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Jos P. Castiano
O Currculo Local como Espao de Coexistncia de Discursos: Estudo
de caso nos Distritos de Bru, de
Sussundenga e da Cidade de Chimoio - Moambique
Revista e-Curriculum, vol. 1, nm. 1, dezembro, 2005, p. 0,
Pontifcia Universidade Catlica de So Paulo
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O CURRCULO LOCAL COMO ESPAO SOCIAL DE
COEXISTNCIA DE DISCURSOS:
ESTUDO DE CASO NOS DISTRITOS DE BRU, DE
SUSSUNDENGA E DA CIDADE DE CHIMOIO - MOAMBIQUE
THE LOCAL CURRICULUM AS A SOCIAL SPACE OF THE COEXISTENCE
OF THE DISCOURSES - MOZAMBIQUE
CASTIANO, Jos P. [email protected]
[email protected]
RESUMO Este artigo explora at que ponto, por meio do currculo
local, na escola moambicana institucionaliza-se um espao social de
dilogo entre os saberes de natureza local e os saberes de natureza
universal. O currculo local, argumenta-se, no s como espao de
integrao de saberes, valores e prticas locais no currculo nacional,
mas sobretudo ele potencialmente um espao de negociao, avaliao e
validao dos saberes de ambas naturezas. A comunicao explora a
questo, at que ponto a introduo do Currculo Local no ensino bsico
abre possibilidades de transcender a coexistncia silenciosa entre
os saberes curriculares universais e locais. A argumentao funda-se
em alicerces tericos e empricos. Na primeira parte explora-se a
hiptese do Currculo Local ser um espao social de coexistncia de
discursos tornando frutferos os conceitos de apropriao e de
reapropriao hountondjianos.O alicerce emprico do argumento baseado
nos resultados do estudo realizado durante os meses de Outubro e
Novembro de 2003 nas escolas primrias que experimentaram o novo
currculo para o ensino bsico nos distritos de Bru, Sussundenga e na
cidade de Chimoio (Provncia de Manica, Moambique).
Pontifcia Universidade Catlica de So Paulo
Programa de Ps-graduao Educao: Currculo
Revista E-Curriculum
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Palavras-Chave: Currculo Local, Sistema Africano de Saberes
Indgenas, Saber Local
ABSTRACT The paper explores to which extent, trough the
introduction of the Local Curriculum in Mozambican schools, a
social space for dialog between local and universal knowledge is
institutionalized. It is argued that the Local Curriculum is not
only a space for the integration of both kinds of knowledge, of
values and of local practices, but potentially it is a space of
negotiation, evaluation and validation of both. The paper explores
also the question of the possibility that Local Curriculum offers
to overcome the silent coexistence between the universal and the
local curriculum knowledge. The outlined arguments are theoretical
and empirical. The theoretical argument, making fruitful the
Hountondjean concepts of appropriation and of the reappropriation,
explores the hypothesis of the Local Curriculum being a space of
the coexistence of the discourses. The empirical argument is based
on the field studies undertaken during October and November 2003 in
primary schools in the districts of Bru, Sussundenga and in the
city of Chimoio (province of Manica, Mozambique). Those were the
first pilot-schools to introduce the Local Curriculum. Key words:
Local Curriculum, African Indigenous Knowledge Systems, Local
Knowledge
INTRODUO
No discurso moderno predomina a idia segundo a qual frica um
continente
composto por sociedades dicotmicas coexistentes: uma sociedade
tradicional e outra
moderna, sendo a primeira predominante no meio rural e segunda
no meio urbano. Sob
do ponto de vista do conhecimento, esta dicotomia expressa pela
existncia conflituosa
de saberes, valores e prticas de natureza local-tradicional e
outro tipo de saberes, valores
e prticas de natureza e validez universal.
Na perspectiva econmica a dicotomia expressa explcita ou
implicitamente
com a pressuposio da (co) existncia de dois modelos econmicos
paralelos: uma
economia tradicional de subsistncia predominante nas zonas
rurais e uma economia
formal, industrial e moderna predominante nas zonas urbanas.
No discurso educacional hodierno , por um lado, frequente o uso
do termo
educao formal para designar um tipo de educao que segue
modelos
epistemolgicos, morais e estruturais da modernidade mas, por
outro, tambm frequente
o uso do termo educao tradicional que procura designar modelos
de educao que
seguem um padro epistemolgico, tico-moral e estrutural baseado
em tradies
culturais dos povos locais.
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Olhando o mesmo discurso numa perspectiva filosfica, e se ns
emprestamos as
palavras usadas por Lyotard (1984) na obra A Condio Ps-moderna,
encontramos o
termo como meta-narrativas que contrasta com o termo
micro-narrativas; estes
termos expressam o reconhecimento da existncia de dois tipos
dicotmicos de discursos
ou racionalidades, sendo a primeira expressando uma
racionalidade tcnico-cientfica e a
segunda designando narrativas ou racionalidades de validade
local.
Segundo Lyotard (1984), as micro-narrativas emergem no encalo do
declnio do
poder regulatrio do paradigma cientfico moderno e da descoberta
dos limites desta (em
termos de pressupostos e procedimentos de verificao) para
resolver os problemas da
humanidade tais como os riscos ambientais, a ameaa de guerras
nucleares, a ameaa que
pesa sobre as democracias modernas por haver srias de restrio
das liberdades
individuais, etc.
A ideia da existncia de uma sociedade africana dotada de
estruturas duais
paralelas no nova na tradio do pensamento social e nem dirigida
exclusivamente
para expressar a condio de existncia no continente africano.
Laclau (1978, p.19-45),
por exemplo, demonstrou, para o caso latino-americano e a
tomando uma perspectiva
neomarxista, como este dualismo de concepes no desenvolvimento
social tomou
contornos no pensamento das elites liberais latino-americanas
durante sculo XIX.
No obstante s diferenas discursivas na apresentao da sociedade
africana
como sendo dicotmica, estes discursos levam como pressuposto,
directa ou
indirectamente, a existncia de uma dualidade social (tradicional
e moderno) com
saberes, prticas e valores aparentemente contraditrios e em
conflito, no articulados ou
at mesmo incompatveis entre si. nesta ordem de idias que
Hountondji (2002, p. 225)
chama-nos ateno pela necessidade de se transcender a coexistncia
silenciosa entre
os sabres, prticas e valores de natureza institucional-moderna e
de natureza tradicional-
local nos pases africanos.
Este artigo foi escrito a partir do pressuposto de que existe um
processo de
procura de articulao ou integrao de ambos os mundos de vida.
Defendo que a suposta
existncia dos dois mundos que estejam em conflito de vida ou
morte comea a dar
lugar a processos de interaco e argumentao entre os diferentes
saberes, prticas e
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valores. Esta interaco vai ganhando contornos sociais, culturais
e polticos prprios,
isto , vai-se institucionalizando.
O desafio terico social que deriva deste pressuposto o de
reconhecer os novos
contornos resultantes da interaco e apresent-los numa esteira
discursiva. Porm, este
desafio passa por identificar espaos sociais institucionalizados
(ou reconhecer os
processos de institucionalizao desta integrao) nos quais
saberes, prticas e valores de
natureza local coabitam, coexistam e se confrontam com os de
natureza universal. Da
mesma maneira seria necessrio identificar os potenciais actores
ou agentes sociais que
vo ganhando o papel social de ocupar estes espaos e portanto
desempenham um papel
activo para transcender a (co) existncia silenciosa entre
ambos.
Importa aqui equacionar como que o currculo local pode ser a
plataforma
institucional na educao para a negociao argumentativa e
racional. Para mostrar este
desafio a argumentao funda-se em alicerces tericos e empricos.
Os alicerces de
ordem terica, apresentados na primeira parte, partem das ideias
de Hountondji sobre a
necessidade da apropriao dos conhecimentos cientficos universais
e a da reapropriao
dos saberes que ele chama de endgenos. Os alicerces empricos da
argumentao,
apresentados na segunda parte, fundamentam-se numa pesquisa de
campo realizada nos
meses de Outubro e Novembro de 2003 na Provncia de Manica que
visava analisar o
processo de integrao das necessidades relevantes de aprendizagem
na escola por via do
currculo local.
