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MACEDO, Roberto Sidnei. Etnopesquisa crtica,
etnopesquisa-formao. Braslia: Lber Livro Editora, 2006. 179 p.
(srie pesquisa v.15)
INTRODUO
1. Com sua preocupao etno (do grego ethnos, povo, pessoas), a
etnopesquisa direciona seu interesse para compreender as ordens
socioculturais em organizao, constitudas por sujeitos
intersubjetivamente edificados e edificantes, em meio a uma bacia
semntica culturalmente mediada. Nesse sentido, preocupa-se
primordialmente com os processos que constituem o ser humano em
sociedade e em cultura e compreende esta como algo que
transversaliza e indexaliza toda e qualquer ao humana e os
etnomtodos que a se dinamizam. (p. 9)
2. No processo de construo do conhecimento, a etnopesquisa
crtica no considera os sujeitos do estudo um produto descartvel de
valor meramente utilitarista. Entende como incontornvel a
necessidade de construir juntos; traz pelas vias de uma tensa
interpretao dialgica e dialtica a voz do autor social para o corpus
emprico analisado e para a prpria composio conclusiva do estudo, at
porque a linguagem assume aqui um papel co-construtivo. (p.10)
3. (...) o significado social e culturalmente construdo no se
torna resto esquecido na concluso de uma pesquisa; ele trazido para
o cenrio ativo da construo do conhecimento, com tudo aquilo que lhe
prprio: regularidades, contradies, paradoxos, ambigidades,
ambivalncias, assincronias, insuficincias, transgresses, traies,
etc. (p.10)
4. (...) trazer para os argumentos e anlises da investigao vozes
de segmentos sociais oprimidos e alijados, em geral silenciados
historicamente pelos estudos normativos e prescritivos,
legitimadores da voz da racionalidade descontextualizada.
(p.11)
5. (...) ao estudarmos as realidade sociais, no estamos lidando
com uma realidade formada por fatos brutos, lidamos com uma
realidade constituda por pessoas que se relacionam por meio de
prticas que recebem identificao e significado pela linguagem usada
pra descrev-las, invoc-las e execut-las; da o interesse pelas
especificidades qualitativas da vida humana. (p.11)
6. Da perspectiva da etnopesquisa crtica, o que no se admite que
pelo esforo de construir conceitos de segunda ordem se destrua a
prpria realidade investigada e a substitua por uma verso
cientificizada e abstrata. (p.12)
CAPITULO I INSPIRAES FILOSFICAS E EPISTEMOLGICAS
Um modo crtico-fenomenolgico de pesquisar
7. Para a fenomenologia, a realidade o compreendido, o
interpretado e o comunicado. No havendo uma s realidade, mas tantas
quantas forem suas interpretaes e comunicaes, a realidade
perspectival. Ao colocar-se como tal, a fenomenologia invoca o
carter de provisoriedade, mutabilidade e relatividade da verdade;
por conseguinte, no h absolutismo de qualquer perspectiva.
(p.15)
8. Ao perceber o fenmeno, tem-se que h um correlato e que a
percepo no se d num vazio, mas em um estar-com-o-percebido.
Ir-s-coisas mesmas a experincia fundante do pensar e pesquisar
fenomenolgico; faz parte de seu vigor. Por outro lado, ao mergulhar
nas coisas-mesmas, o fenomenolgo realiza um trabalho de
desvencilhamento de seus preconceitos para abrir-se ao fenmeno
poche; isto , realiza um esforo no sentido de compreender o mais
autenticamente possvel, suspendendo conceitos prvios que possam
estabelecer o que para ser visto. (p.16)
9. Nesses termos, a co-participao de sujeitos em experincias
vividas permite partilhar compreenses, interpretaes, comunicaes,
conflitos, etc. Habita nesse processo incessante de interao
simblica a esfera da intersubjetividade, a instituio intersubjetiva
das realidades humanas. (p.16)
10. Quanto essncia do fenmeno pesquisado, esta jamais pode ser
entendida como pureza ltima e definitivamente dada, at porque isso
no existe, mas, como queria Husserl, o que existe o alcance do
autenticamente vivido, das razes daquilo que vivenciado. (...) O
nesse momento, realiza-se o movimento da reduo fenomenolgica,
procedimento de aproximao do fenmeno pesquisado, no qual, por um
processo de incluso e excluso de contedos, d-se a objetivao do que
se pretende conhecer a seu respeito. (p.17)
11. O pesquisador fenomenlogo est preocupado e interroga
sujeitos contextualizados, dirige-se para o mundo vivenciado desses
sujeitos. Como experincia vivida, esse mbito do mundo denominado
regio de inqurito. (p.18)
12. Interessado em descrever para compreender, o pesquisador
fenomenlogo sempre est interrogando: o que isto? No sentido de
querer aprender o fenmeno situado e o que caracteriza enquanto tal.
Em vez de partir de uma atitude positiva (afirmativa, explicativa,
generalizante), o fenomenlogo um cptico cuidadoso, evita afirmaes
preconcebidas em face das realidades a serem estudadas. (p.18)
13. Da perspectiva fenomenolgica, os acontecimentos no podem ser
considerados como fechados em si, como realidades objetivas.
Fazendo parte de sua prpria temporalidade, a realidade uma construo
precria, provisria, fenomnica, como percepo dos fenmenos pela
conscincia. (p.18)
14. Como em todo processo interativo, o discurso sempre
compreendido por outrem, que lhe atribui significaes. Nesse veio, o
discurso ao dar-se significao o faz como uma obra, isto , dentro de
um tipo de codificao num paradigma no qual compreendido. (p.19)
15. Nesse processo, d-se o que na investigao fenomenolgica se
denomina de variao imaginativa, que implica interrogar o texto
sobre o pensamento do autor e sobre a intencionalidade de seu
dizer. (p.19)
16. Sintetizando de forma pertinente o modo fenomenolgico de
pesquisar, Espsito (1995, p.76) nos diz que ao se basear na
estrutura prvia da compreenso, no pr-reflexivo, e na ontologia, o
modo de investigao fenomenolgico tem como objetivo fazer com que o
ser ou a coisa interrogada se revele, sendo que as chaves para o
acesso compreenso no podem ser buscadas na manipulao e no controle,
mas, sim, na participao e na abertura. a sabedoria que se quer
alcanar por um processo incessante de interpretao (p.20)
17. Nessa perspectiva, o modo fenomenolgico de pesquisar nos d
uma fecunda possibilidade de ultrapassagem do modo formalista de
conhecer as complexas realidades humanas e educacionais, por
conseqncia. (p.20)
Intersubjetividade e realidades mltiplas
18. Schutz nos alerta enfaticamente para o corriqueiro hbito do
uso de categorias homogeneizadoras das realidades humanas,
destacando a natural pluralidade, singularidade e dialogicidade do
convvio humano no mbito das reciprocidades das perspectivas, que no
excluem, bom frisar, compreenses de construes a partir das
dissonncias cognitivas, das crises e/ou dos conflitos. (p.23)
19. Para Schutz, as coisas so designadas e compreendidas dentro
de um grupo social, no qual acontece o fenmeno da tipicabilidade ou
formas individuais partilhadas de aes e significados. A
tipicabilidade de uma ao pode passar a ser qualquer um, na medida
em que vai se desprendendo do particular, generalizando-se e
caminhando para a anonimidade. Outrossim, o processo de interao que
vai dar movimento a tipicabilidade das mltiplas realidades
construdas cotidianamente. Nesse sentido, Maffesoli diz ser crucial
o entendimento desse dinamismo para o conhecimento do fato social.
(p.24)
A construo do outro: o ator social um idiota cultural
20. Kilani (1994, 9.87) pe-se a refletir que inventar o outro
compreender a si mesmo como vivo num mundo onde se pode, por
contraste com o outro, desenhar os seus contornos. (p.24)
20a. (...), cenrio de onde emerge o outro, no uma entidade
independente daqueles que a representam, ou uma fora autnoma que
exercida sobre as mentes dos indivduos. (p.24)
21. Faz-se necessrio, por conseguinte, desfazer-nos de uma
concepo reificada de cultura, para repens-la como fora que age e
que tambm resultante de aes. necessrio tambm se desfazer da concepo
supra-orgnica de cultura, como uma realidade que se projeta acima
dos autores sociais e guia suas aes. (p.24)
22. Ademais, a construo do outro se d num processo de negociao
em que cultura e a identidade cultural esto em contnua
efervescncia, como espaos inscritos e como histria de atores
sociais dentro de uma temporalidade. (p.25)
23. Esse um processo importante para se pensar a epistemologia
das cincias antropossociais, ao relativizar a cultura do outro como
objeto de estudo. Aponta-se para o mbito da complexidade quando a
sociedade do eu questiona a si prpria ao pensar e refletir sobre a
sociedade do outro. A relao sujeito/objeto, definitivamente, j no
aquela preconizada pela lgica da objetividade dura e disjuntiva.
Identidade passa a constituir-se como metamorfose nessa relao de
co-construo, ou seja, de processo identitrio. Nesse sentido, no h
mais lugar para o observador esterilizado e exorcizado de seu
objeto, que faz do afastamento condio privilegiada de construo do
conhecimento. (p.26)
24. (...) a partir dessa vontade de estudar in situ que o outro
passa a ser visto reflexivamente como uma fonte que, ao ser
acordada como compreenso sociocultural, pode, inclusive,
transformar a cultura do eu perspectiva que os estudos
antropolgicos vo compartilhar com a maioria das cincias
antropossociais. A construo do outro passa a ser uma temtica hbrida
e uma fonte extremamente seminal para se afirmar o carter
interativo e intensamente dinmico/dialgico das realidades humanas.
A experincia da diversidade passa a ser um tema central para a
desconstruo dos estudos maniquestas e monorreferenciais, que
insistem em achar que o mundo pode ser visto e compreendido apenas
por uma s lente. (p.27)
25. O importante ressaltar que, para conhecer como o outro
experimenta a vida, faz-se necessrio o exerccio sensivelmente
difcil de sairmos de ns mesmos. H que nos desdobramos, revirarmos,
suspendermos preconceitos, criticarmo-nos, abrirmo-nos a certa
violao de habitus sagrados e solidificados da sociedade do eu.
