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Eiji Yoshikawa - Musashi I

Apr 06, 2018

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flavioabernardo
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    Eiji Yoshikawa

    MUSASHIVOLUME I (a)

    A TerraA gua

    Traduo e notas de Leiko GotodaPrefcio de Edwin O. Reischauer

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    NDICE

    VOLUME I (a)

    PREFACIOpor Edwin O. Reischauer

    NOTA DA TRADUTORA

    A TERRAO GuizoO COGUMELO VENENOSOUM PENTE VERMELHOFLORES PARA O SANTURIOO Povo DA ALDEIAA ARMADILHAESTRATGIAS DE GUERRAO FEITIO DE UMA FLAUTAO CEDRO CENTENRIOO DILOGO DA RVORE E DA PEDRAA CASA DE CH MIKAZUKIO MEDOA CELA DA LUZA PONTE HANADABASHI

    A GUAA ACADEMIA YOSHIOKALuz E SOMBRAA RODA DA FORTUNAA LADEIRAO DUENDE DAS GUASNAS ASAS DO VENTOCAMINHOS QUE SE CRUZAMOs LANCEIROS DO TEMPLO HOZOIN

    UMA ESTALAGEM EM NARAO MORRO HANNYAO BERO DE UM GRANDE HOMEMA MENSAGEM DA FLORQUATRO VETERANOSUMA REUNIO INFORMALO CO DE KOYAGYUUM CORAO EM CHAMAS

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    O ROUXINOLA ENCRUZILHADA

    NDICE

    VOLUME I (b)

    O FOGOA MELANCIASASAKI KOJIROO MONGE KOMUSOA TENTAOAMOR E DIOUM BELO JOVEM

    A CONCHA DO ESQUECIMENTODA IMPERMANNCIA DA VIDAUM INIMIGO QUE SURGE DO PASSADOO VARALRIOS E MONTANHAS ETERNOSA FONTE SAGRADAA MIRAGEMO CATAVENTOUM CAVALO SEM FREIOSBORBOLETA NO INVERNO

    TENTAES ADORMECIDASO DESAFIOSOLIDOA AGULHAO SORRISOONDULAES NA GUA

    O VENTONUM CAMPO SECOUMA LIO DE VIDA

    A VIAGEM NOTURNAO CONFRONTO DE DOIS KOJIROSO SEGUNDO FILHO DOS YOSHIOKAO BECOAMOR EXTREMADOA COVAO MERCADORA NEVASCARASTROS NA NEVE

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    SEIS POETAS CONTEMPORNEOSLENHA PERFUMADAUMA CORDA QUE SE PARTEDOLOROSA PRIMAVERAUM LEVE AROMA DE SNDALO

    O PORTALUM BRINDE AO AMANHTERRA MORTFERAAPENAS O LUARO ECOUM GANSO DESGARRADOVIDA E MORTEA NVOA E o VENTO

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    PREFACIO1

    por Edwin O. Reischauer2

    Musashipoderia perfeitamente ser o E o Vento Levoudo Japo. Escritopor Eiji Yoshikawa (1892-1962), um dos escritores populares mais proliferas eapreciados do Japo, um longo romance histrico publicado inicialmente emforma de folhetim entre 1935 e 1939 no maior e mais prestigioso jornal

    japons, o Asahi Shinbum. Em forma de livro teve catorze edies e, maisrecentemente, foi publicado em quatro volumes pela editora Kodansha,integrando a coleo de 53 volumes das obras completas de Yoshikawa.Tema de produo cinematogrfica cerca de sete vezes, foi levado ao palcocontinuamente e transformado em minissries televisionadas por pelo menostrs grandes redes de alcance nacional.

    Miyamoto Musashi um personagem histrico verdadeiro, mas atravsdo romance de Yoshikawa ele e diversos personagens principais passaram aintegrar o folclore vivo do Japo. Tornaram-se to familiares ao pblico quepessoas comearam a ser comparadas a eles com freqncia, como genteque todo o mundo conhece. Para o leitor estrangeiro esse fato contribui paratornar o romance ainda mais interessante, pois no s fornece uma pororomantizada da histria japonesa, como tambm uma perspectiva de como os

    japoneses vem a si mesmos e ao seu passado. Basicamente, no entanto, o

    romance ser apreciado como uma audaciosa aventura do tipo capa-e-espada, que tem como pano de fundo uma histria de amor reprimido, emestilo japons.

    Comparaes com o livro Xogum, de James Clavell, pareceminevitveis pois, para a maioria dos norte-americanos de hoje, Xogum tantoo livro como a minissrie televisionada disputa com os filmes de samurais aposio de principal fonte de conhecimento do passado japons. Os doisromances se ocupam do mesmo perodo histrico. Xogum, cujosacontecimentos ocorrem no ano de 1600, termina quando lorde Toranaga que o histrico Tokugawa Ieyasu s vsperas de se tornar xogum ou

    ditador militar do Japo, parte para a fatdica batalha de Sekigahara. A histriade Yoshikawa comea com o jovem Takezo, posteriormente rebatizadoMiyamoto Musashi, cado entre os corpos dos soldados do exrcito derrotado

    1 Este prefcio foi extrado integralmente da edio norte-americana em volume nico: Musashi, KodanshaInternational, 1981, traduo do ingls por Leiko Gotoda.2 Edwin O. Reischauer nasceu no Japo em 1910, tendo falecido em 1990. Foi professor da Universidade deHarvard desde 1946, posteriormente Professor Emrito. Abandonou temporariamente o ensino universitrio paraser Embaixador dos Estados Unidos no Japo entre 1961 e 1966, sendo uma das autoridades mais respeitadas emassuntos japoneses. Entre suas numerosas obras estoJapan: The Story of a Nation e The Japanese

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    na mesma batalha de Sekigahara.

    Com exceo de Blackthorne o histrico WIII Adams Xogum lidaem sua maior parte com grandes senhores e damas do Japo que,ligeiramente disfarados, surgem com nomes que Clavell imaginou para eles.Musashi cita importantes personagens histricos e seus nomes verdadeirosenquanto discorre sobre um crculo mais amplo da populao japonesa,particularmente sobre um grupo bem numeroso camponeses, mercadorese artesos que viveu numa zona limtrofe mal-definida entre a aristocraciamilitar hereditria e a plebe. Clavell distorce livremente o fato histrico paraadapt-lo sua narrativa, nela introduzindo uma histria de amor em estiloocidental que no s constitui flagrante escrnio histria, como tambm totalmente inimaginvel no Japo daquela poca. Yoshikawa permanece fiel histria, ou pelo menos tradio histrica, e a sua histria de amor, quetranscorre como um tema menor e serve de pano de fundo narrativa, autenticamente japonesa.

    Yoshikawa naturalmente enriqueceu a narrativa com muitos detalhesimaginados. Existem coincidncias bem estranhas e peripcias bastantespara deleitar qualquer amante de aventuras. Mas o autor permaneceu fiel aosfatos histricos, do modo como so conhecidos. So personalidadeshistricas reais no apenas o prprio Musashi, como tambm diversospersonagens que desempenham papis importantes no romance. Porexemplo, Takuan, luz e mentor do jovem Musashi, foi realmente um famosomonge zen-budista, calgrafo, pintor, poeta e mestre da arte do ch de seutempo, assim como o mais jovem abade do templo Daitokuji em Kyoto (1609),mais tarde fundando um importante monastrio em Edo; hoje em dia,entretanto, seu nome lembrado com maior freqncia associado a certo tipode picles populares entre os japoneses.

    O histrico Miyamoto Musashi, que pode ter nascido em 1584 e morridoem 1645, foi, como seu pai, um mestre de esgrima e tornou-se conhecido pelatcnica de usar duas espadas. Ardente cultor da autodisciplina como chavepara a habilidade marcial, foi o autor de uma famosa obra sobre a arte demanejar a espada, Gorin no Sho [O Livro dos Cinco Elementos, Trad. JosYamashiro, Cultura Editores Associados]. Provavelmente tomou parte nabatalha de Sekigahara em sua juventude, e seus embates com a academia de

    esgrima Yoshioka, em Kyoto, com os monges guerreiros de Hozoin, em Nara,e com o famoso espadachim Sasaki Kojiro, detalhados neste livro,aconteceram realmente. A narrativa de Yoshikawa termina em 1612, quandoMusashi ainda era um jovem de aproximadamente 28 anos, mas possvelque logo depois, em 1614, tenha participado do cerco ao castelo de Osaka lutando entre os perdedores assim como, entre 1637 e 38, do extermniodos camponeses cristos de Shimabara na ilha ocidental de Kyushu,acontecimento que marcou a erradicao da religio crist do Japo nos doissculos subseqentes e ajudou a isolar o pas do resto do mundo.

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    Por ironia do destino, em 1640 Musashi tornou-se vassalo dos senhoresHosokawa, de Kumamoto, que poca em que eram senhores destaprovncia haviam sido patres de seu principal rival, Sasaki Kojiro. OsHosokawas nos remetem outra vez a Xogum, porque Tadaoki, o filho maisvelho dos Hosokawas, que figura de modo totalmente injustificvel como um

    dos principais viles do romance, tendo sido a exemplar mulher crist deTadaoki, Gracia, retratada por Clavell sem o menor resqucio de plausibilidadecomo Mariko, o grande amor de Blackthorne.

    A poca em que Musashi viveu foi um perodo de grande transio noJapo. Aps um sculo de incessantes lutas armadas entre pequenos daimyoou senhores feudais, trs lderes sucessivos finalmente reunificaram o paspor meio de conquistas. Oda Nobunaga iniciou o processo, porm, antes decomplet-lo, foi trado e morto por um vassalo em 1582. Seu general maistalentoso, Hideyoshi, que emergiu do mais baixo escalo da infantaria,completou a unificao da nao mas morreu em 1598, antes de poder

    consolidar o governo do pas em nome de seu herdeiro, ainda uma criana. Ovassalo mais poderoso de Hideyoshi, Tokugawa Ieyasu, um influente daimyoque do seu castelo em Edo, atual Tquio, governava boa parte do Japooriental, conseguiu ento a supremacia derrotando a coalizo de daimyodaregio ocidental do Japo na histrica batalha de Sekigahara, em 1600. Trsanos mais tarde tomou o ttulo tradicional de xogum, significando que impunhaa ditadura militar em todo o pas, teoricamente em nome da antiga, emboraimpotente, linhagem imperial baseada em Kyoto. Em 1605, Ieyasu transferiu aposio de xogum para o filho, Hidetada, mas permaneceu ele prprio nocontrole real do poder at destruir os partidrios do herdeiro de Hideyoshi nos

    cercos ao castelo de Osaka, em 1614 e 1615.Os trs primeiros governantes Tokugawas estabeleceram um controle

    to rgido sobre o Japo que seu governo duraria mais de dois sculos e meioat finalmente desabar, em 1868, na tumultuada esteira da reabertura doJapo aos pases do Ocidente, uma dcada e meia antes. Os Tokugawasreinaram atravs de daimyo hereditrios semi-autnomos, que somavamaproximadamente 265 no final do perodo, e os daimyo, por sua vez,controlavam seus feudos por intermdio de samurais vassalos hereditrios. Atransio de luta armada constante para uma paz vigiada de perto provocou osurgimento de classes sociais rigidamente delimitadas: a dos samurais, que

    detinha o privilgio de portar duas espadas e usar nomes de famlia, ou seja,sobrenomes, e a dos plebeus que, embora inclusse a de mercadoresabastados e proprietrios de terras, tinha teoricamente vetado o uso dequalquer tipo de arma e a honra de usar nomes de famlia.