EXTROVERSO, APROPRIAO E REAPROPRIAO
O primeiro termo que uso de extroverso. Este um termo usado
por
Hountondji para expressar o facto de a produo cientfica feita na
frica estar, em
primeira linha, orientada para a sua exportao e o seu consumo
nos pases desenvolvidos
fora do continente. No seu livro The Struggle for the Meaning,
Hountondji (2002) explica
que adoptara este termo do economista poltico neo-marxista
Shamir Amin. Este havia
usado o termo extroverso para caracterizar as economias dos
pases da periferia,
particularmente dos pases africanos, por estarem viradas para a
exportao dos seus
produtos e no em primeira linha para o consumo interno. Segundo
o mesmo Shamir
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Amin, esta situao, em vez de diminuir a dependncia, perpetua o
subdesenvolvimento e
a pobreza destes pases.
Hountondji (ibidem) usa o mesmo termo para evidenciar o
paralelismo entre os
mecanismos existentes na diviso internacional da produo material
capitalista com os
existentes na diviso internacional da produo cientfica. Pois,
segundo ele, no sistema
internacional da produo capitalista, tanto no tempo colonial
como na era ps-
independncias africanas, os pases africanos esto ainda reduzidos
a fornecedores de
matria-prima e de produtos agrcolas que posteriormente so
transformados e
manufacturados nos pases do Ocidente. Igual lgica segue a produo
cientfica: os
pases da periferia transformaram-se em reservatrios de produo de
dados empricos
cujo tratamento terico e cientfico posteriormente feito nos
laboratrios e centros de
pesquisas ou universidades dos pases desenvolvidos.
A descolonizao no conseguiu mudar esta lgica. Na diviso
internacional da
produo cientfica, as metrpoles parecem ser os teorizadores e
inventores enquanto que
os pases africanos so um grande reservatrio de factos e lugar de
experincias para
testar os resultados das invenes e teorias.
Mesmo os laboratrios e instituies de pesquisas ou universidades,
entretanto
institudo(a)s nos pases africanos independentes, trabalham mais
como instituies
inclusas na lgica da produo cientfica das instituies congneres
dos pases
desenvolvidos. Com uma tnica, quanto a mim, de exagero,
Hountondji diz que os
investigadores africanos, que procuram trabalhar descrevendo os
saberes locais, so uma
espcie de informantes instrudos na cadeia de transferncia dos
saberes para o
Ocidente (HOUNTONDJI, 2002, p. 234).
Na lgica da diviso internacional da produo cientfica o papel da
educao tem
sido o de facilitador da importao dos saberes ditos universais e
exportao do
saberes locais para os pases desenvolvidos. No tempo colonial,
ela era um instrumento
importante para transmitir o sentimento de inferioridade das
populaes locais africanas e
manter o mito da superioridade dos europeus e da sua
civilizao.
Como mostra efectivamente Mudimbe (1988), no livro The Invetion
of Africa, a
idia da frica foi moldada por um discurso dominado por
missionrios, antroplogos e
etnlogos europeus que faziam um inventrio da produo material e
cultural que
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encontraram em frica e depois moldaram os seus contornos para
transmitir no Ocidente
a imagem de um negro africano servil, pobre, enfim,
inferior.
J nos comeos do sculo XX, Blyden, um reformador eminente da
educao na
frica, notando que o resultado da educao colonial era uma criana
meio europeia e
meio africana (uma criana em dois mundos), props que se
repensasse no currculo
para que fosse mais relevante para as sociedades africanas. Ele
props, assim, a
introduo de disciplinas como Leis e Hbitos Indgenas, Religies
africanas, Sistemas
Polticos Indgenas, Msica africana, Mitologia africana assim como
Histria, Geografia,
Geologia e Botnica tambm de frica.
A Histria interessou a Blyden em particular porque ele vira nela
uma forma de
defender a cultura africana contra a idia que a frica no teria
Histria e nem cultura.
Na sua ptica, a forma como a Histria tratada nas escolas (o
africano entra na
Histria Universal a partir da modernidade como escravo) tem
efeitos negativos nos
alunos africanos porque no lhes transmite o orgulho sobre o seu
prprio passado. (Cf.
AKIMPELU, 1981, p. 93).
Da forma como a escola est concebida e estruturada hoje, no s
facilita mas
tambm incentiva a lgica da extroverso. Desde o tempo colonial at
hoje o portugus
o idioma oficial de ensino em Moambique. Ele garante a conexo
entre elites
econmicas, polticas e intelectuais moambicanas com o mundo
internacional. S os
falantes do portugus que at agora tiveram acesso mais facilitado
para o mercado de
trabalho e maiores possibilidades de ascenso social.
O portugus tambm o meio de participao poltica: o idioma
parlamentrio,
o idioma no qual folhetos eleitorais mais circulam, etc.
Dificilmente uma pessoa seria
escolhida, para posies de cargos pblicos superiores, se ela no
domina e no consegue
articular-se bem no idioma oficial. O currculo local, com a
possibilidade de aprender os
saberes locais em idiomas locais, o primeiro e o mais importante
passo dado na
educao para subverter a extroverso, desmarginalizar e
desmistificar os saberes locais.
Os pases africanos, na procura do seu desenvolvimento, poderiam
se basear no
que parece ser mais simples e de um certo modo, sbio: imitar a
cincia e as tecnologias
do Ocidente. Imitar pode ter vrios sentidos. Um deles a reproduo
fiel ou cpia
integra dos conhecimentos e tcnicas, de expresses, conceitos e
paradigmas cientficos.
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Neste caso seria uma cpia ou reproduo ntegra dos padres
cientfico-tcnicos do
Ocidente.
Um segundo sentido pode ser tico. Isto , tomar algum ou outros
como modelo
ou dolo dos modos de agir e pensar, do estilo de vida etc. Mas
imitao tambm pode ter
um sentido negativo de falsificao do original fazendo-o passar
pelo verdadeiro. Neste
caso seria uma simulao do verdadeiro. Neste sentido, estaramos
todos de acordo, que
procurar aparentar os mesmos modos, o mesmo comportamento e
sobretudo seguir a
mesma agenda cientfica e tecnolgica do ocidente seria no mnimo
contraproducente
para as nossas sociedades.
Imitando, os cientistas e os intelectuais africanos bebem o cnon
inteiro da cincia
tal e qual ele praticado no ocidente, sem antes se preocuparem
com a questo se as
tecnologias e o saber cientfico respondem de modo apropriado aos
problemas que os
pases africanos enfrentam.
Assim, o caminho da imitao da cincia e importao cega das
tecnologias
perpetuaria o nosso lugar na periferia da produo do
conhecimento. Isto significaria
perpetuar o papel de informador, colector de dados e local de
experincia dos modelos
exteriores, sem porm passar para uma fase de ler por trs do
factos e dados, sem lhes
dar uma dimenso terica. A imitao limita o nvel analtico que, por
consequncia,
condicionaria tambm a capacidade crtica nos dados e factos
colectados.
Da mesma maneira, importar cegamente algumas tecnologias (de
ponta), para
alm de ser oneroso, cairia no ridculo num meio onde ainda h
problemas bsicos por
resolver como sendo pobreza, falta de gua potvel, acesso
limitado energia elctrica,
etc.
No entanto, evidente que no podemos virar completamente as
costas ao corpo
do conhecimento cientfico e prescindir das tecnologias do
ocidente. Qual pois deve ser a
nossa relao? Para responder a esta questo aproveito um segundo
conceito tambm
usado por Hountondji: o de apropriao. Ele escreve sobre a
necessidade de uma
apropriao da herana cientfica universal e desenvolv-la de modo
selectivo e
independente de acordo com nossas necessidades e programas de
desenvolvimento
(Idem, 2002, p. 243).
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A idia da apropriao, no meu entender, pode ter dois sentidos. Um
pode
significar o acto de se apoderar de alguma coisa, de se tornar
possuidor dela (apropriao
de recursos, de bens, da herana etc.). Mas o outro sentido da
apropriao seria a aco
de adaptar alguma coisa, de a tornar adequada a um determinado
fim ou uso. Neste
ltimo sentido, por exemplo, seria necessrio apropriarmo-nos de
algumas tecnologias
para desenvolver a agricultura. Portanto, o que seria objecto da
apropriao seria aquilo
que tem qualidades ou condies de ser apropriado, isto , aplicado
e adaptado s nossas
condies. O fim da apropriao seria o de nos tornarmo-nos donos
legtimos da coisa
apropriada.
O processo de se tornar o dono, quer dizer, de ser proprietrio
de algo, leva
assim implcito, um momento crtico ou de escrutnio dos saberes e
tecnologias em
funo das necessidades. Para o caso vertente, tornar-se dono ou
proprietrio da herana
cientfica universal significa, em primeiro lugar, desmistificar
a idia que o universal
igual ao ocidental.