Experincia intestina e radicalmente relacional intercriticidade.
(p.28)
26. (...) Nesse processo de olhar o outro da perspectiva dele,
necessria uma descrio densa da experincia do outro e do eu.
(p.28)
27. As culturas so verdades relativas aos atores e atrizes
sociais; so verses da vida, teias, imposies, escolhas de uma
poltica de sentidos e significais que orientam e constroem nossas
alternativas de ser e de estar no mundo (GUIMARES ROCHA, 1985 p.78)
(p.29)
28. Pensamos, portanto, que a construo do outro na educao e na
pesquisa sobre a educao vem desalojar a confortvel posio
autocentrada das pedagogias do eu e das tecnologias do eu, sempre
despreparadas e de m vontade para pensar e interagir
intercriticamente com as alteridades. (p.30)
29. Para o etnopesquisador crtico dos meios educacionais, o
outro condio irremedivel para a construo de conhecimentos no mbito
das situaes e prticas educativas. Ao estabelecer a diferena, o
outro vai mostrar ao etnopesquisador que nem tudo regularidade,
norma, homogeneizao e que, ao traarem uma linha dura para a
compreenso do aro educativo, as cincias da educao perderam de vista
a multiplicidade instituinte. (p.30)
Contexto e lugar: pertinncias constitutivas
30. Quando discorrem sobre a necessidade de contextualizar o
fenmeno como forma de aprend-lo mais significamente, Ludke e Andr
(1986) comentam que preciso levar conta como o objeto se situa,
para assim compreender melhor a manifestao relacional das aes, das
percepes, dos comportamentos e das interaes. (p.33)
31. (...), medida que os atores se comunicam e falam, constroem
em conjunto a pertinncia do contexto e escolhem os elementos de que
tm necessidade no imediato. no fenmeno da reflexividade que se
evidencia o carter dinmico dos contextos, na media em que estes so
constitudos e se constituem nos mbitos das relaes
instituinte/institudo. (p.33-34)
32. bom frisar que os contextos no so equivalentes aos meios
fsicos; eles so construdos por pessoas. Pessoas em interao servem
de ambiente uns para os outros; assim, o contexto uma construo na
qual a intersubjetividade condio incontornvel. (p.34)
33. (...) o lugar se apresenta como um ponto de articulao entre
a mundialidade em constituio e o local como especificidade
concreta, como momento (ALEXANDRI CARLOS, 1996) (P.35)
34. Definindo a partir do sujeito que se revela nas formas de
apropriao pelo corpo, o lugar se completa pela fala troca alusiva a
algumas senhas , pela convivncia e pela intimidade cmplice dos
locutores. No lugar encontramos as mesmas determinaes da
totalidade, sem com isso se eliminar as particularidades. Cada
sociedade produz seu espao, determina os ritmos, os modos de
apropriao. O lugar, portanto, guarda o mbito prtico-sensvel, real e
concreto. (p.35-36)
35. (...) o espao no para o vivido um simples quadro. A
atividade prtica vai modificando constantemente os lugares e seus
significados, marcando e renomeando, acrescentado traos novos e
distintos, que trazem valores novos, presos aos trajetos construdos
e percorridos (itinerncias). Podemos falar, portanto, de uma
territorialidade movente, cambiante. (p.37)
36. Enfim, a etnopesquisa sem lugar perde sua fora hermenutica e
criativa, formando, nesse sentido, um paradoxo irremedivel. (...)
Dessa perspectiva, por exemplo, a escola jamais pode ser avaliada
como instituio epifenomnica; um locus indispensvel para a
compreenso da concretude das polticas e das aes educacionais (...)
(p.37)
O cultivo das epistemologias qualitativas
37. (...), para o olhar qualitativo, necessrio conviver com o
desejo, a curiosidade e a criatividade humanas; com as utopias e
esperanas; com a desordem e o conflito; com a precariedade e a
pretenso; com as incertezas e o imprevisto. Acredita-se, dessa
forma, que a realidade sempre mais complexa que nossas teorias, que
no cabem em um s conceito. interessante frisar que o olhar
qualitativo no estranha as sutilezas paradoxais da cotidianidade.
(p.38-39)
38. Haver, portanto, incessantemente, a necessidade de
interpretao, decorrente do fato de que o fenmeno e o discurso a seu
respeito serem de ordem do smbolo. Havendo vrios sentidos possveis
realidades mltiplas , a interpretao torna-se indispensvel.
Conseqentes so as argumentaes de Merleau-Ponty, por exemplo, quando
nos sugere que todo conhecimento que se possa ter do mundo, mesmo o
prprio conhecimento cientfico, construdo a partir de meu prprio
ponto de vista, ou a partir de alguma experincia de mundo sem o que
os smbolos da cincia seriam sem significados. (p.41)
39. Torna-se, assim, iluso objetivista, pensar em conhecer a
totalidade do mundo-vida. Faz-se necessrio salientar, outrossim,
que, ao referenciar-se na fenomenologia, os recursos metodolgicos
ditos qualitativos da etnopesquisa buscam o rigor, diferente da
rigidez esterilizante da pesquisa armada e hermtica. Pretender o
conhecimento dos mbitos da qualidade da vida humana no significa
mergulhar sem rumo algum, tampouco considerar que qualquer informao
sobre qualquer assunto deve ser coletada e analisada. interessante
notar que os recursos metodolgicos qualitativos da etnopesquisa
apontam para uma outra forma de se fazer cincia, uma cincia que
aceita, sem escamotear, o desafio inquietante e maravilhoso de
saber que quer saber sobre aquele que pensa e sabe. (p.41-42)
Uma hermenutica crtica: o imperativo da interpretao socialmente
tensionada
40. Superando a separao entre senso comum e cincia, uma
hermenutica crtica transforma-os numa forma de conhecimento, o
qual, segundo Santos, ser simultaneamente mais reflexivo e mais
prtico, mais democrtico e mais emancipador. (p.43)
41. Sendo assim, a hermenutica crtica uma das fontes de inspirao
para uma etnopesquisa crtica, na medida em que contm a
possibilidade democrtica e emancipatria de que a crtica seja tambm
prtica, (...) (p.43-44)
Etnopesquisa crtica e o argumento crtico-pedaggico
42. nessa discusso da interface entre pesquisa e ao que nos
parece habitar a relao entre etnopesquisa e pedagogia crtica.
(p.44)
43. (...) Uma vez despertos, educadores-etnopesquisadores comeam
a ver as escolas como criaes humanas com sentidos, limites e
possibilidades, e no se satisfazem em perceber os indicativos do
fenmeno; querem interpret-los radicalmente, com o compromisso de
fazer cincia com conscincia crtica. (p.45)
44. Imbudos da etnopesquisa, educadores crticos conhecem a
liberdade responsvel das metodologias inerentes a essa alternativa
cientfica, conduzindo investigaes pertinentes e contingentes a
contexto, e, na necessidade de conhecer,
educadores-etnopesquisadores crticos podem abraar estratgias
cognitivas mais compatveis com as situaes vivenciadas e
problematizadas. (p.47)
A crtica do Iluminismo e a emergncia de uma hermenutica
intercrtica
45. (...) o campo da pesquisa, pautado no princpio de que, pelo
trabalho histrico-cultural com os saberes, convivendo e aprendendo
com a diferena, podemos buscar o alcance coletivo da verdade, do
bem e do belo, de uma perspectiva intercrtica, como vislumbra o
prprio Atlan (1999, 1994, 1984, 2001) (p.49-50)
CAPITULO II BASES ACIONALISTAS E SEMIOLGICAS DA ETNOPESQUISA
CRTICA
Ao e significado social
46. O ponto importante a noo de significado e sua relao com o
tipo de conhecimento do qual necessitamos ou que podemos ter a fim
de compreender e explicar os fenmenos sociais. Assim, falar em
significado comear a assimilar o fato extremamente importante de
que os seres humanos possuem uma subjetividade complexa e variada,
refletida nos artefatos e nas instituies sociais nas quais eles
vivem. Em termos antropossociais, nos referimos a isso como
cultura. (p.52-53)
47. A partir desse entendimento, dois postulados so tomados como
formadores do eixo norteador para a compreenso da noo de ao segundo
uma perspectiva sociofenomenolgica: todo ator deve, quando age, pr
necessariamente em obra procedimentos de compreenso e de
interpretao pelos quais ele d, permanentemente, um sentido s
atividades ordinrias em que se insere. A ao social uma realizao
prtica, isto , um produto desse trabalho de interpretao, que deve
informar os atores para agir, assegurando a continuidade das relaes
de troca, que fundam a possibilidade de uma ao. (p. 54)
Interao simblica: gnese das aes
48. Aqui a relao dos seres humanos entre si surge do
desenvolvimento de sua habilidade em responder a seus prprios
gestos. Essa habilidade permite que diferentes seres humanos
respondam da mesma forma ao mesmo gesto, possibilitando o
compartilhar de experincias, a incorporao em si do comportamento. O
comportamento , pois, social e no meramente uma resposta aos
outros. O ser humano responde a si mesmo da mesma forma que outras
pessoas lhe respondem e, ao faz-lo, imaginativamente compartilha a
conduta dos outros. (p.56)
49. A ao, invariavelmente, ocorre em relao a um lugar e a uma
situao, logo, a ao em si feita luz de uma situao especfica, a ao
construda pela interpretao da situao, consistindo a vida grupal de
unidades de aes. (...) (p.57)
50. interessante pontuar que, da perspectiva do interacionismo
simblico, a interpretao um processo formativo, e no uma aplicao
sistemtica de sentidos estabelecidos. (p.57)
51. (...) a sociedade humana ou a vida em grupo vista como
consistindo de pessoas que interagem, isto , de pessoas em ao, que
desenvolvem atividades diferenciadas que as colocam em diferentes
situaes. (...) (p.57)
52. A vida de um grupo humano representa, portanto, um vasto
processo de formao, sustentao e transformao de objetos, na medida
em que seus sentidos se modificam, modificando o mundo das pessoas.
