CÂMARA DOS DEPUTADOS DEPARTAMENTO DE TAQUIGRAFIA, REVISÃO E REDAÇÃO NÚCLEO DE REDAÇÃO FINAL EM COMISSÕES TEXTO COM REDAÇÃO FINAL COMISSÃO DE DIREITOS HUMANOS E MINORIAS EVENTO: Audiência Pública N°: 1449/07 DATA: 5/9/2007 INÍCIO: 14h45min TÉRMINO: 19h15min DURAÇÃO: 4h29min TEMPO DE GRAVAÇÃO: 4h28min PÁGINAS: 85 QUARTOS: 54 DEPOENTE/CONVIDADO - QUALIFICAÇÃO MÁRCIA SUZUKI - Coordenadora do Movimento Atini — Voz pela Vida. MAÍRA DE PAULA BARRETO - Doutoranda em Direitos Humanos pela Universidade de Salamanca, com a tese Infanticídio e Direitos Humanos. MÁRCIO AUGUSTO FREITAS MEIRA - Presidente da Fundação Nacional do Índio — FUNAI. VALÉRIA PAYÊ - Representante do Fórum de Defesa dos Direitos Indígenas — FDDI. MÁRCIO AUGUSTO FREITAS MEIRA - Presidente da Fundação Nacional do Índio — FUNAI. EDWARD MANTOANELLI LUZ - Antropólogo. AISANAIN PALTU KAMAIWRÁ - Pai Indígena. RITA LAURA SEGATO - Antropóloga. SUMÁRIO: Debate sobre o infanticídio em áreas indígenas. OBSERVAÇÕES Houve exibição de imagens. Há exposições em língua indígena. Grafia não confirmada - Karô. Há orador não identificado. Houve intervenção fora do microfone. Inaudível.
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DEPARTAMENTO DE TAQUIGRAFIA, REVISÃO E REDAÇÃO …€¦ · CÂMARA DOS DEPUTADOS - DETAQ COM REDAÇÃO FINAL Nome: Comissão de Direitos Humanos e Minorias Número: 1449/07 Data:
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CÂMARA DOS DEPUTADOS
DEPARTAMENTO DE TAQUIGRAFIA, REVISÃO E REDAÇÃO
NÚCLEO DE REDAÇÃO FINAL EM COMISSÕES
TEXTO COM REDAÇÃO FINAL
COMISSÃO DE DIREITOS HUMANOS E MINORIASEVENTO: Audiência Pública N°: 1449/07 DATA: 5/9/2007INÍCIO: 14h45min TÉRMINO: 19h15min DURAÇÃO: 4h29minTEMPO DE GRAVAÇÃO: 4h28min PÁGINAS: 85 QUARTOS: 54
DEPOENTE/CONVIDADO - QUALIFICAÇÃO
MÁRCIA SUZUKI - Coordenadora do Movimento Atini — V oz pela Vida.MAÍRA DE PAULA BARRETO - Doutoranda em Direitos Hum anos pela Universidade deSalamanca, com a tese Infanticídio e Direitos Humanos.MÁRCIO AUGUSTO FREITAS MEIRA - Presidente da Fundaç ão Nacional do Índio — FUNAI.VALÉRIA PAYÊ - Representante do Fórum de Defesa dos Direitos Indígenas — FDDI.MÁRCIO AUGUSTO FREITAS MEIRA - Presidente da Fundaç ão Nacional do Índio — FUNAI.EDWARD MANTOANELLI LUZ - Antropólogo.AISANAIN PALTU KAMAIWRÁ - Pai Indígena.RITA LAURA SEGATO - Antropóloga.
SUMÁRIO: Debate sobre o infanticídio em áreas indíg enas.
OBSERVAÇÕES
Houve exibição de imagens.Há exposições em língua indígena.Grafia não confirmada - Karô.Há orador não identificado.Houve intervenção fora do microfone. Inaudível.
CÂMARA DOS DEPUTADOS - DETAQ COM REDAÇÃO FINALNome: Comissão de Direitos Humanos e MinoriasNúmero: 1449/07 Data: 5/9/2007
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O SR. PRESIDENTE (Deputado Luiz Couto) - Declaro abertos os trabalhos
da presente audiência pública, que tem como finalidade discutir a prática de
infanticídio nas áreas indígenas.
A referida audiência é fruto de requerimento de autoria do Deputado Henrique
Afonso aprovado no âmbito desta Comissão.
O Decreto Presidencial nº 5.051, de 19 de abril de 2004, promulgou a
Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho — OIT, que em seu art.
8º, § 2, estabelece que os povos indígenas têm o direito de conservar seus
costumes e instituições próprias desde que não sejam incompatíveis com os direitos
fundamentais nem com os direitos humanos internacionalmente reconhecidos.
Sempre que for necessário deverão ser estabelecidos procedimentos para
solucionar os conflitos que possam surgir na aplicação desse princípio.
Baseada principalmente nessa normativa é que a Comissão de Direitos
Humanos e Minorias vai abrir este debate com especialistas e lideranças indígenas
a respeito da prática ainda presente em algumas aldeias indígenas de sacrifício de
crianças que nascem com deficiência.
A audiência não pretende levantar juízos, e sim construir pistas de ação e
diálogos para o enfrentamento dessa realidade.
Teremos 2 Mesas.
Convido para compor a primeira Mesa desta audiência a Profa. Márcia
Suzuki, Coordenadora do Movimento Atini — Voz Pela Vida; a Sra. Maíra de Paula
Barreto, doutoranda em Direitos Humanos pela Universidade de Salamanca, com a
tese Infanticídio e Direitos Humanos; o Sr. Márcio Augusto Freitas Meira, Presidente
da Fundação Nacional do Índio — FUNAI; e a Sra. Valéria Payê, representante do
Fórum de Defesa dos Direitos Indígenas — FDDI.
Informo que, pelo fato de termos outra Mesa e para que tenhamos espaço
para intervenções, concederemos até 10 minutos para que cada convidado faça sua
exposição.
Após as exposições, será concedida a palavra aos Deputados presentes,
respeitada a ordem de inscrição. O proponente do requerimento tem precedência
sobre outros Parlamentares.
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Cada Deputado inscrito terá o prazo de 3 minutos para formular suas
considerações ou pedidos de esclarecimento, dispondo os expositores do mesmo
tempo para resposta.
Esclareço que esta reunião está sendo gravada para posterior transcrição.
Por isso, solicito que falem ao microfone.
Concedo a palavra à nossa convidada Profa. Márcia Suzuki, Coordenadora
do Movimento Atini —Voz Pela Vida.
A SRA. MÁRCIA SUZUKI - Boa tarde a todos. Cumprimento todos os
componentes da Mesa e todos os presentes, desejando que tenhamos nesta
reunião um tempo de discussão e um tempo esclarecedor.
Cumprimento os indígenas presentes à Mesa. É muito importante tê-los junto
conosco nesta discussão.
Vou apresentar algumas imagens.
(Segue-se exibição de imagens.)
Represento o Movimento Atini — Voz pela Vida, uma ONG que luta pela
defesa do direito das crianças indígenas.
O nosso objetivo nesta reunião é dar continuidade a uma discussão que
começou nas aldeias indígenas, com o intuito de quebrar o silêncio sobre o
infanticídio, que nas aldeias tem sido sempre um tabu, uma dificuldade muito
grande, e tem gerado muito sofrimento às famílias dos povos indígenas. Uma das
proposta da Atini é quebrar o silêncio sobre esse assunto, que tem sido um tabu
dentro e fora das aldeias.
Minha exposição é orientada por alguns critérios, e um deles é: onde há
sofrimento, há violação de algum direito humano. Percebemos que nas
comunidades indígenas há um grande sofrimento causado pelo infanticídio.
O que tenho a dizer nesta tarde não se baseia em leituras ou teses, embora
tenha feito leituras antropológicas. Vou expor o problema a partir do ponto de vista
humano, por causa da experiência que meu marido, Edson Suzuki, e eu tivemos por
mais de 20 anos vivendo junto a um povo indígena semi-isolado na Amazônia, o
suruwahá. Durante o período de convivência, aprendemos a língua e a cultura
daquele povo, comemos de sua comida, participamos de seus rituais, ouvimos suas
histórias nas noites de fogueira.
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Tenho aqui algumas imagens que dão a noção de como vivem os suruwahás,
que conhecemos e de cujo sofrimento, alegrias e vitórias participamos. Vimos
crianças nascerem, ajudamos a enterrar os mortos e, muitas vezes, choramos com
esse povo nos momentos de luto, especialmente durante o ritual de suicídio, o que é
muito comum entre eles. Algumas pessoas têm conhecimento disso. Na verdade,
eles passaram a fazer parte da nossa família. Portanto, o que falo parte da
perspectiva de quem viveu por muito tempo com esse povo, de quem ouviu muitas
mulheres, muitas histórias, enfim, de quem chorou com eles muitas vezes. Vimos
que o infanticídio entre os índios é muitas vezes pontuado por sentimentos de
sofrimento, vergonha e muita dor.
Vou mostrar algumas imagens. Esse menino que vemos aí, infelizmente e
involuntariamente, causou um sofrimento muito grande para sua família.
Aparentemente nasceu normal, era um bebê lindo, mas seu desenvolvimento foi
afetado por algum problema que os indígenas não sabiam qual era e, apesar de
crescer, não andou, nem falou. O pai e a mãe tiveram mais 3 filhos, saudáveis e
bonitos, que amavam e dos quais cuidavam muito bem. Quando esse menino
apresentou problemas, a tribo, toda a comunidade passou a cobrar o sacrifício da
criança. Eles poderiam ter seguido a tradição e sacrificado o filho, mas tinham uma
ligação muito forte com ele, gostavam muito dele e resistiram por anos e anos.
Quando a criança completou 5 anos, os pais, não suportando mais a pressão, que
era muito grande, suicidaram-se. Logo depois, o menino foi enterrado vivo por um
irmão.
Esse é o irmão, Aruwaji, que, pela pressão da tribo, teve que enterrar vivo o
próprio irmão.
Essa linda menina, por exemplo, chamada Hajiw, também veio de uma família
que passou por grande sofrimento. Sua mãe envenenou um filho de 11 anos porque
ele chorava muito — ela fez com que fosse encontrar-se com pai na terra dos mortos
—, também matou uma filha recém-nascida por acreditar que era portadora de
maldição e quase matou essa outra filha envenenada por timbó. O avô da criança e
eu conseguimos salvar a menina. A mãe também acabou se matando.
Esse rapaz, da tribo Amondawa, no Amazonas, passou por grande
sofrimento. Sua irmã teve 3 gravidezes não permitidas pelos costumes da aldeia. Ao
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nascerem, os bebês foram mortos pela mãe. O quarto bebê que nasceu causou
tanta pena ao rapaz que ele decidiu criá-lo. Levou o bebê para sua casa e lutou por
sua saúde até que completasse 3 anos. No entanto, quando a mãe ficou doente e
faleceu, um dos líderes da aldeia enterrou o menino vivo, junto com a mãe, pois
ninguém assumiu a paternidade da criança e ele não sabia o que fazer.
Vou mostrar imagens de um documentário que está sendo apresentado na
Holanda e em vários outros países da Europa neste momento.
Essa senhora, da tribo Deni, fala, com muita dor, sobre os casos de
infanticídio na tribo. Ela diz assim: “Às vezes fazemos da maneira certa,” — ou seja,
matamos da maneira certa — “às vezes acontece diferente. Então, chutamos a
criança até ela morrer. Uma vez, uma criança grande foi enterrada. Enquanto
pisavam a terra, dava para ouvir a criança gritando. Depois disso, o líder espiritual
da aldeia nos explicou: ‘Muitas crianças são enterradas assim’. Ao nascer, o pajé
avalia se a criança é boa, olha se a criança tem um espírito bom. Percebemos isso
só com o olhar”.
Não quero mostrar apenas imagens de tristeza e desesperança. Tenho
também uma mensagem de esperança. Essa menina é da tribo Suruwahá. Seus
pais sofreram muito por ela não se desenvolver como deveria, e o povo da
comunidade decidiu que ela deveria ser enterrada viva. Os pais não tiveram
coragem de enterrá-la e acabaram se suicidando. Ela foi abandonada por 3 anos e
por isso ficou magrinha assim. Nessa época, ela tinha 5 anos de idade e pesava
apenas 7 quilos, tinha o tamanho de um bebê de 7 meses, mas, apesar disso,
sobreviveu.
Aqui temos uma imagem dela 1 ano depois. O irmão foi quem nos entregou a
criança e pediu que cuidássemos dela. Fomos à cidade, onde foram feitos exames e
detectado e tratado problema de hipotireoidismo. Um ano depois, ela já estava
assim. Nós a levamos de volta à aldeia, e a avó — essa senhora que está com ela
no colo — disse nunca ter imaginado que a neta tivesse alma. Quando viu a menina
andando, falando e cantando, ela disse: “Ela tem alma!” Aceitou a criança e a pegou
no colo. Hoje, ela já está maior. Na verdade, eles pediram que cuidássemos da
criança e acabamos por adotá-la. Hoje, ela é minha filha, Hakani — nome que
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significa sorriso. Ela trouxe às mães suruwahás esperança de que toda criança pode
ter alma e talvez não seja certo enterrá-las vivas.
Numa família suruwahá, nasceu essa criança hermafrodita, com
pseudo-hermafroditismo, e pela tradição da tribo a menina tinha que ser morta
imediatamente, mas por causa da transformação ocorrida com Hakani, negaram-se
a sacrificá-la. Os pais disseram que poderia haver esperança para ela e quiseram
tentar a medicina dos brancos. Vieram para a cidade, e a menina foi operada.