Pela lgica, o universal um local que se universaliza, ou seja,
que passou por um
processo de universalizao. Neste sentido, o universal tambm
inclui o continente
africano. Dito de outro modo, significa fazer um exerccio de
reconhecimento da
contribuio dos africanos nas diversas esferas daquilo que at
aqui inapropriadamente
chamei por corpo de cincia ocidental.
Em segundo lugar, o movimento da apropriao leva implcita a idia
de no
aceitar tudo, mas aceitar ser dono somente daquilo que serve
sociedade e que ser til
para a soluo dos problemas endgenos. A apropriao implicaria,
nesta ptica,
submeter cincia universal e as tecnologias importadas ao
tribunal da crtica, e ao
escrutnio por meio de lentes locais. Essas lentes locais avaliam
o universal em funo
do desenvolvimento que as comunidades locais enfrentam.
Mas, por outro lado, ningum deveria negar que exista hoje, nas
nossas culturas
orais, um corpo de conhecimento e de saberes sedimentados e que
constantemente se
enriquecem no processo de sua transmisso de gerao em gerao. H
saberes ancestrais
sobre plantas e animais, sobre as causas de certas doenas e
procedimentos para o seu
tratamento, sobre tcnicas de construo e de cultivo, saberes
estes que so usados para
resolver problemas concretos locais. Estes saberes subsistem, na
maioria dos casos, lado
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a lado com os saberes modernos, no necessariamente numa relao de
excluso mtua.
Alguns deles (por exemplo, relacionados com o uso de ervas e
insectos para o tratamento
de determinadas doenas), esto em perigo de desaparecer da memria
colectiva das
pessoas das aldeias.
Infelizmente, em vez de estes saberes terem sido integrados num
debate
argumentativo e terem sido submetidos rigidez e exactido da
tradio cientfica, eles
continuam cobertos por um vu de certo misticismo. O vu do
misticismo com que se
cobrem certos saberes tradicionais afecta profundamente o
processo de integrao,
disseminao e validao dos saberes locais para a sua projeco num
contexto mais
universal da produo e circulao do conhecimento cientfico.
Para preservar o conhecimento local e, mais do que isso,
torn-los vivel e
responsvel para com os problemas do mundo em permanente
globalizao, necessrio
submet-los ao escrutnio dos progressos cientficos modernos; por
outras palavras,
necessrio fazer o teste da sua capacidade de resposta aos
problemas modernos. Assim,
de acordo com Hountondji (2002, p. 243), o vasto movimento da
apropriao deveria
ser acompanhado para um movimento de reapropriao metodolgica e
crtica dos
saberes locais. A reapropriao seria, neste ponto de vista, uma
condio bsica para a
existncia e o desenvolvimento de uma cincia africana, ou seja,
uma prtica cientfica
que seja responsvel para os problemas especficos das sociedades
africanas.
Porm, a reapropriao traria problemas de carcter epistemolgico:
Podemos
reapropriar no seu sentido verdadeira usando lentes dos outros?
Quer dizer usando o
mesmo cnon metodolgico da Antropologia e da Etnologia do
passado? Seriam
necessrias lentes prprias centradas em pressupostos ou
postulados epistemolgicos
africanas.
Os esforos de fundar lentes tericas e metodolgicas afrocntricas
para a
reapropriao ou o resgate dos saberes tradicionais/locais, ou por
outra, para fazer
descolar uma cincia africana baseada em valores africanos,
vieram primeiramente das
etnocincias, nascidas no tempo colonial na sua verso
antropolgica. Por isso, no se
pode negar uma certa ligao das etnocincias com os escritos da
Antropologia e
Etnografia do passado enquadrados no contexto do
colonialismo.
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Porm, se estes podiam contribuir em algo para o conhecimento na
escala
universal, era sob o ponto de vista de o colonizador conhecer
melhor os costumes e
hbitos dos povos colonizados. Este conhecimento servira para que
os colonizadores
pudessem melhorar os mecanismos de colonizao.
Da mesma forma, o etnocientista actual aceita inconscientemente
- no dizer de
Hountondji (2002, p. 246) - o papel que o sistema reserva para
ele: o de um colector de
dados empricos sem ser a sua preocupao central criar espaos de
confrontao crtica
entre os saberes. No aceitando submeter-se a uma crtica terica,
as etnocincias
refugiam-se num punhado de para-teorias que tentam mistificar os
resultados a que
chegaram, considerando-os autnticos porque fomos ou fui ao campo
e falei com as
pessoas.
Num tom de exagero, Hountondji (2002) fala de unanimismo da
etnocincia,
para mostrar que esta trata as comunidades africanas como se
estivessem constitudas por
pessoas que pensam, agem, comportam-se e adoram os ancestrais da
mesma maneira.
Que existe uma filosofia sem filsofos porque no h campo para uma
reflexo crtica
individual.
Assim, para Hountondji (2002) o lugar que a etnofilosofia e das
etnocincias
ocupam na produo cientfica o de fazer um inventrio sobre os
chamados saberes
tradicionais e indgenas (ou locais) para a sua posterior
exportao para os institutos de
pesquisa e laboratrios localizados nos pases desenvolvidos.
O inventrio escrito na terceira pessoa com os olhos postos nos
centros de
pesquisa no ocidente, espreitando as possibilidades de publicao
em revistas cientficas
daqueles pases, sem entretanto os donos dos saberes estarem
presentes. o
etnocientista que apresenta os dados daquilo que as pessoas nas
comunidades africanas
so suposto de saber.
Na opinio de Hountondji (2002), a etnofilosofia e as etnocincias
nasceram
numa lgica de produo intelectual em que o investigador, seja ele
europeu ou africano,
sabe de antemo que seu pblico no-africano e que no corre riscos
de ser contradito
como porta-voz fiel da comunidade em assunto.
A excluso do pblico africano no s evidente no idioma de publicao
(ingls,
francs, portugus), mas tambm no contedo do saber, na escolha dos
temas, nos
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mtodos e na forma como so tratados os problemas. Da que
Hountondji liga o processo
de extroverso da economia com a extroverso verificada no
processo da produo
intelectual (HOUNTONDJI, 2002, p. 224).
Uma nova escola preocupada com a reapropriao comea a surgir em
frica.
Segundo Masolo (1995, p. 147), esta escola foi iniciada por
Crahay, que publicou em
1965 um artigo intitulado Le decollage conceptuel: conditions
dune philosophie bantoue
onde ele prope, para que os africanos possam produzir um sistema
epistemolgico
prprio, reconstruir o discurso africano em nvel especulativo (ao
que chama de
descolagem), primeiro identificando e depois empregando os
esquemas conceptuais ou
postulados bsicos do raciocnio indgena africano.
O raciocnio de Crahay foi seguido por Eboussi-Boulanga, Towa,
Hebga, assim
como por Mudimbe. No obstante s suas diferenas, estes esto
unidos pela sua crtica
etnofilosofia e, por extenso, s etnocincias, que so vistas como
sendo um produto na
esteira da lgica do poder e conhecimento ocidental. Segundo
Masolo, embora em
diferentes caminhos, estes autores defendem que a etnofilosofia
e as etnocincias
expressam as razes epistemolgicas de uma profunda crise social,
poltica e cultural do
munthu (Eboussi-Boulanga), expressam uma continuidade da servido
cultura ocidental
dominante (Towa), expressam a dependncia africana da tutoria
ocidental na cincia
(Hebga) ou ainda expressam a inveno da frica margem do
conhecimento ocidental
(Mudimbe).
Para Mudimbe, em particular, a etnometodologia no consegue
libertar-se da
marginalizao e da assimilao dos pensadores africanos; pior: ela
produz e reproduz a
marginalizao, refora a assimilao porque a imagem do africano por
ela oferecida
continua marginal.
Masolo (1995, p.148) fala de deconstructive project (projecto de
desconstruo),
referindo-se ao projecto que esta gerao pretende levar a cabo. O
seu objectivo seria
concentrar-se na desconstruo dos laos existentes entre a prtica
intelectual em frica e
os esquemas conceptuais ou epistemes originais do ocidente.
A estratgia proposta para se desligar do condo umbilical dos
esquemas
conceptuais e epistemes ocidentais advoga que, aquele que queira
estudar o sistema do
pensamento africano, deve abdicar de utilizar o mtodo analtico
no estudo de aspectos
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especficos do pensamento indgena. Ele deve examinar e
sistematizar o pensamento tal e
qual as pessoas o usam na prtica quotidiana. Esta seria a nica
via de romper com as
categorias europeias na pesquisa cientfica sobre os sistemas
africanos de conhecimento.
