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Sobre o teatroclinicand.com/wp-content/uploads/2021/01/Gilles-Deleuze...Hölderlin e Sófocles Friedrich Hölderlin Jean Beaufret Francis Bacon: Lógica da Sensação Gilles Deleuze

Feb 25, 2021

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GillesDeleuze

SobreoteatroUmmanifestodemenos•Oesgotado

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ColeçãoESTÉTICASdireção:RobertoMachado

Observaçõessobre“Édipo”Observaçõessobre“Antígona”precedidodeHölderlineSófoclesFriedrichHölderlinJeanBeaufret

FrancisBacon:LógicadaSensaçãoGillesDeleuze

Sacher-Masoch:OFrioeoCruelGillesDeleuze

SobreoTeatroGillesDeleuze

ONascimentodoTrágicoRobertoMachado

NietzscheeaPolêmicasobre“ONascimentodaTragédia”RobertoMachado(org.)

IntroduçãoàTragédiadeSófoclesFriedrichNietzsche

KalliasouSobreaBelezaFriedrichSchiller

Shakespeare,oGênioOriginalPedroSüssekind

EnsaiosobreoTrágicoPeterSzondi

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Sumário

Introdução,porRobertoMachado

Ummanifestodemenos

Oesgotado

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Introdução

Sobre o teatro não é um livro de Gilles Deleuze. É o título que escolhi para agrupar numa mesmapublicaçãodoistextosseusqueanalisamopensamentodedoisgrandesnomesdoteatro:CarmeloBeneeSamuelBeckett.Mas,evidentemente,nãosedeveleressetítulocomoseafilosofiadeDeleuzefosseumareflexão sobre algum domínio externo à filosofia, no sentido de uma avaliação. Ao contrário, emcontinuidadecomseusescritossobrearteeliteratura,essesdoistextosmostrammuitobemcomoalgunsconceitosdosistemafilosóficodeleuzianosãosuscitadospeloexercíciodepensamentonãoconceitualqueseencontranossaberesnãofilosóficos.

Issosignifica,antesdetudo,queafilosofiadeDeleuzenãoestásituadaacimadosoutrossaberes,comoaciênciaeaarte;nãoéummetadiscurso,umametalinguagem,queteriaporobjetivoformularcritériosde legitimidadeoude justificaçãodos outrosdiscursos, das outras linguagens, tendênciamodernaquecomeçou com Kant e perdura e se intensifica na epistemologia, no neopositivismo, na filosofia dalinguagem. Para Deleuze, a filosofia está no nível dos outros domínios; é produção, criação depensamento,talcomosãoasoutrasformasdesaber,sejamelascientíficasounão.

Mas issonãoquerdizerqueDeleuzeassimileosdiferentesdomíniosdepensamento.Adistinçãodasformasdecriaçãoéclaraparaele:enquantoaciênciacriafunçõeseaartecriasensações–perceptoseafetos–,afilosofiacriaconceitos,novosconceitos.Opensamentofilosóficoécriadorporquefaznasceralgumacoisaqueaindanãoexistia,algumacoisanova,umasingularidade.Enestesentidopode-sedizerque os conceitos são assinados, têm o nome de seu criador: ideia remete a Platão, substância aAristóteles,cogitoaDescartes,mônadaaLeibniz,condiçãodepossibilidadeaKant,duraçãoaBergson…

Como,então,Deleuzecriaosconceitosdesuafilosofia?Deummodobastanteoriginal:partindodoquefoi pensado por outros, sejam filósofos ou não, e integrando esses elementos como conceitos de suaprópriafilosofia.Assim,suafilosofiaéumsistemaderelaçõesentreconceitosoriundosouextraídosdaprópriafilosofia,istoé,defilósofosporeleprivilegiados–principalmenteEspinosa,NietzscheeBergson–e,poroutrolado,conceitossuscitadosousugeridosporoutrostiposdepensamento,istoé,peloexercíciodepensamentonãoconceitualqueseencontranasciências,nasartes,naliteratura.

Se o processo de pensamento de determinados filósofos, cientistas e artistas é condição do modosingulardeDeleuzefilosofar,qualéocritérioqueguiasuaescolhas?Arespostaésimples:aafirmaçãodadiferençaemdetrimentodaidentidade.SeDeleuzeintegraalgumpensamentodosoutrosàsuafilosofia–eeleestásemprefazendoisso–,éporquecomeleouapartirdelesetornapossívelafirmaradiferença,pensarsemsubordinaradiferençaàidentidade.

Quanto à filosofia, é o que acontece principalmente com os conceitos nietzschianos de vontade depotência, niilismo e eterno retorno, com os conceitos bergsonianos de multiplicidade, atual e virtual,gênese, atualização, duração, com os conceitos espinosistas de intensidade, expressão, imanência,univocidade; mas, além desses filósofos, os estoicos, Leibniz, Foucault etc. também são objeto desse“roubo” de conceitos. E o mesmo acontece quando Deleuze leva em consideração outros domínios dopensamento, estabelecendo ressonâncias entre a filosofia e esses outros saberes a partir da questãocentralqueorientasuasinvestigações:“oquesignificapensar?”,oumaisprecisamente,“oqueépensarsem subordinar a diferença à identidade?” No que diz respeito à ciência: teorias matemáticas, físicas,biológicas, linguísticas, antropológicas, psicanalíticas. No caso das artes, o que faz Melville, Proust ouKafkacommeiospropriamenteliterários,CézanneouBaconcommeiospicturais,OrsonWelles,ResnaisouGodardcommeioscinematográficos.Assim,aopensaraliteraturaeasartes,Deleuzeestárealizandoseuprojetofilosóficodeconstituiçãodeumafilosofiadadiferença,semquehajaumadiferençaessencialentreessesestudosdepensamentosnãofilosóficoseosestudosdostextostecnicamentefilosóficos,istoé,conceituais.UmótimoexemplodissoésuainterpretaçãodoromanceEmbuscadotempoperdido,deProust,comoumpensamentodiferencialcriadopelarelaçãoentresignoesentido,oquefazdolivrodeProustumdosinstrumentosdaformulaçãodesuafilosofiadadiferença.

Mas, além de sua filosofia ter como conteúdo a afirmação da identidade da diferença, seuprocedimento,seumododefazerissoestásemprecriandoadiferença.Como?Construindoumduplosemsemelhançadopensamento investigado.Pois, segundoele, repetiro textonãoébuscarsua identidade,masafirmarsuadiferença;épensaremseupróprionomeusandoonomedeumoutro.Sua leituradefilósofos, literatos, pintores ou cineastas é sempre organizada a partir de um ponto de vista, de umaperspectivaquefazoobjetoestudadosofrerpequenasougrandestorções,afimdeserintegradoasuasprópriasquestões.Deleuze incorporaconceitosou transformaemconceitoselementosnãoconceituais,mas,aoprocederàrepetiçãodadiferençacomoumamaneiradepensar,estásemprecriandoadiferença,comose fosseumdramaturgoqueescrevesseas falasedirigisseaparticipaçãodecadapensadorqueintegra à sua filosofia. Assim, é a compreensão da amplitude e do modo de funcionamento desseprocedimentoquemodificaotexto,produzindoseuduplo,quepossibilitaexplicitarodiferencialprópriodopensamentodeDeleuze–oqueconstituisuasingularidade.

E, para que isso seja possível, um outro procedimento está sempre presente: a inter-relação, oagenciamento,aconexãodepensamentosdediversoscriadores.Pois,seépossíveldetectar,nosestudos

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feitosporDeleuze,oprivilégiodealgunspensadoresemdetrimentodeoutros–tidoscomoaliadospelarelação diferencial que estabelecem quando pensam –, ele está sempre inter-relacionando essespensadores para criar os conceitos de sua própria filosofia da diferença. Como se utilizasse umprocedimentodecolagem,talqualodadaísmofeznapintura,paraque,porexemplo,sobamáscaradeSócratesapareçaorisodosofista,ouparaqueDunsScot,ograndefilósofomedieval,recebaosbigodesdeNietzsche,umNietzsche,aliás,fantasiadodeKlossowskiouBlanchot.Esesuasleiturasnãoreduzemessespensadores aomesmo, criandouma identidade entre eles, é porqueadiferença entre todos elespersiste,cadaumconservandosuasingularidade,suaindividualidadeprópria.Alémdisso,Deleuzenãoseidentificatotalmentecomnenhumdeles,nemmesmocomNietzsche,suainspiraçãofundamental,aquelequeatingiuoápicedeumafilosofiadadiferença.PoissualeituradeNietzscheéacriaçãodemaisumamáscara,acriaçãodeumduplosemsemelhança.

“Ummanifestodemenos”,sobreoator,dramaturgo,encenadorecineastaitalianoCarmeloBene,éumótimo exemplo de como Deleuze constitui sua filosofia com ou a partir do teatro, só levado emconsideraçãonessetextoenoposfáciosobreBeckett,queanalisareidepois.

Essetexto(publicadoemitalianoem1978eemfrancêsnoanoseguinte,juntamentecomRicardoIIIdeBene) apresenta várias ideias importantes da filosofia de Deleuze, desenvolvidas na década de 1970enquantoelepreparavaseulivroMilplatôscomGuattari.Umadelaséqueacrítica,aquioaspectocríticodopróprioteatro,éconsequênciadeumaconstituição,ouqueesseteatrocríticoéumteatroconstituinte,criador do novo. Mais precisamente, valorizando a característica do criador italiano de fazer peças apartir de outros dramaturgos – Shakespeare, por exemplo –, Deleuze defende que o teatro de Bene écrítico porque opera amputando, subtraindo alguma coisa – alguns dos elementos – da peça origináriapara fazer aparecer algo diferente. Por exemplo, emRicardo III, subtrair os reis e os príncipes comorepresentantesdopoderdeEstado,sóconservandoRicardoeasmulheres,paramostrarqueaambiçãodesteécriaruma“máquinadeguerra”capazdepôremquestãooaparelhodeEstado.Assim,oqueésubtraído, amputado ouneutralizadopelo procedimentoutilizadoporBene são os elementos dopoder.Mas,alémdopoderdoqueérepresentadoemcena,tambémopoderdopróprioteatro.Poisnãoéapenasa matéria teatral que ele modifica; é também a forma do teatro, que cessa de ser representação,constituindo-secomoumteatrodanãorepresentação,nalinhadeArtaud,BobWilson,GrotowskioudoLiving Theater. E se Deleuze não assimila totalmente Bene a esses renovadores do teatro é porquereconheceaoriginalidadedeseuprocedimento:asubtraçãodoselementosdopoder,queliberaumaforçanãorepresentativacomopotencialidadedoteatro.

Emsegundolugar,Deleuzeaprofundaessaideiacomotemadaminoriaedesuarelaçãocomoteatro.Esse tema do menor já interessa Deleuze pelo menos desde Kafka, por uma literatura menor, queescreveu com Guattari em 1975, onde eles estabelecem três características da literatura menor: adesterritorialização da língua, a articulação do individual com o político e o agenciamento coletivo deenunciação.Alémdisso,elefoiretomadonumpequenoartigode1978,“Filosofiaeminoria”(publicadonarevistaCritique e depois integrado aMil platôs), da mesma época de “Um manifesto de menos”, quecontrapõe maioria e minoria do ponto de vista qualitativo, inclusive no que diz respeito às línguas, edefendeaexistênciade“umafigurauniversalpossíveldaconsciênciaminoritária”quesearticulacomodevir.

Deleuzepensao“menor”emBene,primeiro,emrelaçãoàlíngua.Issosignificaqueaslínguaspodemserconsideradasmaioresoumenores:maioresquandotêmumaforteestruturahomogêneaeconstantesou universais de natureza fonológica, sintática ou semântica, o que as faz línguas do poder; menoresquando só comportam um mínimo de constantes e de homogeneidade estrutural. Mas significa, maisfundamentalmente – e entãoDeleuzeparece ir alémdoqueBenepensa explicitamente –, quemaior emenorqualificammenoslínguasdiferentesdoqueusosdiferentesdamesmalíngua.Pois,comoeleinsisteemváriosmomentos,todalínguamaiorémarcadaporlinhasdevariaçãocontínua,querdizer,porusosmenores,comodiz,porexemplo,o linguistaWilliamLabov.Exemplos:Kafka, judeutcheco,aoescreveremalemão,fazumusomenordalínguaqueutiliza,assimcomoBeckett,irlandêsescrevendoeminglêseemfrancês,ePasoliniutilizandoasvariedadesdialetaisdoitaliano.OucomoBobWilson,GherasimLucaeoutros.Retiraroselementosestáveisdalíngua,pondotudoemvariaçãocontínua,é,paraDeleuze,serbilínguenumamesmalíngua,serumestrangeiroemsuapróprialíngua,sergagodapróprialinguagemenãosimplesmentedafala.E,aesserespeito,eledefendequeaoriginalidadedeCarmeloBeneestáemsubmeter autores considerados maiores a um tratamento de autor menor para reencontrar suaspotencialidadesdevidaedepensamento.

Mas,como fazquandoanalisaa literatura,commais razãoainda,Deleuzenãoreduzo teatroaumaquestão de linguagem. Sua análise vai além, prolongando a variação da língua com um outro tipo devariação. Pois ele pensa que, quando os componentes linguísticos e sonoros, a língua e a fala,considerados como variáveis internas, são colocados em estado de variação contínua, eles entram emrelaçãorecíprocacomvariáveisexternasquedizemrespeitoacomponentesnãolinguísticos:asações,osgestos,asatitudesetc.Assim,oteatrodeBeneémarcadopelaeliminaçãodasconstantesouinvariantestantonalinguagemquantonosgestosemproldeumavariaçãocontínua.EissolevaDeleuzeaprivilegiar,emsuaanálisedeRicardoIIIporexemplo,aslinhasdevariaçãoentreosgestoseasvozes.

Finalmente, Deleuze procura esclarecer a importância política desse tipo de teatro. E faz issodistinguindo-odo teatropopularquerepresentaconflitos.Pois, seo teatropermanecerepresentativoacada vez que toma os conflitos como objeto, é porque eles já estão normalizados, codificados,institucionalizados.EopróprioBrechtnãopareceterescapadodisso,aoquererapenasqueelessejam

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compreendidos, que o espectador tenha os elementos de uma “solução” possível. O que não significaescapar da representação, mas apenas passar do polo da representação burguesa para o polo darepresentaçãopopular.JáCarmeloBenepretendesubstituirarepresentaçãodosconflitospelavariação,consideradacomoelementosub-representativo.

Mascomoeleécapazderealizarumavariaçãoquepossibiliteescapardarepresentação?Arespostaaessa questão é dada a partir da distinção entre maior e menor, ou entre “fato majoritário” e “devirminoritário”.SegundoDeleuze,aposiçãodeCarmeloBeneaesserespeitoconsisteemque,enquantooteatro popular remete a um fato majoritário, designando o padrão em relação ao qual as outrasquantidadesserãoconsideradasmenores–oquesupõeumestadodepoderoudedominação–,tornar-seminoritário é se desviar do modelo. Assim, a variação contínua não para de extrapolar o limiarrepresentativodopadrãomajoritário,possibilitandoaminoração.Eafunçãoantirrepresentativadoteatroseria constituir uma figura da consciência minoritária, tornando atual uma potencialidade, o que édiferentederepresentarumconflito.Destemodo,senessecasoaartenãoexercemaispoderéporque,participandodacriaçãodeumaconsciênciaminoritária,elaremeteapotênciasdodevir,quepertencemaumainstânciadiferentedodomíniodopoderedarepresentação,aopossibilitarqueseescapedosistemadepoderaquesepertenciacomopartedamaioria.Afunçãopolíticadoteatro–edaarteemgeral–écontribuirparaaconstituiçãodeumaconsciênciademinoria.

“O esgotado” (publicado como posfácio aQuad e outras peças para televisão, de Samuel Beckett, em1992) é um dos últimos escritos de Deleuze. Como o título indica, esse texto difícil interpreta opensamento de Beckett a partir do conceito de esgotamento de um modo que permite encontrar noromancistaedramaturgooâmagodoprópriopensamentodo filósofo:acriaçãoderelaçõesdisjuntivascapazesdeafirmaradiferença.

Paradefiniroesgotamento,Deleuzecomeçadistinguindo-odocansaçopelarelaçãoqueelestêmcomorealeopossível,defendendoqueocansadoesgotaarealização,enquantooesgotadoesgotaoprópriopossível, todo o possível, o que não se realiza no possível. Essa diferença de natureza significa que,enquanto a realização do possível se dá em função de determinadas preferências, isto é, procede porexclusãooudisjunçõesexclusivas,queacabamcansando,oesgotado,aocontrário,éalguémquerenunciaaqualquerpreferência,semnadarealizar,esgotadodenada,comdisjunçõesinclusasemqueostermosseafirmamemsuadistância.

Como, então, Beckett esgota o possível ou produz essas disjunções inclusas tão características doprocedimentodeleuziano?AtravésdoqueDeleuzechama“combinatória”.Essacombinatóriadizrespeito,emprimeirolugar,àlinguagem,istoé,temafunçãodeesgotaropossívelcompalavras,dando-lheumarealidade própria: uma realidade esgotável. Trata-se de uma língua dos nomes, língua atômica,corpuscular,disjuntiva,queremetea linguagemaobjetosenumeráveisecombináveis, istoé,emqueaenumeração substitui as proposições e as combinações, as relações sintáticas. Assim, para esgotar opossível,éprecisoremeterosobjetosàspalavrasqueosdesignampordisjunçõesinclusas,construindosériesexaustivasdecoisas.

Mas isso não basta, pois, além de esgotar o possível com palavras, também é preciso esgotar asprópriaspalavras,constituindoumalínguaquenãoémaisadosnomes,masadasvozes,compostanãomaisdeátomosquesecombinam,masdeondas,defluxosquesemisturam.Quandoseesgotaopossívelcompalavras,abrem-se,racham-seátomos;quandoasprópriaspalavrassãoesgotadas,interrompem-sefluxos.E,retomandooconceitodeoutro,presenteemsuaobradesdeDiferençaerepetiçãoeLógicadosentido,Deleuzeacrescentaque,paraesgotaraspalavras,éprecisoremetê-lasaoutros–queemseusmundos possíveis só têm a realidade de suas vozes – que as emitem, seguindo fluxos que às vezes semisturam,àsvezessedistinguem.Sãoesses fluxosdevoz,responsáveispeladistribuiçãodaspalavras,queprecisamserestancados,interrompidos.

