisa ter vários deles. Vários planos que levem para omesmo destino.”“QUE DROGA STEFA! Ninguém sabe que estou indo! Só os sete, e eu só

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vou para uma missão de reconhecimento, para ver se as informações quetenho são verdadeiras! Mais nada! Eu não preciso de outro pai questionandotudo que eu faço.”A Harbinger bufava de raiva enquanto Stefanova apenas esperava paciente.

“Xeque-mate.” Stefanova disse por fim.“... o quê?”Stefanova moveu cavalo c7.“O que acontece quando você deixa suas emoções te controlarem,

querida?” A velha com um olho fosco e pele enrugada perguntou.A Harbinger bateu com o braço na mesa, espalhando todas as peças

pelo chão, deixando seus baques múltiplos ecoarem sua raiva.“Saia.”

Stefanova fechou os olhos desapontada, se levantou e, antes de sair do quarto,fez que ia dizer alguma coisa, mas mudou de ideia, e deixou a Harbingersozinha com sua raiva.Apenas quando a Harbinger teve certeza de que ninguém estava ouvindo, eladisse: “Eu perco, Stefa. Eu perco.”

“SAI! SAI! EU NÃO QUERO VER MAIS NADA!” Ela gritou, o estapeandocom toda força que uma garota loira atordoada pode ter.“Kristell, sou eu, Fawkes.” Ele disse, reparando em algo na garota que, comcerteza, a iria fazer querer matar tudo e todos naquele lugar.Os olhos dela finalmente entraram em foco, encontrando os deles. Nuncatinha visto um olhar tão assustado e perdido se transformar em raiva tãorápido.“Fawkes?!” Ela disse, se levantando, a cascata loira caindo dos ombrosenquanto ela ficava na ponta dos pés pra ficar mais alta que ele.“É, eu...”PlaftUm tapa na cara, tão forte que ele até viu estrelas.“PRA QUE ISSO?!”“Por ter beijado metade das meninas do dormitório!”“A gente nem namorava quando eu fiz isso!” Ele disse defensivo. Apesar denão ter tanta certeza de que estava dizendo a verdade ou não.

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As coisas ficaram estranhas depois disso. Kristell o abraçou e começou achorar baixinho.“Obrigada por vir... Fawkes eu tava com tanto medo... eles me fizeram ver esentir coisas que... eu não tinha controle sobre mim e... foi horrível!” Elachorou baixinho por um bom tempo antes de falar de novo, “... como vocêentrou aqui?”“Longa história, envolve lamber vidro e atuação, como você veio pararaqui?”“Longa história, mas... WENDY! Você achou ela?”“Não.”“Então vamos!” Ela disse enquanto corria até a porta, “mas não pense queestá perdoado.” Acrescentou, Fawkes já deveria esperar por isso.

Quando a luz do corredor caiu sobre o corpo de Kristell, Fawkes viuque as roupas dela estavam rasgadas, e que ela parecia ter lutado contra umurso gigante pelo tamanho dos arranhões no corpo dela, e ele engoliu secoquando percebeu que alguém teria que dar péssimas notícias para ela sobre oque tinha acontecido com... era melhor ele não pensar nisso.

Kristell parou no corredor de repente, olhando para Fawkes como setivesse se lembrando de um recado que deveria dar: “Não se atreva a usarminha amiga, ou eu vou machucar você.”

Recado dado.Ambos continuaram a busca pelo hospício, Fawkes destrancando todas asportas que via pela sua frente com a...“Onde conseguiu a chave mestra?” Kristell perguntou.“Tava com uma quimera onde eu comecei o incêndio.” Ele disse, fechandooutra porta.“Incêndio?!” Kristell quase gritou.“Por que você acha que os corredores estão vazios? Comecei um incêndio dooutro lado do hospício.” Ele sussurrou, destrancando o quarto W14A.“E se a Wendy estivesse lá?!” Kristell perguntou enquanto os dois olhavam oquarto vazio.

Vazio de gente.Por que havia um quarto rosa com mesas e xícaras vitorianos no meio

do hospício?“Eu coloquei fogo na ala dos ominosos. Ela não tava lá, eu chequei.” Eledisse, correndo para o próximo quarto.Kristell o agarrou pelo pulso e o colocou contra a parede, olhando-o bem nos

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olhos: “VOCÊ É DEMENTE?! SE ESSES DEMÔNIOS ESCAPAREM NÓSESTAMOS MORTOS!”“A gente cai fora antes disso.” Ele disse com mais segurança do que sentia.“Por que você tá tremendo?”“Você não quer saber o que aconteceu comigo lá dentro.” Ela respondeu, seafastando dele. “Acredite, eu daria qualquer coisa pra esquecer.”Os dois terminaram de abrir os quartos, vez por outra encontrando demôniosque agiam como mancebos, corujas, desentupidores de privadas e os maisperturbadores: aqueles que só olhavam com olhos e sorrisos macilentos edementados. Nunca diziam nada, mas isso não significava que Fawkes eKristell não pudessem ouvi-los. A loucura era espalhada apenas com o olhar.Mas fechar as portas eram sempre o bastante para parar isso.Ele virou o corredor e, rápido como Capitão e Terror andando sob a terra,empurrou Kristell para trás, antes que eles a vissem.“Você, por que fora do quarto?” Um gobliniano coaxou pra ele, enquantooutros.“Tô limpando, seu troço feio.” Fawkes disse, com sua melhor voz idióticaque podia enquanto lambia a parede do seu lado.

Nota mental: na próxima vez que tiver que se passar por louco, fingirser uma luminária.O gobliniano o rodeou, enquanto Fawkes lambia a parede e imploravamentalmente pra sua ex-namorada não sair de trás do corredor.“Você é Haydn, cara novo, Dusa avisou.” Ele continuou com a voz de sapo,quase impossível de entender.“Aham.” Fawkes disse, fazendo um positivo com os dedos, enquantocontinuava lambendo a parede fria.O gobliniano gargalhou como se fosse uma hiena louca, pigarreou e cuspiuum negócio verde esbranquiçado, pegajoso, gosmento, repulsivo e nojento nochão.“Limpa!” Ele disse, se matando de rir com a cara assustada do Fawkes.Ele olhou para Kristell, mas ela também estava rindo e segurando o máximoque podia para não fazer isso alto. De repente ele entendeu porque nenhumdos amigos dele gostavam de ex-namoradas.“Tenho que que terminar a parede.” Ele gaguejou.“Termina depois, chão, agora. Ou choque em você.” Fawkes estavaligeiramente desconfortável com o jeito dessa miniatura de gárgula falar,parecia demais com aqueles índios que quase cozinharam a Wendy.

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Ele se encontrou sem opção, tinha que obedecer... ou estragar todo o disfarce.Se ajoelhou no chão: o cheiro repulsivo do catarro esbranquiçado estava pertodemais para ele conseguir esconder o quão enojado estava. O gobliniano,estava com as mãos preparadas para atacar caso ele fizesse alguma gracinha.Fawkes sentiu que ia deixar aquele chão muito mais nojento em algunssegundos quando colocou a língua pra fora, a ânsia em seu rosto o deixoucom aquela mesma cor verde esbranquiçada.Língua esticada.Cheiro podre nas narinas.... era hora.“Feche os olhos... e”Kristell apareceu do corredor, chutou a cabeça do gobliniano com tanta forçaque ele se estatelou na parede e caiu desmaiado no chão.Fawkes se levantou, tremendo de nojo e ainda sentindo ânsia do que quasefez.“Achei que ia me deixar fazer isso.” Ele disse, limpando a língua.“Eu ia, mas lembrei que isso aí é venenoso.” Ela disse apontando pro cuspe.Fawkes olhou mais uma vez para “aquilo ali no chão” com cara de nojo antesde dizer: “Bom saber que você não quer me matar.”“Eu quero.” Ela respondeu, “mas você me tirou daqui, estamos quites.”Fawkes estava pronto para ignorar e continuar a procura, mas algo fez comque ele e Kristell ficassem imóveis no exato lugar onde estavam.

Era o grito furioso de uma voz familiar, ecoando desesperada peloscorredores frios do Hospício para Demônios de Virrat.“Wendy!” os dois disseram juntos, partindo correndo na direção da voz dela.Kristell se transformando em demônio (Fawkes sempre se assustava quandoela fazia isso perto dele), enquanto ele preparando uma bola de fogo nasmãos.“Não... você não vai...” eles ouviram Wendy dizendo chorosa em algumlugar.“Ali!” Kristell apontou pra única porta que não era branca, nem grossa obastante para abafar a voz de quem quer que estivesse ali.Kristell forçou a maçaneta: nada.“EU NÃO QUERO ESQUECER!” Ela berrou com força assustadora.“Sai da frente!” Fawkes ordenou. Deixando a bola de fogo crescer nas suasmãos até ficarem com o dobro do tamanho da cabeça ruiva dele.“Au Revoir, mademoiselle Wendaline.” Foi a última coisa que eles ouviram

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antes de Fawkes desintegrar a porta e encher o quarto com chamas brancas eamarelas que se espalharam por toda parte com a ferocidade de um enxamede abelhas no verão.Havia um demônio com maquiagem borrada no chão, levando uma surra deKristell, um gobliniano paralisado de medo com o fogo e uma menina jogadano chão, com uma seringa ao lado do pescoço.“WENDY!” Fawkes gritou, enquanto Kristell fazia o demônio esquisito desaco de pancadas, pontuando cada palavra com um novo soco “O QUE.VOCÊ. FEZ. COM. ELA?!”

Ele pegou a garota no colo, e por instinto, pegou a seringa também.“Kristell vamos!” Ele disse, vendo que o fogo tinha se espalhado

rápido demais para os dois ficarem ali dentro muito mais tempo.Kristell bateu a cabeça do homem contra uma parede com tanta força queFawkes sentiu a dor dele: o homem caiu desacordado no chão como ummonte de gelatina vencida.Foi o bastante para Fawkes se lembrar porque ele tinha medo dessa líder detorcida endiabrada. Ela e Victoria eram tipo... as pessoas mais violentas queele já tinha visto, e ele já tinha visto um cara com um limão gigante na cabeçaque fazia serpentes de fogo com as mãos.O cheiro de queimada se espalhou pelos corredores enquanto eles corriam.Vários demônios gritavam desesperados por causa da fumaça (ou talvez porserem loucos mesmo), sorte a Wendy ser bem mais leve que ele esperava.

Fawkes não conseguiu refrear um pensamento repentino, nem osorriso que veio junto: essa garota iria amá-lo quando descobrisse o que eletinha feito para salvá-la.

Porque, claro, essa é a melhor lógica de todas, que mulher não seapaixona por um cara que salva a vida dela?

“Qual o plano?” Kristell cortou suas fantasias com sua voz longe deser humana.

“Eu tenho a chave mestra: a gente sai pela porta e andamos emcâmera lenta enquanto o hospício pega fogo e explode atrás da gente!”Fawkes disse com uma risada bufada.

Para imaginar a cara de Kristell, imagine o pai da sua namorada(o) nomomento em encontra vocês dois se pegando num canto escuro da cidade, foiexatamente essa cara que ela fez.

Aliás, não queira passar pela situação descrita acima.Sério.

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Kristell pelo jeito ainda não tinha percebido o que haviam feito comela dentro daquela sala onde Fawkes a encontrou e, já que ele tinha amor àvida, decidiu que não ia ser ele quem ia contar também.

“A saída!” Ele anunciou, torcendo para não chamar atenção de outrogobliniano e...

Sua visão ficou preta.Wendy pesou tanto nos seus braços que os dois foram pro chão, juntos.

“Fawkes, o que tá acontecendo?” Kristell perguntou em desespero.“Kris, cadê você?!” Ele perguntou, se recusando a ficar desesperado.Ele fechou e abriu os olhos com força: alguma coisa estava muito

errada com ali.Cada vez que piscava, sua visão ficava mais nítida, mas as cores não

eram reais, eram negativas: todo branco era preto, suas mãos escurasazuladas, era como olhar o filme de uma máquina fotográfica. Wendy caídano chão era ainda mais assustadora, com a pele escura como a morte, ocabelo branco feito nuvens.

Uma voz doentia, macabra e aguda sussurrou nos seus ouvidos,prolongando todas as palavras, deixando a voz fina, grave, fina... grave, eberros sussurrados: “Você não quer ver os olhos? Vamos Fawkes, abra osolhos dela. Você nunca vai esquecer, ao contrário dela. Aproveeeeite garoto,antes que ela acorde. Ela não vai querer te olhar quando acordar. Ninguémquer olhar para você. Sua mãe não queria, seu pai não...”

“CALA BOCA!” Fawkes gritou.Ele ficou tonto... sua visão ficou dobrada e distorcida: no chão, não

via uma, mas duas Wendys, e ambas começaram a se levantar na frente dele.Não havia nada de humano na forma como elas se mexiam: eram

como se fossem marionetes, sendo erguidas por cordas invisíveis, bem na suafrente.

Sem pânico, Fawkes...As Wendys abriram os olhos, negros e vazios, sorrisos desfigurados,

com dentes escuros e lábios em cores que nenhum ser vivo deveria ter.“Calma Fawkes, você tá vendo coisas amigão.” Ele sussurrou para si mesmo.

“Sua mãe era nojenta!” As duas Wendys começaram o rodeá-lo, aindaparecendo marionetes controladas por um mestre invisível. Os pés nãotocavam o chão, os olhos mortos não desgrudavam dele.

E a voz, aquela voz dobrada, muito mais ardida do que erahumanamente possível...

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“Ela precisava morrer.” Elas disseram, e riram enquanto circulavamele cada vez mais rápido, “você precisa morrer.”

“Você não sabe o que está falando.”“Ela era imunda! E a imundice dela corre em você!” As duas Wendys

o acusaram, apontando pra ele com dedos de garras, mas não as garras de umdemônio.

Mas as garras podres da morte.“Eu disse pra calar a boca!”Fawkes atacou com fogo, sem reparar nas cores negativas das chamas

que deveriam ser vermelhas, mas pareciam mais um espectro claroesverdeado, tentando acertar as duas garotas.

Elas sumiram, a voz doentia, grave e aguda sussurrou nos seusouvidos.

“Dói saber o quão SUJO você é, não é? Haydn?!”“MEU NOME É FAWKES!” Fawkes gritou, soltando mais fogo para

todos os lados. Sem se preocupar com o que estava acertando.“Todos aqui dentro sabem seu nome, Haydn.” E imagens do pequeno

gobliniano que havia exigido que ele limpasse o chão e da mulher quimeraque o havia colocado pra dentro enquanto ele lambia o Hospício começarama dançar ao seu redor, dando risadas, apontando e cochichando um pro outro,sussurros tão altos que ameaçavam fazer sua cabeça explodir.

“Eu menti que esse era meu nome quando entrei!” Fawkes disse,caindo de joelhos, segurando a cabeça, sentido algo rastejando sob sua pele,algo como raiva e nojo.

“Você é um mentiroso imundo indigno de existir, Haydn, está no seusangue.”

A sensação de que algo rastejava sob sua pele ficou muito maisintensa.

Ele estremeceu quando olhou para seus braços: podia ver, milhares delarvas querendo romper de dentro da sua pele.

Seu grito ecoou pelos cômodos mais obscuros de sua mente quandoviu elas saírem de seus pulsos: milhares de larvas azuladas comiam seusangue, longe de ser vermelho, querendo consumi-lo de dentro para fora.

Mais fogo, ele tinha que queimar... tinha que limpar...“Você nunca teve uma chance.” Wendy disse, reaparecendo de mãos

dadas com sua duplicada. “Quem olharia para você com alguém como Calebpor perto.” As duas ergueram as mãos livres, como se puxadas pelos fios

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invisíveis, e num gesto esfumaçado, Fawkes viu a silhueta branca de Calebsurgir e sumir bem diante dos seus olhos.

“Você é o fruto indesejável, fadado a ser digno de pena.” Kristelltambém surgiu em sua visão, o rosto deformado como o de Wendy. Pelomenos ela ainda era uma só. “Como alguém poderia querer estar ao lado deum bastardo mestiço imundo?” Ela disse gritou, sua voz se distorcendo emseus ouvidos como cordas de piano se desafinando.

Mas nada poderia tê-lo preparado para as versões bizarras eassustadoras de Capitão e Terror, com seus rostos meio toupeira parecendoestar em decomposição: “Você é um péssimo amigo.”

“Você é um péssimo ser humano.”“Você nos usa para impressionar as garotas.”“E nos esquece assim que consegue.”A cada frase, eles voltavam pra debaixo da terra, voltando apenas

quando tinham que falar de novo.“Não nos merece, não nos merece.”“Você não merece nada.”E cada acusação pesava na alma de Fawkes.“Você é carente.” Capitão. “Você é patético.” Terror. “Só um

garotinho desesperado por atenção!” Capitão e Terror.“CALA BOCA! CALA. A. BOCA. AGORA!” Ele berrava, mas tinha

certeza de que sua voz não saía, não era audível: apenas mais um motivo derisos de todos ali presentes.

Capitão, Terror, Wendy, Kristell, Paloma, Edgar, Allan, Victoria,Kahsmin, Caleb, Hulligan, Percival, senhor Telo, centenas deles, aparecendoum a um, apontando para ele e rindo do fracassado que ele era.

Até sua mãe estava ali: sem distorções no rosto. Apenas um olhar frioe desapontando, escondido na multidão, ele não podia alcançá-la... sedesculpar por tudo que ele havia feito, ou agradecer pela forma como elacuidou dele quando...

De repente, algo fazia sentido no que ele estava vendo.Fawkes olhou aqueles rostos, mas realmente olhou dessa vez, bem no

meio dos olhos de cada um deles, sem desviar seu olhar uma única vez.Quanto mais olhava, menos poder eles tinham sobre ele. Menos ele podiaouvir as risadas... menos ele podia vê-los.Um momento de coragem.

Para ouvir o que eles tinham a dizer.

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O que sua própria mente tinha a dizer.Um momento para ouvir, apenas para deixar a verdade transparecer e

tapar os lábios de todas as mentiras que uma mente era capaz de criar.Um momento de coragem para enfrentar seus próprios demônios.Demônios que só podiam ser despertados por uma pessoa que ele

conhecia.“... você está aqui.” Fawkes começou, sentindo um jorro de força em

todo o seu corpo.Todas as pessoas, todas as acusações que tinha ouvido, elas

continuavam ali. Cada vez mais fracas, mais distantes e fracas.“Você está aqui, Ethan Blakewood.” Fawkes disse.As imagens negativas de seus amigos e conhecidos, todas elas

começaram a sumir aos poucos, enquanto as acusações, as dúvidas, avergonha, tudo aquilo ainda estava lá, mas Fawkes lembrou algo que eramuito fácil de ser esquecido: todas existiam apenas dentro dele.“Parabéns, Haydn.” A voz de Ethan Blakewood, grave, zombou em seusouvidos. “Quem é essa garota no chão? Ela me parece... familiar, aliás...falando em amigas, por que não aprecia o fim delas?” Ele terminou com umarisada nada maléfica, nada forçada, apenas um riso grave, esvaecendo-se emsua mente.Sua visão voltou ao normal e, por tudo que havia de bom, ele desejou que nãotivesse.Havia incendiado tudo ao seu redor.

Wendy ainda estava estatelada no chão, com a testa suando, o cabelopreto sobre todo o rosto lindo dela.“Kristell!?” ele chamou.“SAI DE DENTRO DE MIM!” O desespero no berro de Kristell gelou aalma de Fawkes.Ele se virou: Kris estava encostada na única parede que ainda não estavapegando fogo, os olhos perdidos, o rosto todo suando e... suas mãos, garras,atacando e mutilando seu próprio corpo.“Kris, eles não são reais!” Ele gritou, tentando segurar as mãos dela.“NÃO ME TOCA!” Ela berrou, jogando Fawkes para longe, enquanto elacontinuava atacando a própria barriga com as garras, abrindo cortes cada vezmais fundos.Fawkes pulou nas costas dela, segurando os braços dela com toda força queainda tinha, mas Kristell era bem mais forte que ele.

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Ela bateu o corpo todo contra uma parede, usando Fawkes para amortecer oimpacto. De novo, de novo, cada pancada enchendo a cabeça e as costas delecom a mais dura, crua e pura dor.Kris conseguiu soltar os braços, agarrou Fawkes pelo pescoço e o arremessouno chão com tanta força que ele achou que ia desmaiar.“NÃO.” Um murro em sua boca e veio gosto de ferro “ME.” Outro murro noolho e sua visão apagou “TOQUE.” Ele sentiu quatro unhas da garra deKristell cortarem fundo seu rosto, tão rápido que a dor só veio depois. Foi ummilagre que não tivesse acertado seus olhos.De repente, ela parou. Não tão rapidamente, Fawkes entendeu o motivo.Alguma coisa havia derrubado a porta do Hospício.

Uma coisa caminhava entre as chamas que não ousavam tocá-lo ouentrar no caminho.“C... Caleb?” Fawkes sussurrou.Kristell largou Fawkes no chão e pulou na direção dele.Caleb fez um único gesto com a mão, puxou o ar do rosto da Kristell até elacair.“Leve-a.” ele ordenou, usando o mesmo olhar que Fawkes imaginava norosto da Morte: cinza, frio, duro e definitivo.

Caleb carregou Wendy até a saída.Chama alguma ousou tocá-lo.

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Interlúdio 2

Alaia parou de ler de repente quando sentiu o puxão de Christina, encarando-a com o caramelo encantado e suculento de seus olhos, o que lembrou Alaiade uma antiga fábula do mundo onde Wendy vivera: “Que olhos grandesvocê tem, minha neta.” Ela sussurrou para Christina, que estava empoleiradana poltrona como um leãozinho em uma árvore.“Eu sei.” Christina respondeu sorrindo com sua bocarra.“Você tinha que responder ‘são pra te ver melhor, vovó’.” Alaia comentou.“Eu sei.”O silêncio já se arrastava constrangedor entre as duas quando Alaiaperguntou por fim: “Então?”“Responde minhas perguntas?” Pediu Christina.Alaia suspirou derrotada, e com um sorriso nos lábios, concedeu: “Tudo bem,meu anjo, o que você quer saber?”“Os vagalumes da Tribo Satya cercaram a Wendy por que ela era a Harbingerda Luz ou ela virou a Harbinger da Luz por causa dos vagalumes?”“Você perguntou mais ou menos a mesma coisa na primeira vez que eu narreiuma interação entre Wendy e vagalumes.” Alaia a lembrou, erguendo de leveas sobrancelhas ao olhar para a neta.“Eu sei, mas mais ou menos a mesma coisa não é o mesmo que a mesmacoisa.”“Quê?” Alaia não chegou a dizer isso, mas estava escrito em toda a suaexpressão facial, o que ela realmente disse foi: “Eu nunca perguntei à Wendyse ela chegou de fato a proferir as palavras “Jonaki Satya” enquanto estavaprestes a ser queimada, e pelo que a gente leu, é impossível saber a verdade,acho que esse vai ser sempre um dos maiores mistérios da Harbinger da Luz,o que você acha, Christina?” Alaia perguntou por fim.“Eu acho que é legal ter alguns mistérios sem resolver, mas a gente vai sabero que tem na gruta Salainen, né?”“Vamos.” Afirmou Alaia, sentindo um leve embrulho no estômago que nuncaconseguira deixar de sentir ao se lembrar do que havia na gruta. “Podeperguntar mais, eu vou preparar um chá enquanto isso.”Se sentindo um pouco como o próprio Kahsmin deveria se sentir por ter umforno dentro do quarto, Alaia pegou um pequeno bule de chá, o encheu com

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água e suas folhas de guaco e o colocou sobre uma chapa móvel que, quandonão estava guardada, estava encaixada sobre o fogo da lareira.“Se esse é o livro de memórias da Wendy, por que tem trechos da Dana, doKahsmin, do Fawkes e até da Harbinger da Morte aí?” Christina perguntou,sentada na poltrona de Alaia e folheando o livro enquanto Alaia cuidava dochá.“O livro explica isso, mas se você quiser eu posso estragar a surpresa.” Alaiacomentou, deliciando-se com o cheiro de guaco vindo da chaleira.“Tá, eu espero... eu queria perguntar uma coisa sobre a Kristell.” Christinacomentou, balançando as pernas como se estivesse num balanço enquantosegurava o livro no colo.“Vá em frente.” Alaia disse, usando a asa boa (que na verdade era a asa “nãotão ruim”) para abanar o fogo da lareira.“Ela tinha dupla personalidade?”Alaia cessou o abanar de súbito, um sorriso de orgulho formou-se em seuslábios quando percebeu o quanto sua neta, sangue do seu sangue, eraobservadora como a vó.Wendy ia adorar estar aqui agora.“O que te faz pensar isso, meu anjo?” Alaia perguntou, voltando a abanar ofogo, enquanto o aroma invadia suas inervações com elegância de umconvidado sem convite e relaxava suas juntas cansadas e asas quebradas.“Quando elas estavam no Empório da Tentação, a Kristell foi ultra pessimistacom a Wendy, ela falou que era mais fácil ter esperança quando não se sabe averdade, ela meio que quis dizer que não dá pra ser feliz quando se sabe averdade, parecia até que ela queria drenar toda a esperança do mundo ali; masquando as duas estavam presas no hospício, a Kris meio que colocou aWendy pra cima, ela ainda tava sendo honesta, mas lá parecia que ela eraotimista apesar de qualquer coisa, e no empório parecia que ela acreditavaque a vida era só tristeza.”Alaia quase queimou a mão enquanto ouvia Christina, observações bem-feitas como aquela distraíam-na de qualquer outra realidade que pudesse estaracontecendo, como a chaleira apitando e a ameaça constante da sua asa boacomeçar a pegar fogo.“Você herdou minha mente.” Ela comentou orgulhosa enquanto tirava o bulefervendo da lareira e sentindo o calor que nunca realmente fora capaz dequeimá-la. “Eu conheci Kristell Sinnett, ela era um amor de pessoa na maiorparte do tempo, mas sim, existe alguma coisa de dualístico na personalidade

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dela.”“Ela era uma Åne?” Chris perguntou.“Céus não! Mas você não foi a única a pensar isso, deixe eu terminar aqui ejá explico.”Enquanto Alaia servia o chá para si mesma e para Christina, percebeu que acomemoração do nascimento da Harbinger da Luz ainda estava acontecendolá fora, mas antes que os urros de alegria pudessem afogar sua alma emmemórias malnascidas e lembranças desvividas, se concentrou no orgulhoimplume que ganhara forma no aqui e agora.“Kristell pode parecer a pessoa mais aberta do mundo, mas havia uma hordade segredos que ela guardava de todos, até de Wendy, como por exemplo ahistória entre ela e os pais que ela contou pra Wendy,” Alaia mordeu alíngua, percebendo que ia acabar falando demais, “me desculpe, há váriashistórias sobre o passado esquecido de Kristell Sinnett estão escondidas nolivro de memórias de Wendy, e eu não quero estragar nenhuma, só quero quesaiba que Kristell Sinnett é uma pessoa muito, mas muito maior do que a“garota alta com corpo de líder de torcida” descrita nas primeiras páginas dolivro.” Alaia ia encerrar sua fala por aí, quando uma ideia lhe ocorreu. “Querfazer um jogo?”“Quero saber o que é uma líder de torcida.” Christina respondeu pensativa,“mas quero o jogo também!”“Líderes de torcida eram comuns no mundo do antigo Orfanato das Neves,eram quase sempre mulheres altas e atléticas que torciam para alguma coisaque Wendy nunca conseguiu me explicar direito, agora, eu tenho uma ideia,um jogo de dedução.” Alaia disse, com alegria preenchendo o espaço entresuas rugas, fazendo-a parecer vinte anos mais nova.“O que eu tenho que deducionar, vó?”“Deduzir, Christina, e bem, há algumas pistas bem sutis, e umas poucas bemescancaradas, de pelo menos duas histórias obscuras sobre Kristell Sinnettneste livro, se até o capítulo...” Alaia começou a folhear o livro, procurandoum trecho em especial que ela considerava demasiado revelador “... até ocapítulo cinquenta e um você conseguir descobrir essas duas histórias, eu voudeixar o livro de memórias de Wendy para você quando eu falecer.”Alaia estava tão entusiasmada com o jogo e com a oferta que foi com grandechoque que percebeu que não havia conseguido contagiar a pequenaChristina, e não tardou em descobrir porque:“Mas você não vai morrer, né?” Christina mais implorou que perguntou,

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abraçando a vó com amor no lugar de força. “Você não pode ir embora, nãocomigo aqui.”A voz de Christina esmoreceu quando disse “aqui”.Primeiro, a confusão, Alaia ficou ali sem entender o que era aquelademonstração repentina e inesperada de afeto, ela não tinha planejado ir paralugar algum.Foi quando sua mão tocou a nuvem de algodão chamada “cabelos deChristina” que Alaia viu o reflexo de sua mortalidade, as rugas e manchas desuas mãos e o contraste com a maciez e pequenez daquela pequena, docecriança.Alaia não esperava por isso, não pensou que uma brincadeira inocente traria àtona aspectos da sua própria mortalidade que ela tendia a evitar levar emconta.Afinal, ela ainda era a princesa guerreira Alaia Capricornius, filha deEzequiel, escolhida pelos sábios desde antes de nascer para ser líder, treinadapara não temer o inevitável, forjada em aulas práticas na arte do desapego desi mesma, durante a maior parte de sua vida, esteve pronta para ser umsacrifício para o povo e as pessoas que ela amara e fora destinada arepresentar e proteger.Mesmo hoje, nos confins da idade, não hesitaria um segundo em lutar peloseu povo, e tampouco pensaria duas vezes em colocar-se na linha de fogo nolugar de um de seus filhos ou de sua neta.Isso era o mínimo que ela esperava de si mesma, isso era decência básicapara Alaia.Tudo isso se despedaçou quando Christina pediu que ela ficasse.Havia lágrimas amordaçadas em seus olhos: Christina, sua única neta, nãoqueria ficar sem a vó, a mesma vó que passara praticamente todas as tardesdos últimos seis anos com ela, ensinando, conversando, brincando, vendo-acrescer dia após dia, assistindo o seu cabelo tornar-se a juba de cachos cor dechocolate, sem reparar o crescente grisalho em si mesma, pois ela estavaocupada, amando cada dia do aprendizado, tardando para aprender uma desuas últimas lições: ali foram costurados laços fadados a deixar um rastro detristeza.Só esperava que Christina pudesse ser forte o bastante para não deixar essatristeza inevitável acompanhá-la pelo resto da vida, Wendy havia sido capazde superar dita tristeza em vida, Alaia... nem tanto.“Por enquanto, eu não vou à lugar nenhum, meu anjo.” Alaia disse, se

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segurando para não completar a frase com um “mas um dia, eu irei”, não erahora para isso, não agora, não hoje.

Alaia, colocou a mão sobre a cabeça de Christina, tentando ignorarque estava sentindo as lágrimas da neta atravessando suas roupas e tocandosua pele. “Então... se você conseguir adivinhar as histórias de Kristell... euprometo ler o livro para sua turma, que tal?”Christina, lentamente, fez que sim com a cabeça.Alguns minutos se passaram antes que Chris finalmente soltasse o abraço,quando o fez, Alaia serviu chá de guaco morno com um pouco de açúcar,ignorando os olhos vermelhos da neta, que retribuiu o favor.Havia uma dúvida pairando sobre sua cabeça: será que já fazia muito tempoque Christina estava preocupada em perdê-la? Será que esse foi o rumor quecomeçou a circular pelo mundo quando Alaia escolheu ausentar-se nosúltimos anos? Ou será que era apenas a preocupação carinhosa de sua neta?“Vó?” Christina perguntou quando terminou o chá. “Por que a Autumnmentiu sobre estar sem facas quando ela e Kahsmin estavam fugindo deJussarö?”“Ah.” Alaia suspirou, não teria coragem de reentrar no assunto da sua própriamorte agora. “Autumn estava começando a ficar doente, as pessoas seesquecem que essas pessoas são pessoas, mesmo o Cisne de Tuonela e até aHarbinger da Luz podem ficar doentes.” Alaia disse, percebendo que, assimcomo Wendy, ela merecia um Pulitzer por ter dito “as pessoas se esquecemque essas pessoas são pessoas”, uma pena Wendy nunca ter explicadoexatamente o que era um Pulitzer.“Tá, só mais uma, se a maldição de Virrat é real, como Ethan podia ter vividolá por tanto tempo se ele era um D’arlit?”Um novo sorriso se iluminou em Alaia ao ouvir aquela pergunta.“Há muito sobre a história de Virrat, sua maldição e sobre o próprio EthanBlakewood que precisa ser entendido antes de responder essa pergunta, comoexatamente funcionam as nuanças e os detalhes da maldição, o que é e o quedeixa de ser um...”Alaia parou de súbito, atirando seus olhos para a porta.“Vó? Por que você parou?” Christina perguntou, estava pendurada em algumcanto da chaminé recém apagada, o que ofenderia Alaia, não fosse o fato deque conhecia a neta que tinha: contanto que Christina estivesse emmovimento, não importava realmente onde estava, ela estaria prestandoatenção.

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Sem falar que era muito mais fácil limpar a chaminé quando a sujeira delaestava no cabelo de Christina.“Samson está se aproximando com um jovem que não gostaria de estar aqui.”Alaia disse firme. Sua compleição se enrijeceu quando colocou sua xícara e olivro sobre sua não tão discreta escrivaninha. “Christina, seria interessante sevocê ficasse invisível agora, creio que você está prestes a presenciar algo quemuitas pessoas apenas sonham em assistir.”Christina obedeceu, mas não sem antes perguntar: “Vó? Você tá bem?”“Sua sensibilidade é uma dádiva, meu anjo.” Alaia respondeu. “Eu sei que apessoa que está chegando fez algo que não deveria ser feito, e essa pessoasabe que estará na minha presença no meu dia favorito do ano, quandocelebro uma das melhores partes da minha vida. Estou totalmente desgostosaque alguém tenha tido a audácia de arruinar o hoje para mim, e Samson sabe,decerto deve ter avisado o garoto que está trazendo.”Antes que alguém batesse à porta, Alaia deu a ordem: “Entre.”

Num instante, ouviu o eco de sua voz: havia nela o velho comando eforça que marcaram tanto seu timbre nos primeiros anos de sua vida:comando que um dia circulara em seu sangue como seiva em árvores oupesadelos em almas que viveram o que ser algum deveria viver, e força que,em dias de outrora, Alaia não soube existir sem.As portas se abriram: à direita estava um homem forte, com o mesmo tom depele cor de trigo que Alaia e Christina tinham, suas asas dividiam suas corescom jaspes e opalas, mas havia algumas penas acinzentadas nasextremidades, sinal de que a idade estava começando a chegar para ele, comochegara para Alaia e suas asas totalmente cinzentas. Seu nariz reto, queixoforte, cabelos castanhos claros em cachos e olhos verde esmeralda ecoavam opassado de Alaia.Na esquerda, estava um garoto pálido, irritado, infestado de sentimentosfarisaicos, coberto por cabelos pretos, sobrancelhas pesadas, raiva acumuladaem forma de garras em suas mãos e um senso de superioridade hipócrita,típico de jovens que se creem detentores do monopólio das virtudes, e istoestava escrito em seus olhos (um castanho e o outro azul): ele acreditava serinjusto que estivesse ali.“Quem é este jovem, Samson?” Alaia perguntou: ela mesma já estava com apostura de uma dama incansável que aprendera demais com a vida para dar-se ao luxo de ter paciência com frivolidades e delicadezas.“Diga seu nome, garoto.” A voz do anjo Samson era surpreendentemente

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suave e desprovida de todo o comando que existia em Alaia, suas palavrassoaram como um simples pedido de um pai convalescente de orgulho pelofilho.“Matti Apoja.” Ele disse de má vontade, sua voz ainda não tinha terminadode mudar.“E por que está aqui?” Alaia inquiriu.Quando Matti demorou demais para responder, Samson interveio, desta vezem tom inflexivo, como a situação pedia: “Ele quase matou um homemontem à noite.”“Nas vésperas do aniversário da Harbinger da Luz, impressionante.” Alaiadisse com todo o desgosto e sarcasmo que conseguia conjurar em sua voz,Christina se encolheu perto da chaminé ao som daquele tom. “Matti Apoja, oque você fez? O que inspirou seus atos de violência contra a vida alheia?”“Traição.” Matti murmurou, “Dani me traiu!” Ele gritou, sua voz tremendode raiva.Quando Alaia percebeu que o pobre diabo não conseguia continuar, fez umsinal para que Samson intervisse.“Dani Kaupi é o rapaz de quem Matti quase tirou a vida.”“Formidável.” Alaia disse esfregando uma têmpora enquanto a ironia aindapingava de seus lábios. “O que Dani Kaupi fez para o senhor, Matti Apoja?Por favor, impressione-me.”Enquanto Matti parava de tremer, Christina, ainda invisível, se colocou aolado de Alaia, que de súbito, sentiu-se estranhamente consciente de seu tomde voz e de todos os julgamentos que estava fazendo em relação àquelejovem.“Eu... eu.. há duas semanas, eu e Dani... nós estávamos discutindo nossosplanos para a semana de Nicolau, queríamos recriar os antigos labirintossubterrâneos que faziam nas cidades nortenhas como em Ekenäs e a antigaJussarö.”“Quando passamos em frente ao Empório da Tentação, eu vi Sororia, umadas garotas que costura lá: ela é uma quimera entre demônio e aranha, temdois pares de olhos, um par principal e outro menor um pouco acima, e umquinto olho no centro da testa, ela faz as roupas e vestidos mais lindos detodo o continente, usa a própria teia pra tecê-las... ARGH!” Matti teve umataque de raiva, Christina se escondeu atrás de Alaia, que permaneceuindiferente ao surto e conteve-se para não perguntar como a descrição damoça era relevante “Eu contei pro Dani que eu amava ela, que fazia meses

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que trocávamos cartas, e que eu queria passar o resto da minha vida com ela.”“Ele riu e continuou a conversa sobre a semana de Nicolau, na boa, como senada tivesse acontecido, e eu nem liguei, ele era meu amigo, eu achei que eleia me ajudar se eu precisasse de alguma coisa.”“EM VEZ DISSO EU ENCONTRO ELE JUNTO COM A SORORIA NACASA DELE ONTEM À NOITE!” Matti estava fora de si, quase setransformando por completo em demônio e, assim como Wendy e Kristellnos primeiros capítulos do livro, ele ainda não tinha controle.Alaia fez um gesto sutil para Samson, que deu um puxão no jovem para quevoltasse a si.“Prossiga, senhor Apoja.” Alaia comandou.“Eu ataquei com vontade.” Matti respondeu bufando frio. “Meu melhoramigo, meu traidor, tirou de mim tudo que era importante na minha vida, euataquei, e teria matado ele se Sororia não tivesse impedido.”“Ela me prendeu com a teia dela, havia sangue em toda parte, e eu nãolembro o que aconteceu depois.”Não havia mais o que ser dito, a história estava terminada.“E você se arrepende?” Alaia perguntou, com cuidado para manter a vozapática, quando a vontade era cuspir desprezo por tudo que havia sido dito.“Uma pessoa em quem você confia desde criança te trai e rouba a pessoamais importante da sua vida, você ataca tentando defender o que é seu: vocêse arrepende depois?” Perguntou Matti Apoja com sua raiva descabida.Samson deu um empurrão em Apoja e lançou um olhar que demandavarespeito.Uma frase de Kristell ecoou em sua mente ao ouvir as palavras dele: “Sópodemos proteger o que é nosso.”“Você percebe que acabou de tratar uma mulher como se fosse suapropriedade?” Alaia deliberou firme.“Eu acreditava que ela era minha família.” Matti respondeu na mesmafirmeza.Alaia conteve um suspiro: não gostava da presunção daquele garotoarrogante, Dani Kaupi não havia matado, e pelo tom da história, não haviafeito nada que ferisse a liberdade da garota Sororia. Trocar cartas tambémnão sinaliza uma promessa de amor eterna, e a forma como ele entendiafamília simplesmente a irritava: o que ele pensava sobre romance lembrava àAlaia uma prisão mútua, o que ele chamava de “amor” era o ato de podar aliberdade de outra pessoa para poder chamá-la de “seu” ou “sua”.

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Um ser é filho do mundo, e pertence ao mundo e à mais ninguém, osdemônios deveriam entender isso.E ele teve a audácia de estragar o aniversário de...Christina tocou Alaia, que se pegou com o exato tipo de pensamento quegerou tanto ódio entre anjos e demônios no passado, sem mencionar o quantoera hipócrita ela dizer que “um ser é filho do mundo”, mas querer guardarWendy e suas memórias para si mesma.

“Você gostaria de dividir as pessoas que você ama com o mundo?” Aprópria Alaia havia perguntado para Christina apenas algumas horas maiscedo.

“Eu não vejo prova de amor maior que essa.” Christina respondera.Sempre seria uma surpresa para Alaia o quanto Christina, em sua

inocência infantil, realmente entendia sobre amor e dividir, e mais que isso,entendia que um não estava separado do outro, amar é dividir, dividir é amar,dividimos nosso tempo, nosso conhecimento, nosso carinho por amor, e sefeito de outra forma, se torna impuro, egoísta e manipulativo.Embora Alaia visse um garoto impuro, egoísta e manipulador à sua frente,não podia negar que, no fundo, era a si mesma que estava vendo e julgando:livrando-se de sentimentos hipócritas e sujos, ela foi capaz de conjurar todasua empatia e exigir o que era certo e justo.“Tragam a senhorita Sororia e Dani Kaupi para cá, e também os pais, famíliae amigos próximos do senhor Apoja, nós vamos ouvir um pouco de ambos oslados e, depois, você será submetido à Limpeza da Luz.” Alaia disse,apontando para o peito de Matti Apoja, que franziu o cenho, mas não proferiuuma única palavra. “Meu filho, por favor, leve o senhor Apoja para o salão ecertifique-se de que ele esteja à vontade e bem servido enquanto espera,sim?”“Sim senhora.” Samson respondeu e, em segundos, ele e Matti Apoja seretiraram dos aposentos de Alaia.O suspiro que Alaia prendera com grilhões em seus pulmões se libertou,escapando por entre os lábios cansados dela e deixando-a confortavelmentemais leve.“É um dom muito raro o que você tem, Christina.” Alaia comentou, eChristina tornou-se visível ao seu lado, com olhar confuso e a cabeçainclinada para o lado.“Ficar invisível?” Christina perguntou, se empoleirando no braço da poltronaenquanto Alaia se sentava.

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“Não, algo no seu toque que é muito, infinitamente mais poderoso do que serinvisível, você faz o invisível visível.” Alaia comentou. “Pegue o livro,vamos continuar enquanto esperamos Samson voltar com a família e amigosde Apoja para a Limpeza de Luz, você poderá assistir, meu anjo.”Christina saltou sem vontade sobre Alaia, pegou o livro sem o mesmoentusiasmo, parecia um pouco drenada, desligada.“Está tudo bem, meu anjo?” A vó perguntou.“Eu não entendo o que eu fiz, mas eu fiz alguma coisa, não fiz?” Elaperguntou, e Alaia pode ver que havia um peso em sua neta que não estavaali antes, algo que a arrastava quando andava, algo que criança algumadeveria sentir.“Fez, os antigos chamaram esse dom de Lux Veritas, ou Poder da Verdade.Pelo visto, ele corre na família, por mais dormente e recessivo que seja. Eunão o tenho, mas sua tia avó tinha: é um poder maravilhoso e destrutivo aomesmo tempo,” Alaia comentou, “reza a lenda que só uma alma capaz depureza quando confrontada por nossos mundos corrompidos é capaz dedesenvolver este poder.”Alaia acreditava que era por isso que jamais havia desenvolvido tal poder e,talvez, no final, isso tenha sido uma benção: duvidava ser capaz de lidar comas consequências dele.“Sua alma está pesada.” Alaia afirmou, olhando para Christina.“Está.”“É um efeito colateral.” Alaia disse com pesar grave na voz. “O queaconteceu foi que você, na sua infinita inocência, me mostrou a situaçãocomo ela realmente é, e através de você, eu pude entender como deveria agirseguindo a verdade: se não fosse por você, eu teria ordenado a justiça dosanjos sobre Matti Apoja, e provavelmente ele já estaria morto agora.”“Mas o que você fez teve um preço: a verdade veio a mim, mas o que haviade corrompido na minha visão agora se aloja na sua alma, meu anjo.”“E vai ficar assim pra sempre?” Christina perguntou com o olhar perdido.Alaia colocou a mão sobre o ombro da neta, quente, rígido de músculos queusava para lutar com cimitarras e dar cambalhotas... ela era tão nova, e tinhatanto à sua frente.“Não, Christina.” Alaia disse por fim, “em algumas horas você estará melhor,e caso haja muito uso deste dom, bem, hoje, graças aos ensinamentos dovelho sábio, somos capazes de reverter os danos, mas tenha cuidado mesmoassim meu anjo, já perdemos familiares por não conseguir reverter os danos

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que o Poder da Verdade pode causar em seu portador.”A voz de Alaia engravidou o ar com pesadelos quando terminou de falar, oquarto tornou-se frio apesar do dia lá fora, a celebração do aniversário daHarbinger da Luz agora era um eco tardio, gélido e sorumbático, como umquadro em preto e branco de uma noite chuvosa numa vila montanhosa.“Faz tempo que descobriu este dom?” Alaia perguntou.“Não muito, mas não sabia o que era.” Christina respondeu, suas pernasimóveis, seu olhar fixo, nada parecida com a garota com juba cacheada epernas inquietas de agora pouco.“Quer continuar a história? Mais tarde nós podemos conversar sobre isso.”“Tudo bem, vó.” Christina disse, abrindo um sorriso como uma ferida emseus lábios.“Christina.” Alaia chamou.“Que é, vó?”“Eu te amo.”“Também te amo, vó.” Christina respondeu.

Mas seu sorriso ainda doía em seus lábios.

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Capítulo 19

15 de Maio, 1989

Me desculpe, me desculpe pela forma imprudente com que assenhoro o vaziode suas páginas inocentes e, desprovida de permissão ou consentimento,violento cada uma delas com minhas palavras impregnadas de dores etormentos. É de minha ciência que não há culpa em ti, e no tomo dasperfídias contra mim cometidas, eu imploro, por obséquio, o seu perdão, casomeus relatos tornem-se a causa de sua insônia na calada de uma noite tão belaquanto esta.Eu apenas... me desculpe. Eu preciso de alguém.Papai me trancou aqui em cima de novo. Ele me arrastou pelo cabelo escadaacima, sem se importar que meu rosto batesse contra cada degrau por seuspés escalados.Vinte e cinco degraus. Eu contei.

Vinte e cinco degraus se revezaram para que cada um pudessearrebentar uma mica de mim. Senti minha boca sulcando, sangue a jorrar,meu cabelo sendo puxado.Nada, eu não fui nada além de um saco de pancadas, estocada após estocada.Quando me pego ponderando tal insídia em pensamento, este retalho obsoletoda noite vígil foi tão somente a penúria de minha dor.Papai destrancou meu quarto e me jogou para dentro como se eu fosse umpedaço de carne rançoso, um fardo deprecante que ele jamais desejaracarregar.

Eu era indigna de um olhar dele que não fosse seguido por um mautrato do meu corpo. Um chute na barriga, um tapa na cara, às vezes, cintadasnas minhas costas, dentre outros tais que não me atrevo mencionar, meuamado diário.Ainda tenho as marcas da última vez.Eu merecia tudo isso.“... aberração nojenta... por que, senhor, estou preso à ISSO?!” eleesbravejou, jogando uma cadeira contra mim. Não me defendi ou resisti.Deixei o ferro acertar meu peito, fazendo-me uma flor séssil esmigalhada aochão, meu lugar de direito.

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“Me desculpe por eu ser assim.” Eu lembro de ter dito quando ele me trancoulá dentro, mas de novo, minhas reminiscências são falhas e incompletas.Assim como meu ser o é. Então, posso estar errada.Eu sou errada.Quando até meus devaneios me abandonaram, houve adipsia de vida, noentanto, a dor, ominosa, nímia e seva dor, esta persistia.Não a dor de ser arrastada pelas escadas, ou de ser esmurrada, sem nenhumachance de me defender, tampouco a vexação de minha compleição ou minhacandura.Meu corpo era forte contra tais frivolidades bestiais.O que doía era ser indesejável, nefasta e outros nomes tantos que me forçaraele a engolir.O que doía era ser eu.

“O que aconteceu com seu rosto?” Kahsmin perguntou.“Minha ex aconteceu.” Fawkes respondeu.Kahsmin fez um “O” com a boca antes de dizer: “Vai ficar uma bela

cicatriz aí.”“Eu sei. Não é ótimo? Garotas adoram cicatrizes.” Fawkes disse

entusiasmado.“Não, elas amam histórias bem contadas, a cicatriz é só uma prova de

que a história é real, mas eu tenho certeza que a história que você viveu nohospício será mais que o suficiente. Aliás, porque não testa sua a históriacomigo? Você é o único em condições de me contar o que aconteceu de fato.Como entrou no Hospício para Demônios de Virrat?”“Espera, como assim eu sou o único ‘em condições’?” Fawkes retribuiu apergunta.“Menos um ponto para você na matéria de contar histórias: você nunca senega a começar a narrativa quando requisitado, mas como isso é uma aula eeu estou de bom-humor hoje–”

“Você tá sempre de bom humor.” Fawkes interrompeu.“Quem me dera.” Kahsmin respondeu com sorriso contentado.

“Enfim, Caleb ficou exausto depois de voar até Virrat. Wendy está de cama e

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a Kristell... teve uma surpresa um tanto quanto desagradável hoje. Ela querficar sozinha.”“Ela se olhou no espelho, se transformou em demônio, tá destruindo tudo, etem umas três pessoas apanhando dela nesse instante enquanto tentamacalmá-la, não é?” Fawkes perguntou sem nenhuma surpresa na voz.“Quase. São seis pessoas, talvez precisemos de mais.”“É, essa é minha ex-namorada assassina. Por que não chamam a Victoria?”“Porque não quero que as duas se matem. Agora, de volta para sua história,como conseguiu entrar?”“Lambendo as janelas.” Fawkes disse, deliciando-se com o olhar confuso deKahsmin antes de completar a frase. “Uma quimera me viu, achou que eu eraum louco e mandou eu entrar.”“Bom uso da pausa dramática, ponto positivo! Continue.” Kahsmin elogiou.

“Eu disse que me chamava Haydn e, enquanto ela procurava meunome numa lista, eu roubei a chave mestra do gabinete. Quando ela percebeueu já tinha começado um incêndio em uma das alas do lugar. Deu pra ganharbastante tempo com isso. Depois eu só procurei as meninas.”Kahsmin olhou intrigado para ele:“Por que você disse que seu nome era Haydn?”Fawkes deu de ombros e disse:“Pareceu uma boa ideia na hora.”“Entendo. Eu vou te dar cinco como nota pela história, mas se eu fosse umagarota, e um cara com uma cicatriz que parece uma unhada de tigre na carame contasse isso, eu não ficaria muito interessada em você.” Kahsmin dissealegre, piscando um olho para ele.

“Eu teria incluído as lutas com goblinianos e Ethan se você fosse umagarota.” Fawkes retribuiu.

E os dois riram como se estivessem contando as melhores piadas domundo ali dentro.

“Bom.” Kahsmin continuou. “Espero que seu incêndio não tenhacausado mal a nenhum inocente que pudesse estar lá dentro. Sabe, ainda nãoencontramos os filhos do dono da Taverna do Fim dos Tempos. Com a sorteque estamos tendo ultimamente, eles poderiam ter estado lá.” Kahsmin disse,abrindo a janela do quarto que dava para as montanhas de Tuonela.

Fawkes gelou e rezou para que ele não pudesse ler mentes naquelemomento.Pois a seguinte imagem se passava atrás de seus olhos:

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Ele, Caleb e Fawkes carregando Kristell e Wendy para fora de umhospício em chamas, Anuk ao lado, com um arco e flecha surrado preso emsuas costas.“Algo contra a aniquilação total desse lugar?” Caleb pergunta frio e seco.Fawkes olha de Caleb para o hospício, e de volta para Caleb.“Não.”“Faça o fogo, garoto.” Caleb comanda.Fawkes obedece, fazendo um fogaréu com quase o dobro do seu tamanho.Caleb conjura um vendaval sobre a esfera flamejante.Um pequeno tornado de fogo engoliu o Hospício para Demônios de Virratenquanto eles caminhavam, como se nada estivesse acontecendo, em direçãoao barco do velho Winslow.

“Eles devem estar bem sim.” Fawkes disse, tamborilando os dedos nervoso.“Eu também acho. Os garotos já sobreviveram três semanas perdidos nafloresta ano passado. Agora, Fawkes. Isso é importante: Preciso que me conteem que estado encontraram a Wendy.”“Por quê?” Ele perguntou alvoroçado.“Me responda primeiro.” Kahsmin disse, sério pela primeira naquela manhã.Fawkes percebeu que alguma coisa tinha que estar errada.“Eu e a Kristell arrombamos uma porta, Wendy estava jogada no chão comisso do lado do pescoço dela.” Fawkes disse, tirando a seringa do bolso,“tinha um cara estranho lá, mas a Kristell deu cabo dele. Por quê?”Kahsmin se levantou, levando a seringa até perto da janela, onde ele aexaminou demoradamente. Sua expressão mudou de “o que é isso?” para “eunão acredito que fizeram isso!” muito mais rápido do que um adolescenteincendiário podia julgar normal.“Que que foi?” Fawkes insistiu.“Isso explica muito.” Kahsmin disse, sem tirar os olhos da seringa.“Explica o quê?!”Kahsmin se virou para Fawkes com um pesar assombrado que nãocombinava com seu rosto.“Wendy está acordada no quarto do final do corredor, está conversando comtodo mundo que entra lá, super alegre e divertida, você conhece o jeito dela,ela disse que meu nariz parecia um bico de tucano.”“Todo mundo acha isso, e daí?” Fawkes disse, sem saber se o comentário

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tinha sido ofensivo ou não.“Bem, Fawkes, ela não se lembra de nada.”

28 de Junho, 1989

Sou mendicante de sua vênia, meu amado diário, perdoe minha ausência,meu flagício padece infindo e, embora esteja alocada em minha ciência que apartilha de relatos tais me diminuam à uma reles vaníloqua em suas páginas,há em minha alma andrajosa a urgência do partilho da miséria minha.

Ainda que seja eu desprovida de evidências que provem suapercepção em respeito à minha presença, deleito-me em entreter a vã ilusãode que minha ausência se fez digna de sua nota. Pois o banzo que você emmim instigou em sua amissão, este foi visceral, meu delubro, altar imaculadode quem sou. Todavia, seria egolatria cobrar que meu sentimento estivesseem vias de reciprocidade. Eu só existo para amargurar o seu viver, assimcomo o de todos ao meu redor e, por isso, rogo a ti o seu perdão.

Você é meu único amigo. O único que pode me ouvir.Vapulando-me, papai me apresentou à algofobia, então, obumbrandominh‘alma, tomou você de minhas mãos escanzeladas no mês ido. Só orecuperei hoje na matina, quando ele vanguejou de embriaguez na escadaria,sem tomar ciência de minha liberdade em meu quarto.Dizia ele na semana ida ter terminado seu último invento, embora eumanducasse certeza de que tal criação pouco mais fosse que uma jaula.

Todo o tempo enquanto martelava e pregava, como um escarabochogatafunhado em suas palavras sobre minha celação, eu o ouvia proferindoprovérbios de natureza pulha, seguidos pelos dizeres “Ele há de me perdoar”.Não é de minha ciência a identidade d’Ele, e carecia em minha erma alma acoragem para dirigir a meu pai a palavra.

Sua repugnação por mim crescera ao ponto de me tratar como se eufosse uma doença de contágio rápido.

Mesmo agora, com lágrimas açaimadas em meus olhos e soluçostruculentos ameaçando sufocar-me, há um anseio sôfrego em mim paraendireitar e colocar em vias de maior virtuosidade o que quer que tenha sidominha folia, meu erro, entretanto...

“Você É o erro. O único motivo pelo qual ainda recebe comida éporque as pessoas vão comentar quando não ouvirem mais sua voz repulsivavinda daqui de cima.” ele sussurrara palavras tais, visando perfurar, como um

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chifarote, o âmago de minha estima, apenas para então voltar-se a seusprovérbios perniciosos, rogando o perdão ao ignoto personagem.

Sou eu tão abestada? Ou há um quê flexíloquo nas palavras de papai?Entendo que minha existência é o berço da ira de alguém de importância paraele, e agora hei de ser julgada e punida sob acusações tais como “ter nascido”e “ser eu”, mas por que a ninguém cabia a treda tarefa de colocar em pratoslimpos como tais acusações acometem o mundo?

Afinal, como ter nascido em minha condição pode ser um atohediondo?

“O que você queria que eu fosse?” Tais palavras escapuliram dentremeus lábios irredentos naquela noite.

Por um átimo de minuto, uma eterna efemeridade, senti seu olharambreado cair sobre o invólucro de meu íntimo: foi como se ele, pelaprimeira vez, enxergasse a tão grande mácula em mim infligida ao submeter-me à tamanha tebaida: a mim foi dado um exíguo vislumbre de um homemcapaz de sentimentos maiores que o habitual turbilhão de desgosto do qual euera alvo.

Ou talvez, fosse devaneio meu.“Normal, minha filha.” Ele articulou as palavras lenta e sonoramente,

e seus olhos desviaram evasivos dos meus.Eu nunca teria a afoiteza para explodir em orações abespinhadas

como ele.Mas tive ousadia o bastante para traduzir meu sofrimento em

palavras.“O que é normal? Embeber em ódio a própria filha? Por um motivo

tão biltre e medíocre como ‘ser diferente’?”Minha próxima recordação é uma zurzidela, seguida pelo esfrangalho

de minha farpela, derme e outras partes que em mim não há desejo demencionar. Quando acabou, eu não sentia meu corpo. Como um animalmoribundo, fui atirada e encarcerada nos confins da cela que papai fizera.

Pelo menos não posso dizer que ele nunca fez nada para mim.Ele ligou um interruptor sobre a cela no qual eu não havia reparado

até então.Uma zumbideira estática veio.Depois, veio da cozinha com meu jantar: sopa de carne grola com pão

embolorado.Deixou a comida do lado de fora da cela, onde meus braços ainda

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podiam alcançá-la e, logo, saiu trauteando, deixando-me sozinha, trancafiadaem uma jaula, confinando minha existência a este cômodo oprimido.

Sou falta de respostas para o mistifório pendente em minha mente: Oque odiei mais? Minha fraqueza, minha confusão, ou o abandono partidodele?

Que culpa eu tenho? Que culpa eu tenho por ser diferente? Como issoera errado?

Meu corpo tremia sob a surra com que fora presenteado (e digopresenteado pois era impossível receber uma surra sem também receberatenção): não sentia meus dedos, havia hematomas sobre todo meu rosto eescoriações em minhas costas. A dor estava esparramada em tantos cantosdistintos de meu ser que era fácil ignorá-la.

Esta é a parte engraçada sobre a dor, não acha, meu amado diário?Quanto mais você sente, menos você sente. Se chorei, não foi tão somenteporque meu corpo fora maltratado, fora também porque as palavras delecortaram lugares onde pedra alguma sonha alcançar.

Cá estava eu, isenta de filáucia, acabrunhada e espavorida emlipemania.

Famigerada, implorando por comida.Quando alcancei a colher, meu braço raspou contra a grade da jaula.Eu levei um choque impiedoso e fui arremessada para trás com minha

refeição.A colher voou para muito longe de minha pequena gaiola.Cessado o tamborilar metálico do talher martelando o chão, pude

ouvir a risada jocosa dele: de certo, estava esperando por isso em suasintenções malignas como fruto de mandrágora.

A sopa de carne grola manchara meu tronco e o chão de minha jaula,fatias minguadas do pão dormido se viam cercadas pelo nu de minhas pernasfrias e trêmulas.

Ergui uma das fatias perante meus olhos: quando vi o verde do bolortremeleando em minha frente, não consegui refrear as lágrimas.

E chorei.E chorei o bigotismo impudico de meu pai.E chorei a fantasia da morte que tardava em aliviar minha dor.E chorei o ódio pelos pecados que sequer sabia eu ter cometido.E chorei o nome do meu fim, enquanto minhas lágrimas caíam e

aguavam a sopa de carne grola e a flacidez de minha pele rota.

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E chorei até meu rio de lágrimas jazer no que sobrou dos farrapos queousava eu chamar de roupas.

E chorei até minha voz ressequida ter-se ido, deixando-me com assobras de minha fome.

Flente, lastimosa e oca em meu âmago, novamente ergui o pãoembolorado perante meus olhos carminados, afoguei meus soluços, arrastei opão como uma esponja sobre a açorda de carne e, sem tirar os olhos dagororoba repulsiva em minhas mãos, coloquei tudo em minha boca,mastiguei enojada, engoli a maçaroca junto com minha dignidade e voltei araspar o chão por restos de comida.

E agora cá estou a olhar suas páginas, manchadas pelo jantaresvaecido de outrora.

Minha jaula jaz escancarada neste tempo, mas me pego temerosa aoentreter a ideia de abandoná-la.

Ah, me desculpe a bagunça, meu amado diário.A bagunça que fiz, a bagunça que sou.

“Wendy!” Fawkes gritou, entrando no quarto dela, seguido porKahsmin.

Wendy baixou um livro que estava lendo e olhou, com lágrimas norosto, para ele: era, no mínimo, dilacerante ver aqueles olhos verdesavermelhados encontrando os seus com uma expressão tão perdida.

“Wendy, o que foi?” Kahsmin perguntou preocupado, se apressandopara seu leito.

“Eu achei esse livro.” Ela disse, erguendo o livro, “e eu não entendometade das palavras dele, mas a outra metade me fez chorar porque eutambém sou uma bagunça!” Wendy terminou soluçando e lambendo umalágrima que dançava em seus lábios.

Kahsmin e Fawkes se entreolharam confusos.“Talvez seja melhor por o livro de lado por ora, seu amigo veio te

visitar.” Kahsmin disse, apressando Fawkes para se aproximar da cama.“Você parece uma almofada de alfinete com esse cabelo!” Ela disse

com um sorriso inesperado em seus lábios.“Isso é... um elogio?” Fawkes perguntou com confusão estampada na

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cara.“Sei lá, eu gosto, mas acho que seus olhos deviam ser vermelhos, ia

combinar mais com você. Isso aí na sua cara dói?” Wendy perguntou,apontando para a cicatriz dele.

Kahsmin deu uma cotovelada nada discreta no ombro do Fawkes esussurrou: “Não esquece: o segredo é a história.”Num lampejo de brilhantismo, inspirado por Kahsmin e suas ideias semsentido sobre histórias, Fawkes começou uma narrativa longa e épica sobrecomo ele invadiu sozinho o Hospício para Demônios de Virrat, enganandouma equipe de segurança inteira, composta de centenas de quimeras.Contou sobre quando uma horda assassina de goblinianos o capturou e quaseo forçaram a beber veneno em uma taça de ouro mágica da morte e como eleenganou todos eles, segurando a taça e a aquecendo com as mãos até todo oveneno evaporar.Então, com apenas uma mão, ele derrotou a legião inteira de demôniosdementes do hospício. Até chegar o momento em que ele a salvou de EthanBlakewood.“Ethan fez você achar que haviam vermes rastejando dentro da sua barriga esaindo pelos seus ouvidos! E você começou a se debater toda no chão,berrando e arranhando toda a sua barriga. Eu tentei te parar, e ganhei isso emtroca.” Fawkes disse, apontando para o rosto, “então eu fiz a única coisa quepoderia te salvar: Eliminar Ethan Blakewood.”Ele contou sobre sua luta épica e surreal (até para os padrões de Tuonela)contra Ethan, na qual Fawkes o derrotou, fazendo-o se enforcar com aspróprias mãos enquanto Fawkes caminhava triunfante para fora do hospíciocom Wendy nas costas.Teria sido muito mais convincente se Kahsmin parasse de rir no canto doquarto.“Você lembra?” Fawkes perguntou no final da sua pouco-convincentehistória.“Não. Vocês são confusos! O nariz de tucano ali disse que foi sua ex-namorada que fez isso na sua cara, e eu não quero acreditar que eu sou suaex-namorada, ou namorada, ou qualquer coisa do tipo.” Wendy disse, comose estivesse dizendo “bom dia”.Kahsmin riu mais alto ainda enquanto a autoestima de Fawkes era reduzida àmenos que cinzas, pisoteadas por dinossauros, engolida por lulas gigantes etodas essas coisas aí que acontecem quando uma menina fala que nunca

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namoraria você.“Mas, por quê?” Ele perguntou com cara de tacho.“Porque quero ser só do elfo!” Ela disse exaltada, e abraçando o travesseirotão forte que, se fosse uma pessoa, teria tido os olhos arrancados do rosto.“Quem é ‘elfo’?” Fawkes perguntou para Kahsmin, que, finalmente (ouapenas educadamente), parou de rir.“Não tenho ideia.” Ele respondeu, apesar de não parecer muito honesto,“bem, agora que terminaram, hora de trazer a memória dela de volta.”“Quê? Como?”“Olhe a seringa.” Kahsmin disse, passando-a para ele.“O que tem ela?” Fawkes disse, passando o objeto de uma mão para outra.“Está cheia ainda. O ser que tentou injetar isso nela não chegou a completar oserviço. Acho que você e a senhorita Sinnett merecem o crédito por o teremimpedido.”“Mas, por que ela está assim então?” Fawkes perguntou, apontando paraWendy, que estava de pé na cama, enquanto lia o mesmo livro surrado,recitando algumas palavras difíceis como “perfídia” e “mandrágora”aleatoriamente.“Eu posso estar errado, mas acredito que a situação toda pela qual ela passougerou uma sugestão muito forte de que ela perderia a memória quando aagulha tocasse seu pescoço.” Kahsmin disse apontando para o pescoço dela, amarca de onde a agulha tinha sido inserida estava bem roxa. “Wendy deve tertido um colapso de desespero e, por isso, desmaiou antes de ver vocês doisentrando, o que ajudou a sugestão a afundar na mente dela de uma talmaneira que, agora que acordou, ela de fato acredita que perdeu a memória.”“... não entendi nada.”“Pense em hipnose. Um cara te coloca num estado de mental alterado esugere coisas para você. Se ele sugerir que a pessoa é um pato, quando ele atrouxer de volta, a pessoa vai agir como um pato. Eu acho que a mesma coisaaconteceu com a ela. Só que sem um hipnotista.”“Ela não parece um pato pra mim.” Fawkes comentou, tentando ser quebrar oclima pesado que começava a se condensar no seu peito desde que Wendydisse que não queria ser namorada dele.“Quack!” Wendy disse. “Quack! Quack! Eu sou um pato, me dá pão!” Eladisse rindo, nem parecia que estava chorando uns minutos atrás.“Você me entendeu.” Kahsmin respondeu risonho, “aliás, sobre sua história,vou te dar um nove e meio pela criatividade, mas para ser boa de verdade, ela

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teria que parecer real. Você contou sua história como se você fosse um heróiimortal e invulnerável, pronto para salvar a mocinha a qualquer custo só paraganhar um beijo.”“E daí? Achei que ela ia gostar.”“Garoto, pessoas, principalmente mulheres, pressentem e detestammentirosos. Qualquer homem que aja como alguém invulnerável a tudo estámentindo. Ou tem sérios problemas na cabeça.” Kahsmin contou. “Ah, elechegou.”Kahsmin abriu a porta, e lá parado estava parado um homem que poderiamuito bem ser o pai do Edgar, com aquele rosto chupado e cabelo bagunçado,mas até onde Fawkes sabia, o pai de Edgar foi capturado pelos D’arlit hámuitos anos.“Olá, Hakasalo, obrigado por vir, ela está aqui.”“Vejo que ela está imitando um pato.” Hakasalo observou em seu tom baixo.“Sim, é culpa dele.” Kahsmin disse apontando para Fawkes.“Ei!”“Chega.” Hakasalo ordenou.

Ele ajeitou os óculos no rosto e ficou com os olhos tão grandes quepoderiam ser de um gobliniano ou uma quimera de lêmure. Logo, ele seaproximou de Wendy e começou a fazer perguntas com uma voz muito, masMUITO lenta e grave.“Kahsmin, quem é esse?” Fawkes perguntou, sem tirar os olhos do homem.“Hakasalo? É meu primo. Eu pedi para chamarem ele aqui em cima poucodepois que notei o que acontecera com Wendy. Você vai ver porque.”Kahsmin acrescentou.“Eu nunca vi esse cara aqui.” Fawkes comentou, “espera, você tem primos?!”“Por que a surpresa? Acha que vim pra esse mundo sozinho? Ele na cidadede Bric-à-Brac. Adora pesquisar o comportamento das pessoas, mas nãosuporta estar no meio delas. Vai entender, enfim, eu pedi para que viesseontem à noite para dar uma olhada no James, e por sorte ele ainda estava aquiquando vocês chegaram com Wendy.”“Quem é James?” Fawkes perguntou, ignorando o arrepio em sua pele àmenção de Bric-à-Brac.“Um garoto catatônico que não falava coisa com coisa. Autumn e eu oachamos em Jussarö. Vocês dois vão se dar bem. Ele parece gostar deexplorar.” Kahsmin acrescentou.“Kahsmin.” Hakasalo chamou, se aproximando. “Tudo que pude fazer está

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feito. Ela só precisa de um pequeno incentivo para sua memória voltar afuncionar. Sugiro que encontre algo antigo nos pertences dela,preferencialmente, algo de valor sentimental, seria ideal. Tenha um bom dia.”Ele disse, saindo do quarto.“Ei, Haka, você vai estar aqui amanhã à noite?”“Você quer dizer, enquanto os D’arlit estarão aqui, comendo nossa comida ese divertindo às nossas custas porque você não tem coragem de organizar umataque contra eles? Não, não estarei, primo.” ele fechou a porta com maisforça que o necessário.“Quem são D’arlit e por que eu já não gosto deles?” Wendy perguntoucuriosa.Kahsmin dirigiu um olhar aparentemente alegre para Wendy, apesar deFawkes ter notado que tanto o brilho de seus olhos, quanto seu sorriso,pareciam falidos.“Sabe quando você está construindo um castelo de areia na praia, mas cometeo erro de fazer ele muito perto do mar e aí, sem aviso, sem sequer serconvidada, uma onda vem, destrói tudo que você fez e ainda te faz mudar delugar, já o mar tomou aquele pedaço de praia de você?”“Acho que sei.”“Os D’arlit são esse mar. Pessoas que destroem a sua casa e fazem você sair.”“E o que acontece se você não sai?” Wendy perguntou.“O que acontece se você ficar muito tempo embaixo d’água?”Wendy virou a cabeça como uma coruja e, do nada, começou a fazer barulhode gente se afogando. Boa sorte tentando imaginar isso.“Isso mesmo.” Kahsmin comentou. “Fawkes, você sabe onde estão ospertences dela?”“EU SOU O MAR!” Wendy gritou, ainda fingindo se afogar, “EU SOU OSD’ARLIT!”“Não tenho ideia, a Kristell não sabe?” Fawkes disse tentando não rir.“Kristell?” Wendy repetiu, fez um último borbulho afogado e perguntou.“Você disse que ela é minha amiga, né?”“Isso mesmo.” Kahsmin respondeu“Posso falar com ela?”Kahsmin e Fawkes se entreolharam nervosos e disseram juntos: “Melhornão.”“Por quê? Ela tá doente?”“Irritada, na verdade.”

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“Então para de ser chato e me mostra cadê ela! Amigas servem pra acalmaruma à outra.” Wendy ordenou como uma daquelas crianças mandonas dedoze anos.“Wendy, sério, péssima ideia.” Fawkes comentou.“Se ela é minha amiga, tenho certeza que ela faria o mesmo por mim se euestivesse irritada ou chateada. Eu não seria uma boa amiga se não retribuísseo favor. Vamos!” Ela disse com tanta determinação e certeza que Fawkessentiu sua pele se arrepiar junto com a convicção dela.“Kahsmin.” Fawkes chamou antes que ele dissesse alguma coisa. “Melhorobedecer.” Ele comentou, olhando Wendy enquanto o sol irradiava sobre apele da menina.

Ele entrou na sala, mais preocupado do que uma pessoa normal deveria estar.Mas claro, ele não era uma pessoa normal: sua vida estava nas mãos domestre, no sentido mais literal da frase.Não foi difícil vê-lo: o mestre estava sentado em uma mesa redonda, comduas cartas de baralho na mão, cinco na mesa e um único adversário, com orosto escondido por uma montanha de fichas de pôquer.“Sei que está aí, chega mais.” O mestre disse lascivo.Ele andou até a mesa, calmo e devagar, demorando o máximo que pode.“Por que está aqui?” Indagou o mestre, sem desviar os olhos das cartas.“Caleb Rosengard, meu senhor. Caleb Rosengard.”“Sim, parece que ele rompeu o contrato, esperei por isso por quase vinteanos.”“Então, Caleb Rosengard deve morrer, certo? Mestre?” O espectro perguntou.“Em algum ponto, sim, ele deve morrer, já tenho a morte dele planejada háanos, no entanto, a morte dele não deve vir primeiro, não agora que estoulivre para usá-lo em minhas tramas.” O mestre disse, disfarçando uma caretaque fez quando seu adversário aumentou a aposta.O espectro, no entanto, continuava inquieto.“Mestre, senhor. Me perdoe por interromper, mas preciso saber se...”“Você teme pela sua vida, não é?” O mestre disse, pela primeira vezdesviando os olhos de suas cartas, mas o espectro não podia vê-los de fato, aluz estava num ângulo perfeito para cobrir o rosto dele com sombras.

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“Eu agradeço ao mestre por dar vida ao espectro, e sei que fui feito apenaspara ‘cuidar’ de Caleb Rosengard. No entanto, se não for pedir muito, mestre,gostaria de saber o que acontecerá comigo quando Caleb Rosengard se for.”Silvou o espectro amedrontado.O mestre aumentou ainda mais a aposta e virou a última carta na mesa.“Camarada, relaxa, tanta tensão vai tirar a precisão com que executa minhasordens.” O mestre disse lento e manhoso, esperando seu oponente. “Eu omanterei vivo, se essa é a sua preocupação, contanto que continue a meservir.”O espectro sorriu. Sabia que não era uma visão agradável, mas não podiaevitar: mesmo Caleb Rosengard tendo descumprido sua parte do acordo edeclarando sua própria morte, o espectro continuaria vivo, servindo aomestre.“Agradeço, mestre.” O espectro disse, e com isso, se retirou do quarto.Antes, porém de fechar a porta, um resquício de curiosidade veio à suacabeça, e ele não foi capaz de calá-lo.“Quem é o oponente do mestre esta noite?”O mestre riu com gosto, com sua voz nem grave nem aguda, enquanto seuoponente cobriu a aposta e jogou as cartas na mesa.“Um Royal Flush, nada mal.” O mestre disse como uma raposa, dando todasas suas fichas para seu adversário. “Esta, meu caro, é a pessoa que me ajudoua tornar os planos para Caleb Rosengard bem mais divertidos e prósperos queeu havia esperado, e também, a única pessoa capaz de me vencer no pôquer.”Então, uma pessoa ficou de pé sobre a mesa, não devia ser mais alta que umacriança de dez anos. Ela pegou todas as fichas da mesa e começou a dançarcomo uma bailarina louca em miniatura. Tudo que a luz revelava eram seusolhos e cabelos avermelhados.“Eu venci o boboca do Gambler, la la la la la!”“É, Ally, você venceu o boboca do Gambler.” Mestre Gambler respondeu.

Kahsmin mandou Fawkes guiar Wendy pela catedral abaixo, até a cidadesubterrânea, já que ele tinha um “assunto urgente a ser tratado”, um queconvenientemente o deixava longe da peleja que devia estar acontecendo láembaixo.

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Toda hora, Fawkes ouvia exclamações assombradas vindas de Wendysobre como as pinturas eram bonitas ou como as escadas eram cansativas ecomo ela queria biscoitos dinamarqueses e que leite era nojento.Quando entraram na Tuonela subterrânea, se depararam com paredes de casasderrubadas, sinais de luta por todas as ruas, multidões descontroladas e umaaglomeração no centro da cidade que só podia significar uma dessas duascoisas:1 – Briga2 – Muita briga “Vamos.” Fawkes disse, puxando Wendy pela mão no meioda aglomeração. “A Kristell deve estar por... essa não.”Fawkes parou boquiaberto, respirando em quiálteras: dentro de um círculodelineado por pessoas assustadas, estava Kristell Sinnett, olhos brilhantescomo os de uma coruja na calada da noite, fixados em uma única pessoa:Victoria Vihreä.Kristell e Victoria se rondavam como duas ginetas selvagens se estudandopara o ataque: Kristell estava coberta de hematomas e a ferida em seu peitoreabrira (dava pra ver o sangue sob a roupa dela), mas nada disso importavapara a líder de torcida enfurecida.Victoria estava ótima em comparação: um corte na boca era todo estrago queele conseguia ver na garota de cabelo verde. Fawkes quase havia seesquecido como eram os olhos de Victoria Vihreä quando ela se tornava umdemônio, as pupilas tornavam-se finas como adagas de malaquite polida,lembrando um felino noturno.Victoria sorria um sorriso enjoado de prazer.“Quem são essas? Elas tão dançando? Cadê a música?” Wendy preguntouconfusa.“A de cabelo verde é a Victoria, a loira é a sua amiga Kristell, elas tãolutando e acho que só vai parar quando perder a cabeça.” Fawkes contoupreocupado.“Mas por que elas estão brigando?!” Wendy perguntou abismada.“Porque a Kristell precisa de tratamento.” ele respondeu, lembrando osataques de raiva da ex-namorada.“Quê?!”“Olha, não é difícil irritar a Kristell, qualquer coisinha e ela perde a cabeça equer descontar a raiva dela em tudo e em todos ao redor dela, tipo agora.”“Mas por que ela tá brava?”“Tá vendo o cabelo dela?” Fawkes perguntou, apontando para Kristell.

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“Claro que eu tô, tá engraçado, mas faz ela parecer louca.”“Ele costumava chegar até o meio das costas dela, mas ontem algum infelizfez picadinho do cabelo dela. E vai por mim, ninguém, nesse mundo nem nopróximo ama tanto o próprio cabelo como a Kristell.” Fawkes sussurrou, commedo de que Kristell ouvisse e resolvesse que arrancar a cabeça do ex-namorado ia ser mais interessante que brigar com Victoria.Wendy pareceu sentir a dor de Kristell: ela passou as mãos pelos próprioscabelos escuros enquanto olhava para a amiga; se não fosse o corpo de líderde torcida, seria fácil de confundi-la com um garoto agora.“Ela descobriu isso hoje cedo, e desde então, parece que soltaram o infernona Terra pelo que o Kahsmin contou, e isso quase sempre acontece quando aKris fica irritada. Nós até temos planos pra quando isso acontece, da últimavez que ela perdeu o controle assim foi quando eu e ela terminamos e...Wendy? WENDY!”Wendy estava parada entre Kristell e Victoria.“Oi Kristell.” Ela disse.“Sai da frente.” Ordenou Kristell fria.“Vamos conversar.”Kristell respondeu, pulando por cima da Wendy e atacando Victoria com aselvageria de um lince, ou leão da montanha, ou qualquer coisa que te agarrepelo pescoço, te jogue no chão e te estrangule até você ficar roxo e morto.Se Fawkes não estivesse aflito com toda a situação, estaria rindo da cara queWendy fez para as duas: uma expressão que não indicava medo, mas sim apergunta “sério mesmo, galera?”“Eu sou mesmo amiga de uma menina tão idiota assim?” Wendy perguntouem voz alta para Fawkes.De súbito, Kristell parou, cessou o ataque à Victoria e virou-se para Wendy:“O que você DISSE?”A distração foi o bastante para Victoria se livrar do peso de Kristell.“Repete o que você disse, agora!” Kris ameaçou, se aproximandodeterminada.“Você é idiota pra ficar brava por uma coisa tão estúpida.” Wendy respondeucomo se nada tivesse acontecendo.Fawkes não tinha a mínima ideia do que Wendy queria com aquilo, se é queela queria alguma coisa.Só sabia que ela quase perdeu a cabeça, sorte a Victoria ter sido mais rápida esegurado Kristell a tempo.

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“Saia daqui.” Victoria sibilou com o corpo imobilizado de Kristell sem suasmãos.“Não até a minha amiga parar de ser idiota.” Wendy respondeu.Fawkes, e toda a multidão em volta delas, arquejaram.

Por que essa menina queria fazer alguma coisa por Kristell quandonem lembrava que elas eram amigas?“Não me chame assim, Wendy.” Kristell bufou, enquanto se debatia contra oaperto de Victoria no seu pescoço e peito.“Você tá descontando sua raiva em um monte de gente que não tem nada aver com o seu problema. Isso é muito idiota.” Wendy disse, despreocupada.A multidão assentiu em silêncio.“Eles me arruinaram!”“Eles cortaram seu cabelo!” Wendy respondeu de volta.“ERA IMPORTANTE PRA MIM!”“CABELO CRESCE SUA NARCISISTA IDIOTA! Não é como se elestivessem feito algo irreversível e, mesmo se fosse, você ainda conseguiriaviver. Para de ser chorona.” Wendy disse dura.“Okay.” Fawkes pensou. “Perder a memória é perder a noção do perigo,anotado.”Não havia um pulmão que não prendesse a respiração na expectativa do queviria em seguida: Victoria não deu sinal de que havia afrouxado o aperto, masa expressão de Kristell parecia mudada: não era mais uma montanha de raivaassassina pronta para matar qualquer um na sua frente.Só uma montanha de raiva assassina pronta para matar Wendy.“Fácil pra garota com retardo na cabeça falar, não foi com você.”Wendy andou firme em direção à Kristell, ainda presa nas garras de Victoria.Seus passos ecoavam no silêncio da multidão.Uma vez frente à frente, Wendy tirou uma faca de dentro das roupas e aergueu na altura da cabeça.Outra arfada em conjunto ressoou na multidão.Wendy segurou seu próprio cabelo, o cortou com uma facada só.“MEU CABELO! JÁ ERA! QUE HORROR! EU VOU EXPLODIR! AHHH,AHHH NÃO GHUABUAHAHATBSGSAGHGSASGNSHSAGASHGASSSS...Wendy não explodiu.E não havia alma viva na plateia que não estivesse bestificado com orepertório de sons estranhos que aquela garota tinha na manga.

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“Qual a sua defesa agora?” Wendy desafiou, jogando o cabelo na cara daKristell, seguido de um tapa. “E nunca mais diga que eu ou qualquer pessoanesse mundo ou no próximo tem retardo, sua babaca insensível.”

Wendy saiu de cena antes que todo seu cabelo tocasse o chão.

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Capítulo 20

1 de Setembro, 1989

A ti, rogo que se deleite ao partilhar sua vivência com esta aprazível alvoradaafônica, estimado, bem-querido e amado diário. Presto-lhe cumprimento demimos e ternuras tais, contraditório que venha a soar, uma vez que sou eu aproferi-los, porque, na hipótese de um dia eu retornar aos afagos e amassosde suas páginas, viria a ser um regalo mavioso sentir-me bem-vinda em meupassado, uma vez que careço de esperanças tais quando miro o futuro.Finda a gerocomia de meus sonhos molambentos, observei minhas juntasjaldes em sua algia, minha mente fatíloqua previu que hei de sofrermogigrafia, vulgarmente chamada “cãibra dos escritores”; caso esta vilpremonição trilhe em vias alinhadas à minha realidade, terei de resumirminhas atividades à leitura de tomos clássicos ou do dicionário oculto sob ofrouxo soalho e orar para que limoctônia não faça de mim mais uma vítima.Muita bulha em minha janela guarnecida fazia um pássaro preto como achona, de cauda e asas azuis índigo, pássaro cujo nome exato, envergonho-me afirmar, não faz parte de minha ciência, embora esteja eu quase certa deque é uma ave da família Sturnidae, rabigo como era, um mainá que cresceuem demasia, suponho eu. Ave tal vinha encontrando entretenimento bicandoo vidro com seu rostro robusto, como que implorando por asilo em meupresídio.Em segredo, fiz preces para que entrasse, que fosse meu novo amigo, mechamando para brincar lá fora, entre as flores, sobre as árvores e além do céuceleste, onde eu nunca seria capaz de alcançá-lo, e isto de pouca importânciaseria, vendo que, como todo bom amigo, ele haveria de retornar.Mas se ele entrasse, e meu pai o visse, eu seria forçada a comê-lo.Apenas este melindroso recordo me serviu de consolo quando vi que opássaro abandonara a janela e meu invite de amizade, meu grito silente desocorro.O relógio sitiado no fastígio da parede marcava a quarta hora da matina: a luzda lua meio cheia alastrava-se na melancolia de meu quarto acabrunhado. Meencontrava encarcerada na jaula construída por papai para punir meu crimesolene: nascer.

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Crime, cujo mundo assentia em concordância ser de ignobilidade tamanha,sequer demandava veredito, uma vez que, caso tal opinião encontrasse-se emdiscrepância com o verdadeiro aqui e agora, já estaria eu ouvindo os urrosfuribundos daqueles que demandam a justiça dos insontes.Mas insonte eu não devo ser.Pois urros tais eu nunca ouvi.Falho em constar a existência de prazer quando entretenho conceito tal, emverdade vos digo, meu amado diário, de nada nutro minh’alma senão da maissincera repulsa ao entreter tal abstração no insulamento do meu amarguradoeu, sem embargo, esta mesma abstração é a única plausível na caçada porexplicação ao encarceramento sórdido ao que sou submetida.

Talvez haja verdade quando ele aponta e diz que sou uma aberraçãoabominável.

Todavia, só hoje, só agora, eu voto não chorar minha sina em ti, meuamado diário.Papai está lá embaixo, acordado.Às vezes, tenho a sensação de que ele desenvolveu imunidade ao torpornoturno e, talvez, seja a inadimplência de seu sono que explique a folia deleem acreditar que a própria filha é um anátema contra tudo que é bom e denatureza virtuosa. Também explicar-se-iam os constantes pedidos de perdãopara o ser por ele alucinado em suas irrupções súbitas de culpa.Ou, talvez não durma por medo de como sua consciência o tratará em sonhos.Mas hoje, ele não dorme por ter visitas.Faz horas que venho escutando a cavaqueira entre ele e um segundo homem.Ambos regorjeando em risos enfadonhos, afogados em lereia de naturezapudica e impenetrável por mim, temas como “punição divina” e “acerto decontas” foram citados.

Não me apetece ouvir terminologias tais, mas menos ainda apetece-me concluir que papai, magnicida de minha liberdade, e seu conivente, osusem para explicar porque os caminhos de papai estão enleados à desgraçaque sou eu.Por quê? Por que, pergunta você, meu amado?

Porque a dita “providência” promulgou que eu havia de ser seucastigo.Mas quem definiu o MEU castigo?E quem está castigando quem, afinal? A mim não cabe saber, minha mente vêo todo desta situação como simplório e idiótico, mas que voz uma menina de

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dez anos pode sonhar em ter para argumentar contra seu pai, o portador deseu pão, embebedado em grola sabedoria?Na minha cabeça, a solução é tão simples: aceita-me como sou, e serei capazde amá-lo como és, e vice-versa. Não estaríamos punindo um ao outro comnossas presenças, mas nos amando como pai e filha deveriam.

Como nos livros, como na fauna, como na vida.Mas esta é só a minha cabeça implorando por uma saída de fácil acesso.Notei a já pronunciada quietude dos homens lá embaixo e confesso: nestanoite, tal silêncio faz-me pinguelear em apreensão: creio eu, logo ele haveráde escalar as escadas, soturno em seu ribombo, com a finalidade sóbria dealimentar-me e, se a sorte me sorrir, espancar-me.

Viu? Há em mim faculdades de ironia.Haha... eu sou patética.

Antes de anunciar minha ida e meu adeus, venho esmolar seu perdão por meuerro.Há pouco mais de quatro horas, destituí-me dos vanescidos resquícios de meudécimo ano de vida.Feliz aniversário para mim.Agora? Agora está em meu poder escutar papai carregando meu presenteescada acima.Rogo para que a dor não seja insuportável desta vez, ainda estou a recolher osescassilhos de minha esvaída dignidade, moídas e pulverizadas no últimoaçoite.Ah, meu amado diário, quisera eu estar desacordada nas horas que seaproximam.Aí vem o meu presente.

“Tá aqui. Foi tudo que ela trouxe do orfanato com ela.” Kristell disse,colocando uma mala esverdeada sobre a cama.Depois da “pequena confusão” em Tuonela, muitos curativos em váriaspessoas e o que pareceram horas de Kristell chorando por ser uma idiota(Fawkes concordou com ela ser uma idiota, mas achou melhor não dizer emvoz alta), ela resolveu se desculpar com todos, inclusive Wendy.Foi quando Fawkes avisou que ela tinha perdido a memória e que precisava

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de algo com conexão emocional com o passado dela para restaurá-las.“Ela falou aquelas coisas sem saber que era minha amiga?!” Kristellperguntou assombrada.“A gente avisou que vocês eram amigas, mas só isso.” Fawkes respondeu.“... ela é mesmo incrível.” Kristell comentou.A primeira coisa que Kris fez foi procurar Wanda, a boneca de Wendy.Kristell disse que as duas eram praticamente inseparáveis, mas quandoperguntaram para Wendy sobre a boneca, tudo que a menina respondeu foi:“Eu tenho uma boneca? Tá comigo não.” Wendy disse, e voltou para o livro.“O primo do Kahsmin disse que nós tínhamos que dar o objeto pra ela, nãofalar dele.”“Eu não sei onde ela guardou a boneca...” Kristell respondeu pensativa.Enquanto os dois pensavam no que fazer, Kristell começou a contar históriassobre o Orfanato das Neves: quando a Wendy colocou ovos nos sapatos dairmã Romena, simplesmente porque “por que não?”, depois contou da vezque Wendy e Christina entraram numa casa abandonada e fingiram que eramfantasmas só pra assustar todas as meninas do orfanato que entraram depoisdelas.Ainda contou da vez que a Mary Ashdown roubou uma roupa de freira efingiu por quase três dias ser uma das irmãs. Ela ser mais alta que a Kristellajudava muito. A “irmã Mary” dava comida à vontade para Kristell, Wendy eChristina. Também levava Dana para falar com a irmã Romena por ser chatae irritante.Pena que o disfarce não durou. Alguém percebeu que a Mary sumiu, e outroalguém percebeu que a irmã Mary parecia MUITO mais nova que todas asoutras, mas tudo bem, a irmã Sarah conseguiu amenizar um pouco oproblema no qual Mary se metera.“Quem é irmã Sarah?” Wendy perguntou.Nesse ponto, Kristell desistiu das histórias e, finalmente, lhe ocorreu procuraralguma coisa nos pertences da amiga, guardados na casa de Edgar.Fawkes teve que admitir uma coisa: ele adorava e preferia Kristell de cabelolongo, mas a Wendy ficou bem mais bonita com o cabelo curto. Claro, essa éuma daquelas coisas que você não fala em voz alta, ainda mais quando suaex-namorada acaba de voltar pro quarto com algo pesado nas mãos.“Deixa eu ver: umas três roupas e uma caixa e... nossa! Wendy caprichoumesmo nesse vestido.” Kristell disse, tirando um vestido preto e branco damala de Wendy.

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“Guarda isso.” Wendy pediu no instante em que viu o vestido.“Por quê?” Kristell perguntou.“Eu não sei, mas eu não gosto dele.” Wendy respondeu fazendo cara derepulsa.“Tudo bem, ah, o que tem aqui dentro?” Kristell perguntou, tirando umacaixa de dentro da mala e abrindo-a. “Papel, mais papel, a lanterna e, espera,A LANTERNA!” Ela disse erguendo o objeto. “Dá isso pra ela.”Fawkes deu a lanterna para Wendy e os três assistiram fascinados enquantonada acontecia.“Era pra acontecer alguma coisa?” Wendy perguntou, desligando e ligando alanterna.“Deve ter mais alguma coisa aqui.” Kristell disse, voltando para a caixa.“Alguma coisa no meio desse monte de... eu não acredito nisso.” Ela dissecom assombro na voz, erguendo um envelope amarelado, sem data, semnome, sem nada além das três palavras: Para minha filha.“Ela me mostrou isso só uma vez.” Kristell disse, suas mãos procurandoinstintivamente o cabelo que deveria estar na sua testa, a recolhendo quandolembrou que não havia mais nada ali. “Se isso não der certo, nada vai dar.Wendy!” Ela foi até a amiga.“Aí vem o meu presente.” Wendy disse em voz perdida, ainda lendo seulivro.“Leia isso.” Kristell disse, entregando o envelope nas mãos da amiga.Wendy passou o envelope de uma mão para outra sem, em momento algum,tirar os olhos dele. “Eu acho que conheço isso.” Wendy sussurrou, franzindoa testa, abrindo o envelope, retirando com cuidado não característico dela, ese pondo a ler, não exatamente em voz alta, mas ouvível e carregada decarinho.

Imagino quantas perguntas você tenha por fazer, minha filha.Se pudesse, responderia todas, e ainda faria mais milhares de perguntas para

você.Como foi seu décimo quinto aniversário?

Você superou algum medo hoje?Fez algum amigo novo?

Mutilou os sonhos dos seus inimigos quero dizer, defendeu alguém que nãopodia se defender sozinho? Seu pai ficará orgulhoso se souber que sim.

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Espero que você seja uma pessoa boa como ele; vocês dois têm os mesmosolhos.

Com sorte, vocês também terão o mesmo coração, moldado em amor quepalavras não explicam.

Dói em mim saber que nunca vou ouvir sua voz me respondendo essasperguntas.

Mas pelo menos, posso responder algumas das suas: Seu aniversário é nanoite de 25 de Outubro, e você era um bebê maravilhoso.

Você sempre gostou de fingir que cantava com seu pai, e também gostavaquando ele erguia você bem alto. Eu tinha medo que você caísse, mas ele

nunca deixou isso acontecer.Eu não tenho certeza, mas acho que sua primeira palavra foi “asa”, ou “casa”,seu pai jura de pé junto que é “asa”, mas não importa, eu fiquei mais feliz do

que qualquer pessoa pode sonhar em ser quando ouvi sua voz.E você sabe que estou fugindo da pergunta que você mais quer fazer. Não

sabe?Eu sei que sabe, você é minha filha, você quer respostas, tanto quanto seus

pais.“Por que não estamos juntos?” Eu quase consigo te ouvir dizer.

O motivo é que sua mãe cometeu erros na vida dela. Erros que fizerammuitas pessoas não gostarem dela.

Esses erros, eles vão custar a minha vida.Há pessoas atrás de mim, Wendy, agora mesmo, pessoas com quem tenho

laços de sangue.Entenda, como sua mãe, eu posso aceitar meu destino, mas não posso

permitir que o mesmo aconteça com você. Eu não descansaria em paz sesoubesse que meus erros custaram a vida de uma minha filha, uma das únicas

coisas boas que fiz na vida.Por isso eu a levei para o Orfanato das Neves. Soube que havia amigos lá.Amigos e segurança. Pelo menos até que cresça o bastante para poder se

defender sozinha e voltar para o lugar onde pertence, espero que lá seja umbom lar.

Pode não fazer sentido agora, mas um dia você vai entender, minha filha.Meu tempo nesta vida está no fim, então guarde com carinho as palavras dosseus pais: Nosso amor por você supera o insuperável, você nunca estará só

quando pensar em nós.Seja feliz, Wendy.

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PS.: E cuide bem da Wanda. Deu muito trabalho fazê-la.

As mãos, os lábios e até os olhos de Wendy tremiam enquanto ela abaixava acarta.“Wendy? Você tá bem?” Kristell perguntou baixinho, se aproximando daamiga.“Minhas... minhas costas estão coçando.” Wendy murmurou.E desabou em choro no ombro da Kristell.

Não havia porque esconder, e ela nem queria: seu coração saltava noseu peito sempre que lia aquelas palavras, e isso era algo que nunca iriamudar. Nem se realmente tivessem apagado sua memória, ela nunca iriaesquecer das palavras de sua mãe.“Eu me lembro.” Ela anunciou, mas Kristell não se importou, apenas abraçoua amiga.Muito tempo se passou com ambas presas no abraço uma da outra. Em algummomento, Fawkes saiu do quarto (devia estar desconfortável para ele) e sódepois de muito mais tempo, Wendy voltou a falar: “Eu realmente cortei meucabelo por sua causa?” Wendy perguntou com um sorriso, embora os olhosainda estivessem vermelhos.“Cortou.” Kristell disse rindo também.“Isso porque foi você que veio com todo aquele papo de não se importar comcicatrizes quando a gente tava no hospício.” Wendy brincou.“Eu disse que eu tinha cicatrizes, não que eu lidava bem com elas.” Krisrespondeu, e as duas caíram na gargalhada, e continuaram até a barriga deWendy começar a doer.Kristell limpou a garganta e tentou parecer séria quando falou de novo:“Você ainda quer voltar para o Orfanato das Neves?”Wendy olhou para Kristell, ainda tentando se acostumar com a ausência doscachos loiros que emolduravam o rosto da amiga.“Sabe, eu pensei muito naquilo que você disse sobre pessoas precisarem denós. No Orfanato, eu sei que há pessoas como a Cora e a LaVerne queprecisam de alguém como eu para estar com elas. Alguém que ame aquelasmeninas como eu amo, entende?” Wendy disse por fim.“Eu entendo.” Kristell disse, com um desapontamento maior que a vida noseu rosto. “Então você vai MESMO voltar?” Ela perguntou, olhando fundonos olhos da amiga.

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Aqueles olhos caramelos fizeram a resposta de Wendy travar na ponta de sualíngua.

“É, Kristell, eu sinto que elas precisam de alguém como eu.” Wendydisse por fim.

Kristell não disse nada, apenas abraçou a amiga, como se estivessetentando tirar todo o ar de seus pulmões.

“Elas precisam de alguém como eu.” Wendy repetiu no ouvido daKris, com um sorriso travesso no rosto. “E a irmã Sarah é bem parecida.Agora, Tuonela precisa da Wendy, se não quem vai parar minha amigaassassina quando ela ficar louca das ideias?”

“EU VOU MATAR VOCÊ WENDY!” E as duas começaram a rir denovo enquanto Kris fingia que socava a cara da amiga, sem perceber o tempopassando lá fora.

Naquele momento, mesmo na ausência das outras amigas, Mary eChristina, Wendy estava feliz como se estivesse em casa pela primeira vez,atrevendo-se a dar seus primeiros passos fora da jaula que era seu medo.

Ela passou o resto da tarde falando sobre como Fawkes tinha tentadoimpressioná-la com uma história ridícula de como ele a salvou dentro doHospício para Demônios de Virrat, e o quanto ele tinha ficado engraçado coma cicatriz na cara. Kris respondeu a cada trecho da narrativa dizendo que eleera um canalha e não valia nada.

“Mas pelo menos, ele tirou mesmo a gente de lá.”“Sério?”“Ele lutou mesmo com o Ethan Blakewood, foi horrível, tinham

vermes saindo da minha pele e eu tentei arrancar eles à força.” Kris disse,mostrando as cicatrizes que ela mesmo infligira em seus braços.

Antes que Kristell retomasse a história, alguém bateu na porta.“Pode entrar!” As duas responderam.Para a surpresa de todos, era o Mano Pamonha, suando e bufando como setivesse subido quase mil degraus de escada correndo... ah, espera, elerealmente teve que fazer isso.“Oi... é... Kris... eles querem... é... fazer um último...”“Já entendi Mano, eu tô descendo já.” Kristell disse, se levantando da cama.“É o último ensaio, Wendy, quer ir?”“Eu desço logo depois, a sua parte é muito curta pra eu querer ir agora.” Eladisse rindo.“Tudo bem, até mais.” Kristell já ia fechando a porta, quando lembrou de

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perguntar. “Só uma coisa, da onde você tirou aquela faca que você usou pracortar o cabelo?”“Tava dentro desse livro.” Ela disse, pegando o livro de capa preta e surrado.“... e de onde você tirou esse livro?”“Tinha uma coisa me incomodando quando eu deitei nessa cama, aí eu fuiolhar debaixo do colchão e ele estava lá. Tipo mágica, só que melhor.”Kristell lançou um olhar suspeito para Wendy, mas não disse nada além de:“Tá, te vejo lá embaixo, e leve isso aí.” Ela disse, apontando para o livro.“Pode deixar.” Wendy esperou até os passos de Kristell sumirem, para dizer.“Só espera eu descobrir de quem é esse diário.”

1 de Outubro, 1989

Não há em mim mestria para compreender o que se passou, meu amadodiário, está tudo consumado no sapal atamancado de minha consciênciaesdrúxula.Estava eu apenas descrevendo a noitada, pinturilando em vocábulos ospássaros que voavam (em sua drapetomania por mim compartida) do outrolado de minha janela. Eram airosos em demasia, que deleite seria caso fossepossível compartir de liberdade tal.

Ah, minha alforria instigada na ensancha de meus sonhosacrisolados...Papai entrou no quarto: nunca outrora havia eu prestado atenção na modorramacilenta e lasciva que emanava de seu sorriso mentecapto.Ele arremessou, desprovido de desvelo, uma pequena gaiola ao chão, umabem menor que a jaula onde ele me mantinha prisioneira.“Você gosta desses aí, não gosta?” Ele bramiu, com agror no barrito, fora desi como um demente prófugo.Na catáfora de minha lazeira, vi-me falta de entendimento, até meus olhosrubicundos entregarem sua atenção desmedida ao que havia na cardina dagaiola.Um pássaro Mainá, desacoroçoado, preto com cauda e asas azuis,pedinchando liberdade; quiçá fosse o mesmo que vi em meses idos.Devo admitir: houve em mim pequena euforia quando vi meu paipresenteando-me com pássaro de peculiaridade tamanha, quem sabe aquilofosse uma tentativa de...

Fazer as pazes.

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Reconciliação desarrufada.Minha puerilidade não tarda em me espantar.

Papai fez questão de esperar ver sorriso desabrochando no meu semblante, sópara depois sacar um martelo pesado e enferrujado de seu cinto deferramentas. Nunca um sorriso honesto vanesceu tão fugaz de minha face.A primeira martelada caiu custosa na gaiola, o que só serviu para abrir aportinhola e libertar o galhardo pássaro. Liberdade lábil e de naturezaumbrática, uma vez que, o Mainá tão somente havia mudado de uma gaiolapara outra, ligeiramente maior.“PAI, NÃO!” Eu rouquejei, mas papai, em seu surto panteado de loucura,continuou martelando em direção ao pássaro “POR QUE ESTÁ FAZENDOISSO?!”“Esse pássaro sempre fica a noite toda na sua janela. Ele é o mal, assim comovocê, eu sei disso: e o mal tem que ser eliminado.” Ele urrou com teratiaaudível em sua voz.Minha agonia clamava liberdade com urgência, mas eu sequer podia tocar agrade.“PAI, NÃO!”Meu quarto jazia gebado e esculhambado, papai manuseava desazo omartelo, todavia, até um relógio quebrado acerta duas vezes por dia. Quandopercebi isso, algo franchão e colérico, um gatafusco amanhado em eloquênciaquis apossar-se do meu eu. BAMPor pouco a cabeça do pássaro escapa ilesa, minha cabeça, todavia, entrou emvias de implodir sobre minha espádua e, minhas mãos, a memória éressequida, mas pareciam as de... um monstro, e não as de uma garota.BAMO pássaro grasnou em agonia: meu pai havia acertado sua asa.Tal ato luctífero fez obumbrar minha visão. Estava ciente de minhaconsciência, e ciente de uma sanha descabida contra a tirania ignava eignorância esburgada de meu pai, mas tudo que vi foi um reles pesadelo cujamemória quase toda se ocultara em minha mente.Quando novamente vi-me senhora de mim. O sol brilhava alto no céu, euestava livre de meu enclaustro, a janela se encontrava escancarada e...Meu quarto jazia imbuído em sangue: no piso, no assoalho, na mesa, até emvocê, meu amado diário e, o mais perturbador, nas minhas mãos.Não lembro se gritei, todavia, creio que não, não é do meu feitio.Havia penas espalhadas aqui e acolá, mas nenhum resquício do pássaro que

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meu pai capturara. Desfadigava-se longe de minha ciência a consciênciaincumbida de alertar-me: deveria eu aliviar-me ou preocupar-me em talsituação?Era irrefutável que eu havia sofrido um lapso, mas uma lesta aferidaconfirmou que aquele sangue não me pertencia, mas então...“Papai?” Eu chamei, e o silêncio urrou em resposta.A maior poça de sangue formava-se sob o vão da porta.Embetesgada pela carestia de escolhas, convoquei toda minha vontadedesvalida e escancarei a porta: Desta vez, meu amado diário, eu gritei comtoda a pujança que uma menina de onze anos e um mês pode ter, enquantoum favônio tapejara fedendo a sal se fazia indiferente a mim nos ares de meuquarto.Lá estava meu pai, penduricado por uma faca na porta de meu quarto, sangueainda efundia de seu corpo fendido.Não sei como, talvez não caiba a mim saber como, mas, e eu estava flente aoperceber, papai estava em vias de razão: Eu era, não, eu sou um monstro.

“Eu odeio essa cidade.” Caleb disse.Havia acabado de fazer uma parede de vento na sua janela para impedir oapedrejamento que algumas crianças estavam fazendo contra o farol. Agoraelas corriam para longe, gritando ofensas que já haviam perdido o sentidopara ele.“É recíproco. Você deu ótimos motivos a eles.” Anuk respondeu.A lua brilhava alaranjada sobre o mar: suas ondas de luz sequer eram ameaçapara extinguir a escuridão do quarto de Caleb, mas era o bastante para que elepudesse ver o que estava fazendo.Bem, pelo menos estava fazendo, até Anuk chegar, o que na verdade foi bom,pois ele ainda se sentia deslocado no manejo de agulhas e linhas.“Eles sabem que eu não sabia o que estava fazendo na época, e eu já salvei avida de metade deles pelo menos duas vezes.”“Humanos não são muito bons em perdoar.” Anuk disse. “Se fossem, nãosofreriam nem metade do que sofrem, mas você já está ciente desta realidade,Caleb, parte de você é humana.”“Parte de mim está morta.”

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“Detalhes.”“Não deveria estar caçando?”“Deveria, mas antes tive que vir avisar: tenho mais dois mestiços parabuscarmos: Um é um garoto na Irmandade dos Garotos sem Nome e a outra éuma menina no Orfanato das Neves.”Caleb olhou o lobo com um sorriso no rosto: adorava visitar a Irmandade dosGarotos sem Nome. Não que houvesse um bom motivo para isso: o lugar eradecadente em todos os sentidos da palavra, mas ficava numa espécie de“cidade grande” cheia de “carros” e construções tão altas que fariam osD’arlit ficarem com inveja.E havia pianos nas ruas: era bom poder tocar e ver pessoas comuns ocercarem, aplaudindo ao final de cada peça. Pessoas que não sabiam o que eletinha feito.

Nada era melhor que ser apreciado sem julgamentos.“A passagem da irmandade abre quando?”“Em duas semanas.”“Qual o nome do mestiço?”“O garoto, ainda não sei, mas a garota se chama LaVerne.”Caleb sorriu e voltou a trabalhar com o fio e a agulha.“O que está fazendo?” Anuk perguntou.“Um presente.”O lobo andou ao redor de Caleb: tudo que deve ter sido capaz de ver foi ummonte de algodão e um pedaço de pano que Caleb estava tentando darformato.“Para quem?”Caleb parou e tirou, de dentro do piano, a boneca de Wendy, onde a haviaescondido: admirou por vários minutos a semelhança entre o brinquedo e agarota de verdade; os olhos de botão verde; o cabelo de barbante preto; até asroupas pareciam com as que ela gostava de usar.Era linda, igual a–“Wendy.” Caleb respondeu.“Você se condenou por causa dessa garota.” Anuk disse, sereno como um paicaridoso.“Não importa.”“E talvez a cidade inteira.”“Pouco me importa Tuonela.”“Mas muito importa ao Kahsmin, e importava à sua mãe. Você não pode

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condenar uma cidade inteira porque algumas pessoas têm boa memória emaus hábitos, seu dever deve ser maior que seu orgulho.”Caleb não disse nada: se fosse um mestiço de demônio, já teria setransformado e começado a destruir as pinturas nas paredes, o piano, o farol,Tuonela, os D’arlit e metade do continente. Tudo bem, nem tanto, mas eraesse o sentimento que ele sentia quando pensava em cuidar de Tuonela: ódio,puro e refinado.“Gambler pode vir a manipulá-lo.” Anuk começou a dizer.“Boa sorte.” Caleb disse, sua voz, no entanto, era a encarnação sonora daderrota. “Ele poderia usar você até onde eu sei.”“Não, há coisas que nem mesmo ele tem poder sobre.” Anuk disse rouco.Caleb não entendia porque o lobo optava por fazer uma voz tão difícil de serentendida, sendo que ele se comunicava com a mente e podia fazerpraticamente qualquer voz que quisesse. Também não entendia porque estavapensando nisso num momento tão importante.“Você sabe como ele pretende agir?” Perguntou por fim.“Gosto quando faz boas perguntas, Caleb.” Anuk disse, se levantando eandando em círculos ao redor do mestiço de anjo. “Eu tenho meus palpites.”“Sou todo ouvidos.”“O primeiro, e menos provável, é através de Wendy, estamos falando deGambler, Caleb,” Anuk acrescentou quando Caleb fez cara de discordância,“aliás, em algum momento, precisamos conversar sobre ela: você já percebeuque ela não é como as outras, não é?”“Já, ela emana algo que nunca vi nos outros mestiços, mas eu não sei o queé.”“Isso me deixa curioso, o jeito que os vagalumes seguem aquela garota, issonão se parece com nenhum poder que eu já tenha visto em um mestiço.”“Mas este não é o ponto. Neste instante, Wendy é uma das pessoas maisingênuas em Tuonela. Não é difícil para Gambler usar isso a seu favor, evocê sabe, não é, Caleb?”Caleb ficou tentado a tomar aquilo como um insulto, mas conteve-se e...“Está me chamando de ingênuo?!” Não, ele não se conteve, foi um insultomesmo.“Analise seu acordo com Gambler com um olhar frio e me diga se não foiingenuidade da sua parte.” Anuk disse calmo, “mas se preferir, posso dizerque foi completamente imbecil da sua parte se envolver com ele.”“Eu não sabia quem ele era, e você sabe, volte para Wendy.” Caleb pediu

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irritado.“Eu acredito que, agora, ela seja a pessoa mais próxima de você, tirando eu eKahsmin. Seria fácil manipulá-la com histórias sobre seu passado, sobrecomo você ajudou os D’arlit a derrotarem Tuonela, e ele ainda teria boa parteda cidade para confirmar a história. Você até guarda uma arma dos D’arlitaqui dentro.”“A espada dos D’arlit é...”“Eu sei porque você tem a espada. Ela não, e Caleb, eu sugiro que você sejahonesto com ela sobre o que realmente aconteceu em Tuonela quando osD’arlit vieram, por mais que venha a ferir seu orgulho. Caso contrário, seráfácil fazê-la voltar-se contra você, e você não teria força para ir contraWendy, nós dois sabemos.”Caleb não discutiu. Anuk tinha jogado verdades na cara dele na mesmavelocidade com que ele era capaz de atirar flechas em inimigos e fazertempestades de vento para jogar espectros para o horizonte infindo.“Peça a ela que venha aqui amanhã cedo, diga que vamos treinar. Pode fazerisso por mim?” Caleb pediu, juntando os dedos na frente de seu rosto,tentando bolar um plano sobre o que deveria fazer.“Com prazer, Caleb, mas continuando: como eu disse, acho esta via de ação amenos provável, se tratando de Gambler.” Anuk continuou, se sentando,quase que como um humano, sobre o banco do piano. “A segunda via deação, na minha opinião, faz mais e menos sentido, ao mesmo tempo.”“Como assim?” Caleb perguntou intrigado.“Não é difícil para você me responder quem é a pessoa que mais te odeia emTuonela.”“Autumn DeLarose Liddell.”“Sim. Já existe uma pré-disposição no Cisne de Tuonela para odiá-lo, equando falamos dela, estamos falando da única pessoa que se equipara a vocêem toda Tuonela, e talvez em todo continente, quando se trata de habilidadesem combate: mas o pior é que ela não precisaria ser manipulada para agircontra você, só de um motivo.”“E é aí que essa ideia se torna improvável: não há motivo.” Caleb resmungou.“Gambler é um mestre, ele forjaria um, nem que tivesse que usar a maldiçãoem seu favor.”“Maldição?” Caleb perguntou.Anuk lançou um olhar surpresou para Caleb.“Você não sabe?”

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Caleb odiava admitir que não sabia, mas meneou cabeça.“Que maldição?” Perguntou.“Centenas de anos antes de seus avós sonharem em nascer, havia uma lendasobre esta cidade: Reza a lenda que Tuonela era a divisa entre o mundo dosvivos e dos mortos, o próprio nome, Tuonela, significa algo semelhante a“submundo” em línguas esquecidas: por ser um plano divisório entre vida emorte, havia um ser cuja função era ser um intermédio para auxiliar natravessia.”“Este intermediário era um cisne negro.”

“O cisne negro não era um animal comum: quem entrasse em contatocom ele, mesmo que fosse através de um reles olhar, teria a alma sugada,facilitando assim, a morte de seu corpo e a liberação de seu espírito,intermediada pelo cisne.”

“Interessante.” Caleb comentou.“Interessante é o que vem a seguir: Autumn nasceu com uma

maldição que a torna muito semelhante ao Cisne de Tuonela: quando elamata, a alma de seu adversário é sugada para ela, junto com todos ostormentos dessa pessoa.”

“A maldição nasceu nos olhos dela.” Anuk acrescentou.“Por isso ela é cega?” Caleb perguntou, demonstrando mórbida

curiosidade.“Por isso ela é várias inúmeras coisas que sequer somos capazes de

imaginar, e por isso seus olhos devem permanecer vendados, pois funcionamcomo os do cisne negro das lendas.”

Caleb se sentiu inquieto com aquela revelação.“Por que nunca me disse antes?”“Primeiro porque achei que era conhecimento comum, segundo

porque não vejo como isso faz qualquer diferença na maneira com que vocêsse tratam. A maldição vai além dos olhos: qualquer vida que ela tire emcombate também é sugada para ela.”

“Junto com a alma, seguem os tormentos, tormentos murmurantes quese acumulam nas rebarbas de sua alma e que, aos poucos, hão de consumir asanidade de Autumn.”

“Esta é a maldição do Cisne de Tuonela.”Caleb estava estupefato com o que tinha acabado de aprender sobre

Autumn. De repente, toda a raiva, sentimentos vingativos e sarcasmo delafaziam muito mais sentido. De que outra forma ela poderia sequer sonhar em

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lidar com as centenas de almas aprisionadas dentro dela?“Acredito que Gambler possa usá-la contra você.” Anuk disse por

fim.Caleb concordou em silêncio. Ele olhou sobre sua mesa, a confusão

de fios e algodão que havia feito não o estimulava a continuar seu trabalho. Alua sépia fazia Anuk parecer um lobo laranja com olhos fúcsia esverdeados, osom do mar era como uma melodia, cantando uma eterna canção de ninarpara todas as vidas que se perderam em suas ondas.

“Ainda acredito numa terceira hipótese.” Anuk anunciou depois demuito tempo de silêncio.

“E qual é?”O lobo pulou do banco do piano, ficando bem na frente de Caleb, de

uma forma que ambos pudessem se ver cara a cara. Caleb sentiu o gelo dasprofundezas do mar em seu peito quando viu a preocupação que o lobocarregava no olhar.

“Helena.” Anuk revelou.

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Capítulo 21

“Dormir? Quem queria dormir? Dormir é o café de quem tem muito tempolivre. Eu sem dúvida não preciso disso. Ouviu, Ally?” Wendy sussurrou àsquatro da manhã: Kristell dormia do seu lado.O último ensaio, ou pelo menos o pedaço que Wendy conseguiu assistir,tinha sido espetacular: ajudava muito quando metade do elenco tinha podereslegais que ajudavam a fazer os objetos flutuarem, entrarem em chamas,explodirem, se reconstruírem e essas coisas legais que ela só havia visto naTV e nos livros da J.K. Rowling.“Que horas será que eles chegam?” Wendy havia perguntado quando Krisentrou.“Os D’arlit? Tomara que nunca, mas geralmente, eles chegam meio dia. Vocêacha que vai ter pesadelos essa noite?”“Não sei. Acho que não.”Seis horas mais tarde, Wendy descobriu que estava errada. O banheiro, suamãe, os retalhos de Wanda, a poça de sangue, o monstro atrás da porta e,claro, a Princesa do Caos ainda estavam lá.Apesar de seu monólogo melodramático sobre café e tempo livre, elaconseguiu, sim, dormir desta vez, e até que se sentia bem descansada.Isso é, se sua mente não parasse de lembrá-la coisas como: Ally vai chegar!Kristell tá ficando bem cansada de você precisar dela pra dormir. Você cortouseu cabelo com uma faca que matou um homem!Droga. O diário entrou para a lista de “coisas que você só se esqueceenquanto está dormindo e nos primeiros minutos depois de acordar”, outrositens nesta lista seriam: 1 - Ex-namorados (de acordo com Kristell e Mary) 2 -Motivos para ter depressão (de acordo com Christina) 3 - Aquele resto desobremesa que você escondeu no armário que não leva pra Narnia só prapoder comer mais tarde (de acordo com Wendy em pessoa) Assim que suamente serelepe lembrou da existência do diário, Wendy o tirou de baixo dotravesseiro.“Isso aí não tem nome?” Kristell havia perguntado antes de dormir.“Um dia teve.” Wendy respondeu, mostrando a primeira página rasgada dodiário.“Foi uma boa ideia. Se eu tivesse um diário, eu não colocaria meu nome

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nele.”“É, nem eu.”Wendy estava quase que completamente obcecada com o diário: um vícionormal em leitores e seguidores de séries.Aliás, minto. Não estava tão obcecada com o diário. Apenas em descobrir suadona.

Ela estava mentalmente comparando a caligrafia do diário com a detodo mundo que ela conhecia. O que, de fato não ajudava em quase nada, jáque só conhecia a letra da Kristell e do Edgar aqui em Tuonela.Já sabia que não era de nenhum dos dois: além da letra não parecer nada coma da Kristell, Wendy viveu com a menina no Orfanato das Neves. Impossívelela ser filha desse pai doente mental.A não ser que... ela seja duas!Nah.Edgar, apesar de ter um estilo de escrita parecido, era um garoto. Sem falarque a letra dele era horrível e indecifrável, enquanto a do diário parecia tersido traçada por alguém formado em vários cursos de caligrafia artística.

Inveja do talento e vocabulário que essa garota tinha aos onze anos.Num ataque de desespero, Wendy comparou a escrita com a de sua mãe.Mesmo sabendo que ela devia ter escrito a carta com pressa, dava para verque a letra não tinha nada a ver, embora ambas tivessem algo em comum:Não havia assinatura.Levou anos para aceitar que sua mãe não havia assinado a carta: anosespiando a caligrafia da irmã Sarah e todas as outras irmãs para ter certeza deque nenhuma delas havia escrito a carta e mentido que fosse da sua mãe.Depois, vieram as especulações que variavam entre:

Eles estão vivos e bem, em algum lugar do mundo, e não querem umafilha atrapalhando a vida deles (descartado por ser “muito a cara da Dana”) eAposto que tá escrito com tinta invisível! (descartado após a quase destruiçãototal da carta numa tentativa de revelar a tinta, envolvendo cera, fogo e uma

Wendy de nove anos)Ela se acostumou com a ideia de que, simplesmente, não houve tempo

para assinar.Havia outro detalhe que impossibilitava o diário de ser da sua mãe: A data:1989 foi onze anos atrás. A dona do diário devia ter vinte e dois hoje.

Complicado uma mãe de vinte e dois anos com uma filha dedezesseis.

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Ou talvez não fosse, Wendy ainda não entendia nada desse mundo. Talvezgarotas pudessem ter filhos em qualquer momento... talvez fossem os garotosque engravidassem, igual cavalos marinhos. Isso com certeza seria umincentivo para Wendy querer uma filha, um dia, bem distante de hoje.Ela abriu o diário e leu a primeira data que surgiu entre as páginas: 25 deDezembro.Alguém arranhou a madeira da porta.Wendy pulou assustada na cama, instintivamente jogando o diário pra baixoda cama (tente crescer no Orfanato das Neves com a irmã Romena lá. Vaicriar estes mesmos hábitos).O barulho ficou mais forte, chegando a ser agudo como um infelizarranhando um quadro negro. Incrível como a Kristell conseguia dormir comisso.“Abra a porta.” Uma voz se fez ouvir.“Anuk?” Ela disse, se acalmando, como se tivesse acabado de descobrir queo personagem favorito do livro dela não ia morrer.

Ainda.Ela se levantou e abriu a porta e.

Nada ali.“A outra porta.”Wendy abriu a porta do banheiro: lá estava o lobo de olhos azuis.“Como você entrou aqui? Por que não entrou pela porta da frente?”“Eu não faço ideia. Vamos, Caleb quer te ver.”Momento sentimentos divididos: O cara mais apolíneo (Wendy procurou nodicionário, a palavra queria dizer exatamente o que ela pensava) que vocêconhece quer te ver às quatro da manhã. Seria perfeito, se não fosse o fato deele ter um histórico de traição e uma espada dos D’arlit escondida no quarto.“Mas são quatro da manhã.” Ela disse.“E você estava acordada. Vamos.”Era difícil argumentar com um lobo grande que fala por telepatia e costumater razão.Tudo bem: Caleb havia salvado sua vida no Hospício para Demônios deVirrat, e era quase um elfo, embora ele não o aceitasse ainda, por ser umchato, bobo e mala sem alça.

Wendy resolveu seguir Anuk: sorrateira até a saída da casa de Edgar.Depois até o alto das escadas que davam na catedral de Tuonela e,finalmente, o farol.

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Saudades, Capitão e Terror.O sol ainda não havia nascido, e Wendy gostaria muito que

continuasse assim para sempre: nunca, em toda sua vida, tinha visto um céutão infestado com estrelas como aquele. No Orfanato, quase não conseguiaver estrelas por causa das luzes da cidade, mas aqui, não havia luz nenhuma ànoite, exceto a lua.

Era quase tão perfeito quanto...“Bom dia.” A voz de veludo de Caleb veio de dentro do Farol, junto

com ele, um monte de flechas e um arco que, provavelmente, era o mesmoque ela havia deixado em Virrat, não lembrava de tê-lo trazido de volta. “Oque aconteceu com seu cabelo?”

“Partiu numa aventura em busca de novos horizontes eautoconhecimento e me deixou pra trás. Bom dia, elfo.” Wendy disse,sentindo suas bochechas corarem quando o viu rindo da sua piada infeliz,“por que me chamou tão cedo?”“Os D’arlit vão chegar hoje. Não quero treinar você na frente deles.” Eledisse.“Faz sentido.”“Não está sentindo falta de nada? Algo que foi com você até Virrat?” Calebperguntou, abaixando o capuz e revelando o rosto. Wendy podia estar errada,mas parecia que ele não tinha dormido a noite toda.“Na verdade, não, por quê?”Caleb tirou Wanda de dentro do sobretudo e jogou na direção de Wendy, queagarrou a boneca no ar.“WANDA! EU ACHEI QUE... que você estava na minha mala esse tempotodo.” Ela confessou envergonhada para a boneca, “eu nunca mais vou meseparar de você de novo. Prometo. Onde você pegou ela?”“Caiu das suas roupas lá em Virrat.” Ele disse, passando o arco e a aljava deflechas.“Ah, obrigada.” Ela disse hesitante.“Vamos, seu treino vai ser um pouco diferente hoje.” Caleb disse enquantoAnuk se aninhava ao lado dele. “Você não vai atirar em alvos de madeira.”Wendy, Caleb e Anuk começaram a se afastar da cidade, em direção àsmontanhas.“Por que não?”“Porque você vai atirar em mim, e depois vai desviar dos meus contraataques.”

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“VOCÊ TÁ LOUCO?!” Ela falou tão alto que chegou até a sentir as pessoasacordando irritadas nas poucas casas que não estavam abandonadas.Provavelmente xingando-a.“Talvez: Há uma coisa que meu pai disse em uma das únicas visitas que elefez: “Você é capaz de milagres em momentos de necessidade.” Com isso emmente, eu resolvi que vou fazer você precisar se defender como nuncaprecisou na vida, vamos ver que milagres você esconde, Wendy.” Calebdisse, e Wendy começou a entender porque ele estava tão sorridente hoje.Ele ia matar ela.

E se divertir com isso.

“Kristell Sinnett?” Edgar a chamou pela porta entreaberta.“Me chama de Kris, amor.” Ela sussurrou suave e lasciva de volta, sevirando, abraçando e beijando o travesseiro com tanta força que deixou Edgarsem reação por muito, mas muito tempo mesmo.“Ah eu... estou bem aqui, Kris.” Ele disse por fim.“Quê?” Kristell disse, acordando de vez e ficando mais sem jeito que umgaroto tímido fica quando a professora o faz ler algo na frente da turma, “eué... foi um sonho.” Concluiu ela, colocando as cobertas de volta sobre ocorpo.“Seu veredito em relação ao plano arquitetado é definitivo?” Ele perguntou,ainda vermelho.“Mais do que nunca. Me dá licença um minuto, eu vou vestir alguma coisa.”Quase uma hora depois, ela tinha tomado banho, escolhido uma roupa (aparte mais demorada) e cuidado do cabelo. Tinha que admitir que era bemmais fácil fazer isso com ele curto, mas até agora, era a única vantagem.“Que horas são?”“São 5:15 da madrugada.” Edgar respondeu.“Alguém acordado?”“Somente a Wendy, todavia, ela encontra-se absente.”“Onde a Wendy foi? Ela quase ouviu a gente dá última vez.” Kristellcochichou.“Saiu de soslaio com a criatura lupina do senhor Rosengard. É de grandevalia a crença de que ela está na superfície no momento.”

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Kristell não estava feliz em esconder coisas da amiga, mas se não o fizesse,corria o risco de que Wendy tentasse persuadi-la a desistir do plano, e ela nãopodia fazer isso, não depois de vir tão longe.“Vamos então, hora de montar o cenário.” Kristell disse, com um sorrisoanimalesco no rosto e uma ansiedade sem medida brotando no seu peito. “Eme lembre de agradecer a Autumn pela ajuda. Veneno de Serpa nunca foi tãofácil de achar.”

“É hoje, Meggie.” Kahsmin disse, beijando o retrato de sua filha, nasprimeiras horas da manhã.Estava feliz em ver a dedicação de Kristell e Edgar montando o cenário paraa peça que seria apresentada bem na frente da catedral, sabia que mais tarde oresto dos garotos chegaria para ajudá-los.Ele prendeu o cabelo com um coque, como o general D’arlit de quem rouboua identidade costumava fazer, e se pôs a procurar suas melhores roupas.A Serpa de Autumn rasgou os céus e agora planava ao redor de Tuonela.Kahsmin era incapaz de entender porque, do nada, Autumn resolvera queteria um bichinho de estimação, muito menos como ela fazia a Serpaobedecê-la e só voar aos arredores de Tuonela, mas tinha que admitir umacoisa: Viria bem a calhar.Nos últimos anos, Neri e os outros D’arlit haviam começado a perguntarporque ele não tinha uma Serpa: Todo general dos D’arlit precisa de uma, eem tese, é facílimo conseguir uma, basta fazer um pedido formal e pronto,sem segredo, sem dores, sem perdas, ele receberia uma nova.No entanto, por melhor que fosse a micro rede de espiões de Autumn,Kahsmin não havia descoberto como fazer um pedido formal e temia serdescoberto caso tentasse fazer um (nunca se sabe quando uma “senha” vai serexigida), então sempre se esquivava desta linha de questionamento,geralmente enaltecendo Allenwick D’arlit ou sua filha, a Harbinger da Morte,ou comentando sobre as mais recentes conquistas dos D’arlit.

A bola da vez seria Jussarö.Graças à sua esquiva precisa, havia descoberto pontos importantes na

cultura D’arlit, como a forma de comemoração apropriada do aniversário deAllenwick, seus costumes, até o modo de se vestir e falar.

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Por isso sabia que uma homenagem à Allenwick seria algo de bom gosto,mesmo sendo feita sete dias após o aniversário do rei.Hoje, treze de Dezembro não... no dia de Louhi, conforme o calendário dosD’arlit, haveria de ser um dia grandioso, e também um dia em que ele nãoprecisaria inventar desculpas por não ter uma Serpa.

Obrigado de novo, Autumn.“O que vai acontecer hoje, pai?” ele ouviu sua filha perguntar pelo retrato.Não era real, e ele sabia disso, mas não gostava de acreditar que a voz deMeggie era mais que uma peça mal-aventurada da sua mente.

Ainda mais quando soava tão real.“Eu vou brincar, Meggie.”“Vai brincar do que, papai?” Ela perguntou, com a voz eternamente infantil.“Nossa brincadeira favorita, lembra? Fingimento!”“EBA! Quem você vai fingir ser hoje?!”“Eu vou fingir ser um homem bem mau.”“Você vai fingir que é um “Gráfite”?” Meggie perguntou curiosa.Kahsmin não conseguiu evitar e começou a rir sozinho no quarto.“É D’arlit, querida, e sim, eu vou.” Kahsmin disse, acariciando a foto dafilha.O rosto de Meggie ficou muito pálido e assustado quando ouviu aquilo.“Eu tenho medo deles, você não vai virar um deles, né papai?”“Não, meu anjo, eu só vou fingir ser um deles até a brincadeira acabar.”“E quando a brincadeira acaba?” Kahsmin quase conseguia sentir a filhaabraçando ele enquanto perguntava aquilo.“Quando eles forem embora e a gente puder rir deles pelas costas!”Kahsmin ficou ali, se divertindo com o retrato de Meggie. Sua mente pareciasó pregar essas peças quando os D’arlit estavam por perto. O que eramaravilhoso, pois ele duvidava que, sem essas conversas, ele seria capaz debrincar de fingimento.“Depois você vem brincar comigo?” Meggie perguntou.Ele sentiu seu peito frio quando seus lábios mentiram: “Claro, Meggie.Sempre.”Ele se viu sozinho de novo, com o cabelo preso, roupas pesadas e um sorrisoabobado que você só espera encontrar em uma pessoa que acabou de acordarde um sonho bom.

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“Não acredito que ele descobriu.” Fawkes disse irritado, derretendo umamassa que ele não tinha ideia do que era para colocar no buraco da paredeque ele abriu alguns dias atrás.“Nem eu.” Capitão disse, deitado no sofá.“Acho que ele tem um truque.” Terror completou, tentando acender a lareira.“Um espião.”“Alguém que tudo vê.”“E nunca é visto.”“Alguém que não toma banho!”“O espião é um de vocês?” Fawkes perguntou sarcástico, tentando passar amassa derretida no buraco, “vocês dois não tão afim de me ajudar não?”“NÃO!” Capitão e Terror disseram juntos e começaram a rir e correr pelasala. Garotos toupeira idiota. Não serviam pra nada além de sujar tudo,procurar tesouros que não existem, ouvir a conversa dos outros e falar alto.Por isso os sentimentos de Fawkes pelos dois eram fraternais e puros obastante para que ele pudesse declarar, do fundo do coração: “Eu odeiovocês.” E depois continuar concertando o buraco na parede, como se nadativesse acontecido, “acham que essa cicatriz na minha cara vai destruirminhas chances com a Wendy?”“Não!” Disse Capitão.“Pra estragar suas chances...” continuou Terror.“Você teria que ter alguma chance pra começar!” Gritaram os dois juntos.“Eu já disse que odeio vocês?” Era engraçado como essas coisinhas faziam odia de Fawkes mais alegre, mesmo ele tendo acordado super cedo (sete damanhã) para consertar uma parede. “Vocês vão fazer algo com os D’arlitquando eles chegarem? Colocar pregos nas cadeiras deles? Fazer umterremoto? Chorar?”“Roubar tesouros deles!” Eles disseram juntos, de novo.“Tá. Só não sejam pegos, e se alguém me acusar por culpa de vocês euvou...”Escuridão Total.

De repente, Fawkes não conseguia ver onde Capitão e Terrorestavam: o buraco da parede, a janela e o quarto inteiro se obumbraram comonoites na calada do inverno, e, para piorar...

Havia mais alguém ali.

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Ele podia sentir, não Capitão, nem Terror, mas alguém com uma auravívida, sinistra, ominosa e opressora, ameaçando sufocá-lo como se fosseveneno no ar, penetrando aos poucos todo seu corpo.“Ethan...” Fawkes sussurrou, cobrindo o nariz e a boca.Uma risada aguda violou seus ouvidos, desprezando as palavras do garoto.“Nunca me chame por um nome que não me pertença.” Uma voz fria comoaço e afiada como cauda de escorpião se manifestou no silêncio.

Uma mulher alta, trajando um vestido de trapos rosados, um penteadode séculos atrás, usando de penas que se misturavam em cabelos cor-de-rosa,uma venda de renda em seus olhos e sombras.

Sombras o bastante para apagar o meio-dia.“Você já me viu antes, garoto.” Ela acrescentou, com o rostoameaçadoramente próximo ao de Fawkes, perto o bastante para que elepudesse ver veias enegrecidas que convergiam de seu rosto em direção aosseus olhos.Como se sombras circulassem no lugar de sangue.“Você... não é minha imaginação?” Ele perguntou quando ela se afastou.Palmas lentas vieram dela.“Até uns minutos atrás, eu acreditava que Kahsmin era o maior imbecil destacidade, mas pelo visto, ele tem um concorrente de peso.” Ela murmurouirritada, “não, seu bastardo idiota: eu sou o motivo por você estar aqui emcima.” Ela proferiu as palavras com desdém enquanto circundava Fawkes,furtiva como um leão faz com um antílope. “Eu sou Autumn, Cisne deTuonela, guardiã da cidade.”“Você não é uma D’arlit?” Fawkes perguntou, surpreso por sua voz não terfalhado.“Você realmente não tem ideia de quem eu sou.” Autumn afirmouligeiramente surpresa, “talvez eu devesse começar a ouvir mais as vozes naminha cabeça.”“O que elas dizem?” Fawkes perguntou por impulso.“Se mate.” Ela respondeu em tom gutural.“Quê?”“Mais.” Ela corrigiu, “saia mais, enfim, eu sou Autumn DeLarose Liddell, oCisne de Tuonela e seria inteligente da sua parte decorar estes títulos. Eu eCaleb somos responsáveis por proteger Tuonela, Caleb o faz em memória desua mãe, e eu, em memória de minha irmã...”“Spring?” Fawkes interrompeu.

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Só percebeu o que aconteceu quando seu rosto estava sangrando: Autumnatirou uma faca que raspou e cortou sua bochecha.

Tudo que ele precisava, mais cicatrizes.“Eu sou uma mulher vendada extremamente irritadiça, considere isso antesde me interromper de novo.” Ela disse, mostrando um par de facas entre osdedos, “eu avisei Kahsmin que você havia aberto o buraco nesta sala e, comoeu esperava, ele o fez consertar isto pessoalmente.”“No entanto, eu não o delatei para que você pagasse pelos seus erros. Eutenho mais o que fazer, eu o delatei porque, na noite em que você esteve aqui,estava acompanhado, não estava?”“Sim.” Fawkes disse, tirando o sangue da bochecha.“Sua companhia se resumia a estes dois,” ela disse, apontando para ondeCapitão e Terror deveriam estar, “e a garota nova, Wendy.”“Certo.”“Explique seu vínculo com a garota”“Somos amigos.”“Não, não são: eu vejo através de você, sei que não é nada diferente damaioria dos homens, cheios de desejos repulsivos, muito diferentes do queuma pessoa normal chama de ‘amizade’. Você me enoja por ser assim.Entretanto, você e Wendy são, sim, próximos, o que o torna ideal para o quevou ordenar que faça.” Autumn minuciou em suas palavras.

Fawkes estava começando a achar que estava melhor com EthanBlakewood.Obedecendo a primeira ordem de não dizer nada, ele esperou Autumncontinuar.“Quero que vigie Caleb Rosengard e Wendy, tem minha permissão parafalar.” Ela disse por fim, ficando parada na frente dele.“Mas... por que quer isso?” Fawkes quis saber.“Você não tem muitos amigos, não é?” Autumn apontou.“O que uma coisa tem a ver com a outra?” Fawkes rebateu, ligeiramenteofendido.“Você não nasceu em Tuonela, mas esteve aqui tempo o bastante paraaprender sobre o passado recente da cidade: se você precisa mesmo perguntaro motivo pelo qual alguém gostaria de vigiar Caleb Rosengard, eu só possoassumir uma de duas coisas: ou você não tem amigos e por isso não sabe oque aconteceu por aqui, ou você é muito, mas muito burro mesmo, e dizerque você não tem amigos é a melhor forma que tenho de amenizar sua

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estupidez.”“A verdade é que eu sei que você, no fundo, sente um imenso desprezo portudo que você é, e que isso se deve, em suma maioria, à toda rejeição quevocê sofreu de seu pai quando ainda era um infante: eu vejo os hematomasque esse abandono deixou em todo o seu corpo, não há como esconder averdade de uma mulher cega.”

“Também sei que você era, e continua sendo, uma criança carente queprecisa com urgência desesperada receber amor das pessoas, uma vez quesem esse amor e atenção, você tende a sucumbir a todo o ódio que você sentepor existir e se torna um suicida, mas não tiraria sua própria vida porque émuito vaidoso para isso, não é heroico o bastante: você é um show narcisistade atenção.”

“Respondendo à pergunta: Caleb Rosengard, um dia, traiu a confiançade Tuonela. Tenho um forte motivo para acreditar que fará de novo.”

Fawkes estava boquiaberto, atônito, macambúzio e lutando contratudo que Autumn havia acabado de dizer sobre sua pessoa: aquilo não podiaser verdade, ao mesmo tempo, só podia ser verdade.

Mas se fosse, ele só tinha que fazer o que sempre fizera: ignorá-la.“E a Wendy? O que ela tem com isso?”“Kahsmin suspeita que a presença dela vá trazer algo à tona para Caleb, e queisso o levará a trair Tuonela, de novo. Quanto a mim, só posso dizer queexiste algo na aura daquela garota que não me agrada.” Ela disse agarrando obraço de Fawkes, “hora de voltar.”Ela puxou Fawkes para cima e, com um tranco inesperado, ele estava de voltana sala com a parede arrombada.“Caleb e Wendy estão treinando nesse exato momento, sobre as montanhas.Pode começar a vigília. Faça suas perguntas.”“Onde nós estávamos?”“No Reino das Sombras. Perguntas inteligentes, por favor.”Fawkes considerou desafiá-la, se recusar a obedecer e mandar aquela vacarosa pro inferno onde ela foi feita, mas o que disse foi: “O que exatamente euestou procurando?”Autumn já estava sendo engolida pelas sombras quando respondeu a últimapergunta: “Atitudes suspeita. Comece agora.” Ela dizia, mas antes que suasilhueta sumisse por completo, ela acrescentou, “você vai ignorar o que eudisse sobre sua natureza, mas sua natureza não vai deixá-lo esquecer.” E comisso, desapareceu sem deixar vestígios.

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“Veremos.” Fawkes murmurou.