Uma pergunta se coloca: estar a educao, atravs do currculo local
onde articula com
os saberes indgenas, altura de responder a este desafio?
CURRCULO LOCAL COM INSTITUCIONALIZAO DO ESPAO
DE COEXISTNCIA
Na primeira parte do artigo argumentei sobre a necessidade de
transcender a
coexistncia silenciosa de discursos e abrir um espao de
reapropriao dos saberes,
valores e prticas de natureza universal e local.
Transcender a coexistncia silenciosa significa conceber
coexistncia no como
esttica mas como uma situao de constantes negociaes de saberes,
valores e prticas
nas comunidades expostas simultaneamente ao global e ao
local.
Nesta parte pretendo mostrar at que ponto que a introduo do
currculo local
no ensino primrio, institucionaliza na escola um espao de
coexistncia dos saberes,
prticas e valores. Isto far-se- tendo como base um estudo de
campo na provncia de
Manica, como foi referido.
Imperativos para a Participao das Comunidades na Definio dos
Contedos
O imperativo para o envolvimento activo das comunidades na
definio dos
contedos de aprendizagem pode depender de vrios factores.
O primeiro factor resulta do movimento internacional de Educao
Bsica para
Todos cuja meta alcanar uma escolarizao universal no ano de
2015. Devido ao
programa do reajustamento estrutural das economias que comeou na
dcada de 80, os
recursos estatais disponveis para alcanar esta meta distante so
poucos. Este facto fora
aos Estados africanos, a comear a olhar as populaes locais de
algum modo como sua
tbua de salvao para ajud-los a cobrir parte dos custos da
educao.
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Como segundo factor, os governos africanos comearam a
reprivatizar o ensino
e a motivar a abertura de escolas de carcter privado,
comunitrias, religiosas, etc. com o
objectivo de alargar a coberta escolar e diminuir com isto a
presso da demanda popular
sobre servios educacionais oficiais.
O terceiro factor prende-se com o facto de o desenvolvimento de
organizaes da
sociedade civil (associaes locais, organizaes no governamentais,
fundaes e
associaes cvicas etc.) ter encorajado uma srie de iniciativas
locais para participao
deles nos assuntos escolares, tais como o recrutamento de
professores, com participao
nas aces de formao de professores, participao nas actividades
extra-escolares, etc.
De facto, estas organizaes provocam a incluso de temas novos
relacionados,
por exemplo, com o gnero, HIV/SIDA, reduo da pobreza, etc. nos
currculos
escolares. So temas sobre os quais as estruturas estatais de
educao ainda no tinham
acumulado competncias pedaggicas.
Em quarto lugar, ns assistimos, pela dcada de 90 adentro, a um
processo de
descentralizao da administrao estatal. Neste processo alguns
poderes, entre eles os
que esto relacionados com a administrao da escola primria, so
colocados nas mos
dos directores distritais e das escolas ou ainda dos conselhos
das escolas. Esta
descentralizao criou o espao organizacional esperado pelas
organizaes da sociedade
civil para a articulao dos seus interesses ao nvel das
escolas.
Por ltimo, com esta abertura, a prpria educao tradicional, seus
contedos,
valores e prticas, viu-se permanentemente desafiada pelos
modelos, contedos e valores
modernos. O desafio perante o qual a educao tradicional colocada
agora, o de entrar
oficialmente na escola, fora-a a repensar nas suas estratgias
para sobreviver.
O envolvimento das comunidades feito de trs formas:
material-financeiro,
administrativo e curricular (EASTON; CAPACCI; KANE, 2000, p. 3).
O material-
financeiro realiza-se em forma de contribuio da comunidade na
construo e no
apetrechamento das salas de aulas, ou nas despesas correntes e
no pagamento salrio dos
professores. O envolvimento administrativo resumido na
participao dos pais e
encarregados de educao em organismos semelhantes aos conselhos
de escolas onde se
tomam decises administrativas na aplicao dos meios
disponveis.
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A participao curricular constitui a porta principal aberta por
onde vo entrar na
escola os saberes locais. A participao da comunidade no desenho
dos contedos
assumiu formas como o uso dos idiomas maternos na instruo de
certas disciplinas, o
convite para os artesos locais (como pessoas de recursos) para
ensinarem certos
contedos por eles dominados, adopo de oficinas locais como
centro de recursos para
os alunos realizarem visitas/excurses, o ensino da histria local
pelas pessoas mais
velhas, o ensino de usos e costumes locais pelos habitantes
idosos, etc.
A IMPLEMENTAO DO CURRCULO LOCAL NA PROVNCIA DE
MANICA
O MINED comeou, em 2002, a introduzir o Novo Currculo para o
Ensino
Bsico de Moambique. O plano reformula o currculo que foi
introduzido em 1983 pela
lei n. 4/83, de 23 de Maro, e revoga a que foi reformulada em
1992 pela lei 6/92, de 6
de Maio. O novo currculo foi experimentado em duas escolas
seleccionadas em cada
uma das provncias durante o ano lectivo 2003. Na provncia de
Manica foram
seleccionadas as Escolas Primrias Completas (EPC) Josina Machel,
nos arredores da
Cidade de Chimoio, e a EPC Nhampassa, no distrito de Bru a norte
da provncia.
No novo currculo foram introduzidas inovaes em relao ao currculo
anterior,
nomeadamente (i) os ciclos de aprendizagem, (ii) o ensino bsico
integrado, (iii) a
distribuio dos professores, (iv) a promoo semi-automtica, (v) a
introduo dos
idiomas moambicanos no ensino, (vi) a introduo do ingls, (vii)
de ofcios, (viii) da
educao musical e cvica e (ix) e do currculo local. (INDE
1999,26-36).
O estudo foi realizado durante os meses de Setembro e Outubro de
2003 nas
escolas experimentais representar o meio urbano, e de Nhampassa
localizada a mais ou
menos 16 KM da vila de Catandica para representar a amostra do
meio rural. Para alm
disso, o estudo abarcou as escolas primrias 1 de Junho e de
Chidengue, ambas no
distrito de Sussundenga. Na cidade de Chimoio o estudo incluiu
as escolas primrias
Centro Hpico e Nhamadjessa. Foram feitas entrevistas
semi-estruturadas individuais
e colectivas aos funcionrios de vrios intervenientes na
implementao do currculo
local.
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Na provncia de Manica, de um total de 4.094 professores somente
24 professores
estavam envolvidos na experimentao do novo currculo. Da mesma
forma, de um total
de 201.967 alunos em toda a provncia, somente 532 alunos estavam
envolvidos. Estes
dados levantam alguma suspeita na representatividade do processo
de experimentao
tendo em conta as condies para a transferncia dos saberes,
competncias e
experincias das duas escolas experimentais para as restantes 495
escolas do ensino
bsico que comportam toda a provncia.
A mesma suspeita tambm pode ser levantada em relao aos
mecanismos e
eficincia com que os 24 professores envolvidos na experimentao
puderam transmitir
as experincias aos restantes professores no envolvidos na
experimentao. Tambm
pareceu ser problemtico considerar EPC Josina Machel como sendo
uma escola do
meio urbano, porque ela localiza-se e serve uma comunidade
suburbana; ora esta tem
modos de vida diferente do urbano, principalmente se tivermos em
conta os ecossistemas
sociais a estrutura de ocupao profissional dos habitantes dos
bairros que a escola
serve (principalmente no sector informal).
Antes da implementao do currculo local foram feitas auscultaes
ao nvel de
todos as provncias, inclusive na de Manica. Este processo de
auscultao levou
aproximadamente trs anos e foi orientado pelo INDE acompanhado
por tcnicos das
direces provinciais e distritais de educao. Nestas auscultaes
diferentes grupos
sociais expressaram da sua forma o imperativo de se mudar os
contedos de ensino.
Os pais e encarregados de educao estavam interessados em mudar a
forma de
ensinar porque, na sua ptica, quando os alunos terminavam o
ensino bsico, no sabiam
ler e nem escrever. Alguns apontaram como sendo a causa desta
situao o facto de os
professores no estarem convenientemente preparados e formados
para darem as suas
aulas.
Outros consideravam que a poltica de educao seria a causa para o
insucesso
escolar: o sistema de avaliao era considerado como obsoleto e
muitos alunos no
conseguiam passar de classe, no porque fossem pouco
inteligentes, mas porque os
contedos que eram avaliados nada tinham a ver com a vivncia nas
comunidades. O
facto de os alunos, na sada do ensino primrio, no serem capazes
de ler e escrever, foi
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visto como resultado de uma extrema baixa de qualidade do
sistema escolar em
Moambique.