    Durante os anos sobre os quais escreveu Yoshikawa, todavia, essasdivises de classe no estavam ainda definidas com rigidez. Todas aslocalidades tinham seus resduos de camponeses guerreiros, e no pasabundavam os rounin, ou samurais sem senhores a quem servir, em grande

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    parte remanescentes dos exrcitos de daimyo que haviam perdido seusdomnios em conseqncia da batalha de Sekigahara ou de guerrasanteriores. Foram necessrias uma ou duas geraes antes que a sociedadefosse totalmente enquadrada nas rgidas divises de classe do sistemaestabelecido por Tokugawa, havendo nesse meio tempo considerveis

    movimentos e efervescncia social.Outra grande transio ocorrida no Japo do incio do sculo XVII diz

    respeito natureza da liderana. Com a paz restaurada e o trmino dasgrandes guerras, a classe dominante dos guerreiros percebeu que, paragovernar com sucesso, habilidades militares eram menos importantes quetalentos administrativos. A classe dos samurais iniciou uma lentatransformao, de guerreiros de armas de fogo e espadas para burocratas dopincel e do papel. Autocontrole disciplinado e educao numa sociedade empaz estavam se tornando mais importantes do que a percia em um conflitoarmado. O leitor ocidental poder surpreender-se ao verificar que, no incio do

    sculo XVII, ler e escrever j eram bastante comuns no Japo, e tambm comas constantes referncias dos japoneses histria e literatura chinesas, domesmo modo que os europeus setentrionais dessa poca se referiamcontinuamente s tradies da antiga Grcia e de Roma.

    Uma terceira e importante transio no Japo dos tempos de Musashiocorreu no setor de armamentos. Na segunda metade do sculo XVI,mosquetes recm-introduzidos pelos portugueses haviam setransformado em armas decisivas nos campos de batalha, mas numa terrapacificada, os samurais podiam voltar as costas s repugnantes armas defogo e reatar seu tradicional affaire com a espada. Escolas de esgrimafloresceram. No entanto, na medida em que diminuam as oportunidades deusar espadas em combates reais, habilidades marciais transformavam-segradativamente em artes marciais, e estas passaram a dar uma importnciacada vez maior ao autocontrole e s qualidades edificantes da esgrima,preferindo-as a uma eficcia blica no testada. Criou-se uma mstica inteiraem torno da espada, muito mais filosofia do que tcnica de combate.

    O relato do comeo da vida de Musashi, feito por Yoshikawa, ilustratodas essas alteraes em curso no Japo. Ele era um rouninprocedente deum vilarejo nas montanhas que se estabeleceu na qualidade de samurai

    avassalado apenas no fim da vida. Foi o fundador de uma escola de esgrima.Mais importante ainda: transformou-se aos poucos, de guerreiro instintivo, emhomem que fanaticamente procurava uma autodisciplina estilo zen, o domnioabsoluto sobre o prprio ntimo e um sentido de unidade com a natureza aoredor. Embora nos anos iniciais de sua vida competies mortais lembrandoos torneios da Europa medieval ainda fossem possveis, Yoshikawa retrataMusashi mudando conscientemente suas habilidades marciais a servio daguerra como meio de edificao do carter em tempos de paz. Habilidadesmarciais, autodisciplina espiritual e sensibilidade esttica fundiram-se num

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    todo, tornando-se indistinguveis. Este retrato de Musashi pode no estarlonge da verdade histrica. Sabe-se que Musashi foi pintor habilidoso econsumado escultor, assim como espadachim.

    O Japo do comeo do sculo XVII, que Musashi tipificou, permaneceuvivo na conscincia dos japoneses. O longo e relativamente esttico governoTokugawa resguardou em boa parte sua forma e esprito, embora de modoum tanto estratificado, at meados do sculo XIX, no mais do que h umsculo. O prprio Yoshikawa era filho de um antigo samurai que noconseguiu, como a maioria dos membros de sua classe, realizar umatransio financeiramente bem-sucedida para a nova era. Embora a maioriados samurais submergisse na obscuridade no novo pas, uma grande parcelados novos lderes surgiu dessa classe feudal, tendo seu ethos sidopopularizado atravs de um novo sistema educacional compulsrio que setransformaria em base espiritual e tica de toda a nao japonesa. Romancescomo Musashi e filmes e peas teatrais deles derivados ajudaram no

    processo.A poca de Musashi to prxima e real para o japons moderno como

    o a Guerra Civil para o norte-americano. Deste modo, a comparao com oromance E o Vento Levouno , de modo algum, forada. A era dos samuraispermanece ainda muito viva na mente dos japoneses. Contrariando oesteretipo de animal econmico de orientao coletiva do japonsmoderno,, muitos preferem ver-se como modernos Musashis, ferozmenteindividualistas, de princpios elevados, autodisciplinados e esteticamentesensveis. Ambos os quadros tm certo valor, ilustrando a complexidade daalma japonesa sob um exterior aparentemente afvel e uniforme.

    Musashi bem diferente dos romances marcadamente psicolgicos efreqentemente neurticos que compem o ncleo das obras da literatura

    japonesa moderna traduzidas para o ingls. Situa-se, no obstante, no centroda fico tradicional e do modo de pensar popular dos japoneses. Suaapresentao em episdios no mero resultado do formato folhetinescooriginal, mas tcnica favorita de narrao que data do incio da histria dasnarrativas japonesas. Sua viso romantizada do nobre espadachim umesteretipo do passado feudal, cultuado em centenas de outras histrias efilmes de samurais. Sua nfase ao cultivo do autocontrole e da fora interior

    atravs de uma autodisciplina austera estilo zen um aspecto importante dapersonalidade dos japoneses de hoje. Assim tambm seu difuso amor pelanatureza e seu sentido de proximidade com ela. Musashi no s umagrande histria de aventura. Mais do que isso, oferece uma rpida viso dahistria do Japo e uma perspectiva da imagem idealizada que o japonscontemporneo faz de si mesmo.

    Janeiro de 1981

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    NOTA DA TRADUTORA

    Falar das dificuldades de uma traduo repisar um tema velho e

    conhecido, mas a ele volto por ser especialmente difcil traduzir textos japoneses para o portugus. Parte da dificuldade representada pelaestrutura da lngua japonesa muito diferente da das neolatinas ou dasgermnicas ocidentais , parte pelas sutis variaes de significado dosnumerosos ideogramas em mltiplas combinaes, e parte ainda pelo modopeculiar de falar das diferentes classes sociais em obras como Musashi, queretratam o Japo de uma poca com rgida diferenciao de castas.

    Esse linguajar diferenciado de cada grupo social constitui a meu ver umdos mais atraentes aspectos desse tipo de literatura e por isso mesmoempenhei-me em preserv-lo na medida do possvel. Digo na medida do

    possvel por no existir em portugus nada que nem de longe se assemelhe aesses diferentes modos de falar. Melhor explicando, a sociedade japonesa dosculo XVII era dividida, a grosso modo, em trs grandes classes sociais:guerreira (constituda pelos samurais, tambm conhecidos como bushi),mercantil e camponesa, cada uma com um linguajar especfico. Dentro aindadessa especificidade e coerentes com o modelo verticalizado de suasociedade, as pessoas de um mesmo grupo social falavam de modo informalentre si, condescendente com as classes inferiores, e respeitoso com asconsideradas superiores. Para tentar reproduzir um mnimo do clima originaldesses dilogos, empreguei a segunda pessoa do plural para resumir o

    linguajar respeitoso, a segunda pessoa do singular para o condescendente ea terceira pessoa para o informal. Por esse esquema, samurais conversandoentre si tratar-se-o por voc, mas diro vs ao dirigirem a palavra aalgum que lhes superior um senhor feudal por exemplo , e tuquando a pessoa a quem se dirigirem for um campons. Esses mesmossamurais sero no entanto tratados por tu por seu suserano. Classes menoseducadas como a dos antigos camponeses usaro a terceira pessoa quandose dirigirem a pessoas de nveis considerados superiores j quedesconheciam o linguajar mais educado do vs mas tratar-se-o por tuem seu rude modo de se expressar informalmente. Nas demais situaes deinformalidade, o pronome usado foi sempre voc.

    Os nomes prprios foram mantidos na ordem original sobrenome edepois nome porque a sua transposio para a ordem inversa, maneiraocidental, torna-se impraticvel em alguns casos (como em Taira-no-Masakado, Miyamoto Musashi, Masana, etc.), e tambm por uma questo decoerncia, j que nessa ordem so conhecidos os personagens histricos(Tokugawa, Ieyasu, Toyotomi, Hideyoshi, etc.) mencionados neste romance.

    LG.

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    O GUIZO

    IE depois de tudo, cu e terra a esto, como se nada tivesse

    acontecido. A esta altura, a vida e as aes de um homem tm o peso de umafolha seca no meio da ventania... Ora, que v tudo para o inferno!, pensouTakezo.

    Estirado imvel entre os mortos, ele prprio mais parecendo umcadver, resignava-se com o destino.

    intil tentar mover-me agora...

    Na realidade, estava exausto. Takezo ainda no se dera conta, mas

    devia ter algumas balas alojadas no corpo.Desde a noite anterior, ou mais precisamente desde a noite de 14 de

    setembro do ano V do perodo Keicho (1600) at essa madrugada, uma chuvatorrencial castigara a regio de Sekigahara, e agora, j passado o meio-dia,as densas e baixas camadas de nuvens ainda no se haviam dissipado. Damassa escura que vagava pela encosta do monte Ibuki e pela serra de Mine,a chuva caa intermitente e branca, cobrindo uma rea de quase quinzequilmetros, lavando as marcas da violenta batalha.

    E essa chuva desabava ruidosa sobre o rosto de Takezo e os corpos aoredor. Como uma carpa esfaimada, Takezo abria a boca aparando com alngua a gua que lhe escorria pelas abas das narinas.

    gua para um moribundo... O pensamento veio-lhe menteentorpecida.

    A coalizo ocidental, da qual fizera parte o seu exrcito, fora derrotada.A fragorosa queda tivera incio no momento em que Kobayakawa Hideakitrara os seus at ento aliados e, em ousada manobra, juntara seu exrcitoaos orientais, retornando em seguida sobre os prprios passos e avanandocontra os postos de seus antigos aliados, Ishida Mitsunari, Ukita, Shimazu eKonishi.

    Em apenas meio dia definiu-se o detentor do poder no pas. Aquelabatalha havia decidido o destino no s de milhares de combatentes, cujosparadeiros eram ignorados, como tambm o das futuras geraes, de filhos enetos daqueles homens.

    E tambm o meu..., pensou Takezo. De sbito, vieram-lhe mente asimagens da sua nica irm e dos ancios que havia deixado em sua terra. Porque no sentia nada, nem mesmo tristeza? Morrer seria isso?, perguntou-se.Naquele instante, a dez passos de distncia, uma forma em tudo semelhante

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    a um cadver ergueu repentinamente a cabea entre os corpos de soldadosaliados e gritou:

    Take-yaaan!

    O grito, chamando-o pelo diminutivo familiar, pareceu despertar Takezo

    do estupor. Seus olhos procuraram ao redor. Era o companheiro Matahachi.Em busca de fama e glria, empunhando apenas uma lana, haviam

    partido juntos da aldeia natal e combatido lado a lado nesse campo,integrando as tropas de um mesmo suserano. Tinham ambos dezessete anos.

    Mata-yan? voc? respondeu. Em meio chuva, tornou a voz:

    Voc est bem, Take-yan?

    Juntando toda a fora que lhe restava, Takezo gritou:

    claro! No vou deixar ningum me matar! Nada de morrer toa,

    est me ouvindo, Mata-yan? Nunca, diabos!

    Momentos depois, Matahachi surgiu ao lado do amigo arrastando-secom dificuldade e agarrou sua mo, dizendo bruscamente:

    Vamos fugir!