“DESCULPA!” Wendy gritou.Caleb havia levado a garota para o alto das montanhas que cercavamTuonela, pelo caminho mais curto: Caleb Air Line.Treinar no escuro era bem mais difícil que imaginava.Alguns poderiam argumentar que, na verdade, Caleb estava fazendo-a treinarsob a luz das estrelas e lua, o que seria verdade, não fossem árvores baixas,suas habilidades fenomenalmente nulas no arco e flecha e as loucuras queestava tendo que fazer para desviar dos ataques dele.Era verdade que ele não queria machucar ela de verdade, mas não faziadiferença, já que ela conseguia se machucar sozinha quando se desviava dosataques dele.“Eu não deveria me transformar antes?” Wendy perguntou mais cedo,tentando se agarrar a qualquer coisa para fazer aquela tortura acabar.“Não. Treine como humana, assim, quando se transformar, suas habilidadesserão multiplicadas de uma forma que você não é capaz de imaginar atéexperimentar por si mesma.” Ele havia respondido, e atirado uma flecha nadireção dela.Era bem conveniente que ele pudesse fazer vento para desviar as flechas queele mesmo atirava, senão Wendy já estaria morta.O sol nasceu, eles fizeram uma minúscula pausa para o café da manhã e logovoltaram ao trabalho.Wendy começou a conseguir atirar as flechas sem deixá-las cair, mas aindaprecisava de muito tempo para conseguir apontar a arma.Sem falar que a mira dela ainda estava um desastre.Caleb, por sua vez, passou a usar cada vez menos o vento para desviar asflechas que ele atirava, o que causou dois pequenos cortes em Wendy: um noombro e outro no pescoço.Nada realmente fatal ou que fosse deixar cicatrizes.Aquela manhã toda se resumiu em:Pegar flecha, mirar, atirar, pular para salvar a vida, repetir.Tudo isso sem perceber avanço nenhum.Tinha começado a considerar desistir do treino fazia já alguns minutos

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(horas).Quando aconteceu.Era apenas mais uma flecha comum mas, no momento em que a colocou noarco, sentiu algo diferente: uma grande certeza sobre o que deveria ser feito.Foi automático, ela fez a mira e, com um leve balanço, deixou a flecha ir.Na direção da cabeça de Caleb.Sorte ter reflexos bons. Ele pois a mão na frente do rosto, mas antes quepudesse usar o vento ou coisa assim, a flecha já havia transpassado sua mão.“CALEB, DESCULPA!” Ela repetiu, correndo até ele e largando o arco paratrás, “você tá bem?!”Sua cabeça acenava que sim, seu rosto e a sujeira da mão contradiziam suaresposta.Como ele conseguia não gritar de dor? Wendy já teria entrado em desesperosó com a ideia de ter uma flecha enfincada na mão, ou em qualquer parte docorpo. De fato, estava entrando em desespero de qualquer jeito: estava muitolonge da cidade, não sabia nada de primeiros socorros e...Caleb tirou a flecha da mão e, finalmente, fez uma demonstração aceitável dedor. Ele tirou algumas faixas de dentro do sobretudo que, com certeza, trouxepara caso Wendy precisasse, e começou a enfaixar a mão.“Descanso para o almoço. Aceita?” Caleb perguntou quando terminou.Wendy, assustada, suada, com cabelo grudado na testa, corpo fedendo maisque o banheiro do Orfanato das Neves no dia de comida mexicana, aceitou debom grado.Afinal, quem recusa almoçar depois de dilacerar a mão de alguém?Wendy achou que estavam voltando para Tuonela, mas Caleb se sentou sobuma clareira e ficou lá, esperando, sem tirar os olhos da mão enfaixada.Depois de alguns minutos, Wendy achou que seria, no mínimo, educado fazero mesmo que ele.“Como você fez isso?” Caleb disse, contemplando a mão contra a luz do solalpino. “Seu tiro foi mais rápido que os meus reflexos, eu nunca tinha vistoalgo assim.”A pergunta e a declaração a pegaram de surpresa.“Eu não sei. Não achei que tinha feito nada diferente, de verdade.” Wendydisse, tentando ordenar o que estava pensando, “eu só... me senti diferentequando peguei a última flecha. Não parecia que eu a havia atirado, foi maiscomo se a flecha estivesse me usando para se atirar. Isso é normal?”Caleb sorriu ao ouvir aquelas palavras, e Wendy se perguntou como alguém

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pode ser tão doente ao ponto de ter a mão perfurada e sorrir com a explicaçãode como isso aconteceu.“Quer dizer que você escolheu a arma certa.” Ele disse por fim “Você vai seruma excelente arqueira.”“Obrigada.” Wendy disse e, por mais que se sentisse culpada por dilacerar amão dele, não podia deixar de sentir um certo orgulho ao ouvir aquelaspalavras. “Eu tenho um bom professor.”Ela considerou encostar a cabeça no ombro dele, até lembrar que estava maisnojenta que purê de batata fora da geladeira por seis dias. Sério, não deixeisso acontecer, e se acontecer, não coma, coma baratas mas não coma purê defora da geladeira.“Acho que vamos começar a treinar com flechas sem ponta.” Calebcomentou, quebrando a seriedade do ambiente e fazendo os dois rirem, pormais séria que fosse a sugestão dele.“Eu já pedi desculpas.”“Eu sei.” Ele disse olhando para o sol. “Os D’arlit devem estar chegando.”D’arlit.“Caleb.” Wendy chamou, “quando você me mandou pegar o arco e flecha e irpara Virrat, eu sem querer esbarrei em umas coisas e–”“Você viu a espada dos D’arlit e quer saber porque eu tenho aquilo.” Calebcompletou.“Bem... é. Na hora eu pensei que você fosse um deles, mas isso não ia fazersentido.”“É a espada da Harbinger da Morte. Eu tomei dela antes da batalha emTuonela. Não que tenha feito diferença. As espadas dos D’arlit são ditasmelhores que as de Kullervo, são tanto armas quanto decoros, um símbolo deque uma pessoa é, de fato, um D’arlit.”“E por que você guarda aquilo? Eu quase achei que você era um D’arlitdisfarçado ou coisa assim.”Caleb limitou-se a um sorriso torto quando ouviu aquilo.“Em partes, porque cortar a cabeça da Harbinger da Morte com sua própriaespada ia ser bem satisfatório, mas a única utilidade real que ela tem hoje éser parte do disfarce do Kahsmin como um D’arlit.”Wendy se sentiu tão envergonhada quanto uma criança de seis anos cantandona frente de uma família no Natal por ter pensado que Caleb fosse mau e viriaa se voltar contra Tuonela e deixar de ser seu elfo. Para resolver isso... mudoude assunto.

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“Se você é meio anjo, por que não tem asas?”“Pelo mesmo motivo que permite seu amigo ruivo usar fogo sem setransformar.”“E qual é o motivo?”“De fato, ele não pode se transformar, isso não existe nele. Acontece emalguns mestiços, como ele e eu: nós não nos transformamos, mas temos todoacesso aos nossos poderes. No entanto, se houvessem mais mestiços de anjos,você veria bastante gente voando com asas por aí.”“E por que não há mais mestiços de anjos?”“Anjos são... orgulhosos. A maioria não gosta de se misturar.”“O seu pai gostava.” Wendy comentou.“É, ele gosta. Você já reparou aonde estamos?”Wendy foi pega de surpresa pela mudança de assunto e quase disse “no meiodo nada, morrendo de fome, cadê o almoço?”, mas resolveu usar os olhosantes.Árvores, trilhas, insetos, calor, som das ondas se quebrando e...“Aquela é Tuonela lá embaixo?”“Certo.”“Então, esse é o penhasco de onde você me jogou quando chegamos nacidade.”“Exato.”“Por que os telhados das casas estão brilhando?”“São espelhos. A luz que você vê na parte subterrânea de Tuonela vem dessesespelhos, são construídos para refletir o sol de qualquer ângulo durante odia.”“Isso... é genial.”“Foi ideia do Kahsmin.” Ele disse, se colocando ao lado dela.Wendy estava sem jeito ainda, mas não era por ter aberto um buraco na mãodele, ou por ter achado que ele ia cortar a cabeça dela com a espada dosD’arlit, ou pelo simples fato de ele saber usar arco e flecha e ser quase umelfo, mesmo achando que elfos não existissem.Era mais por uma pergunta que ansiava uma resposta. Talvez ela aconseguisse dessa vez.“Caleb, no Orfanato das Neves, você... fez um negócio estranho: beijou aminha mão e disse que já tínhamos nos visto antes. E olha, eu tenho certezaque eu me lembraria de ter visto um cara igual a você antes. Por que você fezaquilo?”

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E todo o clima leve que havia sido feito foi estraçalhado por uma bola dedemolição depois que a pergunta foi feita.“Desculpa, se não quiser falar...”“Como disse, eu me enganei, você me lembrou alguém.” Ele disse por fim, “ealguma coisa me impulsionou a agir daquele jeito. Eu teria continuado ali,esperando uma resposta sua, se a irmã Sarah não tivesse interrompido.”“Ah, sei. Eu te lembrei alguém especial?” Wendy perguntou curiosa.Caleb olhou toda a paisagem ao seu redor, prestando atenção em cadadetalhe, cada gota de orvalho, cada aroma e cada pássaro sobrevoando o céu,antes de dar uma resposta monossilábica e tão precisa quanto a mira dele:“Não.”Wendy não sabia se devia se sentir feliz ou desapontada com isso. De fato,ela não tinha certeza de mais nada exceto da fome gigantesca que sentia.Quase podia ouvir seu estômago urrando por pizza ao mesmo tempo em quecada músculo do seu corpo começava a doer.O que veio depois, ela nunca poderia ter previsto.“Você é alguém especial.” Caleb completou a resposta.Depois que ele disse isso, Wendy só teve uma vaga lembrança de seu pulsaracelerando, seu coração batendo mais forte, o ar entrando com dificuldade noseu corpo, um sorriso idiota e involuntário no seu rosto e...Seu primeiro beijo.

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Capítulo 22

“Ela quer brincar comigo, ela tá com medo lá embaixo.” A voz de James nãosoava como uma criança, sequer soava humano: parecia mais um eco, frágilcomo um sonho, quebradiça como uma promessa não cumprida, pronta parase transformar em estilhaços nos ouvidos de quem pudesse se aventurar aouvir.Ninguém se aventurava. Ninguém além dele.“Por que vocês enterraram a Jane? Ela não gosta de ficar sozinha.”Seus olhos estavam vidrados, presos no teto, embora não focassem nospadrões de pintura, ou nas rachaduras, nem nos pequenos insetos queandavam sob a superfície ou no homem estranho que acabara de entrar ali.Tudo que ele via era o corpo da irmã sendo enterrado.“Por que aquele homem jogou tanta terra em cima da minha irmã? Ele nãosabe que fica difícil brincar com tanta terra em cima da gente?”“Sinto muito pelos modos do meu primo.” O homem disse.“Quem é seu primo?” James perguntou.“Kahsmin, o homem que enterrou sua irmã. Ele me disse que ela estavamorta.”“Não.” A voz de James não era um grito de desespero, como se espera deuma criança neste estado, mas sim algo tão absoluto que ameaçava serassombroso. “Ela está viva, e ele jogou um monte de terra em cima dela.”Este foi o único momento em que seus olhos pareceram centrados em algo,sua linguagem corporal demonstrava tanta certeza que Hakasalo quaseacreditou nele.Quase.Nada era mais comum em alguém, principalmente uma criança, quedemonstrar sinais de negação logo após uma experiência traumática, e ver suafamília e cidade inteira serem dizimadas em uma única noite eram, de fato,condições mais que ideais para gerar um trauma.Esse jovem será excelente para estudos.“Me conte, James, o que aconteceu naquela noite, em Jussarö?”A voz, os olhos e o corpo da criança retornaram ao seu estado catatônico

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inicial com a pergunta: a criança era como um pequeno fantasma,murmurando suas lamúrias, alto o bastante apenas para ser compreendido,não alto o bastante para ser convidativo.“Uma mulher veio...”Os olhos dele fecharam de repente e ele começou a se contorcer na cama,como se lutasse contra um monstro que apenas ele podia ver. Hakasalo quispará-lo, mas anos de prática o ensinaram que aquela seria uma péssima ideia.“James, por favor, ontem você demonstrou significativa melhora ao falarcomigo, não sucumba tão facilmente. Você está em Tuonela agora, Jussarö eo que aconteceu lá estão no passado.” Hakasalo disse com calma dissimulada.Vários minutos se passaram até James ficar calmo.“Uma mulher veio, ela disse que nós estávamos condenados por irmos contraa vontade do D’arlit. Eu não sei quem é esse, mas o Halloway devia saber.”“Halloway?”James assentiu, sem desviar os olhos do teto.“Meu meio-irmão. Mamãe dizia que ele era meu irmão, mas eu e a Janesempre soubemos a verdade. O Halloway disse pra moça que a únicacondenada ali era ela, se ela esperava conseguir... conseguir...”“Lutar?” Ofereceu Hakasalo.“Lutar contra a cidade inteira, sozinha.”James mergulhou de novo em profundo silêncio, o que seria muito normal,não fossem aqueles olhos que se recusavam a fechar.“Ela está ficando com fome.” James disse.“Quem?”“Minha irmã.”“Você estava falando sobre... Halloway.” Hakasalo disse.James começou a rir e a chorar ao mesmo tempo. Hakasalo se viu sentindoum pequeno buraco negro brotando no seu peito, como uma esponja marinha,sugando toda emoção que fosse diferente do crescente pavor que Jamesestava provocando.O que não fazia sentido. Hakasalo já havia presenciado inúmeras pessoastendo a mesma reação, e nunca foi afetado por isso. Sempre fora frio comoum bisturi nas mãos de um médico. Por que essa criança tinha esse efeitosobre ele?“Estava chovendo. A água caía feito lágrima de gigante. Não dava pra vernem ouvir nada quando Halloway e toda Jussarö atacou.” ele disse rindo comlágrimas nos olhos. “A Jane disse que ia ficar tudo bem.”

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“E então?” Hakasalo insistiu quando James ameaçou ficar em silêncio denovo.“Ela disse pra eu fechar os olhos. Depois eu ouvi tudo explodir ao meu redore desmaiei. Quando eu acordei... mamãe, Halloway e todo mundo tinhamorrido.”“Você disse que ouviu alguma coisa explodir?”“Tudo explodiu, e eu tenho certeza que foi aquela moça.”“Você pode descrevê-la?”James balançou a cabeça negativamente, como se houvesse culpa em admitirque não conseguia se lembrar de algo que devia tê-lo marcado. Se ele pelomenos pudesse fechar esses olhos, seria mais fácil trabalhar com ele.“Tinha alguém com ela?”“Duas pessoas.”“Duas? James você tem certeza de que era só–”“Eram ela e mais duas pessoas, só ela atacou.”Isso era preocupante. Experiência pós traumática após perder tudo queconhecia em uma única noite era uma coisa. Dizer que uma cidade inteirahavia sido destruída por uma única pessoa, em uma velocidade tão grande,era outra, muito mais preocupante.“Essa mulher se apresentou alguma vez?”Ele assentiu e disse: “Harbinger da Morte.”Hakasalo não estava surpreso com a resposta.Não havia muito o que fazer. Ele resolveu que daria tempo para o garoto serecuperar primeiro e, se isso não acontecesse, ele providenciaria algum tipode tratamento, como os sugeridos nos livros que vinham do mundo daquelamenina, Kristell.“Obrigado, James.” Hakasalo disse, pronto para sair, quando...“Me ajuda.” James pediu com uma voz lamuriosa.“É o que estou fazendo.”“Não, me ajuda a tirar a terra de cima da minha irmã. Ela vai ficar muitozangada se tiver que fazer isso sozinha.”

Há quanto tempo o tempo estava parado? E como ela ia saber? Até porque,isso é um paradoxo, não é? Se o tempo realmente parasse, não haveria

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passagem de tempo para que alguém fosse capaz de saber por quanto tempo otempo parou.Dizem haver uma eternidade dentro de um segundo. Hoje, pela primeira vez,isso faz sentido. O tempo é apenas a ilusão mais bem feita já criada! Entenda:seus segundos podem durar uma eternidade, mas no final, sua eternidade terádurado apenas um segundo. Viu?Um piscar de olhos e boom: o “para sempre” para sempre se acabou.E mesmo acabando, o tempo se atrevia a parar quando um evento eracarregado de verdade. Isso, verdade. Nada complexo, nenhuma estruturaatemporal cheia de engrenagens que ninguém sabe ao certo para que servem,mas apenas a pura e mais simples verdade era capaz de parar o tempo.“Wendy, tá me ouvindo?” Wendy podia imaginar sua amiga, Mary, ouVictoria, ou a loira de cabelo curto, perguntando por ela.Claro, ela não respondeu, pois não estava ouvindo. Estava presa na suaeternidade, a sua própria verdade.E a verdade era: não importava que Caleb tivesse deixado seus lábios já haviaalgumas horas, nem que ela estivesse deitada na cama do quarto na casa doEdgar, nem que os D’arlit tivessem chegado, ou que ainda não tivessealmoçado.Não, essas são as coisas que o tempo conta, e isso não conta para a felicidadede verdade. O que conta é que, em sua mente, Wendy ainda estava com ele,refletida naqueles olhos cor de tempestade, perdida entre a própria respiraçãoe o beijo com gosto de fantasia que dela ele roubara.“Foi perfeito, Wanda.” Ela murmurou. Se Wanda pudesse falar, teriarespondido “Eu ouvi nas primeiras nove mil vezes, obrigada, me liga quandotiver novidades”.“VOCÊ QUER ME OUVIR, MULHER?!” Kristell pulou em cima da amiga.Wendy finalmente saiu do seu trance, reparou que ainda estava fedendo etinha uma loira de cabelo curto em cima dela.“... faz tempo que você tá aí?”Kristell, olhou estranho para Wendy. Não o estranho do tipo “V\você soltouum pum, né, safada?”, mas estranho do tipo “é contagiosa a doença?”“Amiga, tá doida da cabeça? Faz vinte minutos que eu tô aqui falando comovocê tem que se comportar com os D’arlit aqui, você não ouviu NADA?!”Kristell disse, se deitando do lado da amiga.“Eu não vi você entrar. Eu estava... presa numa eternidade.” Wendy dissesem pensar.

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“E por acaso eu quero saber o que isso quer dizer?” Ela perguntou cruzandoos braços.“Acho que não.”“Vai, fala aí, por que você tá assim derretida? Leu Nicholas Sparks de novo?”Ela brincou enquanto se ajeitava na cama.“Não, não foi nada que eu li. Foi algo que aconteceu.”Kristell ficou subitamente alerta ao ouvir aquilo.“O que você fez?”“Não foi exatamente eu que fiz. Na verdade, foi o que ele fez.” Ela dissesonhadora.“Wendy, por favor me diz que você não–”“Beijei...”“... diz que não foi...”“Caleb Rosengard. Meu elfo da guarda.” Wendy disse, abraçando Wandacom força, rindo e fazendo coisas estranhas que pessoas fazem quando sentesentimentos brotando na barriga e tomando conta do corpo todo. Tipo umadoença mesmo.Então, ela ficou surda. Sufocada também.Kristell deu um berro, não um gritinho, ou um gemido, mas um berro deexcitação, tão alto que talvez até os D’arlit lá em cima pudessem ouvir. Claro,junto com todo berro de excitação, vem um abraço estilo “retorno da jiboiade quinze metros”, caso contrário, ela não seria Kristell Sinnett.“Eu tô TÃO FELIZ por você não ter beijado o Fawkes!”Surda, sufocada e engasgada de tanto rir com a declaração aleatória da amiga.Era quase como estar no Orfanato das Neves, se pudesse acrescentar Mary eChristina à Tuonela, essa cidade seria a equação perfeita da perfeição paraWendy.Sim, equação perfeita da perfeição, me aguarde, Pulitzer.“Me conta TUDO.” Kristell pediu com a delicadeza de um cavalo selvagem.Wendy fez uma longa narrativa, começando com Anuk aparecendo nobanheiro da casa do Edgar, passando pelo momento épico em que Wendyperfurou a mão do Caleb com uma flecha, cortando a parte onde Caleb disseter pensado que Wendy era outra pessoa e terminando com eles seescondendo durante a chegada dos D’arlit.“Eles viram vocês?!”“Não, eles chegaram nos dragões deles, a gente se escondeu entre asárvores.”

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“Que bom.” E Kristell deu um tapa em Wendy. “Você não pode ficarmorrendo de amores quando monstros assassinos estão invadindo a cidade.”Ela disse rindo.“Se eles tivessem visto a gente, o Caleb ia matar todos eles. Aliás, eu nãosabia que eles tinham dragões.” Wendy continuou, evitando soar surpresa,embora sua vontade fosse gritar “COMO ASSIM EXISTEM DRAGÕES EELFOS NÃO?!”“Na verdade, são Serpas: parecidas, mas menores, e elas têm veneno ao invésde fogo. Você viu quantas vieram?”“Quatro.” Wendy disse.“É... os demônios de verdade chegaram.”Um estranho silêncio veio depois dessa resposta e Wendy podia entenderporque.Kristell estava banhada em raiva por ter que fazer uma peça para osresponsáveis pela destruição das vidas e sonhos de tantas pessoas.A própria Wendy se lembrava que a única coisa que a separou de umainfância normal (ou qualquer adjetivo que faça mais sentido para uma garotameio demônio) eram os D’arlit.Havia também Tupã, o índio, estava se preparando para lutar contra osD’arlit, só para reaver o líder da tribo dele, que por acaso também era seu pai.Milhares de pessoas morreram, outras milhares foram usadas e descartadas.Tudo graças aos D’arlit.Os demônios de verdade chegaram.“Você não precisa ir lá em cima se não quiser, tá bom?”“Não, eu vou com você.” Wendy respondeu, ficando de pé.“Wendy... você ainda não tomou banho, né?” Kristell disse tapando o nariz.“Ah, esqueci.” Ela disse rindo.Depois de um bom banho, alguns curativos e uma arrumação básica nocabelo que restava, as duas foram para a Taverna Do Fim dos Tempos, afinal,a garotinha apaixonada tinha se esquecido de almoçar.“Quem é você e o que você fez com a Wendy?” Kristell perguntou.“Por quê?”“Porque a Wendy NUNCA esqueceria de almoçar. NUNCA.”As duas riram enquanto comiam um prato de... bem, Wendy não sabia o queera aquilo, mas era bom e parecia macarrão ao molho funghi, exceto pelo fatode que macarrão não deveria se parecer com quiabo empanado, mas nãoimporta, comida é comida.

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Kristell passou o “almoço” (na verdade, janta, eram sete e meia da noite)explicando como Wendy deveria se comportar na presença dos D’arlit: asreverencias, os termos estranhos pelos quais eles se chamavam, como LordeComandante, que era como deveria se referir à Neri, e assim por diante.“Os outros não têm importância. Apenas faça a reverencia e vai estar tudocerto, dá pra lembrar disso?” Kristell perguntou.“Aham, tem mais alguma coisa?”“Mantenha a postura, as mãos fora de vista (à menos que consiga mantê-lastransformadas em garras) e olhe para tudo com ar de superioridade. Vai sercomo se você fosse um deles.”“Eu não gosto nada dessa ideia.”“Ninguém gosta. Não sei como o Kahsmin consegue ser tão bom ator aoponto de parecer que ele e o Neri são amigos desde sempre. Vamos?”As duas se arrastaram até a parede que separava o subterrâneo da escadariaque levaria à Catedral. Nenhuma delas queria verbalizar o que sentiam, mas atensão flutuava no ar, com seu peso lúgubre, seu cheiro mórbido e seu tomsubmisso.Seus passos nunca foram tão lentos enquanto subiam a escadaria.Wendy não achava ser possível sentir uma felicidade tão imensa e umajunção de sentimentos tão funestos no mesmo dia. Sua pequena eternidadeparecia um sonho que lutava contra o esquecimento, quando comparado àsensação de estar andando para a forca que se arrastava ao redor do seupescoço.“Wendy, antes da gente continuar, eu queria pedir uma coisa.” Kristell disse,quando chegaram na porta que levava para a catedral.“O que é?”“Quando a gente encontrar a galera da trupe, Não conte pra ninguém quevocê beijou o Caleb. Nem o Edgar, nem o Allan, a Victoria, o Marco, oElizeu, o Mano Pamonha, a Paloma, a Tereza ou qualquer um. Eles podemnão reagir bem.” Kristell comentou.O rosto de Wendy era a confusão: Tantos conselhos úteis e ela me vem comisso?“Por quê?”“Ele não anda por aí escondendo o rosto à toa. O povo, principalmente osmais velhos, o odeiam. Contam que ele fez coisas horríveis no passado,coisas que ajudaram os D’arlit a tomarem Tuonela.”“Como assim? Achei que era porque ele não estava aqui quando os D’arlit

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atacaram.”“Quê? Não. É pior que isso. Os mais velhos dizem que ele é o culpado porTuonela ter caído, e que Kahsmin é o culpado por Tuonela continuar assim.Alguns dizem que ele deu as direções pra Harbinger da Morte em pessoa, emtroca de alguma coisa. Outros dizem que ele na verdade é e sempre foi umD’arlit, e que ele nos espia e mantém contato com Allenwick através doAnuk. Ninguém tem uma história muito concreta.”“Nada disso faz sentido. Anuk me protegeu no orfanato e Caleb é um anjo,literalmente.” Wendy disse, inconsciente para o quanto estava irritada aoouvir que pessoas não gostavam dele, mesmo ele sendo o cara que protegiatodos eles.“Ser um anjo não é exatamente sinônimo de ser bom por aqui, amiga, eenfim, as pessoas tentam fazer coisas ruins com o Caleb por causa do quequer que achem que ele tenha feito. Roubam as coisas dele, jogam pedras nacasa dele....”“Eles são idiotas.” Wendy comentou.“Eu sei, eu só tô dizendo isso porque eu tenho medo que eles façam algumacoisa assim com você também, caso descubram que você tá se envolvendocom ele. Eu tô pedindo pra você não contar pelo seu bem. Tá bom? Pelomenos por agora, enquanto os D’arlit estão aqui.”“... tá.”“Ei, eu conheço essa cara. O que foi?”“É que eu achei que não existisse gente tão idiota aqui em Tuonela.”Kristell suspirou, colocou uma mão sobre o ombro da amiga e disse: “Amiga,você tem que lembrar que no nosso mundo, algumas das piores pessoas iamna igreja. Vem, é hora do show.” Ela disse com um sorriso encorajador quenão teve efeito.Kristell abriu o alçapão, checou para ver se não havia ninguém e saiu,puxando Wendy para fora.Havia uma gritaria mais absurda que as promessas do prefeito no ano dareeleição.Ninguém percebeu quando as duas saíram pela porta da frente da catedral: ofoco de toda aquela multidão fingindo excitação era a o centro da praça, ondeKristell e os outros passaram a maior parte do dia montando o cenário para apeça em homenagem ao aniversário de Allenwick D’arlit.Wendy olhou ao redor.Não foi difícil distinguir os D’arlit do povo de Tuonela: sabe aqueles filmes

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medievais que passam na TV durante a tarde? Nesses filmes medievaisSEMPRE há uma cena com duelos, onde os plebeus se aglomeram ao redordo local onde dois caras vão lutar até se matarem, enquanto a realeza assiste oespetáculo sangrento de um lugar mais privilegiado, como um camarote.Os D’arlit estavam nesse camarote: oito deles; com uniformes pretos,parecendo uma mistura de quimono com armaduras; rostos maliciosos enojentos; cabelos tão diferentes que fariam Victoria e sua juba cor de catarroparecerem normais.O vestígio que a presença deles espalhava pelo ar deixava Wendy enojava.Sem perceber, suas mãos viraram garras, mas em momento algum sentiu suasunhas perfuraram as palmas de suas mãos, embora o tivesse feito.Pelo menos não teria que esconder as mãos.O pior era ver Kahsmin com eles: o cabelo em coque, o rosto parecendocurtir o mesmo desprezo que os D’arlit de verdade sentiam por aquela cidade,luvas nas mãos. Parte dela quis chorar quando ele brindou junto com outrodos D’arlit apontando para o povo.Claro, aquele não era Kahsmin. Não enquanto os D’arlit estivessem aqui.Mas o cérebro é uma piada de mal gosto. Mesmo sabendo dessas coisas,Wendy continuou se sentindo horrível ao ver o líder de Tuonela se misturartão bem com aqueles... aqueles...“Aquele é o Neri, curve-se quando eu me curvar.” Kristell sussurrou,apontando para o homem que brindou com Kahsmin.Wendy se deu ao trabalho de olhar o rosto dele pela primeira vez: Neri haviafeito a brilhante proeza de ter um nariz maior que o de Kahsmin, com a formade um anzol. Wendy não conseguiu evitar imaginar como seria legalmergulhar a cabeça daquele cara na água pra pescar. Seria um prazer ver elese afogando com a água enquanto linguados mordiam seu nariz.Um dos olhos era opaco, o outro não chamava atenção o bastante para sernotado. As cicatrizes e rugas naquele rosto combinavam com o ninho de ratobranco na cabeça dele. Sério, estava ventando pra caramba e o cabelo delecontinuava duro como uma estátua mal feita de mármore.“Neri, creio que se lembre da Kristell Sinnett, e esta é Wendy.” Kahsmindisse, apontando para as duas quando chegaram na frente do camarote dosD’arlit.Ambas se curvaram. Neri olhou para as duas com ironia.“Curioso, ano passado a criança Sinnett era uma garota.” Ele disse, semperceber o sangue furioso escorrendo nas mãos de Wendy.

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Igualmente curioso era que a única coisa na mente dela agora era a promessaque fizera a Caleb quando chegou em Tuonela: “Eu vou acabar com osD’arlit.”“Logo estaremos prontos, Lorde Comandante.” Kahsmin perguntou.“Ótimo. Os ventos dizem que algo interessante está para acontecer.” Nerimurmurou rouco.Wendy sentiu Kristell enrijecer ao ouvir aquilo. Uma nova reverencia e asduas se afastaram antes que Neri ou qualquer outro encontrasse um novomotivo para zombar das duas.“Do que ele estava falando?” Wendy perguntou.“Nada de bom. Vem.” Ela disse, guiando Wendy até onde a maior parte datrupe estava: no centro da plateia, terminando de arrumar o cenário. “Todomundo aqui?”Estavam. Exceto por...“Cadê o Allan e a Victoria?”“Quer mesmo saber?” Alguém, talvez o Elizeu, perguntou.Um olhar para Kristell era o bastante para saber que não.“Edgar?”“Ele foi ajudar na cozinha. Disse que não queria ver a peça dele virar umcirco para os D’arlit.” Marco sussurrou a última palavra como se fosse umagouro de má sorte.Wendy não conseguiu decifrar se era alívio ou desapontamento no rosto daamiga quando ela disse: “Tudo bem.”Enquanto Kristell falava de café e perguntava o que os D’arlit estavamesperando, Wendy começou a procurar por Caleb na plateia, mas o quechamou a atenção dela primeiro foi o garoto com uma cicatriz no rosto todo,junto com dois garotos toupeira, se esquivando entre as pessoas.Wendy cerrou os olhos: podia estar errada, mas duvidava que Fawkes seria otipo de cara que tentaria passar despercebido pela multidão. A menos que...Ela se afastou tão sorrateira quanto pode enquanto Kristell discutia algumacoisa sobre Serpas e bebidas com a trupe.“Fawkes! Onde você vai?”“Você não devia ter feito aquilo.” Ele disse, sem se virar, sem parar de andar.Capitão e Terror entraram na terra antes que Wendy pudesse perguntar o queestava acontecendo.“Feito o quê? Fawkes você tá bem?”“Como você pôde beijar ele?!” Fawkes a encarou: seu rosto era raiva, sua

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cicatriz era dor, seus olhos? Mistério.Um fato inegável, Fawkes era muito mais atraente para Wendy desta formado que com aquele ar de moleque exibido que se acha o último biscoito dopacote. Talvez o rosto de Wendy estivesse deixando isso transparecer.Mas suas palavras não.“Tá com ciúmes?” Wendy perguntou, retórica.Fawkes se desvencilhou dela e, com um olhar de esguelha, disse: “Quê?”Fawkes se perguntou surpreso.“Talvez eu devesse escolher o cara que ‘lutou sozinho contra mil quimeras’no hospício de Virrat? Alguém tão honesto e valente como aquele cara sim éque seria bom pra mim.” Ao terminar, Wendy pensou: Nossa, eu consigofalar igual a Kristell irritada.“Você é uma gracinha pensando que ele é honesto.” Fawkes disse irritado,sumindo na multidão antes que Wendy pudesse responder.Conversas sem sentido, crianças gritando sobre cavalos feitos de vento, avesnegras com cauda e asas azuis no céu, rugidos distantes de Serpas, mulherescomentando o medo que sentiam dos D’arlit, homens dizendo que Kahsmindeveria se livrar deles, como ele fez há dezoito anos, dois meninos fingindoserem Kullervo e Louhi lutando com inocência, como as crianças noOrfanato das Neves.Wendy tinha um lugar privilegiado para perceber todos os eventos listadosacima.Mas tudo que podia ouvir eram seus pensamentos gritando “porco ciumentoinvejoso” e outras palavras de nível duvidoso em relação ao Fawkes. Comoele poderia ter a cara de pau de dizer essas coisas para ela?Que ideia era essa de ficar espionando o que ela estava fazendo?E... por que Wendy começou a questionar a honestidade de Caleb?Ele havia dito que Autumn o odiava por deixar sua irmã morrer e, por isso, ohavia declarado culpado publicamente, mas a cada minuto que se passava,Wendy descobria uma versão diferente dessa história.Isso a preocupava.E as suspeitas de que Caleb era, na verdade, um D’arlit? Ele tem a espada,igualzinha à que todos os D’arlit usavam. Neri estava mostrando a dele paraKahsmin nesse instante. E se ele estiver mentido sobre como conseguiuaquela arma?Nada daquilo ousava fazer sentido para Wendy: Caleb era seu elfo da guarda.E a espada está onde ele disse que estaria: no disfarce de Kahsmin.

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Além do mais, se ele fosse um D’arlit, porque ele estaria em Tuonela ainda?Se ele fosse um informante ou coisa assim, ele poderia ter mandado destruir acidade há muito tempo. Ele poderia até ter feito isso com as próprias mãos sequisesse.Por mais que sua lógica parecesse consistente, a dúvida havia sido plantada.“Eu te mato, Fawkes, por me fazer pensar essas coisas, e você vai me ajudar,Wanda.”Wanda não respondeu, mas Wendy fingiu que ela disse “pode deixar, chefe”.A ideia a fez sorrir por um segundo. Então a realidade voltou.“Lorde Comandante Neri.” Kahsmin disse com uma voz alta, ressonante eautoritária, tão diferente do habitual que Wendy teria dificuldade em dizerque é ele. “Estamos prontos para começar.”Aplausos seguiram essa fala.Com a palavra “mentiras” na cabeça, Wendy não conseguiu refrear umpensamento inocente que teve ao ver Tuonela ovacionando seus inimigos: Acidade era feita de Mentiras agora, e você podia vê-las escritas nos detalhes.A primeira delas estava na careta que precedia o sorriso falso em seus rostos.A segunda estava na rigidez com que batiam palmas.A terceira estava no olhar fugaz de desespero que lançavam uns aos outros,como que buscando aprovação dos demais para ter certeza de que estavamfazendo a coisa certa.A quarta estava nos pés: inquietos, pareciam querer correr para longe, ou paracima do inimigo. A mentira aqui é sútil. Pois ela grita o desejo que eles têmde estar ausente, e ainda pode ser confundida com simples agitação.A quinta e última estava na risada nervosa que eles compartilharam emsilêncio na calada das palmas. Nervosismo de quem esconde, risada aliviadade quem é quase pego no meio de uma travessura, e depois descobre quesequer está na lista de suspeitos.“É um prazer para nós que estejam prontos.” Neri disse sem prazer. Poderiaser feita toda uma dissertação sobre como ele próprio era uma mentira, masWendy preferia ouvir o que ele tinha a dizer. “Todavia, me foi ordenado quenão permitisse que apresentação alguma começasse até a chegada da–”“Estou aqui.”Uma voz de contralto cortou Neri como uma flecha corta o ar (e mãosdesavisadas, não é, Caleb?) Silêncio era a única palavra que poderia batizar oque se sucedeu.Os D’arlit caíram de joelhos, Kahsmin foi junto e, logo, toda a Tuonela.

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Wendy foi a última a se ajoelhar, e só o fez porque Kristell estava do seu lado(quando a amiga chegou ali era um mistério) e a puxou para baixo.Sobre a praça de Tuonela, em frente à catedral e bem acima das cabeças detodos que ali viviam, estava uma Serpa que fazia a dos outros D’arlitparecerem lagartixas com asas.A criatura abriu asas tão magnificas em sua envergadura que deixaramWendy arrepiada, a bater de suas asas mudou os caminhos do vento e, empouco tempo, a criatura estava pousando atrás do camarote dos D’arlit.Não houve baque, tamanha a precisão da criatura.“O que tá acontecendo?” Wendy sussurrou.Kristell respondeu com um olhar que misturava confusão, desespero e raiva.Wendy não perguntou mais nada, apenas assistiu: A Serpa esticou o pescoçolongo para dentro do camarote dos D’arlit, enquanto uma mulher caminhavasobre seu corpo, até ela própria estar frente a frente com Neri e Kahsmin.“Povo da Cartaga Tuonela.” Neri anunciou, e Wendy odiou ouvir o nome dacidade que a havia acolhido ser precedido pela palavra “Cartaga”, Kris haviaexplicado que Cartaga era uma cidade conquistada pelos D’arlit mais cedo.“Reverenciem sua alteza. A filha de Allenwick D’arlit, a princesa dosD’arlit.”Um segundo para que Wendy pudesse ver todos os rostos aterrorizados doscidadãos de Tuonela. Eram os mesmos olhares que Wendy vira em um certorosto paralisado com morte, o rosto de uma criança que estava presa em suainfância na periferia da cidade.O desespero se refletia em cada rosto quando Neri anunciou as palavrasfinais:“Eis a Harbinger da Morte.”

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Capítulo 23

Ele não dava grande importância para música, sequer entendia muito do queouvia, mas sabia quando alguma coisa o agradava.Não era o caso aqui: o violino que vinha de trás das portas do campanário nãosoava como música, mas como lamentos, vários deles sendo ditos e repetidos,um após o outro, sem paz, sem convicção, sem nada exceto um crescentedesespero sendo arrancado das cordas por cada golpe do arco.Então era DISSO que Wendy estava falando quando o pegou brincando comfogo.Fawkes quase podia ouvir o que cada frase daquele instrumento dizia, comose tivesse uma voz própria, arrastando consigo as memórias de centenas devidas destruídas, algumas desejando uma chance para voltar, outrasdesejando a morte de quem tivesse lhes roubado a vida.Aparentemente, Fawkes não era o único que as ouvia dessa forma: “Quietos.”Autumn dizia ríspida entre as notas que tocava.“Com quem ela tá falando?” Terror perguntou.“Eu não sei.” Fawkes disse.“Isso não é uma boa ideia.” Capitão disse.“A menos que queira se matar.” Terror respondeu.“Nesse caso, é uma excelente ideia.” Capitão comentou.Fawkes ignorou os dois por completo e bateu na madeira grossa com asargolas de ferro.“Eu disse QUIETOS.” Autumn repetiu, tocando as notas com mais força.“Sou eu, Fawkes.” Ele disse, incerto sobre o que estava fazendo, certo de queprecisava ser feito.O som pernicioso do violino cessou. De imediato, Fawkes sentiu a tensão quehavia se construído do seu corpo começar a desmoronar. Como um pequenogarotinho aterrorizado que havia se escondido atrás das cortinas e, só agoraque os sinais de perigo haviam sumido, se atrevia a pisar de novo fora doesconderijo.Só para gelar de medo quando um portal de sombras se abriu no meio daporta e a cabeça de Autumn apareceu ali.“Espero que tenha um ótimo motivo para me interromper.” Ela disse comuma voz tão assassina que, Fawkes surpreendeu-se em ver, fez até Capitão e

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Terror tremeram ao ouvi-la.“É sobre os D’arlit–”“Você...” Autumn o interrompeu, saindo por completo das sombras, ecaminhando firme na direção dele. Fawkes mal percebeu que estava recuandoenquanto ela se aproximava, “... sabe que aqueles ratos são responsabilidadedo Kahsmin. NUNCA MAIS me interrompa...” ela disse com o dedoapontado entre os olhos dele, “...por algo que não seja motivo de guerra.”“A Harbinger da Morte está aqui.” Fawkes disse tudo de supetão, sem tirar osolhos da venda que cobria os olhos de Autumn.A quietude que se estendeu entre os dois ficava cada vez maisdesconfortável: Capitão e Terror não se mexiam, Fawkes estavahonestamente temendo ser castigado, com certeza seria doloroso, ainda maisvindo de uma mulher que atirava facas de olhos vendados.“Hora do chá.” Ela disse por fim, com a boca inflexível. “Algo sobre Caleb ea menina?”“Ah... Wendy perfurou a mão dele com uma flecha.” Fawkes disse.Autumn estava vendada, mas Fawkes tinha certeza que ela havia acabado delevantar uma sobrancelha para ele.“Interessante, espero que se repita.” Autumn disse séria. “Algo mais?”“Eles ah, treinaram o dia todo, parecem gostar bastante um do outro.” Fawkesdisse com amargura, “mas nada muito... ah espera, tem alguma coisa.”Autumn não o encorajou a prosseguir, mas ele julgou que seria mais saudávelcontinuar mesmo assim.“Caleb tem uma espada dos D’arlit com ele, no farol, a Wendy disse queviu.”Ela se aproximou do portal de sombras que havia feito e, com um gestofurtivo usando os dedos, chamou Fawkes para perto.Ele obedeceu sem pensar duas vezes.Quando chegou perto o bastante, ela colocou o indicador sob seu queixo elevantou a cabeça dele para cima, sem delicadeza alguma, e sussurrou: “Vocêestá sendo mais útil do que eu esperava, garoto. Continue assim.”Ela estava quase toda imersa nas sombras, quando um mini surto decuriosidade, encorajado por motivos que iam além da sua vaga compreensãomasculina (algo envolvendo uma mulher letal sussurrando elogios no seuouvido) o fez perguntar: “O que quer dizer com “hora do chá”?”Ela se virou para ele e, só naquele momento, Fawkes percebeu o quantogostava do cabelo e das roupas dela...

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Uma faca passou zunindo do lado de sua cabeça.“Olhe meu corpo dessa forma de novo e não vai viver para contar a história.”Ela disse.Fawkes tremeu, ainda ouvindo o eco do zunido na sua cabeça.Autumn teve um acesso de tosse, nada escandaloso, mas foi o bastante paratirar Fawkes do estado de choque. Por fim, ela disse ,fria como se nadaestivesse acontecendo: “Em um dos vários mundos que existem, há um lugarchamado Inglaterra. Este país enfrentou algo que, no mundo deles, foichamado de “Guerra Mundial”. Se não me engano, houveram duas, e nasduas, a Inglaterra foi uma das vencedoras.”“Consegue imaginar o que é ter um mundo, separado em centenas de países,envolvidos em uma guerra? Sabe o que é ter conspirações sob seu travesseiro,prontas para explodir sua cabeça enquanto você dorme? Não, não responda,foi retórica. O importante é que, em meio a esse caos, a Inglaterra esteveentre os vencedores da guerra, nas duas vezes.”“E você sabe o que os ingleses faziam antes de entrar em combate, Fawkes?”Ele fez que não com a cabeça, o que ele achou ser inútil, já que ela parecianão poder ver: “Não.” Ele admitiu.“Eles bebiam chá.” Ela disse, entrando nas sombras.Três segundos depois ela voltou e disse: “Seja útil e mande alguém me trazermuffins.”

“Durante todo um dia pesado, escuro e mudo de outono, em que as nuvensbaixas amontoavam-se opressivamente no céu, eu percorri a cavalo um trechode campo de tristeza singular, e finalmente me encontrei, quando as sombrasda noite se avizinhavam, à vista da melancólica Casa de Usher.Não sei como foi mas, ao primeiro olhar que lancei à construção, umasensação de insuportável angústia invadiu meu espírito. Digo insuportávelporque tal sensação não foi aliviado por nada daquele sentimento, quaseagradável em sua poesia, com o qual a mente em geral acolhe mesmo asimagens mais cruéis de desolação e horror...”“Não, essas palavras não englobam tudo que quero dizer.” Edgar proferiuseus pensamentos em voz baixa, assim era certo de que não haveria de causardistúrbio ou inconveniência aos demais presentes no recinto.

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Se encontrava amontoado em uma esfarrapada cadeira de madeira, com suaspequenas folhas de papel, braços e ideias espalhafatosas esparramadas à suafrente.Nunca lhe causara qualquer apoquentação estar cercado por ruídos enquantotrabalhava sua obra, e a cozinha, de certo, era um lugar de demasiadoestardalhaço. Qualquer escritor de maior mediocridade poderia usufruir detamanha desculpa para não se botar a trabalhar.Mas não ele.Todavia havia, sim, algo que freava o andamento do processo criativo.Como um par de abelhas zunindo em seu ouvido, era a ideia de que os D’arlitestavam lá em cima, deleitando-se de uma peça que fora de sua autoria, epervertida para satisfazer os gostos pragmaticamente dementes deles.Sorte seu papel no plano de Kristell já ter sido executada com maestria.Apenas a ideia do sucesso era capaz de apaziguar seus nervos atormentados edevolver-lhe o foco naquilo que era importante deveras: seu trabalho.“Edgar.” Alguém o chamou.Ele escondeu o que estava a escrever, olhou ao redor, procurando por aqueleque o chamava: viu um casal preparando uma leitoa no forno à lenha, várioscozinheiros de branco cortando e repicando os mais diversos legumes ecarnes que ele já havia visto e dois garotos toupeira roubando muffins, antesde perceber que Allan estava a olhar por sobre seu ombro.“Mudança de planos.” Allan sussurrou acelerado. “A Harbinger da Morteestá aqui.”

“Ela é... diferente do que eu imaginei.” Kristell sussurrou.Wendy concordou: ela própria tinha uma imagem formada de que aHarbinger andaria por aí em vestidos negros como a noite, com cabelos eolhos escuros e um desejo feroz por morte estampado no rosto.Mas esta era sua imaginação.Aquela mulher não trazia a morte estampada no rosto.Pelo menos havia acertado a cor dos cabelos e das roupas: pretos, e aindasobre o cabelo, ele era gentilmente ondulado, e ia até o meio das costas. SeKristell não estivesse ocupada odiando aquela mulher, estaria ocupadainvejando o comprimento do cabelo dela.

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O curioso eram os olhos: desde que chegara em Tuonela, havia visto olhos devárias cores, o próprio dono da Taverna do Fim dos Tempos os tinhaamarelos.Mas não tinha visto nenhum par de olhos como os dela: violeta e alertas.Desde o momento em que havia descido de sua Serpa, ela não havia tirado osolhos da multidão, como se esperasse encontrar alguma coisa fora do lugar.Uma pequena peça do quebra cabeça mal encaixada.Uma laranja podre no meio da multidão, tentando disfarçar seu ranço nosperfumes da celebração: Wendy soube naquele instante que, se houvesse umapessoa cujas atitudes denunciassem os cidadãos de Tuonela, a Harbinger daMorte seria a primeira a saber.“Kahsmin tá tremendo.” Wendy sussurrou. “Isso não é bom...”“Na verdade isso é ótimo.” Kristell respondeu.“Como assim? Ela não vai perceber que é uma farsa?”“Ali em cima, Kahsmin é o General Aino. O verdadeiro Aino sempre tremiana presença da Harbinger, Kahsmin não tem certeza do motivo, mas deve teralgo a ver com Aino ter desobedecido uma ordem direta de Allenwick umavez.”“Como você sabe dessas coisas?”Kristell olhou para Wendy surpresa.“Esqueci que você ainda não sabe a história. Kahsmin descobriu essas coisasno dia em que se livrou dos D’arlit em Tuonela. Eu conto tudo quando agente tiver tempo.”“Entendi.”“Cidadãos da Cartaga Tuonela, sua majestade vai falar.” Neri anunciou. Nãoque fosse necessário, ninguém se atreveu a dizer nada mais alto que umsussurro desde que a Harbinger havia chegado.Ela não tinha muita graça quando caminhava, era quase desengonçada naverdade, mas nunca, em momento algum, sua altivez a deixava de lado.A sua voz contralto ressoou forte pela praça.Wendy desejou poder desligar os ouvidos: eram apenas as palavras de apreçoque ela tinha por Allenwick, e de como os D’arlit são grandiosos, como osmestiços devem ser excomungados do universo, como seu pai era um sermagnífico por ter espantado os anjos para longe, esse blábláblá que não valiaa pena ser ouvido.Até ela dizer:“... teria chegado mais cedo, mas encontrei traidores no caminho.”

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Um murmuro coletivo entre todos em Tuonela se espalhou como um boatosobre o namoro de alguém famoso.“Eles tiveram que ser... eliminados. Teria sido rápido se não tivessem tentadofazer minha Serpa se voltar contra mim.”“Foi uma inoportuna sucessão de eventos. Não fosse a insolência, todosteriam sido eliminados juntos, rápido e sem dor, como fiz em Jussarö, maseles tinham que resistir, vermes...”A Harbinger parou um instante para abafar um riso dissimulado, um daquelesque fez toda a multidão gelar pouco a pouco: era o riso daquele que suspeitaque há um jogo em andamento e se diverte com isso.De repente, Wendy percebeu que estavam em desvantagem contra aquelamulher.“Eu matei cada um deles e... venha cá.” A Harbinger chamou e, nummovimento cheio de fineza inesperada, a cabeça de sua Serpa se aproximou,transformando a própria Harbinger numa anã ao seu lado. “Deixa eu ver suaboca e... o que é isso? Eu preciso que alguém limpe melhor seus dentes,” elaacrescentou, e então colou a própria mão na boca da Serpa, ignorando oevidente desgosto de muitos na plateia, até entre Neri e os outros D’arlit, “ah,aqui, você não pode ficar com isso entre os dentes, vai apodrecê-los.”Wendy quis vomitar quando percebeu o que a Harbinger havia acabado detirar da boca de sua Serpa, e ela não estava sozinha: era uma caveira, comparte da carne e sangue coagulado ainda espalhados sobre os ossos, um dosolhos ainda estava no crânio, estourando e espalhado pelo que sobrou dorosto.“Você precisa mastigar melhor.” Ela disse, fazendo carinho na Serpa com suamão esquerda, “mas não se preocupem, povo de Tuonela, eu não guardei todaa diversão só para mim. Eu não seria uma boa princesa se o fizesse.”Ela estalou os dedos, sua Serpa abocanhou alguma coisa que estavaescondida atrás do camarote e jogou bem na sua frente.Parecia um pedaço de carne embrulhada num saco de estopa, fedendo sangue,sujeira e suor.Wendy foi a primeira a perceber que aquele pedaço de carne dentro do sacoestava vivo. O enjoo que sentiu quando percebeu o que estava acontecendoquase a derrubou de costas, sua visão ficou turva e seus únicos sentidos afuncionar foram: Olfato: absorvendo tudo que havia de pior no ar.Paladar: sentindo na língua o gosto daquele cheiro.Audição: ouvindo as palavras que a Harbinger dizia com prazer: “Este é

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Tupã. O filho do líder da tribo Satya, uma tribo de demônios capazes de falarcom animais e comandá-los.” Ela anunciou, circulando Tupã, que quase nãose mexia dentro do saco.“Não...” Wendy murmurou, a respiração acelerada, a visão ainda maisembaçada e a consciência escorrendo apressada entre os vãos de desespero,como a areia do tempo aprisionada em uma ampulheta.“Ele poderia ter sido um bom sucessor, um líder forte, imponente e resistente,como o pai era, eu acredito no potencial do Tupã aqui...” ela disse, dandopalmadas no saco de estopa, então lambeu seus lábios como se houvesseaçúcar neles, seus olhos violetas dispararam contra a multidão, e Wendysabia o que a Harbinger procurava: o elo fraco, o membro da plateia queentregaria a farsa de Tuonela, “no entanto, a Tribo Satya está morta, Tupãassistiu cada um deles ser devorados pela minha Serpa: os velhos, os jovens,seu irmão, Tupim, aquele demorou para morrer.”“Não... não, não, não...” Sua respiração estava hiperventilada, ela queriavomitar: não podia ser, Tupim havia abraçado Wendy quando ela estava coma tribo, ele era uma criança! ELE NÃO TINHA MAIS QUE DEZ ANOS,ele... ele podia ser aquela caveira nas mãos da Harbinger agora.Kristell entrou na frente de Wendy, para que a Harbinger não a visse.Como alguém podia tirar vida de crianças inocentes e se gabar por isso?! Elesestavam prontos para começar a viver como adultos, eles eram meigos,brincaram com Wendy como se ela fosse uma igual... ela e eles eram todosiguais no amor e respeito mútuo que sentiam.Eles... eles estavam mortos.Agora não conseguia parar de vê-los em sua mente como cadáveres frios emacilentos: eles nunca mais dançariam em volta do fogo, nunca descobririamo que era amar alguém mais que a si mesmo, nunca teriam chance deconhecer o mundo ao seu redor.Exceto o mundo das minhocas, localizado à dez palmos embaixo da terra.E se uma das crianças fosse a Cora? Ou a LaVerne?! Elas morreriamtambém? Sem chance de se defender? Sem chance de saber experimentartudo que delas foi tirado sem motivo justo?Os olhos ainda puros das meninas apareceram na mente de Wendy, seguidospela lúgubre imagem de dois pequenos caixões brancos, feitos sob medidapara duas crianças que nunca puderam crescer.Wendy não queria viver num mundo onde isso acontecesse.Mas era tarde, já havia acontecido, e a Harbinger narrava detalhe por detalhe

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de como foi prazeroso ver aqueles “vermes inferiores” sendo extintos domundo.Não percebeu que estava chorando até Kristell abafar seus soluços, tapandogentilmente a sua boca com a mão.“Não precisava ser assim.” A Harbinger continuou. “Eles podiam estar vivos,e junto com os vencedores, se tivessem concordado em servir os D’arlit. Umapena que todos fossem tão teimosos quanto o líder verdadeiro da tribo. O paideste infeliz aqui.”“Os D’arlit não toleram teimosia, Tupã.” Ela disse em voz alta, com escarniona ponta da língua. “Talvez queira ser eu a informar: seu pai também estámorto. Executado por minha ordem, graças à desobediência dele.”Uma cidade de mentiras vacilou: A plateia arfou em silêncio.Se Wendy conseguisse desviar os olhos da Harbinger da Morte agora, teriavisto os olhares sorrateiros e acusadores que estavam sendo lançados, naqueledado momento, para Kahsmin, por permitir que os D’arlit fizessem isso esaíssem impunes.No seu coração, todavia, Wendy também percebeu: a Harbinger sabia.Sabia que isso era uma farsa, e ia torturar a cidade inteira, forçando-os avenerar seu terror até que tenha perdido a graça.Então, Tuonela se tornaria a próxima Jussarö.Então, sua visão enegreceu, e ela teve certeza: Nada nunca cortaria sua almatão profundamente quanto o som do choro de Tupã vindo de dentro daquelesaco.“Corações sangram quando um homem forte chora.” Irmã Clara costumavadizer.“Os D’arlit tentaram ser generosos com você, sua tribo e sua vida.” Ela faloudiretamente com Tupã. “Vocês poderiam ter sido grandes e se juntado à nós.”“Kristell,” Wendy balbuciou trêmula, “Kris... faz alguma coisa, por favor fazalguma coisa, faz ela parar, faz ela parar pelo amor de tudo que é bom... porfavor.”Com pesar, Kristell disse:“Eu sinto muito, mas não posso.”“É uma pena,” a princesa D’arlit continuou, “eles poderiam ter tido uma vidainteira pela frente como nossos servos de guerra, talvez até levando algumprestigio para o nome de sua tribo. Ao invés disso, escolheram a derrota, e osD’arlit não perdoam más escolhas.”A Harbinger ergueu o saco e despejou Tupã no chão: A metade esquerda de

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sua cabeça era carne e sangue, cicatrizes vivas se estendendo mais e mais acada segundo. Seu corpo era sujeira e feridas, Wendy mal conseguiareconhecer o jovem forte que a havia salvado de ser queimada viva.Seu choro continuava.Mais negação escapou sua boca: não estava sequer ouvindo as própriaspalavras, apenas queria dizê-las alto o bastante para que apenas Wanda eKristell pudessem ouvi-las.Mas se ouviram, nenhuma das duas fez algo para consolá-la.“Contemplem, o último dos Satya. Neri, a espada.” Ordenou a Harbinger.Neri sorriu malicioso com a ordem da Harbinger da Morte, jogou a espadaembainhada na direção da princesa, que a segurou com firmeza, sem retribuirsorrisos.Wendy retirou o que havia pensado mais cedo: essa mulher não pareciaalguém que traz a morte, mas ela era, e era muito pior que podia imaginar,podia ver isso na facilidade com que ela tinha para dissimular seus olhares,seus gestos, seus discursos e suas ações.Kristell fora honesta: Os demônios de verdade chegaram.“Povo da Cartaga Tuonela!” Ela anunciou no instante em que desembainhoua espada. “Vocês me oferecem o seu entretenimento, e eu estou aqui para lhesoferecer o meu. Vocês são os demônios puros que Allenwick deseja paraconstruir o futuro?!”Rebenta desgraçada: Ela sabia, ela sabia e ela estava brincando com cada umdeles.As cinco mentiras que Wendy listou na cidade nunca estiveram tão evidentes.O povo urrava de desespero.Torcia e gritava com nós nas gargantas e olhares confusos.Havia vãos grandes demais entre as mãos que se juntavam em aplausos.Nenhum deles queria entregar a cidade, ou a farsa que eles eram, masqualquer um disposto a procurar onde a mentira estava poderia tê-la visto,estampada na cara de todos eles, enquanto vibravam de apreensão.E a Harbinger vira, Wendy tinha certeza.“Muito bem.” Ela disse, apenas alto o bastante para ser ouvida. “Levante-se,Tupã.”Aquela visão doeu mais em Wendy que qualquer tratamento que a irmãRomena pudesse lhe oferecer, mais que as surras que chegou a levar de Dana,Agnes e Ruth, mais que qualquer dor física que ela já tivesse experimentadoem sua vida.

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Essa dor era na alma.Tupã tentou se levantar várias, caindo em todas por não sentir força obastante nas pernas, ele era o retrato do desespero e miséria.E estava em prantos, da mesma forma que Wendy.“Karai ni taka... não entendo... o que ela diz... socorro, por favor,” ele dissecom a boca tremelicante, os olhos inchados d’água, “nunca... fiz nada demal... ela matou... meu povo... socorro. Imploro. Kzai fojo makiati, imploroajuda, por favor...”Wendy se levantou correndo, e Kristell a segurou com um aperto monstruosono seu braço.“Me larga, agora!” A firmeza na voz de Wendy era o bastante para assustaraté mesmo os fantasmas de todos os medos que ela já sentiu um dia.“Wendy, pelo seu bem, eu não posso.”“Eu vou lutar com você se não me soltar, Kris.”“Lute, mas eu não vou deixar você morrer pra nada.”Wendy quis berrar, arrancar a cara da amiga, jogá-la no chão e xingar portentar impedir que Tupã fosse salvo.Tupã estava em pé, vestindo uma saia de folhas e uma camada protetora feitade dor e sofrimento.Junto com a ponta de uma espada em seu pescoço.Ele fechou os olhos, implorou por ajuda uma última vez.Quando seus olhos se abriram, encontraram-se com os de Wendy.Ela também estava chorando, balbuciando palavras sem sentido, enquantotentava se desvencilhar da Kris.O coração de Wendy quase saiu pela boca quando ouviu Tupã dizer, quasecom um sorriso no rosto ao vê-la.“... menina dos vagalumes...” nunca desgrudando os olhos sujos de lágrimas esangue dos dela “... ajude, por favor... eu...”O que ele ia dizer, Wendy nunca iria descobrir:A espada da Harbinger da Morte perfurara o pescoço de Tupã, ao mesmotempo, seus olhos perderam o brilho que a última esperança que teve em suavida havia lhe proporcionado.“... traga a luz.”Foram suas últimas palavras.Seu corpo fez um baque pesado quando se estatelou contra o chão.Foi quando Wendy soube o que era raiva de verdade.

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Capítulo 24

Durante a eternidade de um segundo, Wendy absorveu o luto da noite: olamento dos mergulhões se arrebentava junto ao som pálido das ondasdistantes; o bater de asas bordava o agudo e cálido canto das baleias; grilos evagalumes bailavam a marcha fúnebre num pequeno show de luzes e som.O céu compadeceu-se, engoliu a lua e se pôs a chorar sobre o cadáver.Não o cadáver de Tupã, mas de um povo inteiro, que um dia foi um com anatureza.E agora era um com a história.“Contemplem: a grandeza do povo de Allenwick D’arlit!” A princesa falou,admirando seu reflexo encharcado entre as manchas de sangue na espada.“Eliminar o que é fraco, para que o forte possa viver.”“Cartaga Tuonela, não há lugar para aquilo que não nos serve neste mundo.Não há lugar para mestiços, humanos, anjos ou qualquer ser que atreva opor-se aos D’arlit.” Ela continuou, agora olhando diretamente para o povo: olhosaltivos, encharcados de morte, esperando.“Apenas o lado vencedor merece estar aqui, respirando, esta noite! E cada umde vocês, meu povo, pode se orgulhar.”Ela dizia palavras de vitória, mas Wendy sentia o enorme deboche no tomcom o qual ela as empregou, como se não quisesse elevar a cidade, mas simrir dela. Ela sabia que todas aquelas pessoas estavam fingindo apoio, e sóestava rindo deles: ela era a Harbinger da Morte, ela podia provocar quem elaquisesse, como quisesse, já que era inatingível.Ou, assim ela pensava.“E agora, meu povo, GRITEM, Cartaga Tuonela, gritem o nome que nossosinimigos temem! GRITEM o nome daquele que nos livrou da tirania dosanjos, GRITEM O NOME!”A mentira nos aplausos soterrou a verdade nos berros de fúria de Wendy.Aquela foi a gota d’água.Não havia sangue em suas veias: era apenas ferro e ódio misturados numacamada incandescente de lava: tudo que um coração dilacerado pode oferecerà uma alma com sede de vingança.A dor era excruciante e pulsava com gosto, como se cada um de seus ossosestivesse sendo puxados para fora de seu corpo por presas invisíveis de um

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lobo faminto: cada um dos seus órgãos era espremido e retorcido, comotrapos sem valor, por mãos feitas de magma.A dor era bem-vinda, pois trazia consigo o mais saboroso prazer que jásentira.O prazer do poder que um corpo de demônio podia proporcionar.Quando aconteceu, os D’arlit estavam brindando a grandeza de seu povo esua soberana; as crianças que, mais cedo brincaram de Louhi e Kullervo,agora se escondiam de medo atrás de pais que batiam palmas e berravam apalavra “D’arlit” com todas as forças que pulmões assustados permitiam.Não houve aviso, não houve chance de qualquer um sequer pensar emimpedi-la.O que de fato houve? Empuxo: Wendy saltou do meio da multidãobarulhenta, como uma leoa salta dos arbustos sobre a presa.Seu corpo recém transformado caiu frente à frente ao da Harbinger da Morte.A plateia se calou, a chuva apertou.O rosto da princesa dos D’arlit migrou rápido de confusão para satisfação.O de Wendy? Morte.Ela se jogou na direção do pescoço nu da Harbinger, quase saboreando oimpacto que suas garras fariam ao estraçalhá-lo.“Lenta.” A Harbinger sussurrou em seu ouvido enquanto Wendy errava ogolpe.Ela não só se esquivou com destreza inesperada para uma mulher segurandouma espada, como também agarrou a cabeça de Wendy com a mão livre eapertou com tamanha força que Wendy pode sentir seus ossos pedindorendição.A sensação só piorou quando a Harbinger começou a usar a cabeça de Wendypara martelar o chão de pedra da praça.Quatro, havia espasmos latejantes em sua testa.Cinco, o piso rachando com o impacto de sua cabeça.Seis, sua visão ficou vermelha com o sangue escorria e dividia com o chão dapraça.Sete, o estalar horrível de ossos rachando, ressoando em seus ouvidos.A Harbinger ergueu sua cabeça um pouco mais dessa vez: as duas sabiam oque ia acontecer depois dessa pancada.Wendy iria apagar.E não ia voltar.Mas o golpe não veio.

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Algo tirou a Harbinger de cima dela.Wendy se levantou o mais rápido que seu corpo permitia para ver a seguintecena: A princesa D’arlit tentando se desvencilhar do demônio furioso que eraKristell Sinnett.Ao contrário de Wendy, Kristell sabia o que fazer numa luta.No momento em que pulou em cima da Harbinger, se preparou para usar omesmo golpe que usara contra a quimera em Virrat, ficando de pé sobre osombros da Harbinger, pronta para arremessá-la com a força das suas pernas.Mas a Harbinger não era uma quimera de Virrat.A espada caiu das mãos da princesa, deixando-as livres para agarrar ostornozelos de Kristell, cancelar o golpe e, com um giro violento, arremessá-lacontra a catedral de Tuonela, se estatelando contra o relógio da torre e caindo,lenta e dolorosamente no chão, com os ponteiros do relógio junto.Primeiro os minutos, depois as horas.Foi o que fez o vulcão Wendy entrar em erupção.Apesar da dor, de não conseguir focar sua visão em nada por mais que trêssegundos e dos barulhos desconfortáveis de peças fora do lugar que ouviadentro da sua cabeça, ela se atirou no chão, onde a espada estava, e sesegurou nela como se toda sua vida dependesse disso.Rolando para os lados, como Caleb ensinou mais cedo, ela se pôs em pé,segurando com as duas mãos a espada apontada para a princesa dos D’arlit.“Você me lembra minha irmã.” A Harbinger sussurrou com desdém, alto obastante apenas para Wendy ouvir. “Principalmente na parte em que eu mateiela: Aliás, o traumatismo e o esforço para segurar a espada vão te derrubarantes do seu terceiro golpe, pode vir.”Um sentimento, seguido de uma memória estranha e fora de lugar atacaram acabeça espatifada de Wendy.Certa vez, em um mês de Abril (Wendy lembrava que era Abril, pois a neveacabara de se derreter por completo) quando tinha entre catorze e quinzeanos, ela perguntou à Christina se elas seriam amigas para sempre.As duas eram as únicas que haviam sobrado do grupo original das quatroamigas. Kristell havia deixado o Orfanato com doze ou treze anos, Marytambém.O que deu a elas anos a mais de convivência: anos a mais para se tornarampróximas como Wendy e comida, ou irmã Romena e novelas mexicanas e debiscoitos dinamarqueses.A irmã Sarah cuidou dela como se fosse uma filha de verdade, com todo o

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amor e carinho que Wendy nunca teve chance de receber de sua mãe.Mas, nem em relação à Irmã Sarah, Wendy conseguia sentir a ligação quesentia com Christina.E quando ela respondeu, Christina colocou a franja preta de cabelo atrás daorelha e respirou fundo, como sempre fazia quando ia dar uma resposta séria:“Eu acho que não, Wendy. Sabe, as pessoas crescem, mudam, se separam e,muitas vezes, nunca mais se encontram. Não é que eu queira que aconteça,mas se formos adotadas por pais diferentes, talvez uma de nós more aqui nacidade, e a outra se mude pra outro país.”“E quando essa distância vier, no começo a gente vai sentir muita falta umada outra, igual quando a Mary e a Kristell foram embora, mas vai passar,sempre passa com o tempo, e começaremos a pensar uma na outra cada vezmenos: vai começar uma vez por dia, depois só duas vezes por semana, umavez por semana, uma por mês...”“Até chegar no ponto que a gente simplesmente deixa de lado. Você sabe queé assim, Wendy, nós quase não falamos mais sobre a Mary ou a Kristell. Hojefoi a primeira vez em meses que eu falei o nome delas.”“E pra piorar, se um dia surgir uma chance da gente se reencontrar, a gentevai ter receio de fazer isso. É sempre assim. A gente vai ficar com medo dever como nossas amigas e nós mesmas mudamos. Vamos meio que fugirdessas chances de nos rever, pra podermos sempre ter, nas lembranças, ailusão de como era perfeita nossa amizade antigamente.”Wendy odiava quando Christina colocava o cabelo para trás antes deresponder alguma coisa. Sempre podia contar com uma resposta longa edeprimente sobre como a vida era de verdade.Mas nunca uma resposta da amiga tinha feito Wendy chorar.Até ela falar sobre amizades, e o motivo para ela chorar foi porque, em algumlugar dentro dela, Wendy sabia que, por pior que tivessem sido as palavras daChristina, ela havia dito a verdade.Foi a única vez que chorou naquele ano.E agora, a Harbinger da Morte trazia de volta a mesma sensação de estarcercada por uma verdade lamentável: Wendy era uma garota morta.Não era apenas uma pequena parcela dela que concordava com isso, era elatoda: seus braços tremiam mais do que os da irmã Clara segurando qualquerobjeto com mais de dois quilos (Irmã Clara tem Parkinson).Sua cabeça parecia... não, sua cabeça ESTAVA fora do lugar, o barulho decoisas soltas dentro do seu crânio chegava a dar aflição.

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“Estou esperando.” A Harbinger encorajou.Wendy olhou da espada até seu alvo, e um pequeno lampejo de genialidadebrilhou na sua cabeça desordenada: Se fosse lutar pelas regras, ia morrertentando acertá-la, mas... sua mira para arremessar projéteis tinha se mostradobem interessante naquele dia, quando acertou uma flecha na mão de Caleb.Com um sorriso cheirando à sangue e suor, Wendy atirou a espada, como sefosse uma lança, com toda a força que ainda restava.A arma zuniu breve pelo ar, cortando a chuva, abrindo caminho até seu alvo.Houve um feixe de luz cegante, seguido por um estrondo ensurdecedor quefez a cidade inteira se encolher como coelhos assustados.A espada explodiu no ar.Wendy não teve tempo de entender: foi jogada para longe pela onda dechoque criada pela explosão.Talvez tivesse perdido os sentidos, pois não sentiu o impacto da explosão enem o que seu corpo fez ao tocar o chão, mas sentiu a garra que cercou seupescoço e a ergueu como se fosse um peso insignificante de papel.“Olhos abertos, verme.” A Harbinger ordenou.Os olhos vermelhos de sangue de Wendy encontraram o rosto da Harbinger.Não era mais a princesa sem graça que entrara em Tuonela: era como se elaprópria tivesse passado por uma transformação.Seu cabelo brilhava na chuva; o sorriso era afiado na parte dos dentes,estendido quase de orelha a orelha, enquanto os olhos, do mais venenoso einjetado violeta, refletiam com deleite o rosto sufocado de uma adolescenteque nunca teve chance contra a Harbinger da Morte.“Uma chance para sobreviver, garoto.” Ela sussurrou. “Nomes. Delatetodos.”Ela sabia, Wendy estava, a Harbinger sabia que era uma farsa e ela só queriauma confirmação, para fazer o mesmo que fez em Jussarö.Ou pior.Wendy não respondeu, sentindo a morte nas mãos da Harbinger.“Teimosa até o fim?” Um murro de persuasão na boca do estômago fezsangue se espalhar entre os dentes de Wendy, “Que tal se eu der os nomes?Caleb Rosengard, foi ele quem te deu essa ideia infeliz de atacar a Harbingerda Morte? Onde ele está?”Suas pupilas dilataram ao ouvir aquela pergunta: a existência de Caleb erapara ser um segredo! Era para os D’arlit pensarem que ele estava morto!Ele era uma das únicas pessoas que assustava a Harbinger da Morte. Por ser

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meio anjo. Por poder queimá-la com o toque. O que seria bem conveniente,dada as circunstâncias.Mas COMO a Harbinger podia saber? Ninguém em Tuonela tem contato comos D’arlit até onde Wendy sabia.Bem, talvez Kahsmin tenha, já que ele precisa saber com antecedênciaquando os D’arlit estão vindo, e talvez ele tivesse que enviar relatórios falsospara eles também, mas com certeza em nenhum desses relatórios estariaescrito algo como “Acho legal mencionar que Caleb Rosengard, o mestiço deanjo que pode acabar com vocês todos, está vivo e morando aqui. Abraços.PS.: mandem mais chá e ração de Serpa.”“Não me faça perguntar de novo, garoto.” A Harbinger crocitou, apertandoainda mais o pescoço da menina.Osso após osso, Wendy ouvia os estalos nas bochechas, têmporas e maxilar,culpa de um esforço de mover montanhas que estava fazendo para vestir omelhor sorriso escarnado que tinha ao dizer: “Eu sou garota, sua vadia.”A distancia entre a parte da frente e a de trás do pescoço de Wendy diminuiuainda mais depois que disse aquilo.Algo fatiou o ar.Bem onde a cabeça da princesa estava, mas ela esquivou meio segundo antesde ser atingida.Wendy escapou de suas mãos, se afastou o quanto seu corpo permitia,enquanto, junto à toda cidade de Tuonela, procurava o que havia acabado desalvá-la. Procurando por Caleb, escondido no meio da multidão, com seucapuz, sobretudo e arco feito de luz.Não foi uma busca muito longa, mas foi decepcionante.“... eu não acredito...” Wendy e várias outras pessoas disseram ao mesmotempo.O reflexo reluzente de uma faca aparecia e desaparecia entre dedos ágeiscomo os de um trapaceiro de rua, enquanto, com a outra mão, ela levava oresto de um muffin, da mesma cor dos cabelos rosas, até a boca.“Me concede esta dança, princesa?” Sua voz, afiada como as agulhas queWendy usava no Orfanato das Neves, costurou-se entre a chuva e confusãoque cobria a cidade.Os D’arlit começavam a se preparar para lutar, mas um gesto da Harbingerfez Neri e os outros ficarem parados exatamente onde estavam.“Aprecio o interesse, cavalheiros, mas acredito que o convite tenha sidoexclusivo para mim.” A Harbinger colocou cuidadosamente as palavras no ar,

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como se fossem livros numa estante, “e a quem devo a honra de dividir estamúsica?”Havia devorado o que sobrou do Muffin antes de dizer.“Eu sou os dedos frios nas suas costas, antes de você dormir. Eu sou asvozes–”“Pule as alegorias ou–”A cidade arfou em uníssono quando a mulher de rosa sumiu de vista e,segundos depois, surgiu no chão, mais ou menos como Capitão e Terror, atrásda princesa D’arlit, com uma faca apontada no meio do pescoço e uma outraarma, ainda mais afiada, apontada para os ouvidos da Harbinger.“Nunca. Me. Interrompa.” Ela disse com gosto de vitória.Uma nova explosão, brilhante e barulhenta como um raio, cegou Wendy etodos ali.Quando voltou a ver, a Harbinger e a mulher de cabelos rosas estavamlutando com uma ferocidade e determinação tão pesadas e densas que fazia oar parecer granito, quase impossível de se respirar.Podia ser a chuva, podia ser culpa golpes constantes na sua cabeça, masWendy não conseguia parar de pensar em como a luta das duas parecia compoesia.A mulher de rosa era a destreza, com movimentos pequenos, delicados,controlados com uma perfeição e sutileza que Wendy não esperaria nem dosmelhores acrobatas do mundo. Ela era uma bailarina, entrando nas sombras ereaparecendo em algum lugar, atirando suas facas contra a princesa com umamira que se igualava à de Caleb.A diferença é que ela estava vendada, enquanto Caleb ainda usava os olhospara mirar.A Harbinger da Morte, por outro lado, era Golias, gigante e desengonçada,tão mortal quanto um tornado de fogo: a mulher de rosa não podia seaproximar pelas sombras sem que uma debandada de eletricidade fossedescarregada das nuvens para o chão, forçando-a a para fora.Os olhos não podiam acompanhar quando a luta era corpo a corpo: AHarbinger evitava as mãos da mulher de rosa como uma criança evita umpesadelo, ou um banho num dia frio, e sempre que tinha chance, a agarravapela cabeça, como fizera com Wendy, mas a mulher sempre tinha uma formade escapar.“Alguém pega aquela menina!”Tão rápido quanto a voz chegou em seus ouvidos, pares de mãos se

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apressaram para tirar Wendy do caminho.“Você tá bem? Alguém chama a Paloma!” Era Allan quem dava as ordens ali.“Eu não acredito que você fez isso.” Marco disse pra ela.“E a Kristell? Alguém viu se ela saiu de–”“Eu tô aqui.” Kristell cortou, caminhando manca no meio da multidão. “Saida frente, eu quero ver a minha amiga!”Era difícil ver Kris na escuridão, mais difícil ainda foi evitar o abraçoesmagador da amiga, com cheiro de sereno, carinho, ferro e graxa. Wendynão tinha forças para retribuir dessa vez.“Wendy...” Kristell estava com a voz trêmula quando sussurrou, “amiga, euachei que você ia morrer.”“Eu ia.”Houve um abraço fraco, o primeiro que Wendy recebeu de Kristell.“Nunca mais faça isso comigo.” Kristell murmurou, e Wendy percebeu que...“eu morreria antes de deixar alguma coisa acontecer com você.” ...percebeuque Kristell estava chorando no seu ombro.Não há como não amar uma pessoa que se preocupa tanto com você a pontode pular na frente da morte por você. Foi só neste sentimento que Wendyencontrou forças pra retribuir o abraço de Kristell.“Isto não fazia parte do plano.” Edgar disse, enquanto assistia a luta.Curiosidade engatada. Acelerar, agora.“Que plano?” Perguntou Wendy.Antes de qualquer um responder, Paloma chegou: Wendy nunca tinhareparado muito nela, mas o que a luz ocasional dos raios da Harbingerrevelava era que a menina tinha um rosto muito delicado, como de umamenina francesa.“Quem primeiro?” Ela perguntou com a voz calma e preocupada dela. Sim,ela conseguia fazer uma voz calma e preocupada ao mesmo tempo.“Ela.” Kristell disse, entregando Wendy nas mãos da Paloma.Palmas tocaram seu crânio. Cada ponto dolorido na sua cabeça parecia dançarde alegria ao sentir o toque da garota.Eram quentes como um abraço de mãe. Não que Wendy soubesse como eraum abraço de mãe, mas sabia como era o da irmã Sarah. Não deveria ser tãodiferente.A dor se dissolvia sob aquelas mãos.Mas o processo era demorado.Em momento algum Kristell tirou os olhos de Paloma ou de Wendy,

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deixando Edgar de lado, assistindo à luta como se esta pudesse trazer algumainspiração para seus trabalhos.“Eu não posso fazer mais nada.” Paloma disse, tirando as mãos da cabeça deWendy, que imediatamente começou a doer de novo. “Wendy, seus ossosestão concertados, mas frágeis, não faça nada brusco por um tempo.Kristell?”“Eu tô bem.” Ela disse.“Essa não.” Allan e Edgar disseram juntos.Virando para a luta de novo, se tornou nítido que algo deu imensamenteerrado: a mulher estava prestes a entrar nas sombras, mas um ataque de tossea atrasou, dando tempo para a Harbinger atacar, pulando como uma víborasobre o pescoço dela.Antes de tocarem o chão, ambas desapareceram: a mulher de rosa as levarapara as sombras: explosões fuzilavam as pedras da praça a cada segundo,fazendo as duas aparecerem e desaparecerem nas sombras, como golfinhosno mar.“Quem é ela?” Wendy perguntou exausta.“Ela é o Cisne de Tuonela, Autumn DeLarose Liddell.” Edgar respondeu.Wendy teve um ataque de admiração: esta era Autumn que havia acusadoCaleb por não estar em Tuonela quando os D’arlit atacaram, e ela era tambémuma das guerreiras mais incríveis e lindas que ela já vira em sua vida.Não esperava que ela tivesse um cabelo rosa tão perfeito.“Elas vão se matar.” Victoria comentou. “Legal.”“Mas... eu não entendo, se a Harbinger é tão forte igual todos dizem, porqueela ainda não acabou com tudo?” Wendy perguntou.“Demônios cansam.” Kristell respondeu. “Kahsmin disse que ela devastouJussarö sozinha. Se isso for verdade, ela deve ter ficado esgotada, e aindahoje ela atacou o povo de Tupã. A Harbinger tá exausta, e Autumn parecedoente.”Wendy olhou de novo: sempre que as garras da Harbinger acertavam o corpode Autumn, era porque ela estava tossindo. Então... demônios podiam ficardoente, e na pior hora possível.Igual pessoas normais.Uma nova explosão, tão alta que o ouvido esquerdo de Wendy ficou zunindoagudo depois que aconteceu, surdez instantânea.Seu coração quis sair pela boca quando viu o que tinha acontecido.Autumn não havia sido o alvo: inocentes haviam.

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Crianças. Um dos raios da princesa D’arlit caiu onde os dois garotos quebrincavam de luta mais cedo estavam, substituindo-os por cinzas e pelofantasma da animação que ambos sentiram enquanto assistiam a luta maisemocionante de suas curtas vidas.Raiva: pela primeira vez, a cidade gritou de raiva, junto com Autumn, que, dealgum jeito, entendeu o que havia acabado de acontecer.As pessoas pularam como a praga onde a Harbinger estava e, um a um, elescaíram.Wendy viu os outros D’arlit pulando em direção à luta. Exceto por Neri, quehavia tomado um caminho diferente.“VAMOS! A GENTE TEM CHANCE AGORA!” Wendy gritou, tentandoficar em pé.“Você não vai pra lugar nenhum.” Kristell disse, segurando a amiga.As pessoas da cidade que não quiseram entrar na luta (grande maioria) seafastaram, alguns entrando em casas abandonadas ou apenas correndo paralonge da praça. Enquanto a luta entre Autumn, a Harbinger, a cidadãos deTuonela e os D’arlit continuava.“Cadê o Caleb pra acabar com isso?” Wendy quis saber.“Em Virrat, ordens do Kahsmin.” Kris respondeu.“Aquele traidor cretino não presta pra nada mesmo.” Allan comentou comdesgosto.Wendy quis pular sobre o garoto e fazer carne moída do rosto presunçosodele, mas Kristell a impediu.“Não é hora pra isso. Precisamos tirar você daqui.”Mas antes que elas se mexessem, Neri estava de volta, montado em suaSerpa, enquanto as outras quatro estavam logo atrás, dando rasantes para queseus donos pudessem montá-las.A Harbinger foi a última a deixar o chão: apenas Autumn tentou impedi-la,entrando nas sombras uma última vez. O esforço estava escancarado no rostoda princesa quando ela conjurou um último jato mortal de eletricidade,atirando Autumn para longe.A chuva parou de cair, e agora só existia o cheiro de restos no ar: restos deágua, de luta, de vida e de morte. Pássaro algum desafiava o bater de asasimponente das Serpas, ser vivo algum ousava demonstrar luto em meio a todoo ódio e medo que ainda estavam lá, escondidos nos olhos dos observadores eobservados.Tanta tensão só podia ser prelúdio de um evento: “Os D’arlit e a Cartaga

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Tuonela estão em guerra.” Declarou a Harbinger da Morte.Ao dizer essas palavras, os D’arlit e sua princesa sumiram na escuridão:deixando a tensão se dissipar aos poucos e transformar-se em outra coisa,algo que Wendy estava muito acostumada a sentir quando começou aperceber que havia passado dos doze anos e ainda não havia sido adotada:Desespero.O murmúrio era ensurdecedor: os que já tinham largado suas armaduras deraiva, apressaram-se a vestir uma nova, mais leve e frágil, feita de medo,cochichando perguntas sobre como poderiam sobreviver, para onde iriam, oque fariam com os pertences.“... vai ser igual dezoito anos atrás!” Um homem gritou desesperado.“Eu preciso tirar meus filhos daqui!” Retribuiu uma mãe, com duas criançasno colo.A gritaria começou a crescer cada vez mais, com as pessoas correndo para láe para cá como se fossem formigas tontas ou coisa pior.Uma lição: Medo misturado com água e bastante incerteza gera pânico.“Eu pensei que eles soubessem lutar.” Wendy disse, olhando confusa paraaquilo.“Não quer dizer que não precisam ter medo de repetir a catástrofe como a dedezoito anos atrás.” Marco respondeu. “Se reparar bem: só os mais velhos, osque tem idade para lembrar do que aconteceu no passado, estão com medo.”Antes que Wendy pudesse reparar melhor nisso, algo capturou seus ouvidos.Um berro gutural furioso praguejou pelo ar, grave e medonho como os de umdemônio de filme de terror, lembrando aqueles da maratona de Halloweenque fez Wendy perder o sono por três semanas alguns anos atrás.Toda cidade parou quando a viu: Autumn em pé, boa parte da sua roupacoberta em sangue diluído em água e dor. Seu mancar era impetuoso. Wendypodia não ver seus olhos, eles estariam fuzilando um a um na sua frente.Lenta e cinicamente, ela começou a aplaudir, com a risada mais ríspida queWendy ouvira em sua vida: e ela viveu com a irmã Natalie e a Romena, elaseram competição pesada.“Desde o nascimento do primeiro sol.” Ela começou, em tom de quem recitaalgo há muito decorado. “Existem leis que regem o mundo. Não leis feitaspelos anjos, demônios, humanos, espíritos ou qualquer outro ser. São leisapenas porque são verdade, e nada mais.”“Leis como: Não se pode tirar mais do que é necessário sem pagar asconsequências.”

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“Quando uma pessoa se torna tirano de seu povo, ambos se tornam escravosdo medo. Medo da ira do tirano, medo da revolta do povo oprimido.”“Ah, uma das minhas favoritas: o mal não cresce quando ele se torna maisforte, mas sim quando os bons se tornam apáticos.”Ninguém parecia entender qual era o ponto daquela mulher, até ela mesmaresponder aos berros: “E vocês são a maior corja de hipócritas com que játive o desprazer de dividir meu ar! Dia após dia após dia eu escuto vocêsreclamarem: Kahsmin é um covarde por deixar os D’arlit entrarem na cidadesem fazer nada. Eu não aguento mais viver com medo deles. Nós deveríamosmudar isso nós mesmos...” disse, fazendo várias imitações de vozes enquantomudava de uma acusação para outra.“E quando vocês têm A MALDITA CHANCE DE FAZER ALGUMAMUDANÇA COM AS PRÓPRIAS GARRAS, VOCÊS NÃO FAZEMNAAAAADA! FICARAM AÍ PARADOS, ASSISTINDO UMA GAROTACUMPRIR O PAPEL DE VOCÊS TODOS! SEUS BOSTINHASCOVARDES!”Nenhuma palavra foi dita: o dedo encharcado de Autumn apontou para umcanto onde o pavimento que cobria a praça havia sido destruído porcompleto.Neste canto estavam um homem e uma mulher que Wendy nunca havia visto,debruçados sobre algo que ela não podia ver.Embora soubesse exatamente o que era. Ou melhor, eram.“Vocês dois sabem o que matou seus filhos, digam, DIGAM AGORA!”Autumn ordenou.Wendy viu o casal se virar: as sutis cortinas de luz da meia lua caíram derelance dentre as nuvens, revelando apenas o fantasma do que, algunsmomentos atrás, fora uma família feliz.Doeu em Wendy ver como os lábios daquela mulher tremeram com aresposta, incapaz de proferi-la sem reviver todo o terror que fora forçada apresenciar.Foi o homem quem respondeu no final: “A Harbinger os matou.”Ao som da resposta, Autumn aplaudiu, lenta como a dor, apenas uma palmapor segundo. Wendy nunca pensou que seria possível expressar tantodesprezo, sarcasmo e repulsa em um único gesto.“Não!” Ela cuspiu a palavra. “VOCÊS os mataram quando se recusaram alutar, mas não se preocupem, há muita gente para com quem dividir a culpa.Uma cidade INTEIRA!”

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A mulher começou a chorar mais alto ao ouvir aquilo, o vírus da culpacomeçou a mostrar os primeiros sintomas. O homem tentou manter um olharfirme direcionado para Autumn, mas descobriu que não conseguia, de certo jáhavia aceitado as palavras dela como verdade.O horror daquilo era mais visceral que qualquer um que Wendy jamaissentira. Como Autumn podia ser tão cruel e fria ao ponto de fazer sofrerpessoas que acabaram de perder o que tinham de mais precioso?E pior: por que a maior parte de Wendy concordava com as acusações deAutumn?A resposta brilhou com os vagalumes: o corpo de Tupã ainda estavaabandonado no chão, esquecido por todos, como se não tivesse importância.E claro, não tinha. Ele não tinha uma família em Tuonela, ninguém conheciaele, ou o povo dele.Ninguém exceto ela, Fawkes, Anuk e Kahsmin.O resto de Tuonela não sabia como Tupã havia salvo Wendy de uma daspiores mortes possíveis, não sabiam do bom coração que deixara de baterbem diante dos olhos deles. Tupã era apenas mais um quando morreu.“Traga a luz.” Wendy lembrou das últimas palavras dele. Foi amargo o sabordo sorriso que se instaurou nos lábios de Wendy quando viu que, agora,vários vagalumes voavam sobre o rosto dele.“Eu sinto muito que tenha terminado assim, Tupã. Sua história vai continuarcomigo, eu posso não saber como trazer luz, mas vou tentar, por você, peloseu povo.” Wendy murmurou.Gostaria que Tupã tivesse sorrido de volta, que dissesse que estava tudo bem,que ele agora seria capaz de descansar em paz, que ela era uma boa pessoa,uma ótima pessoa por se preocupar com ele.Mas ele não sorriu, nem reagiu quando um vagalume se sentou sobre suaspálpebras, iluminando olhos em choque, contemplativos, voltados na direçãode um céu que não podia mais ver.A voz arrogante de Autumn a trouxe de volta.“E se dividir a culpa não é o bastante para apaziguar os pobres coraçõespartidos de vocês, não se acanhem, pois há alguém em especial que osensinou a ser assim, alguém que de fato merece uma parcela gorda dessaculpa toda. NÃO É MESMO, KAHSMIN?! VENHA AQUI SEUCOVARDE INÚTIL!” o chão tremeu sob os pés de Wendy com o estrondoque a voz de Autumn fez.Kahsmin apareceu do meio dos restos do camarote onde os D’arlit estavam:

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não era mais o falso general Airo, não era nem mesmo o Kahsmin alegre edivertido que fez Wendy rir e se sentir bem desde o instante em que bateu osolhos nele.Era a derrota, que caminhava para a doce corda da forca em forma deAutumn.“Contemple, Tuonela. Seu líder!” Sarcasmo pingava da sua boca, “econtemple, Kahsmin, SEU povo, SEU reflexo covarde.”Então ela fez algo que Wendy não imaginou que a veria fazer: riu com gosto,como se tivesse acabado de contar uma piada cósmica que faria toda aexistência da vida parecer nada além de cômica.“Eu nunca acreditei que um povo podia se espelhar em um líder.” ConfessouAutumn “Nunca me vi sendo reflexo de ninguém além de mim mesma, aliás,eu nunca me vi de qualquer forma. MAS OBRIGADA, TUONELA!OBRIGADA POR ME PROVAREM ERRADA, VOCÊS HERDARAMTODA SUA COVARDIA DESTE ÍNUTIL QUE PREFERIA ACOMODIDADE DA MENTIRA A ENFRENTAR O INIMIGO DEFRENTE!”“Autumn, eu...”“QUIETO IMBECIL!” De novo, o berro gutural que derrubou Kahsmin nopedregulho que antes pavimentava a chão da praça. “Você é um grande líder,Kahsmin.” Ela disse, com o rosto vendado voltado para ele. “Influenciar umacidade inteira a ficar sentada enquanto é abusada por todas as direçõesimagináveis, isso foi incrível. Parabéns seu PEDAÇO DE RANÇOMISERÁVEL!”Ela parou por causa de um novo acesso de tosse.Wendy queria defender Kahsmin, não era justo que ele tivesse que ouvir tudoaquilo sozinho, não era justo sequer que ele fosse julgado tão fria ebruscamente, em público.Mas ela não sabia o que fazer, e também não tinha mais força alguma nempara levantar, muito menos para se colocar na frente de Autumn.“Se há uma única pessoa neste ninho de covardia e hipocrisia a quem eu nãotenha ofendido, eu IMPLORO seu perdão.” Autumn disse quando a tosseparou.Era difícil não se sentir ofendido por ela, a presença dela por si já eraofensiva: quando não dizia nada, parecia ser capaz de enxergar, mesmovendada, o que havia dentro das pessoas, ver todos os defeitos delas, esperarperante ela era como estar nu até a alma.

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Ninguém estava impune.“Eu não fui ofendida!” Wendy quis ouvir Wanda dizendo, mas não, nada,nenhum som.“A menina que atacou a Harbinger?” Autumn perguntou, alto o bastanteapenas para ser quase ouvida.Wendy se levantou: não cogitaria deixar aquela mulher esperando.A cabeça de Autumn virou em sua direção.“... vocês só podem estar brincando comigo. A ÚNICA PESSOA A REAGIRNESSA DESGRAÇA FOI A MENINA NOVA! Eu não acredito. Kahsmin,traga ela aqui.”Ele se ofereceu para ajudar Wendy a andar. O que foi muito bem vindo, poisao tentar dar o primeiro passo, descobriu que sua perna estava dormente e,provavelmente, quebrada.Frente a frente com Autumn, Wendy só conseguia pensar na dificuldade quesentia em respirar diante da firmeza daquele olhar oculto: era como umaestátua de mármore, talhada meticulosamente, até nos menores dos detalhes,para inspirar medo e respeito.Ela poderia ser a verdadeira Harbinger da Morte com toda aquela imponênciae elegância que, obviamente não eram naturais na princesa D’arlit.“Amanhã, depois do almoço, esteja no campanário. Quero conversar comvocê.”Wendy não esperava por isso.Kahsmin não esperava por isso.Fawkes não esperava por isso.Ninguém esperava por isso.Quando finalmente recuperou os sentidos para dizer qualquer coisa, Autumnjá estava dentro da Catedral, que se erguia como uma grande testemunha,vislumbrando todos os crimes que ali se sucederam.Foi a primeira vez que Wendy não se sentiu à vontade dentro da cidade deTuonela.E a ideia de que amanhã teria que ficar várias horas junto à Autumn a fizeramter certeza: Não seria a última.

“Majestade, quando atacaremos?” Neri insistia na pergunta da qual ela vinha

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se esquivando desde o momento em que levantaram voo.Por que declarou uma guerra? Se é verdade que Caleb está vivo, assim comotudo que Ally havia dito até então era verdade, era suicídio atacar aquelacidade. Talvez pudesse esconder isso de seu pai.Mas ainda havia Neri e os outros...Seria tão mais fácil se eles simplesmente morressem.“Isso será discutido quando chegarmos, Neri.”Estava arfando, mas não deixaria transparecer: Aliás, aquela mulher vendada,quem era ela? Como ela foi capaz de fazer um estrago tão grande? Como aHarbinger, nunca soube da existência de uma guerreira tão visceral e violentacomo aquela?A Harbinger sabia que o silêncio de Neri e os Sete atrás dela significavamque estavam ponderando o que aconteceu na cidade. Discutindo em suasmentes a performance duvidosa da Harbinger da Morte em campo de batalha.“Como alguém que diz aniquilar uma cidade inteira pode ter problemas comum único demônio?”Ela podia ouvir a especulação em sua cabeça: as dúvidas começando, osboatos se espalhando, tudo porque uma mulher com uma venda a havia quaseliquidado no meio de uma luta.“Eu havia acabado de usar a maior parte da minha força para acabar com osíndios.” A Harbinger se defenderia.Que provas haviam disso? Que provas haviam de que ela de fato haviaexterminado um povo inteiro? Tudo que ela fez foi tirar um crânio da boca desua Serpa e eliminar o líder imundo deles em público, e isso só provava elacapturara ele.E se eles achassem que o crânio fosse falso?“Quietos, eu destruí a cidade de Jussarö! Não me recuperei por completoainda.”“Destruiu? Você diz que levou apenas duas pessoas, testemunhas. O que asimpede de mentir a seu favor? Você nunca vai ser nada comparada com a...”“NÃO DIGA O NOME DELA!” Sua voz cortou a de seu pai, na sua cabeça“VOCÊ VIU EM QUE ESTADO EU CHEGUEI AQUI POR CAUSA DALUTA.”“O que só prova o quão ineficiente você e seus métodos são, o relato deNeri...”Neste ponto, ela esperneou em sua cabeça.“Maldita mulher vendada, maldita Tuonela, maldito Lorde Comandante

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delator.”Ela sabia que nada o impediria de contar a desastrosa façanha da filha deAllenwick em Tuonela.Exceto o fim da vida dele.Pensando bem, eles estavam voando no meio do nada: não haveria comosaber o que de fato aconteceu. Neri podia estar descansado, os outros setetambém, mas ela ainda era a Harbinger da Morte, ela tinha o poder dentrodela.O que poderia dar errado?“Allenwick descobriria.” sua mente respondeu “E você mesma contaria.Você sempre conta. Até quando você pegou sua irmã com a adaga e...”Desta vez, o grito foi de verdade.Sua Serpa parou, e as outras quatro pararam atrás dela.Já podia ouvir Neri, com aquele tom arrogante que adorava usar quando elatinha um desses súbitos ataques de raiva, ou a presunção com a qual ele aacusaria de estar sucumbindo às suas fraquezas.Talvez até apresentasse isso como um motivo para seu pai destituí-la daliderança dos exércitos secundários dos D’arlit (seu pai já não confiava seusmelhores homens a ela de qualquer jeito). Diria que o único lugar adequadopara alguém como ela seria o Hospício Para Demônios de Virrat ouisolamento da Ilha da Caveira, junto com os restos dos olheiros traidores dosD’arlit.Mas a verdade era: ela não ouviu nada além do bater de asas.Ela se virou para encontrar Neri dormindo sobre sua Serpa.“Lorde Comandante?” Ela chamou.Sem nenhuma resposta.Ela olhou melhor: todos os oito estavam na mesma posição que Neri...imóveis, rijos, com olhos fechados e bocas entreabertas.“Lorde Comandante Neri?” Ela repetiu, e o dono da juba de cabelo duro eolho opaco desmantelou-se sobre a Serpa, por muito pouco não caindo umaqueda de mais de cem metros de altura em direção à floresta.“Não... não é possível.” Ela sussurrou.Ela voou até ficar do lado dele. Dois dedos no pescoço. Suspeitasconfirmadas.Lorde Comando Neri e os Sete Favoritos estavam mortos.“Mas... como...”“Sabe que a culpa vai cair sobre você, não sabe?” Uma versão copiosa de sua

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voz sussurrou na sua cabeça.“Quieta!”Sua voz ecoou como um mau presságio pela escuridão da noite: nuvensnegras de pássaros levantaram voou, encobrindo por breves momentos a luz dlua que pintava o céu de índigo esbranquiçado.Um assovio chamou sua atenção.A Harbinger procurou, mas não conseguia encontrar: não podia ter vindo deum dos D’arlit, nenhum deles estava respirando, muito menos assoviando,mas ao mesmo tempo, o som não vinha da floresta abaixo. Estava próximodemais, mas onde...“Aqui, bobalhona!”“Essa não, por favor não.” A Harbinger disse em pensamento.Os dois corpos sobre a menor Serpa foram empurrados para os confins doesquecimento folhoso, para revelar a pirralha de dez anos, com seus cabeloscastanhos e olhos avermelhados.“Sentiu minha falta?” Ally perguntou, enquanto ria, cantarolava e corriasobre o lombo da Serpa.“Você matou eles?!” A princesa perguntou.“Ah, como eu vou explicar dum jeito que sua cabecinha burrilda vaientender? Não, sua poia. Bem que eu queria, mas eles já estavam mortosquando subiram nos dragõezinhos.” A pestinha disse, dando tapinhas nacabeça da Serpa.“Quê? Neri estava vivo quando–”“Não, burróca, não estava.” Aquela pestinha disse, pulando de uma Serpapara outra como uma bailarina endiabrada mirim, fazendo questão dederrubar todos os corpos que estavam sobre elas: um a um, a Harbinger osassistiu cair, até chegar a Serpa de Neri, bem na frente da princesa D’arlit.“Cheira.”“O quê?”“Você é uma poia burra, não surda, cheira ele logo!” Ela disse, apontandopara Neri.A Harbinger havia aprendido do pior jeito que não era uma ideia muitobrilhante não fazer o que aquela pirralha mandava.Chegou perto do corpo de Neri, e não precisou se esforçar para sentir ocheiro.“Veneno de Serpa.” Ela disse surpresa.“UAU! Você parece menos burra agora!” Ally disse rindo. “Não tem cheiro

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até fazer efeito, depois fica pior que cocô de diabrete.” Ela adicionou.A Harbinger se lembrou: No camarote, haviam dez bebidas: oito para Neri eos Sete, uma para ela, uma para General Airo.Apenas a dela permaneceu intocada.“Eles iam nos matar.”“Não, eles mataram mesmo, todo mundo menos você.” Ally disse, sedivertindo com a situação. “Se você não quisesse aparecer tanto matando ocoitadinho do Tapão e começando uma confusãozinha de leve, você tambémteria morrido.”“Você... como você sabe?”“Eu estava lá.” Ao dizer isso, um clone dela apareceu atrás da Harbinger, “eaqui.” Mais quatro apareceram sobre as outras Serpas, “e em toda parte!”“Eu odeio quando você faz isso.”“NÓS SABEMOS!” Todas as Ally responderam juntas, como um coro decrianças feitas no inferno.“Então, General Aino também está–”“Morto. Aham, mortinho da Silva.” Ally respondeu.Não havia pesar no rosto da Harbinger, mas surpresa.“Como ele pôde não perceber o que estava acontecendo? Ele podia serincompetente em seguir ordens, mas eu não acredito que ele fosse cego obastante para não ver uma comoção como aquela se formando sob aquelanapa que ele chamava de nariz.”“Ah, o tal do Aino morreu faz bastante tempo na verdade. Aquele cara nocamarote era um impostor.” Ally disse como se aquilo não fosse nada demais“... o quê?”“Você foi embora da festa muito cedo: depois que você declarou a guerrinhae blablabá, a mulher de rosa começou a meter bronca em todo mundo,incluindo no cara que você achava que era o General Aino. O nome dele éKahsmin.”A Harbinger da Morte devia mudar o nome para Harbinger da Incredulidade:poderia jurar que aquele homem era General Aino. Não era nada diferente doque ela se lembrava.De repente, sua mente ligou os pontos: se General Aino estava morto, então...“Tuonela não pertence aos D’arlit.”“DING DING DING! Sabia que você não era tão burra! Acho que não tinhaveneno na bebida dele aliás, mas não faz diferença, acho, só acho, que aquelamulher legal do cabelo rosa vai escalpar ele vivo.” Ally disse animada,

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cantarolando e olhando para cima.“Mas... Caleb não estava lá.”“Não.” Ally respondeu. “Uma pena, ia ser legal ver vocês dois juntos.” Allydisse, rindo com gosto da raiva no rosto da Harbinger ao ouvir aquilo. “Vocêfez o que eu pedi para fazer antes de ir para Tuonela?”“Eu tentei, mas não havia nada lá quando eu cheguei.” a Harbinger disse.Ally deu um tapa na testa depois de ouvir aquilo.“Sua boçal, eu escrevi que o lago só aparece na lua cheia, não é pra ter nadaalém de clareira lá, você achou ela, cabeçuda?”Ela tinha que usar um autocontrole nunca usado antes para aguentarconversar com aquela peste sem tentar afogá-la ou explodi-la.Por fim, tirou um rolo de papel que Ally havia dado para ela alguns dias atráse disse: “Achei.”Ally sorriu, como toda criança de dez anos faz quando descobre que seusplanos malignos estão dando frutos.“Você sabe o que vai encontrar lá, na hora certa, né?”A Harbinger assentiu.“Tem certeza? Você não é muito brilhante, sabe.”“Não. Ataque. Não. Ataque...” a Harbinger dizia mentalmente.“Tenho.”“Tá bom: vamos pro seu quarto, ele tem uma vista legal, e eu gosto de vistaslegais quando planejo ataques.”A Harbinger ergueu uma sobrancelha.“Ataques?”Ally pulou alto, dando vários mortais de costas no meio da noite, até cairsobre os ombros da Harbinger: seu sorriso era travesso, mas seus olhosestavam pegando fogo.“Um ataque, sob medida, para Tuonela e, principalmente, para CalebRosengard.”

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Capítulo 25

“Nunca pensei que me despediria desse jeito...”A quarta hora da manhã se aproximava e, por isso, era de se esperar que acidade dormisse sob seu teto impenetrável de pedra e terra, despindo-se detodas as lembranças ruins, fabricadas com capricho e esmero em uma única elasciva noite, para que pudesse vestir-se de sonhos agradáveis que guardavamdentro de seus travesseiros.Sim, era de se esperar, mas não queria dizer que era o que estavaacontecendo.“Na verdade, nunca sequer pensei que me despediria.”Um homem, em um dos pontos mais altos da Catedral de Tuonela, mantinhaos olhos fixos no telhado, embora não estivesse vendo as imperfeições namadeira ou as marcas de insetos vivendo e se alimentando do forro.Não estava vendo nada, mesmo de olhos abertos.Apenas ouvia os pensamentos de uma cidade inteira: nem todos o culpavam,mas os que o faziam eram cruéis em seus julgamentos e, por isso, preferiadesviar sua atenção antes que ficasse preso numa espiral descendente infinita,onde todas as acusações verdadeiras se misturavam com meias verdades e,por tabela, meias mentiras.O que era ainda pior pois, depois de um tempo, ele não conseguiria maisdistinguir o que era e o que não era verdade sobre seu próprio caráter.Talvez fosse mesmo um covarde. Talvez estivesse acomodado na suamentira.Talvez até gostasse da ideia de ser um D’arlit.Ele balançou a cabeça com força, esparramando essas ideias pelo chão,esperando que elas não criassem patas de aranhas e começassem a escalar suacama para invadir seu cérebro pelos ouvidos.Os que não o culpavam partilhavam o desejo frustrado de fugir: a ideia seriagenial, se houvesse um único lugar seguro em todo o continente.“Aqui sempre foi a minha casa. Bem, quase sempre.”Se ainda houvessem navios funcionando decentemente no cais, talvezpudessem deixar Tuonela e partir para as ilhas além do continente: poderiamcomeçar suas vidas novas entre povos diferentes: talvez até fossem bemvindos, talvez encontrassem Alaia e os anjos além de Mångata.

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Se apenas houvessem navios...E se soubessem que os D’arlit não os afundariam.Os relatos eram claros como o sol da meia noite: havia um perímetro denavios dos D’arlit cercando a maior parte do continente, prontos para abaterqualquer navio que não tivesse a ordem direta de Allenwick D’arlit paracruzar a fronteira.Os poucos lugares que não haviam sido maculados pela presença dos D’arliteram aqueles perigosos demais para serem cruzados: lugares onde as coisasdesapareciam sem motivo, onde os demônios marinhos cultivavamtempestades sem fim, capazes de engolir embarcações maiores que Tuonelainteira.“Bem, talvez aqui sempre vá ser minha casa, afinal. Eu só nunca quis medespedir da–”Guerra. Era isso que o grupo menor de pessoas que ele ouvia estava adiscutir: eles queriam vencer, eles queriam se agarrar à cada pedacinho devida com toda a força e paixão que um ser poderia sentir de uma vez só.Ou não, talvez não fosse nada disso que quisessem: podia estar desesperado,mas não louco: sabia que as vozes que ouvia não passavam de suaimaginação julgando sua própria incompetência.Mas algumas vozes eram reais.Estava tentando, havia algum tempo, ignorar a vida óbvia que vasculhava acatedral de Tuonela: não os ratos e insetos que viviam vidas secretas em seusmundos minúsculos.Mundos dentro de mundos que humano algum jamais explorara e jamaisexploraria: mundos onde guerras e medo de suas consequências não faziamsentido. Mundos sem governantes tiranos a serem temidos, nem covardes aserem apedrejados, havia só a vida secreta nas cavernas ocultas da catedral deTuonela.Não, não era essa vida que tentava ignorar: tinha certeza de que, já faziaalgumas horas, um jovem solitário resolvera observar as estrelas através dostelescópios nas torres mais altas da catedral, e não era a primeira vez; haviaAutumn e seu quê impenetrável, dentro do campanário; havia alguns gruposde garotos nas salas de instrumentos e quadros, nenhum ciente de que o outroexistia.Nenhum ciente da vida secreta nas paredes da catedral.Mas todos tinham vozes bem reais, que, como a bruma, atravessavam asparedes ocas da catedral.

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Todos estavam absortos em seus próprios mundos: preocupações; criações;façanhas; histórias incríveis sobre diários com facas; garotos no dormitóriodas garotas; principalmente, histórias sobre como uma garota nova pulou nosbraços da Harbinger da Morte nas últimas horas.Mas, cedo ou tarde, os risos paravam, as histórias passavam por umatransição sutil de cômicas para sérias e, no final, todas convergiam em umadireção em comum.Lutar contra os D’arlit.Nada poderia ser mais suicida que esta ideia, mas lá estavam eles, um bandode jovens discutindo como o fariam, quem os treinaria, quem lideraria quem,quem atacaria, quem ficaria na linha de frente, quem teria a pior morte?A resposta para a última pergunta era sempre a mesma: A Harbinger daMorte.Ele conhecia aquela catedral como um pai conhece o filho (antes daadolescência), sabia que quartos continham o que, e sabia que som elesfaziam quando estavam sendo usados, mas esta era a primeira vez que sentiaa igreja vibrar com o vigor das pessoas ocupando as salas.Era como se ela própria ganhasse vida, se excitasse com a ideia.Por um segundo, Kahsmin imaginou se a vida secreta nas paredes da catedralpoderia assistir a este incrível mundo novo e sentir o mesmo entusiasmo queaqueles jovens, ansiosos por justiça, sedentos por vingança, ou se só olhariamde relance para eles e depois continuariam suas vidas banais em busca decomida e água.Parte dele queria se juntar ao grupo que acreditava na causa.Parte dele, odiava admitir, desistira havia mais tempo do que se atreviacontar.“Nunca quis me despedir da esperança de tornar esta cidade um lugar seguropara todos os tipos de pessoas. Humanos, mestiços...” Kahsmin não terminousua sentença, se distraiu ao agarrar um retrato velho, mas sem sinais depoeira, que jazia sobre o criado mudo, ao lado de rosas cada vez maismurchas.Um retrato doce que nunca falhava em fazê-lo sorrir e chorar ao mesmotempo.“Mas parece que agora vou ter que me despedir de qualquer esperança,Meggie.”O retrato de sua filha sorridente o olhou complacente, como se o riso dissesse“Tudo bem papai, você fez o seu melhor, você sempre faz!”

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“Obrigado, Meggie.”De todas as vozes que a cidade projetava na cabeça de Kahsmin, ou mesmoas que reverberavam entre as paredes, nenhuma delas o agradecera peloimenso trabalho que teve para manter a cidade inteira escondida e protegidanos últimos dezoito anos.Apenas a voz inexistente da filha. Ainda assim, era difícil ouvi-la, porque elepróprio tinha que imaginá-la.Ele sentiu uma nova dor, uma das mais fortes que já o atingira: não conseguialembrar como a voz da sua própria filha realmente soava: talvez fosse alegre,talvez tivesse a voz ardida, igual a da mãe, ou suave e limpa como a delequando era mais novo, antes de começar a falar com voz de marinheirobêbado.Mas não podia saber: não havia um resquício de lembrança relacionado à vozdaquela menina engavetada em sua mente.Sentiu uma pontada diferente de tristeza (tinha gosto de nostalgia amarguradae envelhecida) ao perceber que, talvez, se não fosse pela foto que guardava,também já teria esquecido o rosto da própria filha.Talvez, se afastasse-se o bastante, por tempo o suficiente, também esqueceriade Tuonela. De como fugira de seu mundo e a adotara como cidade nataldepois que descobriu o monstro que seu pai havia se tornado, de comosempre soube que seu desejo pelo bem estar dos outros viria a fazê-lo guiartoda aquela gente um dia.Também esqueceria que havia guiado a todos para a morte.Não, ele não havia feito isso: era apenas apontado como culpado. Se todostivessem seguido o plano, nunca suspeitariam que Tuonela abrigassemestiços, ou que não eram aliados dos D’arlit. Não foi por culpa dele queforam descobertos. Foi a menina nova, Wendy, que fez isso.Sua raiva da menina veio tão rápido quanto se extinguiu: queria ter acapacidade que Autumn tinha para odiar as pessoas, aquela menina emespecial, ainda mais agora que tinha um motivo decente para isso, e não sósuspeitas.Mas ninguém se atreveria a dizer que ela era culpada pelo que aconteceu.Para o júri, ele era o réu, e continuava culpado.Só restava aguardar sua sentença.“Eu fiz o melhor que pude, não é, Meggie?”“Kahsmin, eu JURO: se você não parar com esse monólogo infeliz nesteinstante eu vou fazer você engolir TODAS as minhas facas e tirar elas de

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você da forma mais dolorosa que eu puder imaginar.” Autumn disse,aparecendo nas sombras do quarto dele.“Eu não ouvi você bater, Autumn.” Ele disse, colocando o retrato de Meggiede volta sobre o criado mudo.O que não esperava era que Autumn o erguesse pelo colarinho e o jogassecontra a parede mais próxima: as costas bateram primeiro, então a cabeça,depois só sobrou o deslizamento involuntário para o chão.“Você está louca?!”E um tapa na cara, para aprender a não falar sem permissão.“Você é o homem que, dezoito anos atrás, livrou Tuonela do verdadeirogeneral Aino e os mais de mil D’arlit que deveriam colonizar a cidade,certo?”Ele não respondeu: sequer estava certo de que tinha entendido o que ouvira.“É um pergunta de SIM OU NÃO SEU COVARDE IDIOTA!”Uma lição que Kahsmin aprendeu com a vida: é preciso de muito para fazerAutumn perder a paciência e começar a gritar. O episódio com a Harbingermais cedo foi um bom exemplo disso. Igualmente importante, era semprebom, para sua integridade física, fazer a vontade dela quando ela estavazerada em paciência.“Sim.”“Código Morse, astúcia, e um plano. Foi isso que usou, não foi?”“E alguma ajuda.”Ela era um quadro vivo e pulsante: seu corpo perfeito, exalando vida, raiva eperfume de mulher, era apenas uma silhueta enegrecida, prostrada entre ele eo céu já índigo, que jazia recheado com estrelas e desejos, raios de luatransbordando pelas bordas e sombras de pássaros batendo asas ao fundo: obatente da janela era uma moldura indigna de um quadro tão belo.“Qual foi a primeira medida que tomou depois que se livrou deles?” Autumncortou.“Que todos aprenderiam a lutar.”Ele imaginou um sorriso no rosto de Autumn ao ouvir aquela resposta, sóimaginou.“Que mestiços, demônios e humanos, todos aprenderiam a lutar e se defendere defender a cidade de Tuonela quando a hora chegasse.” Ela completou.“Certo.”“A cidade acolheu este decreto de bom grado e você foi, nesse tempo, apessoa mais respeitada de Tuonela, Kahsmin. Sabe por quê?”

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“Não.” Ele não ia responder que sim, apesar de uma parte dele ter uma vagaideia da resposta, uma que ele não sabia como verbalizar. Só se dava aotrabalho de responder porque não queria acabar com uma faca entre os olhos.“Nos primeiros meses depois da guerra, você tornou-se um símbolo: o povovia você como uma tocha de esperança no meio de uma ilha submersa dedesolação. Eles se agarraram em você como eu me agarro ao silêncio, e eles ofizeram pois achavam que você os guiaria para a vitória contra os D’arlit.”“Foram dois anos erguendo uma cidade nos túneis subterrâneos de Tuonela,duas visitas de Neri neste mesmo tempo: alguns esperavam que você selivrasse dele, do mesmo jeito que fez quando vieram colonizar a cidade, euinclusa. Ao invés disso, você se passou por Aino e manteve todos longe dacidade.”Kahsmin tentou se justificar:“Precisávamos ganhar tempo, a cidade ainda não estava pronta e–”“Eu concordo.”Duas palavras nunca o deixaram tão confuso como neste instante.“Como é?”“Eu concordo: se tivéssemos eliminado os D’arlit naqueles dias, não teríamoschance na guerra que se seguiria. Ninguém estava preparado para lutar alémde mim e o palhaço do Caleb. Dois não ganham contra um exército.”Kahsmin não tinha ideia do que ela estava falando: alguns dias atráspresenciara Autumn lutando sozinha contra um exército dos D’arlit, e o únicolado com baixas havia sido o deles.“Jussarö não mandou um exército contra mim.” Autumn disse, como se lesseo pensamento dele, “eram apenas demônios que viriam colonizar a cidade,como os que você tirou de Tuonela.” Ela suspirou, exausta de uma forma queele nunca a viu fazer, “Kahsmin, espero que grave bem o que vou dizeragora, porque eu nunca mais repetir estas palavras.”Kahsmin se alinhou, ainda sentado no chão, dirigindo toda sua atenção para asilhueta de Autumn.“Se não tivéssemos fugido de Jussarö, eu não teria aguentado aquilo pormuito tempo.”Ele não podia ver a si próprio, mas teve certeza de que seu queixodespencando traduzia bem a incredulidade que sentia ao ouvir aquilo.Aos poucos, porém, ele ligou os pontos: se lembrava de vê-la montada naSerpa, dizendo que estava indo embora por não conseguir mais encontrarsuas facas, enquanto ele via claramente que ainda havia várias delas presas na

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cintura dela.Também não parava de tossir desde a visita a Jussarö, mas nunca, emmomento algum, Kahsmin havia considerado que ela pudesse perder. Muitomenos considerado que se preocupasse com isso.“Feche a boca antes que eu enterre um punho nela.” Ela disse, se virando emdireção ao céu que não podia ver, fazendo o quadro que Kahsmin imaginaramais cedo ganhar um tom misterioso e– “Nem. Pense. Nisso.” Elaacrescentou.Kahsmin desviou os olhos dela, engolindo seco.“No segundo ano do ressurgimento de Tuonela, eu e seu amigo ainda éramosos únicos que poderiam lutar contra os D’arlit, e nós lutaríamos, mas seriainútil e Tuonela cairia para sempre desta vez.” Autumn continuou numamistura de alegria e receio. “No terceiro, quarto ou no quinto, até o sétimoano, atacar os D’arlit teria sido suicídio.”“Talvez, ainda hoje, seja suicídio, mas–”“Onde quer chegar? Vai dizer que eu condenei a cidade e que sou umcovarde e–”Houve um som agudo como um diapasão vibrando no seu ouvido, junto comuma mecha grande de seu cabelo castanho caindo sobre sua mão direita, suorfrio escapava de seu corpo.Autumn havia enfincara uma faca na parede, bem ao lado de sua orelha.“Nunca mais me interrompa.” Ela murmurou o mais grave que sua vozcontralto permitia, “Tuonela chegou ao ponto onde não há mais comoavançar sem enfrentarmos o inimigo. A cidade inteira sabe. Temos o melhorexército que as circunstâncias nos permitem.”“E sabe porque nenhum membro deste exército impediu a Harbinger daMorte esta noite, Kahsmin?”“... não.” Mentiu Kahsmin“Sim, você sabe: ninguém fez nada porque, mesmo com mais de uma décadade treino, lutando entre si, você nunca os fez ir para uma luta de verdade,sequer se pronunciou a respeito de enfrentar os D’arlit.”“Como você acha que seu povo entendeu isso, Kahsmin? Não, não responda”ela o cortou quando ele fez que ia dizer algo “eu digo: eles desconfiaram quevocê não os considera bons o bastante. Você, que foi o símbolo de esperançadeles, agora não confia que seu próprio povo pode fazer a diferença.”“Eles aceitaram isso como verdade.”“Não.” Kahsmin interrompeu, “não aceitaram, a maioria deles dizia queria

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que eu mesmo declarasse a guerra e–”“SIM, SEU INÚTIL, mas não queriam que declarasse a guerra poracreditarem que estavam prontos para lutar, Kahsmin, queriam que VOCÊdeclarasse a guerra porque isso ia significar que VOCÊ, que guiou TODOSeles, acreditava que podiam vencer. Era a SUA aprovação que faria adiferença, pois é em VOCÊ que estas pessoas se espelham!”“Isto é ridículo. Kristell esteve aqui dias antes dos D’arlit nos visitarem, e eladisse que sabia que estava mais que pronta, ela não ‘se espelhava em mim’como você disse.”“Não, Kahsmin, não mesmo, e por isso ela foi a segunda e última a atacar.”Autumn apontou, e Kahsmin ficou perplexo com aquela lógica. “Você seperdeu na comodidade da sua mentira, e por isso sacrificou a confiança queTuonela tinha em você e neles próprios. Este é o tipo de erro imperdoável quelíderes cometem: eles se esquecem que todas as suas ações serão refletidaspor aqueles que os seguem.”“O reflexo implícito deste comportamento foi revelado esta noite: vocêtreinou quase toda a cidade, mas nunca os deixou lutar. Eles acham que vocêos julga incapazes e por isso eles adotaram o mesmo julgamento sobre simesmos. Reflexo do líder.”“No final, você criou um exército de covardes.”Ele esperou Autumn dizer algo mais. Quando o silêncio começou a ataca-lo,ele se pôs a falar: “Eu queria protegê-los.”“Nenhuma proteção é real se você vive com medo.”“Quê?”“Se a proteção fosse real, você e a cidade não teriam medo, seu imbecil.Devolva minha faca.” Ele obedeceu, tirando, com mais esforço que gostariade confessar, a faca da parede e passando-a para sua dona. “Nenhumaproteção de verdade é forjada com mentiras.”“E o que você queria que eu fizesse? Decretasse eu mesmo a guerra e guiassetodo mundo para a morte?”Autumn fez um barulho de reprovação com a boca, como se, por dentroquisesse gritar algo do tipo “POR QUE EU TENHO QUE ESTAR JUNTOCOM ESSE IMBECIL?! POR QUE POR FAVOR ME DIZ POR QUÊ?!”“Seu palerma idiota, a guerra era INEVITÁVEL! Ou você acha mesmo queseu disfarce perfeito nunca viria a ser descoberto?”Kahsmin ficou paralisado com a pergunta: a verdade era que, ano após anos,cada vez mais o avanço de sua idade o preocupava: Neri e os outros D’arlit,

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como todos os demônios e anjos, pareciam levar uma eternidade paraenvelhecer, enquanto ele próprio tinha mudado até demais: rugas surgiram,peso extra roubou espaço nas suas roupas, alguns fios brancos de cabelo seescondiam nas longas mexas castanhas. Neri sempre percebia comestranheza, mas Kahsmin tendia a desviar sua atenção, com diminutafacilidade.“O que teria feito a diferença, Kahsmin, era você mesmo ter declarado aguerra, e não deixar que o inimigo o fizesse. Teria inspirado confiança, teriaelevado seu valor como líder, teria salvo vidas esta noite.”Kahsmin não sabia o que dizer: nunca, em toda a sua não tão longaexistência, Autumn havia tido uma conversa daquela calibre com ele, muitomenos confessado uma fraqueza. Embora ainda fosse violenta e ofensiva, elenão conseguia reconhecer a Autumn que o humilhou na frente de toda acidade horas mais cedo naquela mulher.“Há uma solução, Kahsmin.” Autumn disse por fim, se virando de volta paraele, “fique em pé, como um homem.”Ele obedeceu, se levantando devagar, deixando a mecha de cabelo que caírasobre sua mão direita se esparramasse, sabendo que se arrependeria maistarde, quando fosse limpar o chão.“Traga o Kahsmin de dezoito anos atrás de volta, aquele que foi corajoso obastante para enfrentar seus piores inimigos no pior dos tempos. Deixe aquelemesmo Kahsmin, que a cidade aprendeu a respeitar, guiá-los contra osD’arlit, e faça-o como fez da primeira vez.”“Como um vencedor.”Ela estava bem perto dele quando deixou as palavras escaparem os lábios.Toda sua noção do tempo se perdeu: Autumn já o chamara de muitas coisas:covarde, inútil, babaca, fracassado, frangote, maricas, fraco, imbecil, idiota,patético, e a lista seguia por quilômetros de distância.Mas nunca... nunca em toda sua vida, ouvira Autumn o chamar de vencedor.A ideia o agradava mais que... ele não conseguia pensar em nada que sequerchegasse perto de ser tão agradável quanto ouvir alguém como ela desferirum elogio a ele.E isso não fazia o menor sentido: apenas algumas horas mais cedo ela pareciadisposta a arrancar a língua dele e usar para fazer... ele realmente não queriasaber para que ela usaria uma língua decepada.Quando voltou a si, Autumn estava quase toda submersa em sombras numaparede.

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“Espere.”Ela parou, mas não fez nenhuma menção de se virar.“Você quer que eu seja um vencedor, mas me expôs como um verme inútil nafrente de todo mundo! Por que não ficou quieta? Como eu vou inspirarconfiança depois do que você disse? E por que está tendo esta conversaagora?!”Autumn entrou mais fundo nas sombras, mas sua cabeça se virou com aleveza do farfalhar das folhas do outono. Sua voz chegou o mais perto que aestação mais mortífera do ano podia chegar da doçura quando ela disse: “Euquero que você prove que estou errada.”Só então ela sumiu nas sombras.Ele não sabia dizer quanto tempo ficou ali, sem reação, depois que ela se foi.Aquela havia sido a conversa mais irreal que já tivera com Autumn: foi comose ela realmente se importasse. A maior parte dele esperava que nãoacontecesse de novo.No entanto, depois de puxar as cobertas sobre seu corpo, não conseguiu pararde coçar mentalmente uma pequena comichão que se formou dentro do seupeito e ameaçava espalhar-se por todo seu corpo.Uma comichão feita da vontade de provar que Autumn estava errada.Estava quase dormindo com essa ideia na cabeça, quando batidas na porta odespertaram de seu meio sono.“Quem é?” Murmurou.“Hakasalo.” A voz de seu primo soou sonora e grave do outro lado da porta.“Achei que tinha voltado para Bric-à-Brac–”“James sumiu.” Hakasalo o cortou.

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Capítulo 26

“Meu reino por uma massagem.” Foram as primeiras palavras de Wendy nonovo dia.Ela tentou se levantar, mas duas coisinhas a impediram: Um: Tudo no seucorpo doía, suas roupas doíam, até a cama doía.Dois: Kristell estava com o braço enroscado no seu pescoço, e quando digo“enroscado”, quero dizer do mesmo jeito que os dedos de Wendy enroscavamno cabelo quando ela tentava penteá-lo de manhã.Pelo menos, quando ela tinha cabelo para isso.Foi só quando sua cabeça voltou a latejar que se lembrou o que tinhaacontecido: lembranças da princesa D’arlit usando sua cabeça pra amaciar ochão, Kristell salvando sua pele, depois Autumn salvando sua pele, e...Tupã estava morto, assim como Tupim e as outras crianças.De repente, não queria mais a massagem, nem o café da manhã, ou sair dacama.A Harbinger da Morte ainda estava viva e era tudo sua culpa. Foi o quedescobrira antes de dormir: “Me recuso a crer que a soma de nosso empenhofora alijada por sua amiga.” Edgar dizia, e Wendy fazia uma nota mental paradescobrir o que “alijar” significava.“Não foi culpa dela. Ninguém avisou que a gente tinha um plano.” Kristelldefendeu.“Porque nunca me ocorreu que alguém seria néscio e imponderado o bastantefazer o que ela fez. Nós nunca teremos outra chance.”“Pelo menos os outros D’arlit beberam.” Kris respondeu.“Os demais são desprovidos de qualquer valia em comparação à princesaD’arlit. À esta altura, ela já obteve ciência da tentativa de envenenamento àqual quase se vitimou. A situação apenas há de degradar no tempo presente.E a culpa é–”“Não se atreva a culpar Wendy por isso, Edgar.” Kristell o cortou como umfuzil, num tom sombrio que quase se assemelhava ao de Caleb. “Ela foi aúnica que fez o que a cidade inteira deveria ter feito.”Kris a defendera, e só fez Wendy se sentir pior.“Desculpa ter estragado tudo.” Wendy disse quando Kristell foi pro quartocom ela.

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“Você não–”“Eu ouvi o Edgar, eu sei que eu estraguei a melhor que a vocês já tiveram dematar a Harbinger da Morte, eu estraguei tudo.” Ela dizia entre soluços maispesados e doloridos que os hematomas no seu corpo. “Aquelas crianças aindaestariam brincando agora se eu não tivesse sido idiota e–”Kristell colocou o indicador sobre os lábios de Wendy, silenciando-a.Os soluços pararam, as palavras também, e só sobrou a quietude agitadacomo a maré dos mares de Tuonela.Só quando a correnteza enfraqueceu, Kristell voltou a falar, e quando ela ofez, teve certeza de colocar o sorriso mais carinhoso que conseguiu no rosto.“A culpa foi minha. Se eu tivesse contado o plano, isso não teria acontecido.É que eu pensei que você fosse contar pro Kahsmin ou pro Caleb ou praqualquer um que pudesse estragar tudo. Desculpa não ter confiado em vocêpra isso.”Kristell era a pessoa mais fofa que Wendy podia imaginar, e olha que aimaginação dela era bem fértil. Mesmo assim, as palavras da amiga nãoajudaram a melhorar seu humor.Kris percebeu, e por isso acrescentou: “A irmã Sarah ficaria orgulhosa devocê.”Seus olhos arregalaram, sem entender.“Por que você tá falando isso?”“Porque você aprendeu esse negócio com ela: ela sempre dizia que a gentetinha que defender tudo que a gente acreditasse ser certo, e você era a quelevava isso mais a sério, lembra? Você sempre entrava no meio das brigas daDana com as meninas mais novas e até defendeu a Cora quando a irmãRomena encrencou que ela tinha roubado a touca de dormir dela!”“Qualquer um teria feito–”“Nem uma criança de dez anos fez, só você, e a irmã Sarah sempre ficavaorgulhosa por isso. Dizia que tinha ensinado você muito bem.”“Mas isso é diferente!” Wendy quis gritar, mas não conseguiria fazê-lo, nãocom Kris.De novo, a quietude agitada perpassou entre as duas, levando-a para asalturas e profundezas de seus próprios pensamentos, ensopados na espumasalgada da vulnerabilidade que ameaçava afogá-la e enterrá-la nasprofundezas de sua culpa.Kristell estava exausta, e isto estava escrito no seu rosto como o título de umlivro está escrito sobre a capa. Wendy queria que a amiga descansasse, mas

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Kristell era um título persistente e ainda tinha algo para dizer, como todo bomlivro: “Lutar com princesinhas mimadas porque elas tavam batendo em genteinocente sem motivo faz parte da sua história, não sei como essa noite foidiferente das do orfanato.” Ela disse, se enterrando no travesseiro. “Você foiincrível, Wendy, e se você não acredita que a irmã Sarah ficaria orgulhosa,pelo menos saiba que eu fiquei. Dorme bem amiga.”“Boa noite, Kris.” Wendy retribuiu, sentindo o peito bem mais leve.Enquanto Kristell caía no sono, Wendy ficou ali, sentada, voltandomentalmente para o dia em que chegou à Tuonela.Podia ser uma hora estranha para pensar nisso, mas ela estava se sentindo tãoculpada quanto qualquer ser (quase) humano poderia se sentir, porém agoranão era por ter estragado o plano da Kris.A culpa que sentia agora era por uma memória que estava presa há algunsdias no passado, quando a perfeição élfica (Caleb) a tirou do orfanato. Nessedia, Caleb disse que a Chris estava esperando Wendy em Tuonela.Isso mesmo, a culpa que sentia era por se lembrar da decepção que preencheuseu ser quando descobriu que a “Chris” que Caleb citou no Orfanato dasNeves era “Kristell”, não “Christina”.Wendy havia vivido muito mais com Christina que com Kristell e Mary: asduas fizeram as melhores travessuras, roubaram os melhores doces edividiram as melhores memórias juntas. Ambas eram confidentes uma daoutra: Wendy sempre fazia Christina sorrir quando esta acordava melancólica(frequente), e Christina sempre acalmava Wendy quando ela achava que iamser pegas no meio de alguma trama (mais frequente ainda).Mas Christina nunca teria feito o que Kristell fez: nunca teria sido tãocalorosa e indulgente a ponto de fazer Wendy se sentir bem consigo mesmacomo Kris fazia.Muito menos diria que sentia orgulho. Não era a cara da Chris.“Obrigada por tudo, Kristell. De verdade.” Murmurou para amenizar a culpa.Kristell roncou de volta, fazendo Wendy fazer o impossível naquela noite: rir.Voltando para hoje, Wendy tentou se desvencilhar do braço de Kristell, maso resultado foi: “Fica comigo, amor.” Kristell disse, apertando Wendy maisforte contra o próprio corpo.“Kris, eu não sou o Edgar.”Insira silêncio constrangedor aqui.“Oi Wendy.”“Oi Kris.”

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“A cabeça tá melhor?”“Um pouco, e sua perna?”“Também.”“Legal, será que você podia me soltar?”“Ah sim, claro.”Kris não se mexeu.Insira outro silêncio constrangedor aqui.“Kris?”“Meu braço dormiu!” Ela respondeu, com a voz abafada pelo travesseiro.

Mesmo com Kristell ao seu lado, agora que ela estava livre dos ensaiosconstantes da peça dos D’arlit (Edgar estava super feliz por ela não teracontecido), Wendy achou a atmosfera da cidade subterrânea pesada elúgubre como um funeral.Elas não falaram muito enquanto caminharam pelas ruas desérticas,parecendo terem assinado um acordo não escrito que dizia: Façam silênciopara honrar as vidas perdidas no dia anterior.Luto espontâneo.Kristell talvez pensasse só nas duas crianças de ontem, Wendy pensava emTupã e suas últimas palavras, “Traga a luz”, ecoavam em sua cabeça à cadapasso que dava pelas ruas da cidade.Quando se aproximaram da Taverna do Fim dos Tempos, Wendy viu o túnelque se abria logo acima do estabelecimento: foi aquele túnel que a levou até atribo de índios canibais vegetarianos, onde conheceu Tupã.Sua boca secou como uma lembrança decantada nas areias do tempo.Embora não fizessem nem dez dias que ela o havia conhecido.“Eu não esperava que estivessem abertos.” Wendy disse, quando viu asportas.“Você leu a placa: Fechamos no fim dos tempos.” Kristell recitou.“E depois das oito nas terças.” Wendy completou.Sim, eles estavam abertos, com todas as mesas e seus relógios perfeitamentetalhados, um mais diferente do outro: alguns sem números, alguns semponteiros. Wendy nunca havia reparado no tique toque constante naquelelugar.Provavelmente porque nunca tinha entrado na taverna vazia.“Cadê todo mundo?”

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“Sei não, a gente vai ter que se servir.” Kristell disse.Wendy não esperava que fossem encontrar comida no lugar deserto, masdescobriu que havia uma mesa generosamente abastecida com as variedadesmais incríveis de café da manhã que já vira.Quando estavam acabando, Wendy se deu conta: “A gente vai sair sempagar?”“Wendy, a gente não paga.” Ela disse, levando sua última garfada de comidaaté a boca.“Por quê?”“Porque a gente não tem dinheiro.” Kristell disse, usando uma colher deespelho enquanto arrumava o cabelo restante.“Mas isso é roubo, não é?”Kristell desviou o olhar para Wendy, confusão veio e se foi num piscar deolhos.“AH! Eu não te falei!” Sua voz ecoou pela taverna vazia, “a gente não usadinheiro em Tuonela. A gente simplesmente se ajuda, acho que por isso ascoisas dão tão certo por aqui.”“Como é?”“É assim olha: a gente sempre come na Taverna do Fim dos Tempos porqueeu e a galera da trupe sempre ajudamos o dono com qualquer coisa que elepede, e também porque o entretenimento que a gente faz conta comotrabalho. Então a gente simplesmente desfruta do trabalho um do outro.Mesma coisa no Empório da Tentação, o lugar que a gente pegou essasroupas legais que você tá usando.”Kris disse, apontando para as roupas de Wendy.“É sério?”“É, foi ideia do Baldo, o cara que mandava na cidade antes do Kahsmin, temsido assim desde então.”Wendy não tinha ideia de como aquilo podia funcionar, mas se ajudava ela atomar café da manhã, ótimo. Ambas fizeram um segundo prato, ainda maiorque o primeiro.Ela queria continuar conversando com Kristell sobre o estranho isolamentodas duas na cidade subterrânea e como era vazio olhar para um lugar tãogrande e serem as únicas lá dentro, era solitário como se fossem as últimas airem embora de uma festa que havia acabado há muito tempo.É, ela queria continuar esta conversa.Mas para a dita conversa fazer sentido, elas teriam que estar sozinhas.

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No entanto, por mais que Wendy não visse ninguém além de Kristell, elapodia sentir que não eram as únicas ali, da mesma forma que sentiu o artornar-se pesado com a presença dos demônios que a perseguiram na noiteque encontrou o Lago Viajante.Alguém estava ali, e não queria ser visto.“Kristell–”“Eu sei, continua comendo.”Wendy não viu quando aconteceu, mas estava falando com Kristell demônioagora.Comendo sem olhar para o prato, viu que os olhos lívidos de Kristellrastreavam toda a extensão Taverna atrás de Wendy. Sua respiração soavalenta e pesada no vazio do recinto, os músculos de seus ombros e braçosretesaram, dedos de uma mão tamborilavam na mesa enquanto a outra levavauma última garfada à sua boca.“Isso é normal?” Wendy perguntou, mais porque queria quebrar o silêncioque para saber a resposta.Kristell não respondeu, apenas empurrou o prato devagar sobre a mesa,deixando o vidro branco ranger contra a madeira, como se o barulho fosse umpresságio de má sorte para quem quer, ou o que quer que estivesse rondandoali.“O que vocês tão fazendo–”Kristell pulou sobre ele como uma onça famigerada: sorte dele ela ter paradohá tempo.“Fawkes?” Wendy disse, correndo até ele enquanto Kris saía, contra avontade, de cima dele, ainda com olhar feroz grudado no rosto garoto.“Pra que foi isso?!” Ele perguntou, se colocando de pé tão rápido quanto suaspernas e orgulho permitiam, limpando as mangas do seu moletom preto. Acicatriz brilhava sépia escarlate sob a luz amarelada do lugar.Ninguém respondeu de imediato: Wendy ficou olhando para ele como sehouvesse um pequeno detalhe diferente nele, embora ela não conseguisse vero que era; é a mesma sensação que você tem quando um amigo corta o cabeloe você sabe que ele está diferente, mas não sabe porquê.“Achamos que você fosse outra coisa.” Wendy disse por fim. “Cortou ocabelo?”“Não. E o que acharam que eu fosse?”“Não sei, a gente sentiu uma coisa estranha aqui dentro. Achamos que tivessealguém ou alguma coisa espreitando, aí você apareceu... você fez a barba?”

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“Eu nunca tive barba. E não senti nada estranho por aqui. Não eram Capitão eTerror?”“Acho que não.” De repente, Wendy sabia o que estava estranho nele,“Fawkes, por que você tá usando um tapa-olho?”Kristell desviou o olhar para ele pela primeira vez e, em um seguida, deu overedicto de seu julgamento sobre o novo visual de Fawkes: um girar deolhos e um bufar pesado que dizia “que ****** ele tá aprontando agora?”“Achei estiloso, faz a cicatriz parecer mais legal.” Ele disse.Kristell bufou de novo e disse com a voz mais contrariada que Wendy já aouvira usar: “Me desculpe por isso.” Ela disse, apontando a cicatriz.“Tudo bem, eu já acostumei.”“Você fica mais bonito com ela.” Wendy QUASE disse, quase, mas deteve-se, pois junto com o fato de Fawkes ficar muito mais gato com aquela marcano rosto, veio a lembrança dele dizendo que Wendy havia cometido um erroao beijar o Caleb.“Você sabe cadê todo mundo?” Kristell perguntou, com todo o contragostoque uma ex-namorada pode dirigir à o ex-namorado.“Lá em cima, Kahsmin tá se pronunciando sobre a guerra, mandado a cidadese preparar pra derrubar os D’arlit ou coisa assim.”“Sério?!” Kristell perguntou, trocando sua animosidade por raiva. “Aquelemesmo Kahsmin que não deixou NINGUÉM FAZER NADA contra osD’arlit agora tá querendo liderar a guerra?!”“Acho que ele não tem muita opção agora que a Harbinger declarou a guerra,e parece que a Autumn xingando ele na frente da cidade fez ele acordar,porque ele falou muito bem lá em cima.” Fawkes disse com um dar deombros tão típico de adolescentes indiferentes que Wendy quase conseguiuimaginar o pai dele dando uma bronca nele por ele não se importar com nadado que lhe era dito.Kristell não respondeu. A experiência de Wendy dizia que isso queria dizerque ela concordava, mas estava com raiva demais para dar o braço a torcer.Tão a cara dela.“E o que você tá fazendo aqui embaixo?”“Investigando.” Fawkes disse, sem saber que tinha acabado de dizer umapalavra mágica que faria Wendy dar a ele toda a atenção que ele sempre quisdela.“Investigando o quê?”Fawkes olhou sério para ela. Ou tentou. O efeito era quebrado por causa do

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tapa-olho, mas Wendy fez o melhor para não rir, tentando inspirar aconfidencia que o garoto procurava nela para responder à pergunta: “Alguémem Tuonela tá passando informações pros D’arlit.”Wendy sentiu sua espinha se arrepiando ao ouvir aquilo.“Como assim? Como você sabe?”“O túnel em cima dessa taverna foi o que a gente entrou pra achar os índios,não foi?”“Foi.” Wendy disse.“Ele segue sudeste em linha reta, onde é mais quente e Tupã e a tribo todatava escondida, lembra disso?”“Lembro.”Fawkes respirou fundo e olhou ao seu redor: Kristell podia estar sentadaalgumas mesas de distância enquanto os dois continuavam em pé sob aentrada da taverna, mas seus ouvidos estavam afiados e calibrados, mirandona direção deles.“A tribo não estava no caminho da Harbinger: Os D’arlit vêm do Oeste. Aprincesa fez um desvio enorme pra chegar até Tupã primeiro, e por isso elademorou tanto pra chegar aqui em Tuonela, e não tinha como ela saber ondeeles estavam, à menos que alguém tenha contado, e eu acho que foi alguémde Tuonela.”“Você é um idiota.” Kristell disse. “Ela tinha o pai do Tupã com ela, ele podemuito bem ter dito.”“O pai do Tupã não sabia onde a tribo tava, ele tinha sido levado fazia muitotempo, e a gente sabe que eles já tinham se locomovido bastante desde então,e outra, mesmo que ele soubesse onde o povo estava, eu duvido que teriaentregado eles todos de bandeja assim.”“Eles são os D’arlit, Fawkes, com certeza devem ter uns cem demônios láque conseguem ler mentes, sem falar das torturas.” Kristell disse, comoaquelas líderes de torcida de filme quando dão uma “resposta à altura” paraalguém.Fawkes apenas olhou dela para Wendy, como que procurando ajuda.“E como você explica ela ter vindo pra Tuonela em primeiro lugar?”“A vinda dela já tava planejada, seu idiota. O Neri não queria que nóscomeçássemos a apresentação até ela chegar.” Kristell disse.“E você não acha isso estranho?”“Por que seria?” Wendy perguntou.“Ela nunca veio, sempre foram apenas Neri e os outros, a Harbinger sempre

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esteve ocupada fazendo algo mais importante, como destruindo cidades outorturando prisioneiros e essas coisas. Não faz sentido ela ter vindo, semaviso nem nada.”“Se vocês querem saber, eu acho que ela sabia que a cidade não era dosD’arlit. Vocês viram como ela provocou a gente o tempo todo, eu tenhocerteza que ela estava só testando a gente, procurando alguém, uma únicapessoa que pudesse se rebelar no meio de tudo que ela disse.”O cérebro de Wendy congelou, sua boca abriu e seus olhos saltaram: ela tevea mesma sensação que Fawkes enquanto ouvia a Harbinger fazer seudiscurso: os olhos dela dissecaram um a um os cidadãos de Tuonela,procurando algo errado. Um único olhar que pudesse indicar que a cidadeinteira era uma mentira para os D’arlit.E também–“Ela sabia que Caleb estava vivo!” Wendy disse.“O quê?” Kris e Fawkes lançaram olhares confusos.“Antes de eu xingar ela, ela disse que me deixaria viver se eu dissesse ondeCaleb estava, e ela pediu pra eu dar todos os nomes dos traidores dos D’arlitpra ela.”“Viu só!? Alguém aqui deve ter dado a dica, tanto sobre o povo de Tupã,quanto sobre Tuonela, e eu vou descobrir quem foi.”“Divirta-se, Sherlock.” Kristell murmurou.Ele já ia indo embora, quando:“FAWKES!!!” Uma garota se jogou nos braços dele com tanta força quequase o derrubou, e depois o beijou na boca como se não houvesse ninguémvendo.“Paloma?” Wendy disse, meio que querendo interromper o beijo cada vezmenos agradável de se assistir, mas se sentindo culpada no instante em que ofez.“Oi! Wendy, a cidade inteira tá falando de você lá em cima.” Ela disse comose não tivesse acabado de quase devorar Fawkes alguns segundos atrás. “Suacabeça tá melhor?”“Estava, até agora pouco.”Paloma riu com gosto e Fawkes riu... sem graça, enquanto Wendy e Kristellse entreolhavam à distância, tentando entender o que é que estavaacontecendo.“Fawfaw, eu vou voltar, me encontra naquele lugar?”“‘Aquele lugar’ é onde eu tô pensando que é?” Fawkes perguntou enquanto

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Paloma se afastava.A única resposta que teve foi um piscar de olho, pareceu mais que satisfatóriopara ele.Quando ela sumiu de vista, Kristell estava empoleirada nele.“O que você PENSA que está fazendo?!”“Saindo com a Paloma.” Ele respondeu.“Você está usando ela!”“E ela me usando, é assim que relacionamentos funcionam: a gente se usa.”Kristell estava furiosa, mas não furiosa tipo “vou virar um demônio e teassustar, seu morfético desgraçado”, e sim furiosa tipo “ex namorada nascidapra te matar, seu morfético desgraçado”, era até fofinho, tirando pelo fato deque não era.“Se você magoar ela–”“Você vai me dar uma cicatriz nova? Cresce um pouco vai Kris.”“EU TE ESGANO SEU CRETINO! DESDE QUANDO VOCÊ TÁ COMELA?! Ontem você ainda tava se mordendo de ciúmes porque a Wendybeijou o Caleb!”Fawkes não pareceu surpreso por perceber que Wendy havia contado aKristell sobre o “mini ataque de inveja” dele antes da princesa D’arlit chegar.“Faz algumas horas.” Ele respondeu, olhando os relógios. “Desde queentramos em guerra, as pessoas começaram a se declarar umas pras outrascomo se fossem morrer a qualquer minuto. Não tenho culpa se ela sedeclarou pra mim. Se me dão licença, eu preciso encontrar a Paloma ‘naquelelugar’.” Ele completou, fazendo aspas com os dedos e depois sumindo nasruas da cidade.Alguns minutos de silêncio pesado se passaram, antes que Wendy se sentassecom Kris de novo.“Fawfaw...” Kristell repetiu desdenhosa, “eu vou ter uma conversa muitoséria com a Paloma quando ver ela sozinha. Que ideia ridícula é essa de sairpor aí com o Fawkes no MEIO DA MANHÃ?! Depois da Harbinger declararGUERRA CONTRA A GENTE?! Depois de tudo que aconteceu ontem–”“Calma Kris.” Wendy disse, dando uns tapinhas nas mãos da amiga.Mas Kristell estava mais calma do que dava a perceber.Wendy perceberia mais tarde que o que sua amiga realmente estava fazendoera reunir coragem para confessar algo que doía para ela dizer, da mesmaforma que dói abrir um pote de sorvete e descobrir que a irmã Clara usou elepra guardar feijão.