Essa é Iganani, suruwahá, filha de Muwaji e que também deveria ter sido
sacrificada na tribo, mas a mãe resolveu lutar por sua vida. Ela ama a filha e acha
que ela tem direito de viver.
Existem muitos pensamentos — e eu me incluo — que muitas vezes
confundem a nossa ética e a nossa consciência, e ficamos sem saber como agir
diante de situações como essas.
Não vou discutir esses conceitos, porque o Dr. Eduardo, antropólogo, falará
sobre o assunto. Mas existem mesmo muitos pensamentos que nos dificultam
entender tais conhecimentos e decidir como ajudar esses povos.
Quero deixar aqui, de maneira bem clara, uma questão muito simples. Pelo
menos 200 crianças indígenas são mortas no Brasil de hoje — são enterradas vivas,
sufocadas com folhas, abandonadas no mato. Entre os ianomâmis, no mínimo 200
crianças foram mortas nos últimos 5 anos; no Xingu, cerca de 30 são enterradas
vivas por ano. Essas são as 2 áreas de que temos dados, das outras faltam
pesquisas.
Acredito não ser a hora — e é o que diz o convite que nos feito pela
Comissão de Direitos Humanos — de julgarmos ou de procurarmos culpados. Não é
para isso que estamos aqui. Creio que estamos aqui para buscar soluções junto com
os povos indígenas que estão nos procurando e pedindo ajuda e dizendo que
querem mudar esse aspecto da cultura deles. Eles estão buscando soluções, porque
têm sofrido muito com as mortes dessas crianças.
Este é o exemplo dos ikpengs, que nos procuraram no início do ano: uma
família ikpeng veio a Brasília, marcou reunião conosco numa praça. O senhor nos
disse que seu filho havia tido trigêmeos e não queria matá-los. “A tradição de minha
cultura é matar, mas não quero matar. Ajuda a gente.” Estamos ajudando essa
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família. Eles tiveram que sair da aldeia, estão morando em Sinop e recebendo apoio,
para não ter que sacrificar as crianças.
Esses são os trigêmeos. Estão crescendo lindos. Há muitas pessoas
ajudando. Eles não podem voltar para a aldeia neste momento, porque a vergonha e
o sofrimento da família são muito grandes.
Essa é Hakani, como está hoje. Foi uma das tantas crianças que vimos, que
trouxe esperança para essa situação.
Essa é Lulu, menina que também escapou do infanticídio. São crianças que
escaparam do infanticídio. Ela estava sendo enterrada viva, alguém a tirou e
resolveu criá-la. Ela está viva.
O Amalé estará conosco. Filho de Kamiru, foi enterrado vivo, mas uma índia
avisou Kamiru, índia kamayurá. Ela foi à casa, desenterrou o menino e está
cuidando dele.
Essa é sobrevivente. A mãe matou 2 outras crianças, mas ela escapou.
Essa é a menina suruwahá que gerou tanta polêmica. Ela voltou para a
aldeia, foi aceita no meio do povo e está muito feliz com o pai e a mãe.
Esses são os bebês gêmeos kuikuros, que também foram salvos, estão
sendo acompanhados pela Atini.
Aí está a família dos trigêmeos recebendo o apoio da Atini.
Kamiru Kamayurá também recebe apoio da Atini para criar Amalé.
Esses são os gêmeos kuikuros e Kawana. Essa mulher ajudou a salvar 3
crianças que iriam ser enterradas vivas, adotou-as.
Termino dizendo qual é a missão da Atini, nossa organização. Atini significa
voz, porque entendemos que é hora de silenciar nossa voz, nossas ideologias,
nossos pensamentos e ouvir a voz das mulheres indígenas, o que elas têm a dizer.
Às vezes, o que elas dizem não é bem o que queremos ouvir. Começamos a ouvir
que as mulheres estavam sofrendo muito por causa do infanticídio, e elas querem
soluções para essa situação. Então, a Atini se chama Voz Pela Vida.
Nosso objetivo é erradicar o infanticídio nas comunidades indígenas,
promovendo a conscientização, fomentando a educação e dando apoio assistencial
às crianças em situação de risco. Temos que ajudar os pais, que precisam sair por
um momento da aldeia, e depois acompanhar a reinserção dessas crianças na
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comunidade, mas também desenvolver na aldeia programas que ajudem a
população a buscar soluções para esse problema, tão sério. Tudo tem que ser feito
com diálogo e muito respeito. A Atini não está fazendo isso sozinha, há em nosso
Conselho Deliberativo líderes indígenas, que ajudam a pensar. Alguns deles estão
hoje conosco. Agradeço a todos.
Com a última imagem, da Muwaji, concluo dizendo que ela é vulnerável, sim.
Ela é mulher, de uma comunidade indígena, não fala português. A criança é
triplamente vulnerável: é criança, é indígena, é deficiente. Mas Muwaji está tendo
coragem de desafiar sua própria cultura e de enfrentar a burocracia do mundo de
fora porque quer sua filha viva. Ela tem direito de fazer isso, como tantas outras
mulheres indígenas têm o direito de questionar sua própria tradição e propor
mudança.
Muito obrigada.
O SR. PRESIDENTE (Deputado Luiz Couto) - Obrigado à Profa. Márcia
Suzuki.
Concedo a palavra à Sra. Maíra de Paula Barreto, doutoranda em Direitos
Humanos pela Universidade de Salamanca.
A SRA. MAÍRA DE PAULA BARRETO - Exmo. Sr. Deputado Luiz Couto,
Presidente da Comissão de Direitos Humanos e Minorias da Câmara dos
Deputados, na pessoa de quem agradeço o honroso convite e cumprimento os
demais membros da Mesa e demais Deputados e Deputadas, senhoras e senhores,
inicialmente, destaco que a controvérsia relativismo cultural versus direitos humanos
universais só se dá no âmbito acadêmico, pois legalmente essa controvérsia já foi
resolvida. O Brasil é signatário dos principais tratados de direitos humanos, os quais
afirmam e reafirmam a universalidade e a supremacia dos direitos humanos. E a
cada ano, o Brasil vem consolidando ainda mais essa posição. Além do Decreto
5.051, de 2004, citado, que promulga a Convenção 169 da OIT e deixa clara a
prevalência dos direitos humanos quando há conflito com costumes, há 2 outros
decretos bastante recentes, entre outros, que também deixam clara essa posição.
Um é o Decreto 5.737, de 2006, o qual promulga a Convenção para a Salvaguarda
do Patrimônio Cultural Imaterial, que define que somente será levado em conta o
patrimônio cultural imaterial compatível com os instrumentos internacionais de
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direitos humanos. O outro é o Decreto 6.177, de 1º de agosto de 2007, o qual
promulga a Convenção sobre a Proteção e Promoção da Diversidade e Expressões
Culturais, que define como princípio diretor o respeito aos direitos humanos e
liberdades fundamentais, dizendo que a diversidade cultural somente poderá ser
protegida e promovida se estiverem garantidos os direitos humanos e as liberdades
fundamentais e que ninguém poderá invocar as disposições da convenção para
tentar ou limitar os direitos humanos garantidos pelo Direito Internacional.
Não se pode deixar de mencionar a própria Declaração das Nações Unidas
sobre os Direitos dos Povos Indígenas, aprovada pelo Conselho de Direitos
Humanos da ONU em 2006, a qual afirma que no exercício dos direitos enunciados
na declaração serão respeitados os direitos humanos de todos e que as disposições
da declaração deverão ser interpretadas de acordo com o respeito aos direitos
humanos.
A ONU tem lutado há quase 30 anos pelo fim das chamadas práticas
tradicionais nocivas, com especial ênfase às práticas cometidas contra mulheres e
crianças. Nesse rol foi destacada a mutilação genital feminina e o infanticídio
feminino, pois são 2 práticas que atentam contra os mais fundamentais dos direitos:
à vida e à integridade física.
Assim, no levantamento parcial que fiz a respeito dos documentos
internacionais que tratam do combate a práticas tradicionais nocivas, verifiquei que
existem 3 resoluções da Assembléia Geral da ONU específicas sobre o tema; uma
resolução da mesma Assembléia sobre os direitos da criança em geral, mas que
menciona o tema; um relatório do Secretário-Geral da ONU; 4 documentos da antiga
Comissão de Direitos Humanos da ONU; um documento do Alto Comissariado de
Direitos Humanos da ONU; 4 documentos de Innocent, do UNICEF, entre eles um
específico sobre mutilação genital feminina e outro sobre os direitos das crianças
indígenas; 25 documentos da Subcomissão de Promoção e Proteção dos Direitos
Humanos da ONU, entre eles 9 relatórios da Relatora Especial da ONU sobre
práticas tradicionais que afetam a saúde de mulheres e de crianças; 6 documentos
da Subcomissão para Prevenção de Discriminações e Proteção às Minorias, entre
os quais se encontra um plano de ação para a eliminação das práticas tradicionais
prejudiciais à saúde da mulher e da criança; e a própria Convenção sobre os Direitos
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da Criança, promulgada pelo Brasil, a qual estabelece que os estados-parte deverão
abolir as práticas tradicionais nocivas.
Em todos esses documentos mencionados, que gostaria de entregar à
Comissão, deixarei com o Exmo. Deputado, há recomendações expressas e
chamamentos aos estados para que erradiquem e condenem tais práticas. O Brasil,
obviamente como membro das Nações Unidas, incluiu-se como destinatário desses
chamamentos.
É interessante ressaltar um caso semelhante ao brasileiro, o do Estado de
Benin, na África. Lá, pratica-se o infanticídio quando nascem crianças deficientes,
enfeitiçadas ou amaldiçoadas, quando a mãe morreu no parto ou quando não
nasceu o primeiro dente da criança até os 8 meses. A criança pode ser morta
abandonada ou com a cabeça esmigalhada contra um tronco de árvore.
Como Benin reconheceu perante as Nações Unidas que persiste essa prática
em seu território, a ONU fez recomendações, por meio de seu Comitê de Direitos da
Criança e de seu Comitê de Direitos Humanos, para que Benin adotasse medidas,
inclusive legislativas, a fim de prevenir e acabar com o infanticídio, para proteger as
crianças e garantir seu direito à vida, à sobrevivência e ao desenvolvimento. Assim,
recomendou também a educação da comunidade em direitos da criança e a
provisão de suporte adequado às ONGs que trabalham nesse campo.
No relatório de segmento da Relatora Especial da ONU sobre práticas
tradicionais que afetam a saúde das mulheres e das crianças, o Brasil, no item 29,
negou que haja práticas tradicionais nocivas em seu território afetando a saúde de
mulheres e crianças. Por isso, a ONU não sabe que aqui existe, sim, a prática
tradicional nociva de infanticídio. Dessa maneira, a ONU não toma providências a
respeito. Se as Nações Unidas e o Sistema Interamericano de Proteção dos Direitos
Humanos tivessem conhecimento do que se passa no Brasil com relação ao
infanticídio, com certeza já teriam se manifestado com recomendações e
advertências, a fim de que o Brasil tome providências para abolir a prática.
De fato, as questões culturais são bastante delicadas e exigem estudos sobre
o tema, para que haja uma atuação estatal não danosa, muito diferente do que o
Brasil vem adotando historicamente. Porém, isso não justifica negar no cenário
internacional a ocorrência de conflitos nessa área em nosso País e, muito menos,
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atuar internamente de maneira permissiva com relação a essas práticas. Há que
dialogar intensamente, para que haja efetiva política estatal de defesa da vida das
crianças e preservação da integridade psíquica de seus pais, que, na maioria dos
casos que chegaram ao meu conhecimento, sofrem profundamente ao serem
compelidos a matar ou deixar matar seus filhos.
Obviamente, a questão da inimputabilidade penal do indígena deve ser levada
em conta, conforme já estabelece a legislação penal vigente. Desgraçadamente,
ainda hoje, no Direito Penal, fala-se que o indígena é comparável à pessoa com
desenvolvimento mental incompleto e, por isso, inimputável, dependendo de seu
grau de aculturação. Alguns poucos autores já tratam o tema de maneira mais
adequada, falando em erro de compreensão culturalmente condicionado, que resulta
também em exclusão da culpabilidade. Além disso, cabe salientar que o pai que
esqueceu o filho dentro do carro, o que levou à morte do bebê — fato recente —,
não foi nem será preso, pois se sabe que a dor que aquele pai sentiu com a morte
do filho é mais forte do que qualquer sanção que lhe possa ser aplicada. Os pais
indígenas que, muitas vezes, não querem cometer o ato, mas são pressionados pelo
seu meio, também carregarão consigo a dor da perda de um filho e da impotência
em mudar a situação. Porém, as demais pessoas que vivem ou trabalham nas áreas
indígenas, sabendo da possibilidade de infanticídio, se não agirem, seja
comunicando às autoridades competentes, seja impedindo pessoalmente a morte da
criança, responderão por omissão de socorro. Isso já é lei. Os bens jurídicos
tutelados no tipo penal omissão de socorro, art. 135 do Código Penal, são a vida e a
saúde da pessoa humana, seja ela indígena ou não. É ressaltada a necessidade de
proteção especial às crianças abandonadas ou pessoas em grave e iminente perigo.
Ou seja, as crianças indígenas, como todas as demais crianças em situação de
perigo, são tuteladas por meio desse tipo penal.
Portanto, o Projeto de Lei 1.057/07, proposto pelo ilustre Deputado Henrique
Afonso, o qual prevê a tipificação da omissão de socorro nesses casos de
infanticídio, vem apenas como reforço à legislação já vigente, um reforço muito
válido, por sinal, já que a maioria das pessoas que trabalha ou vive na área pensa,
equivocadamente, que está impedida por lei de atuar, uma lei que não existe,
obviamente, em casos de risco de infanticídio.