    Em resposta, Takezo atraiu para si a mo do companheiro, advertindo-o:

    No se mexa, finja-se de morto! O perigo ainda no passou!

    Mal acabara de falar, um ribombo surdo comeou a sacudir o solo emque repousavam as cabeas. Fileiras de reluzentes cavalos negros varriam ocentro do campo de Sekigahara e precipitavam-se em direo aos dois

    jovens.

    Ao vislumbrar a bandeira, Matahachi apavorou-se:

    So soldados de Fukushima!

    Notando a agitao do amigo, Takezo agarrou-o pelo tornozelo,arrastando-o de volta ao cho:

    Quer morrer, idiota?

    No instante seguinte, patas enlameadas de numerosos cavalos levando em seus dorsos guerreiros inimigos em armaduras, brandindo lanase espadas transpunham suas cabeas com passos cadenciados e seafastavam a galope.

    Deitado de bruos, Matahachi permaneceu imvel; Takezo pormfixava, olhos arregalados, os ventres das dezenas de animais quedestemidamente passavam sobre sua cabea.

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    IIAo que tudo indicava, a chuva torrencial dos dois ltimos dias marcara

    o fim das tempestades de outono. Nessa noite, 17 de setembro, no havianuvens no cu e a lua fulgurava, parecendo fixar irada os seres na terra,inspirando at mesmo certo temor.

    Voc consegue andar?

    Passando o brao de Matahachi pelos ombros, Takezo caminhava,amparando-o. Preocupava-o a respirao ofegante do companheiro soando

    junto ao seu ouvido.

    Voc est bem? Agente um pouco mais! repetia Takezo, detempos em tempos.

    Estou bem respondia Matahachi, obstinado. Seu rosto, contudo,estava mais plido do que o luar.

    Duas noites vagando pelos vales pantanosos do monte Ibuki,alimentando-se de nozes e vegetais, haviam provocado elicas em Takezo egrave diarria em Matahachi.

    Era perigoso encetar a caminhada de retorno terra natal em noite deluar, clara como aquela: mesmo vitoriosos, os partidrios de Tokugawaobviamente no se descuidariam e estariam naquele momento caa dosderrotados da batalha de Sekigahara, os generais fugitivos Ishida, Ukita e

    Konishi, entre outros. Takezo, porm, optara pelo retorno, de um lado porqueMatahachi atormentado por excessivo mal-estar dizia j nem se importarem ser capturado, e de outro porque considerava total incompetncia de suaparte esperar sentado por seus captores. E assim caminhava ele agoraamparando o amigo, rumo aonde parecia situar-se a pousada de Tarui.

    Matahachi arrastava-se a custo, usando uma lana como cajado.

    Desculpe, sou um estorvo, Take-yan. Apoiado ao ombro doamigo, repetia as mesmas palavras inmeras vezes com a voz embargada.

    Pare com isso repreendeu-o Takezo. Depois de uma curta pausa,

    porm, acrescentou: Quem lhe deve desculpas sou eu. Mas veja: quandoouvi dizer que os suseranos Ukita e Ishida Mitsunari se preparavam paraentrar em guerra, pensei: Que bela oportunidade! Pois sei que o senhorShinmen Igamori, a quem meu pai serviu antigamente, vassalo da casaUkita. Calculei portanto que embora eu seja filho de um simples goushi3seria admitido em seu quadro de samurais em considerao a esse antigo

    3Goushi: a classe dos goushi correspondia aproximadamente dos fidalgos rurais e situava-se na escala socialentre a dos bushi, ou samurais, e a dos camponeses. Um goushi possua alguns dos privilgios de um samurai,mas tambm lidava com a agricultura

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    relacionamento e participaria desta guerra, bastando me apresentar a ele comuma lana na mo. Sonhava vencer um general em luta e exibir o grande feito gente da nossa terra, que me considera um imprestvel; queria tambm queMunisai, meu falecido pai, se orgulhasse de mim l em seu tmulo... Eramesses os meus sonhos.

    isso mesmo... os meus tambm apoiou-o Matahachi.

    Foi por isso que procurei voc, meu amigo de infncia, e convidei-o apartir em minha companhia. No entanto, sua me me repreendeu duramentepor achar a idia absurda; como se no bastasse, sua noiva Otsu, do temploShippoji, e minha irm, juntas e banhadas em lgrimas, vieram tentar medissuadir. A guerra no para voc. Fique em sua prpria terra e aja comoum verdadeiro filho de goushi!, disseram-me. At dou-lhes razo. Afinal,somos ambos filhos nicos, insubstituveis.

    verdade.

    Ainda assim, achei que no valia a pena dar ouvidos a conselhos demulheres e idosos, e segui em frente, lanando-me aventura. Mas aochegar aos quartis da casa Shinmen descobri que o senhor ShinmenIgamori, apesar de ter sido amo de meu pai, no me acolheria com facilidadeem seu quadro de samurais. Aboletei-me na frente do quartel e implorei porum posto, nem que fosse na infantaria, com a insistncia de um vendedorambulante, e por fim cheguei s linhas de frente. Mas s consegui que medesignassem para trabalhos de sentinela ou de picador: em vez da lana,empunhei uma foice com muito maior freqncia. No tive a oportunidade dematar sequer um simples samurai, que dizer de um general! E, no final, veja a

    situao em que ficamos. Sua me e Otsu nunca me perdoaro se eu deix-lomorrer nestas condies.

    Mas ningum vai culp-lo por isso, Take-yan. Perdemos a batalha,era essa a nossa sina, e tudo se transformou numa confuso dos diabos. Sealgum culpado existe, Kobayakawa Hideaki, o traidor, e eu o odeio!

    IIIPassados instantes, viram-se os dois em p, beira de uma rea

    descampada. At onde o olhar abrangia, avistava-se apenas uma vastaextenso de mata que parecia ter sido devastada por um furaco. No havialuzes nem casas, no era essa a regio pretendida.

    Onde estamos? Examinaram o lugar mais uma vez.

    Conversamos demais e parece que erramos o caminho murmurouTakezo.

    Aquele no o rio Kuise? perguntou Matahachi, ainda amparado

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    ao ombro do amigo.

    Mas ento, foi por aqui que se travou a grande batalha deanteontem, quando as tropas do nosso general Ukita enfrentaram as dogeneral oriental Fukushima, bem como as do traidor Kobayakawa e as de Itoe Honnosei!

    Ser? Nesse caso, devo ter corrido como um louco por toda estarea... Estranho, no consigo me lembrar de nada.

    Takezo apontou com o dedo:

    Olhe ao redor.

    Nas moitas beira do descampado ou nas guas leitosas do rio, ondequer que o olhar casse, jaziam corpos de soldados aliados e inimigos, aindainsepultos. Um soldado mergulhara de cabea numa moita, outro tombara decostas expondo o dorso s guas do rio, outro ainda rolara preso a seu

    cavalo. luz do luar, mesmo sem os vestgios de sangue que a chuvaininterrupta de dois dias havia lavado, exibiam a pele lvida e alterada,testemunhas eloqentes do violento combate travado nesse dia.

    Escute os grilos... parece at que esto chorando.

    Sobre o ombro de Takezo, Matahachi soltou um suspiro profundo,doentio. No eram s os grilos que choravam tambm dos olhos deMatahachi escorriam lgrimas, deixando em seu rosto dois sulcos brilhantes.

    Se eu morrer, cuidar da minha Otsu pelo resto da sua vida, Take-yan?

    Que bobagem essa, homem? De onde tirou essa idia, to derepente?

    Talvez eu morra.

    No comece a se lamuriar. nimo, no se deixe abater.

    Acho que os parentes cuidaro de minha me, mas Otsu sozinhano mundo. Ela uma pobre enjeitada, abandonada muito nova por umsamurai errante que passou uma noite no templo Shippoji. Falo srio, Take-yan: se eu morrer, cuide dela por mim.

    Por que algum morreria de uma simples diarria? nimo, homem! encorajou-o Takezo. Agente mais um pouco, resista. Quandoencontrarmos uma casa de lavradores, peo remdios e vejo se consigo umlugar confortvel para voc se deitar.

    Na estrada que ligava Sekigahara a Fuwa existiam pousadas e aldeias.Takezo avanava com cautela.

    Pouco alm, depararam outra vez com um grande nmero decadveres. Ao que parecia, uma unidade inteira tinha sido aniquilada nesse

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    local. Muito embora a viso de um cadver j no despertasse sentimentos derevolta ou pena, algo espantou Takezo e fez com que tambm Matahachiestacasse surpreso, abafando um grito.

    Por entre os cadveres amontoados, um vulto se ocultara com aagilidade de uma lebre. O luar deixava os arredores claros como dia. Fixando-se o olhar, percebia-se o dorso de um vulto acocorado.

    Um bandoleiro? foi o pensamento que lhes ocorreu. Massurpreendentemente tratava-se de uma garota aparentando treze ou catorzeanos, usando quimono de mangas curtas e arredondadas, com a cinturapresa por

    uma faixa de tecido obi estreita e rota, porm do melhor brocado.A menina, oculta entre os cadveres, por sua vez fixava nos dois vultos,desconfiada, olhos vivos semelhantes aos de um felino.

    IVA guerra terminara, realmente, mas soldados caadores de prmios

    estariam vasculhando a regio procura de sobreviventes, e o campo dorecente combate parecia ainda guardar o lgubre lamento dos mortosestirados por toda a parte. Que pretendia portanto a menina, sobretudo noite, oculta no meio dos cadveres, sozinha ao luar?

    Takezo e Matahachi continham a respirao, observando por instantes,com desconfiana, os modos da menina. Aps curta pausa, Takezo chamou

    alto: Ei, voc!

    O sbito movimento dos olhos grandes mostrou que a menina estavaprestes a fugir.

    No fuja! Ei, s quero uma informao! acrescentou depressa,porm tarde demais. A garota era espantosamente rpida e j tinha disparadona direo oposta deles, sem ao menos olhar para trs. Ao movimento dasombra que se afastava parecendo danar ao luar, o som de um guizo, talvezatado ao obiou manga do quimono, soou lmpido e zombeteiro, deixando no

    ar uma estranha reverberao. Que era aquilo?

    Takezo perscrutava imvel a fina nvoa noturna. A seu lado, Matahachiestremeceu.

    Seria um espectro?

    Acho que no discordou Takezo, rindo. Ela desapareceu entreaquelas duas colinas. Deve haver uma pousada por perto. Era isso o que eu

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    pretendia perguntar, e no assust-la...

    Ao alcanarem o ponto entre as colinas, avistaram realmente as luzesde uma casa para os lados em que os cmoros na base do monte Fuwa seestendem para o sul. Desse ponto, caminharam ainda cerca de dezquilmetros e enfim se aproximaram. A casa era uma construo solitriacercada por um muro de barro e tinha um portal velho guarnecendo a entrada,detalhes que a distinguiam de uma casa de lavradores. Passando pelo portalde pilares podres e de onde as portas havia muito tinham desaparecido ,viram surgir em meio ao mato as portas cerradas da construo principal.Takezo bateu levemente:

    Boa noite, sei que tarde e sinto incomodar, mas peo ajuda a umdoente. No pretendo trazer-lhes aborrecimentos.

    Por momentos, no houve resposta. A menina avistada anteriormenteparecia confabular com algum no interior da casa. Instantes depois ecoaram

    rudos por trs da porta. Esperavam que esta se abrisse mas, em vez disso,uma voz perguntou vivamente:

    Vocs so sobreviventes da batalha de Sekigahara, no so? Era agarota.

    Somos. Pertencemos s foras do general Ukita e fazemos parte dainfantaria do exrcito de Shinmen Igamori.