(p.58)
53. Essa compreenso da ao humana se aplica tanto para ao
individual, como para a ao coletiva, e, nesse ponto, a ao conjunta
pode se constituir objeto de estudo, sem perder o carter de ser
construda por um processo interpretativo, quando a coletividade
enfrenta situaes nas quais age. Apesar de seu carter distintivo, a
ao conjunta tem sempre que operar por meio de um processo de
formao. Essa decorrncia de aes permite ao indivduo partilhar
sentidos comuns e preestabelecidos sobre as expectativas de aes dos
participantes e, consequentemente, cada participante capaz de
orientar seu prprio comportamento luz desses sentidos. (p.58)
54. Consequentemente, no so as regras que criam e sustentam a
vida em grupo, mas o processo social de vida grupal que cria, mantm
e legitima as regras. Conclui-se, desse modo, que as instituies
representam uma rede que no funciona, diablica e automaticamente,
devido a certa dinmica interna ou sistema de requerimento; funciona
porque pessoas, em momentos diferentes, fazem alguma coisa, como um
resultado da forma como definem situaes na qual atuam. (p.58)
55. A experincia que os atores cotidianamente retiram do
mundo-vida e os conceitos que dele fazem constituem o objeto
privilegiado e essencial das cincias antropossociais. O mtodo
interacionista define um novo realismo em cincias sociais e
consiste num esforo de reconstruo dos conceitos situacionais em
toda sua complexidade e, em particular, tal como so apreendidos e
avaliados por atores para os quais as situaes dadas so
circunstncias e experincias reais de sua vida prtica. Assim, o
pesquisador deve circular sempre entre dois mundos aqueles dos
atores e aquele da teoria social. Um verdadeiro conhecimento da
realidade social no pode pautar-se apenas por questionrios, escalas
de atitudes e anlises estatsticas descontextualizadas. (p.59)
A tradio de Chicago
Definio da situao: uma noo seminal para a etnopesquisa
56. O conceito de definio da situao, criado e desenvolvido por
Thomas em 1923, tem, em nosso entendimento, uma fecundidade notria
naquilo que constitui a operacionalidade de um princpio
fenomenolgico bsico: a necessidade de ir ao encontro do ponto de
vista do outro para, a partir da, e s da, interpretar suas
realizaes. (p.64)
57. (...) o indivduo age em funo do ambiente que ele percebe e
das situaes que ele enfrenta. Suas atitudes e percepes preliminares
informam sobre o ambiente, permitindo-lhe interpret-lo e
compreend-lo. Portanto, a ordem social e a histria pessoal fazem as
mediaes necessrias para que o indivduo/ator defina situaes.
(p.64)
O instituinte ordinrio
58. Para H. Meham (1982), o construtivismo social toma como
axioma bsico o fato de que as estruturas sociais e as estruturas
cognitivas se edificam e se situam nas interaes entre as pessoas.
Conceber as instituies como coisas prontas que, num dado momento
comeam a funcionar e, inevitavelmente, moldam/formam as aes das
pessoas significa aceitar, de alguma forma, que as estruturas
sociais (humanas) so vazias dessa prpria humanidade; que so uma
construo extra-humana. Por outro lado, perceber a atividade, a ao
mutante, constitutiva da vida em sociedade, nos parece uma via
socialmente pertinente para encontrar a concreticidade do
ator/sujeito em sua primordial condio: a de construtor rotineiro de
suas instituies. Assim, analisar a instituio sem analisar as
atividades que a constituem significa reific-la, apreend-la
pseudoconcretamente, perder de vista seu carter processual, ou
mesmo vital. significativo reafirmar que na realidade so os membros
da vida social ordinria que produzem a ordem social. (p.65)
59. (...) Para a etnometodologia, so prticas cotidianas que
produzem uma realidade. Outrossim, sendo a prtica descritvel, sem
sempre ser descrita. H, na realidade, uma potencialidade descritiva
como especificidade humana (accountability), e as narrativas podem
conter elementos tcitos e opacos, tornando o mundo da linguagem
extremamente complexo. (...) (p.67)
A etnometodologia e a compreenso dos etnomtodos: uma inspirao
terica fundante
60. (...) A etnometodologia uma teoria do social que, ao
centrar-se no interesse em compreender como a ordem social se
realiza mediante as aes cotidianas, consubstanciou-se numa teoria
de etnomtodos, (...) (p.68)
61. (...) em Le domaine dobjet de lethnomthodologie, Garfinkel
nos diz do seu objeto de estudo: os procedimentos
intersubjetivamente construdos que as pessoas na sua cotidianidade
empregam para compreender e edificar suas realidades. Para o autor,
quando se faz conhecimento social, profano ou profissional, toda
referncia ao mundo real, mesmo concernente aos acontecimentos
fsicos ou biolgicos, uma referncia s atividades organizadas da vida
cotidiana. Trata-se, portanto, de um fenmeno fundamental para a
cincia social, quando analisa as atividades do dia-a-dia como
mtodos dos membros (aqueles que dominam a linguagem natural) para
tornar essas atividades visivelmente racionais e reportveis para
todos os fins prticos. (p.70)
62. (...) a constituio social do saber no pode ser analisada
independentemente dos contextos da atividade institucionalizada que
o produz e o mantm. (p.71)
63. O prprio Garfinkel (1985, p.89) nos relata que o termo
etnometodologia foi empregado para referir-se investigao das
propriedades racionais das expresses indexais e de outras aes
prticas, como realizaes contingentes e contnuas das prticas
organizadas e engenhosas da vida de todos os dias. A partir dessas
elaboraes, v-se aparecer uma srie de termos que, juntos com outros,
vo constituir o corpus terico da etnometodologia e que se
transformaro em idias-fora dessa forma de ver o social se fazendo;
(...) (p.72)
64. Nesse veio, Jules-Rosette (1986, p.102) esfora-se para
resumir as caractersticas principais da etnometodologia, ao
trabalhar basicamente sobre seus conceitos fundamentais. Segundo
autora, pode-se situar a etnometodologia entre a tradio
fenomenolgica e a filosofia da linguagem ordinria (...) e seus
principais aspectos so: a indexalidade, a reflexibilidade, a
descritibilidade, o conceito de membro da sociedade, a competncia
nica (...) e a abordagem da ao na cena social. (...) a
etnometodologia no puramente uma sociologia da vida cotidiana;
porquanto cada tentativa de anlise deve dar conta dos aspectos
fundamentais da ao e da significao implicada. (p.72-73)
65. (...), as prticas sociais devem ser olhadas localmente, isto
, jamais de forma descontextualizada. (...) (p.73)
66. (...) A ao social concebida como indissociavelmente ligada
ao trabalho de compreenso que todo indivduo deve atualizar com o
objetivo de assegurar a continuidade das atividades prticas de que
ele participa. Em suma, a ao social consiste numa prtica de sentido
que o ator utiliza quando age. O ator social um prtico de sentido
(OGIEN, 1985, p.54) (p.74-75)
67. Para o autor, se a cincia social capaz de dar conta das
atividades dos indivduos, graas existncia de uma propriedade
irremedivel do mundo: vivemos num mundo que descritvel, inteligvel,
analisvel. Tal descritibilidade revela-se nas aes prticas que
empreendemos cotidianamente, subsdio seminal para a compreenso de
como se instaura a ordem social. (p.76)
68. Para os etnometodlogos, a competncia social dos membros
nasce no seio de uma determinada comunidade, e a escola uma delas;
a cultura ali criada indexaliza as aes. Nesse sentido, normas,
regras e valores so sempre uma interpretao local, pontual, pois na
escola que elas se criam e se recriam incessantemente, procurando
mostrar, por exemplo, como as desigualdades so construdas e
mantidas no dia-a-dia das relaes escolares, os etnometodlogos
entram na lgica das aes cotidianas no-documentadas, desvelando
procedimentos de excluso nem sempre visveis nem sempre comunicados:
um mundo de aes tcitas que as relaes cristalizadas ao longo da
histria da instituio escolar mantm reificadas, isto ,
naturalizadas. (p.76)
69. As sesses de orientao, a relao professor/aluno, as interaes
entre alunos e a construo de regras de convivncia entre eles e a
instituio escolar, a associao de pais, as formas de avaliao, entre
outros, so assuntos que emergem como campos significativos para os
estudos etnometodolgicos, vistos correntemente apenas pela ptica
reprodutivista, correlacional ou experimentalista. Dessa forma,
mesmo que se considere a iniqidade como efeito da reproduo do
sistema escolar, fato que se vem deixando intacta a questo de saber
quais so os processos sociais da construo dessa iniqidade.
(p.76-77)
70. (...) Refletindo sobre a questo, Coulon nos diz que o
contexto institucional, isto , os mecanismos tcitos que regem a
vida de nossos estabelecimentos escolares, determinante no somente
de aprendizagens, mas tambm da socializao em geral. (...)
(p.77)
71. Etnometodologia e educao fundam um encontro to seminal
quanto urgente, em face da parcialidade compreensiva fundada pelas
anlises duras. Pelo veio interpretacionista, os etnometodlogos
interessados no fenmeno da educao buscam o tracking dos etnomtodos
pedaggicos, isto , uma pista pela qual tentam compreender uma
situao dada, bem como praticam a filature, ou seja, o esforo de
penetrar compreensivamente no ponto de vista do ator pedaggico, em
suas definies das situaes, tendo como orientao forte o fato de que
a construo do mundo social pelos membros metdica, se apia em
recursos culturais partilhados que permitem no somente o construir,
mas tambm o reconhecer (MACEDO, 2000) (p.78)
A inspirao contempornea nos estudos culturais
72. O etnopesquisador crtico tem nos estudos culturais uma
inspirao importante, na medida que, interessado no campo de produo
indexalizada de significados, busca compreender a dinmica dessa
produo dentro das mltiplas referncias e relaes poltico-culturais
instituintes. (p.80)
CAPITULO III A ETNOPESQUISA E A APROPRIAO DO MTODO
73. (...) orientados pelas idias de Blumer, que os mtodos em
etnopesquisa lutam pelo acolhimento da natureza do mundo emprico
habitado por seres humanos culturalmente situados e situantes e
pela organizao de procedimentos metodolgicos que reflitam esse
acolhimento. nesses termos que, para o etnopesquisador, os stios de
pertencimento simblico (ZAOUAL, 2003) so fontes ineliminveis a
serem acordadas para que a construo do conhecimento indexalizado
seja possvel. (p.80)
A perspectiva etnogrfica e clnica da etnopesquisa
74. No caso da etnopesquisa crtica, valoriza-se intensamente a
perspectiva sociofenomenolgica, que orienta ser impossvel entender
o comportamento humano sem tentar estudar o quadro referencial, a
bacia semntica e o universo simblico dentro dos quais os sujeitos
interpretam seus pensamentos, sentimentos e aes. (p.82)
75. Praticando uma cincia social dos fatos midos e muitas vezes
obscuros do dia-a-dia, a descrio etnogrfica a escrita da cultura no
consiste somente em ver, mas fazer ver, isto , escrever o que se v
procedendo transformao do olhar em linguagem (...) (LAPLATINE,
1996) (p.82)
76. Para a etnopesquisa, descrever um imperativo, estar in situ
ineliminvel, compreender a singularidade das aes e realizaes
humanas fundante, bem como a ordem sociocultural que a se realiza.
(p.83)
A prtica do trabalho de campo do etnopesquisador: a pesquisa in
situ
77. O trabalho de campo significa observar pessoas in situ, isto
, descobrir onde elas esto, permanecer com elas em uma situao que,
sendo por elas aceitvel, permite tanto a observao ntima de certos
aspectos de suas aes como descrev-las de forma relevante para a
cincia social. Engedra-se aqui o estudo in vivo de como se
dinamizam as construes cotidianas das instituies humanas.
(p.83)
78. Assim a cincia social requer sempre arte na observao e na
anlise, e a observao de campo mais que uma etapa preparatria para
as grandes pesquisas estatsticas. (p.83)
79. Aqui a informao o registro da vida ao vivo, que entre alguns
pesquisadores de campo, por vezes, equivocadamente denominado de
dados crus. (p.84)
80. (...) Ao longo de estudos que empreendemos como pesquisador
de campo, o que nos impressiona justamente o carter fortemente
idiogrfico da informao in situ. Isto , o trabalho de campo implica
uma confrontao pessoal com o desconhecido, o confuso, o obscuro, o
contraditrio, o assincronismo, alm dos sustos com o inusitado
sempre em devir. O campo tem uma resistncia natural que demanda uma
dose de pacincia considervel, em face, por exemplo, das rupturas
com os ritmos prprios do pesquisador ou determinados prazos
acadmicos. (p.85)
81. A depender dos objetivos e do relacionamento previsto do
pesquisador com aqueles com quem ele trabalha, o mtodo de campo
requer um grande dispndio de tempo para o pesquisador aproximar-se
daqueles para quem ele pode no ser familiar. Assegurar e manter as
relaes com pessoas com quem temos uma pequena afinidade pessoal,
fazer copiosas notas aquilo que normalmente parecem ser
acontecimentos mundanos do cotidiano, incorrer, s vezes, em riscos
pessoais no trabalho de campo e se isso no for suficiente semanas e
meses de anlises que se seguem ao trabalho de campo , na realidade,
a rotina do etnopesquisador. (p.86)
82. Dessa forma, se correto supor que as pessoas, em sua vida
cotidiana, ordenam seu meio, atribuem significados e relevncia a
objetos, fundamentam suas aes sociais em racionalidades de seu
senso comum, no se pode fazer pesquisa de campo ou usar qualquer
outro mtodo de pesquisa nas cincias antropossociais sem levar em
considerao o princpio da interpretao contextualizada. (...)
(p.87)
83. (...) A fecundidade dos resultados de uma etnopesquisa vai
depender em muito do tipo do acesso conquistado. fundamental a
disponibilidade das pessoas para informar, deixar-se observar,
participar ativamente da pesquisa e at mesmo para co-construir o
estudo como um todo. Esse o mbito da etnopesquisa partilhada, na
qual a intercriticidade na produo do conhecimento se torna uma ao
politicamente orientada. (p.87)
84. H de se construir uma confiana recproca, pouco importando o
quanto o pesquisador seja familiar ou no em relao aos sujeitos do
estudo. necessrio estabelecer claramente, desde o incio, que a
pesquisa visa compreender a situao como ela se apresenta, e que as
pessoas jamais sero incomodadas ou prejudicadas nos seus afazeres e
relaes, exceto a partir de um contrato bem explicitado entre
pesquisador e atores do contexto estudado, ou mesmo, se houver uma
demanda vinda dos membros do grupo ao se envolverem na pesquisa.
(p.88)
O estudo de caso e a busca da densidade singular
85. (...), o estudo de caso muitas vezes se consubstancia em um
estudo sobre casos, quando numa s investigao faz-se necessrio
pesquisar mais de uma realidade sem, entretanto, perder-se a
caracterstica pontual e densa desses estudos (MACEDO, 1995; ANDR,
2005) (p.88-89)
86. (...) temos que garantir uma das fontes de rigor da
etnopesquisa que o esforo incessante de analisar a realidade como
ela se apresenta, como todas suas impurezas. (p.90)
87. Faz-se necessrio ressaltar que, em muitas etnopesquisas nas
quais mais de uma realidade estudada pontualmente, lana-se mo do
denominado estudo sobre casos ou multicaso. Preocupados em
resguardar a natureza idiogrfica e relacional desses estudos,
evita-se a mera comparao, construindo-se relaes contrastantes e
totalizaes em que o movimento relacional com os contextos mais
amplos pertinentes a principal caracterstica. (p.91)
A observao: presena do olhar sensocompreensivo do
etnopesquisador
88. (...) o processo de observao no se consubstancia num ato
mecnico de registro, apesar da especificidade da funo do
pesquisador que observa ele est inserido num processo de interao e
de atribuio de sentidos. Goffman (1983) e sua dramaturgia social
nos dizem que, quando um indivduo chega presena de outros, estes,
geralmente, procuram obter informaes a seu respeito ou trazem baila
as que j possuem. com base nas evidncias apreendidas que comea o
processo de definio da situao e o planejamento das linhas de ao.
medida que a interao progride, ocorrero, sem dvida, acrscimos e
modificaes ao estado inicial das informaes. (p.92)
89. (...) necessrio pontuar, por outro lado, que o objeto da
pesquisa que vai fornecer as evidncias capazes de fomentar uma
deciso quanto dimenso do perodo de observao e ao grau de
envolvimento necessrio. Nesse mbito, mais significativo ainda o
domnio que o pesquisador tem em sua temtica e das nuances por ela
produzidas em sua inerente complexidade. (p.92)
90. No que se refere aos perodos de participao, em algumas
pesquisas pode ser interessante haver diversos perodos curtos de
observao para verificao das mudanas havidas num determinado
programa ou em seu dinamismo ao longo do tempo. Em outros estudos,
pode ser mais adequado concentrar as observaes em determinados
momentos, digamos, no incio ou no final de cada perodo ou subperodo
escolar. (...) (p.92)
As notas de observao: em busca da pertinncia do detalhe
91. Bruyn (1966) denomina de adequao subjetiva o mtodo pelo qual
o pesquisador avana sua compreenso das anotaes realizadas durante a
observao para validar a pesquisa. Para isso, Bruyn apresenta seis
indicadores para se alcanar essa adequao (p.94)
92. O tempo seria o primeiro indicador. Assim, quanto mais tempo
o observador dispender com o grupo, maior ser a adequao alcanada
(...) (p.94)
93. Um outro indicador o lugar. No lugar se atualizam as aes,
d-se o pulsar cotidiano da vida das pessoas que edificam as
prticas. (p.94)
94. O terceiro indicador so as circunstncias sociais. necessrio
viver as circunstncias que o grupo experiencia, observar as reaes
organizadas ou no, as estratgias construdas, os conflitos
institudos. (p.94)
95. O quarto indicador a linguagem. Quanto mais o investigador
estiver familiarizado com a linguagem do meio social investigado,
mais apuradas podem ser as interpretaes sobre esse meio. (...)
(p.94) 96. O quinto indicador a intimidade. Poderamos dizer que os
procedimentos de observao inerentes etnopesquisa cultivam, em
geral, a proximidade. (...) quanto mais o observador se envolver
com os membros do grupo, mais estar capacitado para compreender os
significados e as aes que brotam da cotidianidade vivida por eles.
(...) (p.95)
97. Finalmente, tem-se o que Bruyn chama de consenso social. Uma
espcie de pattern que o pesquisador extrai a partir dos sentidos
que permeiam e perpassam as prticas dentro da cultura. (...) os
etnopesquisadores atingem a compreenso quando conhecem as regras da
cena social e como estas so construdas e mantidas. Chega-se, assim,
por um processo interpretativo, natureza da ordem social
estabelecida e estabelecendo-se. (p.95)
A observao participante: o esforo para a compreenso situada dos
etnomtodos
98. (...) a observao participante (OP), termina por assumir
sentido de pesquisa participante, tal o grau de autonomia e
importncia que assume em relao aos recursos de investigao de
inspirao qualitativa. (p.96)
99. No que se refere prtica da OP como tecnologia de pesquisa, a
partir dos estudos de Adler e Adler que se observa a distino entre
trs tipos de implicao em relao ao campo de pesquisa. Para os
autores, emergem da prtica da OP a participao perifrica, a
participao ativa e a participao completa. (...) (p.99) 100. Na
observao participante perifrica, (...) os pesquisadores (...)
preferem no ser admitidos no mago das atividades dos membros.
Procuram no assumir nenhum papel importante na situao estudada.
(p.100)
101. Quanto observao participante ativa, o pesquisador se esfora
em desempenhar um papel e em adquirir um status no interior do
grupo ou da instituio que estuda, o que lhe permite participar
ativamente das atividades como um membro aceito. (p.100)
102. Quanto participao completa, esta pode dar-se como
pertencimento original e por converso. No primeiro caso, o
pesquisador emerge dos prprios quadros da instituio e dos segmentos
da comunidade, recebendo destes a autorizao para realizar estudos
em que a realidade comum o prprio objeto de pesquisa. (p.101)
103. Por outro lado, a natural flexibilidade do campo de
observao da etnopesquisa d ao pesquisador um meio efetivo para
abordar, de uma forma um tanto quanto tranqila, a dinamicidade das
realidades humanas. O trabalho de campo assume, em geral, um
contnuo processo de reflexo e de mudana de foco de observao, o que
permite ao pesquisador testemunhar as aes das pessoas em diferentes
cenrios. Tal flexibilidade permite, ademais, que objetivos, questes
e recursos metodolgicos sejam retomados, assim como articulaes com
a teoria, dependendo da dinamicidade e das orientaes que surgem no
movimento natural da realidade investigada. Assim, a flexibilidade
no ato de pesquisar uma das condies para a autenticidade e o
sucesso de uma etnopesquisa na qual a observao participante seja um
recurso significativo. (p.102)
A entre-vista: buscando o significado social pela narrativa
provocada
104. A entrevista outro recurso extremamente significativo para
a etnopesquisa. Numa etnopesquisa, a entrevista ultrapassa a
simples funo de coleta instrumental de dados no sentido positivista
do termo. Comumente com uma estrutura aberta e flexvel, a
entrevista pode comear numa situao de total imprevisibilidade em
meio a uma observao ou em contatos fortuitos com os participantes.
(...) (p.102)
105. Na entrevista, poderoso recurso para captar representaes,
os sentidos construdos pelos sujeitos assumem para o
etnopesquisador o carter da prpria realidade, s que do ponto de
vista de quem a descreve. (...) (p.103)
106. (...) A linguagem nasce socialmente com aquilo que ela
exprime. Ela no nem falsa nem verdadeira, portanto. seu uso social
que lhe dar status de verdade ou mentira. (...). Em educao, certas
prticas no so discursos, mas os discursos sustentam, orientam e
justificam a prtica. (...) (p.104)
107. De fato, a entrevista um rico e pertinente recursos
metodolgico para a apreenso de sentidos e significados e para a
compreenso das realidades humanas, na medida em que toma como
premissa irremedivel que o real sempre resultante de uma
conceituao; o mundo aquilo que pode ser dito, um conjunto ordenado
de tudo que tem nome, e as coisas existem mediante as denominaes
que lhes so emprestadas. O que existe para o homem tem nome enfim
(DUARTE JNIOR, 1984), e o conhecimento humano ter de ser, por
conseqncia, uma prtica incessantemente tematizvel. interessante
notar que o aspecto no-estruturado da entrevista pode tomar, em
algumas situaes da pesquisa, conotaes de dialogicidade livre. Alis,
a conversa corrente, ordinria, um elemento constitutivo da observao
participante: o pesquisador encontra pessoas e fala com elas medida
que participa das atividades pertinentes, pede explicaes, solicita
informaes, procura indicaes, etc. (p.104)
108. Voltando ao recurso da entrevista aberta ou
semi-estruturada, verificamos que se trata de um encontro, ou de
uma srie de encontros face a face entre um pesquisador e atores,
visando compreenso das perspectivas que as pessoas entrevistadas tm
sobre sua vida, suas experincias, sobre as instituies a que
pertencem e sobre suas realizaes, expressas em sua linguagem
prpria. (p.105)
109. Apesar desse carter relativamente no diretivo da entrevista
etnogrfica, h a necessidade de que se entenda que esse tipo de
recurso metodolgico se parece no comportar nenhuma espcie de
estruturao, na realidade, o pesquisador deve elaborar um estratgia
pela qual possa conduzir sua entrevista. Assim, a entrevista
no-estruturada flexvel, mas tambm coordenada, dirigida e, em alguns
aspectos, controlada pelo pesquisador, porquanto se trata de um
instrumento com um objetivo visado, projetado, relativamente guiado
por uma problemtica e por questes, de alguma forma, j organizadas
na estrutura cognitiva do pesquisador. Nesse sentido, recomenda-se
a realizao de um roteiro flexvel, no qual a informao inesperada
possa ser valorizada e includa. (p.105)
110. Distinguem-se trs tipos de entrevistas de inspirao
etnogrfica a partir de experincias etnossociolgica (...)
(p.105)
111. A primeira visa elaborar uma narrativa de vida
(autobiografia). Aqui o pesquisador se esfora para apreender
experincias que marcam de maneira significativa a vida de algum e a
definio dessas experincias pela prpria pessoa. (p. 105-106)
112. O segundo tipo destinado ao conhecimento de acontecimentos
e de atividades que no so diretamente observveis. (...) (p.106)
113. O terceiro tipo aproxima-se bastante do recurso metodolgico
das cincias sociais denominado grupo nominal ou focal. Prope-se que
mediante questes abertas sejam obtidas informaes de um nmero um
tanto quanto elevado de pessoas num tempo relativamente breve.
(...) (p.106)
114. Um outro aspecto importante, no sentido de desconstruir o
momento da entrevista como mera coleta instrumental de informaes,
que no prprio desenrolar da entrevista podem acontecer redefinies
de identidades tanto do pesquisado quanto do pesquisador; pode
haver mudanas de objetivos da pesquisa e pessoais. (...)
(p.106)
115. Uma outra caracterstica marcante da entrevista que os
sujeitos envolvidos na pesquisa podem ser submetidos a vrias
entrevistas, no s com o objetivo de obter mais informaes, mas tambm
como meio de apreender as variaes de uma situao estudada, muito
comum nos meios educacionais. (p.107)
116. Portanto, a entrevista de inspirao etnogrfica, como recurso
fecundo para a etnopesquisa, um encontro social constitutivo de
realidades, porque fundado em edificaes pela linguagem, pelo ato
comunicativo, definidor de significados. Nesse sentido, a
entrevista um dos recursos quase indispensveis para a apreenso de
forma indexal (encarnada, enraizada segundo a etnometodologia) do
significado social pelos etnopesquisadores, at porque, como elabora
Austin (1970), nesse contexto, dizer fazer. (p.107)
Os documentos como etnotextos fixadores de experincias
117. Outro recurso significativo na tradio metodolgica da
etnopesquisa a anlise de documentos. (...) (p.107)
118. (...) anlises a partir de textos at ento desprezados textos
que atestam banais realidades cotidianas , os denominados
etnotextos excludos. (p.108)
119. (...) quando a linguagem dos sujeitos importante para a
investigao, pode-se incluir todas as formas de produo do sujeito em
forma escrita, como as redaes, cartas, comunicaes informais,
programas, planos, etc. (p.108)
120. Ademais, os documentos tm a vantagem de serem fontes
relativamente estveis de pesquisa, o que facilita, sobremaneira, o
trabalho do pesquisador interessado nos significados comunicados
das prticas humanas. (p.108)
121. Como etnotexto fixador de experincias, revelador de
inspiraes, sentidos, normas e contedos valorizados, o documento uma
fonte quase indispensvel para a compreenso/explicitao da instituio
educativa. Justifica-se ademais essa nossa assertiva, partindo-se
da premissa de que foi na escola moderna que a cultura grfica veio,
de vez, sedimentar-se, e por meio dela, predominantemente, que a
escola obtm e avalia seus produtos. Poderamos dizer,
contemporaneamente, que no possvel vida escolar sem um processo de
documentao. A, est, entendemos, uma fonte seminal a ser acordada
por aqueles que, abraando a etnopesquisa crtica dos meios
educacionais, querem compreender em profundidade ao de educar, suas
linguagens e inteligibilidades. (p.110-111)
A histria de vida: experincia, itinerncia e narrativa
122. Vinculada tradio da histria oral, a histria de vida outro
recursos metodolgico pertinente exercitado mo mbito da
etnopesquisa. No representa nem dados convencionais da cincia
social, nem uma autobiografia, tambm no representa um exerccio de
fico. (...), e junto como recurso da observao participante o que
melhor d sentido noo de processo, na medida em que capta e tenta
compreender no processo de interao como se constri a vida do ator.
(p.111)
123. Nesse sentido, a histria de vida nada tem a ver com
uniformidade e linearidade. Na prtica da histria de vida, atores
ignorados e/ou excludos econmica e culturalmente adquirem a
dignidade e o sentido de finalidade, ao rememorar a prpria vida,
contribuindo pela valorizao da linha de vida para a formao de
outras geraes. Consequentemente, o recurso da histria de vida nos
meios educacionais mais uma contribuio para o rompimento com o
baixo mimetismo cognitivo, o abstracionismo terico e o colonialismo
intelectual. (p.114)
O grupo nominal ou focal: a possibilidade da descrio dos
etnomtodos via narrativas dialogicizadas
124. Trata-se de um recurso de coleta de informaes organizado a
partir de uma discusso coletiva sobre um tema especificado e
mediado por um ou mais de um animador-entrevistador. Na realidade,
configura-se como uma entrevista coletiva aberta e centrada. Alguns
elementos, entretanto, devem ser levados em conta: os membros do
grupo; sua preparao para a entrevista; as condies de tempo; o lugar
do encontro; a qualidade da mediao ou do entrevistador em termos de
domnio da temtica a ser trabalhada e da dinmica grupal. (p.116)
125. bom frisar que nesse tipo de recurso qualitativo faz-se
necessrio certo domnio de tcnicas no-diretivas de entrevista, diria
mesmo, certa atitude que consista em demonstrar tolerncia s
ambigidades, aos paradoxos, s contradies, s insuficincias, s
impacincias, s compulses e at mesmo, aos sentimentos de rejeio
quanto ao tema tratado ou a sua metodologia. Nesse sentido, sabe
ouvir, interromper, fazer snteses, reformulaes, apelos participao,
apelos a complementos, distenso, maior objetividade, seriam
habilidades recomendveis. (p116-117)
126. Durante a discusso, os membros tm maior possibilidade de
diluir defesas, de expressar conflitos e afinidades, fortalecendo o
carter construcionista das etnopesquisas. (...) (p.117)
127. (...). Como dispositivo de pesquisa eminentemente grupal, o
grupo nominal ou focal extremamente vlido para tratar com os
objetos de pesquisa em educao, afinal de contas a prtica pedaggica
se realiza como prtica grupal e coletivamente argumentada em todas
suas perspectivas. (p. 117-118)
As tcnicas projetivas: o imaginrio sociocultural em expresso
128. Os pesquisadores que elegem como fundamental em seus
estudos a apreenso de sentidos e significados, isto , que julgam a
subjetividades e seu dinamismo como uma especificidade importante
da ao humana, sabem de algumas dificuldades encontradas para a
coleta de informaes nesses nveis da experincia. (...) (p.118)
129. (...) A projeo aqui abordada a partir das prprias temticas
que emergem da situao analisada e se esfora para que o significado
apreendido venha tona impregnado das experincias indexalizadas da
cultura e das problemticas de vida experienciada pelos atores.