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A confusão advém de uma interpretação equivocada do art. 231 da
Constituição. Primeiramente, é necessário deixar muito claro que no Direito não
existe a menor dúvida a respeito da interpretação que se deve fazer da Constituição
Federal. Deve ser sistemática, ou seja, deve ser interpretada como um todo, e não
em artigos isoladamente, como se estivessem fora de todo o ordenamento jurídico
brasileiro. E mais, a Constituição Federal inteira deverá ser interpretada de acordo
com os direitos fundamentais estabelecidos nela própria. E o direito à vida é o direito
tutelado por excelência. Assim sendo, estabelece o art. 231 da Constituição Federal
que são reconhecidos aos indígenas seus usos, costumes, línguas, organização
social, etc. Entretanto, existe um limite a esse reconhecimento, a colisão com
direitos fundamentais. Aqui cabe chamar a atenção para o fato de que somente se
defende a limitação dessas tradições quando há colisão com direitos fundamentais.
Se não houver colisão, jamais se cogita a idéia de limitar tais tradições, pelo
contrário, devem ser fomentadas com veemência.
Portanto, a cultura não é o bem maior a ser tutelado, mas sim o ser humano,
no intuito de lhe propiciar bem-estar e minimizar seu sofrimento. Os direitos
humanos perdem completamente o seu sentido de existir se o ser humano for
retirado do centro do discurso e da práxis. Por conseguinte, a tolerância, no sentido
de aceitação, reconhecimento da legitimidade em relação à diversidade cultural,
deve ser norteada pelo respeito aos direitos humanos. Essa é a visão que propugna
a universalidade dos direitos humanos. Esses valem para todos, independentemente
de sua cultura, etnia, sexo, etc. O Estado brasileiro, como Estado democrático que
é, deve tutelar a vida das crianças que são potenciais vítimas de infanticídio
independentemente de sua etnia, ou melhor, deve dar uma atenção ainda mais
especial a elas por fazerem parte de uma minoria nacional.
Os direitos fundamentais delas são os mesmos que os de qualquer outra
criança brasileira. Além de detentoras de direitos fundamentais gerais, ainda lhes
assiste um rol de direitos fundamentais especiais pela sua condição de fragilidade.
Todas as crianças se encontram sob a proteção da Constituição, que, no seu art.
227, dispõe que é dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança o
direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à
cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária,
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além de colocá-la a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração,
violência, crueldade e opressão.
Da mesma maneira, o Estatuto da Criança e do Adolescente estabelece que a
criança e o adolescente têm direito à proteção, à vida e à saúde mediante a
efetivação de políticas sociais públicas que permitam o nascimento e o
desenvolvimento sadio e harmonioso em condições dignas de existência.
Também o Código Civil determina em seu art. 1º que toda pessoa, o que
inclui obviamente as crianças, é capaz de direitos e deveres na ordem civil. E o seu
art. 2º dispõe que o começo da personalidade civil se dá com o nascimento com
vida, deixando claro que os neonatos já são titulares de personalidade civil. Também
é de se destacar que há uma preocupação manifesta no Código Civil com os filhos,
havendo um título dedicado à proteção da pessoa dos filhos.
Por último, a Convenção sobre os Direitos da Criança, adotada em 1989 e
promulgada por meio do Decreto 99.710, de 1990, além de reconhecer o direito à
vida como inerente a toda criança, afirma a prevalência do direito à saúde da criança
no conflito com práticas tradicionais nocivas e a obrigação de que os estados-partes
repudiem tais práticas, ao dispor no seu art. 24, 3, o seguinte: “Os estados-partes
tomam todas as medidas eficazes e adequadas com vista a abolir as práticas
tradicionais prejudiciais à saúde das crianças”.
Demonstra-se, portanto, que os diplomas legais acima referidos garantem o
direito à vida como direito por excelência. A título de exemplo da omissão do Brasil
nesse tema, cito trecho de uma entrevista realizada com o Diretor Técnico do Distrito
Sanitário Ianomâmi, que afirma que o trabalho da FUNASA e das instituições
conveniadas não pretende interferir diretamente no infanticídio.
Diz o Diretor em sua entrevista:
“Mas nós já registramos uma demanda para uso de
métodos contraceptivos, e esse assunto está sendo
tratado com as lideranças das comunidades. Vejo como
um programa prioritário, porque é nosso dever oferecer a
elas os métodos de planejamento familiar como todo
brasileiro tem”.
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Aqui, cabe a pergunta: também não é seu dever proteger a vida das crianças
como um direito que todas as crianças brasileiras têm?
Obviamente, as tradições culturais são reconhecidas, mas não estão
legitimadas a justificar eugenias ou qualquer outra forma de violação de direitos
humanos. Acredito que uma alternativa mais imediata para resguardar a vida dessas
crianças seria uma política de incentivo à adoção, por meio do diálogo, quando a
criança não puder, de modo algum, ser reintegrada a sua família ou ao grupo.
Como, todavia, são em grande parte recém-nascidos, sua identidade ainda não se
encontra formada. Logo, se o grupo rejeita um recém-nascido, essa criança não
sofrerá danos em sua identidade, não se sentirá morto para aquele grupo.
Certamente, poderá formar sua identidade em outra sociedade, que o acolha e o
aceite.
Mas, se a família desejar continuar com a criança, o Estado deve dar todo o
suporte para que esta consiga resistir às pressões do grupo. Quando o grupo não
deseja rejeitar a criança, mas sim buscar tratamento, nos casos, por exemplo, de
crianças deficientes, obviamente a atuação do Governo deve guiar-se pelo princípio
fundamental de respeito à vida e à dignidade humana, o qual permeia todo o
ordenamento jurídico.
Agora, se depois de conhecer os meios de evitar prática de infanticídio, um
grupo não demonstrar vontade de tentar salvar as crianças, creio que a alternativa
da adoção seja a mais adequada, pois garante o direito à vida que a criança possui.
É certo que se trata de uma situação imediata e não definitiva, pois a questão
demanda estudos e cuidado no tratamento. Por outro lado, é urgente que se tutele a
vida dessas crianças, que muitas vezes não podem esperar enquanto os estudos
científicos não estejam prontos.
Existe um princípio, tanto no Direito Internacional como no Direito interno, que
se chama Princípio do Melhor Interesse da Criança, que informa não somente o
Direito de Família, mas todo o ordenamento jurídico brasileiro.
Nesta exposição, utilizou-se o termo infanticídio, apesar de juridicamente não
ser esse o termo correto. Trata-se, na verdade, de homicídio de crianças indígenas,
e não infanticídio, pois para o Direito Penal é necessário que a mãe aja no estado
puerperal para que se caracterize o infanticídio.
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No caso dos indígenas, o motivo é cultural, e não biológico, porém, como na
mídia e na sociedade o termo infanticídio se consolidou quando se fala no assunto,
também resolvi utilizar esse termo, apesar da imprecisão jurídica.
Concluindo, é absolutamente inconcebível, portanto, que o Brasil tenha todo
um arcabouço legal, adotando a universalidade dos direitos humanos, e na prática
atue com base no relativismo cultural, ou melhor, se omita com base no relativismo
cultural. Se o Brasil quiser, de fato, ter uma atuação relativista, então, que denuncie
todos os tratados de direitos humanos dos quais é signatário e revogue suas leis e
direitos fundamentais, para que seja coerente. Do contrário, que tenha, então, uma
atuação compatível com sua legislação vigente, a qual propugna o direito à vida, por
excelência, de todas as crianças, inclusive as indígenas.
Muito obrigado.
O SR. PRESIDENTE (Deputado Luiz Couto) - Obrigado, Sra. Maíra de Paula
Barreto.
Verificamos que as 2 primeiras expositoras excederam o tempo de 10 minutos
concedido, a média foi de 15 minutos. Solicitamos aos próximos expositores que se
limitem ao tempo que lhes for concedido.
Combinamos com o Deputado Henrique que, se houver votação nominal no
plenário, vamos nos revezar para votar. Daremos prosseguimento a esta reunião, a
fim de debatermos mais esse tema, que é importante.
Concedo a palavra ao Sr. Márcio Augusto Freitas Meira, Presidente da
Fundação Nacional do Índio, FUNAI, por 15 minutos, improrrogáveis.
O SR. MÁRCIO AUGUSTO FREITAS MEIRA - Exmo. Deputado Luiz Couto,
Presidente da Comissão de Direitos Humanos e Minorias, prometo que vou falar até
menos do que 10 minutos.
Cumprimento a Sra. Maíra e a Profa. Márcia pelas exposições.
Deputado, em primeiro lugar, destaco o que já foi dito pelas 2 expositoras que
me antecederam: este é um tema extremamente complexo, difícil de ser abordado,
tanto pelo Direito quanto pela Antropologia, pela Sociologia, enfim, por todos os que
se dedicam à causa indígena. Não é tema simples, portanto, exige cuidado, como já
foi dito pela Maíra, delicadeza de tratamento.
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Por ser tema que diz respeito diretamente à vida, ele é complexo.
Referimo-nos aos direitos humanos. Aí, há uma série de situações contraditórias,
porque às vezes os direitos humanos em jogo são contraditórios. A própria
legislação revela isso, não só o Direito Internacional como também o Direito
brasileiro, a nossa Constituição. Ou seja, assim como existe o direito de todos à
vida, existe também o direito à diferença entre culturas, povos, civilizações. O limite
entre esses 2 campos importantes dos direitos humanos persegue a nós, ocidentais,
há mais de 500 anos.
Ao ouvir as exposições e analisar o contexto em que estamos, lembrei-me de
um debate muito famoso ocorrido em 1550 e que para mim não foi concluído até
hoje, pois estamos aqui discutindo o mesmo tema. O debate aconteceu na Espanha,
mais precisamente em Valladolid, num convento dominicano, se não me engano. O
Papa, que, na época, tinha muito mais poder do que os papas de hoje, delegou a
seu representante oficial que fosse o juiz de uma discussão muito séria, que
continua até hoje. Dois opositores, o filósofo chamado Sepúlveda e o dominicano
chamado Bartolomeu de Las Casas debatiam o seguinte tema: os ameríndios são
ou não humanos?
Esse grande debate de 1550 era essencial, porque dele resultaria ou não a
legitimação da conquista espanhola e portuguesa das Américas, inclusive com a
escravidão e a violência. Talvez o maior ato de desrespeito aos direitos humanos da
História, o maior genocídio da História, tenha sido o massacre que os povos
indígenas sofreram nas Américas nos últimos 500 anos.
O referido debate era exatamente sobre esse tema e durou 3 dias. O
interessante é que o representante do Papa decidiu pela causa de Bartolomeu de
Las Casas, dizendo que os índios tinham alma e eram humanos, portanto, não
podiam ser escravizados. No entanto, a escravidão continua até hoje, há muitos
casos de escravidão de indígenas no Brasil e em outros lugares das Américas.
Mas o detalhe é que era preciso encontrar uma solução para a vida prática da
expansão colonial. A solução foi que os negros poderiam ser escravizados, porque
esses não tinham alma, não eram humanos completos.
Deputado, desde que eu assumi a Presidência da FUNAI, há 5 meses, vejo o
quanto essa discussão é atual. Todos os dias deparo-me com esse debate na
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FUNAI. É triste dizer isso, porque esse tema já deveria ter sido superado há tempos.
Talvez isso esteja por trás até do que discutimos aqui hoje, porque tratamos de um
assunto que considero extremamente delicado para ser definido de forma
precipitada.
Minha postura, como representante do Estado brasileiro, que é laico, é que
devemos ter cuidado no tratamento dessa questão, temos que analisar caso a caso.
No Brasil, temos uma situação da qual os povos indígenas aqui representados
falarão melhor do que eu. Aliás, abro parêntese para dizer que estou aqui falando
bobamente, no bom sentido, porque quem tem condições efetivas, éticas e
adequadas de falar sobre esse tema são as mulheres indígenas. Fecho o parêntese,
Deputado, e digo que temos no Brasil 222 povos indígenas, cada um diferente do
outro. Além disso, cada povo tem uma história diferente de relacionamento com o
Ocidente. Há povos que há 300 anos adotaram o catolicismo. Poderemos até dizer
que é um catolicismo híbrido, uma mistura com elementos da religiosidade indígena.
Por conta de toda essa complexidade, que envolve a garantia do que está
previsto na legislação brasileira e na legislação internacional ratificada pelo Brasil,
há uma contradição entre 2 níveis de direitos humanos: o direito à vida, que
precisamos abordar com seriedade, caso a caso, analisando qual seria a melhor
solução para cada caso, e o direito à diferença, que não podemos perder de vista
jamais, porque cada civilização tem sua própria noção do que significam os direitos
humanos. Esses direitos incluem o direito de um povo ter a sua própria concepção a
respeito dos direitos humanos. Mas de onde vem e aonde vão esses limites, nessa
confluência entre civilizações — Ocidente e civilizações indígenas —, é um tema
que realmente requer muito esforço de reflexão, de cuidado, de dedicação, de
aprofundamento.
Acho que, no momento deste debate, é muito precipitado fazer qualquer
prejulgamento de quem quer que seja, seja indígena, seja não-indígena, afeto a
esse tipo de questão.
Há vários servidores da FUNAI aqui. Eles têm uma longa experiência de
contato com povos indígenas e sabem, no dia-a-dia das aldeias, o quanto é
complexo esse tema. Trata-se de servidores públicos sérios, que conduzem essa
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relação com os povos indígenas de forma muito cuidadosa. Portanto, não podem ser
precipitadamente julgados.
Acho que este momento não deve ser, nem é, a repetição daquele momento
de 1550, da disputa entre Bartolomeu de Las Casas e Sepúlveda. Não estamos aqui
julgando se os povos indígenas são ou não humanos, se têm ou não alma. Não
estamos fazendo sequer algum julgamento ainda sobre esse tema.