    Nesse caso, no posso ajudar. Dar abrigo a sobreviventes crime.Voc diz que no pretende trazer-nos aborrecimentos, mas vai acabartrazendo.

    Se assim, pacincia!

    Procurem um outro lugar.

    Vou-me embora, ento, mas meu companheiro est sofrendo comuma diarria muito forte. Voc no lhe daria um remdio, por favor?

    Se for s isso...

    Pareceu considerar a questo por instantes, mas logo passosacompanhados pelo som de um guizo afastaram-se para os fundos damoradia: a menina fora consultar algum.

    No instante seguinte, um rosto surgiu numa das janelas. Uma mulher,com certeza a proprietria da casa e que teria estado espreita havia jalgum tempo, disse:

    Abra a porta, Akemi. So fugitivos, sem dvida, mas as autoridadesno esto interessadas em investigar soldados rasos. No h com que sepreocupar, d abrigo a eles.

    A rotina dos dois refugiados, ocultos no casebre que servia como

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    depsito de lenha, girava em torno de cuidados com a sade: Matahachipermanecia em repouso e curava a diarria ingerindo periodicamente dosesde carvo em p e uma coco de arroz e alho-por. Takezo desinfetava comum saque de baixa qualidade o ferimento provocado por uma bala em suacoxa.

    Fico imaginando como ganham a vida as pessoas desta casa disse Matahachi.

    No importa, a ajuda que nos do veio em boa horareplicouTakezo.

    A dona da casa jovem ainda... No sei como tem coragem de viversozinha com uma menina num lugar to deserto insistiu Matahachi.

    A menina no lembra sua Otsu, do templo Shippoji?

    Lembra sim, e uma belezinha... Mas no consigo compreender o

    que ela fazia perambulando no meio da noite por um campo de batalha cheiode cadveres: o lugar era repugnante at para ns!

    Escute... o guizo! Takezo apurou o ouvido e disse: A meninaAkemi se aproxima.

    O rudo de passos cessou porta do casebre. Batidas soaram, levescomo bicadas de um pica-pau:

    Matahachi-san, Takezo-san chamou uma voz.

    Pronto! respondeu Takezo no mesmo instante.

    Sou eu, Akemi, trouxe-lhes um pouco de papa de arroz. Ora, muito obrigado.

    Levantando-se da esteira, Takezo destrancou a porta. Akemi trazia umabandeja com frutas e remdios.

    Como vo vocs? perguntou Akemi.

    Como v, estamos quase curados, graas sua ajuda respondeuTakezo cerimoniosamente.

    Mame recomenda que no conversem em voz alta nem se mostremaqui fora, mesmo depois de sararem advertiu Akemi.

    Obrigado pelo conselho.

    Os senhores Ishida Mitsunari e Ukita Hideie, generais fugitivos docampo de Sekigahara, ainda no foram presos. Dizem, por isso, que asbuscas andam intensas nesta regio acrescentou Akemi.

    Entendo.

    Embora vocs sejam simples soldados rasos, seremos punidas se

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    descobrirem que os escondemos aqui.

    Compreendi.

    Boa noite, ento, e at amanh.

    Com um sorriso, Akemi pretendia retirar-se quando Matahachi a deteve:

    Akemi-san, fique um pouco mais, vamos conversar.

    No posso respondeu Akemi.

    Mas por qu?

    Minha me se zanga.

    S quero fazer-lhe algumas perguntas. Por exemplo, quantos anosvoc tem?

    Quinze.

    Quinze? Voc mida para a idade, no? Que tem a ver com isso?

    Onde est seu pai?

    Morreu.

    Do que vivem vocs?

    Quer saber a nossa profisso?

    Isso mesmo.

    Somos vendedoras de moxa.

    Ah, verdade disse Matahachi a moxa produzida nesta regio famosa.

    Na primavera, colhemos ervas nas montanhas e as secamos duranteo vero; no inverno, ns as transformamos em moxa, que vendemos nashospedarias de Tarui.

    Est certo! um trabalho conveniente para mulheres.

    s isso que queria saber?

    Apenas mais uma pergunta, Akemi-san.

    Diga.

    Naquela noite a noite em que batemos sua porta pela primeiravez o que fazia voc no meio daquele campo cheio de soldados mortos?

    No da sua conta!

    Akemi bateu a porta que se fechou com um estrondo, e afastou-secorrendo em direo construo principal, o guizo retinindo ao movimentodas mangas.

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    O COGUMELO VENENOSO

    ICom quase um metro e oitenta de altura, Takezo era excepcionalmente

    alto e assemelhava-se a um veloz potro de raa. Tinha braos e pernaslongos, lbios vermelhos e as espessas sobrancelhas, de traado mais longodo que o normal, ultrapassavam o canto externo dos olhos conferindo-lhesdeterminao.

    Boa safra!

    Em sua infncia assim o chamavam, zombando, os aldees da vilaMiyamoto, em Sakushu. Devido ao excepcional comprimento das pernas ebraos, bem como s generosas propores de seus olhos, nariz e boca, opovo da aldeia sugeria que Takezo era fruto de uma boa safra.

    Matahachi tambm pertencia ao grupo dos boas-safras. Era porm umpouco mais baixo e de compleio mais robusta. Seu trax era largo e,quando falava, os olhos protuberantes moviam-se inquietos no rostoarredondado.

    Ele andara espionando, com certeza, pois trazia novidades:

    Ei, Takezo, sabe que a viva costuma se pintar e se embonecartodas as noites? segredou.

    Eram ambos jovens. Quando Takezo, com seu vigoroso fsico em plenodesenvolvimento, se recuperou dos ferimentos bala, Matahachi j nosuportava a vida de grilos reclusos que levavam no mido e escuro depsitode lenha.

    Assim, o forasteiro que passou a freqentar a ala principal da residncia e que, sentado beira do fogo, entoava cantigas populares, ria e fazia rircom gosto a viva Okoo e a pequena Akemi s podia ser Matahachi, cujovulto j no se via durante o dia no depsito de lenha. Aos poucos, Matahachipassou tambm a no dormir no casebre noite.

    Vez ou outra aparecia porta do depsito de lenha, hlito recendendo asaque:

    Saia da, Takezo dizia, tentando atra-lo para fora do casebre. Aprincpio, Takezo se recusava, repreendendo-o:

    Idiota, somos fugitivos, lembra-se?ou ainda: No gosto debeber. Com o passar do tempo, porm, seus escrpulos foram sendovencidos pelo tdio.

    Esta rea segura? perguntou. Sara do casebre pela primeira

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    vez em 20 dias e, espreguiando-se com gosto, bocejou fixando o olhar nocu azul.

    No devemos abusar da hospitalidade alheia, Matahachi. hora devoltar para a nossa terra disse.

    Concordo. Mas a viva e a filha afirmam que est havendo rigorosainvestigao nas barreiras de inspeo4 das estradas que levam a Ise e capital. Acham que mais seguro continuarmos escondidos, ao menos at apoca das primeiras neves.

    No me parece que esteja tentando se esconder quando ficasentado beira do fogo bebericando saque, Matahachi.

    Ora, voc se preocupa demais. Fique sabendo que dias atrs,quando surgiu por aqui um bando de samurais a mando de Tokugawa alismuito irritados por ainda no terem conseguido prender o general Ukita, ltimodos generais foragidos quem os recebeu e os rechaou fui eu. muitomais seguro agir assim do que viver escondido no depsito, tremendo a cadavez que se ouvem passos.

    , pode ser que voc tenha razo.

    Os argumentos no o convenceram, mas Takezo acabou por concordare, a partir desse dia, transferiu-se tambm para a construo principal.

    Longe de se aborrecer, a viva ficou contente porque os jovens traziammais animao casa, e aceitou com prazer o novo arranjo.

    Um dos dois devia se casar com a minha Akemi e vir morar para

    sempre conosco brincou, divertindo-se com o constrangimento queprovocava nos jovens ingnuos.

    IIA encosta da montanha, nos fundos da casa, era recoberta por um

    denso pinheiral. Levando um cesto nas mos, Akemi ia vasculhando as razesdos pinheiros.

    Achei, achei mais um, venha ver! gritava com ingnuo entusiasmo

    a cada vez que, atrada pelo aroma caracterstico, descobria mais umcogumelo de pinheiro.

    A poucos passos de distncia, Takezo tambm se acocorava sob acopa de uma rvore.

    Tambm achei!

    4 Barreiras de inspeo: postos montados nas estradas onde, naqueles tempos, agentes do governo centralrevistavam viajantes a caminho da capital.

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    O sol de outono, filtrado pelas agulhas dos pinheiros, tremeluzia emminsculas ondas de luz sobre os dois vultos.

    Vamos ver quem colheu mais? desafiou Akemi.

    Eu, claro!

    Mergulhando as mos no cesto de Takezo, Akemi eliminouimpiedosamente os cogumelos de espcies diferentes.

    No vale! Este no , este tambm no, este outro venenoso. Estvendo? Colhi muito mais que voc! gabou-se.

    Vai comear a escurecer. Que acha de irmos embora? perguntouTakezo.

    S porque perdeu a aposta troou Akemi. Seus ps, geis comoos de um faiso, j a levavam frente descendo a trilha. Repentinamenteimobilizou-se, empalidecendo.

    Pela encosta da montanha aproximava-se um homem, cruzando obosque em largas passadas. Dele emanavam impressionante selvageria eagressividade, visveis nas sobrancelhas espessas e ferozes, nos lbiosgrossos e arreganhados, na enorme espada rstica, armadura em cota demalha e indumentria de pele com que cobria o corpo. Os olhosesbugalhados moveram-se em direo jovem.

    Akeb! chamou, usando rude diminutivo, e se aproximou. Sorria,exibindo dentes amarelados. O rosto de Akemi, porm, no era mais que umaplida mscara de pavor. Sua me est em casa? indagou o homem.

    Est respondeu Akemi, trmula. Quando chegar l, d um recado a ela. Diga que eu soube por a que

    ela anda ganhando uns trocados a mais, escondendo-os de mim. Quequalquer dia desses apareo para cobrar a minha parte.

    Akemi permanecia muda.

    Se pensam que no fico sabendo, enganam-se. O sujeito quecomprou a mercadoria de vocs me informou em seguida. E voc tambm,fedelha, no andou perambulando todas as noites pelos campos deSekigahara? trovejou.

    No, no andei.

    Diga a sua me: nada de brincadeiras, ou as expulso daqui,compreendeu? Cravou um olhar feroz no rosto da menina e afastou-se aseguir na direo do pntano, parecendo gingar ao peso do prprio corpo.

    Quem esse? perguntou Takezo, desviando o olhar do vulto quese afastava e voltando-se para Akemi. Seu rosto tinha uma expressosolidria.

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    Tsujikaze, da aldeia de Fuwa respondeu Akemi num sopro de voz,a boca ainda trmula.

    um bandoleiro, estou certo?

    Sim.

    Por que o homem estava to irritado? Akemi no respondeu. Diga, no conto a ningum. Ou algo que nem a mim pode contar?

    Aps breve e constrangido momento de silncio, Akemi jogou-serepentinamente contra o peito de Takezo.

    No conte mesmo a ningum! pediu.

    Confie em mim.

    Naquela noite... voc ainda no adivinhou o que eu fazia?

    No.

    Eu estava saqueando.

    Como assim?

    Quando a guerra acaba, saio a campo e roubo dos samurais mortosqualquer coisa que tenha valor espadas, punhais, saquinhos de sach....Morro de medo, mas precisamos viver e, se eu no for, minha me se zanga.

    III

    O sol ainda ia alto. Convidando Akemi, Takezo sentou-se no meio domato. A solitria casa perdida nos pntanos de Ibuki era visvel entre ospinheiros no declive logo adiante.