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“Ele me deixou preocupada.” Kristell disse, se certificando de que não havianinguém por perto ali.“Por quê?”Ela suspirou fundo e disse:“Eu detesto o Fawkes, mas acho que ele tá certo: há um espião em Tuonela.”“Mas você disse que isso não fazia sentido agora pouco!”“Eu sei, mas eu disse isso porque era o Fawfaw que tava falando.”“Mas... e por que agora você concorda com ele?”Kristell olhou fundo nos olhos de Wendy, parecia uma daquelas competiçõesem que o primeiro a rir perde. Wendy resistiu pra não fazer uma careta eganhar, como ela sempre fazia no Orfanato das Neves.Toda vontade de rir sumiu quando Kris falou: “A presença estranha que agente sentiu não era dele. Havia uma quarta pessoa aqui na taverna.”

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Capítulo 27

“Há um espião em Tuonela.” Foi o que Wendy repetiu para si na maior parteda manhã.Quem poderia ser? Alguém da trupe? Allan? Edgar? Victoria? A Tereza?Aquele loiro, o Elizeu? O Marco? GENTE E SE FOR O MANOPAMONHA?!Ela teve que rir quando cogitou essa possiblidade, e muito alto.Havia também a Paloma: ela apareceu logo depois do Fawkes, quando acidade inteira estava lá em cima. O lance do beijo seria ótimo para ninguémsuspeitar dela.Mas depois de algumas voltas com Kristell pela cidade, Wendy teve maisvislumbres de pessoas se beijando do que num dos filmes românticos que airmã Romena escondia no armário dela. O que provava que Fawkes nãoestava mentindo quando disse que as pessoas estavam se declarando umaspras outras em toda parte, com medo de morrerem na guerra.Era bonitinho, mas Wendy ia achar bem mais legal se Caleb estivesse porperto pra curtir o momento com ela. Não só aquele momento, mas todos osmomentos de toda sua vida.Exceto no banheiro. Só Wanda podia acompanhar Wendy no banheiro.Pelo visto, Kahsmin fez um discurso impressionante: as pessoas que nãoestavam se pegando feito loucas estavam ocupadas falando sobre o quãoexcitadas estavam para lutar, e sobre o quanto Kahsmin os havia inspiradocom suas palavras sobre mundos dentro de mundos e muitas coisas loucasque só quem estava lá poderia entender com perfeição.E que hora inapropriada para Wendy ficar pensando nos eventos que perderanaquela manhã, ainda mais agora que estava ali, parada perante a enormeporta de madeira maciça que separava os corredores escuros da catedral deTuonela do campanário, onde Autumn a esperava.Era divertido procrastinar na cabeça de Wendy: as ideias mais legais semprepareciam vir até ela quando procrastinava algo importante.Exemplo: uma vez ela percebeu que baleias assassinas deviam se chamarpandas do mar, enquanto uma das irmãs estava tentando ensinar matemáticapara as garotas.Como pensar em novos nomes para o que já tem nome pode ser mais útil do

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que aprender os detalhes secretos que os números nos escondem? Não sei,nem ela sabe, mas sem dúvida é mais divertido.“Cale a boca.” Autumn disse do outro lado da porta, alto o bastante para serouvida do outro lado da madeira grossa.A voz fez Wendy voltar a si: queria mesmo fazer isso? Queria mesmo entrarali e ouvir o que quer que aquela mulher pudesse dizer? Ela poderiasimplesmente se zangar demais e jogar uma faca nela, ou pior.Ela podia tentar roubar seus olhos D: D: D: Como Wendy ia continuar lendoaquele diário sem dono se ela não tivesse olhos?!Okay, talvez ela não roubasse seus olhos, e talvez Kristell não devesse termencionado que ela era mesmo cega antes de Wendy dormir, pois isso sóserviu para Wendy ficar mais assustada ainda por ter que “conversar” comuma mulher que lutou de igual para igual contra a Harbinger da Morte empessoa, sem mencionar que não se sentia muito bem com a ideia de entrar nosdomínios da mulher que, até onde sabia, era culpada por seu elfo ser odiadoem Tuonela.Aliás, esta história ainda intrigava Wendy: Caleb disse que Autumn o odiavapor não ter sido capaz de salvar sua irmã, mas ao que tudo indicava, pareciahaver um outro motivo, um que as pessoas, incluindo o próprio Caleb, nãoestavam dizendo.E como ele podia beijar tão bem? A propósito, será que ainda estava emVirrat?Algo bateu na porta, por dentro, e a voz de Autumn voltou: “... eu vou enfiarisso na goela sua se não...”Os corredores estavam vazios, Autumn estava ocupada falando com seresimaginários ou pessoinhas pequenas que Wendy não podia ouvir. TalvezWendy devesse mesmo ir embora, afinal, não queria perturbá-la: Autumndevia ter coisas importantes a serem feitas.É, ela devia ir embora, mas não foi.Num lampejo de coragem, muito menor do que aquele que sentiu quandopulou na frente da Harbinger da Morte, Wendy bateu na porta, não com asmãos, mas usando as argolas de ferro puro penduradas na madeira.Um circulo de sombras se abriu no meio da porta, mãos puxaram Wendy paradentro. Ela passou por uma vastidão cor de breu que parecia ensurdecedoraem seu silêncio. Durou um segundo, e depois e estava frente a frente comAutumn, dentro do campanário.“A porta não tem maçaneta.” Autumn disse, jogando Wendy no chão como

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se fosse roupa suja.Ela se levantou assustada, olhando para a porta que, de fato, não tinhamaçanetas, o que parecia tão horripilante quanto um homem sem rosto ouolhos sem cor... ou biscoitos sem gotas de chocolate. Sério, que tipo demonstro fazia biscoitos sem gotas chocolate?!“Assustada?” Autumn perguntou.“Um pouco.”“Ótimo. Levante-se.”A sala era maior que Wendy imaginara: ela podia ver os sinos (era umcampanário, tonta, lógico que haveria sinos) que ficavam alguns lances deescada acima, uma mesa rude de madeira no centro, com lugar o bastantepara quatro pessoas, e um suporte de partituras.O que não fazia sentido: se Autumn era mesmo cega, aquilo era inútil.Tão inútil quanto os livros: nas estantes apagadas no fundo do quarto, havialivros, organizados com precisão milimétrica que só a irmã Romena poderiabotar defeito. Wendy sentiu um impulso voraz de colocar suas mãos neles,mas achou melhor não. Autumn provavelmente perceberia de algum jeitoinexplicável e mataria Wendy depois.Também havia janelas grandes, muito diferentes daquelas no quarto em queela mesma dormira quando chegara. Injusto darem uma vista tão fantástica dacidade pra alguém que não podia ver.Ou será que... ela podia?Nah, Kristell não mentiria para Wendy, apenas Christina pregaria uma peçadessas.Por fim, um enorme quadro de Tuonela se acomodava nas paredes entre asjanelas e as estantes de livros: ele retratava a cidade vista do topo de uma dasmontanhas que rodeava a cidade: com certeza havia sido feito muito tempoatrás, pois não havia sinal da destruição causada pelos D’arlit, e as pessoasainda moravam na superfície, já que andavam nas ruas, pintadas comtamanho cuidado e esmero que poderiam muito bem ser reais.E talvez fossem, talvez eles se mexessem quando Wendy se virasse, elachecaria de novo mais tarde.Autumn apontou uma cadeira na mesa retangular: quando Wendy se sentou,reparou em um dos objetos mais lindos e perfeitos e maravilhosos e incríveise improváveis que jamais vira na sua vida.O violino de Autumn era esculpido em madeira rara como sua beleza: seusdetalhes eram coquetes como o flerte sutil refletido no olhar de estranhos que

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se cruzam ao acaso nas ruas de uma cidade vitoriana, ao mesmo tempo emque passavam um “froideur”, tal como o fio fino e frio de inquietude noâmago daqueles que, contra sua vontade, tornar-se-iam memórias ermas umno outro: seu corpo era lânguido, fazendo-o parecer anoréxico quandocomparado à um violino normal, suas arestas eram acentuadas como queenfeites góticos, seus tons eram obumbrados e suas cordas lisas vibravam deansiedade por pintar imagens no silêncio.Em sua quietude, Wendy entendeu que o violino e sua magreza escurecida epontiaguda eram um reflexo de Autumn, seu corpete, suas sombras e palavrasafiadas.Ela era seu violino, e seu violino era ela.“Não se atreva.” Autumn disse, quando Wendy esticou a mão para tocar noviolino “Parabéns pelo feito de ontem.” Acrescentou.Wendy não estava esperando por isso.“Acertar uma flecha em Caleb. Admirável.” Autumn continuou.Certo, isso até podia ser de se esperar.O cabelo de Autumn estava solto, despejado nas costas de seu corpete, comoondas no mar ou dunas num deserto. Wendy queria que seu cabelo, quandocomprido, fosse daquele jeito.Não liso e sem graça.“Faça as perguntas.” Autumn disse, se virando para Wendy.Wendy não entendeu nada.“Você é uma peste curiosa. Curiosidade é bom, mas distrai as pessoas, e sevocê não prestar atenção em mim,” ela disse, lenta e ameaçadora como umacobra, “eu vou ficar muito, mas muito zangada, e você não quer me verzangada, então pergunte.”“Seu nome é mesmo Autumn?’“Autumn DeLarose Liddell, sim. Próxima.”“Com quem estava falando?” Wendy perguntou como se sua vida dependessedisso.“Lorde Bertram.” Autumn respondeu.Antes que Wendy perguntasse “Quem?”, um pequeno rato cinza escuro saiudebaixo do violino, pulou para a mão pálida de Autumn e escalou pelo braçoaté chegar ao ombro dela.“Próxima.” Autumn disse, com o rato Bertram aninhado em seu rostoindiferente.“Quantos anos você tem?”

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“Mais do que você jamais vai ter se não começar a fazer perguntas boas.Próxima.”“Você é mesmo cega?”“Sim.”“Então por que você tem livros, partituras e um quadro aqui dentro? E comovocê sabia que eu ia colocar a mão no seu violino?” Wendy ficou preocupadaque o excesso de perguntas fosse irritar Autumn e fazê-la cortar sua gargantae dar o sangue para Lorde Bertram.Mas ela apenas respondeu no mesmo tom inflexível.“Os livros e o quadro eram da minha irmã. Sobre ver, eu vejo sombras, e nãopreciso dos meus olhos para isso. Também posso ouvir as mudanças narespiração, farfalhar de roupas, acelerações de pulso ou batidas de coração deuma pessoa e com isso ter uma ideia bem clara do ela que está pensando oufazendo, todavia, não posso ler à menos que seja braile. Próxima.” Autumnacrescentou.Belo jeito de deixar alguém menos à vontade.“Por que a venda?”“Combina com o vestido. Próxima.” Por mais sarcástica que a resposta tenhasoado, a venda realmente combinava com o corpete do vestido.“Quantas facas você tem?”“O bastante.”“Elas nunca acabam?”“Você é um tipo especial de idiota ou é isso é o convívio com Kahsmin?”Autumn retribuiu. “Há um ferreiro de confiança em Tuonela, ele as forja comferro de Kullervo especialmente para mim, em troca de alguns favores.”Por mais tentada que estivesse a pedir algumas facas, ou perguntar o nome doferreiro, Wendy suspeitava estar estourando o limite de perguntas à que tinhadireito. Por isso, faria só mais uma: “O que você tem contra o Caleb? Por quevocê fez a cidade odiá-lo tanto?”“Minha irmã morreu por culpa dele, Tuonela caiu por descuido dele, e porqueeu o conheço há vinte e cinco anos, eu conheço o cretino sangue-frioescondido atrás de toda a culpa que ele sente hoje em dia. Que tal minharesposta para sua satisfação?” Autumn perguntou definitiva.“Perfeita, madame.” Wendy respondeu, entendendo que havia acabado ali oseu direito a perguntas, mas não entendendo porque disse “madame”.Apesar de sua resposta, ela estava mais desaponta que satisfeita: desapontadaporque aquela resposta só fez mais caraminholas em sua cabeça, mas

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satisfeita por saber que Caleb não mentira para ela: Autumn realmente oodiava por ter deixado a irmã morrer, só restava a ela saber como.Percebendo o término da digestão das respostas que Wendy recebera,Autumn se colocou de pé a perambular ao redor da mesa, passando pelascostas de Wendy.“No instante em que você tocou esta catedral, eu odiei você. No começo eupensei que era porque algo em você lembrava à Caleb, hoje acho que omotivo tenha sido a empatia nojenta que já existia entre vocês dois.”Uma pausa, Autumn colocou Lorde Bertram sobre a mesa, sentou-se nacadeira oposta à Wendy e voltou a falar, sem desviar os olhos vendados dela:“Kahsmin me perguntou o que eu tinha contra você, eu mandei que ele usasseos olhos para descobrir: eu não esperava que ele realmente visse algumacoisa, só disse aquilo para que ele ficasse de olho em você. Geralmente éassim que aquele inútil funciona: com medo.”Autumn se calou. Quando o silêncio começou a ficar desconfortável demais,Wendy entendeu que lhe havia sido cedida permissão para falar.“Eu não entendi porque você queria me contar isso.”“Em parte, porque sua coragem ontem fez com que eu repensasse meusconceitos ao seu respeito. Em parte, porque você despertou minhacuriosidade. Para minha surpresa, Kahsmin ficou de olho em você, e me deuum relato quando estávamos em Jussarö a seu respeito: o que ele disse, noentanto, diferia bastante daquilo que eu esperava.”“Eu ainda não entendi porque você tá me contando isso.” Wendy disse, seperguntando se o fato desta mulher ser cega fazia a vontade de falar que elasentia ser vinte vezes maior que o normal.“Minha primeira impressão de você foi a de que você era uma espiã dosD’arlit, plantado no Orfanato das Neves, esperando que alguém a tirasse de láe levasse para Tuonela, confesso que a julguei assim devido à sensaçãoestranha que você me dava, e também porque explicaria o fato de você ser tãomais velha que as outras meninas que vieram de lá.”O rosto vendado de Autumn a encarando fazia seu corpo gelar e tremer.“Como assim?”“Eu não sei como Anuk escolhe exatamente quem ele vai trazer, entretanto eusei que, em geral, ele traz mestiços entre cinco e doze anos: e você passou umpouco dessa idade. Por que ele não a trouxe junto com sua amiga? Já queambas são mestiças? Eu debati todas as possibilidades: no começo, as teoriaseram inocentes, como você não ser madura o bastante, mas depois, uma

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possibilidade cada vez menos improvável surgiu: talvez você não fosse aWendy que sua amiga conheceu, e sim uma espiã que os D’arlit plantaram noOrfanato das Neves.”“Claro que eu sou a–”“Você não quer me ironizar.” Autumn disse, com farpas o bastante na vozpara demonstrar que seria capaz de fazer Wendy sentir muita dor casodesobedecesse àquela ordem. “Considerei fazer Kahsmin fazer perguntaspara você sobre sua infância, mas desisti: se você fosse mesmo umaimpostora dos D’arlit, você saberia as respostas. Não demorou para euperceber porque esta teoria era falha: os D’arlit não têm conhecimento dalocalização do Lago Viajante.”Wendy ainda estava pê da vida com a ideia de que ela não era a verdadeiraWendy, nada, poderia ser mais ridículo, exceto a Dana. Porém, continuououvindo.“Ou, eles querem que pensemos que não sabem. Por mais inútil que oKahsmin possa parecer, devo admitir que ele sabe pensar: ele percebeu que,mesmo com meus pássaros vigiando os D’arlit, não temos como saber se elestêm ou não conhecimento sobre a passagem para o Orfanato das Neves.”Finalmente, a pausa que dava permissão para Wendy falar chegou: “MasCaleb sempre mata todos os D’arlit que o seguem.”“Que o seguem além do lago, sim, é verdade: Anuk é como um radar paraencontrar demônios, anjos, mestiços, gente em apuros e aqueles que ochamam. Caleb é um orgulhoso arrogante, mas ele sabe matar, não tenhodúvidas disso.”“No entanto, se fingirmos por um instante que um dos D’arlit tivesse cérebroo bastante para não entrar no lago, este D’arlit em especial poderia revelarpara os outros a localização de um dos esconderijos de mestiços queAllenwick vem procurando há anos.”“Mas se fosse verdade, eles já teriam destruído o lugar!” Wendy disse, selembrando do que acontecera na parte destruída de Tuonela.“Uma das possibilidades: Allenwick entra em frenesi eufórico com adescoberta e ordena que seus exércitos marchem até o Orfanato das Neves edestruam cada uma das crianças vivem ali, mestiças ou humanas.” Autumnnarrou. “Outra possibilidade: Allenwick recebe a informação e ponderaconsigo mesmo: se existe um esconderijo de mestiços, então existem pessoasescondendo mestiços, se existem pessoas escondendo mestiços, eles sãotraidores dos D’arlit. Quando Allenwick chega a esta conclusão, ele bola um

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plano para chegar até os traidores.”“Ele substitui uma das garotas do Orfanato das Neves por você, uma mestiçade demônio capaz de mudar de forma. Allenwick faz com que um de seusdemônios roube as memórias da Wendy verdadeira, as coloque na sua cabeçae então devolve você para o orfanato e se livra da Wendy verdadeira:ninguém percebe a diferença, pois vocês são a mesma pessoa praticamente.”“Mas...”“Sim, há vários furos nesta teoria: Allenwick se aliando à mestiços, soldadosD’arlit sendo inteligentes, mas ainda era algo plausível. Até ontem.”“Não faz sentido que um espião dos D’arlit ataque a filha de AllenwickD’arlit. Nem que a Harbinger da Morte queira matar um de seus próprios.Sua coragem suicida destruiu todas as teorias que tínhamos sobre você.”“Quer dizer que você gosta de mim?” Wendy perguntou por um impulsoinexplicável.“Quer dizer que eu não odeio você.” Autumn corrigiu categoricamente.“Você provou ter mais coragem que uma cidade inteira de pessoas treinadaspara lutar, o que me leva para o motivo pelo qual a chamei até aqui: eu querotreinar você.”“Mas” Wendy gaguejou, “mas, eu já treino com o Caleb.” Disse sem quereradmitir que estava com medo de ficar muito tempo junto com daquelamulher.“E nós vimos ontem que ele está fazendo um péssimo trabalho.”“Nós só treinamos duas vezes!”“Então os dois estão fazendo um péssimo trabalho. Você deveria estartreinando todos os dias desde o dia em que chegou aqui.”Wendy não disse nada. Um ataque de tosse de Autumn quebrou o silêncioantes de sua voz de contralto voltar a encher o campanário e ecoar dentro dometal frio dos sinos.“Sabe porque Kahsmin acha imprescindível que todos em Tuonela aprendamuma forma de arte, noviça?”Wendy fez que não com a cabeça, então lembrou-se que ela era cega e disse:“Não.” O que não era ao todo verdade, Caleb havia explicado uma coisa ououtra.“Primeiro, porque o conhecimento que se adquire em uma forma de artes étransferido para outras áreas da vida; na luta inclusive: a disciplina queenvolve dominar uma arte é a mesma necessária para dominar a proficiênciano uso de armas.”

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“O segundo motivo é muito mais útil para você que para mim: Arte tem opoder de ressuscitar emoções há muito mortas e enterradas nos cemitérios denossas almas. Não é difícil pensar em uma história que gere ódio no leitor,músicas que evoquem raiva, pinturas que traduzam fúria. Excelente para ummestiço querendo controlar a transformação. Por isso quase todos emTuonela tem algo de artistas. Kahsmin nunca me ouvirá dizer issopessoalmente, mas esta foi uma das melhores ideias que aquele inútil já teve.”“O terceiro motivo é de longe o mais importante: toda batalha queenfrentamos é contra nós mesmos.” Autumn acrescentou, pegando seuviolino enquanto Lorde Bertram saltava para a mesa e corria para o lado deWendy, que disfarçou sua leve repulsa pelo rato, apaziguada por anos noOrfanato das Neves.“Guerreiros antigos, há muito perdidos nos nós enrijecidos das cordas dotempo, sabiam disso: para vencer uma luta, você tem que, primeiro, vencer oque te prende: a sua mente.”“Você não dá e nem é o seu melhor no campo de batalha quando há outrabatalha acontecendo dentro de você: conflitos te distraem de sua certeza,medos retêm seus golpes, a falta de uma base sólida fará com que você caiano primeiro sopro de suas dúvidas.”“A mente é infinita como os mundos escondidos dentro dos mundos em quevivemos, Kahsmin disse isso hoje, e por incrível que pareça, estava certo, eeu te acrescento, noviça, que as formas de nossas mentes nos vencerem sãoigualmente grandes, mas isso não faz delas invencíveis.”“Aqui entra a arte.”Autumn atacou o violino com seu arco, a melodia ressoou no metal dos sinosda catedral e nos medos do coração de Wendy.“Um bom artista nem sempre é o mais rápido ou preciso.” Disse Autumn, queera incrivelmente rápida e precisa, “mas aquele que viaja até o próprio cerne,agarra aquilo que o atormenta pelos dedos anuviados em borrasca,amarfanha, dilacera, remodela e transforma a tal réstia de pesadeloempoeirada que lá jazia e faz dela uma estrela para a noite imorredoura naqual este mundo e o próximo nasceram.”“Por isso a arte é importante, ela é uma meditação ativa que te força aenfrentar a si mesma, e cada obra é uma vitória.”Autumn disse, finalmente deixando seu belo violino descansar, transpirandosatisfeita ao apreciar o eco desbotante do quadro que pintara na fermata desuas notas.

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“Eu já disse que aprecio mulheres corajosas, mas eu as aprecio mais aindaquando elas são capazes de vencer suas batalhas. Por isso eu gostaria depassar o que sei para você. Eu farei você sutil e delicada como um cisne, masmortal como o outono.”“Você não precisaria deixar de treinar com o menino lobo. Nós não nosencontraríamos mais que uma vez por semana, o que seria mais que osuficiente, contanto que você faça como eu mandar.”“A escolha é sua.”Havia algo hipnotizador nos parágrafos de Autumn: algo escondido sob oslençóis de cortesia e força nos quais ela embrulhava as palavras queentregava para Wendy.O que quer que fosse, estava assustando, muito mais que uma porta semmaçanetas ou um homem sem rosto.Ela oferecera tudo que Wendy poderia querer: continuar a treinar com Caleb,a capacidade de dominar a transformação e a força que ela precisava paradefender as pessoas que precisavam ser defendidas.Imagens de Wendy no Orfanato das Neves, brigando com qualquer um queameaçasse suas amigas, brotaram na sua cabeça, seguidas por imagens danoite passada: a luta falha contra a Harbinger da Morte, a dor, as mortes deTupã e seu povo... e as crianças. Wendy não conseguiu salvar nenhum deles.A voz de Kristell sobrepôs todas essas memórias: “A irmã Sarah ficariaorgulhosa”Irmã Sarah era o mais próximo de uma mãe que Wendy poderia ter, comoserá que seria a sensação de deixar uma mãe orgulhosa?“E se você não acredita que a irmã Sarah ficaria orgulhosa, pelo menos saibaque eu fiquei.” Kristell disse isso também, e disse porque Wendy haviamostrado coragem para fazer o que ninguém mais fez.Imagine quão orgulhosas elas ficariam se, além de coragem, Wendy tivesseforça para vencer?O violino jazia sonolento sobre a mesa, como uma criança após uma tardecom amigos no parque, satisfeito e cansado em sua alegria.Autumn voltara a andar pelo campanário, com passos tão leves que Wendy,de fato, não os podia ouvir. Ela era sutil, delicada e, sem dúvidas, letal. Fossecom as armas, ou com as palavras. Se Wendy aprendesse a ser metade do queaquela mulher era, não haveria D’arlit que não viesse a temer ouvir seu nome.Essa ideia a agradou como uma canção de ninar.“Eu aceito.” Wendy disse.

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Autumn não pareceu nada surpresa, nem satisfeita. É o problema de não terolhos expressivos.“Esteja aqui no domingo a tarde. Caleb não a treinará neste dia.”Wendy estava se dirigindo até a porta sem maçaneta, esperando que Autumnviesse para abrir caminho através das sombras para ela, quando a perguntaacertou sua cabeça.“Pergunte.” Autumn disse, colocando uma mão na porta, abrindo a passagem.Para surpresa de Wendy, a pergunta já estava emoldurada entre seus lábios elíngua: “Por que vocês acham que tem um espião em Tuonela?”Autumn não respondeu de imediato: ponderou o que estava por dizer,medindo e remedindo as palavras que usaria. Ou apenas pensando em umjeito de se livrar da garota sem parecer ofensiva.O que não seria muito útil, já que aquela mulher era Autumn DeLaroseLiddell, e tudo que se dirigia a ela acabava ofendido ou morto, ou os dois.“Várias cidades caíram por causa de espiões dos D’arlit no passado, Virrat éum bom exemplo, e a história nos ensina que o passado se repete. Kahsmintambém acredita nisso.”Não havia mais o que conversarem: Autumn abriu caminho pelas sombras e,desta vez, não empurrou Wendy, apenas disse que seguisse em frente, umavez dentro das sombras. Ela obedeceu e, depois de apenas alguns passos naescuridão sinistra, já estava no corredor. As sombras por onde passousumiram atrás dela.“Reflita nisto, Wendy: a arte nos redime.” Autumn disse do outro lado daporta.“Sim, madame.” Wendy respondeu de novo, fazendo uma nota mental paranunca mais dizer “madame” na sua vida.Alguns segundos de silêncio amorfo e solidão duvidosa se passaram até que...“Wanda.” Wendy chamou.“Oi Wendy!” Wendy respondeu com a voz aguda, fingindo ser a Wanda.“Vamos falar com o Kahsmin.”“Mas eu tô com fome!”“Você é uma boneca! Você não tem fome.”“Eu quis dizer: você tá com fome!”Não havia como argumentar com Wanda quando ela estava certa. Mesmoassim, Wendy guardou a boneca e começou a procurar por Kahsmin dentroda catedral, ignorando seu estômago roncador e a constante sensação de quenão estava sozinha.

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E claro que não estava: os quartos que Wendy visitara quando chegara emTuonela, aqueles com quadros e instrumentos, estavam apinhados de genteconversando alto: pessoas que Wendy nunca tinha visto, tocandoinstrumentos estranhos, pintando com as duas mãos ao mesmo tempo,comentando o quanto Kahsmin havia sido incrível no discurso dele.Falando nele, bem que poderia haver uma placa indicando qual dessesquartos era o dele: todas as portas eram iguais. Onde estavam as pessoas debom coração que apontam as direções quando precisamos delas?Espera, em toda parte!“É claro! Wanda, eles devem saber onde ele está e talvez tenham comida!”Ela foi até uma porta e a abriu bem devagar, só para ser jogada para fora poruma voz que dizia: “NÓS NASCEMOS PARA DERRUBAR AS PORTAS!”“Literalmente.” Wendy pensou emburrada.Havia sessenta pessoas berraram em concordância lá dentro, até pareciamseiscentas.“NASCEMOS PARA LUTAR ATÉ O FIM! NÃO IMPORTA O QUE ELESDIGAM! NÓS FLERTAMOS COM PERIGO, CORTEJAMOS ODESASTRE!”Por mais que Wendy achasse que seria muito mais inteligente pedirinformação em outro lugar, aquela garota falando conseguiu a sua atenção:ela parecia feita de gliter, tudo brilhava nela: o chão onde ela pisava, asunhas, o cabelo loiro...Aliás, toda a sala parecia ter se transformado em um palco louca de festas,como essas que a gente vê na TV. Irmã Sarah nunca gostou delas: pessoascom roupas bizarras, música alta, sujeira em toda parte. Ela teria a mesmareclamação deste lugar.A garota loira finalmente parou de falar, e enquanto todo mundo estavavenerando tudo que ela dizia, Wendy perguntou para um cara perto da porta:“Oi, deixa eu perguntar, você sabe onde é a sala do Kahsmin?”Um momento de silêncio enquanto todos olhavam para ela.“É a menina que enfrentou a Harbinger!” Um garoto gritou apontando.Logo todos começaram a gritar e se jogaram em cima dela, no sentido maisliteral que você conseguir imaginar, e no figurado também, talvez até nodesfigurado.“CASA COMIGO!” Um rapaz gritou.“NÃO, COMIGO!” Outra garota retorquiu.“AUTOGRAFA MINHA CAMISA!”

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“AUTOGRAFA MEU QUADRO!”“ME AUTOGRAFA!”“CONTA COMO FOI!”Okay, Wendy estava tendo uma amostra grátis do que era a fama de um RockStar. Não foi difícil entender porque os astros andam com seguranças portodo lado. Até a menina que estava fazendo o mini discurso de guerra pareciavibrante ao vê-la ali.Ela foi jogada e disputada por todos aqueles jovens, era como se elesestivessem brincando de cabo de guerra e ela fosse a corda: e o que aspessoas esquecem sobre cordas é que elas são frágeis e podem arrebentar.“PAREM!” Gritou uma voz conhecida.Wendy se virou e viu o rapaz de cabelo loiro comprido que participava datrupe, o Elizeu. Nunca se sentiu tão aliviada por ver alguém botando fimnuma bagunça.Logo, a multidão de pessoas que a cercava soltou a garota, cujas roupas agorapareciam ter saído direto de uma trincheira de guerra, mas com gliter ao invésde lama.“Obrigada.” Wendy disse, aceitando a mão de Elizeu para se levantar.Ela deu uma boa olhada naqueles garotos: Autumn não mentiu quando disseque a maior parte de Tuonela tinha algo de artista, e com uma segundaolhada, percebeu que não eram só jovens ali: havia muitos adultos e idosos nasala também. Todos pareciam igualmente ansiosos por vê-la. Ansiosos atédemais.“Gente vocês tão me olhando como se eu tivesse trazido uma pizza debacon.”“VOCÊ TROUXE?!”“Não!”“Calma pessoas.” Elizeu disse: Wendy se surpreendeu com o quão boa era avoz dele, começando a ficar grave, do jeito que a irmã Clara achava que todavoz de homem devia ser. “Desculpe por isso. Você virou meio que umacelebridade depois que enfrentou a Harbinger da Morte. Todos estãoimpressionados. Não é mesmo?”Senhores, garotos, crianças e indefinidos fizeram que sim com a cabeça.“Ah, obrigada gente, mas não foi nada demais, eu conhecia o Tupã, o índioque ela trouxe, e não aguentei ficar parada depois que ela, bem...” Wendyainda não queria falar disso. “Enfim, desculpem, eu estou procurando oKahsmin, vocês sabem onde ele está?”

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Enquanto todos faziam um alvoroço monstruoso para discutir quem seria oprivilegiado a dar informação para Wendy, Elizeu simplesmente apontou ocaminho certo.“Obrigada. Viu, quem é a menina loira falando alto?”“Minha dama Rose Sebert. Se quiser achá-la, procure uma festa.” Elizeudisse com um leve sorriso no rosto.Não foi difícil achar a sala de Kahsmin.De fato, Wendy não tinha nem noção de como não notara a porta antes:Apesar de ser igual à todas as outras, nesta havia uma placa dizendo:

“Aposentos do Soberano de Tuonela, O Grande Magnânimo HenrikKahsmin”

“Eu achava que Kahsmin era o primeiro nome dele.” Wendy disse paraWanda, antes de bater na porta do poderoso magnânimo.“Quem é?” Ele perguntou do outro lado.“Uma reles serva dos terrenos do Grande Magnânimo!” Ela disse com umsorriso, que se alargou ainda mais quando a porta dele se abriu, revelando onariz de tucano, o cabelo castanho avermelhado e as sobrancelhas invisíveisdele.“Wendy!” Ele disse, abraçando a garota com vontade. “Entre, por favor.”Não era exatamente isso que ela esperava, mas beleza, nada contra entrar.Talvez ele tivesse comida ali.“À que devo a honra de tê-la em meus humildes aposentos?!” Kahsminperguntou com gestos expansivos, puxando uma cadeira para Wendy.Ele não estava mentindo quando disse “humildes”: o lugar era bem menorque o campanário da Autumn. Era só uma mesa, um fogão, um criado mudocom rosas, um retrato apagado, uma cama e uma janela.“Por que você tem um fogão aqui?”“Porque eu posso.” Ele disse alegre, e os dois riram.Ele não parecia nada abalado pelos acontecimentos do dia anterior.Continuava o mesmo Kahsmin brincalhão que a acolheu quando chegou àTuonela.“Então, Autumn pensava que eu era uma espiã dos D’arlit?”Kahsmin interrompeu um gole de chá que estava tomando quando ouviuaquilo.“Autumn disse?” Ele disse, e a semelhança dele com uma criança pega de

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surpresa foi tão grande que ela não pode segurar a risada. “Ela nunca contaeste tipo de coisa para as pessoas, ela realmente deve ter gostado de você.”“Ela não me odeia, é diferente.” Wendy disse, surpresa com o quão à vontadeela se sentia ao falar com ele. “Que bom que ela estava errada, né, Henrik?”“Só a minha mãe e minha tia Magnólia podem me chamar assim!” Ele disserindo, “mas então, você não disse porque está aqui.”“Ah sim, na verdade é um assunto um pouco sério.”“Devo fazer cara de preocupado enquanto você fala?” Kahsmin disse,lançando um olhar que parecia o de alguém assistindo ao próprio filho lutarno meio de uma guerra. Seria trágico se não fosse cômico.“Não.” Ela disse rindo “Não precisa! Mas é o seguinte: Fawkes também achaque há alguém em Tuonela passando informações para os D’arlit.”De fato, Kahsmin ficou sério ao ouvir tal notícia.“Por que ele acha isso?”“Bem, ele acha que a vinda da Harbinger para cá não faz sentido, à menosque ela já esperasse encontrar alguma coisa, e eu meio que posso confirmarisso: enquanto ela tava lutando comigo, ela disse que queria saber onde Calebestava.”“Sem falar que, de algum jeito, ela sabia onde encontrar a tribo de Tupã. Deacordo com Fawkes, ela teve que fazer um desvio bem grande na rota delapra encontrar os índios primeiro. Ela sabia o que estava procurando, e sabiaonde encontrar.”“E, hoje cedo, eu e a Kristell estávamos sozinhas na Taverna do Fim dosTempos. Bem, parecia que a gente estava sozinha: não dava pra ver maisninguém lá dentro, mas eu e ela começamos a sentir uma presença muitoestranha lá.”Kahsmin juntou os dedos pensativo.“Você contou isso para alguém além de mim?”“Não.”“Nem para Autumn?”“Não, ela me assusta ainda.”“Ela me assusta também.” Ele brincou, “Wendy, que horas foi isso?” Eleperguntou sério.“Umas oito ou nove da manhã. Foi durante o seu discurso.”Mais momentos de ponderação silenciosa enquanto ele bebericava seu chá efazia caretas: se o gosto daquilo fosse parecido com o cheiro, aquele deveriaser o pior chá da história de todos os chás.

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“Obrigado. Isso explicaria mesmo algumas coisas, pedirei para começarem ainvestigar a cidade imediatamente.” Kahsmin disse, tentando reprimir umbocejo.“Você parece cansado.”“O dia foi longo: James, o menino que eu trouxe de Jussarö, sumiu; depoisdescobri que a Stacy, a Serpa de Autumn, também tinha sumido. Tudo issologo no começo da manhã, e depois ainda tive que bolar o discurso, acalmar afamília que perdeu as crianças, me desculpar por o que Autumn disse,começar a planejar quem vai cuidar do que caso quando os D’arlit atacarem,e também tem o Caleb.”“O que tem ele?!” Wendy perguntou, demonstrando só um pouco depreocupação a mais do que pretendia.“Bem, ele já deveria ter chego e–”Batidas na porta.“Quem é?” Kahsmin perguntou.A porta se abriu, e parado nela, estava um homem ensopado em sangue, comcortes tão grandes que assustava Wendy o fato de ele conseguir parar em pé.O ar errou o caminho para seus pulmões quando ela disse: “CALEB!”Ele olhou para ela entre o cabelo branco e o sangue escarlate que pingava emtoda parte. Houve um sorriso torto, só depois as palavras: “D’arlit... emVirrat.”Foi tudo que disse, antes de seu corpo se estatelar no chão como um saco deareia, fazendo um baque mórbido e agourento: seguido pelo gritodesesperado de Wendy.

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Interlúdio 3

Alaia fez uma pausa pequenez, sentindo leve o peso das memórias que calavano fechar do livro, respirando sôfrega, ainda que com sorriso de anseio porver o rosto sorridente de Christina e sua bocarra cor de caramelo, espumandode perguntas e fome, quando...“... Christina que porcaria de cara é essa?” Alaia cuspiu as palavras, todas deuma vez.

O que só fez Christina rir, para o desconforto inquietante de sua vó.A garota dos cabelos de leão havia feito seu nariz, olhos e lábios

invisíveis em seu rosto, deixando apenas buracos negros e uma bocadescarnada e desdentada, como que um pesadelo, no semblante, fazendo-aparecer um demônio possessor ou uma ilusão cruel de um ominoso, feitaapenas para semear medo e colher horror.

“Gostou?” Christina perguntou com um sorriso perturbador.“Não.” Alaia respondeu ríspida, acrescentando um quarto tipo de

medo na sua lista: medo de Christina, por motivos.Christina caiu no chão, gargalhando tão forte que não conseguiu

manter a invisibilidade por muito mais tempo.Aquele som era contagioso como um bocejo longo no começo da

manhã, e logo Alaia estava rindo junto com a neta, agachando-se no chão eainda fazendo cócegas em seu corpo.

Por vários minutos, o quarto foi uma caixinha de risadas, um pequenomomento em que a felicidade não é um segredo, mas uma realidade, porqueAlaia e Christina estavam ali, no agora, e em seus vários minutos, sua imensaeternidade, conseguiram aproveitar cada segundo, neste mar de insanidade.Aos poucos, a risada escapuliu pelas frestas da porta, misturou-se comfuligem no cano da chaminé e foi mordiscada por papagaios do mar e pardaisamarelados que voavam por perto da janela veraneia: Alaia e Christinaaproveitavam os últimos ecos de suas gargalhadas, deitadas no chão, sentindoo gosto do momento passar e transpassar por suas bocas.Alaia sempre o sentia azedar na sua língua: logo, tudo virava nostalgia.Era engraçado que a primeira pessoa com quem conseguira compartilhar ummomento onde nada além do momento fosse real tivesse sido um inimigo:medo e raiva sozinhos podem te prender num passado de angustia ou num

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futuro de promessas não cumpridas, mas com um ingrediente extra,adrenalina, você se torna um com o agora.Embora não houvesse felicidade neste tipo agora.Tirando a própria neta, só mais quatro pessoas haviam feito Alaiaexperimentar o agora com tanto deleite: Wendy foi a primeira, os momentoscom ela tinham gosto de infância e biscoitos dinamarqueses, e ela tinha umdom pra não deixar esses momentos azedarem na língua.Parando para pensar, depois que Wendy se foi, Alaia nunca mais conseguiuaproveitar um desses momentos sem sentir...“Vó?” Christina chamou, sua respiração fazia um ruído tão doce quanto o deum bebê amortalhado em tecidos de algodão fofo feito nuvem de verão.“Sim, meu anjo?” Alaia respondeu, sentindo sua voz cansar em seus lábios.“Eu posso ter um rato?”“Como o de Autumn?”“Sim! Posso?!”Alaia riu serena enquanto a resposta eclodia em sua boca: “Seu quarto é umabagunça, já deve ter alguns lá, pode ficar com eles.”“Ei!” Christina disse, levantando o tronco de súbito e fazendo seus cachossubirem e vibrarem junto com seu corpo, “não tá tão ruim assim.”“Seu pai levou três dias pra achar a saída da última vez que ele entrou lá.”“MENTIRA! Foram só dois!” Christina refutou, apontando o dedo paraAlaia, “e foi só porque eu deixei as paredes invisíveis.”As duas soltaram uma réstia de risada, Alaia nunca entendeu exatamentecomo ou porque Christina fez aquilo com o pai, mas tinha que admitir, a netatinha um talento inato para travessuras que deixaria Wendy e sua antigaamiga Christina com inveja.Seria bom se elas estivessem aqui.Seria justo também...“Posso chamar meu rato de Fawfaw?”Um riso bufado escapuliu de Alaia quando ouviu isso.“Claro, vai combinar com a personalidade dele.” Alaia brincou: na verdade,tinha um imenso afeto por Fawkes e tudo que fez em vida.“Eu sei! Ah! Deixa eu perguntar: como podiam haver D’arlit em Virrat paraatacar o Caleb? A maldição não ia fazer isso impossível?” Christinaperguntou, se colocando em pé e ajudando a vó a se levantar.“Você vai descobrir, e acho que vai sentir bastante raiva quando o fizer.”Alaia disse com tom de mistério na voz, então virou a cabeça para a janela e,

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vendo a altura do sol, acrescentou “Samson deve voltar a qualquer momentocom Matti Apoja, Dani Kaupi e a senhorita Sororia.”“Entendi, deixa eu perguntar: os sonhos da Wendy com a Ally pararam porcausa do que aconteceu no hospício?”“Wendy me contou que eles não pararam de todo até a intervenção do VelhoSábio, mas é verdade que eles ficaram menos intensos, o que é incrível,considerando que as vítimas de Ally normalmente cometem suicídio paraconseguirem voltar a dormir: a verdade é que não sabemos se o queaconteceu em Virrat foi o que fez a intensidade de seus sonhos diminuir, ouse foi sua ‘condição especial’, ou ainda se foi o trauma de ver Tupã sendomorto.”“Eu chorei quando ele morreu.” Confessou Christina, o que eradesnecessário, Alaia tinha visto, e teve que parar a leitura para cantar cantigasde ninar para a neta até ela se acalmar o bastante para continuar a história.“Ele pediu pra Wendy trazer a luz porque os vagalumes seguiam ela ouporque ele sabia que ela era a Harbinger da Luz?”“É a terceira vez que você faz uma pergunta desse tipo.”“É a terceira vez que você me enrola pra responder.” Era engraçado verChristina dizer isso, sua voz era a de uma criança, mas suas perguntas eramexatamente o tipo de pergunta que Wendy teria feito, as duas mereciam ter seconhecido.“É porque eu não sei, meu anjo, o mais provável é que Tupã tenha associadoos vagalumes que cercaram Wendy com a palavra “luz” e pediu que elatrouxesse esta luz para ele, talvez tenha havido uma confusão com o fato deque a mesma palavra que os Satya usavam para “luz” também significava “ocaminho para a paz”, e no folclore deles, são os vagalumes quem guiam asalmas dos mortos por este caminho. Ou talvez ele realmente tivesse visto emWendy o que o resto do mundo mais tarde viria a ver: aquela que traz luz, eunão sei o que é verdade, meu anjo, e com a extinção dos Satya, não acho quevale a pena fazer residência nesta pergunta abandonada.” Alaia respondeucom palavras sérias, e estava ciente de que sua resposta fora ruim e confusa,mas ela não conseguiria formular algo melhor que isso pois, no fundo,gostaria de acreditar que Tupã sabia, sabia que Wendy era aquela quem trariaa luz para o mundo que os D’arlit tentaram ofuscar.Pensar nisso tinha um sabor doce, como vapor de chocolate quente numanoite fria no fim do outono.“Eu queria falar com animais, igual os Satya.” A pequena Chris comentou.

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“Pra chamar os ratos do seu quarto?”Chris gargalhou dessa resposta, enquanto Alaia sorria contentada: sentia queestava esvaziada de risadas agora, o azedume nostálgico que engolira minutosantes daria um teco de trabalho para sair do seu corpo, pois tornara-se sopa dememórias vencidas, circulando em suas veias.“Vó, o que aconteceu com a mãe da Meggie?” Christina perguntou desupetão.“Quem?”“Meggie, filha do Kahsmin, quem era a mãe? Onde ela tá?”“Ah.” Alaia suspirou com peso na garganta, “essa história.” Acrescentou, sedirigindo para o ponto próximo da parede onde havia uma porta secreta queguardava vários arquivos raros, como o livro de memórias de Wendy,memorandos da era de Ezequiel e, bem, cartas, incluindo cartas de Kahsmin.“O que foi, vó?”“Eu tenho quase certeza de que não existe menção sobre a mãe de Meggie nolivro da Harbinger da Luz, mas existem muitas delas nas cartas que Kahsminescreveu.” Alaia disse um tanto cabisbaixa enquanto folheava o arquivosecreto, sem saber ao certo se deveria retirar uma das cartas de lá ou não.“Você sabe o que aconteceu com ela?”“Sei.” Alaia disse, finalmente optando por não pegar nenhuma das cartas: nãoera hora nem dia para entrar neste assunto, pelo menos, não à fundo,“Kahsmin a conheceu quando ainda era jovem, durante um dos aniversáriosde Tuonela, ele deveria ter uns vinte anos, eu não sei ao certo, mas sei quehouve bastante amor entre os dois, mas também houveram muitos hiatosentre seus encontros, no final acho que Kahsmin chegou a conhecer a filhamuito melhor do que conheceu a mãe da filha.

Dahlia, a mãe de Meggie se chamava Dahlia.” Acrescentou num tomque deixava claro até para a hiperativa Christina que esse assunto haviaacabado.“Entendi, vó por que você ficou vermelha lendo o trecho em que o Calebbeija a Wendy?” Christina perguntou segurando as duas mãos nas costas epulando como se fosse a criatura mais meiga e linda do mundo.“Eu não corei.” Mentiu Alaia, corando de novo. “Minha pele é muito escurapra corar de qualquer jeito.” Mentiu, de novo, a mulher de pele triguenha.Christina ia rir até passar mal daquele jeito.“Você acha que o Fawfaw beijou a Paloma pra deixar a Wendy comciúmes?”

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“Eu acho que a única interpretação válida sobre as motivações de Fawkes é aque Autumn fez.” Alaia respondeu, acrescentando depois. “Lógico que sim,Wendy era incrível, a Paloma não tinha sal nem gosto.”“Você sabe que ela ainda tá viva, né?” Chris perguntou entre uma risada eoutra.“A Paloma não tem sal nem gosto.”“Vó! Tadinha dela!” Christina disse acusatória e risonha ao mesmo tempo.“E ela tem poder de cura, me surpreenderia se não estivesse viva.” Alaiaacrescentou.

“Vó, a senhora não gosta da Paloma?”“Claro que gosto, meu anjo, mas, quando você chega na minha idade, vocêaprende que mentir sobre a sua opinião é uma mera medida condescendenteque só serve para te cercar de gente que só faz aumentar seu já latentecansaço pela vida.” Alaia disse, percebendo tarde demais que aquilo poderiasoar ríspido para sua neta.

“Não parece que você gosta da Paloma.” Christina respondeu.“Eu realmente gosto dela, meu anjo, nós duas tomamos chá juntas

uma vez por mês, mas para mim, ela não é muito competente e, para ela, eusou alguém que não sabe lidar com a realidade quando ela não acontece domeu jeito, e nós duas sabemos destas divergências, por isso nossos encontrossão limitados e duram só o suficiente para serem produtivos.

Quando for mais velha, você vai entender que tem que lidar com todauma sorte de pessoas que diferem muito de você, meu anjo, e não é ruim teruma opinião honesta sobre cada uma delas, o importante é saber transformaressas interações na melhor possível para as duas partes, e confesso queexagerei no que disse, eu só... eu ando tão cansada, e tem um gosto azedo naminha boca.” Era verdade e, numa rápida retrospectiva, percebeu também serverdade que, no passado, ela e Paloma tiveram seus mais que justificáveisatritos, mas ambas já os haviam superado havia décadas: quando fez seucomentário, foi como se um lapso a tivesse levado de volta para um passadohá muito morto e enterrado.

Talvez devesse se preocupar com isso.Talvez devesse abandonar a leitura do livro de memórias.Talvez o medo da solidão que a aguardava no fim da história fosse maior queas sobras de seu coração forte podiam aguentar.Talvez fosse um efeito colateral ao ser exposta ao Poder da Verdade deChristina.

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Talvez devesse fazer o que fazia de melhor para esquecer: se ocupar.“Você não vai perguntar nada sobre James e Jane?” Alaia quis saber,

ou apenas quis mudar de assunto.“Ah, a Alice me contou quase todas as histórias da Jane, eu sei das memóriasdela, que ela não tinha medo da Autumn, que o Velho Sábio que descobriucomo a ligação dela com o James funcionava e que ela ligou a Harbinger daLuz com a Henrietta. Sobre eles eu só tô esperando o Grande Truque doJames.” A pequena Chris disse, olhando para o retrato horrível de Elizabeth,o vagalume.“Você sabe do sequestro?” Alaia perguntou.“Que sequestro?” Chris perguntou, dando toda a sua atenção para a vó.“Imaginei que não.” Alaia disse com ar triunfante, “quando chegarmos naNoite Negra da Harbinger da Luz, você vai ver.”“Você não vai me falar agora, né?” Christina perguntou com toda a meiguiceque sua bocarra permitia expressar.“Não.”“Você é muito ruim, vó.” Christina disse emburrada, fazendo seus olhos,lábios e nariz ficarem invisíveis de novo.“Se você deixar o resto do seu corpo invisível, vai ficar igual uma banshee.”Alaia comentou, tendo certeza que essa seria uma sugestão que Christina, aamiga de Wendy, teria feito.Sua neta amou a ideia, isto estava escrito no seu sorriso descarnado e norepentino sumiço de seu corpo.“Não se esqueça os gritos, uma banshee não é uma banshee se não gritar.”Alaia acrescentou, logo depois vieram os berros agudos e,surpreendentemente sinistros da boca de sua neta, que agora parecia só umacabeça flutuante e desmembrada atravessando o teto.“Como eu queria que você pudesse ver isso, Wendy.” Alaia suspirou consigomesma. “Samson, Ihab, entrem.” Ordenou com o mesmo vigor autoritário,usado por ela desde seus oito anos, ao perceber que os dois estavam prestes abater na porta.Foi Ihab quem a abriu: como Samson, Ihab era um homem forte, tinha omesmo tom de pele cor de trigo de Alaia e Christina, devia ser dois dedosmais baixo que Samson e as penas de suas asas dividiam cores com rubis esafiras (ao contrário de Samson, não havia nada de grisalho em suas penas):seu nariz reto, queixo forte, cabelos castanhos claros em cachos e olhos verdeesmeralda evidenciavam que aquele anjo era irmão de Samson, filho de Alaia

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e pai de– “Que banshee adorável!” Disse com carinho forçado uma mulherque entrou logo atrás dele, juntando duas de suas seis mãos num gesto queAlaia só tinha visto crianças em pinturas de duzentos anos de idade fazendoao ver algo cativante.Matti Apoja e Dani Kaupi não pareciam tão à vontade.De fato, parecia que eles iam começar a chorar a qualquer instante.“Christina?” Ihab chamou, sua voz tinha a mesma calma que a de Samson,mas era bem mais grave.“Oi pai!” Christina disse, saltando das paredes para o centro do quarto efazendo todo o seu corpo visível novamente.“Christina, por favor, venha cá.” Alaia pediu: sua postura ereta, suas rugasesculpidas em tom solene em seu rosto e a calma furtiva em sua voz avisaramtodos que, qualquer reação aos comandos de Alaia menores que totalrespeito, dificilmente seriam toleradas.Christina se aproximou e, por segundos, tudo que se fez ouvir no quartoforam os ecos dos passos misturando-se com a tensão contida na respiraçãode Dani, Matti e a senhorita Sororia: Alaia quase podia ouvi-los implorandoem seus íntimos “por favor, enrola bastante nessa conversa, a gente não querencarar a senhora”.“Sim, vó?” Christina perguntou, sem o entusiasmo característico tanto em suavoz quanto em seus maneirismos.“Eu quero pedir uma coisa.” Alaia sussurrou, abaixando-se para fazer questãode que ninguém mais ouvisse o que estava para dizer, “eu prometi que vocêpoderia assistir e aprender algo, mas seu pai não ia gostar disso, então saia doquarto, fique invisível, entre de novo, fique perto de mim, e não esqueça queeu te amo, meu anjo.” Com isso, Alaia endireitou a postura de seu corpo ecomandou em alta voz, “vá.”Mais ecos, mais arfadas: quando Ihab fez que ia fechar a porta, Alaia apenasergueu uma mão, esperando sentir a presença de Christina retornar ao quarto:uma vez que a neta o fez, Alaia sentou-se em sua poltrona, acenou com acabeça, esperou o baque surdo da porta fechando e, por alguns segundos,devorou o silêncio, o desconforto e as feições dos três que estavam aliparados.“Onde está a família de Matti Apoja e seus amigos?” Foi uma pergunta, masa voz retumbante de Alaia fazia soar como uma ordem.“Estão sendo instruídos no Saguão de Espelhos.” Ihab respondeu, parasatisfação de Alaia.

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Ser escolhida antes do seu nascimento para ser uma líder havia dado à Alaiaum treinamento desigual em comparação à vasta maioria das pessoas vivasnaquele presente momento, e talvez fosse seguro dizer que, com a exceção deGambler, Alexandrita, Stefanova, o Velho Sábio, e da própria Harbinger daLuz, não havia pessoa na história daquele mundo ou do próximo com umentendimento tão profundo sobre como poder funcionava quanto ela.Todavia, isso não era o mesmo que dizer que não haviam pessoas queusavam poder melhor que ela, e não precisava procurar muito para saberdisso: afinal, tinha Christina.Alaia estava ciente de que seu silêncio estava desconcertando tanto Mattiquanto Dani, que parecia ter sido recentemente tratado por um doscurandeiros da cidade: como Matti, Dani era pálido, seus cabelos eramligeiramente mais cumpridos e bem tratados, seu nariz e sobrancelhas erammais finos que os do amigo. Ao contrário de sentimentos farisaicos, só haviaum senso de “por favor deixa tudo isso terminar logo” nos seus maneirismos,o castanho de seus olhos evitava tanto o azul de Matti quanto o verdeesmeralda de Alaia.O próprio Matti estava bem mais calmo que aparentara mais cedo, emboraestar ao lado de Dani não fosse exatamente um conforto.A senhorita Sororia era a que apresentaria maior dificuldade para a leitura deAlaia: ela era um tipo incomum de demônio com características de aranha,não como Jaques Araque, que era como um centauro com corpo de aranha nolugar do de um cavalo: Sororia tinha a pele lilás, seu corpo assemelhava-secom o de um humano, mas tinha seis pares de braços, perfeitamentecoordenados, e um par de pernas.

O verdadeiro desafio estava no rosto.Sororia tinha cinco olhos, bem, pelo menos cinco que Alaia podia ver: o parprincipal estava no mesmo lugar onde estariam olhos humanos, mas tinham aforma de folhas de árvore simples, ligeiramente inclinadas, de um pretoreluzente, com pupilas de um tom vinho que combinava com sua pele, osegundo par de olhos estava logo acima, eram menores que os principais eum pouco mais próximos, mas Alaia sabia que eram igualmente capazes eprecisos, o quinto olho estava no centro de sua testa, como uma lágrimaescurecida, seu nariz era quase imperceptível e Alaia tinha que confessar, nãosabia se eram quelíceras ou dentes saindo da boca da senhorita Sororia.O penteado dela era algo que Autumn teria aprovado, uma vez que Autumnera cega.

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Seu cabelo tinha um tom roxo natural, e o corte emoldurava seu rosto comose fosse uma lolita gótica com marias-chiquinhas cheias, que a faziam pareceruma criança super crescida, na opinião de Alaia.Por fim, suas roupas: Matti não mentira, ela realmente era uma costureiraincrível, só faltava o bom gosto: usava uma camisa que uma criança deséculos atrás talvez tivesse usado, num tom de vermelho vinho, com mangasestilo julieta (curtas e inchadas como um puff), um laço em tom vermelhoescarlate fosco adornava seu pescoço num nó que o fazia parecer uma gravataborboleta super-crescida, e nas pernas, bem, eram shorts costurados à mão,também inchados feito puff perto dos joelhos.A soma de tudo fazia a senhorita Sororia parecer uma criança diva, ainda queexcêntrica, pintada num quadro há muito tempo atrás.Todavia, não era só isso: pessoas como Sororia tinham história, e seriadesleixo de Alaia não saber algo assim: há cerca de trezentos anos atrás,demônios como ela eram sequestradas nas antigas terras de Clypel Carina,atualmente chamadas de Clypeus, e vendidas como mercadoria tanto parademônios afortunados quanto para anjos que gostavam de desfrutar decostureiras pessoais, dentre outras coisas, também pessoais.“Senhorita Sororia?” Alaia chamou, e sentiu todos os olhos visíveis dela sedirigindo em sua direção, “estaria confortável se eu a tratasse seguindo acortesia usual de nosso povo?”“Seria uma honra, vossa majestade, Alaia Capricornius.” Sororia respondeucom uma pequena reverência, sem sinais de nervosismo que Alaia pudesseidentificar, “se me permite o comentário,” Sororia parou e esperou pelaaprovação de Alaia, “é uma bela vista que tem da Estátua Incompleta daHarbinger da Luz.”De repente, não estava tão surpresa por Matti e Dani terem se interessado porela.Afinal, classe, educação, beleza exótica, talento, respeito e conhecimento,todos estes atributos transpareceram na voz desta mulher quando ela teceusua pequena observação.“Agradeço, senhorita Sororia, alguém mais gostaria de fazer umcomentário?” Alaia perguntou e, embora educada, seu tom deixava claro quequeria que a resposta fosse “não”.“Por que a estátua da Harbinger está incompleta?” Sussurrou Christina noouvido da vó.“Voltamos nisso depois.” Murmurou Alaia e, fechando os olhos, recitou

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solene: “Que, através de mim, a Harbinger da Luz alumbre os obumbrados.”Ao som de sua prece, percebeu que Christina ainda estava invisível ao seulado.Um agradável reconforto foi o que sentiu antes de se levantar.

Sabendo que parecia muito mais alta que sua real estatura (não eraincomum que pessoas, e até alguns livros, descrevessem Alaia como tendodois metros de altura, mesmo que, na realidade, tivesse um metro e oitentacentímetros. Quando jovem, até brincava, dizendo que sua alma usava saltoalto), Alaia falou com a voz do vento que corta pedras: “É do meuconhecimento a versão da história narrada pelo senhor Matti Apoja: eleafirma nutrir sentimentos amorosos pela senhorita Sororia, que há mesesexiste uma troca de cartas entre vocês e que a considera já como sua família,estou certa até este ponto, senhor Apoja?”

“Sim, senhora.” Matti respondeu, demonstrando bem mais respeitoque fizera mais cedo.

“Muito bem, ainda na versão de Matti Apoja, foi dito que o senhorDani Kaupi tinha conhecimento dos sentimentos e intenções de Matti Apoja,sentimentos tais foram confidenciados durante uma discussão, sobre planospara a semana de Nicolau, que ocorrera cerca de duas semanas atrás, correto,senhor Apoja?”

“Sim, senhora.”“Finalmente, me foi dito que, na noite de ontem, em uma visita que

ele planejara fazer à senhorita Sororia, o senhor Matti Apoja encontrou DaniKaupi junto com a senhorita Sororia em sua casa. Neste momento, o senhorApoja perdeu o controle de si, atacou Dani Kaupi com a intenção de matar e,não fosse a intervenção da senhorita Sororia, talvez tivesse conseguido.Confere, senhor Apoja?”

“Está correto.” Matti disse à contragosto.“Duas horas atrás, o senhor Matti Apoja me deu uma resposta

inconclusiva quando perguntei se havia nele algum arrependimento, qual foisua resposta?”

“Uma pessoa em quem você confia desde criança te trai e rouba apessoa mais importante da sua vida, você ataca tentando defender o que éseu: você se arrepende depois?” A resposta fora, palavra por palavra, igual àque dissera mais cedo, mas o tom cabisbaixo fazia soar como se fosse algocompletamente diferente.

“Deseja manter esta resposta?” Inquiriu Alaia.

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Quando Matti demorou demais para responder, Samson deu umpequeno toque no garoto, mas foi reprimido pela voz de Alaia: “Não o force aresponder, o arrependimento deve ser sincero.”

No breve silêncio, a senhorita Sororia fez sinal de que queriapermissão para falar.

“Sim, senhorita Sororia?” Alaia chamou.“Majestade, é seguro afirmar que estes dois homens,” Sororia disse

apontando com uma mão diferente para cada um dos anjos, “são seus filhos?”“Sim, por quê?”“Eu estou tentando entender: por que a senhora, uma rainha, usa os

próprios filhos como guardas? Eles não deveriam ser príncipes e seenvolverem em algo maior que isso? Aliás, por favor não me leve à mal,majestade, mas a senhora é Alaia Capricornius, nós estudamos seu passado, asenhora é uma lenda viva, porque está resolvendo uma intriga tão pequenacomo esta?”

Silêncio desconfortável aqui.“Também nunca entendi porque isso acontece às vezes.” Sussurrou

Christina para Alaia.“Há onze dias no ano em que a presença dos meus filhos está

garantida aqui, sete destes dias acontecem na semana de Nicolau, um delesdurante meu aniversário, outro no aniversário do pai deles, um no aniversáriode minha neta, e durante a celebração do nascimento da Harbinger da Luz:destes dias, oito são celebrações, durante as quais meus filhos fazem escoltase outros serviços inerentes aos guardas, enquanto a maioria dos guardas deverdade descansam com suas famílias, e eu faço o mesmo, tomando contados pormenores da cidade que seriam responsabilidade de outros. Devoadmitir, isso diminui muito nosso tempo juntos, porém, não há serviço,grande ou pequeno, que não nos orgulhemos de fazer. Minha resposta asatisfaz, senhorita Sororia?”

“Completamente, majestade.” Sororia disse, acrescentando umareverência às suas palavras.

“Perdoe-a.” Pediu Dani, revelando uma voz mais adulta que a deMatti, embora mais aguda também. “É um costume que ela herdou dafamília, esses comentários são uma demonstração de atenção e respeito, nãouma forma de desafio ou desacato.”

Alaia permitiu por um momento que sua expressão pétrea esboçasseum sorriso.

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“Agradeço, senhor Kaupi. Voltando para o nosso assunto principal,você poderia me dizer, há alguma coisa na versão da história de Matti Apojacom a qual você discorda?”

“Não, majestade.”“Algo que queira acrescentar?” Emendou Alaia.Dani Kaupi olhou de Matti para Sororia, que tinha toda a escuridão

confusa de seu olhar voltada para ele.“Eu nunca tive a intenção de ferir os sentimentos e o orgulho de

Matti.”“Como você faz um comentário desses depois de roubar minha

mulher?” Matti respondeu e, embora ainda houvesse fúria em suas garras,Alaia pôde ver em sua heterocromia: era sua ferida que estava falando porele.

“Por favor, senhor Apoja, deixe o senhor Kaupi terminar.” PediuAlaia.

“EU SOU A VÍTIMA AQUI!” Berrou Matti, raiva escorria de seusolhos em forma de lágrimas quentes, “ELE É QUEM DEVIA SERJULGADO, ELE É UM LADRÃO TRAIDOR QUE MERECE MORRER!”

Samson acalmou Matti da forma menos delicada que conhecia.Enquanto isso Alaia avaliou os outros: Dani Kaupi concordava com

Matti, estava escrito no dobrar cansado de seus joelhos, no seu olharcabisbaixo, incapaz de desviar-se do chão, na respiração lenta de quem temchumbo pesando no peito, puxando-o para baixo, onde ele aceitou ser seulugar.

Se deixassem Matti atacar Dani ali e agora, Dani não se defenderia.Então veio a vez da senhorita Sororia: Para surpresa de Alaia, havia

alguma facilidade em lê-la, todos os seus olhos viraram discretamente paraMatti, e então todos eles rolaram: ao contrário de Dani, ela reprovava Matti.

“Senhorita Sororia, tem algo a dizer sobre o ocorrido?” PerguntouAlaia.

“Não, majestade.” Ela respondeu, fechando todos os seus olhos einclinando a cabeça em sinal de respeito.

“Muito bem, senhor Apoja eu gostaria–”“Com licença, majestade, mas, na verdade, há sim algo que eu desejo

compartilhar.” Senhorita Sororia disse de repente e, apesar de não apreciarinterrupções, Alaia notou uma mudança agridoce no semblante de Sororia e apermitiu continuar, “Ao contrário do que Matti disse, Dani não tem culpa

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nenhuma nisso, eu tenho.”“Já fazia três meses que eu via Dani, ele é como a noite para mim, um

mistério charmoso, confidente, capaz de tocar em todas as feridas que seescondem nas histórias que vivi no passado, sem falar que, para um mestiçodemônio regular, ele é um excelente acompanhante na arachnodanse: eu souapaixonada por meu trabalho, mas eu dedicava pelo menos duas noites sópara ele durante a semana.”

“Matti, por outro lado, é como o dia, um dia bem pálido, mas um diamesmo assim, e eu digo isso porque o dia é quando as coisas de fatoacontecem: Matti está sempre fazendo acontecer, como os preparativos para asemana de Nicolau que ele já mencionou, o teatro itinerante que eleorganizou sozinho, até o treinamento dos pombos floreiros para a celebraçãodo renascer do ano, foi ele quem fez tudo, ele é a ação do viver, e romântico,eu confesso.”“Mas tirando esse romance, o Matti tem o emocional de um tijolo, ele é rasoigual um rio de teias, e por mais que eu goste de aproveitar a ação do dia comMatti, quando a noite chega, é de Dani que eu sinto falta, em cinco dias eleme conheceu melhor que Matti nos seis meses em que saímos e trocamoscartas.”“E do mesmo jeito que eu não penso em Matti à noite, eu também não pensomuito no Dani durante os dias, quando eu quero ver a ação acontecendo,então eu continuei com os dois: para mim, eles se completam perfeitamente.”“Eu nunca contei nada para o Matti, porque eu sabia que ele ia ficar louco efazer vários argumentos irritantes e pseudo-intelectuais que ele nem entende,porque o forte dele é fazer e não entender, e não contei para o Dani porqueachei que ele acabaria contando para o Matti.”“No entanto, o Matti acabou contando para o Dani que ele me amava, nanoite seguinte o Dani me perguntou, com a maior calma e respeito do mundo,o que estava acontecendo, e eu expliquei exatamente o que acabei de explicarpara vocês todos.”

“Dani disse que ia parar de me ver, mas eu não deixei, eu disse quenão ia aguentar isso, então Dani disse que eu deveria contar para o Matti, poiso Matti acreditava que ele era o meu futuro, e eu prometi que o faria.”“As noites foram passando, e eu pedia mais tempo para Dani, porque nãoestava pronta para contar.”“Inclusive, estávamos falando justamente sobre isso ontem à noite, quandoMatti entrou na minha casa e começou a briga irracional dele com Dani.”

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“No entanto, eu não consigo sentir culpa por isso, de onde eu venho, nãotemos esse conceito de que você deve passar o resto da sua vida com umapessoa, há três pessoas nesse mundo que eu chamo de pai, nossas famílias sãoassim em Clypeus, nós somos assim, eu sou assim.”“O que me impediu de falar a verdade para Matti foi meu medo de ficarsozinha, minha família está toda em Clypeus, há dez anos eu estou só aqui, ea ideia de pessoas saindo da minha vida me acorda com pancadas na caladada noite–”De repente, a senhorita Sororia se calou, respirando cansada e confusa, asquelíceras tocando os lábios finos, piscando um par de olhos de cada vez,tentando entender algo.Alaia, no entanto, já havia entendido.Christina estava invisível ao lado de Sororia, e havia acabado de usar o LuxVeritas, o Poder da Verdade nela.Sororia tapou seu quinto olho antes que pudesse mostrar que ia começar achorar, Christina vagou para trás da poltrona, onde Alaia a viu tornar-sevisível novamente e deitar-se como um filhote de leão cansado, usando ospróprios cachos acastanhados como travesseiro.

“Samson, por favor, leve o senhor Matti Apoja para a Limpeza deLuz.”

“Sim, senhora.” Samson respondeu, retirando um pasmo, boquiabertoe inconsolável Matti Apoja da sala e deixando Dani e Sororia sozinhos comIhab e Alaia.

“Permitam-me tomar seus ouvidos emprestados por algunsmomentos: não muito tempo atrás, anjos tinham algo chamado ‘Justiça dosAnjos’ que, dentre inúmeras leis, proclamava: aquele que atenta contra a vidade um igual, não merece a vida para si mesmo. Em outras palavras,assassinos, mesmo os que falharam em seus assassinatos, devem ser mortos.Por incrível que pareça, os D’arlit tinham leis incrivelmente semelhantes,embora fossem aplicadas de maneira arbitrária.”

“Graças à Harbinger da Luz, não vivemos mais num mundo de visãotão preta e branca sobre crimes e suas respectivas motivações, por isso aLimpeza de Luz existe.”

“Eu, sendo filha de Ezequiel e criada por anjos, sinto que a pessoa queeu amo pode se apaixonar por outra e vejo isso como algo adorável, o opostode uma traição, e eu poderia ter tudo para julgar Matti Apoja como umassassino em potencial e um psicopata megalomaníaco, se fossem os tempos

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antigos.”“Mas nós sabemos que esses conceitos são da minha cultura, e

também sabemos os conceitos da cultura onde Matti Apoja e Dani Kaupiforam criados, não sabemos, senhorita Sororia?” Perguntou Alaia comalfinetes na voz.

“Sim, majestade.” Sororia respondeu.“O que a cultura deles os ensinou, senhorita Sororia?” Insistiu Alaia.“Que amor é algo dividido entre um casal e, eventualmente os filhos.”“E por que você não avisou Matti e Dani que você não enxergava as

coisas desse jeito?”Sororia cruzou todas as suas mãos violetas atrás de suas costas, virou

sua cabeça para baixo e mordeu os lábios, sem usar as quelíceras, sem emitirsom algum, o que foi a deixa para Alaia continuar: “Porque a senhorita é umacovarde.”

Sororia engoliu a verdade atirada contra ela, encolhendo-se um poucomais contra a parede enquanto o hematoma se formava em sua garganta: derepente, Alaia percebeu que seu laço vermelho, suas mangas estilo julieta, osbabados de sua roupa, todos eles combinavam com a senhorita Sororianaquele momento, pois eram roupas de criança, vestindo todo o medo de umamulher feita.

“Dani Kaupi, você também é um covarde, pois poderia ter contado averdade para seu amigo tanto quanto a senhorita Sororia poderia.” Alaiaemendou, Dani limitou-se a assentir com a cabeça enquanto ainda olhavapara baixo.

Alaia respirou fundo e deu uma rápida olhada em Christina: elacochilara atrás da poltrona, com a respiração leve como amor no verão.

Então, olhou para o livro de memórias da Harbinger da Luz e, comuma leveza estranha no coração, sussurrou em sua mente: “E agora, Wendy?Era você quem sabia cuidar desses problemas.”

Mas ninguém respondeu.Alaia não esperava que respondesse, seria como se Wanda começasse

a falar: Estranho, um motivo para procurar tratamento, mas reconfortante aomesmo tempo.

“Se querem corrigir o erro de vocês, esperem que Matti passe pelaLimpeza de Luz, então conversem com ele, tentem se entender da melhorforma possível, aceitem que há uma possibilidade de que talvez vocês trêssejam forçados a seguir caminhos separados depois de hoje, ou talvez que

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tenham uma relação para construir, me entenderam?”“Sim, ó majestosa.” Sororia e Dani responderam.“Bom. Ihab, leve-os para a antessala de espelhos, espere com eles até

que Matti saia do saguão, então encontre um cômodo para que eles possamter esta conversa à sós, entendido?”

“Sim, senhora.”“Ótimo, podem ir.” Alaia declarou em tom definitivo.Quando a certeza da solidão penetrou seu cerne, Alaia apressou-se

para trás da poltrona, sem saber o que sentir, o que pensar, o que dizer e sóuma ideia bem vaga sobre o que fazer.

“Christina, Christina acorde!” Ela pediu, sentindo o rastejar sinistrodo desespero abrir caminho até sua voz, “CHRISTINA POR FAVORACORDE!”

“Te assustei, vovó?” Christina sussurrou cansada, sem abrir os olhos.Alaia não queria fazer o que fez em seguida: estalou um tapa no rosto

de Christina e, no instante em que viu a marca de sua mão no rosto da neta esua boca contorcendo-se em choro, a máscara de Alaia Capricornius tambémse desmoronou em pranto.

Tal vó, tal neta.“Me desculpe...”Foi tudo que sua voz trêmula conseguiu dizer.Durante minutos infindos, ou talvez só cinco, as duas ficaram ali:

Christina parando pouco a pouco seu choro nos braços da vó, enquanto Alaiasentia sua culpa chicoteando suas costas pela monstruosidade que ela acabarade cometer.

“O que eu fiz de errado, vó?” Christina perguntou, enterrando mais orosto nas roupas de Alaia, que sentiu aquela pergunta queimar no seu corpo ealma.

“Eu pensei que você ia morrer.” Alaia murmurou quando percebeuque havia reconquistado algum controle sobre sua voz; suas palavras alembraram de incrementar o quarto tipo de medo que havia acrescentado emsua lista só um pouco mais cedo: medo de Christina, e por Christina, pormotivos, muitos motivos.

“Por quê?” Perguntou sua neta, o filhote ferido de leão, esperando ador sumir.

“Porque eu já perdi alguém na minha vida para Lux Veritas: eladescobriu que tinha controle sobre o Poder da Verdade, treinou, treinou e

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treinou para que pudesse usá-lo sempre ao seu favor, mas o efeito colateralfoi demais, ela nunca se recuperou... ela era tão nova... e você é ainda tãomais nova que ela era... me desculpe meu anjo, me desculpe, você meassustou mais com isso que com sua cara de banshee.”

Primeiro, uma quietude, mal-assombrada pela preocupação de Alaia,fez moradia no quarto, depois uma explosão de gritos distantes tentouespantá-la, mas só conseguiu dividir o espaço cada vez mais claustrofóbicodo cômodo.

“Vai começar o banquete do queijo.” Foi Christina quem disse, aindacom a cara enterrada no tecido da roupa de Alaia, que já estava quente eúmida com lágrimas.

“Sim... espero que tenham feito a lasanha de quatro queijos surpresa,era a favorita da Harbinger da Luz, contanto que tivesse aquele queijo fortedo mundo dela, gorgonzola.” Alaia comentou, fazendo carinho nos cachos deChristina.

“Eu também gosto.”“De gorgonzola?”“De você, vó.” Christina disse, segurando a mão de Alaia que havia

acertado seu rosto um pouco mais cedo, “me desculpa te assustar.”Mais tocada que palavras podem descrever, Alaia respondeu: “Tudo

bem, meu anjo, me desculpe pelo tapa, eu não sei o que me deu.” confessouenvergonhada.

“Vó, seu tapa ainda é bem forte.”“Algumas coisas nunca mudam, você quer almoçar, meu anjo?”“Dá pra gente comer no quarto? Eu ainda quero ouvir a história da

Wendy, e entender como e porque tinham D’arlit em Virrat.”“Tudo bem, meu anjo.” Alaia murmurou.Quando Christina finalmente se levantou, havia círculos escuros em

seus olhos avermelhados, seu corpo não mostrava sinais de ter energiasobrando e... seu rosto era como o de alguém que vendera a própria liberdadeem troca de aceitação numa sociedade doente.

“Vó? Por que a dona aranha disse que a estátua da Harbinger da Luztá incompleta?”

“É o nome da estátua, meu anjo, Estátua Incompleta da Harbinger daLuz.”

“Por que não terminaram ela?”“Só porque algo está incompleto não quer dizer que não esteja

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terminado, meu anjo.” Alaia respondeu, sem saber ao certo se sentiareconfortada pela curiosidade de Christina ainda estar aqui, ou preocupadacom a falta de entusiasmo na voz dela ao fazer as perguntas.

“Mas, o que falta na estátua?”“O mesmo que faltava em Wendy quando ela faleceu.”“Vida?”“Não, bem, também, mas é algo mais simples que isso, se você

continuar ouvindo a história, vai descobrir o que é, eu tenho certeza. Eu sóqueria entender porque eles insistem em retratar Wendy como que em guerrasendo que lembram dela como diplomata da paz.”“Ela decapitou três Lordes Comandantes dos D’arlit com uma única flecha.”Christina murmurou em resposta.“Uma única flecha, não um único tiro. Ainda assim, bom argumento.”Suspirou Alaia derrotada, “vamos comer, então continuaremos a história, oque acha?”“Eu acho que você pode se perdoar, vó, eu já te perdoei.” Christina disse comum sorriso tão cansado que cortava o coração de Alaia. “E eu também te amo,obrigada por se preocupar comigo assim.”Os arrepios em sua espinha e a maldição da mudez perseguiram Alaia dali atéo momento em que voltaram a ler o livro de memórias da Harbinger da Luz.Wendy realmente deveria ter conhecido essa criança.Seria bom.

Seria bom e seria justo.Todavia, como os próximos capítulos ensinam: justiça não é o forte destemundo, nem do próximo.

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Capítulo 28

Não podia ter gritado. Ela nunca gritou enquanto dormia com Kristell. Outalvez gritasse e Kris apenas tivesse tato o bastante para não dizer nada.Se for o caso, Wendy agradeceria mais tarde.Nenhuma reação dele ainda.O grito deve mesmo ter sido só na sua cabeça, o que fazia todo sentido domundo: se ela tivesse gritado de verdade, sua garganta arderia, e Caleb teriaacordado com certeza.Wendy não queria isso.Bem, em partes, queria, mas ele precisava descansar.Aliás, ele precisava era de uma brigada de médicos mágicos da terra dosElfos!Mais cedo, depois que Caleb caiu inconsciente no quarto, Wendy, Kahsmin ealguns dos jovens que estavam espalhados nos cômodos da Catedral deTuonela se juntaram para carregá-lo até o farol onde ele morava.Chamaram Paloma para tentar curá-lo, mas deu um pouco errado: “Ele nãome deixa por a mão nele!” Ela gritou enquanto assoprava as mãos.“Como assim?!” Alguém que Wendy não conhecia perguntou.“Ele é mestiço de anjo, só os demônios que ele permite podem tocá-lo sem semachucar.” Kahsmin explicou, “você trouxe as ataduras?”Kahsmin, Wendy e um garoto humano fizeram os curativos. Ela contou seiscortes profundos ao todo: dois nas costas, um no abdômen, dois no peito eum na perna.A boca de Caleb jazia entreaberta, em contraste aos olhos escondidos porpálpebras seladas, ele cheirava à...“Morte, mais morte... ele vai morrer...” Wendy disse, fazendo um esforçosem tamanho para não chorar ao lado de Kahsmin.“Não, ele não vai. Ele já esteve pior.” Kahsmin disse, mas Wendy não sentiunenhuma convicção na voz dele, “vamos, ele precisa descansar.”“Não! Eu vou ficar aqui com ele!” Wendy respondeu, e por muito tempoKahsmin não teve ideia do porque ela estava falando isso, afinal, como elepoderia saber o que havia acontecido entre os dois?“Wendy, é melhor–”“Deixe-a ficar.” A voz de Caleb soou fraca atrás deles.

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“CALEB!”Kahsmin era a surpresa, Wendy era a alegria. Ela se jogou sobre a cama paraabraçá-lo, indiferente para o sangue que passava pelas ataduras dele para asroupas dela.“Deixa-a ficar aqui.” Caleb pediu, e voltou à inconsciência.Sem perguntas, Kahsmin saiu.Desde então, Wendy tinha estado ou em uma cadeira ou deitada no chão,contando as desventuras em série que viveu no Orfanato das Neves, sobreChristina, Mary e Kristell, e o tipo de coisa que elas costumavam fazer, comoo episódio do deus lhama, ou a vez que que Wendy convenceu Christina deque acampar na Floresta Branca ia ser uma ótima ideia.“Eu falei pra Christina que eu tinha um mapa da floresta, mas na verdade erauma folha de papel em branco com um circulo no meio escrito “você está”,era um mapa pra mim, eu nunca me perdi com ele, mas a Christina nuncamais quis acampar comigo, por isso eu resolvi fazer um mapa de verdade daFloresta–”Caleb havia sido um ouvinte tão bom quanto Wanda até então.Depois passou para os acontecimentos em Tuonela, como por exemplo:enfrentar a grande meretriz assassina D’arlit, a Harbinger da Morte.Ela contou detalhe após detalhe do que aconteceu: como ela quase morreunas garras da princesa, como Kristell e Autumn salvaram sua vida, comoAutumn deu uma bronca violenta em Kahsmin depois disso, foi muito legalessa parte.Confessou o quanto ela estava sentindo a falta dele...Claro, Caleb ainda não estava acordado, e ela mesma, por força dascircunstâncias (entenda “força das circunstâncias” como “estar com fome enão ter comida”), acabou dormindo também.Até seus pesadelos de rotina a acordarem. Talvez devesse tentar dormir denovo ou procurar alguma coisa para ajudar Caleb a melhorar. Embora ela nãotivesse ideia do que poderia ajudá-lo. Talvez o sono por si se provasse obastante.Ou talvez ele estivesse morrendo em silêncio bem na frente dela.“Pesadelos?” A voz dele rompeu a quietude, pegando Wendy de surpresa.“... eu gritei?”“Gritou, e ficou arfando por um bom tempo depois disso.”“Desculpa. Não queria acordar você.”“Eu já estava acordado havia um tempo.”

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“... quanto tempo?” Wendy perguntou, sentindo um crepitar de medo no seucoração acelerado: já havia sido difícil o bastante dizer que sentia a falta deleenquanto ele dormia, a simples ideia de que ele podia de fato ter ouvido tudoa deixava, em termos amenos, inquieta.“Eu não sei, você estava dormindo quando acordei.” Ele sussurrou, comaquela voz calma e veludosa que era capaz de envolver Wendy em braçosinvisíveis e fazê-la sentir coisas que ela não sabia que podia sentir.“Você está melhor?” Ela perguntou.“Logo vou estar.”“Você assustou a gente.”“É um velho hábito, difícil de largar.”Wendy deixou, apenas mais uma vez, o silêncio formigar entre os dois, paraque ele descansasse um pouco, para que ela pudesse formular melhor apergunta que valsava na ponta da sua língua.“O que aconteceu em Virrat?”“Eu fui pego de surpresa.” Confessou sem pensar.“Mas achei que você e Anuk podiam sentir a presença de inimigos.”“Nós podemos: Eu estava vendo o rosto de todos os D’arlit quando eu fuipego de surpresa.” Ele disse, e então levantou uma mão para Wendy: a mãoque ela havia perfurado dois dias atrás, “eu estava pronto para conjurar o arcoe flecha, mas essa mão, ela falhou e o arco simplesmente não apareceu.Eu entrei em choque, e fui pego de surpresa. Consegui me recuperar emtempo, mas eles fizeram isso comigo antes que eu pudesse me livrar detodos.” Ele narrou com frieza, como se a história não tivesse acontecido comele, mas com alguém que ele assistiu de longe.Ou como se ela sequer tivesse acontecido.“Tem certeza que eram os D’arlit?” Wendy perguntou.“Por que a pergunta?”“Bem, a maldição de Virrat não impediria os D’arlit de viverem lá? Ou entãonão poderiam ser demônios que fugiram do Hospício de Virrat?”Caleb levantou a cabeça para Wendy, fez um olhar intrigado e disse: “Agoraque você mencionou... isso realmente faz mais sentido para mim.”“Eu sei, eu sou um gênio.” Wendy disse com um sorriso leve. “Quantoseram?”“Anuk acha que havia mais de cinquenta, eu já venci exércitos maiores–”“Cadê ele?”“O Anuk? Ele me mandou voltar para Tuonela. Acho que ainda está Virrat,

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procurando os garotos que sumiram por lá, ou investigando a presença deuma míriade.”O vento cantou alto na calada da noite: pássaros sem nome bateram asas emuníssono com o canto dos insetos, a lua minguante iluminava muito mal oquarto: O piano jazia fechado em um canto: apenas um borrão preto comdentes demais na boca calada.Uma boca cantante, forçando a quietude de sua música verdadeira, era difícildizer quem sentia mais empatia com o instrumento: Wendy ou Caleb.“Eu achei que você ia morrer.” Wendy confessou.“Nada pode matar a Morte em Pessoa.” Ele respondeu categoricamente.Wendy achou que ele ia dizer algo mais, mas se ia mesmo, as palavrasficaram presas na sua boca.“Por que você se chama de Morte em Pessoa?” Wendy perguntou.“Meu pai é o Anjo da Morte.”“SÉRIO?!”“Talvez.” Caleb respondeu, com uma risada dolorida e contagiante como umbocejo, “é um título, títulos e a reputação que os cercam assustam: metadedas batalhas são ganhas quando ouvimos quem vai lutar com quem.”“Bem, eu tô feliz por você ter voltado, com ou sem título.”“Eu também.” Ele disse, tentando se virar para ela, apesar de toda a dor quese evidenciava em seu rosto ao tentar fazê-lo.“Não se mexa.” Wendy pediu, se levantando da cadeira e se aproximando dacama.A testa dele podia estar enfaixada, mas ela ainda podia ver seu cabelo cor deneve e a tempestade cinzenta que se formava em seus olhos: bela e perigosapor natureza, era o que a tempestade era. Wendy queria se afogar nela, deixara nevasca atingi-la, fundir-se com ela.Sem perceber, seus lábios rosados tocaram os de Caleb: um beijo quentecomo o verão, descorado como o inverno, doce como a primavera, longocomo o outono. Naquele instante, Caleb era suas estrelas, sua noite, sua luz,suas quatro estações, sua eternidade presa em um segundo.Ela parou apenas para saber o gosto de seu reflexo naquele cálido olharcinzento; o calor da respiração dele contra a dela, os dedos dele deslizandolentamente na pele fina de sua nuca, provocando os melhores arrepios queseu corpo já teve o prazer de sentir.Dois amantes, no coração de uma cidade em guerra.“Eu amo você, Caleb Rosengard.” Não, ela não chegou a dizer isso, era

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precipitado e atirado demais para ela, mas era verdade que as palavrasestavam presas na ponta de sua língua, lutando para escaparem da prisão aque foram sentenciadas.“O céu está lindo nesta madrugada.” Foi o que Wendy realmente disse.“Eu não me importo com céu, não com você aqui.” Ele sussurrou para ela,“eu fiquei preocupado com você.” Ele acrescentou, tirando uma mexa curtade cabelo dos olhos de Wendy, que duvidou que ele soubesse o quantoaquelas palavras amoleceram seu coração.“Por quê?”“Anuk me contou sobre a noite passada... digo, retrasada; o que a Harbingerfez com você. Aquela foi a primeira vez em muito tempo que eu quis estarem Tuonela. Para proteger você.”“Você sempre me protege, você é meu elfo da guarda.” Ela disse apertandoCaleb com força, mas não o bastante pra fazer os ferimentos dele abrirem denovo. “Você não gosta muito dessa cidade, não é?” Ela disse, se sentando nacama, ao lado dele.“Não, e é recíproco.” Ele disse, com os dedos ainda brincando distraídos nasmãos dela.“Por quê?”“Acho que já contei essa história uma vez.”Sim, e Autumn ainda havia complementado esta história, mas ela queriamais.No entanto, por mais que Wendy quisesse pressioná-lo para descobrir o quese ele ainda estava escondendo algum detalhe, não podia fazê-lo com eleneste estado, e não depois de um momento tão perfeito com ele.Não, ela não iria pressioná-lo.Diretamente.“Autumn vai me treinar.”Caleb virou para Wendy com cara de “O QUÊ?!”.“Então nós não vamos mais–”“A gente vai continuar treinando sim! Eu vou ser a melhor arqueira dessacidade, pra todo mundo saber que eu também sou uma elfa! Só preciso verela uma vez por semana.” Wendy disse, se segurando para não rir.Talvez não fosse verdade, mas ela gostou de imaginar que ele tinha medoperder as manhãs junto com ela.É, ela gostou muito dessa ideia.“O que ela vai ensinar? Além de motivos para me odiar?” Caleb perguntou.

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“Ela vai me ensinar a controlar a transformação, e algumas outras coisas queeu não entendi muito bem. Sei lá, na maior parte do tempo ela me falou queachava que eu era uma espiã dos D’arlit. Aliás, por que ninguém me disseque o Kahsmin se chama Henrik?!” Ela perguntou bem humorada.“Porque ele odeia esse nome.” Caleb disse. “Bem, eu nunca ia poder teensinar nada sobre transformações, nem se você fosse uma mestiça de anjo.”“Tem bastante coisa que você pode me ensinar.” Wendy disse com umsorriso torto.“E você aprende bem rápido.” Caleb disse, erguendo a mão que ela haviaatingido.“Você não vai me deixar esquecer isso, né?” Wendy disse, tentando mostrarmenos culpa do que de fato se sentia.“Não, foi seu melhor tiro.” Ele disse com simplicidade.Como alguém poderia não gostar de alguém que consegue arrancar toda aculpa do seu peito e, com algumas palavras e o tom de voz certo, transformá-la em conforto? Se ele fosse uma pessoa normal, provavelmente tentariaacertar uma flecha nela de volta, e de certo não seria na sua mão que miraria.“Então, estamos em guerra.” Caleb comentou.“Estamos.”“Como Kahsmin reagiu?”“Ele se pronunciou na manhã de ontem. Parece que ele fez um discursofantástico, porque ninguém falava de outra coisa além dele. Eu queria terouvido, mas estava comendo na hora.” Ela disse, esfregando os olhos.“Sério? Curioso.” Caleb disse, parecendo incrédulo.“Por quê?”“Histórias. Guerras o presentearam com histórias o bastante para atormentá-lo por uma vida inteira.” Caleb disse, olhando para cima.“Sobre a invasão dos D’arlit dezoito anos atrás?” Wendy perguntou, já estavacansada de ouvir sobre essa invasão e não saber nada além de que Tuonelaperdeu.“Também, mas a guerra entrou na vida dele muito antes dos D’arlit, quando aguerra não era entre anjos e demônios, mas sim entre humanos, em outromundo. As coisas que aquele homem viveu o forjaram para evitar o confrontoa qualquer custo, por isso ele sempre prefere a diplomacia.” Caleb disse.“A cidade achou que ele estava sendo covarde.”“A cidade de Tuonela é formada por uma corja de hipócritas ingratos.” Umquê de indignação ficou bem audível na sua voz. “Ninguém teve coragem de

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reclamar diretamente com ele enquanto o plano estava dando certo.”“Calma, Caleb, esquece eles. Que histórias são essas que você mencionousobre o Kahsmin?” Wendy perguntou, em parte querendo acalmar Caleb, emparte exercendo sua quase infinita curiosidade.“A guerra em si já deveria ser resposta o bastante.”“Mas não foi a guerra em si, não é? Se fosse você já teria me dito.”Caleb estudou Wendy: a lua começou a brincar de esconde-esconde com asnuvens, mergulhando o quarto num escuro reluzente. Reluzente porque,Wendy percebera, havia vagalumes voando ao redor da janela, dentro doquarto, quase em toda parte.“Eles gostam mesmo de você. Você acha que tem algum poder sobre eles?”“Não, e para de mudar de assunto, eu quero saber o que–” Wendy foiinterrompida.“Kahsmin me pediu para não contar. Ele não quer essa história circulandopelos ouvidos da cidade, e eu respeito a decisão dele.” Caleb disse, assistindoWendy emburrar-se com aquela demonstração irritante de fidelidade àvontade dos outros, “isso não impede que você descubra por si mesma.”Acrescentou.“Como assim.”“Kahsmin parece gostar de você. Se você fizer as perguntas certas, na horacerta, ele vai contar.” Ele disse, como se aquilo fosse um jogo para entretê-loenquanto se recuperava.“Eu não sabia que você sabia imitar biscoitos da sorte.” Wendy dissebrincalhona.Caleb quase esboçou um sorriso, vendo o rosto de Wendy se iluminar com aluz verde dos vagalumes, intensificando ainda mais a cor dos olhos dela.“Se ficar perto por tempo o bastante, vai ouvir Kahsmin cantarolar umapequena canção, o rosto dele vai estar pesado quando ele o fizer. Quando over assim, pergunte onde ele aprendeu a música. Ele vai te dar as respostasque você quer.”Okay, ainda não era a resposta que Wendy queria, mas sem dúvida era bemmais específico que o conselho à lá biscoito da sorte que ele havia dado antes.“Obrigada.” Ela disse por fim e, quando a lua saiu de seu esconderijo dasnuvens, Wendy bocejou enquanto coçava as costas.“Você deveria dormir.”“Eu não quero.”“Por que não?”

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“O filme que passa na minha cabeça à noite me dá muito medo.” Wendydisse com a voz mais inocente e infantil que conseguia usar. Explicou opesadelo sobre sua mãe e Ally que vinha tendo desde que chegara emTuonela. Talvez não fosse a primeira vez que ela contava para ele, mas elanão se lembrava, e ele não interrompeu.Quando ela havia terminado, ele perguntou: “Você já se encontrou comMortimer?”“Quem?” Wendy perguntou, sentindo que já ouvira esse nome antes.“Mortimer Von Schenzel. O ex-olheiro, Kahsmin sempre arranja umencontro entre os mestiços e Mortimer.” Caleb disse, e percebendo queWendy ainda não tinha se tocado de quem ele estava falando, acrescentou,“ele costuma descobrir quem são os pais dos mestiços.”“Ah! Kahsmin disse que a gente ia se encontrar perto no dia de ano novo,mas eu não sei se eu quero ir.”“Como assim?” Caleb perguntou.“Kristell me contou a história do que aconteceu com os pais dela, e me disseque se eu gostava da esperança de rever meus pais, seria melhor eu não osprocurar.”“Qual a lógica desse conselho?”“Ela disse que era mais fácil ter esperança quando não se sabe da verdade.”“Então, para não deixar você se desapontar caso seus pais não estejam maisvivos, ela sugeriu que você não os procurasse, para você poder acreditareternamente que eles estão perambulando por aí e que um dia, magicamente,vão encontrar você? É isso?”“Aham.”“Esse é o pior conselho que eu já ouvi, por isso você não quer mais ir atéMortimer?”“Ah, eu não sei ainda se eu quero ir.”“E se eu for junto?” Caleb acrescentou.“SIM! NÓS VAMOS! E VAI SER... quer dizer... sim, claro, por que não?”Wendy perguntou, acrescentando uma risada sem graça, daquelas que vocêsolta logo depois de fazer algo que definitivamente não devia fazer, comoperguntar para uma mulher grávida “quem é o pai?” E depois descobrir queela não sabe... e que ela não está grávida.Devia ter percebido que mulheres grávidas não visitam orfanatos.“Depois que amanhecer, pedirei para Kahsmin trazer a Paloma para me ver,então treinaremos, almoçaremos e logo estaremos indo para a Ilha da

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Caveira.”“Você queimou a Paloma enquanto ela tentava te tratar.” Wendy comentou.Um suspiro cansado.“Obrigado por me avisar, vou me desculpar com ela quando ela vier.”“Espera.” Wendy disse, percebendo algo, “vamos treinar e ver Mortimeramanhã? E a guerra?”“Uma declaração de guerra não quer dizer que amanhã cedo a morte estarános esperando com um tapete de boas vindas. Essas coisas levam tempo,Wendy. Tempo o bastante para irmos até a Ilha da Caveira depois do seutreino amanhã.”“Você acha que eu vou ser uma elfa igual você?”“Elfos não ex... sim, claro que vai.” Caleb disse, olhando ansioso para opiano ao dizer aquilo.“Obrigada, mas por que está se oferendo para ir comigo? Achei que era o seutio Winslow que levava os mestiços até a ilha, ele tem o barco e tudo mais.”“Se prefere ir com um velho que acha que um frango de borracha é uma armae que não consegue formar três frases sem ofender a mãe de todos ospresentes no recinto, tudo bem.” Caleb disse indiferente. Uma indiferençaque Wendy realmente desejou ser fingida, “e eu quero que você descubraquem foram seus pais para poder descobrir o que acontece com a sua mãenesse sonho que você tem.”“Talvez sabendo o que acontece, o sonho pare de ser assustador e váembora.” Caleb disse, distraído com um vagalume no seu dedo. “Mas falandosério, se prefere ir com o Winslow–”“Não! Eu vou com você!” Droga Wendy! Não era para parecer desesperada.“Ótimo. Agora é melhor você voltar para a cidade. Talvez seja melhorterminar a noite entre seus amigos.”Dessa vez, Wendy concordou, à contra gosto: já passava da uma da manhã, eela não tinha certeza se queria perambular sozinha nas ruas da cidade deserta.Mesmo se Caleb fosse junto (o que ele não faria, por motivos óbvios), a ideiaa agradava tanto quanto a ideia de ser pega pela irmã Romena colocandogelatina dentro do travesseiro dela (longa história).Eles se beijaram mais uma vez: não foi longo, mas foi bom, quente, comgosto de vida.Quando estava descendo as escadas, ouviu a voz de Caleb dizer: “Eu gostomuito de você, Wendy.”Ele não estava se dirigindo a ela, mal estava olhando na direção dela, mas fez

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questão de falar alto o bastante para que ela ouvisse. Sensações estranhas esem nome perambularam por seu corpo, como intrusos bem vindos, quandoela parou na escada e percebeu que havia um sorriso penduricado em seurosto.“Eu também gosto muito de você, Caleb.”Disse, e se retirou do farol.Ela já estava muito longe quando Caleb terminou sua frase inicial:

“Me perdoe por mentir para você, Wendy.” Caleb sussurrou ao ter certezaque estava só.A luz dos vagalumes deixou o quarto junto com Wendy: não havia sono paraCaleb: estava condenado a horas preso na cama, sem absolutamente nadaalém de livros que já se esgotara de ler.Poderia tocar o piano, mas a dor parecia infinita em seu corpo.E no fundo, não queria estar fazendo barulho quando ele chegasse.E ele chegaria. No momento em que Caleb foi atacado em Virrat, soube quechegaria.Também soube que não eram D’arlit, fugitivos do hospício ou míriades(apesar de haver míriades em Virrat, de acordo com Anuk) os responsáveispelo ataque que sofreu. Não, aquilo era algo muito específico, calculadoquase que perfeitamente para destruir Caleb Rosengard.E quase deu certo.Caleb devia sua vida à Anuk, e tanto o homem quanto o lobo sabiam disso.Um movimento sorrateiro passou quase despercebido por seus olhos.Quase.“Achei que tinha me livrado de você.” Caleb disse enquanto fechava osolhos.Respirando pesado como se estivesse sendo sufocado lentamente pelos dedosfinos, compridos e pontiagudos da ansiedade que sentia, o vulto feito desombras invadiu o quarto, enchendo-o como se neblina e assim, quebrando osilêncio aziago.“Caleb Rosengard nunca estará livre de mim e do mestre, não enquanto CalebRosengard respirar.”

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Capítulo 29

“Ai, isso aí tá doendo?”A Harbinger não respondeu, recusou também olhar na direção de Ally: oúnico trabalho ao qual se deu foi prostrar-se na cadeira em frente à janela deseu quarto, agindo com toda a indiferença que uma pessoa pode fingir quandose tem um corte aberto na testa, tingindo sua pele pálida com tons escarlateescuros e pulsantes.Ela não limpou o corte, sequer havia tomado conhecimento dele: seu coraçãoe seu orgulho gritavam uma dor muito mais forte comparada àquela resultadade um mero dano físico que Allenwick D’arlit cometera contra sua própriafilha no meio de sua “correção disciplinar”.Não, ela não ia chorar, não dessa vez, não com a pirralha aqui.“O que o papai disse?” Ally insistiu.Cogitou permanecer muda, mas a quietude só provaria que estavamachucada, e ela não podia se dar ao luxo de estar machucada: ela era aHarbinger da Morte, a tempestade derradeira, o medo no coração do novomundo.Não uma criança birrenta.“Você lê mentes, descubra.” Disse por fim, mantendo a voz o mais firme quepode.O sangue escorreu pelo seu rosto e pingou como uma lágrima sobre suasmãos, mas ela não percebeu: estava ocupada tentando não se torturar nobarulho de sua mente. Era inútil, mas era tudo que ela podia fazer.“Só leio mentes quando toco as pessoas, e só funciona quando elas sãodemônios, não tenho poder nenhum com gentinha humana.”“Está insinuando que eu não seja um demônio?” A Harbinger perguntou,sentindo uma tentação sussurrando em seus ouvidos: estrangule Ally,imagina que lindo vai ser quando a vida deixar os olhos castanhos fogo dela.“Não, tonta, é que você tá longe!” Ally disse rodopiante.Um lampejo de brilhantismo, uma nota mental: usar Stefanova para matarAlly quando conveniente.Interessante como fosse, a diversão oriunda daquele pensamento não era obastante para distraí-la ou fazê-la sentir-se bem, forte e poderosa, como osD’arlit deviam ser.

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A Harbinger se sentia encurralada numa prisão construída no cerne de suamente, com muralhas indestrutíveis e guardas prontos para derrubá-la aomenor sinal de resistência.Tudo construído por seu próprio pai.Não havia como vencer.Não para ela.“Você não quer que eu descubra à força, né sua fanfarrona?” Ally disse, masdessa vez, não havia o típico tom de ameaça infantil que aquela criançainfligia: era quase como se ela se importasse.Que ilusão agradável: pensar que alguém se importa.Por que ela ainda fingia acreditar nisso? Ainda mais vindo de uma peste quegostava de matar guardas porque eles “não eram educados com ela”.Bem, talvez seja porque a ilusão era realmente agradável.“Ele me puniu por ter deixado Neri e os outros morrerem. Disse que...” suavoz falhou, ela quase sucumbiu à dor que sentia, quase “... disse que se eufosse uma boa filha, teria feito o favor de morrer junto com eles, pelo menosassim ele... poderia descansar sabendo que aquela seria a última decepção queeu causei.”“Seu pai nunca foi muito doce com as palavras.”Aquela não era a voz de Ally.A Harbinger se virou: Stefanova e Ally estavam sentadas na mesa de xadrez,jogando.Na verdade, apenas Stefanova estava sentada: Ally estava plantandobananeira na mesa e usando os pés descalços para mexer nas peças.“Por que ela está aqui?” A Harbinger perguntou, apontando para Stefanova.“Porque você é mongoloide demais no xadrez.” Ally disse, colocando seubispo no caminho da torre de Stefanova, mantendo seu rei à salvo, “e porqueessa moça é muito mais educada comigo que você.”“Que criança adorável você encontrou aqui.” Stefanova disse lenta e com umsorriso complacente, enquanto seus dedos escuros arquitetavam a destruiçãode Ally. “O que mais seu pai disse?”“Você sabe o que ele disse.”“Não eu não sei, e eu quero que você desabafe, criança. Se tem algo que eusei sobre Allenwick é que ele sabe bater onde dói, e você precisa desabafarpara aliviar a dor.”Odiava Stefanova e o jeito como ela estava certa: seu pai sabia bater ondedoía.

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E ela nunca soube se defender.“Depois que ele terminou, depois que ele fez isso.” Ela disse apontando parao corte na sua testa, que continuava sangrando, “ele me olhou nos olhos...”força, mostre força para essas duas, senão elas nunca respeitarão você, “... meolhou nos olhos e disse que minha irmã nunca o decepcionaria desse jeito.”Ela desviou o olhar para a janela, sabia que seus olhos estavam inchados; osangue ajudaria a disfarçar as lágrimas, mas não o tremor de seus lábios.“Ele realmente sabe bater onde dói.” Foi Ally quem fez o comentário.“Querida, você, precisa superar e seguir em–”“FRENTE!? EU ESTOU TENTANDO SEGUIR EM FRENTE FAZ MAISDE VINTE ANOS! EU SOU A PESSOA MAIS TEMIDA NESSECONTINENTE INTEIRO DEPOIS DO MEU PAI! NÃO HÁ UMAPESSOA QUE NÃO TREMA AO OUVIR MEU NOME E MESMO ASSIMELE ESTA DECEPCIONADO COMIGO! E NÓS DUAS SABEMOSPORQUE: MINHA IRMÃ ERA A FAVORITA, SEMPRE FOI E SEMPREVAI SER, EU NUNCA VOU SER O BASTANTE PRA ELE, NUNCA!”Sua voz ecoou pela janela e pelos corredores do castelo: não adiantava maisdisfarçar o que estava sentindo: dor e rejeição estavam escritas nas linhas deseu rosto quando os soluços vieram e o sangue tocou suas lágrimas.Naquele instante, ela era a pessoa mais miserável daquele mundo.“... ele nunca gostou de mim.” Murmurou por fim, “eu nunca ouvi um elogioda boca dele que fosse dirigido para mim... que droga! Ele não ia morrer sepelo menos fingisse apreciar o que eu faço por ele. Continue o jogo,Stefanova.” Ela disse quando percebeu que a senhora estava abandonando amesa para consolá-la.Ninguém podia consolá-la.Por menos tempo do que pareceu, só houve o baque abafado das peças dexadrez sapateando sobre o tabuleiro, misturado com o choro frágil daHarbinger... não, ela não era a Harbinger da Morte, ali, não agora: era apenasa filha indesejável de Allenwick.“Como você descobriu onde estavam os índios feiosos?” Ally perguntouenquanto mexia o cavalo com os dedos do pé.“Com o recurso mais valioso do mundo: contatos.” A Harbinger respondeucom tom de desdém, a frase que dissera era uma das favoritas de seu pai.Bem lembrado, Ally: seu pai não tinha sequer mencionado seu feito, omesmo que ele próprio havia ordenado que ela fizesse. Estava ocupadodemais, mostrando o quão patética ela era como filha. Obrigada, pai.

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“NÃO! NÃO! NÃO! E NÃO!” Ally gritou e correu feito doida pelo quarto dafilha infeliz do rei dos D’arlit. Realmente, ver Ally perdendo tinha umaespécie de poder mágico, capaz de melhorar o astral da Harbinger o bastantepara fazê-la esboçar um sorriso.Era efêmero, mas era o bastante agora.“Qual foi o erro dela, Stefanova?” Ela perguntou, enquanto Ally ainda gritavafrustrada. “Ela deixou o rei encurralado por peões, mas é uma boa jogadora.”“EU QUERO REVANCHE!” Ally gritou, batendo os punhos na mesa.“Será um prazer.”E ambas montaram as peças novamente. Dessa vez, Ally estava sentada comoum ser não tão humano normal em sua cadeira.Stefanova e Ally se divertiam enquanto a inquietude crescia dentro daprincesa, como um cogumelo venenoso ou uma doença mal curada.“Você citou que declarou uma guerra?” Stefanova perguntou.“Ele disse que, se um exército aparecer aqui, ele vai me deixar lutar sozinhacom eles na frente do castelo antes de tomar alguma providencia séria.Também disse que, para o meu bem, era melhor que eles não arranhassem ocastelo.” Ela contou com a voz oca como sua alma.“Seu pai parece um cara bem legal.” Ally comentou com uma voz tão alegree verídica que a princesa teve que se segurar muito para não explodir o quartoe a cabeça daquela menina com um raio.No entanto, Stefanova estava construindo, peça por peça, a derrota de Ally, ese a Harbinger tentasse destruir Ally, ia acabar interrompendo o jogo. Semcontar que, de certo, ia ser inútil atacar Ally, só ia conseguir destruir o castelode seu pai enquanto a menina escapava com os poderes estranhos dela.De algum lugar, no centro da megalópole construída pelos D’arlit, um relógiobadalava, contando uma por uma as horas que se atiravam pela noite escura.Ela sempre gostou do som dos relógios: traziam a ela lembranças de temposonde ela podia dançar em bailes de máscara sem se preocupar em matar todospresentes no recinto.“Quatro horas.” Ela disse, quando o último eco fumegante do relógiocaminhou calmo, quase letárgico, em direção ao seu sepulcro de serenonoturno.Ally levantou os olhos do tabuleiro.“Está na hora.” Ela disse, ela disse, mexendo uma peça. “Xeque.”“Hora de quê?”Alguém bateu na porta do quarto: a princesa levou os olhos confusos para a

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mesa de xadrez: Stefanova estava ocupada, se livrando do xeque, Ally faziagestos para a Harbinger ir até a porta.“Abre logo!”“Quem está do outro lado?”“Um amigo.”“E como ele entrou aqui?”“Com magia negra e sacrifícios animais, abre logo a porta!” Ally dissezombeteira, enquanto colocava Stefanova em xeque de novo: sem perceberque estava à duas rodadas de perder a partida.A Harbinger tentou enxugar o rosto, mas acabou por espalhar ainda mais aslágrimas e o sangue: sentia como se tivesse acabado de sair de uma guerra.E de fato, ela tinha. Uma das piores.Quando abriu a porta, não viu nada além de névoa: era como se o corredorinteiro tivesse sido devorado pelas marés dos mares negros, onde a neblinaera tão densa que chegava a sufocar.Arrepios explodiram em seu corpo quando uma mão fria tocou seu ombro nu.“Boa noite, Princesa D’arlit.” A voz soava dissimulada e macilenta, emboraele não aparentasse ser muito mais velho que ela própria.Eles eram quase da mesma altura: ele tinha o cabelo curto e branco, um rostoretangular com bochechas ossudas e um sorriso de coringa. Tudo isso envoltoem uma jaqueta preta que parecia pesar como a dor que ele de certo era capazde causar.Como ela sabia que ele causava dor? Aparências: era alguma coisa no sorriso,nos olhos sem cor e no cheiro de flores perfumadas, afinal, um cheiro fortenão esconde outro, apenas o piora.Tudo nele parecia ser feito para ludibriar e distrair.Ele poderia muito bem se chamar Trapaceiro.Ele pegou a mão dela, se ajoelhou e beijou-a, antes de dizer: “Acredito que jános vimos antes.”“Quem é você e por que está aqui?” A princesa disse, tirando sua mão doalcance.Ele sorriu e se dirigiu até a mesa onde Ally estava, perguntou de quem era avez.Era de Stefanova.Ele mexeu uma das peças e Ally havia perdido, de novo. Enquanto Allyxingava ele com todos os nomes que você consegue imaginar uma criança dedez anos usando, ele voltou a falar: “Meu nome é Gambler, princesinha, e de

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acordo com a perdedora ali: nós dois temos contas a acertar com uma pessoaem comum.” Ele disse satisfeito conseguido mesmo, enquanto suas mãosacariciavam os dedos escuros de Stefanova. Havia algo de galã neste homem.Como em todo trapaceiro.“Estamos falando de...” a Harbinger começou e Ally, Gambler, Harbinger eStefanova completaram:“Caleb Rosengard.”Gambler se sentou na cadeira que a princesa ocupara até alguns instantesatrás e fez um gesto para que ela se sentasse na outra, menos confortável, queseria normalmente usada apenas por visitas.Antes de decidir se valia a pena enfurecer-se com ele, ela olhou novamentepara o corredor.Lá havia neblina se dissipando, lá havia um chão acarpetado com linho ecorpos.“... você matou meus guardas.” Ela atestou indiferente.“Os camaradas não queriam sair da frente.”A princesa olhou de Gambler para Ally e se perguntou, com a voz de derrotana boca: “Por que eu não estou surpresa? Vamos logo com isso.”Dizendo isso, a Harbinger também começou a considerar transformar aposição de “guarda real” em uma nova sentença de morte.

Os dias começaram a passar normalmente em Tuonela, ou quase: Caleb serecuperou rápido com a ajuda de Paloma, o que significava manhãs e maismanhãs do lado dele, aprendendo a ser uma elfa, se jogando na lama, atirandoflechas, sentindo seu estômago roncar de fome por volta das onze e ter seuspreciosos minutos eternos ao lado dele.Anuk sempre parecia ter tato para se afastar nesses momentos: Lobo gentefina.Nas profundezas da cidade, Kristell mostrou para Wendy onde os mestiçosque já sabiam lutar estavam se preparando: eles eram MONSTRUOSOS!Wendy não havia visto até então outros demônios lutando armados, Elizeumanuseava a espada tão rápido que Wendy se impressionava com o fato deele conseguir respirar enquanto o fazia, Rose Sebert tinha algo de sujo em suatécnica com a lança, sujo de sangue e lágrimas de seus inimigos, Hulligan

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fazia pedaços de chão levitar ao redor dele e os atirava com os punhos,Percival, Victoria e Kristell gostavam de lutar com as mãos livres, masnenhum deles impressionou tanto Wendy quanto Tereza.“É legal, né? Se chama kusarigama, Kahsmin trouxe alguns pares dela donosso mundo, o pai dele colecionava armas marciais raras!” Kristell haviadito para Wendy quando notou a amiga assistindo Tereza.O kusarigama eram duas kamas, que era como todos que entendiam de armaschamavam as duas foices de cabo curto, uma delas tinha uma corrente grossa,de cerca de um metro e meio no topo e no, final dessa corrente, havia umabola de ferro revestida com borracha.“Ela usa essa pra treinar, numa luta de verdade, ela usaria um mangual nacorrente.”“O que é um mangual?” Wendy perguntou.“Aquela bola de ferro pesada e cheia de espinhos.”“... uau.”Wendy ficou impressionada vendo Tereza girando aquela corrente enquantooponente após oponente tentava tocá-la sem ser atingido antes.Só três pessoas conseguiram.Wendy conhecia duas delas: Kristell e Victoria.Mesmo ela não usando armas, a maioria dos demônios de Tuonela preferianão lutar com Kristell. De fato, era bem difícil dela arranjar alguém parademonstrar do que era capaz.À menos que Victoria Espinafre estivesse por perto.Quando estava, o mundo parava para assisti-las.Os ataques, por vezes, chegavam a parecer coreografados, tamanha era afacilidade e velocidade nos socos, chutes e esquivas. Uma dança rápida comouma arfada e violenta como o amor, deixando apenas pegadas de suor, poeirae sangue para trás. Wendy se pegou sem ar, apreensiva e (não conte pra irmãSarah) roendo suas unhas enquanto acompanhava o show de socos curtos,bloqueios estrondosos, chutes giratórios e o ocasional voou que aconteciaquando uma das duas jogava a outra pro outro lado do recinto.Era difícil imaginar o que a garota cabelo de mofo tinha contra Kristell, maso que quer que fosse, ficava evidente como uma espinha no nariz de umaadolescente num baile de formatura quando elas lutavam.Devia ser algum problema mal resolvido, de certo envolvendo garotos,ciúmes, inveja, ou traição.Quando pensava na última opção, Wendy considerava que talvez sua história

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com Dana pudesse ter sido reinterpretada por atrizes diferentes aqui emTuonela: uma acusação descabida e facilmente refutável foi feita, entãohouve o orgulho da acusadora, mostrando desinteresse em ouvir os dois ladosda história... fazia sentido, afinal, por que mais Victoria diria que Kristell erafalsa?Digo, a Kris não parecia sair com o Edgar para conseguir “papéis” nas peçasque ele fazia. Eles conversavam de verdade e pareciam mesmo gostar um dooutro: e pelo menos, Wendy não tinha que ver os dois se pegando empúblico, como era o caso com Victoria e Allan, ou com Elizeu Pallas e RoseSebert, ou Fawkes e Paloma.Desde a experiência bizarra que Wendy e Kristell tiveram na Taverna do Fimdos Tempos, e somando com o fato de que o Grande Magnânimo HenrikKahsmin acreditava haver alguém na cidade passando informações para osD’arlit, Fawkes havia intensificado sua investigação como nunca.Várias vezes, ele chamou Wendy (e Kristell vinha atrás, para proteger aamiga do ex aproveitador... e talvez por curiosidade) para mostrar mapas detodo o continente e explicar como não fazia sentido que a Harbinger soubesseda localização dos índios.“Eles são lindos!” Wendy disse, tocando a textura dos mapas com as pontasdos dedos, vendo todos os detalhes no papel amarronzado, com várias letrasem um alfabeto que Wendy jamais vira na sua vida, “eu queria que o meumapa ficasse legal desse jeito.”“Como assim ‘o seu’? Você não tá falando daquele pedaço de papel com umcírculo no meio escrito ‘você está aqui’, né?” Kristell perguntou.“Não, mas eu pensei nesse aí na noite passada.” Wendy disse, sabiamenteomitindo o fato de que havia contado a história daquele mapa para Caleb.“Eu fiz um mapa dos terrenos do Orfanato das Neves à mão, só com lápis decor. Ele ficou legal e tudo mais, mas não chega nem perto disso aqui. Eu fizporque ia dar para a Christina na Festa de Inverno.” Wendy disse, procurandoVirrat no mapa.“Você viu ela lá?!”“Não, eu fui embora, o Caleb tava com pressa, e tinha aquele cara, o Fester,morto, a gente tinha que se livrar dele antes da passagem fechar.” Wendydisse.“E onde ele tá?” Fawkes perguntou.“Acho que o Caleb queimou ele.”“Não o Fester, o mapa.”

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“Acho que o Caleb queimou ele.”“Quê?”“Brincadeira, eu deixei ele escondido no meu quarto no orfanato, e já que foia irmã Sarah que fez minhas malas, ela acabou não pegando ele. Precisovoltar lá algum dia pra buscar ele antes que alguém o encontre. OLHA!ACHEI AQUELA CIDADE QUE OS D’ARLIT DESTRUÍRAM!” Wendydisse, apontando para Jussarö no mapa, “ela parece meio longe daqui.”“Falando em Jussarö, vocês souberam do garoto que Kahsmin trouxe de lá?Acho que James era o nome dele.” Fawkes começou a falar.“O que sumiu na noite que os D’arlit atacaram?” Kristell perguntou. Pareciaque sempre que Fawkes mencionava alguma coisa interessante sobreTuonela, ela se esquecia que o odiava.Desde o hospício, os cabelos dela e de Wendy não haviam crescido quasenada, no entanto, Kristell já fazia o dela parecer com o de uma menina,embora ainda fosse demorar muito, mas muito tempo mesmo para que elavoltasse a ter os cachos volumosos que Wendy invejava tanto nela.“Parece que ele levou a Serpa da Autumn com ele!” Fawkes contou.“COMO?!” Kristell e Wendy perguntaram.Fawkes apenas deu de ombros, ele voltou a se concentrar na sua lista desuspeitos.“Capitão e Terror estão investigando algumas pessoas para mim.”Por algum motivo, quando ele disse isso, a primeira imagem na cabeça deWendy não foi exatamente como a de investigadores profissionais. Naverdade, ela não conseguia nem imaginar aqueles dois fazendo alguma coisaséria sem destruir tudo e todos.A investigação devia estar sendo mais ou menos assim: Capitão: Você é umespião dos D’arlit?Pessoa: Não.Terror: TEM CERTEZA?!Terror diria isso olhando no fundo dos olhos da pessoa assustada.Pessoa: Tenho...Capitão e Terror: Tá bom, tchau!E com isso, sumiriam na terra, deixando a pessoa sem entender bulhufas doque tinha acabado de acontecer ali.Melhores investigadores de todos.Mas Wendy não iria mencionar isso para o Fawkes; ele parecia depositarmuita confiança no trabalho daqueles dois.

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Wendy reparou que a cicatriz dele estava bem menos visível, era apenas umarranhado escurecido em seu rosto, quase não chamava atenção: excetoquando ele franzia a testa ou se aproximava do fogo.Engraçado como o fogo revela a ferida.Ferida que o deixava muito bonito, para Wendy pelo menos, e Paloma ofizera se livrar daquele tapa-olho (o que foi uma pena, era engraçado ver eleimitando um pirata por aí), mas por mais engraçado e interessante que fosse,Fawkes nunca chegaria aos pés do homem que era Caleb Rosengard.Falando em Caleb, vamos falar de conselhos avulsos e incompletos.Desde a noite em que passou no farol com Caleb, Wendy vinha tentandoescutar o Grande Magnânimo Henrik Kahsmin cantar para fazer as perguntasque Caleb mencionou. Chegou até a ficar parada atrás da porta dele paraouvi-lo.Sucesso era um mito.Em compensação, fez muitos amigos estranhos ali em cima, tipo aquelesloucos que seguiam palavra por palavra do que Rose Sebert dizia, ou umgrupo um pouco mais tímido que se juntava no topo da catedral no cair danoite para observar estrelas, naquela mesma sala que Wendy visitara na suaprimeira noite em Tuonela.Marco fazia parte deste grupo. Do mesmo jeito que ele era quieto e solitáriodentro da trupe de Kristell, ele era quieto e solitário enquanto observava osastros, mas não havia problema, enquanto Wendy continuasse aprendendocom ele coisas legais do tipo: “Existe um planeta que não gira: um lado dele ésempre dia e o outro é sempre noite”E“Há um planeta conhecido como Mármore Azul onde chove vidro.”E ainda“Um dia em Vênus é mais longo que um ano em Vênus.”Quando não ia ver os astros, havia o diário: Wendy o deixou de lado poralgum tempo, depois que descobriu que a pessoa que escrevera nele haviamatado o próprio pai, mas depois se deu conta de que Caleb também matouum bocado de gente, e que até ela teria matado alguém (como a Harbinger daMorte) se tivesse chance, então, retomou a leitura.No entanto, depois que o pai da dona morrera, não havia mais nada deinteressante para ser lido: havia períodos de meses, às vezes anos, separandouma história da última, e eram todas sobre Tuonela, como as pessoas aquinão a julgavam (tanto), como ela se sentia em casa, essas coisinhas.

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E apesar de todas as palavras novas que Wendy aprendeu (zaragata,moinante, bochorno, rocim, gougre, pômulo, e mesto, para listar algumas),sua frustração enoda só fazia obstringir sua eutimia etérea, uma vez que nãohavia sequer uma dica sobre quem era a dona do diário subentendida naopulência de vocábulos tais.Sua última história era datada “10 de Outubro de 1999”, apenas um ano atrás,e a única coisa que havia naquela história era uma declaração apaixonada poruma pessoa de cabelos loiros e olhos cor de avelã.Sobre a descrição do diário, Wendy pensou que se tratava de Elizeu: adescrição do homem era muito a cara dele, mas descobriu que não era ele:estivera com Rose Sebert fazia mais de cinco anos e ela afirmoucategoricamente que não havia escrito aquilo.Nem dividido ele nesse tempo todo, mas... nunca se sabe.Wendy deixou o diário e a faca dele escondidos na sua mala e, falando emmalas, este era um dos objetos favoritos de Kristell para dançar com.Wendy já havia sido avisada por Autumn, Caleb e Kahsmin que eraimprescindível estudar uma forma de arte em Tuonela, com isso mente, elaachou seguro supor que Kristell fosse atriz, afinal, ela estava na trupe, e ajudao Edgar no roteiro, certo?Certo?Certo... mas, atuação não era o forte de Kristell.Não, seu forte era a dança: e quando Kristell Sinnett dançava, ela MITAVA!

(Dicionário pessoal de Wendy: Mitar = Ato de agir de forma legendaria aponto de se tornar um mito)

Wendy não tinha ideia de como se chamavam os movimentos que ela fazia,mas pense em dança de rua, e imagine isso da forma mais lendária possível:ficava fácil entender a facilidade de Kris ao saltar nos ombros de seusinimigos e jogá-los para longe com a força das pernas quando se assistia oque ela era capaz de fazer dançando.Kristell era um dos dois maiores centros das atenções, o outro era, adivinhe:isso, a irmã Romena, melhor dançarina deste mundo e do próximo.Okay, mentira, era Victoria Vihreä, sua nêmese favorita. Talvez issoexplicasse de onde vinha tanta fricção entre as duas: Desde a época doOrfanato das Neves, Kristell Sinnett se tornava o centro das atenções emqualquer atividade que resolvesse participar.

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Aqui, pelo visto, não era diferente.Wendy admitia, se este fosse o motivo do atrito entre Kristell e Victoria,Victoria era uma pessoa muito ruim, mas ao mesmo tempo, uma pela qualWendy sentia grande empatia: quando percebeu que havia crescido demaispara ser o centro das atenções no Orfanato das Neves, não conseguia sentirnada além de inveja pelas outras garotas.Sorte que isso passou.Enfim, em meio a tudo isso, havia Fawkes, que não praticava arte alguma.“Por que eu deveria? Eu já sou incrível demais sem essas coisas.” Ele dissecom um sorriso convencido, “e eu não preciso virar um tinhoso pra soltarfogo.”Uma pena, ia ser legal imaginar o garoto almofada de alfinete flamejante setransformando, ou tocando um instrumento, como Autumn DeLarose Liddell.A propósito, este capítulo é uma ótima chance para você decorar ossobrenomes de todo mundo: Wendy está fazendo isso agora.“Fawkes, qual sobrenome.”“Fawkes.”“... e seu primeiro nome?”“Fawkes.”“Seu nome é Fawkes Fawkes?”“Fawkes Von Fawkes.”“Sério?”“Não, só Fawkes.”O assunto acabou ali.Se Paloma Goldenear tinha algum problema com o tempo que Wendypassava conversando com Fawkes, não demonstrava. Inclusive, era sempreatenciosa sobre os ferimentos que Wendy sofrera lutando contra a Harbinger,mesmo que a garota já tivesse se recuperado de quase todos eles e sótivessem sobrado algumas cicatrizes.Era muito bom ter uma amiga curandeira como Paloma: especialmentequando você tem uma seção de treinos marcada para domingo, vinte e quatrode dezembro, com Autumn.Feliz Natal a todos.“Autumn?” Wendy chamou do outro lado.“QUIETOS!” Ela berrou do outro lado.Lorde Bertram não parecia tão barulhento para merecer esse tratamento.A cabeça de Autumn apareceu no buraco de sombras que se formou na

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imensa porta de madeira, virou-se para Wendy, quase como se pudesse vê-la,e disse.“Entre.”A segunda visita de Wendy ao campanário não diminuíra o sentimento degrandeza que o cômodo transmitia: na verdade, se sentia mal por estar ali, porser capaz de presenciar, com seus próprios olhos, a beleza que cercava aquelelugar, enquanto Autumn jamais o faria.Bem, ela tinha Lorde Bertram para gritar com, e seu violino magrelo paratocar e assustar pessoas que passassem por ali na virada da noite e... cara essavida devia ser muito solitária.“Sentir pena de mim é um bom jeito de agendar sua morte.” Ela comentoudefinitiva.“Eu não...”“Não minta para alguém como eu. Fique em pé, na minha frente.” Elaordenou com vontade, ou talvez fosse raiva, não importava, era assustador dequalquer jeito.Quando parou na frente dela, viu que havia veias negras por todo seu rosto,eram como teias de aranha esculpidas no seu rosto de mármore frio e pálido:todas as veias convergiam para os olhos, cobertos pelas vendas.Autumn intimidava por natureza, mesmo com o cabelo rosa, mas as veiasnegras fizeram ela parecer muito menos com uma pessoa, e muito mais comum ser feito de trevas e cinzelado nas profundezas das cavernas maispeçonhentos e lúgubres que existissem, e cada movimento, cada delicadogesto de seus dedos que contrastava com o pavor inspirado pelo simplesrespirar de Autumn fazia a pele de Wendy arrepiar-se gélida contra sua carne.Era o grito silente de socorro de sua alma.“Medo?” Autumn interrompeu seus pensamentos.“Bastante.” Ela admitiu.A expressão pedregosa de Autumn não se alterou.“Eu não quero covardes, eu quero guerreiras.”“Até os melhores guerreiros sentem medo.” Wendy disse rápido, sem ter amenor ideia do porque ela o fez.“Eu sou a melhor guerreira que você vai conhecer, criança, e eu não sintomedo.” Autumn proclamou em tom de morte, “você não praticou NADA!”Wendy foi pega de surpresa pela afirmação.“Você... não me mandou praticar–”“Eu disse que arte ajudaria você a despertar o ódio necessário para controlar a

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transformação. Me dei ao trabalho de perder meu tempo com você paraexplicar como o ódio era onde residia o seu poder e você. Não. Praticou.NADA! Em nenhum momento te ocorreu que, uma vez que você sabe o quefazer, é seu trabalho FAZER?! Ou você só tem iniciativa para agir quando jáé tarde demais? Quando uma Harbinger da Morte já matou um Tupã?”Naquele instante Wendy soube: Autumn era letal como uma guerreira, haviavisto isso quando a viu lutando contra a Harbinger da Morte, todavia, além deseu talento com facas e seu controle sobre sombras, ela também era mortíferano mover dos lábios, na formação de palavras, na capacidade em bater ondedói com parágrafos e entonações.Wendy não duvidou que ela poderia convencer alguém a cometer suicídio.Pois foi o que sentiu vontade de fazer quando percebeu que ela poderia terimpedido Tupã de morrer se tivesse agido antes, se não estivesse distraídacom a hipocrisia covarde de Tuonela.Autumn agarrou Wendy pelo colarinho, sem evitar que suas garras rasgassemsua pele e a camisa que Kristell havia dado para ela (a que estava escrito“mamãe diz que sou especial”).Seu rosto nunca esteve tão próximo ao dela.Era como uma flor, perigosa demais para ser tocada.Uma flor com aroma da morte.“Culpa e o que você está pensando em fazer com ela são a resposta errada.”Autumn sussurrou para Wendy, e a atirou contra a parede com muito maisforça que uma garota normal deveria ser capaz de suportar.Wendy estava escorrendo pela madeira como água no vidro num dia dechuva, mas antes que tocasse o chão, Autumn mergulhou nas sombras, seubraço ressurgiu na parede ao lado dela e a agarrou pelo pescoço, impedindo-ade termina sua queda humilhante e cheia de farpas.“Eu não estou com um pingo de humor para auto piedade hoje.” O rosto deAutumn surgiu ao lado de Wendy, com seu perfume venenoso pingando desua boca a cada palavra espinhenta que escapavam seus lábios.Ela usou o braço que prendia Wendy para espancar a cabeça da garota contraa parede: foi como uma lembrança viva e latejante de todo o trabalho que aHarbinger da Morte fizera quase duas semanas atrás.Wendy estava esparramada pelo chão quando Autumn terminou e reapareceuna sua frente, deixando seu pé bem rente com a boca da menina: ela podiaquase sentir o chute que estava para receber.Alguma coisa estava errada com Autumn: ela QUERIA machucar Wendy.

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“Defenda-se, cria de noviça.” Autumn ordenou fria.Não foi o chute que veio: foi uma faca.Por reflexo que Wendy não sabia possuir, rolou para o lado, vendo a faca deAutumn penetrar o chão onde ela havia estado à menos de um segundo atrás.“Autumn o que você tá fazendo?” Ela perguntou se afastando para a porta.Se a falta de maçaneta já era assustadora antes, agora era aterrorizante.“Punindo uma má aluna.” Ela disse, com outra faca entre os dedos, “por mefazer perder meu tempo.”“Você que me chamou aqui!” Queria ter gritado, mas o que saiu foi uma voztremula e assustada como a de um gatinho sem dono na frente de um canil.“E você veio, sem treinar nada.” Ela disse, cada vez mais perto de Wendy.“Você não me mandou treinar–”Autumn não falou, apenas colocou o indicador nos lábios de Wendy: elaengoliu seco quando sentiu o toque morto como o outono em sua boca. Afaca dançava entre os dedos da outra mão dela e Wendy quase podia ouvir odesejo daquela lâmina por perfurar sua pele, encontrar sua carne.“Eu dei todas as instruções do que fazer, noviça, e você teve a audácia deaparecer aqui sem. Praticar. Nada. Eu gosto de audácia, mas não quandousada para perder o meu tempo.”“Gente, socorro, eu vou morrer aqui.” ela pensou freneticamente.Autumn a soltou, voltou para sua mesa e sentou-se lá, alisando os pelos deLorde Bertram.A faca que ela atirara continuava estagnada no piso de madeira, lamentando ocorpo que nunca perfurou, enquanto Lorde Bertram fazia uma selva dealegria com os dedos de Autumn.“Espere tratamento pior na próxima vez em que sentir pena de mim.” Eladisse por fim, “estou desapontada, cria de noviça. Esperava que este ataquefosse mais que o suficiente para fazê-la sentir raiva, mas tudo que vi em vocêfoi medo. Não parece a mesma garota que pulou na frente da Harbinger daMorte.”“Você é muito mais assustadora que ela.” Wendy confessou.“Sem desculpas.” Autumn disse sem mexer o rosto, mas Wendy teve certezade que tomou aquilo como um elogio. “Nesta tarde, tentarei encontrar raiva eódio nesse coração covarde. Quando o fizer, vou ensiná-la a senti-la sempreque quiser ao seu favor.”“... isso foi um teste?”Autumn fez que sim com a cabeça.

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“Vamos começar de novo.” Ela disse por fim.Essa, minhas senhoras e meus senhores, não foi uma tarde produtiva.Autumn descobriu da maneira mais divertida (o conceito de “divertido” deAutumn envolvia desmembramento e tortura medieval, tenha isso em mente)que Wendy não respondia com raiva quando a atacavam fisicamente.Depois Autumn partiu para a sua arma favorita: palavras.Ela podia usá-las com maestria para manipular, humilhar, intimidar eapunhalar, não havia dúvida disso: mas algo fez o exercício não surtir efeito.Talvez tenha sido o fato de que Wendy sabia o que ela estava tentando fazer.Talvez apenas não conseguisse conjurar raiva quando seu medo a deixava decócoras.Autumn só parou quando sua tosse se tornou insuportável.“Saia. Procure algo que não falhe em fazê-la sentir raiva, procure uma formade arte para você começar a aprender e, da próxima vez, se não tiver feitonada, não precisa aparecer na minha porta.”Vários minutos se passaram antes que Autumn voltasse a falar: “O que estáesperando?”“Uma porta mágica.”Autumn pegou Wendy, rangendo os dentes e a atirou com a delicadeza de umrolo compressor pelo buraco de sombras que fizera na porta.“... acha que eu devo voltar semana que vem, Wanda?”Wanda não sabia: Sábio aquele que não abre a boca quando não sabe aresposta.No jantar, depois que Wendy narrou sua sessão pancadaria com Autumn, aqual foi acolhida com admiração por todo mundo naquela mesa, ela recebeuuma das piores notícias que uma pessoa com coração pode receber.“COMO ASSIM VOCÊS NÃO COMEMORAM O NATAL?! COMOPODE EXISTIR FELICIDADE SEM NATAL AQUI?! ME DEVOLVE PROORFANATO, AGORA!” Ela exclamava na mesa enquanto todo mundo riadela, ou com ela. Não, definitivamente era dela, mas não importava, nadamais importava se não existia Natal.Fawkes era o único que parecia fora de lugar naquela mesa: foi Paloma que oconvenceu a se sentar com o resto da trupe, mas estava claro que ele nãopertencia ali. Aliás, tirando Paloma e Wendy, todas as meninas na mesapareciam olhá-lo com um certo receio.O que só podia ser obra da super ex-namorada: Kristell Rancor Sinnett.“É exagero amiga, algumas pessoas comemoram sim o Natal, o Kahsmin por

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exemplo.”Não era o maior incentivo do mundo.Depois de uma noite de conselhos inúteis sobre como controlar atransformação e sobre como não morrer na próxima vez que ela fosse verAutumn, Wendy foi escoltada para a casa de Edgar.“Acho que já passou da hora de eu te mostrar o dormitório.” Kristell disse, efoi a primeira vez que Wendy ouviu falar no dormitório desde o dia em quechegara em Tuonela, “e vai passar mais um pouco, porque eu não vou levarmalas pra lá agora nem que me paguem.”“Mas você disse que não existe dinheiro aqui.”“Exatamente.”Wendy esperava que não ter que arrastar malas no meio da noite fosse ser oúnico presente de Natal que receberia em Tuonela mas, naquela noite, depoisque acordou de seus pesadelos, havia uma surpresa bem agradável à suaespera.“FELIZ NATAL!” Kristell e toda a trupe estava no quarto, olhando para ela esorrindo, alguns usando tocas vermelhas, como Kristell e Paloma, outros combarbas falsas, como Edgar e Allan, e claro, havia o Mano Pamonha, vestidototalmente de Papai Noel.Wendy e Kristell se abraçaram como se não houvesse amanhã: ou seja,Kristell quase matou Wendy até a morte (meu livro, minha gramática, meuPulitzer). E todos ali dentro trocaram presentes.“Eu achei que vocês não comemoravam o Natal!” Wendy disse com umsorriso enorme estampado no rosto ao abrir um livro das Crônicas de Narnia.“QUEM ME DEU ESSE, SAIBA QUE EU TE AMO MUITO!”E eles riram com ela. Dessa vez, com certeza era com ela.“Não comemoramos, mas eu sei o quanto você ama o Natal. Aí a gentepreparou tudo isso enquanto você dormia.” Kristell disse apontando para oquarto.Wendy não tinha notado até então: o quarto estava enfeitado com luzesflutuantes coloridas: era como se fossem vagalumes arco-íris, celebrando aalegria natalina.“Como vocês fizeram isso?”“Com muito amor... E CAFÉ!” Kristell, todos ergueram as xícaras de café.Mano Pamonha se atrasou como de praxe, e Tereza se atrasou mais ainda,rindo junto com o Mano Pamonha.Uhn, interessante.

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Com sorrisos e presentes, Wendy admitiu que poderia se acostumar muitobem com esse tipo de celebração em miniatura. Celebrar o Natal no meio deuma guerra tinha um gosto muito especial na sua boca.“Gente, eu não tenho presentes–”“Sua presença é nosso maior presente.” Kristell disse com um sorrisocaloroso para a amiga, a trupe concordou atrás dela, “mas só esse ano.” Elaacrescentou.Depois que trocaram presentes entre si e tomaram café da manhã na casa doEdgar, Wendy foi para o farol, treinar com Caleb. Era um dia tão cinza efofo, tinha gosto de gemada e chocolate quente, havia neve de leite aceitandoo convite não-feito de Tuonela e voando graciosamente das nuvens até o chãoda cidade, frio o bastante para que os flocos não derretessem.Nada aquecia corações como neve no Natal.Quando Wendy chegou ao Farol, havia uma pequena surpresa para ela:“Querida Wendy. Me desculpe não a ter avisado pessoalmente. Eu e Anukfomos convocados para buscar um garoto mestiço em outro mundo, nossotreino ficará remarcado para amanhã. Até logo e, Feliz Natal. Haverá umpresente para você quando eu voltar.”Quando terminou, a neve começou a cair de verdade: o gosto não era tãodoce como havia esperado.Ela poderia ter passado aquela manhã sem subir todas aquelas escadas.E agora tinha que descê-las de novo para...Mãos desconhecidas nos seus tornozelos, Wendy afundou na terra.A familiar sensação de viajar pelos túneis subterrâneos pelos quais apenasCapitão e Terror podiam viajar a atingiu com a delicadeza do tapa da irmãRomena.Será que ia ser difícil avisar antes de fazer isso? Pelo menos daria tempo paraela se preparar para perder o café da manhã.Quando a viagem acabou, estava quase caindo de tontura: quando seus olhospararam de girar, ela se viu em frente a um edifício cheio de colunas eescadarias incontáveis, ela nunca havia visto este lugar antes.Espera, será que aquilo era... não, não podia ser, Fawkes não estaria numlugar assim.Estaria?“O que é isso?”“O Fawfaw tá aqui.” Capitão disse.“Ele te chamou.” Terror.

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“Porque ele tem um PLANO SECRETO.” Os dois disseram juntos e depoisse olharam e fizeram “Shh” um pro outro, “e ele quer você pra ajudar ele.”“Por que eu?”“Porque ele gosta de você!” De novo, resposta em dobro.Uma bola de fogo saiu de dentro do edifício e quase acertou Capitão e Terror,que entraram na terra, rindo um do outro.“Desculpa por eles.” Fawkes disse, aparecendo nos portões. “Vem cá.”“Fawkes, o que é isso?” Ela perguntou, apontando o edifício de onde ele saiu.“A Biblioteca Subterrânea de Tuonela.” Ele disse com um pouco de orgulho.De repente, o Natal ficou bom de novo.Wendy, entrou na biblioteca, seguida por Capitão e Terror, que pareciamestar numa competição infinita de ver quem conseguia fazer mais barulhodentro da biblioteca, ou seja, eles simplesmente estavam realizando um dosmaiores sonhos de Wendy.Mas esse sonho perdia um pouco a graça quando o lugar, embora infestadode livros, não tinha um único ser vivo para apreciar o barulho, além deFawkes e ela.A biblioteca tinha um teto brilhante, pintando como se fossem mais estantesde livros! SIM ESTANTES DE LIVROS PINTADAS NO TELHADO!FANTÁSTICO! As capas dos livros no telhado, por sua vez, eram pintadasde forma que se transformavam em desenhos riquíssimos em todos osdetalhes: na parte de música, os livros no telhado formavam claves de sol eséries harmônicas. Na parte de comida, eram capas e mais capas formandodesenhos de pratos que só faziam Wendy salivar.Os astros! Na parte de astronomia, a maioria das capas pintadas no telhadoeram de um preto violentíssimo, enquanto havia vários livros pintados paraparecerem estrelas, constelações, luas e planetas inteiros. Marco e os outrosTINHAM que ver esse lugar.Ou talvez já tivessem visto e ela era a única atrasada, mas tudo bem.Wendy sentia arrepios na pele, o melhor tipo de arrepios que você podeimaginar, ao ver tanta perfeição desenhada em um único lugar: os livros naspróprias prateleiras foram organizados em ordem de cor, tão lindo,principalmente quando as cores não eram vivas e brilhantes, como na parte deastronomia, era como estar no espaço e perceber que existe harmonia nocaos.Seu silêncio cavernoso, seu piso frio e sua luz, que vinha de uma aberturagraciosa no telhado e era refletida em quase todas as direções possíveis

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através de um monstruoso sistema de espelhos escondidos nos mais diversoscantos da biblioteca.“Você gostou?” Fawkes perguntou, enquanto Wendy deslizava os dedospelos títulos.“É perfeita.” Ela disse com um sorriso inapagável nos seus lábios.“Feliz Natal, Wendy.” Ele disse.Ao ouvir aquilo, Wendy se afastou assustada.“Você me trouxe aqui pra tentar me bei–”“Não.” Ele a cortou, “acho que descobri quem é o espião.”Fawkes, sua cicatriz, sua confiança e as palavras que acabara de dizer haviamacabado fazê-lo o homem mais interessante do mundo para Wendy naqueleinstante.“E quem é?!”Fawkes sorriu.“Venha.”Fawkes levou Wendy para a parte dos mapas: a decoração não poderia sermais impressionante: o telhado era um mapa detalhado de Tuonela nasuperfície, com direito a especificações sobre o farol, a catedral, e algunsoutros pontos importantes como a casa do prefeito: aquela casa branca nabase das montanhas.Nas paredes, além de livros, havia mapas dos mares ao redor de Tuonela,suas correntezas, a direção para onde os ventos sopravam na maior parte doano. Wendy procurou naquele mapa uma tal Ilha da Caveira, que Caleb citoupara ela quando disse que a levaria para descobrir quem eram seus pais (aliás,ele já devia ter feito isso), mas antes que pudesse se adiantar na busca,Fawkes a chamou para uma mesa onde aquele mesmo mapa que ele mostraraalguns dias antes estava estendido.“Veja!” Fawkes disse, apontando para nenhum lugar específico no mapa.Ele realmente havia feito algum trabalho aqui: havia uma relação de todas ascidades entre Tuonela e a cidade dos D’arlit, eram enormes blocos de papelcom notações históricas e geográficas de cada uma delas.“Isso é incrível. Você pesquisou tudo isso?” Wendy perguntou.“Boa parte eu sabia de cor, como as relações de troca e proteção com Virrat.”Wendy não esperava por essa.“Você é bom com história?”“Eu gosto pacas. Alguém me disse uma vez que o mundo é uma história quenão para de se repetir, então se eu souber o passado, fica fácil saber o futuro.”

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Fawkes desarmou Wendy demonstrando que realmente possuía algumconhecimento além de “como se exibir em três passos fáceis”. Isso era...atraente, mas se aquilo tudo era um truque para tirar ela do Caleb, comcerteza seria uma falha épica.“Veja essas cidades.” Fawkes disse, dando uma lista com nomes e maisnomes: Ringerike, Setermoen, Mo i Rana, Levanger, Fauske, Bryne,Finnsnes, Bric-à-Brac, Virrat, era nome que não acabava mais.“O que tem elas?”“São as cidades entre os D’arlit e Tuonela, com as quais Tuonela tem ou tevealguma ligação. A maioria dessas cidades estão conectadas à nossa pelostúneis subterrâneos, igual Virrat.” Fawkes disse devagar, e a falta de gíriasem seu discurso assustou Wendy.“Incrível, mas eu ainda não entendi.”Fawkes gostou de ouvir aquilo.“Todas essas são cidades pelas quais a Harbinger da Morte teve quesobrevoar para chegar até Tuonela, certo?”“Certo.” Wendy concordou.“E estas cidades, pelas quais a Harbinger passou, tem uma conexão físicacom Tuonela, entendeu?” Ele disse, apontando um segundo mapa paraWendy, que continha a relação de todos os túneis de Tuonela.“Entendi.” Wendy disse.“Agora, presta atenção nessa parte: a maioria dessas cidades foram tomadaspelos D’arlit, então suas passagens subterrâneas foram soterradas para queeles não pudessem chegar aqui. Isso elimina Mo i Rana, Levanger, Fauske,Ringerike e mais algumas da lista.” Ele disse riscando cada um dos nomes, “esobram essas cidades abandonadas, que os D’arlit ainda não começaram acolonizar.”“Tudo bem, onde quer chegar?”Fawkes estava com aquele sorriso confiante e arrogante que ele tinha quandoWendy o conheceu.“Acredito que alguém de Tuonela se encontrou com a Harbinger da Morteem uma das cidades abandonadas e informou a ela sobre a localização dosSatya.”Wendy ergueu uma sobrancelha.“E você sabe quem?”“Sim. No começo, eu pensei que o garoto de Jussarö era o espião, afinal, quetipo de criança rouba uma Serpa?! Mas não havia como ele saber onde Tupã

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e os outros estavam, certo?”“Certo.”“Bem, eu pedi para Capitão e Terror investigarem: ficarem de olho naspessoas que entravam e saíam por essas entradas. Afinal, na teoria, ninguémvive nas cidades abandonadas, então que motivo alguém teria para ir atéelas?”“Eu iria.” Wendy disse, querendo desafiar a lógica de Fawkes.“Sozinha, sem saber lutar, em um lugar que poderia ser tomado pelos D’arlit,míriades, banshees, ominosos ou coisa pior a qualquer momento?”A lógica dele venceu.“E vocês acharam alguém que usasse esses túneis?”Fawkes fez que sim:“No começo, um grupo de crianças apareceu para explorar os túneis. Capitãoe Terror assustaram todos eles. NÉ, SEUS DOENTES?”Capitão e Terror pararam seu jogo infernal de pega-pega ao serem chamados.“E depois?” Wendy quis saber.“A gente quase desistiu anteontem: até que Terror viu alguém.”“Quem?!”“Alguém que vem entrando e saindo pelo túnel de Bric-à-Brac nos mesmoshorários há uns dias, e nós achamos que ele vai fazer isso hoje de novo.”“ME FALA O NOME SEU INFELIZ!” Wendy gritou, agarrando Fawkespelo colarinho e o chacoalhando como Autumn faria.Fawkes olhou seu relógio, deu um meio sorriso e, com a mão, fez o gestopara que ela o seguisse.Ela se sentiu um pouco vazia por deixar a biblioteca sem pegar um únicolivro, mas se havia entendido o que estava acontecendo, Fawkes estavaprestes a revelar quem era o espião dos D’arlit para ela. A tensão aumentou acada degrau branco que seus pés desceram.“Está pronta?” Fawkes perguntou.“Pra quê?”Para ser agarrada por Capitão e Terror e ser mergulhada numa montanha-russa subterrânea, claro, não deveria estar surpresa à essa altura, mas não, elanão estava pronta, OUVIU CAPITÃO?! NÃAAAO, ninguém ouviu, que sedane a coitada da Wendy e sua vertigem. Valeu mesmo galera, vocês são osmelhores, feliz Natal.Seu mau humor pós viagem foi abafado quando Fawkes apontou o túnel.“Aquele ali, em cima da casa do ferreiro, aquele túnel leva para Bric-à-Brac.

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Fique de olho e... você tá bem?”“Eu acho que vou vomitar.” Wendy disse, sentindo seu rosto ficando verde.“Vira pra lá!” Fawkes disse, com certeza se lembrando do que aconteceu daúltima vez.Por sorte, ela conseguiu conter a vontade colossal de despejar o café damanhã pelo chão.“Bem na hora.” Fawkes disse. “Se esconde!”Capitão e Terror mergulharam na terra, Wendy e Fawkes foram para trás daparede de uma casa, expondo apenas suas cabeças para ficarem de olho notúnel. Não demorou muito para Wendy ver.“É ele.” Fawkes disse, apontando para um homem com roupas pretas, umrosto nervoso e amassado que não parava de olhar para os lados e cabelos quenão viam um pente havia décadas. Para seu imenso horror, Wendy sabia onome dele.“Fawkes, aquele é o primo de Kahsmin: Hakasalo.”

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Capítulo 30

Já se encontrou no meio de um dilema? Quando Wendy pensa em dilemas,ela não quer dizer nada do tipo: “Será que eu uso salto ou uma sapatilha nomeu encontro?!”, era mais uma coisa do tipo: “Será que é errado comercarne? Tipo, eu sei que toda vida no mundo é importante e deve serrespeitada igualmente, mas... bacon é feito de carne... e eu não quero que obacon saia da minha vida. POR QUE SEMPRE QUE EU COMO COISASBOAS ALGUMA COISA MORRE?!”Ou então havia aquele clássico momento em que uma garota nova chegavano Orfanato das Neves: sempre que a garota era velha o bastante para saberfalar, Wendy e Christina faziam questão de ser as primeiras a se apresentarempara a novata, apenas para poderem contar a própria versão que tinha sobre ahistória do Orfanato.Era sempre um dilema para Wendy a decisão entre dizer a verdade ouaumentar um pouco as histórias: nada demais, sério, só gostava deacrescentar que o Orfanato das Neves antes era usado como uma prisão detortura e que todos os quartos eram assombrados pelas almas atormentadasdaqueles que ali morreram.Nada demais.Qualquer criança de sete anos ia achar isso demais.Certo?Meio certo?Três quartos certo?Nove e três quartos certo?Ok, Wendy sabia que era totalmente errado, e péssimo.Pessimamente divertido... digo, horrível.Mas a culpa não era toda dela: Wendy apenas começava a falar detalhesgerais sobre fantasmas no Orfanato das Neves, era Christina quem pintava osquadros específicos e horrendos daquelas histórias.Quando Cora chegou, ela tinha nove anos, enquanto Wendy e Christina,quatorze.Elas não podiam perder essa chance.A apresentação do Orfanato das Neves estava indo muito bem e normal, atéchegarem ao Campo de Azaleias. Wendy ia começar a apresentação pelos

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terrenos.“Antes do orfanato, esse campo era um cemitério.” Ela disse, como se essafosse a coisa mais normal do universo para se dizer à uma menina de noveanos.Cora estava colhendo azaleias, fazendo um buque que despencou de suasmãos ao ouvir aquelas palavras. Wendy nunca esqueceu o jeito que os olhosdaquela menina incharam ao ouvir aquilo, nem a velocidade lenta com que asflores se jogaram de suas mãos.“É?” Cora perguntou.Wendy não ia continuar essa mentira, era muita crueldade fazer isso com umamenina que havia acabado de perder os pais adotivos.Sim, um detalhe interessante sobre Cora: aquela não era a primeira vez delano Orfanato das Neves, ela já havia sido deixada lá uma vez quando tinhamenos de dez meses, o pai biológico cometeu suicídio ao descobrir que aesposa tinha três amantes e... longa história.Uma que a irmã Sarah nunca deveria ter divido com Wendy.Cora foi adotada no seu segundo aniversário e viveu mais sete anos felizescom os pais adotivos, até que estes morreram também: acidente de avião.Cora, no entanto, não sabia ainda que era órfã: foi levada para lá pela irmã damãe adotiva, ou seja, pela tia.Irmã Sarah explicou que Cora pensava que o orfanato era um internato e queveria os pais adotivos mais cedo ou mais tarde.Cora não se lembrar de ter estado no Orfanato das Neves na infância ajudoumuito.Ela também achava que os pais adotivos eram os pais de verdade dela.Quando tudo isso passou pela cabeça de Wendy, ela começou a se sentir ummonstro por querer assustá-la, e por isso perdeu qualquer intenção desustentar a brincadeira.O mesmo não se aplicava à Christina.“Isso ainda é um cemitério.” Ela começou, enquanto brincava com os cachosescuros de seu cabelo. “As irmãs parecem legais, não parecem?” Ela haviadito, olhando Cora direto nos olhos.Cora apenas fez que sim.“Você sabe quantas crianças elas enterraram vivas aqui?” Christina inquiriu,apontando para as azaleias que Cora havia arrancado do chão.Chris empregou seu maior dom, que era misturar mentiras com verdades, econtinuou a história, narrando sobre a época em que o Orfanato das Neves

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era uma igreja, e que mulheres entravam aqui, vestidas de freiras, trazendosuas filhas para serem enterradas ali naquele campo de azaleias.“Elas faziam isso porque freiras de verdade não podem ter filhas. Essas floresaí foram plantadas para acalmar as almas das crianças que sufocaram debaixoda terra, mas não deu muito certo.”“Não?!” Cora já estava quase chorando nesse ponto, e foi aí que Wendyenfrentou o dilema: parar a brincadeira da amiga e salvar as noites de sono deuma recém-órfã, ou deixar Christina terminar, reforçar a amizade das duas edestruir todos os sonhos e esperanças de Cora.A amizade venceu aqui.“Não, é horrível aqui, Cora. A gente tenta não ficar louca, não ser levada,todas as noites.” Chris respondeu, apontando para si, para Wendy e para asoutras meninas em volta, “mas as coisas vão ficando mais difíceis...Nas primeiras noites, você escuta as crianças chorando, como se elasestivessem dentro dos seus ouvidos: elas berram sobre pesadelos, apontamcoisas estranhas na janela, reclamam de falta de ar... depois, você começa aouvir passos nos corredores do Orfanato das Neves. Haja o que houver, nãofaça barulho quando ouvir os passos, se você quiser viver...”“Por... por quê? O que acontece?” Cora perguntou, e Wendy teve queadmitir: nunca tinha visto uma criança tão assustada em plena luz do dia.Christina tinha uma facilidade grotesca para inventar histórias deassombrações, chegavam até a parecer reais.É, parecer reais.Parecer.“Você não quer saber.” Christina disse, “eu juro pelo meu nome, é horrívelquando acontece... eu nunca vou me esquecer da última vez, e você, nempense em contar pra ela.” Chris disse apontando para Wendy, fazendo omelhor que podia para esconder a vontade de gargalhar de toda aquelahistória.Christina sempre pareceu entender algumas coisas sobre o medo, como o fatode as pessoas terem muito mais medo quando não sabem o que acontece aocerto. Ela era mestra em deixar as mentes das meninas correrem livres,criando os piores cenários possíveis e chorando de medo por causa de suasmalditas imaginações férteis.O interessante de viver num orfanato de meninas é: você sempre pode contarcom garotas chorando na calada da noite: Cora sempre ouvia esse choro, seescondendo sob os cobertores e pedindo baixinho para as crianças irem

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embora.E onde há choro num orfanato, há freiras caminhando, com passadas lentas efortes em madeira que range.Cora não dormiu direito por quatro semanas, até que ela contou para a irmãNatalie porque do que ela estava com medo. A notícia chegou até a irmãRomena, que castigou Christina e a forçou a desmentir tudo que disse paraCora.Não exatamente nessa ordem.Parando para pensar agora, era um milagre que Cora gostasse tanto deWendy.Voltando aos dilemas: o problema deles é que você raramente tem tempopara dar a atenção devida à cada um deles, e talvez seja por isso que elessejam tão problemáticos.Neste exato momento, Wendy estava dividida entre seguir Fawkes numamissão doente atrás de Hakasalo, o suposto espião de Tuonela, e voltar para acidade e avisar Kahsmin sobre o que os dois tinham acabado de ver.“Por que você não quer ir?!”“A gente não sabe se ele é o espião.”“Por isso a gente vai seguir ele! Vamos logo!”“Mas e se ele nos vir?!”“Ele é um humano e nós somos DOIS mestiços de demônio!”“Mas se ele for mesmo o espião, então os D’arlit vão se encontrar com ele, ea gente não tem chance de lutar contra eles!”Fawkes parou por um instante, avaliando a situação.“Você tá com medo.”“LÓGICO que eu tô, da última vez que eu segui você por esses túneis euacabei com cobras nas minhas mãos e quase virei fricassê de Wendy.”Fawkes se sentou, Capitão e Terror apareceram do lado dele e, por umaintervenção divina ou coisa do tipo, não disseram nada. Aquilo era estranho,igual misturar suco de groselha com chocolate em pó... só que menosnojento.“Você viu o que aconteceu com Tupã?” Fawkes perguntou por fim.“Claro que eu vi...” Wendy disse, sentindo uma pancada de culpa ao ouvir onome.“E se aquele cara é o espião? Pode ter sido ele quem entregou Tupã nas mãosdos D’arlit. Eu vou atrás dele, e se você quiser vingar seu amigo, é melhor vircomigo.” Fawkes disse com uma convicção tão grande... aquilo só fez

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intensificar sua culpa.De certo, aquela era a intenção dele.“Capitão, Terror, venham aqui.” Wendy chamou, sussurrou alguma coisa nosouvidos deles e os dois mergulharam na terra, como golfinhos na água.“Onde eles foram?” Fawkes perguntou.“Me fazer um favor, nós vamos assim que eles voltarem.” Ela respondeu.Foram cinco minutos esperando. Fawkes não tentou apressá-la, decerto elesabia que havia vencido no instante em que relembrou Wendy sobre oincidente com Tupã, mas a impaciência dele estava começando a mexer comseus nervos.Capitão e Terror voltaram.Junto com Kristell Sinnett.“POR QUE VOCÊS FIZERAM ISSO?!” Ela gritou com eles.“Eu pedi.” Wendy respondeu.Kristell se virou para ela: um sorriso.Depois olhou para Fawkes: um sorriso morreu.“Posso saber por que vocês dois estão aqui, sozinhos?” Kris perguntou comum tom tão reprovador quanto anos ouvindo e imitando a irmã Romenapermitiam.Fawkes abriu a boca, mas ela fez um gesto sutil com a mão para que ele secalasse, e esperou que Wendy narrasse a história.Foi o que ela fez, começando pelas crianças toupeira tirando ela da frente dacasa de Caleb e terminando com os dois discutindo se deveriam ou não iratrás deles.“E por que me chamou?” Kristell perguntou.“Porque eu quero ir atrás dele, mas eu não confio no Fawkes pra proteger agente.”“EI!” Fawkes interrompeu.“Tá bom, eu vou.” Kris disse, sorrindo ao perceber que Wendy acabara detirar todo crédito de Fawkes como lutador, defensor e qualquer outra coisa, “eé melhor você não tentar nada com a minha amiga, seu canalha.” Kristelldesferiu em seu melhor tom de ameaça.Fawkes queria se defender, mas ela e Wendy já haviam tomado a dianteirapara entrar no túnel.Um longo trecho da caminhada havia se passado com Fawkes iluminando ochão, onde as pegadas de Hakasalo jaziam frescas como a lembrança do caféda manhã na memória de Wendy, quando ela percebeu: “Cadê o Capitão e o

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Terror?”“Já devemos estar fora de Tuonela. Capitão e Terror não podem sair dacidade.”“Por quê?”“Eu não sei. Eles nunca me contaram, sempre somem no meio da terraquando eu pergunto.” Fawkes disse, e Wendy percebeu que havia certadecepção na voz dele em admitir que havia algo sobre Capitão e Terror queele não sabia.“Mas eles foram com a gente até a floresta do Tupã.” Wendy lembrou.“Eu perguntei isso pra eles: os terrenos de Tuonela se estendem até aquelasflorestas e um pouco além, mas a gente tá no lado oposto de Tuonela agora, ese você quer saber, acho que já deixamos os terrenos da cidade faz um bomtempo.”“Então as toupeiras não podem sair dos terrenos da cidade?” Foi Kristellquem se interessou no assunto. Fawkes parecia amar e odiar quando ela seinteressava em qualquer coisa que ele tinha a dizer.“Sim.”“E você não sabe por quê?”“Acabei de falar que eles não disseram, só sei que tem algo a ver com umacordo, mais nada.”Estava ficando muito quente e apertado ali, o que levou Fawkes a apagar ofogo, eles continuaram a caminhada com ar fresco em seus narizes eescuridão em seus olhos: era como ser Autumn, só que sem poder andar nassombras ou adivinhar o que a galera tá pensando pelo jeito que eles respiram.“Eu devia ter trazido minha lanterna.”“É muito tarde pra gente voltar e pegar ela?” Kristell perguntou.“Sim.” Fawkes respondeu.Uma mistura de desejo de quebrar o silêncio entre os três fez Wendy acharuma ótima ideia começar a narrar o feito de Christina para assustar Cora.Fawkes estava achando engraçado e tudo mais, mas Kristell reprovou:“Credo, coitada da Cora. A Mary nunca deixaria a Chris ir tão longe.”“É, eu sei, mas foi legal.” Fawkes comentou.Wendy ouviu o punho de Kris acertar as costas dele, ele não reclamou.Aparentemente, Kristell havia contado sobre Mary, Chris e Wendy paraFawkes no tempo em que os dois namoraram, pois ele parecia entenderrazoavelmente bem como era a personalidade de cada uma das amigas.Mais meia hora de caminhada até Wendy fazer a melhor pergunta que uma

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garota criada em condições de escassez poderia fazer uma situação dessas:“Alguém trouxe comida?”“Não.”“Eu tô com fome, falta muito?”“É, Fawkes, já faz mais de horas que a gente tá aqui.” Kristell emendou. “Agente nem sabe se estamos seguindo as pegadas dele mais.”“Estamos.”“Como você sabe?”“Porque Hakasalo está bem aqui.”Todos pararam: Wendy sabia porque ela não estava mais ouvindo passos. Eraapenas o respirar lento dos três, tentando não se sobressaltar, esperandoalguma coisa acontecer, uma quarta respiração sem sintonia com eles, oualgum sinal de que já podiam agir. Tudo que veio foram bufadas pesadas equase hostis de alguém carregado de culpa.Fez-se o fogo.Fez-se a risada de Fawkes.“A cara de vocês foi ótima!” Ele disse, quase engasgando de tanto rir.Até Kristell esbofetear a cara dele.“Você deve tá querendo muito uma cicatriz nova, né?” Ela ameaçou,segurando o pescoço dele contra a parede.Não foi difícil para Wendy saber de quem era a respiração pesada e culpadaque estava ouvido agora há pouco: O que estava difícil era saber exatamenteo que era que ela estava olhando.Quando Fawkes se livrou de Kristell (na verdade, quando Kristell o soltoupor vontade própria) ele se aproximou de Wendy, trazendo a luz consigo: “Acaverna pra Virrat devia ter um desses.” Ele disse, apontando para os trilhos.Um resumo do que Wendy estava vendo: havia um par te trilhos de trem nochão; um dos trilhos, o da esquerda, tinha uma espécie de carrinho de ferrosobre ele, enquanto o da direita eram só os trilhos vazios.“Nossa viagem vai ficar bem rápida daqui pra frente.” Ele disse, pulando nocarrinho e fazendo sinal para as duas seguirem.Kristell foi primeiro.“O que é isso?” Wendy disse, subindo no carrinho de ferro que, agora, alembrava muito daqueles carrinhos que ela via nos desenhos animados daTV, ou nos filmes de velho oeste.“Um par de Levantes.” Kristell respondeu. “O outro carrinho tá na outraextremidade dos trilhos, quando esse aqui começar a andar na direção de

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Bric-à-Brac, o carrinho que já tá lá vai começar a vir nessa direção. Kahsmindisse que eram muito usados antes dos D’arlit acabarem com tudo.”A reação de Wendy foi o resultado de vários minutos de uma analisecalculada da composição metálica enferrujada daquele carrinho, somada emultiplicada pela raiz quadrada de todas as experiências que ela já viu na TVenvolvendo trens, trilhos e loucuras: “IRADO!”“Subam.” Fawkes chamou, já dentro do Levante, seguido por Wendy eKristell.“Como você sabe que o cara pegou o Levante para o outro lado?” Kristellperguntou.“As pegadas dele acabam aqui.” Fawkes disse, apontando o fogo para o chão.“Vamos.”“Você sabe fazer isso funcionar?”Fawkes olhou para dentro do carrinho fazendo cara de quem sabiaexatamente o que estava fazendo: o que só podia significar que ele não tinhaa menor ideia do que estava fazendo.“A gente tá ferrado.” Kris disse, dando um tapa na testa.“Cala a boca, eu já sei como faz.”“Ah é? Prova.”Fawkes olhou com cara de tacho para as duas, para os trilhos, para o carrinho,para o fogo em sua mão e...“É DESSE JEITO!”Ele fez um jato de fogo, como a propulsão de um foguete.Wendy se abaixou dentro do carrinho, com medo de haver uma colisão ou deum pedaço de pedra voar dentro do olho dela e deixá-la cega para sempre.Não estava pronta para seguir TODOS os passos de Autumn.“A GENTE ACABOU DE PASSAR O OUTRO CARRINHO!” Fawkesberrou como um louco depois de vários minutos de alta velocidade e baixaesperança de sobrevivência.“Meio caminho andado.” Wendy pensou.O som dos trilhos tremendo, o carrinho chacoalhando como uma montanharussa com defeito e os rangidos intermináveis misturados com o somcrispante do fogo que saía das mãos de Fawkes se traduziam como “perdatotal de café da manhã” para Wendy.“FAWKES PARA ESSA COISA!” Kristell gritou, depois de se abaixar aolado de Wendy e começar a rezar por sua vida como se o fim do mundotivesse chegado.

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Ele cessou o fogo que os empurrara para frente, foi para o outro lado docarrinho e um novo jato de fogo voou de suas mãos, fazendo o carro brecar:as rodas fazendo um barulho contra o aço dos trilhos semelhante ao de dezunhas unhando um quadro negro. Se Wendy não morresse com o impacto, iamorrer de aflição, mas o impacto ia matá-la de qualquer jeito.Ou não.O fogo parou de novo, o carrinho andou mais alguns metros solitários eatingiu o fim dos trilhos.Um pequeno sino anunciou o fim da linha.Quando Wendy finalmente conseguiu criar coragem para olhar pra cima, viuKristell com os cabelos tão altos que ela parecia um leãozinho tosado,enquanto o cabelo do Fawkes estava exatamente igual... para cima,espetado...E é, ela deu tchau-tchau pro café da manhã dela, mas não acertou os pés doFawkes dessa vez. Nem da Kristell. De fato, ela foi uma boa menina e botoutudo pra fora do carrinho.“... por que isso sempre acontece quando eu ando com você?” Ela perguntoucom voz e olhar nauseados para Fawkes.“As pegadas.” Ele disse, apontando para o chão e ignorando Wendy,“continuam aqui.”“A gente vai ter que andar muito ainda?!” Wendy perguntou assustada.“Não, ali estão as escadas que levam pra cidade.”Wendy olhou confusa para a parede onde uma escada de ferro enferrujada seprojetava nas pedras secas empoeiradas daquele túnel. Não era como a escadaque ligava Tuonela subterrânea com Tuonela superfície; e sim como aquelasescadas que a gente espera encontrar no esgoto.“Você esperava outra cidade subterrânea?” Fawkes perguntou.“Aham.” Wendy respondeu, surpresa com a capacidade do garoto em chamaspara entender o que estava se passando pela cabeça dela.“Tuonela é a única cidade subterrânea neste mundo até onde sabemos, agoravamos.”Fawkes precisou de um tempo para se recuperar do uso abusivo que fizera deseu poder antes escalarem as escadas que, graças à todas as pizzas do mundo,era bem mais baixa que a escada de Tuonela.Alegria era realizar uma tarefa fácil em tempos onde tudo era questão de vidaou morte.Onde eles saíram? No meio de uma rua pavimentada com paralelepípedos.

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Aquilo era mesmo como uma porta de esgoto. Só que sem a parte fedidacheia de ratos, jacarés e tartarugas ninjas.“Minhas senhoras, e Kristell, bem vindas à Bric-à-Brac.” Fawkes disse,estendendo suas mãos em direção à cidade deserta que se decompunha ao seuredor.Bric-à-Brac poderia muito bem ser a cidade natal de Autumn: tudo aquicheirava ao século XVIII: as roupas nas vitrines poeirentas eram exatamentecomo as que ela usava: vestidos com corpetes, cheios de laços e em tons decores amenas e elegantes.Como a própria Autumn.Muitos dos manequins tinham chapéus bonnet, bordados e feitos de rendabranca nas extremidades, iguais aos de filmes de época que a irmã Natalieassistia junto com irmã Clara. Se fosse um romance, irmã Romena se juntariaa elas e as três ficariam suspirando que nasceram na época errada e que, se oshomens fossem como os de antigamente, elas nunca teriam se tornado freiras.Os prédios podiam não ser lá muito altos, mas a arquitetura era chique,requintada, fina, e outras palavras aristocráticas que lembravam a eravitoriana.Havia livrarias definhando ao pó com títulos que Wendy jamais vira em todasua existência, lojas de antiguidades pintadas como se fossem o mar, cheiasde porcelanas finas, abajures estilizados, leques de renda...Por que tudo era de renda no século XVIII?“Está em ruinas...”A voz de Kristell quebrou o encanto de Wendy.Ela viu que a refinada loja de antiguidades estava aos pedaços: não haviamais vidro em suas janelas; a maioria de seus artigos de arte fina haviam sidodestruídos e eram apenas seus pedaços que eles podiam ver.Os edifícios com suas arquiteturas com arcos e ornamentos arabesques eramagora o lar doce lar do mofo, seu vizinho bolor e toda sua família de fungos:todos eles pareciam olhar alegres para o céu, cinza como um cemitério.É, isso era Bric-à-Brac: um cemitério.“Edgar ia adorar esse lugar.” Kris comentou.“A gente tem que achar o nosso cara. Vamos nos separar.”“Não, não vamos.” Kristell e Wendy disseram juntas.Fawkes tentou argumentar sua posição, mas ele era minoria aqui: os trêsperambularam juntos a cidade de Bric-à-Brac em busca de algum sinal deHakasalo, e de comida para Wendy.

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Lojas e mais lojas abandonadas, muitas delas contendo fotografias de época,daquelas em preto e branco meio sépia, em que a pessoa olhava para acâmera com uma expressão dividida entre “pareça normal para seustataranetos lembrarem de você” e “esse troço vai roubar minha alma”.Pássaros negros de asas azuis sobrevoavam nuvens carregadas derelâmpagos.Nem sinal do Hakasalo.“Por que sempre chove quando a gente resolve sair?!”“Ainda não tá chovendo.” Fawkes disse.E a água começou a cair como uma cachoeira infinita.“Você tinha mesmo que dizer isso, né?” Kristell perguntou.“Nunca choveu quando saímos antes.” Fawkes emendou pensativo.Wendy, Fawkes e Kristell correram para uma daquelas lojas: nada é maisfácil que arrombar uma loja abandonada, principalmente quando ela não temmais porta, ou vidro nas vitrines, ou paredes mais firmes que uma caixa depapelão molhada.“Meu cabelo já era.” Kristell reclamou.“Seu cabelo já era desde que a gente desceu do Levante.” Fawkes comentou.“Cala boca.” Kristell disse, tentando arrumar o cabelo.Wendy não tinha ideia do que a amiga estava reclamando: ela era perfeita!Mesmo com o cabelo molhando, mesmo depois de ele ter sido retalhado nohospício de Virrat. Kris era o tipo de mulher que poderia raspar a cabeça e assobrancelhas e continuar deslumbrante.Okay, talvez não, mas ainda seria bonita.A loja que invadiram era uma galeria na verdade: o que Wendy julgou seremfotos alguns minutos atrás eram quadros ultra realistas pintados em preto ebranco: a única diferença que eles tinham em relação às fotografias era queeles eram melhores.Todos os quadros empoeirados ali no primeiro andar tinham nomes: Sir AllenDiLano: um senhor gordinho com olhar pomposo e o bigode de um homemque não tem nada a perder. Era como olhar para uma versão rechonchuda doSalvador Dali.Valete G. Threepwood: Apesar de só o rosto estar pintado, dava pra ver queele era alto, com olhos inocentes, um brinco em uma orelha e um sorrisoconfuso. Ao lado do nome dele, havia uma plaquinha que dizia “ex-pirata”.Eles tinham PIRATAS, mas nada de ELFOS. Mundo cruel.Duquesa E. Marley: Ela era ruiva. Não importava que aquilo estivesse

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pintado em preto e branco, Wendy tinha certeza de que era ruiva. O rosto eraarredondado, e tinha um olhar que dizia “me tocar é a forma mais rápida paravocê perder a mão”. O tipo de olhar que ela esperava ver em Autumn, seAutumn mostrasse os olhos.Lady Esmeralda: Uma mulher de olhos claros, pele escura, um sorriso capazde fazer um ricaço pão duro comprar um castelo inteiro só para conquistá-la.A beleza dela não era como a de Kristell, era exótica, Wendy nunca tinhavisto uma pessoa como aquela na vida.Por último vinha Mademoiselle Henrietta D. Evans: Algo naquela mulherincomodava Wendy, ela parecia comum, “alta sociedade”, claro, mas comumde um jeito peculiar... ou talvez... talvez comum não fosse a palavra certa.Familiar, a palavra familiar se aproximava mais do que sentia em relação àpintura.Mas o que a incomodava sobre Henrietta D. Evans não era o quanto elaparecia familiar, e sim um detalhe sutil, um que Wendy não se achava capazde explicar: Henrietta parecia simplesmente deslocada em comparação àsoutras pinturas, seu sorriso era vivo como o da própria Wendy.Mas os olhos... havia algo errado naquele olhar.“Kris, Fawkes, vocês sabem quem são esses?” Wendy perguntou, apontandopara os retratos.Fawkes e Kris foram para o lado dela e examinaram os quadros.“Ela é linda!” Kristell disse, olhando para Lady Esmeralda, “mas eu não seiquem são nenhum desses.”“Nem eu.” Fawkes acrescentou inutilmente.“Eu acho que tem alguma coisa estranha nessa aqui.” Wendy disse,apontando para Mademoiselle Henrietta, “ela me dá calafrios.”“Eu não sei, todos esses aqui.” Kris disse apontando para os quadros em voltade Henrietta, “eles se parecem ter alguma coisa que essa Henrietta não tem.”“Bem observado, minha jovem.” Uma quarta pessoa disse.“Obri–” antes de terminar a frase, Kristell estava pronta para lutar, Fawkescom uma esfera de fogo chamuscando ao redor de sua mão e Wendy. Bem,ela sempre podia dar apoio moral.“Não há necessidade para hostilidade, meus jovens.” A voz que falava eragentil como um avô ao se reencontrar os netos depois de um hiato de trêsanos desde a última visita.“Quem é você?!” Kristell perguntou.“Cadê você?!” Fawkes adicionou.

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“Você tem comida?” Vocês sabem quem disse isso.“Estou bem aqui.”A voz veio do telhado: se Wendy já não estivesse levemente calejada comsuas últimas experiências nesse mundo estranho, ela teria gritado atédesmaiar, depois acordaria e repetiria o processo umas três ou quatro vezes.A voz pertencia a um homem... bem o torso era de um homem, o corpo era deuma aranha gigante, peluda e nojenta que Wendy não conseguiria esmagarcom o jornal ou seus sapatos furados.A coisa toda devia ter o tamanho de um cavalo.Um cavalo grande, cabeludo e com o dobro de patas que o normal.“Vejo que vocês tomaram consciência da peculiar circunstância em queMademoiselle Henrietta D. Evans foi retrata.” Ele disse, descendo do telhadousando sua teia.“Não é educado gritar só porque algumas pessoas são metade aranhas.”Wendy disse mentalmente, fingindo ser Wanda.“É... quem é você?” Kristell repetiu a pergunta.“Ah, mil perdões minha falta de modos: eu sou Jaques Araque, eu pinteitodos estes retratos que vocês podem ver e mais centenas de outros que foramlevados daqui há muito tempo.” Ele disse com leve sotaque francês afetado, oque trazia más memórias para Wendy, “Vocês têm olhos bem atentos paraperceber que a Henrietta é um pouquinho diferente das demais.Ao contrário de todas essas ilustres figuras que vemos ao nosso redor,Henrietta D. Evans jazia morta quando eu a eternizei através da tinta.”Não era atoa que Wendy sentiu calafrios então.“Ela foi morta.” Jaques continuou, segurando uma teia cheia de moscas e seservindo delas enquanto falava, “perdoem a grosseria: eu ofereceria algumas,mas a experiência me diz que vocês não são apreciadores de artrópodes.”“É... não.” Fawkes e Kristell disseram. Wendy ainda estava tentando aceitarque existiam aranhas gigantes, mas anda de elfos.“Como dizia: Henrietta foi morta. De acordo com seu então marido, oassassinato fora obra de anjos, por pura recreação, como de praxe. O rosto dapobre Henrietta fora queimado pelas mãos daqueles biltres, apenas para rir dadesgraça da coitadinha. Apenas porque ela nascera um demônio.” Jaquestinha o desgosto de aranha na voz.“Seu marido,” continuou Jaques, “na época, me pediu para que eu eternizassea beleza de sua esposa, para que suas próprias filhas e netas pudessem sabercomo fora a mulher que ele mais amara em sua vida.

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Me compadeci daquele homem, eu mesmo havia perdido minha esposa porculpa dos anjos. Eu fiz o que me foi pedido, usando o melhor de minhatécnica para retratá-la como ela fora antes de ter o rosto queimado pelas mãosdos anjos.”Ele dizia, enquanto suas patas traseiras teciam uma teia de seda por onde elepassava.“Fiz um bom trabalho, o marido dela assegurou-me, mas no final, ele sentia-se amaldiçoado, sendo forçado a encarar os olhos mortos de sua mulher. Elepediu para que eu guardasse a pintura para ele. Fez de tudo para que eu nãome ofendesse com sua devolução. Um perfeito cavalheiro.”“Já faz quarenta anos que guardo este retrato comigo.” Jaques Araquefinalizou.Quando a história terminou, Wendy voltou seus olhos para a familiaridade doretrato.Pensava apenas nos segredos escondidos atrás daquelas feições tão bemtrabalhadas e na enorme dor imortalizada pelas pinceladas de Jaques. Umamulher com filhas, um marido, talvez ela própria tivesse irmãos e pais, etodos sentiram que um pedaço deles havia sido arrancado injustamente delesquando ela foi levada.Mas...“O senhor disse que anjos mataram ela? Por nada?” Wendy perguntou paraJaques.“Ah sim, isso foi antes dos D’arlit os expulsarem. Você não teria como selembrar: é muito nova, todos vocês são.”“Como poderiam saber os horrores pelos quais os anjos gostavam de fazer osdemônios passar: quantos de nós foram mortos em suas brincadeiras de malgosto.”“Muito embora,” ele acrescentou receoso, “eu também não aprove os meiosdos D’arlit. Vocês não são D’arlit, ou são?” Ele perguntou, olhando fundonos olhos de Kristell.“Não! Não nós não somos, mas nós estamos procurando um.” Kristell dissedefensiva.“Entendo...” ponderou a aranha gigante, roçando duas patas de aranha sobseu queixo. “Acredito que estão em apuros então. Eu sou o único ser vivo epensante em toda Bric-à-Brac. E há vocês agora também.”“Bem, nós seguimos um homem até aqui, e achamos que ele esteja na cidadepara se encontrar com os D’arlit.” Fawkes disse.

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“Seguiram? De onde vocês o seguiram?” Jaques perguntou.Wendy conhecia muito bem a expressão no rosto do garoto ruivo: aexpressão de arrependimento instantâneo ao perceber que havia reveladomuito mais do que deveria.“De Virrat, com os Levantes subterrâneos.” Fawkes disse por fim.“Ah sim. Os Levantes de Virrat ainda funcionam? Que surpresa agradável, evocês pensaram que ele ia se encontrar com os D’arlit dentro da minhahumilde galeria?” Não era uma pergunta ameaçadora, era tão doce quantouma aranha gigante conseguia ser na verdade. O que não queria dizer que elenão desse medo.“Não. Entramos aqui por causa da chuva, achamos que estava vazia.”Foi Kristell quem disse, seguida por uma longa pausa, onde tudo que se podiaouvir e sentir eram as gotas de chuva caindo cada vez mais fracas sobre agalerinha, o olhar de Jaques percorrendo cada um deles, como se procurasseindícios de algo errado, e a respiração dos milhares de rostos imóveis em seusretratos.Por fim, Jaques Araque abriu um sorriso amistoso e voltou a falar.“Me desculpe por assustá-los.” Disse olhando para Wendy, “anos de solidãotomaram de mim qualquer qualidade social que eu um dia tive. Enfim, meusjovens, creio que haja algo que eu posso fazer para ajudá-los.”“Sério? O quê?” Fawkes perguntou, um pouco entusiasmado demais.Jaques deu um pequeno sorriso, uma de suas patas apontou para cima.A galeria dele se erguia por pelo menos dez andares sobre suas cabeças:todos eles interligados por uma vasta e maciça escadaria de marfim. Wendynão conseguia ver os últimos andares, mas dava para ver que todas as paredesno caminho estavam repletas de quadros e mais quadros.“Subam.” Jaques disse, ele próprio usando as paredes ao invés das escadaspara subir, “este é o edifício mais alto de Bric-à-Brac, lá de cima vocêspodem ver a cidade inteira, e mais além: se houver alguém pelas ruas, vai serfácil encontrá-lo.”E o trio subiu as escadas, admirando os vários e vários rostos que haviamsido retratados com tamanha perfeição por aquele homem.Apesar de Wendy ser a curiosa, era Kristell quem mostrava mais interessepelas pinturas, o que era totalmente estranho para Wendy: no orfanato,Kristell nunca teve paciência para quadros, mas também, no orfanato ela nãotinha o mínimo interesse em ler, ou dançar.Tuonela tinha feito um bem danado pra ela.

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Apesar de sua admiração pela mudança de Kristell, Wendy ainda se sentiaincomodada, e não era por causa da presença de uma aranha humanoidemaior que uma vaca escalando as paredes, mas por algo que ele disse.Anjos matavam? Anjos realmente matavam demônios por... diversão?Se isso era verdade, de repente o que Allenwick fez com os anjos pareciamuito menos cruel do que ela havia imaginado no primeiro momento. Masaquilo não podia ser verdade, pelo menos não toda a verdade: Allenwick eraum monstro e dava para ver isso refletido em sua filha maníaca.Mas será que uma coisa justificava a outra no final das contas? Se anjosmatavam demônios simplesmente porque podiam, então porque os D’arlitnão poderiam matar e expulsar os anjos, simplesmente porque podiam?Não seria justo?“Cala boca Wendy!” Ela imaginou Wanda falando na sua cabeça, “nadajustifica a morte de inocentes.”“Seus retratos são maravilhosos.” Kristell comentou.“Ora, muito obrigado, minha jovem. Gostaria que eu fizesse um seu?” Jaquesofereceu, mal conseguindo conter a empolgação na sua voz.“Ah, eu não acho que vá dar tempo, a gente tem que–”“Eu levo entre dez e quinze minutos para pintar um retrato.” Jaques se opôs.“Só isso?!”“Mas é claro! Como acha que tive tempo para pintar tantos deles? Ah,chegamos!”O último andar não tinha quadros nas paredes, nem espaço para isso, eraapenas um corredor de poucos metros com apenas duas portas. Uma em cadaextremidade do corredor.“Permitam-me apresentar o lugar.” Jaques disse, abrindo a primeira dasportas, “este aqui costumava ser o salão de espera, onde, antes de Bric-à-Bracser esquecida, dezenas de pessoas costumavam aguardar sua vez para terem orosto eternizado por minhas mãos.”Se Wendy achava a casa de Edgar legal, esse lugar simplesmente a faziaparecer uma casinha de bonecas baratas: dava para dar uma festa ali dentro,talvez duas. Havia quadros que com certeza não foram pintados por Jaquesaqui (eram coloridos), sofás de couro, parecendo muito mais velhos que aprópria invenção do sofá e a parte que era de fato interessante: A sacada.“A vasta maioria de Bric-à-Brac é visível desta sacada: se o homem queprocuram estiver ao ar livre, e dentro da cidade, há uma boa chance de achá-lo daí.” Jaques disse, cheio de orgulho na voz ao descrever a vista fantástica

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que ele tinha da cidade.Não é atoa que o corredor era tão pequeno: precisava ser para ter um salão deespera tão grande aqui.“Podem ir.” Jaques disse, usando as patas para apontar para frente.“E a outra porta?” Foi Kristell quem perguntou.“Lá, minha bela jovem, é onde eu faço minhas criações. Gostaria de ver?”“Claro!” Kristell disse, sem disfarçar a excitação.Wendy e Fawkes seguiram os dois até a segunda porta: era muito menor emais humilde que a primeira: havia apenas um banco, grande o bastante paraaquela bunda gigante de aranha se sentar, um cavalete, tintas espalhadas pelochão, uma porção de telas esperando ansiosas para serem usadas pelas mãosdo mestre e algumas teias de aranha. Tudo isso iluminado pela luz solitária deuma janela.“É aqui onde a mágica acontece, meus jovens. Agora, vamos voltar à buscade vocês.”Ele já ia fechando a porta, quando Kristell pediu: “Você pode me pintaragora?” Havia um quê estranho em sua voz, como se a ideia de ser pintadanaquela tela fosse o mesmo que uma pizza seria para Wendy agora:irresistível.“Tem certeza? Não quer se juntar aos seus amigos?” Jaques perguntou,embora fingisse muito mal não estar excitado com a ideia de pintar alguém. Eafinal, estávamos falando de Kristell Sinnett: qualquer homem, mesmo umque parecesse uma aranha mutante de filmes japoneses, adoraria uma boadesculpa para poder ficar olhando para ela.“Você disse que vai ser rápido, não é?”“Minha cara, não há quimera em todos os mundos que possa fazê-lo maisrápido!”“Então não tem problema... ah, mas tem uma coisa.” Kris disse antes deentrar na sala.“O que, minha bela jovem?”“Você conseguiria me pintar como se meu cabelo estivesse comprido?”Jaques parou um instante, estudando Kristell atentamente.“Volumoso, cacheado, caindo nas suas costas como uma cascata?”“Isso!”“Nada poderia ser mais fácil.”“Gostei de você. Vamos!” Kristell disse, Jaques fez sinal para que elaentrasse primeiro, “e você,” ela disse séria para Fawkes, “se você tentar

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QUALQUER coisa com a Wendy, eu vou te ensinar o significado da palavra‘dor’ na prática. Divirtam-se procurando o primo espião do Kahsmin! Mechamem se o encontrarem.” Ela acrescentou com um sorriso meigo paraWendy, e entrou na saleta.Jaques olhou para os dois, confuso e desconcertando, procurando algumacoisa útil para dizer, mas tudo que saiu foi: “Fiquem à vontade.” E fechou aporta atrás de si.Ele não mentiu quando disse que podia ver praticamente Bric-à-Brac inteiradaquela sacada: cada uma das ruas pavimentadas desertas ou das casasenormes. Wendy poderia se acostumar a viver ali, era só adicionar umapizzaria, elfos e uns cem mil habitantes.Pensar naquilo, é claro, era apenas uma distração fajuta para suaspreocupações reais: Primeiro: não havia sinal de Hakasalo sob aquele céucinzento. Se ele estava mesmo aqui em Bric-à-Brac, havia entrado em algumlugar. Assim como Wendy e os outros fizeram quando começou a chover.Segundo: O que Jaques disse sobre os anjos a incomodou mais do que elagostaria de admitir. Aqueles olhos mortos que a quimera de aranha pintarapairavam pelas memórias de Wendy: tão inocente, tão jovem, tãoestranhamente familiar.Tão sem vida.Estava tão distraída que não chegou a entender uma só palavra do queFawkes disse.“Oi?” Ela perguntou.“Kristell, ela não pode ver um cara com pincel e tinta e ela já quer serpintada.”“Sério?”“Pede pra ela mostrar a coleção de quadros que ela tem.” Fawkes dissedesinteressado. “Sempre que vê um pintor ou fotógrafo, ela fica desse jeito.Parece que ela gosta de usar todos eles pra parecer.”“Usar, você acha que a Kris namora o Edgar só pra conseguir papeis naspeças dele?” Wendy só percebeu o quanto aquela pergunta era inapropriadadepois que a ouviu em voz alta.“Não, ela não fica atrás dele por interesse. Foi a Victoria que disse isso, né?”“Foi.”“A Kris não se rebaixaria a isso. Você tem que tomar cuidado com o que aVictoria fala sobre a Kris... e com o que a Kris fala sobre a Victoria. Desdeque eu namorei a Kris as duas já se odiavam. Deve ter alguma briga não

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resolvida entre as duas.”“Entendi. Queria que a Kris me contasse.”“Se ela contar, me conta. Eu também sempre quis saber qual o lance comessas duas.”Wendy fez que sim com a cabeça, olhando para o céu, cujas cortinaspermaneciam tímidas e fechadas. Ele ameaçava fazer chover de novo emolhar os dois com uma mini-tempestade se eles não parassem de olhar.“Tá vendo aquela casa rosa e branca ali? A que aquele pássaro estranhoacabou de sentar em cima?” Fawkes disse, apontando para um casarão nooutro lado da cidade, onde um pássaro preto de asas e cauda azuis havia sesentado.“Sim. Nossa, ele tem as mesmas cores da Autumn.” Ela comentou.“Eu nasci e morei lá uns doze anos.” Ele disse, parecia satisfeito eenvergonhado ao mesmo tempo de sua confissão, “até meus pais seremlevados. Minha mãe foi primeiro, ela era humana, meu pai me escondeu numarmário, mas eu vi tudo.” Ele disse, e Wendy viu que havia esforço para nãose comover com as próprias palavras.“Então, você viveu com seus pais? Tipo, conheceu eles?”“Conheci. Meu pai me fez fugir pra Tuonela depois que levaram minha mãe.Ele me levou até aqueles Levantes que a gente usou mais cedo, não me dissenada sobre o que eu deveria fazer quando chegasse na cidade. Não haviatempo e, bem, o resto é história.”Wendy não estava contando com uma história sobre a infância de Fawkes:por algum motivo, nunca sequer parou para considerar a chance de que eletivesse pais por aí, ou que se importasse com eles, como ela se importavacom os dela, apesar de Kris ser contra Wendy buscá-los.“Eu sinto muito.”“Não precisa, isso já faz oito anos.” Ele disse, “eu cheguei a visitar aquelacasa depois que essa cidade foi abandonada. Está tudo lá: quadros, caixas demúsica, livros e retratos de família. É estranha a sensação de ver tudo ali.Você começa a se perguntar como seria sua vida se os D’arlit não existissem,se você pudesse ter crescido uma criança normal como todas as outras... ascoisas que poderia ter feito... são tantas...”Ele parou de falar, mergulhando-se em pensamentos.Apesar de ser a rainha dos ataques súbitos de curiosidade extrema, Wendysabia quando não devia insistir em um assunto. Ela deixou Fawkes quieto ali,lambendo as feridas de seu passado como um cachorro sem dono, daqueles

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que uma criança veria na rua e imploraria aos pais para levar pra casa.Às vezes, era difícil para Wendy lembrar que ela não era a única pessoa nomundo com um passado. Era sempre um choque quando alguém a lembravadesse detalhe. Um choque maior quando se tratava de Fawkes. Na cabeçadela, ele sempre havia sido um garoto nas ruas subterrâneas de Tuonela.Bem, surpresa! Não era bem assim que a coisa funcionava, do mesmo jeitoque Tuonela não havia sempre sido uma cidade subterrânea, ou que Kahsminnão havia sempre sido o Grande Magnânimo, os D’arlit não estavam alidesde sempre, tanto Autumn quanto a própria Harbinger da Morte foramcrianças um dia. Um dia onde nenhuma das duas sabia como era tirar a vidade alguém.Caleb também. Quem sabe o que era o passado dele... o que aqueles olhoscinzentos já viram, o que ele passou para se tornar o que é hoje, as vidas queele salvou. As que ele tirou... nenhuma delas foi por diversão... não é?“Fawkes, anjos não matavam demônios por diversão, não é? Jaques inventouaquilo.”“Ah?” Foi a vez de Fawkes ser acordado de seus próprios devaneios, “Bem,sim, eles matavam, mas não eram todos os anjos que faziam isso.”“Mas anjos não deveriam ser bons?!”“E demônios não deveriam ser maus?” Fawkes retribuiu. “Achei que você játinha percebido que não é a forma como nascemos que determina quemsomos.”Wendy sentiu aquela resposta tão forte como se fosse um tapa na cara dairmã Romena. Um pequeno lembrete de como sua ingenuidade a impedia dever as coisas como elas realmente eram.“Mas o Caleb nunca faria isso, não é?” Ela perguntou.“É só com isso que você tá preocupada? Por isso essa conversa sobre anjosbons e demônios maus?” Ele perguntou ofendido.“Com o que mais seria?!”Os dedos de Fawkes tamborilavam violentamente na grade da sacada.“Caleb não é a pessoa mais odiada de Tuonela sem motivos.” Ele disse porfim.“Ele matava por diversão então?!”Fawkes não respondeu e ela mesma não podia acreditar naquilo: ele só estavadizendo essas coisas porque tinha inveja de Caleb. Porque era Caleb quemconquistara Wendy, e não Fawkes. O silêncio dele apenas confirmava isso:estava mentindo apenas para fazer Wendy não gostar mais de Caleb e trocá-lo

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ficar com ele. Era nojento igual a Kristell avisou que seria!Até contou uma historinha pra ela sentir pena dele.E ela quase caiu.“Hakasalo.” Ele disse.“Quê?”“Hakasalo, bem ali, tem uma mulher falando com ele!”Wendy se lembrou do porque estava ali em primeiro lugar: Hakasalo estavamesmo no meio de uma das estradas pavimentadas, caminhando com umamulher ao seu lado, estavam pertos o bastante para que pudessem até ouvir osom das vozes deles.“Vamos.” Fawkes estava pronto para pular a sacada e começar a perseguição.“Espera! A Kristell pediu pra chamar!”Mas ele já tinha pulado. Wendy não sabia que ele podia pular dessa altura enão morrer, até ver que ele tinha um truque parecido com o do Caleb: usar ofogo como turbina pra amortecer a queda.Ela correu de volta ao corredor e bateu na porta: “Kris! Achamos eles! Vocêsjá terminaram?”Nenhuma resposta.“Kris?” Ela tentou abrir a porta: trancada. “Jaques você pode destrancar aporta?”Ninguém respondeu de novo.Wendy encostou o ouvido na porta: foi como se estivesse escutando obarulho da sua própria digestão, dez vezes mais alto.“Calma. Calma, você sabe lidar com isso, destranque a porta.” Ela selembrou, pegando um grampo de cabelo, escondido nos barbantes de Wanda,e botando em prática tudo que aprendeu no Orfanato das Neves sobredestrancar portas.Não achou que ia ter nenhum sucesso, mas a porta se abriu em menos de umminuto.Nenhum filme de terror poderia prepará-la para o que estava lá dentro.Havia a janela, entreaberta, deixando a luz criar sombras tão sinistras quantoos piores pesadelos de Wendy: havia o banco vazio onde Jaques Araquedeveria estar sentado, e também o quadro de Kristell: A luz fazia parecer queo quadro olhava diretamente para Wendy: os cabelos estavam grandes,caindo como uma tempestade sobre os ombros, do jeito que Kristell pediu.Havia um meio sorriso nos lábios, pose que parecia combinar com aqueletipo de quadro e...

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E havia o olhar.Embora ele não tivesse nada em comum com o de Henrietta, dava calafriosdo mesmo jeito: era o efeito oposto do da Kristell verdadeira, que era ternoem seu tom avelã, acolhedor e– “... Wendy... corre...”Wendy congelou onde estava.A voz veio do teto: Havia uma teia de aranha gigantesca, com camadas emais camadas de seda se misturando com poeira e luz. Kristell estava bem nomeio daquele inferno grudento, presa num casulo, seu rosto, única partevisível de seu corpo, parecia estar murchando.E ao redor dela.Centenas de aranhas, do tamanho de suas mãos.Se alimentavam de Kristell.

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Capítulo 31

“Arte tem o poder de ressuscitar emoções há muito mortas e enterradas noscemitérios de nossas almas.” As palavras exatas de Autumn surgiram nacabeça de Wendy.Não era só a pintura impecável de sua amiga que Wendy via como uma obrade arte neste quarto: era o cômodo todo.Era o capricho da teia, a mais bela das armadilhas; bela e assustadora comoas muitas tempestades enfrentadas pelo Pequod, o navio onde capitão Ahabenviou a si próprio, junto a uma corja de inocentes, para uma jornada suicidaem busca de Moby Dick, a baleia branca gigante. Se Wendy bem lembravado livro, a viagem fora muito mais atormentada que a luta contra a baleia emsi: cheia de maus presságios, instrumentos de navegação quebrandomisteriosamente, tufões ameaçando afundar o navio e... carcaças deembarcações surgindo em alto mar, sem nenhuma tripulação, pois fora todaextinta pelo nêmeses do capitão Ahab.Era a forma pitoresca com que havia mascarado toda a sua galeria e,principalmente, a si próprio, como se fosse apenas mais uma boa pessoa, umlobo em pele do cordeiro, um Dr. Jekyll no livro O Médico e o Monstro,cuidadoso e prestativo como o da história, sempre buscando o bem de todosos infelizes que cruzam seu caminho. Um Dr. Jekyll com uma ânsia sombriapor permitir que seu lado lúgubre e mordaz viesse à tona, mas ao invés de setransformar no monstruoso Mister Edward Hyde, Jaques Araque ERA overdadeiro Monstro.Era a ironia de recriar e imortalizar a beleza de Kristell em tons de sépia e darao quadro um lugar de destaque no cômodo, enquanto um pedacinhominúsculo de sol desvelava o que acontecia de verdade.

O preço verdadeiro das coisas nunca é algo bonito de se ver. Wendynão podia se lembrar onde havia lido isso, mas lembrava dos exemplos: oslivros que tanto amava não eram pagos em dinheiro: mas em árvores, aspeças musicais mais complexas eram pagas com o sacrifício da vida docompositor em prol da arte. E os instrumentos? Mais árvores, crinas decavalos e alguns detalhes mais sórdidos que Wendy sempre tentava ignorar.

Quase sempre conseguia.Mas não agora.

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Não, não agora que sabia: O preço da arte de Jaques Araque, a vida deKristell Sinnett.“Arte tem o poder de ressuscitar emoções há muito mortas e enterradas noscemitérios de nossas almas.” A voz da assassina cega soou mais alto em suacabeça, como uma sirene vibrante, como um pequeno pedacinho de maldição.Arte poderia ser calma e pacífica como um dia ensolarado de primavera;poderia ser alegre e vibrante como... Rose Sebert e sua gritaria cheia de glitere pessoas loucas prontas pra derrubar portas e essas coisas; poderia ser fria,caliginosa e sinistra, como estar sozinha em um cemitério europeu às quatroda manhã, entre mausoléus gigantes, tão antigos que os nomes já teriam hámuito sido apagados, tanto da pedra onde estavam escritos quanto dasmemórias daqueles que deveriam se importar.E mais importante, poderia ser enraivecedora.Como uma aranha hipócrita assassina nojenta capaz de pintar uma cena docrime tão insensivelmente irônica que deixaria Sherlock de queixo caído:afinal, era preciso um monstro, ou alguém muito doente, para criar algo tãoperfeito quanto aquele quadro, só para depois fazer alimento de sua fonte deinspiração.

O fato de ser Kristell a vítima apenas tornava tudo mais digno de seuódio.

Pode parecer foram precisas horas para Wendy pensar em tudo isso.Mas estamos falando de Verdades aqui.Só a verdade é capaz de transformar um segundo em infinito.E um segundo foi todo o tempo necessário para Wendy.

Um segundo para descobrir como Autumn estava certa sobre a arte, umsegundo para sentir um ódio descomunal ao ver que havia alguém desumanoo bastante nesse mundo para alimentar aranhas com uma de suas melhoresamigas.Um segundo para perceber que tinha garras, um átimo para usá-las aomergulhar na armadilha turbulenta tecida por Jaques Araque. Ao contrário doPequod, ela podia destruir qualquer coisa que ameaçasse entrar em seucaminho.

E assim, ela o fez.As aranhas perceberam a ameaça, quatrocentas se afastaram de

Kristell para tentar proteger a teia, sem suspeitar que estavam indo direto parao próprio fim.

Wendy nunca esqueceria a sensação maravilhosa que foi enterrar suas

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garras naquelas aranhas e abri-las, despedaçando-as como os vermes queeram, se lembraria de como era divertido ver aqueles monstrinhos tentaremandar depois de perderem a cabeça e se lembraria do alívio suprimido quesentiu ao ver que elas não estavam mais ao redor de Kristell.

Só precisava alcançá-la e– “Por que a pressa?”Wendy só percebeu de onde vinha a voz quando era tarde: as patasgigantescas e cavernosas de Jaques a haviam agarrado pelo pescoço e atiradopara o outro lado do cômodo, como se fosse apenas uma bolinha de papelinútil.“O QUE A GENTE FEZ PRA VOCÊ?!” Wendy berrou, e no futuro, quandose lembrasse da cena, apreciaria o quão potente e digna de uma comandanteera a voz que tinha depois de sua transformação, “SEU MENTIROSOCRETINO O QUE A GENTE FEZ PRA VOCÊ?!”“Ora, eu queria ajudar no começo, mas espero que não me levem à mal, eunão posso deixar que os inimigos do meu senhor permaneçam vivos depoisde cruzarem meu caminho. E ainda há a questão dos meus filhos: eles estãoem fase de crescimento, como você pôde ver. Insetos por si não bastam paraeles. Vocês duas vão servir bem.”Mesmo sentindo que sua visão e reflexos estavam pelo menos três vezes maisaguçados, Wendy não foi capaz de escapar da teia de Jaques: ao contrário dasaranhas normais, ele podia soltar teia pela boca.Wendy foi presa contra a parede, bem ao lado do belo quadro de Kristell.“HAKASALO É SEU SENHOR?” Wendy gritou, tentando usar suas garraspara cortar as teias, mas sem conseguir se mexer sem se machucar.“Quem? O homem que seguiram? Eu nunca o vi, minha cara.” Jaques dissecom uma voz de superior incredulidade que só serviu para aumentar a raivaque Wendy sentia, “meu senhor atende apenas por um nome, AllenwickD’arlit.”Por quase um segundo inteiro, Wendy esqueceu que estava com vontade defazer picadinho de aranha daquele cara.“Você disse que–”“Não aprovo os meios dos D’arlit, posteriormente inquiri se vocês eramD’arlit, por mais óbvia que a resposta fosse. Com o tempo, aprendi que esta éa melhor estratégia para identificar os inimigos dos D’arlit, minha jovem.” Avoz de Jaques se projetou da escuridão, cheia de orgulho.Havia apenas um pensamento na cabeça de Wendy, mas ele envolvia umasérie de palavrões dizendo o quanto ela era idiota por ter caído nesse truque,

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então vou pedir para você apenas usar sua imaginação fértil para ter umaideia do que ela pensou.“VOCÊ É O ESPIÃO! Foi VOCÊ que espalhou para os D’arlit sobreTuonela!” Wendy gritava, rangendo os dentes, muito mais afiados que que onormal, enquanto fazia força para partir a teia de Jaques.“Tuonela? Quisera eu ter tido acesso à todas as informações com as quais mepresenteou, jovenzinha. Eu mal tinha conhecimento da existência de Levantesno subsolo de Bric-à-Brac. Poupe-me de seus devaneios.” Ele disse, com avoz afetada e esganiçada.Achou um ponto fraco na teia que a prendia, bem onde sua perna esquerdaestava...“O que acha?” Jaques perguntou, apontando para o quadro. “Sua jovemamiga era de uma beleza singular, confesso que foi com grande deleite queeternizei seus traços à tinta. Talvez eu a dê um título elegante como “LadySinnett” quando pendurá-lo na minha vasta galeria.” Jaques cuspiu uma novacamada de teias sobre o corpo de Wendy, tornando todos os esforços eavanços que tivera feito para se libertar até agora inúteis.Foi quando ele se aproximou que ela notou haver alguma coisa errada: destavez, havia uma pontada verdadeira de desespero querendo emergir de todaaquela fúria que sentia: não conseguia sentir seu corpo sob a teia, tamanhoera o aperto causada pelo casulo de teias de Jaques.E ele estava perto demais, feio demais, voraz demais à sua frente.“Para que lutar, minha jovem? Por que vocês sempre se agarram à um grãotão insignificante de esperança? Eu sempre achei divertido ver suas reaçõesquando percebem que suas vidas estão para ser drasticamente encurtadas,mas não posso negar que também sempre achei tais impulsos inúteis.” Jaquesdisse, e Wendy odiou como a voz dele soou como o doutor do hospício, DeSinge. “Eu poderia pintá-la também, minha cara.”“O quê?” Wendy perguntou, incapaz de gritar devido à grande pressão sobreseus pulmões.“Seus olhos adquiriram uma tonalidade que me atrevo a chamar de rara,agora que você está irritada, seria com imensurável deleite que retrataria suasnovas feições antes de servi-la às minhas crianças. O que acha, minha jovem?Posso atribuir-lhe o título de Senhorita ou Mademoiselle quando escrever alegenda do seu quadro. Não vejo porque recusar, agora que você e sua amigaestão tão próximas do fim.”A cabeça humana sinistramente colocada sobre aquele corpo de aranha sorriu

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para Wendy, um sorriso daqueles que debocha de sua cara, apontando e rindode sua derrota, daqueles que, no fundo, você sabe que querem dizer: “você ésó um pedaço de carne pra mim agora.”E Wendy só tinha uma resposta à altura naquele momento.Um pigarreio, uma cuspida, bem no meio da testa escurecida de JaquesAraque.O que incomodou Wendy não foi o silêncio que seguiu seu feito, nem o fatode que Fawkes ainda não se dera conta de que alguma coisa estava errada etivesse incendiado o lugar todo, apesar desse último item ser bem incomodo.Não, o que incomodou de verdade foi a expressão de Jaques: inabalável,como se Wendy tivesse acabado de recusar uma oferta que não podia recusar.Com toda a paciência e delicadeza dramática que se espera de um pintor, elelimpou o cuspe de sua testa com uma das patas, nunca deixando seu sorrisovacilar ou seu olhar desviar do dela.“Eu acredito que vocês duas sejam boas amigas.” Jaques disse, olhando deKristell para Wendy. “Seu silêncio não me engana, eu sei que são, estáescrito em todo seu rosto.” Sua voz era quase alegre, e Wendy não gostava daquase alegria de maníacos loucos que serviam aos D’arlit.“Você recusou meus serviços para imortalizar sua breve existência. Esperoque não se importe em assistir-me abreviar a existência... DELA.” Ele dissecom um grito que quase assustou Wendy: Jaques subiu as paredes e foi para oteto, onde Kristell ainda estava presa.“NÃO! EU MATO VOCÊ SE ENCOSTAR UM DEDO NELA!” Wendygritou, sentido uma invasão de desespero percorrer seu corpo ao ver aquelaaranha tamanho família ao lado de Kristell.Em resposta Jaques apenas abriu o sorriso e disse: “Eu não preciso de dedos.Uma lição tardia para você, minha jovem: a vantagem de ser uma quimera deum ser peçonhento como aranhas é sempre ter uma reserva de veneno emmãos, o bastante para matar pessoas da forma mais lenta e dolorosapossível.”

Antes que Wendy se desse conta do que estava acontecendo, asquelíceras de Jaques estavam mordendo o pescoço de Kristell, seus olhos seabriram e arregalaram como se tivessem visto o maior terror que um ser podever.

A cara da morte.Wendy sentiu o mesmo que sentiu quando a Harbinger da Morte

perfurou a garganta de Tupã com uma espada: o ódio borbulhou no seu

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sangue como ouro derretido, tornando seu corpo forte como jamais acreditouque poderia ser.

Ela não estava em si quando gritou.Seu berro encheu a sala como a água enche o oceano, sua pele foi

cortada pétalas contra foices quando escapou da teia de Jaques Araque, seucorpo estava banhado em dor, mas não era “dor” que ela sentia: era parteorgulho por ter derrubado a parede inteira onde estava presa, parte umasatisfação ao ver medo no rosto de Jaques Araque.

Medo que tornou bem mais fácil de se observar quando ela pulou najugular da quimera, derrubando-a da própria teia: ele não tinha defesa, podiase debater e atacar Wendy o quanto quisesse, nada a tiraria dali.

Pois naquele momento, ela pesava uma tonelada contra o corpo dele.“Quem está próximo do fim aqui?” Ela sussurrou.Ergueu suas garras, prontas para cair como um martelo... mas hesitou.Aquele medo, como aquele medo nos olhos dele era diferente daquele

nos olhos de Tupã? Ou nos olhos daquela criança abandonada em Tuonela?Ou...

Kristell tossiu alto atrás de Wendy.Jaques não conseguia se mexer, mas seu sarcasmo continuava a

escorrer em suas palavras: “A garotinha tem medo do rosto da morte?”E isso era tudo que Wendy precisava ouvir.“Eu vi a Morte em Pessoa, e a beijei como ninguém jamais o fez.”Jaques nunca teve tempo de se perguntar o que aquilo queria dizer: a

garra violenta de Wendy mergulhou fundo contra a boca dele, transpassandoa pele fina e os ossos duros da nuca de sua cabeça. A vida daquele monstro seextinguiu na frente dos seus olhos, da mesma forma como a de Tupã haviafeito.

Mas não havia remorso algum dentro dela.“Kristell...”Ela se desvencilhou do corpo monstruoso de Jaques Araque, se aproximou deKristell e a viu de perto: estava tão pálida que podia ser um fantasma, seucorpo estava coberto por feridas onde as aranhas haviam começado a devorá-la viva. Seu belo rosto estava irreconhecível com a expressão de dor causadapor aquele monstro. O que apenas fez Wendy querer ser capaz de trazerJaques de volta a vida, apenas para matá-lo de novo, mais lentamente dessavez.Mas Kristell ainda respirava. Não havia tempo a perder.

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“Vamos, Kris.” Wendy disse, pegando a amiga, estranhamente leve, ecolocando-a em suas costas.

Como um tornado, ela correu para fora do cômodo, se preparandopara pular ou enfrentar qualquer obstáculo infeliz que tivesse a audácia deentrar em seu caminho.Mas não havia obstáculos: as aranhas de Jaques não estavam à vista, haviaapenas a infinidade de quadros que, pareciam observar silenciosos a corridade Wendy em direção à liberdade. Liberdade a qual, Wendy pensou, nenhumdaqueles infelizes retratados na galeria de Jaques conseguiu encontrar.Ela correu para fora da galeria, na direção dos levantes: Fawkes estava nocaminho, conversando com Hakasalo e a mulher estranha, como se os trêsfossem ótimos amigos comentando sobre os assuntos mais interessantes domundo. Perdendo tempo precioso.“FAWKES!” Wendy gritou, chamando a atenção de três olhares assustados,“PARA TUONELA, AGORA!” Ela disse, apontando o rosto de Kristell.Sem perguntas, ele abandonou Hakasalo, e a levou para os levantes: ondeusou o mesmo truque incendiário para conseguir o máximo de velocidadepossível, pelo menos até chegar ao outra extremidade.“A gente vai ter que andar mais uma hora daqui.”“Não, você vai fazer a gente voar até lá.”Wendy disse com uma voz tão inflexível que, em momento algum, Fawkespensou em negar-se a tentar fazer o que ela estava exigindo.“Eu não posso levar as duas–”“ENTÃO LEVA A KRISTELL SEU IDIOTA, ELA FOI ENVENENADA!”Wendy disse apressada, passando o peso da amiga para as costas de Fawkes.“TÁ ESPERANDO O QUÊ!?”“Eu tenho uma ideia melhor.”Ele foi até o carrinho e fez alguma coisa nas rodas que Wendy não conseguiu,ou sequer tentou entender o que era.“Entra aqui.” Ele disse, pulando com Kristell para dentro.Wendy foi, e logo havia entendido o que Fawkes fizera com o carrinho doslevantes: tirado as rodas dos trilhos, para poder continuar a usar seu fogocomo propulsor, até terem atravessado o túnel todo e chegado em Tuonela.O carrinho saiu voando pelo túnel caindo no meio da cidade, com o som deuma enorme explosão e, por sorte, não caindo em cima de ninguém, emboraWendy tivesse a sensação de que tinham destruído o carrinho.Ela estava pronta para gritar com todos os curiosos que não paravam de olhá-

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los. Cidade de inúteis que não agiam, igual quando a Harbinger veio.Mas antes que dissesse algo, Fawkes já o havia feito, e saltado com Kristelldo carrinho em pedaços: parecia que eles estavam levando Kristell paraalgum lugar.Ela tentou acompanhar, mas de súbito, sentiu-se fraca, mas tinha quecontinuar, não podia deixar Kristell sozinha nas mãos daqueles estranhos:eles não saberiam confortá-la como Wendy sabia; usando histórias deinfância que apenas ela podia contar, dizendo o quão corajosa a amiga fora...não, ela tinha que ir com eles... não podia aguentar ficar ali parada, enquantoimaginava ouvir pessoas falando sobre o pulso de Kristell...A respiração falha... o pulso parando...Kristell precisava ouvir o quanto era importante... o quanto Wendy precisavadela nesse lugar estranho... o quanto amava ela.Respiração fraca... o coração parando.Wendy chegou a se levantar, mas foi vencida pelo cansaço... caindo nosbraços dos curiosos que ainda estavam ali.

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Capítulo 32

Sua cabeça doía como se uma manada de elefantes estivesse praticandosapateado na sua testa. Se não doesse tanto, poderia ser bem legal ver ummonte de elefantes dançando na sua frente assim que acordasse, usandobengalas e monociclos, com aquelas roupas legais que as pessoas usavam noscircos em 1920.A risada que deu ao rir da ideia apenas fez a dor piorar.

Nota mental: processar o mentiroso caluniador que disse “rir é omelhor remédio”. Wendy apostava que ele nunca na vida tinha tido a carapisoteada por elefantes. Ou catapora, rir não curou ela da catapora quandotinha três anos.Quando abriu os olhos, percebeu que não fazia ideia de onde estava. Daúltima vez que checou, ela não era sonâmbula, então isso só podia ter duasexplicações lógicas: 1 – Fora abduzida por ALIENS!2 – Fora abduzida por PESSOAS NORMAIS!Gostava muito mais da primeira: alienígenas eram seres superiores comtecnologia desenvolvida o bastante para dobrar o tempo e espaço e viajaratravés do universo, e usavam essa tecnologia para brincar nas plantações demilho dos fazendeiros. Isso é que era saber aproveitar a vida.Pessoas normais não eram tão legais quando abduziam outras pessoasnormais.Geralmente chamavam isso de sequestro.Parecia haver algo nas costas de sua cabeça, como a lembrança de um sonho,ou um pesadelo envolvendo uma mulher e um banheiro, junto com asensação de que havia esquecido alguma coisa importante, como se vestirantes de sair de casa, ou escovar os dentes com a própria escova, ou desligaro fogão. Bem, não se lembrava de ter cozinhado nos últimos dois anos, entãonão podia ser a última, mas ela era Wanessa, não conseguia se lembrar nemdo próprio nome depois de acordar.Olhando em volta, se deu conta de que alguma coisa estava faltando: não eraWanda, podia sentir a boneca de pano sob suas roupas, talvez fosse a lógicaque faltasse, embora, por mais estranho que fosse acordar num lugar desses,tivesse a vaga sensação de que já havia estado ali, e que tinha grande carinhopelo lugar, apesar de não se lembrar do porque.

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Era mais como alguém: alguém que deveria estar ali em primeiro lugar,alguém...Kristell.“KRISTELL!” Wendy disse, se levantando num solavanco da cama,arrependendo-se imediatamente, vendo que tinha se mexido rápido demais,sua visão ficou escura por alguns instantes. Quando voltou ao normal, ouviuuma voz muito agradável chamá-la.“Finalmente, você acordou.” Caleb Rosengard disse.Logo reconheceu o lugar: era o farol onde Caleb morava. Podia não serexatamente tão misterioso e divertido quanto ser abduzida por aliens e daruma volta pelas fazendas de milho, mas com certeza era a visão maisagradável que podia ter logo no começo do dia.Caleb não estava sozinho: O Grande Magnânimo Henrik Kahsmin estavacom ele.Wendy teria rido ao imaginar o nome, teria levantado e corrido na direçãodos braços de Caleb assim que reconhecesse seus cabelos brancos, caídoscomo uma charada pelo seu rosto, ou seus olhos cor de tempestade, querecusavam-se desviar dos dela.

Mas antes, tinha que saber: “Cadê a Kristell? Ela tá bem?!”Kahsmin e Caleb entreolharam-se, um ar de pesar nada agradável passoupelos dois: Wendy se tornou imediatamente apreensiva, esquecendo da dor decabeça, os elefantes sapateadores e os aliens.“Sente-se.” Kahsmin convidou, com olhos pesarosos que não combinavamcom o homem alegre que Wendy estava acostumado a ver nele.Ela puxou uma cadeira e sentou-se na ponta da mesa.“Cadê a Kristell? O que aconteceu com ela?” Ela perguntou, sem sepreocupar em esconder o quão preocupada aqueles olhares a estavamdeixando.Pior ainda era ver a comunicação silencioso entre Caleb e Kahsmin, pareciamdizer: quem deve ser o portador das más notícias? Quem deve destruir aalegria de Wendy?“Então?” Ela pediu.Foi Kahsmin quem falou, sem rodeios, sem delongas: “Wendy... Kristell nãosobreviveu.”Se pudesse ver a si mesma, veria suas pupilas dilatando como um monstro,pronto para devorar toda a inocência e alegria que um dia existiram dentro deseu ser: cada mordida vinha na forma daquelas palavras. Cada uma se repetia

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em sua cabeça como os sinos de uma igreja, anunciando o fim de uma hora.O fim de uma era.

O fim de uma vida.Não, aquilo não podia ser, certo? É só uma piada de mal gosto, um sonhoruim! É, ainda estava sonhando, a qualquer momento Ally iria aparecer elevá-la de volta para o banheiro do orfanato, e depois Wendy ia acordarassustada, com Kristell do seu lado, dizendo alguma coisa do tipo: “Princesado Caos e os monstrengos de novo, amiga?” Com a voz de sono maisembargada de todas.Wendy não havia percebido que dissera aquilo em voz alta, nem que haviaum pequeno sorriso no seu rosto ao imaginar a voz da amiga a confortandodepois de mais um pesadelo.Sim, mais um pesadelo, logo acordaria... logo-logo... só precisava voltarpraquela cama, fechar os olhos e contar elfos (carneirinhos são chatos) atépoder acordar na vida real.Antes que pudesse sair da mesa, Caleb colocou sua mão sobre seu ombro,consolador de uma forma que Wendy jamais imaginou que ele seria capaz defazer, e os olhos dele... o pesar daquela tempestade foi o mais devastador queWendy já enfrentou.

Foi quando a ficha caiu: Wendy desatou a chorar, sem censura, semvergonha, como não fazia havia muitos anos.Suas lembranças dos últimos dias de Kristell vieram à tona, na forma de umturbilhão de imagens que não conseguiam se fixar por mais que algunssegundos em sua memória: o jeito que Wendy cortara o próprio cabelo paraacalmar a amiga; as palavras que Kristell dissera para convencê-la a nãodeixar Tuonela quando estavam presas em Virrat; a noite em que Kris disseque a irmã Sarah se sentiria orgulhosa por ela ter enfrentado a Harbinger daMorte.E depois disse que ela própria estava orgulhosa... e Wendy nunca disse oquanto era grata por ter uma amiga tão maravilhosa quanto ela.Seu choro se tornou incontrolável, mas as mãos de Caleb não deixaram seusombros.

De repente, Wendy queria o abraço de Kristell, aquele com que forarecebida em Tuonela: tão forte, tão apertado, tão cheio de amor que apenasuma amiga de verdade poderia oferecer...Ela nunca mais o teria... Wendy nunca mais sentiria os braços de Kristellquase a estrangulando quando as duas se encontrassem, pois não haveriam

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mais encontros, não haveria mais conselhos sobre que roupas usar, nemconfissões noturnas.Não havia mais Kristell Sinnett.“Por quê?” Wendy começou, mas as palavras se perderam em seus soluço.

Vagamente, sentiu Kahsmin copiando o gesto de Caleb, tentandoconsolá-la em vão.Nada do que eles fizessem poderia estancar a maior dor que Wendy jamaissentira.Estava arrependida por ter acordado: se continuasse a dormir, pelo menos nãoteria que encarar os fatos, poderia pelo menos ter a vaga esperança de seencontrar com Kristell entre um pesadelo e outro. As duas poderiam viver ereviver as melhores aventuras de suas vidas lá.“Eu amava ela...” ela disse, quase engasgando pra deixar as palavras saírem.“Eu sinto muito.” Kahsmin disse.“Eu também, Wendy.” Caleb emendou.“Eu também.” Uma terceira pessoa disse.Wendy queria mandar todos eles para o inferno flamejante com seuspêsames, queria mais que tudo era ficar sozinha e...Uma terceira voz disse.Wendy abriu os olhos: foi difícil focar Kahsmin e Caleb através do diluvio delágrimas, mas quando o fez, viu que os dois estavam sorrindo para ela.Também viu que as mãos de Kahsmin não estavam em seu ombro, nem as deCaleb.Mas ainda sentia um toque ali.Ela se virou: apenas para ver uma Kristell Sinnett sorridente a olhar para ela.“Eu também te amo, sua linda.” Ela disse sorrindo.Wendy levantou da cadeira tão rápido que a derrubou, e logo estava jogandoe amarrando firme os braços ao redor de Kristell, sentindo cada centímetro docorpo vivo da amiga contra o seu. Fez questão de que seu abraço fosse muitomais forte do que qualquer um que Kristell já a tivesse dado. Nada, nem acoceira nas suas costas, a faria parar.Quando olhou de novo para o rosto invejavelmente alegre de Kris, Wendyteve apenas um único e sólido impulso.Espancá-la até o fim dos tempos:“EU VOU MATAR VOCÊ POR ISSO!”Vários minutos se passaram nisso: Agora Wendy estava morrendo devergonha por ter chorado como uma menina de seis anos na frente de Caleb,

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e ainda não conseguia acreditar que Kristell teve a audácia de enganá-ladaquele jeito, isso era uma piada maligna no nível Christina, não Kristell,mas no fundo, tinha que admitir: ver sua amiga viva foi um dos momentosmais perfeitos de sua vida.Que bobeira não ser grato assim pela vida todos os dias, não é? Por queesperar até que a morte bata na nossa porta para apreciar a vida? Por que nãochorar de alegria todos os dias em que acordamos respirando ou vemos quemamamos ao nosso lado?“Você disse que eu dormi por três dias?” Wendy perguntou, olhando paraKahsmin.“Isso mesmo, nós ficamos preocupados com você.”A primeira ideia que se passou na cabeça de Wendy foi a triste noção de quehavia perdido o resto do dia de Natal. Só depois a pergunta mais poderosa,complexa e bem formulada de todas foi feita: “O que aconteceu comigo?”Foi o próprio Kahsmin quem se deu ao trabalho de responder: “Você é umamestiça, Wendy. Até alguns dias atrás, você não tinha quase nenhum controlesobre sua transformação e, de repente, você a faz com êxito e se mantem nasua forma demônio por quase toda a tarde: seu corpo não estava preparado,você acabou por sobrecarregá-lo.” Ele disse entre sorrisos.“É preciso treino para poder manter a forma de demônio por cada vez maistempo.” Caleb disse e, sem tirar os olhos dela, acrescentou, “Kristell noscontou sobre como foi sua luta contra Jaques, estou impressionado comvocê.”Uma pessoa normal dizer isso é motivo de muitos agradecimentos.Caleb Rosengard dizer isso é motivo para se sentir a pessoa mais incrível detodos os mundos do universo e além, e também um bom motivo pra quererbeijar ele, mas não gostava da ideia de fazer isso na frente dos outros.SAIAM TODOS. Não, não saiam, vocês são legais.“Você vai ser uma lenda um dia, Wendy.” Kahsmin acrescentou.“Eu gosto dessa ideia.” E pensou sozinha: “Wendy Rosengard, A Lenda”,soava bem, Caleb com certeza concordaria.Wendy jamais entenderia como funcionava seu corpo: de todas as vinte equatro horas do dia, havia acordado em tempo para almoçar e, senhoras esenhores, três dias sem comer resultaram na criação de um monstro comedorde... bem, tudo.Kristell, Kahsmin, Caleb e Anuk, que havia acabado de chegar, não tiraramos olhos dela enquanto acabava com prato após prato após prato após prato.

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“... o que aconteceu com você depois que a gente voltou pra Tuonela?”Wendy perguntou para Kristell quando terminou de comer, o que era umgrande avanço nos seus modos na mesa.“Fawkes e os outros me levaram para ver a Paloma e o pai dela.”Wendy foi pega de surpresa ao ouvir que Paloma tinha um pai.“O senhor Goldenear é especialista em antídotos: a Paloma tava fazendo detudo para me manter inteira enquanto ele procurava o antídoto certo.” Kristelldisse. “Ela disse que meu coração chegou a parar mais de duas vezes, eurealmente gostaria que ela não tivesse me contado essa parte.”“E eu realmente gostaria que você não tivesse me contado essa parte.”Wendy acrescentou, bastava quase ter perdido a amiga, não queria serassombrada pelos detalhes. “Desculpa.” Kristell disse, rindo para Wendy.“Mas...” Wendy não sabia se devia dizer o que queria dizer na frente deKahsmin, mas já havia começado, “...então, o que o Hakasalo estava fazendoem Bric-à-Brac?”“Meu primo mora lá com a esposa.” Kahsmin respondeu, “os dois preferemficar longe de tudo para poderem concentrar-se no que realmente éimportante para eles: estudar as ciências mais complexas do comportamentohumano. Não me perguntem, eu não sei qual a lógica em pessoas que gostamde estudar outras pessoas, mas preferem ficar longe delas. O que importa é,ele nunca foi uma ameaça.” Kahsmin disse.“... seu primo é estranho.” Wendy comentou.“Eu sei, e irritante às vezes. É fácil imaginar porque suspeitaram dele, masele é uma boa pessoa.”“E então... nossa visita até a aranha mutante assassina foi inútil então?”Wendy perguntou, mais para Kristell do que para Kahsmin.“TÁ LOUCA?! Olha o que eu consegui lá!”Kristell desceu as escadas do farol e, quando voltou, trazia algo que Wendydefinitivamente não estava esperando ver de novo nessa vida.“... você trouxe o quadro que o Jaques pintou de você?” Ela perguntou,incapaz de conseguir assimilar o que estava vendo.“Claro! Ficou muito bom.” Ela disse orgulhosa, apontando para a tela.“Espera. Vocês voltaram para Bric-à-Brac pra você buscar um quadropintado por um ser doente que tentou te matar e usar seu corpo de almoço praum bando de aranhas tão grandes que poderiam ser usadas de bolas defutebol?”“Olha... o quadro ficou muito bom.”

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“... Kris, você é louca.”“Eu namoro o Edgar e gosto de todos os contos sombrios e maquiavélicosque ele escreve, você ainda tinha alguma dúvida disso?” Kristell respondeucom uma sobrancelha erguida e um sorriso que dizia “touché”.

A lógica era impecável, mas ainda era difícil ver Kristell, a líder detorcida do time nacional da alegria, como uma gótica colecionadora dequadros pintados por assassinos.

“Eu trouxe o quadro da Henrietta e os outros que você tinha gostadotambém.”

“Você é definitivamente doente, mas eu te amo.” Wendy disse praela.

“Eu sei, sua chorona.” Kristell disse, rindo do soco que Wendy deu noseu braço.

Wendy e Kristell deixaram o farol: Caleb não dispensou Wendy dotreinamento no dia seguinte, Wendy não viu isso como um problema.Quando fechou a porta, Caleb encontrou-se apenas com Kahsmin e Anuk.Toda a descontração do ar havia sido drenada com a ausência das duasgarotas, e ele sabia que havia chegado a hora de tratar de tudo que vinhafugindo nos últimos dias.Kahsmin puxou a cadeira, convidando Caleb sem usar de palavras. Fazia umabela tarde: havia sol, mas estava frio como os restos dos náufragos que sedecompunham no fundo dos mares negros de Tuonela.

Pouca coisa nessa cidade agradava Caleb. Aquele frio ensolarado erauma delas. O bater de asas de pássaros que não cantavam nesse tipo de tardeera outra.

Algo que somente o frio é capaz de fazer: apimentar a natureza comseus tons de cinza, aquecer um espírito sonhador que tem vontade demergulhar na vastidão de seu silêncio. O calor nunca seria capaz de aqueceros dias de Caleb como aquelas brisas invernais de Dezembro.

Uma pena estragar essa oportunidade perfeita de estar em comunhãoconsigo mesmo.

“Caleb.” Kahsmin o trouxe de volta enquanto Anuk procurava umlugar sob a palma quente de sua mão, “o que aconteceu na Irmandade dos

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Garotos Sem Nome?”Sangue. Dois dias de sangue.“Algumas pessoas amarraram o garoto que eu deveria buscar e o

apedrejaram, acusando-o de ser a encarnação do mal e o anti alguma coisa.Os outros garotos da irmandade me apontaram como chegar até osresponsáveis.” Caleb disse, sentindo o pelo de Anuk em uma mão, e o pesodo garoto apedrejado na outra.

“E o que você fez?” Kahsmin perguntou.O garoto tinha a pele escura e o rosto tão deformado que poderia ser

uma pintura cubista quando Caleb o encontrou. Sangue escorria de maisferidas que ele queria contar.

Mas nada disso o tocou como a expressão naquele rosto: era o medo,o pavor de não entender porque era odiado, ou o que havia feito de errado,Caleb podia ver as perguntas que não se calavam naquele rosto: “Por quevocês estão atirando pedras em mim?”, “O que eu fiz de errado?!”, “Eu nãopedi pra nascer assim... parem... eu não consigo sentir minhas pernas... porfavor parem...”

“Eu matei.” Caleb respondeu, frio como o vento. “Eu matei todos elesque o apedrejaram, todos menos um, o responsável. Eu o levei até aIrmandade dos Garotos Sem Nome, deixei que eles fizessem o que julgassemser justo com o culpado pela morte sem sentido de um dos irmãos semnome.”

Kahsmin parecia chocado, o que não deveria acontecer: não era aprimeira vez que alguns idiotas impediam Caleb de finalizar seu trabalho, eKahsmin sabia muito bem como Caleb gostava de lidar com este tipo degente.

Com justiça, doce e brutal.“E o que eles fizeram? Os garotos, o que fizeram?”Caleb deu um meio sorriso e fez barulho de gordura queimando numa

frigideira.Uma resposta teatral sempre combinava com o frio.“Você sabe que eles podem ficar encrencados se–”“Não vão ficar, eu me assegurei disso.” Caleb interrompeu, se

lembrando de como se livrou do corpo covarde, recurvado e tostado daqueleinfeliz. Provavelmente já estava se desfazendo no fundo do rio.

Não era o primeiro corpo que se decompunha sob a água por culpa deCaleb.

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Mas era um dos poucos que não deixavam um pingo de culpa em suaalma.

“É uma pena.” Kahsmin disse.Por um instante, Caleb ficou aterrorizado, pensando que Kahsmin ia

começar, de novo, sua longa, demorada e infrutífera narrativa sobre como omundo seria um lugar melhor se não houvessem pessoas ignorantes no poder.

Por mais que Caleb concordasse, não estava com um pingo devontade de ouvir a velha ladainha.

Por sorte, não era disso que Kahsmin queria falar.“Os filhos do dono da Taverna do Fim dos Tempos, em Virrat. Algum

sinal deles?”“Não. O que eu e Anuk encontramos lá foram Míriades. Se as

crianças se meteram com elas, não há nada que eu, você, Allenwick D’arlitou o resto do mundo possam fazer para salvá-las.”

“Então, você acha que elas estão mortas.” Não foi uma pergunta.“Sim.” Ele disse, deixando escapar outro sorriso.“Como você pode rir numa hora dessas?”“Se não me engano, foram eles quem começaram essa tradição idiota

de jogar pedras contra a minha casa. Me desculpe se a ideia de não ter quebloquear minhas janelas toda noite não me aborrece.” Ele disse, mais ácidodo que pretendia.

“Eles não sabiam o que estavam fazendo!”“Eu também não sabia o que estava fazendo no passado, não vejo

ninguém simpatizando comigo.” Ele argumentou, com uma batalha datada dequase duas décadas atrás em sua cabeça, junto com o maior erro que jácometera em sua vida. Para piorar, ao contrário das crianças idiotas, seu erroestava recheado de boas intenções.

Ninguém o perdoou.“Eu te perdoei. Seu tio Winslow te perdoou. E vários outros o

fizeram. Wendy te–”“Ela não sabe o que eu fiz. E não quero que saiba. Agora, Kahsmin,

eu sei que, por mais que esses assuntos sejam do seu interesse, nenhum delesé a real razão para você ainda estar aqui. Então, por favor, que sua próximapergunta seja a que você realmente quer fazer.” Caleb disse, Anuk secolocando mais junto do seu corpo, roçando a cabeça em sua perna como se ocensurasse por sua dureza com Kahsmin.

“Em Virrat, você disse que foi atacado pelos D’arlit.” Ele mencionou

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sério.“Disse.”“Não há qualquer indício que houvessem D’arlit na cidade: Autumn

esteve lá, tentando rastrear Stacy, a Serpa dela, e o garotinho que fugiu. Elanão só disse não haver sinal dos D’arlit, como disse que não houve ninguémlá pelas ruas daquela cidade por um bom tempo. Isso não bate com a suahistória.”

Anuk se desvencilhou da mão de Caleb, antes que este arrancasseseus pelos. Sabia que havia algo sério por vir, mas não esperava que eletivesse descoberto. Maldita Autumn e sua necessidade infinita de destruir suavida.

“Então, Caleb?” Kahsmin perguntou.Ele fez uma rápida vistoria em suas memórias: não havia como mentir

para Kahsmin agora e, de fato, também não havia necessidade para isso, sóhavia inventado a história dos D’arlit porque Wendy estava com Kahsmin, enão queria... não podia deixar que ela soubesse.“O enviado de Gambler estava me esperando.”“Eu pensei que o espectro não representava ameaça alguma.”“Ele por si, não, mas ele não estava sozinho.”“Quem estava com ele?” Kahsmin perguntou.“Comigo.” Caleb respondeu, “quando eu o ataco, é como se eu atacasse amim mesmo.”Kahsmin olhou Caleb como se tentasse entender uma piada cósmica. Calebestava dizendo que sabia o que aconteceria se atacasse o lacaio das sombrasde Gambler... e que mesmo assim havia atacado.Mas não havia nenhuma piada aqui.“Por que você o atacou se sabia que isso ia acontecer?”“Houve uma oferta que considerei... ofensiva, e pouca escapatória para mim.”Caleb disse, olhando para seu piano.“Que oferta?” Kahsmin indagou.“Eu deveria passar informações de Tuonela para os D’arlit. Minha respostafoi um pouco violenta demais.”Caleb disse, torcendo para que Kahsmin não o fizesse entrar em detalhes:Ainda havia chances de Kahsmin sair pela porta e dar uma oportunidadesolitária para Caleb apreciar o sol gelado daquela tarde, sem ter que reviveraquele dia quando fechasse os olhos.Como uma prece atendida, Kahsmin apenas concluiu, com ar dócil de um

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pai: “Você precisa de alguma coisa?”“Silêncio e descanso.” Caleb respondeu, de repente ciente de que estavarealmente cansado.“Muito bem.” Kahsmin já estava saindo, quando voltou para perguntar.“Posso contar com sua presença no Baile de Aniversário da Cidade?”Dezoito anos negando esse convite, e Kahsmin parecia cada ano mais certode que o faria mudar de ideia. Como se fosse um plano inteligente juntar amaior parte de Tuonela em um salão e colocar Caleb no meio. À menos que aintenção dele fosse animar a festa com um pouco de revolta, não haviasentido em colocá-lo no meio disso.“... haverá máscaras, a Wendy vai...” Kahsmin acrescentou “Pode.” Calebrespondeu.“O quê?”“Pode contar com a minha presença.”Kahsmin deve ter dado um breve sorriso quando ouviu aquilo, Caleb nuncasaberia, não estava olhando para ele, apenas sentiu o vento frio encher o farolquando o líder da cidade fechou a porta.

Houve um breve cantarolar do lado de fora, durou apenas atéKahsmin estar longe demais para ser ouvido.Wendy acabara de perder a chance pela qual vinha esperando. Uma pena,Caleb pensou, mas ela vai ter tempo o bastante para criar outras chances comKahsmin. E, se não o fizer, talvez seja melhor: a história que ele tem paracontar dificilmente faria bem para alguém que cresceu num orfanato.Seus olhos estavam fechados quando a voz de Anuk penetrou sua mente.“Por que não contou sobre a segunda visita do lacaio de Gambler?”Foi longo e doloroso o silêncio que veio antes da confissão: “Não quero queele perca tempo tentando evitar o inevitável.”

“O que você tá pensando?” Kristell perguntou enquanto vasculhava osvestidos.“Fawkes.” Wendy respondeu, enquanto se divertia vendo Kristell congelar nasua busca.“Não tinha nada mais útil pra pensar?” Ela perguntou enquanto trazia umatonelada de roupas que queria experimentar, “tipo em como eu sou a melhor

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e mais linda amiga que qualquer pessoa poderia ter?” Brincou ela.“Nossa, modéstia mandou dois beijos e um abraço pra você.” Wendy riu devolta.“Tá, então explica porque você tava perdendo tempo pensando naquelebabaca.”“Aquele babaca que ajudou salvar sua vida em Bric-à-Brac?”“Aquele babaca que me colocou lá pra começar.”Wendy e Kristell estavam no Empório da Tentação, cercadas de multidões depessoas que não paravam de falar sobre como ia ser divertido comemorar oaniversário da cidade, as danças, as músicas, as roupas... porque ninguémtava falando da comida? Era só isso que ela queria ouvir pra saber se ia valera pena ir ou não.Tudo bem, não só isso: estava se sentindo um pouco incomodada com umpequeno, minúsculo detalhe: ninguém ali dentro parecia estar muitopreocupado com o fato de que a Harbinger da Morte havia declarado umaguerra contra Tuonela, ou com a vaga suspeita de que poderia haver alguémali dentro espionando tudo que eles faziam e contando aos D’arlit.O que a levava de volta ao Fawkes.Wendy narrou para Kristell como Jaques havia acusado os anjos de mataremdemônios por pura diversão, e depois contou como Fawkes deixou a entenderque era por isso que ninguém na cidade gostava de Caleb.“Amiga, IGNORA aquele babaca. Ele tá tentando fazer a sua cabeça pra vocêse afastar do Caleb e tentar ter alguma coisa com você. E se você cair nessaeu nunca mais falo com você.” Kristell acrescentou, rindo da improbabilidadedaquilo acontecer.Wendy não riu com ela.“Mas o que o Caleb fez pra tanta gente não gostar dele?” Ela perguntoupreocupada.“Eu não sei, ninguém parece comentar isso aqui na cidade. Por que você nãopergunta pra ele?”Simples: Porque Wendy não gostava de acreditar que Caleb merecia o que elepassava dentro de Tuonela. Ninguém além de Kahsmin e Winslow o acolhiacomo amigo, e isso é um jeito cruel de tratar alguém que protege suas vidastodos os dias.Porque ainda tinha bem viva a lembrança de quando Caleb a havia trazidopara esse mundo: ele havia dito que não se sentia em casa aqui. Ela nunca sesentiria à vontade trazendo aquele tipo de lembrança à tona.

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E finalmente, porque ele já havia respondido àquela pergunta uma vez, logodepois que Wendy voltou da sua viagem inusitada para tribo de Tupã. Insistirem perguntar seria o mesmo que dizer que não acreditava nele, e Wendy nãoqueria que Caleb pensasse isso.Mas ela realmente acreditava? Ela não sabia responder.A simples ideia de que, por um momento ela acreditou que ele pudesse matarpor diversão à deixava com vergonha de si mesma, mas era difícil evitardepois do que Jaques Araque disse, e depois do que Fawkes insinuou.

Será que Caleb havia sido honesto?Será que deveria perguntar de novo? E destruir a confiança que ele tinha porela?“Eu não sei–” Wendy respondeu por fim.Depois de longas mudanças de assunto, e de Kristell assustando Wendy,vestindo uma máscara de aranha e uma roupa que a fazia parecer ter oitopatas gigantes, elas foram para a taverna.

As duas tiveram o jantar mais mórbido de suas vidas na Taverna doFim dos Tempos, onde descobriram que o dono do lugar estava de luto: seusfilhos foram oficialmente dados como mortos.Foi a primeira vez que Wendy se sentiu mal por comer ali: não que a comidaestivesse ruim (continuava parecendo que havia fadas silvestres saltitando emsua língua), mas porque ninguém parecia falar, ou apreciar o que tinham noprato: estavam ocupados dividindo a tristeza de um homem que nunca maisiria ouvir seus filhos o chamando de “pai”.Enquanto estavam indo para casa do Edgar, carregando as roupas que Kristellhavia escolhido para ambas usarem no tal baile de máscaras, Kristellcomeçou a dar mais explicações sobre como lojas podiam existir semdinheiro.Foi uma caminhada longa, cansativa e absurdamente chata: Kristell estavaradiante, narrando como a dona do Empório da Tentação “pagava” o tecidoque ela usava fazendo roupas para todo mundo que a havia ajudado, e depoissobre como vários pais de garotas haviam ajudado ela a erguer a loja dela, eem troca, eles sempre podiam ir lá com suas filhas, mulheres, mães, sogras,derivados, e dar o que quisessem para elas, e isso acontecia num ciclo infindoque envolvia comida, água, todas as pequenas necessidades.Tá, ela admitia que isso era legal e tudo mais, mas não queria saber dissoagora.

Ainda estava se sentindo mal pelo dono da taverna: na sua cabeça, ele

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havia acabado de se tornar um órfão.Um pai órfão de filhos.

Wendy gostaria de ter dito alguma coisa para o dono da taverna, masele não estava lá.

Aliás, agora que pensava nisso, sequer sabia como ele era, ou o nomedele, muito menos onde encontrá-lo.“Eu também não sei o nome dele.” Kristell disse quando ambas chegaram noquarto de sempre, “aliás, eu nunca vi ele, acho que só o Kahsmin sabe quemé ele. Por isso que as pessoas brincam que ele é um dos mistérios deTuonela.”“Mistérios?” Wendy perguntou, se jogando sobre a cama, grudando os olhosna amiga, que tinha acabado de falar sua palavra favorita (depois de“comida”).“É. Mas não é um mistério de verdade. Kahsmin sabe quem é ele” Kristellrespondeu.“E quais são os de verdade?” Wendy perguntou com a ansiosidade que o lutopermitia.“Quem fez os túneis de Tuonela; Quem construiu a biblioteca subterrânea;Porque os mares de Tuonela têm as águas escuras; O que é a maldição doCisne de Tuonela; Como há um salgueiro chorão no topo de cada montanhaque cerca a cidade, sendo que eles não crescem aqui; Por que existe umacatedral em Tuonela?”“A catedral é um mistério?” Wendy perguntou, rolando na cama.“É, tipo assim, quando anjos e demônios andam por aí, não faz muito sentidoexistirem religiões como no nosso mundo, e como religiões aqui são bemdiferentes das do nosso mundo, celebradas de jeitos diferentes e tudo mais,por que deveria existir uma catedral aqui?” Kristell disse, atiçando acuriosidade de Wendy.“Que religiões a tem aqui?”“Eu só conheço Lectuísmo, mas não me pergunte, eu não sei nada sobre.”“Entendi, e o que é a maldição?”“Do Cisne de Tuonela? Sei lá, por isso é um mistério, duh. O termo sempreaparece nos livros que contam a história de Tuonela, mas nenhum delesexplica o que é. Só dizem que existe.”“E a...”“...biblioteca, ninguém sabe de onde ela veio, nem os livros dela, parece atéque ela sempre esteve lá; sobre o mar, não sei se você lembra, mas em Virrat,

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o mar é azul, normal, só em Tuonela que ele é escuro; sobre os salgueiros,olha, é bem estranho que alguém tenha plantado salgueiros ao redor da cidadesem motivo, numa terra onde eles nem deveriam brotar; e sobre os túneis,mesmo antes de Tuonela ser uma cidade subterrânea, esses túneis já existiam,tá tudo escrito n’A História de Tuonela.”Nota Mental: Assim que tiver tempo livre, desvendar todos os mistérios deTuonela.Kristell foi tomar banho, depois Wendy.“Você ainda tá tendo aquele problema?” Kris perguntou quando Wendysurgiu com a mesma camisola que havia usado na sua segunda noite emTuonela.“Com pesadelos?”“É.”“... eu ainda tenho eles, mas eles não me acordam mais no meio da noite.”Wendy disse, lembrando vagamente de que havia tido pesadelos nos três diasque passara dormindo, e nenhum deles conseguiu acordá-la.“Que ótimo amiga!” Kristell disse, esmigalhando os ossos de Wendy em umabraço totalmente inesperado e desnecessário, “bom, quaaase ótimo, quandoos sonhos pararem, aí sim vai ficar ótimo!” Ela acrescentou com aquelesorriso fofo que ninguém nunca seria capaz de tirar dela.

Wendy amava aquele sorriso.Mas ela amava respirar mais ainda...“Kris... ar.”“Foi mal. Então, você ainda quer que eu passe as noites aqui?” Kristellperguntou.Aquele foi um momento crítico na sua vida: pela entonação de Kristell, eraimpossível saber se ela queria que Wendy a dispensasse ou se queriacontinuar dormindo ali no quarto.Rápido: talvez ela quisesse poder passar a noite com, sei lá, Edgar, ou asmeninas que dançam com ela.

Talvez ela gostasse do clima nostálgico de estar com a Wendy, aquelegosto de “como nos velhos tempos”; ou podia já estar de saco cheio dessacoisa toda e estava educadamente pedindo para ser dispensada; ou apenaspedindo uma confirmação de que ainda era bem vinda.E também havia seu próprio desejo egoísta de ter alguém para conversar noiteafora: que culpa ela tinha? Quinze anos dormindo com amigas no quartohaviam criado um hábito muito forte nela.

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Decisões, decisões, decisões.“Bem...”“Tá bom, eu fico. Boa noite!” Kristell disse, se jogando debaixo das cobertase deixando Wendy paralisada por quase um minuto inteiro, se perguntando oque tinha acabado de acontecer ali.Não que ela fosse reclamar.Se pondo sob as cobertas, Wendy desejou boa noite para Kristell, querespondeu com um ronco: elegante como sempre, quase uma princesa.Depois foi a vez de Wanda, que com toda a educação que uma boneca depano pode dispor, não respondeu. Wanda era a cara da fineza.Não demorou muito para perceber que três dias dormindo haviamDESTRUÍDO qualquer vontade de dormir que deveria sentir à essa hora.“Valeu, Jaques, eu não queria dormir mesmo. Dormir é café de quem temmuito tempo livre.”Isso foi sarcasmo.Tentou ler as Crônicas de Narnia que ganhou de Natal, mas ele acabouficando tão interessante que ela desistiu de usar o livro para dormir.Dispensou A Queda da Casa Usher, H.P. Lovecraft, Kathleen Taumatainen eaté a droga do dicionário pelo mesmo motivo.

Isso não foi sarcasmo.Estava quase desistindo de dormir, o que com certeza a faria ter umdesempenho desastroso na manhã seguinte com Caleb... e ela não queria umdesempenho desastroso com Caleb. Começou a tatear sua mala, procurandosua lanterna e algo que a ajudaria a dormir assim que...“Kris?” Ela chamou, sentindo algo incomodo como um fantasma nas suasmãos.Barulhos indecifráveis foram sua resposta.“Kris!”“Uhn...” ela fez com sua voz sonâmbula.“Você mexeu nas minhas coisas?” Wendy perguntou.“... não, por quê?”Era mesmo, algo incomodo como um fantasma em suas mãos: algo que sabiaque deveria estar ali.Deveria.Não estava.“O diário que eu achei, ele sumiu.”

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Capítulo 33

O que acontece depois que morremos? Um sono eterno caracterizado pelanão existência, onde nada é sentido, percebido ou aproveitado? Onde o tudopassa por nós, incapaz de nos afetar. Uma terra de indiferença.Se for o caso, Kahsmin tinha uma pequena lista de mortos que continuavam aandar por aí: era o tipo mais deprimente de pessoa que já havia visto, essesque vivem indiferentes ao mundo, às cores, à música e aos outros.Talvez, no fim, sejam estes que recebam a morte como uma boa amiga: quemnão faria isso depois de passar a vida inteira se familiarizando com ela?Ou a morte poderia ser um lugar sem sofrimento, dor e preocupação, já quenossas mentes não estariam mais lá para criar todos estes problemas.

Seria um grande alívio.Seria um imenso desespero.Talvez não fosse nada disso.Havia anjos e demônios em carne e osso neste mundo, Kahsmin os vira, ostocara, fizera amizade com muitos deles, tornou-se o líder de uma cidadeinteira deles. No mundo em que nascera, uma pessoa só acreditaria em vidaapós a morte se um anjo surgisse no meio da noite, tocando uma lira esussurrasse com uma voz donzel alguma coisa do tipo: “Está tudo bem... osenhor vos aguarda.”Kahsmin imaginou esse anjo como sendo Caleb, com uma auréola, togabranca e flores no cabelo... foi a primeira risada que ele deu desde que aHarbinger da Morte declarara guerra contra Tuonela.

Se desse sorte, não seria a última.Acabara de acordar: faltavam agora apenas dois dia e vinte horas para

encerrar este ano. Claro que seu primeiro pensamento do dia tinha que variarentre vida pós morte e Caleb Rosengard de lira e toga.

Segunda risada, as coisas estavam mesmo ficando boas.Quem sabe, talvez o fim não seja o fim de fato: se havia anjos e

demônios, o que impede que haja espíritos? Almas? Um céu e um inferno?Além da lógica, é claro.

Ou talvez seja a própria lógica que explique a existência de taislugares: uma lógica tão complexa que é capaz de, por si só, girar asengrenagens que colocam o universo em movimento perpétuo, criando vida

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da terra, criando terra da vida, transformando o novo em velho, para depoistornar-se novo outra vez, em ciclos infindos que ninguém poderia explicar.

Ninguém além da própria lógica.Ninguém além de Caleb com uma lira, asas, dançando Hula-Hula.Terceira gargalhada, a mais histérica das três até agora.“Kahsmin... você é um idiota.” ele pensou consigo mesmo,

demorando quase um minuto inteiro para que o sorriso lhe abandonasse orosto.

Quatro da manhã e o líder de todo um povo se ocupava com risadas.Definitivamente ele era um idiota.Mas um idiota muito bom.Talvez quando passasse desta vida para outra, se houver outra, eles o

deixassem ser o comediante oficial do paraíso, até ser expulso para o infernopor ser um dos caras mais chatos do mundo.

Provavelmente seria expulso de lá também. Talvez fosse mandado devolta à Terra.

Não seria tão mal.Não importava, depois da guerra, de certo encontraria o pós vida.Depois da guerra.Vergonhoso, Henrik Kahsmin, assumir a derrota de uma batalha que

sequer começou. Autumn o mataria se soubesse que estava pensando nisso,provavelmente toda Tuonela o faria.

Mas como se ensina a ter fé na guerra à um homem moldado paratemê-la?

Um homem criado com uma das mais horríveis histórias de guerraque nenhum ser quase humano jamais deveria saber. As vidas de tantosinocentes, tiradas pelas mãos de outros inocentes que não tinham escolhasenão obedecer.

Histórias horríveis que o faziam estremecer na calada fria da noite,onde o vento e a lua crescente enchiam seu quarto, como neblina.

Como fumaça.Como memórias.Como lembranças.Como o passado.“Como... como você consegue viver consigo mesmo depois do que

fez?!” não era a voz do Kahsmin de hoje, mas sim a do pequeno Henrik,dezenas de anos mais jovem, que encheu seus ouvidos e sua alma, enquanto

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seu coração era atingido pela resposta que jamais desejara ouvir.“Eu não tive escolha senão obedecer, meu filho. Um dia você vai

perceber que nem tudo nas nossas vidas é como queremos. Tudo que peço éque não se esqueça: O que eu fiz na guerra, eu fiz por você.” a voz sem rostode seu pai soou de volta, impregnada de orgulho, encharcada de amor.

Amor que, somente anos após sua morte, Henrik Kahsmin veio aentender.

“Eu preferiria que tivesse MORRIDO ao invés de fazer o que vocêfez!” foi a última frase que ele disse para seu pai, enquanto ele ainda estavavivo.

Ele nunca soube se havia ou não arrependimento por ter dito isso.“Quê?!” Ele sussurrou quando um barulho muito mais alto que o

normal rompeu o silêncio de seu quarto, trazendo-o de volta ao mundo real.O barulho se repetiu: era como uma pequena rajada de vento, ou algo

cortando o ar, como uma espada, um chicote, ou um remo (batendoconstantemente contra uma pessoa).

Mais uma vez, mais perto. Uma terceira vez e...Uma sombra passou pela janela de Kahsmin e, ao mesmo tempo, ele

entendeu o que estava ouvindo: asas.Não de mergulhões, não de gaivotas, não de beija-flores e nem de

corujas. Era grande demais para ser um pássaro normal. Grande demais paradeixar Kahsmin confortável com a ideia.

Grande demais para ser algo diferente de uma Serpa.Houve um pequeno tremor em toda a catedral: a Serpa havia

aterrissado no telhado.O som de passos o paralisaram na cama.Um rosto familiar como o da morte quase o convenceu de que estava

sonhando.“... James?” Kahsmin chamou quando viu a criança castanha entrar

pela janela.“Oi moço!” Ele disse, soando são como jamais estivera nas noites que

passara em Tuonela.Kahsmin ficou vários segundos olhando sem entender nada, antes que

pudesse falar: “Achei que você tinha ido embora.”“Eu fui! E eu voltei!” James respondeu alegre.“Que bom.” Kahsmin disse, ainda um pouco confuso, “e onde você

foi exatamente?”

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“Jussarö.” James respondeu.“... por quê?”“Eu tinha que tirar a terra de cima da minha irmã! E aí a gente ficou

brincando nos brinquedos da semana de Nicolau, aí eu voltei. Aqui é maisfácil de conseguir comida.” James disse com uma simplicidade e alegria queincomodavam Kahsmin de uma forma que ele nunca conseguiria explicar.

A criança ainda estava delirando, Kahsmin havia enterrado a irmãmorta de James, Autumn estava lá para assegurar que a criança haviamorrido, e agora este garoto estava dizendo que foi até lá, desenterrou a irmãe ficou brincando com ela.

Tinha que chamar Hakasalo de volta. Urgente.E Autumn também.Ela, melhor do que ninguém, sabe que mortos não voltam à vida.“... isso é muito, é... bom” Kahsmin meio que cuspiu a palavra, como

se estivesse entalada na garganta e tivesse sido empurrada abruptamente atésua boca, “James... e, é, você deixou sua irmã aonde?”

“Ela tá aqui! Vem cá, Jane!” James chamou alegre.Kahsmin queria, do fundo do coração, sentir pena do garoto e poder,

de alguma forma, ser solidário para com ele: explicar que, como ele própriojá sabia, fazer de conta que os mortos ainda estão entre nós só é bom comouma forma de prolongar nosso sofrimento perante a ausência daqueles que seforam.

Sim, ele queria sentir pena.Mas a menina na janela o impediu.“Você é o moço que me enterrou!” Ela disse com os olhos cravados

nele.Olhos nada alegres.Ele se transformou numa pilha de nervos tão grande que sequer notou

que uma quarta pessoa havia entrado no quarto. Para ser justo, era umapessoa com uma facilidade muito grande em se misturar com as sombras.

“Stacy voltou.” Autumn disse no tom mais próximo de animação queela conseguia produzir, o que não era muita coisa na verdade, “e trouxedois... ah, eles já estão aqui.” Acrescentou ao perceber a presença de James eJane.

“Autumn,” Kahsmin começou antes que alguém pudesse impedi-lo,“lembra do James?”

“Lembro, eu estava em Jussarö caso você tenha esquecido.” Ela

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retalhou de volta.“Lembra da irmã dele?”“A que você enterrou?”“Então foi você MESMO que me enterrou!” Jane cortou os dois.

Aquela definitivamente foi uma boa hora para notar que Jane era uma mestiçademônio com raiva, com garras e olhos brilhantes se destacando em rostosujo de cinzas e terra.

Um rosto raivoso e os músculos retesados de um felino pronto paradar o bote.

“Eu não faria isso se fosse você, criança.” Autumn disse, com acabeça virada para ela.

Jane congelou o olhar na direção de Autumn.Autumn se aproximou de Jane, que não recuou um único milímetro,

nem quando Autumn tocou seu rosto, seu pescoço e seu pulso.Kahsmin secretamente admirou a coragem de Jane: se Autumn

chegasse perto dele com uma mão erguida, ele teria, no MÍNIMO, tentadodesviar a cara. E ele tinha certeza de que 120% de Tuonela faria o mesmo.

“Eu não fui capaz de sentir vida alguma no seu corpo em Jussarö.”Autumn declarou.

“Bom, você tava errada, né?!” Jane respondeu com aquela voz agudade criança.

“É... vamos corrigir isso.”Autumn girou a cabeça da menina de uma só vez: houve um estralo

grotesco, uma cabeça virada num ângulo obtuso demais para ser natural.Um pescoço quebrado.“Pronto, agora está morta.” Autumn disse com um sorriso.“AUTUMN!” Kahsmin gritou.“SEU MONSTRO, EU VOU ACABAR COM V–”Autumn colocou sua mão no chão: um buraco de sombras se abriu,

James caiu, sua voz foi cortada apenas quando Autumn fechou o buraco denovo.

“Eu odeio crianças.” Ela disse, largando o corpo petrificado de Janeno chão como se fosse um trapo velho.

“MAS VOCÊ NÃO TINHA QUE MATAR ELA–”“Grite mais uma palavra e eu te mando para o reino das sombras junto

com o menino.”Kahsmin refreou-se imediatamente: três vezes preso no reino das

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sombras haviam sido mais que o bastante para uma vida.Tentando reassumir a compostura, ele perguntou: “Por que você fez

isso?”“Porque ela estava morta em Jussarö e ela deve continuar morta aqui:

é mais que possível que um demônio tenha assumido a forma da Janeverdadeira e usado de algum poder telepático para perturbar o irmão e fazê-loresgatá-la. Se for o caso, o corpo deve voltar à forma original a qualquermomento.” Autumn disse com a frieza de um médico dando o diagnósticofinal de um paciente.

“Você disse... se for o caso?”“Sim. Também pode ser que um demônio tenha se apossado corpo

morto dela, neste caso, o corpo continuará aí sem fazer nada. No máximo,alguma coisa estranha pode sair pelos ouvidos e a boca. A propósito, seja útiluma vez na vida e relate para mim o que acontece com o corpo enquantoesperamos.” Ela ordenou, se inclinando ameaçadoramente para ele.

Kahsmin obedeceu, nos primeiros minutos pelo menos: em um pontono meio de sua observação, ele parou de procurar qualquer dos sinais queAutumn havia mencionado e começou a comparar Jane com sua Meggie.

Meggie era loira e tinha os olhos claros da mãe, enquanto Jane tinha ocabelo cor de chocolate com ferrugem, olhos escuros e pele cor de folhassecas. Ambas eram total e gritantemente diferentes, mas não eram asdiferenças que interessavam.

Eram as semelhanças.Era o rosto preso na expressão petrificada de quando percebemos que

fomos roubados.Meggie tinha essa mesma expressão quando Kahsmin encontrou seu

corpo debaixo da parede desmoronada: era difícil para ele entender como umsimples olhar podia mostrar a interminável surpresa que era perceber que oresto de sua vida havia sido roubada em um piscar de olhos.

Olhos que tiveram o prazer de morrer enquanto ainda eram inocentes.Bem, talvez não. Kahsmin acreditava que perdemos a inocência no

momento em que percebemos que estamos sendo roubados pela vida.Ladra sorrateira que nos rouba infâncias inteiras, junto com amigos e

sonhos que tínhamos; nos rouba lugares que um dia chamamos de lar,momentos que antes tinham um gosto familiar e, quando acreditamos que nãohá mais nada a ser tirado de nós, a vida nos surpreende e rouba a si própria,nos deixando à mercê da morte.

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Uma vida que rouba a si própria.E o único vestígio do crime era o olhar que traduzia o “Fim da

Inocência” estampado no rosto de suas mais jovens vítimas.No rosto de Meggie, no rosto de Jane.“Não pode ser.” A voz de Autumn ressoou.Kahsmin virou-se para Autumn, desperto de seus devaneios: percebeu

imediatamente que estava olhando para o lugar errado.A criança em quem deveria estar de olho estava de pé na sua frente.Ele não gritou, mas se jogou para trás com tanto desespero que quase

acertou Autumn.As mãos da menina se ergueram mecanicamente, delicadas em meio à

fuligem e areia que as impregnavam: uma imagem que, Kahsmin estavacerto, o caçaria em todos os seus piores sonhos.

As mãos de Jane agarraram a própria cabeça e, com um movimentobrusco e outro estralo de moer os ossos e quebrar espinhas, colocaram opescoço de volta no lugar.

Os olhos piscaram, e sua voz endiabrada ressoou ardida pelo quarto:“Vai ter que tentar um pouquinho mais que isso.”

Os próximos dias foram marcados pelos berros explosivos dosrelâmpagos que povoaram Tuonela junto com a chuva, que apenas se atreviaa parar quando estava prestes a voltar com ainda mais força que nas últimashoras.

Como a chuva era a vontade que Wendy tinha de saber quem haviapegado o diário: não parava, e quando parava, era para voltar ainda maisforte.

O diário não estava nas estantes, debaixo de camas, na gaveta deroupas, na cozinha, e nem no banheiro, Wendy e Kristell se certificaramdisso.

Nada.Wendy perguntou até ficar irritante para todo mundo que ela conhecia

naquela casa se alguém tinha visto/chegado perto/pegado “por acidente” umdiário que ela guardava no quarto (em momento algum ela mencionou que odiário não era dela, mas... detalhes).

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Ninguém tinha a menor ideia do que ela estava falando.Só mais tarde ela percebeu: talvez o diário não tivesse sido de fato

roubado, e sim retomado pela dona verdadeira enquanto Wendy dormia.Mas como ela teria descoberto que o diário estava com Wendy em

primeiro lugar? Só a Kristell sabia, e a Kris achava aquele diário tãointeressante quanto um cesto de meias sujas. Todas as outras pessoasachavam que era só um livro comum, pelo menos foi o que Wendy disse paraos que perguntaram.

A casa de Edgar havia se tornada deserta agora que não estavamhavendo ensaios com a trupe: Wendy apenas via Allan e Victoria se pegandopelos cantos da casa, o rapaz que teria interpretado Allenwick, Hulligan, euns dois amigos apareciam de vez em quando e havia Kristell e Paloma,sempre conversando durante o café da manhã.

Uma das coisas que Wendy havia aprendido em Tuonela: as mesmaspalavras podem descrever pessoas totalmente diferentes: Kristell e Palomaeram o melhor exemplo disso que ela já tinha visto.

Ambas eram loiras, altas, sorridentes, bonitas e populares.E não pareciam em nada uma com a outra: Paloma era um pouco mais

alta que Kris (e muito mais alta que Wendy), tinha o cabelo bem menos vivoe seu sorriso parecia mais com uma ferida não cicatrizada no seu rosto:sempre aberta, sempre ardendo em seus lábios.

Parecia doer, para Wendy.O de Kris era natural e contagiante.Paloma era bonita como uma boneca de porcelana que parece sempre

preste a se quebrar ao menor toque. Kristell não tinha essa fragilidade na suabeleza, era quase selvagem.

Quase, não chegava ao ponto de realmente o ser, como VictoriaVihreä era.

Outra coisa estranha era o fato de todos conhecerem aquela casa como“Casa do Edgar”, embora Wendy não o visse dentro dela na maior parte dotempo.

Kris explicava que o motivo disso era que ele se trancava no porão dacasa, pois estava ocupado escrevendo algo novo e não gostava de se distrairenquanto o fazia. Tudo bem, nada mais justo, principalmente porque, assimque ele terminasse, aquela casa se encheria de novo.

Um dos poucos momentos em que ela não pensava no sumiço dodiário era enquanto treinava com Caleb: duas vezes, Wendy conseguiu atirar

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flechas com a mesma perfeição que havia conseguido quando perfurou a mãodele, a diferença foi que ele estava preparado dessa vez e as desviou,elogiando a performance dela, nunca levando em conta as bilhares de flechasque ela errava e perdia.

Ela havia melhorado significantemente suas habilidades para seesquivar dos ataques dele também. Sua alegria durou até perceber que talvezele estivesse pegando leve com ela.

Muitas notícias estranhas começaram a rondar por aí nesses dias:parecia que alguém suspeitava que os D’arlit estavam mandando pássarospara Tuonela e usando-os para colher informações; levou um tempo paraWendy entender que haviam alguns demônios capazes de falar com aves, eque Autumn era uma delas.

Também descobriu que a própria Autumn mandava pássaros comfrequência para a cidade dos D’arlit, e as outras nos arredores de Tuonela,para descobrir o que estava acontecendo por lá, e para resolver o problemacom os pássaros dos D’arlit, Autumn deixou sua Serpa comer todas as avesque não fossem as que Autumn conhecia.

Como a Serpa ia saber que grupo de aves era qual? Isso já era algo umpouco mais difícil de responder, aparentemente, não era só com aves queAutumn falava, mas com ancestrais de aves, que é o que Serpas eram,segundo Marco.Wendy veio a descobrir porque Paloma parecia triste apesar de sorrir: Fawkese ela não estavam mais juntos, o que foi um fator decisivo para aumentar aamizade entre ela e Kristell.Ex-namoradas do mesmo cara... juntas... isso nunca é coisa boa.Era um milagre Fawkes estar vivo tendo tantas delas.Ou talvez não estivesse: desde que ele trouxe Wendy e Kristell de volta deBric-à-Brac, ninguém parecia ser capaz de encontrá-lo em lugar algum.Wendy queria ela mesma procurar, mas estava ocupada com uma descobertamuito mais desconcertante e perturbadora.Ela tinha um fã-clube.Uma mini legião de trinta e oito pessoas vinha se dedicando a ela desde a lutacontra a Harbinger da Morte: eles fizeram roupas com estampas do seu rosto,algumas meninas haviam cortado o cabelo para ficar igual ao dela e todoseles pareciam ter uma sede infinita de curiosidade sobre sua vida.Nada contra curiosidade, mas era estranho ser o alvo da mesma.A criatividade também era infinita: eles haviam escrito uma compilação de

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mini histórias sobre as aventuras de Wendy e Krispina (Kristell não ia ficarfeliz com isso), contos românticos envolvendo Caleb... e outros envolvendoFawkes.Os quais ela se recusou a ler e apenas não rasgou para não ofender osescritores.Afinal, eles poderiam ser mestiços bem mais fortes que ela.

Mas nenhuma notícia foi tão repetida quanto aquela sobre a volta deJames, o garoto de Jussarö: pelo que parecia, ele havia voltado montado naSerpa de Autumn (então foi assim que ela voltou...) e trouxe a irmã morta,que pelo visto não estava morta.

“A Autumn QUEBROU o pescoço dela?!” Wendy perguntou quandoacabou seu último treino do ano com Caleb.

“Ela nunca foi muito delicada com crianças.”“Mas e aí?!”“A criança se levantou na frente dos dois, endireitou o pescoço e

começou a provocar Autumn.” Caleb disse como se aquilo não fosse nadademais.“... e isso é normal?”“Nem um pouco. Kahsmin diz que não consegue encontrar nada a respeitoem nenhum dos livros. Só uma vez eu ouvi falar de um demônio que pudessetrazer alguém de volta à vida, e mesmo ele não tinha poder sobre si mesmo,caso morresse. A ideia de que exista um ser capaz disso aqui em Tuonela meperturba.”“O que a Autumn fez com ela depois?” Wendy perguntou.“Enterrou uma faca no pescoço da criança. Ela morreu na hora, mas já está serecuperando, mais devagar dessa vez. Agora Autumn está com os dois presosno campanário enquanto tenta entender o que eles são.”“Mas e se ela for um demônio gato?!” Wendy perguntou.“Quê?” Caleb perguntou, deixando-a indefesa com seu olhar.“Sabe, talvez ela tenha sete ou nove vidas, igual os gatos, e se a Autumncontinuar fazendo quebrando o pescoço dela, uma hora ela não vai maislevantar!” Wendy disse.“Se você estiver certa, isso faz de Autumn uma péssima pessoa.” A ironia esarcasmo foram fortes nesse comentário.“Você acha que pode ser isso?” Wendy perguntou, alegre com a ideia de teracertado.“Não.” E toda a alegria dela morreu, “eu acho que há algo além da condição

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de mestiça que aquela menina detém. Uma maldição que não a permitemorrer.”“Não parece uma maldição muito ruim.”“Depende das condições da maldição, mas eu posso estar errado e a meninapode apenas ter um poder de auto cura muito acima da média. Eu realmentenão tenho como saber.” Caleb disse, admirando a chuva que havia acabadode recomeçar.Não havia como mentir: Wendy estava apaixonada por seus treinos recheadosde lama, por ouvir o som que as flechas faziam quando cortavam seuscaminhos entre as gotas d’água e, principalmente, pelo olhar de devaneio queCaleb entregava para as nuvens que tanto combinavam com seus olhos.“Vá almoçar, me encontre no píer em uma hora.” Ele disse de repente.Wendy foi pega de surpresa, sem entender o que ele queria.“Por quê?”“Você esqueceu?” Ele disse, grave como os trovões.O pior de esquecer alguma coisa é não conseguir lembrar o que vocêesqueceu: por exemplo, agora Wendy não tinha ideia do que havia esquecido.E tinha certeza que Caleb podia perceber.“Ilha da Caveira, soa familiar?”Antes que ele pudesse continuar, Wendy estava pulando e abraçando-o comose lhe tivesse sido oferecido o melhor presente de todos os tempos... e,pensando bem, era o mesmo o melhor presente de todos os tempos.“Achei que você tinha esquecido!”“É possível, mas não importa, nós vamos.”“Obrigada.” Wendy sussurrou no seu ouvido.“Vá almoçar, me encontre no píer em uma hora.”Wendy já estava indo, quando se lembrou.“Mas... hoje é domingo, eu tenho que ver a Autumn.”“Você vai morrer se ver Autumn hoje: ela está ocupada investigando ascrianças e mandou Kahsmin informar que qualquer um que se atrever baterna porta dela hoje será enforcado, esquartejado e os restos vão servir dealimento para o rato dela, acho que isso inclui você.”Wendy estremeceu com a ideia do rato Lorde Bertram devorando seu corpo.“Já que você colocou as coisas desse jeito, eu vou almoçar, até daqui apouco!”Descendo para almoçar na Taverna do Fim dos Tempos, Wendy viu Kristell eEdgar terminando de comer. Diga-se de passagem, Edgar parecia traduzir a

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palavra “melancolia” enquanto conversava com Kris, mas fez seu melhorpara parecer, não alegre, mas neutro, quando Wendy apareceu.“Wendy!” Kristell gritou, pronta para abraçar a amiga. “Você tá... imunda.”Ela comentou, desistindo do abraço.Ela se sentou com os dois e explicou o que estava acontecendo.“Mas Wendy... você tem certeza que quer fazer isso?” Kristell disse, compreocupação estampada no rosto e recortada no seu tom de voz.“Claro que eu tenho, e se eles ainda estiverem vivos por aí? E se eu puder meencontrar com eles?” Ela respondeu.“Eu sei que você pode acabar se encontrando com eles, mas e se eles–”“Estiverem mortos? Eu pelo menos vou saber em quem pensar quando eucomeçar a desejar que eu tivesse pais.”Wendy já esperava que Kris fosse reagir assim, ainda mais depois daqueledrama ridículo que ela havia feito no Empório da Tentação. Estava na cara daamiga que ela queria dizer algo, uma correção, um acréscimo, um detalhe queela conhecia e Wendy não. Se era isso mesmo, ela não dividiu o que sabia,apenas disse: “Eu não acho que você deveria ir.”“Por quê?”“... você não entenderia a dor.” Ela disse e se retirou da mesa. Edgar foi logoatrás.Wendy queria entender porque todo esse drama: tudo bem, Kristell teve umapéssima experiência ao conhecer os pais e depois vê-los morrer, mas se elaestava tentando proteger Wendy da dor, devia saber que não ia dar certo.Christina concordaria: nenhuma dor é pior que a dor de não saber.Seu humor começou a ficar irritadiço enquanto pensava na estupidez daamiga.“Tudo bem?” Caleb perguntou quando ela o encontrou no píer.Ela fez um múrmuro positivo, sem se dar ao trabalho de abrir a boca.“Tem certeza?”“Sim.” Wendy disse, se segurando para não dizer alguma coisa como “cala aboca” ou “não interessa”.Se Caleb percebeu qualquer coisa de estranho em seu comportamento,guardou para si mesmo e, por isso, Wendy era grata. Afinal, ela não era aúnica parecendo enfrentar uma tempestade interna.Por mais que Caleb estivesse sendo bom como sempre para com ela, nãohavia como negar uma certa distância entre ele e o “presente”. Pareciasempre estar enfrentando fantasmas que ninguém mais podia ver, mesmo

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quando conversava com Wendy.“Tio Winslow!” Caleb chamou, interrompendo o trem de pensamentos deWendy.“Blaaaargh...” uma voz beberrona como a de um caminhoneiro grugulejouem resposta.“Está acordado?”“POR QUE VOCÊ NÃO MORRE?!” Ele gracejou de volta e, de algum lugardentro do barco, o frango de borracha voou, passando longe demais de Calebpara significar qualquer ameaça, “GRUMETE DE ÁGUA DOCECOMEDOR DE BOSTA!”De repente o humor de Wendy melhorou de novo.Caleb suspirou cansado.“Está bêbado, me dê um minuto.”Caleb entrou no barco com auxílio de seus poderes: Neste meio tempo,Wendy ouviu mais palavrões do que era capaz de assimilar, alguma coisa queparecia uma frigideira caindo no chão e o que ela acreditou serem garrafas debebida sendo arremessadas contra Caleb e se espatifando contra paredes.“... nós vamos em outro barco.” Ele bufou irritado, saindo do barco deWinslow, cheirando a álcool que não havia tomado e indignação de segundamão.Quando Wendy viu a outra opção que eles tinham, começou a se perguntarporque Caleb não simplesmente tirava Winslow do barco à força, já que eleestava doido demais para conseguir ser útil na própria embarcação.O barco de Winslow era como uma versão menor dos navios piratas queWendy estava acostumada a ler sobre nos livros de histórias piratas.A segunda opção era um bote salva vidas antigo com um remo quebrado.“... dezoito anos e Kahsmin não arrumou esse remo.” Caleb murmurou,atirando o pedaço de madeira inútil de volta no bote. “Suba, a viagem é umpouco longa até a Ilha da Caveira.” Acrescentou, enquanto ele próprioentrava a bordo.“Mas como vamos remar?”“Não vamos. O vento vai nos levar.”Wendy olhou desconcertada tentando entender que tipo de frase à lá biscoitoda sorte era aquela, mas obedeceu. Só aí se lembrou de que Caleb podiacontrolar o ar e fazer o vento literalmente levar o bote.Não demorou muito para que ela enfrentasse seu primeiro problema em altomar: ao contrário da embarcação de Winslow, o pequeno bote era

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chacoalhado como um chocalho pelas ondas... e seu estômago foi o primeiroa perceber isso.“Você nunca serviria para fazer parte do Pequod.” Wendy fingiu ouvirWanda dizer.“Por que eu iria querer fazer parte de um navio de caçadores de baleias?” elaretribuiu.Uma onda de enjoou interrompeu seu monólogo mental e a forçou a se deitarno diminuto espaço disponível no bote.“Quer ir mais devagar?” Caleb perguntou.“Por favor.” ela murmurou.Diminuir a velocidade não foi tão útil quanto ela desejava: era como se o mare seu estômago estivessem brincando de cabo de guerra, e o almoço deWendy era a corda.No momento em que se atreveu olhar para além do barco, notou que quasenão podia ver a costa de Tuonela: não porque estavam muito longe, masporque as águas negras do mar começaram a ser tomadas por um nevoeirofrio e salgado.“Caleb, você sabe porque o mar de Tuonela tem a água tão escura?” Elaperguntou.“Porque o mar está de luto.” Ele respondeu.E a atenção de Wendy estava desperta.“Como é?”“O mar está de luto por todas as vidas que nas suas profundezas seperderam.”“É sério?” Wendy perguntou incrédula, tentando se sentar para olhar nadireção dele.“Há dezoito anos, mais de mil e quinhentas vidas se perderam de uma vez naságuas de Tuonela, em uma noite tempestuosa e sem lua.” Ele disse, e sua vozcaiu nos domínios mais sombrios de seu alcance vocal, para o deleite deWendy. “O navio se chamava Pérola Branca, ele trazia guerreiros das maisdiversas terras para ajudar Tuonela contra os D’arlit.Mas eles nunca chegaram, e desde então, os mares e eu estamos de luto.”“Isso é verdade?” Wendy perguntou, com a boca aberta por ter acabado dedescobrir a resposta para um dos mistérios de Tuonela.“Eu gosto de acreditar que seja, não consigo me lembrar do mar ser tãoescuro antes daquela noite. Mas eu posso estar errado, há muita coisa nestemundo que eu ainda não entendo.” Ele disse confessou, “e os mares não

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foram as únicas coisas que escureceram depois daquele dia para mim.”O cabelo branco esvoaçava através das rajadas de vento, como se fossemgotas de tinta branca derramadas na água, se espalhando num borrãoincandescente, a mais simples das obras de arte. O contraste perfeito para oenigma sombrio que se formava em seu rosto.Tantas perguntas que ela queria fazer.“Você disse que você ficou de luto junto com o mar?”Ele meneou a cabeça.“Minha mãe estava a bordo do Pérola Branca.”Aquelas palavras machucaram seus lábios, mas a dor, esta foi Wendy quemsentiu.“Eu sinto muito.” Wendy disse.Caleb não respondeu.Por um longo tempo, Wendy só ficou ali, imaginando como devia serconhecer sua mãe pela maior parte de sua vida, para depois vê-la afundar nasprofundezas do desconhecido, onde nada que vivesse poderia alcançá-la.A ideia a fez querer chorar, mas a presença de Caleb a impediu.Em algum momento, ela cochilou: chegou a ver imagens do banheiro doorfanato das neves, mas o sono era leve demais para que ela mergulhassefundo na pequena câmara de torturas que Ally havia caridosamente deixadoguardada entre seus sonhos.Quando acordou, tudo parecia igual, mas de algum jeito, ela podia sentir quealgo havia mudado.

Era verdade que não havia nada que ela pudesse ver através da névoa,mas havia um todo que ela podia ouvir: sons tão sombrios que nem o pior dospiares de coruja poderiam se comparar; um constante murmúrio grave, comose algo gigantesco roncasse sob aquelas águas sem ondas... e o cheiro... o marnão cheirava como o mar.“Isso é... água doce?”Caleb fez que sim.“Estamos em um mar de água doce. Há algum tempo nós deixamos o mundoonde Tuonela existe.” Ele disse, “há um portal em alto mar onde esses doismundos se misturam, fique dentro do barco e com o arco e flecha preparado...tudo aqui evoluiu para devorar intrusos.”Wendy obedeceu, sem conseguir evitar pensar no quão inútil ela seria comaquele arco se alguma coisa de fato acontecesse.Pensou que talvez fosse uma boa ideia tentar se transformar agora, mas

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quando tentou, percebeu que ainda não era capaz de controlar sua raiva bemo bastante para conseguir alguma coisa além de garras no lugar das mãos.

Autumn não ficaria feliz com isso, nem com o fato de que ainda nãohavia escolhido uma arte para se aprimorar.Sons, que pareciam uma mistura do coaxar dos sapos misturado com osberros de Serpa, espreitavam a sanidade de Wendy. A ideia de criaturas quepudessem fazer sons tão horríveis e permanecer invisíveis aos seus olhos aassustava mais que a ideia de ser pega pela irmã Romena enquanto enchia otravesseiro dela com cocô de gato.“Fique calma.” Caleb sussurrou. “Dizem que cães que latem não mordem, eisso se aplica a esse mundo.” Bom conselho, “eu me preocuparia com ascriaturas que estão em silêncio.”E é assim que se destrói um bom conselho.“Me diz que a gente tá chegando.” Wendy pediu.“Estamos, olhe.” Caleb disse apontando para frente.Pela primeira vez desde que entrara naquela desculpa patética para um barco,Wendy ficou em pé: no começo, não viu nada além da neblina, no entanto,não demorou muito até vultos começarem a se distinguir no nevoeiro.No começo, pareciam cinco totens retorcidos, crescendo em direção ao céu,mas seguindo pelos mais tortuosos dos caminhos.Quando chegaram mais perto, a aparência piorou...“Aquilo são... dedos?” Ela perguntou, espantada com os cinco dedosesqueléticos gigantes que se erguiam da água de pesadelos em direção aoscéus de fumaça.“Não, são cadáveres de árvores.”Foi preciso chegar ainda mais perto para que Wendy acreditasse no que elehavia dito: só quando praticamente podiam tocá-las é que percebeu:realmente eram troncos de árvore gigantescos, sem folhas nem galhos,brotando do fundo do mar.“Como árvores podem crescer embaixo d’água?”“Eu disse, muito daqui é diferente do que estamos acostumados, há umainfinidade de eventos aqui que jamais poderíamos explicar só com o queaprendemos no mundo de Tuonela. Daqui a correnteza fará o trabalho paranós.”Outro mundo, que ideia infeliz colocar o único cara que poderia ajudarWendy a encontrar os pais no meio desse umbral, mas pelo menos, issoexplicava porque ela não havia encontrado a Ilha da Caveira nos mapas da

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biblioteca subterrânea.Caleb se sentou ao lado de Wendy, que imediatamente sentiu a ausência dosventos que haviam guiado o bote até então.

Eles passaram por uma fresta entre as árvores.No instante em que o fizeram, Wendy foi jogada para o colo de Caleb

com o tranco que a correnteza deu no barco.“Eu avisei que a correnteza nos levaria agora.”“Você não avisou que eu seria jogada feito uma bolinha de gude pelo

barco.”“Detalhes.” Ele disse, querendo sorrir, não conseguindo.Na medida em que a velocidade do bote crescia, a ansiedade de

Wendy ia junto.Não por causa das criaturas que poderia encontrar na Ilha da Caveira,

nem por estar à sós no meio do nada com Caleb Rosengard, mas por o quepoderia descobrir sobre seu passado uma vez que Mortimer revelasse a elaquem eram seus pais.

Estava disposta à não sofrer como Kristell: se descobrisse que seuspais estavam vivos, mas presos, faria tudo para salvá-los; se estivessemmortos, pelo menos ela saberia quem era a mulher que havia arriscado tudopara salvá-la.

Mas se ainda estivessem por aí, livres... Wendy não queria alimentaresperanças, mas no fundo, sabia que era exatamente por isso que ela estavaesperando: descobrir que seus pais estavam vivos, e que ela poderia sereencontrar com eles, talvez até viver junto com eles.

Tudo mudaria, esta possibilidade era o motor de sua ansiedade.Ou talvez devesse dizer: esta impossibilidade.“Wendy.” Caleb chamou.“Oi.”“Contemple: A Ilha da Caveira.” Ele anunciou, apontando para frente.Não pode evitar os arrepios que sentiu ao som daquelas palavras na

voz dele.Também não pode evitar o seguinte comentário: “Ela parece um pato!

Sério! Dá pra ver o pescoço, a cabeça e o bico, tudo certinho.”“Eu sei, e se você virar a cabeça, ela parece um coelho.” Caleb

apontou.Era verdade, aquela ilha parecia qualquer coisa, menos uma caveira.“Por que não chamam ela de Ilha do Pato?! Ia atrair bem mais gente

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pra visitar o lugar.”Caleb deu de ombros.Quando o bote finalmente chegou na margem, ele o puxou para terra

firme, para caso a maré aumentasse de repente, também mandou que elacontinuasse a carregar o arco e flecha, porque “nunca se sabe”, e logo,estavam a caminho da morada de Mortimer.

Era fácil entender porque o lugar se chamava Ilha da Caveira uma vezque você pisava nela: não havia vida ali, era tudo árido e pedregoso, comoum deserto sem terra, e o nevoeiro ajudava a deixar tudo ainda mais cinza emórbido.

Curioso como fosse, Caleb parecia se misturar bem com o lugar.“Onde ele está?” Wendy perguntou.“Ele vive em uma caverna.”

“E onde é a caverna?”Caleb apenas apontou para cima: lá no alto, onde se formava o que pareciaser a cabeça do pato, o que devia ser uns bons quinze metros para cima.“Confia em mim?” Caleb perguntou, estendendo a mão para Wendy.“Nem um pouco.” Ela brincou com uma leve sensação de Déjà Vu.“Ótimo.” Ele disse, agarrando a mão dela.Um pequeno estouro de ar e logo Caleb e Wendy estavam em pleno voo,cada vez mais distantes do chão, assistindo o barco e a costa pedregosa dailha serem engolidas pelo nevoeiro eterno que os envolvia.Caleb a colocou no chão no instante em que chegaram no “bico” do pato.“É ali.” Ele disse, apontando para um enorme buraco na ilha, o ‘olho’ dopato, “está pronta?”Ela não estava, mas também não podia se dar ao luxo de esperar mais umsegundo.Foi ela mesma quem puxou Caleb pela mão enquanto corria até a caverna,guardando o arco dentro na aljava que trazia consigo.A primeira coisa que percebeu ao entrar foi o cheiro: o fedor de peixe crumisturado com algo tão podre que poderia ser um animal se decompondo empleno sol.A segunda coisa que percebeu foi o fogo: havia uma pequena panela preta,pendurada por gravetos frágeis como fios de cabelo sobre uma fogueiradiminuta. Toda luz e fedor do lugar pareciam prover daquela panelinha preta.A terceira foram os ossos: havia, em um canto afastado da caverna, uma pilhade ossos mais alta que Caleb e mais larga que a irmã Romena depois da ceia

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de Natal. Estava começando a se desesperar com aquilo, até perceber queeram ossos de peixe, não gente, ainda assim, eram uns peixes bem estranhos.Só quando ouviu a voz foi que percebeu a presença de Mortimer VonSchenzel, vinda do fundo da caverna, onde a luz do fogo não podia alcançá-lo.“Ah, visitas.” Sua voz era como uma serpente, prestes a estrangular e quebraros ossos de qualquer ser que chegasse perto demais. Foi a primeira vez queWendy recordou-se do fato de Mortimer já ter estado à serviço dos D’arlit.“Lembrado de mim, Mortimer?” Caleb perguntou, aproximando-se do fogo edeixando que as chamas revelassem o seu rosto.O som do respirar de Wendy pareceu incrivelmente alto em seus ouvidosenquanto esperava algo acontecer.Uma espera bem recompensada.Das profundezas da caverna, um vulto vestido de trapos se aproximou compassos trôpegos e uma dificuldade que seria capaz de cortar o coração dosmais fracos.Uma vez em frente à fogueira, tal como Caleb, Mortimer retirou o capuz rotoque escondia seu rosto: nunca Wendy imaginou que poderia haver algo tãofeio em toda sua vida.E já havia visto as brotoejas nas costas da irmã Clara, nada bonito.O único aspecto de Mortimer que lembrava vagamente um ser humano era ofato de ele ter uma cabeça, braços, pernas, boca e olhos. Ele era um serverruguento, baixinho e encurvado como aquelas velhas que não são capazesde sustentar o próprio peso.Seus olhos pareciam globos de vidro enfiados contra seu crânio, tão grandes,foscos e lívidos eles eram, a íris esbranquiçada focava em cada aspecto deCaleb com a mesma intensidade com a qual Wendy vira a Harbinger daMorte vasculhar o povo de Tuonela.O rosto deformado era muito maior no lado esquerdo que no direito,deixando-o com uma aparência assimétrica, como se LaVerne tivesse feitoum boneco de massinha perfeito e depois espancado ele até parecer que foraatropelado por um rinoceronte.E a boca: os dentes eram como cacos de vidros enfiados aleatoriamentecontra uma gengiva lamacenta, pois não havia a menor regularidade naquelesorriso pontiagudo.Parecia mais um sapo que um humano, mas Wendy não tinha certeza seMortimer era uma quimera ou apenas um primo distante do corcunda de

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Notre Dame.O sorriso alargou-se no rosto de Mortimer Von Schenzel: “Eu nunca esqueçoum rosto, muito menos o de uma lenda, Caleb Rosengard. E quem é esta belajovem?” Ele perguntou, olhando por cima do ombro de Caleb.“Eu sou Wendy.” Ela respondeu quando finalmente percebeu que a perguntalhe havia sido dirigida.“Está aqui para descobrir a identidade de seus pais.”“Estou.”“E não a perturba?” Mortimer perguntou, gesticulando com as garrasenrugadas.“... perturba?” Wendy repetiu, sem perceber que havia dado um passo paratrás.“Estar na frente do homem que pode ser o responsável por mandá-los para amorte?”Wendy não sabia o que responder, e Mortimer retomou a palavra: “É claroque não. Percebo pela forma como escolhe sua companhia, não estou certo,Rosengard?” Ele disse, lançando seu olhar malfazejo, mal acompanhado deum sorriso perverso de volta para Caleb.“Apenas faça seu trabalho.” Caleb respondeu com tanta firmeza que seriaimpossível dizer se estava dando uma ordem ou desafiando Mortimer.O demônio deformado assentiu sem qualquer sinal de que havia sidoofendido e gesticulou com as unhas afiadas como as pedras na costa da Ilhada Caveira para que Wendy se aproximasse.Esta procurou em Caleb por alguma resistência, mas ele fez sinal para que elafosse.Ela obedeceu, não muito contente com isso.Logo, os três estavam ao redor do fogo com sua panela malcheirosa.“Sente-se, criança.” Mortimer pediu, apontando uma pedra sobressalente.Ele então começou o que disse ser um processo de reconhecimento: eleenfincou-se na frente dela, de uma forma que permitia o fogo iluminar o rostode Wendy, mas manter o de Mortimer nas sombras.Apesar disso, Wendy podia ver claramente o reflexo daqueles olhospousando e demorando-se em cada centímetro do seu corpo; cada segundodaquilo se tornava mais desconfortável que o anterior.“Melhor que seja paciente, criança.” Mortimer proferiu as palavras entre seuslábios abusivamente grandes e distorcidos. “Minha mente funciona como umjogo de ligar os pontos gigante: o seu rosto, neste momento, é um mapa com

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mais de mil pontos espalhados aleatoriamente, sem nenhuma numeração decomo eu deveria ligá-los. A lembrança de todos os demônios que entregueino passado é a única dica que tenho para associar os pontos na ordem certa, eé preciso tempo para que eu o faça corretamente.”Algum tempo se passou antes de Wendy fechar os olhos. Não, ela nãodormiu, estava ocupada sentindo uma onda de vergonha por deixartransparecer que a aparência do antigo olheiro dos D’arlit a perturbava. Semfalar na intimidadora memória visual que ele devia ter.“Winslow morreu?” Mortimer perguntou, claramente dirigindo a voz paraCaleb.“Não, por quê?” Ele respondeu, sem deixar que a pergunta o pegasse desurpresa.“Curioso, ele costumava dizer que você nunca se daria ao trabalho de virpessoalmente à Ilha da Caveira para uma tarefa tão tediosa quanto esperar umvelho inutilizado fazer seu trabalho.” Mortimer disse, enquanto Wendy faziaforça para não recuar ao toque dele em sua testa.“Como isso é relevante para seu trabalho?” Caleb perguntou de volta.“De forma alguma, mas caso não tenha percebido, eu vivo em totalisolamento de todos os mundos que um dia conheci, conversar é umanecessidade que desenvolvi em prol de tal condição. Por favor, guie aconversa para onde quiser se assim preferir.”Wendy arriscou abrir os olhos, agradeceu que ainda não pudesse ver mais queo vulto de Mortimer Von Schenzel à sua frente. Atrás desse vulto, Calebexaminava a pilha de ossos no canto da caverna.“Peixes grotescos você tem aqui.” Ele disse.“Os mais grotescos de todos os mundos: alguns chegaram a criar pernas parase mover sobre a terra, como lagartos, você ficaria surpreso ao vir aqui ànoite, quando eles surgem.”Caleb, que havia pegado um punhado de ossos da pilha, os devolveu comrepulsa.“Por que você mantém esses ossos aqui?”“Eles me fazem companhia. Quando você trai seu povo, a solidão torna-seinevitável, e você sabe disso tão bem quanto eu, Rosengard.” Mortimerrespondeu.

Caleb não fez comentários.“Como foi que conseguiu permissão para viver em paz com o povo que traiu,se me permite saber?” Mortimer acrescentou, e quando viu que Caleb não ia

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responder de novo, acrescentou para Wendy, “você sabe o que Rosengardfez, criança?”“Está tentando me provocar, Mortimer?” Caleb sussurrou alto o bastante parasoar como uma ameaça de morte.

Não era legal receber uma ameaça de morte de Caleb, diga-se depassagem.“De forma alguma, Rosengard. Este velho precisa verbalizar o que pensa paraevitar enlouquecer; além disso, não é sempre que me é dada a chance de falarcom o alvo da minha mais sincera inveja.” Mortimer disse.Wendy podia ver no rosto de Caleb que estava arrependido de ter vindo atéaqui: era óbvio que ele não esperava como seria o encontro com Mortimer.“Inveja, você diz.” Caleb mencionou.“A mais pura delas.” Mortimer retrucou, virando o rosto para Caleb uminstante, “nós somos culpados dos mesmos crimes, mestre Rosengard. Noentanto, enquanto eu sou condenado ao exílio, você, de acordo com Winslow,continua vivendo no coração de Tuonela, um mar de rosas comparado àminha situação.”Aquilo foi um tapa na cara de Wendy.“Não foi nenhum mar de rosas.” Foi ela quem disse, para surpresa de ambos.“Como é?” Mortimer incentivou.“Nada foi fácil para ele.” Wendy disse, bufando de raiva com as insinuaçõesque ele havia feito, “quando está andando pela cidade, ele tem que esconder orosto o tempo todo; tem que tomar cuidado com coisas babacas comocrianças jogando pedras na casa dele no meio da noite; e parece que ninguémalém do Kahsmin confia nele em Tuonela; a única coisa na vida dele queparece com um mar de rosas são os espinhos.”Mortimer apenas alargou seu sorriso.“Entendo. No entanto, você confia em Caleb Rosengard, certo?” Mortimerperguntou.Wendy olhou dele para Caleb, que ainda parecia aturdido pelas palavras dela.“Com a minha vida.” Respondeu firme.

“Muito tocante, Wendy é o seu nome, não é?”Ela fez que sim.“Você confia nele, mas me pergunto se sabe o que ele fez. Sabe o que

desperta tanta repulsa naqueles que se lembram do passado do mestreRosengard? Sabe TODA a história?” Mortimer desafiou.

“Não.” Foi Caleb quem respondeu, se aproximando dos dois, “ela não

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sabe.”“Eu imaginei.” Mortimer respondeu através de seu sorriso lamacento,

“bem, mestre Rosengard, por que não faz jus à confiança que lhe é confiada?Por que não conta à esta bela jovem o que aconteceu na batalha de Tuonela?”

“Ele não precisa, o passado dele está morto e não faz sentidodesenterrá-lo.” Wendy respondeu, citando uma passagem de um livro cujotítulo não conseguia lembrar no calor de sua raiva. “Caleb, vamos embora.”

Antes que se afastasse, a mão morfética de Mortimer agarrou seupulso.

Ao mesmo tempo, Caleb tinha o arco e flecha em mãos.“Solte-a.” Ele ordenou, sem erguer a voz.“Sempre impulsivo, mestre Rosengard.” A voz coaxada de Mortimer

escorreu sarcástica entre seus dentes podres, “peço um momento, pois eujulgo que valha a pena saber: Há dezoito anos atrás, foi reunido um exércitode mais de mil demônios, vindos dos confins mais distantes do mundo devocês, com o intuito de proteger Tuonela do iminente ataque da Harbinger daMorte. Todos contavam com o auxílio destes demônios para impedir osD’arlit.”Wendy não sabia se estava apreensiva por causa da mão seca que prendia seupulso, por do que estava ouvindo, ou por Caleb estar pronto para atirar contraum ex D’arlit que poderia muito bem usá-la como escudo humano.Caleb, no entanto, não parecia tão interessado em soltar a flecha, ainda.Seus olhos apenas iam de Mortimer para a pilha de ossos, da pilha para apanela fedorenta, e da panela para Wendy.O arco sumiu de suas mãos, dando espaço para uma gargalhada longa eforçada que serviu apenas para deixar tanto Wendy quanto Mortimerperplexos.“Você quer uma história, Mortimer?” Ele disse, se sentando próximo dofogo.“Seria um deleite.” Ele coaxou de volta.Wendy não sabia dizer quando havia acontecido, mas ele não estava mais asegurando.“Muito bem, contanto que não vá atrapalhar no seu trabalho.”“Certamente que não.”“Caleb, você não precisa–”“Preciso sim.” Caleb cortou Wendy, “não mereceria sua confiança se nãoestivesse disposto a contar esta história.

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Vinte anos atrás, quando as pessoas viviam na superfície de Tuonela, haviaum jovem Caleb, com a mesma idade que você tem hoje, os cabelos e olhosescuros como a noite, um orgulho maior que a catedral de Tuonela e umavontade infinita de ser melhor que todos ao seu redor...”

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Capítulo 34

“Ei, Caleb.” Soou a voz de seu melhor amigo.Caleb virou para ele, com um sorriso convencido e um olhar confiante norosto.“Resolveu se juntar aos mortais, Henrik?” Sua voz, já terminando de atingir amaturidade, soou de volta.“Você sabe que odeio esse nome.” Henrik respondeu.“Soa melhor que Kahsmin.” Caleb retribuiu, e os dois riram com vontade.“Tem muita gente que eu nunca vi em Tuonela aqui.” Caleb comentou, comuma taça de vinho dançando em seus dedos enquanto assistia desconhecidosmascarados dançando ao som da bela violinista cujo nome ele não tinha sedado ao trabalho de descobrir ainda.“É porque eles estão de máscaras.” Henrik disse, “aliás, onde está a sua?”“Seria um pecado esconder este rosto atrás de uma máscara.” Calebrespondeu, esvaziando seu copo e pegando outro antes que pudesse ser vistocom uma taça vazia em mãos, “e o que é essa máscara aí?”“Um lobo cinzento.” Henrik respondeu.“Você quis dizer, um lobo solitário.” Caleb brincou, sabia que Henrik não seimportava quando era ele quem fazia esse comentário infeliz. “Quando essamoça vai parar de chorar com esse violino?! Eu quero mostrar para essa genteum pouco alegria e música de verdade.”“Eu não a apressaria se eu fosse você, ela pode ser bem temperamentalquando está acordada, e ela já não gosta muito de você para ajudar.” Henrikdisse, roubando o vinho de Caleb e bebendo-o: pai solteiro safado. Incrívelque Tuonela obedecesse a ele.“Não gosta de mim? Eu nem a chamei para dançar ainda.”“E eu nem faria isso se eu fosse você.”“Por quê? Ela é ridiculamente linda, combina comigo, apesar daquelamáscara.”“Aquilo é uma venda!”“Ela está tocando de olhos vendados?”“Ela é Autumn DeLarose Liddell, e é cega, seu idiota.” Henrik sussurrou paraele.Caleb olhou para Henrik surpreso, sua mão agarrando uma terceira taça de

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vinho que passava em uma bandeja carregada por um garçom com máscarade porco.“Ouvi falar dela, não esperava que ela fosse... bonita desse jeito. Uhn,Liddell, porque esse sobrenome não me é estranho?” Caleb perguntou,esvaziando a taça com deleite nos lábios.“A resposta vai pular em você em três, dois–”“CALEB!” Uma voz infelizmente familiar chamou, ao mesmo tempo queuma garota se jogou contra seus braços, dedicando-lhe um sorriso tão honestoque quase partia o coração de Caleb não ser capaz de corresponder.“Boa noite, Lorina.” Ele disse.“Caso mude de ideia sobre a máscara, me avise, Casanova.” Henrik disse,saindo às gargalhadas enquanto Caleb apenas se perguntava o que era um“Casanova”.“Está gostando da música da minha irmã?” Lorina perguntou.“Um pouco deprimente, me surpreende que estejam dançando, mas ela éboa.” Ele respondeu. Imediatamente, Caleb entendeu porque Henrik disseque a tal da Autumn não gostava dele. Tendo Lorina como irmã seria, de fato,bem difícil para qualquer um gostar dele.“Eu já tentei convencê-la a tocar algo mais alegre.”“E o que ela disse?”“‘Eu vou decepar sua língua e fazer você comê-la se disser como eu devotocar de novo.”’ Lorina disse, numa voz fria que dificilmente faria parte deseu não vasto repertório expressivo.Não que ela fosse de todo desinteressante: em termos de aparência, era tãobonita quanto a irmã cega, mas sem o toque excêntrico que havia chamado aatenção de Caleb em Autumn.Lorina tinha os cabelos loiros, não rosa; e não era exatamente uma fã assíduade usar vestidos com espartilho, como Autumn demonstrava ser. Tampoucotinha interesse nos assuntos aos quais Caleb era dedicado.Preferia passar o tempo ao redor de Tuonela, fazendo nada interessante obastante para que ele se preocupasse em descobrir.E ela tinha esse defeito irritante de ser apaixonada por ele.“Vamos dançar?” Ela pediu com aqueles olhos laranjas se projetando pelasfrestas da máscara diminuta que usava: Lorina deveria ser o único demônioque Caleb conhecia a possuir olhos laranjas.

E isso só o fazia imaginar qual seria a cor dos olhos da irmã. Rosas?Vermelhos?

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“Eu não posso.” Caleb disse, procurando mais uma taça de vinho para ajudá-lo a dar a resposta que precisava para ficar livre o resto da noite.“Por que não?” Lorina perguntou, se retirando bruscamente dos braços dele.Nenhum vinho à vista, eles sempre somem com a bebida quando maisprecisamos dela, bastardos insensíveis.“Eu não consigo dançar com a música da sua irmã.” Pelo menos, não eramentira.Lorina cruzou os braços, olhando para Caleb, tamborilando os dedos.“Essa é a melhor desculpa que consegue inventar, Caleb Rosengard?” Eladisparou.Olhando para aqueles lábios brilhantes e a forma com que o corpo de Lorinase encaixava com perfeição no seu vestido, era fácil lembrar porque haviacedido às vontades daquela garota no passado.No entanto, ele estava agora calejado o bastante para não separar a visãomagnifica que era Lorina das lembranças que ela trazia: lembrançasenvolvendo noites tediosas em que a garota não deixava que ele seaproximasse o quanto gostaria, sem falar das constantes declarações melosasque ela fazia pelo menos duas vezes por dia.Bem, era hora de tomar uma atitude, com ou sem vinho.“Lorina, eu não estou interessado em mulheres esta noite.”“... é por isso que você estava com o Kahsmin?!” Ela perguntou abismada.“Por isso eu estou com vinho.” Caleb disse erguendo sua taça.“Explique-se, Caleb Rosengard, e não me faça de idiota, eu não sou uma.”Sim, Lorina, você é, mas não vou debater isso agora.“Eu não quero dançar agora, eu e Henrik tomamos vinho demais parafazermos qualquer coisa que envolva coordenação motora decente, quer queeu desenhe?” Caleb disse, rabiscando o ar com sua taça vazia.“Humf. Estou enojada de você. Vinho um dia vai destruir seu relacionamentocom todas pessoas que se preocupam com você. Me procure quando estiverconseguindo andar sem parecer um idiota.” Lorina disse, saindo irritada deperto dele.“Deviam levar ela para o Hospício de Virrat.” Caleb sussurrou baixinho,agarrando uma nova taça de vinho.Fez de tudo para encontrar Henrik de novo, quando conseguiu, pediu paraque ele lhe arranjasse a melhor máscara de que dispusesse: não estavadesapontado quando ele o arranjou uma máscara de lobo branco que cobria amaior parte de seu rosto, apenas o cabelo, os olhos e a boca estavam à

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mostra.Lorina não o reconheceria pelo resto da noite, com sorte.“Notícias da sua mãe, Caleb?” Henrik perguntou.“Não, mas já faz um mês que o Pérola Branca partiu, deve ter chegado àsilhas há algum tempo.”“E quem está cuidando do farol essa noite?”“A lua está.” Caleb disse, se lembrando da noite sem nuvens que fazia lá fora,“é trabalho dela guiar o tio Winslow e os outros pescadores caso elesresolvam partir para uma aventura noturna, não minha. Como está aMeggie?”“Perfeita!” Henrik respondeu animado como Caleb jamais poderia imaginarque um pai forçado a criar a filha sozinho pudesse estar, “nem começou afalar direito ainda e já gosta de se vestir igual as mulheres do teatro, ficafazendo caras engraçadas e tentando falar impostando a voz, ela vai ser umagrande atriz um dia.” Henrik terminou, cheio de orgulho na voz.Conversa ia e vinha como taças de vinho e mulheres com olhares tentadores.Lorina não podia ser encontrada em lugar nenhum, o que para Caleb eratraduzido como a maior das vitórias, junto com o fato de Henrik terconfessado que havia várias famílias vindas de bem longe para esse baile:famílias com filhas mais ou menos da sua idade.Ele passou longas horas dançando entre braços desconhecidos e lábiosencharcados do mais sedutor dos venenos; não havia uma só moça de quemele não fosse capaz de roubar um beijo, uma dança, e um vislumbre de tudoque elas tentariam esconder em situações normais.No entanto, nenhuma delas conseguia prender sua atenção por muito tempo.Era tudo muito fácil, simples e até um pouco deselegante para seu gosto.Pelo menos até o relógio marcar a décima primeira hora da noite.Foi quando os olhos de Caleb Rosengard pousaram nela: Sua máscaraescondia muito pouco de seu rosto, o bastante apenas para provocar suacuriosidade: seus lábios eram vivos como a noite, grossos, quase vulgares,pareciam encaixados naquele rosto como a peça final no quebra cabeça.Seu vestido preto, simples e sedutor como os cabelos que emolduravam seurosto e despencavam em cachos pelos ombros. A mera visão dela omesmerizara como nunca ninguém havia feito, nem a irmã cega e gata daLorina.Seu olhar obtuso vindo de soslaio parecia gritar a palavra “perigo”.Nada numa mulher poderia ser mais atraente que perigo.

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Caleb se aproximou dela e tomou sua garra enquanto ela estava distraída.A ideia era cumprimentá-la com um beijo, no entanto, foi a garra dela queacabou por beijar sua cara, em um dos tapas mais violentos que já levaradesde que havia conhecido Lorina.“É um prazer conhecer você também.” Caleb disse, esfregando o rosto.“Me desculpe.” Ela se apressou a dizer, “não estou acostumada a ser tocadasem que eu dê permissão.”“Tudo bem.” Caleb disse, ainda sentindo o contorno perfeito do tapa quehavia levado arder em seu rosto, “me permite esta dança?” Acrescentouestendendo a mão dessa vez.A mulher mascarada hesitou um instante, acabando por aceitar com umsorriso tímido e um olhar brilhante em sua direção.Naqueles breves minutos que precederam a meia-noite, Caleb teve certeza deque aquela mulher era a única da qual ele se lembraria: todas as outras foramdivertidas em sua própria maneira, mas nenhuma teve o poder para mexercom ele como aquela.Algo em sua silhueta fazia com que ele quisesse saber o nome dela, algo emseu olhar o fazia querer ser capaz de não esquecer este nome, e algo naqueleslábios fez com que ele tivesse certeza de que não era por culpa da generosaquantidade de vinho que havia bebido que estava a cultivar estes desejos.Finalmente, no que pareceu o final de uma dança hipnótica que Calebdesejava não ter fim, o relógio da catedral de Tuonela começou a badalar aolonge.Os músicos cessaram, o trance romântico que o envolvera havia sidointerrompido e a voz alta e meio grasnada de Henrik se fez ouvir por todos oscantos do grande casarão branco.“SENHORAS, SENHORES E DERIVADOS!” Ele disse, entre gargalhadas ea terceira badalada do relógio, “ESTAMOS AQUI COMEMORANDOMAIS UM ANO DESDE A CRIAÇÃO DE TUONELA,” ele continuou entrea quarta e a quinta badalada, “ALGUNS DE VOCÊS PODEM NÃO ESTAREM CONDIÇÕES DE SE LEMBRAR DESTA NOITE AMANHÃ, EUCOM CERTEZA NÃO ESTOU!” Acrescentou erguendo uma taça de vinhoque tinha em mãos. “MAS ANTES DE ME ENCONTRAR NESTASITUAÇÃO, EU LEMBRO DE QUE HAVIA UM DESEJO EM MIM QUEEU GOSTARIA DE COMPARTILHAR.”“Ele precisa gritar tanto?” A mulher com quem dançara perguntou.“É o vinho gritando, não o Henrik.” Caleb explicou.

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“E ESTE DESEJO ERA MAIS OU MENOS ASSIM: QUE TODOSAQUELES EM TUONELA POSSAM VIVER O MELHOR DE VOCÊSDENTRO DESTA CIDADE, QUE NOSSOS GUARDIÕES POSSAM SERUM SINÔNIMO DE PROTEÇÃO E PAZ PARA TODOS NÓS NOS ANOSQUE AINDA ESTÃO POR VIR E, FINALMENTE...” ele acrescentouquando percebeu que a décima segunda badalada estava por vir, “QUE ASMÁSCARAS CAIAM E A FESTA CONTINUE.”A máscara de Henrik foi lançada para o alto, junto com centenas de outras:berros de comemoração e explosões de champanhe infestaram o salão defesta, como a peste infestava o conto da Máscara da Morte Rubra.Um par de garras removeu a máscara de Caleb antes que ele pudesseperceber.Um par de lábios o beijou antes que ele pudesse reagir.E seu único pensamento foi: Ela tem atitude, gosto disso.Quando terminou, havia uma pergunta dançando em seus lábios: “Qual o seunome?”“Helena, o seu?” Ela respondeu, retirando a própria máscara e revelando oúnico rosto que Caleb atrevia dizer ser capaz de representar adequadamente apalavra “perfeição”.“Rosengard. Caleb Rosengard.”Ela sorriu com o canto da boca e o beijou ardentemente uma segunda vez.De soslaio, Caleb viu Lorina Liddell chorando e correndo para fora da festa.

“Durante os dois anos seguintes, eu e Helena passamos a nos ver sempre queela estava na cidade: ela não era de Tuonela. Pelo que dizia e roupas queusava, eu achava que era de Bric-à-Brac, Mo i Rana ou Fauske, nunca meimportei em descobrir: sempre supus que ela acabaria por vir viver comigopermanentemente cedo ou tarde.

Mesmo se eu soubesse, eu não poderia vê-la: eu tinha que cuidar dofarol na ausência da minha mãe, e cuidar da cidade para Kahsmin, já que euera um dos guardiões que ele mencionou.”Neste ponto, havia no mínimo uma infinidade de coisas que Wendy estavatendo dificuldade para acreditar; no topo da lista estavam o fato de Calebgostar de festas e mulheres como um adolescente normal.E o fato de que o cabelo dele um dia foi escuro também a perturbava: nãoconseguia imaginar ele diferente do jeito que o havia conhecido. Parecia um

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erro tentar fazê-lo.“Naquela época, D’arlit era apenas o nome de um sujeitinho infeliz queresolveu que queria ‘fazer do mundo um lugar melhor’: nós havíamos ouvidofalar dele, e rimos das loucuras que ele dizia: ele prometia que livraria omundo de todos aqueles que eram imundos no sangue, que não haveria maislugar para mestiços e que faria os demônios dominarem aquele mundo, etodos os outros que pudesse encontrar.

Também se proclamava como o motivo pelo qual os anjos deixaram ocontinente. Era fácil ignorar alguém com histórias tão absurdas.” Caleb disse.“Grande erro, mestre Rosengard.” Mortimer acrescentou.

Wendy não havia percebido até então, mas Mortimer estava haviaescrito e riscado centenas de nomes com um osso manchado com tintavermelha que ela não tinha ideia de onde vinha.

“Estes,” ele disse, se dirigindo para Wendy, “são enganos, minhajovem, nomes que pensei poderem estar relacionados a você, até dar segundaolhada e perceber que estava errado, por isso é um processo longo.”Os olhares voltaram para Caleb, que lhes devia um desfecho para a história.“Eu percebi que subestimar os D’arlit havia sido um grande erro dois anosmais tarde, quando Tuonela caiu.”

“Eu vi ela... eu vi a Harbinger da Morte.” Helena disse para Caleb,abraçando-o, não como uma mulher abraça o homem que ama, mas comouma criança abraça um pai quando busca proteção.“Sério?” Caleb perguntou enquanto acariciava os cabelos dela. “Como?”“Ela estava voando sobre uma Serpa tão grande que poderia ser um Dragão,com um exército de mais de vinte mil homens a seguindo em terra... eu vi abatalha dos D’arlit contra o povo de Virrat... a Harbinger forçou o líder dacidade a comer os restos de sua esposa como punição por não ter se rendidoquando Allenwick dera a ordem...” Helena disse, tremendo como um gato noinverno contra o peito de Caleb.“Você viu isso?” Caleb perguntou incrédulo.“Não, eu vi a batalha, foi a tripulação do navio que me trouxe que contouessa história... eu não consigo dormir sabendo que esses monstros estão tãoperto.” Helena disse com um olhar perdido e assustado que não combinavanada com a mulher perigosa e sedutora que Caleb conhecera dois anos atrás.Vê-la assim seria preocupante, se não fosse tão chato.

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Ele não estava nada disposto a se deixar levar por lendas depescadores, ter Winslow como tio o havia calejado para essas históriasabsurdas.

Na sua cabeça, era certo de que não devia se preocupar, mesmosabendo que...“Henrik também recusou-se ceder as terras para os D’arlit.”Helena ficou de pé imediatamente, seus olhos pareciam gritar com ele.“Você está mentindo, não é? A Harbinger da Morte estava em Virrat aindaontem, eles já podem estar a caminho de Tuonela neste instante! Caleb nósprecisamos evacuar a cidade, precisamos...”“Relaxar um pouco: essa tal de Harbinger pode estar se dando bem até agora,mas isso é porque ela nunca teve que lutar contra a Morte em pessoa.” Calebdisse, apontando para o próprio peito, “ela e o exército dos D’arlit não têmchance contra um anjo.”“Eles são mais de vinte mil!” Helena disse, “e você é um mestiço de anjo,SOZINHO!”“Eles não podem me tocar, e temos a Autumn também.” Caleb dissedespreocupado.“Você acha MESMO que vocês dois podem vencer sem um exército?! Calebisso é loucura! Nós temos que avisar seu amigo Henrik! Você mesmo disseque não deviam haver mais de cem homens em Tuonela capazes de lutar.”“O número está para crescer essa noite.” Caleb respondeu, com uma pontadade orgulho na voz.“Como é?” Helena perguntou, vestindo seu vestido preto enquanto esperavauma resposta: se Caleb não estava enganado, aquele era o mesmo vestido queela usara quando eles se conheceram.“De acordo com as cartas da minha mãe, ela chegará aqui esta noite, com omelhor exército que ela pôde reunir nas ilhas além do continente. Umexército ao qual os D’arlit nunca poderiam se equiparar.” Caleb respondeu,deixando o orgulho crescer aos poucos em sua voz.“Quantos?” Helena perguntou, sem tirar os olhos dele.“Mil e quinhentos.” Ele respondeu.“E você acha que isso é o bastante para enfrentar vinte mil D’arlit?!”“Não, eu acho um exagero. Eu seria mais que o bastante. Que tal você pararde me encher o saco com isso?” Caleb ofereceu, esperando que Helena fosseaceitar a oferta e calar a boca por alguns instantes.“Você consegue ser o ser mais arrogante de todos quando quer.” Helena

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disparou.“Obrigado, pelo menos eu não sou um bebê chorão covarde.” Ele retribuiu.“Caleb você não viu o que eu vi, eles–”“Blablabá... me faz um favor e cala a boca, pode ser?” Caleb disse sesentando no piano e começando a tocar uma música que sabia que Helenaodiava, disposto a ignorar por completo o que quer que ela tivesse a dizer.O que ele não esperava era um vaso sendo arremessado na direção da suacabeça.Sorte seus reflexos serem tão apurados que ele foi capaz de se desviar e aindaagarrar o vaso numa fração de segundo antes de ele atingir seu piano.“VOCÊ FICOU LOUCA?!” Ele explodiu, jogando o vaso de volta contra ela,que também conseguiu se desviar, embora o vaso tivesse se transformado emestilhaços e lembranças quando acertou a parede do farol.“QUER PARAR DE SER CRIANÇA E ME OUVIR?!” Ela revidou, comvoz de demônio enfurecido contra Caleb, “você não tem CHANCE contra aHarbinger da Morte E o exército dos D’arlit juntos! E eu só quero ajudar... eusó quero proteger você, porque eu AMO VOCÊ, SEU BABABACACRETINO! E É ISSO QUE EU RECEBO EM TROCA?!”“Aham.” Caleb respondeu, sendo um babaca cretino e arrogante com muitoorgulho.“VAI PRA PUTA QUE TE PARIU CALEB!” Helena explodiu.“Tá, pode fechar a porta quando sair da minha casa? Obrigado, boa noite.”Ele respondeu calmo o bastante para ter certeza de que a irritaria mais ainda.Helena enterrou o tapa mais forte que ele levara em toda a sua existência bemno meio da sua cara. Ele fez questão de não reagir, apenas manteve um olharrijo e superior na direção dela, mesmo quando sentiu o gosto do sangue sealastrando em sua boca.O que não esperava era vê-la chorar: em dois anos juntos, Caleb a vira sentirmedo e enterrar-se em paixão, ele provara do seu sorriso, partilhara suastristeza e deliciara-se com seu mistério: mas nunca sequer imaginou quechorar pudesse fazer parte de seu repertório.Ela obedeceu a ordem de Caleb: saiu do farol e fechou a porta, se afastandono mais silencioso dos desesperos.Caleb sentiu um impulso maior que a vida em seu peito: um impulso quequeria vê-lo correr na direção de Helena, se ajoelhar e pedir desculpasimediatamente por ter sido o maior imbecil da face desse mundo.Um impulso que queria ouvi-lo dizer “vamos avisar o Henrik agora e tentar

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evacuar a cidade antes que os D’arlit cheguem”, um impulso que queria queCaleb se arrependesse de tudo que ele havia dito para magoar uma daspessoas que mais havia amado em toda a sua vida.Um impulso que ele ignorou com prazer vingativo.Os céus se fecharam com seu humor, a tempestade começou a cair como asnotas mais graves de seu piano em seus ouvidos: acreditava que música era aúnica coisa capaz de fazê-lo esquecer o quão imbecil havia sido.Se parasse, teria que ouvir seus próprios pensamentos, e nenhuma torturaseria maior que enfrentar a verdade que ameaçava tomar conta de seu ser: elehavia destruído com sucesso o melhor relacionamento que um homem comoele poderia sonhar em ter.Seria tomado pelo arrependimento que sussurrava pelo seu corpo.Um sussurro que tentava encobrir com a mudança de sol para mi menor.Foi aí que percebeu seu erro.

Quão inúteis e patéticas eram suas tentativas de enfrentar fogo comfogo: sendo quem era, deveria saber que música nunca silenciaria angústiasou diminuiriam vozes que vinham de dentro.

O que ouvia suas mãos tocando era apenas a externalização do queborbulhava dentro dele: sabia que sua impaciência e orgulho o forçaram aatacar Helena e descreditar todas as tentativas que ela havia feito para avisá-lo sobre os D’arlit.

Sabia que estava mentindo quando disse que ele sozinho era obastante.

Nada poderia ser mais doloroso que admitir sua fraqueza.Exceto admitir que estava errado.Mas por Helena, a dor valia a pena.Deixou que a música morresse em seus dedos e correu para vestir seu

sobretudo favorito: prendeu as fivelas e vestiu o capuz para protegê-lo dachuva, deu uma última olhada naquele quarto que ainda exalava a presençade Helena e estava pronto para ir.Foi primeiro até o píer, onde sabia que Helena teria que esperar um barcopara que pudesse voltar para casa, mas não havia ninguém lá: nada de tioWinslow, nada de pescadores, todavia, seus barcos ainda estavam ali.Pensou que eles estivessem na Taverna do Fim dos Tempos, mas a pequenaespelunca estava vazia, exceto por uma velha cartomante e um senhor cujofuturo ela narrava com afinco.Talvez Helena tenha sido mais esperta que ele: talvez tenha ido ela mesma

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falar diretamente com Henrik e avisá-lo sobre a ameaça dos D’arlit.Foi a meio caminho da grande mansão branca na encosta das montanhas queCaleb descobriu porque o píer e a Taverna do Fim dos Tempos estavamvazios, e a resposta pouco estava relacionada com a tempestade que caíaimpiedosa contra Tuonela.Winslow, alguns outros pescadores e um senhor que Caleb reconheceu comosendo um cozinheiro da Taverna estavam aglomerados na encosta damontanha, esbravejando em tons que pareciam competir com os urros dovendaval interminável.“O que aconteceu aqui?”Ao ouvirem a voz de Caleb, todos se calaram e trocaram olhares, comocrianças fazem quando querem decidir quem deve ser o responsável porcontar a verdade para os mais velhos.Winslow mandou que Caleb subisse a montanha, não teria problemas emencontrar o que o cozinheiro da taverna viu enquanto estava procurandoalgumas raízes para usar em seus pratos.“É melhor ver você mesmo.” Winslow avisou com uma voz anormalmentesóbria.Caleb usou o vento para levá-lo até o topo, indiferente para as lâminas d’águaque ameaçavam cortar sua pele na velocidade com que o atingiam.

Winslow não mentiu quando disse que ele não teria dificuldade emencontrar o que quer que fosse: parecia um animal ferido, jogado contra osarbustos, deixando que a água congelante maltratasse seu corpo comindiferença.Só quando um relâmpago iluminou a noite foi que Caleb entendeu o queestava vendo: o corpo ensanguentado de...“HELENA!” Ele se jogou desesperado sobre ela.Seus dedos alcançaram os dela: gratidão foi tudo que sentiu quando viu queeles se moveram.“É bom te ver.” Helena respondeu, fazendo um esforço de doer o coraçãopara manter sua mão firme sobre a de Caleb.“Helena... quem fez isso com você?! Me diga quem foi e–”O dedo frio e encharcado dela tocou seus lábios, pedindo seu silêncio.“Não importa.”“Helena... deixa eu te levar.” Caleb pediu com sua voz trêmula, sentindo odesespero correr nas suas veias mais rápido que a chuva corria entre seusdedos, “há pessoas que podem curar você lá embaixo–”

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“Não há tempo.” Helena o cortou.Com força que Caleb não sabia de onde vinha, ela o puxou para perto e obeijou como se fosse a primeira vez que se viram: um flashback perfeito dobaile de aniversário de Tuonela, onde o mistério da única mulher que Calebnunca seria capaz de se esquecer os havia unido.Até que a morte os separe.O beijo terminou, e eles não estavam mais juntos.Água quente encontrava a água fria quando as palavras vieram: “... medesculpe.” Ele implorou.

Nem todo seu orgulho, força, poderes e habilidades foram capazes defrear o choro e a tristeza mais violentos e devastadores pelos quais já foraatingido em toda sua curta existência.Gritou o nome dela em vão para a tempestade: esta respondeu com os uivosdo vento que disputavam para ver quem seria mais forte em meio ao seutormento...“Helena eu fui um idiota,” ele admitiu tremendo para a mulher que já nãomais podia ouvi-lo, “eu quis correr para você no instante em que você fechoua porta do farol... eu quis me desculpar, eu juro que eu quis...”As palavras deixaram de fazer sentido e se tornaram apenas sons aleatóriosque saíam involuntários de sua boca, enquanto sua mente era assaltadaimpiedosamente pelas melhores lembranças que aquela mulher haviaentalhado em sua vida.Entre confissões que fizeram sob salgueiros chorões e danças que dividiramem silêncio sob a luz do luar, a lembrança que mais ardia em seu peito eramas palavras que ela havia dito apenas duas semanas atrás: “Caleb, eu quero teruma família com você.”Na hora, aquilo assustou Caleb muito mais que a ideia de enfrentar umexército, mas agora que ele entendia o que Helena realmente estava pedindo,era inevitável que seu peito explodisse na pior das dores que ele jamaissentira em sua vida.Ela estava pedindo para passar o resto de sua vida ao seu lado.E ele a recompensou sendo um monstro no seu dia final.“Eu daria qualquer coisa para ter você de volta.” Ele sentiu a confissão vindodo fundo do seu coração.

“Você não estava mentindo quando disse que a história era longa.” Mortimer

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cortou.Ele recebeu um soco na cara pelo comentário.Cortesia da fã chorosa indignada com a interrupção (lê-se Wendy).“Como você pôde interromper uma história tão bonita com um comentáriodesses?!”“... eu nunca disse que era uma história longa.” Caleb acrescentou.A criatura deformada respondeu com um sorriso lamacento para eles,enquanto continuava a escrever e riscar nomes na parede com aquele osso etinta vinda só ele sabia de onde.Wendy percebeu que havia um ou outro nome que ele não havia riscado, masseus olhos estavam ensopados de lágrimas por culpa da história de Caleb.

Ela quis abraçá-lo para confortá-lo, assim ele não teria que reviveraquelas lembranças.“Eu não estou exatamente ansioso para contar a última parte dessa história.”Caleb disse, deixando seu olhar se perder no fogo. “Foi aqui que me fizeramuma oferta que eu não pude recusar.”

“Qualquer coisa, você diz.” Uma voz vinda do nada fez-se ouvir.Seu sobretudo descarregava o peso de uma vida contra seus ombros.Estava largado sobre Helena havia tanto tempo que já não conseguia dizerexatamente onde seu corpo terminava e o dela começava.No entanto, nenhum dos dois fatores o impediu de se colocar em pé navelocidade do suspirar do vento, com seu arco e flecha apontado entre osolhos do estranho.“Seu nome.” Caleb murmurou, a ameaça escorrendo como água em sua voz.“Gambler.” Ele respondeu como se não passasse de uma apresentaçãocomum, “eu estou aqui para ajudá-lo.” Prosseguiu falando arrastado.Caleb não abaixou o arco, usou da luz provinda da arma para dar uma boaolhada no então chamado “Gambler”: um homem um pouco mais alto que elepróprio, com cabelos curtos e brancos, penteados para cima e indiferentes àchuva; seu sorriso era um blefe bem colocado no seu rosto e, por fim, haviamas cartas, estas deslizavam entre seus dedos, de uma mão para outra com tataagilidade e destreza que pareciam fazer parte dele.Caleb odiava cartas, odiava apostas, blefes e pessoas que o incomodavamquando queria estar sozinho.“Você fez isso?” Caleb perguntou por fim, apontando com a cabeça para

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Helena.Gambler olhou por cima do ombro de Caleb para ver melhor.“Não.” Respondeu ele.“Sabe quem fez?”“Não.”“Você não pode ajudar. Saia.” Caleb ordenou, deixando o arco desaparecernas suas mãos e dando as costas para Gambler.“Se acha que vingança é a única forma de ser ajudado, eu sinto pena devocê.”“Se continuar falando, eu vou sentir pena de você.” Caleb respondeu.Caleb parou perante ela, não conseguia chamá-la de “o corpo”: ainda eraHelena que estava ali, esperando seu calor, enquanto ele esperava que elaaceitasse seu pedido de desculpas para então poderem voltar a vivernormalmente.Por algum motivo que jamais poderia explicar, ele não se incomodou quandoa mão de Gambler pousou no seu ombro. Igualmente incapaz de explicarseria a sensação que se apossou dele quando o estranho proferiu as seguintespalavras: “Eu posso trazê-la de volta.”A atenção de Caleb estava ganha.Gambler não esperou que ele começasse a fazer perguntas: “Há históriassobre mim espalhadas por todos os mundos, onde apareço sob vários nomes:em terras desérticas, sou chamado Shaitan, em outras, onde humanos eespíritos andam juntos, sou chamado Kyubey. Ambos são péssimos nomes,eu prefiro Gambler.”“Desde que a seres com consciência elevada existem, desejos existem; desdeque desejos existem, eu existo. Se a pessoa estiver alinhada com seu desejo edisposta a pagar uma quantia justa, eu venho ao seu encontro.Qualquer coisa para ter você de volta. Foi o que você disse.” Gamblerrepetiu.Caleb olhou intrigado para Gambler: Parte dele dizia que ele não passava deum sacana sem amor próprio que, cedo ou tarde, pagaria com a capacidade deandar por importuná-lo numa hora como essas.A outra parte estava desesperada para acreditar nele.“O que você quer?”“O que é justo, apenas.” Gambler disse, mostrando um ás de copas paraCaleb, “eu quero parte da sua vida, para que eu possa trazê-la de volta e euquero que faça um acordo comigo. O que acha?” Ele perguntou, estendendo a

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mão para que Caleb a apertasse.“Que tipo de acordo?” Ele perguntou hesitante.“Inteligente da sua parte perguntar antes de fechar negócios, seu nome?”“Caleb Rosengard.”“Fácil de lembrar. Bem, negócios: Caleb, camarada, meu chapa, além detomar parte da sua vida para trazê-la de volta, eu preciso que você concordecom um termo muito especial dos meus serviços, compreende?”“Vá direto ao ponto.” Caleb exigiu.A isso, Gambler respondeu com um sorriso vespertino e vitorioso.

“Foi assim que Gambler passou a tomar conta da minha vida.” Calebprosseguiu, “ele fez uma proposta, eu concordei com tudo, sem nem pensarduas vezes nos termos que ele estava a impor, então, apertamos mãos.Eu senti minha vida sendo sugada pela palma da minha mão, enquanto osolhos dele brilhavam num prazer maníaco.”“Igual palhaços?” Wendy interrompeu.Mortimer e Caleb dividiram um olhar confuso na direção da garota, a panelafedorenta chiou mais alto, parecia tosse contra o vento a uivar mais forte,envergonhado demais por presenciar uma interrupção tão aleatória,desnecessária e impulsiva como essa.“Desculpa.” Wendy disse olhando para os pés, “pode continuar.”

A tempestade apertou entre os dois: Caleb sentiu algo sendo sugado pela suamão, algo que ele não precisou de mais que três segundos para identificarcomo sendo sua própria vida.

Parte dela.Houve uma valsa de luzes e sombras em torno deles: luzes que, pouco apouco, juntaram-se numa pequena esfera de luz concentrada, enquanto assombras faziam o mesmo do lado oposto.Caleb sentiu seu corpo ser tomado por dores que nunca sentira em suaexistência: não havia junta de seu ser que não gritasse como se tivesse sidojogada contra fogo que ardia sem queimar.As mãos se soltaram e Caleb não teve forças para manter-se em pé: caiu aospé de Gambler, que agora parecia mais com um gigante enregelado, devida à

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sua expressão mal iluminada e chamuscada pela chuva.Seus olhos queimavam como uma ferida mal cicatrizada, mas Caleb lutoupara mantê-los abertos: a luz começou a girar, como água em um funil, sobreHelena, até que havia penetrado o corpo por completo.“Este.” Gambler disse, desviando a atenção de Caleb para as sombras quetomavam forma. “Será meu assistente, é ele quem checará se você estácumprindo a sua parte do acordo, e é ele quem relatará tudo que acontececom você para mim, Caleb Rosengard.”Caleb deu uma boa olhada na criatura: um serzinho feito de sombras, comapenas um sorriso pungente aparecendo sob o enorme capuz que vestia,lembrava ao próprio Gambler, o que fez Caleb sentir instantânea aversão aele.“E agora, Caleb, camarada, nós nos despedimos.” Com essas palavras,Gambler e seu assistente das sombras fizeram uma exagerada reverencia edesapareceram floresta adentro.Ao mesmo tempo, Helena começou a tossir.Era duro sentir-se queimado por fogo e congelado pelo temporal, mas seriapreciso muito mais que uma dorzinha para mantê-lo mais um segundo longede Helena, nem que tivesse que rastejar como um verme pela lama paraalcançá-la.“Helena.” Ele disse tremendo e agarrando a mão dela.Ela segurou de volta: foi quando sua animosidade por Gambler foi dissolvida,aquele homem era capaz de fazer milagres: apesar de toda sua dor, apesar dopreço que havia acabado de pagar e das lágrima que derramaraincessantemente, Caleb sorriu.Sorriu de verdade.“Obrigado por estar de volta.” Ele disse voltando.Lição sobre sorrisos de verdade: duram pouco.“Caleb... você é um idiota.” Helena respondeu.Com destreza que Caleb não esperava em uma recém-ressuscitada, Helena sedesvencilhou dele e se pôs a correr, desaparecendo entre as árvores.“Helena–”Caleb usou toda força que restava para se colocar em pé, mas falhou: seurosto bateu contra a lama, sua energia estava completamente drenada.A cor brilhante da chuva que tamborilando como dedos de crianças nas suascostas formaram a última lembrança que Caleb teve antes de ser forçado aabandonar sua consciência.

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A cor da chuva o assombrou com a dor de vê-la correndo para longe.

“Eu só acordei dois dias depois: havia lama no meu rosto e uma vagalembrança de Helena correndo para longe.Eu voltei para Tuonela, queria conversar com Kahsmin, mas tudo que euencontrei lá foi desolação e caos: A cidade estava em chamas, havia corposespalhados pelo chão como há peixes no oceano, era como se eu tivesseacabado de entrar em um pesadelo.Quando finalmente encontrei Kahsmin, ele estava catatônico com a filha nocolo, eu perguntei o que havia acontecido, mas tudo que ele disse foi ‘EiMeggie... hora de acordar, papai fez torta para você hoje... é a sua favorita.’Foi uma das visões mais deprimentes que eu já tive.Foi meu tio Winslow quem me explicou o que havia acontecido: enquanto euestava desacordado, o aviso de Helena se concretizou, os D’arlit vieram,espalharam a morte em Tuonela e logo estariam voltando para colonizar acidade em nome de Allenwick D’arlit.Também foi ele quem perguntou ‘Que desgraça você fez no cabelo?’, quandome olhei no espelho percebi que o meu cabelo embranquecera e meus olhostornaram-se cinzas, o que apenas me lembrava o quanto Gambler havia sidoreal.Depois de ajudar algumas famílias a recolher os corpos de seus entesqueridos, eu fiz a pior descoberta de toda minha vida: Minha mãe estavamorta. De fato, todos a bordo do Pérola Branca haviam morrido, e eu era oúnico culpado.Era meu dever ficar no farol na noite em que Helena foi encontrada morta,era meu dever guiar o pequeno exército que minha mãe reunira de volta paracasa, mas eu estava ocupado, fazendo um acordo com o diabo.Mais tarde, eu vim a confessar em público para os sobreviventes o que euhavia feito, porque eu não havia lutado e porque o exército que deveriaproteger Tuonela nunca veio.Autumn foi a primeira a me chamar de traidor e jogar toda a culpa peladestruição de Tuonela sobre os meus ombros. Só mais tarde eu descobri que araiva dela era unicamente porque a irmã dela havia morrido durante o ataquedos D’arlit. Ela não se importava muito que o resto da cidade também tivessesido atacada.O problema foi que o resto da cidade concordou com ela: de repente, eu havia

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me tornado a encarnação da desgraça e traição nos olhos deles.Somente Kahsmin, o mesmo Kahsmin que era totalmente apaixonado pelafilha, me perdoou em público. Mesmo eu não tendo lutado para defender acidade, mesmo eu tendo saído do meu posto quando sabia que minhapresença era crucial lá.Até hoje eu pago o preço por amar Helena, que eu nunca mais vi. Até hoje,nenhum dos meus atos foi capaz de me redimir para com a cidade, mesmoque eu tenha salvo mestiços e enfrentado inúmeras batalhas por eles. Estoufadado a ser lembrado como o homem que permitiu que os D’arlit tomassema cidade.E se for assim, eu repito: é verdade, eu ajudei os D’arlit a tomarem Tuonela,pois não estava lá para impedir. Esta é a história, Wendy.”A boca de Wendy abria e fechava, incapaz de encontrar as palavras certas.“Acho que é sua vez, Mortimer.” Caleb disse, cortando a linha quaseinexistente de pensamentos de Wendy.“Minha vez?” Ele perguntou, desgostoso por ser interrompido enquantoescrevinhava.“Mas é claro.” Caleb disse, levantando-se e andando ao redor da caverna comum osso de peixe nas mãos, “eu sei que você também tem uma história muitoboa para nós.” Ele acusou, enquanto batia o osso freneticamente contra asparedes da caverna.Mortimer parecia encarar aquilo normalmente, mas Wendy pode ouvir o somhorrível daqueles dentes quebrados e pontiagudos raspando uns contra osoutros por detrás daqueles lábios verruguentos.“Claro, mestre Rosengard.” Mortimer continuou enquanto Caleb circulava acaverna, “você com certeza se refere à traição ao amo D’arlit, bem eu...”“Não.” Caleb cortou, “me refiro a algo muito mais recente.”Wendy gelou quando entendeu o que Caleb estava fazendo ao bater aqueleosso.Código Morse: .- ..-. .- ... - . -....- ... .Para leigos: Afaste-se.“Sinto muito, mestre Rosengard, receio não haver conhecimento em minhamercê capaz de desanuviar a confusão que sinto sob suas acusações.”Mortimer respondeu com sua voz rachada e mansa que começava a falhar emesconder a ameaça que ele representava.Caleb devolveu o osso à pilha quando viu que Wendy estava longe obastante.

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Em um instante, seu arco e flecha estava em mãos, com a mira contra ele.“Deixe-me refrescar sua memória: o verdadeiro Mortimer Von Schenzel estámorto.”

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Capítulo 35

“Onde conseguiu essa corda?” A Harbinger perguntou, desenterrandoo rosto das mãos.

“Que corda?”“... a que você está usando.”“Isso é um intestino, boboca!” Ally respondeu sorridente.O que ela havia feito para merecer esse pedaço do purgatório?A Princesa do Caos estava pulando corda, com um pé preso nas costas

e realizando toda uma sorte de truques que ninguém no quarto seria capaz dereplicar: em resumo, uma criança irritante, com um cantarolar estridente e umdaqueles sorrisos de criança forjados nas profundezas do inferno, com oúnico propósito de deixar todos ao seu redor loucos.

E havia as tripas que usava de corda, o que explicava o fedor noquarto.

“Veio de um dos bobões que ficam aí no corredor.” Ally acrescentou,pulando cada vez mais rápido, “eu pedi emprestado pra ele, mas ele meio quemorreu enquanto respondia, aí eu peguei dele porque ele não tava maisusando!”

Stefanova riu e murmurou algo sobre o senso de humor de Ally sermuito parecido com o de Allenwick quando ele era novo, Gambler continuouconcentrado nas suas peças de xadrez, enquanto a Harbinger começou aquestionar se ainda valia a pena viver.

Aliás, muitas coisas vinham sendo questionadas nos últimos dias:Quem eram os novos preferidos de Allenwick, agora que Neri e os Seteestavam mortos? O que havia afundado os navios dos D’arlit que cercavam ocontinente? Como evitariam que a notícia se espalhasse? Um sinal defraqueza na invencibilidade dos D’arlit poderia significar várias coisas, masnenhuma delas era uma melhora no seu relacionamento com Allenwick.

Também havia um assunto pouco mais urgente a ser questionado paraa princesa D’arlit, algo envolvendo uma declaração desmedida de guerra eum plano bem mais pretencioso que realista.

“Por que no aniversário de Tuonela?” A Harbinger perguntou paraGambler.“É o dia perfeito.” Ele respondeu, ainda jogava xadrez contra Stefanova.

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A Harbinger se sentiu ligeiramente melhor quando soube que não era a únicaa ser constantemente derrotada por Stefanova, até perceber que todos ospresentes no quarto já a haviam derrotado sem muita dificuldade.Jogo estúpido.“O plano que vocês bolaram, ele requer um exército.” Ela comentou.“Xeque.” Stefanova disse, comendo o bispo de Gambler e abrindo caminhopara sua dama encurralar o rei.“... você é muito ruim.” Ally comentou.“Você perdeu uma partida em quatro rodadas.” Gambler lembrou Ally, e logoque se livrou do xeque, dirigiu então sua voz para a Harbinger, “não, o planonão requer um exército, só alguns homens, não deve ser tão difícil paraalguém na sua posição conseguir um punhado de guerreiros, concorda?”“Meu pai ordenou que nenhum homem me siga para Tuonela, ‘ela destruiuJussarö sozinha, não vejo porque precisaria de um exército dessa vez.’” AHarbinger disse numa imitação do tom brutal e absoluto que AllenwickD’arlit usava para condenar seus atos.

Por que ele não podia ver que ela só queria agradá-lo?“Eles não precisam seguir você por vontade própria.” Gambler balbuciou,pouco concentrado na conversa devido a surra que Stefanova estava lhelevando, “ameace assassinar os filhos deles, mate algumas esposas, essescamaradas respondem bem a ameaças.”Stefanova balançou a cabeça negativa.“Os soldados de Allenwick D’arlit não tem famílias para que não tenham estetipo de fraqueza, quando um soldado é descoberto tentando criar uma, ele, amulher e todos que fazem parte da suposta família são mortos em público,por outros soldados, para servir de exemplo. A propósito, xeque-mate.” Eladisse.Gambler apertou satisfeito a mão de Stefanova e agradeceu pela partida, logoem seguida a convidou para uma partida de pôquer, usando o baralho dele.Stefanova aceitou sem relutar.Ally se livrou do pedaço de carne que usava como corda e pairougraciosamente para perto deles, preparada para jogar também.“Princesa?” Gambler chamou.Aquilo foi o estopim. Ninguém, nem mesmo Stefanova, era capaz deentender o que estava se passando dentro de sua cabeça: para Gambler, elaera apenas um instrumento para cumprir um acordo; para Ally, uma forma dese divertir; para Stefanova, uma peça num gigantesco tabuleiro de xadrez.

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Uma peça que deveria ser operada de acordo com os desejos de seupai que, por sua vez, a via como um fiasco cuja vida era poupada apenas porconveniência.Quem mais faria o trabalho sujo daquele ingrato? Uma pena ele não podermais contar com a filha perfeita que ele teve antes da Harbinger. Ela teria omaior prazer do mundo em ser usada por um monstro.Não, ninguém percebia o que ela estava sentindo com a ideia de enfrentar umanjo, ainda mais um que ela conhecia tão bem... um que se chamava de Morteem Pessoa, um que ela imaginava estar morto há dezoito anos... ninguémpercebia que ela estava apavorada, e se percebiam, não davam a mínima: eraproblema dela, não deles.

E eles ainda tinham a audácia de desprezar seu desespero silencioso...a convidando... para mais jogos inúteis.

Ela deveria acabar com a vida de todos eles.Ela deveria mostrar do que era feita a força de espírito de uma mulher

em crise.Mostrar porque merecia o peso do título “Harbinger da Morte”.Deveria, mas o que fez foi sentar-se indiferente ao lado de Gambler.

“Conhece as regras?” Ele perguntou.“Quem mentir melhor ganha.” Ela murmurou.“Boa resposta.”No instante em que recebeu suas cartas, ela bufou mais alto que haviaplanejado.“Algo errado, querida?” Stefanova perguntou para a Harbinger.“Ela tá nervosinha porque acha que todos nós estamos usando ela, porque tácom medo de lutar com o albino de Tuonela, porque não entende como oplano funciona e porque adoraria esfregar minha cara numa cama de pregos,mas não vai fazer nada disso porque sabe que sem a gente ela tá mais lascadaque um mestiço no castelo.” Ally disse como se estivesse lendo um relatório,“Gambito, que tal parar de embromar e começar esse jogo?” Acrescentou.“Você... você leu minha mente.” A Harbinger disse, com ódio ardendo navoz: sua mente deveria ser seu santuário, apenas ela tinha o direito de saber–“Eu não li sua mente. Eu preciso tocar as pessoas para ler mentes, e eu nemlevantei daqui. Eu sei o que você tá pensando porque você deixa tudo nacara.” Ally disse, soando estranhamente madura e distante ao recusar-se olharpara a Harbinger.Silêncio absoluto, desconfortável como um banho em saliva de gobliniano,

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tomou o quarto.“O plano vai dar certo.” Gambler disse, quebrando o silêncio e jogando umpar de oitos na mesa, “mas para que ele funcione, você precisa focar na suaparte, e a sua parte não envolve conseguir um exército. Você não precisa deum. Cem guerreiros serão mais que o bastante, Ally pode conseguir essespara você.”“Posso fazer isso agora?! Posso?! Posso?! Posso?!”“Está desistindo do jogo?” Gambler desafiou, Ally se aquietou de imediato evoltou a observar as cartas na mesa. “Pensei que não.”

“Cem homens? CEM?! Havia um exército de MILHARES de homenscom os D’arlit quando Tuonela foi tomada dezoito anos atrás!”

“Vocês não sabiam como conter um anjo na época, e só por isso, umdesperdício de tal proporção é perdoável, cem homens serão mais que obastante para o que tenho em mente. Agora, princesa, me responda: o quevocê entende sobre poder?”“O suficiente.” Ela respondeu.“É mesmo? Então responda: quem é mais poderoso? A Harbinger da Morteou Caleb Rosengard?” Gambler perguntou, aumentando sua aposta no jogo.Ela demorou a responder, tentando identificar algum truque na pergunta deGambler, um jogo de palavras que não havia detectado, mas nada encontrou.“Caleb.” Ela respondeu à contragosto.“Interessante. Por quê?”“Ele tem sangue de anjo.”“Seu pai já matou um anjo.” Gambler respondeu indiferente.“As condições eram outras.”“Bem colocado. Vamos mudar a pergunta então: quem é mais poderoso? Eu,ou você?”A Harbinger riu, como se aquela pergunta não fosse digna de uma resposta,mas quando o olhar inquiridor de Gambler manteve-se inalterado, ela disse:“Eu tenho poder o bastante para exterminar sua vida.”“Sim, é verdade, eu iria além e diria que você não tem só o poder, mas odesejo para fazê-lo, não é?”A Harbinger assentiu discreta.“No entanto, você não o faz, e eu sei que não vai fazer. Estou certo,princesa?”Ela retesou seus músculos e mordeu os lábios, movimentos sutis, mas...“Vou tomar isso como um sim, princesa. Vamos concordar que é uma atitude

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bastante peculiar da sua parte, não é? Tanto eu quanto Ally nos recusamos anos curvar perante você, nós dois a tratamos como uma igual quando, pelahierarquia, você é superior a nós. Não a chamamos de vossa majestade e nãoescondemos nossos comentários e sarcasmo na sua presença, muito menos apoupamos de ser alvo de piadas. Isso custaria as cabeças de muitas pessoaspor aqui. Poderia então me responder: por que eu e Ally somos isentados dotratamento típico dos D’arlit?”“... eu não consigo acertar Ally.”“Tudo bem, Ally é um demônio excepcional.”“Valeu, Gambito Embromador!” Ally interrompeu, querendo apressar o jogo.“... com uma petulância irritante e poderes que eu nunca vi em nenhum outroser, mas, e eu, princesa? Eu não posso manipular as mentes das pessoas, enão posso usar truques como me multiplicar para fugir dos seus poderes. Emverdade vos digo, não há nada que a impeça de esmagar meu crânio contra aparede. Mesmo assim, você não o faz, e não vai fazê-lo, por mais que queira.Por quê?” Sua pergunta saiu como um desafio.A Harbinger da Morte adoraria responder aquela pergunta esmagando acabeça dele contra a parede, pouquíssimas coisas a dariam mais prazer.Mas ele estava certo: ela não o faria.“Vamos continuar o jogo.” Gambler anunciou quando percebeu que não teriaresposta.

Em poucas rodadas, ele já estava ganhando, Stefanova e Ally estavamempatadas no segundo lugar, o que significa... você sabe, alguém tem queestar em último.“Permita-me presenteá-la com uma pequena aula sobre poder, princesa:conhece a razão pela qual as pessoas jogam?” Gambler perguntou.“Para preencher o vazio de suas vidas insignificantes.” Ela respondeu,virando as cartas da mesa e torcendo para encontrar um ás para poder fazeruma trinca.“Apenas maus jogadores jogam com esse intuito.” Gambler disse, jogandosua dupla de valetes na mesa. “Pôquer é um jogo que desenvolve ashabilidades mais importantes de um investidor, como eu.”“O que é um investidor?” Ally perguntou, para o alívio da princesa, quetambém queria saber, mas engoliria cuspe de gobliniano antes de admitir quenão sabia.“Um demônio que realiza desejos esperando algo em troca.” Ele respondeu.“Em outras palavras: alguém que usa e brinca com poder.”

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Todos revelaram suas mãos: para surpresa da princesa, ela QUASE venceu arodada com um par de ases, mas Ally tinha uma trinca de valetes. Aindaassim, uma quase vitória era mais que ela esperava ao jogar com Gambler ouAlly.Gambler fez um aplauso discreto e passou seus alfajores (eles não tinhamfichas de pôquer) para Ally, Stefanova distribuiu as cartas enquanto ele dizia:“Pôquer é um jogo de poder: ele te força a desenvolver frieza perante aspiores situações, a habilidade para arquitetar armadilhas mentais, ensina ovalor do silêncio, do planejamento, de reputações e, principalmente, damanipulação da verdade, o blefe. Habilidades que você já deveria teradquirido, princesa, pois vão vir bem a calhar daqui para frente.”As apostas iam subindo enquanto a Harbinger ouvia atentamente.“Vamos começar com reputação: Harbinger da Morte, em quase vinte anosde combate, você foi quem mutilou as esperanças de seus inimigos com aspróprias mãos; você quem aniquilou uma cidade inteira sozinha; você quemfez os líderes de Virrat comerem os restos de suas próprias famílias antes deexecutá-los; o lamento fantasma dos povos que você dizimou e humilhouainda ecoam na memória daqueles se opõem aos D’arlit.” Gambler narrou,aumentando ainda mais a aposta.A Harbinger sentiu-se desconfortável: pelo menos um dos itens citados porGambler não fora sua obra, apesar de ter sido atribuído a ela.“É uma reputação forte, ela exerce o terror nas mentes das pessoas, e nósvamos usar isso ao nosso favor: ninguém, exceto Allenwick e nós, sabe queseu pai vetou a guerra, isso abre caminho para plantarmos informação falsapara o povo de Tuonela, o que facilitará bastante as coisas no nosso plano, nomais tardar você entenderá como.”“Plantar informação falsa? E como planeja plantar informações lá?” AHarbinger perguntou sem desviar os olhos da sua mão.“Caso não tenha notado, estão espionando nossas conversas.” Gambler disse.A princesa gelou, sentindo-se subitamente vulnerável.“Os pássaros.” Foi Ally quem sussurrou, “eles tão sempre na sua janelaquando percebem que tem coisa importante rolando aqui dentro, eles devemter um passaroglota–”“Ornitoglota.” Corrigiu Gambler.“Da na mesma, eles têm um desses, e às vezes os passarinhos ouvemcoisinhas interessantes aqui, mas só às vezes.” Ally disse.A Harbinger já ia se levantar, pronta para exterminar todos os pássaros que

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visse ao redor da janela, quando Gambler chamou: “Não, eles não estão aíagora, e quando estiverem, nós faremos muito bom uso.”“E como você pode ter certeza de que os pássaros são espiões?”“Eu não tenho, mas eu estou neste mundo há mais tempo que vocês sãocapazes de imaginar, eu conheço truques há muito esquecidos pela nossacivilização. Quando os pássaros vierem, nós faremos um teste cujos frutosnós colheremos na noite do ataque, e quando o fizermos, espero que aHarbinger aprenda uma lição sobre como manipular informação e, maisimportante, o inimigo. Baixem as cartas.”As cartas baixaram, para surpresa geral da mesa, a Harbinger havia ganhado arodada.“Ora, muito bem.” Gambler disse, tentando disfarçar a surpresa por ter sidoderrotado.Ally estava embaralhando: ela podia não ter a habilidade de Gambler com ascartas, mas era graciosa, o baralho parecia deliciar-se ao toque das mãos dela.As palavras de Gambler a incomodavam: geralmente eram os D’arlit quemmantinham espiões e olheiros, como eles não tinham nenhum em Tuonelaenquanto Tuonela tinha alguns bem no castelo dos D’arlit? Quanto ao planoperfeito, a verdade era que ele não era algo que ela quisesse: não era maisuma vitória contra mais uma cidade que iria melhorar o relacionamento queela tinha, ou pelo menos gostaria de ter, com o pai.Se fosse sua irmã quem tivesse declarado uma guerra, ele próprio guiaria osexércitos e– “O que foi agora?” Gambler perguntou.A Harbinger esmagou o punho contra a mesa: alfajores, cartas e lascas depedra maciça voaram enquanto sua respiração pesava contra seus pulmões... ador física sempre ameniza uma alma ferida.“... seria muito mais fácil se meu pai ficasse do meu lado.” Ela respondeu,controlando a voz para que não tremesse, usando mais força que tinha parasegurar as lágrimas que sentia vindo ao se lembrar das preferencias dele.“Ah, querida–” Stefanova começou.“Conte-me.” Interrompeu Gambler. “Qual a razão de seu pai se colocar noseu caminho?”“Isso não é da sua conta.”“Você não sabe, não é?”“Eu disse que não é da sua conta.”“A paspalhona acha que é porque o papai fica comparando ela com a irmãperfeita e morta dela.” Ally respondeu indiferente, apostando seus alfajores.

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A Harbinger olhou com ódio para Ally: Detestava que ela tivesse acesso àessas memórias, quase tanto quanto detestava vê-la espalhando seus segredosíntimos como se não fossem nada demais. Odiava tanto que nem percebeuuma corrente elétrica passar involuntária ao redor de seus dedos.Gambler começou a rir alto, cortando a raiva dela.“Pelo menos...” ele começou, recuperando o fôlego, “... você acertou umaparte.”“O que quer dizer?” Ela perguntou, apertando suas cartas na mão.“Que você é muito burra!” Ally disse alegre, quase jogando suas cartas nacara dela.“Chega, Ally. Vamos fazer um acordo, princesa.” Gambler propôs. “Vençaeste jogo e eu contarei tudo que sei sobre Allenwick D’arlit, os pequenosdetalhes que você ignora sobre seu pai, os motivos verdadeiros pelos quaisele gosta de ficar no seu caminho e mais importante: como receber otratamento que deseja dele. Feito?” Ele perguntou estendendo a mão para ela.A Harbinger encarou a mão de Gambler: ela não era do tipo que faziaacordos, ainda mais com pessoas que ela gostaria de assistir sendo empaladasvivas, mas a proposta de Gambler fez seu coração acelerar.Não sabia se poderia acreditar nas palavras dele, mas sabia que tentariaqualquer coisa, qualquer coisa mesmo, para ter pelo menos um pouco dotratamento privilegiado que sua irmã tinha.No entanto, antes de apertar as mãos...“E se eu perder?”“Você perde a chance que estou te dando, mais nada.” Ele respondeu.Um aperto de mãos firme e breve precedeu a próxima rodada: Ally haviadado as cartas, as apostas já haviam sido feitas... tudo deveria estar contra ela,mas a Harbinger ganhou sua segunda rodada seguida daquela noite, ficandocom a grande maioria das fichas gigantes que eram os alfajores. Era quase ummilagre ter tanta sorte.Se ela conseguisse manter essa sorte por mais uma rodada... e fazer todosapostarem todas as suas fichas... ela venceria.Sua esperança durou até perceber que era Gambler quem daria as cartas dessavez.“Ora vejam só, você parece estar numa onda de sorte, e está ficando tarde.”Ele comentou enquanto distribuía as cartas, foi a primeira vez que aHarbinger percebeu que as sombras haviam se alongado tanto que nãosobrara mais espaço para a luz. “Não olhem suas cartas ainda, eu gostaria de

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fazer algo diferente desta vez.”A Harbinger ia protestar, mas Gambler foi mais rápido ao virar as cincocartas que estavam sobre a mesa antes que eles fizessem as apostas: haviadois ases, um valete, um nove e um rei de espadas.Uma vez viradas as cartas, ele anunciou: “Um de nós tem cartas para formaruma quadra de ases, os outros três, bem, não.” Ele disse com um brilho noolhar que parecia combinar muito bem com as estrelas que começavam aaparecer lá fora.Ainda sem olhar as próprias cartas, Gambler apostou todos os seus alfajores.“Você roubou.” A Harbinger disse quando chegou sua vez, “você tem osoutros ases.”Em resposta, Gambler virou as próprias cartas para que todos pudessem ver:Cinco de paus e oito de copas, ou seja, absolutamente nada.“Vamos fazer algo ainda mais interessante: apenas você, princesa, verá ascartas que lhe foram dadas, enquanto Ally e Stefanova continuarão sem veras delas. Uma vez que você analisar suas cartas, você decidirá se vaicontinuar esta rodada ou não.Em resumo, você sabe que cartas tenho, você tem a vantagem de saber aspróprias cartas enquanto suas adversarias jogam no escuro, e você decide oteor das apostas nesta rodada, o que acha, princesa D’arlit?” Gamblerperguntou.

Se havia algum truque, sua voz o disfarçava muito bem, pois seu tomera sóbrio e sério como o de um pai disciplinando o filho.

Quase sem tirar os olhos dele, a Harbinger examinou suas cartas,fazendo tudo que podia para manter-se indiferente quando viu o que tinha emmãos: dois ases, ela tinha a quadra mais forte do jogo.

Aquilo tinha que ser um truque, porque ele estava deixando que elavencesse?“As apostas, princesa?” Gambler a apressou, com uma ligeira, quaseimperceptível irritação na voz. Curioso como fosse, ele só parecia alteradoquando olhava para as próprias cartas, com uma veia pulsando na lateral datesta e olhos piscando mais rápido que o normal.A Harbinger entrou no jogo apostando tudo que tinha, Ally e Stefa fizeram omesmo.Quem vencesse esta rodada, venceria a partida.“Mostrem suas cartas.” Gambler pediu.Não havia porque criar expectativas, ela só queria pular para a parte em que

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descobria que Gambler havia mentido sobre o acordo, pois aquilo, como tudoque parecia bom na sua vida, de certo era bom demais para ser verdade:Havia quietude, preenchida por nada além do grasnar de corvos, cartas sendoviradas e a felicidade confusa da Harbinger ao ver que...“Eu venci...” disse a maior derrotada de todas, mais surpresa que alegre. Suacabeça virou para Gambler, ao mesmo tempo que um sorriso involuntárioabriu caminho entre os músculos rijos das suas bochechas “... eu venci você.”“Sim, você me venceu.”A Harbinger começou a rir de alegria, era a primeira vez que vencia alguémem um jogo, sem dúvida havia poder naquela euforia, não tão diferente daeuforia que sentia ao esmagar seus inimigos no campo de batalha.Quando estava voltando a si, ela olhou para Gambler e perguntou: “E então, oque tem a dizer sobre meu pai?”“Nada.” Gambler disse na defensiva.Mesmo que aquilo fosse exatamente o que ela esperava, sua euforia virouraiva.“Era um blefe, não era? Você não tem ideia do porque meu pai me despreza,foi só um truque para me fazer perder tempo com vocês nesse jogo imbecil...você só queria me fazer de idiota.”“Você facilita bastante.” Ally comentou.Uma nova corrente elétrica perpassou os punhos da Harbinger: já haviapassado da hora de explodir a cabeça arrogante dessa peste...“Não era um blefe.” Gambler interrompeu, “eu sei porque Allenwick D’arlitsempre preferiu a sua irmã, sei como ele perdeu a mulher, sei todos osmínimos detalhes de como ele se tornou o primeiro e único demônio a tirar avida de um anjo, sei exatamente qual é o problema que ele tem com você e,principalmente, sei o que é necessário para que a opinião que ele tem sobrevocê mude, mas você não cumpriu sua parte do acordo, então, não há nadaque eu possa fazer.” Ele afirmou.“Como assim não cumpri? Eu VENCI! Eu tenho a quadra mais forte dojogo!”“Sim, você tem a quadra mais forte do jogo, sim, você me venceu, mas quemvenceu o jogo foi Ally.” Gambler disse, apontando para a pirralha do cabelo eolhos cor de fogo madeira.Um segundo e mais um olhar demorado confirmou o que ele havia dito: Allytinha um dez e uma dama de espadas, junto com o rei, o valete e o nove deespadas da mesa, as cartas dela formavam um...

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“Royal Flush.” A Harbinger disse, nada vence um Royal Flush.“EU GANHEI! EU GANHEEEEEEEEI! LALALALALALA EU GANHEISEUS BOBOCAS ESTÚPIDOS!” Ela gritou louca e insanamente, pulandosobre a mesa, apontando o intestino fedorento na cara de todo mundo e rindocomo se sua vida dependesse disso.Stefanova estava ocupada comendo um alfajor.E a Harbinger não sabia o que sentir.“Isso, minha cara, foi uma demonstração de como se manipula informaçõesao seu favor, e mais importante, como funciona o poder na vida real.Você perdeu apenas uma chance de ouvir minhas histórias, mas eu poderiater tirado muito mais de você com essa aposta: poderia ter barganhadoposições na corte de Allenwick, exigido segredos dos D’arlit, mas nada dissoé do meu interesse. Tudo que eu queria era ter um exemplo para explicar assutilidades dos jogos de poder que as pessoas usam.Tudo começou muito antes de o jogo começar, quando você me conheceu.Seria errado eu dizer ‘quando nós nos conhecemos’ pois eu a conheço desdeque você nasceu, apesar de termos nos encontrado pouco mais de duas depoisdisso vezes.

Desde o momento em que pisei aqui, não parei um momento debrincar com meu baralho, isso por si já deve ter dado a impressão de que eusei usar de truques com as cartas para minha vantagem, ou seja, que eu souum trapaceiro. Estou certo?”“Está.” A Harbinger disse, tentando ignorar Ally, que tentava colocar a pontado intestino fedorento dentro de seu ouvido.“Reputação, querida: eu me tornei a única verdadeira ameaça durante o jogograças à minha reputação, quando você me viu desarmado na última rodada,isso fez seus olhos brilharem de satisfação.”

“No entanto, se tivesse se dado ao trabalho de assistir meus jogos comAlly, veria que na maior parte deles, eu perdi.”“Em nenhum momento lhe ocorreu que Ally fosse mais trapaceira que eu.”“Vamos prosseguir: eu a coloquei em uma situação bastante familiar logo nocomeço do jogo: o último lugar. Por mais deprimente que soe, você estáacostumada a perder quando se trata de jogos de poder, como pôquer, comoxadrez e como jogos muito maiores, os quais você sequer está ciente de queestá jogando.”“Se eu tivesse deixado você ganhar desde o inicio, algo a avisaria que haviaalguma coisa errada, e você não aceitaria minha proposta. Esse é o poder de

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conhecer e brincar na zona de conforto dos adversários.E parte dessa zona de conforto são suas ondas de sorte: pelo que converseicom Stefanova, descobri que, por vezes, você tem seus momentos debrilhantismo, o que me assegurou de que você não estranharia se, em algummomento do jogo, você começasse a ganhar inesperadamente.”“Será que eu posso comer isso?” Ally se perguntou, observando o intestinoque ainda estava usando para pular corda.“Agora não, Ally.” Gambler disse para ela, “o único momento em que eupuxei você para fora da sua zona de conforto foi quando fiz nosso pequenoacordo durante o jogo: admito que, quando comecei a partida, não sabiacomo a faria fazer um trato comigo, mas, de novo, você facilitou as coisaspara mim, expondo em alta voz seus problemas com seu pai para alguém queo conhece como a palma da mão. É claro que usaria isso ao meu favor.Se você tivesse recusado na primeira instancia, eu a provocaria, a deixariatentada com pequenas informações sobre seu pai, nada realmente útil, masque pudesse dar uma ideia do quanto eu sei. Não seria preciso ir muito longepara fazê-la aceitar.E aqui é quando o jogo ficou interessante: você estava no meio de uma ondade sorte, Ally havia embaralhado e você ganhou uma segunda rodadaseguida, eu não sei dizer o quanto isso a deixou esperançosa, mas sei quevocê não conseguiu esconder sua decepção ao me ver embaralhando.Quando eu virei as cartas, você me acusou de estar roubando: foi quando eumostrei minhas cartas.Eu tinha a pior mão da mesa e havia apostado tudo que tinha. Gostaria dechamar sua atenção para isso: ao mesmo tempo que é vantajoso manter seuadversário numa zona de conforto, existe algum poder em atos imprevisíveis:você estava esperando que eu a derrotasse, minha aparente desistência apegou de surpresa e a deixou sem reação por um momento.E para garantir que você não desistiria, eu te dei colheradas doces de poder:apenas você podia ver suas cartas, enquanto ninguém mais tinha esse direito,e ainda por cima, você tinha o que parecia ser a mão mais forte do jogo, umtruque meu, admito, pois eu negligenciei mencionar que um Royal Flush erapossível.Estava tudo feito: você tinha o que parecia ser a mão mais forte do jogo, eunão tinha nada, foi como se eu tivesse entregado o jogo para você, como seeu QUISESSE revelar o que sei para você, não havia como resistir, vocêmerecia saber quais são os segredos de Allenwick D’arlit, qual o problema

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dele com você, como ser a filha de ouro do seu pai, tudo isso estava tão perto,você quase podia sentir, uma pena você ter acreditado que meu objetivo eravencer. Ver Ally destruir sua vitória não deve ter sido muito bom.”“EU VENCI HAHAHAHAHA!” Ally gritou de longe. Quando a Harbingerolhou, havia três dela, duas estavam batendo corda e cantarolavam músicascada vez mais rápido, enquanto a do meio ria e pulava plantando bananeira.“... eu tenho medo dela.” Gambler sussurrou.“Onde quer chegar, Gambler?” A Harbinger perguntou.“Não, não é onde quero chegar, é onde quero te levar: tudo isso foi umaminiatura de um jogo de poder: é assim que grandes líderes comandam seuspovos, é assim que generais de exércitos vencem guerras que não deveriampoder vencer, é assim que charlatões ao redor de todos os mundos enganamreinos inteiros, é assim que o jogador menos habilidoso derrota o virtuoso.É isso que eu vou ensinar a você: como usar distrações; como criar aconfusão na cabeça de seus adversários; como usar todas as fraquezas de umapessoa ao seu favor; o poder que existe em esconder suas verdadeirasintenções, como eu fiz durante o jogo.E principalmente: vou ensiná-la como demônios vencem os anjos.”

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Capítulo 36

“Wendy!” Kristell gritou, correndo para abraçá-la no instante em que a viu.“Wendy eu sabia que... Wendy? WENDY O QUE ACONTECEU?” Elagritou desesperada quando viu o estado do braço da amiga.“Caveiras... caveiras... patos... chifres... árvores... dedos...” Ela balbuciou devolta.Um quadro que aterrorizou Kristell Sinnett: Wendy num barco aos pedaçosna beira do mar, seu braço esquerdo estava coberto de sangue, seus olhosestavam opacos e inchados, como bolas de gude verdes grudadas em seurosto.Sua franja diminuta estava grudada em sua testa em uma mistura pastosa evermelha de sangue, suor e água do mar; seu corpo estava mais branco que asnuvens que haviam tomando conta da maior parte daquela tarde airosa deinverno.Ao lado dela, havia um mestiço de anjo, em um estado ainda pior: Calebtinha um arranhão profundo na lateral da cabeça: perdera um pedaço daorelha, uma mecha de cabelo e uma quantidade assustadora de sangue. Porexperiência, Kristell sabia que, de brinde, ele ganharia uma cicatriz horrívelali também, assim como Fawkes.O sol era um melão de fogo, brilhando pequeno e distante no horizonte,envolto em nuvens finas, engolido por águas brandas, tão pacíficas e calmasque poderiam estar caçoando dos dois náufragos.Chegara a hora em que a noite acochambra o pulsar e as cores de Tuonela,escurecendo o que sobrou do imenso casarão branco onde eram feitos osantigos bailes de máscara, emprestando um ar sombrio para uma catedral cujavisão deveria lembrar serenidade e, por fim, despertando os sons funestos quea natureza manipula com prazer durante o cair da noite.Era um belo quadro.Era hora de chamar ajuda.Em pouco tempo, Paloma Goldenear, seu pai e Kahsmin estavam cuidandodos feridos.Paloma não cicatrizou as feridas de nenhum dos dois por completo, não tinhaenergia o bastante. Caleb não se importou e agradeceu pela ajuda, esperandoapenas pelos dois irmãos mais velhos de Paloma terminarem de enfaixar sua

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cabeça antes de se retirar para o farol abandonado à beira mar.O trabalho dos irmãos o deixou com um ar de múmia mal feita: cobriram oolho direito, o lado onde lhe havia sido arrancado um naco de carne. Seucabelo branco saía entre as gazes que envolviam a cabeça, que ele logoescondeu, vestindo o sobretudo e cobrindo a maior parte do rosto com ocapuz.“Obrigado.” Ele repetiu antes de se retirar. “Obrigado por cuidarem dela.”Kahsmin o seguiu até o farol, perguntando o que todos queriam saber: “O queaconteceu?”Quando voltou, disse que a única resposta que conseguira de Caleb foi:“Mortimer Von Schenzel está morto. A Ilha da Caveira, nem tanto.”Kristell tinha certeza que havia sido a mancha vermelha se formando na gazede Caleb que convencera Kahsmin a deixá-lo em paz depois de uma respostatão vaga. O próprio Kahsmin, no entanto, poderia ter uma opinião diferente.Quando ele relatou o estado de Caleb para Autumn, ela se limitou aperguntar: “Ele vai viver?”“Vai.”Ela resmungou algo desdenhoso, voltando para o mundo sombrio onde elamantinha James e Jane: ao que tudo indicava, havia feito algum progresso nassuas tentativas de entender como aquela garota era capaz de voltar a vida,mas nada concreto.Sentia que ainda havia muito trabalho para ela pela frente.Naquela noite, Wendy dormiu na casa dos Goldenear, ignorando porcompleto que aquela era a última noite do ano, enquanto, na casa de Edgar,Kristell recontava para Edgar, Allan, Victoria, Elizeu, Marco, Hulligan,Percival, Tereza e outros membros da trupe que estavam presentes sobre todaa situação em que encontrou o casal mais polêmico de Tuonela.“O que eles disseram?” Victoria foi a primeira a mostrar interesse.Kristell conseguiu ignorar a rivalidade para respondê-la.“Wendy disse algo sobre caveiras e dedos, sei lá, ela não fez nenhum sentidopra mim. Eu tô preocupada, desde que ela chegou aqui, ela só tem dado azar,acho que é a quarta vez já.”Todos murmuraram em coro, concordando que poucas pessoas poderiam tertido tanto azar quanto Wendy: muitos deles passaram suas vidas inteiras emTuonela, eram infinitamente melhor preparados para lidar com demônios nãoamigáveis, embora nada nunca acontecesse com eles, enquanto essa garotaque mal sabia lutar direito encontrava todas as desventuras.

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Estavam tão ocupados discutindo a má sorte de Wendy, secreta eironicamente a apelidando de “Dama da Sorte”, que mal perceberam os doispares de ouvidos que não pertenciam àquele lugar.Em defesa aos desatentos, vale a pena mencionar que os ouvidos não estavamvisíveis.Mas ainda não era uma desculpa boa o bastante: Kristell já haviademonstrado suas habilidades para detectar presenças fora do lugar emdiversas ocasiões, sendo a mais recente aquela na Taverna do Fim dosTempos, quando ela e Wendy comeram no estabelecimento deserto, antes deFawkes aparecer. No entanto, desta vez, estava completamente distraída.Victoria também estava ali e, embora muito pouco possa ser afirmado comcerteza sobre a garota de cabelo verde, uma coisa era certa: ela era tão capazquanto Kristell de pressentir presenças que não deveriam estar onde estavam.Mas ela também tinha a mente em outro lugar... ou melhor, em outra pessoa,naquele momento. E não, não era seu namorado Allan ou a Dama da SorteWendy que brincavam com sua atenção.Se nenhuma das duas estivesse tão desatenta, teriam percebido Capitão eTerror ali, enfiados dentro da terra, perto o bastante do chão da casa de Edgarpara ouvir tudo que Kristell tinha a dizer sobre a Dama da Sorte.Mas os ouvidos intrusos logo se dispersaram, quando o assunto finalmentemudou de “Wendy” para os preparativos do Baile de Máscaras do aniversáriode Tuonela.Tão rápido quanto um trem bala, eles surgiram na entrada da biblioteca deTuonela, onde Fawkes estava esperando... mais ou menos.Na verdade, Fawkes continuava achando que havia um espião em Tuonela, eestava tentando entender o que poderia ter dado errado nos seus planos paraencontrá-lo, além da má sorte que havia sido pegar o homem errado.Era verdade que, por alguns momentos, considerou que todo aquele negóciode espião não passasse de uma leve paranoia coletiva, que havia aumentadocom a recente visita da Harbinger da Morte.Então, ele se lembrava: Não havia como ela saber da localização da triboSatya, alguém ali dentro havia contado para ela, e ele descobriria quem.A única coisa de que estava convencido por completo era: vigiar as saídassubterrâneas de Tuonela havia sido perda de tempo, um espião de verdadenão usaria uma saída tão óbvia, onde tantas pessoas poderiam surpreendê-lo.Ele precisava de um novo plano... precisava reestudar os mapas.Mas isso poderia esperar o que quer que Capitão e Terror tinham a dizer

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sobre Wendy.Os garotos toupeira se revezaram na narrativa do que eles haviam ouvido nacasa do Edgar, dando ênfase no novo apelido de Wendy, que eles acharamengraçado em demasia.“Onde ela tá agora?” Fawkes perguntou, indiferente ao apelido.A resposta não era exatamente convidativa.Paloma talvez ainda estivesse chateada com o término repentino dos dois, oque não era tão ruim quanto os irmãos e pai dela ainda estarem enfurecidoscom ele por ter usado seu precioso botão d’ourado para deixar outra meninacom inveja.O que também não era exatamente verdade... na verdade ele queria... bem...não, esquece, era verdade sim, no fundo, ele sabia que Paloma havia sidoapenas uma tentativa infantil e idiota de deixar Wendy com ciúmes.Pior plano de todos, mas pelo menos a Kristell pareceu bem enciumada coma relação dos dois, o que era bom e servia pra massagear seu ego.Fawkes concluiu que não custaria nada se aproximar da casa dos Goldenear:se bem lembrava, pelo fato do pai dela ser especialista em venenos e suascuras, havia vários quartos com camas para repouso na casa deles, paraeventuais enfermidades.Quartos com janelas.Wendy com certeza estaria em um dos quartos.Não iria machucar chegar perto e ver como ela estava.O que iria machucar seria ser encontrado pelos dois irmãos violentos daPaloma.Mas todos eles deveriam estar dormindo à essa altura.Ele próprio deveria estar na cama: eram três da manhã.Com uma carona de Capitão e Terror, Fawkes foi até a não tão humilderesidência dos Goldenear: para uma casa construída sob a terra, ela tinhamuito esplendor, não como a do Edgar que, apesar de grande, pareciamórbida aos seus olhos.Havia colunas marrom dourado ao redor do portão de entrada, e as janelaseram altas demais para ele alcançá-las.

Sozinho pelo menos.“Capitão, Terror, me levantem.”A ideia era simples: as janelas ficavam uma do lado da outra, então elesubiria em uma, espiaria o quarto e então pularia para a próxima, atéencontrar Wendy.

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A primeira janela que espiou dava direto para o quarto dos pais de Paloma.Ele não precisava ver o que viu.Também não devia fazer barulho, mas ele fez.Fawkes caiu do batente da janela e, ao invés de correr para se esconder, ficouali, paralisado, esperando os pais da Paloma aparecerem a qualquer segundopara encontrá-lo espiando.Foi muita sorte Capitão e Terror surgirem para engoli-lo para baixo da terra.Eles deram a volta na casa e surgiram do outro lado.“... valeu gente.” Fawkes disse.Alguns minutos se passaram: Fawkes não ouviu nada, enquanto Capitão eTerror, que tinham uma audição privilegiada, ouviram quase tudo queaconteceu no quarto dos pais da Paloma, inclusive quando– “Eles já voltarampra cama.” Capitão e Terror anunciaram.Era hora de voltar ao trabalho.Enquanto ele subia no batente de uma janela, uma outra, no extremo oposto,se abriu.Fawkes prendeu a respiração: dessa vez, Capitão e Terror não poderiam livrarsua cara quando os pais de Paloma o vissem se esgueirando pela casa.Mas não eram os pais de Paloma.Era Wendy.Vestida num agasalho que tentava esconder uma camisola leve,desagradavelmente parecida com aquelas usadas no Hospício de Virrat. Seubraço estava todo enfaixado, assim como sua testa, mas apesar disso, estavabem o bastante para pular uma janela sem fazer esforço algum: era como setivesse prática.

Nada mau.Pulando da janela, Fawkes começou a acelerar o passo atrás dela, fazendo detudo para manter suas passadas sutis e sua respiração baixa o bastante paraque ela não reparasse na sua presença.Alguns momentos mais cedo, ele havia decidido que só ia ver como elaestava, mas agora que sabia que ela estava bem o bastante para se esgueirarpor aí, resolveu querer saber para onde estava indo também.Afinal, o que era tão importante que não podia esperar até amanhã de manhã?Bem, em teoria, já era “amanhã de manhã”, mas não era isso que ele queriadizer.Ele poderia ter simplesmente perguntado, mas achava que, depois da últimaconversa que tiveram, ela não iria estar muito interessada em falar com ele.

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Por isso, passos de gato.Estava passando sob a janela que Wendy havia pulado, quando uma voz o fezparar.“O que você tá fazendo aqui, Fawkes?” Soou mais como uma acusação queuma pergunta de Paloma.Nenhuma palavra saiu de sua boca estática de surpresa.“Eu falei com você, Fawkes.” Ela disse, enunciando grande desprezo na voz.Ele continuou calado, sentindo a frustração crescer enquanto Wendy sumiade vista entre as casas.“Eu vou chamar os meus pais se você–”“Não!” Fawkes gritou um sussurro, enquanto, com as mãos, sinalizava paraCapitão e Terror continuarem seguindo Wendy para ele.“Você não vai conseguir usar a Wendy igual você fez comigo.” A própriaPaloma pulou a janela, com bem menos facilidade que Wendy.“Você diz como se também não estivesse me usando para–”“Fawkes.” Ela interrompeu, “eu não usei você, eu gostava de você e queriaestar com você, dizer para todo mundo que eu também usei você é mentira, enão importa quantas vezes você a repita, vai continuar sendo mentira. Por queeu não ouvi a Kristell...”Embora Wendy estivesse fora de vista, ela continuava bem perto: atrás domuro de uma casa na esquina, ouvindo o teatro vingativo que Paloma estavadesfilando sobre Fawkes para ganhar tempo.“Obrigada, amiga.” Ela murmurou antes de seguir pelo labirinto de ruas deterra batida.Seu braço ainda doía como se o tivesse mergulhado num poço de piranhas,sua cabeça então... não bastavam os pesadelos que não paravam, as aranhasque apareciam sempre que ela fechava os olhos a noite (obrigada, Jaques) e afrustração que era conversar com Wanda sem resposta, agora tinha que aturaro sangue que sentia escorrendo entre as bandagens na sua testa.

Obrigada, mundo, você é lindo, só que ao contrário.Havia chegado na parede de areia, onde batucou em Morse até que elaabrisse.“Você acha que todos aqui sabem Morse, Wanda? Ou será que eles só batemnessa parede do jeito que o Kahsmin ensinou pra ela abrir?” Wendyperguntou baixinho enquanto subia as escadas.Wanda não tinha uma opinião formada.Podia estar tomada pela pressa, mas Wendy teve que se deter quando emergiu

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do alçapão atrás do altar: a lua quase cheia fazia sua luz alumiada velar esingrar através dos mares em mosaicos coloridos nos vitrais da catedral.Tons de azul, vermelho e verde, pálidos feito fantasmas nas sombras de seusdesenhos a fascinar o chão feito de frio e indiferença, presos eternamente nopiso da catedral, dependendo apenas da boa vontade da lua para existirem.Sua pressa pedia calma para apreciar.Mas sua calma tinha pressa para acabar: tinha que ver Caleb.

Ela saiu da catedral em silêncio, tão distraída com as cores que sequerreparou que havia uma segunda pessoa ali, uma que olhava de longe para asluzes anêmicas que criavam forma no piso gélido. Alguém incapaz deapreciar o quão bonitas elas eram.

Uma pessoa tão mergulhada nas próprias preocupações que sequerreparou no alçapão do altar se abrindo.E se percebeu uma garota percorrendo a catedral, seus devaneios sobremundos dentro de mundos o distraíram para o que o cercava. No final dascontas, ele não tinha nada para com ela nesta noite.Deveria estar ocupado com as notícias que uma mulher cega havia de trazer.Deveria estar ocupado com os D’arlit.Deveria.Mas havia círculos demais na sua cabeça.Por mais que os garotos da astronomia, os admiradores de estrelas, dissessemque o universo era infinito, Kahsmin tinha certeza que eles estavam errados.O universo era circular, talvez uma bola em três dimensões, talvez algo tãodiferente que sua mente primitiva de homem fosse incapaz de entender, mascom certeza era algo redondo, igual tudo que é criado pela natureza: Planetas;estrelas; cometas; luas; buracos negros; células; sistemas solares e, maisimportante que todos estes: histórias.Havia um motivo para o ciclo da vida se chamar “ciclo”.

A definição pode ser simples como o cervo que é devorado pelo leão,que por sua vez morre e vira adubo para o mato, que é alimento para o cervo.Também pode ficar presa em um espaço confuso entre o simples e o “não tãosimples”, como eram os ciclos de namoradas que um de seus melhoresamigos tinha: chegava a ser cômico como ele sempre aparecia, de seis emseis meses, com uma nova mulher... que era exatamente igual a anterior.Pode ser complexo como o próprio tempo e a vida neste mundo e nopróximo.Seu pai havia enfrentado guerras que nunca teria começado, aceitou seu

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destino por amor ao seu povo e família, mesmo que isso tenha significadocometer atrocidades que simplesmente não cabiam na cabeça do entãopequeno Henrik.O ciclo se repetia hoje, com Kahsmin se preparando para uma guerra que elenunca teria começado, aceitando seu destino por amor ao seu povo, mesmoque isso signifique cometer atrocidades que simplesmente não caberiam nacabeça de... por sorte, Meggie nunca precisaria saber das coisas que ele farianesta guerra.Ou as que ele fez dezoito anos atrás para livrar Tuonela dos D’arlit.No final, a história não era reescrita, apenas revivida por novos personagens,com pequenas mudanças na forma de organizar as palavras, os fatos, asmentiras, os eventos e desalentos, era apenas um círculo que já existia, tendoo traço reforçado para ter certeza de que nunca se apagaria.Um círculo. Um ciclo.

Um ciclo de desgraça.“Kahsmin.” Autumn o chamou, surgindo lentamente ao seu lado.Ele sequer se deu ao trabalho de virar para ela quando respondeu: “Que é,Autumn?”“A garota saiu da catedral enquanto eu estava com as crianças.”“Wendy foi ver Caleb, deve estar preocupada, e eu não a culpo, o estado deleestava medonho, ele perdeu muito sangue, e vai ganhar uma cicatriz enormeno rosto.”“Uma pena.” Autumn começou com sua voz melodiosa como o ressoarmelancólico de suas facas ao cortar o ar, enquanto Kahsmin se viravaperplexo para ela.“Você se importa com ele?” Perguntou surpreso.“Ele quase perdeu a cabeça.”“E por isso de repente você está preocupada?”“A palavra quase me chateia.” Ela corrigiu, com desgosto elegante na voz.Kahsmin devia ter esperado por isso. Ainda sem olhar para ela, perguntou:“Descobriu alguma coisa sobre as crianças?”Autumn não sorriu, de certo seus lábios não sabiam como o fazer (pelomenos, não sem parecer uma maníaca), mas ele percebeu uma mudança dehumor imediatamente depois de perguntar.“Descobri.”“O quê?” Ele perguntou interessado.“Eu descobri porque Jane continua viva.” Sua voz soou como uma sombra ao

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vento.“Por quê?” Kahsmin perguntou excitado.“A garota não pode morrer enquanto James estiver vivo.”O primeiro olhar que Kahsmin se atreveu a lançar para Autumn estavarecheado de confusão que, embora Autumn não pudesse ver, certamentepodia sentir.“Como você descobriu isso?” Ele verbalizou sua dúvida.“Eu matei o garoto, a garota não voltou mais. Foi interessante.”“Você O QUÊ!?” Kahsmin interpôs abismado.Mesmo com uma venda protegendo os olhos, Kahsmin sentiu-se estudado porela.“Hakasalo tem razão, há alguma coisa de divertido na sua reação deincredulidade.” Ela disse, sem parecer nem um pouco entretida, “eu estavamentindo, eu não matei os garotos, por mais que eles mereçam.”“Por quê? O que eles fizeram?”“Eles falam. Vozes tendem a me irritar. No entanto, a parte sobre a vida dosdois estar interligada é verdade: não há poderes de cura na garota, ao quetudo indica ela é uma mestiça comum, e tampouco o garoto parece ter algumpoder para curá-la.Entretanto, é verdade que os dois parecem ter algum tipo de ligação que ospermitem saber o que está acontecendo um com o outro, ao menos em umnível primitivo. O garoto sabe quando a irmã está irritada, com fome, comfrio, mas ele não saberia dizer com exatidão o que ela está pensando. Ao quetudo indica, é essa ligação que impede a irmã de morrer enquanto o garotovive.”“O que é essa ligação?” Kahsmin perguntou curioso.Um ataque de tosses impediu Autumn de responder imediatamente, Kahsminachava que ela já havia se curado, começou a se preocupar enquanto a viaarfando com dificuldade para conseguir respirar.“Estou trabalhando nisso.” Ela respondeu finalmente.“Interessante, e como você descobriu tudo que você já sabe?”“Você não iria entender.” Autumn respondeu, “eu tenho notícias dos D’arlit.”Kahsmin não ficou exatamente alegre ao ouvir aquele nome.“Descobriu o tamanho do exército?”“Allenwick não apoiou a declaração de guerra premeditada da Harbinger daMorte.” Autumn contou sem pressa, “os pássaros dizem que Allenwick, emmeio a um acesso de raiva, atacou a princesa D’arlit, e proibiu todas as tropas

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de auxiliá-la.”O rosto de Kahsmin se iluminou como uma barril de rum em chamas.“Sério?” Ele perguntou, sentindo um daqueles sorrisos que você nãoconsegue impedir surgindo no seu rosto.Autumn assentiu discretamente e acrescentou: “Eu só espero que ela aindaesteja viva.”“A princesa?”Autumn assentiu com uma faca entre os dedos.“Para matá-la.” Ao final da frase, a faca foi arremessada, enfincando-se naparede mais alta da catedral, bem na testa de uma garotinha de cabelo pretoque tinha sido pintada com um pai demônio, mas nenhuma mãe.“Ah, claro.” Quando Kahsmin ia aprender? “Isso quer dizer que não haveráguerra?”“Eu não contaria com isso. A Harbinger da Morte tem a honra dos D’arlitpara defender, eu tenho bons motivos para acreditar que, mesmo enquantoconversamos, ela está planejando seu próximo movimento.”“Que motivos?” Kahsmin disse, e seu sorriso tonto foi varrido do seu rosto.Um rugido agudo e abafado fez a catedral e o coração de Kahsmin tremerem.“Este. Com licença.” Autumn disse, sumindo nas sombras.Kahsmin ficou vários segundos olhando para o lugar onde ela havia sumido,então procurou no chão pelas luzes pálidas que havia visto mais cedo, maspelo visto, ou a lua escalara alto demais nas escadas de estrelas para iluminaros vitrais, ou havia se intimidado e procurado esconderijo entre nuvens, poisa catedral estava escura como a morte.“Kahsmin.” Autumn disse, ressurgindo de repente.“O que foi isso?” Ele perguntou, escondendo o mini ataque cardíaco que tevequando Autumn ressurgiu sem aviso.‘Um dos meus pássaros voltou, Stacy estava avisando.” Autumn respondeu.“E o que ele disse?”Os sinos começaram a soar no exato instante em que Kahsmin terminou defalar: as badaladas eram altas e ressoavam sonoras e pesadas dentro dacatedral de Tuonela, fazendo seu peito vibrar como se estivesse oco. Com agrandeza daquele som, não havia como não se sentir pequeno, como oefêmero tempo que passou com sua filha.

Uma sensação que se prolongou mesmo depois da quarta e últimabadalada.

Autumn esperou até o último vestígio do som morrer por absoluto

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antes de puncionar o silêncio morto com sua voz afiada.“Ao final do mês, a Harbinger virá para repetir a história de Jussarö

em Tuonela.”

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Capítulo 37

“É bom ter um rosto dos tempos idos por perto.” O velho sussurrou para ovento, muito antes que pudesse de fato ver quem vinha lá, “esperava que meencontrasse mais cedo, duas vezes você esteve próximo de fazê-lo.”Não seria certo dizer que ele acabara de acordar, pois seu sono era curto eraro, preferia meditar na calada da noite, esperando paciente pelo momentoem que as vozes antigas decidissem fazer-se ouvir nos ouvidos de sua alma.Muitas vezes, era preciso pelo menos uma hora para começar a ouvir, e pormuitas vezes, não recebia instruções em forma de palavras, mas sensações ouideias que lhe eram entregues e deixadas para ele e somente ele interpretar.

No entanto, em raras ocasiões, não era necessário mais que uma brevelufada de vento soprada de seus pulmões anciões para começar a ouvirantigos segredos sendo-lhe confidenciados.

Segredos que outrora ele soube de cor, quando era apenas um espíritoerrante.

Mas isto foi há muitas vidas atrás.Hoje ele tinha um corpo, um corpo frágil e seco como as folhas de

outono. É o que acontece quando se passa outonos demais preso no mesmocorpo.

Seria mentira se dissesse que não desejava um novo, mas há muitohavia aprendido que desejos originados do corpo não passavam de vaidade,eles cessariam quando finalmente estivesse livre da velha carcaça.

Até lá, ele tinha uma missão a cumprir, uma que apenas terminariaquando deixasse de respirar.

“Aproxime-se, velho amigo, não posso vê-lo ainda.” O velho de vozfina e ressecada chamou.

Mas o que era isso? Seu velho cérebro humano estava sentindoinveja? Ora, ele deveria ter se deixado desviar demais de seus antigoscaminhos, que vergonha para alguém com sua experiência.

Inveja de uma criatura que de demoraria séculos para envelhecer oque ele envelhecera em noventa anos.

E ainda ousavam chamá-lo de sábio.O sol nascia num horizonte com poeira de sereno, adocicado com

farelos de nuvens doces e cinzentas, cujas águas haviam assolado sem

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piedade as terras de Virrat: fora muita sorte que seu esconderijo tivessesobrevivido.

Para uma cidade deserta, Virrat havia tido muito movimento nosúltimos dias: a chegada das míriades o forçara a procurar um lugar maisseguro que sua antiga casa, logo depois vieram as crianças... e as duas queentraram na antiga morada do velho, foi muita sorte serem pegas pelossenhores do Hospício Para Demônios de Virrat, e não pelas míriades.

Então, houve o incêndio: ele sabia exatamente como tinha acontecidoe como impedir, mas não cabia a ele impedir que o garoto ruivo e Calebfizessem o que tinham de fazer.

Aquela tampouco foi a última visita de Caleb, embora o velhoduvidasse que o mestiço de anjo suspeitasse que ele havia presenciado seuencontro com seus cobradores: era verdade que ele tinha um conselho paraCaleb, mas nunca chegou a dá-lo.

Caleb estava ocupado tentando manter-se vivo.Finalmente, conseguiu enxergar o vulto surgindo entre os escombros.“Como vai, Anuk?” Perguntou o velho sábio.O lobo de olhos azuis e pelo cinza esbranquiçado como nuvens no fim

da tempestade fez uma reverência comedida para o velho sábio.“Você não viria se não fosse uma questão de urgência maior, não é,

Anuk?”O lobo assentiu de leve, penetrando velho sábio com seu olhar.“Você sabe que não há mais segurança para mim nos caminhos que

me levariam para Tuonela, não sabe, velho amigo?” Ele perguntou, fazendoum esforço sombrio para se colocar em pé, um esforço que, há tempos,assumira como sendo uma parte de si.Anuk apenas assentiu novamente, enquanto o velho sábio passava suas mãossecas e enrugadas pela barba branca que chegava quase na sua cintura, o quenão significava grande coisa, pois ele não devia ter mais da metade dotamanho de Kahsmin.“Está bem, velho amigo, eu confio que não pediria que eu viajasse todo opercurso até Tuonela se não fosse necessário.” Ele começou, observando suasunhas incrustradas em sua pele desértica enquanto Anuk assentia uma vezmais, “apenas peço tempo para me recuperar.” Ele pediu, alisando umaparede com sua mão áspera.O lobo preferiria que o velho fosse de imediato, dava para sentir a pressa noar.

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“Farei o possível para chegar antes do aniversário de Tuonela.” O velhoassegurou, com a garganta enxuta, ainda tateando pela parede, “até lá, estareiem condições.”Anuk assentiu: o lobo sabia que era uma causa perdida argumentar com ele,não importa o quão importante fosse a presença dele, havia um motivo paraseu isolamento repentino.Pelas ralas fendas na parede, as mesmas que o velho usava para ver o nascerdo sol, o lobo saiu sem cerimônia, mas antes que sumisse por completo, ovelho fez um esforço para fazer-se ouvir.“Tive um pressentimento, um dos gigantes de Louhi foi despertado. Éverdade?”Anuk colocou sua cabeça volumosa dentro da fenda, apenas para assentir deleve e sumir com o raiar amanhecer do dia.“Por que nunca me trás boas notícias, meu velho amigo?” O velho seperguntou.No mesmo instante, sua mão encontrou o ponto que procurava na parede, eleo sentiu da mesma forma que um matemático sente que chegou à respostacerta ou que um músico sente que seus dedos tocarão as notas corretas antesde sequer movê-los.Agora, não era uma questão de força, mas técnica.Apenas um soco de seu punho ressecado e o velho sábio viu a parede de seuesconderijo rachar como se estivesse sendo martelada por dentro: rachadurasque se estenderam do ponto de contato até o chão e o teto daquele lugar.Então, ela ruiu, como um castelo de areia faz na presença da água.“Preciso meditar mais.” O velho disse, observando a nova janela de seu nãomais tão discreto esconderijo.

O dia era como aqueles belos dias de outono que Wendy sempre lia nashistórias.Exceto pelo fato de que era inverno.Pelo fato de que havia, de novo, acordado com os pesadelos de Ally.E, principalmente, pelo fato de que Kristell Sinnett era desprovida decapacidade de parar de fazer perguntas desconfortáveis na frente deestranhos.

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“Por que você foi ver Caleb quase as quatro da manhã?” Ela perguntou nafrente dos pais e irmãos da Paloma enquanto eles comiam café da manhã naaconchegante mesa no centro do salão de jantar.Aquilo era um nível de vergonha que Wendy não esperava experimentar até odia em que tivesse que apresentar seu namorado para seus pais adotivos, oque não aconteceria tão cedo, já que ela não tinha nenhum dos dois.Embora Caleb estivesse bem próximo disso (de namorado, não de paiadotivo).“Eu queria saber se ele estava bem.” Ela respondeu, mergulhando um pedaçode pão no estranho, mas delicioso ensopado que estava na mesa. Wendy sabiaque cedo ou tarde teria que contar o que foi conversado com Caleb, mas nãoestava nem um pouco disposta a fazê-lo durante sua refeição favorita.“As QUATRO da manhã?” Kristell insistiu.Wendy evitou levantar os olhos, pois não precisava deles pra saber que todosos presentes naquela mesa a estavam olhando com um olhar tão reprovadorquanto o que a irmã Romena fazia quando reavaliava as escolhas que haviafeito na juventude.“Ele me salvou, era o mínimo que eu podia fazer.” Wendy disse.Naquela mesa, apenas Paloma e Kristell sabiam que havia alguma coisasignificante entre Wendy e Caleb, além da relação de professor e aluna, eWendy pretendia deixar assim, pois não sabia qual era a opinião dos pais dePaloma em relação à Caleb.Era certo que eles o ajudaram, mas não queria dizer que eles gostavam dele.Wendy já tinha visto professores demais ajudando alunos que detestavam, oque era o bastante para perceber que bondade e amor não eram os únicosmotivos pelos quais uma pessoa ajuda outra.Outros motivos eram “puxa-saquismo”, “pedir favores em troca”, “falsoaltruísmo”, dentre outros vários que a irmã Romena gostava de usar paraacusar irmã Natalie.O café da manhã terminou, Wendy recebeu alta para sair, contanto quevoltasse para trocar as bandagens, o que ela não faria, já que Kristell havia seoferecido tão veementemente para fazê-lo.Uma vez do lado de fora, Kristell voltou: “Então, o que você estava fazendode verdade no farol?”No primeiro momento, a pergunta a irritou, no segundo, ela viu aoportunidade perfeita de dar uma das respostas favoritas de Christina.“Nada demais.” Era verdade, mas ela fez questão de adicionar um sorriso

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travesso, só para irritar Kristell.“Wendy...”“Eu fui ver se ele estava bem, fiquei meia hora com ele conversando sobre oque aconteceu na ilha da Caveira enquanto ele reclamava de dor de cabeça, oque eu acho que é bem normal quando a gente perde um pedaço do rosto,depois eu fui embora, e é só isso.” Ela respondeu, “e por que em nome detodas as renas do papai Noel você tinha que fazer essas perguntas na frentedos pais da Paloma?”“Eu achei que você ia responder mais rápido se eu fizesse isso.” Kristelldisse, começando a rir sozinha do nada. “Desculpa amiga, eu tava irritada nahora, você me assustou demais com todo aquele lance de chegar na cidadetoda arrebentada.”“O que uma coisa tem a ver com a outra?”“Eu fui te ver às oito da manhã e você ainda tava dormindo, com todasaquelas bandagens e tudo mais, eu achei que alguma coisa horrível tinhaacontecido pra você ainda não ter acordado, aí a Paloma me falou que vocênão dormiu bem porque foi ver o Caleb na madrugada.”“E ao invés de ficar aliviada, você ficou irritada?”“Eu sou uma garota adolescente, não questione a minha lógica.” Kristellrespondeu.Wendy cedeu, contra fatos não há argumentos.O dia ficava estranhamente vazio sem os treinos com Caleb na manhã, maspelo que Wendy tinha visto, à menos que Paloma recuperasse logo asenergias para pelo menos cicatrizar seus ferimentos por completo, ele nãoteria como treiná-la.Ela poderia usar o tempo livre para explorar a cidade...“E morrer, não é?” Wendy fingiu ouvir Wanda reprovar, o que a fez desistirda ideia.“Wendy?” Kristell perguntou quando estavam quase chegando na casa doEdgar.“Que é?”“Eu sei que você não deve tá afim de falar nisso agora, mas todo mundo quersaber o que aconteceu na ilha da Caveira.” Kristell disse.“Não posso responder isso agora.” Wendy respondeu categórica,surpreendendo Kris.“Por quê?” Kristell quis saber, parando a amiga no meio da estrada.Wendy parou, lembrando o que havia conversado com Caleb na noite

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passada: ele havia dado razões mais que o suficiente para que ela nãocontasse a história para ninguém, por hora pelo menos. Por outro lado, elanão podia deixar Kristell num vazio tão grande.“Mortimer foi morto.” Wendy disse por fim, “e o que matou ele estavaesperando no lugar dele. É tudo que ele me deixou dizer por enquanto.”Confessou, em momento algum quebrando o contato visual com os olhoscuriosos e caramelos de Kristell.As duas garotas de cabelo curto se observaram no silêncio daquele final demanhã, onde nenhuma alma viva vagava pelas ruelas subterrâneas deTuonela. Wendy sabia que seria testada pela Inquisidora Sinnett, e se vocêsachavam que Wendy era irritante quando começava a fazer perguntas demais,era porque não conheciam Kristell.“O que estava no lugar do Mortimer?” Ela perguntou séria, enquanto Wendysentia-se invadida pelo olhar inquebrável da amiga.“Se eu disser, você promete que não vai dizer pra ninguém?”“Lógico.” Ela respondeu.Wendy respirou fundo enquanto ponderava se deveria responder ou não:embora Caleb dissesse que não gostaria de espalhar o que aconteceu lá deimediato, não havia em momento algum proibido Wendy de dizer quemestava lá...“Era Louhi.”A seriedade de Kristell tornou-se assombro com a velocidade de milhovirando pipoca.“Você quer dizer... A Louhi? A Louhi das lendas?”“Essa mesma.” Wendy disse, lembrando que Caleb havia mencionado algosobre lendas a respeito de Louhi.“Ninguém ouve dela faz mais de meio milênio, coisa boa isso não é.”“... meio milênio? Quanto tempo demônios vivem?” Wendy quis saber.“Mais que dobro que pessoas normais, mas Louhi não é um demônio.Wendy, vocês têm certeza que era Louhi? Tipo, A Louhi, e não umdemoniozinho que quis usar o nome dela e pra parecer mais perigoso?”“Kris, o que aconteceu lá, Caleb disse que só a verdadeira Louhi poderia terfeito, e ele quer falar com o Kahsmin antes de deixar a história do queaconteceu se espalhar, ele acredita que a cidade pode não reagir muito bem sedescobrir que algo como a ela está por aí.” Wendy contou por fim.“E ele tá certo.” Kristell disse, para surpresa de Wendy, “bem, eu acho quevou ter que esperar para saber, agora, vem comigo!” Kris disse puxando a

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amiga pelo pulso.Wendy esperava que elas fossem entrar na casa do Edgar... mas passaramreto, e seguiram por mais uma porção de ruas desertas, o que Wendy nãoconseguiu deixar de estranhar.Quase todos os dias, desde que chegara, ela havia caminhado pelas ruas dacidade, e nunca chegou a ver mais de duas ruas desertas de uma só vez:sempre havia crianças brincando, mestiços praticando, fazendo apostas,conversando sobre a nova descoberta do admiradores de estrelas, atédiscutindo quem era a mestiça mais bonita de Tuonela (Wendy sempre ouviaKristell ser mencionada, e Rose Sebert).Mas hoje não havia nada: não havia mãe espiando pelas janelas, pois nãohavia filhos nas ruas, não havia discussões pois não havia quem asverbalizasse, e não havia cheiro de comida porque não havia quem acozinhasse.A propósito... como eles cozinhavam aqui? Será que era uma boa ideia fazerfogo dentro de um buraco? Mesmo um buraco gigante com uma cidadeinteira escondida dentro dele?Tuonela poderia ser uma enorme bomba de gás só esperando um Fawkes davida destruir tudo.“Aqui.” Kristell disse, cortando a linha de pensamento da Wendy.Ela demorou um pouco para se situar, não havia ido praquela parte da cidademais de uma vez, duas no máximo, mas só lembrava a primeira: aquele era olugar onde vira Kristell dançando pela primeira vez, junto com Victoria... oucontra Victoria, dependendo do ponto de vista.“Por que a gente tá aqui?” Wendy perguntou.“Eu quero mostrar uma coisa e te dar uma oportunidade.”“Aqui?”“É! Por isso eu fui ver você cedo, queria te trazer aqui antes que alguémviesse.”“A cidade tá deserta! Quem viria aqui?”“Nunca se sabe, lembra daquela vez na taverna?”Era um pouco difícil de esquecer.“Enfim, espere aqui, conte até trinta e depois entre, não vale contar rápido.”Kristell adicionou, fazendo uma cara do tipo “eu sei o que você tá pensando,eu conheço suas intenções”, e depois voltou ao sorriso habitual.“Tá bom.”“ÓTIMO!” Kristell deu um gritinho e entrou na espécie de ginásio, ou seja lá

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que nome eles dão pra esses lugares espaçosos que as pessoas entram paradançar.“Um, dois, três, quatro... que sono.” Wendy disse com um bocejo longo eprazeroso, daqueles que a gente dá logo depois de acordar de uma soneca ouler a palavra “bocejo” em um livro.Ela tinha intenção de continuar contando, realmente tinha, mas depois do seisficou muito difícil manter o foco: seu braço ainda doía, embora não parecessemais que estava quebrado (obrigada, Paloma), e sua cabeça continuavaenfaixada numa tentativa cada vez menos produtiva de manter seu sangue dolado de dentro do crânio.Havia um detalhe que havia discutido com Caleb na noite anterior, um queela tinha total permissão de dividir com Kristell, embora não soubesse como,principalmente agora que a lua cheia estava tão próxima.A promessa que havia feito para Kristell logo depois de recuperar suamemória também não iria facilitar em nada, mas, depois de tudo queaconteceu, Wendy estava certa de que a conclusão do que foi discutido namadrugada seria para seu próprio bem.“NÃO É PRA CONTAR IGUAL UMA LESMA TAMBÉM!” Kristell gritoulá de dentro.“Foi mal! Eu me distraí!” Wendy respondeu, sorte que ela nunca quis sermédica, como a irmã Natalie dizia que ela deveria ser. Imagina quedesagradável ia ser se ela tivesse que fazer uma cirurgia e começasse a pensarna morte da bezerra enquanto cortava artérias por acidente. Muitoantiprofissional.Quando Wendy entrou, não havia luz.“... Kris?” Ela murmurou.Um canhão de luz acendeu-se, daqueles que iluminam uma única pessoa nopalco, só que este canhão em especial estava iluminando um espaço vazio...até Kristell pigarrear alto e o canhão de luz começar a cambalear por todo oespaço de dança até achar a garota loira de cabelos não cumpridos.Kris estava sentada, abraçando os joelhos, olhos fechados.“PALMAS!” Ela gritou.Ao mesmo tempo, uma batida começou em algum lugar: era MUITO maisrápido que qualquer coisa que a irmã Natalie já pedira para suas alunasdançarem, parecia que o lugar todo estava infestado de gente batendo palmasno mesmo ritmo, embora Wendy não pudesse ver nada.Logo, vieram as vozes, de forma gradual, como qualquer coral que aspira ser

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divertido deve fazer: primeiro entraram as vozes graves, fazendo um baixocontínuo simples, contagioso e dançante.Ao mesmo tempo, Kristell começou a mexer os ombros e braços no ritmo decada nota cantada, com uma flexibilidade que Wendy simplesmente nãoacreditava ser humana.E claro, não era.Mais vozes entraram, mais agudas que os baixos, não agudas o bastante paraserem tenores, e também haviam mulheres agora, modulando a melodia dobaixo, fazendo a coisa toda parecer ainda mais viva e cheia.Ao mesmo tempo, Kristell estava de pé e, como Wendy havia dito naprimeira vez que viu a amiga dançar, estava mitando, e ainda nem tinhacomeçado a usar as pernas, ou aberto os olhos.Por fim, todas as vozes entraram, agudas, graves, meio termos, estava tudoali, cheio e mais que vivo, vibrante de euforia, assim como a luz, que brilhoucomo o sol sobre todo o espaço de dança.A luz refletiu nos olhos de demônio de Kristell, que havia se transformadoem meio a seus passos: satisfação bailava em seu sorriso, assombro ereverência em seus movimentos.Wendy sabia que o motivo de todo o lugar ter se iluminado de repente era ofato de que seria impossível para quem quer que estivesse controlando ocanhão de luz acompanhar os movimentos de Kristell Sinnett.As palmas e as vozes mantinham o mesmo ritmo aceleradíssimo enquantoKris parecia voar de um lado para o outro, vez por outro mexendo o corpo emsincronia perfeita com as palmas, parecendo ser uma só com a música, umasó com a dança.Antes que percebesse, Wendy estava de boca aberta, e nada seria capaz defechá-la.Kristell fazia tudo com uma facilidade assustadora: era rápida como o som dorelâmpago viajando pelo espaço, violenta como as facas de Autumn viajandopelo espaço, e explosiva como Fawkes viajando pelo es... espera, isso não tácerto...De repente, Wendy sabia que estava prestes a acabar: ela estivera no Coraldas Garotas do Orfanato das Neves (a criatividade era forte nesse nome) parareconhecer a construção de uma cadência.Kristell se adequou a isso, estava se preparando para uma acrobacia final,algo que Wendy podia sentir que ia ser tão grandioso que faria tudo quefizera até agora parecer uma brincadeira de criança.

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As palmas continuavam, as vozes construíam as últimas notas de suamelodia, e Kristell corria no ritmo, dando saltinhos cada vez maiores, maisespaçados, sempre caindo no ritmo.Até chegar a hora.As palmas haviam parado para efeito de suspense, as vozes suspendiam anota final.E Kristell dava piruetas pelo ar, com a graça e– Não...“AHHHH!” Foi muito rápido para Wendy ter alguma reação.Em pleno ar, Kris cometeu um erro, como se ela tivesse tropeçado no ar.Ela voou e se espatifou no chão, chegando a quicar duas vezes e rolar unsbons três segundos antes de parar quase que no final da extremidade da pista.“KRIS!” Não foi só a voz de Wendy.Agora que o lugar estava totalmente iluminado, Wendy os via:REALMENTE havia um coral de gente ali. A maioria estava com a tezvermelha, bufando e, Wendy reparou, com as mãos ardendo.Todos eles correram na direção da Kristell, mas Wendy chegou primeiro.“Kris! Você tá bem?” Ela perguntou assustada, embora não devesse estar:tinha visto Kristell ser arremessada contra um relógio à mais de vinte metrosde altura, cair e sobreviver.Antes que a aglomeração se formasse, Kristell tentou ficar em pé.Parecia estar bem, mas quem a olhasse no rosto e a conhecesse tão bemquanto Wendy conhecia acabaria por ficar com uma dor sem tamanho nopeito.Kristell vestia uma expressão facial que Wendy só a havia visto vestir duasvezes na vida, sendo esta a segunda: era o rosto da decepção, uma expressãoapertada como uma roupa velha demais para ser usada, tão apertada quechegava a doer.Uma dor muito mais inocente que a de ver um inocente ser transpassado poruma espada na garganta, mas ainda assim, era dor.“Eu não esperava cair.” Kristell soltou a voz, embora continuasse com o rostocontraído, “eu pratiquei tanto,” ela continuou, notando agora a multidão aoseu redor, “vocês foram incríveis pessoal, foi... perfeito.” Ela emendou comoquem lamenta não poder dizer o mesmo de si mesma.Eles formaram um círculo, impedindo que Kristell saísse dali, o que elaobviamente queria fazer.“Wendy, eu sei que você precisa começar a aprender uma arte, Kahsmincomentou comigo que Autumn quer que você escolha rápido alguma coisa,

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eu fiz isso pra tentar te convencer a dançar comigo, mas acho que não deucerto, né?”“Kris, foi a coisa mais espetacular que eu já vi na minha vida! E vocêstambém, gente!” Ela acrescentou num gesto que abrangia todo mundo aoredor delas, “eu amei como vocês fizeram essa música, foi ótimo!” Elesresponderam com sorrisos e obrigados, “mas, tem uma guerra prestes aacontecer, vocês não deviam estar... se preparando?”“Nós estamos.” Kristell disse, ela ainda vestia sua decepção, mas agora eracomo se houvesse uma pequena camada de maquiagem, aplicada bem obastante para se parecer com uma expressão de simples preocupação, “seTuonela vai entrar em guerra com os D’arlit, esses dias que temos pela frentepodem ser nossas últimas chances de fazer tudo que a gente queria ter feitoantes, eu só queria ter conseguido fazer o Giro Mortal Quadruplo Invertido.”Ela acrescentou com voz amena.Wendy supôs que aquele era o nome da manobra que deu errado.Kristell dizer que a iminência da guerra era um motivo para fazer tudo quequeríamos ter feito antes explicava porque tantos casais haviam se formadoem Tuonela depois que a Harbinger declarou guerra, engraçado pensar queum deles já havia se desfeito.Aliás, por onde andava Fawkes?E também...“Como vocês fizeram um canhão de luz sem eletricidade?”Kristell olhou pra cima e apontou para um ponto onde todo o telhado se abria,permitindo a luz do sol entrar, então começou a falar com uma voz vaga echateada: “Mano Pamonha fez um com espelhos, refletindo o sol e–”O estrondo de um rugido cortou a voz dela.Um rugido longo, demorado, diferente de qualquer coisa que já tinha ouvido:não era um leão, nem uma Serpa, na verdade, ela duvidava que sequer viessede uma única criatura.O rugido se repetiu, dessa vez mais alto, foi como se o começo de umterremoto ameaçasse desmoronar a cidade subterrânea, embora tivessedurado apenas alguns segundos.Foi no terceiro e mais alto dos rugidos que um dos garotos do coral disse.“É o Kahsmin!”“O quê?”Antes que ele respondesse, toda a multidão que estava ali se pôs a correr parafora do ginásio. Wendy, ainda confusa, foi agarrada por Kristell, que a

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arrastou pelas ruas desertas da cidade.“São as pessoas da cidade, eles devem estar gritando MUITO alto pra genteconseguir ouvir eles daqui. Kahsmin deve estar anunciando algo importante!”Ela disse, sem parar de correr.Kris não desacelerou nem por um segundo, sua determinação finalmente foracapaz de esconder seu desalento. Wendy não conseguia parar de pensar noquanto ter feito aquela última acrobacia enquanto dançava deveria ter sidoimportante para ela.

Kris passou por onde deveria estar uma parede de areia separandoTuonela da escadaria (os garotos do coral deviam ter aberto a parede e elaainda não deve ter tido tempo de se fechar) e começou a torturar Wendy,fazendo-a subir aquela escada interminável com pernas machucadas que axingavam a cada passo que ela dava.

Quando finalmente emergiram na catedral, o sol estava alpino,incapaz de iluminar os vitrais da catedral do ponto mais alto do céu, enquantoo altar de pedra continuava frio como o café da manhã de Wendy quando elachegava depois das oito na mesa de café no orfanato.“Eles estão todos ali.” Kristell apontou.As portas da catedral estavam escancaradas, revelando uma multidão dezvezes maior do que aquela que se reunira para dar as “boas vindas” aosD’arlit, todos eles gritavam na mais bizarra exaltação que Wendy poderiaesperar, vozes tão altas que encobriam com facilidade o quebrar das ondas eas lufadas de vento que assolavam a cidade naquele dia.Não demorou muito para Kristell e Wendy se misturarem com a multidão everem para onde todos eles estavam olhando: Kahsmin estava numa espéciemelhorada de sacada na catedral, apenas quinze metros acima de todos.“O que tá acontecendo?” Kristell perguntou para um rapaz de cabelosmarrons e rosto comprido como uma caricatura de mau-gosto.“NÃO HAVERÁ GUERRA!” Ele gritou de volta, “Kahsmin acabou de fazero anúncio!”Wendy não soube o que sentir: no primeiro instante, ela quis berrar de alegriae jogar alguma coisa frágil no chão e rir de alegria enquanto via aquilo sedespedaçando, mas algo simplesmente não parecia certo, e esse algo impediuqualquer alegria de emergir.Kristell parecia compartilhar esse sentimento.“Kahsmin tá tentando pedir silêncio.” Ela apontou na direção dele, querealmente fazia sinal com os braços e tentava em vão fazer sua voz se

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sobressair à vastidão da plateia “eu devia subir lá e ajudar ele com–”Antes que ela terminasse o que ia dizer, uma voz feminina longe de serhumana fez-se ouvir: um grito meio gutural, meio rasgado, como o dosdemônios que Wendy vira nos filmes de Halloween no Orfanato das Neves.

Tuonela se calou de supetão.Wendy olhou para a figura pálida e trêmula de Kahsmin, que tinha um olhardo tipo “eu vi coisas que jamais deveriam ser vistas”, ao lado dele, Autumnestava parada, girando a cabeça para a multidão que ela não podia ver.“Melhor.” Sua voz mordaz fez-se ouvir, “continue, Kahsmin.” Elaacrescentou, enquanto voltava para as sombras ou qualquer outro lugar deonde ela pudesse assistir sem fazer contato com a luz amena do sol.Kahsmin, assim como Tuonela inteira, levou alguns segundos para serecuperar do choque induzido por Autumn, mas quando finalmente o fez,pôs-se a falar o melhor que pode: “Como eu disse, os D’arlit não enviarão umexército para Tuonela.” Sua voz era polida e desprovida do senso de humorusual, “enviarão apenas a Harbinger da Morte, e ela pretende repetir a históriade Jussarö em Tuonela!”Houveram pessoas ofegando, suspiros exasperadas, lamentos e um velholouco gritando “ESTAMOS MORTOS! MORTOS! O FIM ESTÁPRÓXIMO!

Alguém calou ele com um safanão.“Nossas fontes indicam que ela virá ao final do mês.” Kahsmin continuou,“agora, meu povo, o tempo de se esconder está morto! Não é hora paradesespero, nós podemos não saber como a Harbinger foi capaz de devastarJussarö, mas–”“Eu sei.” A voz afiada de Autumn interpôs.Todos os olhares se dirigiram para ela, que havia ressurgido, apenas paracontrariar Kahsmin.“Sabe?” Wendy não ouviu a voz dele, mas pela cara e pelo movimento doslábios que ele fez, ele só poderia ter dito isso.Autumn sumiu nas sombras, reaparecendo momentos depois com um par decrianças.“Tuonela!” Ela disse, e o nome da cidade parecia um insulto em sua voz,“estes são James e Jane, os únicos sobreviventes do incidente de Jussarö, elesviram tudo que aconteceu na cidade e nos contarão agora.” Ela disse, e entãose virou para os dois e sibilou algo que Wendy teve certeza ser a palavra“comecem.”

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Não era fácil ver o rosto das crianças naquela altura, mas Wendy teve asensação de que elas haviam passado por coisas horríveis nos últimos dias,devido ao olhar vidrado que ambas tinham, então lembrou-se que elespassaram a maior parte do tempo no reino das sombras de Autumn desde quevoltaram.“Eu disse ‘comecem’.” Autumn ameaçou alto o bastante para a cidade poderouvir.A menina, Jane, foi a que deu um passo a frente para falar: “Bem, era semanade Nicolau, nosso irmão Halloway mandou a gente entrar pra dormirenquanto eles iam preparar a cidade e encher ela de brincadeiras e diversão,eu queria ver eles fazerem um labirinto e–”“Direto ao ponto, Jane.” Autumn disse com uma autoridade tamanha que feza garotinha mirrada engolir seco e começar a falar tão rápido que era difícilentender.“A gente queria ver eles montando as coisas, mas eles só ficaram olhando, aí,do nada surgiu uma mulher e dois caras que começaram a falar um monte deameaças pro Halloway e os outros, mandaram eles se renderem enquantotinham chance se quisessem ser poupados” pausa pra respirar, “Halloway riue foi o primeiro a atacar, todo mundo da cidade foi atrás, mas nenhum delesreparou o que tava acontecendo! Tinha uma nuvem púrpura azulada, escura e,tão densa que parecia sorvete, cobrindo a cidade toda,” pausa pra respirar,“quando eles chegaram muito perto da mulher, ela sorriu e a nuvem violetacomeçou a explodir sobre toda a cidade.O primeiro raio caiu bem em cima do Halloway e os outros, depois, mais emais raios começaram a despencar pela cidade.” Sua voz morreu e não fezsinal de que voltaria.“NÓS VAMOS MORRER! É O FIM!” O mesmo velho repetiu no meio damultidão “Cala a boca!” Sibilou uma garotinha em algum lugar.“Nós sabemos o que foi feito.” Autumn contrapôs-se aos primeiros sinais debalburdio, “A Harbinger usou todo o poder que tinha acumulado em umúnico ataque, um que deve tê-la exaurida até beirar a morte, isso explicaporque ela não estava usando nem um décimo de sua força quando nós duaslutamos, ela estava cansada demais para lutar comigo usando força total.” Aúltima parte foi mais como se falasse consigo mesma e não com Tuonela,“para sorte dela, eu também estava.”A quietude seguiu suas palavras, foi preciso que o quebrar das ondas e o piarde um pássaro preto de asas azuis se fizessem ouvir para ficar claro que ela

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não diria mais nada, foi quando Kahsmin voltou a falar.“Eu, Autumn e Caleb estaremos nos reunindo para discutir qual o melhorcurso de ação a ser tomado, caso alguém tenha alguma sugestão–”“FUGIR PARA AS COLINAS!” Gritou o mesmo velho em algum lugar namultidão.“... alguma sugestão além dessa, ou mesmo uma ideia de como funcionam ospoderes da Harbinger da Morte e como neutralizá-los, dirijam-se até meuquarto no alto da catedral nas próximas semanas, eu ouvirei todos.Há mais dois avisos importantes a serem feitos: o primeiro é que foiconfirmada a presença de míriades em Virrat, portanto, peço que evitem acidade até termos certeza de que elas não são mais uma ameaça.”Wendy, pela primeira vez, se pegou imaginando o porquê de chamavam essacriatura de Míriade. Até onde sabia, isso queria dizer “dez mil” em grego, quetipo de mal elas faziam? Ensinar matemática?Foi quando se deu conta de que estava pensando em miríades, não míriades.“O segundo,” continuou Kahsmin, “é que o baile de aniversário da cidade iráacontecer na data de sempre, seis de janeiro, com o nome de Gala Mascarada,sugerido por nossa adorável Kristell Sinnett!” Ele disse, batendo palmassolitárias que foram acompanhadas lentas e sem entusiasmo por uma minoriada cidade, “e eu gostaria de acrescentar algo, povo de Tuonela: este ano, obaile de aniversário não celebrará apenas mais um ano de sobrevivência damelhor cidade que já existiu em todo o continente!”Kahsmin fez uma pausa de efeito, que foi o suficiente para Wendy perceberque toda a atenção da cidade ainda encontrava abrigo nas expectantespalavras dele.“A Gala Mascarada será também a última festa em Tuonela.” Ele disse,esperando por olhares confusos e ocasionais arfadas horrorizadas.Kahsmin deixou os sussurros correrem soltos, sussurros que comentavam “éa última porque depois não haverá mais Tuonela!”, “Como ele pode sequerestar pensando numa festa?” (Essa era Wendy sussurrando) e “isso é que éconfiar na cidade, já tá se dando por derrotado antes da própria luta”“Será a última festa em Tuonela.” Kahsmin ecoou alto o bastante para todosse calarem, “a última festa em Tuonela antes da queda da Harbinger daMorte. Por hora, é só.” Acrescentou e saiu com ar triunfal da sacada, semesperar pela reação do povo de Tuonela.E a reação veio em forma de palmas, berros, e mais gritos de viva, tão fortesquanto os que Wendy havia ouvido no subterrâneo de Tuonela.

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“O que vocês dois acham?” A voz de final de adolescência de Fawkesperguntou.“O povo tá feliz.” Capitão mencionou.“O Grande Magnânimo também.” Terror completou.Fawkes, Capitão e Terror estavam sentados no telhado de uma casa maisafastada, onde eles podiam ver e ouvir com perfeição tudo que Kahsmindizia.Exceto quando Capitão e Terror começavam a pedir pro Fawkes incendiar acasa, aí não dava pra ouvir nada.“Isso parece... tão errado.” Ele comentou, olhando para a multidão cada vezmais dispersa de pessoas: a maioria delas fazia uma fila para entrar nacatedral e voltar à cidade subterrânea pela escadaria, mas uma boa parteparecia interessada em um pouco de ar fresco. Eram pessoas mais velhas, quequeriam andar em volta de suas antigas casas, crianças que queriam correr nosol, pessoas que simplesmente estavam sem vontade de esperar na filagigante da cidade e alguns que entravam nas casas abandonadas da cidade edesapareciam por lá.O que seria suspeito, se Fawkes não soubesse que algumas poucas casas aliem Tuonela tinham escadarias secretas que levariam diretamente para umacasa equivalente na versão subterrânea da cidade.“Fiquem de olho, se tem um espião em Tuonela, ele está por aqui.” Fawkesdisse, Capitão e Terror bateram continência e pularam do telhado da casa,como mergulhadores fazendo a terra de água.Fawkes percorreu seus olhos por todas as partes, pensando que agora seriauma ótima hora para tirar seu agasalho preto, já que o sol do meio dia podeser bem desagradável, mesmo no inverno.Havia três crianças brincando ali perto, uma delas urrando que tinha a força eas armas de Kullervo, enquanto uma outra dizia que ia matá-lo com o poderdo Sampo, a terceira estava só ali, parada, vestindo um capuz.Fawkes queria ter encontrado o arsenal perdido de Kullervo... ouvira quealgumas das armas dele não derretiam nem se você as jogasse num vulcão, oque significava que ele poderia ter uma espada e fazê-la pegar fogo.Ele seria o primeiro em Tuonela a ter uma espada de fogo, desde os temposantigos.O povo já estava bem disperso: além das crianças ali perto, Fawkes viu um

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casal seguido por uma garotinha castanha, discutindo para onde elesdeveriam ir para evitar outro encontro com os D’arlit.Havia Winslow, gritando meio bêbado para uma mulher baixinha sobre comoseria incrível ver Autumn e Caleb lutando contra a Harbinger no meio de ummaremoto, com belugas alvas pulando entre os dois e uma água viva gigantevoadora... pelo menos era isso que parecia. Era difícil interpretar Winslowquando ele trocava o frango de borracha por uma garrafa de whisky.Mas nada do que Fawkes realmente queria ver estava ali: nada suspeito, nadafora do normal, nada que confirmasse a estranha sensação tilintante atrás desua nuca que gritava na sua cabeça.“O que eu tô perdendo aqui?” Ele sussurrou.“O importante.” Uma voz de mulher respondeu.Num susto, Fawkes se virou no telhado da casa, esperando encontrar Autumnemergindo das sombras, mas não havia nada além da vista da parte maisdeserta da cidade, as casas mais decrépitas, a encosta da montanha, o farolmarcando onde a periferia acabava e...Aquele não era Caleb se afastando do farol... era muito pequeno para ser ele.Fawkes considerou pular de telhado em telhado até chegar no farol, mas issoseria o oposto de ser discreto.Ele desceu o telhado com certa facilidade e pôs-se a correr, passando porWinslow, que agora falava sozinho, já que a mulher tinha ido embora...Fawkes não a culpava por isso.Ele não conhecia tão bem os caminhos na cidade da superfície, acaboudemorando um pouco mais que havia esperado, tendo constantemente asensação de que alguém o vigiava em algum ponto da cidade que ele nãopodia ver.Odiava a sensação.Quando chegou perto o bastante para ver o farol fazendo frente ao mar, eledeteve-se: não havia ninguém na porta, só a maresia, alguns pássaros e...Fawkes tremeu ao sentir algo gélido tocar sua nuca, algo frio como um dedomorto.“Oi, Haydn.” Ela disse alegre.“Meu nome é–”“Haydn Blakewood, eu sei, eu estou na sua mente.”“Quem é você?” Fawkes perguntou, sem se virar.De repente, a garotinha encapuzada que ele vira brincando com as outrasduas surgiu na sua frente, então veio a menininha castanha que seguia os pais

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que discutiam o que fariam para fugir da cidade e, por fim, a mulher comquem Winslow conversara mais cedo também estava ali.

Como ele não reparou que as três eram a mesma pessoa antes?“Eu sou a ordem natural do mundo.” Elas disseram ao mesmo tempo, numavoz que misturava pitadas de alegria e loucura, “eu sou Ally, a Princesa doCaos, e estou aqui para te dar um aviso.”Um beijo em sua testa.

Fawkes não viu muita coisa depois disso.

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Capítulo 38

A lua tomou posse da noite que lhe pertencia por direito, orgulhosa como osol, iluminando a crista das ondas negras do mar de Tuonela, deixando seureflexo acanhar-se no olhar de amantes apaixonados, poetas encantados eestudantes inspirados. A mesma lua que, apenas algumas semanas atrás,encolhia-se tímida atrás das sombras, fazendo do céu um tapete de estrelasque sempre apreciavam suas raras chances de brilhar.Talvez faltassem apenas três ou quatro dias para que ficasse totalmente cheia,mas sua imponência já era o bastante para tomar conta da noite, roubandotoda a atenção para seu tamanho assombroso no começo da noite: tão pertoque os águas se agitavam na sua presença, mesmo sem haver ventos.A lua refletia prateada nos olhos de Caleb Rosengard, que deveria ser a únicapessoa em toda Tuonela capaz de vê-la e não a apreciar como ela merecia.Era apenas uma esfera flutuante no horizonte, ele já a vira milhares de vezes,em milhares de tamanhos e formas diferentes, não havia nada de belo nisso.Na verdade, Caleb a via apenas como uma inútil, duas caras e traidora.Se, na noite anterior ao ataque dos D’arlit, a lua tivesse usado de sua boavontade e se exibido como fazia agora, iluminando o céu como um canhão deluz prateada, Caleb estar ausente no farol não teria afetado a viagem de suamãe, que teria chego sã e salva em Tuonela, com o exército.Eles teriam tido uma chance.Agora, eles só tinham uma cidade em ruínas, um mar de luto, e uma esfera deluz traiçoeira que brilhava sarcástica no céu.Claro que estava sendo injusto, mas como pode um homem que sofreuinjustiças durante a maior parte de sua vida ser alguma coisa além de injusto?Sua mãe teria uma boa resposta para isso, algo sobre amor e compaixão, masela não estava aqui agora para amá-lo e compadecer-se. E seu pai eraocupado demais para vê-lo, não que Caleb pudesse culpá-lo, ou sequerinvejá-lo: o homem deveria ser o único a sofrer tantas injustiças em vidaquanto ele próprio, talvez até mais.No entanto, a ideia de que alguém além dele pudesse sofrer tanto nãoamenizava a raiva latente que sentia da cidade de Tuonela... e todos os idiotashipócritas que viviam nela.Mas mesmo seu ódio, mesmo dezoito anos de maltrato, não justificavam o

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que iria acontecer com a cidade caso ele não agisse. Afinal, havia pessoasboas escondidas no lixo de Tuonela: havia Kahsmin, havia os Goldenear,Kristell e a trupe, o dono da Taverna do Fim dos Tempos, apesar de os filhosdele serem responsáveis pela tradição de tacar pedras na casa dele... e haviaWendy.Com quem ele também estava sendo injusto... e sabia disso.Caleb desviou o olhar da lua para a carta em sua mão, sentindo uma sensaçãoque astro celeste algum poderia causar em seu ser.Ao contrário da lua, aquela carta, que havia sido colocada na sua portadurante o discurso de Kahsmin, poderia mudar o destino de Tuonela, e o seupróprio, se ele agisse da forma correta.“Boa noite.” A voz de Anuk fez-se ouvir na cabeça de Caleb.“Boa noite, Anuk.” Caleb respondeu enquanto o lobo entrava no cômodo esentava-se próximo à janela onde Caleb estava, olhando para algum lugarentre Caleb e a lua.“Encontrei o velho sábio.” Anuk disse com sua voz ríspida.Caleb levantou as sobrancelhas ao receber a notícia.“Ele está aqui?” Perguntou, fitando o lobo.“Em Virrat, ele quer se preparar, alguma coisa o perturba.”“E você não quis arrastá-lo para cá?”“Ele virá, e eu tinha outros assuntos para tratar.”“Quando ele vem?”“Ele me assegurou que tentará vir antes do aniversário de Tuonela.”A primeira brisa da noite perpassou os dois, quieta e sorrateira, como umaladra gentil que apenas gostaria de surrupiar a pequena tensão que havia emCaleb, mas em vão.“Você contou para Wendy sobre o que aconteceu dezoito anos atrás?”“Contei.” Caleb disse, parou um momento para observar as ondas do mar eentão voltou a falar, “ela disse que confiava em mim com a vida dela...ninguém além de Kahsmin me disse coisa parecida. Ela merecia saber.” Dissepor fim, relembrando as palavras dela com um misto agridoce de sentimentosno peito.Ele agradeceu pelo momento de silêncio de Anuk, sabia que o lobo fazia issopara deixá-lo aproveitar o gosto da sensação de ter a confiança de alguémnuma cidade onde a maioria das pessoas provavelmente confiariam mais emum D’arlit que nele.“Você contou toda a história, Caleb?” Anuk perguntou enquanto limpava o

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rosto com uma pata.“O que quer dizer com–”“Quero dizer: você contou TODA a história, Caleb?” Anuk repetiu.Às vezes, Caleb se surpreendia com o quão bem o lobo o conhecia. A culpa,da qual vinha fugindo desde que acordara, voltou a apossar-se dele quandorespondeu: “Wendy não sabe qual foi o acordo que fiz com Gambler,ninguém além de você sabe.”Havia ondas quebrando, mergulhões cantando, ventos compartilhandosegredos com as águas do mar, que pareciam rir aos poucos com as palavrasinacreditáveis que os ventos suspiravam.Caleb não pode evitar a pergunta: será que a lua sentiria inveja? Inveja detodos aqueles que ela ilumina na calada da noite, conversando juntos comseus iguais? Inveja do céu e mar que podiam se tocar e tagarelar entre si,enquanto ela era forçada a assistir de longe, pois se chegasse perto demais,algo ruim poderia acontecer.Como ele próprio assistia Tuonela, de longe, pois de perto...

Algo ruim poderia acontecer.Aquela foi a primeira vez em muito tempo em que Caleb simpatizou com alua.“Você deveria contar.” Anuk disse, estava estirado em um pequeno sofá aliperto.“Eu sei.” Confessou Caleb, “mas... vai ser difícil.”“O certo e o fácil raramente andam de mãos dadas.” Anuk comentou.“Anuk, eu a–” suas palavras morreram, Anuk sabia o que ele ia dizer, e Calebsabia qual seria a resposta, por isso deteve-se, tinha muito que aprender como céu noturno.Uma nuvem solitária passou perto da lua, dando-lhe o estranho aspecto deuma bola de cristal cercada de fumaça e ventania: Caleb gostaria de poder verseu futuro nela, como ele deveria agir, como contar para Wendy.Mas, apesar das aparências, a lua continuava sendo apenas a lua.“O velho sábio sabe sobre o gigante de Louhi.”“Kahsmin está decidindo se deveremos ou não alertar a cidade a respeito deLouhi, nós temos alguns problemas pendentes um pouco mais urgentesagora.” Caleb comentou.“Louhi é uma criatura tão antiga quanto as lendas do Sampo, Louhi foiaquela que devastou o mundo nos tempos antigos com os três gigantes e, senada for feito, Louhi vai ser o fim de tudo, D’arlit, Tuonela, anjos, demônios,

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tudo.”“Louhi vai precisar de muito para reerguer-se, a Harbinger chegará aquiprimeiro.”Era verdade e, aparentemente, Anuk sabia, pois não tocou mais no assunto.Com tantos assuntos no meio de tantas luas, havia apenas um que Calebrealmente gostaria e não gostaria de falar sobre: a carta.

Por um lado, ele sabia que o lobo saberia o que fazer em relação aoenvelope, todos os pontos que ele dissecaria, e sabia que seu conselho seria omelhor e mais inteligente que iria receber.Caleb também sabia que, uma parte dele, não estava disposta a seguir “omelhor conselho que iria receber”.Mas esta era a mesma parte dele que o fez aceitar o acordo com Gambleranos atrás, a mesma parte que o convenceu a gritar e ofender Helena quandoela menos merecia.Ou seja, sua parte estúpida que, ao menos uma vez, ele deveria aprender aignorar.“Anuk?” Caleb chamou, “algo aconteceu hoje.” Ele continuou, respirandofundo como o mar, “eu recebi isso.”Caleb virou-se para mostrar o envelope, só para descobrir que o lobo haviasaído, provavelmente já havia algum tempo.“... é assim que a Sarah se sente quando eu faço isso.” Ele comentou.Voltou a fitar a lua, com menos desinteresse dessa vez, ao mesmo tempo que,sem desviar o olhar, suas mãos abriram automaticamente o envelope, tirandoo papel de dentro com uma delicadeza que não se espera vinda do homemque se apresenta como “a Morte em Pessoa”.Havia lido tanto que praticamente decorara o que os primeiros parágrafosdiziam.Seu peito ficava frio quando pensava na chance que aquela carta estavaoferecendo para ele: a chance que ele precisava para se redimir com todosaqueles que haviam perdido alguém durante a invasão dos D’arlit, e faria issona mesma noite do aniversário de Tuonela.Uma carta que decerto escondia muito mais que as palavras revelavam.Uma carta que terminava com as palavras:

Esta é minha melhor oferta, Caleb Rosengard.Aceite-a e reavaliaremos o nosso acordo.

- Gambler.

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Ele podia senti-la ali, julgando cada movimento que ele fazia,apontando a vergonha que ele era para toda a família: podia ouvir asconversas, os muxoxos ríspidos e palavras abafadas na sua presença.

Assim como ele podia senti-la ali: o peso das carrancas ao primeiro sinalde seu cabelo nos corredores da casa, o sufoco que era ser um engano... ohorror que era estar na presença de tantos deles de uma só vez.

Por que sua mãe tinha que ter ido, logo hoje?Em algum lugar, um gato miou alto, sua voz fazendo um eco violento

pela noite.Fawkes finalmente pareceu voltar a si, percebendo que o único olhar a

julgá-lo ao longe era o olhar da lua... mesmo assim, continuava sentindo osolhares das pessoas que faziam comentários sobre ele, sobre os pais dele,sobre a vida dele...“Minha cabeça.” ele murmurou levantando-se.Era muito raro um mestiço, mesmo um que não se transformava, como elepróprio, ter algum problema com a escuridão da noite: geralmente, mestiçossabem que a coisa mais assustadora que o escuro esconde são eles mesmos.Mas naquele momento, Fawkes se sentiu vulnerável... exposto... um alvofácil para todos que nunca foram a favor da vida dele continuar a existir.Pela primeira vez, ele notou que não estava mais perto do farol de Tuonela, esim na periferia da cidade.Só havia visitado aquela parte da cidade uma vez: quando chegara lá.Sabia que não havia nada para ele ali, eram só destroços, casas que Kahsmindisse que eles não tinham permissão para reconstruir ou limpar, acumulandosujeira e... corpos. Fawkes lembrou que havia visto um garotinho brancocomo cera, morto em sua cama, em algum lugar por ali.Será que ainda estava lá?Em ocasiões normais, Fawkes não se importaria, mas ele não era ele mesmoagora.Queria sair dali o mais rápido que suas pernas permitissem, por sorte acatedral e o farol eram altos o bastante para ele vê-los de longe, casocontrário, ele ficaria muito mais tempo perdido ali do que acreditava sercapaz de suportar.Ele tentou se agarrar às várias lufadas de ar que inspirava com desespero,sentindo que a lua observava com desgosto aos seus modos grosseiros.

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Então pôs-se a andar entre as sombras, mais rápido que faria normalmente.Não rápido o bastante para chamar atenção.Tentava se manter ocupado contando estrelas ou fazendo comentários vaziose sem importância sobre o estado das casas hediondas que seus olhosencontravam naquela noite funesta. Era o único jeito que conhecia paramanter todos as lembranças longe.Lembranças horrendas, entregues em sonho, Fawkes poderia muito bem terpassado o resto de sua vida sem nada naquilo voltando para atormentá-lo.Foi quando percebeu.“Era Ally.” Ele disse, sentindo seu corpo arrepiar-se com a menção do nome.Ele sempre havia pensado que Wendy exagerava quando mencionava ospesadelos que tinha com a garota ou o quão horríveis eram as coisas que elavia em seu sono.E de fato, quando eram apenas narradas, não parecia nada demais, apenas umoutro pesadelo qualquer.Mas era muito pior quando eram lembranças reais, sendo revividas.Era por isso que Fawkes não gostava de histórias, elas nunca passavam ohorror, as verdadeiras sensações que os personagens estavam sentindo, eramapenas palavras brandas que raramente tinham força para atingi-lo.Por isso preferia viver suas histórias.Embora pudesse muito bem ter passado sem essa última.Uma pequena visão: os D’arlit invadindo sua casa, sua mãe gritante por ele.“NÃO!” Ele gritou para fazer parar, vendo apenas vultos de pássaros voandode seus esconderijos quando reabriu os olhos.Ficou parado ali, respirando fundo como os sussurros dos afogados emTuonela.Se achava mais cedo que algo estava muito errado em Tuonela, agora tinhacerteza de que não havia como ficar mais errado: o que um demônio comoAlly estava fazendo aqui? Por que ela o atacou?O que ela estava fazendo tão perto do farol?De repente, algo ocorreu à Fawkes: Ally disse que tinha um aviso, mas elenão conseguia lembrar-se o que era, sequer estava certo de que ela havia ditoalguma coisa de verdade ou se era apenas sua imaginação.Mas ao olhar para o farol novamente, ele soube que era lá que havia algoerrado.Por que mais Ally estaria ali?Sem nenhum plano certo em mente, Fawkes pôs-se a correr na direção da

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Catedral.Tinha que falar com Autumn.

Seus olhos estavam fechados para que ela pudesse ver melhor: havia camposmagnéticos se estendendo até onde a visão alcançava, ela podia sentir aeletricidade emanando no ar, dando-lhe forças, dando-lhe vida, dando-lheuma alegria maníaca tão grande quanto a gigantesca nuvem púrpura quepairava opressiva sobre a cidade destruída.Os raios estavam sob seu comando, um deles atingindo com gosto as águasdo oceano, iluminando parcialmente seu rosto, sujo dos restos de vidas degente imunda que não merecia viver, seu sorriso era branco como os olhosrevirados dos corpos espalhados ao seu redor.Em algum ponto, ela gargalhou eufórica com o que tinha feito, ria-se com aideia dos poucos inúteis com apenas fímbrias de vida tentando rastejar paralonge, onde estariam salvos, sem perceberem como seus corpos banhavam aterra em sangue.Sem perceberem que não havia como sobreviver.Perante a Harbinger da Morte.Seus olhos se abriram, a parte escura da lua sorria para o seu sucesso.Estava de volta ao seu quarto, parada perante a imensa janela que dava para atorre do relógio e à lua quase cheia, desperta dos delírios de sua imaginação:um delírio mostrando uma mistura do que fizera em Jussarö com o que elapretendia fazer com Tuonela...Sentiu estática na sua mão esquerda quando a encostou no vidro.Fora despertada uma segunda vez... e dessa vez, quando se lembrou do terrorque espalhou por Jussarö, não sentiu vontade de rir, era algo mais parecidocom culpa, pelo menos o gosto era como o da culpa, como a que sentira aomatar por acidente as duas crianças em Tuonela.Dúvida, ela reconheceu, era dúvida que sentia... a mesma dúvida que aassolava quando não estava possessa pela raiva que alimentava seus ataquesmais devastadores.Ela odiava essa dúvida, esse resquício infantil da fracote fora um dia...“Cadê os guardas?” Ally perguntou.Gambler e Stefanova, que se empenhavam em uma partida de xadrez que já

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se estendera por mais de três horas, viraram a cabeça para a criançaimpertinente, parada à porta, enquanto a Harbinger abstinha-se de darqualquer sinal de importância.“Eu os dispensei.” Ela respondeu, observando sua mão estática na janela,“não podia arriscar perder mais guardas por causa de vocês.”Era a primeira vez, desde que Ally e Gambler praticamente passaram a vivercom ela, que sua voz refletia a imponência que se espera da princesa D’arlit,o que fez a Harbinger sentir-se satisfeita consigo mesmo.“Vocês tão apostando?” Ally perguntou, apontando a mesa de xadrezentusiasmada.“Estamos.” Gambler respondeu, mexendo um peão e escapando do xeque.“Estamos apostando muffins, querida.” Stefanova acrescentou, “nossosalfajores acabaram. Xeque.”“Como está a situação em Tuonela, Ally?” A Harbinger perguntou, ainda semolhar.“Cadê seus modos, bobinha?” Ally perguntou, infantil e ainda assimprovocativa, odiava como aquela pirralha praticamente implorava para queela arrancasse cada fio cor de cobre da cabeça dela e a forçasse a engolirtodos até sufocar.

Seria bom.“Por favor querida, conte-nos o que aconteceu.” Stefanova disse carinhosa,para o alívio da Harbinger, que dificilmente conseguiria manter essa farsa pormuito mais tempo.“Claro Stefa! Mas você podia ensinar alguns modos praquela ali antes.” Allyrespondeu.“Por favor, Ally.” A Harbinger disse entre os dentes, virando-se para encarara autoproclamada Princesa do Caos com um sorriso educado e uma mesuradiscreta, “o que aconteceu em Tuonela?”Stefanova fez um discretíssimo gesto de aprovação, enquanto Ally retribuiuos gestos de mesura e pôs-se a falar.“Parece que um passarinho contou pra eles que você vai atacar no final domês e sem exército.”“Muito bom.” Gambler murmurou, sem desviar o olhar das peças, “minhacarta?”“Entregue.” Ally disse, fazendo uma jogada para Gambler que deixouStefanova em um xeque muito complicado, para surpresa da velhaconselheira, que fez seu melhor olhar passivo para a situação nada boa em

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que fora colocada.“Fascinante.” Gambler disse, igualmente impressionado com a jogada deAlly, “você foi vista?”“Claro que fui!” Ela disse.Foi quando todos os olhos se desviaram na direção dela, os da Harbingerpraticamente dizendo “eu vou matar você”, os de Gambler “por quê?” E os deStefanova “Você joga bem, garota.”“Que foi?” Ally perguntou, pegando o pedaço de tripa que usava para pularcorda, o mesmo que Stefanova havia impedido a Harbinger de jogar fora,mesmo com crescente fedor que aquilo trazia.“Quem viu você e por quê?” Gambler perguntou, com todos os músculosdaquele rosto sórdido retesados em uma careta confusa.A Harbinger estava certa de que esta era a primeira vez que se sentiasatisfeita ao ver o rosto daquele homem, embora ela também estivesseconfusa, era fácil esquecer disso quando tinha uma vista tão boa comoGambler confuso, quase como uma pequena vingança.O que parecia injusto, agora que Gambler, junto com Stefanova, haviaarquitetado um dos planos mais geniais que a Harbinger já tivera o prazer defazer parte.“Você pediu pra eu colocar a tiazinha cega no jogo, né Gambito?” Ally dissealegre, se multiplicando enquanto pulava corda consigo mesma, os clonescantando musiquinhas obscenas enquanto a verdadeira fazia pequenasacrobacias.Gambler apenas fez que sim com a cabeça, seu rosto relaxando um pouco.“Um ruivo lá me viu, eu dei umas boas horas de pesadelos pra ele, quando eleacordar, ele vai pensar que eu tava armando alguma coisa com o albino e vaicorrer direto pra dona rosa lá. Ele já espionou pra ela antes pelo que vi namente dele.” Ela disse enquanto seus clones entonavam versos que, comcerteza, estavam doendo nos ouvidos de Stefanova.“Seus métodos nunca falham em me surpreender.”“Cala boca Gambito.” Ally disse alegre, “eu sei que você odeia surpresas.”Gambler odeia surpresas, a Harbinger não se esqueceria disso tão cedo.Ally se sentou na mesa enquanto Stefanova habilidosamente se livrou doxeque em que a pirralha a havia metido e, ao mesmo tempo, encerrou o jogo,encurralando o rei de Gambler de todos os lados.“Cartas?” Gambler sugeriu depois de apertar com gosto a mão de Stefanova.“Não posso, tô indo embora.” Ally disse, seus clones sumindo, deixando o

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intestino cair no chão num baque abafado, exatamente o som que se espera deum pedaço de carne crua ao fazer contato com o chão.“Não esperava que fosse nos deixar tão cedo.” Gambler disse, parando deembaralhar.“Eu sei.” Ally disse sorrindo, “há outros lugares precisando de caos, masrelaxem vocês dois,” ela disse com uma mão apontando para a Harbinger e aoutra para Gambler, “eu volto! E eu não perderia o ataque à Tuonela por nadadesse mundo! Tchau pessoas felizes! Tchau dona D’arlit.”Ally saiu da mesma maneira triunfal de sempre, pela janela, com toda sortede cambalhotas e piruetas que só uma criança que tem certeza de que não vaimorrer se arriscaria fazer.“Acho que, por ora, também devo deixá-las. Caleb não é o único que está emdébito comigo, todavia, eu voltarei para ver o desenrolar do jogo.” Gamblerdisse com sua voz pegajosa enquanto devorava um muffin de chocolate,“Ally deixou o papel com você, vossa majestade?”“Você nunca me chama assim.” A Harbinger respondeu séria.“Princesa D’arlit, eu sou um homem de poder, e todo homem de poder sabe ahora de brincar e a hora de ser sério, ambas existem e, quando você aprendermais, saberá diferenciar qual é qual quase tão bem quanto eu.” Gamblerrespondeu, com gestos mínimos das mãos e o sorriso malicioso de sempre.“É claro.” A Harbinger respondeu, “sim, Ally deixou o papel comigo.”“Sabe o que fazer com ele, certo?”A Harbinger assentiu.“Muito bem, minha cara.” Gambler disse, bem menos formal, “acho que lhedevo uma proposta.” Ele disse, oferecendo a mão a Harbinger apertar.Stefanova levantou os olhos para os dois no instante em que ouviu aquilo.“Que tipo de proposta?” A Harbinger perguntou, sem mover uma onzena demúsculo para tocar a mão de Gambler.“Está aprendendo.” Ele disse, mostrando os dentes sujos de muffin, “vocêsucede na sua missão em Tuonela, eu revelo o motivo exato pelas desavençasexistentes entre você e Allenwick D’arlit, e ainda conto como contornar oproblema. Apenas uma prova de minha gratidão por sua ajuda.”“Sem truques?”“Sem truques.” Gambler garantiu.Sem pensar duas vezes, Helena apertou a mão de Gambler.“Muito bem.” Ele disse satisfeito, o acordo estava feito, “se não se importam,eu vou sair pelo caminho normal, seria inteligente avisar seus guardas, se

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ainda os quiser vivos.”“Eles foram dispensados.” A Harbinger o relembrou.“Foram dispensados de todo o castelo? Ou apenas do caminho que leva parao seu quarto?”“E por que você faria um caminho diferente?” Ela indagou.Por um momento, pareceu que Gambler não responderia, pois não esboçounenhuma reação visível àquela insinuação.“Touché.” Ele disse, “até breve, princesa, Stefanova.” E com uma mesura, elese foi.Seu quarto pareceu estranhamente vazio com a ida dos dois, e silenciosotambém, um silêncio que para alguns poderia ser incomodo, enquanto paraela soava como uma benção, embora ainda a intrigasse, onde Gamblerpoderia querer ir, além da saída?Por um instante, cogitou segui-lo, mas abandonou a ideia quando percebeuque, se ele de fato desviasse o caminho, haveria uma trilha de corpos namanhã seguinte que ela poderia usar ao seu favor.“Algo errado, querida?” Stefanova perguntou preocupada.

A Harbinger quase se esquecera da presença dela ali, mas nãodemonstrou nenhum susto quando ouviu a voz.“Só estava pensando em como Ally consegue viajar tão rápido de Tuonelapara cá.”Era mentira, mas Stefanova não pareceu se importar.“Querida, sente-se aqui um minuto, por favor.” Stefanova pediu, ignorandopor completo o que a Harbinger disse.Só quando a princesa estava sentada foi que a anciã voltou a falar: “Pessoasdetestáveis, esses dois.”Esta foi a primeira surpresa da Harbinger em muito tempo.“Achei que você gostasse deles.”“Minha cara.” Stefanova começou com um ar sábio, “Gambler não é o únicoque entende uma coisa ou outra sobre poder.”“Explique.”“Não faça inimigos mais fortes que você, esta deveria ser uma regra básica.”Stefanova disse, “e na minha idade, não é difícil achar pessoas mais fortesque eu, por isso eu uso a gentileza, princesa, porque ela amolece a maioriadas pessoas, e quando não amolece, basta mostrar que você sabe jogar omesmo jogo que elas.”A Harbinger manteve-se quieta, ainda estava surpresa com a revelação de que

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Stefanova não gostava de Gambler e Ally.“Outra regra deveria ser ‘mantenha seus inimigos por perto’, esse Gambler,ele não fez este plano só para te ajudar, e embora ele diga que o motivo é umacerto de contas com Caleb, eu acho difícil acreditar que isso seja tudo.”“Como assim?” A princesa D’arlit perguntou.“Ele quer a sua confiança.” Stefanova disse com ar solene, “é assim que essetipo de gente funciona, eles parecem estar do seu lado, conquistam suaconfiança e depois passam a usar você até que você não seja mais necessáriapara quaisquer que sejam os interesses deles.Por isso eu mantive tanto ele quanto Ally perto de mim, como bons amigosque só mostravam animosidade quando jogavam, e este é o melhor jeito deaprender que tipo de truque sujo estes tipos têm em mente: Tudo que vocêprecisa fazer é jogar no ar um pedacinho de informação que parece valioso,mas na verdade não é, e eles vão entregar quase tudo que eles sabem epensam de mão beijada, nenhum interrogatório jamais seria tão eficientecomo esse.Eu confesso que não descobri nada útil sobre a menina, ela parece não ternenhuma motivação além de vontade de ver o mundo pegar fogo. Mas oGambler, ele com certeza tem algo grande em mente, e ele vai usar tudo quepuder para favorecê-lo.Isso inclui você e sua ingenuidade, princesa.”A Harbinger deu um soco na mesa, fazendo as peças de xadrez voarem à umaaltura consideravelmente impressionante, embora o rosto de Stefanovapermanecesse impassível.“Eu não sou uma criança ingênua.” Ela disse entre os dentes.“Não, mas perto de Gambler, até seu pai seria uma.” Stefanova disse,arrumando discretamente as peças de xadrez, enquanto seus olhos negrosfitavam os da Harbinger, sem nenhum sinal de fraqueza ou debilitação mentalque se espera quando se olha para aqueles com idade avançada.“Onde quer chegar?”“Acredito que quando Gambler voltar, princesa, ele fará uma proposta comtermos perigosos que, caso quebrados, farão de você propriedade dele, assimcomo Caleb Rosengard é.” Stefanova disse baixinho, como se esperassedescobrir que Gambler estava entreouvindo atrás da porta, “quando issoacontecer, por mais tentador que soe, eu imploro que não aceite, não importao que ele oferecer, não importa o quanto você queira, não aceite. Entendeu?”Stefanova disse numa mistura de pedido e ordem que apenas quem a visse

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seria capaz de entender.“Entendi.” A Harbinger disse, pensando mais no quanto aquela velinhadeveria saber do que na advertência que ela acabara de dar.“Eu agradeço, querida.” Stefa disse, com o rosto voltando à sua formanormal, com o sorriso idoso emergindo entre as rugas, “se me permite, euvou me deitar agora.”“Claro, boa noite, Stefanova.” A Harbinger respondeu e assistiu enquanto avelha senhora, que a havia guiado por quase toda a sua vida, se retirava doaposento, lenta e pesada como muitas vezes era difícil de lembrar que elarealmente era.“Boa noite, minha querida.” Stefanova disse ao fechar a porta.Por alguns minutos, a Harbinger ponderou tudo que Stefanova havia dito,mas só até o brilho da lua a distrair mais uma vez.Ela se levantou e foi até a janela, onde podia ver a torre do relógio, que estavaprestes a fazer seus sinos soarem, o som que mais gostava de ouvir.E havia o brilho da lua... não, não era o brilho, era a parte escura da lua.Ela sorria para a Harbinger.

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Capítulo 39

Há dois tipos de leitores, com vinte e três subcategorias, quarenta e duasvariações e mais de oito mil jeitos de misturá-los, mas vamos ficar com osdois tipos principais para essa explicação.O primeiro é o leitor legal, que é como a Wendy gostava de se ver: sãoleitores que conseguem entrar na história e serem extremamente felizes, outristes, ou o que quer que a história sugira.O segundo é o leitor chato, que só pegava um livro pra apontar todos osdefeitos e coisas que não faziam sentido nele e ficar enchendo o saco de todomundo, querendo provar que o livro é um saco de estrume pra adubar ohumor da irmã Romena.Não, espera, adubar a irmã Romena era o que a Wendy queria fazer no últimodia dela no Orfanato.Enfim, Wendy tinha uma relação de amor neutralidade e ódio com o seu“leitor chato interior”, porque, a verdade é: todos nós temos um pouco dosdois tipos de leitor dentro de nós, embora a maioria de nós prefira apenas um.De vez em quando, o leitor chato de Wendy despertava uma vez por mês,geralmente depois de um livro tão absurdo que nem o melhor “leitor legal”poderia suportar. O que seria absurdo para uma garota que lê sobre mundosfantásticos o tempo todo?

Bem, esse tipo de coisa: você está lendo um livro, e o personagemprincipal está prestes a morrer, mas do nada ele tira um poder supremo dofundo da cartola, do qual a gente nunca ouviu falar na história inteira, e venceheroicamente, sem um único arranhão.Mas nem sempre era necessário um livro ruim para o leitor chato de Wendysurgir.Dias de mau humor serviam tão bem quanto.E quando seu leitor surgia por culpa de seu mau humor, ele era um inferno,pois queria ver tudo que estava de errado, não só nos livros, mas na vida deWendy.Por exemplo, uma das primeiras coisas que Wendy começou a se perguntarhoje cedo foi: por que, em nome de todos os nomes ruins que ela já tinhalido, uma menina, mesmo uma menina linda como Kristell Sinnett, iriaquerer guardar um quadro dela mesma, feito por um “homem” que tentou

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matá-la e servi-la de jantar?Não faz sentido! Mesmo com a coleção enorme que ela tinha.Aliás, Fawkes não havia mentido quando mencionou a coleção de quadros deKristell Sinnett: a primeira coisa que a garota fez quando Wendy voltou apassar as noites com ela na casa do Edgar foi mostrar sua coleção de quadros.“Por que você guarda isso na casa do Edgar?” Wendy havia perguntado,pegando na mão um pequeno retrato, pintado em tinta óleo, o traço era deuma delicadeza tão grande que Kristell poderia ser um anjo nele, com seusolhos caramelos ainda mais expressivos que os de verdade e sua cascata loiraesvoaçando pela moldura.“Não tem lugar no dormitório.” Kristell respondeu olhando para os quadros.Wendy tentou fingir que não reparou, mas Kristell não parava de passar amão pelos seus cabelos curtos enquanto olhava seus retratos.Ela devia mesmo amar aquele cabelo para olhá-lo em pinturas e suspirar comtanta saudade na voz.Já Wendy estava praticamente acostumada com corte.“Os outros quadros do Jaques estão ali.” Kristell apontou para um canto dasala, um canto escuro e quase invisível, como se o que estava ali não fossedigno da luz que iluminava os retratos de Kristell.Wendy se aproximou para vê-los: Lady Esmeralda, Mademoiselle HenriettaD. Evans, Duquesa E. Marley, Sir Allen DiLano e o ex-pirata que tinhavirado valete.Tinha que admitir que eles eram muito bem feitos, mas Wendy não sedemorou ali.E nem era porque os quadros haviam sido feitos por Jaques.Embora isso ajudasse um bocado.O que a fez mesmo querer sair foi o quadro da Duquesa E. Marley.Marley, aquele havia sido um dos nomes que o falso Mortimer haviamencionado enquanto fingia tentar reconhecer Wendy, e agora que ela podiavê-la com mais calma, tinha quase certeza de que Louhi havia mesmoconhecido a tal Marley.Ela e Wendy tinham um rosto bem parecido, e olhos claros.Mas a Duquesa E. Marley não era sua mãe: sua mãe tinha cabelos escuros,como seus sonhos sempre faziam o favor de lembrar... e lembrar do fracassoque havia sido sua viagem até a Ilha da Caveira a fez querer sair daquelecômodo o mais rápido possível.E assim ela fez. Kristell nunca perguntou o motivo.

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Outra coisa que seu leitor chato interior não parava de questionar era Capitãoe Terror: Como duas crianças que parecem não saber a diferença entre barro echocolate acabam aprendendo a língua de uma tribo de índios que mais soavacomo um molejo de sons guturais aleatórios? Não faz sentido! De novo!

E onde estava a neve? Tuonela não era exatamente uma cidadecosteira com praias legais e sol de torrar pepino. Apesar de ter havido um diaincomumente quente dentre os últimos que se passaram, ele fora exatamenteisso, um dia incomum.

Espera, choveu um dia enquanto Wendy estava aqui, certo? Ou não?Bem, enquanto isso, o Orfanato das Neves já devia ter virado recheio

de um bolo gigante de neve agora.Wendy suspirou ao lembrar do Orfanato das Neves, por alguns

segundos, seu leitor chato interior calou a boca e deu espaço para umalembrança não muito distante, uma que ela ainda não havia decidido comotratar.

No dia em que voltou da Ilha da Caveira, Wendy havia feito umavisita à Caleb Rosengard, às quatro da manhã, também para ver se ele estavase sentindo melhor (ele disse que estava, e ele era um péssimo mentiroso),mas principalmente, porque ela precisava da ajuda dele.

“Caleb, eu não sei o que sentir.” Wendy havia dito.Agora que havia parado para pensar, talvez a expressão assustada que

Caleb fez para ela fosse porque ele estava esperando que Wendy fosse pedir“algo mais sério”, o que ela devia mesmo ter feito, mas não fez.

“Eu achei que ia reencontrar meus pais, mas Mortimer estava mortoe,” Wendy havia dito, fazendo algum esforço para dar algum sentido para aspalavras, “eu não disse nada pra ninguém, nem pra mim mesma, e eu tenteinem pensar sobre isso enquanto a gente viajava, mas no fundo, eu sentia nomeu peito um desejo enorme de descobrir quem meus pais eram, o queaconteceu com eles...”

Wendy se lembrou com clareza a pausa que fez enquanto tentavaorganizar seus pensamentos, admirando em segredo silencioso a cabeçaenfaixada de Caleb Rosengard eclipsando a lua, como se ele mesmo fosseuma parte imutável do céu, e o brilho de seus olhos fossem estrelas nos seusdias finais.

Antes de abrir a boca, ela tirou uma lágrima de seus olhos, discretacomo uma constelação à luz do dia.

“E agora eu... não tenho mais como achá-los,” ela havia dito entre

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soluços, e sem saber como dizer o que tinha que dizer de forma adequadapara um homem como Caleb, ela apenas deixou seus pensamentos irem, “eunão quero mais ficar aqui, eu sei que eu disse pra Kristell que eu ia ficar, masparece que tudo de ruim acontece comigo aqui, e agora eu não tenho nemisso, nem meus pais–”

“Wendy.” Caleb finalmente reagiu, colocando uma mão sobre oombro dela, aquela havia sido a primeira vez que a garota notou o quãogrande era realmente a diferença de idade entre ambos, pela simplesmaturidade firme que havia em seu toque, “respire e acalme-se.”

Mais de um minuto se passou até que Wendy finalmente o fizesse.“Me desculpe.”“Eu não a culpei em momento algum.” Caleb havia respondido, e

ainda mais impressionante, havia sorrido para ela, “você realmente quer irembora? De volta para o Orfanato das Neves?”

Wendy, ainda abalada, respondera que sim, com um discreto aceno dacabeça.

“Mortimer não era o único que poderia dizer quem eram e onde estãoseus pais.”

“E também não era o único que tentou me matar em menos de ummês!” Agora, Wendy sentia vergonha por quase ter beirado a histeria quandorespondera aquilo, mas pelo menos, não levantara a voz para Caleb.

“Você não se sente segura então?”Ela fez que não com a cabeça.Por um instante, Caleb desviara seus olhos, Wendy o vira tentando

reprimir um sorriso que, aparentemente, nenhum dos dois sabia de ondeviera.

“Eu não inspiro tanta segurança depois do que aconteceu com aLouhi, né?”

“Não é isso! Você foi incrível! É só que, e se você não estivesse lá?Eu só servi pra ser salva desde que eu cheguei aqui: por você, pela Kristell,pelo Fawkes, pelo Anuk, pelo Tupã, foi tudo sorte, e se eu não tiver tantasorte na próxima vez?”

“Você matou Jaques Araque.”“Sorte.” Disse Wendy, e ambos sabiam que era verdade.A tensão havia sido palpável naquele quarto, só que não era tensão,

era como se uma nuvem feita pelos pensamentos de ambos houvesse seformado entre eles e começasse a deixar o ar sobrecarregado e difícil de

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respirar.Até Caleb dizer: “Se é o que você quer, eu a levarei de volta na

próxima lua cheia, vai ser no mesmo dia do aniversário de Tuonela.”Wendy tentou encerrar essa memória, não queria lembrar o resto tão

cedo, embora o sentimento ainda estivesse ali: esperava experimentar algumalívio, mas o gosto que sentia era de traição.

Ela deveria ser uma aventureira: era isso que ela era nos seus dias degarota órfã.

Mas tudo que sentia ao lembrar-se de aceitar a oferta de Caleb era quea falta de segurança a havia transformado numa covarde.

O que, em partes, deveria ser bom, pois isso a ensinaria a, finalmente,começar a andar na linha, como era o sonho de todas as irmãs do Orfanatodas Neves.

Com a exceção da única irmã que se importava com ela.Wendy já sabia o que a irmã Sarah diria quando explicasse o que

havia acontecido.“Wendy, meu anjo, medo é uma jaula, dentro dela, nada pode te

atingir, mas lá de dentro, também não há nada que você possa atingir... e vocêescolheu se trancar na jaula.”

Era verdade... Wendy reconheceria isso, e choraria, simples assim.“Wendy?”A voz sonolenta de Kristell a tirou de seu longo devaneio.“Bom dia, Kris!” Wendy disse com um sorriso estranho.“... o que você tá fazendo aí?”Agora que tinha tempo para pensar, Wendy concluiu que realmente

deveria ser muito estranho que uma garota se sentasse no canto de um quarto,olhando fixamente para uma parede.

“Meu lado leitor chato acordou.” Wendy respondeu.“... de novo?”“Uma vez por mês.” Ela respondeu meio sem graça por causa do tom

da amiga.“E o que tá te incomodando agora?” Kristell perguntou depois de um

longo bocejo.“Esse calendário.” Wendy respondeu, apontando para o calendário na

parede, que de fato havia sido o primeiro motivo para seu leitor chato interiorcomeçar a torrar sua paciência naquela manhã.

“O que tem ele?” Kristell perguntou.

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“É igual o do nosso mundo, ele não devia ser diferente e–”“AH! Isso, esse calendário É DE FATO o do nosso mundo, a gente

usa ele agora por aqui.” Kristell disse, com bem menos sono na voz agora,“antes, a gente usava o calendário de Kalevala, e nossos anos tinham nomes,como ano de Kullervo, ano de Ilmarien, ano de Ukko, ano de Louhi, todos osnomes das lendas antigas, os meses também tinham nomes diferentes, e assemanas tinham nove dias, ao invés de sete, todos com nomes como dia deAhti ou dia de Kuu.”

“Ahti?” Wendy perguntou.“As lendas antigas contavam sobre uma entidade antiga chamada

Ahti, que vivia no fundo do mar, dia de Ahti era o dia favorito dospescadores, diziam que dava sorte pescar nesse dia se você desse seu melhorpeixe de volta ao mar, pra agradecer Ahti, e Kuu era o nome da entidade dalua.” Kristell explicou. “Eu não lembro os outros nomes agora.”

“Surpresa” seria uma palavra fraca demais para definir o que Wendysentia em relação ao conhecimento de Kristell. Ela havia mudado muitodesde que saíra do Orfanato das Neves.

Mas ainda...“Então por que a gente usa o calendário do orfanato? Esse parece bem

mais legal.”“O calendário de Kalevala é dos D’arlit agora,” Kristell bocejou de

novo, embora não parecesse mais cansada, “ninguém queria usar nada que osD’arlit usavam por aqui, então a gente vem usando esse calendário aí,Kahsmin já sabia como funcionava, quando alguém trouxe mais alguns,começamos a usar.” Kristell terminou, se espreguiçando como uma gatadepois de uma pequena soneca de vinte horas.

“Entendi.” Wendy disse, fazendo uma nota mental para pesquisartodas essas coisas legais o mais rápido possível.

“Como você tá? Dama da Sorte?”“Já perdeu a graça esse apelido, quem escolheu ele?” Wendy quis

saber.No fundo, achava o apelido bem legal, mas detestava o motivo pelo

qual o tinha.“Segredo.” Kristell disse sorrindo.“Foi você, né?”“Pior que não.” Kris fez uma pausa e começou a olhar de Wendy pro

calendário, “nossa, você deve ser a única pessoa no mundo que consegue

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olhar um calendário num dia desses e pensar em como ele tá errado, invés deficar ansiosa pra chegar logo a noite.” Kristell comentou enquanto trocava deroupa.

“Por quê?”Kristell congelou o que estava fazendo para perguntar: “Você sabe

que dia é hoje, né?”Em defesa de Wendy, o extremo tédio que vinha sentido, devido à

falta dos treinos de Caleb (que foram cancelados, pois um dos dois estava emum estado crítico demais para treinar, enquanto o outro só tinha perdido umpedaço da orelha), e a sua falta de vontade de explorar a cidade (ela podiamorrer), haviam feito Wendy perder total noção da passagem dos dias.

Mas espera, três dias atrás Autumn pediu para vê-la, que dia eraaquele? Pensa Wendy, não era domingo porque Autumn queria vê-la antesdisso, e ela estava gritando sozinha de novo quando chegou, e gritou comWendy quando descobriu que a garota não havia feito nenhum progresso esequer se dado ao trabalho de procurar uma arte para aprender, isso semcontar numa série de perguntas sobre Caleb que Wendy realmente não estavaesperando.

Ela poderia ter dito que não procuraria uma arte, nem aprenderia adominar a transformação, pois estava indo embora, e que não devia contarcoisa alguma sobre Caleb pra alguém que praticamente destruiu a vida dele,teria dito isso com vontade pra qualquer uma.

Mas ela não era “qualquer uma”.Era Autumn DeL’assassina Cega Liddell.Autumn não é uma mulher que você quer desafiar: existe toda uma

aura de poder ao redor dela, um poder tão violento e massacrante que seriacapaz de colocar uma pessoa normal de joelhos só por estar na presença dela.“Wendy?” Kristell cortou seu devaneio, “amiga, você sabe que dia é hoje,né?”Três segundos de silêncio constrangedor, então ocorreu-lhe olhar ocalendário.“Seis de janeiro?”“Isso! E isso quer dizer quê?”“Eu não fiz nada de útil o ano inteiro!” Wendy respondeu entusiasmada.Kristell riu e deu um abraço apertado, mas não estrangulador, em Wendy:“Por isso que eu senti tanto sua falta.” Ela disse, colocando a mão em conchana nuca da amiga, “mas você sabe o que vai acontecer hoje, não sabe?”

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Wendy respirou fundo e, com seu melhor tom entusiasmado, disse:“Não tenho ideia!”“Aniversário de Tuonela, soa familiar?”“AH É! Eu tinha esquecido.” O que era só meia verdade, Wendy estavaesperando pelo aniversário de Tuonela, mas na sua cabeça, aquela data tinhaoutro significado.Lua cheia, sua volta para o Orfanato das Neves seria naquela noite.E ela não havia dito nada pra ninguém, nem mesmo para Kristell, que haviasentido tanto a falta dela... é, ela a trairia, trocando-a por uma jaula de medofeita sob medida pra ela.Kristell riu da resposta de Wendy e as duas desceram para o café da manhã.A casa estava cheia.

A trupe havia passado a última semana ensaiando toda umaencenação para apresentarem durante o aniversário de Tuonela, antes do cairdas máscaras.Pelo que Wendy assistiu das apresentações, era algo curto, simples eengraçado, o que significava que não havia sido feito por Edgar.

A pequena história começava contando como a vida antes dos D’arlitera.Depois havia o ataque dos D’arlit, o qual Wendy ficou maravilhada aoassistir: não porque fosse divertido ver Tuonela sendo destruída (embora osatores fizessem toda a coisa ficar bem divertida), mas sim porque emmomento algum houve acusações contra Caleb durante ou depois do ataque,pelo menos, na encenação.Wendy também ficou muito feliz ao saber que eles haviam ensaiado o trechoem que Kahsmin se livrou, praticamente sozinho, de todos os D’arlit queinvadiram e tomaram posse de Tuonela, e muito triste em saber que elesdecidiram não incluir esse trecho na peça, e também não o ensaiariam nafrente dela.“Essa história é boa demais pra ser apresentada desse jeito.” Era o que Allandizia, e Kristell corroborava.“E que tal vocês me contarem o que aconteceu pelo menos?” Wendyperguntava.Allan e Kristell riam juntos, para desespero de Edgar e desprezo de Victoria:“Ele vai contar no baile, sempre conta, e ele é o melhor narrador pra essahistória.”

Ótimo, sem saber, Kristell estava tentando convencer Wendy a ficar,

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pois ela queria demais ouvir essa história.Ah, sim, a peça, ela terminava com a Kristell vestida de Harbinger da Morte,sendo derrotada por Autumn (Victoria Cabelo-Cor-de-Pasto), Caleb(Interpretado por Percival, que também fizera um anjo na outra peça) epraticamente toda Tuonela, interpretada pelo resto da trupe.Ia ser divertido ver isso.Wendy mal havia começado a comer quando Allan e Victoria começaram adiscutir, e toda a trupe caiu em silêncio mortal para ouvir o que estavaacontecendo (não importa se você é um mestiço, humano, anjo ou demônio,se houver algo de normal em você, você vai parar o que estiver fazendo paraver uma briga).Enquanto isso, Kristell sussurrou: “Você tá encarando isso muito bem, né,minha Dama da Sorte?”“Encarando o que muito bem?” Wendy respondeu, ignorando o apelido.“Você sabe.” Kris disse e fez um gesto expansivo com uma colher de sopa,que resultou em sopa espalhada em cima de todo mundo, “foi mal gente!”Kris disse antes de voltar-se para Wendy, “tô falando da Ilha da Caveira sabe,você tá encarando muito bem que não deu certo descobrir quem eram seuspais.”“É, verdade.” Mentiu Wendy, apenas para acrescentar com algumas gotas dosarcasmo que havia aprendido com Autumn, “afinal, era só uma das coisasque eu mais queria saber na minha vida.”“Desculpa, achei que tava tudo bem falar disso com–”“Lembra os bolos de aniversário que a irmã Sarah fazia pra mim no meuaniversário?” Wendy interrompeu, sem olhar para Kris.Ela fez que sim.“Desde que eu aprendi que podia fazer um desejo quando assoprava as velas,eu desejava encontrar os meus pais, saber como eles eram, onde estavam,porque eles não podiam estar comigo, se estaria tudo bem se eu voltasse aviver com eles um dia,” Wendy sentiu que estava ficando emotiva demaispara um café da manhã, e acrescentou, “exceto quando eu fiz seis anos, eupedi um unicórnio lavanda naquele aniversário.”“Lavanda?”“É tipo púrpura.”“Eu sei que cor é lavanda, é só que, deixa pra lá, me desculpa tocar noassunto, eu achei que estaria tudo bem.” Kristell disse com empatia na voz.“E está.” Wendy disse, subitamente cansada, “eu vou lá em cima pegar a

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Wanda.”E se levantou, enquanto ouvia os xingamentos de Victoria: a trupe todagritava coisas tipo “eu não deixava” e “Kris! Aparta ali!”.Uma vez com a porta do quarto fechada e a briga abafada, Wendy sentou nochão, abraçou os joelhos, respirou fundo e, sem resistir, chorou.Ela não sabia quem eram os pais antes de chegar em Tuonela, mas isso não atinha abalado tanto, pois nunca houve nada que ela pudesse fazer a respeito.Mas uma vez em Tuonela, uma das primeiras coisas que Kahsmin disse foique eles ajudariam a descobrir quem eram os pais dela, e pelo visto eraverdade, Kristell tinha descoberto, com certeza outras crianças haviamdescoberto.Até nisso, Wendy tinha provado que era mesmo a Dama da Sorte.

Dama Má Sorte.Talvez devesse ter ouvido o conselho de Kristell no Empório da Tentação.Talvez não procurar fosse o melhor jeito de manter a esperança viva.Ela ficou ali sentada, ignorando o que parecia ser uma briga de bar que sedesenrolava lá embaixo, ignorando os gritos e tudo o mais. Ela só queriapoder vagar pelo nada, dormir sem sonhos, sem Ally, sem nada, apenas umvazio vasto e grande o bastante para comprimir sua dor.Não queria imaginar o que Caleb diria se a visse assim, não queria imaginar asatisfação que a senhorita Danielly O’Hara sentiria, como partiria o coraçãoda irmã Sarah, as palavras que Christina diria se pudesse vê-la agora.Só queria esquecer, queria que De Singe estivesse aqui para apagar suasmemórias, mas não, Caleb e Fawkes o deixaram morrer num incêndio, e nãohavia como ela esquecer enquanto estivesse presa no ciclo sem fim depesadelos que a desgraça da princesa do Caos havia dado para ela, nemdescansar em paz ela podia mais por culpa daquela cria dos infernos.

Se um dia Wendy colocar as mãos nela de novo...Não sabia quanto tempo havia passado, mas seus braços estavam rígidos porcausa da força que ela estava usando para abraçar os próprios joelhos.E seus joelhos sangravam.Wendy fez o melhor para não se assustar quando viu o sangue escorrer nassuas pernas e nas suas mãos: mãos que haviam virado garras, seus própriosbraços, estavam rijos por terem se transformado também.“Sempre na pior hora possível, né?” Ela disse ao perceber que haviaperfurado a própria perna, embora não sentisse quase dor alguma.Depois da Harbinger da Morte e de Louhi, isso era um arranhãozinho no

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parque.Wendy secou suas lágrimas com cuidado e pôs-se em pé, procurando poralguma coisa para limpar o sangue antes que fizesse o quarto parecer umcenário de filme de terror, ou um açougue.Foi enquanto procurava que seus olhos a viram.Lá estava ela, sentada, fitando-a com seus olhos cor de musgo, seus cabelosnegros e semblante curioso, belo e surrado, assim como seu pequeno vestidopreto, que obviamente havia sido remendado mais vezes do que aquelagarotinha gostaria de admitir, e mesmo assim, ela era linda.“Wanda? Eu não deixei você assim.” Wendy se aproximou da boneca, queestava encostada na cabeceira cama, “Kristell colocou você aqui ou–”Wendy só percebeu ao tirar Wanda do lugar.Havia um bilhete, escrito numa caligrafia fina e arredondada, muito maislinda que qualquer coisa que Wendy poderia fazer.Além de linda, era familiar, como a de uma amiga que não via há muitotempo.Em poucas palavras, o bilhete dizia:“Agradeço por reaver meu diário, Dama da Sorte, todavia, frustra-me que o

tenha lido.Em circunstâncias normais, me caberia tomar providencias a respeito de sua

intrusão.Todavia, vosmecê está em vias de uma traição iminente, então, escolho

abster-me.”

Passe bem, Dama da Sorte.

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Capítulo 40

“Entre.” A voz pontiaguda de Autumn ecoou nos ouvidos de Fawkes, aomesmo tempo em que um buraco de sombras abriu-se à sua frente.Seria mentira se dissesse que se sentia disposto a seguir em frente, mastambém seria mentira dizer que ele tinha outra opção.“O que descobriu?” Saudou Autumn, sem sequer desviar a cabeça paraFawkes. Estava concentrada, fazendo seu violino gritar de raiva e dor, e eraLorde Bertram quem sofria. Levou um minuto inteiro para que percebesseque o garoto ruivo esperava uma permissão extra para responder. Nãoprecisava ser algo explícito, um reles silêncio bastaria.Quando este veio, ele disse:“Caleb não está no farol.”“Não me importa onde ele não está.” Autumn respondeu ríspida e impassível.Fawkes sentiu aquilo como uma murro na cara, precisou de alguns segundospara se recuperar.Fazia dias que ele não se sentia ele mesmo: na calada da noite, quandodeveria estar dormindo, Ally, sua mãe, seu pai, e os D’arlit, todos eles ovisitaram, se escondendo atrás das portas que ele abria ou dos espelhos queencontrava em seus sonhos.Por isso, vinha evitando dormir.Embora soubesse que era apenas uma questão de tempo para começar a ouviras vozes e ver as silhuetas enquanto estava acordado, já quase podia ouvir asacusações... os lamentos, seu pai beirando a loucura enquanto sua mãe...“Sente-se.” Autumn ordenou.Fawkes escolheu a cadeira que permitia ficar frente a frente com Autumn: elenunca havia reparado, mas o penteado complicado que ela tinha parecia serpreso por penas rosas, que se misturavam quase perfeitamente com os tons doseu cabelo.Incrível como ela conseguia fazer isso sem enxergar.Havia dias em que Fawkes sequer reparava nas veias negras no rosto deAutumn, não por desatenção, mas porque, de vez em quando, elas nempareciam estar ali e, se estavam, eram mais uma lembrança do que um fato.Hoje era um dos desses dias, o rosto de Autumn estava limpo... e lindo.Parte dele gostaria de perguntar o que eram as veias que convergiam na

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direção dos seus olhos vendados, a outra parte o lembrava que ela era cega enem devia ter ideia do que estava acontecendo no seu rosto.“Minha irmã gostava de livros vindos de outros mundos.” Autumn comentouapática para Fawkes, “sempre que conseguia um novo, corria para cá e lia emvoz alta para que eu pudesse ouvir.No começo, eu achava que Lorina perdia tempo demais aprendendo sobrelugares que jamais visitaria e que não podiam afetar sua vida de formaalguma, mas minha opinião nunca afetou a dela, assim como a dela nuncaafetou a minha.Entretanto, não demorou muito para que eu entendesse porque Lorina seinteressava pelas histórias destes outros mundos.Os heróis de verdades vivem lá.” Autumn disse, com uma espécie de vitórianostálgica se apoderando de sua voz.Fawkes a fitou o melhor que seus olhos cansados permitiram.Lorde Bertram ressurgiu de algum lugar, encontrando seu caminho para asmãos sombrias de Autumn e se enroscando entre os dedos. Se Autumnpercebeu, não deu sinal.“Em mundos onde não há demônios ou anjos, me surpreende como humanoscomuns são capazes de reunir coragem para lutar contra tiranos e exércitostão grandes que você não saberia dizer onde eles começam e onde terminam.A única vez que presenciei uma demonstração de bravura deste porte emTuonela foi quando Kahsmin se livrou de todos os D’arlit que haviamtomado a cidade. A coragem que ele demonstrou é a coragem que eu apreciover no espírito dos oprimidos.Foi desapontador o momento em que percebi que aquela coragem deKahsmin não era constante, mas sim uma centelha acesa pelo desejo devingar a morte da filha.Falando em mortes, Lorina sempre achou mórbido o fato de eu acharinteressante que os heróis dos outros mundos não vencessem sempre.”Autumn mencionou, mexendo discretamente nas cordas de seu violino,enquanto Lorde Bertram escalava seu braço, “muitos deles morreram sem vera vitória, mas seus ideais eram tão grandes que, para todos os quecontinuavam vivos, eles se transformavam em exemplos a serem seguidos, eassim, suas vontades eram mantidas vivas através de centenas de milharesque ainda viviam, até que a vitória finalmente chegasse.”“Não parece tão mórbido.” Fawkes comentou, mais para afastar o sono quepor interesse.

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“Eu gostava das descrições das mortes, e pedia para ela narrar todas asformas de tortura que eles tinham nesses mundos. Empalamento, damas deferro, quer saber como funcionam?” Autumn perguntou.“Eu... vou passar essa, e retiro o que eu disse, é bem mórbido.” Fawkesrespondeu, estremecendo de leve ao lembrar da explicação que Kahsmin derauma vez sobre como funcionava uma dama de ferro.Espera.Aquilo era... não, não podia ser.Por um segundo, Fawkes imaginou ter visto algo que não existia.Até porque, alguém frívola como Autumn não devia ser capaz daquilo.Mas um sorriso brincalhão realmente caía bem no rosto dela.Entretanto, ele não saberia se foi real ou o excesso de sono, pois ele nãoestava mais lá quando olhou de novo, eram apenas os lábios elegantes de umamulher que aparentava saber mais do que gostaria.“Eu me divertia, pois nos livros, não ficava muito claro quem era bom equem era mau, era tudo uma questão de ponto de vista.” Autumn disse,retomando a narrativa, “há uma história em particular que gostaria de dividircom você, Fawkes, uma história cujo final minha irmã jamais ficou sabendo.Também se passa na Inglaterra, entre o século XVI e XVII. Nesta época,houveram reis e rainhas que proibiram que uma certa religião fosse praticada,porque o rei havia criado uma nova e queria abolir a antiga.Aqueles que preferiam a religião antiga eram perseguidos e torturados até queaceitassem a nova, os que não a aceitavam eram mortos.”Autumn fez uma pausa, um de seus dedos apontava discretamente paraFawkes, e ele entendeu isso como uma breve permissão para falar.“Então eles eram mortos por acreditarem em uma versão diferente da mesmahistória?”Autumn assentiu sutilmente.“Isso é ridículo.”Autumn assentiu de novo e disse:“Tão ridículo quanto o fato de que, hoje em dia, a maior parte da populaçãodeste mundo de heróis está vivendo como os escravos da Fábrica de Sonhosdos D’arlit. Sim, eu concordo com você, Fawkes, mas pouca gente seatreveria concordar naquela época.E é essa pouca gente que me interessa.Um pequeno grupo revoltado de pessoas resolveu que dariam um fim à estahistória.”

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“Como?” Fawkes quis saber.“Eliminando o rei.” Autumn respondeu com interesse, foi quando Fawkespercebeu que nenhuma história para ela poderia ser verdadeiramente boa seninguém morresse nela.“E como eles fizeram isso?” Fawkes perguntou, “se reis nos outros mundosforem como no nosso, então eles têm, sei lá, muralhas enormes e enxames deexércitos protegendo eles.”“Eles têm muito mais que isso.” Autumn acrescentou displicente, “noentanto, ser rei também tem desvantagens: uma delas é que qualquer pessoapode descobrir onde encontrá-lo, se prestar atenção o suficiente ao queacontece ao seu redor, e se conhecesse as pessoas certas.Por sorte, este era o caso do nosso grupo revoltado de pessoas.O que facilitou bastante o planejamento de como explodir o rei.”Fawkes ergueu os olhos, se esquecendo quase por completo de seu sono.“Eles explodiram o rei?” Ele perguntou impressionado.“Este era o objetivo. O plano era colocar mais de vinte barris de pólvora soba câmara dos lordes e ascendê-los quando o rei e os outros governantesmenores estivessem lá dentro, um plano divertido.Todavia, isso nunca aconteceu: Havia um traidor no grupo.”Fawkes segurou o impulso que teve de xingar.“O traidor contou detalhe por detalhe do plano através de uma carta anônima.Assim que descobriram a carta, guardas vasculharam a câmara, até queencontraram a pólvora sendo guardada por um único homem, armado comtochas e fósforos.Torturaram o homem para que ele entregasse os outros: demorou três diaspara que ele falasse.” Autumn disse, e Fawkes não saberia dizer se aquilo navoz dela era admiração pelo tempo que ele demorou para falar ou desprezopelo fato de ele ter falado, “no final, todos os envolvidos no plano forammortos, e seus nomes esquecidos pela história, exceto um.”“Quem?” Fawkes perguntou com toda a curiosidade que seu sono permitia.“Fawkes.”“Que é?”“Fawkes é o nome que não foi esquecido.” Autumn explicou.Um arrepio gelado perpassou as costas de Fawkes ao ouvir aquilo.“Fawkes era o nome do homem que teve a ideia de explodir o parlamento, oque foi pego com a pólvora, o que foi torturado, o primeiro a morrer quandoexecutaram os traidores e o único que os livros que minha irmã conseguiu se

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preocupavam em mencionar.”Fawkes estava boquiaberto, não tinha ideia de que, em um mundo distante,pudesse haver alguém com o mesmo nome que ele usava, era incrível, mas–“Achei que você tinha dito que sua irmã nunca terminou essa história.”Fawkes disse.“Ela não terminou, foi Kahsmin quem leu o resto do livro para mim, Lorinamorreu antes de saber que Fawkes fora pego pelos guardas, ela esperava queele fosse conseguir.” Autumn comentou indiferente.“Então, existe um herói com o meu nome em outro mundo?”“Nem todos acham que ele era um herói.” Autumn mencionou, acariciandoseu rato de estimação, que estava em pé sobre seus ombros nus e farejandoseu rosto.Fawkes não estava muito interessado em uma conversa sobre o que era serum herói ou um vilão agora, ele só queria saber uma coisa depois dessahistória: “Por que você tá me contando isso?”Lorde Bertram pulou de seu ombro e sumiu no chão quando Autumnlevantou-se, segurando seu violino anêmico, dirigiu-se até a janela, ondepodia ser banhada pela brisa da manhã e ouvir todos os seus sons e silêncios.“Fawkes foi um herói para seus iguais, um inimigo para seu rei. Fawkes sabiaque ele teria mais inimigos do que aliados, e isso não o impediu de seguir emfrente.” Autumn ia dizendo, “esse é o tipo de coragem que eu julgo fazerqualquer ser vivo digno do ar que respira, e Fawkes.” Autumn disse, sevirando para o garoto, o que o fez perguntar-se se ela estava falando do carada história ou dele mesmo, “Fawkes é um nome imponente, forte como umfalcão.”Ao som de sua última palavra, Autumn entrou nas sombras e ressurgiu bemna frente de Fawkes, quase o derrubando da cadeira com a violência evelocidade de seu reaparecimento.“É um bom nome.” Ela disse para o garoto de coração acelerado, “mas não éo seu.”“Você sabe então?” Fawkes perguntou, sabia que era inútil mentir paraAutumn.“Desde que você foi atacado, sempre que ouve o som de seu nome, seu corpose prepara para mentir. No começo, eu pensei que era porque estava commedo de ser questionado sobre o que Ally o fez ver, no entanto, eu percebique você reagiu assim mesmo ao conversar com pessoas que não sabem oque aconteceu, mesmo em conversas simples sobre assuntos sem

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importância, como a Gala Mascarada, sempre que ouve o seu nome, seucoração dá um pequeno salto, seus músculos gelam e você hesita.”Fawkes entendeu porque foi Autumn quem ficou responsável por descobrir omistério de Jane e James, quem diria que havia tanta inteligência escondidapor de trás daquela venda rendada?“Qual seu nome, Fawkes?”“Haydn.” Fawkes respondeu, sentindo a palavra com gosto estranho na boca.“Também é um bom nome, por que escolheu outro?” Autumn perguntou,agora já sentada na cadeira, como estivera quando o garoto ruivo entrou.“Haydn está ligado à um passado do qual eu não quero fazer parte.” Elerespondeu.Autumn não tinha visão propriamente dita, mas isso não a impedia deexaminar Fawkes: ele podia sentir o quanto ela o avaliava, decerto ela notaraque estava tremendo e que não se esquivaria de nenhuma pergunta dela,devido ao cansaço.“Entendo, Fawkes é mais que uma identidade. É uma rota de fuga.” Autumnafirmou.“É verdade.”“Uma rota de fuga das memórias que Ally o forçou a reviver.” Elaacrescentou.“É verdade.” Ele repetiu mais firme, embora tremesse mais que antes.Autumn tocou um pouco do violino sem usar o arco, apenas dedilhandopequenas notas que formavam uma história, não uma música. Fawkes nãoentendia a língua das notas, mas ele sentia que era uma história sobrepassados assombrados que estava ouvindo, com aquelas notas doloridas,algumas longas como a noite, algumas curtas como estacas.Apenas alguém com a habilidade de Autumn seria capaz de narrar umahistória sem palavras.“Gostaria de dormir bem esta noite?” Autumn perguntou enquanto aindatocava.“Eu gostaria de dormir bem agora, mas o que isso tem a ver com–”“Você sabe que Wendy também foi atacada por Ally.” Autumn comentou e,sem esperar a resposta de Fawkes, continuou, “o caso dela é difícil de curar,mas o seu é fácil.”Fawkes estava genuinamente confuso agora.“Wendy foi forçada a reviver uma memória da qual ela não se lembra de ter,o que a impede de saber o que realmente está enfrentando, mas você, Fawkes,

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reviveu o seu passado como Haydn, você sabe o que aconteceu. Você sabecom o que e com quem está lidando. Wendy não teve esta mesma sorte,embora eu tenha que admitir, Wendy é uma incógnita para mim: nuncaalguém viveu tanto quanto ela após um ataque de Ally.” Autumn disse, e suavoz adquiriu o tom de quem enfrenta uma batalha de lógica contra arealidade.“Como isso torna as coisas mais fáceis?” Fawkes quis saber, “a Wendycontinua tendo pesadelos e, até onde eu sei, ninguém conseguiu se recuperarde um ataque da Ally sem a ajuda do Velho Sábio ou gente parecida.”Autumn terminou a história que narrava em seu violino antes de voltar afalar.“Nós só somos assombrados por aquilo de que fugimos.” Autumn disse,“todos nós, em algum ponto, quisemos fugir do passado, algumas pessoaslevam mais tempo que outras para perceber que isso não passa de vaidade,pois o passado é parte de quem somos, e não se pode fugir de nós mesmo. Épor isso que você deve enfrentar o seu passado se quiser se livrar dospesadelos, Fawkes.” Autumn concluiu.Fawkes precisou de quase um minuto inteiro para assimilar tudo que elahavia acabado de dizer.“Mas, eu não posso, eu não sei como–”Fawkes recebeu um tapa tão forte que faria os de Kristell parecerem carinhode bebê.Começou a sentir o gosto de sangue na boca quando ouviu Autumn falar.“Se vai agir como um covarde, pelo menos roube o nome de um covarde.”Ele não achava que fosse possível, mas aquelas palavras doeram mais que otapa.“Eu sei quando alguém está mentindo.” Autumn disse, “você sabe o queprecisa fazer para enfrentar o passado, você sabe que tem muito mais chancesde vencer do que o Fawkes da história, e sabe que a única coisa a te impedir éo seu medo.”“Mas você não entende! Eu não posso, é muito... é mais complicado queparece.” Fawkes disse rígido, esperando o próximo tapa do qual ele sabia queAutumn o julgava merecedor.Por um minuto inteiro, sentiu os olhos cegos de Autumn o fuzilando pordetrás daquela venda, transbordando de desejo de fuzilá-lo com palavras.Começou a sentir-se ainda menor perto dela, como um verme prestes a seresmagado por ter mostrado uma fraqueza que uma mulher como ela não se

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dava ao trabalho de tolerar.“Você está certo.” Autumn disse por fim, para o espanto de Fawkes, “eu nãoentendo.”“Quê?”“Eu não entendo, e não vou tentar entender.” Autumn disse com vozindiferente “Apenas saia, e descanse, se não me engano, Kahsmin mencionouque Caleb deveria ir para o mundo do Orfanato das Neves para trazer outragarota, a lua já está cheia, não está?”“Está.” Fawkes respondeu confuso.O buraco de sombras se abriu na porta, mas antes que Fawkes fizesse amenor menção de que mexer para atravessá-lo, Autumn disse: “Vá até acozinha, traga meu chá, e muffins.” Foi uma ordem, por mais baixo que ela atenha dito.“Sim, Autumn.”A corrida até a cozinha (diga-se de passagem, havia uma infinidade deescadas que separavam a cozinha do campanário) passou rápida, com Fawkespensando no que havia de fato acabado de acontecer dentro do campanário.Sim, Autumn havia dado um tapa na sua cara, e dado um outro mais forteainda no seu ego, mas antes disso, ela contou uma história e, por maisestranho que pareça, foi como se ela quisesse ajudá-lo, como se ela realmentese importasse.Mas ela não podia se importar, não é?Sua caminhada foi tão bem alimentada por esses pensamentos que mal sedera conta de que já estava quase de volta ao campanário.Até ouvir Kahsmin cantarolando.O Grande Magnânimo viu Fawkes primeiro.“Fawkes! Você tá com uma cara horrível!” Ele disse alegre, em contrastecom a melodia leve que cantarolara há pouco, “não vai tentar explodir essascoisas aqui em cima de novo, não é?”“Você não esqueceu aquilo?”“Bom, você consertou a sala, mas eu prefiro que as coisas fiquem inteiras poraqui, aliás, porque seu cabelo tá caído desse jeito?” Kahsmin perguntoucurioso, “faz parte da fantasia pra Gala Mascarada?”“Ah não.” Fawkes disse sem graça, “ele não queria ficar espetado, aí eudeixei assim.”“Aham, e o que é isso? Até onde eu sei, você não gosta de chá.”“Eu não gosto do SEU chá.” Corrigiu Fawkes. Na verdade, ele detestava chá,

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mas era sempre divertido tirar sarro de Kahsmin, “isso aqui é pra Autumn.”Completou.“Ela pediu para você trazer?” Kahsmin perguntou.“É.” Fawkes respondeu, esperando que Kahsmin não pedisse maisexplicações, ainda mais depois que Autumn havia deixado claro como águaque ninguém, principalmente Kahsmin, deveria saber que eles estavam deolho em Caleb.“Por acaso você conversou com ela hoje cedo?” Kahsmin perguntou.Fawkes gelou, mas fez que sim.“E ela tentou te ajudar com alguma coisa, Fawkes?”Ele sabe. Ele sabe. Ele sabe. Ele sabe.“Bem... de certa forma...”Kahsmin deu uma bufada sorridente indiscreta.“Parece que você foi a vítima deste ano.” Ele disse, colocando a mão sobre oombro do garoto. “Hoje é uma data muito especial para Autumn, e o efeitodesta data sobre ela sempre me impressiona.”“Como assim?” Ele perguntou.“A frieza de Autumn se dissipa um pouco nesta data do ano.” Kahsminexplicou “Eu não sabia que ela se importava tanto assim com o aniversário deTuonela.”“Ah, ela não se importa.” Comentou Kahsmin, “ela detesta o aniversário dacidade.”“Qual a lógica disso?”Kahsmin abriu ainda mais seu sorriso para o garoto ruivo, e sussurrou em seuouvido, como se confiasse um enorme segredo para ele.“Hoje é aniversário de Lorina DeLarose Liddell, a irmã de Autumn.”Fawkes sentiu seus braços fraquejarem, mas continuou segurando firme abandeja onde estava o chá e os muffins.“Não era segredo para nós que Lorina adorava Tuonela e as pessoas dacidade.” Ele continuou, “nem que ela amava Caleb, mas isto é outra história.Enfim, Lorina adorava que seu aniversário fosse no mesmo dia que o dacidade.Ela fazia questão de ir em todas as celebrações da cidade, e era sempre a almada festa onde quer que fosse.”“Então, a cidade toda também gostava dela.” Fawkes comentou.“Com certeza! E não era pra menos, Lorina era conhecida por sair do seupróprio caminho para ajudar qualquer pessoa que precisasse, e ajudava

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mesmo que fosse fazendo coisas que você não espera que uma mulher dafineza dela faça.”“Como lutar com os D’arlit?” Fawkes perguntou, pensando na luta épicaentre Autumn e a Harbinger da Morte.Kahsmin fez que não.“Lorina não lutava, ela fazia coisas como ajudar os pescadores a puxaremsuas redes de peixes, ou então ajudar crianças a recuperarem brinquedos queelas tivessem perdido, eram coisas simples, mas é nas coisas simples que aspessoas reparam.”“Entendi, então ela era meio que a queridinha da cidade?”“A mais querida.” Kahsmin corrigiu, “e é engraçado, porque sempre que melembro, Caleb era o rapaz mais querido da cidade também, embora pormotivos bem diferentes. Todos esperavam que os dois fossem fazer um casalperfeito, mas Caleb nunca gostou muito dessa ideia, ele se parecia mais comvocê quando o assunto era mulheres, se é que me entende.” Kahsmin disse,apontando para o peito de Fawkes e dando uma risada discreta.“Então você sabe que...”“Que você teve mais namoradas que eu tenho anos de idade? É difícil nãosaber em uma cidade tão pequena, sem mencionar que você é um rapazinhobem notável aqui.”“Sério?”“Todos os pais de garotas falam de você, tenho certeza que se minha filhaestivesse aqui, eu também falaria, minha filha deveria ser só uns pares deanos mais velha que você,” o sobrolho de Kahsmin começou a escurecer, masantes que isso acontecesse por completo, ele sorriu e continuou, “enfim,Lorina era tudo que Autumn não era.”“Eu imagino.” Fawkes comentou.“Autumn não dava a mínima para a cidade ou as pessoas que viviam aqui,mas ela se importava com Lorina, se importava bastante com ela, até porque,foi Lorina quem cuidou de Autumn quando os pais delas morreram no mar.”Kahsmin comentou.“Nossa.” Fawkes disse impressionado, “então, Lorina era mais velha?”“Dois anos mais velha, mas não era por ser mais velha que Lorina cuidava deAutumn?”“Por que então?”“Você sabe que Autumn te chamaria de idiota por essa pergunta, não é?”“Ah, é.”

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“Enfim, Autumn se importava com Lorina, e Lorina, bem, ela amavaAutumn, abertamente, faria qualquer coisa por ela, lia em voz alta, cantavapara acompanhar o violino, ajudava-a a andar quando Autumn ainda nãosabia como usar seus poderes para enxergar.”“É difícil pensar que Autumn nem sempre soube como fazer isso.”Kahsmin concordou.“Durante a maior parte da infância, Autumn foi guiada por Lorina, semconhecer nada do mundo ao seu redor, sem poder ver nada sem usar suasmãos e ouvidos. Foi Lorina quem apresentou Autumn para os terrenos deTuonela, para os salgueiros plantados ao redor da cidade, para tudo queAutumn conhece sobre a cidade.Esperava que um dia Autumn aprendesse a amar a cidade como ela própriaamava.”“E isso aconteceu?” Fawkes perguntou, embora já estivesse certo da resposta.“Chegou perto, mas Tuonela, como todo lugar, tinha suas laranjas podres.Quando Autumn era pequena, outras crianças resolveram que seria divertidopregar peças em uma garota cega que não podia ver sem a ajuda da irmã. Elesforam imbecis com as brincadeiras, riam abertamente de Autumn, faziamdesenhos horríveis na venda que ela usava para proteger os olhos, colocavamcoisas no caminho dela enquanto alguém distraía Lorina. Foi o moldeperfeito para criar a mulher que Autumn é hoje.”Fawkes não podia acreditar no que estava sentindo: e o que estava sentindoera pena.É, Fawkes estava pena de Autumn.“Eu não faria essa cara perto dela, ela sabe quando as pessoas estão com penadela.”“Eu não estava–”“Estava sim, eu sei, aprendi uma coisa ou outra depois de tantos anos vivendocom Autumn. Eu já vou terminar a história, não ia ser nada legal se Autumnficasse impaciente e viesse ela mesma pegar essa bandeja aí, não é?”“Bem pensado.” Fawkes respondeu.“Lorina não queria que Autumn se ressentisse das coisas que certas pessoasfaziam com ela, mas que focasse nas pessoas que vinham ajudando, porémAutumn sempre teve um gênio bem forte quanto a isso.”“Lorina, no entanto, tinha uma ideia: ela acreditava que sua própria afeiçãopor Tuonela vinha das pessoas que ela ajudava, da gratidão que ela podiasentir vindo de cada uma delas, esse tipo de coisa. Ela passou anos tentando

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convencer Autumn a ajudar as pessoas diretamente, mas sempre ouvia amesma resposta.”“Que resposta?” Fawkes quis saber.“Vamos fingir que Autumn simplesmente dizia ‘Não’” Kahsmin disse, “anosse passaram, Autumn descobriu seus poderes e, como percebeu que ela podiausá-los para enxergar sem a ajuda da irmã, resolveu que praticariaincansavelmente, até que não houvesse ninguém que pudesse se igualar aela.”“Ela conseguiu.” Fawkes comentou.“Eu concordo, e Lorina também concordava, tanto que ela convenceuAutumn de que ela deveria ser uma das guardiãs da cidade, assim comoCaleb, até hoje eu não sei como Lorina a convenceu. No entanto, ela aindanão estava satisfeita, há dezoito anos atrás, em um dia bem parecido com o dehoje, Lorina fez um muffin e uma xícara de chá. Ela os levou para o alto docampanário, onde as duas viviam, na época, a porta tinha maçanetas.”Fawkes não conseguiu evitar soltar uma risada ao ouvir aquele comentário,“quando Autumn voltou, Lorina leu para ela, como sempre fazia, e depois aconvidou para a pequena comemoração das duas.”Kahsmin parou um instante, ao perceber que Fawkes não conseguia tirar osolhos da bandeja com chá e muffins que carregava, havia uma centelha decompreensão querendo chegar até ele, mas seu sono a impedia de manter-seacesa por muito tempo.“Lorina pediu para Autumn ajudá-la a acender a vela e, pelo que ouvi,Autumn o fez com um sorriso no rosto, então, ela tocou parabéns pra você noviolino, e dizem que foi a coisa mais alegre que toda a catedral já ouviu.Então Lorina soprou a vela, e Autumn perguntou: O que você pediu?”“E Lorina respondeu: Pedi que um dia, bem, eu pedi que você um diasoubesse do prazer que é ajudar alguém em Tuonela pra descobrir como é aalegria que eu sinto por aqui.”Kahsmin ficou mudo depois disso.“E aí? O que Autumn disse?”“Nada, ela apenas dividiu o muffin com a irmã. Só alguns meses mais tarde,Lorina morreu no ataque dos D’arlit. Autumn colocou toda a culpa em Caleb,pois ele deveria estar protegendo a cidade com ela, embora eu acredite que,hoje, ela sabe que a presença de Caleb não faria tanta diferença numa lutacontra um exército, no entanto, Autumn também sabe que é culpa de Calebque o exército das ilhas estrangeiras nunca tenha chego aqui, então continua o

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acusando.”“Deve ter sido bem difícil pra ela.” Fawkes comentou.“O passado de Autumn é muitas coisas, menos bonito.” Kahsmin comentou.“Menos bonito.” Fawkes ecoou, embora não fosse no passado de Autumn queestava pensando, mas no de um garoto ruivo de cabelos arrepiado...“Apesar de não ser bonito, Autumn aprendeu a ver as partes boas dele, porisso, no aniversário de Lorina, Autumn se dedica a tentar ajudar uma pessoa,só uma, da melhor forma que puder, apenas para cumprir o desejo de suairmã, é a forma dela de manter a lembrança viva.”“Agora, é melhor você ir, você não quer abusar da sorte fazendo ela esperar.”Kahsmin disse, com uma piscada de olho, apontando na direção doscorredores que levariam para o campanário.“Obrigado, Kahsmin.”Kahsmin, no entanto, já estava longe, cantarolando novamente enquantoandava aparentemente sem rumo pelos corredores da catedral.Fawkes andou o resto do caminho até o campanário, quando bateu na porta, apassagem de sombras se abriu sem que houvessem perguntas.Autumn continuava esperando na cadeira, Lorde Bertram não estava em lugaralgum por perto, seu violino parecia perfeitamente lustrado, o arcodescansando ao seu lado.Fawkes depositou a bandeja com cuidado sobre a mesa, enquanto Autumncontinuava sentada com os braços cruzados. Foi quando viu o que estava nasmãos dela.Parecia ter sido usada muito mais vezes do que deveria, e era quase certo deque não fosse durar muito mais, mas Fawkes não pode deixar de sorrir aoperceber que Autumn tinha uma vela de aniversário em suas mãos.“Kahsmin contou.” Não era uma pergunta, e Fawkes não sabia o que o tomdela queria dizer.“Contou.” Ele respondeu.Ela assentiu e tateou em busca de um dos muffins, como se, por um breveinstante, tivesse esquecido que podia vê-los através das sombras, e colocou avela sobre ele: não ficou exatamente no meio, mas não parecia que ela seimportava com isso.“Pode me ajudar a acender a vela?” Autumn pediu. Sim, ela pediu, nãoordenou.Fawkes, sem hesitar, fez uma pequena chama na ponta de seu indicador,apenas o bastante para criar uma fagulha na velha vela branca de aniversário

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que agora queimava sobre o muffin.Autumn pegou seu violino, o arco, respirou fundo e, sem pensar, Fawkessorriu.Sorriu, pois era inevitável sorrir com a quantidade de alegria naquele“Parabéns pra Você.”Quando terminou, Autumn soprou delicadamente a vela, e Fawkes viu afumaça dançar perante seus olhos, antes de desfazer-se em pleno ar, commovimentos tão frágeis que poderiam muito bem quebrar no instante em quealguém as tocasse.Autumn pegou uma de suas próprias facas, tirou a vela do muffin e o dividiu,oferecendo uma metade para Fawkes.“Obrigado.” Ele disse, pegando sua parte, mas não comendo.Ele assistiu Autumn comer demorada a sua parte, como se quisesse saborearcada farelo em sua boca, esperando encontrar algo diferente, algo especial.Foi quando Fawkes resolveu fazer algo especial.“Autumn, obrigado pela sua ajuda.”Ela não respondeu de imediato, apenas engoliu a última mordida que haviadado, seus dedos de porcelana levaram a xícara até sua boca, de onde tomoualguns poucos goles para limpar a garganta.“Você vai fazer o que tem que ser feito, Fawkes?”“Eu vou.” Fawkes disse, e a determinação em sua voz não deixava dúvidas,era verdade.Pela segunda vez naquele dia, Fawkes o viu, e desta vez, teve certeza de queera real: Havia um sorriso no rosto de Autumn.“Neste caso, eu é quem agradeço, agora, pode ir, e leve a sua parte.”Fawkes obedeceu, passando pelo buraco de sombras com sua metade demuffin enfiada na boca, enquanto uma mão acenava para Autumn, queretribuiu o aceno com um discreto balançar de dedos.O garoto estava longe demais para ouvir Autumn, mas se estivesse ali dentroainda, o que veria, seria uma mulher cega, terminando sua xícara de chá frio epegando um segundo muffin, mas não sem antes dizer: “Você estava certa,Lorina. A sensação é muito boa.”Então haveria mais uma mordida delicada, e o seguinte comentário: “MasCaleb ainda é um babaca.”

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Capítulo 4

Existe uma receita para a tristeza.Assim como para quase qualquer coisa, exceto ficar rico, ou para oescondidinho de carne surpresa da irmã Clara, aquele treco é o verdadeiromistério da fé.Quanto à tristeza, você precisa de dois ingredientes.Um deles, Wendy tinha de sobra.“Eu não acredito que a gente tá aqui! Eu e você! JUNTAS!” Kristell deugritinho tão alto que acordaria até a irmã Romena depois do almoço. Estavasegurando o braço de Wendy e dando vários saltinhos em frente à grandemansão branca que chamara tanto a atenção de Wendy quando ela teve seuprimeiro vislumbre de Tuonela.“É!” Wendy disse com um sorriso sem graça, olhando para a máscara quedeveria vestir, “vai ser perfeito.” Fez um esforço para tornar o sorriso sinceroquando olhou para Kristell, deu tão certo quanto tentar convencer Kristell adar uma segunda chance ao Fawkes.“Você ainda tá chateada por causa do seu cabelo?” Kris perguntou.Longa história, uma que não envolvia facas e diários.Wendy meneou a cabeça em resposta.“Então por que você tá cabisbaixa desse jeito?” Kristell perguntou, tirandouma pequena mecha de cabelo do rosto de Wendy, “é o bilhete do diário?Amiga esquece isso, foco na gala, hoje o Caleb vai descobrir que temconcorrência pesada disputando você, sua linda.” Kris disse brincalhona,dando uma cotovelada de leve no braço de Wendy.Como Mary Ashdown diria, Kristell era a rainha de cutucar feridas semperceber.“Kris, o único que vai ter concorrentes hoje é o Edgar.” Wendy retrucou,elogiando a amiga ao mesmo tempo em que tentava desviar o foco daconversa.E foi bem honesto o elogio: Kristell já era linda naturalmente, mas naquelanoite, “linda” soava mais como um eufemismo de quinta categoria paradefinir a aparência de Kris.Sua maquiagem estava tão perfeita que parecia não existir, pois ela apenasressaltava o caramelo avelã de seus olhos e os ângulos que seu rosto fazia.

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Wendy tinha que aprender esses truques.Parecia muito pouco com uma líder de torcida nessa noite, na verdade, era oextremo opostos: ela exibia toda a fineza de uma aristocrata, daquelas que airmã Clara adoraria fofocar sobre com a irmã Natalie, ricos até a “falência”(sim, o truque de mágica que faz dinheiro sumir) passar pela família.O que mais contribuía para a aparência fina de Kris era o penteado que elaexibia orgulhosa. Wendy poderia estar errada, mas parecia que a garota haviatentado copiar o mesmo penteado complexo que Autumn usava, o que teriadado muito mais certo se Kristell já estivesse com seu cabelo totalmentecrescido. Ainda assim, era um penteado que Wendy jamais sonharia em sercapaz de fazer sozinha, ainda mais depois da proeza que fizera com seucabelo naquela mesma tarde.Isso sem mencionar o vestido: embora fosse simples, em seus tons ouro eprata, era elegante e caía como uma luva em Kris, e o espartilho que estavausando dava um destaque ainda maior para a silhueta já impecável que agarota tinha.“Meu anjo, ninguém nessa festa tem chance comigo, e eles sabem, nem vãoperder tempo.” Kristell disse com ar displicente, apontando para todos osrapazes ao seu redor. Seu olhar passou da máscara em suas mãos para Wendye, com um sorriso torto, acrescentou, “e sinceramente amiga, você tá muitomais bonita que eu hoje!”Wendy queria aceitar o elogio, mas só conseguiu ficar com um sorriso falsona cara enquanto desviava o olhar para o céu de Tuonela: havia um borrãoalaranjado e sumidouro no céu, tímido e frágil como um recém-nascido,prestes a ser dissolvido e apagado pelas imensas mortalhas negras que eramas cumulo-nimbos rastejantes.Em minutos, as nuvens repintaram o céu de cinza e azul-fundo-do-mar,afogando por completo o borrão alaranjado que há pouco manchava o céu,assegurando assim que nenhuma estrela brilhasse na noite do aniversário deTuonela.Por alguns segundos, as cores acalmaram Wendy, como teriam acalmadoChristina se ela estivesse aqui. Sério, nada acalmava aquela garota como acor e o cheiro de uma boa tempestade.Exceto lhamas.Wendy quase teve vontade de sorrir um sorriso verdadeiro ao pensar naquilo,afinal, ela merecia sorrir, depois de tudo que havia passado para chegar nestafesta, incluindo o incêndio e o tempo que Kristell levou para vesti-la e fazê-la

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ficar perfeita(mente aceitável) dentro do vestido.Ela merecia, mas o sorriso não veio.Wendy sabia que era coincidência, mas gostou muito que as cores do vestidoque Kris escolheu para ela estivessem combinando com as do céu naquelefim de tarde.O que não gostou foi o fato de o vestido só ter uma alça, e ter que usar umespartilho também não era lá a melhor coisa do universo, mas Kristell insistiuque uma “Gala Mascarada” simplesmente pede que as mulheres usem corpeteou espartilho.Não, corpetes e espartilhos não são a mesma coisa.Wendy tentou argumentar sobre o quanto aquele negócio era desconfortável,mas se você acha mesmo que ela tinha alguma chance de vencer essadiscussão, você não conhece Kristell Fashion Queen Sinnett.Aliás, considerando que foi a própria Kristell quem sugeriu este nome e temapara a festa, Wendy só podia tirar uma conclusão plausível: Kristell eramasoquista e seu desejo era que ver todas as mulheres sofrendo hoje.“Do que você tá rindo?” Kristell perguntou.“Do seu plano maligno pra torturar a gente.” Ela disse entre risos.“Uma das suas ideias aleatórias?” Kristell perguntou com uma sobrancelhaarqueada.“Aham.”“Eu quero saber?”“Provavelmente não.”Kristell deu de ombros e disse:“Pelo menos você tá rindo, tenta continuar assim o resto da noite, ninguémaqui merece estar feliz mais que você, sua diva.” Kristell disse, com umabraço tão forte que fez Wendy ter certeza de que o relâmpago que viu no céuera na verdade a “luz no fim do túnel”.Mas em meio ao seu sufoco, Wendy concordou mentalmente.Ela merecia ser feliz, ela merecia sorrir.No entanto, existe uma receita para a tristeza.Uma receita que, mal ela sabia, já vinha preparando havia alguns dias.Você só precisa de dois ingredientes, e um deles, Wendy tinha de sobra.O nome do ingrediente? Ora, Expectativas, é claro.Quando Wendy acordou, tinha expectativas de começar o dia bem, o maisnormal que Tuonela permitisse, tomar um café da manhã delicioso e tranquiloenquanto conversava sobre coisas bobas e desimportantes com Kristell,

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Allan, Edgar, Paloma, talvez Tereza também, se Paloma a convidasse para amesa de novo.Depois, mesmo com boa parte de seu corpo ainda dolorido, ela iria ver seuelfo da guarda, seria recebida com um sorriso, e o retribuiria com um abraçoque logo se metamorfosearia em beijo.Wendy até tinha expectativa de acariciar o pedaço de orelha que Caleb haviaperdido, queria ver e sentir se a cicatriz havia ficado tão horrível quanto osboatos diziam.Também estava nos seus planos dizer que continuaria a gostar dele,independente do que acontecesse com seu rosto, assim como esperavareceber pelo menos um sorriso carinhoso por esse comentário, seguido poruma longa conversa sobre como Louhi era uma... insira seus palavrõesfavoritos aqui, mas saiba que nenhum deles vai chegar perto dos que Wendyaprendeu com a irmã Romena e o velho Winslow.Eles não treinariam, Wendy estaria muito ocupada aproveitando a companhiade Caleb Rosengard, pois este deveria ser o último dia de Wendy emTuonela, e só os dois sabiam disso, pois é mais fácil ir embora quando não hádespedidas.Finalmente, a noite chegaria e, quando toda Tuonela estivesse na GalaMascarada, Caleb e Wendy atravessariam o portal para o Orfanato das Neves,procurariam a irmã Sarah e explicariam toda a verdade, todos os motivospelos quais Wendy preferiu voltar para o orfanato, incluindo o apelido deDama da Sorte que ela tão merecidamente havia conquistado.Wendy estava contando com os protestos da irmã Sarah, sabia que elarecitaria as palavras que disse na noite em que Wendy foi embora:“Medo é uma jaula, lá dentro, não há nada que possa te atingir, mas lá dedentro, também não há nada que você possa atingir.” e seguiria com umsermão sobre como desistir por medo é um erro.Mas Wendy já tinha um plano para lidar com isso também.Ela sabia que a irmã Sarah era muito mais que uma babá ou uma simplesfreira.Era uma amiga em quem Wendy poderia confiar nos melhores e pioresmomentos de sua vida, sempre foi assim, não havia porque essa noite serdiferente.Mais que isso, a irmã Sarah era mais que uma amiga, era uma confidente, quenão se importava de ser cúmplice das artimanhas de Wendy, pois sabia queesse era o melhor jeito de manter a garota feliz (e que as artimanhas eram

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inofensivas). Ali havia mais que amor do que palavras poderiam explicar.Amor que Wendy só esperaria encontrar...Em uma mãe.Wendy diria que a irmã Sarah era como uma mãe para ela, que não haviasentido em viver tão longe dela, sua protetora, confidente, conselheira, amigae, principalmente, mãe.Wendy tinha expectativa de que essas palavras derretessem o coração dairmã, pois elas haviam derretido o seu próprio enquanto imaginava a cenaacontecendo, chegando até a soluçar com a ideia toda.Quando finalmente estivesse acabado, Wendy se despediria de Caleb, queprometeria visitá-la, embora não sempre, pois nunca se sabe quando ele teriatrabalho a fazer, o que Wendy fingiria entender no começo, até o tempopassar e ela passar a entender de verdade, se é que me entende.Haveria um último beijo, então Caleb voltaria para Tuonela, e o resto, Wendyainda não tinha planejado, talvez uma explosão de loucura por parte da irmãSarah por Wendy ter acabado de beijar um homem com o dobro de sua idadebem na sua frente, e também poderia haver um pouco de janta comidaescondida em sua mala pra comer, comer é sempre bom.Sim, Wendy tinha de sobra o primeiro ingrediente para uma tristeza bemforte.Por isso o segundo ingrediente era tão importante.O que aconteceu de verdade foi que Wendy acordou com humor duvidoso,com seu leitor chato interior à flor da pele, questionando tudo e todos à suavolta, e ninguém ainda tinha conseguido responder como todo mundo emTuonela falava a mesma língua, sendo que muitos vieram e foram criados emMUNDOS diferentes.MUNDOS.Não países, MUNDOS.Tá, os índios não falavam, mas o De Singe FALAVA FRANCÊS, ISSO ÉDO MUNDO DELA.Isso só gerava irritação na sua cabeça, muito mais que os mistérios deTuonela que Kristell mencionou.Durante o café da manhã, enquanto Wendy era atacada por perguntas sobreuma festa à qual ela não planejava comparecer e acontecimentos dos quais elanão queria e sequer tinha permissão de comentar, alguma mestiça malucaassassina com uma faca velha e enferrujada havia invadido seu quarto edeixado uma ameaça, dizendo que ela estava prestes a ser traída por alguém.

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Isso aferrenhou a mente da garota com mais mil perguntas: quem iria traí-la?Como a dona do diário sabia? Ela era alguma coisa parecida com a Ally epodia ler mentes? E o que ia acontecer?Para piorar, Kristell fez todos na casa do Edgar lerem o bilhete.Todos tiveram mais ou menos a mesma reação: aquela era a melhor caligrafiaque já tinham visto, mas não tinham ideia de quem poderia ser a dona.Tereza sugeriu que procurassem digitais no papel.Wendy gostava dela desde que a vira lutando com kusarigama, porém, depoisdessa ideia à la Christina, Wendy escolheu amá-la platonicamente.Mas no final, não havia marca alguma no papel.Quase meio dia e Wendy resolveu que valeria mais a pena encontrar Caleb econtar o que havia acontecido.E passar a tarde com ele, afinal, isso ainda estava nos seus planos: esse diaera para ser dos dois, eles deveriam ficar juntos, sozinhos um com o outro,para que Wendy pudesse sentir aquele sentimento estranho que brotava nopeito sempre que estava perto dele.Talvez até esquecesse de mencionar a ameaça, teria mais o que fazer.Como sentir-se quente e querida por ele.Ser só dele.Mas ele não estava em lugar algum.Um gosto amargo se embalsamou na boca de Wendy quando chegou ao farole viu que estava totalmente vazio. Foi naquele momento que o dia começou aficar cinza.Cinza como a tempestade nos olhos de Caleb.Com pressa e esperança atordoada no peito, ela resolveu procurar ondecostumavam treinar: a encosta de uma das montanhas que cercava Tuonela.Ela nunca tinha percebido o quão difícil era escalar aquele negócio sem Calebpara controlar os ventos e fazê-la levitar até o ponto em que fossem treinar.Para melhorar seu ânimo, seu leitor chato interior estava sendo infernal,questionando a lógica dos poderes de Caleb no meio do percurso: seriapreciso um vendaval absurdamente violento para fazer duas pessoasrealmente saírem do chão, blablabá, leis da física e tudo mais.Parecia difícil aceitar que Caleb era realmente muito bom no que fazia.Mas quando Wendy acordava desse jeito, era difícil aceitar quase qualquercoisa.Exceto chocolate, nem o fim do mundo a faria recusar um chocolate.Estava correndo pela trilha o máximo que suas pernas permitiam. Quando

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percorreu cerca de um quinto do caminho, foi surpreendida pela últimapessoa que esperava encontrar.Kahsmin.“Não imaginei que você já estivesse boa o bastante para escalar montanhassozinha.” Ele disse, sem o toque de humor tradicional dele.“Eu achei que Caleb estaria aqui.” Wendy respondeu, se aproximando deonde Kahsmin estava: era uma pequena clareira onde o sol se esforçava parafazer-se presente, uma clareira onde Wendy se lembrava de ter parado paradescansar e cuidar de alguns cortes que fizera ao tentar desviar de flechas queCaleb se preocupava cada vez menos em tirar do seu caminho.Treino é treino.Kahsmin bufou e se virou com um sorriso estranho para a garota.“O amor nos faz fortes quando somos jovens, não é?” Ele perguntou, eWendy percebeu que a estranheza no seu sorriso era apenas melancolia.“Como é?” Ela perguntou confusa.“Eu já fui jovem, por incrível que pareça.” Ele continuou ainda sorrindo,“houve um tempo em que lembrar de uma simples voz era capaz de me fazersentir forte o bastante para enfrentar o próprio Allenwick D’arlit, só com asmãos.No entanto, a sensação de ter forças ao pensar em alguém, bem, hoje ela écomo um sonho para mim, um sonho que eu luto para manter presente naminha vida.” Ele soltou um suspiro tão cansado que chegou a doer emWendy, “mas o destino dos sonhos é o esquecimento, logo eu perderei essabatalha e não sobrará nada além da fímbria reminiscência de que, um dia, eufui amado e feliz.”Kahsmin bufou outra vez, e Wendy sentiu como se nunca o tivesse visto navida, pois não conseguia reconhecer o Kahsmin que a recebeu em Tuonelanaquele homem: era o mesmo corpo, mas não havia brilho no olhar, ouhumor, ou graça... era só um homenzinho apagado e com dor.“Ignore os devaneios deste velho, estou longe de me sentir eu mesmo agora.”Ele disse no que parecia ao mesmo tempo um lamento e um consolo, “Calebsaiu com Anuk, faz quase um mês inteiro que Anuk soube que havia outramestiça a ser buscada hoje.”Talvez pareça egoísmo, talvez realmente seja, ou apenas imaturidade, masWendy esqueceu tudo que estava sentindo em relação à Kahsmin ao ouviraquilo.“Ele foi embora? Ele sabia que ele não estaria aqui hoje?”

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“Ah sim, Caleb não é o tipo de pessoa que se esquece este tipo decompromisso, mas ele deve voltar em tempo para a Gala Mascarada, issodeve fazer você se sentir melhor, não é?”Não, não é.Se um dia você esteve apaixonado e foi deixado de lado, você sabe o que é sesentir abandonado: é um sentimento oco que brota no peito, sugando tudo debom que existe dentro de você, deixando apenas uma carcaça de olhar vazio epensamentos cinzentos, raramente com força o bastante para ficar em pé.Abandono era saber que Caleb estava ciente de que não poderia passar essedia com ela, e mesmo assim ter prometido que o faria, abandono era saberque ela não era importante o bastante para que ele se preocupasse em avisá-la, quem sabe para o que mais ela não era importante o bastante?Foi por isso que Wendy caiu no chão, o abandono era pesado demais paraela.Kahsmin se apressou para ajudá-la a ficar em pé.“Você está bem? Você comeu alguma coisa hoje?”“Sim.” Wendy disse, embora tivesse acabado de perceber que não haviaalmoçado, “eu tô cansada, e minhas pernas ainda não estão muito boas, achoque eu vou voltar pra cidade, desculpa te atrapalhar, Kahsmin.”“Tem certeza que não quer ajuda? Você não parece bem.” Kahsmin dissepreocupado.Mas Wendy se afastou sem dizer mais uma única palavra.Quando já estava bem longe, ouviu Kahsmin cantarolando uma melodiamelancólica.De acordo com Caleb, essa era a melhor hora para descobrir alguma coisasobre o passado daquele homem, mas, por mais estranho que fosse, ela nãoestava interessada em voltar. Sequer considerou que aquela iria ser sua únicachance, já que não planejava estar em Tuonela no dia seguinte.Foi assim que Wendy aprendeu que, com dor o bastante, você pode sufocarqualquer coisa, da alegria de um grande magnânimo até a curiosidade de umaaventureira.Ela se arrastou de volta para a casa do Edgar, tentando não se sentir mal,lembrando a si mesma que não era o fim do mundo e que, assim que Calebvoltasse, eles ainda passariam algum tempo juntos, mesmo que fosse noOrfanato das Neves.Claro, talvez depois que ela voltasse para o orfanato, era possível que elanunca mais voltasse a ver Caleb, e esse era um dos motivos principais para

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ela querer mais que tudo ter passado esse dia com ele.Mas não era importante.Era só tudo que importava.Em algum ponto, tentou argumentar usando a razão: Caleb nunca teve amenor intenção de abandoná-la, ele apenas tinha um dever que tinha quecolocar em primeiro lugar, não é tão diferente de namorar um estudante quetem um teste importante e te deixa de lado para poder se preparar.Mas será que ele ia morrer se tivesse avisado?Wendy tentou usar a razão mais algumas vezes, mas se você acha que a razãotinha mesmo alguma chance de vencer, você não sabe o que é serabandonado por alguém em quem depositamos todo o nosso carinho e afeto.Assim que entrou em seu quarto, ela fechou a porta e começou a chorar,sequer se preocupou em chegar até a cama, apenas deixou suas costasescorrerem como água da porta até o piso frio, pensando em Caleb, em todasas vezes em que quase morreu, em como queria voltar para a irmã Sarah, emcomo sentiria falta de Kristell, em Anuk, Tupã, Kahsmin... mas Calebprincipalmente.Talvez ela não devesse ir embora... talvez pudesse evitar sua má sorte daquipra frente.Não, ela não conseguia acreditar nisso, ela era a “Dama da Sorte”, e o dia dehoje havia provado isso de todas as formas possíveis, não tardaria até algumaque coisa irreversivelmente ruim acontecesse com ela.“Wendy?” Kristell chamou do outro lado da porta.Como um raio, Wendy foi até o banheiro, ligou o chuveiro e gritou: “Tô nobanho, Kris!” Fazendo o melhor possível para soar como se estivesse tudobem.“E por que o quarto tá trancado?” Kris gritou de volta, mas antes que Wendypensasse em uma resposta, Kris emendou, “só destranca a porta pra mim! Eupreciso terminar de me arrumar pra gala!”Wendy molhou os pés descalços no chuveiro e depois correu para destrancara porta.Antes de Kristell terminar de abri-la, Wendy já estava de volta ao banho.Normalmente, as gotas d’água faziam cócegas quando caíam em seu rosto,mas hoje, elas a retalhavam, cada uma fazendo seu amago berrar gritos fortescomo trovões, mas ela não ousaria verbalizá-los, não onde ela teria queexplicar o que estava acontecendo para todos que a ouvissem.Quando a dor trancada dentro dela foi demais, sua mente generosa mergulhou

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seu corpo em um doce e suave torpor, como se, de repente, tivesse setransformado em uma pena flutuando acima do olho de uma tempestade numoceano azul de sentimentos amargos.Foi quando ela parou de sentir.Foi a melhor parte do seu dia.Foi quando ela chorou mais.Gostaria que aquele banho pudesse durar para sempre, mas Kristellprovavelmente arrombaria a porta se ela ficasse lá para sempre, então,quando sentiu que poderia voltar a agir como uma pessoa normal, Wendy seembrulhou em uma toalha macia como o vento e...“Finalmente!” Disse Kristell, esperando prontamente por Wendy do lado defora do banheiro, segurando um objeto de tortura que mais tarde eladescobriria se chamar espartilho em uma das mãos, enquanto a outra tinhaum dos vestidos mais lindos que já tinha visto.“O que é isso tudo?” Wendy perguntou confusa.“Suas roupas para a Grand Gala Mascarade!” Kristell disse excitada comouma criança.Wendy queria dizer que não iria, que não estava com um pingo de vontade,queria reclamar do jeito brusco com que Kristell tirou a toalha de seu corpo ecomeçou a vesti-la com o que parecia uma camisola roubada de Bric-à-Brac.Não fez nada disso, o torpor estava doce demais para que ela quisesse rompê-lo, apenas ficou lá, reparando vagamente na amiga que a vestia, só vindorealmente a reclamar em voz alta quando ela começou a dar os laços noespartilho.“Kris, eu não vou usar isso.” Ela murmurou.Kristell ignorou e continuou fazendo os laços nas suas costas.“Kris...”“Você já tá usando e só vai tirar quando a festa acabar.” Kristell respondeudessa vez.“Kris...”“Você vai me agradecer quando se olhar no espelho, agora tenta ficar quieta.”Não fosse pelo aperto do espartilho, ela teria bufado ao ouvir aquilo.Mesmo em seu estado de humor duvidoso, tinha que admitir, Kristell estavatrabalhando como uma verdadeira artista para fazer Wendy ficar o maispróxima possível de deslumbrante, fosse cortando fios soltos do vestido outirando medidas da cintura da garota para saber quanto deveria apertar oespartilho.

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O desastre veio na hora do cabelo.“O que é esse negócio?” Wendy perguntou, apontando para o negócio queparecia uma pinça superdesenvolvida nas mãos de Kristell.“É um moldador de cabelo, o Mano Pamonha que fez esse.” Kristell disse, eao ver a cara de Wendy, acrescentou, “ei, ele pode ser meio lerdo, mas eleque fez todo o esquema das luzes que você viu quando eu dancei pra você noginásio.”“E o que isso aí faz?”“Você vai ver.” Kristell disse ao colocar o objeto em cima de uma cômoda.Quase um minuto inteiro se passou sem nada acontecer antes de Wendyperguntar: “Era pra acontecer alguma coisa?”“Passa a mão perto dele.”Wendy o fez sem questionamento, e sem nenhuma expectativa, talvez porisso tenha se surpreendido tanto quando percebeu que– “Por que tá tão frioassim?”“Ele suga o calor em volta dele e concentra todo ele nessas placas de... eu nãosei bem do que elas são feitas na verdade.” Kristell disse, apontando para asgarras da pinça superdesenvolvida, “agora olha isso.”Kristell pegou o moldador de cabelo, prensou uma mecha de Wendy nele ecomeçou a deslizar a invenção do Mano Pamonha pelo seu cabelo. Wendypodia sentir o calor crispando, como se Kris estivesse fazendo churrasquinhodo seu cabelo.“Olhe!” Kristell disse, colocando Wendy na frente do espelho.Se fosse ontem, ou pelo menos antes de Wendy descobrir que Caleb nãopassaria o dia com ela, ela teria arregalado os olhos, deixado seu queixo cair efeito mil perguntas sobre como aquilo podia ser possível: a mecha queKristell havia submetido ao tratamento do moldador havia ficado, não lisa,mas literalmente moldada, como num penteado feito daqueles dos filmesantigos que ela assistia com a irmã Sarah de vez em quando.Invés de perguntas, no entanto, ela apenas forçou um sorriso e disse: “Quelegal, Kris.”“Eu sei! Quer tentar? É super fácil e você vai ficar linda!” Kristell disse,passando o moldador para Wendy.Fazendo o máximo que podia para não parecer desinteressada, Wendy pegoua pinça gigante, colocou uma mecha dentro e tentou imitar o que Kristellhavia feito: enquanto fazia os movimentos, percebeu que aquilo era, de fato,muito mais fácil que parecia.

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“Ficou ótimo!” Kristell exclamou batendo palmas ao ver o resultado, “vocêquer fazer o resto enquanto eu desço pra pegar as máscaras que eu escolhi pragente?”“Pode ser.” Wendy disse sem convicção, mas Kristell estava excitada demaispara notar.Uma, duas, três mechas de cabelo passaram pelo moldador, e como seucabelo estava longe de ter sequer um terço do comprimento que tinha, nãohavia como aquilo tomar muito mais tempo.O problema era que Wendy estava se olhando no espelho enquanto fazia isso.Em uma fração refletida de segundo, ela viu a verdade, a verdade que faz otempo parar, a verdade que contém o infinito em um momento, e como amaioria das verdades, ela era feia como um cadáver e sombria como oesquecimento.Como ela podia acreditar que alguém como Caleb poderia realmente estarinteressado por alguém como... ela? Se ele estivesse, teria se dado ao trabalhode avisá-la que não poderia passar o dia com ela.Mas não estava, e o motivo a estava encarando através do espelho: era sóuma garota normal, tão comum, tão aleatória e confusa. Como aquela garotapodia mesmo ter se dado o luxo de acreditar que realmente era interessantepara ele?No começo, talvez ele tivesse se interessado em alguma coisa nela, os olhosverdes com manchinhas castanhas ou o sorriso bobo, talvez, ela podiaentender que um homem os achassem atraentes, até a Kristell os achavaatraentes (embora a opinião dela seja suspeita e raramente deva ser levada emconta), mas onde estava com a cabeça para acreditar que isso seria obastante?Enquanto ele, bem, ele podia não ser exatamente idolatrado, mas ainda assim,ele era muito mais que ela jamais poderia sonhar em ser, ele era um dosguardiões de Tuonela, o único mestiço de anjo cuja existência era conhecida,pelo menos por ela, e era também a única pessoa de quem a Harbinger daMorte sentia medo, caso contrário ela não iria até Tuonela só para encontrá-lo.Já ela era só a Wendy, sem sobrenome, a garota do orfanato com mentalidadede doze anos, que inventava histórias para divertir crianças, que chamavaespantalhos de palhaços do mato e baleias assassinas de pandas do mar parafazer as meninas rirem, que raramente conseguia ter uma conversa séria semestocar uma piada no meio, aquela menina que todo mundo secretamente

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achava louca.Por mais que odiasse ser chamada assim, talvez fosse hora de encarar averdade, ela realmente deveria ser louca, o que mais a faria acreditar queCaleb realmente sentisse por ela o que ela sentia por ele?“WENDY!” Kristell berrou assustada para a amiga.Antes que pudesse entender o que estava acontecendo, Kristell a pegou pelamão e puxou com violência até a o banheiro, onde ligou a água e mergulhoua cabeça de Wendy lá dentro.Quando sentiu o cheiro de fumaça foi que entendeu o que havia acontecido.Havia incendiado seu cabelo com o moldador.Parabéns, Wendy, você é inútil até pra isso.Depois de apagar o fogo e de uma temerosa olhada no espelho que, para seualivio, revelou que apenas as pontas da mecha que estava segurando haviamqueimado, Kristell recomeçou o penteado de Wendy, sem moldador dessavez.“O que aconteceu?” Ela perguntou enquanto colocava alguns grampos aqui eali.“Eu me distraí com uma ideia.” Wendy respondeu prontamente.Kristell não insistiu no assunto, mas prestou muito mais atenção na amigadepois do incidente, o que fez Wendy tomar cuidado dobrado com suaspalavras daquele ponto em diante.Quando terminaram, Kristell fez vários comentários sobre como Wendyparecia um quadro de Jaques Araque, o que era de longe o elogio de piorgosto que ela já tinha ouvido desde que chegara em Tuonela, mas ela oagradeceu.Falaram bem pouco até chegarem às portas do grande casarão branco, ondeKristell ofereceu a máscara de Wendy. Ela esperava que fosse a de umanimal, já que algumas pessoas tinham máscaras de gatos e corvos.Sua máscara, no entanto, era simples, do tipo que cobre apenas os olhos,tinha as mesmas cores que seu vestido e toda a elegância e charme que umamáscara de época pode ter.Não era quase nada diferente da que a própria Kristell estava usando, excetona cor.“Obrigada, Kristell.” Ela disse entre os dentes.“Você merece muito mais, sua linda. Você merece toda felicidade domundo.”Wendy queria muito acreditar nisso.

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Mas existe uma receita para tristeza.Uma que só precisa de dois ingredientes.Um deles, nós já conhecemos.O segundo?Ora, o que poderia fazer uma mistura mais amarga que expectativas erealidade?Com isso em mente, Wendy e Kristell entraram para a Grand GalaMascarade.

Caleb, mais que ninguém, deveria saber que Anuk estava bem, aquele loboera mais sagaz do que metade de Tuonela junta. Também deveria saber queele estava longe demais para julgar o que estava prestes a fazer.Mesmo assim, quanto mais o tempo passava, mais ele sentia o olhar azulmarejado do lobo pesando contra suas escolhas e atos. Era um julgamentoduro, repleto de expressões do naipe “como você pode ser tão idiota?”,desapontamento e desaprovação. Caleb quase podia ouvir as palavras do loboem sua mente, pedindo para que ele reconsiderasse.Quase.Um raio rasgou o céu, iluminando as massas negras que eram o mar e acatedral de Tuonela, o farol quase abandonado que ele chamava de lar e ocasarão branco onde acontecia a festa do aniversário de Tuonela.Caleb podia ver a todos do alto da montanha, principalmente o casarão.Uma parte dele, cuja existência ele já havia quase esquecido, gostaria de estarlá embaixo: era a parte dele que ainda se lembrava como era bom ser querido,estar na companhia dos outros, que sentia falta das conversas descontraídas,palavras amigas de pessoas normais, bebidas com Henrik.Uma parte dele que o torturava, que vivia e ansiava por uma época que haviamorrido junto com sua mãe e mais da metade da cidade, mergulhados parasempre sob as águas e memórias das ruínas de Tuonela.Houve um tempo em que Caleb daria o mundo para poder esquecer queaquela época foi real.Pinceladas d’água pintaram o solo sob seus pés, deixando a terra ao redor desuas botas ainda mais escura. Eram gotas tão frágeis que ele mal as sentiacaindo contra seu rosto.

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Uma memória antiga como a felicidade se aproximou dele.Uma memória onde ele era apenas uma criança, onde havia uma mãe.Não era nada demais, não conseguia realmente ver o rosto dela, mas podiaouvir a sua voz tão bem quanto o trovão e às ondas que arrebentavam no caisde Tuonela.“As piores tempestades são as que começam pequenas.” Ela havia dito umdia, quando ele era apenas uma criança, incapaz de entender que aquilo eramuito mais que um conselho sobre o tempo.Estaria mentindo se dissesse que não sentia falta do tempo que passou comela.Ou que a chuva engrossando aos poucos não parecia um mau agouro.Mas ele tinha que esperar aqui, era o que o ultimato de Gambler dizia.A culpa por não ter conversado com Anuk sobre o ultimato já rastejavaprofundamente sob sua consciência: ele deveria ter mostrado o que estavaescrito para o lobo, mostrado que aquela realmente era uma oferta quealguém na posição dele nunca seria capaz de recusar.Caleb teve várias chances de discutir seus planos com o lobo, mas no fundo,ele sabia que não queria correr o risco de ser dissuadido pelas razões sólidasque Anuk ofereceria, razões que ele mesmo já havia cuidadosamenteanalisado, ponderado e...... ignorado ...As palavras do ultimato haviam sido claras quanto ao local de encontro:“Encontre-me onde nos conhecemos, eu chegarei com a tempestade.”Não havia dúvida de que a tempestade estava tomando forma, assim como aansiedade de Caleb. Normalmente, ele não sentiria nada além de friapaciência ao aguardar por pessoas do calibre de Gambler, mas normalmente,ele as aguardaria para que pudesse por um fim em suas vidas, não paranegociar.A chuva finalmente fez-se perceber quando uma lufada de vento ensopouCaleb com uma rajada fria de água.Um farfalhar nas folhas.“Gambler?” Ele chamou firme, fazendo força para não seguir o instinto deconjurar o arco e flecha.Nada.Ele soltou uma risada nervosa junto ao novo estrondo que ensurdecia o céu eatormentava as águas do mar, parecia que havia voltado quase trinta anos notempo, esperando uma punição por ter feito algo errado.

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A ideia de um pequeno Caleb de cabelos escuros se escondendo da própriamãe abrandou seus nervos. Até podia rever o dia em que havia quebrado ojarro favorito de sua mãe porque achava que ele tinha vida e ficava espiandotudo que ele fazia.Uma nova lufada de vento, uma nova rajada de água fria como a realidade.Caleb esperava que isso pudesse ser rápido, ainda tinha esperança deencontrar-se com Wendy naquela noite.Queria poder tê-la visto durante a tarde, mas com toda a confusão que aqueleultimato fizera em sua cabeça, havia se esquecido que ele e Anuk tinham umamestiça para buscar no mundo do Orfanato das Neves hoje.Nada poderia ter sido mais estranho que resgatar aquela mestiça...Pois não havia mestiça alguma.No momento em que pisaram no mundo do orfanato, Anuk percebeu quehavia alguma coisa muito errada: a mestiça cuja presença ele sentira nãoestava mais lá, e “lá” não se referia ao Orfanato das Neves.A mestiça sumira daquele mundo por completo.Havia décadas que Caleb conhecia Anuk, e nunca em todo esse tempo elehavia visto o lobo tão inquieto. Não era como se a garota tivesse morrido,como aconteceu na Irmandade dos Garotos Sem Nome, se fosse o caso, elepoderia pelo menos sentir os vestígios de sua presença naquele mundo.Não era o caso.Caleb e Anuk passaram a maior parte da manhã e da tarde em busca dequalquer sinal da mestiça perdida, sempre tendo o máximo de cuidadopossível para não chamar a atenção, o que é bem difícil quando um de vocêsé um cara de cabelo branco com um naco da orelha faltando e o outro é umlobo do tamanho de um pônei.Eram quase três da tarde quando Anuk resolveu que seria prudente chamar aatenção de Sarah para que Caleb pudesse fazer algumas perguntas.Mas Sarah também não tinha nada a dizer: ninguém havia sido adotada,ninguém estava faltando, todas as meninas lá, bem e inteiras.O que apenas inquietou mais Anuk.“Como está Wendy?” Sarah perguntou quando o pequeno interrogatórioacabou.“Talvez seja melhor você perguntar para ela, eu vou trazê-la para cá hoje ànoite.” Caleb disse, e acrescentou ao ver a expressão preocupada da mulher,“ela diz que sente muito a sua falta.”A irmã sorriu ao ouvir isso.

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“Eu também sinto a dela, eu pediria para você me contar tudo que aconteceunesses últimos dias, mas se a Romena perceber que eu sumi ela vai memandar para o convento, então, por enquanto, até logo, Caleb.” Ela disse seafastando.Dados por vencidos, Caleb e Anuk voltaram para Tuonela no final da tarde,mas, antes que se afastassem do lago, Anuk disse na mente de Caleb.“Há algo errado aqui.”“Eu sei.”“Não só a garota.” Anuk rosnava enquanto se comunicava com Caleb “Nósnão fomos seguidos, não há sequer sinal dos D’arlit por perto. Isto estáerrado, até ontem eu sabia que havia pelo menos três me seguindo.”“Talvez isso esteja relacionado com o ataque da Harbinger à Tuonela, elessabem que a cidade não é deles, e sabem que eu estou por aqui, talvez tenhamordens para não se aproximar demais de você e da cidade.”Caleb não acreditava nas próprias palavras, mas estava com pressa, faziaquase três horas que ele queria ver Wendy e a única coisa que o impedira foratoda essa perda de tempo inútil.“Caleb, sinto que alguma coisa está errada no Orfanato das Neves.”“Eu também.” Confessou Caleb.“Eu vou voltar e descobrir o que é.” Anuk disse em seguida.“Não seria melhor esperar a chegada do velho sábio e consultá-lo?”“Eu não confio que a sabedoria dele se estenda para questões deste porte,Caleb, mas se preferir, fique. Eu me encontrei com o velho sábio faz apenasalguns dias em Virrat, ele disse que estaria aqui antes do aniversário deTuonela, deve chegar a qualquer momento agora. Até logo.”Sem mais delongas, Anuk mergulhou no Lago Viajante e logo sumiu devista.Assim que se viu sozinho, Caleb considerou procurar Wendy, mas percebeuque já era tarde, nuvens começavam a tomar seu lugar no céu e o sol já estavalonge de estar alpino.“Espere pela tempestade.” ele se lembrou das palavras do ultimato.Poderia ter usado dos seus poderes para voar até o farol, mas calculou queainda tinha tempo, por isso, escolheu andar: não havia nada que o ajudasse afazer decisões tão bem quanto uma caminhada.Já havia percorrido quase toda a trilha, indiferente para o vento ou o pássaropreto de calda e asas azuis que sobrevoava a cidade, quando o cantarolar deuma voz conhecida o fez saltar para fora de suas divagações.

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“Não aguentou ficar perto da Autumn durante o aniversário de Lorina?”Caleb brincou ao ver Kahsmin tão longe da catedral.Kahsmin parou imediatamente, olhou para Caleb com um sorriso, que sumiuno mesmo instante e, sem tardar, foi substituído pela expressão mais pura deconfusão.“A garota mestiça não quis vir?” Ele perguntou.Caleb passou os próximos dez minutos contando tudo que havia acontecido.“Isso é sem dúvidas algo muito peculiar, mas são tempos peculiares estes quevivemos: míriades em Virrat, Louhi e seus gigantes acordando, navios D’arlitsumindo em alto mar, revolta em Mångata. Eu espero que Anuk tenhasucesso em sua busca.” Kahsmin disse com o semblante pensativo, “Wendyesteve procurando por você, ficou bem cabisbaixa quando eu disse que vocênão estava.”“Eu esqueci de avisá-la que eu tinha compromissos hoje.” Caleb disse,tentando esconder a culpa que sentiu tanto por ter esquecido de avisar Wendyquanto por ter esquecido o compromisso em si, “se a vir antes da festa, digaque a encontrarei lá.”“Certo. Eu me apressaria se fosse você, parece que uma tempestade vem aí.”“Eu sei. E você? Não vai se arrumar?” Caleb apontou.“Eu já estou pronto.” Disse, apontando para as roupas que mais lembravamrobes de cores que Caleb não conseguia discernir entre vinho puído ousimplesmente marrom, e uma curiosa faixa, de tom levemente mais claro,circulando toda sua barriga, “e minha máscara já está me esperando no lugarda festa.”“O Henrik que eu conheço nunca usaria essas roupas.”“O Henrik que você conhece odeia ser chamado de Henrik, e ele está velhodemais para se importar com o que a versão mais nova dele mesmo gostariade vestir.” Kahsmin disse com um sorriso, “melhor correr, Caleb, se quiserainda tenho a máscara que emprestei alguns anos atrás.”“Eu preferiria nunca mais ver aquela coisa.” Caleb respondeu.Kahsmin deu de ombros e acrescentou: “Você quem sabe, boa sorte, até anoite.” Dito isto, Kahsmin voltou a andar.Caleb, não fez nenhum esforço consciente para acelerar o passo, mas seriamentira dizer que ele estava caminhando sem pressa como antes, talvezcontinuasse distraído com o que estaria para acontecer naquela noite, talveznão estivesse pensando em nada além de memórias aleatórias que ele sequersabia que tinha.

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Não teria tempo para descobrir, pois antes que se desse conta, já estava nofarol.Houve um banho no chuveiro que, se ele bem lembrava, sua mãe haviaconstruído de improviso. Junto com o banho, um cantarolar libertador,culposo e alegre.A hora estava chegando.Não precisou de muito tempo para escolher suas roupas: as opções eramsobretudos cheios de correntes e fivelas, uma camisa branca que ele nuncausou e... é, lá estavam eles.Embora estivesse quase todo coberto de poeira, continuava tão bempreservado que surpreendeu até o próprio Caleb.Era um conjunto que consistia de:Uma camisa com babados de renda no peito e nas pontas da manga, no estilodas que Mr. Darcy usaria, tudo num tom cinza que parecia ter sido feito paracombinar com seus olhos.Um fraque de veludo, preto e com cauda mediana que Caleb sempre gostavade usar quando tocava em público. O ar de maestro que a peça lhe forneciasempre fora de seu agrado.Um par de calças feitas do mesmo material e cor que o fraque.Sapatos feitos à mão, com cano baixo e bico ligeiramente empinado, no estilodos feitos em Bric-à-Brac, e meias.Estavam do mesmo jeito que estiveram quando ele os vestiu pela última vez.Vinte anos atrás.Numa festa não muito diferente daquela.Caleb levou mais tempo do que realmente seria necessário para vestir aquelaspeças, abotoando cada botão com o cuidado de um luthier que afina as cordasde um piano, como se temesse que força demais fosse arrebentá-los ou que,se fosse rápido demais, deixaria algum detalhe passar despercebido e acabariapor destruir todo o ritual que era vestir aquelas roupas.Era esse o cuidado que Caleb Rosengard costumava ter quando se arrumavapara uma ocasião como esta, pelo menos até passar a ser odiado por Tuonela:nada nele podia estar errado, mesmo que os outros não fossem perceber, eleperceberia, e isto seria mais que o bastante para frustrá-lo.Quando terminou, quase se espantou ao olhar-se no espelho e perceber queseu cabelo era branco.Esperava ver seu eu de dezesseis anos de idade refletido ali.Fazia décadas que não se arrumava com tanta elegância.

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A sensação era melhor do que se recordava.E se tudo corresse como o planejado, ele poderia se acostumar a vestir-sedaquela forma com mais frequência.Era nisso que estava pensando quando pegou o ultimato de Gambler e o releupela enésima vez, apenas para ter certeza de que não havia nenhum truqueescondido na carta.

Caleb Rosengard, chegou ao meu conhecimento que, recentemente, vocêatacou meu servo gratuitamente, ao mesmo tempo em que declarou não se

importar mais com nosso pequeno acordo, o qual, devo lembrá-lo, vocêquebrou.

Devo admitir que, em partes, estou desapontado, você poderia ter ido tãolonge se não tivesse feito uma escolha tão pobre...

No entanto, eu sou misericordioso: você mostrou uma força de espírito muitogrande, e eu admiro força, por isso, resolvi que seria inteligente da minha

parte se, ao invés de transformar sua vida em um inferno e assisti-lo morreraos poucos (como viu que posso fazer em Virrat), eu o usasse em meu favor.Sim Caleb, eu estarei fazendo vista grossa para suas escolhas pobres, e ainda

estarei dando a você uma chance que muitos dos que ajudei no passadomatariam para ter.

Como prova de minha boa vontade, vou listar três dos benefícios que terá,caso aceite:

Todas as condições impostas a você por nosso acordo anteriorserão esquecidas.Você terá liberdade para fazer e sentir o que quiser, por quemquiser.Eu vou pessoalmente assegurar que seu nome seja sinônimo deheroísmo.

Pense bem, Caleb Rosengard.Eu posso fazer você voltar a ser visto como a lenda que você é, aqueles quehoje o odeiam hão de respeitá-lo amanhã, pessoas farão filas só para vê-lo e

lhe tratarão com o devido decoro que alguém do seu porte merece.Não haverá mais necessidade de esconder seu rosto, à menos que não queira

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que aglomerações se formem na sua presença. Crianças só vão ser umincomodo quando elas o cercarem em uma roda para dizer o quanto o

admiram o gostariam de ser como você.Você consegue ver o que estou realmente oferecendo, Caleb?

Sua vida antiga, estou oferecendo-a de volta para você.Caso não aceite, terei de cobrá-lo pela forma abrupta com que rompeu nosso

último acordo.Acredito eu estar sendo bem generoso, não acha? Camarada.

Para aceitar, espere até o dia do aniversário de Tuonela, neste dia, encontre-me onde nos conhecemos, eu chegarei com a tempestade.

Então, nós discutiremos os detalhes.

Esta oferta é meu ultimato, Caleb Rosengard.Faça a escolha certa, estarei esperando.

- Gambler

Era nessas palavras que ele estava pensando quando finalmente decidiu queseria inteligente da sua parte proteger-se da chuva, não que se importassecom a água, mas se importava com as roupas que estava usando.Que pensamento idiota para um homem que se diz “A Morte em Pessoa”.Mas esse pensamento veio de outra época, uma época que estava morta.Uma época que Gambler estava se oferecendo para trazer de volta à vida.A ansiedade já estava quase insuportável, mas ele tinha que manter-se calmo,sua compostura era de suma importância quando fosse “discutir os detalhes”do novo acordo, ele deveria estar preparado para manter-se frio para casodetectasse uma armadilha, deveria estar pronto para atacar.Anuk nunca teria permitido que ele sequer tivesse vindo para o local sugeridopor Gambler, sozinho, e esse é um dos principais motivos para Caleb terdesistido de contar para o lobo: sabia que ele não daria uma chance para queCaleb negociasse.Não, o plano dele provavelmente seria contatar Kahsmin, Autumn e outrosque fossem capazes de lutar, já que Gambler estaria revelando-se comtamanha boa vontade para eles.Por mais que odiasse Gambler, Caleb odiava dez vezes mais saber queperderia para sempre a chance de ter sua antiga vida de volta caso oatacassem.

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Ele não queria correr este risco.Por isso, estar sozinho era a melhor opção: ele poderia discutir os termos deGambler e, caso houvesse qualquer sinal de problema, Caleb sabia a verdade:não havia horda de demônios que fosse capaz de subjugar a Morte emPessoa.Na pior das hipóteses, ele estava apenas alguns metros acima de umaaglomeração de mestiços e demônios que vinha se preparando para umaguerra há pelo menos dez anos, nada o impediria de chegar até lá embaixo,onde a festa estava acontecendo, caso fosse necessário.Mas não seria, Caleb não tinha planos de descer até lá à não ser que fossepara comemorar o renascimento de sua antiga vida, celebrar dividindo umadança com Wendy, enquanto compartilhava vinho e gargalhadas comKahsmin, como nos bons tempos.Um sorriso involuntário brotou em seu rosto com aquelas ideias.Com tantas distrações em sua mente, ele nunca teria uma chance de ver o queestava acontecendo.Fogo, Caleb se viu cercado por fogo. Embora as chamas estivessem a pelomenos vinte metros de distância dele, eram altas como uma muralha, etotalmente indiferente à chuva que não parava de cair.O fogo veio de um raio que Caleb sequer teve tempo de assimilar, tamanhafora a velocidade de todo o processo. Ao mesmo tempo em que tomouconsciência das chamas, ele se viu berrando de dor com o estrondo que otrovão fizera reverberar em seus ouvidos.Foram dois segundos inteiros de dor e surdez.Dois segundos indefeso.Dois segundos que poderiam custar sua vida.Logo em seguida, houve a luz de seu arco se formando em suas mãos,mirando bem no meio das chamas ululantes que via balançando perante si...onde ele tinha certeza de que havia um vulto observando.Não, não um vulto, centenas deles, atrás das chamas que ardiam como o sol.“Abaixe a arma, Caleb Rosengard.”O arco sumiu de suas mãos, o vento rosnou mais forte e logo a água começoua fazer seu efeito e diminuir as chamas bruxuleantes, reduzindo-as à quasenada, enquanto o vulto para o qual Caleb estivera apontando se aproximavacom a calma de um sabiá na manhã.Um vulto que não pertencia à Gambler.“Eu sempre gostei dessas roupas.” Disse uma voz que não pertencia à

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Gambler.Seus olhos não podiam acreditar no que viam, estava claro como a lua queaquela era uma pessoa que ele conhecera outrora, uma em quem ele semprese pegava pensando quando se sentia nostálgico, uma que, contra suavontade, veio a sair de sua vida.Ele não sabia que reação ter ao vê-la voltando, caminhando com umadeterminação estranha e familiar ao mesmo tempo.Logo, ela estava tão perto que Caleb pôde sentir seu cheiro, doce comomemórias.“Me lembra a última vez que nos vimos, não é?” Ela disse, parando à menosde um palmo de distancia de seus lábios. Ele havia esquecido por completoque ela era quase tão alta quanto ele próprio.Não sabia o que devia sentir: raiva seria uma resposta normal, mas não eraraiva que sentia ao vê-la. Medo seria outra resposta normal, mas a Morte emPessoa não sentia medo, apenas incredulidade e um espanto paralisante que ofez incapaz de racionar.Para ser honesto, havia alguma coisa de felicidade ali também.Felicidade irracional que não deveria sentir depois de tudo que passou.Em meio à toda confusão, ele tardou a perceber a mão dela estendida à suafrente.Sem pensar, Caleb a segurou com a leveza de uma brisa outonal e levou-a atéseus lábios: o calor que a mão emanava o atordoou, mas não o bastante paraimpedi-lo de dizer: “Acredito que já nos vimos antes.” Disse CalebRosengard.“Acredito que seja verdade.” Respondeu a Princesa Helena E. D’arlit.Uma Serpa rugiu quando a voz d’Aquela que Traz a Morte fez-se ouvir natempestade.

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Capítulo 42

“Acho que é só isso.” Fawkes disse, olhando para sua pilha minguada depertences enquanto tentava desesperadamente inventar alguma coisa quepudesse atrasar sua partida.Mas não havia como criar mais coisas para fazer aqui, à menos que eleincendiasse o quarto, apenas para apagá-lo e aproveitar com prazer o tempoque levaria para fazê-lo.É engraçado, não é? Passamos a vida inteira em busca da Grande Aventura,sempre fantasiando o quão magnifica ela será, o quanto nos divertiremos,quem encontraremos no caminho, o quanto arriscaremos, o quevivenciaremos, o quanto cresceremos...Ainda assim, quando finalmente a encontramos, nós ficamos com medo, oupior, ficamos preguiçosos, a deixamos de lado, nos ocupamos de coisassimples e banais, como arrumar um quarto, ler um livro, qualquer distração émelhor que realmente partir para a Grande Aventura.Para piorar, nós a ignoramos, como se pudéssemos partir a qualquermomento, como se a chance fosse estar ali para sempre, nos esperando debraços abertos.Não é assim que a banda toca e, no fundo, Fawkes sabia a verdade.A Grande Aventura só pode acontecer uma vez, ao contrário da leitura dolivro irrelevante, da arrumação do quarto que logo vai desarrumar de novo,ou de qualquer distração que a pessoa tenha escolhido para adiar sua jornada.Se você não viver sua Grande Aventura no tempo certo, você não a viverá.E no final, só sobrarão os lamentos.Fawkes sabia reconhecer que Autumn havia sido seu chamado final parafazer o que ele já deveria ter feito no instante em que aprendera como lutar eusar seus poderes.Deixar Tuonela era o primeiro passo.É por isso que começar a Grande Aventura é tão difícil, ela quase sempreprecisa de sacrifícios, alguns que doem muito, alguns que doem pouco, massacrifícios do mesmo jeito, e esse era o único motivo pelo qual Fawkes aindaestava trancado no quarto durante a festa de aniversário de Tuonela.Era preciso reunir coragem para seguir em frente.Foi bem difícil fazer isso enquanto arrumava o quarto, pois não parava de

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encontrar âncoras e mais âncoras que o atracavam à cidade, sendo a maispesada delas os bilhetes que suas ex-namoradas o haviam mandado.Fawkes estaria mentindo se dissesse que havia amado de verdade cada umadaquelas garotas, mas também estaria mentindo se dissesse que não seimportava com elas: afinal, eles dividiram o tempo juntos, eles estiveramjuntos, isso cria raízes, por mais frágeis que sejam.Ele releu todos os bilhetes: não era muito rápido como leitor, e esse ritmovago o permitiu reviver cada momento que havia escondido em cada palavra.Odiava admitir, mas os de Kristell eram os melhores.Ela havia sido a mais prolífera de suas ex namoradas, e a mais romântica detodas elas, sempre se assegurando de que Fawkes estivesse bem, de que eletivesse tudo que precisasse para passar os dias, tentando o impossível parafazê-lo feliz, mesmo quando ela não tinha tempo para mais nada.Duas outras coisas que odiava admitir: 1 – Ele se odiava por não ter dadovalor a alguém tão perfeita como ela.2 – Ele sentia falta dela.Ou pelo menos alguém que fosse como ela, alguém que se importasse, quecontagiasse os outros com sua alegria.Alguém como Wendy.Mas Fawkes havia desistido dela havia já algum tempo.Quando havia terminado de limpar o quarto, ficou se perguntando se deveriaqueimar os bilhetes ou guardá-los consigo mesmo: queimá-los facilitaria aquebra das correntes que ele tinha com Tuonela, e isso era tudo que eleprecisava agora.Mas nem sempre tudo que precisamos é o que queremos.Os bilhetes foram guardados, com todas as suas boas lembranças.O quarto estava limpo demais para Fawkes poder gastar tempo limpando-omais ainda, mas pelo menos ele ainda podia admirar o trabalho que haviafeito: o senhor Telo nem reconheceria o cômodo se pudesse vê-lo agora.Senhor Telo havia sido um dia o cozinheiro principal da Taverna do Fim dosTempos, e o dono da casa onde Fawkes morava, uma casinha simples, igual atodas as outras naquela rua, ficava à meio caminho entre a taverna e abiblioteca.Há muitos anos, o velho senhor Telo havia deixado Fawkes viver no seuquarto de hóspedes, quando o garoto ruivo fora expulso do dormitório paragarotos da cidade. Dizem que ele foi expulso por colocar fogo no lugar, masos que conheciam Fawkes sabiam que o verdadeiro motivo era ele ter

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roubado a namorada de metade dos garotos que dormiam lá.A outra metade não tinha namorada.O senhor Telo não era mais o cozinheiro principal da Taverna do Fim dosTempos, foi forçado a se aposentar depois que morreu. Fazia dois anos desdesua aposentadoria forçada, e se Fawkes estava bem lembrado, a últimaconversa que tiveram foi uma mistura sobre o desastre que Fawkes fazianaquele quarto e o quanto a comida do senhor era boa.Fawkes continuou morando lá, pois o senhor Telo não tinha nenhuma famíliapara reclamar a casa, no entanto, nunca mais fez nenhum dos seusexperimentos com fogo lá dentro, para o horror das salas da Catedral deTuonela, que passaram a sofrer com a piromania do garoto.Era um jeito curioso de respeitar a memória do senhorzinho careca que otratara tão bem por anos e anos... queria ter uma última chance para agradecero velho Telo, mas o melhor que podia fazer era deixar uma casa intacta para acidade: quando percebessem que Fawkes havia ido embora, Kahsmin decertoa daria para alguma família que precisasse.Houve uma onda de culpa enquanto pensava nisso tudo, não pelo fato de quedeixaria a casa do senhor Telo para uma família qualquer, mas porqueFawkes não havia pensado naquele homem havia mais de um ano.Se sentiu ingrato por um minuto inteiro.Ou talvez mais, uma pessoa tomada pela ingratidão costuma perder a noçãodo tempo, como se ingratidão, junto com alguns sentimentos mais pesados,vivesse fora da realidade, indiferentes aos segundos e milênios que sepassam.A pessoa apenas os sente, e torce para que pare de sentir antes de ser tardedemais.“Onde estão aqueles dois?” Fawkes se perguntou para sair do torpor.Capitão e Terror haviam prometido ir com Fawkes até onde lhes fossepermito.Eles, junto com Autumn, eram os únicos que sabiam para onde ele estavaindo. Ele gostaria de ter mais alguém para contar, alguém para dizer queestava indo embora, alguém que fosse sentir sua falta, como Wendy sentiriade Caleb.Mas não havia alguém assim em Tuonela, e ele sabia ser culpado disso.Bom, talvez Wendy fosse sentir, querendo ou não, ele estava com ela quandoos Satya os capturaram, foi ela a primeira a ver o resultado de suasinvestigações sobre o espião de Tuonela, estava com ela enquanto ela corria

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para Tuonela para salvar a vida de Kristell.Ele até ajudou a salvá-la no Hospício de Virrat...Se isso não era o bastante para criar alguma raiz, nada seria.“Talvez eu deva me despedir dela também.”Fawkes ruminou a ideia na sua mente por longos dois segundos antes de sairda casa do velho Telo e pôr-se a correr até a escadaria que levava para o altoda catedral de Tuonela.Talvez tivesse sido mais rápido se não tivesse levado todos os pertences deleconsigo de uma vez só, mas ele sabia que, se tivesse que voltar para aquelacasa ainda hoje, ele não iria querer deixar Tuonela, e talvez amanhã fossetarde demais.Parte dele achava besteira acreditar que amanhã pudesse ser tarde demais.A outra parte dizia “é pensando assim que se deixa de viver a GrandeAventura”.A tempestade rugia alto no lado de fora da catedral: mesmo tendo sidoexposto a ela por apenas alguns segundos, seu cabelo espetado haviadesmoronado na mesma franja ruiva que Kahsmin o vira usando naquelamanhã.Por um segundo, pensou que estava sonhando de novo.Seus sonhos, desde que Ally o visitara, sempre começavam com umatempestade como aquela, imponente e pronta para derrubar quem quer quefosse idiota o bastante para enfrentar sua fúria.Fawkes resolveu que esperaria a chuva baixar, mas quinze minutos depois,tudo que ela fez foi aumentar tanto que a água se transformou em granizocolidindo contra os vitrais da catedral, tão forte que parecia rachar o vidro àcada pedrinha que caía.Parecia.Aquele vidro não podia rachar de verdade, a história conta sobre comoTuonela já fora atacada por maremotos, gigantes e, mais recentemente, umahorda de D’arlit, a cidade poderia ser pulverizada, mas a catedral semprepermaneceu em pé.Ah, tantos mistérios que aquela catedral escondia... como ele podia deixá-lasem explorar todos os seus segredos?Agora que não estava ocupado limpando o quarto ou sentindo falta do queviveu e deixou de viver, tinha tempo para sentir o sono acumulado, o que eratudo, menos bom.Se não se ocupasse logo, seu corpo ficaria mole, suas pálpebras grudariam

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umas nas outras e não tardaria a ouvir vozes, dizendo coisas horríveis.“... Fawkes...”Não, esse não era seu nome, elas o chamariam de Haydn, as vozes dos seuspais, e logo o apresentariam para pessoas que não deveria nunca ter entradona sua casa, nem na sua vida.“Fawkes”Logo ele veria a casa ao seu redor ser demolida: as paredes brancas e seusquadros de grandes líderes do passado ruiriam na frente dos seus olhos, tudoseria rubro como fogo e sangue. Fogo e sangue... tudo que ele conseguia selembrar daquele dia.E sua mãe gritando...“FAWKES!”Quatro mãos chacoalharam seus ombros, Capitão e Terror chegaram.“Onde vocês–” Fawkes começou, mas algo que ele nunca havia visto no rostodos garotos toupeira fez sua voz congelar.Você precisaria conhecer, realmente conhecer Capitão e Terror, para saberque eles achavam que tudo era uma brincadeira, a caça aos tesouros que elesnunca encontraram, as histórias absurdas que inventavam, as brincadeiras deexplodir tudo ao redor deles, até os índios que quase devoraram Wendy eFawkes, era tudo diversão para aqueles dois.Foi por isso que ver medo no rosto dos dois fez Fawkes tremer como nadanaquele mundo ou no próximo jamais havia feito.“O que aconteceu?” Fawkes perguntou.“A Harbinger da Morte tá aqui!” Capitão e Terror disseram em uníssono.E como uma alma manchada lavada nos rios, a cor se extinguiu do rosto deFawkes.

06 de Janeiro, 1999

Não era nímia a pertinácia necessária para condoer-se perante a ansiedadejazida osculando a vasca da noite inconha de meu âmago, isto assevero eu emnome de todos aqueles que conspiram ao nosso favor, meu imaculado diário.Até mesmo aquele cujo espírito jaz dedecorado e destituído desentimentalidade ainda se encontra em vias de exercer sua faculdade sensitiva

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e, de forma tal, tomar ciência da oscilação nos ares de Tuonela, e não setratava apenas da forma serelepe com que as pessoas expectavam acelebração do aniversário da cidade.Tratava-se do mar que, sobre a bruma arcana de sua escuridão e curiosabioquice, suspirava uma brisa contagiante e animosa nos pulmões dacidadela; tratava-se dos mergulhões entonando seus lamentos, permitindo queestes misturassem-se ao canto álacre de todas as outras aves noturnas quecompunham a misteriosa e brenha fauna de Tuonela; tratava-se das estrelas,cujo brilho ousava duelar contra o da própria mãe lua, numa peleja ferrenhapela soberania dos céus.Vez por outra, vi uma estrela ferida em batalha despencar pela escuridão danoite.A uma delas, fiz um desejo, embora ato tal fosse de todo redundante.Pois aquilo que desejei, jazia em minha mercê.Soa como uma pilhéria jocosa pregada por este mundo, concorda, estimadodiário? Logo eu, o sobejo reminiscente de uma decúria de anos,testemunhando minha puerícia sendo escamoteada em cativeiro, tragandoapenas réstias de pão e carne grola, quem diria que, hodiernamente, meencontraria em concordância com a realidade ao afirmar que tenho um desejorealizado em contato com meu metacarpo?Profiro tal afirmação de forma literal, pois meu desejo estava a segurar umade minhas mãos, enquanto a outra ocupava-se da fagueira tarefa de acariciarmeu rosto, como nenhum outro desejo jamais poderia fazer.“Eu me apaixonei pelo seu cabelo antes de me apaixonar por você.”Embelequei.Meu desejo sorriu ao som das palavras minhas, hasteando, com vagar, acabeça, de forma que pudesse exibir o louro dos anéis de seus cabelosdeslizando por seus ombros, havia lua e havia areia reverberando nas ondasque formavam seu mar de cachos: confesso que meu desejo sabia comoatufar meu coração com o mais gáudio dos deleites.“Te diverte me provocar desta forma?” Questionei enquanto buscava em vãoalapar o sorriso escancarado em meu semblante.Meu desejo negou-se responder com palavras, forçando-me a contentar-meapenas com o brilho gaiato em seus olhos e minha própria interpretaçãoacanhada.Era tão injusto: eu amava que meu desejo me fizesse sofrer, talvez atéansiasse pelo momento exato em que viesse a ser torturada na sutileza de seus

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atos.Ah, como era doce a expectativa.Talvez eu tenha sido amalucada após minha fuga de um pretérito entresilhadono afeto, mas adiposo na ojeriza e ódio, entretanto, hoje eu digo que nãomudaria nada do que minha vida fora outrora, pois tudo que vivi me trouxeaté aqui, e não há lugar neste mundo nem no próximo onde eu queira estar,senão aqui. Compreende, meu estimado diário?Não, sua resposta é de minha ciência, mas, eis teu consolo: tampouco entendoeu.“O que em mim você amou primeiro?” Perguntei, mais para verificar se haviasanidade em minha voz que para saber a verdade.“Sua persistência.” Para minha surpresa, houve uma resposta.“E o que odiou primeiro?”“Suas perguntas.”Confesso que regozijei em riso com o tom moinante de sua voz.“Sabe que não vou parar só porque você odeia se abrir comigo, não sabe?”“Já mencionei que amo sua persistência?” Meu desejo respondeu sem tardar.Sorri. Tão somente, eu sorri.Seria de meu agrado dizer que ponderei com esmero como prosseguir minhalinha de perquisição, afinal, aquele pequeno momento entre nós poderia serdefinido tão somente como airoso, significando que tudo havia de sercomedidamente perfeito. No entanto, sou falha como mendaz perante o níveode suas páginas donzéis, meu amado diário, e confesso que minha próximapergunta veio desprovida de reflexão, apenas para me lembrar de que nãoexiste medida para a perfeição.“Do que você tem medo?” Inquiri ao sentir a soma do calor provindo de suamão ao deslizar de minhas bochechas até meu pescoço, não sem antes fazerum pequeno floreio com os dedos em meus lábios.Era noite, nossos corpos estavam esparramados perante o gigante enlutadoque era o mar de Tuonela: tão ínfima a distância entre nós e a água, a menoroscilação na maré bastaria para nos dar um banho forçado de água salina.“De muita coisa.” Confessou meu desejo.Não era a primeira vez que me aventurara em tal linha inquisitória.Mas receber uma resposta que não fosse de natureza evasiva? Insólito!“Por exemplo?” Eu insisti.“De que as pessoas não gostem de mim.” Meu desejo confessou.“Por quê?” Ainda insisti, lentejando minha abelhudice.

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“Dor.” meu desejo respondeu, “eu sinto dor quando as pessoas que conheçonão gostam de mim, a menor ideia de rejeição sempre me causou desespero.O abandono me assusta mais que a própria morte, eu não sei como viver naface da rejeição.”“Bem, eu sei.” Declarei. “Eu passei os onze primeiros anos da minha vidasentindo essa dor e desespero. Meu pai acreditava que eu era um pecado, quealgo como eu não deveria existir.”Eu respirei fundo antes de prosseguir, sentindo o consolo emanando de meudesejo.“Eu nunca fui amada por ele ou seus amigos biltres e belicosos: ele tinhamedo de mim e, por isso, me odiava. Eu tinha medo dele e, por isso, ele estámorto.” Narrei sem tomar um só trago de orgulho na nênia de meu feito,“mesmo depois de morto, eu passei anos nutrindo meu desprezo e rancorcontra ele, por tudo que fez comigo... a dor, a rejeição...”“Eu sinto muito, meu anjo.” Meu desejo disse e, inesperadamente, fuiamarada em beijos de lábios abrasados: havia uma mão em meu toutiço,haviam suspiros sem donos e, em abundancia, havia amor, na sua forma maispura.“Obrigada.” Agradeci em um sorriso que poderia ser feliz, fosse ele ínscio demeu passado.A maré começava a manifestar sua ânsia em fazer-se viva, numa aleivosiacontra minha vontade: já podia senti-la na ponta dos meus pés, a extremidadede meu corpo mais rente à água. Em meu íntimo, roguei que uma segundaestrela despencasse dos céus, para que pudesse eu desejar a caidela dabonança sobre o mar, pois como um segredo mal contado, acreditava que acuriosa magia daquele momento viria a dissipar-se sob a hipótese dedeixarmos a privacidade do nosso lugarejo.“Do que mais você tem medo?” Recitei minha pergunta como um mantra.“De não ser o suficiente.”“Você é mais que o suficiente para mim.”Meu desejo calou sua resposta, mas o aperto forte vindo de sua mão para aminha não passou despercebido.“Você nunca vai saber o quanto eu agradeço por me dizer isso.” Meu desejodisse por fim, “eu tenho medo da rejeição que vem quando você não é bom obastante, forte o bastante, atraente o bastante.”“Mas você é todas essas coisas! E você está citando o mesmo medo, só queem uma vertente divergente, isto não é justo.” Eu insisti.

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“A segunda metade do que você disse é verdade, a primeira, não: eu não soutodas essas coisas, eu me esforço para ser, mas eu nunca sinto que estoufazendo o bastante... às vezes eu tenho vontade de sumir do mundo, só paranão sentir mais essa pressão, mas não dá. A pressão está sempre ali em umcanto, sussurrando no meu ouvido, narrando que sou um fracasso, apenasesperando para acontecer.”Abequei meus sons, dando meus ouvidos tão somente à rebentação das ondasao sentir o ricochete da maré fazendo cócegas em meus tornozelos, ao mesmotempo que saboreei o silêncio desacorçoado de meu desejo.Era de minha ciência: havia mais a ser dito.Também era de minha ciência: não se deve usar de pressa em tal comenos.Pois, em comenos tais, se descobre o quanto você e a pessoa amada sãoiguais.“Eu queria que perfeição viesse fácil.” Disse meu desejo por mim.“Nada que é bom vem fácil.” Recitei o velho ditado.“Você veio bem fácil para mim.” Meu desejo respondeu zombeteiro.“Não quer dizer que eu seja fácil de manter.”Meu desejo riu e, antes que me desse conta, nós estávamos abraçados erolando pela praia, sem tomar ciência de nossos cabelos mergulhados emareia, pois havia alegria em demasia para que algo tão ínfimo como grãos nosincomodassem.Naquele instante, estávamos vulneráveis, abertos e expostos em nossatotalidade singular: qualquer coisa poderia nos machucar agora e, por isso,nada o faria.“Eu também tenho medo de não ser o bastante.” Confessei.“Eu sei.” Meu desejo replicou descontraído, “por isso você é a única emTuonela que me oferece alguma competição de verdade.” Acrescentou comuma risada maviosa.“Estamos jogando então?” Perguntei.“Estamos, e eu estou na frente.”Sorri, pois era verdade, eu vivia numa eterna competição contra meu desejo,mas, neste momento, e tão somente neste momento, me esquecicompletamente de vencer.“Eu quero mais medos.” Eu sussurrei.“Eu preferiria morrer a perder qualquer parte do meu corpo.” Meu desejomuxoxou.“Seu cabelo conta como parte do corpo?”

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“Você se apaixonou por meu cabelo antes de se apaixonar por mim, casoperdê-lo signifique perdê-la, sim.”Eu ri em deleite, meu desejo se esbofara de minha brincadeira e resolverapassar-se por asno para fazer secar minha fonte de divertimento, mas escolhinão me afetar, meu sacarídeo diário, pois ainda queria saber e, sendo assim,pedi uma última vez: “Só mais um, me conte.”“Tenho medo de que descubram o que estamos fazendo.”Senti que era minha vez de oferecer um beijo: desvencilhei-me das mãos demeu desejo e sentei delicadamente sobre sua barriga para que eu pudesse vera lua refletida em seus olhos.Juro, meu conivente diário, não há, neste mundo ou no próximo, um únicopoeta capaz de capturar em vocábulos a beleza no olhar aluado e estreladodaquele rosto, foi com grande dificuldade que rompi o véu de nosso silêncio:“Nosso plano é perfeito, eles jamais vão descobrir.” Eu confidenciei.“Eu sei, mas às vezes, o plano me incomoda um pouco.”“Também me incomoda, é uma mércia! Mas é o melhor que podemos fazer,por enquanto, afinal, não estamos machucando ninguém, nós estamosajudando!”Era verdade, estávamos ajudando.Nosso plano me tibungava sob algia e desalento ao ser evocado em meio aosmeus outros pensamentos soltos e avulsos, mas, dadas nossas circunstâncias,era como tinha de ser feito, dor era um preço baixo, e desprovido de colusões,a ser pago.“Nosso tempo está acabando.” Meu desejo relatou desalegre, “a festa vaicomeçar.”“Eu sei.” Afirmei ciméria, praguejando contra o tempo, sempre assaz escassoquando, no abismo infindo de minh'alma, eu rogava que fosse eterno.“Vamos.”“Eu não quero ir.” Admiti.“Eu também não, ainda mais numa noite que pede para ser apreciada por nós,mas estão nos esperando.”“Eu amo você.” Eu disse, falta de pudor em minha voz honesta.“Eu também amo você...”

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A máscara brilhante feito um vampiro queimando no sol (porque, casotenham se esquecido, vampiros queimam no sol) entregou Rose Sebert antesmesmo de ela começar a gritar: a Grand Gala Mascarada mal havia começadoe ela já estava fazendo escândalo porque algum babaca sem amor própriodisse para o Elizeu que ela estava beijando outro cara no começo da festa.Ela estava mesmo, mas só porque achou que era o Elizeu com uma máscara.Uma máscara, uma peruca, uns dez centímetros mais alto... é.Ao som dessas acusações, Rose disse que era culpa do vinho, e bebeu maisuma taça.Bem, a música podia ser clássica, mas a bebedeira era barroca.Do outro lado, longe da comoção que Rose havia feito, pessoas normaisdançavam aos minuetos e sarabandas que os músicos tocavam com umaalegria deslocada, pois logo, todos iriam morrer lutando contra os D’arlit oumorrer tentando fugir.“Bem, uma vez que o fim é inevitável, melhor comemorá-lo que lamentá-lo.”Essa era a discussão de um dos grupos de mestiços mascarados que nãotomaram parte na dança ou no escândalo de Rose e Elizeu: enquanto umdeles defendia que deveriam celebrar o inevitável fim, os outros grunhiram etossiram a palavra “covarde”, mas nenhum deles ousou negar em voz alta quea Gala Mascarada era mesmo a última celebração do que sobrou do povo deTuonela.No piso superior estavam os mestiços, demônios e humanos mais velhos,muitos parecendo desconfortáveis em suas máscaras espalhafatosas e roupaselegantes demais acomodar sua simplicidade: pescadores, cozinheiros,costureiros, guerreiros, todos eram heróis à sua maneira.Aqui e ali, havia um sussurro sobre quem deveria ser o culpado pela queda deTuonela e, apesar do nome “Kahsmin” ainda ser o primeiro da lista (o que,poucos percebiam, era uma acusação injusta em demasia) havia outros quegostavam de culpar.Caleb Rosengard, para começar: ninguém sabia exatamente como Calebpodia ser o culpado ou responsável por tudo que estava acontecendo, masCaleb era o bode expiatório favorito de Tuonela, ninguém gostava dele desdeque ele havia praticamente entregue a cidade dezoito anos atrás (dezenove,depois desta noite), o que tornava uma acusação segura a ser feita, ninguémiria te crucificar por culpar o culpado favorito de Tuonela.Autumn DeLarose Liddell veio em seguida, e esta era uma acusação umpouco mais perigosa, por dois motivos: O primeiro era que muita gente

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gostava de Autumn, pelo simples fato de ela odiar Caleb, mas o númerodaqueles que não simpatizavam com o Cisne de Tuonela vinha crescendodesde o ataque da Harbinger da Morte, quando Autumn colocou a culpa doque havia acontecido nos cidadãos de Tuonela.Receber a culpa era intolerável para eles.O segundo motivo para essa ser uma acusação perigosa era o fato de queAutumn não era passiva, como Caleb, em relação ao que diziam sobre ela: osmais velhos sabiam que, se fizessem um comentário errado para a pessoaerrada, Autumn saberia, e então os D’arlit seriam o menor de seus problemas.Mesmo assim, vez por outra, havia um sussurro e um suspiro entre duaspessoas mascaradas, sobre o ultraje que aquela “arrogante cega do cabelorosa” os havia feito passar.Sim, Autumn e Caleb eram culpados bem interessantes, mas não os únicos.Havia um terceiro, uma pessoa cujo nome havia se tornado muito popular noúltimo mês, uma pessoa a quem o povo de Tuonela passou a mencionarsempre que citavam a última visita dos D’arlit, quando uma menina comcabelo de menino resolveu que ia ser uma boa ideia atacar a Harbinger daMorte enquanto ela demonstrava a grandeza dos D’arlit.Uma menina que simpatizava demais com Caleb Rosengard para serconsiderada de todo uma pessoa íntegra: havia até boatos de que ela pudesseestar envolvida com ele, embora ninguém pudesse provar isso.Sua fama de Dama da Sorte havia ultrapassado sua geração e, quando nãoriam de sua estúpida capacidade de se meter em problemas, comentavam emvozes baixas e surradas sobre o quanto esta garota estranha era inconsequentee desmedida.E era verdade que ela conversava com uma boneca de pano? Ela não tinhaquinze ou dezesseis anos? Era louca ou algo do tipo?Seus risinhos eram regados por vinho e abafados pelos acordes dos músicos,passos dos dançarinos, escândalos de Rose Sebert, e pelos que discutiam ofuturo de Tuonela.Afinal, era uma festa clássica, mas a fofoca era barroca.Enquanto aqueles homens em roupas desconfortavelmente confortáveis riam,lá embaixo, no salão principal do casarão branco, sentada próxima aosmúsicos, havia uma menina solitária com cabelo curto e lábios duros de tãoapertados que estavam em seu rosto.Ela era uma prisioneira num paraíso de falsidade e hipocrisia... a irmãRomena costumava dizer isso quando estava em festas com o prefeito da

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cidade, por mais que Romena fosse detestável, a Dama da Sorte agora podiaadmitir que sabia como ela se sentia.Ou talvez aquela não fosse sua opinião verdadeira sobre a festa, mas sim seuleitor chato interior querendo deixá-la com raiva, o que estava funcionando:havia algum tempo, suas mãos haviam se transformado em garras e seus pésestavam bem desconfortáveis em seus sapatos.Por que Caleb não podia simplesmente aparecer e levá-la para sua verdadeiracasa?“Porque ele fez isso no momento em que trouxe você para Tuonela” Wendyfingiu ouvir Wanda responder, e procedeu em ignorá-la.Estava sentada próxima aos músicos, não numa cadeira, pois não haviamcadeiras e mesas ali, ah não, a Dama da Sorte se sentou no chão, ao lado davioloncelista mascarada, cuja pele lembrava muito a pele da irmã Sarah, sóque ainda mais escura. Desde que se sentara, ela havia sido convidada para sejuntar à dança várias vezes por vários rapazes, e por uma garota que comcerteza pensou que ela fosse um homem com um gosto estranho parapenteados e roupas.Recusou todos eles, já que nenhum dos pretendentes tinha os cabelos brancosque queria afagar, os olhos cinzas nos quais queria se perder e o pescoço emque ela queria afundar suas garra até vê-lo quebrar nas suas próprias mãos.Logo percebeu que deixar suas garras à mostra era um ótimo jeito de parar dereceber convites.Por algum tempo, ela fez alguns jogos mentais para passar o tempo, comomedir a altura das janelas em “Wendys de altura” (todas tinham três Wendyse uma LaVerne de altura e duas irmãs Sarah de largura, impressionante),contar quantas pessoas estavam usando exatamente as mesmas roupas(tirando os garçons, todos estavam vestidos diferente, o que fez esse jogobem chato).Logo seus jogos ficaram menos inofensivos: começou um jogo mental quehavia aprendido com Christina alguns anos atrás: ela tinha que imaginar todotipo de pequeno acidente que poderia causar um incêndio no casarão branco(ia de coisas simples do tipo “Fawkes entrou na festa e de repente fogo” atécoisas um tanto mais difíceis de explicar, como “Fawkes não entrou na festae mesmo assim fogo”) era uma pena Christina não estar aqui, ela tinha amente de um psicopata para provocar incêndios.Foi no meio de uma dessas brincadeiras que Wendy percebeu o pedaço depapel jogado no seu colo: foi tão inesperado que, quando procurou pelo

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responsável por aquilo, tudo que conseguiu ver foi um garçom baixinho, comcabelo da mesma cor que o do Kahsmin, sumindo entre a multidão.Uma vez que havia lido tudo que estava naquele papel...“POR QUE VOCÊ NÃO DIZ SEU NOME!? QUEM VOCÊ AMA?! QUEMÉ VOCÊ?!” Wendy gritou, ficando em pé imediatamente, sentindo a máscarase espremer contra seu rosto e suas mãos quase rasgando o papel de raiva.A violoncelista se assustou tanto que jogou o arco do instrumento no músicodo lado, logo a música toda havia parado, junto com o povo que dançava, osque apartavam o escândalo de Rose, os que discutiam o futuro da cidade, osmais velhos que olhavam do andar de cima pela sacada... todos se voltarampara Wendy, enquanto baixavam suas taças de vinho e abafavam as últimaspalavras que haviam dito.Pelo menos, ela podia se sentir feliz por ninguém poder reconhecê-la com amáscara.“O que foi, Wendy?”E foi assim que mataram sua felicidade.Era Kahsmin, com suas sobrancelhas quase inexistentes, o sorriso constanteque emergia de sua barba e os passos largos do tipo que só um grandemagnânimo como ele pode usar sem parecer um idiota.Com alguns gestos, ele fez com que os músicos retomassem a música, logo aspessoas estavam dançando de novo, mas o escândalo de Rose parecia terencontrado um fim definitivo: ela e Elizeu se retiraram do casarão enquantotodos prestavam atenção em Wendy e Kahsmin.“Como você sabia que era eu?” Wendy perguntou quando Kahsmin se sentouao seu lado.“Sua voz.” Ele disse alegre, “e dá pra ver seu cabelo e quase seu rosto todopela máscara, acho que todo mundo aqui já sabia que era você.”De repente, Wendy estava com mais inveja ainda de todas as pessoas queestavam usando máscaras de animais, que cobriam seus rostos por completo,exceto pelos olhos.“Por que está sozinha aqui?” Kahsmin perguntou curioso, virando-se paraela.“O pessoal da trupe chamou a Kristell assim que ela entrou, eles têm quepreparar alguma coisa para apresentar aqui.” Wendy disse, aindaenvergonhada do que tinha feito.“Ah sim, é verdade, deve acontecer a qualquer momento agora.”“O que vai acontecer?”

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“Eu não sei, Kristell me disse que a apresentação ia ser surpresa. E eu adorosurpresas.” Kahsmin disse jocoso, “então, o que aconteceu aqui?”Wendy contou toda a história do diário que ela encontrou depois que voltoudo Hospício para Demônios de Virrat, como o diário havia sumido haviaalguns dias e como um dos garçons havia deixado uma página do mesmodiário no seu colo agora pouco.“Como era o garçom?” Kahsmin interrompeu, parecendo intrigado.“Eu não consegui olhar direito pra ele, mas ele parecia bem baixinho e tinhao cabelo da mesma cor que o seu. Você sabe quem é? Ou por que deixou issocomigo?” Wendy perguntou curiosa.“Não.” Kahsmin disse, “e eu não conheço nenhum garçom baixinho comcabelo parecido com o meu, mas se eu encontrar, eu aviso. Agora, por queessa gritaria toda? E não me diga que é só porque você não descobriu quemescreveu isso.”Wendy sentiu mais vergonha ainda ao ouvir essa pergunta.“Você não vai me dar um sermão por ler um diário que não é meu?” Eladisse, tentando desviar o assunto.“Não, eu faria o mesmo.” Ele disse rindo.“Você não presta.” Wendy respondeu, e deu seu primeiro sorriso honestonaquele dia todo, ao mesmo tempo em que percebeu que suas mãos erammãos e não garras.“Eu sei, você também não, agora me responda, o que te aflige?”“Eu não sei.” Mentiu Wendy, “parece que tudo deu errado hoje.” OmitiuWendy.“Eu sei que você quer ir embora de Tuonela e que Caleb era sua carona,Wendy.”Wendy olhou para ele assustada: não era para ele saber, não era para ninguémsaber, ela não queria que todo mundo ficasse falando na cabeça dela mil euma razões para ela ficar, eles não precisavam da Dama da Sorte em Tuonela,eles precisavam de Kristells e Palomas e Calebs e Kahsmins e Autumns, masnão de Wendys e Wandas.“Como você sabe?”“Eu não sabia, eu chutei bem e você confirmou tudo agora.” Kahsmin dissesatisfeito consigo mesmo.“... sério?” Ela perguntou se sentindo estúpida.“Eu suspeitava fazia algum tempo, você só confirmou tudo.” Kahsmin disseenquanto a violoncelista tocava cada vez mais rápido, “eu chuto que você

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tinha planejado passar seu dia inteiro com Caleb, por isso foi procurá-lo, equando eu disse que ele não estava aqui eu devo ter destruído o seu dia, nãoé?”“... é, mas como você...”“Hakasalo é muito bom em ler o que as pessoas pensam e sentem apenasdetalhes nas pessoas, a forma com que piscam, a ansiedade em seus gestos, eele é meu primo, era inevitável que eu aprendesse algo. E, bem, Caleb voltoufaz algum tempo, logo ele deve estar aqui.” Kahsmin disse esfregando suasmãos, a noite ficara bem fria depois que a tempestade começou.“Obrigada, Kahsmin.” Wendy murmurou sem jeito.“De nada, Wendy. Agora me diga, por que todo esse segredo sobre a suapartida?”Wendy respirou fundo, desviou seus olhos de Kahsmin, parando nos andaresmais altos do casarão branco, então nas janelas, como quem procura umasaída: quando viu que não havia uma, pregou seus olhos no chão da derrota ecomeçou a contar para Kahsmin.Disse que não queria que os amigos que fizera em Tuonela fizessem suapartida ainda mais difícil, e também explicou que estava indo embora porquesentia que, mais cedo ou mais tarde, ia acabar morrendo e levando a cidadeinteira com ela, igual ela quase fez quando a Harbinger matou Tupã na frentede todo mundo.“Se eu tivesse ficado quieta... se não tivesse atacado... os D’arlit nunca teriamdescoberto...” Wendy tentava dizer. Ela não sabia em que ponto haviacomeçado a chorar, mas agora tudo que podia sentir eram suas bochechasardendo e seu nariz começando a entupir.Teve que tirar a máscara para enxugar os olhos, algumas pessoas começarama olhar, mas Kahsmin fez com que parassem no mesmo instante: era incrívelo olhar de pai zangado que aquele homem era capaz de fazer para espantar oscuriosos, Wendy nunca vira raiva e censura repartirem o mesmo rosto.“Se você tivesse ficado quieta quando a Harbinger matou Tupã, eu nuncateria feito a coisa certa.” Kahsmin disse, Wendy não estava olhando para ele,mas podia sentir seus olhos pregados nela, “acho que eu nunca a agradeci porisso.”“Eu expus a cidade inteira.”“É verdade, e você me forçou a fazer algo que deveria ter sido feito há muitotempo.”“Entrar em guerra?”

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“Tomar uma atitude.” Kahsmin respondeu, “eu estava ficando acomodadodemais com meu papel como General Aino, tão acomodado que cheguei aesquecer que aquilo era só uma fase de um plano muito maior, graças a você,eu pude seguir em frente, e por isso, eu sou grato, Wendy.”“Bem, de nada, acho que não fui nada mau para uma espiã dos D’arlit, nãoé?” Wendy disse, sentindo um sorriso salgado se formando em seus lábios.“Você não vai me deixar esquecer isso, não é?” Kahsmin perguntou rindo.“Nem nesse mundo, nem no próximo.” Wendy respondeu satisfeita consigomesma.Quando colocou a máscara de volta, Kahsmin a convidou para ficar em pé,quando ela o fez, ele ofereceu um abraço, que ela aceitou de bom grado.Não era como o abraço da irmã Clara, pois era terno, mas não era materno,também não era como o de Caleb, pois era seguro, mas não era apaixonado, enão era como o de Kristell, pois passava empatia e carinho, mas não a faziapensar que ia morrer asfixiada.Era um conforto incompleto, era um abraço de pai.Um pai orgulhoso que se despede, sem palavras, da filha que ama.Wendy não queria que acabasse, e no instante em que pensou nisso, Kahsmina soltou.Foi a primeira vez naquela noite que eles se olharam fundo nos olhos.Havia tanto que aquele homem queria dizer, tanto que Wendy só podiaimaginar estava escondido atrás daqueles olhos castanhos e sorriso singelo,tantos pensamentos que ele desesperadamente queria verbalizar...Queria, mas não iria, ela sabia, pois ele tinha um coração de pai, e sabia queWendy não queria ouvir despedidas, não queria ser persuadida, ele sabia quesua decisão já estava feita, também sabia que ela iria carecer de força paramanter a decisão caso ele tentasse convencê-la a mudar de ideia.Por isso, ela nunca saberia o que o grande magnânimo tinha a dizer.Tudo porque ele era um bom pai para uma filha que não era dele.Kahsmin ofereceu a mão para Wendy, que a aceitou, e logo eles estavamandando pelo salão, evitando os mestiços que dançavam e a aglomeraçãocrescente de súditos de Baco (que era o jeito chique do Kahsmin de dizer“bêbados com vinho”) que se formava no salão.“Aprendeu algo com isso?” Ele perguntou de repente, erguendo a página dodiário.“A palavra ‘álacre’.” Wendy respondeu.“Bela palavra, você sabe o que significa?”

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“Não exatamente.”“Álacre é aquele ou aquilo que traz alegria ou carrega alegria consigo.”Kahsmin disse enquanto guiava Wendy entre os convidados.“Sério? Então vou te chamar Kahsmin, o Álacre.” Wendy disse apertando amão dele.“Isso ia ser bem... irônico, mas obrigado.” Kahsmin respondeu.“Onde a gente tá indo?”“Para o farol, o Caleb está demorando demais e–”Kahsmin parou de falar quando percebeu o que estava errado.A música morreu, assassinando por tabela a dança e silenciando aqueles quebatiam palmas frenéticas para acompanhar o compasso, mas só quando váriosolhares se dirigiram para as portas de entrada do casarão branco (quatroWendys de altura, duas irmãs Romena de largura) foi que as risadinhas epalavras abafadas finalmente calaram-se.Havia um buraco negro como a tempestade ali, envolvendo quase todo osalão em trevas e medo.Dele, com a elegância de um cisne e sutileza de uma pena, saiu Autumn, comseu cabelo solto, rosa, ondulado, bagunçado e espalhado por todos os lados,deixando-a com ar de assassina desmedida e inconsequente, nada de anormalaté aí.A primeira coisa que Wendy notou foram as veias negras no rosto dela,convergindo para os olhos dela como uma teia de aranha, não era a primeiravez que Wendy via Autumn assim, mas nunca havia visto aquelas veias comuma intensidade tão pulsante e voraz.De fato, pulsavam tão forte que pareciam estar vivas no rosto de Autumn.Ao seu lado, um garoto com uma franja ruiva e olhos azuis cansados surgiu,estava tão desfigurado que Wendy levou quase dez segundos inteiros parareconhecê-lo como Fawkes.Quando percebeu que tinha a atenção de todos, Autumn ergueu uma xícara dechá para o alto e, lentamente, a tirou do pires e tomou três golesextremamente comedidos.Cada golada ecoou pelo salão.Com a calma de uma dama, ela devolveu a xícara para o pires e, por sua vez,o pires para Fawkes.Uma vez que tinha as mãos livres, o silêncio tornou-se absoluto, pois sabiamque ela iria falar, e que não seria bom para a saúde deles interrompê-la.Com a voz, forte como uma mortalha, afiada como uma espada de Kullervo,

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Autumn deixou suas palavras deslizarem para fora de seus lábios, apenas altoo bastante para que os mais próximos pudessem ouvir, ela sabia que o eco desua voz chegaria para todos os outros.Pois a mensagem era clássica, mas o medo era barroco: “A Harbinger daMorte está aqui.”

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Interlúdio 4

“Capítulo quarenta e três.” Começou Alaia, lambendo os lábios precantes,curiosos para saber em que espelho d’água se perdera toda a umidade ebeleza que outrora descansara em seus sucos desgastados.“Vó?” Christina chamou langorosa.“Respire fundo, Princesa D’arlit, hoje é você quem dá as cartas, é você quemtem um exército, os melhores homens de Allenwick D’arlit...” Alaia seguiunarrando, prendendo o riso.“Vó?” Sua neta chamou de novo.“Você tem o poder para aniquilar Tuonela na ponta dos dedos, apenas umgesto e seria como se a cidade nunca tivesse existido: Hoje você é a Senhorada Tempestade, a Cadencia Derradeira, a Desolação de Jussarö... Ei!”

“Tá achando que eu sou agradecimento no fim do livro pra me ignorarassim?” Christina perguntou fingindo irritação e tocando o livro para deixá-loinvisível.Por um instante, Alaia imaginou como seria interessante poder fazer omesmo com seus problemas: apenas um toque e puff, invisível, ignorávelcomo cantada de gobliniano ou fofura de Serpa.No instante seguinte, percebeu que a vasta maioria de seus problemas nuncaforam visíveis para começar, apenas espreitavam seu dia a dia comoavantesmas, invisíveis aos olhos, mas não à alma, prontos para arrastá-la atéas profundezas do abismo de seu ser e torturá-la onde ninguém poderia verqualquer ferida.Problemas visíveis eram mais fáceis: quando ela os via, os esmagava.A história existe para provar suas palavras.Finalmente, no terceiro instante, os lábios de Alaia cederam: já não eramcárceres confiáveis para suas risadas e, sinceramente, ela preferia assim, umsorriso solto era a melhor arma que possuía contra seus problemasencafuados.Pelo menos, a melhor arma que tinha coragem de usar, seguida por qualquertipo de atividade que a deixasse ocupada.“Só estava brincando, meu anjo, está tudo bem?” Perguntou Alaia, vendo olivro ficar visível de novo.“Existe uma receita pra felicidade?” Christina respondeu com um pulinho.

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“Como assim?”“A Wendy escreveu que existe uma receita pra tristeza, e que a gente faz elacom expectativas e realidade, eu queria saber se existe uma receita prafelicidade.”“Ah, sim, é a mesma receita da tristeza, mas você põe só um décimo dasexpectativas, acrescenta uma xícara de sorte e, pra ficar bom de verdade, umacolherada de surpresa.” Alaia respondeu, se perguntando se uma colher desurpresa teria gosto de biscoitos dinamarqueses ou néctar açucarado, “falandoem surpresa, você não está surpresa por descobrir que Helena é a Harbingerda Morte?”“Ah, não, eu não ouvi o nome da Harbinger da Morte na história inteira, só oda irmã dela, Selena. Quando o Caleb contou a história da Helena euimaginei que ela fosse ser a Harbinger. Combina, né? A Harbinger da Morte,ex da Morte em Pessoa.” Christina disse como se estivesse ensinando doismais dois, “eu só não entendi porque ela avisou o Caleb que ela ia atacarTuonela. Ah, e quem matou ela depois que ela saiu do farol?”“Você vai entender logo, eu acho.” Alaia disse, subitamente insegura aoperceber que não se lembrava quem havia sido responsável pela morte deHelena na noite do primeiro ataque dos D’arlit à Tuonela.“Vó, eu dormi enquanto você lia?” Christina perguntou, esticando os braços eentão colocando-os no chão para alongar suas costas, como um leãozinho aoacordar no meio de uma tarde enxuta.“Não, mas riu várias vezes, por quê?”“Porque eu não lembro o que aconteceu depois que o Caleb disse queMortimer estava morto, eu lembro que–”“Ah! Isso, Wendy nunca escreveu por completo o que aconteceu na Ilha daCaveira.”“Por quê?!” A pequena Chris perguntou, tombando a cabeça em confusão.“Bem... por vergonha, entende meu anjo? Wendy foi criada em um mundo degrande vergonha, logo depois que ela e Caleb enfrentaram Louhi, algumascoisas aconteceram, coisas que apenas anos mais tarde ela viria a se sentirconfortável compartilhando.” Alaia comentou, desejando secretamente queChristina não insistisse no assunto, pois– “Que coisas?”Lição aprendida, não desejar nada, desejar só fere o coração.Alaia tomou alguns goles d’ar e sussurrou a resposta nos ouvidos de sua neta.“Sério? Que lindo! Por que alguém ia ter vergonha de escrever isso?”Christina quis saber enquanto se forçava a dar pulinhos que, normalmente,

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pareceriam naturais.“Meu anjo, o mundo de Wendy está doente com instituições que vendemvergonha e se alimentam de alienação: desde cedo, Wendy aprendeu a tervergonha e até medo de coisas maravilhosas, como sua aparência e váriosaspectos de sua própria natureza, sendo ensinada que deveria suprimi-los atodo custo para ser uma pessoa boa.” Alaia explicou, sentindo compaixãopregada na cruz de sua voz.“O que são instições?” Christina perguntou mais confusa que Autumndescrendo cores.“É instituições, meu anjo, elas são minguadas no nosso mundo...” e Alaiaprosseguiu numa explicação detalhada de tudo que havia aprendido sobreinstituições com Wendy, Kristell e, por incrível que pareça, Autumn, quesabia mais que as outras duas juntas “... entendeu, meu anjo?”“Eu não entendi porque essas instições fazem crianças acreditarem que sãoerradas.”“Poder, Christina, um esquema de poder digno de Gambler: crianças criadasacreditando serem feias são adultos desesperados por aceitação; criançascriadas achando que suas aspirações são ridículas e inatingíveis são adultosinfelizes que compram o torpor de seus sentidos e o apelidam de “felicidade”;crianças criadas acreditando serem más por natureza são adultos dependentesde redenção; e crianças criadas carentes de amor próprio são adultos quecaçam valor em todos os lugares errados antes de examinarem o único pontoonde deveriam ter vasculhado desde o inicio: dentro de si mesmos.”“Quando instituições problematizam todos os aspectos da vida alheia, elastambém as controlam, ditando onde encontrar beleza, felicidade, redenção eamor, sem nunca dar uma chance para as pessoas descobrirem equestionarem por si mesmas. Entendeu, meu anjo?”“Entendi... todas as instições são ruins?” As perguntas de Christina erammotivo de orgulho para Alaia, sua pronuncia não.“Instituições, não instições, meu anjo, e é claro que não, existem muitas delasque são boas, o antigo Orfanato das Neves era uma instituição com ótimasintenções, apoiada por uma congregação com ótimas intenções e umaprefeitura com... intenções duvidosas, se Wendy e Morena me explicarambem. Eu acredito que boa parte das instituições do mundo de Wendy tenhamboas intenções, assim como as poucas que temos no nosso mundo, mas opequeno número que vive de minar a estima humana para poder controlá-lafez e ainda faz um estrago gritante como uma banshee na quarta hora da

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manhã, eu vi este estrago em Wendy.” Alaia comentou com tristeza soturnaescondida em sua voz, “é muito bom saber que ela foi capaz de reparar oestrago em seu ser e ainda crescer mais do que a maioria das pessoas sonhaem fazer.”“Vó, isso é legal e tudo mais, mas como foi a luta com Louhi?” Christinaperguntou por fim, se forçando a dar mais alguns saltos, o que estavacomeçando a preocupar Alaia, “como Caleb sabia que o Mortimer não era oMortimer?”“Ossos.” Alaia respondeu, sentando Christina no seu colo.“Os ossos de peixe?”“Nem todos eram ossos de peixe.” Alaia contestou, vestindo sua voz demistério.“Não?”“Não, enquanto Louhi fingia tentar desvendar quem eram os pais de Wendy,Caleb encontrou ossos de demônio escondidos na pilha: ossos que, a julgarpelo formato único e dimensões assimétricas, só poderiam pertencer àMortimer Von Schenzel.” Alaia deixou as palavras pairarem como vagalumesperante os olhos maravilhados de Christina antes de continuar, “os ossos, noentanto, foram só o começo.”“Sério?”“Sério: veja bem, a mãe de Caleb era uma conhecedora do mundo, tendovivido em lugares onde não existem livros, mas existe conhecimento antigopassado de boca em boca, lugares onde eu e você seríamos as verdadeirasanalfabetas tentando começar a entender o funcionamento da vida.”“Nestes lugares, ela aprendeu como chamar os cavalos de vento, comoguardar luz do sol para usá-la à meia-noite, como fazer magia simples usandode bonecos e fios de cabelo e, dentre outras coisas, poções.”“Caleb aprendeu um pouco de tudo com ela, inclusive poções e, por isso elesabia: o que havia no caldeirão de Mortimer era magia arcana, esquecidajunto com a forja de Kullervo, os feitos de Väinämöinen e os próprios filhosde Pohjola: ele não sabia o que era exatamente, mas sem tardar viria adescobrir.Quando pediu para que Wendy se afastasse através da mensagem em códigoMorse, Caleb atirou uma flecha em Louhi, que revelou sua verdadeira forma:há mais detalhes sobre a luta espalhados no livro, durante os trechos d’ANoite Negra da Harbinger da Luz, mas o importante para você saber é, dentroda caverna, no canto onde Louhi estava escondida antes da chegada de Caleb

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e Wendy, havia uma cavidade profunda, uma que levava até o coração daprópria Ilha da Caveira–”“Ilha do Pato! Quack! Quack!” Christina corrigiu gargalhando feito um gansobobo.“Você vai entender porque era chamada de Ilha da Caveira.” Alaia apontou,“durante a luta, Louhi conseguiu jogar toda a poção que havia feito dentrodessa cavidade, foi quando a ilha começou... a ACORDAR!” Quando Alaiadisse “acordar”, levantou Christina de surpresa para as alturas com seusbraços, ainda fortes o bastante para aguentar os trinta quilos de doçura etravessura que constituíam sua neta.“Eu consigo ver minha casa daqui!” Christina disse gargalhando.“Christina, você está literalmente dentro da sua casa.” Alaia apontou,satisfeita em ver sua neta recuperando sua graça e humor naturais, mesmoque ainda parecesse abatida quando mergulhava em quietude ou atenção,“Caleb e Wendy fugiram, mas a fuga deixou cicatrizes profundas nos dois, enem todas eram visíveis: a parte da ilha que Wendy comparou com um patoera na verdade um chifre, um único chifre na cabeça cadavérica colossal dogigante de Louhi, e as árvores mortas pelas quais ela e Caleb passaram antesde chegar à caverna? Eram os dedos de uma de suas mãos. Christina, eu soualta, mas eu não sou alta o bastante para alcançar uma unha no pé do gigantede Louhi, por isso, as lendas rezam: nos tempos antigos, Louhi e seus trêsgigantes dominaram o mundo.”“Mas, se o gigante era tão horrível assim, porque o Kahsmin não queriaavisar a cidade?”“Quantas más notícias você acha que uma cidade com a moral em pedaçosaguenta receber de uma vez?”“Todas?”“Foi uma pergunta retórica, deixa eu explicar uma coisa sobre cultura: aquino norte, as lendas rezam sobre as armas de Kullervo, os feitos deVäinämöinen, o Sampo de Ilmarinen e assim por diante, são todos nomesvenerados na vastidão deste continente, mas se você for para o sul, digamos,nas antigas Terras de Khaleel, esses nomes são algaravia, só servem pra fazeras pessoas rirem tentando dizê-los.Ao mesmo tempo, as pessoas das Terras de Khaleel tem suas próprias lendas:há peãs inteiros escritos para Banu Hilal, Lieder para cada uma das viagenslendárias de Sindbad, e os odes de Antarah ibn Shaddad são cantados aindanos dias de hoje: são todos nomes com os quais você não brinca nas Terras de

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Khaleel, mas aqui no norte, soam mais como um monte de charabiá que sófaz confundir as pessoas que não sabem nem como começar a pronunciá-los.Então, temos Louhi, e esta é a parte que você precisa entender: Louhi, assimcomo Alexandrita, é um ser com vários nomes e, não importa se você estános arredores de Tuonela, no coração das Terras de Khaleel, ou mesmo emMångata: os nomes de Louhi são temidos em todas estas terras, temidosigualmente, e o motivo é que Louhi não é só uma lenda morta de uma épocaque sequer conseguimos entender que existiu, mas uma realidade, suasmarcas ainda pairam e assombram o mundo de hoje, então, soltar uma notíciaem Tuonela, uma cidade já quase totalmente destituída de moral, esperança echances de sobreviver, seria como cortar minhas pernas para me fazer corrermais rápido.”“Mas, se isso é verdade, então os D’arlit também tinham medo de Louhi?”“Sim, é verdade.” Alaia corroborou.“Então porque não espalharam essa notícia e deixaram chegar até os D’arlitpra eles começarem a ficar desesperados também?”“A lógica é excelente, mas provavelmente, Allenwick D’arlit e suamegalomania não dariam ouvidos para boatos sem fontes oficiais, e por isso,plantar a notícia da presença de Louhi seria só perda de tempo: essa é adiferença entre receber más notícias quando você está no topo e quando vocêestá no fundo do poço.” Alaia disse e, sentindo sua cabeça zunir ao som dobadalar do relógio acrescentou, “ah, a hora Hol Mich Heim, vem cá, minhaneta.”Como uma melodia, Christina encontrou seu lugar no abraço da avó, que asegurou como o tesouro que sua neta de fato era: Alaia sentiu a polirritmia deseus corações se encontrando e desencontrando, até que, e ela nunca saberiadizer exatamente quando, um ritmo simples fez-se ouvir em peitos distintos.Seus corações batiam em sincronia.“Será que vai demorar pro papai e o tio Samson chegarem?” Christinaperguntou, sem tirar a cabeça do ombro da vó.“Alguns minutos, consigo senti-los do outro lado da casa, você sabe ondeestá sua mãe?”“Foi passar o dia com a minha outra vó, acho que só vou ver ela amanhã.”“Entendo.” Alaia disse, sem saber o que sentir.“Vó, o que é Hol Mich Heim?”“Era uma das canções favoritas de Wendy, meu anjo, é a canção que estãocantando ao redor da Estátua Incompleta da Harbinger da Luz neste instante.”

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Alaia explicou, deixando pelo menos um de seus ouvidos prestar atenção namúsica, “Wendy costumava dizer que era uma canção que a fazia se sentir emcasa, onde quer que ela estivesse, por isso, na primeira hora do anoitecer,celebramos a hora Hol Mich Heim, demonstrando amor e carinho pelaspessoas que nos fazem sentir em casa, e cantando, claro.” Alaia contou,transbordando de amor.“E o que quer dizer Hol Mich Heim?” Christina perguntou perto de seuouvido.“Eu não tenho a menor ideia, é uma língua do mundo dela. Eu soube um dia,mas estou ficando velha demais para isso. Entrem!” O comando de Alaiaassustou Christina e fez seus corações saírem de sincronia, para a decepçãoda avó.Alaia Capricornius era retratada na história como implacável, firme, uma dasmestiças mais poderosas e únicas que este mundo e o próximo já tiveram ahonra e pavor de ver, o poder de sua ira só era superado quando comparadocom a própria Harbinger da Luz, seu confronto contra Allenwick D’arlithavia assegurado que seu nome se tornasse uma lenda, ao lado de Kullervo eSindbad: tanto no Norte, quanto no Sul, Alaia Capricornius inspiravaadmiração, respeito e reverência.Porém, Alaia Capricornius nunca fora seu nome verdadeiro.

Alaia Evans era o nome da mulher por de trás da máscara, e é verdadeque Alaia D. Evans tinha muita facilidade em ser dura e implacável, mas estanunca foi sua qualidade mais interessante.

Esta seria seu amor.Quando seus filhos entraram, Alaia banhou-se em amor que só os

bravos se atrevem sentir.Amava Samson, seu filho mais velho, com toda sua alma: se lembrava

exatamente da primeira vez em que ele abriu as asas e a cegou com a belezade seu brilho e cores, havia chovido a manhã toda naquele dia. Samson,sempre quieto, amava tomar banhos de chuva, hábito que manteve durantetodas as décadas de sua existência, foi aos doze que ele batizou esses banhosde “banhos de paz”. Apesar de ter treinamento para lutar, não deve tê-lo feitomais que três vezes em toda sua vida, lutar não o agradava tanto quanto oexercício de suas habilidades como diplomata, nem suas habilidades com alira. Alaia achara incrivelmente clichê que seu filho, um anjo, tocasse lira,porém amava cada instante em que o ouvia tocar.

Isso foi só uma fração do que pensou Alaia quando ele a abraçou ao

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som de Hol Mich Heim.Amava Ihab, seu filho mais novo, tão igual e tão diferente de Samson:

Ihab vestia em sua alma o mesmo orgulho e imponência que Alaia vestiratoda sua vida, imponência que, Alaia bem lembrava, havia começado comuma mera fagulha de determinação no verde do olhar de Ihab aos sete anosde idade, quando desafiou anjos no fim da adolescência à um duelo. Ihabperdeu, e aquela derrota foi seu maior troféu, pois ela o inspirou a se tornarinvencível e, nos próximos quinze anos, Ihab realmente foi invencível, atésua segunda e última derrota, contra a primeira e única Alaia Capricornius,que já tinha as asas quase completamente grisalhas naquela época: uma liçãode humildade que Ihab odiou por anos e amou por décadas, pois o ensinou ausar do orgulho que tinha em ser quem era para ajudar, e não humilhar, seusiguais.

Isso foi só uma fração do que pensou Alaia quando ele a abraçou aofim de Hol Mich Heim.

Por vários minutos, eles trocaram pequenas histórias alegres,inclusive uma sobre o dia em que Ihab se perdera dentro do quarto deChristina, e Samson se mostrou bem interessado em deixar Christina fingir-sede banshee durante os jogos da semana de Nicolau, no desafio da Casa Mal-Assombrada, Ihab sugeriu colocar uma míriade junto, Alaia não se divertiucom essa piada e foi Christina quem o salvou de uma bronca ao mencionarque ia ser mais divertido colocar uma åne ou um cavalo de vento, apesar deeles não serem exatamente assustadores.

“Ou podíamos colocar o velho Jenkins lá.” Sugeriu Samson combrandura.

“O velho louco que veste um balde na cabeça e fica batendo nele comum pedaço de pau?” Ihab perguntou.

“Esse mesmo.” Christina disse saltitando de alegria com a ideia daCasa Mal-Assombrada.

“Filhos, desculpe interromper, mas o que aconteceu com Matti Apoja,Dani Kaupi e a senhorita Sororia?” Alaia perguntou, genuinamente curiosa.

“Depois da Limpeza de Luz, Matti se desculpou por atacar Dani,chegou a abraçá-lo, mas pediu para que ele cortasse contato, ele ainda temque absorver e entender a situação, e prefere fazê-lo longe de Dani, o que énormal, querendo ou não, Sororia o enganou ao negar-se avisar que não tinhainteresse em ficar somente com ele.” Ihab entregou as palavras como se fosseum relatório à uma superior.

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O que é de se esperar, uma vez que Alaia simplesmente É superior.“Ótimo, e quanto a Dani Kaupi?” Alaia continuou.“Ele e a dona aranha ficaram com Samson.” Ihab disse.“Dani não está muito bem, eu acho que ele é quem precisava mais da

Limpeza de Luz, ele se sentia a escória da demônidade pelo que tinha feitoMatti passar, é verdade que Sororia tardou em contar para ele sobre ela eMatti, mas ele não está ouvindo muito a razão agora, ele sente falta de Matti,eles eram amigos desde crianças.” Samson explicou, sua voz era um duetoentre serenidade e compaixão.

“É justificável, por sorte, há várias pessoas que podem ajudá-lo comeste problema na cidade, você indicou alguém?” Alaia inquiriu.

“Sim, Loviisa, bisneta de Hakasalo.” Samson avisou.“Bisneta? Ela é mais nova que eu?” Christina perguntou.“A família dela é toda de humanos.” Ihab explicou.“E daí?”“Humanos vivem muito menos que nós, e consequentemente tem

filhos quando são muito mais novos que nós, por isso a bisneta de Hakasalo éalguns anos mais velha que você na verdade e... espera, você sabe quem éHakasalo?” Samson perguntou surpreso.

“Sei sim.” Christina respondeu fazendo a cara mais fofa e meiga queAlaia já tinha visto em toda sua vida, e ela já tinha visto Wendy usar domesmo truque, e Wendy era competição pesada em termos de fofura.

“Como?”“A vovó leu sobre ele no livro da Harbinger da Luz.” Christina disse.“Sério?! A vovó está lendo as memórias da Harbinger da Luz pra

você?” Samson perguntou, genuinamente surpreso.“Tá sim!”“Nossa, eu e o Ihab tínhamos que arrombar o cofre dela pra conseguir

ler um–”“VOCÊS DOIS FAZIAM O QUÊ?!”

O grito de Alaia encheu Ihab e Samson da certeza de que a morte esperavapor eles.“Estou brincando.” Alaia continuou, “eu sempre soube que vocês iriamquerer ler mais se houvesse um desafio no meio, por isso dizia que não queriaque vocês lessem, só esperava que tivessem percebido que não precisavamarrombar o cofre, ele abre da mesma forma que a parede de areia no subsolode Tuonela.”

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Sem dizer palavra, ou tirar os olhos de Alaia, Samson se aproximou daparede do cofre, bateu em código Morse a palavra “abra” e, sem demora, eleabriu, revelando cartas sem preço e documentos que reconstruíam a históriacomo um quebra-cabeça de mil peças.“Isso teria facilitado muita coisa.” Samson admitiu.“Não teríamos que ter chamado o Kirio para consertar o cofre uma vez pordia.” Ihab emendou, observando o conteúdo do cofre.“Antes que me esqueça,” irrompeu Alaia, “a senhorita Sororia, o queaconteceu com ela?”“Ela decidiu que não queria mais ver nenhum dos dois, não disse nada alémdisso.” Comentou Samson, fechando novamente o cofre, “Ihab, acho melhorirmos agora.”“Eu também, boa noite, mãe.” Ihab disse, com um longo abraço, que Alaiaapreciou com todo amor do mundo: ambos tinham mania de abrir as asas aose abraçarem, era gracioso.“Boa noite, mãe.” Samson foi o próximo, ele não abriu as asas, não tinhaforça nelas, mas o que lhe faltava em força, sobrava em coração.“Boa noite, filhos.” Alaia disse quando ambos se retiraram e, ao virar-se paraChristina, emendou, “você está bem, meu anjo? Sua aparência não melhoroumuito desde que usou o Lux Veritas em Sororia, e parece que você vem seforçando a parecer bem.”“Eu ainda tô me sentindo estranha por causa da Sororia, eu não li a mentedela, mas eu peguei muita coisa que ela sentia... solidão, sacrifício, confusão,esse mundo parece um lugar muito feio pra ela.”“O mundo é o que fazemos dele, meu anjo, vê-lo feio é uma questão deescolhas que fazemos e ações que tomamos.” Alaia murmurou, acariciando ajuba de cachos de Christina.“Sempre?” Christina perguntou confusa, “mas, e quando a gente não temnada? Nem comida, nem cama, nem casa? Ou quando a gente vê tristeza emtoda parte desde pequenininho, e a gente nem sabe porque ela tá ali, só seacostuma com ela porque todo mundo ao nosso redor também acostumou?Ou quando você é um Tupã que viu tudo que ele conhecia morrer na frentedele de uma só vez.”Christina chorou.Não há o que embelezar neste momento.Não há vagalume Elizabeth para simpatizar.Não há chaminé para se esconder.

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Não há metáforas, não há poesia e tampouco rima, apenas uma menina denove anos chorando dores roubadas através de histórias seculares e sensaçõesde segunda mão. Uma menina que escolheu sentar-se no braço da poltrona deAlaia que, por sua vez, sentou-se ao seu lado.“Christina, meu anjo, o que você está sentindo não é seu: Wendy e Autumn jáme contaram de pessoas que foram felizes em confinamentos solitários ecâmaras de tortura, neste mundo e no próximo, pessoas destituídas de família,de amor e, em alguns casos, até da própria vida, é um feito hercúleo ver avida bonita nestes momentos, mas não é impossível, e quando começarmos aler A Noite Negra da Harbinger da Luz você vai conhecer uma prova dasminhas palavras.” Alaia garantiu, abraçando a neta, que retribuiufrouxamente.“O que eu tô sentindo não é meu, mas é possível de ser sentido, e só de saberisso, eu já sinto muita dor.” Christina disse, açaimando lágrimas novas paraproblemas velhos.“Esse é o fardo de Lux Veritas, por isso você precisa aprender muito controlesobre ele antes de usá-lo, meu anjo, entende? Por favor meu anjo, não o usede novo, não enquanto não estiver recebendo o treinamento adequado paraisso, promete?” Alaia pediu, travando seus olhos nos da neta.“Prometo.” Christina respondeu.“Vamos continuar?” Alaia perguntou, pegando o livro.“Antes, me responde: você sabe de quem é o diário?” Christina perguntou.“Sei.” Alaia confirmou.“A dona dele já apareceu no livro?” Christina insistiu.“Eu não vou dizer.” Alaia disse, tirando um sorriso de sua neta.“Tá, e o problema do leitor chato interior da Wendy?”“O que tem ele?” Alaia quis saber.“Ele vai achar algum problema de verdade na história e a gente vai ficar semexplicação nenhuma, né?”“Vai.”“Eu sabia, e é verdade que, quando a Autumn era criança, as outras criançastiravam sarro dela e ela não matava nenhum deles?”Alaia não conseguiu evitar soltar umas risadas depois dessa.“Isso aconteceu no capítulo quarenta, não é?” Alaia perguntou, folheando olivro, “é sim, achei, bem meu anjo, eu não posso afirmar que qualquerhistória que Kahsmin tenha contado sobre a infância de Autumn sejaverdadeira, existem duas versões do capítulo quarenta, a que temos neste

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livro, que termina com Autumn afirmando que Caleb ainda é um babaca, euma outra, que está guardada ali no cofre, que é basicamente a mesmahistória, exceto o final.Na versão guardada no cofre, Autumn nunca diz que Caleb é um babaca, masela chama Kahsmin em voz alta para dentro do campanário, e quando elechega, ela afirma para ele: Você mentiu sobre minha infância para ele.Kahsmin sorri ao ouvir isso e o capítulo acaba ali, acho que isso acontececom mais dois ou três capítulos desse livro e, bem, é por isso que eu não seidizer o que é verdade sobre a infância de Autumn.”“QUE DEMAIS!” Christina gritou excitada, e dessa vez, soou genuíno aosouvidos afiados de Alaia, “você acha que o Kahsmin meio que tinha umaqueda pela Autumn?”“Kahsmin? Uma queda por uma mulher que o chamou de covarde na frentede uma cidade inteira, desafiava cento e dez por cento de qualquer ideia eatitude que ele tomasse, zombava a inteligência dele por diversão, mesmo elesendo brilhante, e que não permitia que ele olhasse de um certo jeito para ela?Meu anjo, ele não tinha uma queda por Autumn, ele tinha um precipíciointeiro.” Alaia comentou, se divertindo com a confusão no rosto de sua neta,“confie em mim, meu anjo, homens como Kahsmin gostam de mulheres queos desafiem, não que os acomodem: Dahlia também era assim, só não era tãoexplícita ou forte quanto Autumn, mas também não dava sossego paraKahsmin.”“Mas, se elas gostavam dele, porque faziam ele sofrer assim?” Christinaperguntou, confusão genuína se alastrava por seus olhos caramelos enquantoela mexia em seus cachos.“Meu anjo, um dia você vai entender: mulheres fortes gostam de homensfortes, e nós, mulheres fortes, somos muito boas em reconhecer potencialpara força: quando o encontramos em um homem, nós queremos forçá-lo atéque este tal potencial deixe de ser potencial e passe a ser realidade. Nós nemsempre fazemos isso com delicadeza (no caso de Autumn, quase nunca), masnós o fazemos com a melhor das intenções.” Alaia contou, sentindo saudadesgenuína de uma época, há muito ida, que fazia morada no cemitério de suasmemórias.“Nós?” Christina indagou.“Nós, ou você achou mesmo que eu ia falar sobre mulheres fortes e não meincluir?”Christina não tinha argumentos contra a lógica impecável e por isso mudou

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de assunto: “É verdade que a Kristell tinha uma coleção de quadros delamesma?”“Sim! A maioria desses quadros está no Museu de Arte Erudita de Tuonela,mas nós temos uns dois ou três dessa coleção aqui em casa, inclusive o quefoi feito por Jaques Araque.”Christina deu um berro de banshee alegre ao ouvir aquilo.“POSSO VER? EU QUERO MUITO VER COMO A KRIS ERA, PORFAVOR DEIXA EU VER!”“Acho que vai ter que esperar uma semana, meu anjo, eles estão emrestauração, mas logo mais você vai poder ver à vontade, e eu tenho queconfessar, o de Jaques é realmente o mais fiel. Os cinco retratos que Kristelldeu para Wendy; Marley, Henrietta, Threepwood, Esmeralda e Allen, estãotodos no museu, se quiser podemos ir amanhã.” Ofereceu Alaia que,secretamente, desejava ver as pinturas de quando ela própria era jovem: haviaum quadro em especial, de exatos dez metros quadrados, que retratava Alaiano ápice de sua juventude: asas abertas e magnificas em sua envergaduradescomunal e cores vivas feito o mar, lábios cor de chocolate derretido aosol, olhos brilhando com a vitória, quadris capazes de transformar o maisinteligente dos homens em um completo idiota... é, ela sempre gostava queoutros vissem ou lembrassem como ela fora outrora.“SIM! SIM! SIM INFINITOS SIM!” Christina disse, pulando no braço dapoltrona de Alaia.“Está combinado então, meu anjo. Vamos continuar?”“Por favor.” Implorou Christina.

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Capítulo 43

“Respire fundo, Princesa D’arlit, hoje é você quem dá as cartas, é você quemtem um exército, os melhores homens de Allenwick D’arlit (forçados acooperar por uma pirralha de dez anos nascida no inferno, mas... detalhes).Você tem o poder para aniquilar Tuonela na ponta dos dedos, apenas umgesto e seria como se a cidade nunca tivesse existido. Hoje você é a Senhorada Tempestade, a Cadencia Derradeira, a Desolação de Jussarö.”“Você é a Harbinger da Morte.”Helena vinha repetindo este mantra desde que saíra do castelo dos D’arlit nofinal da noite passada, dizendo apenas as palavras finais em voz alta apenas.Era patético.Havia quase duas décadas que a princesa herdara o título de Harbinger daMorte, quase duas décadas que vinha seguindo as ordens de AllenwickD’arlit, sem nunca sofrer uma única derrota, trazendo e espalhando a glóriados D’arlit pelo mundo.O mundo mudou ao seu redor, mas ela ainda era a mesma.Sempre houve e, ela estava convencida agora, sempre deveria haver umsentimento agourento, recusando a deixá-la sozinha quando estava prestes aagir, era aquele sentimento estranho que vem quando percebemos o querealmente somos.O que Helena D’arlit realmente era?Uma criança sem autonomia, tão assustada de tomar suas próprias decisõesque, sempre que lhe era feita uma simples pergunta, procurava na direção dopai ou da irmã, como que pedindo ajuda, como que pedindo permissão paraagir por conta própria. Muitas vezes, sua irmã acabava por responder no seulugar e, por mais que sentisse o olhar reprovador dela, de seu pai e de quemquer que tivesse feito a pergunta, devia confessar, sentia-se grata por nãoresponder por si mesma, era seguro dessa forma.Uma adolescente rebelde, revoltada consigo mesma, carente de atenção,como uma planta feia no jardim, não A mais feia, pois até essa era mais dignade nota: não, ela era apenas medíocre, apagada pelo brilho que a cercava,brilho vindo das realizações da irmã mais velha, às quais ela nuncaconseguiria se equiparar: ninguém se importava com a adolescente revoltadaconsigo mesma, ela era apenas um acréscimo mal pensado num quadro de

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família que poderia ser perfeito, não fosse por sua presença. Por isso, elaprocurava atenção em todos os lugares errados, pois só se cercando demediocridade é que ela se sentia apropriada.Uma adulta vingativa e rancorosa que, no fundo, ainda é uma criança perdida,ainda procurando por ordens para seguir, querendo satisfazer quem nunca seimportou com o que era importante para ela. Ainda é uma adolescenterebelde, implorando pela atenção que nunca teve, chorando no escuroenquanto todos se divertem: eles ignoram o quanto ela está machucada, oquanto ela quer fazer parte do quadro perfeito de família, o quanto ela quer seencaixar.O que Helena D’arlit realmente era?Patética.E qual era o sentimento estranho que isto lhe causava?Ódio.Ódio do mundo em que nascera, que nunca reconheceu nela as qualidades dasquais ela gostaria de dizer que se orgulhava em ter, não fosse o fato delasserem defeitos para todos ao seu redor.Ódio que sentia de si mesma, por nunca ter sido forte quando sabia que deviater sido, por nunca ter defendido o que acreditava ser certo, por querer tãoveementemente agradar a todos que nunca se importaram.Era esse sentimento estranho que tomava conta de seu corpo.Por isso havia um mantra: Para fazê-la odiar-se, para fazê-la agir comoagiram para com ela: com frieza, sadismo, sem misericórdia, sem segundaschances.“Eu sou a Harbinger da Morte.” Ela repetiu.Foi com um sorriso no rosto que ela fez o que deveria fazer no Orfanato dasNeves, saboreando a perfeição do plano de Gambler e achando surpreendenteque Ally não estivesse mentindo sobre a localização do orfanato.O deleite só aumentou na medida em que convocava a maior tempestade quejá se alastrara pelo continente nos últimos cem anos: uma mortalha sinistra,feita em pinceladas negras e violetas, carregada de dilúvio, medo e morte, eraisso que oprimia os céus, indo para muito além de Bric-à-Brac e dos maresturbulentos de Tuonela, estendendo-se até onde os oceanos não têm nomenem dono.A tempestade do século, e Tuonela estava bem no centro.Helena sorria como o demônio que era, sentindo a confirmação de seumantra: ela era a Senhora da Tempestade, um pouco cansada pela quantidade

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de energia que estava usando para convocar aquelas nuvens, mas... detalhes.Não demorou muito para Caleb aparecer, mas ela não se mostraria deimediato: a tempestade estava armada, seria um anticlímax horrível aparecerantes de a garoa amadurecer e poder ser chamada chuva. Sem mencionar queGambler havia ensinado uma coisa ou outra sobre aborrecer o inimigo comcoisas pequenas, como atrasos.“Seus” homens aprovaram a ideia, da mesma forma que aprovariam receberférias ou uma ordem direta para arrancarem os próprios olhos: Helena nãosabia o que Ally havia feito para deixá-los tão submissos a ela, mas tinha queadmitir, estava satisfeita.Havia apenas cem soldados, vindos em dez Serpas (grandes), e a Harbingerconhecia todos, pois eram da linha de frente do exército de Allenwick.Setenta e nove deles estavam escondidos ao redor de Tuonela, dezcontinuaram no Orfanato das Neves, um havia ido para o farol de Caleb, logoestaria de volta, e dez estavam com Helena, os dez com poderes maisinteressantes, indo de coisas simples como atirar lava, até algo complexo,como o poder de cegar momentaneamente a vítima ao tocá-la.Era um demônio curioso, esse capaz de cegar suas vítimas, ele parecia maiscom um mago que com um guerreiro, o cabelo negro era grande o bastantepara parecer uma cortina feita de mágica, o rosto jovem tinha tatuagens quenão deviam fazer sentido nem para ele mesmo, e uma túnica negra substituíaa armadura dos D’arlit.Com a exceção daquele demônio, apenas a própria Harbinger não usavaarmadura, e se orgulhava muito disso, em parte por mostrar que não sentiamedo, em parte porque sua irmã também nunca usou uma.Um pássaro preto de cauda azul levantou voou, a chuva tomou forma: não eramais como o pranteio espantadiço de uma garotinha tímida, mas as lágrimasangustiadas de uma mãe desesperada ao perceber que não pode salvar a filha.Num instante, Helena sentiu tais lágrimas em seu rosto, sem saber de quemeram.Noutro, a Harbinger fez com que um raio mutilasse a terra e criasse umincêndio em volta de Caleb.A chuva amadurecera, hora de colher os frutos.Num primeiro momento, Caleb ameaçou atirar o arco e flecha, logo depois,ela não sabia mais explicar o que estava acontecendo.De repente, não estava sentindo ódio, e também não estava sentindo medo, oque, no fundo de sua mente, a preocupava, pois Caleb Rosengard era uma

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lenda entre os D’arlit: o último resquício da era dos anjos, além de Alaia.Quando ele foi dado como morto, Allenwick providenciou uma das maioresfestanças que os D’arlit já viveram, o Festival da Queda dos Anjos.Sem mencionar que ela já o tinha visto lutar quando estavam juntos: eleenfrentou cerca de cem mestiços e demônios ao mesmo tempo, enquantofalava com ela, como se nada estivesse acontecendo. Isso foi quando ele tinhadezessete, com dezoito ele já ria da ameaça de um exército de mais de mildemônios.Mas não, não era medo que ela sentia.Era uma alegria irracional que aumentava na medida em que ela seaproximava dele, fazendo comentários dos quais ela não conseguia selembrar agora.Quando estavam frente à frente, ela estendeu a mão, como se fosse umarainha ensopada caminhando sobre um tapete vermelho de lama, e Calebapenas um fidalgo.“Acredito que já nos vimos antes.” Disse seu vassalo.“Acredito que seja verdade.” Respondeu vossa majestade.Naquele instante, não havia Gambler, não havia Ally, não havia um plano,um mantra ou ódio e rancor, só motivos para sorrir: era um dia lindo, assimcomo ele.Só que não.A felicidade irracional durou até um berro de Serpa rasgar o silêncio e seusouvidos.Então, confusão: Por um breve momento, tão breve quanto a eternidade, elaolhou para Caleb, sem medo, sem raiva, sem alegria, sem nenhuma intençãoou pré-julgamento, o que a permitiu ver apenas a verdade: cabelos brancos,cansados e encharcados escorriam pelo seu rosto, revelando apenas um olharcinzento como a melancolia de um homem bom. Faltava muito naquelesemblante: faltava cor, faltava brilho, faltava um pedaço de orelha, faltava umpedaço de vida.Ele era um fantasma do homem alegre, enérgico, engraçado e cheio de si queela conhecera no final da adolescência: Gambler havia contado tudo queCaleb passara nos últimos anos, mas em momento algum ele mencionou queele estava tão... tão...Patético.Eles nunca foram tão parecidos.“Helena.” Caleb murmurou, o veludo de sua voz jazia afogado no mar da

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amargura de uma vida vivida em esperanças perdidas e promessas nãocumpridas.Ele já estava morto, apenas continuava a respirar.“Princesa Helena D’arlit.” Ela corrigiu, recuperando em sua voz todo o ódio edesprezo que vinha cultivando desde o dia anterior, “ou apenas, a Harbingerda Morte.”“Harbinger?” Ele perguntou confuso, “você me disse que sua irmã era aHarbinger da Morte. Você odiava a Harbinger da Morte e tudo que elarepresentava, sempre dizia isso quando estávamos juntos.”Helena sentiu o olhar dos D’arlit caírem sobre ela ao ouvirem o comentáriode Caleb.“Eu odiava a Harbinger, até eu me tornar a Harbinger. Foi uma honra imensaherdar o título da minha irmã quando ela veio a falecer uns dezesseis anosatrás, depois de um acidente com uma lâmina.” Helena disse com ar desuperioridade, dando uma ênfase perigosa às palavras “lâmina” e “acidente”.“Que apropriado.” Ele disse indiferente, entregue às circunstâncias como ocanto da chuva ao silêncio noite. “Parabéns. Gambler venceu, eu não voulutar com você, então venha: faça o que veio fazer comigo.”Antes que qualquer palavra fosse dita, Helena os ouviu em meio aos filetesd’água que adornavam e teciam o temporal com beleza agressiva: eram ossinos da catedral de Tuonela, soando ao longe, como um ponto de paz noolho da tempestade.Ela sorriu com uma ideia em sua cabeça e disse com ar de devaneio: “Eusempre amei o som dos sinos.”“Gambler pediu para que me fizesse passar por isso?” Caleb perguntou aosom da quinta balada, “já não foi o bastante me fazer acreditar que eu poderiaconseguir minha vida antiga de volta?”“Não.” A Harbinger disse suave, alegre, como se houvesse venenoescorrendo em sua voz, “eu amo o som dos sinos e, sinceramente, mepergunto: por que Henrik tem que gritar tanto quando está fazendo umdiscurso?”Um mestiço de anjo cerrou os punhos enquanto os D’arlit riam.Caleb sempre achou doloroso se lembrar de pessoas que o abandonaram,ainda mais quando se lembrava de como conhecera as pessoas em questão.Helena nunca se esquecera este detalhe, e a Harbinger se aproveitou dele,narrando em versos o enredo de quando se conheceram, afinal, o que pode seesperar vindo de um ser moldado em ódio, além de dor manifesta em todas as

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suas mais diversas formas?Exato: Nada.“Princesa D’arlit.” Chamou um demônio que vinha subindo a encosta,carregando um objeto longo, escuro e mortífero que só podia ser...“Traga-a para mim!” Ela ordenou ao reconhecer a espada nas mãos dele.A satisfação nos olhos de Helena partilhava do tom lilás com que pincelarasua tempestade: ela a desembainhou vagarosamente, deixando seu reflexosurgir na lâmina escura: era um reflexo ovalado e distorcido pela água, oreflexo da Harbinger da Morte.“Muito bem.” Ela disse sem tirar os olhos da espada, “me conte, CalebRosengard,” ela prosseguiu enquanto o homem se afastava, “você ainda dizque conseguiu esta espada lutando contra a própria Harbinger da Morte?”Caleb não respondeu, o que queria dizer “sim”. Ele era patético e orgulhosodemais para admitir em voz alta que havia mentido, incrível.“Nunca pensou em mencionar como realmente a obteve?” A Harbingerperguntou, passando a mão pelo fio da espada; havia se cortado, mas valia apena sentir dor, “ou você acha que dizer que sua ex-namorada roubara aespada da antiga Harbinger da Morte para você não ia ser impressionante obastante?”Caleb continuou quieto, mas com a respiração pesada como as ondas do marescuro de Tuonela. Pela primeira vez, a Harbinger entendeu porque seu paifazia questão de apontar os seus erros na presença de todos: havia um prazerdoentio em ver o orgulho da vítima ser destruído em público.“Muito bem, Caleb Rosengard: assume ter rompido seu acordo comGambler?”Caleb meneou a cabeça com um pescoço que mais parecia uma molaenferrujada.“E qual haveria de ser o preço por tal ruptura?”“Helena, isso é mesmo necessário?” Caleb perguntou cansado, como quem sóquer “acabar logo com isso” e ir para casa.“Princesa Helena D’arlit.” Ela corrigiu, “e sim, Caleb, é necessário agoraresponda.”“Por quê? Já não foi o bastante me iludir à ponto de eu acreditar que teriaminha vida antiga de volta? Não foi o bastante me fazer passar metade daminha vida sendo odiado por todos que eu amava, tudo porque eu saí do meuposto por VOCÊ!?” A voz dele ganhava força com a tempestade que caíacom o peso do rancor daqueles que desaprenderam a perdoar, “Eu fiz um

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acordo com o demônio só para te trazer de volta, DROGA HELENA EUESTAVA PRONTO PARA MORRER POR VOCÊ NAQUELA NOITE! EUAMAVA VOCÊ E VOCÊ SIMPLESMENTE FUGIU QUANDO ME VIU!POR QUE, HELENA?”Silêncio. Mesmo o temporal ressoava quieto perante o eco das palavras deCaleb.“Por que você não acaba logo com isso?” Caleb prosseguiu cansado, “euescondi o ultimato de Kahsmin, de Anuk, de todos, porque quis minha vidaantiga de volta e achei que eles tentariam me impedir se soubessem que euestava me comunicando com Gambler. Foi a primeira na minha vida queescondi algo deles, e a primeira vez em dezoito anos em que eu tive vontadede viver. O céu parecia mais brilhante enquanto eu esperava pelo dia em queteria minha vida de volta, em que eu voltaria a ser quem eu era.”“Ao invés disso, eu recebo você.”A Harbinger podia ser uma criatura de ódio, mas Helena não: foiinimaginável a dor que a atingiu quando sentiu o desprezo na voz de Caleb aodizer a palavra “você”. Nem mesmo seu pai conseguiria fazê-la sentir o queela sentiu com apenas uma palavra.“Me mate, Helena, eu não estou pedindo respostas, eu nem as quero mais, enão estou pedindo misericórdia, só quero que faça o que Gambler a mandoupara fazer, agora.”A tempestade inundava o mar de Tuonela, a Harbinger podia ver a areia dapraia ser devorada pela água transbordante com o canto dos olhos que Helenamantinha fixos em Caleb, ela tinha o semblante dolorido e apologético dequem quer pedir desculpas, mas não vai fazê-lo.Afinal, além de patética, ela também era orgulhosa.Eles nunca foram tão parecidos.Ainda calada, a Harbinger estalou os dedos.Ao seu lado, um buraco de sombras se abriu, como Gambler avisou queaconteceria, Helena, no entanto, o ignorou, não tirando os olhos de Caleb,que olhava com a calculada frieza de quem esconde o medo em suassombras.Em segundos e sem cerimônia, a criatura havia emergido, uma criaturaencapuzada, apenas com um pedaço do nariz e a boca visíveis, uma boca comum sorriso nefasto que Helena pode ver refletido nos olhos já não tão frios deCaleb.“Boa noite, Caleb Rosengard, sentiu falta do espectro?” A voz sibilada da

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criatura ressoou, causando arrepios na pele de Helena, não pela estranheza, aocontrário, pela familiaridade, era como uma memória embargada,envelhecida e envenenada em sua alma. A voz do espectro, ela sabia, não erarealmente dele, e havia um esforço chamado sutileza para disfarçar seutimbre verdadeiro.A criatura não esperou uma resposta, voltou-se para o buraco de onde haviasaído e, de lá, tirou um saco escuro, grande o bastante para colocar umapessoa adulta dentro. Sem demora, o espectro deixou o saco entre Helena eCaleb e afastou-se alguns passos.Helena esperou que Caleb fizesse perguntas: o que o espectro estava fazendoaqui, o que havia no saco, qual era o significado daquilo tudo, porque era elaquem estava ali, mas ele não fez nenhuma delas. A única pergunta no ar eraaquela que ela podia ver no olhar do mestiço de anjo: “Por que ainda estouvivo?”Helena respondeu, ainda mantendo contato visual apologético: “Gambler nãome mandou para matá-lo.”Em quietude, confusão formou-se no rosto dele.Helena então fez o que havia jurado nunca mais fazer: colocou-se de joelhos,com a cabeça baixa em sinal de respeito, enquanto segurava a espada de suairmã com suas duas mãos, oferecendo a arma embainhada para o mestiço deanjo.Os onze D’arlit ali presentes caíram em postura de reverência para Caleb logoem seguida, e o espectro curvou-se até ficar mais baixo que Helena.“Eu, princesa Helena D’arlit, filha de Allenwick D’arlit, a Harbinger daMorte e representante dos D’arlit neste mundo e no próximo, estou aqui parate devolver o que sempre foi seu, Caleb Rosengard.” Helena disse, com osolhos voltados para o chão, “você há de ter sua vida de volta, há de ser umalenda viva, respeitado como um guardião e amado como um deus, se assimquiser. Basta que aceite.”A chuva e o vento ameaçavam roubar seu equilíbrio, enquanto Caleb nãomoveu um único músculo. Helena adivinhou que ele estava aturdido demaispara ter qualquer reação além de olhar embasbacado dos D’arlit para oespectro, do espectro para o saco preto, e do saco para Helena.“Aceitar o quê?” Ele murmurou por fim.“Abra o saco, Caleb Rosengard.” Sibilou o espectro, dando mais arrepios àHelena.De quem ele havia roubado aquela voz?

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Caleb obedeceu: Helena continuou olhando para o chão, mas pode ver com avisão periférica o momento exato em que o mestiço percebeu o que haviadentro do saco, o misto de terror e fúria em seu rosto estava nítido, mesmoque as rajadas de chuva tentassem embaçá-lo.“Isto é um ritual de boas vindas, Caleb Rosengard.” O espectro silvou,soltando uma gargalhada gutural enlouquecida ao ver a expressãoaterrorizada do mestiço de anjo.Helena aguardou o silêncio antes de colocar-se em pé, com toda a graça eelegância que um vestido e cabelos ensopados permitiam: a espada aindajazia em suas duas mãos quando ela revelou seu olhar violeta para Caleb edisse as palavras que deveriam mudar a vida daquele homem para sempre:“Junte-se aos D’arlit. Mate-a e seja uma lenda entre nós.”“E se eu recusar?” Caleb disse, sem fazer a menor menção de tocar a espada.“Eu estava contando com isso.” Helena sussurrou vitoriosa.

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Capítulo 44

“Eu poderia escrever um livro de memórias, mas não de memória.”Água caía pela janela do campanário, não havia luz senão a vinda dos maisque ocasionais relâmpagos que costuravam o céu da noite. Em um cantoescuro, o som quieto e tímido do choro de um garoto lutava para ser ouvido.Não muito longe dele, havia uma menina: parte dela também queria chorar aover o tom violeta dos céus, pois esta parte dela sabia: essa era a tempestade damorte, a mesma que levara sua mãe, seu pai, seu meio irmão Halloway, etoda Jussarö. Não ia demorar para tudo explodir, como da última vez.Só haveria morte.Mas ela não conseguia chorar, pois parte de sua mente não era mais sua:havia vergonha escondida embaixo de mentiras que nunca havia contado,culpa por atos não cometidos em suas mãos, lembranças de mães que nãoeram suas e filhos que amara, embora não os conhecesse.“A criança morta nos escombros de Tuonela, na parte que os D’arlit nãopermitem ser reconstruída... ele era um menino chamado Donnie, nasceu comcabelos brancos que ficaram cor de gema quando tinha três anos.” Janemurmurou, sua voz soou infantil em seus ouvidos, “eu amava Donnie, mas eununca o vi na minha vida.”James continuava chorando baixinho em um canto do campanário,indiferente para as palavras da irmã. Ele só queria ir para casa, voltar para asemana de Nicolau e rever os amigos de Jussarö, já estava cansado dasperguntas da flamingo cega do mal.“Eu me lembro de morrer afogada.” Jane sussurrou, “eu era... eu não melembro quem eu era, alguma coisa com Marley, eu era uma mulher comcabelos ruivos, tinha um navio pirata, mas eu não era a mãe de Donniequando eu era Marley.” Jane deixou um soluço e uma lágrima rolarem porseu rosto, “e havia anjos, eu já vi anjos! Com asas e brilho... mas eu não eraMarley quando vi anjos...” sua cabeça doía com as memórias de mais vidasque se lembrava de ter vivido, “Henrietta, eu era Henrietta, eu tinha ummarido que odiava anjos e mestiços, quase todos os demônios eram assimnaquela época.E eu fui morta pelos anjos.”Jane era madura, mas não tanto, ela nunca teve filhos ou vira anjos, nunca se

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casou e nunca teve essas memórias. Nas memórias que sabia serem suas,lembrava-se de ter morrido uma vez em Jussarö, e mais várias outras desdeque chegara em Tuonela: no começo, era legal bancar a durona contra aflamingo cega do mal, mas quanto mais Jane morria, mais a graça morriajunto: não havia diversão na tristeza das memórias que não eram suas.Memórias que ela não queria ter.“Eu me lembro de viver e morrer em Virrat, foi após a maldição ser lançada,meu nome era Rosemari, o segundo R tinha um som gutural na garganta, euodiava quando pronunciavam meu nome sem fazer aquele som. Era errado! Àmenos que você fosse Winslow. Winslow era o único que podia dizer meunome errado, sua voz era limpa e sóbria demais, nunca conseguira arranhar agarganta pra fazer aquele R.Eu morri sem nunca me casar com aquele pescador de boca suja. Será que eleainda pensa em mim? Será que se lembra de nós quando éramos jovens efortes? Nós achávamos que íamos ser para sempre. Humf, que infantil. Seráque se lembra a quanto tempo eu morri? Será que ainda tem aquele frango deborracha idiota? Não sei, só espero que tenha perdoado o sobrinho. Ele nãodeixou o posto no farol de propósito, ele nunca iria querer ver a própria mãese afogando.”Um novo relâmpago se espalhou como uma cicatriz de fogo no céu de luto,iluminando as estantes recheadas de livros intocados, o quadro grande demaispara o interesse de Jane e uma porta sem maçaneta que ela gostaria mais quequalquer coisa poder abrir.“Tupã.” Ela murmurou, “eu fui Tupã, filho do líder de minha tribo, eu sabiaoutra língua, muito diferente dessa... tehain kuwast ziroziro, eu me lembro depalavras, mas elas parecem estar sumindo, como se nunca tivessem sidominhas. Que arrogante. Quem fui eu para me julgar dono de palavras, afinal?Eu me lembro de morrer, a Harbinger da Morte encontrou nossa tribo... só eusobrevivi, pois ela queria uma morte mais teatral para mim. Eu me lembro deser levado à Tuonela, eu chorei perante a cidade da indiferença: nãoconseguia falar a língua deles, meu povo estava morto, meu pai estava morto,minhas palavras saíram não encontraram sentido, mas meus olhosimploraram ajuda.”Um segundo sinal de choro brotou no rosto de Jane.“Mas ninguém veio.”O peito de Jane doía como se o abandono de Tupã fosse também seu.E doía. Doía porque, de fato, era seu.

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Naquele instante, Jane jurou que jamais deixaria alguém passar o que Tupãpassou, nem mesmo o pior dos seres deste mundo merece uma dor tãogrande.“Ninguém veio, e a menina que trazia luz... a menina que trazia luz foi aúltima coisa que vi antes da escuridão cair sobre mim.Os olhos dela, havia raiva em um e desespero no outro: ela queria ajudar, elanão sabia como e, sem saber, ela o fez: na cidade da indiferença, ela seimportou comigo. Mesmo que eu tenha morrido, saber que havia alguémentre os vivos que se importava me permitiu ir em paz. No final, ela trouxe aluz para mim. Só queria ter tido tempo de avisá-la sobre a identidade doespião.O traidor que entregou Tuonela e meu povo à Harbinger da Morte.”Jane vasculhou as memórias de Tupã, mas não conseguia achar o nome desseespião traidor, talvez as memórias viessem a ficar menos fragmentadas com opassar dos dias.Mas ela não queria estar ali com o passar dos dias: ela e James iam descobrirum jeito de fugir. Se pelo menos Stacy, a Serpa, estivesse por perto, ela eJames poderiam ir embora, mas Autumn nunca deixaria Stacy ao alcance deduas crianças depois de ter a Serpa roubada.“Em uma vida, eu fui Dominic, eu era um D’arlit, mas fugi para me casarcom uma humana: eu amava minha mulher e a ela dei meu sobrenome, comoera costume em seu mundo. Por nove anos eu vivi com ela, voltando vez poroutra a este mundo para roubar os tesouros dos D’arlit e trocá-los pordinheiro no mundo dela.Parecia seguro, eu não era o primeiro a manchar o nome dos D’arlit memisturando com humanos; Ethan, o olheiro, havia feito o mesmo, a diferençaé que Ethan nunca se aproximou dos tesouros de Allenwick, ele foi esperto.Quando minha filha tinha oito anos, eu me prometi que não roubaria mais ostesouros de Allenwick, já que agora Ethan havia sucumbido à loucura,matado o filho mestiço e entregue a própria mulher aos D’arlit. Nãodemoraria para que ele entregasse todos os antigos colegas, eu sabia que seriamelhor sumir daquele mundo por completo.Infelizmente, o dinheiro que veio dos tesouros que eu roubara durou apenasmais dois meses antes de sumir por completo: eu estava falido e minha filhaachava que eu não a amava mais só porque eu não tinha como dar tudo queela queria.Foi a primeira vez em que a odiei: odiei seu escândalo, odiei suas chantagens

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e a encorajei a ir embora quando ela ameaçou deixar nossa casa para procuraralguém que a amassa de verdade. Eu não via a hora daquele demôniomimado sumir da minha vida.Ou... foi o que pensei, depois de odiá-la, foi a vez de odiar a mim mesmo,pois minha filha cumpriu meu desejo e deixou minha casa. Eu me odieiporque sabia que ela merecia nada além do melhor, e eu era incapaz de dar omelhor para ela... eu era um péssimo pai e não merecia o amor da minhaprópria filha, quem diria da minha mulher?Eu desejei estar morto naquela noite, até um raio de lua cheia bater em meusolhos.Foi quando quebrei minha promessa.Eu fui até a passagem no Lago Viajante, dentro da Floresta Branca, emergiperto de uma das cidades dos D’arlit, Tuonela. Estava decidido a roubar umaúltima vez, e seria o roubo dos roubos.Eu tinha sorte, pois podia correr cinquenta vezes mais rápido que umdemônio comum, haveria tempo de sobra para que eu chegasse até o castelodos D’arlit sem ser percebido.Mas havia alguém me esperando.Allenwick D’arlit em pessoa me encontrou dentro dos aposentos de seustesouros.”Jane estremeceu com os acontecimentos que se sucederam, querendo vomitarao reviver todas as imagens vívidas, sádicas, hediondas e grotescas quevinham das memórias de Dominic. Allenwick D’arlit era um monstro quefazia a Harbinger da Morte e Autumn parecerem retratos da inocência.Ela não queria ver mais, mas precisava, só assim aliviaria a dor dasmemórias.“Allenwick nunca conseguiu me fazer dizer onde minha filha mestiça emulher estavam escondidas... ele se cansou de mim e ordenou que minhacabeça fosse arrancada e exposta em praça pública... eu já estava morto antesde me deceparem.Antes de morrer, só conseguia pensar em Alexandra e Danielly... elasestariam sozinhas sem mim... e tudo que eu pude fazer foi torcer, quase rezar,para que alguma alma caridosa cuidasse das duas por mim, e desse à elastodo o amor que eu nunca mais poderia dar, agora que eu estava prestes a metornar apenas um suspiro curto, efêmero e ido, na memória daqueles que meconheceram.”Essa foi a última memória de Dominic O’Hara, marido de Alexandra O’Hara

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e pai de Danielly O’Hara, a quem ele e Alexandra apelidaram carinhosamentede Dana.Havia lágrimas escorrendo como chuva quente e salgada pelo seu rosto, masela ainda não estava aos prantos, só se sentia triste ao perceber que sua vidanunca mais seria a mesma: mesmo se voltar para Jussarö, com suas amigas,fosse possível, ela não poderia mais brincar com a mesma alegria de antes,nunca mais ela seria inocente, nunca mais ela se esqueceria o que aquelaspessoas haviam vivido, nunca mais poderia olhar um boneco de porcelanasem pensar no sono eterno de Donnie, nem poderia ver o mar sem lembrar doamor que Rosemari sentira por Winslow, ou o desejo da senhorita Marley porsuas aventuras.Também nunca se esqueceria a canção que as crianças cantavam antes demorrer.“Uma vez, eu invadi uma igreja, não era neste mundo: eu era um homem emguerra para defender meu país, tinha uma família: uma esposa que gostava decozinhar costelas de porco e ervilhas quando eu chegava em casa do trabalhocom presentes pra ela, e tinha um filho que amava o primeiro nome dele, poisera o mesmo que o meu. Eu nunca tive problemas para matar, até memandarem para a cidade mais ao norte da região de Sami.Nós tínhamos ordens para destruir prédios importantes, onde pessoas compoder ficavam, mas não podíamos atacar igrejas e hospitais, por respeito. Noentanto, uma vez que cheguei ao norte de Sami, na cidade de Kemi, a ordemmudou.”Jane queria apagar as lembranças deste homem, pois eram as únicas que afaziam querer chorar com toda a ferocidade que dormia nos recantos de suaalma, por isso ela as narrava com tanta perfeição, para deixá-las livres, paraque elas a deixassem livre.“Eu e mais três homens fomos mandados para a igreja central, o nome certoda igreja estava em uma língua que eu não entendia, o que fez as coisas bemmais fáceis para mim, eu poderia fingir que não havia nada de sagradonaquele lugar, eu era bom em fingir, sempre fingia que era o monstro dashistórias que lia para meu filho, era divertido. Espero que ele faça o mesmocom os filhos dele um dia.Eram quatro da tarde e já estava anoitecendo: os dias eram muito curtos noNorte. Eu e os outros três homens tiramos a sorte através do jogo de palitospara ver quem iria entrar na igreja primeiro. Eu peguei o menor, eu iaprimeiro.

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Não sei o que esperava ver quando entrei, mas com certeza não era um corode crianças, todas limpas, vestindo camisas brancas abotoadas até o pescoço ecalças azul marinho, as cores da bandeira do país.Elas cantavam um hino de paz.Fiquei sentado por o que pareceram horas, embora tenham sido apenas os dezminutos nos quais eles cantaram duas vezes o mesmo hino. Duas vezes eu oouvi, duas vezes eu percebi que jamais o esqueceria.”Jane soluçou, percebendo que James havia parado de chorar havia algumtempo, agora ele estava bem mais perto da janela, indiferente para o dilúvioque invadia o campanário.“A primeira vez foi quando meu coração, mesmo corrompido e maculadopelos horrores que vivi na guerra, reconheceu a beleza serena que emanavapacífica na música com palavras que eu não entendia.A segunda vez foi quando percebi que aquela seria a última melodia dascrianças que cantavam.Os outros três homens entraram, achando que algo havia acontecido, pois euhavia demorado demais para dar o sinal: eles estavam armados, eram grandese não tinham piedade, apenas o desejo cego de obedecer às ordens que lhesforam dadas.E a ordem era: Matar.”Jane não tinha como aguentar aquelas memórias: nem mesmo o queAllenwick fez com Dominic se comparava àquilo. As imagens que via eramfortes demais para ela, assim como foram fortes demais para o homem que asviveu: todo aquele sangue inocente, tudo aquilo só para mandar umamensagem, só para causar medo.James a abraçou quando ela começou a chorar alto: as memórias dessehomem surgiram em sua mente da última vez que Autumn a matara (morrerasfixiada não é legal, mesmo quando você volta à vida) e não a haviamdeixado em paz desde então.“De onde você tá tirando essas histórias?” Perguntou James.“São memórias de vidas estranhas, uma nova aparece cada vez que a mulherflamingo me mata.”James mordeu uma pergunta em seus lábios, mas o gosto era muito amargo,ele tinha que cuspi-la: “Alguma dessas memórias é do papai? Ou da mamãe edo Halloway?”Jane fez um não pesaroso com a cabeça.James suspirou desapontado, seu olhar vagou desanimado da irmã para a

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janela, ainda havia uma pergunta que tinha que por para fora: “A gente vaificar bem, né?”“Vamos.” Jane respondeu sem pensar.“Você quer brincar na neve?” Ele perguntou.“Quê?”“Não acho que vá haver neve aqui tão cedo.” Disse uma terceira voz,ressequida e velha.Jane e James procuraram no escuro, até que a luz de um raio o revelou: haviaum homenzinho velho, sentado contra a porta sem maçaneta. Tinha cabelos ebarba ensopados, brancos e estranhamente vivos à luz da tempestade, emboratudo que Jane tenha realmente reparado fossem os olhos: estreitos como sealguém puxasse a pele em volta deles.“Eu nunca pensei que viveria para ver alguém com um poder como o seu,jovenzinha.”“Quem é você?” James perguntou.“Fred.” Respondeu o senhor, “mas me chamam de Velho Sábio.”“Por quê?” James perguntou“Bem, é uma descrição surpreendentemente precisa da minha pessoa.” Eledisse rindo, quase parecia não ter olhos quando ria, eles se misturavam comas outras rugas em seu rosto.“E como você entrou aqui?” James perguntou.“Ah, uma pergunta! Uma das boas sem dúvida, eu gosto dela, tem um quê demistério misturado com incredulidade, eu gostei de você, pimpolho, mas, nasatuais circunstâncias, acredito que uma pergunta melhor seria: como saímosdaqui?”Jane e James se entreolharam confusos, então James falou de novo: “Tá,como a gente sai?”“Por onde entraram, é claro!”“Mas... a tia cega abriu um buraco na porta e fez a gente entrar por ele.”Fred demorou-se fitando os irmãos, como se eles tivessem dito uma piada,quando percebeu que não era o caso, suspirou cansado e disse: “Estou mesmoficando velho.”Ficando em pé, Jane se surpreendeu ao ver que ele deveria ter praticamente amesma altura que ela.“Há uma porta aqui no campanário, como vocês acham que Lorina entravaaqui?”“Quem?” Jane perguntou.

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“Mas a porta não tem maçaneta.” James disse logo depois.“Lorina era a irmã de Autumn, elas praticamente moravam aqui em cima, e éclaro que a porta não tem maçaneta, é uma metáfora!”Jane e James continuaram confusos, ali, olhando para o velho, que suspiroude novo.“Prestem atenção. Uma porta sem maçaneta, você sabe que ela levaexatamente para onde você quer ir, mas não sabe como abri-la, ela é umimpasse, ela é a frustração na vida de tantas mil pessoas!” E o velho secolocou a andar pela sala, passando os dedos pelos livros mais baixos daprateleira, parando em frente ao quadro que retratava Tuonela vista por cima,“estamos sempre tão perto, quase podemos saborear o que há do outro lado, eesse é o problema, o motivo pelo qual não conseguimos abrir a porta...porque sempre procuramos perto de mais, vemos o mínimo, esquecemos otodo.”O velho fez uma rápida sucessão de batidas na madeira grossa da porta.Quando a luz do raio entrou de novo pela janela do campanário, Jane e Jamesviram que a porta sem maçaneta estava aberta.“Código Morse.” O velho disse, “cerca de dez livros naquela estante falamsobre código Morse, dois deles falam exclusivamente sobre portas que seabrem ao receberem o comando em código, mas ninguém pensa nessascoisas, estão ocupados demais se lamentando pela maçaneta inexistente,nunca se afastam o bastante para ver as possibilidades infinitas ao seu redor.Vamos.”Os queixos de Jane e James caíram involuntariamente ao perceberem que elespoderiam ter saído desde o começo, e logo se colocaram a seguir o velhoanão da barba grande.“Você sempre foi o Velho Sábio?” James perguntou inocente.“Ah, não, antes eu era o Adulto Arrogante, e antes disso, o Jovem Estúpido.”Ele respondeu rindo, “você nunca é a mesma pessoa durante sua vida,pimpolho, o que é bom, mudar é importante, contanto que nunca se esqueçade todas as pessoas que você foi um dia.”James olhou com cara de quem não entendeu nada.“Como sabia onde a gente tava?” Jane perguntou tentando acompanhar opasso surpreendentemente rápido do pigmeu ancião.“Não sabia, você só é sábio quando percebe que não sabe das coisas.” Eledisse com deleite, então voltou a falar sério, “eu estava procurando pelasenhorita DeLarose, mas agradeço por não a ter encontrado, e sim vocês dois,

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os sobreviventes de Jussarö, Anuk me falou sobre vocês. E você, pequena...”o velho virou-se para Jane, fazendo um gesto circular com a mão e uma caraamarrada para ela.“Jane.” Ela completou.“Pequena Jane! Fantástico! Pequena Jane.” As mãos pequenas do velho seagarraram aos ombros de Jane, que se assustou com o olhar subitamente sériodaqueles olhos puxados “Pequena Jane, você é um dos demônios maispeculiares que eu já vi, eu tenho muito que aprender com você. Agora sigam-me, os dois.” Ele disse com um olhar rápido para James, então voltou adescer pelas escadas da catedral, passando pelas pinturas de anjos e demôniosque davam decoro ao interior.“Onde a gente tá indo?” James quis saber.“Em frente!” Ele disse, riu com gosto, e então emendou, “para o subsolo.”“Por quê?”“Ouça, sua resposta está por vir.”Por um momento, tudo que Jane ouviu foram ecos de passos e fantasmas depalavras ditas por uma vez seca e alegre.Então veio o estrondo.O raio poderia muito bem ter caído na sua frente, pois toda a catedraliluminou-se e estremeceu perante o estardalhaço criado pelo rugido datempestade. Jane ainda sentia seus ouvidos doerem e zumbirem quando ocheiro de esturro invadiu seu nariz: era o mesmo cheiro que sentira quandoencontrou Jussarö depois do ataque da Harbinger.“Por isso, garoto.” O velho sábio respondeu quando o espectro do raio sedissipou por completo pelas paredes frias da catedral, “caso não tenhapercebido, Tuonela vai entrar em reboliço.”

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Capítulo 45

Azul, azul era a cor das plumas do pássaro que voava gracioso pelo gotejarviolento da tempestade. Lá de cima, podia ver tudo que cercava Tuonela: asmontanhas, os D’arlit, a correnteza, e os salgueiros que choravam.Choravam o medo do mar galopante, cujo quebrar das ondas era tãoestrondoso quanto o rugido agudo e grave que os raios soltavam depois derasgarem os céus como uma criança rasga o papel. Tremiam ao ver que o marengolira a praia, se arrepiavam com o som do farol de Tuonela sendoespatifado, como um castelo de areia contra a maré viva.Os pertences do faroleiro foram espalhados, tragados e dissolvidos pelacorrenteza, como a neve quando encontra o sol, como memórias quandoencontram o presente, como o presente quando tenta se encaixar no ritmo dosponteiros incansáveis do relógio.Incrível como o presente sempre parece estar um passo atrás.O pássaro e os salgueiros se lamentavam ao ver raios explodindo ao redor deTuonela, cada vez mais perto, se preparando para um gigantesco encontro dedestruição, cuja cidade haveria de ser a sede.Enquanto os salgueiros choravam, havia apenas pesar no coração dasmontanhas que cercavam a cidade desde antes dela existir: montanhas quasetão antigas quanto o próprio mar, antigas o bastante para lembrarem de toda ahistória daquele trecho ínfimo do universo, desde a primeira devastação dosgigantes de Louhi até a primeira guerra entre anjos e demônios, desde acriação de Tuonela até a primeira invasão dos D’arlit.Havia pesar no coração das montanhas, pois a história estava para se repetir.Como ela não se cansa de fazer.Todos os salgueiros podiam ver a mulher de cabelos pretos e olhos violetassorrir como uma maníaca ao dar sinal para os D’arlit e as Serpasdespedaçarem o que sobrou de Tuonela.No entanto, apenas o salgueiro plantado na montanha mais alta e o pássaropreto e azul podiam ver a multidão de pessoas correndo para fora do casarãobranco: alguns correndo pela escuridão em direção às casas abandonadas ouda catedral de Tuonela, outros se amontoando como notas musicais num gritode guerra, prontos para darem as vidas para proteger a cidade que os crioucom o amor de uma avó.

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Nos livros antigos, quando dois exércitos se encontram, costuma haver ummomento de silêncio, breve em sua inatividade, quando os inimigos seestudam e se preparam para o que pode ser o último momento de suas vidas.Tal momento é uma lenda.A verdade foi sangue.O primeiro raio a cair dentro da cidade destruiu uma casa vazia, seus pedaçosse misturaram com o temporal e se espalharam cinzentos e esfumaçados pelasbocas dos demônios e mestiços, tendo o mesmo gosto na língua de todos.Gosto de morte.Victoria Vihreä e Kristell Sinnett foram as primeiras a atacar: Victoria saltoucom graça comparável somente com a de Ally e caiu leve nas mãos deKristell, que a arremessou com força o bastante para que ela caísse sobre umadas Serpas que voavam cerca de dez metros acima delas.A própria Kristell se viu lutando contra os D’arlit que à cercavam, sentindogarras nas suas costas abrindo velhas cicatrizes que, ela já deveria saber,nunca deixariam seu corpo; ao mesmo tempo em que o chão abria sob seuspés e os engolia aos poucos: ótimo, ali, em algum lugar no escuro, havia umD’arlit capaz de controlar a terra.Mais três demônios saltaram de suas Serpas e caíram ao redor de Kris.Fazia tempo que um desafio bom não aparecia.Quase duas semanas.Kristell quebrou as pedras que prendiam seus pés e se pôs a lutar, a trupechegou logo atrás e, em poucos segundos, haviam mais de cinquenta mestiçoslutando contra, dez dos melhores D’arlit do exército de Allenwick.Enquanto isso, Victoria praticamente voava ao saltar de uma Serpa paraoutra, derrubando quantos D’arlit pudesse antes que um raio revelasse suaposição e a forçasse a partir para outra Serpa.O pássaro virou um de seus olhos em direção à praia: duas Serpas voavamrasantes, destruindo casas com suas presas e garras, vez por outraenroscando-as em algo um pouco mais rechonchudo que madeira, algo cheiode músculos, água, sentimentos e histórias não contadas. Poderiam sermestiços, humanos, demônios, não importava: no final, não passavam decomida de Serpa, esmagados, triturados... ninguém jamais ouviria suashistórias.Com o outro olho, o pássaro via a cidade: dentre aqueles que gritavam,fugiam ou lutavam, havia uma pessoa que se destacava, pois não fugia nemgritava, mas sim assistia com um sorriso no rosto enquanto casas e ruas de

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pedras voavam pelos ares em forma de estilhaços.O pássaro conhecia aquele sorriso arguto, aquele cabelo cor de outono emchamas, e mesmo vestida como um garoto refinado, era inegável que aqueleseram os passos saltitados da Princesa do Caos.Os salgueiros a perceberam; agora o choro era pelas almas que viriam a sertorturadas pela Princesa do Caos. As montanhas a perceberam; agora seupesar era pelo desfalecimento de todas as esperanças que tinham em ver onascer de um novo dia.Não haveria novo dia, não se Ally e os D’arlit estavam juntos.Nas alturas, havia um homem de cabelos brancos e olhos mortos, que apenaspodia ouvir a destruição da cidade enquanto suas mãos seguravam trêmulasuma espada que só tirara vidas inocentes em toda sua existência: Havialágrimas em seu rosto, ou talvez fosse apenas chuva.Havia um espectro, gargalhando como alguém cujo primeiro lampejo defelicidade em sua irreverente existência era vivido agora; uma risadaescarnida e gutural que vinha aos socos enquanto a voz alquebrada de umafreira suplicava um pedido que apenas o mestiço podia ouvir.A Harbinger da Morte ostentava um sorriso vitorioso enquanto esperavapaciente pelo clímax inevitável que aquela noite inesquecível haveria de ter.Enquanto isso, uma mulher com cabelos rosas e uma venda de renda montavasua própria Serpa, um idoso com a altura de uma criança e olhos puxadosrondava pela superfície da cidade e uma garota de dezesseis anos, comcabelos curtos na cabeça e uma boneca de pano tapando o rosto, fugia,soluçando ao repetir que só queria ir para casa.Um jovem de cabelos ruivos tentava acalmá-la e guiá-la para fora da cidade.Ele não dormia havia dias.

“Adoro o gosto da vitória na calada da noite.” A Harbinger refletiu enquantoassistia com orgulho a destruição na qual era banhada a cidade de Tuonela,“eu me apressaria se fosse você, Caleb.”Helena não teve gana de dirigir seu olhar diretamente para ele, temia o quepudesse vir a sentir caso o fizesse. Por isso, Caleb era apenas um vulto nocanto de seus olhos, um vulto enegrecido pela chuva e sombras que lutavampara se libertar de seu ser, um vulto de olhos brancos.

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Ele poderia adiar o quanto quisesse, não importava, pois a Harbinger sabiacomo a história acabava, tanto Gambler quanto Stefanova já haviam previstoo desfecho daquela noite.Eles discordavam em todos os aspectos na verdade, exceto um: Esta noite, osD’arlit se tornariam invencíveis.Atrás dela, um raio explodiu em uma árvore de mais de cem anos.A princesa executou um movimento súbito, feito puramente por reflexos.Apenas uma ínfima parte inconsciente da Harbinger percebeu o que estavavindo, uma parte que, em uma fração de fração de segundo, viu o raio sendorefletido num ponto estranho do céu.Quando a Harbinger voltou a si, encontrou-se segurando uma lâmina entreseu anelar e seu dedo médio: sangue se esparramava na palma de sua mãoquando notou que a ponta da faca tocava o centro de sua testa.Não fosse o reflexo do raio naquela lâmina, a Harbinger estaria morta agora.A ideia assustou Helena: nunca esteve tão perto da morte no campo debatalha.A Harbinger alargou o sorriso: só havia uma pessoa que poderia ter atiradoesta faca.Um rugido chamou sua atenção, um rugido violento como os lendáriosKuoleman Pilli, era o rugido de uma Serpa selvagem, pequena demais paraser uma das suas.Rápido como a morte, o monstro surgiu entre as nuvens violetas: primeiro,apenas como uma silhueta negra voando furiosamente em sua direção,silhueta logo transformada em forma draconiana, que não era a maiorpreocupação da Harbinger; esta seria o que ignota criatura trazia em seudorso: a mulher vendada que controlava as sombras, cuja elegância se havialiquefeito no ensopado de seu vestido e penteado, inspirando apenas um armortífero ao seu redor.Apenas a alguns metros da Harbinger da Morte, a Serpa deu uma guinadaviolenta para as alturas, enquanto a Harbinger era cegada pela rajada de ventoe água causada tanto pelas asas da criatura quanto pela sua mudança súbita deseu curso, criando o que teria sido a oportunidade perfeita para atacar aHarbinger.Teria sido, não fosse o fato dela ser filha de Allenwick D’arlit e ter sidotreinada desde pequena para executar e se defender de ataques como este:sabia que a ideia da tática era forçar um ataque surpresa nos segundos decegueira do inimigo, e mais do que tudo, sabia como se defender.

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Colocou toda sua atenção nos ouvidos, o que a permitiu saber o momentoexato em que as facas foram atiradas.Uma, duas, três... doze facas vindo na sua direção.Às cegas, conjurou um raio para cada uma, estraçalhando-as no meio de seusrespectivos trajetos: o som das explosões quebradiças e as fagulhas metálicasvoando em toda parte se misturaram com a tempestade como se sempretivessem pertencido um ao outro.Doze explosões a lembraram da exaustão que se rastejava para tomar seulugar de direito dentro de seu corpo, começando por acelerar seu pulso eameaçar seus músculos a tornarem-se rijos, logo viriam os primeiros sinais detontura.Ela abriu os olhos e, como esperara, lá estava aquele rosto impassível: olhoscobertos, cabelos rosa encharcados, espalhados como uma selva pelosombros e um corpete que mais parecia uma prisão para conter o monstro quevivia naquele demônio.“Quem é você?” A Harbinger perguntou arfando.“Autumn. DeLarose. Liddell.” O nome soou ríspido e lento, lascivo e airoso,uma tortura doce como veneno em seus ouvidos, quente como o sangue quebrota no peito ao ser perfurado por uma lâmina fina como um filete d’água,“Cisne de Tuonela para você, querida.”Por segundos, apenas a tempestade fez-se ouvir, quase tão alta quanto aperplexidade que brotara em Helena, fazendo-se visível no tremor de seuslábios e nos espasmos involuntários em seu olho esquerdo.“O Cisne de Tuonela... é uma lenda.” Helena disse por fim.“Obrigada.” Autumn agradeceu, cruzou os braços, abriu um meio sorriso e,em presteza agônica, adentrou nas sombras.A Harbinger, sem pensar, conjurou mais uma matilha feroz de raios ao seuredor para impedir que a sombra daquela mulher pudesse tocá-la.Fazê-lo sem pensar foi seu erro.O chão onde ela estava se desfez em migalhas de terra fumegante e, antes quepudesse perceber, a Harbinger da Morte se viu despencando, rente à encostadas montanhas de Tuonela.Por reflexo, enfincou suas garras na superfície íngreme e lamacenta damontanha, sua velocidade diminuía enquanto seu corpo era castigado earremessado sem piedade contra a parede, como um saco de batatas rolandoladeira abaixo.Estava tão desnorteada que não saberia dizer quando parou.

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Suas garras haviam se enroscado em uma raiz sobressalente, Helena sópercebeu a dor da parada súbita quando restos de terra pela qual haviadeslizado começaram a cair contra sua cabeça.Algo a preocupou quando olhou ao seu redor.Onde Autumn estava? Ela deveria ter sido lançada para fora das sombras,como quando lutaram no dia em que ela matou Tupã e os outros, mas Helenanão se lembrava de ter visto aquela mulher saindo das sombras desta vez.Será que ela havia caído? Era verdade que, no negrume daquela tempestade,até mesmo ela e sua visão impecável poderiam ter deixado este detalhepassar.Teria ela sobrevivido à queda?A Harbinger olhou para cima, meio que esperando ver Autumn lá, mas aoperceber que não era o caso, começou a rir consigo mesma: um som ridículoem sua pequenez quando comparado com a batalha que acontecia ao seuredor.“Eu venci.” Helena sussurrou com alívio no peito e uma meia lua em seuslábios.Gelo e arrepios ela engoliu ao ouvir o som descomunal a calar sua vitória.Uma gargalhada sem dono penetrou seu corpo, como fantasmas fazem àsquatro da manhã, drenando toda sua felicidade e esperança.Uma mão brotou da montanha e a puxou para dentro das sombras.Uma vez lá, não sentiu nada senão escuridão.Escuridão, e o eco da gargalhada do Cisne de Tuonela.

Fawkes teria um pouco de dó de Wendy ao ver seu penteado destruído pelachuva e as manchas caricatas em rosto (resultado da maquiagem rala e agoraborrada que Kristell havia feito), tentaria até simpatizar pelo seu vestido que,antes da tempestade, deveria ter sido cinza ou azul marinho, não dava prasaber, porque agora ele era cor de lama, igual as pernas dela e as dele.Fawkes até tentaria protegê-la do frio como um cavalheiro deve fazer napresença de uma dama.Tentaria, não fosse o fato de sua empatia por ela ter sido obliterada peloescândalo nervoso que Wendy vinha fazendo desde o segundo em que eleapareceu para tirá-la do casarão branco e se ofereceu, com todas as boas

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intenções (e algumas que ainda aguardavam julgamento), para levá-la devolta ao Orfanato das Neves.“Wendy, pelo amor da sanidade, fica calma.” Fawkes pediu, notando sua vozsoando tão cansada que seria fácil acreditar que ele havia acabado de acordarde suas primeiras horas de sono para acalmar o choro de um bebê.Não que a verdade fosse muito diferente disso: ele sequer havia dormido, obebê tinha dezesseis anos, e o choro era mais um escândalo beirando ahisteria. Uma Serpa rachando seu crânio com os dentes providenciaria umaexperiência mais agradável que essa.Para fazer a situação ainda melhor, a chuva não só dificultava sua caminhadapelas trilhas da montanha, criando poças de lama que engoliam seus pés emsegundos e enevoando sua já lassa visão, ah não, ela também tornava seupoder sobre o fogo inútil, e se a chuva não o tornasse inútil, o sono o faria, ese o sono não o fizesse, Wendy o faria.“Eu estou calma.” Ela disse séria, para sua surpresa e confusão.Ambos haviam percorrido a maior parte da montanha, evitando assistir àdestruição do farol onde Caleb vivia, ou as Serpas estraçalhando casas queprovavelmente haviam estado ali desde antes de elas próprias terem nascido,ou Kristell (que estava linda) lutando lado a lado com o resto da trupe,enquanto Victoria (que estava linda, mas Kristell e, principalmente, Allan,nunca ouviriam Fawkes admitindo isso) saltava sobre algumas das bestasvoadoras para derrubar os D’arlit que ali estavam.Na verdade, apenas Fawkes evitou assistir, não porque não queria ver, afinal,aquela era a batalha mais épica que ele já havia vivenciado desde sempre,mas porque não podia fazer parte dela. Parte porque não tinha condiçõesfísicas e mentais para fazê-lo agora, parte porque não queria deixar Wendysozinha naquele estado.Já Wendy não evitou assistir a batalha, ela simplesmente não a notou, estavaocupada se desfazendo em lágrimas, esperneando sobre o quanto estavacansada de quase morrer desde que chegara em Tuonela, cansada de ficarlonge da irmã Sarah, cansada de gigantes, cansadas de bruxas que podiamroubar sua forma...“Fawkes, eu estou calma.” Wendy repetiu, seus olhos inchados contrastandocom o sorriso conformado em seu rosto, “eu entendi o que está acontecendo.”“Ótimo!” Fawkes comemorou enquanto tirava um galho do caminho etentava ignorar as gotas grossas de água gelada que caíram em sua nuca aofazê-lo, “você vai estar de volta ao orfanato antes que–”

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“Eu já estou no orfanato. Eu sempre estive.” Wendy interrompeu, “eu estouna minha cama neste instante!” Ela disse com ar brilhante na voz.Fawkes congelou por alguns segundos, talvez fosse o sono deixando-o lento,talvez a tempestade estivesse levando a melhor sobre sua audição, talvezfosse a súbita mudança no humor de Wendy, tudo que sabia é que não erapossível que essa garota realmente pensasse que...“Eu estou sonhando!” Ela disse, rindo distraidamente com o som da própriavoz.É, era possível, Fawkes deu um tapa desapontado na própria testa.“Você entende?” Wendy perguntou feliz e sonhadora, “nada aqui faz sentido!Esse mundo não pode ser real!”“Prove.” Fawkes pediu, decidindo que seria mais fácil levar Wendy se elaestivesse falando e andando ao invés de sendo arrastada e chorando.“Vocês me deram As Crônicas de Narnia no Natal, como vocês tinham umlivro que nem foi feito nesse mundo sobrando assim pra me dar? E por queum livro do meu mundo? Se eu fosse dar um presente para uma pessoa deoutro mundo, eu teria dado algo do meu próprio mundo para impressioná-la.Vocês só me deram esse livro porque é meu favorito e meu cérebro quis medar um presente legal enquanto eu dormia!”“A gente tem milhares de itens de centenas de mundos, Kristell sabia queesse era um dos seus preferidos, ela disse que ia te lembrar do apelido quevocê deu ao seu guarda-roupa no orfanato, mas na próxima vez a gente te dá“Fantasticaos”, “No Limiar da Harmonia” ou “Kalevala: Uma História” depresente, melhor?”“Adorei o título do segundo.” Wendy disse alegre, “Uma pena que você sejasó a minha imaginação criando títulos legais que eu vou esquecer quandoacordar, uma pena mesmo, porque, se eu escrevesse um livro, eu com certezairia querer chamá-lo de ‘No Limiar da Harmonia’, eu bem que poderiaacordar agora para escrever isso.”“Você tá acordada, e o livro já existe.” Fawkes disse só um pouco mais altoque a tempestade ao redor deles, enquanto tirava uma pequena crosta de lamado rosto com as costas da mão.“Você é bem impertinente para um fruto da minha imaginação.” Wendy dissecom a voz vaga, olhando para tudo ao seu redor como se visse as árvores esuas copas ensopadas pela primeira vez, “quer outra prova de que isso é umsonho?”“Me surpreenda.” Fawkes murmurou.

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“Se o Orfanato das Neves era o esconderijo de tantas mestiças, e se o Caleb jáfoi lá tantas vezes para trazê-las de volta, por que a única pessoa que euconheço aqui é a Kristell? Deveria haver, sei lá, pelo menos umas quinzemeninas do Orfanato das Neves por aqui.” Wendy disse, como quem venceum argumento.“De cabeça, eu lembro que Tereza, Eliza e Rose Sebert vieram do mesmomundo que você.” Fawkes começou, “Tereza é a menina morena da trupe queluta com kusarigama, eu já vi você conversando com ela, a Kris sabe osnomes de todas as outras que vieram do mundo do orfanato.” Fawkescomentou, lembrando de todas as vezes em que Kristell as mencionara paraele, só para ver se ele acharia alguma delas bonita.O que era perda de tempo, todas eram lindas.Wendy pareceu pega de surpresa pela resposta.“Rose? Tereza? Como eu nunca vi elas no orfanato?”“Talvez tenham sido adotadas quando ainda eram novas? Não existe nadaque impede que os mestiços sejam adotados, a mulher que o Kahsmin deixoulá não tem como saber quais meninas são mestiças e quais não são, e elatambém não podia impedir que todas as garotas fossem adotadas não é? Nãoé assim que orfanatos funcionam. Anuk poderia encontrá-las em qualquerlugar de qualquer jeito.” Fawkes disse, sem querer soar irônico e convencido,embora sua perspicácia inata e talento como observador o impedissem desoar de qualquer outra forma, era um dos seus inúmeros charmes, um quenem o sono excessivo e sonhos perturbadores poderiam remover.“Então... eu nunca fui adotada porque ninguém me queria mesmo.” Wendysussurrou, “ninguém nunca me quis.”Fawkes considerou acrescentar “fazer pessoas se sentirem horríveis” à sualista de talentos inúteis quando sentiu a tristeza na voz de Wendy, tambémsentiu que haveria um novo berreiro quando viu o verde de seus olhos seavermelhando de novo, enquanto suas mãos apertavam o volume sob ovestido que ele presumiu ser onde Wendy guardava Wanda para protegê-la dachuva.Porém, ao invés de desabar, Wendy levantou a cabeça, sorrindo indagativa e,ainda com ar sonhador, e perguntou: “Por que Kristell não me contaria umacoisa assim?”“Ela pode ter esquecido?” Fawkes perguntou, retórico em seu dar de ombros,“ou não devia estar num lugar muito alto na hierarquia de assuntos dela.”“Hierarquia de assuntos?” Wendy perguntou, erguendo uma sobrancelha para

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Fawkes.“A Kris não tem exatamente o tempo mais livre do mundo, sabe? Pra ela tiraro máximo de proveito do pouco tempo que tem para conversar, ela organizaseus assuntos numa ordem hierárquica, eu aposto que ‘as outras meninas doOrfanato das Neves’ deve estar tão baixo na hierarquia dela que ela nuncapensou mencioná-las pra você.”“Essa é a explicação mais forçada que eu já ouvi na vida.” Wendy retalhou,cruzando os braços.“Eu namorei sua amiga, eu sei que ela faz isso, e se esse assunto fosse mesmoimportante, você já teria perguntado pra Kris sobre essas meninas.”Wendy pareceu que ia dizer algo, mas se calou, provavelmente percebendo oquanto o argumento de Fawkes era sólido e como, mesmo estando sob ataquedos D’arlit e com as pernas enfiadas até os tornozelos na lama (semmencionar a falta de sono), ele era capaz de pensar em respostas brilhantes.“E o que fica no topo dessa ‘hierarquia’?” Ela perguntou.“Motivos pelos quais Tuonela é melhor lugar desse mundo e do próximo.”“Hm, isso explica muita coisa.” Wendy disse, fez uma pausa contemplativa eacrescentou, “quer mais uma prova de que isso é um sonho?”“Adoraria.” Fawkes disse sem pensar, notando que mais uns dez minutosseriam tudo que eles precisariam para alcançar o topo.“Nós fomos criados em mundos diferentes, não fomos?” Wendy começou.“Aham.” Fawkes disse.“Então como que a gente tá falando a mesma língua?” Ela perguntou em tomvitorioso, “E por que De Singe e Jaques também falavam línguas comuns nomeu mundo? Isso parece mais coisa de escritor preguiçoso que vida real.”“Você já tinha ouvido a língua do Tupã também?” Fawkes devolveu,querendo quebrar a lógica dela, embora no fundo, aquela pergunta realmenteo incomodasse também.Ela ficou subitamente quieta, apagando o sorriso do seu rosto.Alguns segundos depois, quando Fawkes não estava mais olhando, Wendymurmurou: “Traga a luz... ele disse.”Fawkes lhe lançou um olhar de esguelha: dessa vez Wendy havia de fatorecomeçado a chorar, mas por sorte, não era um berreiro: era um prantearsilencioso, retraído e controlado, para seu imenso alívio.“Eu sei que não tô sonhando.” Ela acrescentou, “eu tropecei alguns minutosatrás quando a gente viu os raios caírem no topo dessa montanha, se fosse umsonho, eu teria acordado, eu sempre acordo quando eu tropeço nos sonhos.”

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“Eu também.” Fawkes murmurou, “eu nunca tinha visto seu humor tãoinstável.” Ele acrescentou, deixando seu sono inibir seu senso de “será que éuma boa ideia fazer esse comentário?”“Eu tô numa época do mês meio instável, coisa de mulher. Eu devia terpercebido quando acordei com meu leitor chato interior.” Ela disse, sem fazernenhum sentido para Fawkes, “e esse lugar, as coisas que eu passei desde queeu cheguei... é muito estressante mudar por completo os seus arredores, aindamais quando você vai de um lugar calmo e seguro como o Orfanato dasNeves e vem parar num mundo tão caótico que parece um pesadelo, semninguém pra te proteger, sem entender como as coisas funcionam, sem sabernada exceto que você não sabe nada.” Ela disse a última parte mais para simesma que para Fawkes.“Ninguém sabe como todas as coisas funcionam.” Fawkes comentou, “agente só tenta entender o bastante para sobreviver e fazer a nossa parte.”Quando percebeu que aquele comentário não tinha absolutamente nada a vercom a situação, acrescentou, “do que você mais sente falta no Orfanato dasNeves?”“Inventar histórias para as meninas mais novas, brincar com nomes, tipopalhaço do mato, ver os desenhos que a LaVerne fazia dos sonhos que elatinha, apartar as brigas da Lili e da Betsy, ouvir a Cora contando sobre oquanto ela queria ser presidente do universo quando ela crescesse, pra darbrinquedos e pais para todas as crianças do mundo... da irmã Sarah meconvidando para tomar café da manhã no quarto dela.”“De me sentir confortável, o orfanato não tinha muito... eu tinha um guarda-roupa que não me levava pra Narnia e um quarto com paredes brancascercando apenas uma cama e uma montanha de livros. Eu tinha que acordarcedo, mas eu nunca achei isso ruim, eu tinha que ouvir a irmã Romena e aDana dizerem coisas horríveis de mim, me baterem às vezes, mas minha vidanunca esteve realmente em perigo lá.”“E por que você veio se lá era tão bom assim?” Fawkes quis saber.“Acho que eu tinha que crescer, não tinha?” Wendy murmurou, “não énenhum segredo que eu não queria vir no começo, eu te contei sobre o Fester,não contei?” Fawkes fez que sim, “então, eu tava apavorada de pensar em virpra um lugar onde coisas como ele fossem normais, mas duas coisas meconvenceram a vir. A primeira foi saber que uma amiga de infância minhaestaria aqui, a Chris, isso me animou de verdade, eu queria mais que qualquercoisa estar com ela de novo.

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E a irmã Sarah, ela prometeu que eu poderia voltar para visitá-la, saber dissofoi decisivo para eu vir, se ela tivesse me dito que eu nunca mais a veria, eunão teria vindo.”“Entendi.”“Mas eu tive tantas decepções desde que cheguei aqui, começando pelo fatoda Chris não ser a–”“A gente chegou no topo.” Fawkes interrompeu com alívio palpável na voz,se sentindo alegremente próximo de Wendy, mais próximo do que a garotajamais havia permitido que ele fosse dela, e não era de proximidade física queele estava falando: ela havia se aberto para ele, deixado uma pequena partedela com ele, talvez ela estivesse finalmente se interessando na pessoaincrível que ele era, talvez fosse a vez dele de falar sobre seu passado, seriajusto deixar Wendy com um pedaço seu, assim como ela o deixara com umdela.“Vamos.” Fawkes acrescentou, tentando segurar a mão da garota quando...“CALEB!” Ela gritou quando reconheceu o vulto parado logo à frente.Frustração é: tentar segurar a mão de uma garota, depois de aguentar todo ochoro, choque e negação dela, só pra vê-la correndo pra outro cara.“Ingrata.” Fawkes murmurou para si mesmo, dando alguns passos para trás.Foi quando ele ouviu o horror.Fawkes havia crescido ouvindo sons macabros por toda a sua vida, graças aopai: ele já ouvira o choro de uma Míriade na lua nova, um som tão agudo,funesto e agourento que, rezava a lenda, seria capaz de expurgar a alma dedentro de um corpo, transformando-o numa fria casca sem vida, fadada avagar sem rumo pelo mundo, devorando crianças para se alimentar deinocência, enquanto a alma tornava-se um espirito lamentador, condenado apossuir seres de mentes fracas, pungindo-os com suas visões infernais,destruindo suas vidas, um pesadelo de cada vez.Já havia ouvido os tambores da danação, tocados por tribos de demôniosantigas, em rituais sagrados onde eles ofereciam seus prisioneiros de guerraao supremo “Hain”. O som da batida soava como uma misturada das notasmais graves de um piano junto com unhas arranhando as mais agudas de umviolino, um som criado para causar nada além de desolação nos ouvidos dequem os ouvia, essas mesmas tribos queimavam seus prisioneiros ao somdestes tambores, pois acreditavam que assim impediriam a alma de seusinimigos de reencarnar, então comiam seus corpos, para ter certeza de queestes não acordariam.

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Já havia ouvido coisas horríveis que fizeram sua alma rastejar como umverme para fora de seu corpo, coisas que nenhuma criança deveria ouvir.Nenhum desses sons o havia atingido com tanta violência quanto o berro queWendy acabara de dar: Havia uma dor que nenhum homem poderia explicar,e havia ódio o bastante para fazer Autumn parecer uma brisa de verão.Naquele instante, Fawkes teve certeza que ela era o ser mais furioso emachucado naquele mundo e no próximo.E se ainda houvessem dúvidas, elas foram apagadas pela próxima frase deWendy: “VOCÊ MATOU A IRMÃ SARAH!”Uma lágrima escorreu em seu rosto ao perceber o tamanho da dor na vozdela. Fawkes não viu o rosto de Wendy, mas sabia que era o rosto de umdemônio que fora ferido como ele só poderia sonhar em ser ferido.Quando se virou para eles, a luz dançava ao redor de Wendy, cujos olhos,outrora verdes com pintinhas castanhas, agora eram violetas como atempestade: ela atacava Caleb como quem não teme a morte, gritando emfúria com cada nova investida, das quais Caleb apenas esquivava aoempunhar uma espada mal manuseada.A pele de Fawkes arrepiou-se ao ponto de ele não conseguir mais senti-laquando percebeu que estava vendo Wendy se transformar por completo pelaprimeira vez, e lutando com um desejo de matar que ele nunca antes haviaimaginado existir em alguém que não fosse um D’arlit. Fawkes sentiu seuspensamentos derretendo como sonhos no final da manhã, ou de uma vida malvivida, e agora, só um sentimento fazia morada em seu ser: Seu nome eramedo.“TRAIDOR!” Unhas no rosto de Caleb, reabrindo a enorme ferida na orelhaque a família de Paloma havia tratado apenas alguns dias atrás, “TRAIDOR!”Um chute no pescoço do qual ele não conseguiu escapar, “TRAIDOR!TRAIDOR! TRAIDOR!” Ela gritava enquanto unhava o rosto de Caleb,criando uma série de marcas que, por experiência, Fawkes sabia: virariamcicatrizes.Caleb largou a espada e segurou o punho de Wendy, que berrou de dor.Fawkes saiu do torpor quando entendeu o que estava acontecendo: ele era ummestiço de anjo, estava queimando Wendy.Sem pensar, correu na direção dos dois, sem forças, sem poder, sem nadaalém de determinação para fazer o que tivesse que ser feito.Até perceber seus pés presos no chão.Fawkes tentou se livrar, mas logo percebeu que estava preso por algo muito

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diferente de pedras ou algemas.“Autumn?!” Ele gritou.“Não.” Sibilou uma voz macabra como a de um ominoso.Quando o garoto ruivo se virou, lá estava ele: pelo menos meio metro maisalto que Fawkes, os pés não deveriam existir atrás daquela fumaça que oscercavam, e o rosto, Fawkes só podia ver o sorriso de lábios finos edesfigurados.“Boa noite, Haydn B–”“É FAWKES! ME SOLTA!” Fawkes gritou, desviando o olhar para ver seWendy já havia se livrado de Caleb.Havia.“Como queira, mas Fawkes deveria saber, não existem segredos na mente deum ser atacado por Ally.” Ele disse, dando uma risada manquitola.Outro arrepio percorreu o corpo de Fawkes: o que quer que fosse aquilo,conhecia Ally.“São sombras que estão prendendo os pés de Fawkes, lutar contra sombras éperder tempo, tempo que Fawkes não tem.” Dito isso, o espectro de sombrasabaixou-se, ficando na altura do rosto de Fawkes, permitindo-o sentir o odorde podridão que o rodeava, “Fawkes quer ser um herói, Ally disse, Ally dissesim senhor, mas esta...” ele disse apontando para Caleb e Wendy “... esta lutanão é para Fawkes.”Num gesto repentino, o espectro ergueu um braço, revelando uma mãomutilada em centenas de cicatrizes, apontando para a escuridão dos céus,onde chuva caía e Serpas voavam.Um raio explodiu no coração da cidade, revelando exatamente para onde oespectro estava apontando: para uma das Serpas dos D’arlit, onde Victorialutava.Uma rajada furiosa de ar escuro brotou das mãos do espectro, formando umfunil de ar cortando as lâminas da chuva, atingindo Victoria no rosto esugando o ar de seus pulmões. Não demorou para a garota perder aconsciência, cair da Serpa e entrar em queda livre em direção à cidade.“Vá, Fawkes, seja um herói.” O espectro disse, soltando outra risada mancaem seus intervalos.Seus pés foram soltos, o espectro sumira, Wendy e Caleb ainda lutavamferozes como Fawkes jamais imaginou ser possível.Victoria caía: logo ela passaria pela beira do penhasco e rolaria desfiladeiroabaixo, com certeza estaria morta até o momento em que tocasse o chão da

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cidade.Fawkes não sabia o que ia fazer e, antes que pudesse ter qualquer pensamentoracional, se viu correndo na direção do penhasco, pulando no instante em queVictoria passou pela beira do precipício, agarrando-a nos braços eembrulhando-a em seu corpo, deliciando-se com a sensação de queda-livrecomo se fosse a última que sentiria.Pois, em verdade vos digo, ele sabia.Era a última.

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Capítulo 46

“Mostre-se.” Sibilou a Harbinger da Morte.Um eco distante da risada de Autumn fez-se ouvir, como um fantasma numahistória bem contada, como um augúrio de uma maldição interminável.A vastidão do véu tecido em trevas puncionou-se através de sua derme,consumindo-a como vermes, degustando vagaroso o gelo vencido doscalafrios que vagavam em vendeta n’alma da vitimada Helena, murmurandomalicias sob o sabor de seu medo.Gostaria ela de dizer que havia silêncio, mas silêncio não havia ali: aHarbinger podia ouvi-los, mas não em seus ouvidos: era um som que cresciadentro dela, e não ao seu redor, como se cada vez mais vozes cantassem amelodia em dor maior: notas melancólicas que a privavam de qualquersensação senão o vazio; como se antes, possibilidades atingissem a casa dobilhão, e de repente, nada sobrara, senão um aborto embrião.O rastro de possibilidades mortas, o lamento de mil vozes tortas.“REVELE-SE, COVARDE!” A Harbinger gritou com fúria quase grande osuficiente para esconder o medo que sentia.Um breve momento de silêncio.“Katso, miten näen.” A voz de Autumn soou quente e lasciva em seu ouvido,embora Helena não pudesse realmente sentir sua presença ali.Fraco como a luz das estrelas, um brilho verde fez-se ver: No começo, erauma linha fina no chão, como um barbante fosforescente ou uma trilha decatarro gobliniano podre, mas quando a cor ganhou largura, Helena percebeuo que de fato era aquilo: um rio, tortuoso em seus caminhos.O rosto da Harbinger permaneceu duro como gelo quando ela se aproximouda água; não havia um começo ou um fim para o rio, somente águas queceifavam qualquer réstia de calor que quisesse fazer-se presente naquelelugar.Ela não pôde ver seu reflexo no turvo d’água, mas viu que algo havia ali.Vários algos, mergulhando e agitando o rio, fazendo seu brilho tremeluzircomo uma maré alta num mar feito de estrelas.Na beira do rio, o canto era mais alto, forte em sua carência de esperanças.Helena arquejou ao perceber o que estava nadando no rio: almaslamentadoras.

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Um baque alto.O chape d’água regozijando-se ao engolir algo pesado.Algumas pedras haviam despencado do teto, tão alto que a Harbinger nãopodia ver.“Desça daí e lute!” A Harbinger exigiu apontando para as alturas.“Estou aqui.” Autumn disse com ar de quem corrige uma criança.Helena virou a cabeça em direção ao rio: lá estava ela, seca, trajando coturnosmaltrapilhos, meias sete oitavos rosadas, quase transparentes, e o quepareciam ser os restos mortais de um vestido vitoriano, um que misturavatons de branco e rosa, bem mais claros e desbotados que os tons de seucabelo. O rosto afiado e anguloso, os lábios apáticos e olhos ocultos por umavenda de renda retratavam uma delicadeza tão mortífera que Helena não podedeixar de sentir-se intimidada na sua presença.Ela estava de pé sobre a água do rio, caminhando para a margem.“Kayzenghasts.” Ela disse uma vez que seus coturnos tocaram a terra.A palavra não lhe era estranha, kayzenghasts, lembrava de tê-la ouvido navoz de sua irmã, também se lembrava que havia uma aura de medo infantil aoredor de kayzenghast, mas sua origem e significado lhe escapavam agora.A Harbinger permaneceu calada enquanto Autumn se aproximava à passoslentos e elegantes sobre o chão seco e árido, iluminado apenas pelo brilho doregato, indiferente às vozes lamentadoras.“Kayzenghasts?” A Harbinger repetiu, enquanto a memória sobre a origemda palavra vinha aos pedaços à sua mente, “Os Devoradores de Almas?”Murmurou, sentindo arrepios trépidos tomarem posse de seu corpo.“Sim, Kayzenghasts, os Devoradores de Almas, embora eles também tenhamuma certa predileção por carne. Há um ninho deles acima de nós.” Autumnanunciou com orgulho na voz.Kayzenghasts eram muito mais que demônios normais: do torso para baixo,eram como um esqueleto de aranha, com oito patas feitas de ossos, cada umatão grande quanto um homem adulto, enquanto do torso para cima,assemelhavam-se à humanos, havia carne e até um pouco de pele encobrindoseus ossos, mas eles não tinham qualquer tipo de pelo e, no lugar de olhos eboca, haviam grandes cicatrizes verticais, abertas na carne de suas cabeças,enquanto nas costas, brotavam espinhos curvados como dentes de tubarão.“Você sabe onde está, Harbinger?” Autumn perguntou.“No ponto mais sombrio do reino das sombras.” Helena afirmou, sabendoque estava apenas meio certa: ela conhecia aquele lugar como uma criança

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conhece as lendas com as quais se cerca, ou seja, vagamente e com muitainformação conflitante, mas Autumn não precisava saber dessa parte.“Entende como consegue enxergar?” Autumn quis saber.“Katso, miten näen, são as palavras que o Cisne de Tuonela usava nas lendaspara transformar os sentidos de um demônio, assim tornando-os capazes deentender a complexidade do Mundo das Sombras.”“Muito bem! Você é menos idiota que imaginei.” Autumn parabenizou damesma forma que seu pai a parabenizaria, com sarcasmo escorrendo no cantoda boca.Mais pedras caíram do teto, chamando a atenção de Helena.“Eles não hão de interferir se você não os provocar.” Autumn anunciou, umavez parada perante a princesa D’arlit, com uma mão na cintura e ar de quemmanda em tudo ao seu redor, “Harbinger, sendo que talvez você não seja tãoidiota, eu vou te dar uma chance, e só uma.”“Você não impõe condições à uma–” sem deixar a Harbinger terminar afrase, Autumn estapeou seu rosto com força tamanha para deixá-la estiradacontra o chão. Antes que tivesse tempo de reagir, suas mãos caíram no vazioe do vazio fizeram-se reféns.Autumn abrira dois buracos nas sombras para prender suas mãos.“Como disse?” Autumn perguntou, segurando o rosto raivosamente quieto daHarbinger com uma de suas garras, só para então puxá-la para perto doveneno de seus lábios, humilhando-a como um sádico humilha sua submissa,“foi o que eu pensei.” Ela acrescentou e jogou a cabeça da Harbinger nochão, produzindo um baque seco, seguido por um eco demasiado descortêsem seu prolongamento.A Harbinger quis cuspir no rosto dela, quis arrebentar o chão que engolirasuas mãos e estrangular aquele pescoço de cisne nojento, fazê-la sufocarenquanto comia a própria venda, mas não sentia ter força o bastante para selibertar dali.“Eu retiro o que disse, você é tão idiota quanto pensei. Ainda assim,inteligência nunca foi a medida do merecimento de absolvição dos culpados.”Autumn voltou a falar quando Helena parou de bufar, “pare a tempestade,pare o ataque, vá embora e nunca mais volte. Jure que irá fazê-lo, e você podeir, inteira, se não, eu te ensinarei o que significa sofrer.”“Está ameaçando matar a Harbinger da Morte?” A Harbinger disse com umsorriso sinistro no rosto.Autumn decerto sentiu o deboche da Harbinger, pois chutou seu rosto com

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tanta violência que Helena chegou a perder a consciência, voltando a si sóquando percebeu a poça de sangue formada sob seu rosto.Antes que ela considerasse se mexer, Autumn ergueu sua cabeça peloscabelos e disse: “Morrer é um alívio, sofrer é uma dádiva reservada aos quevivem. Repita.”“O quê?”Sem aviso, Autumn bateu a cabeça da Harbinger contra o chão frio e árido,fazendo sangue respingar em seu vestido e sua venda. Helena ouviu ossostrincando em sua testa e sentiu a dor lancinante de ter o nariz quebrado.Sua cabeça, pingando sangue, foi levantada uma segunda vez.“Morrer é um alívio, sofrer é uma dádiva reservada aos que vivem.” Helenamurmurou, sentindo seus lábios dormentes e ossos fora do lugar.“Exato. Não serei eu a matar a Harbinger da Morte, mas de sua dor, sereiconsorte.”Autumn soltou os cabelos de Helena, que percebeu sangue a jorrar de seunariz e brotar em sua boca, mas não era o típico gosto de ferro que sentia, esim o gosto avinagrado de orgulho com feridas expostas.“Me dê sua resposta, Harbinger.” Ela exigiu calma, indiferente para o sangueque pingava e para a canção melancólica que soava em toda parte.“É bem fácil atacar alguém que não pode se defender.” A Harbinger sibilouenquanto ainda saboreava a amargura de seu orgulho alanceado.“Tupã que o diga.” Autumn devolveu, “agora lembre-se, você não quercontinuar brincando com minha paciência.” Acrescentou.Muitos não teriam audácia de enfrentar seu captor, teriam sucumbido à suasvontades depois da primeira ameaça e feito o que quer que fosse exigido pararecobrarem sua liberdade com o mínimo de sequelas.Helena D’arlit o havia feito no seu primeiro encontro com Ally, e alembrança daquilo a fazia retrair-se em desgosto: estava farta de se ver comoalvo de piadas de Gambler, cansada de parecer fraca na frente de pessoas quedeveriam saber o quão forte ela era, pessoas como Stefanova, que se viamforçadas a dar toda sorte de conselhos necessários para protegê-la.Ela não precisava de proteção, ela era a Harbinger da Morte.“Você tem dez segundos.” Autumn fez-se ouvir.Era um momento para pensar rápido: Helena nunca, em todos os anos em queMorena, Stefanova e Allenwick a treinaram, havia se visto numa situação emque estivesse debilitada e presa, talvez seu pai não contasse com apossibilidade de que uma de suas filhas pudesse ser mantida prisioneira, com

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certeza sua irmã mais velha não seria.“Nove.”Claro, sua irmã fora a máquina de matar perfeita, nunca teria se deixadoprender ali, se dependesse daquela ladra de atenção, a cabeça de Autumn jáestaria em suas mãos e provavelmente viria a ser um troféu no quarto deAllenwick: A Cabeça do Cisne de Tuonela, muito orgulho para uma famíliasó.“Oito.”Quieta, QUIETA! Não pense nela, ela não merece sua atenção agora, nuncamereceu. Pense Helena. PENSE! Stefanova! O que ela diria? Ela sempre foi aestrategista, exceto para esta batalha (e para a de Jussarö, mas aquilo era umaquestão de honra), ela poderia dar ótimas ideias sobre o que fazer agora.“Sete.”Ela poderia, mas não estava aqui. Nem ela, nem Gambler, nem ninguém quepossa ter alguma ideia para você. Certo Helena, é hora de mostrar que vocênão depende de ninguém. Pense, se mexer, você precisa se mexer, mas estápresa num buraco de sombras, sombras... sombras, na última vez que vocêlutou com ela, raios a jogaram para fora das sombras, então talvez se euconjurar um raio aqui.“Seis.”Não, eu não consigo, este lugar deve estar escondido nas sombras sobmontanhas inteiras, eu precisaria de uma energia enorme para conjurar umraio que pudesse chegar até onde estou, uma energia que gastei conjurando atempestade do século para destruir Tuonela. Helena quase podia ouvir seu paireprimindo-a por ter sido tão descuidada.“Zero.” Autumn disse.“Você disse cinco errado.” Helena corrigiu, tentando ganhar tempo.“Eu cansei de esperar, qual a sua resposta, Harbinger?”Era isso, sem plano, sem nada, apenas ela contra um destino para o qualnenhum treinamento a havia preparado. A vida não a dera tempo para sepreparar ou recompor e, em um segundo de más decisões, ela perdera eras deplanejamento.Por que ela tinha que ter gasto tanta energia numa tempestade gigante? Porque um segundo de más decisões tinha que custar tão caro? Por que ela nãopodia ter feito uma tempestade normal e se poupado para uma eventualidadecomo essa? Por que não tomara atitudes mais comedidas?A resposta? Pois sua ilusão de grandeza mentia para sua realidade pequenez.

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Por que ela deixava isso acontecer? Carência por atenção sempre fora aresposta quando a pergunta exigia explicação de seus problemas.Agora, em sua mente, não havia mais nada a ser perdido.Foi isso que a incentivou a rir.“Você é exatamente como eu.” A Harbinger disse no frenesi de seu gargalhar,“jogos de poder, ameaças vazias. O que você está fazendo não é diferente doque eu fiz com Tupã, é bem mais fácil vencer desse jeito do que com umaluta de verdade, não é? Me mate, Autumn! Nada vai poder parar a tempestadese eu–”“Você é canhota, não é?” Autumn interrompeu imponente, “sim, você é,muito bem.”Neste instante, a mão direita da Harbinger foi liberada, enquanto a esquerdapermaneceu presa nas sombras.“Tule tänne, kayzenghast.” Sua voz reverberou por toda parte.Um grunhido, tão horrendo e sinistro que faria o som das Serpas parecer umabrisa outonal, fez as águas esverdeadas do rio criarem marolas profundas eagourentas como a miragem do sorriso que o tremor no chão criara no rostoapático de Autumn.“Pysäyttää.” Ordenou o Cisne de Tuonela.O momento cessou: de súbito, calaram-se as vozes algozes a cantar pesadelosn’alma de Helena, uma vintena de silêncios asfixiou os rugidos vindos dondeos kayzenghasts se escondiam em vista não plena e tão somente e serena fez-se ouvir o andar daquela cujo nome era uma arena preparada para a últimacena.Uma vez parada perante os olhos de Helena, Autumn deixou claro: “Eu sou ooutono onde tudo termina, e o outono não faz ameaças vazias.”Virando as costas para Helena e se afastando de forma a transformar seupróprio corpo em poesia sublime aos olhos que podiam vê-la, Autumn aindaacrescentou: “Kayzenghast, tuhota.”Foram as últimas palavras que Helena ouviu antes do medo tomar forma: elevinha sobre oito patas colossais, sem pele, sem carne, apenas osso, refletindoo brilho ululante da luz verde em sua superfície porosa, um torso com maiscarne sangrenta do que pele, garras tremeluzentes como um espírito e umrosto que ela não conseguia ver.

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“Qual o problema de vocês com o subsolo?” Fred perguntou.“Jane foi enterrada viva na semana de Nicolau.” James respondeu.“... vocês têm umas brincadeiras muito estranhas hoje em dia.” Fredcomentou.“Tá tendo luta lá embaixo também.” Jane completou.“Os D’arlit sabem do subsolo?!” O velho perguntou assustado.“Não, é a gente da cidade que tá quebrando tudo mesmo, uns tão falando quea culpa é do Kahsmin, outros tão defendendo ele, não ia ser bom pra genteficar lá.” Jane explicou o melhor que podia com tanta chuva caindo em suaboca.Ela carregava James nas costas, o garoto se recusava abrir os olhos, Janeacreditava que ele não queria ver outra cidade sendo apagada. Jussarö haviasido trauma para uma vida.Fred podia ser pequeno e, bem, velho, mas era rápido: ele os guiava pelasruas não tão estreitas de Tuonela, fazendo o máximo em seu poder paramantê-los longe das explosões e das lutas.Mesmo assim, vez por outra, eles toparam com lutas: quando passaram pelapraça da grande catedral de Tuonela, Jane reconheceu a trupe, graças asmemórias da mãe de Donnie: um a um, eles caíam nas garras dos D’arlit.“Olhe para as minhas costas.” Fred advertiu.Jane o fez, mas não antes de ver uma garota loira ter garras enfincadas nopeito e ser jogada para longe, deixando uma trilha de sangue por ondepassava, o único pensamento na mente de Jane foi “por favor, não sejaninguém com quem as pessoas das minhas memórias se importam”, poissabia que não havia como a mestiça sobreviver àquilo.Duas Serpas, com pelo menos o dobro do tamanho daquela que a trouxe deJussarö, atacavam a catedral de Tuonela que, por sua vez, atacava de volta:fogo líquido era atirado pelas janelas das torres, incendiando as asas dasSerpas, mas não durando mais que alguns segundos, graças à chuva.“O que é aquilo?” Jane perguntou, apontando para a chuva de fogo.“Tulen sylki, baba de fogo, uma arma tão antiga quanto a própria Louhi, areceita original foi perdida há milhares de anos. Quando feita propriamente,pode queimar até embaixo d’água, esta que estão usando até que é boa, masainda está longe da baba de fogo que queimou os oceanos de Tartários nas–”“AH!” James gritou e começou a se contorcer nas costa de Jane.Sem pensar, Jane o colocou no chão: havia fogo em suas costas.A primeira reação dela foi assoprar, mas não deu certo, e a água da chuva não

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estava fazendo muito efeito também.Fred surgiu ao seu lado, cobriu as mãos com a barba encharcada e fez umaconcha ao redor do fogo. O desespero de Jane já começava a trasbordarquando o velho finalmente tirou as mãos das costas dele: a roupa de Jamesestava queimada, suas costas provavelmente arderiam por um bom tempo,mas no mais, ele parecia bem.“Jane... eu quero ir pra casa.” James disse, em tom de suplica.“James, a gente tem que correr!” Ela tentou apressar o garoto, mas semefeito.Adrenalina sobrecarregava suas veias, que imploravam para que elalevantasse e corresse, mas ela não podia obedecer, não sem James: ela tentoulevantá-lo e colocá-lo em suas costas, mas ele simplesmente caía, chorando,fazendo a garota se estressar ainda mais.Eles TINHAM que correr, por que ele não conseguia entender!?“JAMES VAMOS!” Ela gritou, tentando puxar a mão dele, mas isso só fez ogaroto se desesperar ainda mais, enquanto Jane já olhava ao seu redor,esperando a qualquer momento que um D’arlit aparecesse e os pegasse, elesmatariam James, e a torturariam quando percebessem que ela não podiamorrer, “JAMES POR FAVOR VAMOS!” Ela gritou, incapaz de conter amistura de desespero e frustração que a atormentava.“EU NÃO CONSIGO, EU TO COM MEDO!” James gritou, se agarrando osjoelhos.“ENGOLE ESSE MEDO E VEM!” Jane rebateu, tentando arrastar James,sem sucesso.Uma mão, paciente e calorosa pousou em seu ombro.“Tenha calma, o resto é comigo.” Pediu o velho, sentando-se no chãoencharcado e colocando ambas as mãos na testa do garoto, “olhe para mim,pimpolho, pode chorar, só um idiota diz que homens não choram, e no final,não importa mesmo, ninguém vai saber, vão pensar que é essa chuva no seurosto, a mesma que você está sentindo em cada centímetro do seu corpo.Esse frio me lembra meus tempos de Jovem Estúpido, eu tive um meio-irmãochamado Zed. Eu e Zed crescemos nas ruas, ninguém queria um anãohumano e um mestiço sem uma perna como herdeiros de suas famílias, masnão os culpe, James, eu venho de um lugar muito distante deste continente, ailha de Mångata; o povo da minha terra zela pelo orgulho, honra e, acima detudo, a imagem da família. A verdade é que foi muito gentil da parte de meupai não me matar no instante em que nasci, ele mostrou a mesma misericórdia

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ao meu meio-irmão anos mais tarde, e eu sou grato a esse favor, pois memanteve vivo, e você também deveria ser grato, grato à sua vida e à alegriado seu passado, algo que pessoas como eu nunca vão conhecer, gratotambém à sua irmã e ao amor que ela demonstra por você.”Jane não entendeu o que o Velho Sábio estava fazendo, mas percebeu duascoisas durante a pequena pausa que o homem fez para respirar: a primeira eraque James havia parado de chorar, a segunda é que, alguma coisa na formacom que o homem narrava estava sugando a atenção de ambos para suaspalavras, como se o mundo não estivesse acabando ao seu redor. Apenas umapequena parte dela estava ciente de que ainda chovia, de que eles aindaestavam escondidos no beco entre duas casas abandonadas e dos gritos dehorror que se misturavam na noite: tudo isso soava embotado quando Fredfalava.“Eu não conheci muitos jeitos de expressar amor quando eu era estúpido, masnão se sinta mal por mim, isso é o que costuma acontecer quando se crescenas ruas das minhas terras, sendo afastado à pontapés dos lugares que euencontrava para dormir, sentindo as pessoas virando os olhos quando eupassava. Não, eu não conheci amor mas sabia que permitir que outro servivesse deveria ser um jeito de expressá-lo.Meu irmão não tinha uma perna, então eu sempre dizia coisas como ‘calma,você vai ser carregado e amado’, o que ficou bem difícil quando elecomeçou a ficar maior que eu. Por ser perneta, ele nunca não poderia correr,então eu esperava a noite cair, e quando esta vinha, eu pedia para Zed fecharos olhos... e dizia ‘teremos comida e abrigo quando você os abrir’”Jane havia fechado os olhos, e só os abriu pois Fred a chacoalhara com umadas mãos, sem tirar a outra da testa de James: se não fossem ascircunstancias, seria fácil acreditar que ele estava dormindo.Fred o levantou em seus braços e o colocou nas costas de Jane, dizendo a ele:“Você ainda é pequeno, ainda pode ser carregado... segure-se.”Jane sentiu os braços de James grudando ao redor do seu pescoço, embora osolhos dele ainda estivessem bem fechados.“Vamos.” Ele disse para Jane no seu tom normal, no mesmo instante, ambosestavam correndo novamente, em direção à saída da cidade.“O que você fez com ele?” Jane perguntou logo depois de desviarem de doisD’arlit brandindo espadas, sendo chicoteados e estocados pelas lanças devários mestiços que os cercavam.“Um truque que ensinei à Hakasalo alguns anos atrás para que ele se

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aprofundasse em suas pesquisas sobre a mente. Digamos que quando se narrauma história da forma certa, no tom certo, você consegue fazer o que fiz comJames: criar um estado de transe, é tão fácil quanto fazer uma pessoa bocejarpara mim.” Ele disse, bocejando com sua voz velha e meio aguda, e Jane sepegou fazendo o mesmo, “esquerda aqui.” Ele disse quando ambos sedepararam numa bifurcação.Estavam perto da parte de Tuonela onde Donnie havia morrido: não haviapessoas lutando naquele trecho, apenas as sombras das Serpas eramprojetadas quando um raio ocasional brilhava no céu.“Eu preciso parar um pouco.” Jane disse, sentindo James começar a pesardemais nas suas costas, suas pernas não aguentariam muito tempo nesseritmo.“Tudo bem.” Fred disse.Ambos encostaram contra uma parede numa tentativa de proteger-se dachuva, mas um vento de cortar a alma fazia a água atacá-los de todos oslados, encurralando-os.“Com licença, minha jovem.” Fred disse pensativo. Com ambas as mãos,começou a tatear as paredes da casa onde estavam encostados, seu toque eraleve, como se procurasse algo escondido em plena vista.Um soco, a parede desabou.“Entre.” O velho disse, enquanto ele próprio se sentava no escuro da casa,torcendo a barba para tirar a água e então jogando-a atrás das costas.Uma Jane boquiaberta se juntou a ele, tirando James de suas costas, seu corpogritou de alívio no mesmo instante.Os próximos minutos, ela passou sem pensar ou fazer comentários, sóprestando atenção no quanto era bom o fato de estarem vivos e respirando.“Ele está com frio, essa é uma casa abandonada, ainda devem haver roupaspor aqui, me espere.” Fred disse, pondo-se a procurar.O velho voltou com um agasalho de mulher, um pouco (muito) maior queJames e o vestiu com ele. Em momento algum, Jane tirou os olhos dele,nunca tinha visto nenhum humano fazer o que ele havia feito, e havia tantasperguntas que ela queria fazer...: “A gente vai viver?” Ela não queria fazeressa, mas era necessária.“Ah perguntas, adoro perguntas.” Ele disse com um sorriso, “tudo dependede como você define as palavras da sua–”“Fred, a gente vai sair daqui com vida?” Ela o interrompeu antes que elecomeçasse a não fazer sentido de novo.

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“Vamos.” Ele respondeu na escuridão, “o que, se me permite dizer, éestranho.”“Como assim, estranho?”“Um ataque assim, com tão poucos homens, não é do feitio dos D’arlit:quando eles atacam, eles atacam para dizimar, esmagar e destroçar, para quenão seja possível o inimigo se levantar.” Ele parou para respirar um pouco,“não, não é isso que esta acontecendo aqui, é como se este ataque estivesseescondendo algo maior, mas o quê? A propósito, alguém viu a Harbinger daMorte depois que ela trouxe a tempestade?”“Eu...” Jane se arrepiou toda com a menção da Harbinger, a mulher queexplodiu sua cidade em segundos, que chegou numa tempestade violeta comoesta. Se ela estivesse lá fora, logo ela faria aqui o mesmo que fez em Jussarö“... não vi nada.”Uma Serpa e um raio fizeram um dueto ao som da chuva: os três estavam tãolonge da catedral que não havia um resquício dos sons das batalhas, era comose eles fizessem parte de um sonho ou de uma das memórias roubadas deJane.“O que foi isso que você fez na parede?” Jane arriscou perguntar.“Eu encontrei o ponto de pressão nela e apliquei força o bastante para que eladesabasse, força demais talvez viesse a derrubar a casa.” Ele disse como seaquilo não fosse nada demais.“Por que você não fez isso com a porta do campanário?”“Por que eu usaria força quando inteligência era uma opção?” Ele devolveu apergunta.“Inteligência não era uma opção aqui?”“Claro que era, foi muito inteligente usar a força aqui.” Ele respondeu.“O que eu perdi?!” James disse, se levantando de repente.“PIMPOLHO! Está melhor?” Fred perguntou, parecendo genuinamente feliz.“Sim! Eu tive um sonho incrível...” e James contou um sonho, onde ele nãotinha uma perna e um anão o carregava nas costas com sua super velocidade.Jane percebeu que, normalmente, ela riria daquele sonho, e foi atacada porum imenso vazio quando se encontrou apática, incapaz de ver a graçanaquilo: será que sua vida seria assim para sempre daqui para frente? Seráque qualquer centelha de alegria seria apagada ou pelas memórias que agoracarregava ou pelo fato de ela estar sempre em perigo?“Seu irmão Zed também é um Velho Sábio?” James perguntou, parando detremer.

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“Mais para Pó e Ossos.” Fred disse, olhando ao redor da casa, com o mesmotipo de olhar que Jane viu em seu rosto quando procurava pelo tal ponto depressão na parede.“Seu irmão tem poder de controlar esqueletos? QUE DA HORA!” Jamesgritou, esquecendo por um instante que estava com frio, “se eu cortar minhaperna fora, eu também vou conseguir fazer isso?”“Ele quis dizer que o irmão dele morreu.” Jane interveio, virando os olhos:como ele podia parecer tão animado? Poucos minutos atrás ele estavachorando de medo. Como ele podia ter perdido tudo, da mesma forma que elae, mesmo assim, encontrar qualquer ânimo? “Desculpe por isso.” Janeacrescentou, olhando para Fred.“Não tem problema, está no passado, e remoer o passado é como uma corridaque você não pode vencer.” Ele disse, apontando um dedo no peito de James,que começou a rir, “Quanto mais você corre para o passado, mais ele corre devocê, é muito mais inteligente ficar aqui, no agora, mudar o seu presente edeixar que o futuro que você quer corra até você.”“Ele morreu tentando invocar esqueletos?” James perguntou.“JAMES!” Jane gritou, “me desculpe, eu não sei o que deu nele pra fazeressas perguntas.” Jane disse para Fred, percebendo que ele ainda vasculhavaa casa com os olhos, quase invisíveis sob as rugas.“Zed sempre foi muito doente, e depois do encontro dele com Alexandrita,ele deixou de comer: passava a maior parte do tempo dele evitando dormir ebalbuciando palavras em línguas que eu nunca havia ouvido, duas semanashaviam se passado quando eu percebi que ele estava louco.”“Ele me assustava, mas eu pensava que a loucura estava ligada com a fome,por isso uma noite, eu saí e roubei dois melões, a comida favorita dele, oproblema é que eu demorei demais para voltar, pois havia sido visto eperseguido durante a noite e a maior parte do dia seguinte: quando conseguivoltar, encontrei Zed morto, coberto de lixo e insetos, no beco onde nós doisnos escondíamos.” Fred disse com um contentamento estranho, não era triste,embora devesse ser. “Eu demorei para descobrir que a loucura de Zed haviasido culpa de Alexandrita e não da fome, e quando descobri, eu ainda eraingênuo sobre vários aspectos da vida que me cercava, ou devo dizer, da vidacom a qual escolhi me cercar, ingênuo o bastante para acreditar que eupoderia me tornar forte e poderoso para encontrar e matar Alexandrita. Hojeeu apenas tento remendar os estragos dela.”“Alexandrita é alguém que controla esqueletos?” James perguntou.

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“James, NINGUÉM controla esqueletos, tá bom?” Jane retalhou,massageando a têmpora, parando no instante em que percebeu que este eraum hábito de sua mãe, “Alexandrita é uma pedra preciosa, tipo rubis esafiras, não é?” Ao dizer essas palavras, percebeu que esse conhecimento nãoera de suas memórias, pertenciam à mulher Marley, ela tinha várias dessaspedras no tesouro dela.“Também, mas a Alexandrita que estou me referindo é uma pessoa, oumelhor, um demônio.” Ele disse, se colocando de pé, estalando o pescoço edeixando a barba cair enquanto olhava para a chuva que não parava demaltratar a terra.“Como ela era?” James perguntou.O olhar do velho sábio caiu sobre James e Jane como uma mão gelada nopescoço.“Se você procurar bem o bastante, achará a resposta diante dos seus olhos.” OVelho Sábio disse, “de fato, você não vai ter que ir muito longe, pimpolho,Alexandrita está aqui dentro já faz alguns minutos.”Ao ouvir aquilo, Jane percebeu: A mão gelada no seu pescoço era real.“AHHH.” Jane gritou, mas outra mão cobriu sua boca.“Oi sua tonta.” Uma criança disse ao seu ouvido, “oi, gagá!” Ela disse maisalto, virando a cabeça para o Fred, “linda história, quase chorei.” Sua vozsoou como um choro forçado e melodramático dizendo isso, “Alexandrita éum nome legalzinho e tudo mais, mas, por aqui, as pessoas me chamam Ally,a Princesa do Caos.”Jane foi rodada nos braços de Ally, a última coisa que sentiu foram lábios nasua testa.

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Capítulo 47

Caleb estava tão confortável quanto se pode estar quando se tem feridasabertas no rosto e chuva lambendo cada um de seus cortes, o que não é muitoconforto para ser honesto, o fato de estar estirado na lama, usando suasmelhores roupas e sentindo as garras do demônio que ele treinara tentandoesmagar seu pescoço também não era exatamente uma experiência que eleansiava para repetir.Se desejasse, poderia conter Wendy, seria fácil, ela não tinha vivencia debatalha, havia brechas muito grandes em sua investida, seus ataques aindaeram movidos sem nenhuma lógica senão aquela criada pela paixão de seuódio.Sim, seria fácil, mas ele não o faria: Caleb não iria contê-la, muito menosrevidar, seu coração estava decidido a não ferir mais nenhum inocente.Quanto à dor? Ele já havia sofrido todo tipo de dor que um ser pode sentir emseu corpo, dores que matariam qualquer ser normal, e muitos demônios: jásentiu flechas perfurando seu corpo, uma delas da própria Wendy, sentiu ocouro de suas costas sendo rasgado no calor de uma luta, e até sentiu a dor deter metade da própria vida estripada de seu corpo para ressuscitar aquelaeventualmente tornou-se a Harbinger da Morte.Caleb conhecia quase todas as formas de dor que seu corpo poderia sentir,por isso sabia: não era dor que realmente o machucava, assustava oudesfigurava sua alma, ah não, o maltrato de seu corpo nunca conseguiumacular sua alma.Mas algo conseguiu.“EU CONFIEI EM VOCÊ!” A voz quase irreconhecível de Wendy uivouquando ela forçou ainda mais a garganta de Caleb.As palavras daqueles que ele amava, só elas podiam ferir sua alma,desfigurando-a como nenhuma tortura jamais chegou perto de fazer, pois aspalavras certas, ditas pelas bocas certas, refletem a maior dor que se podesentir: a da verdade, a verdade suja de um egoísta tão arrogante que acreditoupoder desafiar a própria morte, e a verdade de que aquela garota, agorairreconhecível graças à tamanha tristeza e ódio que ali resolveram desfibrarsua inocência, havia escolhido confiar nele, ela que conhecia todos os seuserros, que sabia que ninguém naquela cidade desgraçada se atreveria a confiar

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nele, ela que quis conhecer sua história, e ainda escolheu ignorar todas asopiniões para confiar tão somente nele.E o que ela recebeu em troca?“VOCÊ ERA MEU ELFO! EU AMEI VOCÊ SEU TRAIDORDESGRAÇADO!” Wendy bradou contra os ventos uivantes.Decepção, a decepção traiçoeira que Tuonela o acusava de ser.Ele não se atreveu a encontrar os olhos da garota, como poderia? Como elepoderia enfrentar Wendy, que havia dado tudo que ele mais desejou nessesúltimos anos?Se ele nunca tivesse feito um acordo com Gambler, eles poderiam estarjuntos, Helena ainda estaria morta, este ataque não estaria acontecendo, e elecom certeza não seria a pessoa mais odiada de Tuonela; sua vida ainda seriatão normal quanto a cidade permitisse, talvez sua mãe até estivesse viva.A garra que pressionava seu pescoço o levantou sem cerimônia, colocando-ocara a cara com o rosto transformado de Wendy: seus olhos tinham a mesmacor dos de Helena, seu rosto anguloso brilhava com a luz dos raios, sua raivamascarava o choro, e tudo isso só fez Caleb se arrepender ainda mais por tercaído no que obviamente era uma armadilha, Anuk nunca teria deixado issochegar onde chegou.“Por que, Caleb?” Havia raiva na voz de Wendy, mas mais que isso, haviauma súplica.Havia o desejo de ainda poder confiar nele.Caleb suspirou, cerrou os olhos e lembrou exatamente o que aconteceu.

“Junte-se aos D’arlit. Mate-a e seja uma lenda entre nós.”“E se eu recusar?” Caleb disse, sem fazer a menor menção de tocar a espada.“Eu estava contando com isso.” Helena sussurrou vitoriosa, “mostre a ele.”O espectro caminhou na direção de Caleb, com um sorriso ainda mais nojentoque o usual estancado no rosto. Ele fez uma série de gestos complicadosenvolvendo o que poderia facilmente ser confundido com uma dançadiabólica que usava apenas os braços, logo, uma espécie de tela se formou,exatamente como aconteceu quando o espectro mostrou Wendy presa nohospício de Virrat para Caleb.Mas não era o hospício que ele via, era o Orfanato das Neves.

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Caleb sentiu suor frio escorrer sob seu corpo quando viu os D’arlit cercandoo lugar, mas havia conseguido manter a aparência firme.Até ver Anuk.A imagem circulava o Orfanato das Neves, como se fosse a visão de umpássaro nas alturas, mostrando vários D’arlit prostrados tanto na entradaprincipal quanto na saída dos fundos, a mesma que Caleb costumava quebrarquando ia para lá na calada da noite.Junto com os D’arlit que esperavam na porta de entrada, havia uma jaula,onde um enorme lobo de olhos azuis estava preso, com duas espadasapontadas para seu pescoço, uma vinda da esquerda, outra da direita.“Isso é falso, Anuk nunca seria pego por vocês.” Caleb disse com calmadissimulada.“Mostrem a orelha!” Helena ordenou.Caleb se perguntou com quem ela estava falando, até ver que os D’arlit naimagem agora viravam a cabeça de Anuk, deixando-a bem à mostra: haviaapenas um buraco de sangue onde deveria haver uma orelha.“Caleb.” Helena chamou.No instante em que ele se virou, percebeu ela jogara algo na sua direção, como mesmo reflexo que usou para parar a flecha de Wendy com a mão, eleparou o objeto entre os dedos: era algo mole, como cartilagem, úmido ecom... pelos.A orelha de Anuk.Caleb se sentiu enjoado, seu estômago fermentou e sua boca se encheu, masele conteve-se: uma vez que virou a cabeça e viu os sorrisos sínicos dosD’arlit e do espectro ao seu redor, Caleb percebeu seus dentes rangendo coma fúria que sentia, e teve certeza que, fosse ele um mestiço de demônio, setransformaria em um ali e agora, e só sairia de lá quando todos os D’arlitestivessem mortos, exceto pela Harbinger, ela sofreria mais que todos eles:Caleb a desmembraria, começando pelas orelhas.“Não pense em fazer isso, querido.” Helena disse, “se você fizer a menormenção de atacar, nos vamos matar todos no seu orfanato imundo, e o seucachorro também.”Então, isto era impotência: Saber que poderia ser forte o bastante para lutar,abrir caminho até as estrelas e de volta com as próprias mãos, suor e sangue.Mas, simplesmente não poder lutar.Pois não poderia lutar sem perder.Sua luta causaria consequências com as quais sabia que não poderia viver, e a

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paralisia de suas reações era cognominada impotência. De repente, o seuinterior pareceu pálido, sem sangue, sem vida, se mantendo em pé apenaspela falta de força que sentia para desabafar.Às vezes, Caleb percebeu, vencer não está entre as opções.“Estamos esperando.” A Harbinger disse, se afastando em direção aopenhasco, onde podia ver melhor a chuva que caía.Ele não percebeu quando, mas em algum momento, Helena havia selevantado e enfincado a espada na sua frente.Sem vontade e sem realmente sentir-se forte naquele instante, Caleb arecolheu e deixou seu olhar perder-se no reflexo que via no metal: sabia quedeveria ser seu rosto, mas naquele instante, não conseguia reconhecê-lo.“Sarah.” Ele murmurou, sem olhar para ela, “eu não posso fazer isso.”“Você precisa.” Para sua surpresa, ela respondeu.Seu olhar assustado se virou para ela: a pele triguenha da mulher jaziamaltratada de tantas formas que Caleb sentiu desgosto de si mesmo por aindanão ter retalhado todos os D’arlit que os cercavam.“Eu não acredito neles.” Caleb murmurou entre os dentes, “como elesdescobriram sobre a passagem?”Caleb se arrependeu por fazer as perguntas, pois ela não parecia estar emcondições de falar: sua boca tinha sangue escorrendo, e havia marcas portodo o pescoço, eles haviam a sufocado até ficar inconsciente para trazê-laaqui: sua mão apertou com força a espada ao perceber aquilo.“Caleb, obedeça a eles, é a única chance de salvar o orfanato.” Ela disse,desabando num choro fraco e silencioso, fácil de esconder com a chuva quecomeçava a ficar cada vez mais forte.“Eu me apressaria se fosse você, Caleb.” A Harbinger da Morte bradou,embora Caleb não fizesse menção de olhar para ela.“Eles fizeram coisas horríveis comigo.” Sarah disse, apertando os braçosmais forte ao seu redor, fazendo Caleb sentir ainda mais nojo de dividir omesmo ar com aqueles vermes, “Caleb, apenas me mate enquanto ainda restaalguma coisa de mim para ser morta.”“E Wendy? Ela ama você.” Caleb começou a se afastar, ele olhou de novopara a imagem de Anuk preso e os D’arlit cercando o Orfanato das Neves,ansiando pelo momento em que recebessem o comando para destruir o lugar,ou recuarem.“Não dificulte o que já beira o impossível, Caleb...”Mas Caleb havia percebido algo.

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“Sarah, não importa se eu matar você ou não, os D’arlit vão destruir oOrfanato das Neves de qualquer jeito,” Caleb começou, marejando os olhoscom a ideia que o invadiu “eles têm Anuk... ele está morto nas garras deles,não importa o que eu faça aqui, todo eles estão mortos já, o que eu possofazer pelo menos, é salvar a sua vida.”“Caleb NÃO!” Sarah disse com toda a força que conseguia juntar, “não seatreva a sacrificar a vida deles pela minha!”Uma Serpa havia atacado a Harbinger da Morte, ela havia sido cegada pelasrajadas de vento e água nos olhos, Caleb a viu tentando limpar a vista.“É agora.” Ele disse, colocando a espada no chão.Caleb estava decidido a colocar um fim no reino de terror da Harbinger daMorte, e só havia um jeito certo de fazê-lo: matando-a. Ele ergueu as mãos,concentrando-se nos seus movimentos, sentindo o arco e flecha de luzganhando forma nas suas mãos...Metal perfurando carne.Caleb congelou: apenas seus olhos viraram-se para Sarah.Com a espada em punho, Sarah perfurara o próprio peito.“Eles são mais importantes que eu.” Ela disse, e num último gesto, agarrouuma mão de Caleb e a colocou sobre a espada, fazendo-a afundar ainda mais,até perfurar suas costas.Ela não gritou, apenas deixou a vida desfalecer-se em seu rosto, deixandoapenas o contentamento de quem cumpre uma missão no semblante,enquanto seu corpo desabava com um baque que ecoou nos ouvidos deCaleb: ele era o culpado por aquilo, ele podia não ter levantado a espada, masele começou aquilo quando fez seu acordo com Gambler, ele era o únicoculpado.A imagem que o espectro mostrava desapareceu no ar.“Muito bem, Caleb Rosengard, o Orfanato das Neves e Anuk estão salvos,pois agora você é um D’arlit, e um D’arlit cumpre a palavra para com outroD’arlit.” O espectro sibilou, dando outra de suas gargalhadas esganiçadas quetanto perturbavam Caleb.Dessa vez, no entanto, não foi difícil ignorar a risada: o mundo desfalecera aoseu redor, e a culpa era toda sua, não havia como o espectro estar dizendo averdade, e se estava, seria uma questão de tempo para os D’arlit voltarem ainvadir aquele mundo de novo, apenas para matar mais inocentes.Era tudo sua culpa, e o único jeito de conseguir qualquer tipo de redençãoseria tendo a mesma coragem que Sarah teve nos seus últimos momentos.

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Raios explodiram uma árvore de mais de cem anos atrás dele, mas ele nãovirou o rosto, estava ocupado, absorvendo a decisão que acabara de fazer:ansiedade o fazia tremer, seu coração prestíssimo, sua respiração pesada,cada parte de seu corpo tentava convencê-lo a deixar aquela espada perfurarseu peito.Mas algo o impedia.Na superfície, parecia esperança: se era verdade que agora ele estava com osD’arlit, ele poderia destruí-los de dentro para fora, tudo que seria preciso eraganhar confiança o bastante para ter acesso ao próprio Allenwick D’arlit, nãodeveria ser difícil, Caleb seria o primeiro e único mestiço de anjo a se juntaraos D’arlit, Allenwick decerto seria o primeiro a ir vê-lo, aquela poderia ser amelhor chance de Caleb de fazer algo útil com o resto de sua vida.Na superfície, tudo sempre soa trivial, mas na verdade, o harmônico queressoava notas de esperança se originava no vibrar da corda afinada emcovardia: Caleb deveria saber que nem mesmo ele poderia destruir os D’arlitpor dentro sem ajuda, e agora não haveria alma viva neste mundo que searriscaria confiar nele; a verdade é que estava procurando desculpas, poistinha medo de tirar sua vida, medo de tomar a única escolha decente queainda restava.Ele não merecia viver, mas não tinha coragem de morrer...“CALEB!” A voz da única pessoa que havia confiado nele em dezoito anoschamou ao longe, e naquele momento, ele decidiu que se deixaria ser punidopor sua dona, pois ele merecia o pior que pudesse receber, e nada poderiadoer mais do que a vergonha e nojo de si mesmo que Wendy o faria sentirquando visse o que ele havia feito.

“Eu não mereço seu perdão, Wendy.” Ele respondeu, escolhendo não contaro que aconteceu, focando seus olhos abatidos e ociosos nas Serpas que seaglomeravam juntas no céu e sentindo-se envergonhado com o som daprópria voz, “eu fui ingênuo em um mundo cruel e corrompido, eu nãomereço mais que a morte.”Um murro no meio de sua testa o fez lembrar da ferocidade com que seurosto havia sido cortado pelas garras de Wendy: sangue voltou a escorrer aoredor de seus olhos, mas ele sorriu e deu boas-vindas à dor, pois a dor, esta

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ele merecia.Wendy se levantou e pôs-se a caminhar na direção do corpo de Sarah.Caleb se pegou admirando suas costas, perfeitamente delineadas sob ovestido ensopado: não eram as mais bonitas que já havia visto, mas nem tudoneste mundo é feito de aparências.Logo já estava relembrando o dia em que Wendy chegou em Tuonela, oterror em seu rosto quando viu a destruição causada pelos D’arlit, Calebconfessara já não se sentir em casa nesta terra, e ela não fez perguntas sobreisso, não era atoa que ele...“Eu nunca te contei as condições do meu acordo com Gambler.” Ele tentoufalar, sua voz nunca esteve tão longe de soar como veludo, “eu fuiinterrompido quando estávamos na ilha da caveira.”Ele ouviu Wendy levantar a espada do chão.“Havia uma condição, uma que o espectro fazia questão de me lembrar a cadasegundo que eu passava acordado.” Ele continuou, quando viu Wendy seaproximando com a espada em punho, “eu nunca poderia amar alguém senãoHelena, Gambler pediu para que eu encarasse isso como uma demonstraçãode fidelidade e riu como se não fosse importante, apenas antes de apertarminha mão foi que disse que usaria e então destruiria minha vida caso eu nãocumprisse a palavra.”Talvez os raios tenham explodido com mais força que o normal, talvez fossesua imaginação procurando uma desculpa, o fato era que Caleb sentiu umarrepio frio ao ver seu reflexo na espada que Wendy brandia em sua frente.“Por dezoito anos eu cumpri o acordo, e então você veio.”“Você me dá nojo.” Wendy sibilou com desgosto no olhar.“Estou dizendo isso agora porque se eu dissesse antes você se afastaria demim, e isso era a última coisa que eu queria na minha vida miserável. Agorajá não faz sentido esconder isso.”Wendy, banhada no silêncio da fúria, brandiu a espada contra o pescoço deCaleb.Derrotado, ele fez a única coisa digna a fazer: esperar pelo fim.Uma onda de choque o chacoalhou e fez a espada vibrar na sua frente.Houve uma mudança no ar, sútil, mas forte o bastante para os sentidos deCaleb captarem.Nove Serpas entraram e saíram do seu campo de visão, todas fugindo deTuonela, todas carregando D’arlit.

Caleb e Wendy se viraram em direção ao mar e souberam:

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Eles, e Tuonela, estavam todos mortos.Foi essa a mudança que Caleb sentiu, a pressão do ar havia caído: massas denuvens, espessas como balas de canhão, formavam o maior monstro quenenhum ser jamais poderia enfrentar: sobre as águas negras do mar deTuonela, um furacão dançava e fazia a catedral de Tuonela parecer umamaquete risível, seu giro era a fúria da tempestade.Os raios também mudaram: agora cada um deles explodia com violênciabrutal o bastante para criar ondas de choque e abriam crateras no chão dacidade. Caleb parou para olhar melhor: alguns deles tinham aberto buracostão profundas que revelavam a cidade subterrânea.Foi quando percebeu: se o furacão atingisse a cidade naquele estado, nãoseria só a superfície que seria destruída, mas a cidade subterrânea inteira.“Wendy?” Ele chamou.Os olhos dela traduziam a palavra “horror”, suas garras estavam frouxas, aespada no chão, e o vestido em seu corpo imitava os movimentos do vento omelhor que a água permitia.“Wendy!” Ele chamou mais alto, pegando o braço dela.“NÃO ME TOQUE!” Ela berrou, saindo de seu trance.Ela tentou atacar Caleb com a mão livre, mas não demorou para que eleimobilizasse ambos os braços dela.“Você quer caminhar ou pegar um atalho?” Ele perguntou, olhandofirmemente nos olhos odiosos de Wendy.Um raio explodiu na torre do relógio de Tuonela, fazendo ponteiros enúmeros romanos choverem pela cidade (de novo), enquanto a onda dechoque foi tão forte que chegou a derrubar Wendy.Mas Caleb a segurou.“Atalho.” Ele sugeriu.No próximo instante, ele a lançou montanha abaixo, pulando logo atrás.O vento e a chuva faziam seus cortes arderem.No meio do caminho, Caleb assumiu controle sobre os ventos, ele e Wendyagora caíam como uma rajada furiosa em direção à entrada da Catedral deTuonela, desviando de destroços que o vento havia levantado ou de raios queameaçavam explodi-los a qualquer momento.A parada foi tão abrupta que teria sido fatal se não fosse pelo esforço deCaleb para protegê-los. Uma vez na praça da cidade, Caleb mandou Wendyse esconder com os outros na catedral. Sem esperar por uma resposta, ele secolocou a correr, destruindo com suas flechas de luz qualquer objeto que

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voasse na sua direção, saltando e esquivando-se sem nunca tirar os olhos domonstro que havia se disposto a enfrentar.Uma vez na praia, Caleb percebeu a loucura: o tornado era quase tão colossalquanto o gigante de Louhi: se aquilo tivesse olhos, decerto Caleb seriainvisível para eles, tamanha a sua pequenez.Respirando fundo, Caleb percebeu que, nem com toda a força que tinha, seriacapaz de dissipar algo daquelas proporções: seu corpo se esgotaria muitoantes.Mas ele não precisava dissipá-lo: apenas mudar sua direção.Engolindo ar, sentindo-se estranhamente consciente do seu cabeloencharcado contra sua cabeça em sangria, do tamanho da loucura que estavaprestes a fazer, e do quão pouco de sua vida ainda restava para viver.O ar começou a girar ao seu redor.

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Capítulo 48

“Eu costumava ter uma TV tão grande quanto essa até ter oito anos.” Aloirinha esnobou no instante em que entrou no quarto, seguida por Stefanova,que brandia um sorriso honesto, algo que realmente não combinava com osD’arlit.Tanto tempo neste quarto e ele ainda não conseguira descobrir o que eraaquela senhora, além de superior mentalmente: ela tinha planos, ele tinhacerteza, e o fato de não conseguir lê-los o frustrava com a mesma intensidadecom que lhe causava admiração.“Quem é a rainha da aristocracia aí?” Gambler perguntou, sem desviar osolhos da imagem de Tuonela que se estendia à sua frente.“Ela é a garota que Ally sugeriu que tirássemos do Orfanato das Neves.”Stefanova respondeu.“Não me diga.” Gambler murmurou com um sarcasmo manhoso na boca,“por que Ally quis trazer uma mestiça para o castelo dos D’arlit?”“Ela é a princesa do Caos.” Stefanova disse com um dar de ombros, enquantocolocava duas cadeiras ao lado de Gambler.“Bom argumento, como você colocou uma mestiça dentro do castelo dosD’arlit? Esse pessoal já matou gente mais importante que você por infraçõesbem inferiores.”“Ela chegou em uma das Serpas menores, como Ally disse que faria, osguardas não fizeram perguntas quando viram a Serpa, nem quando eu arecebi, e não, Gambler, “esse pessoal” nunca matou alguém mais importanteque eu.” Stefanova respondeu, oferecendo uma cadeira para a loirinha.Um momento de petulância sempre traz pistas sobre a pessoa com quemestamos lidando: Stefanova estava acima de muita gente naquele lugar,Gambler manteria isso em mente.“Eu tenho um nome.” A garota disse irritada.“Todos temos, e serão todos esquecidos com o tempo, não há razão para fazerestardalhaço sobre uma coisa tão insignificante.” Gambler resmungou numanota irritada enquanto esfregava os cabelos: por que a Harbinger estavademorando tanto?“Você tem IDEIA de quem eu sou?” Ela levantou a voz.“Você saiu de um orfanato, seus pais te deixaram e você não é ninguém.”

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Gambler retalhou, concentrando-se no furacão colossal que a tempestade daHarbinger da Morte havia formado. Era patético ver Caleb tentar opor-se,mas ainda assim, o que estava acontecendo com Helena? “Abra as mãos suametida, seu sangue está sujando o chão.”As mãos da mestiça metida haviam, de fato, se tornado garras, perfuraram apele de suas palmas e agora o sangue escorria escarlate por seus punhos.Apesar de tratá-la com indiferença, Gambler tinha que admitir que a meninatinha seu valor: ela sentiu raiva dele com bastante facilidade, umtemperamento excelente para uma guerreira: destrutiva, orgulhosa, fácil demanipular, ele ficaria de olho nela.“Quando você voltou?” Stefanova inquiriu à Gambler.“Quando eu quis.” Gambler respondeu, emendando de prontidão, “ao por dosol.”“Entendo, e como estamos vendo isto?” Stefanova perguntou, sentando-se aolado de Gambler e oferecendo à loirinha o lugar ao seu lado: ela demoroupara aceitar. Estaria receosa? Com orgulho ferido demais para obedecer? Nãogostava de receber ordens? Talvez quisesse se sentir superior, Gamblerexploraria isso mais tarde.Havia coisas mais importantes para se preocupar agora.“É um oferecimento do espectro de Caleb, estamos vendo Tuonela atravésdele: ele deve estar montado na Serpa da Harbinger da Morte.” Elerespondeu, observando o furacão que Caleb conjurava ganhar um tamanhoquase digno de respeito.“Espectro de Caleb?” Stefanova perguntou.“Ele nasceu do meu acordo com Caleb.” Gambler explicou desatento,voltando a focar na montanha onde a Harbinger havia desaparecido.Estava começando a suar, seu cabelo já estava oleoso, culpa de suas mãosagitadas que não paravam de esfregá-lo: se Helena não saísse, isso seria umdesastre, ainda mais agora que os D’arlit haviam abandonado Tuonela.Ela precisa sair de lá, com vida, e mais importante: precisava ser vista.“Stefanova, cheque os corredores, procure guardas que estejam conversando,traga-os para cá.” Gambler disse com a voz arrastada, sem deixar claro seestava fazendo um pedido ou dando uma ordem, “se possível, tanto altoquanto baixo escalão.”“Por quê?” Stefanova perguntou ao se levantar.“Estou tentando reconstruir a reputação da ‘temível’ Harbinger da Morteaqui.” Ele disse, percebendo uma pequena irritação na própria voz.

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“Mas a Harbinger da Morte já tem uma reputação, batalhas inteiras já foramganhas apenas com o anuncio da presença dela, não há lugar nesse mundoonde a menção de seu nome não cause terror e–”“Está errada.” Gambler a interrompeu batendo uma mão na própria perna eapontando um de seus dedos esguios e oleosos para ela, “há um lugar, sim,onde a menção da Harbinger da Morte é motivo de piada, e nós estamossentados nele. Nós sabemos que a verdadeira Harbinger da Morte, SelenaD’arlit, foi morta há quase vinte anos, e não só nós, mas todos os guardas,todos os soldados de Allenwick, os sete favoritos sabiam, os senhorescomandantes, os conselheiros, e todos os guardas que servem neste castelotambém o sabem: além disso, sabem que a Harbinger original era averdadeira assassina sádica que se divertia forçando pais a comerem os restosde seus filhos, sabem que ela era imparável, invencível, digna de respeito ede temor.Helena vive na sombra da irmã, ela herdou o título, mas não a confiança dosD’arlit: todos aqui a viram crescer, a viram lutar contra a irmã desde queambas eram crianças, sabem que Helena nunca, uma única vez, foi capaz devencê-la. Helena não tem o prazer por matar que fez de Selena uma lendaentre os D’arlit, ela apenas herdou o título porque Allenwick sabia que aspessoas deixariam de temer os D’arlit se soubessem que sua maior guerreirahavia sido morta.Você está com ela há uma vida, você sabe que Helena raramente entrou emcombate desde que assumiu o título, deixando os exércitos fazerem a maiorparte do trabalho. Quantas vezes o papel dela não foi limitado a fazeraparições e execuções teatrais enquanto clamava a terra em nome dos D’arlit?Isso gerou conversa, os D’arlit hoje pensam que a Harbinger é um símbolofraco, e Helena sabe disso, por isso atacou Jussarö sozinha, para provar quetinha tanto poder quanto a Harbinger da Morte original.O tiro, no entanto, saiu pela culatra, não é? As pessoas começaram a duvidarainda mais. Por quê? Bem, a Harbinger só levou dois homens para contar ahistória, e eles sequer eram soldados, como os demais D’arlit poderiamacreditar que Helena fez algo dessa magnitude sozinha, se as únicastestemunhas foram um escrivão que ninguém conhece e um qualquer que elamesma escolheu como testemunha? Foi um plano ridículo! Os três poderiammuito bem estar inventando uma história, Jussarö poderia ter sido destruídacom ajuda de terceiros, sem mencionar que isso é um feito sem precedentes:Helena nunca havia se envolvido grandemente nas batalhas, por que os

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D’arlit deveriam acreditar que, de repente, ela era capaz de aniquilar cidadesinteiras? Quando se olha por fora, a história se parece cada vez menos crível.Agora, Tuonela tinha noventa soldados D’arlit como testemunhas, e mais dezque estavam no Orfanato das Neves, eles já devem estar de volta à esta altura,mas não importa, por quê? Porque, neste momento, não há nenhum D’arlitem Tuonela para ver o verdadeiro poder de Helena, as Serpas fugiram com ossoldados restantes, por isso eu preciso que você chame os guardas maistagarelas que você puder encontrar e os coloque aqui, pois eu sei que Helenavai dar muito assunto para eles discutirem nas próximos noites: a mulher quedestruiu Tuonela, trouxe o mestiço de anjo que todos acreditavam estar mortopara os D’arlit e que sobreviveu uma batalha no reino das sombras.Quando os soldados de Tuonela regressarem, o que está para acontecer, suasconversas se complementarão com as dos soldados que assistirão os feitos deHelena daqui deste quarto e, de repente, a reputação de Helena entre osD’arlit começa a se tornar digna de respeito.Alguma pergunta?” Gambler acrescentou, voltando a focar-se em Caleb,cujos braços tinham veias tão sobressaltadas que pareciam estar prestes aexplodir, tamanho era o esforço que fazia para sustentar um tornado que nãodevia ter mais da metade do tamanho do furacão de Helena.“O que está para acontecer?” Stefanova perguntou, sem o carinho que elacostuma demonstrar quando Helena estava por perto.“EU NÃO SEI!” Gambler explodiu, perdendo a paciência depois de terexplicado detalhadamente o seu plano para fazer a vida daquela inútil melhor.O arrependimento foi imediato: ele próprio tinha uma reputação a zelar,Gambler deveria ser sempre o homem relaxado, consciente do poder quedetém, confiante no futuro que o aguarda, sempre estando três ou quatropassos à frente de qualquer adversário, essa era a imagem que tinha quemanter caso quisesse concretizar seus planos.Mentalmente, considerou matar Stefanova e a órfã mimada, seria como se elenunca tivesse perdido a compostura, mas logo descartou a ideia: Stefanovapodia ser uma incógnita, e ele podia não gostar de trabalhar com incógnitas,mas ela era necessária, sem mencionar as perguntas que sua ausênciarepentina causaria. Enquanto a loirinha, ela não conhecia ninguém, nuncaesteve neste mundo, não havia como ela causar qualquer dano à sua imagem.O que fez foi respirar fundo e começar a rir como o malandro folgado queera.“Eu não sei.” Ele repetiu com um sorriso sinistro no rosto, “mas vai ser

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espetacular, agora que tal você ajudar a princesa e trazer os camaradas pracá?”Stefanova era velha, velha o bastante para perceber que alguma coisaestranha havia acabado de acontecer, e se Gambler não fosse um mestre emseu ofício, ele teria deixado escapar o único sinal que a senhora dera de quesabia que algo estava errado: uma franzida no cenho, durou menos de umsegundo, mas foi o bastante para que ele notasse.“Por que está fazendo isso pela minha Helena, Gambler?” Ela perguntou, oque o desarmou por completo, talvez ela realmente estivesse sendo ingênua,ou talvez tivesse percebido que Gambler desconfiava dela, e moveu um peãopara proteger-se, muito bem posicionado.Gambler tinha que admitir: ela era uma jogadora à altura, e ele gostava disso.“No fim das contas, Helena é a típica garota oprimida, digamos que meunegócio gira em torno de ajudar os oprimidos, ela merece um pouco de arpuro depois de tantos anos, e eu sou o cara que vai providenciar isso.” Eledisse, não era de todo uma mentira, mas estava longe de ser toda a verdade.Stefanova assentiu e saiu do quarto.Gambler voltou a sentar-se, percebendo que a loirinha ainda estava ali,olhando para ele com uma expressão que misturava constrangimento comvontade de se provar superior, ele gostava daquele olhar.“E qual seu nome insignificante? Ou posso te chamar de loirinha?”“Danielly O’Hara.” A loirinha respondeu, “me chamam de Dana.”“Dana O’Hara, a órfã mimada.” Ele sussurrou para si mesmo com um sorrisoarguto, “diga, Dana O’Hara, o que você sabe sobre poder?”“Quanto mais, melhor.” Ela respondeu com brilho no olhar.Gambler olhou para ela, pela primeira vez realmente concentrando-se no quevia.Ela não devia ter nem dezoito anos ainda, tinha lá sua beleza, um corpoatraente e um rosto selvagem, apesar de se parecer humana demais para seugosto, os cabelos loiros tinham um bom trato que você não espera encontrarem uma órfã, mas a senhorita Dana O’Hara não era qualquer órfã, haviasinais de mimo nela, mais que isso, havia vontade de POSSUIR no seu olhar,não importa “possuir o que”, contanto que seja bom e que seja dela.Ally podia se dizer a princesa do caos, mas Gambler tinha certeza que ela nãoagia ao acaso, ela tinha sua própria ideia de diversão e todas suas açõesgiravam em torno de seu bel prazer, se ela havia escolhido trazer esta garotapara o castelo dos D’arlit, é porque sabe que caos vai resultar disso. Gambler

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não sabia o que, e não estava interessado em mais incógnitas envolvidas noseu plano, porém, estava convencido de que gostava da órfã mimada.“As pessoas tinham medo de você.” Não foi uma pergunta, mas umaobservação que Gambler fez em voz alta quando terminou a análise dasenhorita O’Hara.“Elas faziam muito bem.” Dana respondeu de volta.“Como você conseguiu esse tipo de poder no orfanato?” Gambler perguntou,deixando de prestar total atenção nos acontecimentos em Tuonela, emborapudesse ver com sua visão periférica que cerca de quinze raios caíam nacidade a cada minuto agora, a qualquer momento Helena poderia se libertardo reino das sombras, Stefa deveria se apressar.“As pessoas que sabem o lugar delas me obedecem, e as que não sabem,aprendem.” Dana respondeu, sem nenhum sinal de timidez ou receio.Mesmo ela não conhecendo nada ao seu redor, mesmo depois de ser recebidapor uma criatura que ela nunca sequer deve ter imaginado existir, voar emsuas costas sob a tempestade de Helena, ser trazida à um castelo onde todosficariam mais que gratos por matá-la sem cerimônia, e estar sentada ao ladode um ser como ele, Dana ainda mantinha a postura de uma mulher quenasceu para o poder, não se acovardou em momento algum e não foi tímidaao impor-se.Dana se comportava como a Harbinger da Morte deveria.Ela merecia seu respeito, e por isso, ele o daria a ela.Enquanto fosse útil.“No entanto, você tinha que abaixar a cabeça para alguém superior.” Gamblerapontou, escondendo sua ansiedade no vagar malandro e despreocupado desua voz.“A gorda da irmã Romena é a única irmã no orfanato que não tem medo dedescer a mão na nossa cara sem motivo, mas é só saber puxar o saco dela quefica tudo de boa, é engraçado, porque ela mesma puxa o saco do prefeito praconseguir grana e vive falando que nunca ia cair no mesmo truque.” Danadisse desinteressada.“Grana pro orfanato?” Gambler perguntou.“Pra continuar gorda.” Dana respondeu.Gambler riu descontraído, a órfã mimada tinha o humor mais ácido que salivade gobliniano, do jeito que ele gostava.“Não é tão diferente de como as coisas funcionam aqui, loirinha.” Gamblerdisse, virando a cabeça distraidamente para a imagem de Tuonela, embora

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pudesse ver de relance os olhos de Dana, devorando-o com interesse, aquilo ofazia sentir-se mais vivo que a gloriosa visão de Caleb se matando com osesforços para salvar Tuonela, ele só queria esperar até Dana fazer– “Como?”Incrível como aquela garota fazia uma pergunta de uma palavra soarpetulante.Gambler sorriu por não ter que esperar mais que três segundos.“Dana O’Hara, eu gosto do seu nome e de como sua mente funciona. Nósestamos em um continente maior do que a chamada Ásia no seu mundo, nãoo dividimos em países, mas em cidades.”“Nós estamos no castelo do rei?” Dana perguntou sem o menor sinal de estarimpressionada.“Sim, loirinha, estamos no castelo do rei, e seria esperto reparar que poucaspessoas se referirem à Allenwick D’arlit como ‘rei’, eles a chamá-losimplesmente de Senhor. Há um motivo para isso? Talvez. Agora, vamos àhierarquia: as cidades tomadas pelos D’arlit têm um general ou um lamaneD’arlit como seu líder, uma pessoa para assegurar que as leis de Allenwickestejam sendo cumpridas. Hoje, é seguro dizer que os D’arlit têm poder sobrepelo menos vinte e uma mil das trinta e quatro mil cidades que se espalhampelo continente.” Gambler parou, notou que Dana ainda estava curiosa, e pôs-se a continuar, “claro, esses generais e lordes são pequenos na cadeia depoder.Cada aglomerado de cerca de duzentas cidades forma um bacálio, entende? Éa mesma coisa que os estados do seu mundo. Cada um desses bacálios éregido por dez senhores comandantes, todos os pequenos lamanes e generaistêm que responder e fornecer relatos aos senhores comandantes.Claro, é impossível para um senhor comandante saber tudo sobre todas ascidades sob seu controle, e eles nem querem, então há sempre mais pessoasenvolvidas nessa cadeia de poder: espiões, olheiros, cobradores, demôniosque, por vezes, adquirem mais poder que os próprios senhores comandantes,mas optam por manterem-se discretos, Ethan Blakewood era um deles, seficar aqui tempo o bastante, vai ouvir falar dele.Cada quinze bacálios formam um condado, cada condado é regido por quatrocondes, tente não confundir os condados daqui com os do seu mundo, ok? Oscondes são quase sempre demônios escolhidos à dedo por Allenwick combase na família e poderes que eles têm, só os problemas de maior importânciachegam aos ouvidos dos condes, que tem poder semelhante ao do próprioAllenwick quando estão dentro do condado.

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Os condes estão abaixo somente dos sete favoritos de Allenwick, que são avoz do próprio Senhor dos D’arlit e podem reger com poder absoluto emqualquer dos condados onde pisem, apenas o próprio Allenwick e a princesaD’arlit podem contestá-los. Eu não consigo lembrar o título certo deles, massei que são os homens de máxima confiança de Allenwick, e são responsáveispor cuidar de todos os assuntos que não merecem a atenção do próprio.Aliás, eram.” Gambler completou.“Eram?” Dana perguntou com cara de nojo, que na verdade era cara dedúvida, mas nenhum aristocrata consegue fazer cara de dúvida sem parecerenojado com a sensação de não saber algo que alguém mais sabe.Gambler soltou um sorriso amarelado pensando no quão fácil ia sermanipular a loirinha, ele só precisava de um propósito para ela.“Morreram todos.” Ele disse despreocupado, apreciando uma nova leva deraios que assolava Tuonela, onde estava Stefanova com os guardas? “Távendo essa cidade aí?” Ele disse apontando para a imagem de Tuonela, “osmoradores dela se passaram por D’arlit por dezoito anos. Alguns dias atrás,eles mataram todos os sete favoritos, Allenwick está trabalhando parasubstituí-los, e a Harbinger da Morte para destruir a cidade.”“Ela parece uma fracassada pelo que você falou praquela velha.” Dana disse,atingindo níveis de petulância tão absurdos que Gambler teve que rir.“Ela não é tão boa quanto a irmã dela foi, mas vai por mim, ela tem seuvalor.” Gambler disse quase que lascivo em seu tom, como se tentasseseduzir com suas palavras.“E cadê ela?” Dana perguntou seca.“Vê aquela montanha?” Gambler apontou para o ponto exato onde Helenahavia desaparecido, “um demônio a puxou para as sombras, e agora aHarbinger está lutando no mundo das almas que não se calam, ondepesadelos são forjados pela escuridão e soltos no nosso mundo paraassombrar os fracos de coração, o chamado Reino das Sombras, quando elasair de lá vitoriosa, os D’arlit verão o que é poder, e então, o jogo começa.”Gambler disse, sentindo um comichão nos lábios: as sementes de seu planobrotariam da terra de seu jardim nesta noite.“Como eu consigo poder por aqui?” Dana perguntou, tirando Gambler de seutrem de pensamentos, “você explicou quem tem poder e, além de chato, foiinútil, me fala o que eu faço pra mandar aqui.”Ela parecia cada vez mais atraente aos olhos de Gambler com aquelasperguntas: ela não estava interessada na batalha, não se importava com quem

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era a Harbinger da Morte e todas as pessoas ao seu redor, ela só queria omesmo que ele: poder, todas as suas atitudes gritavam “eu mando aqui”, eaquilo era atraente aos seus olhos.“Quantos anos você tem exatamente?” Gambler perguntou um poucocismado.“Faço dezessete dia trinta e um.” Dana respondeu, “por quê?”“Dia trinta e um, trinta e um de Janeiro, não, eu preciso te ensinar a usar ocalendário dos D’arlit, você não pode querer poder por aqui e não aprender acultura deles, vai precisar falar, agir e pensar como uma D’arlit.” Gamblerdisse, mas pensou melhor, “retiro o que disse, falar e agir tudo bem, maspensar, você deve fazê-lo como sempre fez.Poder, loirinha, bem, você já sabe o básico: faça seus iguais te temerem, façaseus inferiores fugirem à menção de seu nome, e faça seus superioresacreditarem que você está sob suas garras, jogando o mesmo jogo que eles,até chegar o momento de tomar o lugar deles,” Gambler disse, deliciando-secom o sorriso malicioso que surgiu nos lábios de Dana, “fique por aqui, euvou te mostrar quem tem poder, mas no final, você vai precisar se tornarforte, este mundo é bruto, as pessoas morrem de verdade, o que me leva adizer: se você aprender a lutar, loirinha, e se mostrar violenta e semcompaixão, seu nome se espalhará pelo continente, e onde quer que você vá,você terá o poder.”“Eu gosto da ideia.” Dana fez concreto em suas palavras, usando de um olhartão altivo que Gambler se encheu de orgulho, quase esquecendo por completoque essa garota só estava aqui porque Ally tinha alguma coisa em mente.Quase.Gambler ouviu passos do outro lado da porta, finalmente Stefanova estavavoltando.“Loirinha, você sabe se transformar em demônio? Os camaradas que estãovindo podem até estar acostumados comigo, mas se eles virem uma garotahumana aqui, eles vão querer te matar, e eu vou ter que matá-los pra teproteger, o que ia ser ruim, já que eu preciso deles vivos... para...”Gambler era um ser antigo, havia vagado por mundos que muitos sequersonhavam existir, visto todo tipo de pessoa que se possa imaginar, era sempreum prazer fazer negócios com os mais idiotas, e nesse tempo, ele havia vistomulheres, mulheres que semeavam cobiça nos demônios, mulheres quepoderiam te controlar apenas com a forma como moviam suas curvas, seafundavam na luxuria de suas peles triguenhas, lançavam seus olhares e

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mordiam seus lábios.Nenhuma delas era comparável com Danielly O’Hara agora.O amarelo de sua íris emanava fúria, suas pupilas eram fendas frias como asde um demônio-felino, seu olhar esbanjava poder e raiva, meticulosamentecontrolados, ela inspirava o terror que a Harbinger da Morte deveria inspirar,e não tinha nem dezessete anos ainda, embora os novos ângulos em seu rosto,somados com seu corpo mais forte e volumoso, pudessem facilitar oesquecimento deste detalhe.“Me deixaram uma carta explicando que eu viria para cá na próxima luacheia, e uma segunda carta explicando como me transformar.” Dana disse,sua voz soava muito mais airosa e perigosa agora.Ela já podia mudar seu nome para Perfeição, Gambler não reclamaria.As portas se abriram, Stefanova entrou sem cerimônia, seguida por nada maisnada menos que vinte guardas, Gambler conhecia pelo menos três deles.“Kusti, boa noite.” Gambler disse, colocando dois dedos na cabeça para fazerum aceno largado para o guarda, “espero que esteja cuidando muito bem deTehain.”“Sim, Gambler.” Kusti respondeu com a voz um tanto trêmula e aguda.“Muito bem.” Gambler continuou, agora falando alto e em bom tom paratodos, “meus caros, por favor, aprocheguem-se, apenas não encostem nacama da princesa.”Os guardas queriam rir, e se não fosse pela presença de Stefanova no quarto,Gambler tinha certeza de que todos eles não só teriam gargalhado, comotambém se esparramariam na cama de Helena.Gambler sorriu internamente, imaginando como esses camaradas estariamdepois que vissem o que estava por vir.Por cerca de três minutos, ele explicou para os guardas o que era aquilo queeles estavam vendo: a Harbinger havia declarado uma guerra contra Tuonela(contra a vontade de Allenwick, como todos os D’arlit já sabiam), e agora eraresponsável pela maior tempestade do século, com chuva, granizo, umfuracão imensurável, enchentes e os mais massivos raios que já explodiramao redor deste mundo.Não só isso, ela havia descoberto que Caleb Rosengard, o mestiço de anjo,ainda estava vivo, Gambler apontou para Caleb na imagem de Tuonela nomomento exato em que aconteceu: Veias no rosto e braços de Calebexplodiram, só se viu sangue escorrer em suas mãos e sob seus cabelosbrancos, tingindo suas sobrancelhas, olhos e boca, enquanto os braços,

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subitamente frouxos, caíam ao redor de seu corpo.Caleb Rosengard permaneceu em pé, como um floco de neve tingindo-serapidamente em tons escarlate, perante o mar negro de Tuonela, seu corpo eraapenas uma silhueta vazia comparada com o tornado que criara, e este pareciaum guerreiro sem esperança, um David pronto para enfrentar um Golias,quando comparado com o furacão maciço, recheado com a fúria do própriomar e todos que nele pereceram.Sal e sangue pingavam de suas mãos trêmulas, seus dentes cerrados tambémhaviam sido manchados, seus olhos saltavam com tanta violência de sua faceque até Gambler pode sentir o esforço que aquele mestiço estava fazendopara manter-se em pé, e se perguntassem a ele, Gambler negaria, mas nomomento em que notou um sinal de aprovação no rosto de Dana ao ver aforça de Caleb, percebeu um gosto amargo na sua boca, amargo e incomodo,que se espalhou por seu corpo no instante em que tentou engoli-lo.Um grito de guerra, de fúria, daqueles que você só solta quando seu esforço ébrutal à ponto de tomar conta do seu ser, este foi o som que veio de Calebquando seu pequeno David partiu para enfrentar Golias.Gambler riu com desdém, se o plano de Caleb era deter o furacão de Helena,ele precisaria de um vendaval pelo menos tão maciço quanto o dela, girandona direção contrária, para que ambos se anulassem, ver aquele protótipo detempestade era simplório e risível.Deter o furacão, no entanto, não era o plano.O que Gambler demorou para perceber foi que, embora o tornado de Calebfosse menor, ele também era mais rápido, e estava totalmente sob seucontrole, enquanto o furacão de Helena seguia ao léu.“Ele não vai fazer isso.” Gambler sussurrou com uma mão sobre a boca, pelasegunda vez na noite deixando seu sorriso e seu ar de “eu estou no controle”escaparem de seu rosto, por sorte, Dana e os soldados estavam distraídosdemais com o que viam para reparar. “ele não vai fazer isso.”Sim, ele vai.Com que força?Era um milagre que o corpo de Caleb ainda estivesse em pé, o brancoensopado de seus cabelos em seu rosto fazia difícil ver, mas Gambler notoude imediato: não havia mais pupilas nos olhos do mestiço de anjo, eles eramduas pérolas, pálidas como a espuma do mar.O tornado do mestiço foi parar atrás do gigantesco furacão de Helena,diminuindo cada vez mais o espaço entre eles, até que, de supetão, David

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tocou Golias.Caleb berrou de dor e se contorceu como se suas próprias costas tivessemsido açoitadas com um chicote de espinhos.O furacão de Helena parou de avançar aos poucos, até ficar totalmenteimóvel sobre o mar. Gambler ouviu os guardas murmurando entre si, dizendoque nunca iriam querer enfrentar um cara daqueles.“Bom, muito bom.” Gambler celebrou em pensamento, pois os guardas eramexatamente o que ele queria: fofoqueiros, daqueles que precisavam dizer tudoque viam, era só uma questão de tempo para...Um estrondo fez Gambler voltar sua atenção à imagem de Tuonela.O rosto, as contrações nos músculos do pescoço e boca de Caleb mostravamque ele estava berrando, mas já não havia voz naquele peito para fazer-seouvir, e Gambler não tardou a entender porque.O furacão de Helena engolira por completo o tornado de Caleb, e agoraaquela monstruosidade bailava desenfreada sobre o mar, como uma pluma aovento, mas com a brutalidade de todos os demônios e pesadelos que seescondem no Reino das Sombras.De repente, todo o esforço visível no corpo de Caleb cessou: lá estava ele, umraro floco desbotado de neve enferrujada, não havia ar em seus pulmões, vozem sua garganta, sangue em suas veias, ou vida em seus olhos.Quando seu corpo caiu, foi como se uma rajada de vento o tivesse derrubado,fazendo um baque abafado na areia ensopada da praia de Tuonela.Caleb Rosengard jazia estatelado às margens do mar, morto.

(Quebra de parágrafo, porque o choro é livre)

Poucas palavras poderiam descrever a expressão no rosto dos soldadosD’arlit, e Gambler sabia que a portadora destas palavras seria Ally, pois seela estivesse aqui, diria que os D’arlit “tão tudo com cara de bocó”, mas averdade é que, pouco acima de cada queixo caído, havia um olhar deassombro.Dana O’Hara tinha a testa franzida, seus olhos amarelos espremidos e o torsoinclinado levemente para frente, Gambler supôs que, ou ela estava tentandoentender o que acabara de ver, ou ela era bem míope.Stefanova parecia indiferente, mas Gambler conseguia ver que sua falta dereação em si era uma reação: Stefanova era a única pessoa neste castelo quesempre mantinha uma expressão óbvia em seu rosto, fosse um sorriso

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estranhamente bondoso ou um olhar severo para guardas de baixo e altoescalão.Indiferença não fazia parte do seu repertório natural, Gambler haviaconvivido com ela neste castelo por tempo o bastante para perceber, noentanto, fazia parte de um segundo repertório dela, um mais seleto, atémesmo sutil: aquela mesma indiferença que ela vestia no rosto agora,Gambler a havia visto antes, pois Stefanova sempre a usava quandomaquinava as verdadeiras sinfonias que eram suas estratégias de xadrez oublefes mais brilhantes no pôquer.O que ela estava pensando? Por que fazer questão de esconder?O próprio Gambler parou de observar aqueles ao seu redor para contemplar ocorpo de Caleb, indiferente às rajadas atrozes e uivos trovejantes que omaltratavam. Gambler esfregava o queixo pensativo com as costas das mãosoleosas: aquilo definitivamente não fazia parte dos seus planos: Caleb deveriamorrer, sim, fora esse o intuito final de seu acordo, mas não agora, Gamblerainda não havia terminado de usá-lo.Bem, uma pena.“Caleb Rosengard.” Começou Gambler, com sua voz pastosa, “o guardião deTuonela, anjo dos mestiços, morto pelo poder de Helena, a Harbinger daMorte.”Alguns segundos se passaram antes do demônio com sorriso amareladoperceber o efeito de sua frase: fuxicos e cochichos permearam a quietudemórbida do quarto, sufocando-a, como uma mentira sufoca a verdade, comoo poder sufoca o oprimido, como o caos sufoca o silêncio: Ainda esta noite, aprimeira semente de Gambler germinaria.“Note como os camaradas conversam.” Ele sussurrou para Dana, “é assimque se constrói e destrói uma reputação: não é o que você faz, mas é quem vêo que você faz que importa.” Gambler disse, com uma piscadela sutil paraDana.“Me diz uma coisa que eu não sei.” Dana o menosprezou com seu tom,palavras e expressão.Interessante, Gambler era mestre de si, o número de situações capazes defazê-lo descontrolar suas emoções era menor que a quantidade de dedos emsua mão, mas quando Danielly não se surpreendeu com seu conhecimento,ela criou nele o desejo de ser superior, e o fato de que ela instigava talsensação em seu ser, contra a sua vontade, significava que aquela mestiçatinha algum poder sobre ele.

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Excitante.Tão excitante que ele quase não ouviu a explosão.Gambler estava tão absorto em seus pensamentos e fantasias com Dana quenão percebeu o que estava acontecendo em Tuonela: em poucas palavras, foia explosão mais espetacular já presenciada por qualquer ser na história.A monstruosidade descontrolada sobre o oceano não fazia só dos ventos uminferno, mas criava ondas colossais que quebravam nas direções maisinusitadas, destruindo tudo em que arrebentavam, as nuvens violetas giravammais rápido que Serpas pelo céu, e com elas, haviam os raios.Gambler já havia visto demônios capazes de controlar raios antes, mas nuncaem sua vida havia visto raios que caíam como ramificações de árvoresinteiras, como se toda a natureza estivesse se vingando e explodindo o mundoao seu redor com eletricidade e ainda mandando ondas de choque brutais obastante para derrubarem as casas por onde passavam, fazendo a própriacatedral de Tuonela tremer.Essas ramificações de eletricidade, com cerca de dez ou quinze raios cada,convergiram e atingiram um único ponto, ao mesmo tempo, e criaram a maisbela devastação explosiva daquele mundo e do próximo, com cores azuiscomo o assombro maravilhado nas almas daqueles que assistiam, violetascomo lírios que cantavam prelúdios de destruição nos olhos dos D’arlit evermelhas como o sangue inocente que regava e adubava o que um dia foiTuonela.Onde estes raios convergiram? Naquele ponto onde Helena haviadesaparecido.Pedaços da montanha, alguns maiores do que quartos inteiros, foramarremessados para a já devastada Tuonela, esmagando dezenas de comérciosvacantes, ruas sem cor, becos inundados, centros de treinamento: todos elesforam apagados, como memórias boas numa mente impregnada com tristeza.Uma cratera chamuscada se abrira na montanha, somente a tempestadeimpedia que houvesse um incêndio: a casa branca na encostada montanhescafoi completamente destroçada e soterrada pelo súbito deslizamento.Desta vez, Dana e Stefanova se juntaram aos guardas quando seus queixoscaíram. Até mesmo Gambler deixou-se impressionar por um breve momento,mas este foi efêmero, pois logo, já vestia seu sorriso malandro, um sorrisocom gosto de vitória.A poeira baixou rápido graças à chuva, agora era apenas uma questão detempo até...

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“OLHEM!” Kusti, o guarda, disse apontando para a imagem de Tuonela.Não demorou para que todos os olhos se voltassem para onde o guardaapontara.Havia um amontoado de pedras, bem no centro da cratera, todas elas semoviam como se respirassem, ou para ser mais exato, porque alguém, oualgo, respirava sob elas.Silêncio mortal amortalhou o quarto enquanto todos os olhos observavam,Stefanova não tinha como esconder preocupação e apreensão em seu rosto,enquanto os guardas e Dana mordiam seus lábios e, sem perceberem,respiravam no mesmo ritmo das pedras.O movimento das pedras seduzia e hipnotizava como a luz faz com asmoscas; os guardas sequer notaram que estavam andando, pelo menos atépararem empoleirados atrás de Gambler, todos eles queriam estar lá quando...Uma cabeça emergiu, uma arfada conjunta ressoou pelo quarto.Aquela não era a Harbinger da Morte.Era algo que Gambler só havia visto uma vez em toda sua existência, graças àLouhi, e teria preferido não repetir a experiência: aqueles seres deveriam ternascido e cavado suas sepulturas em suas lendas.“É um kayzenghast.” Um soldado que Gambler não conhecia anunciou.O murmúrio começou de novo: “Não pode ser”, “estamos mortos”, todos elesconheciam a lenda dos kayzenghasts, e todos eles acreditavam que nemAllenwick D’arlit poderia parar aquelas criaturas.Gambler sorriu ao ouvir isso: era um exagero, Allenwick e alguns outrosdemônios que ele conhecia podiam lidar com kayzenghasts, mas era bom queos guardas acreditassem que nem Allenwick era capaz de vencê-los.“Está levantando.” Gambler apontou.Foi quando, quebrando o trance de todos que assistiam e espalhando todas asrochas que o esmagava, ele se ergueu de uma só vez.Ou melhor: ela.A Harbinger da Morte emergiu, bufando pesadamente enquanto sua própriatempestade lavava a poeira e o sangue que talavam seu semblante, corpo ealma. Seu corpo não estava tão diferente do de Caleb quando este caiu: asveias saltavam, não só em seu braço, mas no pescoço, testa, costas.E ela tinha a cabeça de um kayzenghast na mão direita.Os lábios dos guardas tremeram quando viram o sangue negro pingando dopescoço decepado do kayzenghast, Stefanova sorria como uma mãeorgulhosa da filha, Dana estava ilegível, e Gambler, Gambler estava

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satisfeito.“Ela perdeu a mão.” Kusti apontou.Na velocidade de um raio, toda a felicidade e orgulho de Stefanova setornaram horror.“Não.” Ela não percebeu que a palavra escapara seus lábios.Dana continuava ilegível, os guardas cochichavam entre si, Gambler tentavacalcular quão mal era aquilo: Helena estava de fato lutando no mundo dassombras, contra kayzenghasts aparentemente, os guardas estavam dizendo hápouco que nem Allenwick poderia pará-los, então se Helena havia derrotado,pelo menos um, ao preço de uma mão, quanto isso pesaria na sua reputação?Será que agora eles a julgariam como incapaz de lutar, uma aleijada? Oucomo uma lenda por ter derrotado um kayzenghast no mundo das sombras?Gambler era, bem, um apostador, e gostava de brincar com as chances, o quenão gostava era não ter controle sobre as variáveis, e as opiniões dos D’arlitsobre um demônio “incompleto” iam além do seu controle, mas– Um risointerrompeu seus pensamentos: um olhar para a imagem de Tuonela e elepôde ver com a clareza: Helena estava rindo, a mesma risada que Gamblertantas vezes vira em pessoas que simplesmente perderam a sanidade,entregando-se à loucura; era só isso que poderia explicar a alegria no rosto daHarbinger da Morte ao contemplar o toco de seu braço onde deveria haveruma mão.Ainda assim, seu corpo se cobriu de arrepios antigos como o tempo.A cabeça do kayzenghast bateu contra sua coxa quando Helena levantou seubraço esquerdo para as alturas, ignorando a dor que de certo sentia, seu risoem algum momento transformou-se em berros histéricos, e todos podiamachar que ela simplesmente havia enlouquecido.Todos exceto Gambler e Stefanova, que ainda estavam concentrados nobrilho intenso e violeta nos olhos da princesa D’arlit, aqueles olhos eramaltivos demais para pertencerem a alguém rendida à loucura da alma a sefazer presente na carne.Um raio atingiu o braço de Helena enquanto ela gritava.Não era um raio comum, ele não se extinguiu rápido, mas durou por quaseum minuto inteiro percorrendo o corpo todo da Harbinger da Morte, quegritava alucinada com o choque intensificado pela água que lavava seu corpo:mesmo seus cabelos molhados começaram a apontar para cima enquanto asondas de choque emanavam diretamente do seu braço.Quando finalmente acabou, Helena caiu de joelhos, muda, ocasionalmente

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tendo espasmos.Choque, desta vez o choque estava visível no rosto de todos, inclusive no deDanielly e no do próprio Gambler.“O que foi isso?” Dana foi a primeira a perguntar.Gambler não precisou se preocupar em responder, pois no instante em queHelena recompôs-se e colocou-se em pé, seus olhos e sorriso refletiam umadas maiores demonstrações de poder que este mundo e o próximo já haviamvisto: no topo do braço esquerdo de Helena, a ferida deixada pela perda desua mão fora cicatrizada, e algo muito melhor tomara o lugar do membrofantasma.A Harbinger da Morte agora tinha uma mão feita de energia pura.A mão faiscava quando água caía nela, pois era energia viva, se movendoconstantemente, como milhões de pequenos raios, explodindo e sumindo paraformar e manter constante a existência da nova mão de Helena.Ela acariciou o próprio rosto com a nova mão, sorrindo em delírio aoperceber que podia se tocar e sentir os choques em sua pele enquanto o fazia.O sorriso dela refletiu-se em Gambler: sua reputação estava feita, HelenaD’arlit oficialmente seria o demônio mais respeitado entre os D’arlit depoisdaquela noite.“Ela é a imortal!” Gambler ouviu um dos guardas murmurando.“Eu quero ser ela.” Dana O’Hara anunciou para si mesma, e sim, desta vez,ela estava verdadeiramente impressionada, com o amarelo de seus olhosbrilhando como o sol refletido no mar, Gambler ficou satisfeito ao saber quesua nova garota ainda era impressionável, e melhor, ainda podia ter ídolos,alguém por quem ela faria qualquer coisa, ótimo! Haviam dois planos paraela tomando forma em sua cabeça: um útil, e outro agradável, agradável paraele pelo menos.Com um sinal para o alto, Helena chamou sua Serpa, que em uma questão desegundos, descendeu dos céus e pôs-se ao lado da princesa, como umacriatura verdadeiramente subordinada a ela.Uma vez sobre o dorso da criatura, o espectro fez uma reverência, a qual aprincesa ignorou, proferindo tão somente uma palavra: “Caleb.”Sem demora, a Serpa levantou voou e os levou para a costa da praia.Ignorando por completo o furacão desgovernado, Helena colocou os pésfirmes e desnudos na praia, ela havia perdido seus calçados em algum lugarno mundo das sombras ao que tudo indicava.Ela se aproximou de Caleb, tocou seu pescoço com a mão direita, estava

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óbvio que ele não tinha pulso, mas ela deixou sua mão ali mais algunssegundos, o bastante para relembrar um passado esquecido, pintando seuslábios na aquarela da nostalgia.Helena colocou sua mão de raios sobre o coração de Caleb: houve umpequeno choque, o corpo de Caleb saltou, Helena checou seu pulso umasegunda vez, mas não havia nada senão o mais vazio dos silêncios ali.“Espectro.” Ela chamou alto o bastante para se fazer ouvir na tempestade.O espectro desmontou da Serpa e, mais como uma criança assustada do quecomo um ser de trevas, ele se apresentou para Helena, com uma reverência, eum ar sóbrio de resignação.“Gambler, você pode me ouvir.” Era uma pergunta, mas Helena não a fezsoar assim.O espectro balançou a cabeça: sim, ele podia.A Harbinger se virou diretamente para o espectro para dizer: “Você vai trazê-lo de volta.”Gambler ouviu aquilo e ponderou: ele poderia fazer um acordo com Helena,torná-la sua serva assim como fez com Caleb, indiretamente, mas não serianecessário, Helena já estava sob seu poder, e quanto a trazer Caleb de volta,uma parte dele queria dizer não, mas– “Diga que sim, espectro.” Eleanunciou com um sorriso, “os D’arlit terão a Harbinger da Morte e ummestiço de anjo lutando juntos contra qualquer ser que se opor.” Ele dissemais para os guardas que para o espectro, tentando não rir ao perceber queambos se qualificariam como um casal de mortos vivos agora.O espectro fez que sim com a cabeça novamente.Sem cerimônia, ela pegou o corpo sem vida de Caleb, como se não houvessepeso nele, soltando-o sobre a Serpa, em seguida, Helena sofreu em seupróprio corpo um pequeno espasmo, como se tivesse levado outro choque,mas ninguém fez comentários.Uma vez que Helena, o espectro, Caleb e a cabeça do kayzenghast estavamsobre a Serpa, a Harbinger da Morte ergueu sua mão de raios para o furacãodesgovernado: aos poucos, a monstruosidade de ventos recobrou seu curso,recobrou sua forma maciça, cercado por raios e folia.Golias vinha furioso na direção de Tuonela.Não haveria amanhã para a cidade.A Serpa já estava no ar quando uma voz chamou: “HEY!”Danielly franziu o cenho imediatamente.“Eu conheço essa voz.”

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No próximo segundo, a menina de cabelo castanho avermelhado pulou entreHelena e o corpo de Caleb.“ALLY!” Dana gritou furiosa, seguida por vários palavrões que...surpreendentemente chegaram ao conhecimento de uma garota criada porfreiras, Gambler pelo visto tinha muito que aprender sobre os outros mundos.“Oi boboca, que que é isso aqui?” Ally disse apontando para Caleb.Sem que ninguém esperasse, a Harbinger deu um tapa na cara de Ally, forte obastante para ecoar e deixar uma marca vermelha com o formato magníficoda mão de Helena naquele rosto infernal.“Eu amo essa mulher.” Dana disse sorrindo vingativa, enquanto todos quesabiam quem era Ally se encolhiam apavorados com o que Helena haviaacabado de fazer, Gambler incluso.Ally virou a cabeça lentamente para Helena, foi a primeira vez que Stefanovae Gambler viram Ally, a princesa do Caos, fechar a cara e demonstrarqualquer sinal de raiva e fúria nos olhos avermelhados.“Você está louca?” A voz de Ally saiu tão baixa, lenta, seca, furiosa e séria,que Gambler, que já havia experimentado todos os prazeres e horrores destemundo e do próximo, sentiu sua pele arrepiar com a fúria em seu timbre,“você sabe o que eu posso fazer com você?”“Tente.” Helena disse, abaixando a testa, esperando Ally beijá-la.Sem demora, Ally o fez.“Não!” Stefanova suplicou, abafando a boca nas rugas de suas mãos.“O que é isso?” Dana perguntou à contragosto.“O beijo de Alexandrita: Não há relatos de pessoas que sobreviveram a ele.”Gambler disse em voz alta, ciente de que seria bom assegurar-se que todos osguardas sabiam o que estavam vendo, e também omitindo a toda-verdade,que seria: “não há relatos de sobreviveram a ele sem ajuda.”Todos prenderam a respiração, esperando pelo pior, por gritos e por Helenase contorcendo em agonia, com todo o horror que Ally iria usar para devorarsua alma.“Por que a demora, Ally?” Helena perguntou com vitória se esparramandoem suas palavras.Ally se afastou imediatamente dela, olhando-a debaixo para cima como sefosse uma criatura que ela era incapaz de compreender: no quarto daHarbinger, todas as bocas, tirando a de Dana, haviam caído.“O que você fez?!” Arfando, Ally perguntou enquanto acariciava o lugar noseu rosto onde Helena a havia estapeado.

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Helena apenas sorriu, tocou de leve a cabeça do kayzenghast e, com umgesto, sua Serpa lançou-se aos céus.Transmissão encerrada.Gambler olhou ao redor: havia conseguido a reação que esperava de cada umdeles, aqueles guardas e Stefanova iriam fazer de Helena uma verdadeiralenda entre os D’arlit, uma ainda maior que Selena jamais havia sido.Gambler não podia estar mais satisfeito.Ele se virou para os guardas, e com seu jeito largado, disse: “Dispensados,camaradas.” Quando eles saíram, Gambler se virou para Stefanova e disse,“minha cara, você tem acesso à Allenwick, certo?”Stefanova fez que sim, ainda com um sorriso confuso em seu rosto.“Diga a ele que os D’arlit estão prontos para Alaia e a armada dos anjos.”Stefanova foi imediatamente desperta de sua felicidade.“Você sabe sobre Alaia?” Ela perguntou com preocupação estampada norosto.“Sei, eu sei sobre Alaia e sobre como ela está liderando os anjos, e melhorque isso, sei onde ela está.” Gambler disse, sabendo que nada disso era o queStefanova realmente queria saber com aquela pergunta, “também sei o nomeverdadeiro da inigualável Alaia Capricornius, e bem, você também sabe, masnão se preocupe minha cara, eu não vou dar com a língua nos dentes.”Stefanova ficou quieta um momento, enquanto o silêncio se alastrava noquarto como uma visita sem convite, até que, por fim, Stefa retirou-se,deixando Gambler e Dana sozinhos.“O que acabou de acontecer?” Dana perguntou, e Gambler percebeu pelaterceira vez o quanto ela odiava ter que fazer uma pergunta que demonstravasua falta de conhecimento, mas a curiosidade de qualquer pessoa venceria oorgulho numa situação como esta.“Em resumo, minha cara, nós somos os demônios, e eu acabei de declarar aterceira guerra contra os anjos.”

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Capítulo 49

“Kris, não tem mais jeito.” Kahsmin anunciou com lábios trêmulos e falhasna voz.Aquele poderia ser um ótimo dia.O cheiro da chuva e madeira molhada ainda pairava através do ar, seperdendo entre cabelos outrora lisos e narinas que não podiam apreciá-lo: oaroma parecia ter sua própria vida, era ele uma avó sorridente e singela, massábia em sua simplicidade grisalha. Como uma canção ainda por cantar, aliela se aconchegou, quase invisível, tricotando paz com o que sobrara dachuva, acalmando os que já não tinham calma, inspirando os que já sentiamdemais, reprimindo os que já não tinham esperança e consolando os queperderam o imperdível.“CALA A BOCA!” Kristell berrou em prantos, “PALOMA FAZ ALGUMACOISA!” Ela esgoelou ao puxar a garota e colocar as mãos dela sobre ocorpo jazido no chão, sem perceber que a própria Paloma chorava entre umsoluço e outro.De fato, aquele era um dia perfeito.O céu era um desenho de carvão sem acabamento, carregado de excessosmendigando sua retirada, para que então o capricho dos traços pudesse serapreciado, capricho como o da marola na crista das ondas, o da sutileza dosanéis formados em cabelos cacheados, o da fragilidade de uma pena pairandoatravés da brisa ou o do desejo fervente em lábios nunca antes beijados, nadadisso podia ser apreciado sob um traço tão rude e sujo quanto o que borravaaquele céu.Mas isso não quer dizer que não havia beleza, tudo fazia parte de um diaperfeito.Perfeito em seu padecimento.“Ele salvou minha vida.” Victoria Vihreä murmurou com seus olhos verdesarregalados na direção de Kristell e Paloma, embora não estivesse realmentevendo.Aquele poderia ser um dia como outro qualquer.As pessoas poderiam estar caídas e espalhadas pelas ruas da cidade poispassaram a noite bebendo e celebrando o aniversário de Tuonela, ou porqueprecisavam de descanso depois de tanto dançar, beijar, e outras coisas mais

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cansativas, mas igualmente eficazes para colocar um sorriso nos rostosdaqueles que já dormem.Só que sorriso nenhum havia ali.“Kristell–” Paloma começou.“ESSE CRETINO NÃO VAI MORRER AGORA!”Kristell berrou mais alguma coisa sem sentido, tentando desesperadaressuscitá-lo enquanto forçava Paloma a usar seu poder de cura nele.O cheiro de madeira molhada poderia ser apenas por causa do casco de novosnavios atracando no cais solitário de Tuonela, e hoje a maior preocupação nocoração daqueles que acordaram poderiam ser coisas simples como “quem éesse cara do meu lado” ou “acho que perdi o anel do meu pai ontem”.“Kris–” Victoria começou, colocando a mão no ombro dela.“NÃO! NÃO SE ATREVA A DIZER ISSO!” Ela rugiu, se desvencilhandobruscamente da mão de Victoria.A água em toda parte poderia ser graças à uma chuva torrencial que veiodepois de uma seca teimosa que insistiu ficar tempo demais onde nunca forachamada, os buracos e pedaços de casas espalhados pelas ruas poderiam sergraças às várias reformas que Kahsmin propusera, para fazer a cidade voltar aser o que era, como um presente de aniversário para Tuonela, um pouco devida à sua superfície abandonada.Aquele poderia ser um dia álacre.Em vez disso, era um dia enluto.“Kristell, Fawkes está morto.” Victoria disse baixo, lenta e com dor, dor queWendy não acreditava poder existir nela; em sua própria maneira, Victoriaera a tristeza, não havia choro, tampouco negação em sua voz, mas paraWendy, era fácil ver: a tristeza se escondia no peso das palavras, na falta devontade em seus gestos, no esforço feito para completar as frases e no vaziopreenchendo o verde de seu olhar sem brilho.Wendy compartilhava daquele mesmo fosco olhar esverdeado.Ela não pensou que fosse dormir na noite anterior, mas assim que entrou nacidade subterrânea e se transformou novamente em humana, desabou numagloriosa noite sem sonhos, nem mesmo Ally a visitou.Só acordou na manhã seguinte: os primeiros segundos que passou despertaforam os mais doces que tivera em uma eternidade, pois ela acordara semlembrar: foi tomada por uma amnésia que a permitiu sorrir, uma ignorânciaabençoada que a deixou vagar por sua imaginação silvestre, sentindo umarara e sonhadora paz embotada, aquela que toma conta de nós quando

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estamos perdidos em nós mesmos.Wendy explorou minúsculos trechos da imensa criação que ela era,demorando-se um pouco em cada um deles, sendo levada com o fluxo de suacriatividade, até encontrar memórias com gosto de biscoitos dinamarqueses echeiro de manteiga derretida com açúcar, era como amor soava para ela:quente, derretido, doce, terno, distante e familiar.Mas amor a lembrava de Caleb, e com ele, o dia de ontem desabou sobre seusombros, esmagando sua paz e entorpecendo seus sentidos.Não sorriria de novo naquele dia.Vagamente, se lembrou de ter lutado contra Caleb, mas a luta era apenas umborrão de raiva em sua memória, um borrão que tentava desesperadoacobertar a maior dor que havia em seu peito.Irmã Sarah estava morta.Wendy se sentou na cama e abraçou os joelhos, enterrando sua cabeça neles.Engraçado como fosse, lembrou-se da última vez em que o fez: foi há maisou menos um ano, na noite em que descobriu que Christina havia ido embora,houve uma mesa farta de melancolia com pão amanteigado, e para asobremesa, abandono recheado com geleia de morango.Wendy nunca mais comeu geleia de morango depois daquele dia.Kristell não estava na cama, mas estivera havia pouco tempo: os vestidos queambas usaram na noite anterior estavam jogados em um canto do chão,ensopados de sangue diluído em água.Antes fosse vinho.Ela tentou falar e percebeu que sua garganta ardia.Incrível: de todas as coisas que podiam ter acontecido, perder uma perna, umbraço, a vida, ou coisa pior, tudo que tinha de lembrança da noite passada erauma dor de garganta idiota, a ironia da vida desconhece limites.Só alguns minutos depois Wendy cogitou a possibilidade de Paloma tê-lacurado enquanto dormia.“Wendy, você tá chorando.” Wendy fingiu ouvir Wanda dizer.A boneca estava ao seu lado na cama, Kris devia tê-la deixado ali.“Ela morreu, Wanda.” Wendy murmurou, saboreando uma lágrima, “ela eratoda a minha vida, minha infância, meu porto seguro pra onde eu semprepoderia correr, ela me ensinou praticamente tudo que eu sei: me ensinou a ler,abrir fechaduras, código Morse.”“Eu lembro que ela gostava de fingir que nós duas éramos espiãs às vezes,nós passávamos horas mandando mensagens em Morse uma pra outra antes

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de dormir, batendo em código no chão que separava meu quarto do dela.”“Eu sei, você não deixava eu e a Christina dormir com aquilo.” Wandamurmurou séria.“Ela me ensinou a enfrentar meus medos.” Wendy continuou, ignorandoWanda, “me defendeu quando ninguém mais queria ficar perto de mim. Elame dava livros de presente mesmo isso sendo contra as regras, só porquesabia o quanto eu amava ler. Ela me ensinou a ter compaixão com as pessoas,e que ninguém é mau sem um motivo, nem Danielly O’Hara, Agnes, a Ruthou mesmo a irmã Romena.A irmã Sarah me fez ver o que elas viveram e entender o quanto era difícilpra elas encarar a vida sem ódio ou rancor. Ela me ensinou paciência comquem não a merece, ela me ensinou o que é amar com exemplo, ela me amoumais do que ninguém nesse mundo e no próximo já amou... ela era mais queuma mãe pra mim.Ela era um anjo na minha vida, agora ela é só história interrompida.”Wendy desabou em lágrimas de novo, sentindo uma coceira violenta nascostas e um estrangulo na garganta: era a morte que estava logo ali,consolando-a com dor e deixando-a saber que, se assim desejasse, Wendypoderia deixar esse lugar sem demora: haveria mais sofrimento do que elajamais sentira, mas quando acabasse, não restaria nada a sentir.Ela estaria livre.A parte mais dolorosa foi que Wendy cogitou aceitar o convite, cogitouentregar-se, deixar-se engasgar em suas lágrimas e não lutar mais por suavida. Foi a primeira vez que sentiu o que era viver contra sua vontade: erafarejar o ar, carente do desejo de respirar fundo, era sentir a presença daausência de todo o amor que um dia a havia cercado, era ser deixada sempassado para o qual voltar ou futuro para perseguir, era estar perdida em umlugar familiar e, acima de tudo, era o frio da neve sem o conforto do orfanato.Mesmo tendo sido uma durante toda a sua vida, foi somente neste momentoem que Wendy soube, verdadeiramente, o que significa ser órfã.“É tudo culpa dele.” Wendy murmurou, finalmente conseguindo tomar umgole d’ar.“Você não tem como saber isso.” Wanda respondeu.“Ele tinha a espada dos D’arlit o tempo todo.” Wendy soluçou de volta, “ELEMATOU ELA, WANDA! Ele sempre ia matar ela, ele sempre ia ajudar osD’arlit, ele MATOU tudo que era importante na minha vida.” Ela voltou achorar alto, cobrindo o rosto com os joelhos.

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“Você não sabe o que aconteceu naquela noite.”“CALEB ENFIOU UMA ESPADA NA IRMÃ SARAH!” Ela urrou, searrependendo logo em seguida graças à dor na garganta, “Caleb é um D’arlit,sempre foi um D’arlit e eu fui uma imbecil por confiar nele!” Ela sussurrouenfurecida, segurando com suas garras a boneca de olhos verdes à um palmode distância do seu rosto, encarando seus botões esmeralda.“Você passou a maior parte da noite anterior pensando que estava sonhando,a última memória concreta que você tem é ler uma página de um diário sobreuma garota e o desejo dela, você não sabe o que aconteceu de verdade.”Wanda respondeu autoritária.“A irmã Sarah está morta e você tá defendendo ELE?!”“Você não viu ele matando ela, e você conhecia Caleb, sabia mais dele doque qualquer um aqui, tirando o Kahsmin e o Winslow. Como você podeachar que ele realmente fez isso?”“Eu sei que ele não mexeu um músculo pra impedir os D’arlit! Por que vocêacha que ele ficou tanto tempo no orfanato sem me avisar? Por que ele nãotrouxe uma mestiça? E por que ao invés de lutar com os D’arlit ele lutouCOMIGO?!”“Ele não lutou com você.”“EU LEMBRO DE LUTAR COM ELE!” Sua garganta a odiava agora.“Se ele tivesse lutado, você estaria morta, mas você não tem um arranhãodele.” Wanda disse com ar superior, e Wendy quase pôde ver desapontado noolhar vidrado da boneca, “a irmã Sarah nunca ia acusar alguém desse jeito,não sem saber a verdade antes.”“A irmã Sarah está MORTA!”“E você diz ter aprendido compaixão com ela.”“Eu não–”“Wendy, tá falando com quem?” Perguntou um rapaz parado na porta.Wendy imediatamente cobriu o corpo com o lençol, e só depois percebeu quenão precisava, pois estava vestida. Kristell devia tê-la vestido durante a noite.Ela baixou o lençol, era Hulligan, o Allenwick D’arlit na peça que Kristell eEdgar organizaram para os D’arlit.Quando olhou para baixo, viu que Wanda estava sobre seu lençol, sem vida,como sempre esteve. Um rubor passou pelo seu rosto: ele deveria estarpensando que ela era louca, e logo mais as piadas sobre ela ser doente mentaliam começar a se espalhar, assim como fizeram no orfanato.E só hoje, ela não poderia se importar menos.

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“Com a minha boneca.” Ela respondeu, erguendo Wanda, “Cadê a Kristell?”“É por isso que eu vim.”Wendy vestiu um agasalho preto e cobriu-se com o capuz, por onde seuscabelos fugiam e tentavam formar uma franja na sua testa, quase tapando umde seus olhos. Não se importou em vestir qualquer coisa em seus pés.Por todo o trajeto até a superfície, Wendy não notou no homem que a guiavapor mais que dois segundos, apenas seguiu seus passos no piloto automático.Estava ocupada tentando convencer-se de que Kristell estava bem.Aliás, Wendy sabia que Kristell estava bem, as roupas dela estavam láembaixo, ninguém sofre um ataque mortal, vai pro quarto, se troca, e depoisvolta para onde foi atacada e morre, certo?Certo?... certo?......Certo.Quando seus pés deixaram o piso gélido da catedral e seus olhos encontrarama luz acinzentada do dia, Wendy procurou instintivamente pelo farol deCaleb, ele deveria erguer-se como a segunda construção mais alta daquelacidade, mas não havia nada onde ele deveria estar.Quando percebeu que estava mais triste do que satisfeita, decidiu manter suacabeça erguida em direção ao céu e seguir seu guia.Por que a cabeça erguida? Porque manter a cabeça e os olhos virados para oalto bloqueia as lágrimas, permitindo assim Wendy engolir seu choro de ódio,tristeza, e vergonha.Ódio de si mesma pela tristeza que sentiu ao ver que o farol onde ela e Calebfizeram algumas de suas memórias favoritas não existia mais, vergonha porperceber que ainda simpatizava com o homem que destruíra sua vida, e a detantos outros.Nem aquela desculpa repulsiva de fonte de cálcio que chamam de leite podiaser mais amargo que a vergonha confusa cobrindo sua língua.Mas havia algo que podia.“PALOMA FAZ ALGUMA COISA!” Foi a primeira frase de Kristell queWendy ouviu.Seu coração afundou no peito quando correu na direção do pequenoamontoado ao redor de Kristell.“Não... Fawkes não.” Wendy murmurou balançando a cabeça em negação,sentindo seus olhos arderem mais uma vez enquanto sua boca se contorcia.

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O desespero no rosto de Kristell era irretratável através da arte: não haviamcores e palavras que pudessem interpretar a negação no emaranhado de teiasestridentes que eram sua voz, não haviam acordes ou timbres sofridos osuficiente para transmitir o horror naqueles olhos avelã avermelhados, o fileteescarlate de sangue em sua boca, ou o roçar da esperança que tentavadesesperada se livrar da coleira invisível com a qual Kris a mantinhaprisioneira com tenacidade ferrenha.Kahsmin estava lá, era ele um criminoso arrependido de seus atos, sua bocaestava invisível sob a barba castanha, mas Wendy tinha certeza de que, sepudesse vê-la, estaria alva como a paz nos corações dos que não iriamacordar: sob todo aquele cabelo e voz de beberrão estridente, Kahsmin nãosabia se dava as boas vindas para Wendy ou lutava contra a culpa que sentiapela morte, não só de Fawkes, mas de todos os que se banhavam sob sereno elágrimas dos restos mortais da cidade de Tuonela.Edgar e Allan estavam lá, Edgar, com sua cara chupada ainda maisdesagradável aos olhos, era uma incógnita fazendo idas e vindas entremelancolia, confusão e folia, sem saber o que sentir ao ver sua namoradaKristell tão desesperada sobre o corpo do ex, e ao mesmo tempo, inspiradocom o todo da cena.Ou pelo menos foi o que Wendy supôs.Wendy e o resto de Tuonela.Allan tinha os olhos cobertos por seus cabelos ensopados enquanto seuslábios trêmulos beijavam o ombro de Victoria.Wendy não precisava ouvi-lo para saber o que dizia: obrigado, obrigado,obrigado.Então beijava Victoria no pescoço, e repetia a cena: seria romântico, nãofosse o total desinteresse de Victoria, cuja única frase engatilhada em seuslábios era: “Ele salvou a minha vida.”E por fim, havia ele.Deitado com o rosto em direção ao infinito, Fawkes jazia estatelado sobrepedras e terra dura, Wendy sentiu um trecho de sua alma padecer ao percebera crueza da verdade à sua frente: o nome Fawkes não mais pertencia à umapessoa, mas à uma memória.“O que aconteceu?” Wendy perguntou, cobrindo a boca com a mão.“Eu estava em uma Serpa,” Victoria começou sem tirar os olhos dele, sua vozperdida e embotada, como se tivesse que transpassar um oceano antes deatingir os ouvidos de Wendy, “algo me derrubou. Eu estava caindo. Eu ia

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morrer, eu sabia que eu ia morrer, eu senti o roçar da morte e ouvi a voz daminha condenação.Então ele pulou.Ele pulou do alto da montanha, me envolveu nos braços, e protegeu meucorpo com o dele enquanto caímos.Enquanto caíamos,” Victoria continuou, alto o bastante apenas para Wendy eAllan ouvirem enquanto Kris ainda se empoleirava sobre corpo, “ele, eleestava tão calmo, ele falou comigo, sereno como se o fim fosse só mais umapromessa a ser cumprida, e eu lembro tudo que ele disse: Ei, parece queminha grande aventura vai acabar antes de começar, então eu queria te daruns conselhos: não exploda vasos na catedral, e nem tenha vergonha defingir-se de louca pra entrar num hospício, não queira ser a infeliz a avisarKristell que ela perdeu o cabelo, estude mapas... viva, viva a aventura quevocê tem que viver, não faça nada que não grite seu nome com fogo na voz,não hesite em lutar por o que ou quem você ama, perdoe seu pai e saiba quea culpa não é toda dele, não procure pelas chances que você já perdeu, nemdeixe de aceitar as novas que estão por vir, não preencha o vazio que sentecom pessoas, eu errei demais nisso, faça inimigos, eles ensinam muito maisque amigos, mas tenha amigos, por motivos óbvios, sempre diga o que temque dizer antes que seja tarde...”Victoria parou, respirou fundo e virou-se diretamente para Wendy ao recitaras exatas últimas palavras de Fawkes: “... e diz pra Wendy que eu amo ela.”Wendy quis os cachos da Victoria ali e agora: eram perfeitos para esconderos olhos.Ela poderia dizer que havia sangue e memórias espalhadas por todo lado, quesua essência jazia estrebuchada ao seu redor, que a efemeridade de tudo queuma vez julgara eterno tornara-se palpável como dentes-de-leão e desfez-secomo cinzas ao suave toque de uma brisa soprada pelo inverno.Mas estas palavras sequer começavam a descrever tudo que sentia.Então, em sua simplicidade.Wendy chorou.Já não era uma pessoa, mas sim um amontoado vivo de cicatrizes recolhidase derrotas numeradas, um fiapo de alma rota, descosturada e gasta como umavela ao final da noite.Ela caiu em seus joelhos.“Ele tentou me dizer isso ontem.” Wendy disse, sentindo sua vozembasbacar-se com o tumulto de tudo que ela não sabia sequer como

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começar a sentir, “ele estava me amando, me ajudando, me aguentandoquando nem eu me mesmo me aguentava.”Naquele instante, Wendy era a encarnação da palavra “miserável”.“Morrer.” Ela murmurou sem mais se importar em esconder o rosto, “euquero morrer, por favor me ajuda, me deixa ser engolida pelos sonhos danoite, me deixa morrer pra eu não ter que sentir isso, deixa eu morrer porfavor eu não aguento,” Wendy não sabia com quem estava falando, mas suamão estava agarrada com força em seu peito, banhado em algiaincandescente, “eu não consigo aguentar perder tanto, por que eu não morrina noite passada?”Foi quando ela percebeu: ela havia morrido.Wendy estava morta sem as pessoas que amava, assim como Kristell sem seusorriso de líder de torcida ou Kahsmin, que neste instante poderia ser descritocomo muitas coisas, mas não como “o álacre”.Quanto ao Fawkes? Foi o mais sortudo, só havia perdido a vida.Ele estava livre de toda a dor que estava por vir para os outros.Wendy invejou sua paz entre uma lágrima e outra.Foi quando atingiu seu mais baixo ponto.E, lá embaixo, do inferno de sua alma, veio uma canção.No primeiro momento, sua voz saiu tão baixo que ninguém percebeu, até oprimeiro agudo vir, uma nota dolorida, afugentando com brandura o negrumedaquele dia malnascido.Kristell ficou imóvel, como que em choque, Wendy pôde ver os arrepios emsuas mãos.“Hol Mich Heim, von Legende Einer Heiligen, não é?” Kristell murmurou.Wendy fez que sim, e continuou a cantar, e quando Kahsmin e Paloma seentreolharam confusos, Kristell explicou: “Eu e Wendy participamos do coraldo Orfanato das Neves, a irmã sempre nos fazia cantar músicas estrangeiras,Hol Mich Heim quer dizer ‘leve-me para casa’, sempre foi a favorita daWendy.”Wendy continuou, como Kris disse, a balada fazia parte de um musical cujonome traduzido era “A Lenda de Uma Santa”, as palavras rabiscavam odesalento de uma mulher que se sentia carente de um lar, alguém que desejoudo fundo do coração poder desaparecer, alguém que enfrentou tanta dor queestava para entregar-se à própria noite e tornar-se um sonho do qual todos osque a conheceram logo poderiam despertar.Quando cantou “ich gehöre nicht hierher” (eu não pertenço à aqui), Kristell

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juntou-se a ela e, em meio àquele cemitério de almas enjeitadas e esperançascarentes, Wendy sentiu-se acolhida.Quando Wendy e Kristell cantaram o refrão “Hol Mich Heim” pela primeiravez, Victoria entrou fazendo uma terceira voz, que cantava as agonias de nãoser ouvida nem entendida, e perguntava-se como poderia uma criança de ruavoltar para casa.Arrepios doces como alegria encheram a voz de Wendy para a segunda parteda música, onde a fugitiva corria para a floresta e, através da névoa de suaslembranças, ouvia a voz de um estrangeiro familiar, alguém que a fugitivachamava de pai.Wendy e Kristell cantaram com todo o coração a voz da fugitiva, queperguntava ao pai onde ele esteve todos esses anos, e se em algum momentoele sentira sua falta, Victoria não cantou a letra, mas sua voz serviu como umacompanhamento surpreendentemente belo durante o todo da canção, atéchegar ao refrão novamente, onde voltou a entonar palavras.Quando a música se aproximou do fim, Kristell e Victoria a abandonaram edeixaram apenas Wendy cantando sua súplica, palavras que pediam por umcaminho na escuridão deste mundo, uma mão para impedi-la de cair e,finalmente, uma viagem para casa.Estava acabado, não houveram aplausos, mas o ar estava leve em seuspulmões, era o que importava.Wendy caminhou até onde Kristell, Paloma e Fawkes estavam, ajoelhou-separa ficar na mesma altura que a amiga, penetrou os olhos avermelhados delacom o verde vivo dos seus, virou rapidamente para encarar o corpo deFawkes e, quando mais uma vez fitou Kristell, disse: “Está acabado, deixe-oir.”Quando estas palavras foram ditas, Wendy viu a coleira que prendia aesperança de Kristell desfazer-se em mil fragmentos de luz e, uma vez livre, aprópria esperança deixou de debater-se como um peixe fora d’água, o que fezfoi virar-se para Wendy com modos de um cavalheiro, uma reverenciadesprovida de exagero e, em silêncio, pôs-se a caminhar sem pressa para oúnico lugar onde de fato pertencia.Kristell abraçou Wendy, um daqueles abraços matadores que não a deixavamrespirar e a fazia acreditar que ia morrer com todos os ossos do corpoquebrados como gravetos secos no outono, mas preferiu não dizer nada:Kristell estava terminando de chorar tudo que tinha que ser chorado, outalvez só começando.

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Um pensamento que veio à sua mente enquanto acariciava os cabelos deKristell: Ela conversava com bonecas, não era uma boa guerreira, nãoconseguia conversar sem parecer uma criança de dez anos na maior parte dotempo, nem beber leite sem querer morrer, ou ficar mais que dezoito horassem pensar em pizza, mas Kristell não precisava que Wendy fosse nada dissoagora.Kristell só precisava de um ombro amigo.E isso, isso ela podia ser.Foi com prazer que Wendy percebeu que estava errada no começo da manhã,pois, naquele instante, estava sorrindo.“Vagalumes.” Edgar apontou.Wendy olhou distraidamente para cima: centenas, talvez milhares devagalumes voavam ao redor deles e daquele lugar, vez por outra entrando emsuas roupas e cabelos, a manhã estava tão escura que eles chegavam a parecercentenas de estrelas cadentes ululantes, todas ansiosas para ouvir seusdesejos.“Parece que eu trouxe a luz.” Wendy murmurou.“Não ainda não, meu anjo.” Não foi Wanda quem disse, mas uma outra vozque ecoou pela sua cabeça.A voz da irmã Sarah.Mordendo os lábios, Wendy perguntou em sua mente “o que eu esqueci?”.Mas a resposta era óbvia: Fawkes.Quando Kristell finalmente a soltou, Wendy soube exatamente o que fazer:respirar.Depois era a parte que ela só tinha uma vaga ideia do que fazer.Se abaixando ainda mais, Wendy colocou uma mão sobre a testa fria deFawkes, respirou fundo, deixou palavras gotejarem de sua boca: “Vocêentrou na minha vida como um babaca exibido carente de atenção. Só depoiseu descobri que você era bem pior que isso, você também era um mentiroso,arrogante e ciumento cujo passatempo preferido era iludir garotas que vocêusava pra evitar a solidão.”“Ah, Wendy?” Kahsmin começou hesitante, “não é assim que se faz umdiscurso pra um falecido.”Mas ela continuou como se não tivesse ouvido.“Você tentou se aproveitar da minha falta de memória para tentar meimpressionar e se fazer de herói, você ficou bravo comigo quando eu resolvique iria ficar com Caleb, e não pense por um segundo que eu não sei que

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você estava nos espiando quando eu e ele demos nosso primeiro beijo.E mais que isso, não pense que isso me impediu de ver quem você de fatoera.”Wendy fez uma pequena pausa quando reparou que boa parte dos vagalumesagora se encaixava como peças luminosas de um quebra cabeça sobre o corpoinerte de Fawkes, fazendo-o brilhar, mas não como o fogo que um dia oincendiara.“Eu não me esqueci que você me deu minha primeira aventura em Tuonela.”Wendy continuou, “não esqueci de quando usaram cobras para amarraremnossas mãos e nem de como você as queimou e lutou contra o cara de limão,você lutou bem, ele lutou bem melhor,” Wendy parou para respirar, suasmãos e lábios tremiam, “eu passei noites inteiras sonhando com o dia em quevocê teria uma revanche contra ele, eu acreditava mesmo que um dia eu iaassistir você derrotando aquele cara.”Wendy suspirou, ao ver que praticamente todos os vagalumes estavamsentados sobre o corpo, soube que seus últimos parágrafos estavam por vir.“Fawkes, você estava disposto a lutar por Tuonela sozinho, você queriaencontrar o espião mais que ninguém, e você errou, é verdade, mas quemnunca errou? Quem nunca tomou decisões erradas tentando curar feridas emnossas almas que não sabemos como curar? Quem nunca fez mal para sanar omal que sofreu? E quem, por fim, não merece perdão?” Wendy declamou,sem então saber que estava absolvendo Fawkes das dores que causara,“quando eu olho pra você, eu não consigo ver morte, mas sim coragem,coragem tão grande que nenhuma algema de cobras ou demônio loucopoderia parar, carisma o bastante para me impedir de me afastar de vocêquando todos os meus instintos diziam que era o melhor a ser feito, eu vejoem você algo muito maior que um garoto de cabelo ruivo e espetado feitoalmofada de alfinete.Fawkes, eu vejo você como... não, Fawkes, você É um herói.E mais que um herói, Fawkes, eu vejo um aventureiro em você. Por isso eusei, você pode não estar aqui agora, seu nome pode não mais pertencer avocê, e sim às nossas lembranças, mas onde quer que o todo que formava seuespírito, caráter e tudo que consistia no seu ser esteja, eu tenho certeza, vocêestará começando a sua próxima grande aventura.Vá com a luz.”A nuvem de vagalumes voou do corpo de Fawkes e partiu em direção aoscéus, ordenada como pétalas ao vento, livres como palavras sem papel, soltos

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como melodia sem harmonia. Pouco a pouco, se tornaram estrelas, e entãosua luz foi engolida pelo desenho rude de carvão que ainda formava o céu.“Seus olhos deveriam ser vermelhos.” Wendy suspirou quando soube nãohaver mais vestígio de Fawkes neste mundo, talvez no próximo.

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Epílogo

Úmido gosto de chuva enroscava-se aos lábios secos de Alaia, ou talvez fossealgo mais, não sabia ao certo: o gosto era salgado, mas podia ser só o mar láfora.A noite era o minuto de silêncio, onde mil almas inquietas aquietavam-se porforça de respeito à um dos rituais mais importantes da celebração doaniversário da Harbinger da Luz.O Virar da Página, que era um plágio descarado do Lectuísmo, onde práticasemelhante nascera havia já centenas de anos: em vida, a própria Wendyaderiu a prática quando a descobriu nas Terras de Khaleel, que aliás,deveriam mudar de nome, por motivos.O Virar da Página começava com o grande aquietar das almas perante aEstátua Incompleta da Harbinger da Luz: era o credo do receoso, o mergulhoem água fria que somos forçados a dar quando nos encontramos em nossaprópria quietude.Não era incomum encontrar almas fatigadas de si mesmas, corações derancores flagelados, medos soterrados, já criando raízes das quais colhemosfrutos, dentre tantas outras sem nome coisas que Alaia só poderia começar aimaginar.Havia um lápis, ou carvão, ou ainda um pincel nas mãos daqueles que seviam ajoelhados perante a Harbinger da Luz, todas se movimentando semmuito governo, em tradução literal daquilo que jazia escondido no tormentode suas almas.Havia vagalumes (o que diferenciava um pouco a prática da feita peloslectuístas) aos milhares, sobrevoando a estátua, como um manto de estrelascadentes, uma para cada desejo diferente.Quando todos terminassem, outra das músicas favoritas de Wendy seriaexecutada, uma sem palavras, de Arvo Pärt (compositor de seu mundo),longa e introspectiva o bastante para que todos mergulhassem em si mesmosna busca do reparo de suas almas, e é verdade que alguns chegariam àconclusão de que precisavam dormir mais, outros que deveriam enfrentarseus medos antes que suas raízes estivessem assaz profundas para seremarrancadas, alguns deveriam buscar perdoar, outros, pedir perdão, algunsdeveriam confessar suas vergonhas e haveria até aqueles que se veriam

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necessitados de entrar em batalhas há muito já sem donos.Então, o Virar da Página: os vagalumes desceriam, carregariam aos montescada uma das folhas de papel, pesadas já com a carga traduzida silente pelotormento de almas alheias, e as levariam ao Fogo de Fawkes, que nada maisera senão uma fogueira a circundar a estátua de Wendy.A página de hoje expiraria, uma nova deveria ser escrita, não em papel, masna alma daqueles ali presentes, e assim era o Virar da Página.Um soluço rompeu o silêncio meditativo de Alaia.“Você está bem, meu anjo?” Alaia perguntou para Christina.“Tudo que eu amo MORRE e você pergunta se eu tô bem?!” Christina disse,enrolando-se numa bolinha de juba e fofura soluçante enquanto murmurava:“Não há mais vestígio de Fawkes neste mundo, talvez no próximo.”Definitivamente, o gosto era salgado nos lábios de Alaia.O fechar do livro caiu como o fim de uma era no colo da mestiça de anjo, jácom os olhos cansados de tanto ler, ou pelo menos, era o que diria seperguntassem porque estavam vermelhos.“Isso marca o encerramento já não tão inocente das aventuras Além do LagoViajante, daqui para frente, entraremos na chamada Noite Negra daHarbinger da Luz, mas creio que está um pouco tarde para isso agora.” Alaiadisse, fazendo carinho no livro de memórias de Wendy, desejando emsegredo poder receber o mesmo carinho em troca.Christina calou seu choro, colocou-se em pé, com as costas viradas paraAlaia, que só teve tempo de observar como a prática com cimitarras haviadefinido os ombros da neta antes que estes se tornassem invisíveis, e tudo querestasse para ser visto fosse sua cascata de cabelos cor de chocolate.Christina se virou com seu rosto de banshee e gritou: “VOCÊ NÃO PODEACABAR UMA HISTÓRIA ASSIM!”“Por quê?” Alaia perguntou, tentando não rir da reação exagerada da neta.“PORQUE É TRISTE! EU QUERO ALEGRIA E OS D’ARLIT MORTOS!”Urrou a cabeça flutuante com buracos no lugar de olhos e boca descarnadapara Alaia, emendando um bocejo logo em seguida.“Você está morrendo de sono.”O corpo de Christina voltou a ser visível, um novo bocejo revelou suabocarra cheia de dentes, um espreguiçar jogou os cachos de seu cabelo paratoda parte e, então, a pequena Christina pôs-se a falar: “Não tô não vó, jurojuradinho de tudo que aguento mais.”“Christina, você passou por muito hoje, Lux Veritas drenou você de uma

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forma que eu esperava nunca mais ter que ver na minha vida, seus olhos estãoinchados de cansaço desde o capítulo vinte e nove, e sinceramente, se eucomeçar a ler A Noite Negra da Harbinger da Luz, eu não vou querer pararaté terminarmos tudo.”Christina colocou uma mão em seu queixo, batendo o indicador em suabochecha enquanto seus olhos disparavam para cima, pensativa como o paiao analisar táticas de batalha: Ihab de certo se derreteria de orgulho ao ver afilha usando de sua mesma pose.“Tá, você ganhou, eu tô com sono e fome, e queria matar os dois, nãoexatamente nessa ordem.” Christina admitiu, se aproximando novamente dapoltrona da avó, “mas antes eu queria saber umas coisinhas.” Acrescentouentre sorrisos.“Eu não estou surpresa, pergunte à vontade.”“A nossa aposta ainda tá valendo?”“Sobre as histórias de Kristell? Sim, totalmente.”“Tá, primeiro de tudo, os vagalumes vieram para o corpo de Fawkes porqueWendy era a Harbinger da Luz ou Wendy se tornou a Harbinger da Luzporque os vagalumes–”“Eu me recuso a responder esse tipo de pergunta de novo.” Alaiainterrompeu.Christina gargalhou como toda criança de nove anos deveria fazer, primeiroaos poucos, depois tudo de uma vez. Só quando acabou foi que fez outrapergunta: “Tá bom, então me fala: a mestiça que o Caleb e o Anuk foramprocurar no orfanato e não acharam era a Dana?”“Excelente pergunta, eu não sei a resposta certa.” Confessou Alaia.“Mas, mas você sempre sabe tudo.” Contrapôs Christina.“Eu sei, mas esse é um trecho realmente confuso na minha memória, poisquando Caleb e Anuk estavam no Orfanato das Neves, os D’arlit ainda nãohaviam passado por lá, então Danielly O’Hara ainda deveria estar no orfanatonaquele momento e, se este era o caso, eu só posso crer em uma de duashipóteses: ou alguém (ou alguma coisa) ocultou a presença de Danielly, paraque nem Anuk pudesse senti-la, ou a mestiça que Caleb e Anuk estavamprocurando era uma terceira que ainda não fora mencionada na história.”Alaia confidenciou.“Mas quem?” Christina quis saber, empoleirando na avó.“Isso, meu anjo, é algo que só descobriremos se continuarmos lendo, uma vezque a resposta está provavelmente em um dos vários trechos que eu nunca li.”

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Alaia disse como se achasse graça no todo da história, ou como quem omite averdade.“Tá, por que a Harbinger da Morte se tornou imune ao beijo de Ally? Aliás,logo no começo do livro ela não foi beijada pela Ally e presa na própriacama? Por que ela não teve pesadelos igual a Wendy e o Fawfaw?” Christinaassaltou Alaia com o melhor de suas perguntas.“Sobre o beijo de Alexandrita no começo da história, é acreditado que Allytivesse controle sobre o efeito colateral de seu ataque e, por algum motivo,escolheu não fazer mal a Helena, por isso esta não sofreu com os mesmospesadelos que Wendy, Fawkes, e provavelmente Jane, sofreram.Os planos de Alexandrita nunca foram claros para quem os via de fora, nempara Stefanova, nem para Gambler, nem para o velho sábio, nem paraEzequiel ou mesmo para mim. Alexandrita tinha visão e entendimentoabençoados e amaldiçoados sobre o futuro, ela sabia o que fazia, e sabia quaisatos deveria executar para chegar onde queria, assim foi até o fim.Quanto ao motivo pelo qual o beijo de Alexandrita não funcionou em Helenana segunda instância, bem, meu anjo, eu não vou responder, porque sei quequando retomarmos a narrativa, você vai querer ser capaz de decifrar tudopor conta própria.”“É por causa do kayzenghast, né?” Christina jogou a pergunta no colo deAlaia.“Eu me pergunto porque me faz perguntas se já tem respostas.” Alaia disse,deslizando sorrateira a pergunta de seu colo para dentro do livro, ondepermaneceria sem resposta verdadeira por mais vintenas de capítulos.“Tá, quando Jane tava vasculhando as memórias novas dela, ela viu nas doTupã que tinha mesmo um espião, um que deu informação dos Satya e deTuonela, quem era ele? Ou era ela?”“Essa é minha neta arguta.” Alaia disse com orgulho, esfregando carinhosa oscachos de Christina, deixando-os armados e selvagens, como um leão deveriaser, “tudo que posso dizer é que o dito espião já apareceu na história.”“Mas quem é o espião?! E o que ele realmente contou aos D’arlit? Parece queo espectro e a Ally já fizeram todo o trabalho de espionagem que os D’arlitprecisavam.”“Todo o trabalho de espionagem que a Harbinger da Morte precisava, meuanjo. É bom você lembrar, por maior que pareça o desinteresse de AllenwickD’arlit, ele também mantinha um olho, ou um olheiro, em cada uma de suasCartagas, muito do que fora espionado diretamente para ele não chegou a

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passar pela Harbinger da Morte e, embora Gambler soubesse o que estavaacontecendo, por motivos sinistros, guardou o que sabia para si até julgarcompletamente desnecessário esconder seu conhecimento.”Um novo bocejo de Christina, seguido por um abraço inesperado, que fez ocoração de Alaia acelerar, suas bochechas ferverem, e seu cansaço bater emsuas costas, onde suas asas começavam.“Como foi a Terceira Guerra contra os Anjos?”“Mais rápida que a segunda, mais dolorosa que a primeira.” Foi tudo que a vódisse.“O Fawfaw mudou de nome pros D’arlit não acharem ele?” Christina jogou apergunta cansada, cansada como a própria Alaia estava começando a sesentir, cansada como só alguém que ouve a desesperança da própria almaentre uma palavra e outra pode se sentir.“Não exatamente, meu anjo: como Alexandrita disse, e como Autumn sempresoube, o nome de Fawkes era Haydn Blakewood, o pai dele não havia sidodenunciado por um olheiro dos D’arlit: o pai dele era um olheiro.Ou já estamos nos esquecendo de Ethan Blakewood, do Hospício paraDemônios de Virrat, pai de Haydn Blakewood?”Apesar de todo seu cansaço, Alaia viu os pelos de Christina se eriçarem emarrepios.“Come é?!”“Que parte está deixando caraminholas na sua cabecinha?”“Que tal todas?! Por que um olheiro dos D’arlit ia ter um filho com umahumana? Por que ele mesmo acabou entregando o próprio filho e a mulher?Se ele era um D’arlit e estava em Virrat, por que ele não morreu? Por que amaldição de Virrat não funcionou nele? O que aconteceu com a mãe doFawkes?!” Christina se exaltou em suas perguntas.“Na nossa próxima leitura, meu anjo.” Alaia disse, batendo no livro dememórias com a palma de suas mãos.“Do que adianta eu fazer perguntas se você não vai respondê-las?” Christinaquis saber.“Eu te dou a certeza de que a resposta está por vir, isto é mais que a vida emsi te daria.” Alaia respondeu, sentindo aquela desesperança arqueada em seupeito começar doer mais forte que doera o dia todo.Christina era um anjo em sangue e em sua maneira própria: como Caleb, elanão mostrava qualquer sinal de asas, mas, assim como a segunda filha deEzequiel, a pequena tinha seus dons, além de Lux Veritas e uma curiosidade

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magnífica.Ela tinha tato.“Vó, a senhora ainda tem medo de terminar o livro?” A pequena Christinaperguntou, olhando fundo no verde cansado dos olhos de Alaia.Errantes pensamentos vagaram numa nuvem feita em candências de estrelas edesejos por pedir que estavam ainda a cair, ali, no corpo de Alaia, quepercebeu ainda fria: a dor da desesperança só dói pois não é desesperança,mas sim esperança, esperança no improvável que só faz torturar a alma jáfatigada de tanto esperar.

É o sentir de saudades que a lógica prometia, em seu peito defessoficaria, e ali ficaria até o fim.Saudades que a esperança desatina, dizendo que ali não padeceria, sócansando ainda mais a já exausta Alaia.“Medos foram feitos para serem vencidos, meu anjo.” Alaia ofereceu aresposta embrulhada com papel de orgulho e um laço de egolatria.Christina, todavia, sempre se importou mais com o conteúdo que com oembrulho.“Você sente muita falta dela, né?”“Falta? Christina, o que eu sinto só tem nome na língua do silêncio.”

“Vó, e se a Wendy ainda tivesse viva?”“Nós nos gabaríamos sobre nossa luta contra Louhi, a ladra de rostos,recontaríamos em uníssono o duelo entre o Cisne de Tuonela e a Princesa doCaos, reviveríamos o horror da Fábrica de Sonhos, tomaríamos chá e seriamelhor que o de Kahsmin, então riríamos de alguma piada antiga dele; eulembraria Wendy sobre o que ela fez com a míriade que ousou tirar a vidados filhos do dono da Taverna do Fim dos Tempos, e lembraríamos deTereza, que quando não estava com a trupe ou treinando, estava cuidando deuma das fazendas subterrâneas de Tuonela, com kusarigama sempre empunho, disfarçada como uma simples ferramenta para capinar.Provavelmente teríamos mais histórias que qualquer livro poderia contar, e avida minha teria sido um pouco mais perfeita que ela foi.” Alaia murmurou,tirando as palavras dos armários de seu cansaço, tentando não trombar com asroupas de sua já vanescida vaidade ou os bilhetinhos amarelados que suassaudades trocavam de quando em quando com suas lembranças.“Você disse que Autumn e Ally lutaram?” Christina animou-se com a ideia.Um sorriso honesto, um virar de página.“Eu falei demais, e está na hora de dormir, meu anjo.” Alaia disse,

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percebendo pela primeira vez que, decerto, Wendy já deveria ter ouvido aexata mesma frase ser proferida pelos lábios da irmã Sarah.Alaia levou sua neta para a sala de jantar, passando por vários corredores esuas janelas em arco, todas dando para a estátua da Harbinger da Luz e afumaça da Fogueira de Fawkes, a música de Arvo Pärt ainda tocava (músicaerudita, amigo, tempo médio é vinte minutos para mais) enquanto osvagalumes continuavam movendo-se como uma manta de estrelas cadentespelo céu.“Onde tá meu desenho do Kuzco?” Christina perguntou enquanto estavamchegando à sala de jantar.“O deus lhama? Em cima da mesa de xadrez do meu quarto, você o quer devolta?”“Não, ele é um presente, vó.” Christina respondeu sorridente.Alaia agradeceu, ignorando o fato de que desenhos não eram o forte da neta.Christina comeu como só a própria Wendy comeria, e depois ainda comeumais um pouco, como toda aprendiz de guerreira mestiça hiperativa deveria...ou não, enfim, Alaia comeu peixe de lis com sementes de girassol, um pratoque, de acordo com ela própria, era um fino gosto adquirido, apesar destemundo e o próximo preferirem o julgamento de Wendy: peixe de lis é umaborracha com gosto de mercúrio aditivado em bosta.Quase nada era mais divertido que ver Wendy reclamando de comida,principalmente quando leite estava envolvido.Seria lindo dizer que Alaia e Christina conversaram depois do jantar, mas averdade é que Christina literalmente dormiu sentada na mesa logo depois decomer: por alguns minutos, Alaia ficou ali, apreciando aquela respiração docee sem ronco da sua pequena leãozinha de pele triguenha, até perceber queisso significava que ela é quem teria que levá-la para o quarto.Não que Alaia não tivesse força para fazê-lo, tinha de sobra, o problema eraque Ihab ficou cerca de dois ou três dias perdido naquele limbo antes deconseguir encontrar a saída. Todavia, talvez fosse mais fácil com Christinadormindo, já que ela não deixaria as paredes invisíveis e, com sorte, Alaiacomprovaria sua teoria de que haviam ratos vivendo na sujeira do quarto.Porém, para sua imensa surpresa, o quarto estava arrumado, tão arrumadoque Alaia pensou ter entrado no lugar errado.Duas vezes.Logo, colocou Christina sobre uma cama de casal com cobertores simples etravesseiros duplos, suas cimitarras estavam penduras, cruzadas sobre a

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cabeceira, para reprovação de Alaia, que ia ter uma conversa muito séria comIhab sobre segurança e ideias que só são interessantes na mente de umescritor solitário e carente que está se enterrando no próprio trabalho paraesquecer a tristeza do abandono que sente em seu peito.

Que outro tipo de pessoa ia deixar cimitarras sobre uma cama?!Sua mente não tardou em responder: o colecionador de cabeças,

Raziel, Ezequiel e, provavelmente, Christina, amiga de Wendy, também ofaria se tivesse acesso às armas no orfanato.

Após guardar as cimitarras em um lugar mais seguro, uma avócolocou uma mão complacente sobre a testa de sua neta, não havia sinal defebre, a respiração silente era suave como a de um sonho apaixonado, e osubir e cair de sua pequena barriguinha mexiam com as emoções de AlaiaEvans como se houvesse uma pena feita de amor fazendo cócegas em seucoração.

Foi quando percebeu que Wendy estava certa: amor é quente,derretido, doce, terno, distante e, ainda assim, familiar, como um biscoitodinamarquês com manteiga açucarada.

“Eu te amo, minha pequena, linda e maravilhosa, Christina.” Alaiadisse, beijando a testa de sua neta, e deixando as risadas de seu coraçãomostrarem-se em seu rosto.

“Você não vai ficar sozinha quando o livro acabar, vó.” Christinamurmurou sem abrir os olhos, “eu também te amo, seja boa sempre, pra queeu sempre possa te encontrar onde as pessoas boas vão, neste mundo e nopróximo.”

Uma lágrima carinhosa pediu para cair, Alaia a deixou livre, úmidogosto de chuva enroscando-se em seus lábios secos, não, era algo mais, elasabia ao certo: o gosto era salgado, e não era só o mar lá fora.

No calar de seu caminhar, ela retornou para seu quarto, imersa em seuamor por tudo que era maravilhoso em sua vida: lá estava a mesa de xadrezcom velas por acender, lá estava a lareira queimando o nada e produzindocoisa alguma, lá estava sua janela aberta onde mais cedo Christina encostaraseu rosto como se fosse uma mímica, tentando ouvir a voz da Harbinger daLuz.

Voz que ela própria desejava mais que tudo no todo deste mundoouvir uma vez mais.

Alaia se aproximou da mesa, pegou o desenho de Kuzco, o deuslhama, observou como ele não era bom, e como isso o fazia perfeito, pois era

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o traço divertidamente único de sua primeira e única neta, o mesmo traçousado para fazer Elizabeth, o vagalume, o mesmo traço infantil que vinha dasmãos de um de seus maiores tesouros, junto com seus filhos, suas memórias esua grande amiga...“O aniversário dela foi hoje.” Alaia disse, ao sentar-se com o livro dememórias.

Lá fora, podia ver o céu, onde as nuvens se enrolavam como cachosde cabelos azuis meia noite, brilhando contra a luz da lua minguante e o marde vagalumes.

Para Alaia, aquela era a fase mais bonita da lua: os vagalumes nãobrilhariam tanto se fosse a lua cheia.Um reflexo de sorriso cantou em seu rosto ao imaginar o que Wendy diria seouvisse esta reclamação mais uma vez: “Alaia você é muito chata, para de serinfeliz e deixa a lua brilhar em paz!”“Deve ser assim que Wendy se sentia imaginando suas conversas com osretalhos de Wanda.” Alaia comentou, virando a cabeça para onde a boneca depano estava guardada e, de súbito, percebendo, “ainda tenho tempo.”Levantando-se com pressa exagerada, procurou em seu estudo e... sim, aliestava: papel em branco, pena e tinta (lápis e canetas existiam, mas Alaiatinha classe demais para se rebaixar a isso).Sentando-se ao batente da janela, sabendo que os minutos finais da músicaestavam se aproximando, Alaia mergulhou-se em seu silêncio, escrevinhouseus medos soterrados, suas batalhas há muito já sem dono, suas vergonhasruborizadas e, mais que tudo, suas saudades amarfanhadas.

“Quem sabe este ano funcione.” Alaia murmurou, sentindo um súbitomisto de fé e constrangimento: fé de que tudo daria certo, de que, no final,estaria bem e feliz, que poderia ouvir a voz sempre meiga de sua antigamelhor amiga para confortá-la em seu silêncio, voz que tantos outrosafirmavam ouvir em suas preces.

Constrangimento por permitir-se acreditar nesta lorota, de novo.A música finalmente caiu calada contra o silêncio da vulnerabilidade

da cidade.Um mar sem água caiu dos céus em forma de cem mil vagalumes,

mergulhando nas roupas de todos aqueles perante a Estátua Incompleta daHarbinger da Luz, e também nas de Alaia, para então roubar a página queescrevera, assim como milhares de outras escritas por mãos estranhas, e aslevando para a verdadeira e única Benção de Luz, a Fogueira de Fawkes.

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Por um instante, Alaia se perguntou de onde sua neta tirara queWendy havia feito uma Benção de Luz na tribo Satya, depois, avistoumilhares de páginas sendo atiradas por vagalumes contra as chamas.

Milhões de correntes ardiam e quebravam nas brasas.E não era mentira, Alaia sentia algo mudar em seu peito na medida

em que via o crepitar das chamas e o crispar das páginas a serem queimadas.Estava se preparando para entregar-se ao ardor da mão incandescente,responsável pelo virar das páginas, quando percebeu que seria interrompida.“O que é que–”Antes que terminasse a frase, Samson escancarou a porta, Alaia se assustouao perceber o tamanho do desespero que se apoderara de seu filho maissereno.“Samson, o que foi?!” Alaia perguntou, contagiando-se com o desespero.“Christina está morrendo!”