Era o que eu tinha a dizer.
Deputado, espero ter cumprido os 10 minutos.
O SR. PRESIDENTE (Deputado Luiz Couto) - Obrigado.
Passo a palavra à Sra. Valéria, representante do Fórum em Defesa dos
Direitos Indígenas.
A SRA. VALÉRIA PAYÊ - (Trecho em língua indígena.)
Boa tarde a todo o mundo. Quero começar minha fala destacando a questão
da diferença a que temos direito em nosso País. Infelizmente, preciso traduzir para
vocês o que quero dizer aqui. Se me fosse permitido, eu poderia começar falando,
na minha própria língua, a respeito dessa diferença que o nosso País precisa
começar a conhecer.
Vou relatar um pouco minha experiência como indígena e como mulher. E
dizer também para as mulheres indígenas, as parentas, sobre o caso relatado aqui.
Acho que a parenta deve estar aí com a criança. Essa temática realmente é
complicada. Nós, povos indígenas, começamos a discutir isso em nossas
comunidades.
Quero contar a história do meu povo, da minha região. Venho do
Tumucumaque, no norte do Pará, onde há 4 povos indígenas — Tiriyó, Katxuyana,
Aparai e Wayana. Há 25 anos, ocorria com o meu povo casos como os que aqui
estamos chamando de infanticídio. Várias outras mulheres estão puxando esse
caso. O meu povo, os meus avós, as minhas tias puxaram essa discussão dentro da
comunidade. Preocupa-me muito tratar isso como se todos os povos indígenas
praticassem esse ato no dia-a-dia. Foi destacada aqui a experiência suruwahá. É um
povo semi-isolado, assim como os ianomâmis.
Quem convive lá dentro, no dia-a-dia? Será que eles também não têm direito
a essa diferença? Não têm direito de conduzir a situação, para não cairmos nesse
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processo de tentar igualar todo mundo e acabar com as diferenças a que temos
direito, como foi bem observado pelo Presidente? Até da própria concepção da
diferença do direito humano. Precisamos analisar esse aspecto. Isso está dito na
Constituição. Precisamos debater o assunto. Será que essa visão que estamos
discutindo aqui é a mais certa? Essa imposição da visão do ocidente é a mais
correta? Pergunto para todos que estão na platéia: é isso mesmo? Queremos
colocar todo mundo no mesmo patamar de igualdade? Será que a concepção mais
certa é a que construímos sob a visão do ocidente? Eu acho que está na hora de
começarmos refletir sobre tudo isso.
Há 30 anos, acontecia isso com o meu povo. Não mais acontece, por força
das nossas mulheres. Resolvemos, internamente. Não houve necessidade de
imposições externas para isso ser feito. Não foi preciso uma lei do Congresso
Nacional do Brasil para o povo Tiriyó, Katxuyana, Aparai e Wayana, até porque
dizemos que a cultura não é parada. Em certos momentos, para os povos indígenas,
na visão externa, ela tem de ser parada, tem de ser mantida daquele jeito, senão
não é mais índio. Por outro lado, quando se quer atropelar o processo, construímos
isso assim do jeito que está. Isso realmente me preocupa um pouco na condição de
mulher.
Parabéns para as mulheres, porque elas estão conseguindo se impor. O
Estado brasileiro tem de respeitar, sim, o nosso direito à diferença e a nossa
legislação. Precisamos começar a discutir a questão do pluralismo jurídico, de
respeito ao que se decide, se encaminha, sem impor, sem atropelar processos.
Nesse sentido, temos de tomar cuidado para não generalizar, é o que todos os
povos fazem.
O trabalho já está sendo feito internamente. Para nós, povos indígenas,
criança vale muito. Nós a preservamos e a queremos muito. Para nós, as crianças
têm todos os direitos. Jamais pensem que uma criança que saiu da aldeia para se
tratar vai ser recusada, que a comunidade vai condená-la. Não existe isso. Ao
contrário, as crianças que são retiradas dali muitas vezes têm dificuldade de se
adaptar à realidade; não é porque o povo não as queira mais, porque o povo as está
excluindo. A partir do momento que elas voltam, não correm perigo. Começo a
perceber os temores de que a criança corre sérios riscos. Conforme as experiências
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que vivemos nas nossas comunidades, isso não é realidade. Quando a criança
volta, ela é amada, é respeitada. Acompanhamos vários povos entre nós. Eu não
estou falando dos outros, estou falando de mim, como índia, do meu povo, da
realidade lá do tumucumaque, de onde vim.
Para começo de discussão, era isso que eu queria passar para vocês.
Parabéns, mulheres, parentas, que estão conduzindo esse processo. O ideal
seria continuarmos provocando, discutindo internamente, porque é assim que
encaminhamos a situação e a resolvemos. Os casos aqui citados como exemplo são
vitórias. De quem? De nós, mulheres indígenas, dentro das aldeias. Quem, dos
nossos parentes, vai tirar isso de nós, se você, como mãe segura, está defendendo?
Você está mudando a história. Como já falei, a cultura é dinâmica, não pode ser só
dos povos indígenas, apesar de os externos sempre quererem que ela seja estática,
parada. Não. Ela passa por um processo a ser construído. Ela não precisa dessa
interferência brutal externa, porque acontece no processo do dia-a-dia.
Obrigada. (Palmas.)
O SR. PRESIDENTE (Deputado Luiz Couto) - Muito obrigado, Sra. Valéria,
que utilizou apenas 7 minutos.
Passaremos agora a palavra aos Parlamentares inscritos que desejarem fazer
indagações, pedidos de esclarecimentos ou mesmo considerações. Peço aos Srs.
Parlamentares que respeitem o tempo regimental de 3 minutos para que possamos
formar a segunda Mesa, quando todos novamente terão oportunidade de se
manifestar. A partir do momento que ouvirmos a outra Mesa, abriremos também
possibilidade de outras intervenções.
Passo a palavra ao Deputado Henrique Afonso, autor do requerimento.
O SR. DEPUTADO HENRIQUE AFONSO - Sr. Presidente, acabaram de me
informar que há algumas crianças sobreviventes do infanticídio. Sei que não faz
parte da tradição da Casa, mas gostaria que rapidamente essas crianças entrassem.
Elas vão apenas entregar uma cartilha para cada um componentes da Mesa.
Gostaria que V.Exa. me concedesse essa gentileza para que esse ato simbólico
ficasse registrado nesta audiência.
O SR. PRESIDENTE (Deputado Luiz Couto) - Pois não. (Pausa.)
Boa-tarde. Uma salva de palmas para vocês. (Palmas.)
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O SR. DEPUTADO HENRIQUE AFONSO - Criança é criança. Ponto.
Obrigado. Destaco a Muwaji. O projeto de lei que elaboramos na Câmara dos
Deputados a homenageia pela coragem que teve nessa luta em defesa das crianças
indígenas, com a Iganani. Não sei onde está a Kamiru. Aqui está a Hakani, essa
criança que estava falando. O Amalé representa todas as crianças que foram
desenterradas. Essa criança chegou a ser enterrada. Graças a Deus que alguém
avisou a kamiru, essa mulher que desenterrou essa criança, que foi realmente vítima
de todo o código cultural. Agradeço a presença das mães indígenas. Esta é a filha
da Márcia sobre quem ela relatou, a Hakani, que significa sorriso. Muito obrigado.
Agora vocês podem levar as crianças. (Palmas.)
Sr. Presidente, tenho muitas coisas para abordar neste debate. Mas terei a
inteira responsabilidade de destacar alguns pontos porque esta audiência é muito
propícia para este debate.
Em primeira instância, quero agradecer ao Sr. Márcio Meira. A Câmara dos
Deputados se sente muito lisonjeada por sua presença, porque já tivemos
momentos de debates como este e outros de esclarecimento no sentido de a FUNAI
nos ajudar em algumas reflexões, mas sempre o Presidente da Fundação Nacional
do Índio se recusava a comparecer. Parabenizo-o por sua presença porque isso
enriquece o debate. Agradeço também à Maíra, à Márcia, à Valéria e aos demais
que ainda irão participar da segunda rodada que teremos.
O nosso objetivo como Deputado é quebrar o silêncio que paira sobre o
debate do infanticídio.
Gostei muito quando a doutoranda Maíra observou que o debate acerca dos
direitos humanos perde o sentido quando o ser humano não é o centro de
prioridade. Isso de certa maneira contrasta efetivamente com as observações do Dr.
Márcio. Se cada povo deve ter seus direitos humanos assegurados pela livre
manifestação de suas diferenças culturais, deixo já uma pergunta para o Dr. Márcio:
como ficam os direitos universais que estão incluídos no direito à vida? Uma das
cláusulas pétreas da Constituição Federal é o direito à vida. Não consigo conceber a
Declaração Universal dos Direitos Humanos sem ter absolutamente a vida como um
direito universal. É um direito que se estende aos ciganos, aos quilombolas, aos
povos indígenas, às culturas orientais e ocidentais. Para mim a vida está acima de
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qualquer coisa. Isso é uma base, um alicerce para quem realmente quer assegurar
os direitos humanos.
Então, se eu entendo que hoje em algumas culturas esse direito está sendo
ameaçado, precisamos observar que ou tem algo errado na Constituição Federal ou
tem algo errado nessa cultura.
Nesse ponto, Valéria, a sua intervenção foi extremamente interessante. Você
observa algumas questões que entram em conflito inclusive com o pensamento
hegemônico do século XXI que está dentro da FUNAI, desculpe, Dr. Márcio, mas é
verdade, e está no Congresso Nacional e no Poder Judiciário, a saber, o relativismo
cultural. Relativismo, hoje, é um pensamento que orienta a prática, a práxis, da vida
das pessoas.
Se nós entendemos a cultura humana como a cultura dialética, que tudo se
relaciona com tudo, onde ela está em constante mudança... Você mesma observou
que a cultura não é imutável, pelo contrário, obedece a todo um processo de
mutabilidade. Esse projeto de lei, ainda que eu tenha recebido uma moção de
repúdio da Marcha das Margaridas — embora considere que aquela moção de
repúdio cometeu um grande equívoco, eu a respeito pois estamos num país
democrático, pluralista —, não criminaliza as mães indígenas. Quem elaborou
aquela moção não leu o meu projeto.
A Dra. Maíra enfatizou a importância de se punir qualquer pessoa que esteja
ali e saiba que uma mãe índia, por efeito ou de um ato religioso ou por um ato
cultural, vai levar uma criança ao sacrifício. Como foi observado, a aldeia jamais vai
impedir que uma criança receba um tratamento, também acredito nisso. Da mesma
forma em que há uma predisposição da FUNAI, da FUNASA e daqueles que são
adeptos do relativismo cultural que querem ver as aldeias indígenas imutáveis,
estáticas e acham que dessa maneira vai se preservar a cultura, não vemos esses
mesmos agentes se preocuparem com a invasão da Internet nas aldeias indígenas.
E aqui fala uma pessoa que mora na densidade da selva amazônica, no Município
de Cruzeiro do Sul. Conheço os katukinas, os poyanawas, de onde retirei uma índia
com quem me casei; conheço os ashaninkas e outras etnias.
Tenho absoluta convicção de que, pelos avanços da interação, do que a Dra.
Keila chama de relação intersubjetiva entre as aldeias, uma foi crescendo com a
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outra. Hoje os índios têm congressos e seminários, jamais entraria na minha cabeça,
pelos avanços que nossos índios têm tido no que eu chamaria de movimento... O
Estado brasileiro sempre cometeu um grande equívoco de entender os índios como
incompetentes e infantis, e não são incompetentes nem infantis.
Aliás, uma das lutas, e concebo isso como importante, é para garantir
autonomia e a preservação das suas tradições e da sua cultura. Penso que o
Presidente Lula foi extremamente inteligente na questão da OIT — Organização
Internacional do Trabalho, quando garantiu, em 2005, no Dia do Índio, que o Brasil
precisa respeitar as tradições e culturas dos nossos índios desde que isso não
venha, absolutamente, ferir os direitos humanos.
Esse nosso projeto não trata apenas do homicídio de crianças, o infanticídio,
trata também dos maus-tratos, das crianças vítimas de todas as formas de violência,
crianças indígenas e não-indígenas.
Ora, sabemos que em algumas aldeias, quando uma criança deficiente nasce
e a mãe se recusa a sacrificá-la, deixá-la na floresta, envenená-la ou enterrá-la,
essa criança vai crescer sendo rejeitada e discriminada, inclusive vítima de
maus-tratos. Quem vai ter coragem de dizer isso? Isso acontece nas aldeias
indígenas ou em algumas aldeias?
Temos tido cuidado, Valéria, ao darmos entrevistas, pois temos para mais de
200 etnias neste País, e me parece que, ainda não temos dados precisos, não
chega nem a 15 as etnias que ainda têm essa prática. Negar nós não podemos. A
ONU precisa saber que existe esse problema para nos ajudar a resolvê-lo.
Para encerrar, Sr. Presidente, não é criminalizando as mães índias, e esse
meu projeto não as criminaliza absolutamente, mas é garantindo efetivamente que o
Estado, por meio de políticas públicas, possa assegurar, acima de tudo, onde houver
uma aldeia com medo da escassez do ecossistema, de que estará ali auxiliando.
Quero citar até, Sr. Presidente, o caso de Ilhéus, penso que a Valéria deve ter
conhecimento, onde foi encaminhada para o Estado a preocupação com 53
pessoas, a maioria crianças, com desnutrição por conta das condições climáticas
daquela aldeia. No prazo de 5 dias, 5 chegaram ao óbito. Estamos falando não só
dos maus-tratos, não só do assassinato de crianças por conta da religiosidade de
determinada aldeia, mas também dos maus-tratos pelas péssimas condições de
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saúde das nossas crianças indígenas, que, muitas delas, ou morrem de subnutrição,
ou crescem sem as mínimas condições. E temos comprovado isso.