    Ento essa histria de viver da venda de moxa feita com ervascolhidas nestes pntanos era mentira?

    Minha me uma pessoa de hbitos caros, sabe, e vender moxano nos rende o suficiente para viver.

    Seu pai era mercador?

    Chefe de um grupo de bandoleiros respondeu Akemi, o olhartraindo at mesmo uma ponta de orgulho mas foi assassinado porTsujikaze Tenma, o homem que h pouco passou por aqui. O povo, aomenos, diz que foi ele.

    Qu, assassinado?

    Akemi assentiu em silncio. Dos olhos brotaram lgrimas queescorreram sem que a prpria menina se desse conta. Takezo no gostavamuito de Akemi porque, apesar de mida e no aparentar os quinze anos,

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    expressava-se como um adulto. Alm disso, seu comportamento vez ou outradeixava entrever uma surpreendente astcia. No entanto, ao notar as lgrimasque brotavam entre os espessos clios, Takezo sentiu sua fragilidade e, aomesmo tempo, vontade de proteg-la, envolvendo-a com fora em seusbraos.

    Akemi no fora criada segundo padres normais de educao.Acreditava cegamente no existir no mundo profisso melhor que a do pai,um bandoleiro. Okoo sem dvida a criara na crena de que tudo se justificavaem nome da sobrevivncia at mesmo as cruis aes de um friobandoleiro, muito mais desumanas que as de um ladro vulgar.

    Na verdade, no decorrer do longo perodo de guerras, o bandoleirismotransformara-se em nica opo de trabalho para os rounin, samuraiserrantes sem emprego ou suserano, indolentes e destemidos por natureza.Era uma realidade aceita pelo povo. Os senhores feudais, por seu lado, deles

    se aproveitavam durante as guerras, contratando-os para incendiar camposinimigos, espalhar boatos desorientadores ou roubar os cavalos dosadversrios. Caso no fossem procurados para esses servios, restavamainda aos bandoleiros diversas outras opes: saquear cadveres, assaltarsobreviventes, reclamar o prmio pela cabea de um guerreiro famoso cujocadver encontrassem abandonado num campo de batalha, cada guerraproporcionando-lhes meios para sobreviver ociosamente por quase um ano.

    At mesmo a pacata populao de lavradores e lenhadores, emboraimpedida de trabalhar a terra quando a guerra eclodia nas imediaes deseus povoados, conhecia o gosto do lucro fcil proveniente da explorao das

    sobras de guerra.Em conseqncia, os bandoleiros profissionais eram intransigentes na

    defesa de seus domnios. Imperava em seu meio uma lei inflexvelestabelecendo sanes aos que se aventurassem a invadir seus territrios.Tais sanes assumiam, invariavelmente, a forma de cruis execues.

    E agora, o que fao? Akemi estremeceu, horrorizada com essalembrana. Tenho certeza de que asseclas de Tsujikaze nos procuraro. Ese vierem...

    Se vierem, recebo-os com meus cumprimentos, no se preocupe

    respondeu Takezo.Enquanto desciam a montanha, o crepsculo invadia mansamente o

    pntano. O fogo para aquecer a gua do banho j fora aceso e sua fumaa seespalhava pelo alpendre da casa, rastejando sobre as espigas rosadas daseullias. A viva Okoo, como sempre arrumada para a noite, esperava em p

    junto ao porto dos fundos. Ao avistar os vultos de Akemi e Takezo quechegavam lado a lado, repreendeu a menina com inusitada dureza na voz eno olhar:

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    Por onde andou at to tarde, Akemi?

    Absorto em pensamentos, Takezo no percebeu, mas a garota eraparticularmente sensvel aos humores da me. Sobressaltou-se e, ruborizada,afastou-se correndo.

    IVA viva Okoo estava furiosa:

    Por que no me contou de uma vez? ralhava com Akemi no diaseguinte, ao tomar conhecimento do encontro com Tsujikaze Tenma. A vivaabriu armrios, gavetas e o depsito e, juntando artigos neles armazenados,comandou:

    Ajudem-me aqui. Quero esconder tudo isto no forro da casa.

    Pode deixar.

    Matahachi subiu ao forro e Takezo, em p sobre um banco entre Okooe Matahachi, intermediou o transporte dos objetos.

    Takezo ter-se-ia espantado, no o tivesse Akemi posto a par doassunto no dia anterior. A quantidade de objetos amealhados no decorrer deum perodo talvez longo era grande. Havia desde espadas curtas a pontas delanas, braos de armaduras, abas de elmo, pequenos relicrios, teros,mastros de bandeira e, entre os objetos mais volumosos, at uma selaricamente adornada de madreprolas, ouro e prata.

    Acabou? perguntou Matahachi, espreitando do forro.

    S mais este.

    Okoo tomou a pea que restava, uma espada moldada na madeira rijae escura de carvalho, medindo aproximadamente um metro e vinte. Takezotomou-a nas mos. Apreciou a envergadura, experimentou o peso e a rigidezda arma, e no se sentiu capaz de solt-la.

    D-me esta espada, oba-san pediu.

    Quer mesmo? Muito!

    Okoo no disse claramente que dava, mas assentiu com um sorriso quelhe conferiu covinhas ao rosto.

    Matahachi desceu do forro parecendo bastante enciumado.

    Olhem o coitadinho, ficou amuado! zombou Okoo, presenteando-ocom um colete de couro enfeitado com botes de nix. Matahachi, no entanto,

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    no ficou muito contente.

    Todas as tardes, desde o tempo em que o marido ainda vivia, Okootinha por hbito arrumar-se para a noite, tomando banho e pintandocuidadosamente o rosto. Apreciava tomar saque ao jantar e exigia que Akemia acompanhasse. Gostava de se exibir, sendo do tipo determinado aconservar a juventude a todo o custo.

    Venham, venham todos!

    Sentou-se beira do fogo, serviu saque a Matahachi e obrigou Takezoa empunhar tambm uma taa, dizendo:

    No admito que um homem no saiba beber. Eu, Okoo, o ensinarei.E agarrando-o pelo pulso, forava-o a beber contra a vontade. Matahachi

    acompanhava seus movimentos, vez ou outra fixando em Okoo umolhar inquieto e sombrio. A viva, ciente disso, apoiava uma mo atrevida

    sobre a coxa de Takezo, entoando em voz fina e melodiosa arietas popularesem voga no momento.

    Esta cano revela meus sentimentos. Voc compreende, Takezo-san? indagava.

    No lhe importava que Akemi desviasse o rosto, constrangida; falava,ciente tambm da timidez de um dos jovens e do cime do outro.

    Takezo, acho que j est na hora de irmos embora disseMatahachi em determinado momento, demonstrando crescentedescontentamento.

    Para onde, Mata-san? perguntou Okoo. De volta aldeia Miyamoto, em Sakushu. Se quer saber, l na minha

    terra tenho me e at uma noiva esperando por mim respondeuMatachachi, rspido.

    Ora, ora, desculpe-me, no devia t-los acolhido. Se tem algumesperando por voc, parta sozinho, Mata-san, no quero ret-lo respondeua viva, maldosa.

    VAo correr os dedos pela espada, comprimindo-a fortemente nas mos,

    Takezo era capaz de sentir, com fascnio e prazer indizveis, a curvatura daarma em harmoniosa simetria com o seu comprimento. Nunca largava aespada de carvalho que tinha ganhado de Okoo.

    noite, dormia abraado arma. Ao sentir a superfcie fria contra orosto, revivia em seu sangue com toda a violncia o esprito implantado pelopai, Munisai, durante os vigorosos treinamentos no rigor do inverno.

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    Munisai fora a personificao da severidade, frio como as geadas deoutono. Em sua infncia, Takezo vivera ansiando pela presena da me, daqual fora afastado ainda muito novo. Pelo pai, ao contrrio, no nutriraafeio: ele havia sido apenas um indivduo temvel, em cuja presena sentiradesconforto. Fugira para perto da me, em Banshu, aos nove anos de idade,

    movido apenas pelo desejo de ouvir sua voz terna dizendo: Como cresceu,querido!

    Mas Munisai havia se separado dela por motivos desconhecidos. A mecasara-se posteriormente com um samurai de Sayogo, em Banshu, e nessaocasio j tinha dois filhos do novo casamento.

    V embora, volte para a casa de seu pai, meu filho! Ainda hoje,Takezo conseguia evocar nitidamente a imagem da me que assim lhe falavaem prantos, abraando-o fortemente, ambos escondidos num bosque junto aum templo deserto.

    Pouco depois, fora alcanado pelos mandatrios do pai, atado scostas de um cavalo em plo e reconduzido aldeia Miyamoto em Mimasaka.Atrevido, atrevido!, vociferara Munisai, vergastando-o repetidamente.Tambm este episdio ficara marcado indelevelmente no esprito infantil.

    No a procure nunca mais; caso contrrio, no respondo por mim ameaara o pai.

    Decorrido certo tempo, Takezo tomou conhecimento da doena eposterior morte da me. De criana introvertida e sombria, repentinamenteTakezo tornou-se violento, incontrolvel. At mesmo Munisai por fim calou-se,

    pois se erguia um basto com a inteno de castig-lo, Takezo o enfrentavaempunhando um bordo. Chefiava o bando de desordeiros da localidade,sendo Matahachi, da mesma aldeia, o nico capaz de confront-lo.

    Aos treze anos j era quase to alto quanto um adulto. Nessa poca,surgiu numa vila prxima, procura de oponentes para um duelo, um samuraiperegrino5 de nome Arima Kihei, portando uma placa que o anunciava comopolidor de metais. Na ocasio, Takezo abateu-o num duelo realizado nointerior de uma arena. Os aldees exaltaram ento sua valentia, dizendo:

    corajoso o boa-safra Take-yan!

    Contudo, ao notar no decorrer dos anos que sua violncia no conhecialimites, os aldees passaram a tem-lo e a evit-lo:

    A vem Takezo, no o provoquem diziam. Desse modo, o meninopassou a sentir sobre si apenas a indiferena do povo. Tambm o pai embreve partiu deste mundo, mantendo-se severo e frio at o final de seus dias.Em conseqncia, a brutalidade do gnio de Takezo s aumentou.

    5 Samurai peregrino: aquele que percorria terras distantes buscando continuamente aperfeioar suas habilidades;para sobreviver, muitos se dedicavam esporadicamente a outros ofcios

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    No fosse a presena da nica irm, Ogin, j teria sido expulso daaldeia, porque com certeza teria sido levado a praticar algum ato de carterultrajante, inadmissvel. Aos rogos quase sempre em lgrimas dessa irm,pelo menos, invariavelmente obedecia com docilidade.

    Essa partida para a guerra juntamente com Matahachi mostrava o inciode uma revoluo em sua personalidade: em algum canto comeava a ganharcorpo a vontade de se humanizar. No momento, porm, havia perdido o rumooutra vez. A realidade era sombria.

    No obstante, havia um lado descontrado na personalidade dessejovem, descontrao que somente um perodo brutal como o Sengoku6, comsuas incessantes guerras, seria capaz de gerar. Seu rosto adormecido notraa a mnima preocupao com o dia seguinte. Ressonava tranqilo,sonhando talvez com a gente de sua aldeia, ainda abraado espada.

    Takezo-san...

    Evitando a fraca luminosidade da pequena lamparina, Okoo sentou-se sua cabeceira.

    Como dorme!

    Seu dedo tocou levemente os lbios de Takezo.

    VICom um sopro, Okoo apagou a lamparina e deitou-se silenciosamente,

    rente a Takezo, aproximando o corpo com um movimento ondulante, felino. Orosto branco da viva e as roupas de dormir, vistosas demais para umamulher da sua idade, diluram-se na escurido. Apenas o orvalho caa mansono peitoril da janela.

