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critical art ensemble - UFRN

May 04, 2023

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Khang Minh
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Page 1: critical art ensemble - UFRN
Page 2: critical art ensemble - UFRN

UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE

CENTRO DE CIÊNCIAS HUMANAS, LETRAS E ARTES

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM CIÊNCIAS SOCIAIS

CRITICAL ART ENSEMBLE:

A MÁQUINA DE GUERRA E OS ARSENAIS ANTROPOTÉCNICOS DA REVOLTA

Lucas Fortunato Rêgo de Medeiros

Natal – RN

Agosto de 2019

Page 3: critical art ensemble - UFRN

Lucas Fortunato Rêgo de Medeiros

CRITICAL ART ENSEMBLE:

A MÁQUINA DE GUERRA E OS ARSENAIS ANTROPOTÉCNICOS DA REVOLTA

Tese apresentada ao Programa de Pós-

Graduação em Ciências Sociais da

Universidade Federal do Rio Grande do

Norte como requisito para obtenção do

Título de Doutor em Ciências Sociais.

Orientador: Prof. Dr. Alexsandro Galeno

Araújo Dantas.

Natal – RN

Agosto de 2019

Page 4: critical art ensemble - UFRN

Capa: Sandro Freitas, sobre foto original do Critical Art Ensemble

disponível no livro Disturbances. London: Four Corners Books, 2012, p. 21.

Ficha Catalográfica

Universidade Federal do Rio Grande do Norte – UFRN

Sistema de Bibliotecas – SISBI

Catalogação de Publicação na Fonte. UFRN – Biblioteca Setorial do Centro de Ciências Humanas, Letras e Artes – CCHLA

Medeiros, Lucas Fortunato Rêgo de.

Critical art ensemble: a máquina de guerra e os arsenais antropotécnicos da

revolta / Lucas Fortunato Rêgo de Medeiros. – Natal, 2019.

334f.: il. color.

Tese (doutorado) - Centro de Ciências Humanas, Letras e Artes, Programa de

Pós Graduação em Ciências Sociais, Universidade Federal do Rio Grande do

Norte. 2019.

Orientador: Prof. Dr. Alexsandro Galeno Araújo Dantas.

1. Critical Art Ensemble - Tese. 2. Arte-Revolta - Tese. 3. Micropolítica da

Criação - Tese. 4. Arsenais Antropotécnicos - Tese. 5. Máquina de Guerra

Artística - Tese. I. Dantas, Alexsandro Galeno Araújo. II. Título.

RN/UF/BS-CCHLA CDU 316.74:7

Elaborado por Heverton Thiago Luiz da Silva – CRB-15/710

Page 5: critical art ensemble - UFRN

Lucas Fortunato Rêgo de Medeiros

CRITICAL ART ENSEMBLE:

A MÁQUINA DE GUERRA E OS ARSENAIS ANTROPOTÉCNICOS DA REVOLTA

Banca Examinadora:

____________________________________________________

Orientador: Prof. Dr. Alexsandro Galeno Araújo Dantas – UFRN

____________________________________________________

Membro Interno – Prof. Dr. Fagner Torres de França – UFRN

____________________________________________________

Membro Externo – Prof. Dr. Márcio Romeu Ribas de Oliveira – UFRN

____________________________________________________

Membro Externo – Prof. Dr. Artemilson Alves de Lima – IFRN

____________________________________________________

Membro Externo – Prof. Dr. Pablo Moreno Paiva Capistrano – IFRN

Natal – RN

Agosto de 2019

Page 6: critical art ensemble - UFRN

Agradecimentos

Meus sinceros agradecimentos à minha família, meu pai e minha mãe, Manoel e

Cícera, por serem inspiração de humanidade, amor e dedicação. A minhas irmãs, Cecília

e Sara, que me acompanharam nas aventuras da vida com carinho. Minha eterna gratidão.

À Ravena, por estar a meu lado desde o início, e por guardar meu coração nos

tempos de batalha. Ainda virão muitas outras vitórias.

A meus amigos, todo meu apreço.

Em especial, aos que estiveram mais próximos nos anos recentes, Edgard, Pedro,

João, Tarcísio, Eliel, Sandro, Geyson, Geysa, Angélica, Renato, Mário, Nhauan,

Gonzales, Jeffesron, Douglas, Philipe, Hugo, Rodolfo, Andreas e George.

A Vantiê, Ilton, Rômulo, Geovane, Edson e Lisandro, por terem sido também

meus professores.

A meus amigos filósofos Alfredo, Williane e Everton.

Meus sinceros agradecimentos aos professores e às professoras que contribuíram

com minha formação.

À minha primeira professora, Esther, ainda lembro de seu nome.

À UFRN, uma escola de vida. Muito do que sou advém do que vivi aqui.

Em especial, ao professor Alex Galeno, exemplo de humanidade no trato com o

conhecimento e de dedicação ao trabalho intelectual. Tê-lo como orientador é uma das

experiências mais valiosas.

Às professoras Maria da Conceição de Almeida e Josineide Oliveira, e ao

professor Orivaldo Lopes, pela parceria intelectual.

Às professoras Norma Takeuti e Karyne Dias, pela contribuição no exame de

qualificação.

Aos professores Fagner França, Artemilson Lima, Pablo Capistrano e Márcio

Oliveira, pela generosidade na leitura e nos comentários sobre esta Tese.

Aos professores Alípio de Sousa Filho, Márcio Valença, Ilza Matias de Sousa,

Daniel Lins e Eduardo Pellejero, pelo incentivo e pelo apoio acadêmico no início dessa

jornada.

Aos professores Hermano, Bosco, Edmilson, Douglas e Carlos, e às professoras

Josimey, Kênia e Andressa.

Page 7: critical art ensemble - UFRN

Aos meus colegas da pós-graduação em ciências sociais. Em especial, ao círculo

de orientandos do Prof. Alex Galeno, Jadson, Raphael, Carlos, Igor e demais colegas.

Aprendi muito com vocês.

Agradeço ao Grupo de Pesquisa Marginália e ao Grecom, ao Departamento de

Ciências Sociais e ao Instituto Humanitas. Professoras, professores, técnicos e demais

pesquisadores.

A toda equipe do Programa da Pós-Graduação em Ciências Sociais. Professores,

técnicos administrativos, pesquisadores e pós-graduandos.

A Otânio, secretário do PPGCS, em especial, por seu trabalho e dedicação.

À equipe da Cooperativa Cultural do Campus – UFRN.

Aos professores do IFRN, Flávio Ferreira, Avelino Neto e Alyson Freire, pela

parceria intelectual e institucional.

A meus alunos, que ao longo dos anos me incentivaram com gestos e palavras.

Às instituições de ensino onde trabalhei, Hipócrates Colégio e Curso,

Universidade Vale do Acaraú – UVA e Centro Universitário UNIFACEX. Às

coordenações e aos colegas de profissão na área da educação.

À Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior – CAPES, que

financiou esta pesquisa.

Em especial, meus agradecimentos a Steve Kurtz e ao Critical Art Ensemble, pela

atenção em responder aos e-mails e pelos esclarecimentos. O CAE é uma inspiração para

as novas gerações.

Page 8: critical art ensemble - UFRN

Dedicado ao Critical Art Ensemble.

Page 9: critical art ensemble - UFRN

A criação, a fecundidade da revolta estão nessa distorção que

representa o estilo e o tom de uma obra. A arte é uma exigência de

impossível à qual se deu forma. Quando o grito mais dilacerante

encontra a sua linguagem mais firme, a revolta satisfaz à sua

verdadeira exigência, tirando dessa fidelidade a si mesma uma

força de criação. Ainda que isso entre em conflito com os

preconceitos da época, o maior estilo em arte é a expressão da

mais alta revolta.

– Albert Camus, O Homem Revoltado.