Sabemos que estão, de certa maneira, querendo criar um senso comum de
que o Deputado Henrique Afonso, com esse projeto, é um agente que quer colocar
as mulheres indígenas na cadeia. Se isso ocorrer vou ter que colocar a minha
esposa, porque ela é índia e não posso fazer isso. Há 20 anos luto em defesa dos
povos indígenas e tenho dado esse testemunho durante 5 anos.
Essa questão do infanticídio é porque sabemos que, em média, 200 crianças,
quando não são enterradas vivas são, infelizmente, jogadas na floresta. E esse tipo
de prática, assim como não é aceitável pelos não-índios, também não é para os
índios. Consideramos os índios seres humanos e eles podem receber os benefícios
da lei que assegura o direito fundamental.
E não é só isso, sabemos que muitas crianças estão desaparecidas neste
País. E no âmbito desta Comissão tem se tratado disso. Crianças com destino
desconhecido, crianças que são vítimas inclusive do incesto e que, às vezes, uma
pessoa sabe que está acontecendo, que um pai está abusando de uma criança de 9,
8, 6 anos e não tem coragem de denunciar.
É preciso... Seria redundante, porque o Estatuto da Criança e do Adolescente
já reza sobre isso. Graças a Deus temos ordem jurídica, nacional e internacional,
que defende a preservação dos direitos fundamentais dos nossos índios,
principalmente de suas tradições culturais. Se, nesses últimos 3 meses, a ONU ficou
sabendo que no Brasil existe infanticídio, não foi por causa da reportagem da revista
Veja, já que a reportagem feita pela revista depois que entrei com o pedido — o que
fiz em fevereiro — para debater esse tema. Inclusive, o tema já havia sido debatido
no âmbito da Comissão da Amazônia.
Eu só quero sonhar com uma sociedade de índios e de não-índios vivendo
em um lugar que lhes dê o direito fundamental à vida. Para mim, os índios não são
infantis nem incompetentes, são seres humanos dotados de todas as faculdades,
principalmente de sensibilidade. Imaginem uma criança jogada no meio da floresta e
ali permanecer sujeita às formigas, às feras e às cobras até o dia em que perde a
vida?
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Se temos o conhecimento desses fatos no País, temos, efetivamente, que ter
a coragem, do ponto de vista político e antropológico, de mudarmos essa realidade
por meio do diálogo entre culturas. Se a Internet está entrando nas aldeias ao
mesmo tempo em que se corta o cordão umbilical e se mutila o órgão genital
feminino, é possível que a gente possa mudar esse tipo de prática.
Segundo um grande filósofo, cujo nome não me recordo agora, toda cultura
tem manifestação de luz e manifestação de sombra. Manifestação de luz está ligada
à vida, e a vida é indiscutível. Por isso que o direito inalienável á vida é uma cláusula
pétrea da nossa Constituição. Manifestação de sombra está ligada à morte.
Podemos fazer alguma coisa. Ainda que não tenhamos o direito de invadir a
cultura de uma sociedade indígena, queremos ajudar com esse debate. Se
pudermos evitar que uma criança ameaçada de ir para a cova seja soterrada viva,
não custa ao Estado brasileiro criar uma política de incentivo à adoção ou a abrigos.
O projeto quer salvar a vida dessas crianças, respeitando o direito da mãe
índia, que não tem culpa por pensar segundo sua cultura. Não queremos criminalizar
a mãe ou o pajé ou o cacique, queremos salvar a vida das crianças.
Muito obrigado, Sr. Presidente. (Palmas.)
O SR. PRESIDENTE (Deputado Luiz Couto) - Pedimos aos Parlamentares
que sejam cumpridores do tempo regimental de 3 minutos nas suas considerações
ou pedidos de esclarecimentos. Esta Mesa ainda irá responder às respostas e temos
outra Mesa, com 5 expositores, que também precisará de tempo para responder às
indagações.
Com a palavra a Deputada Solange Almeida.
A SRA. DEPUTADA SOLANGE ALMEIDA - Sr. Presidente, Deputado Luiz
Couto, senhores membros da Mesa, Sras. e Srs. Deputados, parabenizo o Deputado
Henrique Afonso, que trouxe à luz esse assunto por meio de projeto de lei; às
mulheres indígenas, que há 30 anos ou mais vêm lutando para acabar com essa
cultura, que não é benéfica para os povos indígenas nem para ninguém; e à Valéria
por suas considerações.
Sua exposição foi muito boa, muito interessante. Gostaríamos muito de não
precisar votar nesta Casa projetos de leis em defesa do direito à vida, à saúde, à
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educação, à habitação, porque tudo isso já está na Constituição, mas, infelizmente,
temos de votar projetos relacionados a esses temas o tempo todo.
Se, no Brasil, nós, mulheres, estamos defendendo que as mulheres de países
africanos que, por uma cultura com a qual não concordamos, não têm direito ao
prazer, temos também que defender o direito dessas crianças à vida. Fiquei muito
sensibilizada, inclusive suas palavras são perfeitas.
Acho que vocês, há 30 anos, reconheceram que essa cultura não podia
continuar, que estava à beira de uma barbárie. Vocês não concordaram, porque
perceberam essa questão da vida, e aquilo é parte de vocês, pela valorização que
vocês dão à criança. Como o Deputado analisou, não podemos dizer que hoje a
cultura do índio está intocada. Ela não está, o índio já mudou muito.
Você expôs perfeitamente que a cultura é uma coisa dinâmica, é uma coisa
de integração, de aproximação, ela vai mudando. Agora, há coisas que não
podemos aceitar. Não podemos aceitar que há 440 anos se discutiu se o índio era
humano ou não. Se ele é humano, ele tem direitos humanos. Brigo até pelos direitos
dos animais, que dirá pelos direitos humanos.
Dr. Márcio, gostei do que o senhor expôs, a defesa do seu pessoal, dos
antropólogos, dos funcionários da FUNAI. Não estamos aqui tirando nenhum direito
desses funcionários. Agora, o senhor dizer que há 440 anos se discute se o índio é
humano ou não, acho que isso foi decidido há 440 anos. Então, brigamos para
defender que as pessoas possam ter suas diferenças, inclusive crianças não
perfeitas. Não queremos um mundo de perfeitos. Temos que defender também a
diferença dessas crianças.
Fico triste de não poder continuar nesta reunião, mas com muitas coisas na
Casa é impossível permanecer. Na Frente Parlamentar de Saúde vamos discutir um
ponto muito importante, que é a Emenda Constitucional nº 29, portanto, preciso me
ausentar.
Parabenizo todos vocês que compareceram, inclusive os representantes da
FUNAI, porque acho que é se fazendo presente que vamos conseguir levar esse
debate. E é por intermédio de pessoas como você, Valéria, de mulheres guerreiras,
que estão reconhecendo seus direitos dentro de seu grupo, que vamos conseguir
levar essa mensagem para as tribos que ainda praticam essa selvageria, essa
CÂMARA DOS DEPUTADOS - DETAQ COM REDAÇÃO FINALNome: Comissão de Direitos Humanos e MinoriasNúmero: 1449/07 Data: 5/9/2007
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barbárie, a fim de que isso não mais aconteça e vivamos realmente em um País
onde o respeito à vida seja fundamental e seja parte integrante de nossa sociedade,
qualquer que seja a sua diferença.
Parabéns, Deputado Henrique Afonso. Parabéns aos convidados. Acho que
deveríamos fazer uma moção de aplauso, porque foi trazido à tona um tabu, uma
coisa que precisei ser Deputada, com 46 anos de idade, para descobrir que isso
existia em nosso Brasil. Sou do Sudeste, do Rio de Janeiro, e precisei me tornar
Deputada para descobrir na Câmara que acontecia isso, antes da publicidade que o
assunto está dando, mas é impressionante como ficamos distantes neste País tão
grande.
Obrigada.
O SR. PRESIDENTE (Deputado Luiz Couto) - Com a palavra o Deputado
Joseph Bandeira, PT da Bahia.
O SR. DEPUTADO JOSEPH BANDEIRA - Sr. Presidente, Sras. e Srs.
Parlamentares, senhoras e senhores convidados, estamos todos estarrecidos. O
que me parece que está acontecendo, Deputado Henrique Afonso, é que há um
vazio institucional que tem de ser urgentemente preenchido, para que se possa
compatibilizar as culturas de modo a defendermos a vida. Também sou contra
qualquer tipo de violência contra a vida. Tenho coragem de dizer que sou contra o
aborto em tese e tenho a coragem de dizer que sou contra, e já não mais em tese, a
pena de morte.
Estamos vendo que ainda não conseguimos civilizar parte da população
brasileira, no sentido de que esses valores, afinal, triunfem. Não estou fazendo
nenhum tipo de reparo às tradições antigas, o índio é nosso irmão e ele também
precisa às vezes se proteger.
Todos, que estudamos a colonização feita a ferro e fogo, principalmente nas
Américas, sabemos — há um depoimento histórico que não pode jamais ser calado
dos padres espanhóis que acompanharam a implantação do processo — que
quando os índios, e depois os negros, não mais achavam nenhum caminho que lhes
permitissem a sobrevivência, eles se matavam. Eles se ateavam fogo, às vezes,
com crianças nos braços.
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Quer me parecer que, diante do que está acontecendo, aqui, em uma
avaliação de longe, mas vou procurar me inteirar em profundidade das questões, é
preciso urgentemente que o nosso Governo, no qual tanto acreditamos, o Governo
da esperança, o Governo que defendemos, esteja mais presente, sem embargos —
já está presente, principalmente pelo exemplo que o Dr. Márcio Meira está nos
dando. A tradição nesta Casa é que quando a FUNAI era convocada ela não
comparecia e o senhor comparece, se expõe e discute conosco.
Também recebi, por parte de Amaury Melgaço, representante da comunidade
Tupinambá em Olivença, na Bahia, esse documento, Deputado Henrique Afonso,
dos 53 meninos e meninas que estão morrendo por falta de cuidados. Temos de
analisar todos os aspectos da problemática para viabilizarmos — esta Comissão dá
o exemplo hoje, a requerimento de V.Exa., a quem parabenizo, e vai contar sempre
com o nosso apoio —, uma forma de atender todas essas demandas sociais que, na
verdade, como V.Exa. muito bem disse, e a Deputada que o secundou, são atos de
defesa intransigente da vida contra qualquer tipo de sombra da morte,
principalmente em torno de nossas crianças.
Parabéns a V.Exa. e parabéns a todos.
O SR. PRESIDENTE (Deputado Luiz Couto) - Obrigado, Deputado Joseph
Bandeira.
Com a palavra o Deputado Eduardo Barbosa, do PSDB de Minas Gerais.
O SR. DEPUTADO EDUARDO BARBOSA - Obrigado, Sr. Presidente.
Em primeiro lugar, cumprimento o Deputado Henrique Afonso pela grandeza
de não só se inteirar do problema, mas de propor à Comissão esta reunião para
aprofundar o exame do assunto e talvez até ser um aliado na condução da
articulação de um diálogo mais estreito com as comunidades indígenas com relação
ao tema, já que de alguma forma toda essa questão incomoda, e todos nós,
enquanto brasileiros, sempre refletimos como devemos nos posicionar diante de tais
fatos.
O Deputado Henrique Afonso fez um desabafo quanto à forma como, às
vezes, são tratadas as questões aqui apresentadas. Precisamos reforçar a idéia de
que todos que aqui estão, todos os convidados, são pessoas dignas, inclusive estão
fazendo defesas dignas. Se temos alguns conflitos conceituais, isso não tira a
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dignidade da preocupação das pessoas em relação a temas como esses. Quem
dera que o Congresso pudesse ter esse tipo de preocupação e discussão. Acho que
nós, inclusive da área de direitos humanos, devemos ensinar mais a todos o respeito
às divergências de idéias, porque as intenções são as mais nobres possíveis. Vejo,
às vezes, que um fala, pensa diferente, e há uma hostilidade à pessoa ou à fala de
alguém, como se fossem inimigos. Ninguém aqui é inimigo dessas idéias, muito pelo
contrário.
Quero cumprimentar todos vocês. Foram brilhantes. Mas quero fazer 2
perguntas que poderiam ser respondidas, uma, pelo Dr. Márcio, e outra, pela
Valéria.
Valéria, entendi a sua clara defesa da determinação do próprio povo indígena,
daquilo que avalia ser importante, que a evolução cultural também se dá em cada
aldeia, mas, ao mesmo tempo, você manifestou que o seu povo inclusive conseguiu
ultrapassar essa prática. Você pertence também a um foro, o foro dos direitos
indígenas. Esse tipo de discussão, como se dá dentro do foro, como vocês
influenciam outros povos em relação a esse debate, a essa discussão? Isso faz
parte de uma temática, de uma programação desse foro nesses avanços, às vezes,
culturais que algumas tribos e alguns povos já conquistaram?
Ao mesmo tempo, dirijo-me ao Dr. Márcio, em relação a esse tipo de
abordagem.
A Márcia, por exemplo, nos apresentou o problema e nós temos também um
relatório no qual consta um apelo da própria índia no sentido de um socorro, de
ajuda, de apoio. Como se dá esse apoio? Como ele transpõe, às vezes, o apoio
individual a essa mulher aflita que não sabe como buscar caminhos? Como isso é
feito pela FUNAI em relação à civilização em que essa índia pertence? Fica apenas
no apoio individualizado ou tem outro tipo de apoio a essa pessoa?
