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Traduo de: Deleuze, Gilles (1981) Francis Bacon: Logique de la
Sensation. Paris: auxditions de la diffrence. por Silvio Ferraz e
Annita Costa Malufe sem reviso.
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Gilles Deleuze (1981). Francis Bacon: lgica da sensao
Prlogo
Cada uma das rubricas que se seguem considera um aspecto dos
quadros de Bacon emuma ordem que vai do mais simples ao mais
complexo. Mas esta ordem relativa e s vlida sob uma lgica geral da
sensao.
De fato todos os aspctos coexistem. Eles convergem na cor, em
uma sensaocolorante, que auge desta lgica. Cada um dos aspectos
pode servir de tema para umaseqncia particular na histria da
pintura.
Os quadros citados aparecem progressivamente. So reproduzidos e
designados por umnmero que remete a sua reproduo em um segundo tomo
deste livro. Agradecemos aSenhorita Valrie Beston, da galeria
Marlborough, pela ajuda preciosa a qual nos foiprestada.
I O redondo, a pista
Um redondo delimita seguidamente o lugar onde est sentado o
personagem, esta aFigura. Sentado, deitado, inclinado ou outra
coisa. Este redondo, ou este oval, toma maisou menos lugar: ele
pode transbordar as laterais do quadro, estar no centro de um
trptico,etc Quase sempre ele redobrado, ou ainda substitudo, pelo
redondo da cadeira ondeo personagem est sentado, pelo oval da cama
onde o personagem est deitado. Ele seespalha pelas pastilhas que
cercam uma parte do corpo do personagem, ou no crculogiratrio que
envolve o corpo. Mas mesmo os dois camponeses s formam uma
Figuracom relao a uma terra arrebatada, estreitamente contida no
oval em um pote.Resumindo, o quadro comporta uma pista, uma espcie
de circo como lugar. umprocedimento muito simples que consiste em
isolar a Figura. Existem outrosprocedimentos de isolamento: colocar
a Figura em um cubo, ou antes em umparaleleppedo de vidro ou gelo;
faz-la colar sobre um raio, sobre uma barra estirada,como que sobre
um arco magntico de um crculo infinito; combinar todos esses meios,
oredondo, o cubo e a barra, como que em um estranho sof largo e
arqueado de Bacon.Estes so os lugares. De todo modo Bacon no
esconde que tais procedimentos so quaseque rudimentares, graas
sutileza de sua combinao. O importante que eles nolimitam a Figura
imobilidade; pelo contrrio, eles tornam sensvel uma espcie
deencaminhamento, de explorao da Figura em seu lugar, ou sobre si
mesma. um campooperacional. A relao da Figura com seu lugar
isolante define um fato: o fato , o quetem lugar E a Figura, assim
isolada, torna-se uma Imagem, um cone.
No s o quadro que uma realidade isolada (um fato), nem s o
trptico em trspainis isolados que, sobretudo, no devemos reunir em
um s e mesmo quadro, mas aFigura ela-mesma que est isolada neste
quadro, pelo redondo ou pelo paraleleppedo.
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Por que? Bacon repete dizendo: para conjurar o carter
figurativo, ilustrativo, narrativo,que a Figura teria
necessariamente se no estivesse isolada. A pintura no tem nemmodelo
a representar, nem histria a contar. Desde ento ela tem como que
duas viaspossveis para escapar ao figurativo: seguir no sentido de
uma forma pura, por abstrao;ou no sentido de um puro figural, por
extrao e isolamento. Se o pintor tende Figura,se ele toma a segunda
via, isto ser para opor o figural ao figurativo1. A primeiracondio
a de isolar a Figura. O figurativo (a representao) implica, de
fato, emrelacionar uma imagem a um objeto e buscar ilustr-lo; mas
ela implica tambm a relaode uma imagem com outras imagens em um
conjunto composto que oferece precisamentepara cada um o seu
objeto. A narrativa o correlato da ilustrao. Entre duas figuras,
hsempre uma histria que se insinua ou tende a se insinuar, para
animar o conjuntoilustrado2. Isolar ento o modo o mais simples,
necessrio, mas no o suficiente, pararomper com a representao,
quebrar a narrativa, impedir a ilustrao, liberar a Figura:para
deter-se no fato.
Evidentemente o problema mais complicado: ser que no existiria
um outro tipo derelao entre as Figuras, no narrativo, e que
portanto no destacaria nenhuma figurao?Figuras diversas que
levariam ao mesmo fato, que pertenceriam a um s e mesmo fatonico,
ao invs de remeter a uma histria e de remeter a objetos diferentes
em umconjunto de figurao? Relaes no narrativas entre Figuras, e
relaes no ilustrativasentre Figuras e fatos? Bacon no parou de
fazer Figuras acopladas, que no contamnenhuma histria. E quanto
mais os painis separados de um trptico tm uma relaointensa entre
si, menos esta relao narrativa. Com modstia, Bacon reconhece que
apintura clssica buscou constantemente traar este outro tipo de
relao entre Figuras, eque esta ainda a tarefa da pintura:
evidentemente muitas das grande obras foram feitascom um certo
nmero de figuras sobre uma mesma tela, e claro que toda pintura
querfazer isto Mas a histria que se conta entre uma figura e outra
anula desde o princpioas possibilidades que a pintura tem em agir
por si mesma. E reside a uma dificuldademuito grande. Mas um dia ou
outro algum vir e ser capaz de colocar diversas figurassobre uma
mesma tela3. Qual ser ento este outro tipo de relao entre
Figurasacopladas ou distintas? Chamemos esta nova relao de matters
of fact, por oposio srelaes inteligveis (de objeto ou de idias).
Mesmo se reconhecemos que Bacon jtenha largamente conquistado este
domnio, sob aspectos mais complexos do queaqueles que consideramos
atualmente.
Ainda estamos falando do aspecto simples do isolamento. Uma
figura est isolada numapista, sobre a cadeira, a cama ou o sof, no
redondo ou no paraleleppedo. Ela no ocupamais do que uma parte do
quadro. Assim sendo, de que preenchido o restante doquadro? Para
Bacon um certo nmero de possibilidades j vem anulado, ou sem
interesse.No ser uma paisagem a preencher o restante do quadro,
como correlata da figura, nem
1 J.-F. Lyotard emprega o termo figural como substantivo,
opondo-o a figurativo. Cf. Discours, Figure,d. Klincksieck.2 Cf.
Bacon, Lart de limpossible, Entretiens avec David Sylvester, d.
Skira. A crtica do figurativo (porsua vez ilustrativo e narrativo)
constante nos dois tomos deste livro, que citaremos daqui em
diantepor E.3 E.I, pp. 54-55.
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um fundo do qual surgiria a forma, nem um informal,
claro-escuro, espessura da cor ondese do as sombras, textura onde
se do as variaes. Iremos rpido, no entanto. claroque existem as
Figuras-paisagens, no incio da obra, como em Van Gogh de 1957;
existetexturas extremamente nuanceadas como em Figura em uma
paisagem ou Figura estudoI, de 1945; existe ainda a espessura e a
densidade como Cabea II, de 1949; e sobretudoexiste um perodo
superposto de dez anos, do qual Sylvester diz ser dominado
pelasombra, o obscuro e a nuance, antes de retornar ao preciso4.
Mas no se exclui queaquilo que destino passa por contornos que
parecem contradiz-lo. Pois as paisagens deBacon so a preparao
daquilo que aparece mais tarde como um conjunto de curtasmarcas
livres involuntrias arranhando a tela, traos assignificantes
destitudos defuno ilustrativa ou narrativa: donde a importncia da
erva, o carter irremediavelmenteherbceo de suas paisagens
(Paisagem, 1952, Estudo de figura na paisagem, 1952,Estudo de
babuino, 1953, ou Duas figuras na grama, 1954). Quanto s texturas,
espessura, sombra e ao fluido, eles j preparam o grande processo de
limpeza local,com papel chiffon, vassourinha ou escova, em que a
espessura estendida sobre umazona no figurativa. Portanto,
precisamente, os dois procedimentos de limpagem local edo trao
assignificante pertencem a um sistema original que no nem o da
paisagem,nem o do informal ou do fundo (bem que eles sejam aptos,
em virtude de sua autonomia,a fazer paisagem ou a fazer fundo, e
mesmo a fazer sombra).
De fato, o que ocupa sistematicamente o resto do quadro so os
grandes chapados de corviva, uniforme e imvel. Finos e duros, eles
tm uma funo espacializante. Mas eles noesto sob a Figura, atrs dela
ou alm dela. Eles esto estritamente ao lado, ou antes emtorno, e so
tomados por e em uma vista prxima, ttil ou hptica, enquanto
Figura-ela-mesma. Nesse estgio no h nenhuma relao de profundidade
ou de distanciamento,nenhuma incerteza das luzes e das sombras,
quando se passa da Figura ao chapado.Mesmo a sombra, mesmo o preto,
no sombra (tentei tornar a sombra to presentequanto a Figura). Se
os chapados funcionam como fundo, sobretudo em virtude de
suacorrelao estrita com a Figura, a correlao de dois setores sobre
um mesmo Planoigualmente prximo. Esta correlao, esta conexo, ela
mesma dada pelo lugar, pelapista ou pelo redondo, que o limite
comum dos dois, o seu contorno. isto o que dizBacon em uma declarao
importante, qual voltaremos diversas vezes. Ele distingue nasua
pintura trs elementos fundamentais que so: a estrutura material, o
redondo-contorno, a imagem-erguida. Se pensamos em termos de
escultura preciso dizer que: aarmadura, o pedestal que poderia ser
mvel, a Figura que passeia na armadura com seupedestal. Se fosse
necessrio ilustrar (e preciso em certos momentos, como em H omemcom
o cachorro de 1953), falaramos em: uma calada, umas poas,
personagens quesaem das poas e fazem seu passeio cotidiano5.
4 E. I, pp.34-35.5 Citemos ento o texto completo, E.II,
pp.34-36: Pensando nelas como esculturas, a maneira na qual euposso
faz-las em pintura, e de faz-las melhor em pintura, me veio de
repente ao esprito. Um tipo depintura estruturada na qual as
imagens surgiro, diga-se assim, de um mar de carne. Esta idia
soaterrivelmente romntica, mas vejo isto de um modo bastante formal
e que forma ser que isto tem? Elassurgiro certamente sobre
estruturas materiais Demais figuras? Sim, e haver sem dvida uma
caladaque se elevar mais alto do que na realidade, e sobre a qual
elas podero se mover, como se as imagens seelevassem de charcos de
carne, se possvel, de pessoas determinadas fazendo seu passeio
cotidiano. Esperoser capaz de fazer as figuras surgindo de sua
prpria carne com seus chapus coco e seus guarda-chuvas, e
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O que neste sistema h de coincidente com a arte egpcia, com a
arte bizantina, etc., issons veremos mais adiante. O que conta
agora a proximidade absoluta, esta copreciso,do chapado que
funciona como fundo, e da Figura que funciona como forma, sobre
omesmo plano de viso prxima. E este sistema, esta coexistncia de
dois setores um aolado do outro que fecha o espao, que constitui um
espao absolutamente fechado erodopiante, muito mais do que se
procedssemos com a sombra, o obscuro e o indireto.Eis porque h um
enevoado em Bacon, at mesmo dois tipos de fluidez, mas quepertencem
os dois a este sistema de mais alta preciso. No primeiro caso, o
enevoado obtido no por indistino mas, ao contrrio, pela operao que
consite em destruir anitidez pela prpria nitidez6. Assim o homem
com a cabea de porco, Autoretrato de1973. Ou ainda o tratamento dos
jornais amarotados, ou no: como diz Leiris, oscaracteres
tipogrficos so nitidamente traados, e sua preciso mecnica que se
ope sua prpria legibilidade7. No outro caso, o enevoado obtido
pelos procedimentos demarcas livres, ou de limpagem, eles tambm
pertencentes aos elementos precisos dosistema (existem ainda outros
casos).
de fazer figuras to pungentes quanto uma crucifixo. E em E.II,
p. 83, Bacon acrescenta: Sonhei comesculturas posadas num tipo de
armadura, uma grande armadura feita de modo que a escutura
pudesseescorregar por sobre, e que as pessoas pudessem elas mesmas,
a seu gosto, mudar a posio da escultura.6 A propsito de Tati, outro
grande artista do chapados, Andr Bazin disse que: Raros so os
elementossonoros indistintosPelo contrrio, toda a astcia de Tati
consiste em destruir a nitidez pela nitidez. Osdilogos no so
incompreensveis mas insignificantes, e sua insignificncia revelada
por sua prpriapreciso. Tati at mesmo deforma as relaes de
intensidade entre os planos (Quest-ce que le cinma?P.46, d. Du
Cerf.)7 Leiris, Au verso des images. d. Fata Morgana, p.26.