E,paraisso,éprecisoiralémdalinguagemecriarumaimagem.Istoé,quandoalinguagematingeolimite,umlimiardeintensidade,elapermitepensaralgumacoisaquevemdefora,algo–vistoououvido–queDeleuzechamadeimagem,visualousonora,ecaracterizacomoumaimagempura,intensa,potente,singular, que, não sendo pessoal nem racional, dá acesso ao indefinido como intensidade pura: umamulher,umamão,umabocaetc.Assim,comoarelaçãoésempreomaisimportanteemDeleuze,éprecisoqueaimagempurapermaneçaemrelaçãocomalinguagem,istoé,comosnomeseasvozes,demodoaesvaziá-la. Se a imagem é uma maneira de esgotar o possível, é porque a energia da imagem édissipadora,istoé,aimagemarmazenaumaenergiapotencialqueeladetonaaosedissipar.Essede-foradalinguagem,noentanto,nãoéapenasaimagem:étambémoespaço,masum“espaçoqualquer”,semfunção,conceitoqueDeleuzeaprofundounosseuslivrossobreocinema.Eseelevoltaagora,naanálisedaspeçasdeBeckettparaocinema,éparadefenderque,seapotencialidadedoespaçoétornarpossívela realização de acontecimentos, o esgotamento esgota, extenua as potencialidades de um espaçoqualquer.

Deleuze conclui, então, a parte geral de sua exposição sintetizando os quatro modos de esgotar opossívelqueeledetectaemBeckett:formarsériesexaustivasdecoisas,estancarosfluxosdevoz,dissiparapotênciadaimagem,extenuaraspotencialidadesdoespaço.

A segunda parte do texto analisa as peças de Beckett para televisão com o objetivo de apresentarexatamente como esse esgotamento se dá. Em relação aQuad, peça que parece um balé, em que ospersonagens só são determinados espacialmente – só são definidos por sua ordem e sua posição –,Deleuzemostracomoesseespaçoqualquer,fechado,global,éesgotadooudespotencializado.Suaideiaprincipaléque,sendoocentroapotencialidadedoquadrado,consideradacomoapossibilidadedequeos

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personagens–osquatrocorposemmovimentoquepercorremseusladosesuasdiagonais–seencontremno centro, esgotar o espaço é exaurir sua possibilidade, tornando o encontro impossível, por um leverecuoemrelaçãoaocentroquefazoscorposseevitaremeevitaremocentro.

Trio do fantasma, a segunda peça para televisão estudada por Deleuze, difere de Quad por doismotivos.Primeiroporque,setambémdizrespeitoaoespaço,paraesgotarsuaspotencialidades,ela fazissodemaneiradiferente.Poisagorasetratadeumespaçoqualquersódeterminadolocalmente,enãoglobalmente,umespaçofragmentadoporcloses,determinadonostrêslados,comtrêspotencialidades:aporta a leste, a janela aonorte, o catre a oeste.E osmovimentosde câmerae os cortes constituemapassagemdeumaparteaoutradoespaço.Alémdisso,comoessaspartesdãoparaovazio,apassagemdeuma a outra só conecta vazios. Segundo,Trio do fantasma também difere deQuad porque tem voz emúsica–amúsicadeBeethovenquedánomeàpeça.Mas trata-sedeumavozdepurada,neutra, semintenções,entonações,lembranças,queseelevaàdimensãodeumimpessoalindefinido:umamulher,umhomem,umacriança.EmTrio,adespotencializaçãosedápelavoz,queestancaopossível,tantoquantopeloespaço,queexauresuaspotencialidades.Eentreavoz(eseussilêncios)eoespaço(eseusvazios)hácisão, separação,disjunção inclusa,cabendoàmúsicaconectaressescomponentesheterogêneosaomesmotempoqueseconverteemsilêncioeseabolenovazio.

Em…quenuages…,aterceirapeçaestudada,cujotítulovemdeumpoemadeYeats,Deleuzecomeçachamandoaatençãoparaqueocenário–o“santuário”,lugarondeopersonagemvaicriaraimagem,aporta quedá para os “caminhos vicinais”, o cubículo no qual ele troca de roupa – só existe na voz dopersonagem, ou só é dado pela palavra; por outro lado, o que se vê é apenas um espaço qualquer,determinado por um círculo, cada vez mais sombrio na direção da periferia, cada vez mais claro naproximidade do centro. Em seguida,Deleuze explicita o “duplo esgotamento”, físico e lógico, o acordoentreanecessidadedocorpoeanecessidadedoespírito,queseproduznarelaçãoentreoespaçoeaimagem.Eseoimportanteagoraéaimagemespiritual,enãooespaço,éporqueesse“teatrodoespírito”quer mostrar o que é construir uma imagem, ou que para criar uma imagem é preciso uma tensãoespiritual que eleva a coisa ou a pessoa ao estado indefinido: uma mulher. A imagem não é umarepresentação de objeto, mas um movimento no mundo espiritual. E por ser movimento espiritual,intensidadepura, energiapotencial, não se separado seuprópriodesaparecimento,de suadissipação,anunciandoqueofimdopossívelestápróximo–quandonãohaverámaisimagem,nemespaço.

Finalmente,NachtundTräume também temcomo tema, segundoDeleuze, a criaçãoda imagem.Sóquedessavezopersonagemnãofala,nãoouve,nãosemove:sonha.Trata-sedeumanovadepuração,que relacionaa criaçãoà insônia, oumelhor, ao sonhodo insone, quediz respeito aoesgotamento, aoesgotamentodopossível.OinsonedeNachtundTräumeéumesgotadoque,paracriar,precisadosonho,masdeumsonhodoespírito,quedevesercriado.O“sonhado”éaimagemvisual.Eaimagemvisual,quesedissipaesgotandoopossível,revezacomaimagemsonora–avozdehomemquecantarolaumamúsicade Schubert antes do surgimento e depois do desaparecimento da imagem –, trazendo o vazio ou osilênciodofim.

Formulando, desse modo, uma ideia também presente em alguns dos ensaios de Crítica e clínica,DeleuzedefendequeessaspeçasdeBeckettparatelevisãotêmcomoobjetivofender,abrir,esburacaraspalavras–sobrecarregadasdesignificações,intenções,lembranças,hábitos–,criandoumestilocapazdeproduzirvisõeseaudiçõespuras, intensas,quesemissopermaneceriamimperceptíveis.Aafinidadeoualiança de Deleuze com Beckett está na interpretação de sua obra como a criação de um estilo querelacionaalinguagemcomalgodenaturezadiferente–umde-foradalinguagem–paraqueapareçamovazio e o silêncio, isto é, o visível e o audível em si, ou, como às vezes também diz, o invisível e oinaudível.

ROBERTOMACHADOFilósofo,autordeDeleuze,aarteeafilosofia

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Ummanifestodemenos

Tradução:FátimaSaadi

Revisãotécnica:DeniseVaudoisRobertoMachado

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1.Oteatroesuacrítica

ArespeitodesuapeçaRomeueJulieta,CarmeloBene1diz:“ÉumensaiocríticosobreShakespeare.”MasofatoéqueCBnãoescrevesobreShakespeare:oensaiocríticoéumapeçadeteatro.Comoconceberessarelaçãoentreoteatroesuacrítica,entreapeçaorigináriaeapeçaderivada?OteatrodeCBtemumafunçãocrítica,mascríticadequê?Nãosetratade“criticar”Shakespeare,nemdeumteatrodentrodoteatro,nemdeumaparódia,nem

de uma nova versão da peça etc. CB procede de outromodo, e émais inovador. Suponhamos que eleampute a peça originária de umde seus elementos.Ele subtrai alguma coisa da peça originária.Maisprecisamente:elenãochamasuaprópriapeçasobreHamletdeumHamletamais,masde“umHamletdemenos”,comoLaforgue.Elenãoprocedeporadição,masporsubtração,amputação.Comoeleescolheoelementoaseramputadoéoutraquestão,queveremosmaisadiante.Porexemplo,eleamputaRomeu,eleneutralizaRomeunapeçaoriginária.Entãotodaapeça,porquelhefaltaumpedaço,nãoarbitrariamenteescolhido,vaitalvezoscilar,girarsobresimesma,colocar-seemoutrolado.SevocêamputarRomeu,vaiassistiraumsurpreendentecrescimento,ocrescimentodeMercúcio,queeraapenasumavirtualidadenapeçadeShakespeare.MercúciomorrerápidoemShakespeare,masemCBelenãoquermorrer,elenãopodemorrer,elenãoconseguemorrer,vistoquevaiconstituiranovapeça.Trata-se,então,emprimeirolugar,daconstituiçãodeumpersonagemnoprópriopalco.Atéosobjetos,

osacessórios,aguardamseudestino,istoé,anecessidadequeocaprichodopersonagemvailhesatribuir.A peça se confunde primeiro com a fabricação do personagem, sua preparação, seu nascimento, seusbalbucios,suasvariações,seucrescimento.Esseteatrocríticoéumteatroconstituinte,aCríticaéumaconstituição.Ohomemdeteatronãoémaisautor,atorouencenador.Éumoperador.Poroperaçãodeve-seentenderomovimentodasubtração,daamputação,masjárecobertoporumoutromovimento,quefaznascer e proliferar algo de inesperado, como numa prótese: amputação de Romeu e crescimentogigantescodeMercúcio,umdentrodooutro.Éumteatrodeumaprecisãocirúrgica.Desdeentão,seCBtemfrequentementenecessidadedeumapeçaoriginária,nãoéparafazerdelaumaparódia,seguindoamoda, nem para acrescentar literatura à literatura. Pelo contrário, é para subtrair a literatura, porexemplo subtrair o texto, uma parte do texto, e ver o que acontece.Que as palavras deixem de fazer“texto”… É um teatro-experimentação, que comporta mais amor por Shakespeare do que todos oscomentários.TomemosocasodeS.A.D.E.Destavez,sobreumfundoderecitaçãopetrificadadetextosdeSade,éa

imagemsádicadoSenhorqueseencontraamputada,paralisada,reduzidaaumtiquemasturbatório,aomesmotempoqueoServomasoquistasebusca,cresce,semetamorfoseia,seexperimenta,seconstituiem cena em função das insuficiências e das impotências do senhor. O Servo não é absolutamente aimagem invertidadosenhor,nemsua réplicaousua identidadecontraditória:ele seconstituipeçaporpeça,pedaçoporpedaço,apartirdaneutralizaçãodosenhor;eleadquiresuaautonomiadaamputaçãodosenhor.Por fim,Ricardo III, onde CB talvez vá o mais longe possível em sua construção teatral. O que é

amputadoaqui,oqueésubtraído,étodoosistemarealeprincipesco.SóRicardoIIIeasmulheressãoconservados.Masentãoaparecesobumanovaluzoquenatragédiaexistiaapenasvirtualmente:RicardoIIItalvezsejaaúnicatragédiadeShakespearenaqualasmulherestravamrelaçõesdeguerra.E,porseulado,oqueRicardoIIIcobiçaémenosopoderdoqueareintroduçãoouareinvençãodeumamáquinadeguerracapazdedestruiroequilíbrioaparenteouapazdoEstado(oqueShakespearechamaosegredodeRicardo,seu“objetivosecreto”).OperandoasubtraçãodospersonagensdePoderdeEstado,CBvaidarlivrecursoàconstituiçãodohomemdeguerraemcena,comsuaspróteses,suasdeformidades,suasexcrescências, suas malformações, suas variações. O homem de guerra sempre foi considerado, nasmitologias,comodeorigemdiferentedohomemdeEstadooudorei:disformeetortuoso,elevemsempredeoutrolugar.CBofazadviremcena:àmedidaqueasmulheresemguerraentramesaem,preocupadascomseusfilhosquegemem,RicardoIIIdeveráirsetornandodisformeparadivertirascriançasereterasmães.Elecomporáparasimesmopróteses,apartirdosobjetosquetiraaoacasodeumagaveta.Eleseconstituirá um pouco como Mr. Hyde, com cores, barulhos, coisas. Ele se formará, ou melhor, sedeformaráseguindoumalinhadevariaçãocontínua.ApeçadeCBcomeçaporumabelíssima“notasobreo feminino” (jánãohaverianaPentesileiadeKleistumarelaçãosemelhanteentreohomemdeguerra,Aquiles,eoFeminino,oTravesti?).AspeçasdeCBsãocurtas,ninguémmelhordoqueelesabeterminar.Eledetestaqualquerprincípiode

constânciaoudeeternidade,depermanênciadotexto:“Oespetáculocomeçaeterminanomomentoemqueéfeito.”Eapeçaacabacomaconstituiçãodopersonagem,elasótemcomoobjetooprocessodessaconstituição,enãoseestendeparaalémdele.Elaparacomonascimento,enquantohabitualmenteénamortequesepara.Nãoseconcluirádaíqueessespersonagenstenhamum“eu”.Muitopelocontrário,eles não têm “eu”. Ricardo III, o Servo,Mercúcio só nascem numa série contínua demetamorfoses evariações. O personagem forma uma unidade com o conjunto do agenciamento cênico, cores, luzes,gestos, palavras. É curioso o que se diz frequentemente a respeito de CB: é um grande ator – elogiomescladodereprovação,acusaçãodenarcisismo.OorgulhodeCBseriadeslancharumprocessodoqual

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eleémaisocontrolador,omecânicoouooperador(elemesmodiz:oprotagonista)doqueoator.Parirummonstroouumgigante…Nãoéumteatrodeautor,nemumacríticadeautor.Mas,seesseteatroéindissociavelmentecriadore

crítico,sobreoqueincideacrítica?NãoéCBcriticandoShakespeare.Nomáximosepoderiadizerque,seuminglês,nofimdoséculoXVI,temumadeterminadaimagemdaItália,umitalianodoséculoXXpodedevolver uma imagemda InglaterranaqualShakespeare se encontra.O admirável cenário gigantedeRomeueJulieta,comseusvidrose frascos imensoseJulietaquedormenumbolo,mostraShakespeareatravés de LewisCarroll,mas LewisCarroll através da comédia italiana (Carroll já propunha todo umsistemadesubtraçõessobreShakespeareafimdedesenvolvervirtualidadesinesperadas).Tambémnãose trata de uma crítica dos países ou das sociedades. Perguntam sobre o que incidem as subtraçõesiniciaisoperadasporCB.Nostrêscasosprecedentes,oqueésubtraído,amputadoouneutralizadosãooselementos de Poder, os elementos que fazem ou representam um sistema do Poder: Romeu comorepresentantedopoderdas famílias,oSenhorcomorepresentantedopodersexual,osreisepríncipescomo representantes do poder de Estado. E são os elementos do poder no teatro que asseguram aomesmotempoacoerênciadoassuntotratadoeacoerênciadarepresentaçãoemcena.Éaomesmotempoopoderdoqueestárepresentadoeopoderdopróprioteatro.Nestesentido,oatortradicionaltemumacumplicidadeantigacomospríncipeseosreis,eoteatrocomopoder:NapoleãoeTalma.Overdadeiropoder do teatro não é separável de uma representação do poder no teatro, mesmo que seja umarepresentação crítica. E CB tem uma outra concepção da crítica. Quando ele escolhe amputar oselementosdepoder,nãoéapenasamatériateatralqueelemuda,étambémaformadoteatro,quecessadeser“representação”,aomesmotempoqueoatorcessadeserator.Eledálivrecursoaoutramatériaeaoutraformateatrais,quenãoteriamsidopossíveissemessasubtração.DirãoqueCBnãoéoprimeiroafazerumteatrodanãorepresentação.CitarãoaoacasoArtaud,BobWilson,Grotowski,oLivingTheater…Masnósnãoacreditamosnautilidadedasfiliações.Asaliançassãomaisimportantesqueasfiliações.CBtemgrausdealiançamuitodiferentescomestesqueacabamosdecitar.Elepertenceaummovimentoque subverteprofundamenteo teatro contemporâneo.Mas sópertencea essemovimentopeloqueelepróprioinventa,enãoocontrário.Eaoriginalidadedeseuprocedimento,oconjuntodosseusrecursos,nosparece ligado ao seguinte: à subtraçãodos elementos estáveis dePoder, que vai liberar umanovapotencialidadedeteatro,umaforçanãorepresentativasempreemdesequilíbrio.

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2.Oteatroesuasminorias

CB se interessa muito pelas noções deMaior e Menor. Ele lhes dá um conteúdo vivido. O que é umpersonagem“menor”?Oqueéumautor“menor”?Antesdetudo,CBdizqueébesteiraseinteressarpelocomeçooupelofimdequalquercoisa,pelospontosdeorigemoudetérmino.Ointeressantenuncaéamaneirapelaqualalguémcomeçaoutermina.Ointeressanteéomeio,oquesepassanomeio.Nãoéporacaso que a maior velocidade está no meio. As pessoas sonham frequentemente em começar ourecomeçardozero;etambémtêmmedodolugaraondevãochegar,deseupontodequeda.Pensamemtermos de futuro ou de passado, mas o passado, e até mesmo o futuro, é história. O que conta, aocontrário,éodevir:devir-revolucionário,enãoofuturoouopassadodarevolução.“Nãochegareialugarnenhum,nãoquerochegaralugarnenhum.Nãoháchegadas.Nãomeinteressaaondeumapessoachega.Um homem pode também chegar à loucura. O que isto quer dizer?” É no meio que há o devir, omovimento,avelocidade,oturbilhão.Omeionãoéumamédia,esim,aocontrário,umexcesso.Épelomeioqueascoisascrescem.EraaideiadeVirginiaWoolf.Ora,omeionãoquerdizerabsolutamenteestardentrodeseutempo,serdeseutempo,serhistórico;aocontrário:éaquilopormeiodoqualostemposmais diferentes se comunicam. Não é nem o histórico nem o eterno,mas o intempestivo. E um autormenoréjustamenteisso:semfuturonempassado,elesótemumdevir,ummeiopeloqualsecomunicacomoutrostempos,outrosespaços.GoethedavaaKleistseveraslições,explicandoqueumgrandeautor,um autor maior, tinha a obrigação de ser de seu tempo. Mas Kleist era incuravelmente menor.“Antihistoricismo”,dizCB:vocêssabemquaissãooshomensquedevemservistosemseuséculo?Aquelesque são considerados os maiores. Goethe, por exemplo, não pode ser visto fora da Alemanha de seutempo,ouentão,seeledeixaseutempo,éparaimediatamenteencontraroeterno.Masosverdadeirosgrandesautoressãoosmenores,osintempestivos.Éoautormenorquemdáasverdadeirasobras-primas,oautormenornãointerpretaseutempo,ohomemnãotemumtempodeterminado,otempodependedohomem: François Villon, Kleist ou Laforgue. Então não haveria interesse em submeter os autoresconsideradosmaioresaumtratamentodeautormenorparareencontrarsuaspotencialidadesdedevir?Shakespeare,porexemplo?