Em comparao com os pases vizinhos de Moambique (Zimbabwe e
Malawi)
fazia-se notar que os alunos que terminavam o ensino primrio
naqueles pases limtrofes
eram capazes no s de escrever e ler, mas tambm de exercer uma
certa profisso que,
de acordo com o ponto de vista dos pais, um aluno finalista do
ensino bsico em
Moambique no seria capaz fazer.
As congregaes religiosas preocuparam-se mais pelo facto de o
ensino bsico
decorrer em portugus lamentando o no uso das lnguas maternos
escolas. Na opinio de
um dos entrevistados, esta preocupao dos religiosos devia-se ao
facto de que as
congregaes religiosas estariam interessadas em tambm ver as
crianas a poderem ler a
Bblia, uma vez dominassem a leitura nas lnguas locais. Em todo o
caso insistiam muito
na introduo das lnguas locais no ensino das crianas.
Os rgulos, por sua vez, apontaram a necessidade de o ensino
poder explorar os
recursos materiais e culturais locais. Por exemplo, eles
apontaram o facto de a rea de
Manica ser rica em bambu e barro. Estes so os recursos usados
para a construo de
casas. A partir deste material, as crianas poderiam aprender a
construir casas. Tambm
deveriam ser ensinadas a produzir cestos, mesas e outros
utenslios como panelas de
barro, cabos de enxadas etc.
Os actores envolvidos, na implementao do currculo local no
municpio de
Manica, foram o INDE, o MINED/DNEB, a DPE, a DDE, as Zonas de
Influncia
Pedaggicas, as prprias Escolas, as comunidades e as organizaes
bilaterais e
multilaterais presentes na provncia.
De entre todos os intervenientes na implementao nos interessa
particularmente
o INDE, a ZIPs, as escolas e as comunidades.
O INDE concebeu o currculo e as estratgias de implementao, foi a
instituio
responsvel pela conduo de todo o processo de levantamento das
necessidades
educacionais com relevncia para as comunidades, organizou aces
de capacitao dos
professores, supervisou a implementao, orientou debates de
transformao curricular
em foros nacionais e internacional, produziu materiais
pedaggicos para os alunos e para
os professores entre outras actividades.
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Por seu lado, o papel subscrito s ZIPs foi o de ser o organismo
que deveria
orientar as actividades pedaggicas do currculo local, quer
dizer, agir como centro de
recursos pedaggicos (planificao, monitorizao, superviso,
dosificao dos
contedos das necessidades de aprendizagem localmente etc.) e
centro de recursos
materiais (livros, textos de apoio, materiais para a
aprendizagem de ofcios). Porm, as
ZIPs por ns visitadas, pareceram no terem tido capacidade em
termos de recursos
humanos e materiais para estar altura desta tarefa.
As Escolas organizaram a auscultao (usando entrevistas
colectivas) das
chamadas necessidades relevantes de aprendizagem. O questionrio
foi distribudo pelo
INDE para ser respondido separadamente pelos professores, alunos
e comunidades.
As comunidades foram consultadas nos contedos; a consulta s
comunidades, de
acordo com as orientaes de INDE, deveria abarcar os pais e
encarregados de educao
e diversas autoridades e estruturas tradicionais ao nvel local
(representantes da oposio,
mdicos tradicionais etc.).
DISCURSOS SOBRE O CURRCULO LOCAL
O INDE (2003, p.1) define currculo local como sendo:
uma componente do Currculo Nacional correspondente a 20% do
total do tempo previsto para a leccionao de cada disciplina. Esta
componente constituda por contedos definidos localmente como sendo
relevantes, para a integrao da criana na sua comunidade.
Um documento anterior ao mencionado e elaborado pelo mesmo INDE
(1999, p. 29) sublinhara que o objectivo da introduo do currculo
local o de
[...] formar cidados capazes de contribuir para a melhoria da
sua vida, a vida da sua famlia, da comunidade e do pas, partindo da
considerao dos saberes locais das comunidades onde a escola se
situa.
A idia de comunidade expressa detalhado mais tarde num documento
de
trabalho intitulado Currculo Local no Ensino Bsico elaborado em
Julho de 2003. Aqui
se considera como fazendo parte da comunidade todos os
intervenientes na educao da
criana nomeadamente professores, alunos, lderes e autoridades
locais, pais e
encarregados de educao, representantes das diferentes instituies
(sade, cultura,
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agricultura, ambiente, polcia etc.), representantes das
diferentes confisses religiosas e
organizaes comunitrias.
A inteno com o currculo local, portanto, de abrir mais espao
para os saberes
locais entrarem na escola bsica. Em conformidade, cada escola
dever prever no seu
programa de ensino uma margem de tempo para que se tratem
contedos locais
relevantes. A sua validao porm estar a cargo de Conselhos
criados para o efeito em
nvel distrital cujas competncias seriam delegadas do Ministro de
Educao.
O documento referido adianta alguns mtodos que devem ser
seguidos para a
compilao dos contedos para o currculo local. Eles devem ser
deduzidos sempre em
conformidade com as aspiraes das comunidades, ou seja, estas
devem propor aquilo
que considerarem ser os contedos de aprendizagem relevantes para
que as crianas
aprendam na escola. (INDE Agosto 1999, p. 29). Aqui se nota que
a legitimao dos
saberes que a criana moambicana ir aprender na escola estar a
cargo daquilo que se
convencionou ser comunidade.
O documento do INDE sobre o currculo local e estratgias de
implementao, no
seu captulo sobre Consideraes Pedaggicas, recomenda que a
brochura o
instrumento de base onde o professor poder encontrar contedos de
interesse local.
O professor, durante a planificao, consulta, para alm do
programa
centralmente definido, o Manual do Professor e a brochura sobre
o currculo local.
Alerta-se, para alm disso, que o currculo local no uma
disciplina parte, seno um
conjunto de contedos determinados como sendo relevantes para a
aprendizagem
aplicvel nas diferentes disciplinas do Currculo Nacional.
Para conhecer as percepes dos professores sobre o currculo local
foram
lanados inquritos e estes cruzados por entrevistas colectivas e
individuais semi-
estruturadas. Em seguida transcrevem-se algumas respostas dadas
por escrito ou
oralmente pelos professores questo colocada o que currculo
local?
So matrias de interesse local no ensino centralmente definidos
que aprofunda
estes contedos visando o desenvolvimento de atitudes e prticas
relevantes de e
para a comunidade.
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o currculo que beneficia aos alunos e crianas para poderem saber
fazer
alguns trabalhos aps os seus estudos.
Aquilo que a comunidade acha que os seus filhos devem aprender e
que
importante dentro daquela comunidade.
So contedos relevantes para a escola ou local onde a escola se
encontra
situada.
uma componente do novo currculo a partir dos assuntos relevantes
para a
comunidade.
Fazem parte as actividades mais frequentes da zona.
mais ou menos falar da realidade da zona a partir das
actividades at s suas
tradies.
Ensino que abrange os hbitos e costumes da regio onde est
inserida a
escola.
a parte do ensino contido no novo programa e cujo estudo baseado
nos
assuntos locais.
o aproveitamento de alguns aspectos locais que podem ser
integrados no
ensino educativo da criana, de modo a produzir efeitos
posteriores na vida
quotidiana.
uma disciplina que garante a formao do aluno capaz de contribuir
para a
melhoria da sua vida, da sua famlia e da sociedade.
aquele [contedo] que a comunidade pretende que seja
ensinado.
a transmisso da cultura, lngua e hbitos locais de cada zona onde
estiver
inserida a escola.
um processo de mudana de um currculo para o outro que ocorre
numa
determinada comunidade.
So aspectos culturais, econmicos e sociais predominantes na
regio e que
devem ser ensinados aos alunos.
Entendo por currculo local como um critrio de ensino que
facilitar ao aluno
viver os seus usos e costumes, aprender a fazer e a conservar os
ensinamentos que
a sociedade oferece, sobretudo ajudar a obter prtica e
aplicao.
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Currculo local a introduo de alguns conceitos, hbitos, usos e
costumes da
regio no processo de ensino-aprendizagem.