(...) (p.119)
130. Como objetos de projeo, podem se utilizados desenhos dos
atores interpretados por eles prprios, opinies sobre uma obra de
arte representativa de uma problemtica local, sobre uma pea ou
performance, uma msica, uma orao, um curso, um poema ou qualquer
expresso literria; so materiais pertinentes para a etnopesquisador,
interessado que na densidade simblica da vida. (p.120)
131. Muitos etnopesquisadores adaptam as tcnicas projetivas de
acordo com o contexto de sua aplicao. Alguns chegam a inventar
recursos projetivos de acordo com seus propsitos. (...) (p.120)
132. (...) necessrio que se alargue a formao do etnopesquisador,
at porque esta se consubstancia numa prtica de pesquisa
multirreferencial, portanto, solidamente calcada na necessidade da
articulao e da relao entre os saberes. No caso do recurso tcnica
projetiva, uma aproximao com a psicologia e com a psicolingstica
seria recomendvel, ou mesmo a incorporao de pesquisadores dessas
reas sensveis mediao social dos fenmenos subjetivos. A conseqncia
natural desse processo de articulao tem conduzido a um rompimento
com a exclusividade das tcnicas de investigao, fazendo com que
dialoguem pesquisadores de diferentes reas das cincias humanas,
interessados em criar dispositivos de pesquisa cada vez mais
pertinentes em relao complexidade das realidades humanas.
(p.121)
A imagem na etnopesquisa
133. (...) Inspirada em Merleau-Ponty, para a autora um ato de
conhecimento visual, por exemplo, um desvelar da conscincia, a
descoberta de um novo sentido sobre a experincia vivida,
desvelamento de novos horizontes que originam novos sentidos, que,
ento, refundam aquilo que j foi visto ou experenciado. (p.122)
134. (...) a maior especificidade do texto no-verbal, (...), por
assim dizer, no encontramos nele um signo, mas signos aglomerados
sem convenes: traos, tamanhos, cor, contraste, textura, sons,
palavras, ao mesmo tempo juntos e difusos. (p.122)
135. O no-verbal no substitui o verbal, bom que se diga, mas
convive com ele, ou seja, as palavras ou frases que nele podem
aglomerar-se perdem sua hegemonia logocntrica para apoiar-se ou
compor-se com o visual, com o sonoro, numa nivelao e transformao de
todos os cdigos. (p.122)
136. Ao se incorporarem realidade, os textos no-verbais no se
impem observao seno por uma operao mental especfica: leitura. (...)
gera sua segunda caracterstica estrutural: ele se insere no espao
da pagina na qual escrito e, concomitantemente, transforma o prprio
espao em linguagem, caracterizando-o como manifestao privilegiada
do no-verbal. (p.122-123)
137. Ferrara (1988, p.98) nos diz que (...) estudar o espao como
pgina em que se emite e se recebe um texto no-verbal supe estud-lo
como extenso daquela prtica representativa, ou seja, nele se
escreve a histria sucessiva de um modo de pensar, desejar,
desprezar, escolher, relacionar, sentir, etc. A percepo da escola e
de sua rede de relaes, por exemplo, construda mediante fragmentos
de sua imagem, leva os interessados em sua compreenso surpresa que
rompe com o hbito de uso. (p.123)
138. O procedimento de registro do espao levaria o ator
pedaggico, por exemplo, a captar, confrontar e informar espaos
idnticos, prximos ou divergentes. Contrastar um mtodo significativo
em uma pesquisa de percepo espacial, que leva a distines
importantes para a compreenso de um cenrio institucional como a
escola. (p.123)
139. O pesquisador pode muito bem atuar como estmulo para a
captao do uso escolar, resgatando-o de sua opacidade habitual e
tornado-o relevante pela imagem (fotografia), a ponto de ser
possvel falar sobre ela, verbaliz-la e a complementa o sentido
construdo mediante umas gestalt mais ampliada e conectada em relao
a outros mbitos da sua vida. (p. 124)
140. O processo de interpretao das imagens construdas pode
desenvolver-se a partir das seguintes perspectivas escolares:
caractersticas fsico-contextuais e estgio atual e sua transformao;
a memria e a histria ambiental; o espao pblico institucionalizado e
espontneo: a relao entre o espao pblico e privado; o ambiente
escolar nas suas microlinguagens, etc. (p.124)
141. (...) o texto no-verbal opera com resduos desconexos de
mltiplas linguagens, mas sua leitura aprende com a leitura de
verbal a necessidade de operar logicamente; da a necessidade de
geometrizar os resduos signicos, compar-los e flagra convergncias e
divergncias (FERRARA, 1988) (p.125)
142. (...) o texto no-verbal supe uma recepo que ousa
ultrapassar os limites da alfabetizao verbal para acreditar na sua
possibilidade de ver, mediante fragmentos informacionais, um texto
que no outra coisa seno o reflexo de outros textos, inclusive
verbais, j armazenados na memria e veiculados pelos sentidos. antes
de tudo a capacidade de o crebro humano processar informaes por
meio da interao sensvel do universo que o cerca. (FERRARA, 1988).
Nesse sentido, a escola, por exemplo, mensagem procura de
significados que se atualiza em uso e cotidianamente. (p.126)
143. Sampaio, Mclarem e Mcham so exemplos que evidenciam em seus
estudos sobre a escola o quanto o uso da imagem um recurso
extremamente frtil para a etnopesquisa crtica, principalmente para
a compreenso dos mltiplos rituais que a escola constri em seus
espaos vitais. Percebe-se, cada vez mais, nas pesquisas
partilhadas, a utilizao de etnoimagens, ou seja, imagens construdas
e orientadas pelos membros como dados de compreenso indexalizada
nas realidades socioculturais. (p.128)
144. Em termos de etnopesquisa, bom lembrar que o vdeo e mesmo a
entrevista gravada, no devem substituir a observao participante.
Esses meios no obtm o equivalente ao que a presena do pesquisador
no campo capaz de obter em termos de observao. (p.128)
145. Levando em conta que uma cultura imagtica se pluraliza toma
importncia na sociedade em que vivemos, que os ambientes de
aprendizagem se configura cada vez mais pela estruturao das suas
imagens, para o etnopesquisador esse um cenrio fecundo de
compreenso porque extremamente contemporneo. (p.128)
A dramaturgia social e dispositivo etnocenolgico de pesquisa
146. fato que em sociedade representamos papis diversos.
justamente pela via de noo de representao e de sua dinmica
interativa que, em parte, a dramaturgia social de Goffman vai
inspirar certo mtodo para apreender os diversos papis desempenhados
por atores no dia-a-dia, que acaba por compreender determinada
organizao interativa de significados socialmente constitudos. Os
diversos rituais da prtica pedaggica so um exemplo que nos mostra
como papis diversos entram em cena, mobilizados pelos interesses
particulares de cada ator, para o final constiturem ator que
legitimam e instituem, ao mesmo tempo, uma dada estrutura
sociocultural. (p.129)
147. Na dramaturgia goffmaniana, representar transmitir e
constituir uma verdade, com todas as contradies ou paradoxos que
algum de fora possa apreender (...) (p.129)
148. Para uma compreenso mais apurada de um mtodo etnocenolgico
abstrado das idias de Goffman, faz-se necessrio analisarmos alguns
conceitos nucleares da sua dramaturgia social. Assim, representao
refere-se a toda atividade d um indivduo diante de um grupo
particular de observadores sobre o qual ele tem alguma influncia.
(...) Na realidade, ao representar um papel, o ator social define e
redefine constantemente situaes, reproduz, mas tambm cria, trazendo
cena e ressignificando presentemente situaes e cenas do passado
recente ou remoto, ou mobilizando sentidos projetados a partir de
uma intencionalidade vinda das possibilidades de um certo devir.
(p.130)
149. a partir do jogo das aparncias e das expectativas que tambm
podemos ter acesso a mbitos que costumamos chamar de verdade, pois
as aparncias fazem parte desse conjunto constitutivo. (p.131)
150. Conforme Jean-Marie Pradier, a etnocenologia estuda as
prticas e os comportamentos espetaculares organizados dos diversos
grupos tnicos e das comunidades culturais. (...) espetacular o que
se destaca da banalidade do cotidiano, da plenitude da existncia,
da coexistncia, em um evento construdo, assegurado e assumido por
um ou mais performers. (...), fica explcito que o propsito da
etnocenologia contribuir para um melhor conhecimento da natureza do
ser humano, partindo da elaborao de uma teoria geral do espetacular
humano, e que sua hiptese fundamental parte do princpio de que a
atividade espetacular humana um trao fundamental da espcie,
sustentado pela unidade corpo/pensamento, que constitui o espao
central em que se organizam formas mltiplas nos campos mais
diversos da vida dos indivduos e dos coletivos sociais.
(p.131-132)
151. Segundo essa perspectiva, os etnopesquisadores estariam
mais interessados nos etnomtodos, processos e contedos das interaes
e dos papis desempenhados, de onde emergem os sentidos e os
significados da ao social espetacularizada. (p.132-133)
O Dirio de campo: notas de itinerncias e errncias
152. Jornal de pesquisa, dirio de campo, dirio de viagem so
denominaes que conceituam a descrio minuciosa e densa de
existencialidade, (...) Trata-se, em geral, de um aprofundamento
reflexivo sobre as experincias vividas no campo da pesquisa e no
campo de sua prpria elaborao intelectual, visando apreender, de
forma profunda e pertinente, o contexto do trabalho de investigao
cientfica. (...) (p.133)
153. Na realidade, a prtica do dirio de campo permite que nos
situemos melhor nos meandros e nas nuanas, em geral, descartados,
nem por isso poucos importantes, da instituio pesquisa, naquilo que
so suas caractersticas explcitas e tcitas (...) (p.133)
154. Em geral, a prtica de escrita de um dirio de campo
possibilita ao pesquisador compreender como seu imaginrio est
implicado no labor a pesquisa; quais seus atos falhos; quais os
verdadeiros investimentos que ali esto sendo elaborados. um esforo
para tornar-se cnscio da caminhada, do processo pessoal e
co-construdo da produo, portanto, um potente instrumento de formao
no campo da investigao em cincias antropossociais e da educao.