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II nota sobre a relao da pintura antiga com a figurao
A pintura deve banir a figura do figurativo. Mas Bacon invoca
dois dados que fazem comque a pintura antiga no tenha mais com a
figurao ou com a ilustrao a mesma relaoque a pintura moderna. De um
lado, a fotografia tomou para si a funo ilustrativa edocumentria,
se bem que a pintura moderna no tenha mais que preencher esta
funoque ainda pertence antiga. Por outro lado, a pintura antiga
ainda estava condicionadapor certas possibilidades religiosas que
davam um sentido pictrico figurao,enquanto a pintura moderna um
jogo ateu.1
No certo portanto que estas duas idias, tomadas de Malraux,
sejam adequadas. Pois asatividades concorrem entre si, e uma no se
contenta em simplesmente preencher umpapel abandonado pela outra.
No imaginamos uma atividade que se encarregue de umafuno largada
por uma arte superior. A fotografia, mesmo a instantnea, tem toda
umaoutra preteno que no a de representar, ilustrar ou narrar. E
quando Bacon fala porsua conta da fotografia, e das relaes
fotografia-pintura, ele diz coisas mais profundas.Por outro lado, o
vnculo entre elemento pictrico e sentimento religioso, na
pinturaantiga, parece, por sua vez, mal definido pela hipotese de
uma funo figurativa queestaria sendo simplesmente santificada pela
f.
Em um exemplo extremo, O enterro do conde de Orgaz, de Greco.
Uma horizontaldivide o quadro em duas partes, inferior e superior,
terrestre e celestial. Na parte de baixoexiste claramente uma
figurao ou narrativa que representa o enterro do conde, aindaque
todos os coeficientes de deformao dos corpos, e notadamente o seu
alongamento,faam parte da obra. Mas no alto, l onde o conde
recebido por Cristo, h uma liberaolouca, uma total liberdade: as
Figuras se elevam e se alongam, se afinamdesmedidamente, fora de
todo limite. Graas s aparncias, no h mais histria a sercontada, as
Figuras so libertadas de seus papis representativos, elas entram em
relaodireta com uma ordem de sensao celeste. isto que a pintura
crist encontrou nosentimento religioso: um atesmo propriamente
pictrico, onde podemos tomar ao p daletra que Deus nunca deveria
ser representado. De fato, com Deus, mas tambm comCristo, com a
Virgem, e tambm com o Inferno, as linhas, as cores, os movimentos
seliberam das exigncias da representao. As Figuras se levantam ou
mergulham, ou secontorcem, livres de toda figurao. Elas no tm mais
nada a representar ou narrar, poisse contentam em remeter , neste
domnio, ao cdigo existente da Igreja. ento que, porsua conta, elas
no tm mais a ver com as sensaes celestiais, infernais ou
terrestres.Tudo passar por um cdigo, pintaremos o sentimento
religioso de todas as cores domundo. No mais necessrio dizer que se
Deus no est, tudo permitido. exatamente o contrrio. Pois com Deus
que tudo permitido. com Deus que tudo permitido. No s moralmente,
pois as violncias e infmias encontram sempre umajustificativa
sagrada. Mas esteticamente, de uma maneira ainda mais importante,
vistoque as Figuras divinas so animadas por um livre trabalho
criador, por uma fantasia que
1 Cf. Bacon, Francis e Silvester, David lart de limpossible,
entretiens avec David Silvester. Skira. (E),pp. 62-65 (Bacon
pergunta porque Velasquez podia permanecer to prximo da figurao .
Ao que eleresponde, de uma parte, que a fotografia no existia; de
outra, que a pintura estava ligada a um sentimentoreligioso, mesmo
que vago).
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se permite todas as coisas. O corpo de Cristo verdadeiramente
talhado de umainspirao diablica que o faz passar por todos os
domnios sensveis, por todos osnveis de sensao diferentes. Vejamos
mais dois exemplos: o Cristo de Giotto,transformado num pipa em
pleno cu, verdadeiro avio, que lana sua cicatriz sobre SoFrancisco,
enquanto as linhas hachureadas do percurso da cicatriz aparecem
como asmarcas livres com as quais o santo maneja os fios do avio
pipa. Ou ainda a Criao dosAnimais de Tintoreto: Deus como um
starter que d a partida de uma corrida deobstculos, os pssaros e os
peixes partindo primeiro, enquanto o co, os coelhos, ocervo, a vaca
e o licorne esperam por sua vez.
No podemos mais dizer que o sentimento religioso sustentava a
figurao na pinturaantiga: pelo contrrio, ele torna possvel uma
liberao das Figuras, o surgimento dasFiguras fora de toda figurao.
Tambm no podemos mais dizer que a renuncia figurao seja mais fcil
pintura moderna enquanto jogo. Pelo contrrio, a pinturamoderna est
invadida, sitiada pelas fotografias e pelos clichs que se instalam
sobre atela antes mesmo que o pintor comece seu trabalho. De fato,
ser um erro acreditar que opintor trabalha sobre uma superfcie
branca e virgem. A superfcie j est toda investidavirtualmente por
todo tipo de clichs com os quais necessrio romper. E isto que
dizBacon ao falar da fotografia: ela no uma figurao do que vemos,
ela o que o homemmoderno v.2 Ela no simplesmente perigosa por ser
figurativa, mas porque pretendereinar sobre a viso, ou seja, sobre
a pintura. Assim, tendo renunciado ao sentimentoreligioso, mas
cercada pela fotografia, a pintura moderna fica numa situao difcil
pararomper com a figurao que parecer ser seu miservel domnio
reservado. Estadificuldade a pintura abstrata confirma: foi
necessrio o trabalho extraordinrio dapintura abstrata para retirar
a arte moderna da figurao. Mas no existiria uma outra via,mais
direta e menos sensvel?
2 E, p. 67. Voltaremos a este ponto que explica a atitude de
Bacon com relao fotografia, ora de fascnioora de despreso. Em todo
caso, o que ele reprova na fotografia no o fato de ela ser
figurativa.
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III Atletismo
Voltemos aos trs elementos pictricos de Bacon: os grandes
chapados como estruturamaterial espacializante a Figura, as Figuras
e seus fatos o lugar, ou seja o redondo, apista ou o contorno, que
o limite comum da Figura e do chapado. O contorno parece sermuito
simples, redondo ou oval; antes sua cor que coloca os problemas na
dupla relaodinmica onde ela tomada. De fato, o contorno, como
lugar, o lugar de uma troca emdois sentidos: entre as estrutura
material e a Figura, entre a Figura e o chapado. Ocontorno como uma
membrana atravessada por uma dupla troca. Algo passa numsentido e
noutro. Ainda que a pintura no tem nada a narrar, no tenha histria
a contar,mesmo assim algo se passa, definindo o funcionamento da
pintura.
No redondo a Figura est sentada numa cadeira, deitada numa cama:
s vezes ela parecemesmo a espera do que vai se passar. Mas o que se
passa, ou vai passar, ou j estpassando, no um espetculo, uma
representao.Aqueles que espreitam em Bacon,no so espectadores. Nos
quadros de Bacon surpreendemos o esforo por eliminar
todoespectador, e com isto todo espetculo. Assim a tauromaquia de
1969 apresenta duasverses: na primeira o grande chapado comporta
ainda um painel aberto em quepercebemos uma multido, como uma legio
romana que teria vindo ao circo. Enquanto asegunda verso fecha o
painel e no se contenta mais em entrelaar as duas Figuras
detoureiro e de touro, mas volta-se verdadeiramente para seu fato
nico ou comum, aomesmo tempo em que desaparece o tecido rubro que
ligava o espectador ao que ainda espetculo. Os Trs estudos de
Isabel Rawthorne(1967) mostram a Figura em vistas defechar a porta
sobre um intruso ou uma visitante, mesmo que seja seu prprio
duplo.Diremos ento que em muitos casos subsiste uma espcie de
espectador, um voyeur, umfotgrafo, um passante, um que espreita,
distinto da Figura, notadamente nos trpticos,onde isto quase uma
lei, mas no somente neles. Veremos portanto que Bacon precisa,em
seus quadros e sobretudo em seus trpticos, de uma funo de
testemunho, que fazparte da Figura e no tem nada a ver com o
espectador. Mesmo os simulacros defotografias, enganchados na
parede ou sobre a raia, podem jogar este papel detestemunho. So
testemunhos no no sentido de espectadores, mas de
elementos-referencia ou de constante com relao qual se estima uma
variao. Na verdade, onico espectador aquele da ateno ou do esforo,
mas estes s so produzidos quandono h mais espectador. Isto aproxima
Bacon a Kafka: a Figura de Bacon o grandeEnvergonhado, ou o grande
Nadador que no sabe nadar, campio dos jovens; e a pista,circo, a
plata-forma1, o teatro de Oklahoma. A este ponto tudo culmina em
Bacon comPintura de 1978: colada em um painel a Figura estende todo
seu corpo e uma perna, parafazer girar a chave da porta com seu p
do outro lado do quadro. Notamos que ocontorno, o redondo, de um
belo alaranjado-ouro, no est mais no solo mas migrou,situado sobre
a porta, se bem que a Figura, na extrema ponta de p, parece
elevar-sesobre a porta vertical, numa reorganizao do quadro.
No esforo por eliminar o espectador, a Figura j mostra um
atletismo todo singular.Ainda mais singular quando a fonte do
movimento no est mais nela. O movimento vai
1 Plate-forme = forma chapada
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antes da estrutura material, do chapado, para a Figura. Em
muitos quadros o chapado precisamente tomado em movimento no qual
ele forma um cilindro: ele volteia ocontorno, o meio; e envolve,
aprisiona a Figura. A estrutura material roda em volta docontorno
para aprisionar a Figura que acompanha o movimento de todas as
foras.Extrema solido da Figura, extremo fechamento dos corpos
excluindo todo espectrador: aFigura s se torna assim pelo seu
movimento em que ela se fecha e que a fecha. Jornadaem que os
corpos procuram cada um o despovoar o interior de um cilindro
rebaixadotendo cinquenta metros de dimetro e dezesseis de altura
para a harmonia. Luz. Suafraqueza. Seu amarelo2 Ou bem se tem uma
queda suspensa no buraco negro do cilindro:primeira frmula do
atletismo derisrio, violento csmico em que os orgos so prteses.Ou o
lugar, o contorno, que se torna adequado ginstica da Figura no meio
do chapado.
Mas o outro movimento, que coexiste evidentemente com o
primeiro, pelo contrrioaquele da Figura indo para a estrutura
material, para o chapado. Desde o incio a Figura o corpo e o corpo
tem seu lugar no centro do redondo. Mas o corpo no espera
apenasalgo da estrutura, ele espera algo em si mesmo, ele faz
esforo sobre si mesmo para setornar Figura. Agora no corpo que algo
se passa: ele fonte de movimento. No maisproblema do lugar mas do
evento. Se h esforo, um esforo intenso, este no de modoalgum um
esforo estraordinrio como se se tratasse de um feito do corpo alm
de suasforas sobre um objeto distinto. O corpo se esfora
precisamente, ou espera precisamenteescapar. No sou eu que tento
escapar de meu corpo, o corpo que tenta se escaparporResumindo, um
espasmo: o corpo como plexus, e seu esforo ou sua espera por
umespasmo. Talvez seja uma aproximao do horror ou da abjeo, segundo
Bacon. Umquadro pode nos guiar como exemplo, Figura no lavabo, de
1976: pendurado no oval dolavabo, fixo pelas mos na torneira, o
corpo-figura faz sobre si um esforo intenso,imvel, para escapar-se
por completo pelo ralo. Joseph conrad descreve uma cenasemelhante
em que ele tambm via a imagem de abjeo: em uma cabine hermtica
donavio, em plena tempestade, o negro do narciso estende os outros
marinheiros queconseguiram fazer um buraco minsculo na clausura que
os aprisiona. um quadro deBacon. E o negro infame, se lanando pela
abertura, fixava seus lbios e gritava porsocorro! De uma voz
apagada, forando a cabea contra a madeira, num esforo dementepara
sair de um palmo de largura por trs de comprimento. Desmantelados
comoestavamos, esta ao incrvel nos paralisou totalmente. Parecia
impossvel fugir dal3. Afrmula corrente ento: passar por um buraco
de rato, tornar banal o prprioabominvel ou o Destino. Cena
histrica. Toda a srie dos espasmos em Bacon destetipo, amor, vmito,
excremento; sempre o corpo que tenta escapar por um de seus
rgos,para reencontrar o chapado, a estrutura material. Bacon disse
muitas vezes que nodomnio das Figuras a sombra era to presente
quanto o corpo; mas a sombra no adquireesta presena a no ser por
que escapa do corpo, ela corpo que se escapou por um ououtro ponto
localizado no contorno. E o grito, o grito de Bacon, a operao pela
qual ocorpo inteiro se escapa pela boca. Todos as convulses do
corpo.
A pia do lavabo um lugar, um contorno, uma retomada do redondo.
Mas qui a novaposio do corpo em relao ao contorno, mostra que
chegamos a um aspecto mais 2 Beckett, Le dppeupleur, d. Du Minuit,
p.7.3 Conrad, Le ngre du Narcise, d. Gallimard, p.103.
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complexo (mesmo se este aspecto sempre estivesse al). No mais a
estrutura materialque roda em volta do contorno para envolver a
Figura, a Figura que pretende passar porum ponto de fuga no
contorno para se dissipar na estrutura material. a segunda direoda
troca, e a segunda forma de atletismo derrisrio. O contorno toma
assim uma novafuno, pois ele no mais achatado, mas desenha um
volume oco e comporta um pontode fuga. Quanto a isto, os
guarda-chuvas de Bacon so anlogos ao lavabo. Nas duasverses de
Pintura de 1946 e 1971, a Figura est bem posta no redondo de
umabalaustrada, mas ao mesmo tempo ela se deixa apanhar pelo
guarda-chuva semiesfrico, eparece querer escapar inteira pela ponta
do instrumento: no vemos mais do que o sorrisoabjeto. Nos Estudos
do corpo humano, de 1970, e Trptico maio-junho de 1974, o
guarda-chuva verde garrafa tratado mais como uma superfcie, mas a
figura agachada se serveao mesmo tempo como que de um balano, de um
guarda-chuva, de um aspirador, deuma ventosa, pela qual todo corpo
contrado quer passar, e a cabea j vem abocanhada:esplendor desses
guarda-chuvas como contorno, com uma ponta voltada para baixo.
Naliteratura, Burroughs sugeriu melhor este esforo do corpo por
escapar por uma ponta oupor um buraco que fazem parte dele mesmo e
de seu entorno: o corpo de Johnny secontrai na direo de seu queixo,
as contraes so mais e mais longas, Aiiiiie ! gritam osmsculos
enfaixados, e seu corpo inteiro tenta escapar pela cauda4 O mesmo
aconteceem Bacon, a Figura adormecida com seringa hipodrmica (1963)
menos um corpoencravado, como diz Bacon, do que um corpo que tenta
passar pela seringa, e escapar poreste buraco ou esta ponta de fuga
flutuante como rgo-prtese.
Se a pista ou o redondo se prolongam no lavabo, no guarda-chuva,
o cubo ou oparaleleppedo se prolongam tambm no espelho. Os espelhos
de Bacon so o quequisermos, menos uma superfcie que reflete. O
espelho uma espessura opaca por vezespreta. Bacon no vive, de modo
algum, o espelho ao modo de Lewis Carroll. O corpopassa dentro do
espelho, ele se aloja, a si mesmo e a sua sombra. Eis o que
fascinante:no h nada atrs do espelho, mas dentro dele. O corpo
parece se alongar, se achatar,esticar-se dentro do espelho como se
ele se contrasse para passar pelo buraco. Se forpreciso a cabea se
fende numa grande greta triangular, que vai se reproduzir dos
doislados e espalh-la por todo o espelho, como um bloco de gordura
numa sopa. Mas nosdois casos, tanto no guarda-chuva ou no lavabo
quanto no espelho, a Figura no est maisisolada, sozinha, ela est
deformada, contrada e aspirada, estirada e dilatada. que omovimento
no mais aquele da estrutura material que se enrola en torno da
Figura, aquele da Figura que vai no sentido da estrutura e tende,
no limite, a se dissipar noschapados. A Figura no somente corpo
isolado, mas o corpo deformado que escapa. Oque faz da deformao um
destino que o corpo tem uma relao necessria com aestrutura
material: no somente esta se enrola em torno dele, mas ele deve
juntar-se a elae se dissipar, e assim passar por ou pelos
instrumentos-prtese que constituem passagense estados reais,
fsicos, efetivos, sensaes e de maneira nenhuma imaginaes. Se bemque
o espelho ou o lavabo possam ser localizados em muitos casos; mesmo
assim, o quese passa dentro do espelho, o que vai se passar dentro
do lavabo ou sob o guarda-chuva,remete imediatamente Figura ela
mesma. Acontece com a figura exatamente o quemostra o espelho, o
que anuncia o lavabo. As cabeas so preparadas para receber as
4 Aburroughs, Le festin nu, d. Gallimard, p.102.
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Traduo de: Deleuze, Gilles (1981) Francis Bacon: Logique de la
Sensation. Paris: auxditions de la diffrence. por Silvio Ferraz e
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deformaes (vem da as zonas , raspadas, esfregadas nos retratos
de cabeas). E medida em que os instrumentos tendem ao conjunto da
estrutura material eles noprecisam mais ser especficos: a estrutura
toda que assume o papel de espelho virtual,de guarda-chuva ou
lavabo virtuais, ao ponto em que as deformaes instrumentais
seencontram imediatamente referidas sobre a Figura. Assim
Autoretrato de 1973, ohomem com cabea de porco: no prprio lugar que
a deformao se faz. Assim como oesfoo do corpo sobre si mesmo, a
deformao esttica. Todo o corpo percorrido porum movimento intenso.
Movimento deformadamente disforme, que remete cadainstante a imagem
real ao corpo, para constituir a Figura.
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IV o corpo, a carne e o esprito, o devir-animal
O corpo, a Figura, ou melhor, o material da Figura. No
confundiremos, no entanto, omaterial da figura com a estrutura
material espacializante, que se tem do outro lado. Ocorpo Figura,
no estrutura. Inversamente, a Figura, sendo corpo, no o rosto e
nemtem um rosto. Ela uma cabea, pois a cabea parte integrante do
corpo. Ela podemesmo se reduzir cabea. Retratista, Bacon um pintor
de cabeas e no de rostos.Existe uma grande diferena entre estas
duas coisas. Pois o rosto uma organizaoespacial estruturada que
recobre a cabea, enquanto a cabea uma dependncia docorpo, mesmo ela
sendo o seu extremo. No porque a ela falte esprito, mas umesprito
que o corpo, sopro corporal e vital, esprito animal, o animal do
homem:esprito-porco, esprito-bufalo, esprito-cachorro,
esprito-morcego trata-se portanto deum projeto todo especial que
Bacon persegue enquanto retratista: desfazer o rosto,encontrar ou
fazer surgir uma cabea sob um rosto.
As deformaes pelas quais passam os corpos so tambm traos animais
da cabea. Nose trata de modo algum de uma correspondncia entre
formas animais e formas do rosto.De fato, o rosto perdeu sua forma
sofrendo as operaes de limpeza e raspagem que odesorganizam e fazem
surgir em seu lugar uma cabea. As marcas ou traos deanimalidade no
so formas animais, mas antes espritos que frequentam as partes 1,
quearrancam da cabea, individualizam e qualificam a cabea sem
rosto.2 Limpeza e traos,como procedimentos de Bacon, encontram aqui
um sentido particular. Acontece mesmoda cabea do homem ser
substituda por um animal; mas no o animal como forma, oanimal como
trao, por exemplo um trao estremecido de pssaro que faz uma
piruetasobre a parte limpada, enquanto o simulacro de
retrato-rosto, por sua vez, serve somentede testemunho (assim se d
no trptico de 1976). Pode acontecer at mesmo de umanimal, por
exemplo um cachorro real, ser tratado com sendo a sombra de seu
dono; ouinversamente que a sombra do homem tome uma existncia de
animal autonoma eindeterminada. A sombra escapa do corpo como um
animal que ns abrigamos. Ao invsde correspondncias formais, o que a
pintura de Bacon constitui uma zona deindiscernibilidade, de
indeciso, entre o homem e o animal. O homem se torna animal,mas ele
no se torna sem que o animal ao mesmo tempo se torne esprito,
esprito dehomem, esprito fsico de homem apresentado no espelho como
Eumnides ou Destino.No nunca uma combinao de formas, antes um fato
comum: o fato comum dohomem e do animal. Ao ponto em que a Figura a
mais isolada de Bacon j uma Figuraacoplada; o homem acoplado a seu
animal numa tauromaquia latente.
Esta zona objetiva de indiscernibilidade, ela j o corpo, mas o
corpo enquanto carne ouvianda. Sem dvida o corpo tambm tem osso,
mas os ossos so somente a estruturaespacial. Ns distinguimos
diversas vezes a carne dos ossos, e mesmo dos pais de carne
1 A traduo correta para nttoyes limpas, porm optamos por limpas,
remetendo ao de Bacon quelimpava as superfcies j pintadas de seus
quadros, borrando a imagem nesta ao. No s estarem assuperfcies
limpas, mas elas sofrerem a ao de serem limpas (limpas).2 Felix
Guattari analisou este fenmeno de desorganizao do rosto: os traos
de rostidade se liberam e setornam traos de animalidade da cabea.
Cf. O inconciente maquinico (linconscient machinique,
paris:recherche, pp. 75 sq.)
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Traduo de: Deleuze, Gilles (1981) Francis Bacon: Logique de la
Sensation. Paris: auxditions de la diffrence. por Silvio Ferraz e
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e dos pais de osso. O corpo no se revela a no ser quando ele
deixa de ser suspensopelos ossos, quando a carne deixa de recobrir
os ossos, quando eles existem um para ooutro, mas cada um de seu
lado, os ossos como estrutura material do corpo, a carne
comomaterial corporal da Figura. Bacon admira as meninas de Degas;
Aps o banho, cujacoluna vertebral interrompida parece sair da
carne, a carne ficando vulnervel eengenhosa, acrobtica.3 Em uma
outra reunio, Bacon pinta uma coluna vertebral parauma Figura
contorcida de cabea para baixo. Vale notar esta tenso pictural da
carne edos ossos. Pois justamente a vianda que realiza esta tenso
na pintura, compreendidapelo explendor das cores. A vianda o estado
tal do corpo em que a carne e os ossos seconfrontam locamente, ao
invs de se comporem estruturalmente. At mesmo na boca enos dentres,
que so pequenos ossos. Na vianda diremos que a carne descende dos
ossos,enquanto que os ossos se elevam da carne. o que prprio de
Bacon, o diferindo deRembrandt, de Soutine. Se h uma interpretao do
corpo em Bacon, ns aencontramos em seu gosto de pintar as Figuras
deitadas, das quais o brao ou a coxalevantada valem por um osso,
tal qual a carne adormecida parece descer. Assim no painelcentral
do trptico 1968: os dois gmeos adormecidos, cercados do testemunho
dosepritos animais; tambm a srie do brao elevado adormecido, da
perna verticaladormecida, e da coxa elevada adormecida ou drogada.
Para alm do sadismo aparente,os ossos so como o mastro (carcaa)
cuja carne o acrobata. O atletismo do corpo seprolonga naturalmente
nesta acrobacia da carne. E naqueles de 1962 e de 1965,
v-seliteralmente a carne descender dos ossos, no quadro de uma
cruz-sof e de uma pista emforma de osso. Para Bacon, como para
Kafka, a coluna vertebral no passa de uma espadasob a pele que um
carrasco fez deslizar para dentro do corpo de um inocente que
dorme.4
Pode-se mesmo pensar que um osso foi somente sobreposto, em um
jato de pinturalanado ao acaso.
Piedade para a vianda! No h dvida, a vianda o objeto mais alto
da piedade de Bacon,so somente objetos de piedade, sua piedade
anglo-irlandesa. O mesmo o para Soutine,com sua imensa piedade
judia. A vianda no uma carne morta, ela guarda todos ossofrimentos
e toma sobre si as cores da carne viva. Um tanto de cor convulsiva
e devulnerabilidade, mas tambm de inveno sedutora, de cor e de
acrobacia. Bacon nopede piedade aos bichos, mas sim que todo homem
que sofre a vianda. A vianda azona comum do homem e do bicho, sua
zona de indicernibilidade, ela este fato, esteestado mesmo em que a
pintura se identifica aos objetos de seu horror ou de suacompaixo.
certo que o pintor um aougueiro, mas ele est neste aougue como
quedentro de uma igreja, com a vianda por ser crucificada (Pintura
de 1946). s noaougue que Bacon um pintor religioso. Sempre fiquei
muito tocado pelas imagensreferentes a abatedouros e peas de
vianda, e para mim elas esto estreitamente ligadas atudo o que a
crucifixo claro, nos somos vianda, ns somos as carcaas empotncia.
Se vou a um aougue, fico sempre surpreso de no estar l no lugar
doanimal...5 O romancista Moritz, no final do sculo XVIII, descreve
um personagem desentimentos bizarros: uma sensao extrema de
isolamento, de insignificncia quaseigual negao; horror de um
suplcio, ao assisitir a execuo de quatro homens,
3 E, pp. 92-94.4 Kafka, A espada.5 E., p.55 e p.92.
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exterminados e esquartejados; os pedaos destes homens jogados na
rua ou sobre abalaustrada; a certeza de que somos singularmente
implicados, que somos toda estavianda atirada, que o espectador j o
espetculo, massa de carne ambulante; da aidia de que os animais
mesmos so o homem, e de que ns somos tanto o criminosoquanto o
gado; e ainda este fascnio pelo animal que morre, um veado, a
cabea, osolhos, o focinho, as narinas e por vezes ele se esquecia
de tal modo na contemplaosuspensa do bicho que acreditava realmente
existir um instante em que notou a espcie deausncia de tal
serbreve, saber se entre os homens ele era um cachorro ou se um
outroanimal j havia ocupado de tal modo seus pensamentos desde a
infncia.6 As pginas deMoritz so explndidas. No um arranjo de homen
e bicho, no uma semelhana, uma identificao de fundo, uma zona de
indiscernibilidade mais profunda que todaidentificao sentimental: o
homem que sofre um bicho, o bicho que sofre umhomem. a realidade do
devir. Que homem revolucionrio, na arte, na poltica, nareligio ou
no importa onde, nunca sentiu este momento extremo em que ele
prprio nopassava de um bicho, e responsvel, no pelos vitelos que
morrem, mas frente aos vitelosque morrem?
Mas ser possvel dizer a mesma coisa, exatamente a mesma coisa,
da vianda e dacabea, para saber qual a zona de indeciso objetiva do
homem e do animal? Ser quepodemos dizer objetivamente que a cabea
vianda (visto que a vianda esprito)? Detodas as partes do corpo, no
seria a cabea a mais proxima aos ossos? Veja Greco, ouainda
Soutine. Parece ento que Bacon no vive a cabea deste mesmo modo. O
ossopertence ao rosto, e no cabea. No existe uma cabea de morto
segundo Bacon. Acabea desossada, mais do que ossificada. No entanto
ela no mole, mas firme. Acabea a carne, e a mscara no morturia, um
bloco de carne firme que se separados ossos: assim como os estudos
para um retrato de William Blake. A cabea pessoal deBacon uma carne
perseguida por um belo olhar sem rbita. o que faz juz a Rembrandtde
ter sabido pintar um ltimo autoretrato como um bloco de carne sem
orbitas.7 Emtodas as obras de Bacon a relao cabea-charque percorre
uma escala intensiva que astorna de mais a mais ntimas. Em princpio
a vianda (carne de um lado, osso de outro)est colocada na borda da
pista ou da balaustrada onde fica a Figura-cabea; mas ela tambm a
espessa chuva carnal que encobre a cabea que desfaz o rosto sob o
guarda-chuva. O grito que sai da boca do papa, a piedade que sai de
seus olhos, tem por objeto avianda. Em seguida a vianda tem uma
cabea com a qual ela foge e desce da cruz, comonas duas Crucifixes
precedentes. Depois ainda todas as sries de cabeas de Baconafirmaro
sua identidade com a vianda, e entre as mais belas h aquelas que so
pintadascom a cor da vianda, o vermelho e o azul. Por fim a vianda
ela mesma uma cabea, acabea se tornando a potncia no localizvel da
vianda, como em Fragmento de umCrucifixo de 1950, onde toda vianda
grita sob o olhar de um esprito cachorro quepende do alto da cruz.
O que faz com que Bacon no goste deste quadro a simplicidadedo
procedimento aparente: bastaria abrir uma boca em plena vianda.
Ainda falta ver a
6 Jean-Christophe Bailly apresentou este belo texto de
K.P.Moritz (1756-1793) em La lgende disperse,anthologie du
romantismo alemand, d. 10-18, pp. 35-43.7 E., p.114: Pois bem, se
voc pega por exemplo o grande autoretrado de Rembrandt em
Aix-en-Provence,e se o analisa, v que quase no tem orbita em volta
dos globos oculares, que completamente anti-ilustrativo.
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Traduo de: Deleuze, Gilles (1981) Francis Bacon: Logique de la
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afinidade da boca, e do interior da boca, com a vianda, e chegar
ao ponto em que a bocaaberta torna-se estritamente a seco de uma
artria cortada, ou mesmo a manga de umacamisa que vale por uma
artria, como no pacote ensangentado do trptico Sweeneyagonistes.
Ento a boca ganha esta potncia de no localizao que faz de toda
viandauma cabea sem rosto. Ela no um rgo particular, mas o buraco
pelo qual o corpointeiro escapa, e pelo qual desce a carne (faz-se
necessrio o procedimento das marcaslivres involuntrias). O que
Bacon chama de Grito na imensa piedade que arrasta avianda.
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V Nota de recaptulao: perodos e aspectos de Bacon
A cabea-vianda, um devir-animal do homem. E neste devir, todo
corpo tende aescapar, e a Figura tende a juntar-se estrutura
material. J se v isto no esforo que elafaz sobre ela mesma para
passar pelo bico ou pelo buraco; melhor ainda, no estado queela
toma quando passada pelo espelho, sobre o muro. No entanto, ela
ainda no dissolvea estrutura material, ela ainda no se juntou ao
plano para se dissipar de vez, se apagarsobre o muro do csmos
fechado, se confundir com a textura molecurar. Faz-senecessrio ir
at este ponto, a fim de reinar uma Justia que no ser mais que Cores
ouLuzes., um espao que no ser mais que Sahara.1 o mesmo que dizer
que, qualquerque seja a importncia, o devir animal no passa de uma
etapa para um devirimperceptvel mais profundo no qual a Figura
desaparecer.
Todos os corpos escapam pela boca que grita. Pela boca redonda
do papa ou da ama deleite; o corpo escapar como que por uma artria.
E entretanto esta no a ltima palavrana srie da boca segundo Bacon.
Ele sugere que exista, para alm do grito, um sorriso aoqual ele no
teve acesso2. Bacon certamente modesto; de fato ele pintou sorrisos
queesto entre os mais belos quadros da pintura. E que tm a mais
estranha funo, a deassumir o despedaar-se do corpo. Neste ponto
Bacon se encontra com Lewis Carrol, osorriso do gato.3 Existe j um
sorriso que cai, inquietante, na cabea do homem com umguarda-chuva,
e em proveito deste sorriso que o rosto se desfaz como que sob um
cidoque consome o corpo; e a segunda verso do mesmo homem acusa e
refaz ao sorriso. Emais ainda no sorriso bonacho, quase
insustentvel, do Papa de 1954 ou do homemsentado na cama: sentimos
que ele deva sobreviver ao despedaar-se do corpo. Os olhos ea boca
so as coordenadas espaciais onde s subsiste o sorriso insistente.
Como nomearento tal coisa? Bacon sugere que se trate de um sorriso
histrico.4 Sorriso abominvel,abjeo do sorriso. E se sonhamos em
introduzir uma ordem em um trptico, acreditamosque o de 1953 impe
esta ordem que no se confunde com a sucesso dos painis: a bocaque
grita no centro, o sorriso histrico esquerda, e direita, enfim, a
cabea que seinclina e se dissipa.5
Neste ponto extremo da disperso csmica, em um csmos fechado mas
ilimitado, bemevidente que a Figura no possa mais estar isolada,
tomada em um limite, pista ouparaleleppedo: so outras as
coordenadas das quais estamos diante. A Figura do papaque grita
aparece atrs de uma lmina espessa, batentes de uma cortina de
sombra etransparncia: a parte de cima do corpo se desvela, e s
subsiste como uma marca sobreum sudrio arranhado, enquanto a parte
de baixo do corpo permanece ainda fora da
1 E., p.111: voc vai adorar poder fazer da aparencia de um
retrato um Sahara, faz-lo parecer-se de talmaneira que parecer
conter as distncias de um Sahara.2 E., p.98: sempre quis, sem
jamais conseguir, pintar um sorriso3 Lewis Carrol, Alice no pais
das maravilhas, capitulo 6: ele se esqueceu muito lentamente
acabandoem um sorriso, que persistiu algum tempo depois que o resto
do animal desapareceu.4 E., p.95.5 No podemos seguir aqui John
Russel, que confunde ordem do trptico com a sucesso dos painis
daesquerda direita: ele v esquerda um sinal de sociabilidade, ao
centro um discurso publico (FrancisBacon. ed. du Chne).Mesmo que o
modelo tenha sido o Primeiro ministro, difcil ver como que
oinquietante sorriso pode passar por socivel, e o grito do centro,
por um discurso.
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cortina que se evade. Vem da o efeito de um alongamento
progressivo como se a partesuperior do corpo fosse esticada para
trs. Por um longo perodo este procedimento serfreqente em Bacon. As
mesmas lminas verticais de cortina envolvam e arranhemparcialmente
o abominvel sorriso do Estudo para um retrato, enquanto a cabea e
ocorpo parecem aspirados para o fundo, contra os batentes
horizontais da persiana.Diremos ento que, durante todo um perodo,
se impem convenes bem opostaquelas que definimos de incio. Por toda
parte o reino do fluido e do indeterminado, aao de um fundo que
destaca a forma, uma espessura onde se jogam as sombras, umasombra
de textura nuanada, efeitos de aproximao e afastamento: um
tratamentomalerich, como o diz Sylvester6. o que Sylvester funda
para distinguir trs perodos napintura de Bacon: o primeiro que
confronta a Figura precisa e a superfcie viva e dura; osegundo que
trata a forma malerisch sobre um fundo tonal acortinado; o terceiro
querene enfim as duas convenes opostas, e que volta ao fundo vivo e
chapado,reinventando localmente os efeitos de esfumado por
estriamento e escovao.7
Todavia no apenas o terceiro perodo que inventa a sntese dos
dois anteriores. Osegundo perodo j contradiz um pouco o primeiro ao
no se sobrepr a este quanto unidade de estilo e de criao: aparece
uma nova posio da Figura coexistindo com asoutras. De modo
simplificado, a posio atrs das cortinas se conjuga perfeitamente
coma posio sobre a pista, sobre a barra ou parareleppedo, para uma
Figura isolada, colada,contrada, mas igualmente abandonada,
escapada, evanescente, confusa: assim emtude pour un nu accroupi de
1952. LHomme au chien, de 1953, que retoma oselementos fundamentais
da pintura, mas em um conjunto borrado em que a Figura no mais que
uma sombra, uma poa, um contorno incerto, a calada, uma
superfciesombreada. E isto o essencial: existe certamente uma
sucesso de perodos, mastambm os aspctos coexistem, em virtude dos
trs elementos simultneos da pintura queesto perpetuamente
presentes. A armadura ou a estrutura material, a Figura em posio,o
contorno como limite dos dois, no deixam de constituir um sistema
de mais altapreciso; e neste sistema que se produzem as operaes de
borramento, os fenmenosde fluxo, os efeitos de distanciamento e
desparecimento, cada vez mais forte porcontituirem um movimento ele
mesmo preciso neste conjunto.
Haver ou talvez houvesse ainda um lugar para distinguir um
quarto perodo maisrecente. Suponhemos em efeito que a Figura no
tenha somente componentes dedissipao, e mesmo que ela no se
contente mais em privilegiar ou galgar estacomponente. Suponhemos
que a Figura tenha efetivamente desaparecido, deixandoapenas um
trao vago de sua antiga presena. O chapado se abrir como um cu
verticalao mesmo tempo que se encarregar de mais a mais de funes
estruturantes: oselementos de contorno determinaro de mais a mais
as divises, as sees planas e asregies no espao que forma a moldura
livre. Mas ao mesmo tempo a zona de borramentoou de limpeza, que
faz surgir a Figura, vai agora valer por si mesmo,
independentementede toda forma definida, aparecer como pura Fora
sem objeto, onda de tempestade, jato
6 Mal deriva de mcula, a mancha ( de onde malen, pintar, Maler,
pintor). Wlfflin se serve do termoMalerisch para designar o
pictrico por oposio ao linear, ou mais precisamente a massa em
oposio aocontorno. Cf. Principes fondamentaux de lhistoire de lart.
d. Gallimard, p.25.7 E. II, pp.96: a distino dos trs perodos de
David Sylvester.
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dgua ou de vapor, olho de ciclone, que lembra Turner em um mundo
que se torna umbote. Por exemplo, tudo se organiza ( notadamente a
seco negra) no confronto de doisblocos vizinhos, o do jato e o do
achatamento. Visto que ainda s conhecemos algunscasos de organizao
muito novas na obra de Bacon, no dado excluir que se trata deum
perodo nascente: uma abstrao que lhe ser prpria e no ser mais do
que areia,erva, poeira ou gota dgua8 A paisagem escoa por si mesma
para fora do polgono deapresentao, guardando os elementos
desfigurados de uma esfnge que parece j feita deareia. Mas agora a
areia no retm mais nenhuma Figura, nada alm da grama, a terra oua
gua. Para a articulao das Figuras e de seus novos espaos vazios
advm um usoradiante do pastel. A areia poder mesmo recompor uma
esfnge, mas to poeirenta epastel; que sentimos o mundo das Figuras
profundamente ameaado por esta novapotncia.
Se nos detivermos aos perodos narrados, o que difcil de se
pensar, veremos acoexistncia de todos os movimentos. E portanto o
quadro esta coexistncia. Dados ostrs elementos de base, Estrutura,
Figura e Contorno, um primeiro movimento (tenso)vai da estrutura
Figura. A estrutura se apresenta ento como um achatamento mas
quevai se enrolar como um cilindro em torno do contorno; o contorno
se apresenta como umisolamento, redondo, oval, barra ou sistema de
barras; e a Figura est isolada nocontorno, um mundo de fato todo
fechado. Mas eis que um segundo movimento, umasegunda tenso vai da
Figura estrutura material: o contorno muda, ele se torna meia-esfra
do lavabo ou do guarda-chuva, moldura do espelho, agindo como um
deformante;a Figura se contrai, ou se dilata, para passar por um
buraco ou em um espelho, elaexperimenta um devir-animal
extraordinrio numa srie de deformaes gritantes; e elatende ela
mesma a juntar-se ao chapado, a dissipar-se na estrutura, com um
ltimosorriso, por intermdio do contorno que no age mais como
deformante, mas como umacortina onde a Figura se delineia ao
infinito. Este mundo o mais fechado era assimtambm o mais
ilimitado. Se nos detivermos ao mais simples, o contorno que comea
porum simples redondo, veremos a variedade de suas funes ao mesmo
tempo que odesenvolvimento de sua forma: a princpio isolante, ltimo
territrio da Figura; masassim ele j o despovoador, ou
desterritorializante, visto que fra a estrutura a seenrolar,
cortando a Figura de todo meio natural; ele ainda um veculo, pois
guia opequeno passeio da Figura no territrio que lhe resta; e ele
agregado, prtese, poissustenta o atletismo da Figura que se fecha;
ele age em seguida como deformante, quandoa Figura passa por ele,
por um buraco, por uma ponta; e ele se reencontra agregado eprtese
em um novo sentido, para a acrobacia da carne; ele enfim cortina
por detrs daqual a Figura se dissolve reencontrando a estrutura; em
resumo ele membrana, e nodeixou de ser, assegurando a comunicao nos
dois sentidos entre Figura e estruturamaterial. Em Pinture de 1978,
vemos o laranja dourado do contorno que bate porta comtodas suas
funes, pronto a tomar todas as suas formas. Tudo se reparte em
distole esstole repercutida em cada nvel. A sstole, que aperta os
corpos, e vai da estrutura Figura; a distole que o estende e o
dissipa, indo da Figura estrutura. Mas j h umadistole no primeiro
movimento, quando o corpo se alonga para melhor se fechar; e huma
sstole num segundo movimento, quando o corpo se contrai para
escapar; e mesmo 8 Conhecemos atualmente seix quadros desta nova
abstrao; afora estes citados anteriormente, umapaysage de 1978, em
1982. gua escorrendo de uma torneira.
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quando o corpo se dissipa, permanece ainda contrado por suas
foras que o abocanhampor rend-lo ao entorno. A coexistncia de todos
os movimento neste quadro o ritmo.
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VI Pintura e sensao
H duas maneiras de ultrapassar a figurao (ilustrativa ou
narrativa): em face formaabstrata, ou Figura. Para esta via da
Figura, Czanne d um nome simples: a sensao.A Figura a forma sensvel
relacionada sensao; ela age imediatamente sobre osistema nervoso,
que a prpria carne. Enquanto a Forma abstrata se volta para
ocrebro, agindo por intermdio deste crebro, mais prxima ao osso.
claro que no foiCzanne que inventou esta via da sensao na pintura.
Mas ele deu a ela uma posiosem precedente. A sensao o contrrio do
fcil ou do j feito, do clich, mas tambm ocontrrio do sensacional,
do espontneo etc. A sensao tem uma face voltada parao sujeito (o
sistema nervoso, o movimento vital, o instinto, o temperamento,
todo umvocabulrio comum ao naturalista e a Czanne), e a outra face
voltada para o objeto (ofato, o lugar, o acontecimento). Ela pode
tambm no ter face nenhuma, ser as duascoisas indissoluvelmente, ser
o estar-no-mundo como dizem os fenomenologistas: porsua vez eu me
torno na sensao e alguma coisa me acontece pela sensao, um
pelooutro, um no outro1
uma linha um tanto quanto genrica que liga Bacon a Czanne:
pintar a sensao, ou,como diz Bacon com palavras muito prximas s de
Czanne, registrar o fato: umaquesto muito densa e difcil a de saber
porque uma pintura toca diretamente osnervos2. Digamos que as
diferenas entre os dois pintores sejam, evidentes: o mundo deCzanne
como paisagem e natureza morta, mesmo diante dos retratos que so
tambmtratados como paisagens; e a hierarquia inversa em Bacon que
destitui natureza morta epaisagem3. O mundo como natureza em Czanne
e o mundo como artefato em Bacon.Mas justamente, tais diferenas to
evidentes no estariam elas levando em conta asensao e o
temperamento, isto no estariam ambas inscritas no que liga Bacon
aCzanne, naquilo que lhes comum? Quando Bacon fala da sensao ele
quer dizer duascoisas muito prximas a Czanne. Negativamente, ele
fala que a forma remete sensao(Figura), o contrrio de ver a forma
remetendo a um objeto que ela buscaria representar(figurao).
Seguindo as palavras de Valry, a sensao aquilo que
transmitediretamente, evidenciando o desvio ou o desgosto de uma
histria a ser contada4. De ummodo positivo, Bacon no deixa de dizer
que a sensao aquilo que passa de umaordem a outra, de um nvel a
outro, de um domnio a outro. Esta a razo pelaqual a sensao a mo da
deformao, o agente da deformao dos corpos. E nestesentido, podemos
tecer uma mesma censura, tanto pintura figurativa quanto
abstrata:elas passam pelo crebro, elas no agem diretamente sobre o
sistema nervoso, elas notm acesso sensao, elas no libertam a
Figura, razo pela qual permanecem a um s e
1 Henri Maldiney, Regard parole espace, d. lAge dHomme, p.136.
Os fenomenlogos como Maldiney eMerleau-Ponty viram em Czanne o
pintor por excelncia. Analisam a sensao, ou antes o sentir, no spor
ele relacionar as qualidades sensveis com um objeto identificvel
(momento figurativo), massobretudo porque cada qualidade constitui
um campo que vale por si mesmo e interfere com os outros(momento
pathico). este aspecto da sensao que a fenommenologia de Hegel
curto-circuitou, e queest portanto na base de toda esttica possvel.
Cf. maurice Merleau-Ponty, Phnomenologie de laperception, d.
Gallimard2 E.I, p.44.3 E.I, pp. 122-123.4 E.I, p.127.
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Traduo de: Deleuze, Gilles (1981) Francis Bacon: Logique de la
Sensation. Paris: auxditions de la diffrence. por Silvio Ferraz e
Annita Costa Malufe sem reviso.
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mesmo nvel5. Elas podem operar transformaes da forma mas no
chegam a deformaros corpos. Teremos a ocasio de ver mais adiante no
que Bacon czaneano, mais do queum discpulo de Czanne.
O que quer dizer Bacon, em todas suas entrevistas, cada vez que
fala de ordens desensao, de nveis sensitivos, de domnios sensveis
de sequncias mveis? Aprincpio poderamos acreditar que a cada ordem,
nvel ou domnio, corresponde umasensao especfica; cada sensao seria
ento um termo em uma seqncia ou em umasrie. Por exemplo a srie dos
auto-retratos de Rembrandt nos conduz por domniossensveis
distintos6. E tambm verdade que a pintura, singularmente aquela de
Bacon,procede por sries. Srie de crucifixes, srie de papas, srie de
retratos, de autoretratos,srie da boca, da boca que grita, da boca
que ri Alm do mais, a srie pode ser desimultaneidade, como nos
trpticos que fazem coexistir pelo menos trs ordens ou trsnveis. A
srie tambm pode ser fechada quando ela tem uma composio
contrastante ouaberta, quando continuada ou continuvel para alm das
trs7. Tudo isto vale. Mas,justamente, no seria verdade se no
houvesse tambm uma outra coisa que valha aindapara cada quadro,
cada Figura, cada sensao. cada quadro, cada Figura, que umaseqncia
mvel, ou uma srie (e no somente os termos na srie). cada sensao
queest em diversos nveis, de diferentes ordens ou em demais
domnios. Se bem que noexistam as sensaes de ordens diferentes, mas
diferentes ordens de uma s e mesmasensao. prprio da sensao
envelopar uma diferena de nvel constitutiva, umapluralidade de
domnios constituintes. Toda sensao, e toda Figura j uma
sensaoacumulada, coagulada, como em uma figura [sic.] de calcrio8.
Vem da o carterirredutivelmente sinttico da sensao. Nos perguntamos
de onde vem tal carter sintticopelo qual cada sensao material tem
mais de um nvel, mais de uma ordem ou domnios.O que vem a ser este
nvel, e o que torna sua unidade sentinte ou sentida?
Uma primeira resposta deve evidentemente ser relanada. O que far
a unidade materialsinttica de uma sensao ser o objeto representado,
a coisa figurada. teoricamenteimpossvel, pois a Figura se ope
figurao. Mas mesmo se notamos praticamente,como o faz Bacon, que
qualquer coisa j figurada (por exemplo um papa que grita),
estafigurao segunda repousa sobre a neutralizao de toda figurao
primria. Bacon seprope alguns problemas ligados sustentao inevitvel
de uma figurao prtica, nomomento em que a Figura afirma sua inteno
de romper com o figurativo. Vejamoscomo ele resolve o problema. De
qualquer modo Bacon no deixou de querer eliminar osensacional, ou
seja, a figurao primria naquilo que provoca uma sensao violenta.Tal
o sentido da frmula; quis pintar o grito mais do que o horror.
Quando pinta opapa que grita, nada se faz horror, e a cortina
diante do papa no apenas uma maneirade isolar, de subtra-lo dos
olhares, mais uma maneira na qual ele no v nada de simesmo, e grita
diante do invisvel : neutralisado, o horror mltiplo pois ele se
concluido grito, e no o inverso. claro que no fcil renunciar ao
horror, ou figuraoprimria. preciso voltar-se contra os prprios
instintos, renunciar sua experincia.
5 Todos estes temas so uma constante nas Entretiens.6 E.I,
p.62.7 E.II, pp. 38-408 E.I, p.114 (coagulo de marcas no
representativas)
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Traduo de: Deleuze, Gilles (1981) Francis Bacon: Logique de la
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Bacon traz consigo toda a violncia da Irlanda, e a violncia do
nazismo, a violncia daguerra. Ele passa pelo horror das Crucifixes,
e sobretudo do fragmento de Crucifixo, ouda cabea-vianda, ou da
maleta sangrenta. Mas quando julga seus prprios quadros, elese
livra de todos aqueles que so muito sensacionais, pois a figurao
que lhes subsistereconstitui, mesmo que secundariamente o horror e
reintroduz assim uma histria a sercontada: mesmo as Touradas so
muito dramticas. E desde que haja horror, umahistria se reintroduz,
e rasuramos o grito. E finalmente, o mximo de violncia se farnas
Figuras sentadas ou agachadas, que no sofrem nenhuma tortura nem
brutalidade, squais nada de visvel se d, e que efetuam melhor a
potncia da pintura. que a violnciatem dois sentidos muito
diferentes: quando falamos de violncia da pintura, isto no temnada
a ver com violncia da guerra9. violncia do representado (o
sensacional, oclich) se ope a violncia da sensao. E esta se faz uma
s na sua ao direta sobre osistema nervoso, os nveis pelos quais ela
passa, os domnios que atravessa: sendo elamesma uma Figura, ela no
deve nada natureza de um objeto figurado. como emArtaud: a
crueldade no o que acreditamos ser, depende cada vez menos do que
estrepresentado.
Uma segunda interpretao deve ser re-lanada, confundindo os nveis
de sensao, ouseja, as valncias da sensao, com uma ambivalncia do
sentimento. Neste pontoSylvester sugere: como voc fala de registrar
em uma s imagem diferentes nveis desensao pode-se dizer que, dentre
outras coisas, voc exprime, em um s e mesmomomento, o amor pela
pessoa e a hostilidade a seu respeito ao mesmo tempo umacarcia e
uma agresso?. Ao que Bacon responde: lgico, eu no acredito que
hajaacaso. Creio que isto toca algo mais profundo para mim: como
que sinto que eu possatornar esta imagem o mais imediatamente real
para mim? tudo10 De fato a hiptesepsicanaltica da ambivalncia no
tem apenas o inconveniente de localizar a sensao dolado do
espectador que olha o quadro. Mas mesmo que se suponha uma
ambivalncia daFigura em si mesma, tratar-se- de sentimentos que a
Figura provaria com relao coisarepresentada, com relao a uma
histria contada. Portanto no h sentimento em Bacon:nada mais do que
afetos, ou seja, sensaes e instintos, seguindo a frmula
doNaturalismo. E a sensao, que determina o instinto em tal momento,
assim como oinstinto, a passagem de uma sensao a outra, a busca da
melhor sensao (no amais agradvel, mas aquela que preenche a carne
no momento de sua descida, de suacontrao ou de sua dilatao).
Existe ainda uma terceira hiptese, mais interessante. a hipotese
motora. Os nveis desensao so como que paradas ou instantneos do
movimento, que recomporiam omovimento sinteticamente em sua
continuidade, sua velocidade e sua violncia: assimcomo o cubismo
sinttico, ou o futurismo, ou o Nu de Duchamp. claro que Bacon
9 E.II, pp.29-32 (e I, pp. 94-95: eu nunca experimentei algo to
terrificante.10 E.I, p.85. Bacon parece rebelar-se contra as
sugestes psicanalticas, e Sylvester que lhe diz, em outraocasio, o
papa o pai, ao que e ele responde polidamente eu no estou seguro de
ter compreendido oque voc disse (II, p.12). Para uma interpretao
psicanaltica mais elaborada dos quadros de Baconreferimos o livro,
de Didier Anzieu, Le corps e loeuvre, Gallimard, p.333-340.
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fascinado pela decomposio de movimentos de Muybridge11, e se
serve disto comomaterial. claro tambm que ele obtem por sua prpria
conta movimentos violentos deuma grande intensidade, como os giros
de cabea de 180 de George Dyer voltando-separa Lucien Freud. E
geralmente as Figuras de Bacon esto agarradas ao vivo em umestranho
passeio: Homem carregando criana, ou o Van Gogh. Isolando a Figura,
ocirculo ou o paralelepipedo, se tornam eles mesmos motores, e
Bacon no renuncia aoprojeto que uma escultura mvel realizaria mais
facilmente: que o contorno ou o pedestalpossam se deslocar ao longo
da armao de modo que a Figura faa um pequenopasseio cotidiano12.
Mas justamente o carter deste pequeno passeio que pode nos
falarmais sobre o preceito do movimento segundo Bacon. Nunca
Beckett e Bacon estiveramto prximos, por um pequeno passeio ao modo
dos personagens de Beckett que, tambmse deslocam aos trancos sem
sair do circulo ou do paralelepipedo. o passeio da crianaparalitica
e de sua me, enganchadas beira da balaustrada, numa curiosa corrida
deobstculos. a reviravolta da Figura giratria. o passeio de
bicicleta de George Dyer,que parece bastante aos herois de Moritz:
a viso estava limitada ao pequeno pedao deterra que via ao seu
redoro fim de todas as coisas lhe parecia saindo para a
extremidadede seu passeio a um tal ponto. Se bem que, mesmo quando
o contor no se desloca, omovimento consiste menos neste
deslocamento do que na explorao microbiana qual aFigura se lana em
seu contorno. O movimento no explica a sensao, pelo contrrio,ele se
explica pela elasticidade da sensao, sua vis elastica. Seguindo a
lei de Beckett oude Kafka, existe imobilidade para alm do
movimento; para alm do estar em p existe oestar sentado, e para alm
do estar sentado, estar deitado, para se dissipar enfim.
Overdadeiro acrobata aquele da imobilidade no crculo. Os grandes ps
das Figuras,seguidamente, no favorecem seu andar: quase que ps
botas (e os sofs por vezes tm oar de sapatos para ps botas). Em
suma, no o movimento que explica os nveis desensao, so os nveis de
sensao que explicam o que subsiste no movimento. E defato, o que
interessa em Bacon no exatamente o movimento, se bem que sua
pinturatorne o movimento intenso e violento. Mas no limite, um
movimento no mesmo lugar,um espasmo, que testemunha um outro
problema prprio a Bacon: a ao das forasinvisveis sobre os corpos
(de onde vem as deformaes do corpo devidas a esta causamais
profunda). No trptico de 1973, o movimento de translao se d entre
doisespasmos, entre dois movimentos de contrao no mesmo lugar.
Mas ainda existe uma outra hiptese, mais fenomenolgica. Os nveis
de sensaoseriam verdadeiramente domnios sensveis remetendo aos
diferentes rgos dossentidos; mas cada nvel, cada domnio teria uma
maneira de remeter aos outros,independente do objeto comum
representado. Entre uma cor, um gosto, um toque, umodor, um rudo,
um peso, existiria uma comunicao existencial que construiria
omomento pathico (no representativo) da sensao. Por exemplo, em
Bacon, nasTouradas ouvimos os cascos da fera, no trptico de 1976
tocamos o estremecer dopssaro que se pe no lugar da cabea, e cada
vez que a vianda representada, a tocamos,a sentimos, a comemos, a
pesamos, como em Soutine; e o retrato de Isabel Rawthorne fazsurgir
uma cabea para a qual os ovais e os traos so juntados para
encarquilhar os
11 NT. Muybridge: fotgrafo e cineasta norte-americano do qual
Bacon guardava diversas fotografias delutas masculinas recortadas
de uma revista.12 E.I, p.34 e p.83.
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Traduo de: Deleuze, Gilles (1981) Francis Bacon: Logique de la
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olhos, inflar as narinas, prolongar a boca, mover a pele, em um
exerccio comum de todosos rgos de cada vez. Caberia ento ao pintor
fazer ver um tipo de unidade original dasensao, e fazer aparecer
visualmente uma Figura multisensvel. Mas esta operao s possvel se a
sensao de tal ou tal domnio (aqui a sensao visual) estiver
diretamentetomada de uma potncia vital que transborde todos os
domnios e os atravesse. Estapotncia, este Ritmo, mais profundo que
a viso, a audio, etc. E o ritmo aparece comomsica quando ele
investe sobre o nvel auditivo, como pintura ao investir o nvel
visual.Uma lgica do sentido diria Czanne, no racional, no cerebral.
A ltima , portanto,a relao do ritmo com a sensao que pe em cada
sensao os nveis e os domniospelos quais passam. E este ritmo
percorre o quadro como ele percorre uma msica. asitole-diastole: o
mundo que prende a mim mesmo se fechando sobre mim, o eu que seabre
ao mundo, e o abre a si mesmo13. Czanne, digamos, precisamente
aquele que pso ritmo vital na sensao visual. preciso falar a mesma
coisa sobre Bacon, com acoexistncia de movimentos, quando o plano
chapado se fecha sobre a Figura, e quando aFigura se contrai ou ao
contrrio, se dilata, para se reunir ao plano chapado, at que
sefunda? Sera possvel ao mundo artificial e fechado de Bacon
testemunhar o mesmomovimento vital que a Natureza de Czanne? No so
s palavras quando Bacon declaraser cerebralmente pessimista, mas
nervosamente otimista, de um otimismo que sacredita na vida14. O
mesmo temperamento que Czanne? A frmula de Bacon,
serfigurativamente pessimista mas figuralmente otimista.
13 Cf. Henri Maldiney, op.cit, pp.147-172: sobre a sensao e o
ritmo, a sistole e a distole (e as paginassobre Czanne sobre tal
questo).14 E.II, p.26.
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VII histeria
Este fundo, esta unidade rtmica do sentido, s pode ser
descoberta ao ultrapassarmos oorganismo. A hiptese fenomenolgica
talvez insuficiente pois ela invoca somente ocorpo vivido. Mas o
corpo vivido ainda pouco em vista de uma Potncia mais profundae
quase invivel. De fato, s podemos buscar a unidade do ritmo l onde
o ritmo ele-mesmo mergulha em um caos, na noite, e onde as
diferenas de nvel so perpetuamenterevolvidas com violncia.
Para alm do organismo, mas tambm como limite do corpo vivido,
existe aquilo queArtaud descobriu e nomeou: corpo sem rgos. O corpo
o corpo Ele sozinho E noprecisa de rgos. O corpo nunca um
organismo. Os organismos so os inimigos doscorpos.1 O corpo sem
rgos se ope menos aos rgos que a esta organizao dosrgos a que
chamamos organismo. um corpo intenso, intensivo. Percorrido de
umaonda que traa no corpo os nveis ou os limites segundo as variaes
de sua amplitude. Ocorpo no tem, portanto, rgos, mas limites ou
nveis. Se bem que a sensao no sejaqualitativa e qualificada, ela s
tem uma realidade intensiva que no determina mais neladados
representativos, mas variaes alotrpicas. A sensao vibrao. Sabemos
que oovo apresenta justamente este estado do corpo antes da
representao orgnica: eixos evetores, gradientes, zonas, movimentos
cinemticos e acessrios. Nada de boca. Nada delngua. Nada de dentes.
Nada de laringe. Nem exfago. Nem estmago. Nem ventre.Nem nus. Toda
uma vida no orgnica, pois o organismo no a vida, e a aprisiona.
Ocorpo inteiramente vivo, e portanto no orgnico. Assim a sensao,
quando atinge ocorpo atravs do organismo, toma um movimento
excessivo e espasmdico, rompe oslimites da atividade orgnica. Em
plena carne ela diretamente levada pela onda nervosaou emoo vital.
Podemos acreditar que Bacon reencontra Artaud em muitos pontos:
aFigura precisamente o corpo sem rgos (desfazer o organismo em prol
do corpo, orosto em proveito da cabea); o corpo sem rgos carne e
nervo; uma onda o percorrelhe traando nveis; a sensao como o
reencontro da onda com Foras que agem sobreo corpo, atletismo
afetivo, grito-sopro; quando assim se remete ao corpo, a
sensaodeixa de ser representativa e se torna real; e a crueldade
sera ainda menos ligada representao de qualquer coisa de horrvel,
ela ser somente a ao das foras sobre ocorpo, ou a sensao (o
contrrio do sensacional). Ao contrrio de uma pinturamiserabilista,
que pinta pedaos de rgos, Bacon no deixou de pintar os corpos
semrgos, o fato intensivo do corpo. As partes limpas ou raspadas,
em Bacon, so as partesdo organismo neutralizado, rendido ao seu
estado de zona ou nvel: o rosto humanoainda no encontrou sua
face
Uma potente vida no orgnica: assim que Wrringer definia a arte
gptica, a linhagptica setentrional2. Ela se ope em princpio
representao orgnica da arte clssica.A arte clssica pode ser
figurativa, na medida em que remete a algo representado, maspode
tambm ser abstrata, quando despreende uma forma geomtrica da
representao.J, a linha pictural gptica, sua gometria e sua figura
so bem outras. Esta linha aprincpio decorativa, na sua superfcie,
mas uma decorao material, que no traa 1 Artaud, in 84, n 5-6
(1948).2 Wrringer, Lart gotique, d. Gallimard, pp. 61-115.
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nenhuma forma; uma geometria que no est a servio do essencial ou
do eterno, masuma geometria a servio dos problemas e acidente,
afastamento, juno, projeo,interseco. assim uma linha que no para de
mudar de direo, curvada, quebrada,contornada, voltada sobre si,
enrolada, ou ainda prolongada para fora de seus limitesnaturais,
morrendo numa convulso desordenada: existem marcas livres
queprolongam ou param a linha, agindo sob a representao ou fora
dela. portanto umageometria, uma decorao tornada vital e profunda,
com a condio de no ser maisorgnica: ela eleva intuio sensvel as
foras mecnicas, ela procede por movimentoviolento. E se ela
reencontra o animal, se ela se torna animalica, isto n se d
traandouma forma, mas pelo contrrio, impondo-se por sua nitidez,
por sua preciso ela mesmano orgnica, uma zona de indiscernibilidade
de formas. Ela testemunha tambm umaalta espiritualidade, por ser
uma vontade espiritual que a leva para fora do orgnico embusca de
foras elementares. Somente esta espiritualidade, aquela do corpo: o
esprito ocorpo ele mesmo, o corpo sem rgos (A primeira Figura de
Bacon ser esta dodecorativo gptico).
Existem na vida muitas outras ambigidades do corpo sem rgos (o
lcool, a droga, aesquizofrenia, o sado-masoquismoetc). Mas a
realidade viva deste corpo ser que nspodemos nome-la histeria, e em
que sentido? Uma onda de amplitude varivelpercorre o corpo sem
rgos; traa zonas e nveis segundo as variaes de amplitude.
Noencontro da onda, a tal nvel, e de foras exteriores, aparece a
sensao. Um rgo serento determinado por este encontro, mas um rgo
provisrio, que no dura a no ser adurao da passagem da onda e da ao
da fora, e que se deslocar para se colocar emoutro lugar. Os rgos
perdem toda sua consistncia, quer se trate de sua localizao oude
sua funo os rgos sexuais aparecem um pouco em toda parteos nus
brotam,se abrem para defecar, depois se fecham o organismo por
inteiro muda de textura e decor, variao alotrpica regulada em
dcimos de segundo3 De fato, ao corpo semrgos no faltam rgos, falta
somente o organismo, esta organizao dos rgos. Ocorpo sem rgos se
define assim por um rgo indeterminado, enquanto o organismo
sedefine por rgos determinados: ao invs de uma boca e de um nus que
se arriscam a seturvar, porque no termos apenas um orifcio
polivalente para a alimentao e defeco?Poderamos fechar a boca e o
nariz, encher o estmago e abrir um buraco de arejamentodiretamente
nos pulmes o que deveria j ter sido feito desde o comeo4. Mas
comofalar que se trata de um orifcio polivalente ou de um rgo
indeterminado? J no huma boca e um nus suficientemente distintos,
com necessidade de uma passagem ou deum tempo para ir de um ao
outro? Mesmo na vianda, no existe j uma boca distinta, naqual
reconhecemos os dentes, e que no se confunde com outros rgos? Eis o
que preciso compreender: a onda percorre o corpo; em um dado nvel
um rgo sedeterminar, segundo as foras de encontro; e este rgo mudar
se a prpria fora mudarou se passar de um nvel a outro. Resumindo, o
corpo sem rgos no se define pelaausncia de rgos, nem somente pela
existncia de rgos indeterminados, ele se defineenfim pela presena
temporria e provisria de rgos determinados. um modo deintroduzir o
tempo no quadro; e em Bacon h uma grande fora do tempo, o tempo
pintado. A variao de texturas e de cores sobre um corpo, sobre uma
cabea, ou sobre as 3 Burroughs, Le festin nu, d. Gallimard, p.21.4
p. 164.
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costas (como em Trs estudos de costas de homens) verdadeiramente
uma variaotemporal regulada em dcimos de segundos. Vem da o
tratamento cromtico do corpo,muito diferente daquele dos planos
chapados: haver um cromatismo do corpo emoposio ao monocromatismo
do chapado. Colocar o tempo na Figura, esta a fora doscorpos em
Bacon: as largas costas de homens como variao.
Vemos ento que toda sensao implica uma diferena de nvel (de
ordem, de domnio), epassa de um nvel a outro. Mesmo a unidade
fenomenolgica no dar conta disso. Masos corpos sem rgos sim, se
obervamos a srie completa: sem rgos de rgoindeterminado e
polivalente para rgos temporrios e transientes. O que uma bocaem um
nvel se torna nus em um outro, ou no mesmo nvel sob a ao de outras
foras.Portanto esta srie completa a realidade histrica do corpo. Se
nos reportamos aoquadro da histeria tal como se d no sculo XIX, na
psiquiatria e em outras reas,encontramos um certo nmero de
caractersticas que no deixam de animar os corpos deBacon. E em um
primeiro momento as clebres contracturas de paralisias,
ashiperestesias ou as anestesias, associadas ou alternantes, sejam
fixas ou migrantes,seguem a passagem da onda nervosa, seguem as
zonas que ela [a sensao] investiu e seretira. Seguem ainda os
fenmenos de precipitao e de antecipao, e o contrrio deretardo
(histerese), daprs coup, seguindo as oscilaes da onda antecipada ou
emretardo. Em seguida, o carter transiente da transio de rgos segue
as foras que seexercem. Ainda mais uma vez, segue a ao direta de
tais foras sobre o sistema nervoso,como se o histrico fosse um
sonmbulo em estado de velhice, um vigilambule. Enfimum sentimento
muito especial do interior do corpo, visto que o corpo
precisamentesentido sob o rgos, os rgo transientes so precisamente
sentidos sob a organizaodos rgos fixos. Alm do mais, este corpo sem
rgos e seus rgos transientes seroeles mesmos vistos, em fenmenos de
autoscopia interna e externa: no mais minhacabea, mas eu me sinto
em uma cabea, eu vejo e eu me vejo em uma cabea; ou bem euno me
vejo em um espelho, mas me sinto em um corpo que eu vejo e que eu
me vejoneste corpo nu quando estou vestidoetc.5 Ser que existe uma
psicose do mundo queno comporte este paradeiro histrico? Um tipo de
paradeiro incompreensvel e to retono seu miolo quanto no
esprito6
O quadro comum dos Personagens de Beckett e as Figuras de Bacon,
uma mesmaIrlanda: o crculo, o isolante, o Despovoador; a srie de
contraes e paralisias no crculo;o pequeno passeio do Vigilambule; a
presena da Testemunha, que escapa aoorganismo Ele escapa pela boca
aberta em O, pelo nus ou pelo ventre, ou pelagarganta, ou pelo
redondo do lavabo, ou pela ponta do guarda-chuva.7 A presena de
umcorpo sem rgos sob o organismo, presena dos rgos transientes sob
a representao
5 No importa importa a qual manual do sculo XIX sobre a histeria
nos reportamos. Mas sobretudo a umestudo de Paul Sollier, Les
phnomnes dautoscopie, d. Alcan, 1903 (que cria o termo
vigilambule).6 Artaud, Le pse-nerfs.7 Ludovic janvier, em seu
Beckett par lui mme (d. Du Seuil) teve a idia de fazer um lxico das
principaisnoes de Beckett. So cnceitos operatrios. Nos reportaremos
sobretudo aos artigos Corpo, Espao-tempo, Imobilidade, Tetemunha,
Cabea, Voz. Cada um deles aproxima-se forosamente Bacon. E verdade
que Bacon e Beckett so bastante prximos para se conhecerem. Mas nos
repoetaremosao texto de Beckett sobre a pintura de Van Velde (d.
Muse de Poche). Muita coisa convir a bacon:sobretudo a ausencia de
relaes, figurativas e narrativas, como um limite da pintura.
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orgnica. Vestida, a Figura de Bacon se v nua no espelho ou sobre
a tela. Ascontracturas e as hiperestesias so seguidamente marcadas
de zonas , raspadas, e asanestesias, as paralisias, zonas faltantes
(como em um trptico bastante detalhado de1972). E sobretudo,
veremos que toda a maneira de Bacon se passa em um ante-lance eum
ps-lance: o que se passa antes que o quadro seja comeado, mas tambm
o que sepassa aps-lanado, hiperestesia que vai, a cada vez, romper
o trabalho, irromper o cursofigurativo, e contudo recomear em
seguida
Presena, presena, esta a primeira palavra que vem frente de um
quadro de Bacon8.Pode esta presena ser histrica? O histrico tanto
aquele que impe sua presena,quanto aquele para o qual as coisas e
os seres esto presentes, muito presentes, e que d atodas as coisas
e comunica a todos os seres este excesso de presena. Existe ento
poucadiferena entre o histrico, o histerizado, o histerizante.
Bacon pode dizer, com humor,que o sorriso histrico que ele pinta em
um retrato de 1953, na cabea humana de 1953,no papa de 1955, vm do
modelo que era muito nervoso, quase histrico. Mas todoo quadro que
histrico9. E Bacon ele mesmo histerizante quando, num ante-lance,
seabandona inteiro imagem, abandona toda sua cabea ao aparelho
fotomtico, ou, ainda,v a si mesmo em uma cabea que pertence ao
aparelho, que se passa no aparelho. E, oque vem a ser o sorriso
histrico, onde est a abominao, a abjeo deste sorriso?Presena ou
insistncia. Presena interminvel. Insistncia do sorriso para alm do
rosto esob o rosto. Insistncia do grito que subsiste boca,
insistncia de um corpo que subsisteao organismo, insistncia dos
rgos transientes que subsistem aos rgos qualificados. Ea identidade
de um j estar l e de um estar sempre em retardo na presena
excessiva. Emtoda parte uma presena agindo diretamente sobre o
sistema nervoso, e torna impossvelo localizar ou distanciar de uma
representao. o que Sartre queria tambm dizerquando se dizia
histrico, e falava da histeria de Flaubert10.
De qual histeria se trata? Daquela de Bacon, a do pintor, ou a
da pintura ela mesma, e dapintura em geral? verdade que h tanto
perigo em se fazer uma clnica esttica (com avantagem de que no se
trata de uma psicanlise). E por que diz-lo especialmente dapintura,
j que podemos invocar isto tanto nos escritores quanto nos msicos
(Schumanne as contracturas de dedos, a audio de vozes)? O que
queremos dizer que h umarelao especial da pintura com a histeria.
muito simples. A pintura se prope adestacar diretamente a presena
da representao, para alm da representao. O sistemadas cores ele
mesmo um sistema de ao direta sobre o sistema nervoso. No
umahisteria do pintor, uma histeria da pintura. Com a pintura a
histeria torna-se arte. Oumelhor, com o pintor a histeria se torna
pintura. O que a histeria totalmente incapaz defazer, um pouco de
arte, a pintura o faz. preciso dizer tambm a respeito do pintor
queele no histrico, no sentido de uma negao na Teologia negativa. A
abjeo se tornaesplendor, o horror da vida se torna vida muito pura
e muito intensa. A vida assustadora, dizia Czanne, mas no grito se
elevam j todas as alegrias da linha e da cor.
8 Michel Leiris consagrou um bonito texto quanto a esta ao da
presena em Bacon: cf. Ce que montdit les peintures de Francis
Bacon, Au verso des images, d. Fata Morgana.9 E.I. p.95.10 Os temas
sartreanos como o do excesso de existncia (a raiz da rvore em
Nause) ou a fuga do corpo edo mundo (como pelo buraco de vidange em
LEtre et le nant) participam de um quadro histrico.
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Traduo de: Deleuze, Gilles (1981) Francis Bacon: Logique de la
Sensation. Paris: auxditions de la diffrence. por Silvio Ferraz e
Annita Costa Malufe sem reviso.
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o pessimismo cerebral que a pintura transmuda em otimismo
nervoso. A pintura histeria, ou converte a histeria, porque ela faz
ver a presena, diretamente. Pelas cores epelas linhas ela
investe-se sobre o olho. Mas ela no trata o olho como sendo um
rgofixo. Liberando as linhas e as cores da representao, ela libera
ao mesmo tempo o olhode seu pertencimento ao organismo, ela o
libera de seu carter de rgo fixo equalificado: o olho se torna
virtualmente um rgo indeterminado, polivalente, que v ocorpo sem
rgos, ou seja a Figura, como pura presena. A pintura nos pe os
olhos emtoda parte: na orelha, na barriga, nos pulmes (o quadro
respira). a dupla definioda pintura: subjetivamente ela investe
nosso olho que deixa de ser orgnico para se tornarrgo polivalente e
transiente; objetivamente ela desvenda diante de ns a realidade
docorpo, linhas e cores livres da representao orgnica. E um se faz
pelo outro: a purapresena do corpo ser visvel ao mesmo tempo em que
o olho ser o rgo destinadodesta presena.
A pintura tem dois modos de conjurar esta histeria fundamental:
conservar ascoordenadas figurativas da representao orgnica,
deixando de jogar sutilmente,deixando de se fazer passar sob essas
coordenadas ou entre elas as presenas liberadas eos corpos
desorganizados. a via da arte dita clssica. Ou voltar-se para a
forma abstratae inventar uma celebridade propriamente pictural
(acordar a pintura neste sentido). Detodos os clssicos, Vlasquez
foi sem dvida o mais sbio, de uma imensa sabedoria:suas audcias
extraordinrias, ele as fazia passar mantendo firmemente as
coordenadas darepresentao, assumindo plenamente o papel de um
documentarista11 O que faz Baconcom relao aVlasquez tomado como
mestre? Por que ele declara sua dvida e seudescontentamento quando
pensa em sua retomada do retrato de Inocncio X? De certomodo, Bacon
histerizou todos os elementos de Vlasquez. No necessrio comparar
osdois Inocncios X, o de Vlasquez e aquele de Bacon que o
transforma no papa que grita. preciso comparar o de Vlasquez com o
conjunto dos quadros de Bacon (12emVlasquez o sof j desenha a priso
do paraleleppedo; a cortina pesada por trstendendo a passar para a
frente, e o mato com aspectos de nacos de vianda; umpergaminho
ilegvel mas ntido na mo, e o olho fixo e atento do papa j v surgir
algo deinvisvel. Mas tudo isto est estranhamente contido, tudo isto
vai se fazer, ainda noadquiriu a presena inlutvel, irrepreensvel
dos dirios de Bacon, dos sofs quaseanimais, das cortinas frente, da
vianda bruta e da boca que grita. Ser que precisodesencadear esta
presena? pergunta Bacon. Isto no estaria melhor, infinitamente
melhorem Vlasquez? Ser necessrio trazer luz do dia esta relao da
pintura com a histeria,recusando por sua vez a via figurativa e a
via abstrata? Enquanto nossos olhos seencantam pelos dois Inocncios
X, Bacon se interroga13.
Mas enfim, por que isto seria especial pintura? Poderamos falar
de uma essnciahistrica da pintura, em nome de uma clnica puramente
esttica e independente de todapsiquiatria, de toda psicanlise? Por
que a msica no desencadearia, ela tambm, puraspresenas, agora em
funo de uma orelha tornada rgo polivalente para os corpossonoros? E
por que tambm no a poesia e o teatro, quando falamos daquele de
Artaud e
11 E. I, pp.62-63.12 No original em francs este pargrafo no
fecha13 E.I, p.77.
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Traduo de: Deleuze, Gilles (1981) Francis Bacon: Logique de la
Sensation. Paris: auxditions de la diffrence. por Silvio Ferraz e
Annita Costa Malufe sem reviso.
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de Beckett? Este um problema menos difcil do qual no estamos
falando, aquele daessncia de cada arte, e eventualmente de sua
essncia clnica. certo que a msicaatravessa profundamente nossos
corpos, e nos pe uma orelha no ventre, nospulmesetc. Ela se conhece
em onda e nervosidade. Mas ela arrasta justamente nossocorpo, e os
corpos, em um outro elemento. Ela livra os corpos de sua inrcia,
damaterialidade de sua presena. Ela desencarna os corpos. Se bem
que possamos falarcom exatido de corpos sonoros, e mesmo de
corpo-a-corpo na msica, por exemplo emum motivo, mas como dizia
Proust, um corpo-a-corpo imaterial e desencarnado, ondeno subsiste
mais um s resduo de matria inerte e refratria ao esprito. De
certo