Sabemos que algumas pessoas têm mais coragem de enfrentar situações
cristalizadas na sua cultura, enquanto outras não têm a mesma força. Isso acontece
também na nossa civilização. Há pessoas que aceitam passivamente alguns
processos, porque não têm condições de enfrenta-los. Outras não. Eu acredito que a
mesma coisa aconteça com as pessoas de uma tribo. Algumas precisam de algum
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tipo de sustentação maior. E como isso é feito com o Fórum? Existe uma articulação
para essa abordagem?
Eu gostaria, de forma pragmática, saber como é trabalhada essa questão ou
se ela não é trabalhada, se se omite desse debate.
O SR. PRESIDENTE (Deputado Luiz Couto) - Com a palavra o Deputado
Adão Pretto, do PT do Rio Grande do Sul.
O SR. DEPUTADO ADÃO PRETTO - Sr. Presidente, prezados membros da
Mesa, peço desculpas por não estar aqui desde o início, pois tinha outro
compromisso, mas ainda hoje, em pronunciamento que fiz, dizia que Pedro Álvares
Cabral não descobriu o Brasil; ele invadiu o Brasil, porque, quando chegou, os índios
já estavam aqui. Então, desde aquela época o Brasil entrou em conflito com os
nossos índios. Este Brasil era todo dos índios. Hoje, eles têm um naquinho de terra
aqui, acolá, e ainda tem gente querendo tomar deles esse restinho de terra.
Existem 8 projetos de decretos legislativos tentando anular decreto
governamental, que demarca terras indígenas e quilombolas.
Nós somos defensores dos índios, de seus costumes, de suas tradições, de
seus direitos. Agora, isso que está sendo debatido aqui, sinceramente, eu não sabia
que ainda existia essa prática.
Nós temos que saber lidar com essa questão tendo em vista que o índio não
age por mal. Faz por tradição, por religiosidade, e nós temos que ter cautela para
lidar com essa prática.
Há pessoas inteligentes, como a Valéria e tantos outros. Ela também admite
que esse costume não é viável, inclusive falou claramente que entre sua gente essa
prática já foi abolida. Então, nós temos que procurar uma maneira de eliminá-la
definitivamente, porque é insuportável até entre os próprios indígenas. Mas, como
eu disse, não podemos tratar de uma prática cultural com violência. Temos que ir
com jeito, com calma, para tentar convencer os indígenas.
O SR. PRESIDENTE (Deputado Luiz Couto) - Muito obrigado, Deputado Adão
Pretto.
Com a palavra o Deputado Praciano, do PT do Amazonas. S.Exa. dispõe de
até 3 minutos.
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O SR. DEPUTADO PRACIANO - Boa-tarde. Companheiros, eu até me
arrependi de ter-me inscrito. Eu me sinto tão analfabeto, tão ignorante nesse
assunto que, se o companheiro Márcio Meira me permite usar a mesma expressão,
vou falar alguns minutinhos bobamente, mais com o coração, com emoção do que
qualquer outra coisa.
Ser ou não antropólogo, ou sociólogo, pouco me ajudaria. Também não quero
ferir a sensibilidade de ninguém. Por favor, me entendam somente como um grande
ponto de interrogação, que eu consegui ao chegar a esta sala.
A impressão que eu tenho é que a companheira Márcia chegou a uma aldeia.
Não é índia, não nasceu na aldeia. Passou lá 20 anos e levou para aquela aldeia
todos os códigos do branco, da nossa civilização. Levou seus sentimentos; não
eram deles. Essa é a impressão que eu tenho. Levou códigos, levou padrões de
comportamento, influenciou inclusive a cultura dos índios.
A minoria são eles. Nós somos maioria. O direito vem do maior para o menor,
e ela conseguiu, lá dentro, colocar esse direito que é nosso, que é da maioria.
Desculpe-me, mas a ONU não vale para aquela aldeia. A Declaração dos Direitos
Humanos, que não contou com nenhuma representação indígena, em 1945, não
vale para índio. Constituição não vale para índio, na minha opinião.
Há uma colisão e um ponto de interseção. O homem branco vai à aldeia,
invade a aldeia, tira a terra do índio, diminui seus recursos, como aconteceu com os
Krenhakarore do Tocantins. Em 5 anos, demos espelho, facão, cesta básica, demos
para eles gonorréia e um monte de doença e, em 5 anos, 90% estavam mortos, não
por infanticídio, mas por nossa cultura, nossa forma de produzir, nossa forma de
invadir.
Existe um momento em que nós temos um ponto de interseção entre a cultura
do branco e a do índio. Nesse momento, nessa interseção, ainda cabe a
Constituição. No momento em que se desaldeia, em que se torna o cidadão menos
índio, no momento em que existe convivência naquela colisão eu preciso criar
regras. Aí pode caber a ONU.
Possuelo, um indigenista — não sei quem gosta ou não dele, porque eu leio
bastante, mas não sou especialista —, ao sair da FUNAI, disse que o fim do índio é
quando o branco chega e que seria bom que nós não os procurássemos.
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Esse povo sobre o qual a senhora fala, já semicontatado, desculpe-me, eu me
senti agredido em meu coração quando a senhora, ao mesmo tempo em que mostra
o índio lá na aldeia, de repente, passa para um apartamento confortável, com ar
condicionado, bercinho e roupinhas. Eu achei agressivo aquele negócio. Eu não sei
qual é a resposta a ser dada.
De repente, a gente arranja uma solução. Infanticídio entre os índios é um
negócio que me dói, dói a todos nós, é duro. Vamos levar para lá a polícia para
fiscalizar. Não. Não precisa polícia. Psicólogos para a mãe. Não. Não vamos levar
psicólogos não. Vamos levar assistente social. E aí vai o SUS, vai Internet, vai
telefone.
Nós temos é um problema muito sério que eu não sei se resolveremos
facilmente. Nós estamos lutando pelo índio talvez para evitar o irreversível, menos
dor, porque os tratores na Amazônia, enquanto nós estamos aqui, já acabaram com
4 milhões de metros quadrados de floresta. São 2 milhões de metros por hora. Neste
tempo em que estamos aqui, nós já perdemos 4 milhões de metros quadrados.
O índio está perdendo espaço, está perdendo recurso, está perdendo a
condição de vida. Ele virá aqui. A nossa grande função, desculpe-me, eu desconfio
que é isso, é mitigar a dor dessa transição. Ou, então, radicalmente, dizermos que
essa solução é mandar a polícia para lá, porque no momento em que se define um
direito, temos que executá-lo. Qual é o direito de não matar o índio? Mandando a
polícia, mandando o juiz. E para aqueles que não foram contatados? Vamos verificar
se lá também não tem, porque é um direito definido pela ONU, pela Constituição.
Vou dar aqui a minha opinião. Temos que mitigar essa dor. Invadir menos.
Adiar essa transição dura e manter o máximo a cultura do índio, embora com esse
link, com esse liame com a sociedade, mas o máximo da cultura, o máximo de suas
histórias, de seus conhecimentos milenares. Nós, brancos, devemos, ao máximo,
começar a brigar para não invadir as suas terras. Vamos definir as terras que estão
por definir, vamos deixa-los, ao máximo, isolados. O minério que está lá é mais
importante do que o índio, que está em cima?
Então, companheiros, o que falta realmente é uma coisa. Dizia um
companheiro que foi muito famoso no Brasil, nessa área indigenista, que é o criador
da UnB, Darcy Ribeiro. Este País foi uma máquina de matar índio, não só por conta
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de criança, mas por um monte de coisa. Acho que devemos nos sensibilizar dessa
forma. Vou dar só um exemplo. A senhora trouxe 3, 4, 5, 10, 30 exemplos de
infanticídio, mas tem hoje etnias, o companheiro Márcio Meira sabe disso, que só
tem 6 elementos, 6 fêmeas, perdemos o macho, perdemos uma etnia. O branco
acabou com a etnia e essa etnia não se pode mais reproduzir, perdemos uma
língua, perdemos uma história, perdemos conhecimentos milenares.
Temos que admitir o índio como o maior patrimônio que temos na Amazônia,
e muito cuidado com essa história de colocar a ONU, na minha opinião, nas aldeias
indígenas.
Muito obrigado. (Palmas.)
O SR. PRESIDENTE (Deputado Luiz Couto) - O Dr. Márcio tem
compromissos. Então, teremos a segunda Mesa. Como as falas dos Parlamentares
se prolongaram por mais tempo e há 2 Deputadas que chegaram após...
Deputada Perpétua Almeida, V.Exa. pode esperar para a segunda Mesa?
(Pausa.)
Com a palavra a Deputada Perpétua Almeida.
A SRA. DEPUTADA PERPÉTUA ALMEIDA - Muito obrigada, Sr. Presidente.
Cumprimento nossa Mesa e agradeço ao Deputado Luiz Couto pela consideração.
Cumprimento o Dr. Márcio pela condução e a preocupação com que a FUNAI
vem tocando, e tentando consertar nossos próprios erros.
Na verdade, fiz uma leitura rápida do projeto e ouvi comentários de um lado e
de outro. O Deputado Henrique Afonso, autor do projeto, é meu colega do Acre, meu
companheiro da Frente Popular, mas tenho todas as reservas da forma como as
coisas estão sendo aqui apresentadas. Temos de ter muito cuidado na vida em
relação a tudo o que vamos abordar, expor, para não deixarmos vir à tona, de forma
mais forte, o nosso lado apaixonante de vermos o mundo, ou as coisas de acordo
com nossa visão, seja ela religiosa ou não. E acho que alguns debates neste País
estão sendo feito de forma um pouco mais com a visão religiosa, de nossa
tendência, do que na verdade com a preocupação com o ser humano ou coisas
assim.
CÂMARA DOS DEPUTADOS - DETAQ COM REDAÇÃO FINALNome: Comissão de Direitos Humanos e MinoriasNúmero: 1449/07 Data: 5/9/2007
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Assisti ao debate sobre o aborto, quando o Papa esteve no Brasil. Para mim,
foi muito constrangedor ver algumas mulheres que sofreram na vida, viveram a
violência do estupro serem expostas da forma como foi feito naquela época.
Tratar essa questão indígena preocupa-me também quando é tratada dessa
forma. No Acre, vive um cidadão por quem tenho muita consideração, chamado
Antônio Alves, do Partido dos Trabalhadores, a quem chamamos carinhosamente de
Toinho. Não vou conseguir repetir sua frase, mas lembro-me de que em um dos
debates acalorados sobre a questão indígena o Toinho Alves disse o seguinte: Olha,
rapaz, a gente tem que ter coragem, vergonha e a capacidade de reconhecer que se
os povos indígenas precisarem de 100 anos para se adaptarem à realidade da
nossa vida, eles vão ter os 100 anos que eles querem, que eles precisam, que eles
merecem. Ele chamava atenção para a necessidade de nós, não-índios, termos a
paciência necessária de compreender a vivência do que acontece dentro das
comunidades. Acho que qualquer imposição do Estado dentro de uma comunidade
indígena passa a ser repressora também.
Quando dizemos que quem toma conhecimento ou quem sabe de casos de
infanticídio... Acho que quando tratamos dessa forma, também estamos indo lá e
fazendo uma imposição, na minha opinião, desnecessária da lei.
Acho que a maioria das comunidades indígenas hoje no Brasil não vivem
mais esse problema, porque eles conseguiram ultrapassar os anos, o tempo, e
conseguiram ter aquela compreensão que gostaríamos que nesse sentido tivessem,
mas foi o tempo e a vivência deles que disse isso.
Portanto, qualquer intervenção do Estado nas comunidades indígenas com
relação às suas culturas, com relação ao seu modo de viver, na minha opinião, é
uma intervenção desnecessária e desrespeitosa.
Nós já causamos mal demais com relação às terras indígenas. Vemos
comunidades indígenas hoje que parecem mais um acampamento de sem-terra dos
mais desorganizados, porque nós, de forma brutal, intervimos ali. Eu já vi a Igreja
católica pedindo perdão pelo que foi feito com os povos indígenas e eu não gostaria
de ver outras comunidades religiosas terem que fazer a mesma coisa, ou, então, se
tiverem que fazer mais à frente, seja reconhecendo seus erros.
CÂMARA DOS DEPUTADOS - DETAQ COM REDAÇÃO FINALNome: Comissão de Direitos Humanos e MinoriasNúmero: 1449/07 Data: 5/9/2007
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Precisamos ter o cuidado necessário para não aculturar os índios da forma
como achamos que tem que ser. Deixem que eles decidam. Deixem que o tempo e
a vivência deles respondam por si. Eles já estão dando demonstração disso.
Eu só queria fazer esse apelo aqui sobre a nossa intervenção. O Estado
brasileiro não pode intervir nas comunidades indígenas. E a Constituição, inclusive,
lhes garante isso.
O SR. PRESIDENTE (Deputado Luiz Couto) - Muito obrigado, Deputada
Perpétua Almeida. V.Exa. citou a questão do perdão. O perdão exige,
primeiramente, o reconhecimento, depois, confissão dos erros e, em seguida,
reparação, que pode ser reparação política, reparação ética. São elementos
importantes na vida que temos de trabalhar.
A SRA. DEPUTADA PERPÉTUA ALMEIDA - Sr. Presidente, eu achei
importante o perdão pedido pela Igreja católica, porque houve o reconhecimento dos
erros cometidos, de maneira que sirva de exemplo para que não cometamos os
mesmos erros.
O SR. PRESIDENTE (Deputado Luiz Couto) - Claro, claro. E ela não fez
ainda a etapa seguinte. Ainda falta alguma coisa. Foi um meio pedido de perdão.
Deveria se aprofundar mais, porque em todos os momentos temos que pedir perdão
e reconhecer. Foi importante V.Exa. apresentar essa questão do perdão.