(p.133-134)
155. Nesses termos, ao construir seu dirio de campo, o
etnopesquisador reafirma definitivamente seu status de ator/autor
entra, por conseqncia, numa elaborao e numa elaborao e numa
construo do sujeito e do objeto e passa por um trabalho de elaborao
daquilo que nos constitui tanto em nvel imaginrio quanto real.
(p.134)
156. Alm de ser utilizado como instrumento reflexivo para o
pesquisador, o gnero dirio , em geral, utilizado como forma de
conhecer o vivido dos atores pesquisados, quando a problemtica da
pesquisa aponta para a apreenso dos significados que os atores
sociais do situao vivida. (p.134)
157. No caso da formao de pesquisadores, o dirio, segundo Borba
(1997, p.67), (...) torna-se uma prtica regular de escrita de um
texto nosso, com o objetivo de uma maior competncia de escrita e de
articulao dos nossos espaos de reflexo, um dispositivo que coloca a
nu nossas relaes e que, assim, nos ajuda a compreend-las em
profundidade. (p.135)
A interpretao dos dados em etnopesquisa crtica
158. A prtica em etnopesquisa crtica nos mostra que, na
realidade, a interpretao se d em todo o processo de pesquisa. H,
claro, um dado instante de nfase na construo analtica que,
irremediavelmente, se transformar num produto de final aberto,
(...) H uma produo visada que se objetiva num corpus de
conhecimentos a servio de uma formao e de uma relevncia social. De
fato, na etnopesquisa a anlise e um movimento incessante do incio
ao fim, que, em determinado momento, se densifica e forja um
conjunto relativamente estvel de conhecimentos como foi dito, um
produto de final aberto , caracterstica marcante das pesquisas
ps-fomais. (p.135-136)
159. Assim, uma das primeiras tarefas na anlise dos dados de uma
etnopesquisa o exame atento e extremamente detalhados das informaes
coletadas no campo de pesquisa. (p.136)
160. Aps um certo tempo de imerso em campo tempo que pode variar
segundo a problemtica do objeto pesquisado e/ou de suas
especificidades de contexto - , o pesquisador deve indagar-se sobre
a relevncia dos seus dados, tomando mais uma vez como orientao suas
questes de pesquisa norteadoras e intuies sadas do contato direto
com o objeto pesquisado. Tal reflexo aponta para o recurso
denominado de saturao dos dados, indicativo da suficincia das
informaes e da possibilidade do incio da anlise e da interpretao
final do conjunto do corpus emprico. Esse momento jamais visto como
momento estanque, pois possvel se retornar vrias vezes ao campo em
busca de maior densidade e detalhamento. (p.136)
161. A partir desse momento, a tradio fenomenolgica em pesquisa
nos recomenda a reduo. Aqui se determina e se seleciona as partes
da descrio que so consideradas essenciais, e aquelas que, no
memento, so avaliadas como no-significativas. O propsito desse
momento distinguir sem fragmentar e sem perder relaes relevantes o
objeto da conscincia, isto , os acontecimentos, as pessoas, as aes,
ou outros aspectos que constituam a experincia. (...) Nesse
processo de filtragem contextualizada e encarnada, o pesquisador se
capacita a reduzir a descrio para chegar conscincia da experincia.
Nesse sentido, a compreenso se torna possvel quando o pesquisador
assume o resultado da reduo como um conjunto de asseres
significativas para ele, pesquisador, mas que aponta para a
experincia do sujeito, quer dizer, aponta para a conscincia que
este tem do fenmeno. Ao conjunto de asseres da advindas, o
procedimento fenomenolgico denomina unidades dos significados
(MARTINS, 1992). (p. 137)
162. No comeo, essas unidades devem ser tomadas exatamente como
propostas pelos sujeitos que esto descrevendo os fenmenos e
utilizando seus etnomtodos. Posteriormente, o pesquisador
transforma essas expresses em expresses prprias do discurso que
sustenta o ele est buscando. (...) pluralidade, densidade,
detalhamento e contextualizao so recursos que, se articulados, do a
medida da confiabilidade das etnopesquisas. (p137-138)
163. Faz-se necessrio assinalar que a interpretao em
etnopesquisa , sem dvida, uma atividade extremamente exigente em
termos intelectuais. (...) medida que a leitura interpretativa dos
dados se d s vezes por vrias oportunidades , aparecem significados
e acontecimentos, recorrncias, ndices representativos de fatos
observados, contradies profundas, relaes estruturadas, ambiguidades
marcantes; emerge aos poucos o momento de reagrupar as informaes em
noes subsunoras as denominadas categorias analticas , que iro
abrigar analtica e sistematicamente os subconjuntos das informaes,
dando-lhes feio mais organizada em termos de um corpus analtico
escrito de forma clara e que se movimenta para a construo de um
pattern compreensvel e heuristicamente rico. (p.138)
164. (...) nesse momento que se inicia o esforo de organizao e
sntese, que, no estudo, vai ter seu momento nas consideraes
conclusivas. o momento tambm de estabelecer totalizaes relacionais
com contextos e realidades histricas conectadas problemtica
analisada; de construir tematizando as respostas s questes
formuladas quando da construo da problemtica da pesquisa; de
elaborar metanlises nas quais podero brotar novas anlises, novos
conceitos, compondo um tecido argumentativo pertinente, rigoroso e
fecundo, em termos da construo do conhecimento visado. (p.139)
165. interessante lembrar a necessidade da lembrana da voz do
ator social implicado na apresentao da pesquisa, e que ele no fale
simplesmente pela boca da teoria, no seja apenas um figurante
legitimador de conceitos cristalizados e corporativos, que sua fala
seja recurso de primeira mo para as interpretaes fundamentadas na
realidade concreta, da qual ele faz parte, irremediavelmente. (...)
recursos podem ser acrescidos, como fotos, recortes de documentos
jornais, cartas, impressos, mapas grficos, cartazes, pinturas,
desenhos, fitas de vdeos, CDs, DVDs, etc. Recomenda-se, ainda, que
muitos desses recursos figurem no corpo do texto analtico, at mesmo
como fonte de uma densa interpretao, afinal, as etnopesquisas visam
compreender/explicitar a realidade humana tal como esta vivida
pelos atores sociais em todas as perspectivas. (p.141)
166. (...) As nos defrontarmos com a realidade, temos de
compreender que ela no cabe num conceito; preciso construir um
certo distanciamento terico, a fim de edificarmos, durante as
observaes, umas disponibilidade dialgica em face dos acontecimento
em curso. Ao concluir a coleta de informaes, as inspiraes tericas
so retomadas para trabalharem criticamente no mbito das
interpretaes sadas do estudo concreto. Desse encontro tensionado
pelos saberes sistematizados e pelos dados vivos da realidade,
nasce um conhecimento que se quer sempre enriquecido pelo ato
reflexivo de questionar, de manter-se curioso. (p.141-142)
167. Nesse sentido, teoria e empiria engendram um dilogo que
tende a vivificar, a vitalizar o conhecimento. Teoria e empiria se
informam e se formam incessantemente. (...) (p.142)
168. Preocupados com a validao de seus estudos, os
etnopesquisadores utilizam, cada vez mais, o procedimento da
confrontao de suas interpretaes conclusivas com as opinies dos
atores individuais ou coletivos implicados na situao pesquisada.
(...) H uma total disponibilidade intercriticidade como processo de
construo social da validao de uma etnopesquisa. (p.143)
169. (...) Erickson cita algumas dificuldades que podem levar
desqualificao de um etnopesquisa: insuficincia de provas (...);
falta de diversidade no estabelecimento de provas (...); erro de
interpretao (...) (p.143)
170. (...) uma das primeiras providncias para se evitar essas
dificuldades o cuidado com a durao das observaes e com a necessria
proximidade do pesquisador com os atores e seus contextos. (p.143 e
144)
171. nesses termos que o etnopesquisador o principal instrumento
da etnopesquisa.
A anlise de contedos e a compreenso intercrtica dos etnotextos
humanos
172. A tentativa de interpretar os livros sagrados foi, na
realidade, o primeiro esforo para a realizao de uma anlise de
contedo. (...) o recurso utilizado densamente, quando cartas
pessoais, documentos, autobiografias e jornais so analisados
visando compreender o contedo dessas fontes de conhecimento.
(p.144-145)
173. Algumas peculiaridades so importantes na anlise de
contedos. Uma delas que se trata de um meio para estudar a
comunicao entre atores sociais, que enfatiza a anlise dos contedos
das mensagens sem se restringir ao discurso. (p.145)
174. (...) importante salientar, ainda, que o domnio do mtodo de
anlise de contedos no dispensa em hiptese alguma a inspirao
filosfica e terico-epistemolgica, que dever ficar evidenciada nos
referenciais que fundamentam qualquer estudo. (p.145)
175. Da perspectiva da etnopesquisa, a anlise de contedos um
recurso metodolgico interpretacionista que visa descobrir o sentido
das mensagens de uma dada situao comunicativa. (...) Um poema, um
discurso, uma entrevista, uma histria de vida, uma declarao verbal
ou escrita, um dirio pessoal ou de campo, um livro didtico, ou
quaisquer formas de ao ou realizao humanas so objetos de uma anlise
de contedos isto , qualquer realidade em que o contedo possa
emergir significativamente para a compreenso de uma dada situao,
via processos construcionistas de comunicao humana; da a noo de
texto se ampliar para tudo que expressa e comunica no mundo humano.
(p.146)
176. (...) analisar um contedo de forma pertinente implica a
importncia de tornar-se membro, como recomendam os etnometodlogos,
quer dizer, encharcar-se ou fazer parte da linguagem natural
praticada por uma comunidade, compreend-la em profundidade.