    No possvel, ainda no percebeu! murmurou a viva.

    Dois movimentos ocorreram ento, simultaneamente: de Okoo,tentando remover a espada das mos de Takezo, e deste, levantando-se deum salto:

    Ladro! berrou Takezo.

    Derrubada sobre a lamparina, Okoo caiu de bruos, bateu o ombro egritou de dor, pois Takezo torcia-lhe o brao.

    Oba-san? exclamou Takezo, soltando o brao. Pensei quefosse um ladro!

    6 Sengoku: na histria do Japo, perodo de aproximadamente um sculo compreendido entre 1467 e 1590, pocaem que o pas perdeu sua unidade poltica, convulsionado por incessantes guerras internas provocadas porrivalidades entre bares feudais em luta pelo poder

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    Ai, como di! Brutamontes! reclamou a viva.

    Desculpe-me, que eu no sabia...

    Ora, que isso, no se desculpe, Takezo-san, no preciso.

    Que... Que isso?

    Silncio, seu inconveniente! No fale to alto! Voc j percebeu ocarinho com que cuido de voc, no mesmo?

    Sim, e a senhora tem minha eterna gratido por tudo que tem feitopor mim.

    No falo de sentimentos formais como gratido, dever. Falo deemoes mais fortes, profundas e sofridas...

    Espere, espere um pouco. J vou acender a luz.

    Maldoso!

    Ei..., oba-san!

    Takezo sentia as pernas, os braos, o corpo todo tremer. Nunca,mesmo diante do pior inimigo, havia sentido tanto medo. Seu corao nuncahavia palpitado tanto, nem mesmo em Sekigahara, quando se vira sobincontveis patas de cavalos. Encolheu-se num canto do quarto e implorou:

    V-se embora, por favor, volte para o seu quarto. Se no for, gritopor Matahachi.

    Okoo no se mexeu. Parecia fixar Takezo com raiva, pois somente suarespirao se fazia ouvir no escuro. Instantes depois, falou:

    impossvel que no saiba o que eu sinto por voc, Takezo-san.

    Como se atreve a me humilhar deste jeito? gritou a viva derepente, irritada.

    Eu, humilhar?

    Isso mesmo!

    Estavam ambos exaltados. No fosse por isso, teriam percebido que,havia algum tempo, algum esmurrava a porta da casa. Aos poucos, o somdas vozes transformou-se em alarido:

    Abram! Abram j esta porta!

    A luz de uma vela moveu-se entre as folhas corredias da porta doquarto. Era Akemi despertando. Passos soaram e Matahachi perguntou:

    Que barulheira essa? Do corredor, Akemi chamou:

    Me?

    Sem ter noo exata do que se passava, Okoo voltou correndo para o

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    prprio quarto e de l respondeu ao chamado de Akemi. Ao que parecia, osintrusos tinham arrombado a porta e invadido a casa: sondando-se aescurido, notavam-se seis ou sete vultos corpulentos aglomerados naentrada. Uma voz em meio ao grupo bradou:

    Sou Tsujikaze. Acendam j uma luz!

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    UM PENTE VERMELHO

    IOs intrusos tinham planejado atacar noite para surpreender os

    moradores adormecidos e invadiram a casa com os ps enlameados, sem sepreocupar em descalar as sandlias. Separados em grupos, revolviam odepsito, os armrios, o vo sob o assoalho.

    Aboletado beira do fogo, Tsujikaze Tenma observava em silncio otrabalho de seus sequazes vasculhando a casa.

    Bando de lerdos, que foi que acharam?

    Nada, chefe.

    Nada mesmo? Nada!

    Sei... Mas claro, no deve ter nada escondido, com certeza.Suspendam a busca!

    Okoo sentara-se na sala ao lado, as costas voltadas para o grupo deinvasores. Sua atitude era de desafio, aparentando at mesmo indiferenaante o rumo dos acontecimentos.

    Okoo.

    O que voc quer? Sirva-me ao menos um pouco de saque.

    Deve estar por a se quer, procure e beba por sua conta.

    Ora, que modos so esses... Eu, Tenma, estou lhe fazendo umavisita depois de tanto tempo...

    desse jeito que voc costuma visitar as pessoas?

    Calma, no fique nervosa, a culpa tambm sua. O fato quechegou seguramente aos meus ouvidos o boato de que certa viva vendedora

    de moxa estava ganhando uns trocados a mais saqueando cadveres desoldados no meu territrio. E onde tem fumaa, tem fogo.

    E as provas? Onde esto as provas?

    No seja tola. Se realmente pretendesse achar provas, no teriamandado Akemi avis-la com antecedncia. Conforme dita a lei dosbandoleiros, ordenei uma busca rotineira pela casa e, desta vez, fao vistagrossa. Agradea a minha bondade.

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    Agradecer, eu? Ora, quanta bobagem!

    Que acha de vir aqui e me servir um pouco de saque? Okoo no lhedeu resposta.

    Mulher cheia de caprichos! No percebe que se aceitasse meus

    favores sua vida seria muito mais fcil? Dizem que quando a esmola muito grande...

    Recusa?

    Tenma, voc sabe por acaso quem matou meu marido?

    Ora, a est: se quer se vingar, ponho meus modestos servios aoseu dispor.

    No se faa de inocente!

    Que disse?

    Comenta-se por a, a boca pequena, que o mandante do assassinatofoi voc, Tsujikaze Tenma, no sabia? E embora seja mulher de bandoleiro,

    jamais pretendo cair to baixo a ponto de viver s custas do assassino demeu marido.

    Cuidado com o que diz, Okoo.

    Ocultando um sorriso falso, Tenma tragou de vez o saque da chvena.

    Para o bem das duas, me e filha, melhor no repetir o que acabade dizer rosnou.

    Quando terminar de criar Akemi, acertarei contas com voc, estejacerto! replicou Okoo.

    Tsujikaze ria silenciosamente, sacudindo os ombros. Bebeu em seguidatodo o saque da bilha e dirigiu-se a um dos bandoleiros que se postava, lanaao ombro, num dos cantos da sala:

    Voc a: use a lana e arranque algumas folhas deste forro.

    O bandoleiro andou pela sala golpeando o forro com o cabo da lana.Pelas frestas abertas rolaram armaduras e uma profuso de artigos.

    A est disse Tenma, levantando-se ameaador. A lei dos

    bandoleiros clara: arrastem esta mulher para fora da casa e matem-na!

    IIOs bandidos avanaram displicentes para o aposento em que se

    sentava Okoo, considerando que se tratava apenas de uma mulher.Estacaram petrificados, no entanto, na entrada da sala. Aparentemente,temiam aproximar-se da viva.

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    Que se passa? Arrastem para c essa mulher de uma vez!

    Tsujikaze Tenma impacientava-se no outro cmodo. Ainda assim seusasseclas permaneciam imveis, observando fixamente o interior do aposentoe perdendo um longo tempo.

    Tenma estalou a lngua, impaciente, e foi pessoalmente verificar o local.Pretendia aproximar-se de Okoo em seguida, mas tambm ele no

    conseguiu vencer o umbral da porta.

    Invisveis da sala onde ardia o braseiro, ali estavam, alm de Okoo,dois jovens de aparncia agressiva. Takezo empunhava a espada de carvalhonegro em posio baixa, pronto a atingir e a quebrar as pernas daquele queentrasse. Matahachi posicionara-se do outro lado da porta, e segurava comambas as mos uma espada, mantendo-a bem alto sobre a cabea.Aguardava, ansioso por abater a primeira cabea que, por pouco que fosse,surgisse dentro de seu campo de viso. Akemi no estava vista foracertamente escondida em algum armrio para evitar que se ferisse. Aestratgica defesa da sala fora composta enquanto Tenma bebia aboletado beira do fogo e, ao que tudo indicava, esse respaldo era uma das causas dacalma de Okoo.

    Est claro! rosnou Tenma, lembrando-se. Voc o rapazoteque vi, outro dia, andando pelas montanhas com Akemi. E quem o outro?

    Matahachi e Takezo aguardavam em silncio, demonstrandoclaramente que preferiam ao a palavras. Uma atmosfera sinistra envolvia osdois jovens.

    No sei de homens morando nesta casa. Presumo ento que vocssejam dois vagabundos, lixo dos campos de Sekigahara. Vou avisando: nose metam no que no lhes diz respeito, pois vo sofrer as conseqncias vociferou Tenma.

    Sou Tsujikaze Tenma, da aldeia de Fuwa: no h quem no meconhea nas redondezas. E vocs so arrogantes demais para uma dupla defugitivos dos campos de Sekigahara. Vo ver agora o que fao com os dois!

    Saiam! ordenou Tenma com um gesto, dirigindo-se aos do seubando: no queria que o estorvassem. Inadvertidamente, porm, um

    bandoleiro que se afastava andando de costas caiu no braseiro cavado aonvel do assoalho e gritou. Fagulhas das toras de pinheiro elevaram-se no ar,tocaram o teto e encheram o ambiente de cinzas.

    Tenma, que at ento fixava imvel a entrada da sala, rosnou:

    Malditos! e de sbito invadiu o quarto.

    Opa! fez Matahachi, descarregando instantaneamente a espadacom toda a fora dos dois braos. Mas nem toda a sua agilidade foi capaz de

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    sobrepujar o mpeto de Tenma: a arma de Matahachi resvalou com um tinidona ponta da espada do adversrio.

    Okoo permanecia em p, agora afastada a um canto. No lugaranteriormente ocupado por ela, Takezo estava espera, em guarda,mantendo a espada de carvalho em posio enviesada. Nesse momento,investiu visando o trax de Tenma, jogando contra ele todo o peso do corponum golpe violento.

    A espada rasgou o ar, sibilando.

    Em resposta, Tenma usou o prprio corpo lanando o peito slido comorocha ao encontro de Takezo. Este, que nunca havia se defrontado com umindivduo to poderoso, tinha a impresso de ter sido agarrado por um enormeurso. Imobilizado por um forte punho em sua garganta, sentia socos atingindo-lhe a cabea, querendo arrebentar-lhe o crnio. Com um sbito movimento docorpo, contudo, liberou de golpe o ar retido no peito: o enorme corpo de

    Tsujikaze Tenma projetou-se ento no espao, pernas dobradas, e foi deencontro parede com um estrondo que abalou a casa.

    IIIAo marcar uma presa, Takezo nunca permitia que ela lhe escapasse;

    subjugava-a a qualquer custo e jamais a abandonava mortalmente ferida,perseguindo-a at o seu aniquilamento total. Tais aspectos da personalidadede Takezo eram visveis desde a infncia. Viera ao mundo trazendo nosangue certo primitivismo ancestral, puro e selvagem, at agora intocado pelaluz do saber, em estado bruto desde o nascimento. Estes mesmos aspectosteriam sido responsveis, talvez, pela averso que Munisai nutrira por ele. Asseveras punies no estilo de um bushi, impostas pelo pai, trouxeramresultado inverso: forneceram presas ao pequeno tigre. E quanto mais osaldees o evitavam repudiando sua violncia, mais vigoroso crescia, livre depeias, esse pequeno selvagem. No lhe bastara tambm percorrer vales emontanhas de sua terra natal como se tudo lhe pertencesse: tivera de partir,afinal, rumo a Sekigahara em busca de um sonho ambicioso.

    Para o jovem Takezo, Sekigahara representara o primeiro contato com

    o mundo, mas em seus campos os sonhos haviam rudo fragorosamente.Como porm nada tinha a perder, o sonho desfeito e o futuro incerto nem deleve o deixavam frustrado ou desesperado.

    Nessa noite, sobretudo, deparara com uma presa inesperada: TsujikazeTenma, chefe de uma quadrilha de bandoleiros. Como tinha ansiado por uminimigo desse nvel nos campos de Sekigahara!

    Covarde, volte aqui, covarde!

    Aos gritos, Takezo corria como um raio pelos campos escuros. Dez

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    passos frente fugia Tenma, tambm este to rpido que parecia voar.

    Os cabelos de Takezo se eriavam, o vento zunia nos ouvidos, asensao de prazer era to intensa que se tornava quase insuportvel. Osangue galopava nas veias com uma alegria bestial e o levava ao paroxismo.

    No instante em que, de um salto, sua sombra pareceu sobrepor-se scostas de Tenma, o sangue jorrou da espada de carvalho e um medonho urrocortou os ares. O corpanzil de Tsujikaze Tenma foi ao cho com um baque.Seu crnio era uma massa disforme e, no rosto, os olhos saltavam dasrbitas.

    Takezo desferiu ainda dois ou trs golpes seguidos: surgiram costelasquebradas, brancas, rasgando a pele. Esfregou ento o brao na testa edisse:

    E agora, valento?

    Lanou um breve olhar para o cadver e voltou-se solenemente,retornando sobre os prprios passos. Parecia considerar trivial o feito. Fossesuperior o adversrio, sabia, seria ele, Takezo, a jazer esquecido.

    voc, Takezo? soou ao longe a voz de Matahachi.

    Hum respondeu Takezo com voz pachorrenta, vagando o olhar aoredor.

    Que aconteceu? perguntou Matahachi, chegando s carreiras.

    Liquidei-o. E voc?

    Eu tambm liquidei um respondeu, exibindo a Takezo umaespada ensangentada at o cabo, e acrescentando: O resto do bandofugiu. So uns covardes, os bandoleiros. Deu de ombros, arrogante.

    O riso ecoou alegre enquanto os dois jovens, quase crianas, divertiam-se espremendo o sangue que lhes sujava as mos.

    Pouco depois, afastaram-se conversando animadamente rumo nicaluz proveniente da casa coberta de colmos, visvel ao longe.

    IVUm cavalo campeiro meteu a cabea pela janela e examinou a casa.

    Bufou, suspirando ruidosamente, e acordou as duas figuras:

    Malandro! gritou Takezo dando um tapa na cabea do cavalo.Matahachi espreguiou-se tanto que parecia querer varar o teto com ospunhos cerrados.

    Ah, como dormi bem! disse.

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    O sol j vai alto.

    J est entardecendo?

    No parece.

    Uma noite de sono, e das ocorrncias do dia anterior nada mais restara

    em suas mentes: na vida dos dois jovens somente existiam o hoje e oamanh. Takezo correu no mesmo instante para fora, desnudou o torso elavou-se nas guas lmpidas do riacho. Levantou ento o rosto e sorveu a luzdo sol e o ar puro sob o cu profundo.

    Matahachi levantou-se, por sua vez, e com o rosto ainda enevoado desono dirigiu-se sala onde Akemi e Okoo sentavam-se junto ao braseiro.

    Bom dia! disse com jovialidade proposital. A senhora hoje meparece bastante deprimida, oba-san.

    Pareo?

    Que houve? Conseguimos liquidar Tsujikaze Tenma, o homem queassassinou seu marido, ao que dizem, e ainda mais um do bando. No vejomotivos para depresso.

    Matahachi estranhava com razo. Ele havia esperado que o extermniode Tenma fosse devidamente festejado pelas duas mulheres na noite anterior,mas ao contrrio de Akemi, que batera palmas de alegria, Okoo demonstraraclaros indcios de apreenso.

    E o fato de Okoo continuar apreensiva e sombria beira do fogo, nos irritava Matahachi como tambm o intrigava.

    Que se passa? perguntou. Aceitou o ch que Akemi lhe servia esentou-se cruzando as pernas. Okoo sorriu de leve, com jeito de quem invejaa rudeza e a inexperincia da gente jovem.

    Veja bem, Mata-san, Tsujikaze Tenma era o lder de uma centena debandoleiros.

    Ah, j entendi: a senhora receia que o bando volte para se vingar.Ora, os bandoleiros no so de nada, eu e o Takezo...

    Deixe disso! disse Okoo, abanando a mo. Matahachi aprumou-

    se: Como assim? Pois digo e repito: eles no passam de um bando devermes, deixe que venham! Ou a senhora julga que no podemos com eles?

    No vai adiantar, pois vocs so s dois garotos. Tenma tem umirmo mais novo, de nome Tsujikaze Kohei. Se ele aparecer por aqui para sevingar, ser impossvel venc-lo, mesmo que vocs o enfrentem juntos.

    A observao irritou Matahachi. Ouvindo, porm, as explicaes daviva, aos poucos comeou a se convencer. O irmo de Tenma, Tsujikaze

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    Ao longe, Akemi chamou:

    Venham almoar!

    Oba! saltaram os dois em p.

    Quer ver quem chega primeiro, Matahachi?

    Eu, diabos!

    Akemi batia palmas recebendo a dupla que se aproximava levantandopoeira.

    Mas a pequena Akemi abateu-se de modo repentino ao saber, durantea tarde, que os dois jovens pretendiam retornar s suas terras. Por certo tinhaimaginado que continuariam juntos para sempre, perpetuando a vida animadaque passara a levar com a incluso dos dois rotina da casa.

    Que choradeira essa, bobinha? ralhou Okoo, arrumando-se

    para a noite. Fixava ao mesmo tempo o olhar irado em Takezo pelo espelho.Este desviou o rosto: acabara de se lembrar dos sussurros da viva sua cabeceira na noite anterior e do perfume adocicado de seus cabelos.

    Sentado ao lado, Matahachi muito vontade, agindo como se a casalhe pertencesse retirara um bojudo cntaro de saque de um dos armrios,transferia o contedo para uma pequena bilha e comentava:

    Esta noite vamos brindar despedida e beber at cair. A viva Okoo,que se esmerara na maquiagem, apoiou-o:

    J no vale a pena pouparmos a bebida: vamos esvaziar todos os

    cntaros.Okoo apoiava-se em Matahachi e gracejava com vulgaridade,

    obrigando Takezo a desviar o rosto constrangido.

    J no agento mais disse enfim a viva, mal conseguindomanter-se em p; enroscando-se em Matahachi, foi por ele carregada aoquarto. De passagem, lanou maliciosamente:

    Durma por a, Take-san, j que gosta de dormir sozinho! Seguindo risca a recomendao, Takezo deitou-se no mesmo lugar e adormeceu.Estava muito embriagado, a madrugada vinha chegando e, por isso, quando

    despertou no dia seguinte, o sol j ia alto no cu.Ao se erguer, um fato chamou-lhe a ateno de imediato: a casa

    parecia deserta. No viu a pequena trouxa de viagem preparada na noiteanterior por Akemi e sua me, os abrigos de viagem, nem as sandlias.Sobretudo, estranhou a ausncia de Matahachi.

    Ei, Matahachi!

    No o encontrou nos fundos da casa, tampouco no depsito de lenha.

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    Ao lado da bica, que permanecera aberta, achou apenas o pente vermelho daviva.

    Cretino!

    Levou o pente ao nariz. O perfume fez com que revivesse a terrvel

    cena de seduo de duas noites atrs. Pelo visto, Matahachi entregara-se aessa seduo. Uma indizvel tristeza o invadiu.

    E agora, que ser de Otsu? Jogou o pente no cho, com mpeto.

    Mais que a raiva, abalou-o lembrar-se de Otsu, espera do noivo emsua aldeia.

    Ao avistar a figura desanimada de Takezo sentado imvel por longotempo na cozinha da casa, o cavalo que rondava a casa desde o dia anteriormeteu a cabea pelo alpendre. No recebendo o esperado afago nas narinas,ps-se a comer, conformado, os gros de arroz que restavam esquecidos

    sobre a pia.

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    FLORES PARA O SANTURIO

    ISucesso ininterrupta de montanhas eis como se descreveria

    apropriadamente essa regio. J a partir de Tatsuno, em Banshu8, o caminhotorna-se ngreme. A estrada de Sakushu9 mergulha por entre sucessivasmontanhas, leva crista da serra, passa por trechos onde sobressaemmarcos de madeira delimitando fronteiras, por colinas recobertas de pinheiros,e transpe tambm o pico de Nakayama. E ao alcanar finalmente o trechoem que breve avistaria a seus ps o desfiladeiro do rio Aida, o viajante quasesempre arregala os olhos admirado:

    Incrvel, at nestes ermos existem casas!

    considervel, sobretudo, o nmero de moradias. Agrupadas ao longodas margens do rio ou nas encostas das montanhas, junto a primitivosroados, compem nada mais que um aglomerado de povoados. Ainda assim,40 quilmetros rio acima, o suserano Shinmen Igamori e seus familiareshaviam morado num pequeno castelo at pouco antes da batalha deSekigahara, ocorrida no ano anterior. Nas minas de prata de Shikozaka, divisacom Inshu, no interior dessa rea montanhosa, costumam surgir tambmmuitos mineiros procura de trabalho. Ademais, numerosos estranhos afluema esta pequena aldeia: so viajantes que partem de Tottori rumo a Himeji, outrafegam entre Tajima10 e Bizen11 transpondo a serra. Por este motivo, mesmo

    perdida no meio das montanhas, a vila possui estalagens e lojas de tecidos ede vesturio. Vez ou outra, ao cair da tarde, consegue-se at divisar vultos demulheres servindo s mesas nos alpendres das hospedarias: por baixo dosalvos lenos com que cobrem os cabelos, seus rostos pintados lembram osde morcegos brancos.

    Essa a vila Miyamoto.

    Do alpendre do templo Shippoji, de onde se avistam os telhados dascasas seguros por pedras, Otsu contemplava as nuvens cismandovagamente:

    J se passou quase um ano...Por ser rf, e talvez por ter sido criada num templo, a jovem Otsu fazia

    lembrar a chama fria e solitria de um incensrio.

    Completara dezesseis anos no ano anterior, sendo um ano mais nova

    8 Banshu: antigamente tambm chamada Harima, provncia situada a sudoeste do Estado de Hyogo.9 Sakushu: antigamente tambm chamada Mimasaka, provncia situada ao norte do Estado de Okayama.10 Tajima: antiga denominao de uma rea ao norte do Estado de Hyogo11 Bizen: antiga denominao de certa rea a sudeste do Estado de Hyogo

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    que Matahachi, seu noivo. E fora este Matahachi que se havia juntado aoamigo Takezo e partira para a guerra no vero anterior, no dando notciasdesde ento.

    Talvez em janeiro... ou ento em fevereiro... assim pensando,Otsu havia esperado em vo e, ultimamente, a espera a cansara. A primaveraavanava e j se estava em abril.

    Ningum teve notcias deles, nem mesmo na casa de Takezo-san.Ser que esses dois morreram de verdade?

    Se vez ou outra, entre suspiros, perguntava a algum, ouvia quasesempre mesma resposta:

    Claro! A comear pelos familiares do senhor Shinmen Igamori,ningum at hoje voltou da batalha, e veja quem ocupa seu castelo depois daguerra: um bando de samurais desconhecidos, todos vassalos de Tokugawa!

    Por que os homens amam tanto as guerras? Bem que eu quis det-los... Acomodada no alpendre do templo, Otsu era capaz de permanecerimvel horas a fio, seu rosto triste traindo o hbito de perder-se empensamentos. Cismava tambm hoje quando algum a chamou:

    Otsu-san, Otsu-san!

    A voz provinha da rea externa, prxima cozinha do templo. Dadireo do poo, vinha caminhando um homem nu, exceto por uma tanga,cujo aspecto lembrava uma antiga estatueta de arahant12.

    Era um jovem monge zen-budista itinerante, aparentando cerca de 30

    anos, originrio da regio de Tajima e que costumava visitar o templo a cadatrs ou quatro anos. Com o peito peludo exposto ao sol, comentou feliz:

    Ah, a primavera j chegou!

    Realmente continuou estou feliz com a chegada da primavera,mas os malditos piolhos passaram a se comportar como se fossem donos domundo; por sinal, exatamente como se comportou Fujiwara Michinaga13.Resolvi por isso lavar a roupa toda de uma s vez. E agora preciso pr estesandrajos a secar, mas, veja voc, tenho o senso esttico razoavelmentedesenvolvido. Se quer saber, estou em srias dificuldades, pois sinto que no apropriado estend-los neste pessegueiro em flor, nem naquele arbusto dech. Voc no teria um varal, por acaso, Otsu-san?

    Otsu ruborizou-se:

    Mas o senhor ficou sem as roupas, monge Takuan... o que vai fazerat que sequem?

    12Arahant: discpulo de Buda que conseguiu atingir o Nirvana13 Fujiwara Michinaga: na qualidade de regente (kanpaku), governou o Japo de 995 a 1027. Era membro dapoderosa famlia Fujiwara, cujos lderes dominaram por longo tempo o imprio no perodo Heian.

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    Sempre posso esperar dormindo, ora!

    Que absurdo!

    Pensando bem, devia ter esperado at amanh, 8 de abril,aniversrio de Buda. A ento, eu ficaria imvel, assim, e me banhariam com

    ch de hortnsias... Juntou os ps e assumiu solenemente a clssica posede Buda, uma das mos apontando o cu e a outra, a terra.

    II Sou o Ser Supremo do cu e da terra...

    Vendo Takuan imitar Buda por algum tempo com seriedade e empenho,Otsu no se conteve e riu com gosto:

    Sabe que imita muito bem, monge Takuan?

    perfeio, no acha? Claro, pois sou, na verdade, a prpriareencarnao do prncipe Siddharta.

    Se assim, j vou banh-lo com um bom ch de hortnsias, dacabea aos ps.

    No, no se incomode, s estava brincando!

    De repente, uma abelha surgiu visando o rosto de Takuan. Areencarnao do prncipe Siddharta agitou freneticamente os braos tentandoespant-la. Ao perceber que o cordo da tanga do monge comeava a sedesatar, a abelha deu-se por satisfeita e fugiu.

    Otsu ria a mais no poder, vergada sobre o prprio corpo.

    Ai, como di! queixou-se apalpando a barriga.

    Apesar da ndole melanclica, Otsu no parava de rir durante os diasem que o jovem monge zen-budista, de nome Takuan Shuho, nascido naregio de Senba, passava os dias no templo.

    verdade, ia-me esquecendo: no posso ficar assim toa! disseOtsu, estendendo os ps alvos na direo das sandlias.

    Aonde vai, Otsu-san? perguntou o monge.

    Amanh 8 de abril, o senhor sabe, mas eu tinha me esquecido porcompleto das recomendaes do nosso abade. Como fao todos os anos,tenho de colher flores e enfeitar o santurio para a comemorao donascimento de Buda e, noite, preparar o ch de hortnsias.

    Ah, vai colher flores... E onde h flores nesta regio?

    Nas margens do rio, nos povoados rio abaixo.

    Quer que a acompanhe?

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    De modo algum!

    Mas voc no vai conseguir colher tantas flores sozinha. Deixe-meajud-la.

    Desse jeito? O senhor vai me envergonhar!

    Ora, que importncia tem? Para comear, o homem veio ao mundonu.

    No se atreva a me acompanhar!

    Otsu correu para os fundos do templo. Com um cesto atado s costas euma tesoura na mo, tentava escapulir sorrateiramente pelo porto de servioquando Takuan surgiu logo atrs. Tinha-se enrolado num enorme furoshiki14

    do tipo usado para embalar cobertores que encontrara em algum lugar.

    Que horror! disse Otsu.

    Mereo agora a sua aprovao? O povo vai caoar.

    No vejo por qu.

    Ande bem longe de mim!

    Fingida! Sei que gosta de andar escoltada por um cavalheiro.

    No fale mais comigo!

    Otsu correu frente. Takuan vinha poucos passos atrs desfraldandoao vento a larga barra do furoshiki, qual Shakyamuni descido de pncaros

    nevados. Ora, ora, zangou-se Otsu-san? ria Takuan. No fique to

    nervosa! Com essa cara emburrada, capaz de espantar o namorado.

    Cerca de quinhentos metros rio abaixo, s margens do Aida, milharesde pequenas flores do campo desabrochavam em alegre profuso. Otsudepositou o cesto no cho e, rodeada de borboletas, j dirigia ativamente atesoura ao caule das flores.

    Quanta paz! exclamou o jovem Takuan, em p ao seu lado, dandovazo ao seu carter sensvel, religioso. No entanto, nem mesmo tentava

    ajudar Otsu, que se atarefava colhendo flores. Pequena Otsu, neste momento voc a personificao da paz. Todo

    homem, seja ele quem for, poderia passar a vida num paraso como este; noentanto, prefere chorar, prefere sofrer, prefere mergulhar num cadinho ondefervem paixes, luxria e falsidade, consumindo-se nos tormentos dos oitoinfernos. Quisera ao menos poupar voc de um destino semelhante, Otsu-san.

    14Furoshiki: quadrado de tecido usado para embalar volumes

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    IIIRosas silvestres, papoulas, violetas, crisntemos... Otsu lanava as

    flores no cesto medida que as colhia.

    No perca tempo pregando sermes, monge Takuan. Cuidado comas abelhas, podem picar seu rosto outra vez! caoou.

    O monge ignorou-a:

    Tolinha, no estou falando de abelhas; neste momento, discorrosobre o destino de uma certa jovem, segundo os ensinamentos de Buda.

    O senhor um intrometido, sabia?

    Eis uma declarao acertada! Sem dvida, ns, os bonzos, somosmuito intrometidos. No entanto, nossa profisso existe por ser to necessria

    ao mundo quanto a dos carpinteiros, dos samurais, ou a dos comerciantes dearroz e tecidos. bem verdade tambm que h trs mil anos os ditos bonzose a espcie feminina da humanidade no convivem em harmonia. De acordocom o budismo, mulheres so a encarnao do diabo, seres demonacos,mensageiras do inferno. Deve ser por isso que vivemos brigando, eu e voc: okarma antigo.

    Por que as mulheres so consideradas demonacas?

    Porque enganam os homens.

    E os homens, no enganam tambm as mulheres?

    Espere a, essa um pouco difcil de responder... Ah, j sei!

    Vamos, responda!

    Buda era homem!

    Muito conveniente para os homens, no acha?

    Contudo, presta ateno, mulher: no te melindres...

    Ah... chega, monge!

    ...pois se, em sua juventude, Buda desaprovou as mulheres por ter

    sido atormentado, sombra de uma figueira, por tentaes que assumiamformas femininas, em sua velhice chegou at a admitir discpulos do sexofeminino. O bodisatva15Ryuju foi outro que detestou, digo, temeu as mulherestanto quanto o prprio Buda, mas posteriormente tornou-se grande amigo dequatro virtuosas mulheres, que considerou esposas exemplares. Exaltou-lhesas virtudes, dizendo aos homens que as tivessem como modelos quandofossem escolher suas mulheres.

    15Bodisatva: (jap. bosatsu): ser iluminado que se dedica a ajudar os demais a alcanarem a libertao

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    Est vendo? Como tudo o mais, muito conveniente para oshomens.

    inevitvel, pois na velha ndia, bero do budismo, a supremaciados homens sobre as mulheres era ainda mais acentuada que em nosso pas.Voltando ao nosso bodisatvaRyuju, ele dirigiu s mulheres um conselho.

    Que tipo de conselho?

    Disse: mulher, no te cases com um homem...

    Conselho mais esquisito!

    No brinque, escute at o fim. Ele disse: no te cases com umhomem: casa-te com a verdade.

    Compreendeu? Em outras palavras, quer dizer: no se apaixone porum homem, mas sim por algo verdadeiro.

    E o que quer dizer apaixonar-se por algo verdadeiro? Para ser franco, parece que nem eu sei direito. Otsu riu, mas omonge continuou:

    Bem, trocando em midos, quer dizer: case-se com o que verdadeiro. Isto significa que voc no deve correr atrs de iluses para queno lhe acontea de acabar carregando no ventre o fruto de uma relaoenganosa com algum desconhecido da cidade grande; que deve procurarcasar-se com algum de sua prpria terra, merecedor de confiana, e dar luz filhos sadios.

    Pare com isso! disse Otsu fingindo bater no monge eacrescentando: No disse que ia me ajudar a colher as flores?

    Creio ter afirmado algo parecido.

    Ento no fique a parado falando o tempo todo, e segure o cestopara mim.

    Com todo o prazer.

    Enquanto isso, vou casa de Ogin-sama16 verificar se o obi quepretendo usar amanh j est pronto.

    Ogin-sama? Ah, j sei, a jovem que apareceu um dia desses l notemplo... Eu tambm vou.

    Desse jeito?

    Estou com sede. Quero tomar ch.

    16 San e sama: formas de tratamento que expressam respeito. San usado por pessoas de nveis sociaisequivalentes, ou coloquialmente. Sama mais formal e faz subentender que aquele assim tratado de um nvelsocial superior, idoso ou merecedor de respeito

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    IVAos 25 anos de idade, bonita e bem nascida, no era por falta de

    pretendentes que Ogin continuava solteira.

    Por outro lado, os pretendentes, a bem da verdade, no eram tantos

    quanto seria de se esperar, graas reputao do irmo Takezo, o maisinsubordinado das redondezas, sempre citado desde a infncia como modelode m-criao, junto com Matahachi. Ainda assim, muitos eram os queinsistiam em pedi-la em casamento, encantados com as maneiras modestas ea fina educao da jovem. No entanto, Ogin a todos recusava, dando semprea mesma razo:

    Quero continuar sendo, para Takezo, a me que ele nunca teve, aomenos at que amadurea um pouco mais.

    A casa onde morava fora construda nos ureos tempos em que

    Munisai, servindo casa Shinmen como instrutor de artes marciais, obtiverapermisso para incorporar ao seu nome o sobrenome Shinmen de seususerano. Por esse motivo, o estilo da ampla manso construda s margensdo rio Aida, com seus muros de pedra e paredes rebocadas, era maisimponente do que se esperaria da casa de um goushi. Hoje, envelhecida,ervas daninhas vicejavam em meio palha do telhado, e as fezes dasandorinhas, que se haviam acumulado no decorrer dos anos, manchavam debranco o espao entre o beiral e a janela alta do recinto onde Munisaimantivera, h tempos, um salo de treinamento dejitte-jutsu17.

    J no tinha ningum servindo famlia, pois Munisai falecera na

    misria aps um longo perodo de desemprego. Os antigos servos, todavia,eram todos moradores da vila Miyamoto e continuavam zelando pela casa.Mesmo aps a decadncia de Munisai, a velha governanta e os antigoslacaios ainda se revezavam, deixando silenciosamente alguns vegetais naporta da cozinha, limpando e arejando aposentos h muito fechados, ouenchendo a bilha de gua fresca.

    Certa de que algum desses antigos serviais entrava naquele instantepelos fundos da casa, Ogin, entretida em seu trabalho, no deteve a mo queguiava a agulha.

    Boa-tarde, Ogin-sama.Ogin levantou o rosto surpresa, pois Otsu sentava-se silenciosamenteatrs dela.

    Que susto! voc, Otsu-san? Estou terminando de costurar o obiqu