Com a palavra o Dr. Márcio Augusto Freitas Meira, para responder às
perguntas e também para fazer sua despedida desta Mesa.
O SR. MÁRCIO AUGUSTO FREITAS MEIRA - Primeiramente, quero pedir
desculpas, porque a agenda do Presidente da FUNAI é bastante intensa e já estou
com um batalhão, digamos assim, à espera na FUNAI.
Quero dizer a todos os Deputados, sobretudo aos membros da Comissão de
Direitos Humanos, que a FUNAI, enquanto eu estiver na sua Presidência, jamais se
negará a vir aqui fazer qualquer debate. Não tenho nenhuma dificuldade em debater,
pois o debate faz parte da nossa conquista árdua, democrática. Quero deixar bem
claro isso e dizer que a minha postura, na Presidência, tem sido inclusive de debater
lá na FUNAI. Tenho recebido amplamente todas as bancadas e posições. Faço isso
tranqüilamente porque tenho posição, e serenidade para defender minhas idéias e
posições. Isso faz parte da nossa prática democrática.
CÂMARA DOS DEPUTADOS - DETAQ COM REDAÇÃO FINALNome: Comissão de Direitos Humanos e MinoriasNúmero: 1449/07 Data: 5/9/2007
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Inicialmente, quero prestar alguns esclarecimentos quanto ao que eu falei e
em relação ao que foi dito pela Maíra, pela Profa. Márcia e pela Valéria.
No que se refere ao mérito do que está sendo discutido aqui, faço
inteiramente minhas as palavras da Valéria. Eu não vou entrar no mérito, porque o
que a Valéria falou, para mim, está falado. Ela, não só na sua posição de mulher,
mas de indígena, tem melhores condições de falar sobre o tema do que qualquer um
de nós, pelo menos quanto a mim.
Quero ater-me principalmente à forma, ao conteúdo. O Deputado autor da
proposta identificou um contraste entre o que disse a Profa. Maíra e o que eu disse.
De fato, existe um contraste, mas, na minha interpretação, ele é muito mais um
contraste de preocupações e complementaridades do que propriamente um
contraste de oposição. Por quê? Porque eu, como ela, defendi aqui claramente o
direito à vida. Na minha opinião, não está em questão aqui a dúvida sobre o direito à
vida como um dos direitos humanos fundamentais. O que está em questão aqui —
quero esclarecer exatamente esse ponto — é onde está o limite. Poderemos
localizar os limites entre outro direito humano fundamental, que é o direito à
diferença, e esse outro direito fundamental, que é o direito à vida. Esse ponto está
presente neste debate. Foi por isso que me remeti ao debate de 1550.
Quando eu falei do debate de 1550 — é pena que a Deputada Solange não
esteja mais aqui —, eu não me estava referindo à discussão sobre se os índios são
ou não humanos. O que eu disse é que o debate de 1550, entre Bartolomeu de Las
Casas e Sepúlveda, sobre se os índios eram ou não humanos e se tinham almas, na
verdade, era muito mais sobre o direito à diferença. A questão de fundo no debate
de 1550 era se os ameríndios têm direito à diferença. Os ameríndios do México que
eram o ponto central do debate praticavam um sacrifício ritual em que arrancavam o
coração das pessoas naquelas pirâmides maravilhosas construídas no México
indígena. Do ponto de vista da ética e da moral ocidental, isso era um crime
absurdo. No debate, o que Bartolomeu de Las Casas dizia era que os povos
indígenas das Américas são povos que, como todos os outros, são humanos, têm
alma, mas com um elemento central, que é o direito à diferença entre eles e a
sociedade ocidental.
CÂMARA DOS DEPUTADOS - DETAQ COM REDAÇÃO FINALNome: Comissão de Direitos Humanos e MinoriasNúmero: 1449/07 Data: 5/9/2007
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Quando me referi a esse episódio, eu estava dizendo que o debate de hoje,
nesta Comissão, continua sendo sobre o direito à diferença. Ainda hoje, a fala de
cada um dos Deputados reflete um pouco desse drama humano para entender essa
diferença. Não é fácil, como não é fácil também para os povos indígenas
entenderem a nossa diferença. Eles têm muita dificuldade em entender as nossas
próprias diferenças ocidentais.
Na minha fala, chamei atenção para o fato de que temos de ter muito cuidado
ao abordar esse tema. Precisamos ouvir mais as próprias comunidades indígenas e
saber delas o que elas têm a dizer sobre isso. Talvez, elas tenham algo a nos dizer,
sob o ponto de vista da ética e da moral indígena, sobre as nossas práticas
ocidentais. Há muitas delas que consideramos absolutamente triviais. Do ponto de
vista da ética ou moral caxiuanã, para homenagear Valéria que é caxiuanã, algumas
das nossas práticas são absolutamente contraditórias à compreensão que elas têm
da vida, do mundo. A nossa legislação é muito clara em relação a todos os pontos
que foram levantados aqui e, como representante do Estado brasileiro, tenho de
cumprir absolutamente as regras. Há uma contradição na nossa legislação, que é
fruto da nossa própria contradição, de dificuldade de compreender esse direito à
diferença.
Dito isso, gostaria de responder ao Deputado Eduardo que fez uma pergunta
muito específica sobre como a FUNAI trata essa questão. Estou há 5 meses na
presidência dessa instituição e estou falando na condição de presidente e, portanto,
traduzindo uma opinião mais do ponto de vista institucional, obviamente, do que a
minha opinião pessoal. Obviamente, expresso opinião do ponto de vista institucional
e não pessoal.
A tradição brasileira que vem não só dos 40 anos da FUNAI, mas também
dos 100 anos do SPI, primeiro órgão criado para coordenar a política indígena no
Brasil, pautou-se, primeiramente, por uma visão ainda muito freqüente no Brasil,
inclusive na Lei nº 6.001, de que os índios são incapazes, são crianças e, às vezes,
são até considerados meio estúpidos, sem alma, sem lei, sem rei, como se dizia no
período colonial.
Quando o Marechal Rondon dizia que tínhamos de morrer, se preciso fosse,
mas matar nunca, demonstrava um espírito extremamente generoso, inovador, com
CÂMARA DOS DEPUTADOS - DETAQ COM REDAÇÃO FINALNome: Comissão de Direitos Humanos e MinoriasNúmero: 1449/07 Data: 5/9/2007
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os índios, mas carregava visão fortemente evolucionista que vinha das teorias de
Charles Darwin aplicadas no entendimento das sociedades humanas.
Na época da Revolução Industrial, considerava-se, dentro da escala de
evolução da humanidade, que a Europa era o ponto mais evoluído, sobretudo a
Inglaterra. Nessa escala, os índios brasileiros, americanos e outros povos africanos
eram vistos como vivendo na aurora da humanidade.
Essa visão evolucionista pautou a política indianista brasileira desde então e
foi rompida — isso é muito importante — pela Constituição brasileira de 1988. Ela
rompeu com essa concepção e estabeleceu que os indígenas são cidadãos
brasileiros que têm alguns direitos a mais, sobretudo os originários, em função de
estarem aqui antes do Estado brasileiro ser criado. Entre esses direitos, está o da
diferença. É aí que está a contradição. Na prática, no dia-a-dia, a FUNAI vive ainda
uma contradição interna, ou seja, ela própria, muitas vezes, vacila entre uma relação
assistencialista, protetora, no sentido de encarar aqueles povos ainda sob a ótica
evolucionista e uma posição contemporânea estabelecida pela Constituição de
1988.
Esse é um momento de transição, em que estamos construindo uma relação
de respeito às diferenças, considerando a diferença como algo que não é sinônimo
de inferioridade.
O SR. DEPUTADO EDUARDO BARBOSA - Dr. Márcio, a minha pergunta é
sobre a mulher que, em sofrimento, pede ajuda. Ela está sofrendo emocionalmente.
Não tem forças para contrapor um princípio de que discorda. É dentro desse
aspecto.
O SR. MÁRCIO AUGUSTO FREITAS MEIRA - Deputado, para responder a
sua pergunta, tive de fazer esse preâmbulo, porque, no momento, em que estamos
num campo, numa aldeia, numa comunidade indígena, esse tratamento tem de
considerar os pressupostos que mencionei antes. Aí é que a situação se complica. É
por isso que chamo a atenção para a complexidade do tema. A questão não pode
ser resolvida assim. É preciso muito tempo para uma reflexão porque cada povo
indígena no Brasil — são 222 povos — tem uma história diferente de relação com o
Ocidente. Temos, hoje, na FUNAI, 65 registros oficiais de povos que ainda não
fizeram contato direto com o Ocidente. Desses, 25 já foram comprovados. Sabemos
CÂMARA DOS DEPUTADOS - DETAQ COM REDAÇÃO FINALNome: Comissão de Direitos Humanos e MinoriasNúmero: 1449/07 Data: 5/9/2007
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que eles estão na floresta, inclusive, nos Estados do Acre, do Amazonas, do Mato
Grosso e do Pará. A política pública do Estado brasileiro, hoje, visa proteger esses
povos. Antigamente, na época de Rondon, fazia-se a tal atração. Havia frentes para
atrair esses povos. Hoje o Estado tem uma política de frente de proteção
etnoambiental, uma atitude de respeito com aquele povo. Se quiser fazer contato
conosco tudo bem; se não, deixamos ele vivendo em sua aldeia em paz e com
tranqüilidade, de acordo com as possibilidades de garantias desses direitos.
Estou citando esse exemplo porque há esses 25 povos e os pataxós da
Bahia, os funiôs, que há 400 e tantos anos têm contato com o Ocidente. São
situações muito distintas. Cada caso é diferente. Por isso reitero minha
preocupação, não no mérito — a Valéria disse que estou contemplado —, mas na
forma. O nosso Congresso Nacional, especialmente a Comissão de Direitos
Humanos, tem a função tão nobre de defender esses direitos, de tratar esse tema
com muito cuidado e cautela.
Estarei sempre, como Presidente da FUNAI, disposto ao debate franco sobre
esse tema. Sugiro continuarmos essa discussão, que é longa, e convidarmos para
dela participar as entidades indígenas, que certamente têm mais a dizer do que nós.
Mais uma vez peço desculpas aos membros da Mesa porque realmente vou
ter de ausentar-me por causa da minha agenda.
O SR. PRESIDENTE (Deputado Luiz Couto) - Obrigado, Dr. Márcio.
Lembro aos Srs. Parlamentares que a Ordem do Dia foi iniciada há 18
minutos. Pedimos à assessoria que nos avise quando houver votação nominal.
Concedo a palavra à Sra. Maíra de Paula Barreto para as considerações
finais.
A SRA. MAÍRA DE PAULA BARRETO - Mais uma vez, agradeço ao Sr.
Presidente por esta oportunidade. É um debate fundamental, são 500 anos de
silêncio a respeito desse tema, um tabu.
Como o Dr. Márcio comentou, é muito delicada a questão, precisa de
reflexão.
O arcabouço legal já existe, a proteção à vida da criança já está aí. Trata-se
agora da implementação, como será operacionalizada. Claro que com muito diálogo,
muita conversa, é óbvio. Ninguém aqui deve jamais pensar em interferir com
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violência e por meios escusos, utilizando-se do discurso dos direitos humanos para
realizar interferências violentas. Ficou muito claro que só se fala em interferências
em caso de violação de direitos fundamentais, como a vida e a integridade física.
Quando há colisão entre direitos fundamentais, o que no Direito está muito claro,
prevalece o direito à vida e à integridade física. Juridicamente isso já está resolvido,
está muito claro. Ressalto que esses direitos fundamentais devem prevalecer tanto
no Direito nacional como no internacional.
Como foi dito, há dificuldade de se aceitar resoluções de fora. O ordenamento
jurídico interno já acatou essas resoluções pelo fato de pertencer a organizações
internacionais. O Brasil faz parte do sistema interamericano de direitos humanos e
do sistema da ONU. Faz parte — repito. Não dá para mudar. Se quiser mudar tem
de denunciar os tratados de direitos humanos. A ONU e o sistema interamericano
estão envolvidos, sim, nas nossas questões internas. É uma comunidade global,
universal. Hoje, fala-se nos direitos humanos como preocupação mundial.
Se uma criança morre aqui, o fato vira preocupação de pessoas na
Alemanha, na Itália, na África, assim como nós nos preocupamos com uma mulher
sendo mutilada genitalmente na África. Essas são preocupações globais, universais.
É aí que entra a universalidade dos direitos humanos. Toda criança, ou melhor, todo
ser humano tem direitos fundamentais. Sem dúvida alguma, essa é a lei no Brasil.
Como disse no início da exposição, o relativismo cultural acontece somente
no âmbito acadêmico. No âmbito legal, jurídico, isso já está resolvido. Os direitos
humanos são universais, o que significa que o direito à vida e o direito à integridade
física não dependem da cultura em que a criança nasceu. É assim com relação à
mulher e com os indígenas. Índio não ter direitos humanos porque é índio é um
absurdo em termos jurídicos. Perante a lei, todos têm direitos, que não podem ser
condicionados à etnia.
Nossa Constituição assegura a todos os direitos fundamentais. Se
analisarmos o art. 5º, veremos que ele é fabuloso. E nos países que não têm
constituição? As pessoas que neles nascem não terão seus direitos protegidos?
Ninguém se preocupa com elas? Por isso existem os direitos humanos universais,
tanto no âmbito das Nações Unidas como no interno.