Portanto, destacar, fragmentando, o contedo onde ele se d, com o
objetivo de analis-lo, uma prtica inconcebvel para uma
etnopesquisa, seria um paradoxo insupervel. (p.146-147)
177. (...) Bardin (1997, p.52) especifica trs etapas bsicas no
trabalho com a anlise de contedos: pr-anlise, descrio e interpretao
inferencial (...) (p.147)
178. (...) o analista de contedos (...). Trabalha desvelando
sentidos e significados que habitam a teia comunicativa, que se
escondem e se revelam, dependentes que so dos valores, das
ideologias e dos interesses do ser social. Dessa perspectiva, a
analise de contedos passa a ter importncia de peso no conjunto das
tcnicas praticadas pela etnopesquisa crtica, principalmente se
cultivam os pressupostos e princpios da sociofenomenologia de feio
crtica. (p.149)
179. Assim, para que a analise de contedos tome como referncia
os princpios da etnopesquisa crtica, faz-se necessria a incorporao
da inspirao hermenutica de orientao crtica (...) (p.150)
CAPITULO IV ETNOPESQUISA CRTICA, CURRCULO E FORMAO
A formao em questo
180. (...) Bildung (formao) surge modernamente na Alemanha no
fim do sculo 18. um conceito de alta complexidade, com extensa
aplicao nos campos educacional e da cultura, alm de ser
indispensvel nas reflexes sobre o homem e a humanidade, sobre a
tica, a criao, a sociedade e o Estado. (...) No caso da lngua
portuguesa, formao amplia-se e se complexifica bem mais,
aproximando-se do significado alemo sem, entretanto, atingir sua
indexalidade. (...) (p.152)
181. Umas das conseqncias de uma formao inspirada por alguns dos
princpios aqui descritos a valorizao intercrtica da experincia e do
vivido como reflexes seminais para a valorizao da prtica (...)
(p.152)
Etnografia semiolgica e formativa: base da
etnopesquisa-formao
182. Para Lapassade (1991), a etnografia na escola de extrema
importncia para a formao terico-metodolgica e crtica do professor e
seus alunos, partindo-se das bases filosficas e sociolingsticas
desse recurso de pesquisa. Calcada no imperativo da descrio
reflexiva, da pertinncia do detalhe contextualizado, do trabalho
com os sentidos construdos em contexto, a prtica etnogrfica nascida
no interior das prticas pedaggicas uma endoetnografia escolar,
portanto desvelaria realidade at hoje em opacidade, escondidas numa
caixa-preta intocvel pela anlise sistmica de entrada e sada.
(p.153)
183. Um mundo de prticas, sentidos e significados complexos , em
geral negligenciado, como se a sala de aula, a escola e suas
construes representassem apenas um reflexo mecnico do processo
decisrio de autoridades pedaggicas; um cenrio esttico e estril.
Faz-se necessrio destacar que exercitar um endoetnografia dos meios
educacionais no deve ter o interesse fechado apenas na pesquisa. um
recurso para todos os fins prticos da formao, da auto-eco-organizao
dos formadores e formando. (...) processo formativo (...) se
constitui a partir do conjunto das relaes pedaggicas e de suas
nuances, interagindo com nossas interpretaes, com as interpretaes
dos alunos e de todos os atores e atrizes do cenrio pedaggico (...)
(p.153)
184. Ademais, o conjunto dessas endoetnografias formaria, na sua
temporalidade especfica e relacional, um imaginrio rico em patterns
pedaggicos, em processos idenditrios descobertos a partir do
conjunto das aes e das obras elaboradas na dinmica organizacional e
institucional dos cenrios educacionais. Afinal, o ser humano muito
se reconhece na sua prpria obra refletida. (p.154)
185. (...) d-se no ato formativo a perda de um momento fecundo
em termos de processo ensino-aprendizagem: o aprender por mimese,
processo de identificao ativa e de extrema mobilizao afetiva, tica
e cognitiva. (p.154)
186. (...) podemos apontar a endoetnografia como a prtica
metodolgica motivante e de reais possibilidades para tornar o ato
educativo bem mais reflexivo nos seus aspectos formativos, muitas
vezes ofuscados pelo desenvolvimento de uma cultura latente, no
revelada, nem por isso menos importante (...) (p.155)
187. A meu juzo, professores e alunos endoetnogrficos, alm de
aperfeioarem a observao como esforo hermenutico para uma participao
reflexiva e intercrtica, se transformam, sem rituais dolorosos
dispensveis, em intelectuais pesquisadores (...) (BOUMARD, 1989)
(p.155)
188. (...) uma abordagem endoetnogrfica inspirada na
epistemologia qualitativa permite compreender como as relaes
sociais mudam, como as pessoas em formao mudam, como mudam suas
vises de mundo, como a realidade escolar se conflitua pela
possibilidade de mudana. (p.156)
Etnopesquisa-ao e etnopesquisa-formao
189. Falar de uma etnopesquisa-ao nos conduz a um campo onde a
academia concretamente sai de seus muros e age em termos de
interveno com as pessoas. Na relao, etnopesquisa/ao, assume-se como
principal objetivo da pesquisa a solidariedade e a tica
comunitrias. Nem pesquisa desinteressada, nem modificacionismo
brbaro cabem nessa relao, mas compartilhada produo de conhecimento
visando pertinncia e relevncia scio-comunitrias, que, de incio,
partem claramente em busca da construo do conhecimento, para que a
pesquisa como etapa fundamental no se dissolva no interesse. (...)
(p.156-157)
190. Apesar de a etnopesquisa-ao ter surgido de uma perspectiva
de interveno externa, na qual o expert, em geral, prope ou negocia
com sua pesquisa a interveno em uma dada realidade, o que denomino
de etnopesquisa-ao tem, predominantemente, um carter construtivo
que vem de dentro do campo pesquisado. Dessa perspectiva, o
especialista dever est implicado na situao a ser conhecida e
transformada. (p.157)
191. Por outro lado, historicamente, a pesquisa-ao desde seu
inventor, o antroplogo americano J. Collier, se caracteriza como
uma ao transformadora especializada. (...) (p.157)
192. (...) o conhecimento prtico que cresce em valorizao,
conhecimento esse forjado no seio da comunidade envolvida na
pesquisa e na transformao. A etnopesquisa-formao adota o princpio
antropolgico segundo o qual os membros de um grupo social conhecem
melhor sua realidade que os especialistas que vm de fora da
conviviabilidade grupal da comunidade ou da instituio, o que no
significa fechamento num basismo ingnuo e equivocado, mas abertura
a uma dialogicidade interessada, com vistas a uma interveno
majorante e intercrtica. (p.160)
193. No que se refere ao processo de pesquisa a formulao da
problemtica, a negociao do acesso ao campo, a coleta de dados, sua
avaliao e anlise, a apresentao dos resultados , a
etnopesquisa-formao difere pouco da etnopesquisa crtica.
(p.160)
194. Na formulao da problemtica de uma etnopesquisa-formao,
(...) o pesquisador implica-se junto com a coletividade na construo
da problemtica da pesquisa e de seu estudo. (...) Toda e qualquer
etapa da etnopesquisa-formao desenvolvida num processo de discusso
coletiva. comum que a coleta e dados se realize mediante a utilizao
de mtodos muito ativos, como as discusses de grupo, os jogos de
papis e as entrevistas em profundidade. Questionrios so utilizados,
entretanto as questes so abertas e utilizadas de uma perspectiva
semiolgica. (p.161)
195. No que concerne validade dos dados, a discusso coletiva que
os legitimar, o aval comunitrio vindo dos participantes
observadores que os autorizar como autenticidade cientfica para
aquela realidade a ser conhecida e transformada. O exame dos dados
tem por funo redefinir a problemtica inicial; o objetivo da
pesquisa ajudar a encontrar novas solues. (p.161)
196. (...) tratando-se de anlise e interpretao dos dados, so as
discusses enviadas pelo grupo de pesquisadores implicados que lhe
daro corpo e legitimao. (...) o coletivo social empenhado em
conhecer em profundidade que vai fazer emergir os resultados, os
pontos onde a interveno se dar, que tornar para si o processo
decisrio que a pesquisa indica. Tal procedimento se repete na
apresentao dos resultados da pesquisa; numa discusso grupal ou
comunitria que os resultados so apresentados, surgindo da as
chamadas estratgias de ao formativa. (p.162)
197. Quanto questo do mtodo, as tecnologias de pesquisa
utilizadas pela etnopesquisa-formao caracterizam-se pelas mesmas
orientaes metodolgicas da etnopesquisa crtica. (p.162)
198. (...) Em geral, a pesquisa-ao utiliza grande nmero de
recursos metodolgicos de natureza quantitativa; entretanto, d uma
feio nova aos mtodos, na mesma em que os transforma em instrumentos
coletivos de pesquisa. A coletivizao da tecnologia de pesquisa uma
marca das etnopesquisas interessadas na interveno. (p.163)
199. Carr e Kemmis (1983) enumeram uma srie de razes que iro
justificar a pesquisa-ao nos meios educacionais: os professores j
no se contentam com o pesquisador do tipo consultor, vindo do
exterior, os atores pedaggicos esto cada vez mais conscientes da
inutilidade socioeducacional de um certo nmero de pesquisas em
educao, distanciadas das necessidades reais do processo
educacional, no qual o pesquisador assume dentro dos meios
educacionais uma simples postura de observador, (...) (p.163)
200. (...) A etnopesquisa-formao, como cultivo da prxis, ser,
portanto, uma pesquisa interna da prtica singular do prtico. Por
conseguinte, o conhecimento adquirido est constantemente em relao
dialtica com a prtica estudada na ao; nesse sentido, o conhecimento
um processo cooperativo ou coletivo de reconstruo interna de um
grupo de pesquisadores-prticos. (p.165)
201. A pesquisa-ao dos meios educacionais, tal como a concebem
Carr e Kemmis, tem como objetivo desenvolver entre os
educadores-pesquisadores um tipo de distncia crtica em relao aos
sentidos e significados que governam habitualmente as prticas.
(p.165)
202. No seio dessa prtica reflexiva e democrtica de pesquisar,
outras inteligibilidades podem emergir e fortalecer-se em poder,
outros talentos ressurgem ao entender porque eram vistos como meros
componentes. (p.167)