Haveriacomoqueduasoperaçõesopostas.Porumlado,eleva-seao“maior”:deumpensamentosefazumadoutrina,deummododeviversefazumacultura,deumacontecimentosefazHistória.Pretende-seassimreconhecereadmirar,mas,defato,senormaliza.ÉcomooscamponesesdaPuglia,2segundoCB:pode-sedaraelesteatro,cinemaeatémesmotelevisão.Nãosetratadelamentarosvelhostempos,masdeseespantardiantedaoperaçãoimpostaaeles,oenxerto,otransplantequesefezàsuareveliaparanormalizá-los.Elessetornarammaiores.Então,operaçãoporoperação,cirurgiacontracirurgia,pode-seconcebero inverso:como“minorar”(termoempregadopelosmatemáticos),comoimporumtratamentomenor ou de minoração, para liberar devires contra a História, vidas contra a cultura, pensamentoscontraadoutrina,graçasoudesgraçascontraodogma.QuandosevêoqueShakespearesofrenoteatrotradicional,suamagnificação-normalização,exige-seoutrotratamentoquereencontrarianeleessaforçaativademinoridade.Osteólogossãomaiores,masalgunssantos italianossãomenores.“Ossantosquechegarampelagraça:SãoJosédeCupertino,os imbecis,ossantos idiotas,SãoFranciscodeAssis,quedançadiantedopapa…Digoquejáháculturadesdeoinstanteemqueestamosocupadosemexaminarumaideia,nãoemviveressaideia.Senóssomosaideia,entãopodemosdançaradançadeSãoGuidoeestamosemestadodegraça.Nóscomeçamosasersábiosexatamentequandocaímosemdesgraça.”Sónossalvamos,sónostornamosmenorespelaconstituiçãodeumadesgraçaoudeformidade.Éaoperaçãodagraça.ComonahistóriadeLourdes:fazeicomqueminhamãofiquecomoaoutra…masDeusescolhesempreamãoerrada.Comocompreenderessaoperação?Kleistgaguejandoerangendoosdentes?

Tambémsepodeaplicarmaioremenoràslínguas.Seráquesepode,emcadaépoca,distinguirlínguasmaiores,mundiaisounacionais,veiculares,elínguasmenoresvernaculares?Oinglês,oamericano,seriahoje línguamaior, o italiano, línguamenor?Distinguem-se uma língua elevada e uma língua baixa nassociedadesqueseexprimememduaslínguasoumais.Masissonãoseverificatambémnassociedadesdeumasólíngua?Épossíveldefinirlínguasmaiores,mesmoquandoelastêmpoucoalcanceinternacional:são línguasde forte estruturahomogênea (estandardização) e centradas em invariantes, constantes ouuniversais de natureza fonológica, sintática ou semântica. CB esboça uma linguística para rir: assim ofrancêspareceserumalínguamaior,mesmotendoperdidosuaextensãointernacional,porquetemumaforte homogeneidade e fortes constantes fonológicas e sintáticas. Isso não deixa de ter consequênciaspara o teatro: “Os teatros franceses são museus do cotidiano, uma repetição desconcertante e chata,porque, em nome de uma língua falada e escrita, a pessoa vai de noite ver e ouvir o que viu e ouviuduranteodia.Teatralmente:entreMarivauxeochefedaestaçãode trememParisnãohá,realmente,diferençanenhuma,anãoserquenoThéâtrede l’Odéonnãosepodetomaro trem.”O inglêspodesefundar emoutras invariantes, por exemplo constantes semânticas, e é sempre à força de constantes ehomogeneidadequeumalínguaémaior:“AInglaterraéumahistóriaderei…OsGielguldeosOliviersãocópias vivas dos antigosKemble eKean.Amonarquia doerauma vez: é essa a tradição inglesa.” Emsuma,pormaisdiferentesquesejam,aslínguasmaioressãolínguasdepoder.Pode-secontraporaelaslínguasmenores–oitaliano,porexemplo(“Nossopaíséjovem,aindanãotemlíngua…”).Ejánãosetem

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maisescolha,éprecisodefiniraslínguasmenorescomolínguasdevariabilidadecontínua–sejaqualforadimensão considerada: fonológica, sintática, semântica ou atémesmo estilística.Uma línguamenor sócomporta ummínimo de constante e de homogeneidade estruturais. Não é contudo uma salada, umamisturada de dialetos, visto que ela encontra suas regras na construção de um continuum. De fato, avariação contínua se aplicará a todos os outros componentes sonoros e linguísticos, numa espécie decromatismogeneralizado.Issoéopróprioteatroouo“espetáculo”.

Mas essa é a razão pela qual é difícil opor línguas que seriam, por natureza,maiores e outras queseriammenores. Acontece, especialmente na França, de se protestar contra o imperialismo do inglêsbritânico ou do americano, mas esse imperialismo tem precisamente como contrapartida que o inglêsbritânicoeoamericanosejamtrabalhadosaomáximo,dedentro,pelasminoriasqueosempregam.Vejamcomooanglo-irlandêstrabalhaoinglêsnaobradeSynge,impondo-lheumalinhadefugaoudevariaçãocontínua: “the way…”. E, sem dúvida, não é do mesmo modo que as minorias trabalham o inglêsamericano, com o black-english, e todos os americanos de gueto. Mas, de todo modo, não há línguaimperialquenãosejaescavada,arrastadaporessas linhasdevariação inerenteecontínua,querdizer,por esses usosmenores. A partir daí,maior emenor qualificammenos línguas diferentes do que usosdiferentesdamesmalíngua.Kafka,judeutcheco,aoescreveremalemãofazdoidiomaumusomenore,com isso, produz uma obra-prima linguística decisiva (generalizando: o trabalho dasminorias sobre oalemão no império austríaco). Quando muito, seria possível dizer que uma língua é mais ou menoscapacitadaparaessesusosmenores.

Os linguistastêm,comfrequência,umaconcepçãodiscutíveldoobjetoqueestudam.Dizemquetodalínguaé,claro,umamisturaheterogênea,masquenãosepodeestudá-lacientificamentesemdelaextrairumsubsistemahomogêneoeconstante:umdialeto,umpatois,umalínguadeguetoestariam,portanto,submetidosàmesmacondiçãoqueumalínguastandard(Chomsky).Apartirdaí,asvariaçõesqueafetamuma língua serão consideradas ou como extrínsecas e fora do sistema ou como testemunhando umamisturaentredoissistemas,cadaumhomogêneoporseulado.Mastalvezessacondiçãodeconstânciaedehomogeneidadejásuponhaumcertousodalínguaemquestão:usomaiorquetrataalínguacomoumestadodepoder,ummarcadordepoder.Umpequenonúmerodelinguistas(emespecialWilliamLabov)depreendeuemtodalínguaaexistênciadelinhasdevariação,incidindosobretodososseuscomponenteseconstituindoregrasimanentesdeumnovotipo.Nãoseatingiráumsistemahomogêneoqueaindanãotenhasidotrabalhadoporumavariaçãoimanente,contínuaeregulada:eisoquedefinetodalínguaporseuusomenor,umcromatismoampliado,umblack-englishparacadalíngua.Avariabilidadecontínuanãose explica por um bilinguismo nem por umamistura de dialetos, mas pela propriedade criadoramaisinerente à língua enquanto ela é considerada num usomenor. O que, de certomodo, é o “teatro” dalíngua.

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3.Oteatroesualíngua

Nãosetratadeumantiteatro,deumteatrodentrodoteatro,ouquenegaoteatroetc.:CBsenterepulsapelasfórmulasditasdevanguarda.Trata-sedeumaoperaçãomaisprecisa:começa-seporsubtrair,retirartudooqueéelementodepodernalínguaenosgestos,narepresentaçãoenorepresentado.Nãosepodenemdizerquesejaumaoperaçãonegativa,namedidaemqueela jáestimulaedesencadeiaprocessospositivos. Então, retira-se ou amputa-se a história, porque aHistória é omarcador temporal doPoder.Retira-se a estrutura, porque é o marcador sincrônico, o conjunto das relações entre invariantes.Subtraem-seasconstantes,oselementosestáveisouestabilizados,porqueelespertencemaousomaior.Amputa-seotexto,porqueotextoécomoadominaçãodalínguasobreafalaeaindadátestemunhodeumainvariânciaoudeumahomogeneidade.Retira-seodiálogoporqueodiálogotransmiteàpalavraoselementosdepoder e os faz circular: é a sua vezde falar, em tais condições codificadas (os linguistasprocuramdeterminar“universaisdodiálogo”).Etc.,etc.ComodizFrancoQuadri,retira-seatémesmoadicção,atémesmoaação:oplaybackéantesdemaisnadaumasubtração.Masoquesobra?Sobratudo,massobumanovaluz,comnovossons,novosgestos.

Diz-se,porexemplo:“Juro.”Masoenunciadonãoéabsolutamenteomesmopronunciadodiantedeumtribunal,numacenadeamorounumasituaçãodeinfância.Eessavariaçãoafetanãoapenasasituaçãoexterior,nãoapenasaentonaçãofísica;elaafeta,dedentro,asignificação,asintaxeeosfonemas.Vai-se,então, fazer um enunciado passar, no mais curto espaço de tempo, por todas as variáveis que podemafetá-lo. O enunciado será apenas a soma de suas próprias variações, que o fazem escapar de cadaaparelhodepodercapazdefixá-lo,equeofazemevitartodaconstância.Vai-seconstruirocontinuumdeEu juro. Suponhamos que lady Anne diga a Ricardo III: “Você me causa horror!” Não é sob nenhumaspectoomesmoenunciadoseele forogritodeumamulheremguerra,deumacriançadiantedeumsapooudeumajovemquesenteumacompaixãojáamorosaeestáprestesaceder.SeráprecisoqueladyAnne passe por todas essas variáveis, que ela se levante como mulher de guerra, volte como criançapequena, renasçacomo jovemnuma linhadevariaçãocontínuaeomais rapidamentepossível.CBnãoparadetraçaressaslinhasnasquaisseencadeiamposições,regressões,renascimentos.Pôralínguaeapalavraemvariaçãocontínua.Daíautilizaçãomuitooriginaldoplayback,vistoqueoplaybackgarantiráaamplitudedasvariaçõeselhesdarásuasregras.ÉcuriosocomonãohádiálogonoteatrodeCB;porqueas vozes simultâneas ou sucessivas, superpostas ou transpostas, estão contidas na continuidadeespaçotemporaldavariação.ÉumaespéciedeSprechgesang.Nocanto,trata-sedemanteraaltura,masnoSprechgesangnãoseparadeabandoná-lapormeiodeumaquedaoudeumasubida.Desdeentão,nãoé o texto que conta, simples material para a variação. Seria preciso até sobrecarregar o texto comindicações não textuais e, contudo, interiores,que não seriammais apenas cênicas, que funcionariamcomo operadores, exprimindo, a cada vez, a escala das variáveis pelas quais o enunciado passa,exatamente como numa partitura musical. Ora, é assim que CB escreve: uma escrita que não é nemliterárianemteatral,masrealmenteoperatóriaecujoefeitosobreoleitorémuitoforte,muitoestranho.VejamessesoperadoresqueemRicardoIIIocupammuitomaislugarqueoprópriotexto.TodooteatrodeCBdeveservisto,mastambémlido,emborao textopropriamenteditonãosejaoessencial. Issonãoécontraditório.Émaiscomodecifrarumapartitura.AreservadeCBcomrelaçãoaBrechtseexplicaassim:Brechtefetuouamaior“operaçãocrítica”,masessaoperaçãofoifeita“sobreoescritoenãoemcena”.Aoperaçãocríticacompletaéaqueconsisteem:1º)retiraroselementosestáveis;2º)colocar,então,tudoem variação contínua; 3º) a partir daí, transpor também tudo paramenor (é o papel dos operadores,respondendoàideiadeintervalo“menor”).

O que é esse uso da língua segundo a variação? Seria possível expressá-lo de várias maneiras: serbilíngue,masnumamesmalíngua,numalínguaúnica…Serumestrangeiro,masemsuapróprialíngua…Gaguejar,mas sendo gago da própria linguagem e não simplesmente da fala… CB acrescenta: falarconsigomesmo,nopróprioouvido,masemplenomercado,napraçapública…Seriaprecisoconcordaremtomar cada uma dessas fórmulas em si mesma, para definir o trabalho de CB e ver não quaisdependências, mas quais alianças, quais encontros ele mantém com outras tentativas mais antigas oucontemporâneas. O bilinguismo nos coloca no caminho, mas apenas no caminho. Porque o bilinguismosaltadeumalínguaparaoutra;umapodeterumusomenor,aoutraumusomaior.Pode-seatéfazerumamisturaheterogêneadeváriaslínguasoudeváriosdialetos.Masaquiénumamesmalínguaquesedevechegaraserbilíngue,éàminhapróprialínguaquedevoimporaheterogeneidadedavariação,énelaquedevo talharousomenore retiraroselementosdepoderoudemaioria.Pode-sesemprepartirdeumasituaçãoexterna:porexemplo,Kafka,judeutchecoescrevendoemalemão,Beckett,irlandêsescrevendosimultaneamenteeminglêseemfrancês,Pasoliniutilizandoasvariedadesdialetaisdoitaliano.Masénopróprio alemão que Kafka traça uma linha de fuga ou de variação contínua. É o próprio francês queBeckettfazgaguejar.EtambémJean-LucGodard,deoutraforma.EGherasimLuca,aindadeoutra.EéoinglêsqueBobWilson faz sussurrar,murmurar (porqueo sussurronão implicauma intensidadebaixa,mas, ao contrário, uma intensidade que não tem altura definida). Ora, a fórmula da gagueira é tãoaproximadaquantoadobilinguismo.Gaguejar,emgeral,éumdistúrbiodafala.Masfazeralinguagemgaguejaréoutracoisa.Éimporàlíngua,atodososelementosinternosdalíngua,fonológicos,sintáticos,

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semânticos, o trabalho da variação contínua. Acredito que Gherasim Luca é um dos maiores poetasfranceses,edetodosostempos.Claroqueelenãodeveissoàsuaorigemromena,maseleseservedessaorigemparafazerofrancêsgaguejaremsimesmo,consigomesmo,paralevaragagueiraparadentrodalinguagemenãoparadentroda fala. Leiamou escutemopoema “Passionément”, que foi gravado emdisco e editado na coletâneaLe chant de la carpe.Nunca se atingiu tal intensidade na língua, tal usointensivoda linguagem.GherasimLuca recitando empúblico seuspoemas éumacontecimento teatralcompleto e maravilhoso. Então, ser um estrangeiro em sua própria língua… Não é falar “como” umirlandês ou um romeno falam francês. Não é o caso nem de Beckett nem de Luca. É impor à língua,mesmo sabendo falar essa língua perfeita e sobriamente, a linha de variação que faria de você umestrangeironasuapróprialíngua,ouquefariadalínguaestrangeiraasualíngua,oudasualínguaumbilinguismoimanenteporsuaestranheza.VoltarsempreàfórmuladeProust:“Osbeloslivrossãoescritosnumaespéciede línguaestrangeira…”Ou,o inverso,ocontodeKafka“Ograndenadador”(quenuncasoube nadar): “Tenho que constatar que estou no meu país e, apesar de todos os meus esforços, nãocompreendo uma única palavra da língua falada aqui…” São as alianças ou os encontros de CB,voluntários ou não, com aqueles que acabamos de citar. E valem pela maneira como ele constrói seusprópriosmétodosparafazê-losgaguejar,sussurrar,variarsuapróprialínguaetorná-laintensivanoníveldecadaumdeseuselementos.

Todososcomponenteslinguísticosesonoros,indissociavelmentelínguaefala,são,portanto,colocadosem estado de variação contínua. Mas isso não deixa de ter efeito sobre os outros componentes nãolinguísticos,ações,paixões,gestos,atitudes,objetosetc.Poisnãosepodemtrataroselementosdalínguae da fala como variáveis internas sem colocá-las em relação recíproca com as variáveis externas, namesmacontinuidade,nomesmo fluxodecontinuidade.Énomesmomovimentoquea língua tenderáaescapardosistemadoPoderquelhedáestrutura,eaaçãotenderáaescapardosistemaSenhorialoudaDominaçãoque a organiza.Numbelo artigo,CorradoAugiasmostrava como, emCB, se conjugamumtrabalhode“afasiasobrealíngua”(dicçãomurmurada,gaguejanteoudeformada,sonsquaseinaudíveisou então ensurdecedores) e um trabalho de “impedimento” sobre as coisas e os gestos (figurinos queatrapalham o movimento em vez de facilitar, adereços que entravam o deslocamento, gestos rígidosdemais ou “frouxos” demais). Por exemplo a maçã deSalomé continuamente engolida e cuspida; e osfigurinosquenãoparamdecairequedevemsercontinuamenterecolocadosno lugar,oobjetodeusosempre atrapalhando em vez de ajudar, a mesa que se interpõe em vez de servir de suporte: deve-sesempreatravessar os objetos emvezdemanejá-los; ou ainda, emS.A.D.E., a cópula perpetuamenteadiada,esobretudooServoqueseenrola,seabstémnasériecontínuadesuasmetamorfoses,porquenãodeve dominar seu papel de servo; e, no começo de Ricardo III, Ricardo que não para de perder oequilíbrio,decambalear,deescorregardacômodaemqueseapoia…

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4.Oteatroeseusgestos

Seriaprecisodizerqueesseduploprincípio,deafasiaede impedimento,desvelarelaçõesdeforçanasquaiscadacorpoéumobstáculoaocorpodooutro,ecadavontadeentravaadosoutros?Háoutracoisaalémdeumjogodeoposiçõesquenoslevariadevoltaaosistemadopoderedadominação.Éque,peloimpedimentocontinuado,osgestoseosmovimentossãopostosemestadodevariaçãocontínua,unsemrelaçãoaosoutrosecadaumporsimesmo,exatamentecomoasvozeseoselementos linguísticossãocarregadosnessemeiodavariação.OgestodeRicardoIIInãoparadeabandonarseupróprionível,suaprópria altura, por uma queda, ou por uma subida, ou por um escorregão: o gesto em perpétuodesequilíbriopositivo.Aroupaqueétiradaerecolocada,quecaiequeénovamenteapanhada,écomoavariaçãodaroupa.Ouavariaçãodasflores,quetemtantolugarnotrabalhodeCB.E,efetivamente,hámuitopoucoschoqueseoposiçõesnoteatrodeCB.Podem-seconceberprocedimentosqueproduziriamagagueirafazendocomqueaspalavrassechocassem,queosfonemasseopusessemouatéquevariedadesdialetaisseafrontassem.MasnãosãoosmeiosqueCBemprega.Pelocontrário,abelezadeseuestiloéobteragagueirapelainstauraçãodelinhasmelódicasquearrastamalinguagemparaforadeumsistemadeoposiçõesdominantes.Eomesmoacontececomagraçadosgestosemcena.Écuriosonesseaspectoquemulheresencolerizadas,eatécríticos,tenhamcensuradoCBporsuaencenaçãodocorpofemininoeo tenhamacusadodesexismooude falocracia.Amulher-objetodeS.A.D.E., a jovemnua,passaportodasasmetamorfosesqueoSenhorsádicolheimpõe,transformando-anumasériesucessivadeobjetosdeuso:maselaatravessaessasmetamorfoses,elanuncaassumiráposturaaviltante,elaencadeiaseusgestossegundoalinhadeumavariaçãoqueafazescapardadominaçãodoSenhoreafaznascerforadeseudomínio,perpetuandosuagraçaatravésdetodaasérie.ParabénsàatrizquearepresentouemParis.Nuncaénas relaçõesde forçaedeoposiçãoquesedesdobrao teatrodeCB,emboraesse teatroseja“duro”e“cruel”.Maisqueisso,asrelaçõesdeforçaedeoposiçãofazempartedoquesóémostradoparaser subtraído, retirado, neutralizado.Os conflitos não interessammuito aCB. São um simples suportepara a Variação. O teatro de CB se desdobra somente nas relações da variação que eliminam os“senhores”.