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Por último, a nobre Deputada Perpétua Almeida comentou a respeito da
omissão de socorro de que trata o projeto de lei do Deputado Henrique Afonso. Isso
já é lei no Brasil. O art. 135 do Código Penal não exclui crianças indígenas nem
negros nem asiáticos. Ali, nada diz que, nesses casos, a omissão de socorro não
será cobrada. O termo “omissão de socorro” é válido para todos os casos. A
omissão de socorro configura-se no fato de ninguém cuidar da criança
independentemente de ela ser indígena ou não. Assim é a questão legalmente. Não
há nenhum termo excludente que sirva para eximir a responsabilidade de quem
nega prestar socorro a crianças em perigo, sejam elas indígenas ou não. Portanto,
quero deixar claro que, independente do projeto de lei do Deputado Henrique
Afonso, já existe na legislação essa previsão.
Era o que tinha a dizer e, novamente, agradeço pela oportunidade.
O SR. PRESIDENTE (Deputado Luiz Couto) - Muito obrigado, Sra. Maíra.
Concedo a palavra a Sra. Márcia Suzuki.
A SRA. MÁRCIA SUZUKI - Gostaria de comentar o que o Exmo. Deputado
mencionou: que ficou preocupado e que o coração doeu muito ao saber que durante
20 anos moramos junto a um povo semi-isolado.
Na verdade, preocupa-me o fato de ele, além do que sentiu, ter dito também
que a Constituição Federal e a ONU não legislam sobre o índio.
O SR. DEPUTADO PRACIANO - Desculpe-me, mas a senhora está
interpretando erroneamente minhas palavras.
A SRA. MÁRCIA SUZUKI - Eu anotei o que V.Exa. disse: a Constituição não
vale para o índio e a ONU.
O SR. DEPUTADO PRACIANO - Se a senhora quiser, eu posso traduzir.
A SRA. MÁRCIA SUZUKI - Desculpe-me se entendi errado, mas foi o
que ouvi e o que me deixou preocupada.
Participam desta reunião, muitos indígenas que, infelizmente, não podem se
manifestar. Eles acreditam que contam com a proteção da lei, sobretudo da
Constituição Federal.
Há uma índia isolada, a Muwaji Suruwahá, que está lutando pela vida da filha
e outros índios aculturados que também estão aqui para lutar pela vida de seus
filhos. Talvez seja interessante os senhores conversarem com eles para saber o que
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mais dói no coração de uma mãe, como a Karô (?), por exemplo, que fala português,
que perdeu o bebê há 1 ano — seu marido Aisanain Paltu Kamaiwrá, um dos
expositores, falará na próxima Mesa. Eles tiveram gêmeos e uma das crianças foi
enterrada viva, contra a vontade deles. Paltu intercedeu junto a seu pai para que
poupasse pelo menos 1 dos bebês. Ele mesmo fala da grande dor no coração por
causa desse fato. Ele procurou a enfermeira antes e lhe disse: “Olha, acho que
minha esposa está grávida de gêmeos”. Ficou muito preocupado porque na cultura
dele os gêmeos não são aceitos. Pediu ajuda à enfermeira que, infelizmente, não o
levou a sério e disse: “Não deve ser gêmeos”. Mandou a mulher de volta para a
casa. O parto aconteceu de madrugada. Os avós, então, por causa da cultura, iam
enterrar os 2 filhos. Ele intercedeu, lutou, conseguiu 1 criança, e está com ela aqui.
Mas afirma que toda vez que pegam o pequeno no colo, lembram do outro que está
morto. Queriam ter os 2 com eles. Quero saber qual o coração que dói mais.
Termino comentando o que a Dra. Maíra muito bem já expôs. Não preciso
acrescentar nada à fala dela. Mas o respeito à diferença é algo muito importante. Eu
e o meu marido podemos falar a respeito disso porque moramos 20 anos no meio de
um povo. Tivemos de aprender uma língua, um código e uma cultura diferentes.
Tivemos de andar como eles, vestir o que eles vestiam, comer o que eles comiam.
Aprendemos muito com eles. Aprendemos padrões de cultura e de conduta muito
superiores aos nossos. O padrão de liderança do povo suruwahá é muito bonito.
Poderia falar a respeito disso. O modelo de liderança suruwahaia é fantástico.
Aprendi muita coisa boa. Sei o que é respeito à diferença porque vivi isso.
Por outro lado, sabemos que existe uma hierarquia natural entre os direitos.
Como falar em defender o direito à diferença cultural ou à educação se nem o direito
à vida, que é primordial, está garantido ainda! Isso é uma hierarquia natural de
direitos. O direito à vida é universal, inviolável, não depende da procedência étnica.
Isso seria um absurdo. Então todo brasileiro tem direito à vida. Respeito
profundamente as culturas indígenas, a luta que os povos indígenas têm travado
pelo respeito à diferença, à diversidade cultural. Enriquece muito o nosso País, a
nossa Nação, quando reconhecemos e aprendemos com os povos indígenas.
Como o pessoal da Valéria já teve a oportunidade de discutir internamente o
infanticídio e conseguiu encontrar solução para garantir o direito à vida das crianças
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da comunidade dela, há outras comunidades mais isoladas ou mais vulneráveis,
onde mulheres tentam garantir seu direito e não conseguem. Como conseqüência
sofrem.
O respeito à diferença não anula nem enfraquece, de jeito algum, o direito à
vida das crianças indígenas. Toda criança tem direito à vida e todo mundo tem
direito à diversidade cultural e o respeito a ela é muito importante.
Agradeço.
O SR. PRESIDENTE (Deputado Luiz Couto) - Muito obrigado, Profa. Márcia.
O SR. DEPUTADO PRACIANO - Sr. Presidente, pela ordem.
O SR. PRESIDENTE (Deputado Luiz Couto) - Fará uso da palavra, ainda, a
Sra. Valéria.
O SR. DEPUTADO PRACIANO - Gostaria que V.Exa. me concedesse a
palavra após a fala da Sra. Valéria. Não vou insistir nisso. Quero apenas dar uma
pequena explicação. Pode ser que o tema seja outro, e a fala dela foi em cima da
minha.
O SR. PRESIDENTE (Deputado Luiz Couto) - Vamos prosseguir. Depois
concederei a palavra a V.Exa.
O SR. DEPUTADO PRACIANO - Sem problema algum, Sr. Presidente.
O SR. PRESIDENTE (Deputado Luiz Couto) - Com a palavra a Sra. Valéria
Payê para responder a pergunta e fazer sua consideração final.
A SRA. VALÉRIA PAYÊ - Quero destacar, mais uma vez, que estamos em
processo de discussão. Espero que isso não fique apenas aqui, mas que chegue às
comunidades e aldeias. Sou apenas uma parte dos 222 povos existentes no Brasil.
Tenho relatado a experiência que vivi. Afirmei que o meu povo passou, sim, Márcia,
por esse processo. Mas encaminhamos o problema internamente. Não foi preciso
interferência externa para o meu povo enxergar. É preciso dar oportunidade para
cada um respeitar o tempo que os povos indígenas têm. Não atropelar o processo. É
o que desejo reforçar.
Responderei à pergunta do Deputado Eduardo, como representante do FDDI,
Fórum de Defesa dos Direitos Indígenas. Como o Fórum pode influenciar nesse
processo? Sou indígena. Não quero influenciar. Não quero interferir no processo de
discussão dos outros povos indígenas. Do mesmo jeito que os outros povos
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respeitam o meu povo, quero respeitá-los. A filosofia do Fórum de Defesa dos
Direitos Indígenas é não interferir; não influenciar. À proporção que as discussões
vão surgindo, elas precisam ser propostas pelas comunidades indígenas.
(Intervenção em língua indígena.)
Obrigada. (Palmas.)
O SR. PRESIDENTE (Deputado Luiz Couto) - Concedo a palavra ao Sr.
Deputado Praciano para um esclarecimento.
O SR. DEPUTADO PRACIANO - Professora Márcia, há um conflito. Creio
que é um campo difícil de trabalhar. Quero apenas traduzir diferente do que a
senhora deduziu. Lamento que tenhamos de entender que a Declaração dos Direitos
Humanos da ONU seja aplicável a uma aldeia não contatada. Lamento que a
Constituição deste País seja colocada numa aldeia não contatada. Vou dar um
exemplo grosseiro do que quero dizer. Vamos colocar no meio de uma aldeia
indígena uma televisão com todos os canais. Será a destruição: é a propriedade
privada que aparece, a questão da produção, vão exigir creche, polícia, justiça. Será
o fim.
Lamento toda sua boa vontade de morar lá. Mas acho que houve um conflito
entre a sua civilização, que é a minha, e a que a senhora encontrou. A senhora
levou uma carga, um arquivo de códigos, de leis, de regras. No momento em que
chegou lá, sentiu-se altamente agredida, como estou agredido em ver o que a
senhora ponderou nesta reunião. É duro para a nossa civilização ver menino com a
cabeça colocada no toco, criança ser enterrada viva. Isso agride a todos nós. Mas o
que está acontecendo? Um choque de cultura. A senhora trouxe essa cultura para
cá.
A Valéria disse que não querem a Constituição, o homem, o externo lá dentro
e que eles resolvem os problemas deles. Há momentos em que o ponto de
intercessão entre o índio e nós brancos é tão grande que precisamos, de fato, de
uma Constituição e de outras coisas.
O SR. PRESIDENTE (Deputado Luiz Couto) - Obrigado, Deputado Praciano.
A Presidência agradece a presença à Profa. Márcia Suzuki, à Maíra de Paula
Barreto, ao Márcio Augusto Freitas de Meira e à Valéria Payê.
Dou por encerrada esta Mesa.
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Convido para compor a segunda Mesa o Sr. Aisanain Paltu Kamaiwrá, pai
indígena que teve um filho morto; o Sr. Edward Luz, antropólogo; a Profa. Rita
Segato, antropóloga; o Sr. Wanderley Guenka, Diretor do Departamento de Saúde
Indígena da FUNASA; e a Sra. Jacimar de Almeida Gouveia, da etnia kambeba,
representante das mulheres indígenas no Conselho Nacional dos Direitos das
Mulheres.
Concedo a palavra ao antropólogo Edward Luz, que disporá de até 10
minutos.
O SR. EDWARD MANTOANELLI LUZ - Boa-tarde.
Represento o Sr. Ronaldo Lidório, doutor em Antropologia pela Royal
University of London. Eu não sou doutor em Antropologia e não sei, depois de hoje,
se o serei algum dia. Minha função aqui, provavelmente, é participar de minha
própria pira funerária no universo acadêmico, porque não falo em nome de nenhuma
instituição nem de qualquer ONG. Não sei exatamente em nome de quantos eu falo,
mas com certeza é por uma minoria da comunidade acadêmica dissidente nesse
impasse que estamos tendo com relação à sobreposição dos direitos humanos,
sobretudo do direito à vida e à diferença.
Parece-me que sou um dos poucos antropólogos — não dá para numerar;
não sei se já foi feita essa pesquisa — que acredita que talvez o direito à vida seja
superior ou deve ser levado em consideração em relação à diferença da cultura.
Acho que esse é o motivo pelo qual fui convidado pelo antropólogo Ronaldo Lidório
para ler um texto.
Como temos um tempo exíguo, vou falar pouco.
Sr. Presidente, vou passar à Mesa o texto que Lidório escreveu. Fui
convidado somente para lê-lo.
Não vai dar para ler tudo; vou apenas ressaltar alguns pontos.
Quero dizer, desde já, que quase me arrependi de ter aceitado o convite.
Depois do que disse a Maíra, que esse debate deve acontecer em âmbito
acadêmico, pensei em adiar a minha fala para a próxima ABA ou para a próxima
reunião da Associação Brasileira de Antropologia Norte e Nordeste, ABANNE,
porque acho que lá, sim, é o foro apropriado para fazer esse debate, esse diálogo
tão importante. Aqui, eu fico dividido, sem saber para quem estou falando. Na
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verdade, não sei se falo para os Deputados ou para os antropólogos presentes,
como a minha ex-Profa. Rita Laura Segato, da UnB. Falamos para antropólogos,
Deputados, enfim, para um universo bem variado.
A tentativa de compreensão desse debate passa exatamente pela
diversidade não só dos povos indígenas brasileiros — que são muitos, como foi
enfatizado —, mas também das correntes que existem na própria antropologia.
Começo citando um texto de meu colega Rosinaldo da Silva, também da UnB,
que já terminou o doutorado. O texto se encontra na coletânea de Antropologia e
Direitos Humanos promovida pela Ford Foundation.
Na introdução, há um panorama bem geral.
Diz o autor:
“O tema dos direitos humanos tem sido alvo de
polêmica, seja por autores da antropologia, seja por
pensadores de fora da disciplina. A maneira como
antropólogos têm visto os direitos humanos chega a ser
claramente contraditória”.
Percebam, senhores, que não só os Deputados, mas também os
antropólogos divergem nessa questão.
“Gustavo Esteva afirma, por exemplo, que os
direitos humanos não são senão a outra face do
Estado-Nação e que, na era da globalização, os direitos
humanos universais têm começado a parecer um novo
cavalo de tróia para a recolonização empreendida pelo
Ocidente em relação aos povos que não compartilham de
seus ideais universalistas.
Em suma, Esteva assume que os direitos
humanos, como pretensão universalista, têm-se
constituído simplesmente em um abuso de poder do
Ocidente e mais um modo de este controlar o resto do
mundo.
Por outro lado, Alcida Ramos, também professora
da UnB, indicou que a abrangência da categoria direitos
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humanos foi rapidamente apropriada pelos movimentos
indígenas da América Latina e de outros lugares como
meio de internacionalizar a sua causa, e, com isso, tais
movimentos tornam-se atores políticos visíveis na arena
pública.
Como se pode compreender perspectivas tão
opostas de antropólogos sobre o mesmo tema?”
Só queria delinear que nós, antropólogos, também estamos divididos. E eu
faço parte dos dissidentes.
Vou tentar traçar um paralelo. Não será possível descrever todo o histórico
que fez o Dr. Ronaldo Lidório. Resumidamente, ele afirma: