MR 02 – Religião e Projeto Político na Bahia Coordenador: Fabrício Lyrio Santos O PROJETO POLITICO DOS JESUÍTAS NA COLÔNIA FABRICIO LYRIO SANTOS Mestre em História / UFBA [email protected]1. Presença e projeto político Esta comunicação visa discutir o projeto político dos jesuítas no período colonial como elemento fundamental de sua inserção na sociedade como um todo. Em nossa dissertação de Mestrado procuramos definir o que seria a "presença" jesuíta na Bahia colonial nos termos seguintes: Por "presença" queremos aqui entender um fazer parte, ou seja, um estar imerso e atuante, participando e interferindo nos grandes acontecimentos e na vida cotidiana. Os jesuítas não apenas estavam, mas eram presentes na Bahia colonial. Agiam com determinação, propondo ou respondendo a transformações de todas as ordens, tomavam partido, e eram percebidos como uma força atuante na sociedade. Além disso, seu conjunto de imóveis sagrados e seculares, urbanos e rurais, de uso ou de arrendamento, enfim, de todos os tipos, dava uma grande visibilidade a esta sua presença política, cultural, religiosa, e que era também econômica. Havia a botica dos padres, o colégio dos padres, o guindaste dos padres, enfim, eles tinham uma marca muito própria na vida colonial (SANTOS, 2002, p. 26) De fato, o que caracteriza a inserção dos jesuítas na sociedade colonial, tanto na Bahia quanto em outras partes, é não apenas a pujança de uma sólida estrutura material mas também as diversas atividades que supostamente justificavam a existência daquela estrutura. Tais atividades excediam em muito os limites da ação meramente missionária ou educacional, embora estas duas fossem, sempre, a razão de ser maior da própria existência da Companhia de Jesus.
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MR 02 Religião e Projeto Político na Bahia - uesb.br · Estado e Igreja então em vigor revela o consenso básico em torno da idéia de Cristandade, ou seja, a coexistência entre
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Esta comunicação visa discutir o projeto político dos jesuítas no período colonial como
elemento fundamental de sua inserção na sociedade como um todo. Em nossa dissertação
de Mestrado procuramos definir o que seria a "presença" jesuíta na Bahia colonial nos
termos seguintes:
Por "presença" queremos aqui entender um fazer parte, ou seja, um estar imerso e atuante,participando e interferindo nos grandes acontecimentos e na vida cotidiana. Os jesuítas não apenasestavam, mas eram presentes na Bahia colonial. Agiam com determinação, propondo ou respondendoa transformações de todas as ordens, tomavam partido, e eram percebidos como uma força atuante nasociedade. Além disso, seu conjunto de imóveis sagrados e seculares, urbanos e rurais, de uso ou dearrendamento, enfim, de todos os tipos, dava uma grande visibilidade a esta sua presença política,cultural, religiosa, e que era também econômica. Havia a botica dos padres, o colégio dos padres, oguindaste dos padres, enfim, eles tinham uma marca muito própria na vida colonial (SANTOS, 2002,p. 26)
De fato, o que caracteriza a inserção dos jesuítas na sociedade colonial, tanto na Bahia
quanto em outras partes, é não apenas a pujança de uma sólida estrutura material mas
também as diversas atividades que supostamente justificavam a existência daquela
estrutura. Tais atividades excediam em muito os limites da ação meramente missionária ou
educacional, embora estas duas fossem, sempre, a razão de ser maior da própria existência
da Companhia de Jesus.
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Como é bem conhecido, a Companhia de Jesus ou Societas Iesu, é uma ordem ou
congregação religiosa fundada no século XVI em meio às agitações que abalaram a Igreja e
a sociedade européia até meados do século seguinte. O principal protagonista de sua
fundação foi Inácio de Loiola, homem de vida intensa e profunda experiência mística. Após
a morte do pai, foi secretário de um importante funcionário da coroa espanhola, levando
vida cortesã. Tornou-se depois soldado, e durante a defesa de uma guarnição contra um
cerco franco-navarrês, foi ferido nas duas pernas e levado de volta à casa materna para se
recuperar. Durante este período, leu sobretudo sobre a vida dos santos, e foi tocado pela
idéia de lutar pela Igreja e, em especial, o sonho de retomar a terra santa.
Com este intuito, entregou-se à peregrinação antes mesmo de estar totalmente recuperado
do ferimento na perna direita. Em Manresa, às margens do rio Cardoner, teve a iluminação
que inspiraria sua mais importante obra: os Exercícios Espirituais.
Sua estada em Jerusalém foi rápida (3 a 23 de setembro de 1523), e no retorno resolveu que
devia ter maior domínio das letras e da teologia para melhor ajudar aos outros. Passou pelas
universidades de Alcalá e Salamanca e foi para a de Paris, em 1528, exatamente quando
Calvino saía de lá (Alden, 1996, p. 5). Os estudos de Inácio em Paris levaram-no a
conhecer aqueles que com ele fariam o célebre voto de Montmartre, em 1534, considerado
a primeira etapa de criação da nova ordem. Inácio e seus companheiros tornaram-se
pregadores itinerantes e davam assistência aos doentes nos hospitais, vivendo eles próprios
da mendicância. Em 1540 transformaram sua pequena "compañia" em um instituto de vida
religiosa, submetendo ao papa a versão preliminar de suas "Constituições", e obtendo
aprovação papal.
O objetivo primordial da Ordem recém-fundada era ir a Jerusalém converter os mouros. No
entanto, por conta da ininterrupta guerra na região não foi possível a partida, devendo os
companheiros de Inácio se contentar com outras lides. Ao mesmo tempo, o terreno europeu
urgia pela intervenção de tão dedicados religiosos para restabelecer a ortodoxia e recuperar
as fronteiras perdidas para os luteranos, calvinistas, e demais grupos reformados. Por fim, e
não menos importante, o alargamento do mundo propiciado pelas navegações e conquistas
ultramarinas inauguraram um novo campo de ação promissor para uma O
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nientes "segundo as circunstâncias de pessoas, de lugares e de tempos" (Constituições,
1997, p. 26). Na medida em que as circunstâncias eram muitas, a Companhia traduziu seu
ideal de divulgação da fé nos termos mais diferenciados, criando um amplo campo de ação
para os inacianos.
2. Construção do projeto na Bahia colonial
Os jesuítas ingressam cedo no mundo luso-colonial. Em Portugal os jesuítas são inseridos
através do Dr. Diogo de Gouveia, professor em Paris, que fala ao rei D. João III de uns
padres reformados eruditos que se mostravam dispostos a ir ao Oriente pregar o
cristianismo. Com este intuito dois dos jesuítas pioneiros chegam em Portugal no ano de
1540: Simão Rodrigues e Francisco Xavier. O primeiro permaneceria no reino, realizando
obras de "reforma" da religião em Portugal e se tornando verdadeiro fundador da
Assistência portuguesa. O segundo se tornaria o mais célebre missionário europeu no
Oriente (Alden, 1996, p. 25).
Em 1549 seis jesuítas são enviados à América portuguesa junto com a comitiva que iria
estabelecer o Governo Geral dando início a uma nova fase no processo de colonização.
Eram liderados pelo padre Manoel da Nóbrega.
Na Bahia, como no Oriente, a inserção dos jesuítas se deu especificamente sob o signo da
evangelização dos povos pagãos. O empreendimento era fomentado pela Coroa como parte
das prerrogativas concedidas e exigidas em função do regime de Padroado. A união entre
Estado e Igreja então em vigor revela o consenso básico em torno da idéia de Cristandade,
ou seja, a coexistência entre a supremacia civil e a religiosa dentro de um mesmo território.
A evangelização, enfim, era uma questão tanto do Estado quanto da Igreja, não cabendo
dimensioná-la com mero pretexto para ações econômicas ou políticas mais relevantes.
Neste sentido, a ação missionária era obviamente política, uma vez que cumpria um papel
tão relevante para a Igreja quanto para o Estado. O interesse do poder civil em promovê-la
é reiterado nos diversos "regimentos" que se seguiram ao de Tomé de Souza, onde já se
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dizia que o principal interesse da colonização era fazer todo o gentio se tornar cristão. A
sujeição dos povos nativos à doutrina cristã, à lei da igreja e à autoridade régia eram
elementos do mesmo projeto civilizatório, negados pelo indígena à vontade do colonizador.
Fé, lei e rei eram, na mente do colonizador, aspectos intimamente relacionados.
Enquanto colonização e evangelização caminhavam lado-a-lado, a ação específica dos
jesuítas era determinada por um projeto político cunhado nas primeiras décadas desde sua
chegada, cujo maior articulador foi, sem dúvida, o padre Nóbrega. Em suas primeiras cartas
enviadas a Lisboa se nota constante hesitação entre otimismo e frustração, embora estas
emoções sejam cuidadosamente balanceadas entre as cartas reservadas aos seus superiores
e as chamadas cartas edificantes, que se dirigiam a toda a comunidade. Estas últimas,
sempre voltadas a atrair mais ceifadores para a seara, enfatizavam a boa-vontade de alguns
para a conversão e os frutos que iam sendo alcançados. As primeiras, retratavam a
inconstância dos conversos e sua recusa em abandonar seus hábitos tradicionais, ditos
bárbaros. "Com os pequenos temos mais esperança", repetia o refrão tornado quase uma
ladainha. As crianças davam mostras de mais maleabilidade no tocante aos costumes, desde
que tirados cedo do convívio com os mais velhos.
Para o Dr. Navarro, seu mestre em Coimbra, Nóbrega retratou demoradamente a índole
dos povos indígenas até então contatados, ressaltando que era gente "tão inculta", que
"nenhum Deus tem certo, e qualquer que lhes digam ser Deus o acreditam, regendo-se
todos por inclinações e appetites sensuais, que está sempre inclinado ao mal, sem conselho
nem prudência" (Nóbrega, 1988, p. 90). Disse também, como em outras partes, que "poucas
lettras bastariam aqui, porque tudo é papel branco, e não há que fazer outra cousa, sinão
escrever á vontade as virtudes mais necessárias e ter zelo em que seja conhecido o Creador
destas suas creaturas" (Ibid., p. 94). A carta foi escrita na Bahia, a 10 de agosto de 1549.
A experiência logo revelou que a questão do convívio era crucial. Urgia separar os índios
conversos dos que resistiam à evangelização, bem como dos colonos. Tem sido mostrado
largamente que, conquanto conformes no tocante à legitimidade da empresa colonizadora,
colonos e jesuítas defendiam projetos específicos no interior do sistema. Naturalmente, as
divergências passavam pela concepção geral em torno da colonização, mas se
radicalizavam quando o ponto era o que fazer com as populações indígenas. Em geral, os
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colonos defendiam a prestação de trabalho sem maiores escrúpulos, inclusive a
escravização. Os jesuítas aceitavam a idéia de que os índios prestassem trabalho aos
colonos, mas recebessem a justa remuneração em troca.
O que se denomina a luta jesuíta pela liberdade indígena é, ao mesmo tempo, uma luta pela
conservação do colonialismo lusitano. Para os inacianos, o melhor meio de se conservar a
terra era ter os índios por aliados. A escravização de alguns gerava a rebeldia e a
insurreição, inviabilizando a manutenção pacífica do território. A guerra ininterrupta não
era obviamente uma saída. Com o tempo, tanto os jesuítas quanto a Coroa portuguesa, e por
extensão os colonos, passaram a dividir os índios entre os aliados e os inimigos, reservando
a estes últimos a dureza da guerra, escravização e extermínio. O conceito de guerra justa,
portanto, que aparece em quase todas as leis que visavam restringir a escravização tinha
como pressuposto a manutenção da paz e da ordem colonial. A política indigenista colonial
era, no fundo, uma política de barganha que visava favorecer ao máximo os índios aliados
como forma de atrair os outros à esfera da "amizade" com os colonizadores.
O projeto desenhado pelos jesuítas para enfrentar a situação colonial e promover a
evangelização dos indígenas era o aliado quase natural da política régia, ou vice-versa. Os
jesuítas sempre foram acusados de manipular a legislação indigenista a seu favor, mas o
fato é que seu projeto com as populações indígenas era muito mais favorável á Coroa a
longo prazo do que a exploração desenfreada proposta pelos colonos. Estes pressionavam
politicamente a Coroa alegando que a colonização era inviável sem o trabalho dos
indígenas, e que ao menos alguns tinham que ser destinados às suas lavouras.
Os jesuítas contra-argumentavam que os índios poderiam ter suas próprias lavouras para
fornecer gêneros aos colonos, voltados ao cultivo das grandes lavouras de exportação ou
coleta de drogas amazônicas, no caso do Estado do Grão-Pará e Maranhão. A idéia de que
os índios pudessem formar um campesinato à parte fornecendo gêneros não produzidos
pela monocultura de exportação nunca foi implementado pelos jesuítas, sendo depois
retomado no Diretório do Maranhão, de 1757, que era paradoxalmente uma peça da
engrenagem anti-jesuítica.
Na prática, o projeto político dos jesuítas, como parte de sua estratégia de evangelização,
defendia a autonomia do sistema missionário em relação à sociedade colonial. Esta
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autonomia se materializou na estrutura montada pela Companhia de Jesus desde a década
de 1580, que tinha como elemento fundamental os aldeamentos. A reunião dos índios em
comunidades organizadas pelos missionários foi o maior instrumentos que melhor
viabilizou a evangelização, bem como a pacificação das populações nativas. Conquanto
parte do projeto missionário da Ordem, os aldeamentos são, também, elemento articulador
de seu projeto político.
O sistema de aldeamentos ou missões propiciava tanto a autonomia institucional quanto a
autonomia econômica da Ordem. Isto porque, por um lado, os aldeamentos tendiam a se
tornar auto-suficientes, à medida em que a organização imposta pelos missionários evoluía,
prescindindo da interação com o mundo colonial. Isto tirava os índios da alçada dos
colonos, livrando-os, em parte, da prestação de serviços. Em parte porque no Maranhão o
sistema de repartição mantinha sempre uma parcela da população dos aldeamentos
envolvida com o trabalho nas lavouras dos colonos ou coleta de especiarias.
Por outro lado, a manutenção do empreendimento como um todo excedia a capacidade
produtiva das missões, bem como a subvenção oferecida pela Coroa. Isto foi um
precedente para que a Ordem passasse a administrar bens de raiz (fazendas, engenhos,
casas) que eram explorados para financiar a conservação e expansão do trabalho
missionário da Ordem (bem como o trabalho educacional, a partir do momento em que os
jesuítas assumiram quase por completo a educação da população colonial em todos os
níveis permitidos pela Coroa). Vejamos estes aspec
ias, sobretudo as jesuítas.
Estabelecida a administração diocesana, as paróquias ficavam sendo administradas pelo
clero secular sob controle, jurisdição, inspeção e correção dos bispos. O trabalho
missionário pioneiro, entretanto, não podia ser feito pelos paroquianos, e deste modo o
papado concedeu privilégios especiais aos religiosos para o desenvolvimento da
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evangelização, tornando-os verdadeiros párocos em suas aldeias (Ibid., p. 86). Isto não os
isentava da supervisão episcopal, manifesta sobretudo nas visitas, expediente recomendado
pelo Concílio de Trento. Mas os missionários alegavam que esta determinação não devia
ser aplicada no caso do Brasil, porque impediria o desenvolvimento do trabalho
catequético.
Os jesuítas alegavam que o regime das missões era, digamos, extra-paroquial, e que as
visitas impediriam o trabalho missionário. Para Leite, aceitar as visitas diocesanas
eqüivaleria a transformar as aldeias, de entidades missionárias, de direito especial, em
entidades de direito comum, ou seja, de aldeias ou missões em paróquias ou freguesias
(Leite, 1950, VII, p. 185). Isto, de fato, foi a tônica da carta régia que tratava do assunto
com a Arcebispo, datada de 8 de maio de 1758, onde o Rei orienta o estabelecimento de
vigararias nas antigas missões, e refere-se aos índios como paroquianos (apud Accioli &
Amaral, 1940, V, p. 561-562).
Nesta carta, é ressaltado que a assistência espiritual concedida pelos missionários aos índios
havia sido permitida interinamente, enquanto o clero secular não pudesse prestá-la. Mas
que estando informado de que o Arcebispado contava com suficiente número de párocos,
havia por bem dar como terminado o período da interina irregularidade. Daí porque a
legislação indigenista pombalina foi um duplo golpe nas ordens religiosas missionárias,
favorecendo a expansão da organização diocesana. No entanto, a carta ao Arcebispo refere-
se explicitamente às aldeias administradas por jesuítas.
Conquanto fosse uma medida extremamente hostil à Companhia de Jesus, a secularização
dos aldeamentos missionários contribuiu para o aumento do número de paróquias no sertão
da Bahia; a reunião de pequenas aldeias prestes a desaparecer; a assistência às populações
ao derredor das aldeias; e o aumento do poder de intervenção do Arcebispo (Costa e Silva,
2000, p. 56-57). De fato, a transformação das aldeias em paróquias atendia também a uma
tendência de longa duração, na qual o espaço das freguesias ia pouco a pouco suplantando o
das missões (Ibid., p. 76).
O clero regular havia sempre se antecipado ao secular em regiões recentemente
conquistadas ou por conquistar, recebendo por isto autoridade especial para organização de
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paróquias nestas regiões (Boxer, 1989, p. 85). Apesar das críticas a isto, a dificuldade em
manter nas regiões de missão um clero secular zeloso e interessado, ao lado da recusa
quanto à formação de um clero nativo (associado a questões políticas e raciais),
reforçavam a tendência das ordens regulares em se aproximar do poder e afirmar seu senso
de superioridade organizacional e moral (Ibid., p. 86-87).
b. Autonomia financeira dos aldeamentos: o padrão de auto-suficiência
Os aldeamentos eram, conforme diz Serafim Leite, o método mais eficaz e original de
colonização cristã do Brasil, e as primeiras sementes das célebres reduções do Paraguai
(Leite, 1950, t. II, p. 45). Seus objetivos básicos eram fixar as populações indígenas ao solo
e subtrair os batizados do convívio com os demais.
A organização dos aldeamentos, como parte da estratégia missionária, integrava o projeto
evangelizador a cargo da Coroa, cujo envolvimento financeiro era insuficiente. Os jesuítas
estimulavam o trabalho indígena para produção de gêneros que permitissem sua auto-
sustentação. A produção excedente era comercializada em troca de ferramentas, objetos
devocionais ou outros bens que os jesuítas supunham ser necessários às aldeias (Alden,
1996, p. 477).
A autonomia financeira dos aldeamentos convinha à Coroa na medida em que a isentava de
maiores gastos. Em 1759, segundo a notícia de Caldas, a Coroa gastava apenas 2.605.200
rs. com as ordens religiosas e missões, de um total de 25.444.760 rs. gastos com a folha
eclesiástica (Caldas, 1931, p. 19-20). Daquele total, 1.200.000 rs. competiam ao dote do
Colégio da Bahia. O restante era distribuído entre os jesuítas, capuchinhos, terézios,
carmelitas, franciscanos e beneditinos. À exceção destes últimos, os demais recebiam de 10
a 30 mil réis por aldeia administrada. O valor não era referente à manutenção econômica da
aldeia; era dado aos missionários como uma espécie de côngrua pela assistência religiosa
que prestavam aos índios.
Tabela 1: Despesas da Coroa com os aldeamentos, 1759
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Religiosos Número de aldeias Valor recebidoJesuítas 12 120.000Capuchinhos 10 100.000Terézios 1 30.000Carmelitas 2 20.000Franciscanos 1 20.000Total 26 290.000Fonte: Caldas, 1931, p. 19-20
Por outro lado, a subsistência econômica dos aldeamentos era um elemento
fundamental para manutenção do projeto jesuíta. Era preciso evitar a todo custo o
recurso ao ambiente colonial, onde os colonos ansiavam por escravizar os índios. O
projeto de isolamento da população indígena proposto pelos jesuítas sob a forma dos
aldeamentos não se sustentaria, nem a pretendida autonomia institucional, sem este
sólido arcabouço econômico.
c. Autonomia financeira da Ordem: o apoio régio e leigo e a renda das propriedades
Além da autonomia financeira dos aldeamentos, através da produção de subsistência e
comércio de excedentes, os jesuítas buscaram também a independência da própria Ordem
como um todo. De início, para instalação da Ordem na colônia, foram fundamentais as
esmolas dadas pelos colonos e as pensões régias para comida e vestimenta (Leite, 1993, p.
173). Tais ajudas não eram suficientes para sustentar o empreendimento jesuíta, sendo que
em 1550 os jesuítas receberam sua primeira sesmaria, destinada para o estabelecimento do
primeiro Colégio da Ordem na colônia, o da Bahia (Alden, 1970, p. 33). Aos poucos, com
mais doações de terras, fazendas e casas, os jesuítas passaram a depender muito pouco da
ajuda direta da Coroa.
O subsídio régio do Colégio da Bahia teve forma fixa e perpétua a partir de 1564, com a
dotação de aproximadamente 1.200.000 rs. para manutenção de 60 missionários (Leite,
1993, p. 177). Este valor viria representar apenas 2,4% da receita total daquele Colégio em
1757, segundo dados levantados por Gama (1979, p. 89). Assim, as doações de particulares,
aluguéis de imóveis, rendimentos a juros e esmolas, ao lado da renda proveniente das
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criações de gado, venda de açúcar e remédios respondia pela quase totalidade da receita dos
jesuítas na Bahia em 1757, com dados semelhantes para todo o período 1701-1757 (Ibid., p.
86).
A autonomia financeira era obviamente outro elo fundamental do projeto político dos
jesuítas na colônia. De fato, era conveniente para a Coroa que uma Ordem tão prestativa no
tocante à pacificação da população indígena, bem como evangelização e educação da
população colonial, pudesse ter recursos próprios, não onerando os cofres públicos. Para os
jesuítas, era fundamental a autonomia financeira, pois como diz Leite, "a mesquinhez é
alheia ao espírito da Companhia, cujo lema ad maiorem Dei gloriam esperta o zêlo de
preparar o maior número possível de missionários, professores e estudantes, e obras de
apostolado" (1950, t. I, p. 107-108).
3. O projeto jesuíta sob o olhar pombalino
O projeto político jesuíta, sendo um projeto de autonomia, agradava a Coroa por diminuir
seu envolvimento com a obra religiosa, à qual estava obrigada pelo regime do Padroado.
No entanto, durante do reinado de D. José I (1750-1777), quando se deu a expulsão dos
jesuítas e foi desferida uma intensa campanha pela sua dissolução, a autonomia foi vista
como o elemento articulador de uma estratégia de "usurpação" e "maquinação" contra o
poder real na colônia.
O episódio mais intensamente explorado neste sentido foi a guerra guaranítica (1754-1756).
A tentativa de aplicação do Tratado de Madri de 1750, que ordenava a permuta do território
das sete missões orientais do rio Uruguai pela Colônia do Sacramento, levou os índios à
resistência armada. Os jesuítas foram acusados de instigar a revolta, acusação formalizada
no panfleto Relação abreviada, que se tornou a principal arma no combate à Companhia de
Jesus em Portugal e na Europa (Cf. Santos, 2002, p. 120-127).
A Relação abreviada trata também da "república" estabelecida pelos jesuítas no Norte,
onde Francisco Xavier de Mendonça Furtado havia sido enviado para estabelecer uma nova
política indigenista. No final da Relação os "abusos, com que os religiosos da Companhia
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de JESUS têm usurpado os Domínios da América Portuguesa, e Espanhola", são resumidos
a cinco pontos principais: usurpação da liberdade dos índios; usurpação de propriedade dos
bens dos mesmos índios; usurpação da perpétua cura das paróquias dos mesmos índios;
usurpação do governo temporal dos mesmos índios; usurpação do comércio terrestre e
marítimo dos mesmos índios.
As acusações são todas referenciadas em ampla bibliografia da época, sobretudo os juristas,
além das bulas papais e decretos régios. Naturalmente são todas acusações seríssimas,
restando apenas comprovar a culpa da parte dos jesuítas. De qualquer forma, se os índios
eram vítimas de tantas usurpações, o certo que elas não poderiam ser atribuídas apenas aos
jesuítas, mas ao conjunto da empresa colonizadora, da qual eles eram agentes.
O que soa estranho em todas as acusações do período pombalino contra a Companhia de
Jesus é o fato de condenarem uma situação que vicejava há dois séculos tanto de direito
quanto de fato. A destruição do projeto político dos jesuítas foi conseguida por meio de um
discurso que colocava a Coroa como observador distante do processo de implantação
daquele projeto, quando na verdade ela havia sido cúmplice e promotora dele, ao menos em
suas linhas mais gerais. Havia coisas que, de fato, vinham sendo questionadas aos jesuítas
praticamente desde o momento em que pisaram em Portugal.
A relação com a Coroa não havia sido sempre pacífica, e as questões de maior discórdia
envolviam significativamente aspectos econômicos, a saber, a recusa ao pagamento de
dízimos e o acúmulo de propriedades de raiz contra o disposto nas Ordenações do reino. É
preciso dizer que o regime pombalino radicalizou nestas questões, uma vez que as mesmas
não tinham sido suficientes para uma atitude mais drástica contra a Companhia em
momentos anteriores. Por outro lado, a questão dos aldeamentos e da autoridade política
dos jesuítas nos mesmos era algo para o qual não havia qualquer conflito anterior entre a
Coroa e os jesuítas. Neste ponto, os textos pombalinos assumiram a argumentação dos
colonos, invertendo a política tradicional de alianças que colocava os jesuíta ao lado da
Coroa e ambos contra os colonos (em seus objetivos a curto prazo). A autoridade dos
jesuítas foi retratada como "usurpação" e "maquinação" quanto eram concessões favoráveis
à própria política régia no tocante à manutenção das populações indígenas dentro da paz e
da ordem.
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Salvo pesquisas que venham revelar um volume maior de documentação do século XVIII
relativa aos jesuítas na Bahia ou alhures, não há porque se dar maior crédito às alegações
contidas nos textos pombalinos. A rigor, os missionários estavam seguindo em 1759 as
mesmas diretrizes já definidas poucas décadas após a chegada, quando a autonomia da
Ordem e sua estrutura de evangelização era tão conveniente a ela mesma quanto à Coroa.
De fato, não há sinais de degeneração ou "abuso" da parte dos jesuítas, mas uma evolução
mais geral da política européia que levou ao apogeu do estado absolutista em Portugal,
sendo a expulsão um desdobramento da política regalista então implementada.
Referências bibliográficas
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políticas da província da Bahia. Salvador: Imprensa Oficial, 1919-1940. 6 vol.
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EDWARDS. Conflito e continuidade na sociedade brasileira. São Paulo: Civilização
Brasileira, 1970.
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1540-1750. Stanford, California: Stanford University Press, 1996.
BOXER, Charles. A igreja e a expansão ibérica. Lisboa: Edições 70, 1989.
CALDAS, José Antônio. Noticia geral de toda esta Capitania da Bahia desde o seu
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Bahia, n. 57, 1ª parte, 1931.
CONSTITUIÇÕES da Companhia de Jesus e normas complementares. São Paulo:
Loyola, 1997.
COSTA E SILVA, Cândido. Os segadores e a messe: o clero oitocentista na Bahia.
Salvador: SCI, EDUFBA, 2000.
13
GAMA, José M. O patrimônio da Companhia de Jesus da capitania de São Paulo: da
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Paulo, 1979.
LEITE, Serafim. Breve história da Companhia de Jesus no Brasil. Braga: Apostolado
da Imprensa, 1993.
___. História da Companhia de Jesus no Brasil. Rio de Janeiro: Instituto Nacional do
Livro, 1938-1950. 10 v.
NÓBREGA, Manoel da. Cartas do Brasil (1549-1560). Belo Horizonte: Itatiaia; São Paulo:
Edusp, 1988.
SANTOS, Fabricio Lyrio. Te Deum laudamus: a expulsão dos jesuítas da Bahia (1758-
1760). 2002. 154 f. Dissertação (Mestrado em História) - Programa de Pós-Graduação em
História, Universidade Federal da Bahia, Salvador, 2002.
O Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem-Terra e a religiosidade
CRUZ, Danilo Uzêda da.
"(...) a angústia religiosa é, por um lado, a expressão da angústia real e,
por outro, o protesto contra a angústia real. A religião é também o suspiro da
criatura oprimida" (MARX, K. e ENGELS, F. Sobre a Religião. Lisboa. Edições
70. 1972).
“(...)ele é o resultado de uma combinação ou convergência de mudanças internas e
externas à Igreja que ocorreram na década de 50, e que se desenvolveu a partir da
periferia e na direção do centro da instituição.(...)” (LÖWY, M. A Guerra dos
Deuses. Religião e Política na América Latina. Rio de Janeiro. Vozes. 2000.
Pp.69).
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Apresentação:
A presente comunicação tem por objetivo discutir a íntima relação entre
Religião/Religiosidade e Política, sob o olhar da História, analisando a atuação do
Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem-Terra (MST) na Bahia, especificamente no
Recôncavo baiano, entre as décadas de 1970 e 1990, sendo esse breve texto originário de
uma pesquisa que ainda encontra-se em andamento, e que apresenta algumas lacunas, que
pretendemos superar quando da “conclusão” da mesma. É nesse contexto que se insere essa
comunicação: em parte originária das discussões, debates e experiência de pesquisa
realizados no Centro de Pesquisas da Religião (CPR), da Universidade Estadual de Feira
de Santana, quando tivemos a oportunidade pesquisar o fenômeno da Religião em sua
complexidade e profundidade, e de entendê-lo como algo mais do que mero reflexo da
realidade e, do acesso aos assentamentos rurais do Movimento dos Trabalhadores Rurais
Sem-Terra.
À guisa de entender como a formação social dos trabalhadores rurais organizados
em torno do MST, professando uma fé fundamentada na Teologia da Libertação (ou o
Cristianismo da Libertação, como nos propõe Michael Löwyi), pretende-se ainda
estabelecer como e qual o papel dessa religiosidade popular forjada no projeto político, e
por sua causa, enfatizando as condições determinadas para sua expressão. Condições essas
que fazem dessa religiosidade uma expressão do sagrado e ao mesmo tempo um projeto
político a ser implementado através da luta em favor dos pobres da cidade e do campo.
Nesse ponto fazemos referência mais uma vez do texto de Michael Löwy, onde o
autor destaca (revisitando Marx) as duas faces que a religião assume entre os homens, a
saber: uma que pretende conservar as estruturas sociaisii, portanto segue o projeto
hegemônico; e outra que, ao se pretender hegemônica, busca com os pobres a libertação de
toda e qualquer opressão, para tanto o papel revolucionário é fundamental. Essa abordagem
indica (ou enxerga) um papel a mais na religião. O caráter contestador, também analisado
por Houtart, é visto por Löwy com ressalvas, e segundo nossa análise apenas é possível
com a apropriação dos movimentos sociais realmente libertários. Se o primeiro discute tais
ressalvas, François Houtart apresenta como a religião está altamente associada ao modo de
produção em que a sociedade está emersa.iii A transformação que é pretendida se apresenta
através da proposta e da prática política dos agentes sociais, ou das classes sociais para
15
estar mais fiel ao texto de Houtart. Em nossos estudos o papel contestador da religião é
analisado, pois na proposta política que estamos estudando a religiosidade adquire papel
fundamental.
Destarte, lembramos mais uma vez que nossa pesquisa ainda se encontra em
andamento, tendo passado por mudanças e reelaborações teóricas que dão novos rumos
tanto à pesquisa quanto ao pesquisador. Conseguimos, dito isso, já levantar os locais das
fontes e as próprias fontes – tendo já trabalhado com algumas. Mesmo o levantamento
bibliográfico já bastante extenso, ainda carece de aprofundamentos no que tange a o
Protestantismo da Libertação, pois esse fenômeno no Brasil é ainda pouco estudado (ou
pouco divulgado!) até porque é novo em se tratando de Brasil, pois como veremos a seguir
no Brasil o cristianismo da libertação tem uma face católica mais presente. Diferente do
que acontece em outros países latino-americanos, como Chile, Bolívia ou Peru, onde a
presença do protestantismo da libertação tem dado a tônica dos debates e das ações dos
movimentos religiosos.iv
Passemos, pois, à discussão proposta.
Religião e Política no Recôncavo baiano: aspectos de um povo “sem história” pós-
Brasil Império:
A pesquisa histórica sobre o recôncavo baiano, para o Brasil republicano pós-1930
ainda está por ser feita e escrita. Lacuna que, se não preenchida, deixa a História da Bahia
carente de aspectos fundamentais: onde estão os trabalhadores rurais dessa região?
E ainda, excetuando o Recôncavo urbanizado – dos centos urbanos historicamente
relevantes desde o período colonial -, onde está o outro Recôncavo, o ruralv, que fora de
fundamental importância para a economia do Brasil Colônia e Império, quando cidades
como Cachoeira e Santo Amaro ou São Félix eram centros comerciais e políticos
importantes para a manutenção dos sistemas? E já no período republicano, onde as teias dos
“coronéis” mantinham com o poder público uma relação oficiosa sustentada através da
força e da economia propiciada pela cana-de-açúcar ou pelo petróleo até a década de 1950.
Qual o papel dos agricultores e da mão-de-obra excluída desses pólos econômicos?vi
Por fim: qual a relação existente entre os trabalhadores rurais(sem-terra) com o projeto
16
político implantado nessa região, fundamentado por uma relação de fé profunda frente ao
sagrado, concernente com a formação social que lhe determina e é determinada?vii
A Historiografia deve ainda a esses trabalhadores que (re)construíram um projeto
político para uma região arruinada pelo latifúndio, pela exploração açucareira (século XIII
e XIX) e pela exploração petrolífera e aurífera (já no século XX), uma história condigna
com os seus atores. Trabalhadores que foram aos poucos expurgados das terras em que
trabalhavam, que tiveram suas roças engolidas pelo latifúndio, e que ora se organizam
bravamente (me permitam dizer), na forma do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem-
Terra e, assim como outros trabalhadores da Bahia expurgados pela mineração na Chapada;
ou os marginalizados pelo plantio do cacau no Baixo Sul e Extremo Sul, transformam aos
poucos a realidade nada favorável. Nesses anos, que também foram anos de endurecimento
e “distensão” da Ditadura Militar no Brasil, anos em que o projeto neoliberal inicia sua
escalada no mundo; anos difíceis para os trabalhadores, que no Brasil vivem (na década de
80) o seu apogeu organizativo através dos sindicatos, do Partido dos Trabalhadores e do
próprio Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem-Terra.
Alguns historiadores silenciam esse período de grandes momentos para os pobres
em geral, apenas por ser História recente. Nós tentamos resgatar, sempre à luz da História,
o período, partindo, todavia, de um olhar para os “de baixo”.
É no Recôncavo onde observamos que a religiosidade popular, é marcadamente
notada através das falas, das cartas e jornais da região, das queixas-crime e dos inquéritos
policiais, ou ainda das orações e liturgias, e nos proporciona uma possibilidade de análise
para a História, a saber: o papel do Cristianismo da Libertação (principalmente o
catolicismo e protestantismo populares) e sua relação intrínseca existente com uma
proposta e prática política que os trabalhadores rurais buscam construir, vivenciando.viii As
festas, o plantio e a colheita, que, aliás, sempre foram alvos de pesquisas, encontram-se
com as ocupações, as prisões e nos conflitos (quase sempre desiguais) entre poder público e
sociedade civil organizadaix, são alguns dos instrumentos em que podemos estudar/escrever
a História desses trabalhadores, juntamente com os relatos e com os jornais oficiais e do
próprio movimento – fonte fundamental em que observamos a aproximação entre o
discurso e prática política.
17
A exposição que ora apresentamos tenta entender e apresentar a religiosidade
realmente existente na relação desses dois fatores (Cristianismo da Libertação e projeto
político do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem-Terra) como um só corpo, uma
realidade indissociável que resulta, após vinculações com economia e relações sociais, no
que hoje conhecemos por Recôncavo, de um modo geral, e no que se tem configurado nos
assentamentos rurais do MST, em particular.
Cristianismo da Libertação: aglutinação e politização do MST:
Até onde sabemos, em sua origem, o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem-
Terra tem como matriz fundadora as Comunidades Eclesiais de Base (CEB’s), instrumento
onde a maior parte da sua organização dá-se por vias não institucionais da Igreja Católica
para a discussão dos problemas brasileiros, como a fome, o desemprego, ou a questão
agrária. Essa proposição é deveras diferente do que nos propõe José de Souza Martins em
trabalho recente sobre a questão agrária no Brasilx. Neste, o autor afirma que os
movimentos originários das Ligas Camponesasxi na luta pela terra no Brasil estariam
buscando a todo custo uma crescente institucionalização, ou um reconhecimento do
governo. Pensamos que, ao contrário do que nos diz Martins, se as lutas pela
democratização das terras férteis no Brasil surgem com alguma institucionalização – seja
através da participação da Igreja Católica, dos Sindicatos Rurais, ou mesmo dos Partidos
Políticos – adquirem ao longo da luta e do processo de organização, características não
institucionais ou populares, com autonomia relativa dos poderes institucionais e
demandatária de um poder não institucional.
Assim, o MST na sua origem e desenvolvimento traz profundas relações com
setores da Igreja Católicaxii, o que ao longo dos anos transforma-se em ruptura, pois o
limite desses setores associados à Teologia da Libertação (ou ao Cristianismo da
Libertação, como passaremos a chamar daqui em diante) dá-se no momento do confronto –
quase sempre violento – com o poder público, ou mesmo no memento em que o grau de
afastamento da instituição – provocado pela própria dinâmica de todo movimento social
contemporâneo - (no caso da Igreja Católica, como é mais comum) distancia o Movimento
Social do controle das antigas formas organizativas.xiii
18
Mesmo na montagem do projeto político do MST, observamos as raízes cristãs: a
terra não é apenas provedora do sustento material, é antes um lugar e um espaço sagrado –
“A Terra Prometida”, tal qual o Livro do Êxodo traduzxiv. O plantio ou a colheita
ultrapassam a satisfação alimentar: a luta pela conquista da posse terra transforma o
alimento em instrumento sagrado e de sagração para as famílias sem-terra. Enfim, as
relações que são estabelecidas nos assentamentos rurais do MST acompanham uma
dialética profunda de fé e política, de religiosidade embebida de prática política e vice-
versa, não somente no discurso como alguns analistas políticos recentemente argumentam.
Em nossas pesquisas, coletando/analisando panfletos, os jornais, e acompanhando as
manifestações e festas nos assentamentos, podemos observar e constatar que na cultura
realmente existente nos assentamentos rurais do Movimento dos Trabalhadores Sem-Terra,
em sua formação, nas décadas de 80 e 90, a fundamentação política para a luta é buscada
na própria luta pela terra, onde associada a uma orientação teórica ligada ao marxismo e
uma vivência do cristianismo da libertação os trabalhadores rurais desenvolvem um
profundo mecanismo de reconstrução de si mesmos.
Interessante se faz retomar novamente o trabalho de Iokoixv sobre a relação da Igreja
com os movimentos sociais no Brasil e no Peru. Neste texto a autora demonstra-nos como
se dá a participação da Igreja nas lutas populares, envolvendo-se em contendas com o poder
público e com a burguesia. Tal relação é justificada somente pela Teologia da Libertação,
com a “opção da Igreja Pelos Pobres”.
Percebemos as CEB’s como um movimento leigo dentro da estrutura da Igreja
Católica que antecede a própria Teologia da Libertação, sendo esta para nós uma das
conseqüências da “aproximação” da Igreja Católica com os pobres. Mesmo porque a
própria teologia da libertação é tornada, ou (re)significada, pelos pobres como uma
libertação da própria teologia, uma vez que não seguir os ditames institucionais dentro da
Igreja ou mesmo da denominação protestante, traduz uma proposta desse Cristianismo da
Libertação. É o mesmo Löwy que nos traz oportunamente uma análise desse fenômeno.xvi
A apropriação da Teologia da Libertação pelos pobres, principalmente no campo
brasileiro, dá-se, para nós, de forma abrangente e difusa. Não segue um corpo doutrinário,
ou mesmo um dogma, sendo difícil por isso identificá-la. É incorporada como uma forma
de segurança ou defesa e também de instrumento de luta, dentro dos limites da própria
19
religião, pelos excluídos de maneira geral e pelos trabalhadores do campo, em particular.
Conformam uma religiosidade própria e determinada/determinante de cada movimento
social. No nosso caso específico, uma vez que estamos estudando o MST na Bahia e nos
anos 1970 e 1990, a religiosidade popular, calcada no Cristianismo da Libertação assume
contornos realmente revolucionários, comparáveis aos da Nicarágua ou de El Salvador.
Contudo, a Formação Social desenvolve-se diferente em diferentes sociedades e tempos,
faltando a essa religiosidade não institucional uma busca pela luta revolucionária também
não institucional. Ainda não conseguimos concluir essa análise em nossas pesquisas,
mesmo porque quando trabalhamos o MST na Bahia, encontramos alguns problemas não
de ordem teórica, mas devido à própria dinâmica do Movimento que nos impede (muitas
vezes) de dar prosseguimento continuado em nossas pesquisas.
A análise do material pesquisado do próprio Movimento tem comprovado essas
observações como os jornais e as canções entoadas nas manifestações e no dia-a-dia.
Principalmente na análise do hino do Movimento Sem-Terra que notamos a profunda
relação entre religião e política, ou entre a proposta do MST e a relação com o sagrado.
Através do processo de aglutinação em torno da fé, da relação que se estabelece
com o sagrado nos assentamentos rurais do MST, têm-se um processo paralelo e interno de
politização, pois ao passo em que se juntam trabalhadores para congregar, orar, festejar, ou
para ocupar uma terra, nas reuniões e assembléias, o trabalhador rural faz desse espaço um
espaço sagrado. Podemos também fazer uso dos estudos gramscianos acerca da cultura e da
política, em particular quando analisa o papel que a cultura tem na materialização do
projeto político de uma classe social,xvii pois é no contexto de luta e trabalho que tentamos
traduzir a realidade dos trabalhadores rurais sem-terra na Bahia.
Apesar de ser um fenômeno em fase embrionária na Bahia, a presença protestante
nos chamou a atenção. Já existem Igrejas de diferentes denominações nos espaços dos
assentamentos, o que nunca aconteceu com a Igreja Católica, e que pode – e deve – garantir
uma grande influência, sobretudo nos assentamentos mais antigos. Por outro lado nos
assentamentos que não tem denominação presente, de forma oficial, a presença da forma
protestante de fé é assaz intrigante, e crescente.
Pode-se perceber ainda que através do forte apelo moral e ético – dentro da ótica
religiosa – a presença protestante em assentamentos rurais do MST se faz presente. Aqui se
20
misturam denominações oficiais – com a presença de templos nos próprios assentamentos
ou em suas redondezas – e reinterpretações da mensagem protestante, altamente fiel ao
texto bíblico, mas voltada para a vida coletiva, o que poderia parecer um paradoxo.
Contudo a fé em que o mundo está em crescente destruição, e que as almas podem ser
resgatadas por Deus do inferno, faz da luta por um mundo melhor uma necessidade não
individual, mas coletiva – talvez por isso o crescimento do protestantismo também nesse
espaço predominantemente católico no passado.xviii
Suas características não vão muito além do que acontece no resto do país, onde o
ressurgimento da religião empurra intelectuais para a sua análise.
Conclusões:
Fica claro, até o presente momento, da participação ou mesmo o auxílio, que alguns
setores da Igreja Católica prestou a movimentos sociais a partir de 60. Temos motivos para
crer que esse apoio chegou ao campo na forma de política e politização, tendo como
parâmetro teórico-prático o cristianismo da libertação, sendo reestruturado e reelaborado a
partir de práticas locais (na Bahia) e de uma sistematização própria da fé, por parte dos
trabalhadores rurais em contenda com o poder público por melhores condições de vida e
por uma democratização da terra.
Acreditamos ainda que na formação do MST – Movimento dos Trabalhadores
Rurais Sem-Terra na Bahiaxix os trabalhadores rurais deram um novo significado ao
Cristianismo da Libertação muito mais crítico, porque vivido e quotidianamente elaborado,
fruto das lutas (quase sempre violentas) contra o latifúndio. Ou seja: o papel da
religiosidade libertária encontra na política revolucionária uma ligação forte por conta da
origem e do desenvolvimento da realidade dos assentados, que alimenta e é alimentada pela
proposta organizativa e mais amplaxx do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem-Terra.
A alguns documentos ainda não foi possível nosso acesso, pois, ao contrário do que pensam
muitos e poucos conhecem, o MST tem muito cuidado com sua documentação e o processo
de pesquisa tende a ser lento por tala motivo.
Por fim, a maior dificuldade da pesquisa – agora já dirimida – tenha sido em tratar
dessa problemática em uma perspectiva histórica, pois a dificuldade desse tema reside em
sua aproximação – como alguns historiadores golpeiam – ou mesmo em se tratando do
tema – “estudar a religião dos trabalhadores rurais?” ou “Teologia da Libertação? Isso é
21
História?”, como outros pseudohistoriadores polemizam por desconhecimento ou
deficiência teórica. Ou mesmo em uma análise de “História recente” ou História Atual, que
certos “historiadores” continuam insistindo não ser possível para essa ciência. Nós
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24
com a força dos camponeses no Nordeste. Os movimentos de maior expressão e apelo popular com origemnas Ligas tem seu espaço limitado ao campo, o que não acontece de todo com o MST, que tem em sua basesocial mesclada com pequenos agricultores sem-terra, desempregados rurais e urbanos e ex-trabalhadores deindústrias e oriundos dos centros urbanos – retornando ao trabalho na terra depois de “experimentar” o êxodorural.xii Diga-se de passagem, setores progressistas, que após experenciarem a organização das CEB’s, retornam –ou continuam – dando apoio aos movimentos ruraisxiii GOHN, Maria da Glória. (2000)xiv Ver principalmente FERNANDES, Bernardo Mançano (1999). Nesse livro o autor nos apresenta, talvez, amais completa estrutura e estruturação do MST em São Paulo, desde sua origem até os dias atuais. É certo queem sua paixão pelo Movimento Sem-Terra (e de fato é apaixonante!), o autor se perde em algumas passagensdo texto, mas no geral a análise exposta no texto é apropriada para uma leitura do Movimento Sem-Terra.xv IOKOI, Zilda Grícoli. (1996)xvi LÖWY, Michael (2000).xvii COUTINHO, Carlos Nelson. (2000).xviii Diferente do Catolicismo, entre os protestantes a assistência espiritual ao rebanho se faz mais intensa edirecionada, principalmente aos novos convertidos e pessoas em dificuldades, o que serve para familiarizar osirmãos com a denominação a qual faziam parte ainda permite com maior sucesso a manutenção dos crentes.Seu papel agregador contribui enormemente para a manutenção dos laços internos do MST, não que sejaimprescindível a organização do movimento, mais é importante para a consecução as atividades políticas.Discutimos em outro trabalho esse papel do protestantismo. Ver: CRUZ, Danilo Uzêda da. E GUIMARÃES,Tarcísio Farias. (2001).O protestantismo histórico no Sertão Baiano. III Simpósio Nacional de História dasReligiões e Seminário Internacional de História das Religiões: Insurgências e Ressurgências no CampoReligioso. Em CD-Room.xix Falamos “na Bahia” por se concentrar na nesse Estado e, em particular, no Recôncavo o objeto central denosso estudo. Mas acreditamos seriamente que o MST em sua gestação seguiu processo similar.xx É estudando os documentos de formação que percebemos tal proposta, que pode vir a se tornar real com aconcretização do projeto político do Partido dos Trabalhadores, bem próximo neste ano com o desempenho deLula nas campanhas para Presidente. Pelo menos é o que esperamos.
25
RELAÇÕES ENTRE A IGREJA CATÓLICA E O ESTADO REPUBLICANO
Solange Dias de Santana
Mestranda em História – UFBA
Bolsista CAPES
INTRODUÇÃO
A presente comunicação faz parte de um trabalho mais amplo – projeto de
mestrado – voltado para o estudo das relações políticas entre Igreja Católica e Estado
após a Revolução de 1930 na Bahia e a atuação de D. Augusto Álvaro da Silva. Por
tratar-se de pesquisa em andamento, o trabalho apresentado demonstra os primeiros
resultados da pesquisa, não sendo portanto conclusivo.
Durante todo o período colonial e imperial a Igreja Católica esteve atrelada ao
Estado, o que lhe conferia segurança e estabilidade, tanto política quanto econômica.
Proclamada a República, a situação transformou-se completamente. Ela que sempre fôra
utilizada como instrumento político (Azevedo,1981), ficou oficialmente separada do Estado
a partir de 1890.
A nova situação trouxe sérios problemas de diversas ordens à instituição,
inclusive financeira. Mas foi a ideologia do novo regime que feriu profundamente a
tradição católica, e, por isso mesmo, mobilizou a hierarquia eclesiástica para um
movimento de revitalização da Igreja Católica no Brasil.
Os positivistas vislumbravam o progresso e a modernização que os mesmos
pregavam em sua propaganda republicana. Já os liberais tinham como ideal republicano
que as liberdades individuais fossem plenamente protegidas pelo novo regime. Segundo
José Murilo de Carvalho:
“O instrumento clássico de legitimação de regimes políticos no
mundo moderno é, naturalmente, a ideologia, a justificação racional
da organização do poder. Havia no Brasil pelo menos três correntes
26
que disputavam a definição da natureza do novo regime: o
liberalismo à americana, o jacobinismo à francesa e o positivismo.
As três correntes combateram-se intensamente nos anos iniciais da
República, até a vitória da primeira delas por volta da virada do
século”. (Carvalho,2000, p.9) 1
A RESTAURAÇÃO CATÓLICA NA REPÚBLICA VELHA
A República se instalou sob o signo liberal do laicismo. A inspiração laicista
nas instituições políticas engendrada pelo novo regime inspirou-se no Racionalismo e
Humanismo. Com este último desde o século XVIII a antiga unidade espiritual é rompida.
Com a introdução do Racionalismo, não é mais Deus a medida de todas as coisas, mas o
homem (Azevedo,1991). Essa laicização abriu caminho ao agnosticismo e ao ateísmo. O
padre representava o antigo, o ultrapassado – a tradição. Assim, sofreu a Igreja oposição
por parte dos liberais e positivistas, e por isso a hierarquia também manteve um ar de
desagrado para com a República por diversos anos.
A Igreja Católica opunha-se ao liberalismo, porque este levava a sociedade ao
laicismo, que por sua vez podia levar ao comunismo. O que seria a derrocada da sociedade,
com a exclusão de Deus da vida das pessoas, das escolas, etc.
Contudo, a partir da década de 20 do século passado a Igreja Católica Brasileira
entrou em nova fase, conhecida por Restauração Católica (1920-1930)2. Com esse
movimento, a hierarquia eclesiástica desejou criar uma ordem política e social
fundamentada nos princípios cristãos. Nesse período a Igreja se dispôs a uma maior
colaboração com o governo. Desejou um acordo com o Estado onde o poder civil e
religioso se unissem para defender interesses e metas comuns. O poder político por sua vez,
voltou a ver na Igreja um valioso apoio para a manutenção da ordem pública, conturbada
por movimentos revolucionários que caracterizaram esse período. Segundo a visão das
autoridades políticas e religiosas esses movimentos opositores ao sistema vigente,
destinavam-se a desagregar a unidade política e religiosa.
O grande líder desse movimento foi D. Sebastião Leme, desde 1916 ainda em
Olinda e Recife, e, principalmente a partir de 1921, quando foi nomeado Bispo Coadjutor
do Rio de Janeiro. “Graças a seu prestígio e influência, o poder da Igreja passou a ser
27
respeitado e valorizado nessa época” (Azzi,1977, p.101). D. Leme buscou inicialmente,
mobilizar o próprio clero, que deveria sair dos púlpitos para orientar a sociedade civil,
juntamente com a formação de um laicato católico, estimulados e dispostos a difundir o
catolicismo por todo o país. Todas essas ações exprimiam as orientações da Cúria Romana:
recuperar a influência católica nas instâncias do poder político no Brasil através do ensino
religioso obrigatório e a criação e desenvolvimento da Ação Católica 3. Através do laicato
católico, influenciar o poder político, uma vez que objetivavam ascender a cargos políticos
importantes e estratégicos, para poderem fazer oposição às idéias liberais e anti-clericais.
Aliás quanto ao ensino religioso, a Igreja obteve uma vitória parcial logo no
início do Governo Provisório: o Pe. Leonel Franca interlocutor da Instituição, argumentou
muitíssimo bem com o então ministro da educação, Sr. Francisco Campos. Este por sua
vez, convenceu Vargas do excelente retorno político que traria o decreto (19.941 de
30/04/1931) em permitir o ensino facultativo de religião nas escolas oficiais. Segundo
Campos, talvez fosse o ato de maior alcance político do novo governo, uma vez que
implicaria numa total mobilização da Igreja Católica favorável ao Estado, que vivia um
período de instabilidade nesses primeiros meses. E o Catolicismo apesar de ter perdido a
hegemonia, era de longe a maior expressão religiosa do país.(Azzi, 2001).
Segundo Maria das Graças Andrade de Almeida, formou-se um ideário
cruzadista que se propagou nos anos 30 através da Cruzada de Educadoras Católicas, a
Ação Católica e a Liga Eleitoral Católica (Almeida, 2001).
Essa ‘cruzada santa contra o laicismo’ teve como base o Centro Dom Vital ( o
nome lembra o caráter combativo do Bispo pernambucano na defesa dos direitos da Igreja),
criado em 1922 e difundiu-se através da revista ‘A Ordem’, são eles dois marcos nesse
processo inicial de “recatolização” da sociedade brasileira. Em Salvador temos o periódico
‘Era Nova’ fundado por D. Augusto em junho de 1928. 4
O CATOLICISMO E A NOVA ORDEM POLÍTICA
Com a Revolução de 1930 a postura da Igreja foi muito mais incisiva e outros
personagens destacaram-se. Os principais integrantes da hierarquia católica que assumiram
posição diante da Revolução foram o próprio D. Leme; D. Augusto Álvaro da Silva; D.
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João Becker e D. Antonio Cabral, Arcebispos Metropolitanos da Bahia, Porto Alegre e
Belo Horizonte respectivamente.
Eis o momento adequado para a revisão dos pontos nevrálgicos entre as duas
instituições, pois a hostilidade que existia da Igreja para com a República Velha não se
dirigia à estrutura política ou social, mas a organização jurídica que lhe retirou os direitos e
regalias. “A Igreja Católica não reclamava contra possíveis injustiças de ordem econômica
e social, mas simplesmente contra o caráter laicista da primeira constituição
republicana”. (Azzi,1980, p.76)
Com a queda da Primeira República, desaparece também a vigência da
Constituição de 1891. A hierarquia católica acreditava ser chegada a hora de se estabelecer
uma nova ordem jurídica, com base nos princípios cristãos. A pressão se deu por diversas
formas: pronunciamentos em festas comemorativas religiosas; jornais; círculos; a Ação
Católica Brasileira que foi oficializada em 1935, sob os moldes da AC Italiana, com a
participação efetiva dos leigos, etc. A exemplo dos Congressos Internacionais utilizados
pela Santa Sé como forma de demonstrar a importância católica no mundo, nos anos 30 se
iniciou a série de Congressos Eucarísticos Nacionais e Estaduais como forma de mostrar ao
governo brasileiro a força e a importância do catolicismo para a sociedade brasileira. O
primeiro deles aconteceu em Salvador sob a liderança de D. Augusto Álvaro da Silva.
É importante ressaltar que a idéia principal dos pronunciamentos feitos pela
hierarquia eclesiástica foi de colocar a salvação da pátria na religião.
“A insistência do episcopado é numa linha tipicamente
espiritualista: Cristo é o rei e o salvador do Brasil; a salvação da
pátria está na religião católica (...) é necessário que os governantes
do país tenham fé e acatem a religião; é necessário que a legislação
brasileira expresse a fé católica do povo”. (Azzi,1980, p.77, grifo
nosso)
O que confirmamos nas palavras de D. Augusto em semana comemorativa à
celebração do Cristo Rei em 1931:
“Cristo Redentor é nosso rei (...) Possa ele encontrar sempre a
espada de Deus sobrepujando o gládio de César. A nacionalidade
aliada à fé, o patriotismo orientado pelos ditames da verdade
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sagrada (...) Os dois poderes que dirigem o homem não podem ser
antagônicos. Somos independentes, mas sejamos unidos (...) O
bronze dos canhões facilmente se derrete. A fé do povo, a vontade do
povo, a crença são, ao contrário, garantia que perdura com a
própria eternidade de Cristo”. (Azzi, 1980, p.63-4)
No mesmo episódio, o Cardeal Leme também se pronunciou, porém, mais
incisivamente. “Ou o Estado reconhece o Deus do povo, ou o povo não reconhecerá o
Estado”. (Azzi, 1980, p.64)
Apesar dos reveses criados depois da instauração da República, e a perda da
hegemonia da confissão religiosa devido ao avanço do protestantismo e do espiritismo, a
Igreja Católica na Bahia, como no Brasil, continuava a ter sua base no conjunto das classes
dominantes. Exprimia uma prática conservadora. Seus princípios morais, religiosos e
sociais encontram sua inspiração no conservadorismo, em que predominam os valores de
ordem e autoridade. Daí a falta de espaço para idéias liberais, socializadoras e plenamente
democráticas. Realizava seu trabalho pastoral principalmente junto às classes dominantes e
classes médias urbanas, com procedimentos e conteúdos que refletiam uma hegemonia
externa (européia) sobre ela.
Contraditoriamente, a base da estrutura social não participava ativamente das
atividades da Igreja, mas desenvolvia tanto formas diversas de religiosidade popular como
se dedicava à prática de outros cultos, mesmo declarando-se católicas. Talvez pelo fato da
mensagem da Igreja representar os interesses das oligarquias e vir codificada na linguagem
delas.
Durante a Primeira República, a Igreja Católica preparou-se para voltar ao
poder, recolocar a instituição na antiga posição, “recatolizar o regime político”
(Azevedo,1981, p.79). Por isso adotou uma estratégia que baseava-se na: “mobilização do
clero e sobretudo na intelligentzia católica para fazer frente ao anticlericalismo, ao
ateísmo militante emergente e à indiferença religiosa das elites republicanas”. (Azevedo,
1981, p.80).
Segundo diversos autores, entre eles Thales de Azevedo, esse processo
conheceu duas fases: a primeira dirigida pela LEC (Liga Eleitoral Católica) tanto na
constituinte Federal como nas estaduais (1934-35), e a segunda, coincidente com o Estado
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Novo, onde a instituição através de aliança implícita com o Estado, volta a ser utilizada
como instrumento político.
Como já vimos, a liderança do projeto de ‘recatolizar’ a sociedade e o objetivo
de reintegrar politicamente a Igreja ao Estado (Almeida, 2001), coube ao Cardeal Leme,
que teve diversos colaboradores, inclusive leigos como Jackson de Figueiredo e Tristão de
Ataíde entre outros, reunidos no Centro Dom Vital, que muito contribuiu para a
recristianização dos costumes, a dinamização da intelectualidade católica e a mobilização
para a Ação Católica Brasileira (ACB).
DOM AUGUSTO ÁLVARO DA SILVA
D. Augusto além de ser o segundo prelado mais importante da hierarquia
episcopal, trabalhou com afinco para que o movimento da Igreja fosse vitorioso. Sua ação
centrou-se em influenciar as elites intelectuais e classes dominantes, pretendendo assumir
um papel de liderança entre o povo baiano, buscou novas bases de colaboração com o
governo do estado em defesa da ordem e autoridade, tidos como valores supremos no
ideário conservador dos anos trinta.(Dutra, 1997).
Dom Augusto Álvaro da Silva nasceu a 8 de abril de 1876 em Recife, filho de
Raimundo Honório da Silva e Amélia Elisa Ramos da Silva, viveu a infância no Rio de
Janeiro, onde estudou no Colégio Pestalozzi, fundado e dirigido por seu pai. Fez o curso
secundário no Colégio Estadual de Pernambuco, em Recife. Ingressou no Seminário de
Olinda em 1892, recebendo as ordens sacras em 1899. Em 1900 assumiu a direção da
Paróquia de São José ainda em Olinda. Em 1911 foi elevado a Bispo e designado para a
recém criada Diocese de Floresta, no interior de Pernambuco. Em 1915 Dom Augusto foi
transferido para a Diocese de Barra do Rio Grande, interior da Bahia. Tanto em Floresta
como em Barra, seu ministério foi considerado “revolucionário trabalho de catequese”
(Jornal do Brasil,5/4/1976), diferenciado, por ele fazer um constante acompanhamento das
paróquias, a cavalo ou a vapor quando possível.
Com a morte de Dom Jerônimo Thomé da Silva, foi anunciado para a
Arquidiocese Primacial, tomando posse em 21 de maio de 1925. Permaneceu no cargo 43
anos, deixando sua marca indelével no Arcebispado da Bahia. Homem possuidor de uma
moral rígida, foi sem dúvida uma das personalidades mais marcantes e polêmicas que a
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hierarquia eclesiástica baiana conheceu. Reagia veementemente à secularização do clero.
Não permitia que os sacerdotes de sua vasta diocese deixassem de usar a batina, para ele
“pau se reconhece pela casca”. Segundo as pessoas que o conheceram, sua aspereza e
secura escondiam uma alma sensível, e representava na realidade, um dispositivo para
conter os excessos da cordialidade baiana. 5
Sensível certamente o foi, sendo inclusive poeta e tendo publicado um livro –
Cânticos de Fé – sob o pseudônimo de Carlos Neto. Exímio orador teve também seus
sermões editado. Mas foi antes de tudo um homem de seu tempo. Tempo este turbulento
desde o seu nascimento, pouco depois da ‘Questão Religiosa’, episódio que fez estourar a
crise entre a Igreja Católica e o decadente Império brasileiro. A República que veio a
seguir, pôs fim ao Padroado, e obrigou a Instituição a uma reorganização estrutural. Esse
período coincidiu com o período em que esteve no Seminário e com os primeiros anos do
seu sacerdócio. Em contato com a nova ‘ordem’ religiosa que se impôs, sob a forte
liderança de D. Leme, Bispo de Olinda e posteriormente do Rio de Janeiro, Dom Augusto
se vê impelido a ela. Tarefa que assume com todo fervor e dedicação, ainda mais quando
assume o Arcebispado da Bahia, ficando em segundo lugar na hierarquia católica brasileira.
Apesar da breve explanação, pode-se afirmar que ao lado das discutidas
qualidades do prelado: sensível, autoritário, severo, etc., ele foi um hábil articulador
político, que não mediu esforços para levar a cabo o projeto da Igreja em reaver as antigas
posições perdidas com a instauração da República. Agiu com o intuito de fortalecer a
instituição que dirigia com mãos de ferro – a Igreja Católica Baiana, e assim fortalecer a
própria Igreja Católica como um todo.
A ele são atribuídas diversa questões políticas e jurídicas. Por exemplo, a sua
contribuição ao fim da administração Artur Neiva, quando D. Augusto exige a demissão de
Bernardino de Souza em troca do seu apoio ao governo. Percebe-se neste ato, as estreitas
ligações entre o poder religioso e o político, e, ainda seus fortes laços com as elites baianas.
O curto mandato de Artur Neiva (5 meses) deveu-se basicamente à Reforma Municipal por
ele encaminhada: esta reforma “alterou profundamente a divisão administrativa do estado.
Por meio de um simples decreto, municípios foram divididos e/ou incorporados a outros:
sedes de governos locais, transferidas; municípios com séculos de existência,
abruptamente apagados do mapa” ( Sampaio,1992, p.70). Os protestos partiram de todo o
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estado, de todas as classes, principalmente dos grandes proprietários e líderes políticos. O
verdadeiro arquiteto da reforma foi seu Secretário do Interior e braço direito, Bernardino de
Souza, conhecido professor e diretor da Faculdade de Direito da Bahia e declaradamente
agnóstico. Como o próprio Neiva era suspeito de também o ser, D. Augusto não perdeu a
oportunidade de pressioná-lo para alinhá-lo aos desejos das elites e da Igreja ou como
aconteceu, apressar sua saída.
Há momentos também de demonstração de apoio ao governo estadual. O
próprio Juracy Magalhães reconhece a importância desse apoio, pois quando chegou à
Bahia, sofreu intensa rejeição dos políticos da capital, até mesmo de Seabra, que se
identificava com a Revolução, mas não se considerou aquinhoado por ela. Muitas foram as
críticas à sua pessoa: jovem, forasteiro, militar. Mas Juracy soube contornar bem as
situações hostis, contando inclusive com o apoio de outro forasteiro, D. Augusto Álvaro da
Silva. “aos poucos fui me ligando aos baianos, ajudado por pessoas importantes, como o
arcebispo D. Augusto, que anos depois seria sagrado primeiro cardeal da Bahia”
(Magalhães, 1982, p.73-4).
Podemos ainda rememorar o caso da demolição da igreja da Sé 6, quando D.
Augusto preferiu satisfazer os desejos da empresa norte-americana Companhia Linha
Circular de Carris da Bahia e agradar os poderes públicos do que seguir o desejo de grande
parte da população e seus próprios princípios. É só constatar o seu pensamento através do
relato da Visita Pastoral realizada em Jaguaripe em abril de 1927:
“Encontramos ambas as igrejas desta cidade em obras; dois
magnifícos templos que o descaso e a incúria deixaram chegar quase
a estado de ruina, apesar da solidez admirável de suas construções.
Os mais claros vestígios fazem advinhar a opulência antiga dessas
igrejas: restos de alfaias caríssimas e preciosíssimas, destruições
propositais de velhos armários de jacarandá lavrado a capricho, e
de retábulo do tecto de grande valor artístico, etc. Uma desolação!”
Quando porém, realiza Visita Pastoral ao Curato da Sé na capital em julho do
mesmo ano, o discurso mudou de tom.
“Observamos o ritual das visitas: exame da igreja, das alfaias, dos
confessionários, púlpitos, baptistério, etc. Achamos o templo
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bastante arruinado pelo justo motivo de se pretender, desde muito
tempo, fazer a demolição do mesmo, pois sua posição está
actualmente prejudicando o serviço público.
No mais tudo em bôa ordem.” (Termos de Visitas Pastorais, 1926-
54).
Ora, dificilmente os dois templos de Jaguaripe seriam mais opulentos que a
Primeira Catedral das Américas, que levou mais de dois séculos para que ficasse
completamente pronta; seu valor artístico era inestimável com suas inúmeras capelas (sete
consagradas apenas às virgens). Estragada certamente estava, uma vez que o Arcebispado
não investira um conto sequer para a necessitada reforma desde pelo menos 1916, quando
iniciaram os contatos para sua derrubada. Mas não ao ponto de interditá-la. O culto
continuava até então normal, tendo inclusive o próprio Arcebispo, durante o período da
visita realizado diversos ritos.
“Durante os 4 dias da visita que terminou no Domingo, celebramos
pela manhã, pregando á tarde o Revdmo. P. Fr. Eduardo, O.F.M.,
excepção do Domingo, no qual o referido missionário celebrou e
pregou pela manhã, pregando nós a tarde para encerramento da
Visita Pastoral.
Diariamente administramos o sacramento do Chrisma a algumas
pessoas”. (Termos de Visitas Pastorais, 1926-54).
Dom Augusto participou também diretamente do cenário eleitoral no início dos
anos 30. Sempre tecendo elogios ao Sr. Interventor Juracy Magalhães, apoiando-o através
de discursos, notas em jornais, etc. Juracy por sua vez, também o lisongiava, liberando
recursos para casas pias que prestassem algum tipo de assistência social, ou algo similar,
como no caso da demolição da Sé, com “a doação do edifício do antigo fórum, situado no
Convento da Palma pelo Estado à Prefeitura, que por sua vez, o deu à Mitra como
compensação pela antiga Catedral, fora os 300 contos de réis, além de outras benesses
como 10 anos de iluminação gratuita para o seminário, às custas segundo Rocha Peres
(1973) da Prefeitura”.(Santana, 2001, p.7-8).
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Quanto às eleições, o processo de reconstitucionalização foi apressado pela
Revolução Paulista de 1932, que mobilizou de novembro do mesmo ano a abril de 1933 os
políticos para que se organizassem em partidos. 7
Na Bahia a formação de uma frente única que fizesse oposição ao novo
governo, não foi inicialmente possível, devido a falta de importantes líderes afastados do
cenário político, como Otávio Mangabeira e Simões Filho.
É necessário relembrar que no seio do governo haviam grupos divergentes
quanto a reconstitucionalização do país. Os Tenentes opunham-se porque achavam que a
sociedade brasileira não se encontrava preparada para a democracia, logo, a Constituinte
seria uma precipitação. O Interventor Juracy contrário que era ao processo
reconstitucionalizador, não titubeou em manter a posição da corporação. Além de enviar
reforços para combater os paulistas em 1932, empreendeu na capital baiana, dura
perseguição aos que se pusessem favoráveis à campanha pela Constituinte, principalmente
a estudantes e professores. Uma manifestação ocorrida na Faculdade de Medicina resultou
na prisão de 521 pessoas e em uma morte. Esse episódio ficou conhecido por “22 de
agosto”.
O próprio Juracy (como os demais opositores) porém, foi obrigado a engajar-se
na campanha e para assegurar a vitória do governo, aliou-se aos coronéis que teoricamente
deveria combater. Assim ele conseguiu eleger 20 dos 22 deputados que formavam a
bancada baiana para a Assembléia Constituinte. 8
Contudo o que nos interessa neste processo, é a articulação política
empreendida por D. Augusto (através da LEC) para arregimentar candidatos, que uma vez
eleitos, dessem voz aos anseios e objetivos da Igreja Católica em reaverem prerrogativas
perdidas com o fim do Padroado. E, destacadamente continuarem a influenciar a sociedade
brasileira. Assim foi o caso do Preâmbulo da Constituição, com a invocação do nome de
Deus, que suscitou diversos debates; o ensino da religião nas escolas; não permitir que o
projeto de divórcio passasse, etc.
Como já foi dito anteriormente, os pontos nevrálgicos entre a Igreja e o Estado,
não dizia respeito ao sistema escolhido para governar, mas jurídico. A primeira
Constituição Republicana, retirava todos os privilégios da Instituição que lhe assegurava
plena influência na sociedade brasileira. E era chegada a hora de reverter esse quadro,
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restabelecer uma nova ordem jurídica que lhe fosse favorável. Para a tarefa D. Augusto
através da LEC arregimentou políticos tanto do partido da situação (PSD) como da
oposição (Concentração Autonomista-CA) e de todas as idades. Eis alguns deputados
imbuídos de tal missão: Rafael Jambeiro (CA) de Castro Alves, 71 anos; Mario Peixoto
(CA) de Canavieiras, 49 anos; Augusto Publio Pereira (CA) de Cachoeira, 28 anos;
Domingos Veloso (PSD) de Entre Rios, 33 anos; Dantas Júnior (PSD) de Itapicuru, 37
anos; Alfredo Amorim (PSD) de Santo Amaro, 51 anos, antigo professor de História
Sagrada no Ginásio São Salvador; Raimundo Rocha (PSD) de Salvador, 49 anos, contador
não era político militante. “Atribuía seu sucesso nas eleições de 14 de outubro mais ao
apoio da Liga Eleitoral Católica do que da Concentração Autonomista, que não o
prestigiara. Estava mesmo ameaçado de perder o mandato nas eleições suplementares,
mas o PSD governista garantira a sua vitória”. (Sampaio, 1992, p. 168-9).
Entre as exigências dos católicos para que fossem referendadas na nova
Constituição a Igreja apresentou os seguintes postulados:
• Promulgação da Constituição em nome de Deus;
• Defesa da indissolubilidade matrimonial e reconhecimento dos efeitos civis ao
casamento religioso;
• Incorporação legal do ensino religioso, facultativo nos programas das escolas públicas
primárias, secundárias e normais (federais, estaduais e municipais);
• Regulamento da assistência religiosa facultativa às classes armadas, prisões, hospitais,
etc.;
• Liberdade de sindicalização, para que os sindicatos católicos, legalmente organizados,
pudessem ter os mesmos direitos dos sindicatos neutros;
• Reconhecimento do serviço eclesiástico de assistência espiritual às forças armadas e às
populações civis, como equivalentes ao serviço militar;
• Decretação de legislação do trabalho inspirada nos preceitos da justiça social e nos
princípios da ordem cristã;
• Defesa dos direitos e deveres da propriedade individual;
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• Decretação da lei de garantia da ordem social contra quaisquer atividades subversivas,
respeitadas as exigências das legítimas liberdades políticas e civis;
• Combate a toda e qualquer legislação que contrarie, expressa ou implicitamente, os
princípios fundamentais da doutrina católica. (Mensageiro do C. de Jesus, 1934).
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Como podemos ver desde a separação oficial entre a Igreja Católica e o Estado
Republicano Brasileiro, que a instituição preparou-se para retornar às instâncias do poder.
Com outros parâmetros e em novas bases é verdade, pois o regime do Padroado apesar de
oferecer estabilidade e privilégios, representava também, dependência ao Estado. Mas o
desejo de continuar na esfera do poder era imperioso e até necessário para dar segmento a
sua influência na sociedade brasileira.
Na tentativa de implantar uma ‘Nova Cristandade’, a Igreja iniciou um
movimento de Restauração Católica nos anos 20 e frente às mudanças políticas ocorridas
com a ‘Revolução’ de 1930, saiu definitivamente a campo para assegurar-lhe o que
considerava ser de direito: guiar exclusivamente a sociedade brasileira.