Navariação,oquecontasãoasrelaçõesdevelocidadeou lentidão,asmodificaçõesdessasrelações,enquantoacarretamosgestoseosenunciadossegundocoeficientesvariáveisaolongodeumalinhadetransformação.Épor aí que a escrita e os gestos deCB sãomusicais: porquequalquer formaé entãodeformadapelasmodificações de velocidade que fazem comque não se passe duas vezes pelomesmogesto ou pela mesma fala sem obter características diferentes de tempo. É a fórmula musical dacontinuidadeoudaformatransformável.Os“operadores”quefuncionamnoestiloenaencenaçãodeCBsãoindicadoresdevelocidadequenempertencemmaisaoteatro,emboranãolhesejamexternos.ECBencontrouomeiodeenunciá-losplenamenteno“texto”desuaspeças,emboraelesnãofaçampartedotexto.OsfísicosdaIdadeMédiafalavamdemovimentosedequalidadesdisformes,segundoadistribuiçãodas velocidades entre os diferentes pontos de um móvel, ou a distribuição das intensidades entre osdiferentes pontos de um sujeito. A subordinação da forma à velocidade, à variação de velocidade, e asubordinaçãodosujeitoàintensidadeouaoafeto,àvariaçãointensivadosafetos,são,parece-nos,doisobjetivosessenciaisdasartes.CBparticipaplenamentedessemovimentoquefazincidiracríticasobreaformaesobreosujeito(noduplosentidode“tema”ede“eu”).Apenasafetosenadadesujeito,apenasvelocidades e nada de forma. No entanto, mais uma vez, o que conta são osmeios próprios a CB derealizar esse objetivo: a continuidade de variação. Quando ele identifica a graça com omovimento dadesgraça(os“santosidiotas”queeleama),querapenassubordinarasformasqualificadasàdeformidadedomovimentooudaqualidade.HátodaumageometrianoteatrodeCB,masumageometriaàmaneiradeNicolasOresme,3umageometriadasvelocidadesedasintensidades,dosafetos.

Os filmesdeCBnão são teatro filmado. Issoprovavelmenteporque o cinemanãoutiliza asmesmasvelocidadesdevariaçãoqueoteatroe,sobretudo,porqueasduasvariações,adalínguaeadosgestos,não mantêm no cinema a mesma relação. Sobretudo a possibilidade que o cinema tem de constituirdiretamenteumaespéciedemúsicavisual,comosefossemosolhosqueapreendessemprimeiroosom,enquanto o teatro tem dificuldade de se desfazer de um primado do ouvido, no qual até as ações sãoprimeiro ouvidas. (Já na versão teatral deNossaSenhora dos Turcos, CB procuravameios para que oteatroultrapassasseadominaçãodaspalavraseatingisseumapercepçãodiretadaação:“Opúblicotinhaque seguir a ação através de vidraças, e não ouvia nada, exceto quando o ator resolvia abrir umajanelinha…”)Masoimportante,detodomodo,tantonoteatroquantonocinema,équeasduasvariaçõesnão devem ser paralelas.De ummodo ou de outro, elas devem ser colocadasumadentro da outra.Avariação contínua dos gestos e das coisas e a variação contínua da língua e dos sons podem seinterromper,secortareserecortar;masasduastambémdevemcontinuar,formarumúnicocontinuumqueserá,segundoocaso,fílmico,teatral,musicaletc.SerianecessárioumestudoespecialdosfilmesdeCB.Mas,paranosatermosaoteatro,gostaríamosdeanalisarcomoCBprocedeemseuRicardoIII,peçarecentenaqualelelevaissoaindamaislonge.

TodooiníciodeRicardoIIIéfeitosobreduaslinhasdevariação,quesemisturamesealternam,masaindanãoseconfundem.OsgestosdeRicardonãoparamdedeslizar,demudardealtura,decairparase

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reerguer;eosgestosdaserva,travestidadeBuckingham,seguemosdele.Mastambémavozdaduquesamudadetomsemparar,passandoportodasasvariáveisdaMãe,aomesmotempoqueavozdeRicardobalbuciaesereduza“articulaçõesdetroglodita”.Seasduasvariaçõespermanecemaindarelativamenteseparadas,comoduascontinuidadesquesecruzam,éporqueRicardoaindanãoseconstituiuemcena.Nesse começo, ele ainda está procurando em sua cabeça e nas coisas os elementos de sua próximaconstituição.Eleaindanãoéobjetodemedo,amorepiedade.Eleaindanão fezsua“escolhapolítica”,aindanãomontousuamáquinadeguerra.Eleaindanãoatingiuadesgraçade“sua”graça,adeformidadedesua forma…Maseisque,nagrandecenacomladyAnne,Ricardovaiseconstituirdiantedenossosolhos.AcenasublimedeShakespeare,quemuitasvezessetachoudeexageradaeinverossímil,nãoseráparodiada porCB,masmultiplicada segundo as velocidades ou desenvolvimentos variáveis que vão sereunirnumaúnicacontinuidadedeconstituição(enãoumaunidadederepresentação).1º)Ricardo,ouoatorquerepresentaRicardo,começaa“compreender”.Elecomeçaacompreendersuaprópriaideiaeosmeiosdessaideia.Elebuscaprimeironasgavetasdacômoda,ondeestãoosgessoseaspróteses,todasasmonstruosidadesdocorpohumano.Elepegauma,larga,pegaoutra,experimenta,esconde-asdeAnnee depois se enfeita com elas triunfalmente. Ele alcança omilagre pelo qual a mão boa se torna tãocrispada,tãotortaquantoaoutra.Elefazsuaescolhapolítica,constituisuasdeformidades,suamáquinadeguerra.2º)LadyAnne,porsuavez,entranumaestranhacumplicidadecomRicardo:elaoinjuriaeoodeia enquanto ele está em sua “forma”, mas se vê desamparada diante de cada deformação, e jáapaixonadaeconsentindo.Écomoseumnovopersonagemseconstituíssetambémnela,quemedesuaprópriavariaçãodiantedavariaçãodeRicardo.Elacomeçaporajudá-lovagamenteemsuabuscapelaspróteses.E,cadavezmelhor,cadavezmaisrápido,elamesmavaiprocuraradeformaçãoamorosa.Elavaiesposarumamáquinadeguerra,emvezde ficarnadependênciaesobopoderdeumaparelhodeEstado. Ela própria entra numa variação que desposa a de Ricardo, e não para de se despir e vestircontinuamente, num ritmo de regressão-progressão que corresponde às subtrações-construções deRicardo.3º)Asvariaçõesvocaisdeumedeoutro, fonemase tonalidades, formamuma linhacadavezmais cerrada, que impregna os gestos, e inversamente. É preciso que o espectador não apenascompreenda,masouçaevejaoobjetivoqueosbalbucioseosestremecimentosdoinício jáperseguiamsemsaber:aIdeiatornadavisível,sensível,apolíticatornadaerótica.Nessemomento,nãohaveriamaisduas continuidades que se cruzariam, mas um único continuum no qual as palavras e os gestosdesempenhamopapeldevariáveisemtransformação…(seriaprecisoanalisartodaasequênciadapeçaea admirável constituição do fim – onde se vê bemque, paraRicardo, não se tratava de conquistar umaparelhodeEstado,masdeconstruirumamáquinadeguerra,inseparavelmentepolíticaeerótica).

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5.Oteatroesuapolítica

SuponhamosqueaquelesqueadmiramCBestejammaisoumenosdeacordoarespeitodessasfunçõesdoteatroquetentamosdefinir:eliminarasconstantesouinvariantesnãoapenasnalinguagemenosgestos,mas tambémnarepresentação teatralenoqueérepresentadoemcena;portanto,eliminar tudooque“exerce”Poder,opoderdaquiloqueoteatrorepresenta(oRei,osPríncipes,osSenhores,oSistema),mastambémopoderdopróprioteatro(oTexto,oDiálogo,oAtor,oEncenador,aEstrutura);e,apartirdaí,fazertudopassarpelavariaçãocontínua,comoporumalinhadefugacriadoraqueconstituiumalínguamenor na linguagem, umpersonagemmenor em cena, umgrupo de transformaçãomenor através dasformasetemas[sujets]dominantes.Suponhamosqueseestejadeacordoarespeitodessespontos.Seráaindamaisnecessáriochegaraquestõespráticassimples:1º)dequeissoserveexternamente?Poistrata-seaindadeteatro,apenasdeteatro;2º)enoqueCBpõeemquestãoopoderdoteatroouoteatrocomopoder?Noqueeleémenosnarcisistaqueumator,menosautoritárioqueumencenador,menosdespóticoqueumtexto?Nãoseriaele,aocontrário,tudoissoaindamais,elequesediz,aomesmotempo,otexto,oator e o encenador (eu sou umamassa, “vejam como a política se torna demassa, amassa demeusátomos…”)?Nadafoifeitoenquantonãosealcançouaquiloqueseconfundecomogêniodealguém,suaextrema

modéstia,opontoemqueeleéhumilde.TodasasdeclaraçõesdeorgulhodeCBsãofeitasparaexprimiralgumacoisademuitohumilde.E,antesdetudo,paraexprimirqueoteatro,mesmooteatrocomoqualelesonha,émuitopoucacoisa.Queoteatro,evidentemente,nãomudaomundoenãofazarevolução.CBnão acredita na vanguarda. Também não acredita num teatro popular, num teatro para todos, numacomunicação do homem de teatro com o povo. É que, quando se fala de um teatro popular, tende-sesempreaumacertarepresentaçãodosconflitos,conflitosentreoindivíduoeasociedade,entreavidaeahistória, contradições e oposições de todos os tipos que atravessam uma sociedade, mas também osindivíduos. Ora, o que é verdadeiramente narcísico, e é uma questão para todo mundo, é essarepresentaçãodosconflitos,sejaelanaturalista,hiper-realistaetc.Háumteatropopularqueécomoqueo narcisismo do operário. Sem dúvida, há a tentativa de Brecht de fazer com que as contradições, asoposições,nãosejamrepresentadas;masopróprioBrechtquerapenasqueelassejam“compreendidas”equeoespectadortenhaoselementosdeuma“solução”possível.Nãoésairdodomíniodarepresentação,éapenaspassardeumpolodramáticodarepresentaçãoburguesaparaumpoloépicodarepresentaçãopopular.Brechtnão leva a “crítica” suficientemente longe.CBpretende substituir a representaçãodosconflitospelapresençadavariação,comoelementomaisativo,maisagressivo.Masporqueosconflitossãogeralmentesubordinadosàrepresentação?Porqueoteatropermanecerepresentativoacadavezquetomacomoobjetoosconflitos,ascontradições,asoposições?Éporqueosconflitosjáestãonormalizados,codificados, institucionalizados. São “produtos”. Eles já são uma representação, que pode serrepresentadadeformaaindamelhoremcena.Quandoumconflitoaindanãoestánormalizadoéporquedependedealgumacoisademaisprofunda,éporqueécomoo raioqueanunciaoutracoisaevemdeoutracoisa,emergênciasúbitadeumavariaçãocriadora,inesperada,sub-representativa.Asinstituiçõessão os órgãos da representação dos conflitos reconhecidos, e o teatro é uma instituição, o teatro é“oficial”,mesmosendodevanguarda,mesmosendopopular.Porquedestinoosbrechtianosassumiramopodersobreumaparteimportantedoteatro?OcríticoGiuseppeBertoluccidescreviaasituaçãodoteatrona Itália (eemoutros lugares)quandoCBestavacomeçandosuas tentativas:porquearealidadesocialescapa, “o teatro para todos se tornou um logro ideológico e um fator objetivo de imobilidade”. E é amesmacoisacomocinemaitaliano,comsuasambiçõespseudopolíticas;comodizMarcoMontesano,“éumcinemadeinstituição,apesardasaparênciasconflituosas,porqueoconflitopostoemcenaéoconflitoque a instituição prevê e controla”. É um teatro, é um cinema narcísico, historicista, moralizante.Inclusive os ricos e os pobres:CB os descreve comopertencendo a ummesmo sistemade poder e dedominação que os reparte em “escravos pobres” e “escravos ricos”, e onde o artista tem a função deescravointelectual,deumladooudooutro.Mascomosairdessasituaçãodarepresentaçãoconflituosa,oficial,institucionalizada?Comofazervalerotrabalhosubterrâneodeumavariaçãolivreepresentequeseintroduzentreasmalhasdaescravidãoeultrapassaoconjunto?Então, haveria as outras direções: o teatro vivido, no qual os conflitos são mais vividos que

representados, como num psicodrama? O teatro esteta, no qual os conflitos formalizados se tornamabstratos,geométricos,ornamentais?O teatromístico,que tendeaabandonararepresentaçãoparasetornar vida comunitária e ascética “fora do espetáculo”? Nenhuma destas direções convém a CB: eleprefeririaaindaapuraesimplesrepresentação…ComoHamlet,eleprocuraumafórmulamaissimples,maishumilde.Todaaquestãogiraemtornodo fatomajoritário.Porqueo teatropara todos,o teatropopular,éum

poucocomoademocracia,eleremeteaumfatomajoritário.Sóqueessefatoémuitoambíguo.Elesupõeum estado de poder ou de dominação, e não o contrário. É evidente que pode haver mais moscas emosquitosdoquehomens,oHomemnãodeixadeconstituirumamedidapadrãoemrelaçãoàqualoshomenssãonecessariamenteamaioria.Amaiorianãodesignaumaquantidademaior,mas,antesdetudo,opadrãoemrelaçãoaoqualasoutrasquantidades,sejamelasquaisforem,serãoconsideradasmenores.

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Porexemplo,asmulhereseascrianças,osnegroseos indígenasetc.serãominoritáriosemrelaçãoaopadrãoconstituídopeloHomem-branco-cristão-macho-adulto-moradordascidades-americanooueuropeucontemporâneo (Ulisses).Mas,nesseponto, tudose inverte.Pois, seamaioriaremeteaummodelodepoder – histórico, estrutural ou os dois aomesmo tempo –, é preciso tambémdizer que todomundo éminoritário, potencialmente minoritário, na medida em que se desvia desse modelo. Ora, a variaçãocontínuanãoseriaprecisamenteisto,essaamplitudequenãoparadeextrapolar,porexcessoouporfalta,olimiarrepresentativodopadrãomajoritário?Avariaçãocontínuanãoseriaodevirminoritáriodetodomundo em oposição ao fato majoritário de Ninguém?4 O teatro não encontraria, então, uma funçãosuficientementemodesta e, contudo, eficaz? Essa função antirrepresentativa seria traçar, constituir dealgum modo uma figura da consciência minoritária, como potencialidade de cada um. Tornar umapotencialidade presente, atual, é completamente diferente de representar um conflito. Não se poderiamais dizer que a arte tem um poder, que ainda tenha poder,mesmo quando ela critica o Poder. Pois,erigindoaformadeumaconsciênciaminoritária,elaremeteriaapotênciasdodevir,quepertencemaumdomíniodiferentedodomíniodoPoderedarepresentação-padrão.“Aartenãoéumaformadepoder,elasó é isto quando deixa de ser arte e começa a se tornar demagogia.” A arte está submetida amuitospoderes,masnãoéumaformadepoder.PoucoimportaqueoAtor-Autor-Encenadortenhaascendênciaese comporte, quando necessário, de forma autoritária, muito autoritária. Seria a autoridade de umavariaçãoperpétua,emoposiçãoaopoderouaodespotismodoinvariante.Seriaaautoridade,aautonomiadogago,daquelequeconquistouodireitodegaguejar,emoposiçãoao“falarbem”maior.E,claro,sãosempregrandesosriscosdequeaminoriaresultenovamenteemmaioria,refaçaumpadrão(quandoaarterecomeçaasetornardemagogia…).Éprecisoqueaprópriavariaçãonãodeixedevariar,querdizer,queelapasseefetivamentepornovoscaminhossempreinesperados.Quaissãoessescaminhos,dopontodevistadeumapolíticadoteatro?Qualéessehomemdaminoria?

Eaprópriapalavra“homem”jánãoconvémmais,porestarmuitoafetadapelosignomajoritário.Porquenão“mulher”ou“travesti”?Masessestermostambémestãocodificadosdemais.Dáparaverseesboçaruma política nas declarações e posições de CB. A fronteira, isto é, a linha de variação não está entresenhoreseescravos,nemricosepobres.Porqueentreunseoutrosseteceumregimederelaçõesedeoposições que fazem do senhor um escravo rico, do escravo um senhor pobre no seio de um mesmosistemamajoritário. A fronteira não se encontra dentro da História, nem mesmo no interior de umaestruturaestabelecida,nemdentrodo“povo”.Todomundofalaemnomedopovo,emnomedalinguagemmajoritária,masondeestáopovo?“Oquefaltaéopovo.”Naverdade,afronteiraestáentreaHistóriaeoanti-historicismo, istoé,concretamente,“aquelesqueaHistórianão levaemconta”.Elaestáentreaestruturaeaslinhasdefugaqueaatravessam;entreopovoeaetnia.Aetniaéominoritário,alinhadefuganaestrutura,oelementoanti-históricodentrodaHistória.CBvivesuaminoridadeemrelaçãocomaspessoasdaPuglia:oseuSulouseuterceiromundo,namedidaemquecadaumtemumSuleumterceiromundo.Ora,quandofaladaspessoasdaPuglia,dasquaiselefazparte,elesentequeapalavra“pobres”absolutamentenãoconvém.Comochamardepobrespessoasquepreferiammorrerdefomeatrabalhar?Comochamardeescravospessoasquenãoentravamnojogodosenhoredoescravo?Comofalardeum“conflito”ondehaviacoisabemdiferente,umavariaçãocandente,umavariaçãoanti-histórica–omotimloucodeCampiSalentina,talcomodescritoporCB?Maseisqueelessofremumestranhoenxerto,umaestranha operação: foram planificados, representados, normalizados, historicizados, integrados ao fatomajoritárioeaí,sim,fizeramdelespobres,escravos,colocaram-nosdentrodopovo,dentrodaHistória,tornaram-nosmaiores.Um último perigo, antes de acreditar ter compreendido o que CB diz. Ele não faz questão,

absolutamente,desetornarochefedeumatruperegionalista.Pelocontrário,elepedeereclamateatrosestatais,elesebateporisso,elenãocultuadeformaalgumaapobrezanotrabalho.Éprecisomuitamá-fépolítica para ver nisso uma “contradição” ou uma recuperação. Nunca CB pretendeu fazer um teatroregionalista;eumaminoriacomeça jáasenormalizarquandoa fechamemsimesmaeseexecutaemtornodelaadançadosbonsvelhostempos(eentãosefazdelaumsubcomponentedamaioria).ÉquandoCBfazumteatrouniversalcomaliançasinglesas,francesas,americanasqueelemaispertenceàPuglia,aoSul.O que ele tira daPuglia é uma linha de variação – ar, terra, sol, cores, luzes e sons – que elepróprio vai fazer variar de forma totalmente diferente, sobre outras linhas, por exemplo, em NossaSenhoradosTurcos. Assimele se tornamais cúmplice daPuglia doque se ele se arvorasse a ser seupoeta representativo. É que, para concluir,minoria tem dois sentidos, sem dúvida ligados, masmuitodiferentes.Minoriadesigna,primeiro,umestadodefato,istoé,asituaçãodeumgrupoque,sejaqualforoseunúmero,estáexcluídodamaioria,ouestáincluído,mascomoumafraçãosubordinadaemrelaçãoaumpadrãodemedidaqueestabelecealeiefixaamaioria.Pode-sedizer,nestesentido,queasmulheres,ascrianças,oSul,oterceiromundoetc.sãoaindaminorias,pormaisnumerososquesejam.Esseéumprimeirosentidodo termo.Mashá, imediatamente,umsegundosentido:minorianãodesignamaisumestadodefato,masumdevirnoqualapessoaseengaja.Devir-minoritárioéumobjetivo,eumobjetivoquedizrespeitoatodomundo,vistoquetodomundoentranesseobjetivoenessedevir,jáquecadaumconstróisuavariaçãoemtornodaunidadedemedidadespóticaeescapa,deummodooudeoutro,dosistemadepoderquefaziadeleumapartedamaioria.Deacordocomestesegundosentido,éevidentequeaminoriaémuitomaisnumerosaqueamaioria.Porexemplo,deacordocomoprimeirosentido,asmulheres são umaminoria,mas, pelo segundo sentido, há um devir-mulher de todomundo, um devir-mulherqueécomoqueapotencialidadedetodomundoe,aexemplodospróprioshomens,atémesmoasmulherestêmquedevirmulher.Umdevir-minoritáriouniversal.Minoriadesignaaquiapotênciadeumdevir,enquantomaioriadesignaopoderoua impotênciadeumestado,deumasituação.Éaquiqueo

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teatroouaartepodesurgircomumafunçãopolíticaespecífica–desdequeminorianãorepresentenadaderegionalista;mastambémnadadearistocrático,deestéticonemdemístico.O teatro surgirá como o que não representa nada, mas apresenta e constitui uma consciência de

minoria, enquanto devir-universal, operando alianças aqui ou ali conforme o caso, seguindo linhas detransformaçãoquesaltamparaforadoteatroeassumemumaoutraforma,ousereconvertememteatropara um novo salto. Trata-se de uma tomada de consciência, embora ela nada tenha a ver com umaconsciênciapsicanalítica,tampoucocomumaconsciênciapolíticamarxistaoubrechtiana.Aconsciência,a tomada de consciência, é uma grande potência, mas não é feita para as soluções nem para asinterpretações.Équandoaconsciênciaabandonaassoluçõeseinterpretaçõesqueelaconquistasualuz,seusgestoseseussons,suatransformaçãodecisiva.HenryJamesescreve:“Porfimelasabiatantoquenãopodiamaisinterpretarnada;nãohaviamaisobscuridadesqueafizessemverclaro,sórestavaumaluz crua.” Quantomais alguém atinge essa forma de consciência deminoria,menos se sente só. Luz.Sozinhoseéumamassa,“amassademeusátomos”.E,sobaambiçãodasfórmulas,háamaismodestaapreciação do que poderia ser um teatro revolucionário, uma simples potencialidade amorosa, umelementoparaumnovodevirdaconsciência.

1CarmeloBene(1° set1937–18mar2002) foidramaturgo,ator,encenadorecineasta.NascidoemCampiSalentina (Lecce),partiuparaRomacomo objetivode estudar canto,mas logo se sentiu atraídopelo teatro. PassouumanonaAccademiadell’ArteDrammatica e emseguidamontousuaprópriacompanhia,oTeatroLaboratório.Em1959adaptouCalígula,deCamus,eatuoucomoprotagonistadapeça,iniciandosuacarreiranasartescênicas.Ascaracterísticasmaisrelevantesdesuaobrasãoo intercâmbioentreatoreautor,oparticularinteresseporautoresdesconhecidoseaatençãoconcedidaaosomeàsimagens.MarcadapelareleituracríticadeclássicoscomoHamleteRicardoIII,aobradeBenenãoserestringeaoteatro,espraiando-sepelaliteratura,músicaecinema.(N.T.)2RegiãodaItáliameridional.(N.T.)3Bispomedieval,filósofoecientista,quefoiumdosprimeirosautoresdetratadosmatemáticosemfrancês.(N.T.)4EmfrancêsPersonne,palavraquedesignaaomesmotemponinguémepessoa.(N.T.)

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Oesgotado

Tradução:OvídiodeAbreuRobertoMachado

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Oesgotadoémuitomaisqueocansado.“Nãoéumsimplescansaço,nãoestousimplesmentecansado,apesardasubida.”1Ocansadonãodispõemaisdequalquerpossibilidade(subjetiva)–nãopode,portanto,realizaramínimapossibilidade(objetiva).Masestapermanece,porquenuncaserealizatodoopossível;ele é atémesmocriadoàmedidaqueé realizado.O cansadoapenasesgotoua realização, enquantooesgotado esgota todo o possível. O cansado não pode mais realizar, mas o esgotado não pode maispossibilitar.“Peçam-meoimpossível,muitobem,quemaismepoderiampedir.”2Nãohámaispossível:umespinosismoobstinado.Eleesgotariaopossívelporqueestáesgotadoouestariaesgotadoporqueesgotouopossível?Eleseesgotaaoesgotaropossível,einversamente.Esgotaoquenãoserealizanopossível.Eleacabacomopossível,paraalémdetodocansaço,“paranovamenteacabar”.

Deus é o originário ou o conjunto de toda possibilidade. O possível só se realiza no derivado, nocansaço,enquantoqueseestáesgotadoantesdenascer,antesdeserealizarouderealizarqualquercoisa(“renuncieiantesdenascer”).3Quandoserealizaumpossível,éemfunçãodecertosobjetivos,projetosepreferências: calço sapatos para sair e chinelos para ficar em casa. Quando falo, quando digo, porexemplo,“édia”,o interlocutorresponde:“épossível…”,poiseleesperasaberoquepretendofazerdodia:vousairporqueédia…4Alinguagemenunciaopossível,masofazpreparando-oparaumarealização.E,semdúvida,possoutilizarodiaparaficaremcasa;oupossoficaremcasagraçasaumoutropossível(“é noite”). Mas a realização do possível procede sempre por exclusão, pois ela supõe preferências eobjetivosquevariam,sempresubstituindoosprecedentes.Sãoessasvariações,essassubstituições,todasessasdisjunçõesexclusivas(anoite/odia,sair/voltar…)queacabamcansando.

Bemdiferenteéoesgotamento:combina-seoconjuntodasvariáveisdeumasituação,comacondiçãoderenunciaraqualquerordemdepreferênciaeaqualquerobjetivo,aqualquersignificação.Nãoémaisparasairnemparaficar,enãoseutilizammaisdiasenoites.Nãomaisserealiza,mesmoqueseconcluaalgo.5Sapatos:fica-se;chinelos:sai-se.Nãosecai,entretanto,noindiferenciado,ounafamosaunidadedoscontraditórios,enãoseépassivo:está-seematividade,masparanada.Estava-secansadodealgumacoisa,masesgotadodenada.Asdisjunçõessubsistem,eatémesmoadistinçãoentretermosécadavezmaior, mas os termos disjuntos afirmam-se em sua distância indecomponível, pois só servem parapermutar.Sobreumacontecimentobastadizerqueeleépossível,poiselesóocorreconfundindo-secomnadaeabolindoorealaoqualpretende.Sóháexistênciapossível.Énoite,nãoénoite;chove,nãochove.“Sim,fuimeupaiemeufilho.”6Adisjunçãotorna-seinclusa,tudosedivide–masemsimesmo–,eDeus,o conjunto do possível, confunde-se com Nada, do qual cada coisa é uma modificação. “Simplesbrincadeiras do tempo com o espaço, ora com uns brinquedos, ora com outros.”7 Os personagens deBeckettbrincamcomopossível semrealizá-lo; eles têmmuitoa fazer, comumpossível cadavezmaisrestrito em seu gênero, para ainda se preocuparem com o que ocorre. A permutação das “pedras dechupar”emMolloyéumadaspassagensmaiscélebres.DesdeMurphy,oheróisededicaàcombinatóriados cinco bolinhos,mas com a condição de ter eliminado qualquer ordemde preferência e ter, assim,conquistado os 120 modos da permutabilidade total: “Ofuscado por essas perspectivas, Murphy caiuestateladosobreagrama,aoladodosbiscoitosdosquaissepoderiadizer,comtantajustezaquantopodeserditodasestrelas,queobrilhodeumeradiferentedobrilhodooutro,edecujaessênciaelesópoderiadar conta com a condição de não mais preferir um a outro.”8 I would prefer not to [Preferiria não],segundo a fórmula beckettiana de Bartleby. E toda a obra de Beckett será percorrida por sériesexaustivas, isto é, esgotantes, principalmente Watt, com sua série de equipamentos (meia curta–meialonga, botina–sapato–chinelo), demóveis (cômoda– penteadeira–toucador, de pé–de patas para o ar–noventre–nascostas–de lado,cama–porta–janela–fogão:quinzemildisposições).9Wattéogranderomanceserialondeosr.Knott,comaúnicanecessidadedenãoternecessidade,nãoreservaqualquercombinaçãoaumusoparticularqueexcluiriaosoutros,edoqualseriaprecisoesperarascircunstâncias.

A combinatória é a arte ou a ciência de esgotar o possível, por disjunções inclusas. Mas apenas oesgotado pode esgotar o possível, pois renunciou a toda necessidade, preferência, finalidade ousignificação. Apenas o esgotado é bastante desinteressado, bastante escrupuloso. Ele é forçado asubstituirosprojetosportabelaseprogramassemsentido.Oquecontaparaeleéemqueordemfazeroquedeveesegundoquaiscombinaçõesfazerduascoisasaomesmotempo,quandoaindanecessário,sóporfazer.AgrandecontribuiçãodeBeckettàlógicaémostrarqueoesgotamento(exaustividade)exigeumcertoesgotamento fisiológico,maisoumenoscomoNietzschemostravaqueo idealcientíficoexigeumaespéciededegenerescênciavital,como,porexemplo,noHomemdaSanguessuga,oconscienciosodeespíritoquetudoqueriaconhecerdocérebrodasanguessuga.Acombinatóriaesgotaseuobjeto,masporqueseusujeitoestáesgotado.Oexaustivoeoexausto(exhausted).Seriaprecisoestaresgotadoparasededicaràcombinatória,ouseriaacombinatóriaquenosesgota,quenoslevaaoesgotamento,ouosdois juntos, a combinatória e o esgotamento? Mais uma vez, disjunções inclusas. Talvez seja como oavessoeodireitodeumamesmacoisa:umsentidoouumaciênciaagudadopossível,junta,oumelhor,disjuntaaumafantásticadecomposiçãodoeu.OqueBlanchotdissedeMusilseaplicaperfeitamenteaBeckett: a mais elevada exatidão e a mais extrema dissolução; a troca indefinida das formulaçõesmatemáticaseabuscadoinformeoudoinformulado.10Estessãoosdoissentidosdoesgotamento,eosdoissãonecessáriosparaaboliroreal.Muitosautoressãopolidosdemais,esecontentamemproclamaraobraintegraleamortedoeu.Massepermanecenoabstratoenquantonãosemostra“comoé”,comosefazum “inventário”, incluindo os erros, e comoo eu sedecompõe, incluindo omau cheiro e a agonia:como emMalone meurt. Uma dupla inocência, pois, como diz o esgotado (ou a esgotada), “a arte decombinar ou a combinatória não é minha culpa, é um castigo do céu. Quanto ao resto, eu diria não

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culpável.”11Maisdoqueumaarte,trata-sedeumaciênciaqueexigelongosestudos.Ocombinadorestásentadoà

escrivaninha:“Numadoutaescola/Atéaruínadocorpo/Alentadecomposiçãodosangue/Oastuciosodelírio/Ouatediosadecrepitude…”12Nãoqueadecrepitudeouaruínavenhaminterromperoestudo.Aocontrário,elasoconcluemtantoquantoocondicionameoacompanham:oesgotadocontinuasentadoàescrivaninha,“cabeçainclinadaapoiando-senasmãos”,mãosnamesaecabeçanasmãos,cabeçarenteàmesa.Posturadoesgotado,queNachtundTräumeretoma,desdobrando.OsdanadosdeBeckettformamamaisimpressionantegaleriadeposturas,depassosedeposiçõesdesdeDante.E,semdúvida,Macmannobservavaquesesentia“melhorsentadodoqueempéemelhordeitadodoquesentado”.13Maseraumafórmulaqueconvinhamaisaocansaçoqueaoesgotamento.Deitar-senuncaéofim,aúltimapalavra:éapenúltima. Pois corre-se o grande risco de descansar demais se não para se levantar, aomenos, paravirar-seourastejar.Paradeterorastejante,éprecisocolocá-lonumburaco,plantá-lonumvaso,onde,nãopodendomaismoverseusmembros,revolverá,noentanto,algumaslembranças.Masoesgotamentonãose deita e, quando chega a noite, continua sentado à mesa, cabeça esvaziada em mãos prisioneiras,“cabeçainclinadaemmãosatrofiadas”,“sentadoumanoiteàmesacomacabeçanasmãos…levantavasuacabeçadesfalecidaparaversuasdesfalecidasmãos”,“crâniosozinhonoescurolugarfechadopostosobreumatábua…”,“asduasmãoseacabeçaformamumpequenomonte”.14Éamaishorrívelposiçãoparaseesperaramorte:sentado,sempoderselevantarnemsedeitar,espreitandoogolpequenosfaráficardepéumaúltimavezenosdeitarparasempre.Sentadonãotemvolta,nãosepoderevolversequerumalembrança.Aesserespeito,acançãodeninaréaindaimperfeita:éprecisoqueelapare.Talvezsejapreciso distinguir a obra deitada de Beckett e a obra sentada, a única que é última. Pois entre oesgotamento sentado e o cansaço deitado, rastejante ou plantado, há uma diferença de natureza. Ocansaçoafetaaaçãoemtodososseusestados,enquantooesgotamentodizrespeitoapenasàtestemunhaamnésica.Osentadoéatestemunhaemtornodaqualooutrogira,aodesenvolvertodososgrausdeseucansaço.Eleestáaliantesdenascer,eantesqueooutrocomece.“Houveumtempoemqueeutambémgiravaassim?Não,estivesempresentadonestemesmolugar…”15Masporqueosentadoestáàespreitadaspalavras,dasvozes,dossons?

A linguagem nomeia o possível. Como o que não tem nome, o objeto = X, poderia ser combinado?Molloy encontra-se diante de uma pequena coisa insólita, feita de “dois X reunidos, no nível daintersecção,porumabarra”igualmenteestáveleindiscernívelsobresuasquatrobases.16Éprovávelqueos arqueólogos futuros, se o encontrarem em nossas ruínas, verão nele, conforme é seu costume, umobjetodecultoutilizadonasprecesounossacrifícios.Comoeleentrarianumacombinatória senãosetemseunome,descansa-talher?Noentanto,seacombinatóriatemaambiçãodeesgotaropossívelcompalavras,éprecisoqueelaconstituaumametalinguagem,umalínguatãoespecialqueasrelaçõesentreosobjetossejamidênticasàsrelaçõesentreaspalavraseque,desdeentão,aspalavrasnãomaisremetamo possível a uma realização, mas deem ao possível uma realidade que lhe seja própria, precisamenteesgotável, “minimamentemenor,nãomaisdirecionadaparaa inexistênciacomoo infinitoparazero”.17ChamemoslínguaI,emBeckett,alínguaatômica,disjuntiva,recortada,retalhada,emqueaenumeraçãosubstituiasproposições,easrelaçõescombinatórias,asrelaçõessintáticas:umalínguadosnomes.Mas,caso seespere, assim, esgotaropossível compalavras, tambémépreciso ter esperançadeesgotar asprópriaspalavras;daíanecessidadedeumaoutrametalinguagem,deumalínguaII,quenãoémaisadosnomes,masadasvozes,quenãoprocedemaisporátomoscombináveis,masporfluxosmisturáveis.Asvozessãoasondasouosfluxosquedirigemedistribuemoscorpúsculoslinguísticos.Quandoseesgotaopossível com palavras, abrem-se e racham-se átomos, quando as próprias palavras são esgotadas,interrompem-seosfluxos.DesdeL’Innommable,éesseproblemadeeliminaraspalavrasquedomina:umverdadeirosilêncio,nãoumsimplescansaçodefalar,pois“nãosetrataabsolutamentedefazersilêncio,éprecisovertambémotipodesilêncioquesefaz…”18Qualseriaaúltimapalavra,ecomoreconhecê-la?

Para esgotar o possível, é preciso remeter os possibilia (objetos ou “coisas”) às palavras que osdesignampordisjunções inclusas,noâmbitodeumacombinatória.Paraesgotaraspalavras, éprecisoremetê-lasaosOutrosqueaspronunciam,oumelhor,queasemitem,assecretam,seguindofluxosqueàsvezessemisturameàsvezessedistinguem.Essesegundomomento,muitocomplexo,nãodeixadeterrelaçãocomoprimeiro:ésempreumOutroquefala,umavezqueaspalavrasnãoesperarampormimesóhálínguaestrangeira;ésempreumOutro,o“proprietário”dosobjetosqueelepossuiaofalar.Trata-sesempre do possível, mas de uma nova maneira: os Outros são mundos possíveis, aos quais as vozesconferem uma realidade sempre variável, conforme a força que elas têm, e revogável, conforme ossilêncios que elas fazem.Elas são ora fortes, ora fracas, até que se calam, por ummomento (comumsilênciodecansaço).Oraelasseseparameatémesmoseopõem,oraseconfundem.OsOutros,istoé,osmundospossíveiscomseusobjetos,comsuasvozes,que lhesdãoaúnica realidadeàqualelespodempretender,constituem“histórias”.OsOutrossótêmarealidadequesuasvozeslhesdão,emseusmundospossíveis.19SãoMurphy,Watt,Merciere todososoutros, “Mahoodeconsortes”,Mahoodecompanhia:comoacabarcomeles,suasvozesesuashistórias?Paraesgotaropossível,nessenovosentido,deve-senovamenteenfrentaroproblemadassériesexaustivas,mesmosearriscandoacairnuma“aporia”.Seriapreciso falar deles, mas como conseguir sem se introduzir na série, sem “prolongar” suas vozes, sempassar por eles, sem ser, alternadamente,Murphy,Molloy,Malone,Watt… etc. e recair no inesgotávelMahood?Ouentão,seriaprecisoqueeuchegasseamim,nãocomoaumtermodasérie,mascomoaseulimite,eu,oesgotado,oinominável,eusó,sentadonoescuro,tornadoWorm,“oanti-Mahood”,totalmentesemvoz,aindaqueeunãopudessefalardemimcomavozdeMahoodesópudesseserWormtambémmetornandoMahood.20 A aporia consiste na série inesgotável de todos esses esgotados. “Quantos somos

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afinal? E quem fala nesse momento? E para quem? E de quê?” Como imaginar um todo que façacompanhia?Comoformarumtodocomasérie,subindo,descendo,ecomdois,seumfalaaooutro,oucomtrês,seumfalaaooutroaindadeoutro?21Aaporiaterásoluçãocasoseconsiderequeo limitedasérienãoestánoinfinitodostermos,mastalvezemqualquerlugar,entredoistermos,entreduasvozesouvariaçõesdavoz,nofluxo,jáatingidobemantesquesesaibaqueasérieesgotou-se,bemantesquesecompreendaque,hámuito,nãohámaispossível,nãohámaishistória.22Esgotado,hámuitotempo,semquesesaiba,semqueelesaiba.OinesgotávelMahoodeoesgotadoWorm,oOutroeeu,sãoomesmopersonagem,amesmalínguaestrangeira,morta.

Há,portanto,umalínguaIII,quenãomaisremetealinguagemaobjetosenumeráveisecombináveis,nem a vozes emissoras, mas a limites imanentes que não cessam de se deslocar, hiatos, buracos ourasgões,dosquaisnãosedariaconta,atribuindo-osaosimplescansaço,seelesnãocrescessemdeumavez, de maneira a acolher alguma coisa que vem de fora ou de outro lugar: “Hiatos para quando aspalavras desaparecidas. Quando não há mais como. Então tudo visto como então somente.Desobscurecido.Desobscurecidodetudooqueaspalavrasobscurecem.Tudoassimvistonãodito.”23Essealgo,visto,ououvido,chama-seImagem,visualousonora,desdequeliberadadascadeiasemqueasduasoutraslínguasamantinham.NãosetratamaisdeimaginarumtododasériecomalínguaI(imaginaçãocombinatória“manchadaderazão”),nemdeinventarhistóriasoudeinventariarlembrançascomalínguaII(imaginaçãomanchadadememória),aindaqueacrueldadedasvozesnãodeixedenostraspassarcomlembranças insuportáveis, histórias absurdas ou companhias indesejáveis.24 É muito difícil despedaçartodas essas aderências da imagempara atingir o ponto “ImaginaçãoMorta Imaginem”. Émuito difícilcriarumaimagempura,nãomanchada,apenasumaimagem,atingindoopontoemqueelasurgeemtodasuasingularidadesemnadaguardardepessoal,nemderacional,etendoacessoaoindefinidocomoaoestado celestial.Uma mulher,uma mão,uma boca, olhos…, azul e branco…, um pouco de verde commanchasdebrancoedevermelho,umpedaçodepradocompapoulaseovelhas…:“pequenascenassimnaluzsimmasnãocomfrequêncianãocomoseissoseacendessesimcomosesim…elechamaissoavidaláemcimasim…nãosãomemóriasnão…”25

Criar uma imagem,de tempos em tempos (“está feita, criei a imagem”).A arte, a pintura, amúsicapoderiamteroutrafinalidade,mesmoqueoconteúdodaimagemsejapobre,medíocre?26Umaesculturade porcelana de Lichtenstein, de uns 60 centímetros, cria uma árvore de tronco marrom, com copaesférica verde, ladeada, à direita e à esquerda, por umapequenanuvemepor umpedaçode céu, emalturasdiferentes.Queforça!Nãoseexigemaisnada,nemaBramvanVeldenemaBeethoven.Aimageméumpequenoritornelo,visualousonoro,quandoéchegadaahora:“ahorapreciosa…”EmWatt,astrêsrãsmisturamsuascanções,cadaumacomsuacadênciaprópria,Krak,KrekeKrik.Asimagens-ritornelopercorremos livrosdeBeckett.EmPremieramour, ele vêumpedaçodecéuestreladobalançar, eelacantabaixinho.Équeaimagemnãosedefinepelosublimedoseuconteúdo,masporsuaforma,istoé,porsua“tensão interna”,oupela forçaquemobilizaparaesvaziarouesburacar,aliviaraopressãodaspalavras, interromper amanifestação das vozes, para se desprender damemória e da razão, pequenaimagemalógica,amnésica,quaseafásica,orasesustentandonovazio,oraestremecendonoaberto.27Aimagemnãoéumobjeto,masum“processo”.Nãosesabeapotênciadetaisimagens,pormaissimplesquesejamdopontodevistadoobjeto.Trata-sedalínguaIII,nãomaisadosnomesoudasvozes,masadas imagens, sonantes, colorantes. O que há de entediante na linguagem das palavras é que ela estásobrecarregadadecálculos,delembrançasedehistórias:nãosepodeevitá-lo.Noentanto,éprecisoqueaimagempuraseinsiranalinguagem,nosnomesenasvozes.Àsvezesseránosilêncio,porumsilênciocomum,nomomentoemqueasvozesparecemtersecalado.Masàsvezestambémserápelosinaldeumtermo indutor, na corrente da voz,Bing. “Bing imagemquase nuncaum segundo tempo sideral azul ebranconovento.”28Àsvezeséumavozfracamuitoparticular,comosepredeterminada,preexistente,adeumIniciadorouApresentadorquedescrevetodososelementosdaimagemporvir,masàqualfaltaaindaa forma.29 Às vezes, finalmente, a voz consegue vencer suas repugnâncias, suas aderências, sua mávontadee,arrastadapelamúsica, torna-se fala, capazdecriar,por suavez,uma imagemverbal, comonumlied,oudecriaramúsicaeacordeumaimagem,comonumpoema.30Portanto,a línguaIIIpodereuniraspalavraseasvozesàs imagens,mas segundoumacombinaçãoespecial: a língua I eraadosromances, culminando com Watt; a língua II traça caminhos múltiplos através dos romances(L’Innommable), impregnao teatro, impõe-senarádio.Masa língua III,nascidanoromance (Commentc’est),atravessandooteatro(Ohlesbeauxjours,Actessansparoles,Catastrophe),encontranatelevisãoosegredodesuareunião,umavozprégravadaparauma imagemqueacadavez toma forma.Háumaespecificidadedaobra-televisão.31

Esse de-fora da linguagem não é apenas a imagem,mas a “vastidão”, o espaço. Essa língua III nãoprocede apenas por imagens,mas por espaços. E, domesmomodo que a imagem deve ter acesso aoindefinido,mesmo sendo completamente determinada, o espaço deve ser sempre um espaço qualquer,semfunção,ouqueperdeuafunção,emboraseja,emtermosgeométricos,totalmentedeterminado(umquadrado, com tais lados e diagonais, um círculo com tais zonas, um cilindro com “50 metros deperímetroe16dealtura”).Oespaçoqualquerépovoado,percorrido;éele, inclusive,quepovoamosepercorremos,maseleseopõeatodasasnossasextensõespseudoqualificadasesedefine“semaquinemalideondenuncaseaproximarãonemseafastarãoummilímetrotodosospassosdaterra”.32Domesmomodo que a imagemaparece àquele que a cria comoum ritornelo visual ou sonoro, o espaço apareceàquele que o percorre como um ritornelomotor, posturas, posições emaneiras de andar. Todas essasimagenscompõem-seesedecompõem.33AosBing,quedesencadeiamimagens,misturam-seosHop,quedesencadeiamestranhosmovimentos emdireções espaciais.Uma formade andar é tanto um ritornelo

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quantoumacançãoouumapequenavisãocolorida:comoaformadeandardeWatt,quevaiemdireçãoao leste,girandoobustoemdireçãoaonortee jogandoapernadireitaemdireçãoaosule,depois,obustoemdireçãoaosuleapernaesquerdaemdireçãoaonorte.34Vê-sequeessamaneiradeandaréexaustiva,poiselaenvolvetodosospontoscardeais,oquartopontosendo,evidentemente,adireçãodeondesevemsemseafastar.Trata-sedecobrirtodasasdireçõespossíveis,indo,noentanto,emlinhareta.Igualdade entre a reta e o plano, entre o plano e o volume.Essa consideração do espaço dá umnovosentidoeumnovoobjetoaoesgotamento:esgotaraspotencialidadesdeumespaçoqualquer.

O espaçogozadepotencialidadesnamedida emque tornapossível a realizaçãode acontecimentos:portanto,eleprecedearealização,eapotencialidadepertenceaopossível.Masnãoseráessetambémocasodaimagem,quejápropunhaumaformaespecíficadeesgotaropossível?Pode-sedizer,destavez,queumaimagem,talcomoelasesustentanovazioforadoespaço,mastambémàdistânciadaspalavras,dashistóriasedaslembranças,armazenaumafantásticaenergiapotencialqueeladetonaaosedissipar.Oquecontana imagemnãoéoconteúdopobre,masaprodigiosaenergiacaptada,prestesaexplodir,fazendo com que as imagens nunca durem muito tempo. Elas se confundem com a detonação, acombustão,adissipaçãodesuaenergiacondensada.Comopartículasúltimas,elasnuncadurammuitotempo, e o Bing desencadeia “imagem apenas quase nunca um segundo”. Quando o personagem diz“Basta,basta,asimagens”,nãoésóporqueestáenojadodelas,masporqueelassótêmumaexistênciaefêmera.“Nadadeazulacabouoazul”.35NãoseinventaráumaentidadequeseriaaArte,capazdefazerdurar a imagem: a imagemdura o tempo furtivo denossoprazer, de nosso olhar (“fiquei trêsminutosdiantedosorrisodoProfessorPater,aolhá-lo”).36Háumtempoparaasimagens,ummomentocertoemqueelaspodemaparecer,inserir-se,romperacombinaçãodaspalavraseofluxodasvozes,háumahoraparaasimagens,quandoWinniesentequepodecantaraHorapreciosa,maséummomentobempróximodofim,umahorapróximadaúltima.Acançãodeninaréumritornelomotorquetendeparaseuprópriofim, e nele precipita todo o possível, indo “cada vezmais rápido”, sendo “cada vezmais breve”, até abruscaparada,logomais.37Aenergiadaimagemédissipadora.Aimagemacabarápidoesedissipa,umavezqueelaprópriaéomeiodeterminar.Elacaptatodoopossívelparafazê-losaltar.Quandosediz“crieiaimagem”éque,dessavez,terminou,nãohámaispossível.Aúnicaincertezaquenosfazcontinuaréqueatémesmoospintores,atémesmoosmúsicosnuncaestãosegurosdeterconseguidocriaraimagem.Quegrande pintor não se disse, aomorrer, que não tinha conseguido criar uma única imagem, ainda quepequenaebemsimples?Então,éantesdetudoofim,ofimdetodapossibilidade,quenosensinaqueatínhamoscriado,quetínhamosacabadodecriaraimagem.Eomesmovaleparaoespaço:seaimagemtem, por natureza, uma duração muito pequena, o espaço talvez tenha um lugar muito restrito, tãorestritoquantooqueapertaWinnie,nosentidoemqueWinniedirá:“aterraé justa”,eGodard:“justouma imagem”.O espaço tão logo criado se contrai num “buraco de agulha”, tal como a imagem, nummicro-tempo: umamesma escuridão, “enfim esta certa escuridão que apenas certa cinza pode”; “BingsilêncioHopacabado”.38

Há,portanto,quatromodosdeesgotaropossível:•formarsériesexaustivasdecoisas,•estancarosfluxosdevoz,•extenuaraspotencialidadesdoespaço,•dissiparapotênciadaimagem.

Oesgotadoéo exaustivo, o estancado, o extenuado, odissipado.Osdoisúltimosmodosunem-senalínguaIII,línguadasimagensedosespaços.Elapermaneceemrelaçãocomalinguagem,masseergueouseestiraemseusburacos,seusdesviosouseussilêncios.Oraelaoperaemsilêncio,oraserve-sedeuma voz gravada que a apresenta e, bem mais que isso, força as palavras a se tornarem imagem,movimento,canção,poema.Elanasce,semdúvida,nosromancesenasnovelas,passapeloteatro,maséna televisão que conclui sua operação, distinta das duas primeiras.Quad será Espaço com silêncio e,eventualmente,música.TrioduFantômeseráEspaçocomvozapresentadoraemúsica.…quenuages…seráImagemcomvozepoema.NachtundTräumeseráImagemcomsilêncio,cançãoemúsica.

***

Quad, sem palavras, sem voz, é um quadrilátero, um quadrado. Ele é, no entanto, perfeitamentedeterminado, tem certas dimensões, mas só tem como determinações suas singularidades formais,vérticesequidistantesecentro,sótemcomoconteúdosouocupantesosquatropersonagenssemelhantesque o percorrem sem parar. É um espaço qualquer fechado, globalmente definido. Os própriospersonagens,baixosemagros,assexuados,encapuzados,só têmcomosingularidadepartircadaumdeum vértice, como de um ponto cardeal, personagens quaisquer que percorrem o quadrado, cada umseguindo um percurso e em determinadas direções. Sempre se pode lhes dar uma luz, uma cor, umapercussão,umruídodepassosqueosdistingam.Mas issoseriaumamaneiradereconhecê-los;elessóestão determinados espacialmente, só são definidos por sua ordem e sua posição. São personagensindefinidos [innaffectés] num espaço indefinível [innaffectable]. Quad é um ritornelo essencialmentemotor,tendopormúsicaoroçardoschinelos.Comosefossemratos.Aformadoritorneloéasérie,queaquinãodizmaisrespeitoaobjetosacombinar,masapenasapercursossemobjeto.39Asérietemumaordem, pela qual ela cresce e decresce, volta a crescer e a decrescer, segundo o aparecimento e odesaparecimento dos personagens nos quatro cantos do quadrado: é um cânone. Ela tem um cursocontínuo,segundoasucessãodossegmentospercorridos:umlado,adiagonal,outrolado…etc.Elaforma

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um conjunto que Beckett caracteriza assim: “quatro solos possíveis, todos assim esgotados; seis duospossíveis,todosassimesgotados(dosquaisdoisporduasvezes);quatrotriospossíveisduasvezes,todosassimesgotados”,umquartetoquatrovezes.Aordem,ocursoeoconjuntotornamomovimentotãomaisinexorável quanto ele é sem objeto, como uma esteira rolante que fizesse aparecer e desaparecer osmóveis.

O texto de Beckett é perfeitamente claro: trata-se de esgotar o espaço. Não há dúvida de que ospersonagenssecansam,eseuspassossetornarãocadavezmaisarrastados.Noentanto,ocansaçodizrespeito, sobretudo, a um aspecto menor do empreendimento: o número de vezes em que umacombinaçãopossívelérealizada(porexemplo,doisdosduossãorealizadosduasvezes;osquatrotrios,duasvezes;oquarteto,quatrovezes).Ospersonagenscansam-sedeacordocomonúmeroderealizações.Mas o possível é concluído independentemente desse número, pelos personagens esgotados e que oesgotam. O problema é: em relação a que vai se definir o esgotamento, que não se confunde com ocansaço? Os personagens se realizam e se cansam nos quatro cantos do quadrado, nos lados e nasdiagonais.Maselesconcluemeseesgotamnocentrodoquadrado,ondeasdiagonaissecruzam.Aíestá,dir-se-ia,apotencialidadedoquadrado.Apotencialidadeéumduplopossível.Éapossibilidadedequeumacontecimento, ele próprio possível, se realize no espaço considerado. A possibilidade de que algumacoisaserealize,edequealgumlugarorealize.Apotencialidadedoquadradoéapossibilidadedequeosquatrocorposemmovimentoqueopovoamseencontrem,adois,atrêsouaquatro,segundoaordemeocursodasérie.40Ocentroéolugaremqueelespodemseencontrar;eseuencontro,suacolisão,nãoéumacontecimentoentreoutros,masaúnicapossibilidadedeacontecimento,istoé,apotencialidadedoespaçocorrespondente.Esgotaroespaçoéexaurirsuapossibilidade,tornandotodoencontroimpossível.Desdeentão,asoluçãodoproblemaestánesseleverecuoemrelaçãoaocentro,nesseesgueirarse,nessedesvio,nessehiato,nessapontuação,nessasíncope,nessarápidaesquivaoupequenosalto,queprevêoencontroeoconjura.Arepetiçãonãoretiranadadocaráterdecisivo,absoluto,dessegesto.Oscorposevitam-serespectivamente,masevitamocentroabsolutamente.Elesseesgueiramemrelaçãoaocentropara evitar um ao outro, mas cada um se esgueira, em solo, para evitar o centro. O que édespotencializadoéoespaço.“Pistaapenassuficientementelargaparaqueumúnicocorponuncadoisaísecruzem.”41

Quadestápróximodeumbalé.AsconcordânciasgeraisdaobradeBeckettcomobalémodernosãonumerosas:oabandonodoprivilégiodaestaturavertical;aaglutinaçãodoscorposparasemanteremempé;asubstituiçãodasextensõesqualificadasporumespaçoqualquer;asubstituiçãodetodahistóriaounarração por um “gestus” como lógica das posturas e posições; a busca de um minimalismo; aapropriação, pela dança, da caminhada e de seus acidentes; a conquista de dissonâncias gestuais… Énormal que Beckett exija dos caminhantes de Quad “alguma experiência da dança”. Não apenas ascaminhadasoexigem,mastambémohiato,apontuação,adissonância.

Tambémestá próximo de uma obramusical.Uma obra deBeethoven,Trio duFantôme, aparece emoutrapeçadeBeckettparatelevisãoelheservedetítulo.Ora,osegundomovimentodoTrio,queBeckettutiliza, nos apresenta a composição, decomposição, recomposição de um tema com dois motivos, doisritornelos.Écomoocrescimentoeodecrescimentodeumcompostomaisoumenosdenso,sobrelinhasmelódicaseharmônicas,superfíciesonorapercorridaporummovimentocontínuo,obsedante,obsessivo.Mashátambémalgobemdiferente:umaespéciedeerosãocentralqueseapresenta,antesdetudo,comoumaameaçanosbaixos,eseexprimenotrinadoounatremulaçãodopiano,comoseatonalidadefosseser abandonada por uma outra ou por nada, perfurando a superfície, mergulhando numa dimensãofantasmáticaondeasdissonânciasviriamapenaspontuarosilêncio.ÉoqueBeckettsalienta,acadavezque fala de Beethoven: uma arte das dissonâncias inaudita até então, uma oscilação, um hiato, “umapontuaçãodedeiscência”,umaacentuaçãodadapeloqueseabre,seesquivaeseabisma,umdesvioquesó pontua pelo silêncio de um fim último.42 Mas por que, se tem efetivamente esses traços, Trio nãoacompanhaQuad,comoqualcombinatãobem?Porqueelevaipontuaroutrapeça?Talvezporque,aodesenvolver diferentemente sua dimensão fantasmática,Quad não tenha que ilustrar umamúsica quedesempenhaumpapelemoutrolugar.

Trio do fantasma compõe-se de voz e música. Também diz respeito ao espaço, para esgotar suaspotencialidades,masdeumamaneirainteiramentediferentedeQuad.Aprincípio,seriapossívelpensarnumaextensãoqualificadapeloselementosqueoocupam:ochão,asparedes,aporta,ajanela,ocatre.Masesses elementos sãodesfuncionalizados, e a voz osnomeia sucessivamente enquanto a câmeraosmostra em close, partes cinzas retangulares homogêneas, homólogas de um mesmo espaço, que sedistinguemapenas pelas nuances de cinza: na ordemde sucessão,um pedaço de chão,um pedaçodeparede,umaportasemmaçaneta,umajanelaopaca,umcatrevistodecima.Essesobjetosnoespaçosãoestritamenteidênticosapartesdeespaço.Trata-se,pois,deumespaçoqualquer,nosentidojádefinido,inteiramentedeterminado,emborasejadeterminadolocalmente,enãoglobalmente,comoemQuad:umasucessãodefaixascinzasiguais.Trata-sedeumespaçoqualquer,fragmentadoporcloses,comoRobertBresson indicava como sendo a vocação cinematográfica: a fragmentação “é indispensável se não sequiser cair na representação… Isolar as partes. Torná-las independentes a fim de lhes dar uma novadependência”.43Desconectá-lasemproldeumanovaconexão.A fragmentaçãoéoprimeiropassoparaumadespotencializaçãodoespaço,porvialocal.

Certamente o espaço global apareceu primeiro em plano geral.Mas,mesmo então, não é como emQuad,ondeacâmeraestáfixaesobrelevada,exterioraoespaçoplanofechado,eoperanecessariamentedemaneira contínua. Certamente um espaço global pode ser esgotado unicamente pela força de uma

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câmerafixa,imóvelecontínua,operandocomzoom.UmcasocélebreéWavelenght,deMichaelSnow:ozoomde45minutosexploraumespaçoretangularqualqueredescartaosacontecimentosàmedidaqueavança,dotando-ostãosomentedeumaexistênciafantasmática,porexemploporsuperposiçãonegativa,até encontrar a parede do fundo, coberta comuma imagemdemar vazio para onde todo o espaço seprecipita. Pode-se dizer que se trata da “história da diminuição progressiva de uma purapotencialidade”.44 Mas, além de Beckett não gostar dos procedimentos especiais, as condições doproblema,dopontodevistadeumareconstruçãolocal,exigemqueacâmerasejamóvel,comtravellings,e descontínua, com cortes livres: tudo está anotado e quantificado. É que o espaço de Trio estádeterminadoapenasportrêslados–leste,norteeoeste,sendoosulconstituídopelacâmeracomoparedemóvel.NãoémaisoespaçofechadodeQuad,comumaúnicapotencialidadecentral,masumespaçocomtrêspotencialidades:aportaaleste,ajanelaaonorte,ocatreaoeste.E,comosãopartesdeespaço,osmovimentos de câmera e os cortes constituem a passagem de uma à outra, e sua sucessão, suassubstituições,todasessasfaixascinzasquecompõemoespaçosegundoasexigênciasdotratamentolocal.Mastambém(eissoéomaisprofundodeTrio)todasessaspartesmergulhamnovazio,cadaumaaseumodo, cada uma aumentando o vazio no qual mergulham, a porta entreabrindo-se para um corredorescuro,ajaneladandoparaumanoitechuvosa,ocatreinteiramenterasoquemostraseuprópriovazio.Demodoqueapassageme a sucessãodeumaparte a outra só fazem conectar ou juntar insondáveisvazios. Essa é a nova conexão, propriamente fantasmática, ou o segundo passo da despotencialização.PassoquecorrespondeàmúsicadeBeethoven,quandoelapontuaosilêncio,equandouma“passareladesons”sóconecta“abismosdesilêncios insondáveis”,45particularmenteemTrio,emqueaoscilaçãoeotremolojáindicamosburacosdesilênciosobreosquais,àcustadedissonâncias,sedáaconexãosonora.

Asituaçãoéaseguinte:umavozdemulher,gravada,pré-determinada,profetizadora,cuja fonteestáforadecampo,anuncia,murmurando,queopersonagem“vaiacreditarqueouveamulheraproximar-se”.Sentadonumbanco,pertodaportaecarregandoumgravador,opersonagemlevanta-se,largaoaparelhoe,comoumguarda-noturnoouumasentinelafantasmática,aproxima-sedaporta,dajanelaedepoisdocatre.Hárecomeços, retornosàposiçãosentada,eamúsicasósaidogravadorquandoopersonagemestásentado,inclinadosobreoaparelho.EssasituaçãogeralnãodeixadetersemelhançacomDisJoe,aprimeirapeçadeBeckettparatelevisão.MasasdiferençasemrelaçãoaTriosãoaindamaiores.Équeavozfemininanãoapresentavaosobjetos,eessesnãoseconfundiamcompartesplanaseequivalentesdoespaço:alémdaportaedajanela,haviaumarmárioquedavaumaprofundidadeinterioraoquarto,eacama,emvezdeserumcatreapoiadodiretamentenochão,tinhapés.Opersonagemestavaacuado,eavoznãotinhaporfunçãonomeareanunciar,maslembrar,ameaçar,perseguir.EraaindaalínguaII.Avoztinhaintenções,entonações,evocavalembrançaspessoaisinsuportáveisaopersonagememergulhavanadimensãomemorial, sempoder se elevaràdimensão fantasmáticadeum impessoal indefinido.ApenasTrioatingeesseponto:umamulher,umhomemeumacriança,semnenhumacoordenadapessoal.DeDisJoeaTrioproduz-seumaespéciededepuraçãovocaleespacial,quefazcomqueaprimeirapeçatenhaantesde tudoumvalorpreparatório e introduzà obrade televisão,maisdoque fazplenamentepartedela. Em Trio, a voz murmurante tornou-se neutra, sem timbre, sem intenção, sem ressonância, e oespaçotornou-seumespaçoqualquer,sempartedebaixonemprofundidade,tendocomooutrosobjetossomentesuasprópriaspartes.Éoúltimopassodadespotencialização,umduplopasso,poisavozestancaopossívelaomesmotempoqueoespaçoexauresuaspotencialidades.Tudoindicaqueamulherquefalade fora é amesma que poderia surgir nesse espaço.No entanto, entre a voz fora de campo e o purocampodeespaçohácisão, linhadeseparação,comono teatrogrego,noNô japonêsounocinemadosStraub e de Marguerite Duras.46 É como se fosse simultaneamente uma peça radiofônica e um filmemudo:novaformadedisjunçãoinclusa.Oumelhor,écomoumplanodeseparaçãoemqueseinscrevem,deum lado,os silênciosdavoz,e,dooutro,osvaziosdoespaço (cortes livres).É sobreesseplanodofantasmaqueseelevaamúsica,conectandoosvazioseossilêncios,segundoumalinhadecrista,comoumlimiteaoinfinito.

Os trios sãonumerosos: a voz, oespaço, amúsica; amulher, ohomemea criança; as trêsposiçõesprincipaisdacâmera;aportaaleste,ajanelaaonorte,ocatreaoeste,trêspotencialidadesdoespaço…Avozdiz:“Eleagoravaiacreditarqueouveamulheraproximar-se.”Masnãodevemospensarqueeletemmedoesesintaameaçado; issoéverdadequantoaDisJoe,masnãomaisaqui.Ele tampoucodesejaeespera a mulher; ao contrário. Ele só espera o fim, o fim último. Todo o Trio está organizado paraterminar;ofimtãodesejadoestámuitopróximo:amúsica(ausenteemDisJoe),amúsicadeBeethovenéinseparáveldeumaconversãoaosilêncio,deuma tendênciaàaboliçãonosvaziosqueelaconecta.Naverdade,opersonagemexauriutodasaspossibilidadesdoespaço,namedidaemquetratouastrêsfontescomosimplespartessemelhantesecegasflutuandonovazio:eletornouimpossívelachegadadamulher.Até mesmo o catre é tão baixo que dá testemunho de seu vazio. Por que, no entanto, o personagemrecomeçamuitotempoapósavoztersecalado,porquevoltaàporta,àjanela,àcabeceiradocatre?Jáovimos:équeofimterásedadomuitoantesqueelepossasaber:“Tudocontinuarásóatéquechegueaordemdeparartudo.”47E,quandoopequenomensageiromudosurge,nãoéparaanunciarqueamulhernãovirá,comosefosseumanotíciaruim,masparatrazeraordemtãoesperadadetudoparar,tudotendoacabado.Aomenos,opersonagemtinhaummeiodepressentirqueofimestavapróximo.AlínguaIIInãosecompõeapenasdoespaço,mastambémdaimagem.Ora,apeçatemumespelho,quedesempenhaumpapel importante, e sedistingueda série porta–janela–catre, uma vezque elenão é visível a partir da“posição câmera plano geral” e não intervém nas apresentações do início; ele estará, aliás, junto dogravador(“pequenoretângulocinza,comasmesmasdimensõesqueogravador”),enãodastrêscoisas.Melhorainda,quandoopersonagemseinclinasobreelepelaprimeiravez,semquesepossaaindavê-lo,

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é a única vez em que a voz profetizadora é surpreendida, pega desprevenida: “Ah!”; e quando se vê,enfim, o espelho, naposiçãomaispróximada câmera, surgea Imagem, isto é, o rostodopersonagemabominável. A Imagem deixará seu suporte e se tornará flutuante, em close, enquanto o segundomovimentodoTrioconcluiseusúltimoscompassosamplificados.Orostosepõeasorrir,surpreendentesorriso,velhacoeardiloso,dealguémqueatingeametadeseu“astuciosodelírio”:elecriouaimagem.48

Trio vai do espaço à imagem.O espaçoqualquer já pertence à categoria depossibilidade, pois suaspotencialidadespermitemarealizaçãodeumacontecimentoeleprópriopossível.Masaimagemémaisprofunda,poiselasedescoladeseuobjetoparaserumprocesso,istoé,umacontecimentocomopossível,quenãotemnemmaisqueserealizarnumcorpoounumobjeto:algocomoosorrisosemgatodeLewisCarroll. Daí o cuidado com que Beckett cria a imagem: já emDis Joe, o rosto sorridente surgia comoimagem,massemquesepudesseveraboca,poisapurapossibilidadedosorrisoestánosolhosenasduascomissurasdirigidasparacima,orestonãoestandoincluídonoplano.Umterrívelsorrisosemboca.Em…quenuages…,orostofeminino“quasenãotemcabeça,umrostosemcabeçasuspensonovazio”;eemNachtundTräume,orostosonhadoécomoqueconquistadopelopanoqueenxugaosuor,talcomoumrostodeCristo,eflutuanoespaço.49Mas,seéverdadequeoespaçoqualquernãoseseparadeumhabitantequeexauresuaspossibilidades,aimagem,commaisrazão,continuainseparáveldomovimentopeloqualelasedissipa:orostoinclina-se,volta-se,apaga-seousedesfazcomoumanuvem,comofumaça.Aimagemvisualéconduzidapelamúsica,imagemsonoraquecaminhaparasuaprópriaabolição.Ambasseguememdireçãoaofim,todopossíveltendosidoesgotado.

Trionoslevavadoespaçoàsportasdaimagem.Mas…quenuages…penetrano“santuário”:osantuárioéolugarondeopersonagemvaicriaraimagem.Oumelhor,numretornoàsteoriaspós-cartesianasdeMurphy, há agora dois mundos, um físico e um mental, um corporal e um espiritual, um real e umpossível.50 O físico parece feito de uma extensão qualificada, com uma porta à esquerda dando para“caminhosvicinais”pelaqualopersonagemsaieentra,àdireitaumcubículonoqualeletrocaderoupae,noalto,osantuárioemqueeleseprecipita.Mastudoissosóexistenavozdoprópriopersonagem.Oquevemos,aocontrário,éapenasumespaçoqualquer,determinadoporumcírculopreto,cadavezmaissombrioàmedidaquenosaproximamosdaperiferia, cadavezmaisclaroquandonosaproximamosdocentro:aporta,ocubículo,osantuáriosãoapenasdireçõesnocírculo,oeste,leste,nortee,longe,aosul,foradocírculo,acâmeraimóvel.Quandovainumadireção,opersonagemmergulhanasombra;quandoestánosantuário,apareceemplanomédio,decostas,“sentadonumbancoinvisível,curvadosobreumamesa invisível”. O santuário tem apenas uma existência mental; é um “gabinete mental”, como diziaMurphy, que corresponde à lei dos inversos, tal como ele a formula: “Todo movimento no mundo doespírito exige um estado de repouso no mundo do corpo.” A imagem é precisamente isso: não umarepresentaçãodeobjeto,masummovimentonomundodoespírito.Aimageméavidaespiritual,a“vidaláemcima”deCommentc’est.Sósepodemesgotarasalegrias,osmovimentoseasacrobaciasdavidadoespíritoseocorpopermanecerimóvel,agachado,encolhido,sentado,sombrio,elepróprioesgotado:éoqueMurphychamavade“aconivência”,oacordoperfeitoentreanecessidadedocorpoeanecessidadedoespírito,oduploesgotamento.Oassuntode…quenuages…éessanecessidadedoespírito,essavidaláemcima.Oquecontanãoémaisoespaçoqualquer,masaimagemmentalàqualeleconduz.

Certamentenãoéfácilcriarumaimagem.Nãobastapensaremalgoouemalguém.Avozdiz:“Quandoeu pensava nela… Não… Não exatamente…” É preciso uma obscura tensão espiritual, uma intensiosegundaouterceira,comodiziamosautoresdaIdadeMédia,umaevocaçãosilenciosa,quetambémsejauma invocação e atémesmo uma convocação e uma revogação, pois ela eleva a coisa ou a pessoa aoestadoindefinido:umamulher…“Apelodiantedoolhodoespírito”,gritavaWillie.51Novecentasenoventaeoitovezesemmil, fracassa-seenadasurge.Equandoseébem-sucedidoa imagemsublimeinvadeatela, rosto feminino sem contorno, e logo desaparece, “de ummesmo fôlego”, ou se demora antes dedesaparecer,ouentãomurmuraalgumaspalavrasdopoemadeYeats.Detodomodo,aimagemrespondeàsexigênciasdeMalvistoMaldito,MalvistoMalcompreendido,que imperamnoreinodoespírito.E,como movimento espiritual, ela não se separa do processo de seu próprio desaparecimento, de suadissipação,prematuraounão.A imageméumsopro,umfôlego,masexpirante,emviasdeextinção.Aimageméoqueseapaga,seconsome,umaqueda.Éumaintensidadepura,quesedefineporsuaaltura,isto é, seu nível acima de zero, que ela só descreve ao cair.52 O que se retém do poema de Yeats é aimagemvisualdenuvenspassandonocéuesedesfazendonohorizonteeaimagemsonoradogritodeumpássaroqueseextinguenanoite.Énestesentidoqueaimagemconcentraumaenergiapotencialqueelalevaconsigoemseuprocessodeautodissipação.Elaanunciaqueofimdopossívelestápróximoparaopersonagem de…que nuages…, assim como paraWinnie, que sentia um “zéfiro”, um “sopro”, poucoantesdaescuridãoeterna,danoiteescurasemsaída.Nãohámais imagem,nemespaço:paraalémdopossívelháapenasescuridão,comono terceiroeúltimoestadodeMurphy,ondeopersonagemnãosemove mais em espírito, mas se torna um átomo indiscernível, abúlico, “na escuridão da liberdadeabsoluta”.53Éapalavradofim:“Nãohámaiscomo[plusmèche].”

ÉtodaaúltimaestrofedopoemadeYeatsqueconvéma…quenuages…:osdoisesgotamentosparaproduzirofimquearrebataoSentado.MasoencontrodeBeckettcomYeatsultrapassaessapeça:nãoqueBeckett retomeoprojetode introduziroNôcomocoroamentodo teatro;masasconvergênciasdeBeckett com oNô, ainda que involuntárias, pressupõem, talvez, o teatro de Yeats, emanifestam-se naobradetelevisão.54Eisoquesechamoude“poemavisual”:umteatrodoespíritoquesepropõenãoanarrarumahistória,masaconstruirumaimagem;aspalavrasqueservemdecenárioparaumarededepercursosnumespaçoqualquer;aextremaminúciadessespercursos,medidoserecapituladosnoespaço

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enotempo,emrelaçãoaoquedevepermanecerindefinidonaimagemespiritual;ospersonagenscomo“supermarionetes”, e a câmera como personagem que tem um movimento autônomo, furtivo oufulgurante, emantagonismo comomovimento dos outros personagens; a rejeição dosmeios artificiais(câmera lenta, superposição etc.), por não convirem aos movimentos do espírito…55 Só a televisão,segundoBeckett,cumpreessasexigências.

CriaraimagemétambémaoperaçãodeNachtundTräume,masdessavezopersonagemnãotemvozpara falarenãoouve, como tambémnãopode semover, sentado, cabeçavazia sobremãosatrofiadas,“olhosfechadosarregalados”.Trata-sedeumanovadepuração:“Quantomaiscomomenos[Plusmèchemoins].Quantomaiscomopior.Quantomaiscomonada.Quantomaiscomoainda.”56Énoite,eelevaisonhar.Seriaprecisoacreditarqueeleadormece?MelhoracreditaremBlanchot,quandodeclaraqueosono trai a noite, porque faz dela uma interrupção entre dois dias, permitindo ao seguinte suceder aoprecedente.57Limitamo-nos,frequentemente,adistinguirentreodevaneiodiurno,osonhoacordado,eosonho do sono. Mas trata-se de uma questão de cansaço e de descanso. Perdemos, assim, o terceiroestado, talvezomais importante:a insônia,aúnicaadequadaànoite,eosonhode insônia,queéumaquestão de esgotamento. O esgotado é o arregalado. Sonhamos no sono, mas sonhamos ao lado dainsônia. Os dois esgotamentos, o lógico e o fisiológico, “a cabeça e os pulmões”, como diz Kafka, seencontramanossascostas.KafkaeBeckettpoucoseassemelham,mastêmemcomumosonhoinsone.58Nosonhodeinsônianãosetrataderealizaroimpossível,masdeesgotaropossível,sejadando-lheummáximodeextensão,quepermitetratá-locomoumrealdiurnoacordado,àmaneiradeKafka,seja,comoBeckett,reduzindo-oaummínimoqueosubmeteaonadadeumanoitesemsono.Osonhoéoguardiãodainsônia,paraimpedi-ladedormir.Ainsôniaéoanimalentocado,queseestendetantoquantoosdiaseseretraicomtantaforçaquantoanoite.Aterrorizanteposturadainsônia.

O insonedeNacht undTräume prepara-separa o queprecisa criar.Ele está sentado,mãos sobre amesa,cabeçasobreasmãos:umsimplesmovimentodasmãos,quesecolocariamsobreacabeçaou,aomenos,seliberariam,éumapossibilidadequesópodeapareceremsonho,comoumbancovoador…Maséprecisocriaressesonho.Osonhodoesgotado,doinsone,doabúlico,nãoécomoosonhodosono,queacontecepor contapróprianaprofundezado corpoedodesejo; é um sonhodo espírito, quedeve sercriado, fabricado. O “sonhado”, a imagem, será o mesmo personagem na mesma posição sentada,invertido,perfilesquerdoemvezdeperfildireitoeacimadosonhador;mas,paraqueasmãossonhadasse tornem imagem, será preciso que outras mãos, de umamulher, se movam e levantem a cabeça, aembebam com um cálice, a enxuguem com um pano, de modo que, agora de cabeça erguida, opersonagemsonhadopossaestenderasmãosemdireçãoaumadaquelasquecondensamedistribuemaenergiana imagem.Parecequeessa imagematingeumaintensidadedilaceranteatéqueacabeçacaiaemtrêsmãos,comaquartasobreocrânio.Equandoaimagemsedissipa,tem-seaimpressãodeouviruma voz: o possível foi concluído, “está feito, criei a imagem”. Mas não há uma voz que fala, comotambémnãohaviaemQuad.Háapenasavozdehomemquecantarolaetrauteiaosúltimoscompassosdohumilde ritornelo da música de Schubert, “Doces sonhos, voltai…”, uma vez antes do surgimento daimagem,umavezapósseudesaparecimento.Aimagemsonora,música,reveza-secomaimagemvisual,eabreovazioouosilênciodofimúltimo.Dessavez,éSchubert,dequemBeckettgostatanto,queproduzumintervalooudáumsalto,umaespéciederecuo,deummodomuitodiferentedodeBeethoven.Éavozmelódicamonódicaquesaidosuporteharmônico,reduzidoaomínimo,paraexplorarintensidadespurassentidaspelamaneiracomoosomseextingue.Umvetordeaboliçãoconduzidopelamúsica.

Emsuaobrapara televisão,Beckett esgotaduas vezes o espaçoeduas vezes a imagem.Ele suportoucadavezmenosaspalavras.Esabia,desdeoinício,arazãopelaqualdeviasuportá-lascadavezmenos:adificuldadeparticularde“esburacar”asuperfíciedalinguagemparaquefinalmenteaparecesse“oqueseescondeatrás”.Issopodeserfeitonasuperfíciedatelapintada,comoRembrandt,CézanneouVanVelde,na superfíciedo som, comoBeethovenouSchubert, paraqueenfim surja o vazio ouo visível em si, osilêncioouoaudívelemsi.Mas“haveriaumaúnicarazãoparaqueasuperfíciedapalavra,terrivelmentetangível, não possa ser dissolvida?”59 Não é apenas que as palavras sejammentirosas; elas estão tãosobrecarregadas de cálculos e de significações, e também de intenções e de lembranças pessoais, develhos hábitos que as cimentam, que a sua superfície, tão logo fendida, se fecha. Ela cola. Ela nosaprisionaesufoca.Amúsicachegaatransformaramortedeumajovememumajovemmorre,elaoperaessa extrema determinação do indefinido como intensidade pura que perfura a superfície, como noConcertoemmemóriadeumanjo.Masaspalavras,comsuasaderênciasqueasmantêmnogeralounoparticular,nãopodemfazer isso.Falta-lhesa“pontuaçãodedeiscência”,a“desvinculação”quevemdeum movimento súbito e violento próprio da arte. É a televisão que, por um lado, permite a Beckettultrapassarainferioridadedaspalavras:oudispensandoaspalavrasfaladascomoemQuadeemNachtund Träume; ou utilizando-se delas para enumerar, apresentar, ou servir de cenário, o que permiteafrouxá-laseintroduzirentreelascoisasoumovimentos(TrioduFantôme,…quenuages…);ouretendoalgumaspalavras,separadasporumintervaloouumritmo,orestantesereduzindoaummurmúrioquaseinaudível,comonofinaldeDisJoe;oucaptandoalgumasdelasnamelodiaquelhesdáapontuaçãoquelhesfalta,comoemNachtundTräume.Noentanto,natelevisão,éalgodiferentedaspalavras,músicaouvisão,quevemafrouxarseulaço,separá-las,ouatémesmodeixá-lasinteiramentedelado.Nãoexistiria,portanto,salvaçãoparaaspalavras,comoumnovoestiloemqueelasseseparariamdelasmesmas,emque a linguagem se tornaria poesia, de maneira a produzir efetivamente as visões e os sons quepermaneciam imperceptíveis por trás da antiga linguagem (“o velho estilo”)? Como distinguir visões e

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sons,tãopurosetãosimples,tãofortes,queoschamamosdemalvistomaldito,quandoaspalavrasseperfurameseafastamdesimesmasparamostrarseuprópriode-fora?Músicaprópriadapoesialidaemvoz alta e semmúsica. Beckett, desde o início, exige um estilo que procederia, aomesmo tempo, porperfuraçãoeproliferaçãodotecido(“abreakingdownandmultiplicationoftissue”).Esseestiloseelaboranos romances e no teatro, aflora emComment c’est, impõe-se no esplendor dos últimos textos. E, àsvezes, breves segmentos se juntam, incessantemente, no interior da frase, para romper totalmente asuperfíciedaspalavras,comonopoemaCommentdire:

Doidicevistoeste–este–comodizer–isto–esteistoistoaqui–todoesteistoaqui–doidicedadotodoeste–visto–doidicevistotodoesteistoaquide–de–comodizer–ver–entrever–crerentrever–querercrerentreverdoidicedequerercrerentreveroquê…………………………………………..60

E,outrasvezes,traçosperfuramafraseparareduzirincessantementeasuperfíciedaspalavrascomonopoemaCapaupire:

Omelhormínimo.Não.Nadademelhor.Omelhorpior.Não.Nãoomelhorpior.Nadademelhorpior.Menosquemelhorpior.Não.Omenos. O menos melhor pior. O mínimo nunca pode ser nada. Nunca ao nada pode ser reconduzido. Nunca pelo nada anulado. Nãoanulávelmenor.Dizeressemelhorpior.Compalavrasquereduzemdizeromínimomelhorpior………………………………………………………………..Hiatosparaquandoaspalavrasdesaparecidas.61

1Nouvellese textespour rien, Paris,Minuit, p.128.Beckett traduziu algunsde seus textos do francês para o inglês oudo inglês para ofrancês,outros foramtraduzidossemsuaparticipação.ComoDeleuze leuecitou todosos textosem francês,paraevitaralgumapossíveldiscrepânciaentreascitaçõesesuainterpretação,traduzimossempreapartirdofrancês.(N.T.)2L’Innommable,Paris,Minuit,p.104.3Pourfinirencoreetautresfoirades,Paris,Minuit,p.38.4Cf.BriceParain,Surladialectique:alinguagem“nãodizoqueé,dizoquepodeser…Vocêdizqueestátrovejando,ealguémlherespondenocampo:épossível,podeser…Quandodigoqueédia,nãoéporquesejadia…,[mas]porquetenhoalgumacoisapararealizar,àqualodiasóservecomoocasião,pretextoouargumento”(Paris,Gallimard,p.61,130).5 Para dar conta da distinção terminológica queDeleuze estabelece entre réaliser eaccomplir, traduzimos sempre o primeiro termo por“realizar”eosegundopor“concluir”.(N.T.)6Nouvellesettextespourrien,op.cit.,p.134.7Watt,Paris,Minuit,p.75.8Murphy,Paris,Minuit,p.73.9Watt, op.cit., p.208-9, 212-4. FrançoisMartel fez um rigoroso estudo da ciência combinatória, das séries e disjunções emWatt: “JeuxformelsdansWatt”,Poétique10,1972.Cf.Malonemeurt,Paris,Minuit,p.13:“Tudosedivideemsimesmo.”10MauriceBlanchot,Lelivreàvenir,Paris,Gallimard,p.211.AexacerbaçãodosentidodopossíveléumtemaconstanteemOhomemsemqualidades.11Assez,inTêtes-mortes,Paris,Minuit,p.36.12Cf.opoemadeYeats[“Thetower”,1927]queinspiraapeçaparatelevisão…quenuages…13Malonemeurt,op.cit.,p.129.14Capaupire,Paris,Minuit,p.15;Soubresauts,Paris,Minuit,p.7,13;Pourfinirencoreetautresfoirades,op.cit.,p.9,48.15L’Innommable,op.cit.,p.12.16Molloy,Paris,Minuit,p.83.17Malvumaldit,Paris,Minuit,p.69.18L’Innommable,op.cit.,p.44.Cf.EditFournier,inSamuelBeckett,Revued’esthétique,p.24:“Beckettvaidiretoaoponto,nemafrasenemapalavra,masseujorro;suagrandezaétersabidoestancá-lo…”19Éentãoqueagrande“teoria”deL’Innommableparececairnumcírculo.Daíaideiadequeasvozesdospersonagenstalvezremetama“senhores”diferentesdosprópriospersonagens.20L’Innommable,op.cit.,p.103s.

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21Commentc’est,Paris,Minuit,p.146,eCompagnie.22L’Innommable,op.cit.,p.169.23Capaupire,op.cit.,p.53.Jáem1937umacarta,escritaemalemão,dizia:“Jáquenãopodemoseliminaralinguagemdeumavez,devemospelomenosnãonegligenciarnadaquepossacontribuirparaseudescrédito.Esburacá-la,semcessar,atéqueaquiloqueestáportrás,sejaalguma coisa ou simplesmente nada, se manifeste através” (Disjecta…, Londres, Calder). (Cap au pire dirá, ao contrário: “nada demanifestação”.)24Emgeral,aimagemdificilmenteconseguesedesprenderdeumaimagem-lembrança,notadamenteemCompagnie.E,àsvezes,avozétomadaporumavontadeperversadeimporumalembrançaparticularmentecruel–comonapeçaparatelevisãoDisJoe(inComédieeactesdivers).25Commentc’est,op.cit.,p.119(sobreumpoucodeazul,umpoucodebrancoea“vidaláemcima”,cf.p.88,93,96).26L’Image,Paris,Minuit,p.18.Cf.tambémCommentc’est,op.cit.,p.33:“umabelaimagembelaquerodizerpelomovimentoacor…”27Lemondeetlepantalon,Paris,Minuit,p.20(sobreasduasespéciesdeimagens,nasobrasdeBrameGeervanVelde,imagemcongeladaeimagemtrêmula).28Bing,inTêtes-mortes.Bingdesencadeiaummurmúrioouumsilênciofrequentementeacompanhadodeumaimagem.29Cf.avoznapeçaparatelevisão,TrioduFantôme.EmCatastrophe,avozdaAssistenteeadoDiretorserevezamparadescreveraimagemasercriada,ecriá-la.30EmParolesetmusiques,peçaradiofônica (inComédieetactesdivers),assiste-seàmávontadedeFalas, ligadademaisàrepetiçãodalembrançapessoal,queserecusaaseguiramúsica.31AobradeBeckettparatelevisãocompõe-sedasquatropeçaspublicadasemQuadetautrespiècespourlatélévision(TrioduFantôme,1975;…quenuages…,1976;NachtundTräume,1983;Quad,1982),edeDisJoe,1965,publicadaemComédieetactesdivers.Veremosporqueessaprimeirapeçanãoérepublicadacomasoutrasnaediçãofrancesa.32Pourenfinirencoreetautresfoirades,op.cit.,p.16.33 Já entreosanimais, os ritornelosnão são feitosapenasdegritosedecantos,masdecores,posturasemovimentos, comovemosnasmarcaçõesdeterritórioenosritosnupciais.Ocorreomesmocomosritorneloshumanos.FélixGuattariestudouopapeldosritornelosnaobradeProust(“Osritornelosdotempoperdido”,L’Inconscientmachinique,Paris,Encres):porexemplo,acombinaçãodapequenafrasedeVinteuilcomcores,posturasemovimentos.34Watt,op.cit.,p.32.35Nouvellesettextespourrien,op.cit.,p.119-21,eCommentc’est,op.cit.,p.125-9.36Lemondeetlepantalon,op.cit.,p.20.37Murphy,op.cit.,p.181.38Pourfinirencoreetautresfoirades,op.cit.,p.16,eBing,inTêtes-mortes,Paris,Minuit,p.66.39NosromancescomoWatt,épossívelqueasériejácolocassemovimentosemjogo,masemrelaçãoaobjetosoucomportamentos.40MolloyeL’Innommablecomportam,desdesuasprimeiraspáginas,umameditaçãosobreoencontrodedoiscorpos.41Pourfinirencoreetautresfoirades,op.cit.,p.53.42Cf.“DreamofFairtoMiddlingWomen”,de1932,eacartade1937aAxelKaun(Disjecta).BecketsalientaemBeethoven“umapontuaçãodedeiscência,oscilações,acoerênciadesfeita…”AndréBernoldcomentouessestextosdeBeckettsobreBeethovenemumbelíssimoartigo,“Cupiodissolvi,notesurBeckettmusicien”,Détailn.34,AtelierdeLaFondationRoyaumont,1991.OsmusicólogosqueanalisamosegundomovimentodotriodeBeethovenassinalamasfiguraçõesemtremolodopiano,àsquaissesucedeumfinal,“queseprecipitadiretamenteparaatonalidadeinadequadaeaísedetém…”(AnthonyBurton).43RobertBresson,Notessurlecinématographe,Paris,Gallimard,p.95-6.44Cf.,sobreofilmedeSnow,P.A.Sitney,“Lefilmstructurel”,inCinéma,théorie,lectures,Paris,Klincksiek,p.342.AntesdeSnow,Becketttinhafeitoumaoperaçãoanáloga,masemcondiçõespuramenteradiofônicas:Cendres.Opersonagem,queouvimosandandosobreosseixospertodomar,evocaruídos-lembrançasquerespondemaseuchamado.Maseleslogodeixamderesponder,poisseesgotaapotencialidadedoespaçosonoro,eobarulhodomarengoletudo.45Cf.Disjecta.Sobreapontuação,aconexãomusicaldossilêncioseaconversãodamúsicaaosilêncio,cf.AndréBernold,op.cit.,p.26,28.46Acisãovoz/imagemvisualpodeterconsequênciasopostas:emBeckett,trata-sedeumadespotencializaçãodoespaço,mas,nosStraubeemMargueriteDuras,é,aocontrário,umapotencializaçãodamatéria.Umavozeleva-separa falardoquesepassousoboespaçovazio,atualmentemostrado.Vozeselevam-separafalardeumantigobailequeocorreunomesmosalãodobailemudohojemostrado.Avozeleva-separaevocaroqueestáenterradonaterracomoumpotencialaindaativo.47Cf.L’Innommable,op.cit.,p.169.48“Astuciosodelírio”aparecenopoemadeYeatsqueinspirou…quenuages…49JimLewis,ooperadordeBeckettparatodasaspeçasdetelevisãoproduzidasemStuttgart,faladosproblemastécnicoscorrespondentesaessestrêscasos(Revued’Esthétique,p.371s.).EspecialmenteparaDisJoe,Beckettqueriaqueoscantosdoslábiosseelevassem,naimagem,umquartodecentímetroenãomeiocentímetro.50ÉograndecapítuloVIdeMurphy,“AmorintellectualisquoMurphyseipsumamat”,op.cit.,p.81-5.51Oh les beaux jours, Paris, Minuit, p.80. Trata-se de uma fórmula extra-ída de Yeats (“Au puits de l’épervier” [At the Hawk’s Well],Empreintes, jun1978,p.2).Há fórmulassemelhantesemKlossowski: “emvezdeatribuirespíritoaRoberte, foiocontrárioquesedeu…Assim,Roberte torna-seoobjetodeumpuroespírito…” (Robertecesoir,Paris,Minuit,p.31).Klossowski liga invocaçãoe revogação,emrelaçãocomasvozes,ossopros.52Oproblemadadissipaçãodaimagem,oudaFigura,aparece,emtermosmuitopróximos,napinturadeBacon.53Murphy,op.cit.,p.84-5.54Cf.“Yeatset leNô”,artigodeJacquelineGenet,queaproximaYeatseBeckett (inW.B.Yeats,L’Herne.)Sobreas relaçõeseventuaisdeBeckettcomoNô,cf.CahiersRenaud-Barraultn.102,1981.55ÉemFilm(inComédieetactesdivers)queacâmeraadquire,aomáximo,ummovimentoantagônico;masocinematemmaisnecessidadedetrucagensdoqueatelevisão(cf.oproblematécnicodeFilm,inComédieetactesdivers,Paris,Minuit,p.130),eocontroledaimagemé,nela,muitomaisdifícil.56Capaupire,op.cit.,p.27,62.57Blanchot,L’Espacelittéraire,Paris,Gallimard,p.281:“anoite,aessênciadanoitenãonosdeixadormir”.58Cf.Kafka,Préparatifsdenoceàlacampagne,Paris,Gallimard,p.12:“Nãoprecisonemmesmoiraocampo,nãoénecessário.Mandomeucorpovestido…Quantoamim,duranteesteperíodo,ficodeitadonaminhacama,debaixodeumcobertorescuro,todoestendidosobremim,ex-postoaoarquesoprapelaportaentreaberta.”E,nonúmerodeObliquessobreKafka,cf.otextodeGroethuysen:“Elesficaramacordadosduranteosono:mantiveramosolhosabertosenquantodormiam…Éummundosemsono.Omundodaquelequedormeacordado.Tudoestáclaro,deumaclarezaassustadora…”59Cf.osdoistextosretomadosemDisjecta.60“Commentdire”,inPoèmes.OstradutoresagradecemaEloísaAraújoRibeiroporsuassugestões,especialmentenocasodestepoema.61Capaupire,op.cit.,p.41,53.

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