Se analisarmos as definies apresentadas pelos professores,
nota-se que, com
freqncia, eles usam termos como usos e costumes, contedos locais
e insero da
escola na comunidade. Mas tambm notamos que, enquanto uma parte
de professores,
nas suas definies, destaca mais o processo e a funo ou ainda o
impacto que o
currculo local pode ter para as comunidades, outra parte, em
contrapartida, destaca mais
os contedos nas suas definies.
Uma segunda concluso que, tanto o INDE como os professores
coincidem, no
geral, na percepo do currculo local na perspectiva de integrao
dos contedos e
assuntos recolhidos nas disciplinas do currculo nacional.
Uma outra constatao foi operacionalizao inconsistente do
termo
comunidade (s vezes permutvel pelo termo zona ou regio). Existe
entre os professores
uma clara convico que o currculo local deve ser legitimado a
partir das necessidades
de aprendizagem que as comunidades acharem relevantes. Porm, a
operacionalizao
deste conceito diferiu de escola para escola.
Numa das escolas urbanas de Chimoio, por exemplo, foram
inquiridos quase
somente pais e encarregados de educao de uma turma para se
determinarem as
necessidades locais de aprendizagem, enquanto que em outras
escolas o processo foi mais
abrangente, incluindo as autoridades administrativas
(administradores e representantes
distritais de diversas reas), autoridades tradicionais (rgulos,
mdicos tradicionais,
mestres de cerimnias, etc.) assim como o grupo dos pais e os
prprios professores.
Por ltimo constatou-se que a noo de currculo local centraliza-se
mais em
actividades praticadas na comunidade; ou seja, a sua
funcionalidade no saber fazer
para que, como uma das definies destaca, o aluno ao sair da
escola, saiba fazer algo
para se sustentar.
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O APURAMENTO DAS NECESSIDADES RELEVANTES DE
APRENDIZAGEM
O levantamento dos contedos que expressassem necessidades
relevantes de
aprendizagem em nvel local, contemplou, na primeira fase, o
levantamento de temas ou
assuntos de interesse local junto dos alunos, dos professores e
das comunidades. Este
levantamento foi feito na base do questionrio elaborado pelo
INDE. Eis as questes:
Para alm do que os professores ensinam, o que gostariam que as
crianas
aprendessem na escola?;
Quais as actividades predominantes na sua comunidade?;
Dessas actividades quais acha importantes para que sejam
aprendidas na escola?;
Existem na comunidade alguns aspectos sociais, culturais,
histricos, etc. que pela
sua importncia acha que deveriam ser ensinados na escola? se sim
quais?;
Havendo algumas actividades que os professores no dominam, como
podemos
nos organizar de modo que os pais e encarregados de educao e
outras pessoas que
as dominam possam ajudar a escola a ensinar as actividades?
e
O que que a escola pode fazer para incentivar a participao da
comunidade na
escola?.
Na segunda fase, os temas recolhidos foram sistematizados pelos
professores para
o seu enquadramento pelas diferentes disciplinas e nas
respectivas reas temticas do
currculo centralmente definido. Este enquadramento foi feito com
base do quadro que a
seguir transcreve-se explicitado por um exemplo:
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Quadro 1 - Modelo de Integrao dos Contedos Locais nas reas
Temticas Tema do
Currculo Local
Disciplina Unidade Temtica
Tema da Disciplina
Contedo Interveniente no Processo de
Ensino Canes
da Regio Educao Musical
Educao Vocal e
Canto
Canes e danas da
regio
Mapico, Makwaela, Marrabenta,
etc.
Professor /elementos da comunidade
Fonte: INDE, Currculo Local, Estratgias de Implementao no Ensino
Bsico, Julho 2003, p. 9. Na terceira fase elaboraram-se brochuras
(denominadas por currculo local) que
seriam o instrumento de base onde cada professor poderia
recorrer para consultar
contedos de interesse local para serem leccionados nas
escolas.
Finalmente, em quarto lugar, procedeu-se implementao do currculo
local nas
respectivas escolas, o que quer dizer leccionar matrias
relacionadas. A integrao dos
assuntos locais no currculo nacional pode ser feita por
aprofundamento (quando o
contedo j est programado no currculo central) ou por adio
(quando a matria no
est tratada no currculo nacional).
A seguir irei expor aquilo que as comunidades onde este estudo
se realizou
consideraram ser suas necessidades relevantes de
aprendizagem.
Os temas para o currculo local apresentados pelos professores e
alunos nas
escolas da Cidade de Chimoio foram: aprender a Histria do bairro
e da escola; aprender
rudimentos sobre os primeiros socorros; saber cuidar e remendar
roupa; aprender a
confeccionar chapus, esteiras, tapetes, objectos de barro
(ofcios); carpintaria;
artesanato; muturi (dana local); confeccionar nipa (bebida
alcolica local); horticultura.
Os assuntos apresentados no Distrito de Bru que devem fazer
parte do currculo
local foram: agricultura, costura, artesanato, construo civil,
carpintaria, olaria, msica,
teatro, danas (njole, nhau, mafuie, esta ltima uma dana das
cerimnias fnebres).
Na escola de Nhampassa foi aberto, no mbito do currculo local,
um horto escolar
onde os alunos, no mbito das disciplinas de ofcios, plantaram
vegetais (couve, alface,
repolho e tomate). O horto serviu tambm como meio didctico para
as diferentes
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disciplinas; por exemplo, na matemtica foi usado como recurso
para levar aos alunos a
calcularem a sua superfcie.
No Distrito de Sussundenga foram expressas como sendo as
necessidades
relevantes de aprendizagem a tecelagem, apicultura, agricultura,
latoaria, carpintaria,
construo civil, pesca e arte; eles tambm manifestaram o desejo
de conhecer os eventos
histricos do distrito, a geografia do local, aprender a lngua
Chiut nas 1. e 2. classes;
manifestaram o interesse de aprender sobre a origem dos nomes
das zonas, das colinas,
dos rios, das barragens, dos lagos e outros locais importantes
na regio; apontaram a
necessidade de aprender sobre a importncia dos rios, os danos
causados pelo uso de
plantas silvestres venenosas na captura de peixe, a importncia
das plantas para a higiene
pessoal, em particular o rupupo e o chifurro.
Em nvel da comunidade de Posto Administrativo de Muhoa,
Sussundenga-Sede e
Rotanda foram da mesma forma apresentadas diversas necessidades.
No posto
Administrativo de Muhoa, foram: construo civil, carpintaria,
mecnica, aprendizagem
em lngua Shona, o Ingls (1. a 7. classe), olaria, feitura de
cabos para machados, enxada,
pilo, costura, tecelagem, agricultura, pecuria, locais histricos
de Zinhamundanda,
nascente de (rio) Rupisse (nascente com gua quente com cheiro de
um ovo), local de
cerimnias para chuvas Bombo Nhanguia, danas recreativas como o
jezz machaera,
manjozi, mukhongoyo, danas religiosas, Montanha Dendemora onde
se atribui o poder
aos chefes tradicionais, Chindanga (onde vive uma cobra grande),
Tsetsera (floresta
numa montanha que dando volta a pessoa muda de sexo).
Por sua vez, no Posto de Sussundenga-Sede apresentaram-se como
temas a agro-
pacuria, comrcio, indstria, turismo, explorao de madeira,
olaria, artesanato, esteira,
cestaria, ecoturismo, criao de animais, carpintaria, construo
civil, sapataria, latoaria,
mecnica, pesca, sade e saneamento, aco ambiental, criao de
animais, desporto,
lngua local, formas de vestir em ambos os sexos, trabalhos
domsticos, Histria e
Geografia Local, Histria das infra-estruturas locais, danas
tradicionais, organizao
social das povoaes, visita a locais transfonteirios de
Chimanimani, a locais histricos,
culturais, sagrados e s pinturas rupestres de
Sussundenga-Centro. Quase as mesmas
preocupaes apresentaram os habitantes do Posto de Rotanda.
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Uma concluso bvia que podemos retirar deste alistamento que o
maior
nmero dos saberes apresentados diz respeito ao saber fazer
consubstanciado,
majoritariamente, na exigncia para a aprendizagem de diferentes
ofcios. Entretanto, os
domnios do saber ser e do saber estar com os outros (DELLORS,
1996) referentes
aos usos e costumes, assim como os saberes locais sobre as
garantias metafsicas
(religiosidade, formas de controlo social, smbolos identitrios
etc.) so pouco ou menos
referenciados como necessidades de aprendizagem.
Assim tambm, o mundo da produo intelectual e espiritual ficou,
de certa
foram, ofuscados. Pode-se, sem muitos riscos de se enganar,
inferir que a educao
comunitria para o currculo local vai ser fundamentalmente
profissional orientada para
o mundo material do saber fazer relegando os outros saberes
(tico-costumeiros,
religiosos-ancestrais-espirituais) para uma fase posterior.
Este facto parece, no mnimo paradoxal porque para as populaes
locais o
mundo espiritual exemplificado pelo nosso estudo pelo Mpfucua,
Urroi ou ainda
pelo Gamba, assim como pelo chamado Esprito Ndau, dependendo de
cada localidade
tem uma grande influncia na vida produtiva e social e afecta
tambm a biografia escolar
das crianas. Depoimentos sobre o esprito Gamba, por exemplo,
indicam que h
meninas que foram entregues ao esprito para casarem com ele.
Desta forma, quando os rapazes soubessem, no se iriam aproximar
dela porque
seno o esprito vai destruir o casamento de diversas formas.
Assim tambm uma
criana que no ter sucesso na escola pode justificar isso porque
a sua famlia teria sido
obsequiada pelo esprito. A primeira tentao associar estas
entidades metafsicas com
um esprito mau e de vingana; mas em minha opinio e sob o ponto
de vista
sociolgico estes espritos so instncias do controlo social: as
pessoas no devem
cometer homicdios porque a pessoa morta regressar em forma de
esprito para se
vingar; realmente a tnica est em no deves matar porque sers
castigado no s tu mas
tambm toda a tua famlia. O castigo ser eterno. Sobretudo mais
importante a idia de
que ele no se limitar ao castigo corporal-material mas
estende-se ao social (afecta a
estrutura familiar) e espiritual (qualquer consulta que um
membro da famlia fizer a um
mdico tradicional, a sua doena ou infortnio [por exemplo, se no
tem boa colheita]
ser relacionada com o esprito).
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Por outro lado, o levantamento das necessidades relevantes de
aprendizagem
ficou aqum da explorao dos smbolos de orgulho, que
hipoteticamente podemos
considerar como referncias colectivas identitrias. No distrito
de Sussundenga, por
exemplo, uma leitura diagonal s necessidades relevantes de
aprendizagem em nvel
local mostra um certo orgulho pelas montanhas Chimanimani.
Possivelmente a
montanha Cabea de Velho, a Barragem de Chicamba no rio Rivu, a
fonte da gua
Vumba, etc. tenham o papel de referncias identitrias metafsicas
em nvel local ou
ainda mesmo provincial.
TIPOLOGIA DOS SABERES LOCAIS
Com base nas necessidades de aprendizagem relevantes, expostas
no ponto
anterior, tentarei, em seguida, deduzir rudimentos de uma
Tipologia de Saberes Locais
(confinados ao saber fazer). O quadro abaixo foi inspirado pelas
pesquisas de Lenhart
(1993), desenvolvidas e adaptada por Castiano (1997). Neste
quadro porm, incluem-se
elementos novos resultantes da recolha feita nas escolas.
Quadro 2 - Tipologia do Saber Fazer
Sector Primrio Sector Secundrio Sector Tercirio
Tradicional-Local
Agricultura de subsistncia, pastorcia, pesca
Ofcios (construo e cobertura de casas, olaria, artesanato,
cestaria, pintura, etc.), tcnicas de aprovisionamento
Cura por plantas medicinais locais, parteiras, administrao
local, mestre de cerimnias,
Informal tratamento e conservao dos produtos agrcolas
carpintarias, latoarias, sapataria,
comrcio nas bancas de venda, transportes
Moderno agricultura empresarial
indstrias locais servios, educao, sade, comercializao
agrcola
Fontes: Castiano 1997, p.164 inspirado por Lenhart 1993, p.
78.
O quadro visualiza os saberes discriminados por sectores de
economia e
categoriza-os pelo tipo de formalizao e modernizao
(tradicional-local, informal e
moderno). Embora com fortes margens de impreciso, este quadro
pode ser o ponto de
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partida para sistematizar os saberes em termos de actividades
atendendo basicamente aos
ecossistemas de ocupao econmica circundantes. Por exemplo, para
a EPC do Centro
Hpico na cidade de Chimoio seriam os saberes mais aproximados ao
sector informal.
Porm, a tipologia especfica para cada escola teria de ser
objecto de um estudo mais
especializado.
DA COEXISTNCIA SILENCIOSA PARA A COEXISTNCIA
ARGUMENTATIVA
Uma das concluses bsicas que h uma convico geral de que o ensino
dos
contedos relacionados com saberes locais, no s vantajoso para
cada aluno dado que
abre possibilidade de insero no sistema ocupacional local, mas
acima de tudo a
vantagem em relao comunidade local onde a escola est inserida.
Os alunos
aprendem na escola normas e valores semelhantes s transmitidas
na socializao
primria (familiar).
Porm, uma das preocupaes que se colocam s reformas curriculares,
a
questo da diferena entre este movimento de africanizao do
currculo com o do
currculo indgena no tempo colonial (ensino rudimentar ou ensino
indgena para o
caso de Moambique, ou bantu education para o caso da frica do
Sul), aplicado
especificamente nas escolas dedicadas para os negros.
Para mim a grande diferena est na sua inteno declarada e no
necessariamente nos contedos dos programas de ensino, embora
haja excepes. Pois,
no tempo colonial, as diversas verses do currculo para as
crianas negras ou indgenas
eram desenhadas consciente e sistematicamente para responder ao
projecto do
imperialismo cultural, quer dizer, com a inteno declarada de
dominar e inferiorizar
saberes, valores e prticas de povos autctones.
Assim, embora aqueles programas estivessem voltados, por
exemplo, para a
prtica da agricultura ou ainda para o domnio de alguns ofcios
geralmente aplicveis
nas localidades, o sistema nunca valorizou as cosmovises e
tradies culturais locais.
No havia espao para uma relao argumentativa entre os
saberes.
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A reforma curricular no ensino bsico em curso em Moambique
tem,
evidentemente, outras intenes declaradas. Como eu me referi
acima, um objectivo da
reforma o de quebrar com todo tipo de discriminao e
desigualdades de acesso; o outro
objectivo eliminar as barreiras institucionais que se punham
contra a progresso das
crianas negras vivendo no campo para atingirem nveis superiores
de escolaridade; por
isso, importante que o currculo local seja de tal forma
implementado que seja ao
mesmo tempo adaptado s necessidades locais sem, entretanto,
fechar a estrada para a
progresso escolar das crianas que vivem nas zonas rurais.
A maior diferena est na legitimao dos conhecimentos, pois,
diferentemente do
tempo colonial, na reforma curricular em curso h formas
institucionalizadas de garantir
a participao comunitria na definio dos contedos a ensinar. O
caso da provncia de
Manica demonstra, claramente, o envolvimento das comunidades e
de diversas
autoridades locais na fase da concepo e na fase da implementao
do currculo local.
Nelas houve sesses de negociao e interaco entre os professores e
os detentores dos
saberes locais que sero usados como recursos para o ensino.
Assim, ficou claro que currculo local est a se tornar o espao
social
institucionalmente criado com um enorme potencial de interaco e
mesmo at de
avaliao entre os saberes, prticas e valores locais e universais
supostamente
competitivos. Com a sua introduo o professor primrio ficou o
actor social integrador
de saberes, prticas, valores locais e o conhecimento
universal.
Por via do currculo local, os diversos tipos de saberes
depositados nas aldeias
entraro oficialmente na escola. Pela estratgia de integrao de
saberes locais no
Currculo Nacional, os professores faro esforo pelo casar saberes
de natureza mais
universal com os de natureza e origem local. A criana, para alm
dos valores ticos
universais derivados da cidadania e da economia do mercado
capitalista, comea tambm
a aprender valores e prticas locais tradicionais. Quer dizer, a
criana ser inserida ao
mesmo tempo em uma tradio universal e em uma tradio viva
local.
A escola ser o espao onde alunos, professores e a comunidade so
confrontados,
pela via argumentativa e racional (i.e. em funo dos problemas de
comunidade) com
dois modelos de produo, disseminao e de legitimao dos saberes. O
Currculo Local
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constitui o primeiro e o mais importante passo para a
institucionalizao do debate de
percepes diferente da realidade social.
Porm, no podemos de forma nenhuma nem romantizar o
tradicionalismo da
comunidade e nem ser muito optimistas no sentido de que o
currculo local recebido de
mos abertas por professores e pelas comunidades.
De facto, acho que seria um engano deduzir que a comunidade pode
participar
curricularmente s em assuntos que dizem respeito s tradies
locais. Uma atitude
romntica, tradicionalista e reduccionista deste gnero seriam
simplistas em relao s
potencialidades de desenvolvimento existentes nas comunidades.
Um exemplo disso vem
de Mali. O Instituto de Educao Popular em Kati daquele pas
trabalhou longamente na
elaborao do programa chamado CIWARA (palavra Bambara para
designar a cabea do
antlope, a identidade simblica no emblema de Mali).
Este programa buscou desenvolver contedos especficos para a
aquisio de
habilidades de liderana em jovens que frequentavam as escolas
elementares.
Liderana neste caso significou habilidades para jogar um papel
decisivo no
desenvolvimento das suas comunidades.
As culturas locais tambm demonstram capacidades importantes em
lutar contra
as desigualdades sociais na base do gnero ao participar na
mobilizao para a
escolarizao da rapariga, assim tambm a dita medicina tradicional
demonstra
capacidades de providenciar tratamentos alternativos (note-se
que no digo cura) em
infuses para minimizar as consequncias das doenas relacionadas
com o SIDA ou
mesmo para o combate no alastramento desta mesma doena. (Cf.
EASTON; CAPACCI;
KANE, 2000, p. 3)
Por outro lado, olhando para as experincias at agora acumuladas
nos vrios
pases africano na introduo dos contedos locais nas escolas,
notam-se dificuldades de
vrias ordens. A mais sria reside no facto que os elementos do
saber local tendem a ser
aqueles ao qual menos ateno se presta por parte dos professores
porque eles exigem
muito tempo de pesquisa e sistematizao e alguns deles quebram
normas e tradies
existentes (EASTON; CAPACCI; KANE, 2000, p. 4).
Uma das professoras entrevistadas queixava-se de que para
incluir contedos de
histria local foi para as bibliotecas que ficam muito longe e
perde muito tempo a
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procurar contedos. Nas entrevistas tambm encontrei muitos
professores que no viam
com bons olhos se ensinar na escola elementos espirituais que
dizem respeito, por
exemplo, ao esprito Gamba.
Uma outra dificuldade prende-se com o facto de, no ensino
formal, no haver
ainda uma tradio longa experincia no tratamento de assuntos
locais exigindo assim um
tipo de conhecimento e competncias pedaggicas mas sobretudo de
rudimentos de
pesquisa que muitos professores primrios no tm.
A atitude bsica de que o verdadeiro conhecimento s se encontra
nos livros faz
com que os professores se sintam de certa forma perdidos quando
lhes exigido ensinar
contedos locais, cuja fonte de conhecimento j no (somente) o
tradicional manual do
aluno ou o livro do professor, seno as entrevistas ou observao
directa. A ele ter que
ter as mnimas noes de pesquisa.
O espao institucional argumentativo criado atravs do currculo
local no s vai
elevar a competncia argumentativa dos saberes tradicionais pela
participao local nos
assuntos escolares, como tambm o uso dos idiomas locais que vai
inspirar mais
confiana nas pessoas de recursos locais e nas autoridades
comunitrias em colaborarem.
Podero, por exemplo, gravar a histria local ou expressar
assuntos delicados ligados
moralidade e aos tabus em sua prpria lngua.
Assim, se a escola como instituio estar perto das populaes
locais, ento a
possibilidade da reapropriao do saberes depositados nas
comunidades ser cada vez
maior e acurados. Igualmente as crianas vo ter a oportunidade e
o direito de
confrontarem com sua cultura de um modo racional e na base disto
fazerem as suas
opes de aco. A escola passa a ser a instncia racionalizante dos
saberes, das prticas
e dos valores locais.
O facto de, nesta primeira fase de levantamento, as comunidades
se terem
concentrado em necessidades de aprendizagem mais viradas para o
saber fazer (rea da
produo material) e pouco para o mundo espiritual, deve ser visto
como um incio
normal, sobretudo quando se trata de um processo de integrao de
dois mundos. Mas os
planificadores de educao devem ser pr-activos, quer dizer, devem
desde j
desenvolver um programa de investigao que englobe duas vertentes
de linhas de
pesquisa: uma vertente para explorar aspectos que podem ter um
impacto imediato na
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melhoria da vida das populaes atravs da escola; a outra vertente
para explorar da vida
espiritual das comunidades.
Em relao primeira vertente destacamos os seguintes assuntos:
mtodos locais
de aprovisionamento de alimentos; mtodos locais de construo de
casas; formas locais
de produo de utenslios e meios de trabalhos; sistematizao de
plantas alimentares e
medicinais da comunidade; prticas e cuidados primrios locais de
sade (e saneamento);
mtodos locais de preservao dos solos com vista a descortinar o
discurso ambiental
comunitrio; o papel da mulher na armazenagem e disseminao de
conhecimentos sobre
a natureza e a sociedade; formas locais de controle de epidemias
(malria, diarrias,
HIV/SIDA) etc. Estes contedos devem ser primeiro sofrer uma
inventariao para
depois coloc-los num discurso mais sistematizado.
A segunda vertente, pesquisa do mundo espiritual, mais delicada
mas
igualmente necessria, porque tem muita relevncia para a vida da
escola e das crianas.
Aqui se incluem reas como: educao tradicional para o
desenvolvimento fsico-
corporal (jogos, competies); constrangimentos de ordem
espiritual no seio das
populaes (como Gamba, Mfucua etc.); instncias de controle sobre
os desvios sociais;
prticas de renovao e purificao moral; estudo sobre as prticas
locais de
regulao/resoluo de conflitos; o valor espiritual das plantas;
conhecimentos sobre
hbitos, valores e smbolos espirituais dos animais; as explicaes
e tratamentos locais
das doenas (psicolgicas), de desastres/calamidades naturais e
sociais; contedos, meios
e mtodos locais tradicionais de educao (p.e. ritos de iniciao),
religies locais, etc.
Estes contedos tero que ser tambm sistematizados e escritos de
tal forma que sejam
ensinveis e compreensveis para as crianas para poderem entrar na
escola.
O programa de pesquisa que descrevi nos pargrafos anteriores tem
duas
finalidades. A primeira evitar que a integrao dos contedos
locais no currculo
nacional no seja de facto um processo da assimilao do local pelo
nacional ou pelo
universal. Uma verdadeira integrao s se faz em condies de
igualdade de
oportunidades e numa atmosfera de tolerncia cultural, como
referem Mkabela e Luthuli
(1997, p. 21). Neste momento os saberes locais apresentam-se em
desvantagem porque
ainda no esto convenientemente sistematizados para entrarem num
dilogo igual com o
outro tipo de saberes e valores.
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A segunda finalidade a ser alcanada o empoderamento dos alunos
nas
comunidades de modos a que eles possam ser crticos e analticos
em relao aos saberes,
s prticas e valores tanto tradicionais como modernos. Queremos
que a escolha dos
padres de vida tanto os oferecidos pelo moderno como pela tradio
viva e concreta seja
feita de uma forma consciente e racional.
A escola deve tornar-se o espao desta coexistncia selectiva. S
assim que o
currculo local se vai tornar um espao integrador crtico e
racional, e no um espao de
assimilao cultural com novas roupagens. A coexistncia j no ser
silenciosa, como
nos sugere Hountondji, mas com ambas as vertentes a
argumentarem, sero transcendidas
para uma coexistncia activa.
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2005-2006.
http://www.pucsp.br/ecurriculum
Recebido em : maio de 2005 Aceito em : 05 de agosto de 2005.
Para citar este artigo: CASTIANO, Jos P. O Currculo Local como
Espao Social de Coexistncia de Discursos:Estudo de Caso nos
Distritos de Bru, de Sussundenga e da Cidade de Chimoio Moambique.
Revista E-Curriculum, So Paulo, v. 1, n. 1, dez. - jul. 2005-2006.
Disponvel em:: http://www.pucsp.br/ecurriculum, acesso em:
dd/mm/ano. Breve currculo do autor: Mestrado em Filosofia e
Doutorado em Sociologia (Educao) pelas universidades de Greifswald
e de Hamburg na Alemanha, respectivamente. Actualmente docente de
Filosofia, de Filosofia de Educao e no mestrado em Educao e
Currculo na Universidade Pedaggica; tambm docente de Teorias
Sociolgicas Contemporneas na Universidade Eduardo Mondlane, ambas
universidades em Maputo. Faz pesquisas sociolgicas e epistemolgicas
na rea de Saber Local e Currculo. Seu interesse de pesquisa tambm
nas reas de Polticas Pblicas e Educao nos pases da frica
Austral.