Page 10: critical art ensemble - UFRN

CRITICAL ART ENSEMBLE:

A MÁQUINA DE GUERRA E OS ARSENAIS ANTROPOTÉCNICOS DA REVOLTA

RESUMO

Esta pesquisa versa sobre arte e política contemporâneas. O objeto de análise que dará

acesso privilegiado às atuais relações estabelecidas entre arte e política é o coletivo

Critical Art Ensemble (CAE), um grupo de artistas e ativistas dos Estados Unidos que há

três décadas tem se dedicado a produzir uma arte com forte teor político. Nesta Tese, o

CAE é considerado um dos expoentes da arte-revolta, conceito construído por meio de

uma nomadologia da arte contemporânea que busca rastrear as experiências da revolta

artística ao longo da história moderna. Segundo o argumento defendido nesta pesquisa,

as vanguardas do século XX, ao se contraporem igualmente ao espetáculo e ao estado,

construíram uma máquina de guerra para a qual a arte é política continuada por outros

meios. Em sua rica história, as linhagens da arte-revolta inventaram diversas matrizes de

ação que se oferecem às novas gerações como táticas de intervenção criativa na esfera

pública normalmente dominada pelas instâncias políticas institucionais. Nas décadas

recentes, a convergência das práticas artísticas com as lutas políticas desencadeou a

emergência de micropolíticas da criação, assim denominadas toda sorte de ações

individuais e coletivas que se ocupam deliberadamente da inovação e da invenção na

arena da cultura. Por meio de mídia tática, performances, intervenções, ações diretas

criativas, arte socialmente engajada, uma multiplicidade de grupos dão vida à resistência

cultural no interior das sociedades capitalistas. Prolongando no presente o ímpeto da arte-

revolta, o Critical Art Ensemble opera uma máquina de guerra com os arsenais

antropotécnicos da revolta elaborados ao longo de sua carreira, que abrangem teoria

crítica engajada, plágio utópico, teatro recombinante, estética do distúrbio, mídia tática,

resistência eletrônica e biologia contestatária. Da teoria crítica à resistência aos maiores

complexos tecnopolíticos da atualidade, o CAE produz sua guerrilha artística com

determinação e inventividade. Com o objetivo de compreender o papel da arte-revolta no

tempo presente, seus dilemas, suas táticas e possibilidades de ação, a pesquisa tomará a

produção teórica e prática do Critical Art Ensemble como via de acesso e objeto de

análise.

Palavras-chave: Critical Art Ensemble; Arte-Revolta; Micropolítica da Criação; Arsenais

Antropotécnicos; Máquina de Guerra Artística.

Page 11: critical art ensemble - UFRN

CRITICAL ART ENSEMBLE:

THE WAR MACHINE AND THE ANTHROPOTECHNICAL ARSENALS OF THE REVOLT

ABSTRACT

This research deals with contemporary art and politics. The object of analysis that will

give privileged access to current relations between art and politics is the Critical Art

Ensemble (CAE), a group of US artists and activists who for three decades has been

dedicated to producing art with a strong political content. In this thesis, CAE is considered

one of the exponents of revolt-art, a concept built through a contemporary art nomadology

that seeks to trace the experiences of artistic revolt throughout modern history. According

to the argument put forward in this research, the vanguards of the twentieth century, by

contrasting equally with spectacle and the state, built a war machine for which art is

politics continued by other means. In their rich history, the revolt-art lineages have

invented various matrices of action that are offered to new generations as tactics for

creative intervention in the public sphere usually dominated by institutional political

instances. In recent decades, the convergence of artistic practices with political struggles

has triggered the emergence of micropolitics of creation, so-called all sorts of individual

and collective actions that deliberately engage in innovation and invention in the cultural

arena. Through tactical media, performances, interventions, direct creative actions,

socially engaged art, a multitude of groups bring to life cultural resistance within capitalist

societies. Extending the momentum of revolt-art to the present, the Critical Art Ensemble

operates a war machine with the anthropotechnical arsenals of revolt elaborated

throughout its career spanning engaged critical theory, utopian plagiarism, recombinant

theater, disturbance aesthetics, tactical media, electronic resistance and contestational

biology. From critical theory to resistance to today’s largest technopolitical complexes,

CAE embodies its artistic guerrilla with determination and inventiveness. In order to

understand the role of revolt-art in the present time, its dilemmas, its tactics and

possibilities of action, the research will take the theoretical and practical production of

the Critical Art Ensemble as a way of access and object of analysis.

Keywords: Critical Art Ensemble; Art Revolt; Micropolitics of Creation;

Anthropotechnical Arsenals; Artistic War Machine.

Page 12: critical art ensemble - UFRN

CRITICAL ART ENSEMBLE:

LA MÁQUINA DE GUERRA Y LOS ARSENALES ANTROPOTÉCNICOS DE LA REVUELTA

RESUMEN

Esta investigación aborda el arte y la política contemporánea. El objeto de análisis que

dará acceso privilegiado a las relaciones actuales entre el arte y la política es el colectivo

Critical Art Ensemble (CAE), un grupo de artistas y activistas estadounidenses que

durante tres décadas se ha dedicado a producir arte con un fuerte contenido político. En

esta tesis, CAE es considerado uno de los exponentes del arte-revuelta, un concepto

construido a través de una nomadología del arte contemporánea que busca rastrear las

experiencias de la revuelta artística a lo largo de la historia moderna. Según el argumento

presentado en esta investigación, las vanguardias del siglo XX, al contrastar igualmente

con el espectáculo y el estado, construyeron una máquina de guerra para la cual el arte es

política continuada por otros medios. En su rica historia, los linajes del arte-revuelta han

inventado varias matrices de acción que se ofrecen a las nuevas generaciones como

tácticas para la intervención creativa en la esfera pública, generalmente dominada por

instancias políticas institucionales. En las últimas décadas, la convergencia de las

prácticas artísticas con las luchas políticas ha desencadenado el surgimiento de

micropolíticas de la creación, así denominadas todo tipo de acciones individuales y

colectivas que deliberadamente se dedican a la innovación y la invención en el ámbito

cultural. A través de medios tácticos, actuaciones, intervenciones, acciones directas

creativas, arte socialmente comprometida, una multitud de grupos dan vida a la resistencia

cultural dentro de las sociedades capitalistas. Extendiendo el impulso del arte-revuelta

hasta el presente, el Critical Art Ensemble opera una máquina de guerra con los arsenales

antropotécnicos de la revuelta elaborados a lo largo de su carrera que abarca teoría crítica

comprometida, plagio utópico, teatro recombinante, estética del disturbio, medios

tácticos, resistencia electrónica y bioresistencia. Desde la teoría crítica hasta la resistencia

a los complejos tecnopolíticos de la actualidad, el CAE produce su guerrilla artística con

determinación e creatividad. Para comprender el papel del arte-revuelta en el presente,

sus dilemas, sus tácticas y posibilidades de acción, la investigación tomará la producción

teórica y práctica del Critical Art Ensemble como una forma de acceso y objeto de

análisis.

Palabras-clave: Critical Art Ensemble; Arte-Revuelta; Micropolítica de la Creación;

Arsenales Antropotécnicos; Máquina de Guerra Artística.

Page 13: critical art ensemble - UFRN

CRITICAL ART ENSEMBLE:

LA MACHINE DE GUERRE ET LES ARSENAUX ANTHROPOTECHNIQUES DE LA REVOLTE

RESUME

Cette recherche porte sur l’art et la politique contemporains. L’objet de l’analyse qui

donnera un accès privilégié aux relations actuelles entre art et politique est le collectif

Critical Art Ensemble (CAE), un groupe d’artistes et d’activistes américains qui se

consacrent depuis 30 ans à la production d’art à fort contenu politique. Dans cette thèse,

CAE est considéré comme l’un des représentants de l’art-révolte, un concept construit à

travers une nomadologie de l’art contemporain qui cherche à retracer les expériences de

la révolte artistique tout au long de l’histoire moderne. Selon l’argument avancé dans

cette recherche, les avant-gardes du XXe siècle, en contrastant également avec le

spectacle et l’État, ont construit une machine de guerre pour laquelle l’art est une politique

poursuivie par d’autres moyens. Dans leur riche histoire, les lignées d’art révolté ont

inventé diverses matrices d’action proposées aux nouvelles générations en tant que

tactiques d’intervention créative dans la sphère publique généralement dominée par des

instances politiques institutionnelles. Au cours des dernières décennies, la convergence

des pratiques artistiques avec les luttes politiques a provoqué l’apparition d’une

micropolitique de la création, appelée toutes sortes d’actions individuelles et collectives

qui s’engagent délibérément dans l’innovation et l’invention dans l’arène culturelle. À

travers les médias tactiques, les performances, les interventions, les actions créatrices

directes, l’art socialement engagé, une multitude de groupes suscitent une résistance

culturelle au sein des sociétés capitalistes. Prolongeant l’élan de la révolte jusqu’à

aujourd’hui, le Critical Art Ensemble exploite une machine de guerre avec les arsenaux

anthropotechniques de révolte élaborés tout au long de sa carrière, couvrant la théorie

critique engagée, le plagiat utopique, le théâtre recombinant, l’esthétique des

perturbations, les supports tactiques, résistance électronique et biologie contestative. De

la théorie critique à la résistance aux plus grands complexes technopolitiques actuels,

CAE produit sa guérilla artistique avec détermination et inventivité. Afin de comprendre

le rôle de l’art-révolte dans le temps présent, ses dilemmes, sa tactique et ses possibilités

d’action, la recherche prendra la production théorique et pratique de Critical Art

Ensemble comme moyen d’accès et objet d’analyse.

Mots-clés: Critical Art Ensemble; L’Art-Révolte; Micropolitique de la Création;

Arsenaux Anthropotechniques; Machine de Guerre Artistique.

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Lista de Imagens

Imagem 1 – Grupo de Criação e Estudos Integrados Gaya Scienza..................................19

Imagem 2 – Francisco Goya. El sueño de la razon produce monstruos............................60

Imagem 3 – Luigi Russolo. La rivolta, óleo sobre tela, 1911............................................63

Imagem 4 – Os Futuristas italianos. Paris, fevereiro de 1912...........................................64

Imagem 5 – Alfredo Ambrosi. Retrato de Benito Mussolini com uma vista de Roma ao

fundo, 1930......................................................................................................................65

Imagem 6 – Raoul Hausmann. ABCD, colagem, 1923-1924...........................................68

Imagem 7 – Grupo Dadaísta.............................................................................................69

Imagem 8 – Os Surrealistas em Paris, 1933......................................................................70

Imagem 9 – Salvador Dalí. Criança geopolítica observando o nascimento do homem

novo, 1943.......................................................................................................................72

Imagem 10 – Johannes Baader. O grande plasto-dio-dada-drama, 1920..........................74

Imagem 11 – Raoul Hausmann. O crítico de arte, colagem, 1919/20...............................76

Imagem 12 – René Magritte. Memória, óleo sobre tela, 1954..........................................78

Imagem 13 – Eugène Delacroix. A Liberdade Guiando o Povo, 1830..............................84

Imagem 14 – Painel de Guy Debord............................. ...................................................85

Imagem 15 – Dispositivos micropolíticos situacionistas. Detalhe de panfleto da

Internacional Situacionista...............................................................................................87

Imagem 16 – Membros da Internacional Situacionista na Conferência de Munich, em

abril de 1959.....................................................................................................................88

Imagem 17 – Revolta micropolítica. Paris, Maio de 1968................................................90

Imagem 18 – Ação Global dos Povos, Praga, 2000..........................................................98

Imagem 19 – Critical Art Ensemble em 1987.................................................................102

Imagem 20 – Livros de autoria do CAE..........................................................................103

Page 15: critical art ensemble - UFRN

Imagem 21 – Machine World. Imagem do livro Flesh Machine, do CAE......................105

Imagem 22 – Uma das primeiras formações do CAE, 1986-87......................................113

Imagem 23 – Membros do Group Material em 1980, um dos coletivos de arte que

inspiraram o CAE...........................................................................................................115

Imagem 24 – Frames de dois filmes produzidos pelo CAE............................................117

Imagem 25 – Programação e cartaz do evento Political Art in Florida (?).....................132

Imagem 26 – Critical Art Ensemble em ação multimídia durante a turnê Political Art in

Florida (?)......................................................................................................................133

Imagem 27 – Ricardo Dominguez, do CAE, em uma performance multimídia na turnê

Frontier Production, em 1988........................................................................................134

Imagem 28 – Pôster de autoria do coletivo Gran Fury, apresentado na campanha Cultural

Vaccines produzida pelo CAE........................................................................................138

Imagem 29 – Premiação oferecida ao Critical Art Ensemble pela associação PoNY.....139

Imagem 30 – Hope Kurtz, integrante do CAE, durante a campanha do grupo com a

associação PoNY em 1990.............................................................................................140

Imagem 31 – Steve Kurtz do CAE em ação durante uma apresentação na turnê Frontier

Production.....................................................................................................................142

Imagem 32 – Hope Kurtz do CAE em ação durante uma apresentação na turnê Frontier

Production.....................................................................................................................142

Imagem 33 – Artists’ Books do Critical Art Ensemble...................................................145

Imagem 34 – Exemplo de uma intervenção nômade na vida cotidiana...........................160

Imagem 35 – Dorian Burr do CAE performando uma cena do Teatro Recombinante....162

Imagem 36 – CAE, Teatro Recombinante, Culto da Nova Eva na World Information

Exhibition, Bruxelas, 2000.............................................................................................164

Imagem 37 – Flesh Machine, projeto e campanha do CAE, 1997-98. Dorian Burr e Steve

Kurtz..............................................................................................................................167

Imagem 38 – Apresentação do programa BioCom utilizado nas campanhas sobre

biotecnologias................................................................................................................169

Imagem 39 – Uma arte do CAE usada na campanha Flesh Machine sobre

biotecnologias................................................................................................................170

Imagem 40 – Dorian Burr em uma performance do CAE...............................................172

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Imagem 41 – Fator-X: Matriz Conceitual do Distúrbio (elaboração do autor)................186

Imagem 42 – By any media necessary. Imagem de autoria do CAE, 1999......................193

Imagem 43 – Vista da instalação Cult of the New Eve, Museu de Arte Contemporânea,

Toulouse, França, 2000..................................................................................................203

Imagem 44 – Visão da performance Cult of the New Eve, no saguão do Hospital St. Clara,

em Rotterdam, 2000.......................................................................................................205

Imagem 45 – Grupo de pesquisa e desenvolvimento da campanha GenTerra no

laboratório da Universidade de Pittsburgh, em 2001......................................................207

Imagem 46 – O espetacular difuso. Imagem publicada na revista da Internationale

Situationniste.................................................................................................................224

Imagem 47 – Ilustração do livro Distúrbio Eletrônico, do CAE.....................................226

Imagem 48 – Imagem de autoria do CAE presente no livro The Electronic

Disturbance...................................................................................................................257

Imagem 49 – Edição italiana do primeiro livro do CAE: Sabotaggio Elettronico. Il primo

gruppo americano di critica e attacco ai mass media. Castelovecchi, 1995...................269

Imagem 50 – Ilustração do livro Flesh Machine, do CAE..............................................275

Imagem 51 – Capa do livro GURPS Cyberpunk, de 1990...............................................287

Imagem 52 – Ricardo Dominguez, ex-membro do CAE e integrante do Electronic

Disturbance Theatre, em um protesto de rua..................................................................295

Imagem 53 – Electronic Disturbance Theatre 2.0..........................................................298

Page 17: critical art ensemble - UFRN

SUMÁRIO

INTRODUÇÃO 18

CAPÍTULO 1

NOMADOLOGIA DA ARTE-REVOLTA:

A Máquina de Guerra Artística 52

CAPÍTULO 2

POR DENTRO DO CRITICAL ART ENSEMBLE:

Arte e Revolta no Coração do Império 102

CAPÍTULO 3

OS ARSENAIS ANTROPOTÉCNICOS DA REVOLTA:

A Estética do Distúrbio 143

CAPÍTULO 4

RESISTÊNCIA CULTURAL:

Transformar o Mundo, Mudar a Vida 215

CAPÍTULO 5

SUBVERTENDO A MÁQUINA:

Resistência e Desobediência Civil Eletrônica 264

CONSIDERAÇÕES FINAIS

PARA UMA SOCIOLOGIA DA REVOLTA 300

REFERÊNCIAS 314

APÊNDICES 327

Page 18: critical art ensemble - UFRN

18

INTRODUÇÃO

Esta pesquisa que ora se apresenta faz parte de uma trajetória intelectual marcada

igualmente pelas Ciências e pelas Artes. Desde a Graduação em Ciências Sociais que

nutro um crescente interesse pela arte contemporânea, tanto que, na época, imerso na

vivência universitária, a vontade de criar entre amigos deu origem a um grupo com a

intenção de realizar uma série de estudos temáticos nas artes, nas ciências e na filosofia.

O grupo ganhou vida e, aproveitando a verve poética de seus membros, aventurou-se

também nas artes experimentais. A ideia de impulsionar a prática artística com o

pensamento teórico, e vice-versa, tornou-se uma realidade coletiva desde o momento em

que o grupo assumiu o desejo de se dedicar à criação em suas variadas formas, acadêmicas

e estéticas.1 O nome assumido pelo coletivo reflete bem essa vontade: Grupo de Criação

e Estudos Integrados Gaya Scienza, assinatura em si totalmente conceitual.

No mesmo período, foram realizadas performances, publicações poéticas,

apresentações musicais, instalações e exposições artísticas, bem como palestras dentro e

fora da universidade. As criações e os estudos com os amigos continuaram por algum

tempo e resultaram também em um amplo material escrito. Durante o Mestrado em

Filosofia, enquanto cursava as disciplinas, foi o momento de editar parte do material do

grupo para publicação. Em parceria com o CCHLA e a Editora da UFRN, o livro foi

impresso e publicado no verão de 2010 com o título Machinapolis e a Caosmologia do

Ser.2 Nele o grupo apresenta os resultados de sua experiência micropolítica com as artes

e uma vasta pesquisa teórica sobre a megamáquina de guerra planetária em seus aspectos

políticos, econômicos, epistêmicos e tecnológicos.

Foi nessa dinâmica de pesquisa e ação que, pela primeira vez, tive contato com o

Critical Art Ensemble (CAE), um coletivo formado por artistas ativistas dos Estados

Unidos, que une teoria crítica, tecnologia e política radical. Na obra Distúrbio Eletrônico,

publicada em português pela Conrad Editora do Brasil em 2001, as análises sociológicas

e filosóficas são constantes, e além de menções a pensadores estudados na academia

(Nietzsche, Foucault e Baudrillard são citados textualmente), há diversas referências a

1 Para uma pequena amostra da produção do autor e do grupo, ver Apêndice 1. 2 Lucas Fortunato; Edson Gonçalves Filho; Lisandro Loreto. Machinapolis e a Caosmologia do Ser. Natal:

EDUFRN, 2010. Livro publicado nas versões impressa e digital.

Disponível em https://cchla.ufrn.br/publicacoes/downloads/livro_machinapolis.pdf

Page 19: critical art ensemble - UFRN

19

autores outsiders (como Artaud, Debord e Hakim Bey) e movimentos artísticos (como o

Dadaísmo, o Surrealismo e os Situacionistas, o Fluxus e o Living Theater), com o que se

tem uma amostra da riqueza de referências trazidas à discussão contemporânea pelo

grupo. Justamente, algumas das leituras que inspiravam as atividades e os estudos que

realizávamos naquela época. Com tantos pontos em comum, a afinidade foi praticamente

imediata, e desde então, acompanho a produção do CAE com interesse.3

Imagem 1 – Grupo de Criação e Estudos Integrados Gaya Scienza no lançamento do livro Machinapolis e a Caosmologia do Ser, em 2010. Da esquerda para a direita: Edson Gonçalves Filho, Lisandro Loreto

e Lucas Fortunato. Fotografia por Verena Viana. Arquivo pessoal do autor.

Meu interesse como intelectual e pesquisador sempre foi o de refletir sobre as

formas de pensar e agir que expressam práticas e linguagens consideradas de resistência.

A busca pela emancipação, pela autonomia e a correlata emergência de formas de viver,

agir, pensar e se relacionar diferenciadas, nada mais são do que expressões de uma atitude

social que se pode denominar de resistência. Na vasta linguagem teórica das ciências

sociais a temática da resistência tem sido uma constante desde os movimentos sociais

clássicos, inclusive, com relação à revolta que, segundo Albert Camus e Julia Kristeva,

3 No livro do Grupo Gaya Scienza, os autores tratam o Critical Art Ensemble como um “grupo de criação

e estudos” que promove uma “práxis artístico-filosófica”. Cf. Machinapolis e a Caosmologia do Ser, pp.

80 e 186, respectivamente.

Page 20: critical art ensemble - UFRN

20

há pelo menos dois séculos tem dado o tom na história política e nas artes ocidentais.

Foucault foi um dos pensadores que se debruçou sobre o problema do poder e nas suas

investigações genealógicas estabeleceu referenciais para se pensar formas de resistência

aos poderes que até hoje repercutem na teoria crítica e no campo dos movimentos sociais.

Quando decidi cursar o Doutorado, a ocasião se mostrou ideal para reativar os

contatos com a produção do Critical Art Ensemble. Enquanto elaborava o projeto, a

sociedade brasileira se deparava uma vez mais com o problema da crise dos valores, que

no plano sociopolítico aparece como perda de representatividade política e de

legitimidade das figuras de autoridade. Para não recair na investigação de instâncias

puramente institucionais optei por pensar formas criativas, positivas e afirmativas que se

elaboram nesse contexto como forma de resistir aos poderes estabelecidos. Fiel à

trajetória desenvolvida até então, ao invés de tratar diretamente da política institucional

com seus partidos e sindicatos (geralmente focados pela ciência política), mantive meu

interesse alinhado aos estudos de práticas sociais e culturais emergentes, ou mais

especificamente, aquelas advindas da resistência e do dinamismo contemporâneos que

não passam necessariamente ou prioritariamente pelas vias institucionalizadas. No campo

da reflexão e da teoria, tenho inclinações ao pensamento crítico, sobretudo francês,

produzido desde o pós-guerra, e com essa base elaborei o projeto de pesquisa para o

doutorado.

O pré-projeto apresentado para a seleção teve por temática a resistência artística e

o cuidado de si na cibercultura. Não é de hoje que a tecnologia gera um sentimento

ambíguo de fascinação e desconfiança. Historicamente, a geração da qual faço parte

acompanhou de perto a entrada das sociedades em sua dinâmica maquinocêntrica, e tem,

portanto, algo a dizer quanto a isso. As relações homem-máquina hoje quase onipresentes

nas metrópoles tornaram-se fatalmente objeto de estudos, questionamentos e reflexões. A

conjunção de vivências pessoais, acadêmicas e culturais assim apresentadas talvez

explique a escolha epistemológica desta pesquisa. O certo é que nos últimos anos, a

incorporação incessante de dispositivos digitais na vida cotidiana tornou evidente

mudanças comportamentais, perceptivas, cognitivas e culturais, e enquanto sociólogo,

quis pensar acerca de como as máquinas entram nas relações que os sujeitos estabelecem

consigo para se constituírem enquanto tais valendo-se do uso das tecnologias a seu dispor.

Para efeito de análise empírica então escolhi o Critical Art Ensemble, na intenção de

pesquisar o uso das tecnologias nas práticas artísticas de resistência, supondo que o grupo

ofereceria a oportunidade para uma análise privilegiada do fenômeno.

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Durante o curso do doutorado a ideia inicial do projeto se modificou. Os elementos

principais continuam presentes, o que mudou foi a maneira de colocar o problema. Não

mais a maquínica do ser em função do sujeito, do cuidado de si, senão que em relação à

arte na sua dimensão cultural e política como expressão da revolta. Como se vê, a

abordagem da problemática foi modificada para abarcar uma maior amplitude de análise.

A intenção passou a ser a de focar a arte-revolta do Critical Art Ensemble, articulando

tematicamente a questão da tecnologia (muito presente na teoria e na prática do grupo)

por um duplo viés, ao mesmo tempo como efeito de poder e meio de resistência. Assim,

a questão da subjetivação maquínica, que a princípio aparecia em primeiro plano, torna-

se um tema transversal que adquire seu sentido no interior da discussão sobre como a

revolta atua no campo mais amplo da cultura constituindo micropolíticas da criação. A

problematização da arte-revolta, que em si já implica processos de subjetivação, será

remetida aos conteúdos críticos produzidos pelo CAE (a tecnologia, a arte, a ciência e o

pancapitalismo), quando então a discussão sobre a resistência vem para o primeiro plano

com suas táticas correspondentes ao nível tecnológico atingido pelas atuais sociedades de

controle. Assim, cruzando trajetórias que acoplam as caóides do pensamento,4 esta

pesquisa tematiza a arte, a revolta, a política e as tecnologias, ao vincular o pensamento

contemporâneo à produção micropolítica do Critical Art Ensemble.

Considerando que o doutorado é a culminância da formação acadêmica stricto

sensu, a pesquisa foi pensada levando em conta ao menos três finalidades que

necessariamente se articulam entre si: adquirir conhecimento aprofundado e atual sobre a

temática da resistência cultural no seu sentido mais amplo (reserva cognitiva); consolidar

um campo de pesquisa no interior do universo acadêmico das ciências sociais (com a

abertura de uma linha de pesquisa que faz dialogar as artes, a cultura e as tecnologias); e

por fim obter as credenciais que me habilitem e propiciem a orientação em trabalhos,

estudos e pesquisas no campo temático das resistências, sobretudo as que se valem das

artes e das tecnologias como meios de expressão de novas linguagens.

4 “Numa palavra, o caos tem três filhas segundo o plano que o recorta: são as Caóides, a arte, a ciência e a

filosofia, como formas do pensamento ou da criação. Chamam-se caóides as realidades produzidas em

planos que recortam o caos”. Gilles Deleuze e Félix Guattari, “Do caos ao cérebro”, in O que é a filosofia?

Rio de Janeiro: Ed. 34, 2004, p. 267.

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Critical Art Ensemble

Dando prosseguimento a uma perspectiva sociológica adotada desde a graduação

de estudar no campo social o que lhe dá movimento e renova, o que estou denominando

micropolíticas da criação, compostas por práticas socioculturais emergentes – e para

contemplar as investigações empíricas na pesquisa do doutorado escolhi como objeto de

estudo o Critical Art Ensemble (CAE). Trata-se de um coletivo oriundo de Nova York

que tem se destacado internacionalmente desde a década de 1990 devido a uma vasta

produção teórica, prática, cultural e artística. O CAE elabora formas de intervenção na

esfera pública por meio do que chamam social practices, formas de expressão culturais

por vezes denominadas artísticas que se amparam em discussões científicas e filosóficas

para problematizar questões políticas de interesse social. A abordagem do grupo se

diferencia das formas de ativismo político tradicional pois não atualiza o proselitismo tão

caro aos modelos de resistência clássicos. Ao invés disso, como o nome do grupo indica,

ele pratica uma arte que, no contato direto com a produção cultural, coloca na esfera

pública problemáticas acerca das apropriações capitalistas de tecnologias e discursos

científicos que ameaçam a autonomia dos indivíduos e do pensamento ao reforçar

tendências autoritárias na esfera da cultura. A fim de combater essas tendências o coletivo

levanta questões políticas relevantes em torno dos mass media e do complexo

biotecnológico, duas das principais linhas temáticas trabalhadas pelo grupo, tanto em

performances, quanto na produção teórica (o CAE já conta com oito livros publicados e

traduzidos em diversos idiomas).

O meu interesse ao escolher o CAE foi o de aprofundar a discussão teórica sobre

as resistências artísticas e culturais contemporâneas que se valem das artes e das

tecnologias para expressar-se na arena pública. Essa abordagem assumida no doutorado

tem o mérito de retomar os estudos e as pesquisas que desenvolvo desde a graduação

sempre calcado na discussão teórica e na análise empírica.5

O estudo do CAE se justifica por vários motivos. Em primeiro lugar, por seu

pioneirismo no tratamento crítico e político, teórico e prático, dado à arte e à tecnologia

sob o viés da resistência. Os dois primeiros livros do grupo foram inteiramente dedicados

a refletir sobre a resistência eletrônica quando o ciberativismo ainda parecia ficção

5 A primeira parte do livro Machinapolis e a Caosmologia do Ser é o resultado mais expressivo dessa

afirmação. Cf. Lucas Fortunato, Edson Gonçalves Filho e Lisandro Loreto, “Uma nomadologia da criação

poética em atos”, in Machinapolis e a Caosmologia do Ser, p. 35ss.

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cyberpunk aos olhos da resistência tradicional (The Eletronic Disturbance foi publicado

em 1994 e Eletronic Civil Disobedience em 1996). No entanto, o motivo principal é outro.

O que justifica o estudo desse grupo em especial é o reconhecimento de sua

trajetória que já dura mais de 30 anos inteiramente dedicados a questionar o mundo a seu

redor e promover novas formas de se fazer arte, ciência e ativismo. Uma avaliação lúcida

de seu legado levará qualquer crítico de arte a colocar o grupo em lugar de destaque na

história da arte-revolta. As ferramentas conceituais forjadas no calor da batalha e a

elaboração de métodos de ação no constante voltar-se sobre as novas condições de

possibilidade (técnicas e políticas) da resistência estão entre as mais sofisticadas que se

tem conhecimento no circuito da arte internacional recente. O portal Creative Capital

atribui ao grupo uma série de premiações:

Seu trabalho foi coberto por revistas de arte, incluindo Artforum,

Kunstforum e The Drama Review. Critical Art Ensemble recebeu

inúmeros prêmios, incluindo o Prêmio de Liberdade de Expressão

Artística em 2007 da Fundação Andy Warhol Wynn Kramarsky, o

Prêmio de Multimídia John Lansdown em 2004 e o Prêmio Leonardo

New Horizons de Inovação em 2004.6

Enquanto uma miríade de artistas, grupos e bandas se lançam nas autopistas da

informação de braços dados com os tentáculos do mercado espetacular sem qualquer

reserva, o CAE assume uma postura crítica que o coloca no prolongamento atual das

linhagens da arte-revolta que remontam às vanguardas revolucionárias do século XX,

fazendo jus ao nome que escolheu para si.

Mais do que um simples coletivo de artistas, o CAE se coloca em várias frentes

de ação, até mesmo na produção de obras teóricas nas quais empreende um tratamento

transdisciplinar aos problemas abordados. As tecnologias, por exemplo, são tematizadas

pelo viés crítico, político e artístico, de forma teórica e engajada, com a mobilização de

conteúdos científicos e filosóficos dos mais prestigiados na história do pensamento crítico

contemporâneo. A bibliografia produzida pelo Critical Art Ensemble conta com 8 livros

e diversos artigos publicados e traduzidos para vários idiomas, somando-se a uma vasta

produção de vídeos (da primeira fase do grupo) e de exposições, performances e

6 Cf.: https://creative-capital.org/artists/critical-art-ensemble/steve-barnes/ Acesso 1 de julho de 2019. “O

Creative Capital apoia artistas inovadores e aventureiros em todo o país com financiamento, consultoria,

reuniões e serviços de desenvolvimento de carreira. O Creative Capital busca ampliar as vozes de artistas

que trabalham em todas as disciplinas criativas, e catalisa conexões para ajudá-los a realizar suas visões e

construir práticas sustentáveis”. Cf. https://creative-capital.org/about-us/ Acesso 1 de julho de 2019.

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intervenções dentro e fora de museus, em galerias, nas ruas, na internet, nas Américas, na

Europa e na Ásia. Por isso, ao invés de considerar o Critical Art Ensemble um coletivo

de artistas, será mais adequado tratá-lo como um grupo de criação e estudos integrados,

assim compreendido pois, além da criação no campo das artes, o CAE empreende estudos

teóricos e pesquisas empíricas, agenciando conteúdos científicos e filosóficos.

Uma produção prolífica como esta permanecerá atual por muito tempo, sem

dúvida, afinal, o grupo coloca no centro de suas atenções problemas cruciais da época

que estão longe de serem resolvidos, infelizmente: a tecnologia a serviço do poder e suas

implicações na produção das subjetividades, no âmbito social e, mais atualmente, no

campo ecológico (temática desenvolvida nas últimas produções do grupo). A criticidade

do Art Ensemble tem características próprias, coloca em xeque o poder autoritário que se

materializa em tecnologias de controle, em discursos de verdade, nas práticas cotidianas,

nas instituições e na máquina de guerra planetária do capitalismo. Como o próprio nome

do grupo indica, a inteira produção do coletivo tem uma veia crítica, o que lhe rendeu

boas aventuras no coração do império.

O pensamento complexo do grupo, marcadamente artístico, científico e filosófico,

ao expor um forte teor crítico faz valer uma obstinação por desvelar as zonas escuras do

poder onde subjaz a fragilidade das pretensas fundações ordenadoras do mundo. Tal

pensamento, animado por uma verve contestadora e insurrecional, criativa e irreverente,

faz explodir pelos ares os discursos normalizadores e coloca em primeiro lugar os

princípios libertários que se quer expandir na esfera da cultura.7

Nesse sentido, é possível identificar com facilidade o viés contemporâneo, atual e

inovador de suas obras, no sentido empregado por Giorgio Agamben:8 um pensamento

que, ao se deslocar em relação às estruturas dominantes, refaz o trajeto mantendo sua

diferença pela perspectiva crítica direcionada ao tempo presente, mas que, ao mesmo

7 Historicamente, o termo libertário é usado nos círculos anarquistas para designar um espectro de

simpatizantes aos ideias ácratas que não se autodenominam anarquistas. De acordo com Nicolas Walter, o

anarquismo possui na sua genealogia influências do socialismo e do liberalismo, que lhe antecederam.

Porém, é distinto de ambos. O anarquismo possui muitas linhagens e ramificações, é portanto plural. O que

há em comum nas várias linhagens é a recusa a toda forma de autoritarismo e opressão que se abate sobre

o indivíduo e a sociedade. Enquanto movimento social, o anarquismo surgiu como expressão da revolta

contra o capitalismo industrial, e de fato e por definição é anticapitalista até hoje. Cf. Nicolas Walter. Do

anarquismo. São Paulo: Imaginário, 2000. O termo libertário empregado nesta Tese designa o caráter

emancipatório, afirmativo da vida e do valor do ser humano em termos ecosóficos. Cf. Félix Guattari. As

três ecologias. Campinas: Papirus, 2007, p. 23. O CAE não possui inclinação política definida. As

inspirações do coletivo são discutidas no Capítulo 4 – Resistência Cultural: Transformar o Mundo, Mudar

a Vida, mais especificamente no tópico Situações e Revolução Cultural Permanente. 8 Giorgio Agamben. O que é o contemporâneo e outros ensaios. Chapecó: Argos, 2009, p. 58- 62.

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tempo, se coloca sempre em favor de um tempo porvir. É portanto um pensamento vital,

prospectivo, libertador e intempestivo como definido por Nietzsche.9

Para Agamben, “o contemporâneo é o intempestivo”, e nesse sentido, é quem

mantém uma relação com o presente numa desconexão e numa dissociação, e por isso, é

mais capaz do que os outros de perceber e apreender o seu tempo. Isto significa que

somente quem dispõe da postura de pensamento capaz de se relacionar com o tempo sem

a ele se render possui as condições adequadas para ver a época de uma perspectiva que

não coincide com os discursos e as visibilidades instituídas. A contemporaneidade do

pensamento é algo raro de se encontrar pois o contemporâneo estabelece uma “relação

com o tempo que a este adere através de uma dissociação e um anacronismo”, o que

pressupõe coragem de pensar o não pensado com uma postura singular que se coloca entre

as rachaduras do que se vê e do que se diz na história. Destarte, para o contemporâneo, é

necessário manter fixo o olhar no seu tempo, e perceber não as luzes, mas o escuro.

Enquanto sentinela do tempo presente, o Critical Art Ensemble aposta na força do

entusiasmo, no questionamento, na postura cética e no desejo por liberdade, os mesmos

princípios que impulsionam as resistências antiautoritárias. Por tudo isso o CAE vem se

destacando entre os coletivos praticantes da arte-revolta, e justamente por dar vida a uma

arte inteiramente crítica, política e contemporânea é que se torna o objeto privilegiado

nesta pesquisa.

9 Cf. Peter Pál Pelbart, “Nietzsche, pensador da cultura”, in Vida capital: ensaios de biopolítica. São

Paulo: Iluminuras, 2003, p. 208. Ver Friedrich Nietzsche. Segunda consideração intempestiva: da

utilidade e desvantagem da história para a vida. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 2003, p. 7: “ou seja,

contra o tempo, e com isso, no tempo e, esperemos, em favor de um tempo vindouro”.

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A Tarefa do Pensamento Contemporâneo

A ideia central desta pesquisa é abordar o Critical Art Ensemble e seu legado do

ponto de vista artístico e político. Com esse objetivo, o propósito inicial é destacar o papel

da arte do grupo na construção de matrizes teóricas e práticas, discursivas, imagéticas,

estéticas e micropolíticas que se inscrevem no prolongamento histórico contemporâneo

da arte-revolta. Assim, as formas de expressão artísticas e micropolíticas do grupo são

tomadas no registro histórico da cultura-revolta mais ampla, das quais a resistência pode

reter o exemplo e apoderar-se de possíveis contribuições oriundas da rica discussão sobre

as relações da arte com a política e a cultura de seu tempo.

Fazer das experiências do CAE objeto de reflexão, conhecimento e crítica, permite

entender o movimento histórico de uma perspectiva privilegiada, pois o que se coloca em

destaque com isso são problemáticas fundamentais da civilização mundial: a política

tecnológica ou a máquina política, a revolta artística enquanto catalisadora de

movimentações sociológicas na cultura.

Ao lidar com o grupo, o que se pretende enfatizar nesta pesquisa são exemplos

vivos e criativos do que a arte-revolta contemporânea é capaz de inventar e produzir

quando assume uma postura ativa face ao mundo, ao mesmo tempo em que se evidencia

o sentido da crítica às estruturas de dominação e captura há muito investidas para minar

as potências da revolta e seu apelo junto às massas.

Com base nisso, as problemáticas suscitadas pela retomada das vanguardas, suas

possíveis superações, as contradições bem ou mal resolvidas, os impasses, mesmo as

aporias, podem lançar luzes sobre a arte contemporânea e as infinitas possibilidades de

ação e transformação desencadeadas pela resistência, justo no momento em que o

neoliberalismo, com todas as agências do espetáculo, investe o máximo para reificar uma

dominação que tenta impedir o pensamento crítico em geral e a arte-revolta em especial

de realizarem-se autenticamente na época.

Hoje, como há muito, a tarefa do crítico contemporâneo tem contra si uma arte

neutralizada e convertida em mero entretenimento. Não bastasse o fato da arte espetacular

ter sido esvaziada de suas origens críticas pela cooptação das técnicas inventadas pelas

vanguardas históricas, o crítico ainda precisa lidar com a imensa profusão da cultura-

entretenimento que tem desqualificado a vocação crítica das artes e do pensamento. No

contexto atual do espetáculo integral, a arte-revolta que resiste encontra-se literalmente

soterrada pela saturação massiva de arte espetacular que se avoluma indefinidamente.

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O tempo presente, saturado de espetáculos e mercadorias, gadgets e simulacros,

carece de um estilo de arte crítica e igualmente de um pensamento atento às proezas da

revolta, uma das potências da resistência da vida às investidas do capitalismo e sua

máquina de destruição incondicionada. Na concepção de Julia Kristeva, a arte e a cultura-

revolta estão ameaçadas e em alguns casos até mesmo impossibilitadas:

Não a arte ou a cultura-show, nem a arte ou a cultura-informação

consensuais favorecidas pelas mídias, mas justamente a arte e a cultura-

revolta. E quando essas se produzem, acontece que mostram formas tão

insólitas e brutais que seu sentido parece perdido para o público. Com

isto, cabe a nós sermos os doadores de sentido, os intérpretes.10

Nesse cenário, talvez mais do que nunca, o trabalho crítico do pensamento, como

enfatiza Kristeva, precisa ser revalorizado como um dos suportes fundamentais para o

universo das artes contemporâneas. Cabe aos intelectuais o papel de doadores de sentido,

de intérpretes das manifestações artísticas de seu tempo, seja por meio da crítica artística,

seja por meio das ciências ou da filosofia. Kristeva inclui

o trabalho crítico na experiência estética contemporânea: estamos mais

do que nunca diante da necessária e inevitável osmose entre realização

e interpretação, o que implica também uma redefinição da distinção

entre crítica, de um lado, e escritor ou artista, de outro.11

Ao crítico cabe ter a sensibilidade e a lucidez de destacar, entre tantas produções,

a originalidade e a singularidade de uma obra artística, de um processo estético. Com isso,

o que se pretende não é erigir monumentos, mas apropriar-se do pensamento

contemporâneo, voltá-lo às práticas artísticas que se instalam nas rachaduras da época,

igualmente contemporâneas no sentido empregado por Agamben, para dotá-las de sentido

sensível, cognitivo e político. Em suma, a tarefa do crítico, enquanto contemporâneo, é

iluminar o valor da experiência-revolta lá onde ela se manifesta criadora de novos valores

e modos de pensar, sentir, imaginar, agir, ser e viver enquanto afirmações da vida.

No contato com o grupo e suas produções, fundamentalmente do que se trata é de

impulsionar a reflexão e o pensamento, que são levados a questionar e problematizar a

pertinência dos fenômenos estudados em relação ao que se pensa e se vive no presente,

10 Julia Kristeva, “A cultura-revolta”, in Sentido e contra-senso da revolta: poderes e limites da

psicanálise I. Rio de Janeiro: Rocco, 2000, p. 24-25. 11 Julia Kristeva, Sentido e contra-senso da revolta, p. 25.

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ou seja, como forma de auxiliar na tarefa sempre por se fazer de interpretar o atual a fim

de melhor compreender os processos que fizeram o presente o que ele é, e assim, quem

sabe, lançar luzes sobre aquilo que, do ponto de vista da revolta, precisa ser transformado

mediante uma série de trabalhos coletivos necessariamente criativos em suas dimensões

éticas e estéticas.

Nesse sentido, o CAE será tomado no interior de um pensamento que fará do

próprio grupo estudado um operador conceitual, cognitivo e reflexivo, um meio de

contato e uma via de acesso privilegiado a problemáticas atuais mais amplas, de caráter

político, cultural e, em certos casos, ecosófico, planetário, o que certamente contribuirá

para a elaboração de uma ontologia do presente.

A Questão da Revolta

O Critical Art Ensemble ocupa um lugar de destaque na arte-revolta

contemporânea tanto por sua trajetória quanto pela rica produção em torno de temas

atuais. No grupo, a revolta encontra sua configuração micropolítica, sua máquina

produtiva e seu canal de expressão. Convém, por isso, esclarecer a questão da revolta no

contexto teórico escolhido nesta pesquisa.

O significado da palavra revolta não foi o mesmo em todo momento histórico. Na

realidade, tem variado conforme a época e o contexto no qual é usada. De acordo com

Alex Galeno, “Kristeva recupera a plasticidade do termo e estabelece outros vínculos

com o contexto histórico. Uma revolta não desconectada da realidade política e

propiciadora de um novo encantamento da subjetividade dos indivíduos e da própria

palavra”.12 Há portanto uma plasticidade que é preciso considerar ao tratar do sentido

atribuído à expressão. A história da revolta pode ser acompanhada pela genealogia de

palavras cujos significados, nos últimos séculos, modificaram-se conforme o contexto

social e epistemológico.13

A palavra revolta tem uma história semântica que remete a uma linhagem de

palavras durante algum tempo usadas para designar o deslocamento dos corpos celestes

no espaço, significando algo parecido com a revolução dos astros em torno de si e no

12 Alex Galeno. Antonin Artaud: a revolta de um anjo terrível. Porto Alegre: Sulina, 2005, p. 100. 13 Acompanha-se aqui a etimologia histórica da palavra apresentada por Julia Kristeva. Cf. “A palavra

‘révolte’ [revolta]: o movimento” e “A palavra ‘révolte’: o tempo e o espaço”, in Sentido e contra-senso

da revolta, p. 14-18.

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curso de uma órbita. Semelhante sentido foi empregado no uso de palavras ligadas ao

tempo para representar o fim de um ciclo e o início de outro. Em ambos os casos, rotação,

ciclo e retorno estavam associados à palavra latina volvere, voltar, retornar, em sentido

espacial e temporal.

Transposta do contexto astronômico e astrológico, a palavra adquiriu pouco a

pouco um significado estratégico, social e por fim político de mudança. Revolta só passou

a significar revolução social, tal como empregada no sentido moderno hoje conhecido, na

passagem do século XVII para o século XVIII, quando a expressão foi popularizada com

os acontecimentos políticos aos quais era associada. Neste período, deve-se a Voltaire o

emprego de révolte como guerra civil, perturbações, guerra e finalmente revolução.

A revolta como fenômeno social e político de rejeição da autoridade, portanto, foi

moldada na história das convulsões sociais e por isso carrega em si o sentido de uma

mudança de direção, um retornar a um novo começo, pôr fim a um estado de coisas e dar

início a um movimento em nova direção.

Atualmente, a questão da revolta se coloca na arte e na política com igual

importância. O que Kristeva diz na década de 1990 sobre a perda da força da cultura-

revolta e a sua substituição quase completa pela cultura-espetáculo na Europa, também

se aplica aos tempos presentes, quiçá, com maior intensidade. É verdade que o

pensamento crítico e a arte-revolta conseguem criar espaços, abrir brechas, escavar túneis,

atravessar o espetáculo, porém, quase sempre destinados a séquitos de extraviados. De

um modo geral, o espetáculo integral abarcou a dimensão subjetiva com a interatividade

generalizada tornando-se hegemônico sem qualquer força contrária capaz de lhe fazer

oposição frontal.

Realmente, a conjuntura não é das melhores para o pensamento crítico. No campo

das artes, há muitas expressões, das mais diversas, talvez como nunca antes. Porém, se a

arte-entretenimento não conta para o campo da revolta, mesmo considerando as artes de

contestação, a arte-revolta tem rivalizado com o niilismo artístico que se desdobra em

várias vertentes. Assim, o espetáculo e o niilismo tentam se sobrepor a toda investida da

cultura-revolta, que não vê outra saída a não ser resistir.

Não fosse o bastante, o tempo presente perdeu a noção de qualquer medida. Não

reconhece mais a revolta nem o seu valor. Cumpre, portanto, esclarecer do que se trata

quando a questão se coloca.

Albert Camus pergunta na abertura de seu livro sobre o assunto: “Que é um

homem revoltado?”. A resposta é dada de uma forma simples e direta: “Um homem que

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diz não. Mas, se ele recusa, não renuncia: é também um homem que diz sim, desde o seu

primeiro movimento”.14 Em termos teóricos, a revolta pressupõe um tipo de atitude que

é afirmativa e negativa ao mesmo tempo. Há portanto características próprias com relação

às quais se pode identificá-la.

Conceitualmente, não se pode falar de revolta como pura negatividade pois lhe

falta o caráter criador, do mesmo modo, não se pode falar de revolta nos casos em que só

há afirmação. A pura negação, por ser absoluta, recusa a parte aproveitável e positiva do

mundo, enquanto a afirmação total é na realidade aceitação, o contrário da revolta, pois

admite o que é intolerável do ponto de vista da vontade de transformação inerente ao ato

de revoltar-se. Nos dois casos se extrapola e desvirtua o movimento da revolta por

excesso, suprimindo assim a tensão pela qual se mede a vontade característica da revolta

e pela qual se reconhece sua ação no mundo.

A abordagem do estudo se fará por via do conceito arte-revolta inspirado na

compreensão de Albert Camus e Julia Kristeva. Para Camus, a revolta se coloca no campo

das lutas e dos valores éticos, e por esta via atinge a arte e a política. Kristeva, por sua

vez, aproxima-se da revolta pela psicanálise e pela linguagem.

Na perspectiva de Camus, a revolta tem sido uma característica das mais presentes

na história moderna e está estreitamente relacionada com o fenômeno do niilismo

entendido como o descrédito de todos os valores éticos ou morais. Nas sociedades

ocidentais modernas, a disparidade entre a expectativa de liberdade e os constrangimentos

dos poderes desencadeia uma imensa efervescência da revolta, que se projeta

historicamente nas artes, na literatura, na filosofia e, claro, nas insurreições sociais que

dão o tom da época.

A relação da revolta com o niilismo no entanto é ambivalente, pois embora a

revolta encontre no ambiente anômico do niilismo um espaço para eclodir e se

desenvolver, o homem revoltado sente a necessidade de uma medida para contrapor ao

poder ilimitado a que se entregam os niilistas que não reconhecem valor algum, nem

divino, nem humano, ou que demonstram-se conformados definitivamente, sem qualquer

reserva, ao que existe. Por isso, a revolta é, para Camus, um movimento libertário do

indivíduo que reconhece o seu valor ante uma dominação considerada ilegítima,

injustificável ou intolerável.

14 Albert Camus. O Homem Revoltado. Rio de Janeiro: Record, 2003, p. 25.

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Nesse sentido, o movimento da revolta atravessa a história na incessante luta do

ser contra a opressão da figura humana, com efeitos claramente discerníveis no campo

político e presentes também nas artes embora nem sempre de forma evidente. Na

concepção ético-filosófica que é a de Camus, portanto, o essencial é diferenciar a revolta,

definida em termos libertários, da atitude niilista que não reconhece qualquer princípio

ou coloca algum valor acima da vida, o que resulta em última instância na aceitação da

tirania e da servidão.

Em Kristeva, a questão da revolta se formula pela via da psicanálise e designa a

insurgência transgressora de forças psíquicas desencadeadas pela realização do princípio

de prazer. Embora seja possível conjecturar sobre a eclosão de forças inconscientes em

vias de realizar-se a despeito de quaisquer parâmetros, a revolta não se define

necessariamente por esta via, pois que a revolta supõe uma elaboração de sentido. O certo

é que a revolta, nesta abordagem, adquire um sentido subjetivo, íntimo e por vezes

inconsciente.

Na dimensão psicológica a revolta pode significar a rebelião do desejo contra as

imposições do princípio de realidade encrustado na individualidade, ou então contra as

exigências externas demasiado opressoras da sociedade, o que pode coincidir. A instância

interior é considerada importante pois se existe algum sentido profundo que desencadeia

a revolta é lá que se deve procurar, ainda que seja para se deparar, se não com uma

completa ausência de sentido, com a insurgência de um contra-senso crítico. Mas assim

como em Camus, Kristeva distingue a revolta da postura niilista:

O niilista não é um homem re-voltado no sentido que vocês agora

entendem este termo aqui depois que nós desenvolvemos

pacientemente o significado no ano passado. O niilista pseudo-

revoltado é, de fato, um homem reconciliado na estabilidade de novos

valores. E essa estabilidade ilusória revela ser mortífera, totalitária. Eu

não insistirei jamais o suficiente sobre o fato de que o totalitarismo é o

resultado de uma certa fixação de revolta nisso que é precisamente sua

traição, ou seja, a suspensão do retorno retrospectivo – o que equivale

a uma suspensão do pensamento.15

15 “Le niiliste n’est pas un homme ré-volté au sens où vous comprenez désormais ce terme, ici, depuis que

nous en avons patiemment déployé la signification, l’an dernier. Le niiliste pseudo-révolté est, de fait, un

homme réconcilié dans la stabilité de nouvelles valeurs. Et cette stabilité, illusoire, se révèle être mortifère,

totalitaire. Je n’insisterai jamais assez sur le fait que le totalitarisme est le résultat d’une certaine fixation

de la révolte dans ce que est précisément sa trahison, à savoir la suspension du retour rétrospectif – qui

équivaut à une suspension de la pensée”. Julia Kristeva. La révolte intime: pouvoirs et limites de la

psychanalyse II. Paris: Fayard, 1997, p. 12. Tradução livre.

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A revolta se revela, portanto, nas experiências subjetivas nas quais o sujeito sente

ao mesmo tempo as causas e os efeitos de contradições e impasses internos. Em instâncias

desta natureza, a busca por um sentido ou sua negação profunda seriam formas da revolta

construir por meios conscientes ou inconscientes um outro sentido para o que se passa

consigo, com os outros e com o mundo. Em situações assim, as forças psíquicas

desencadeiam a expansão de algum desejo ou de impulsos em vias de se realizar, mesmo

que não sejam reconhecidos pelo indivíduo ou pela coletividade, adquirindo um

significado singular da ordem do acontecimento para o sujeito. Kristeva propõe três

figuras da revolta a partir da experiência psicanalítica:

– a revolta como transgressão da proibição; – a revolta como repetição,

perlaboração, elaboração; – a revolta como deslocamento,

combinatórios, jogo. Independentes logicamente, nos comportamentos

sociais, por exemplo, essas figuras são no entanto interdependentes na

experiência psíquica, onde elas se encontram entrelaçadas (...) tanto no

aparelho psíquico quanto nas obras artísticas ou literárias.16

O CAE participa enquanto agente ativo do processo mais amplo da arte-revolta e

apresenta uma trajetória marcada pelas três figuras apresentadas por Kristeva. Atividades

transgressoras com relação aos padrões artísticos tradicionais encontrados no campo da

arte-espetáculo, as práticas de desobediência civil eletrônica e biologia contestatária;

revolta como elaboração constante do sentido de suas ações no mundo; e revolta como

recombinação do que existe em um jogo aberto e contínuo, artístico e micropolítico, de

reinvenção de si em relação direta com o que se pretende fazer na realidade.

Em todo caso, por meio das ordens intersubjetivas da literatura, da filosofia, das

artes e da política a revolta atinge o campo social, desperta os ânimos coletivos e

contrapõe às leis, às normas e aos constrangimentos externos a força de uma vontade

livre, a emergência de um desejo revolucionário. Na vida coletiva, no contato com o outro

a revolta eclode e perfura a cultura pronta para desferir seus golpes nas estruturas

calcificadas pelas normas.

Nas sociedades modernas e contemporâneas, a revolta encontra seu canal de

expressão mais ou menos admitido nas distintas artes, na literatura, na poesia, na música,

nas artes urbanas, performáticas e mesmo tecnológicas. No decorrer do século XX as artes

16 Julia Kristeva, “A cultura-revolta”, in Sentido e contra-senso da revolta, p. 37.

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33

se diversificaram tanto em formas e procedimentos que hoje as resistências se valem

amplamente da arte-revolta em suas táticas e estratégias. Isso se deve sobretudo à

formação de uma máquina de guerra artística que encontra na revolta o impulso criador e

a determinação política para fazê-lo – o que convém agora elucidar.

A Máquina de Guerra Artística

Na modernidade líquida, o Critical Art Ensemble desponta como uma das mais

notáveis máquinas de guerra artística produzidas pela revolta, prolongando na atualidade

uma história marcada por rupturas e inovações que já dura mais de um século se

considerado o impulso inicial das vanguardas. A novidade que o CAE traz para a

nomadologia da arte-revolta consiste, primeiro, em ter inserido as tecnologias, as ciências

e a filosofia como fonte de inspiração e objeto de crítica, e em segundo lugar, em ter

inventado táticas de ação inteiramente antenadas aos últimos desenvolvimentos

tecnológicos e científicos. O Plágio utópico e o Teatro Recombinante que operam uma

Estética do Distúrbio (ambos dispositivos criados pelo CAE), assim como a

Desobediência Civil Eletrônica e a Biologia Contestatária são exemplos que confirmam

a originalidade do grupo face à produção contemporânea.

O argumento defendido nesta pesquisa e que lhe dá todo o seu sentido é o de que

a arte-revolta, no decorrer do século XX, construiu uma autêntica máquina de guerra

fundindo dispositivos estéticos e dispositivos políticos em um processo complexo que é

preciso rastrear. O que hoje pode parecer comum nas artes (instalações, intervenções,

performances, site specifc art, social practices, zonas autônomas temporárias, arte

coletiva, guerrilha artística, terrorismo poético),17 na realidade só se tornou possível

devido ao esforço e à criatividade de uma série de movimentos, grupos e artistas que

romperam com padrões aceitos tornando possíveis outras formas de se conceber e se

praticar arte; uma conquista que resulta de uma história que se confunde com a da própria

arte-revolta, profundamente marcada por críticas, rupturas, inovações e ressonâncias

transformadoras.

17 Cf. Claire Bishop, “The social turn: collaborations and its discontents”, in Artificial Hells: participatory

art and the politics of spectatorship. New York: Verso, 2012. Os conceitos de zonas autônomas

temporárias e terrorismo poético são construções de Hakim Bey: TAZ: zonas autônomas temporárias.

São Paulo: Conrad, 2001, e Caos: terrorismo poético & outros crimes exemplares. São Paulo: Conrad,

2003.

Page 34: critical art ensemble - UFRN

34

A invenção de tantas formas diferentes de se conceber e se praticar arte deu-se por

intermédio das vanguardas, que colocaram os universos da arte e da política em estreita

relação ao aproximar os interesses artísticos dos problemas da vida, individual e coletiva,

em um processo que atinge seu ápice nas primeiras décadas do pós-guerra com a criação

de matrizes performáticas, que nada mais são do que matrizes artísticas operativas em

termos práticos e interativos essencialmente coletivos.

O Critical Art Ensemble não só é tributário desse processo, como pode ser

considerado um dos expoentes mais representativos na atualidade de uma tradição

insurrecional que encontra na nomadologia da arte-revolta sua linhagem poética, pois a

produção do grupo, ao agenciar conteúdos críticos em suas diversas atividades culturais,

torna sua arte indistintamente política.

Portanto, para compreender o lugar do CAE na história da arte-revolta e avaliar

assim sua singularidade, torna-se fundamental retomar os acontecimentos fundantes da

arte moderna que criaram as condições de possibilidade para a prática artística nos termos

micropolíticos hoje conhecidos na resistência cultural.18

O processo do qual o Critical Art Ensemble desponta como herdeiro na atualidade

pode ser descrito em linhas gerais da seguinte maneira. Do século XVIII ao século XIX,

as belas-artes ganharam uma considerável independência dos imperativos religiosos e

escaparam do liame da nobreza, debandando para a classe burguesa em ascensão, que, às

voltas com o Iluminismo, promoveu os artistas afins aos seus ideais. No século XIX,

enquanto a Europa se modernizava com a revolução industrial, as contradições sociais e

políticas entre o antigo regime e as repúblicas burguesas não se resolveram sem que a

burguesia arregimentasse as massas para suas fileiras com o objetivo de obter maior força

na derrubada dos últimos pilares do edifício feudal. Ao mesmo tempo, os artistas

reivindicaram autonomia e firmaram o valor da arte livre dos imperativos políticos, muito

embora pendendo para os ideais iluministas. No século XX, a pretensão de autonomia da

18 É o que fazem Gilles Deleuze e Félix Guattari com relação à “máquina de guerra mundial”, quando

demonstram, em termos histórico-políticos, a virada real da fórmula de Clausewitz segundo a qual “a guerra

seria a continuação da política com o acompanhamento de outros meios”: “Foi somente após a Segunda

Guerra Mundial que a automatização, depois a automação da máquina de guerra, produziram seu verdadeiro

efeito. Esta, em vista dos novos antagonismos que a atravessavam, não tinha mais a guerra por objeto

exclusivo, mas tomava a cargo e por objeto a paz, a política, a ordem mundial, em suma, o objetivo. É aí

que aparece a inversão da fórmula de Clausewitz: é a política que se torna continuação da guerra, é a paz

que liberta tecnicamente o processo material ilimitado da guerra total. A guerra deixa de ser a

materialização da máquina de guerra, é a máquina de guerra que se torna ela mesma guerra materializada.

(...) Estávamos já na terceira guerra mundial”. Cf. Gilles Deleuze e Félix Guattari, “7000 a.C. – Aparelho

de Captura”, “A potência”, in Mil platôs: capitalismo e esquizofrenia (vol. 5). São Paulo: Ed. 34, 2002,

p. 169.

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35

arte, interpretada como uma falácia pelas vanguardas, foi radicalmente questionada,

sobretudo a partir da Primeira Guerra Mundial, que despertou a revolta de jovens poetas

e artistas contra o belicismo louvado então pelas burguesias nacionalistas. Pouco antes,

no entanto, o Futurismo havia empreendido a primeira tentativa de montar uma máquina

de guerra artística. Com um ímpeto radical de ruptura com o passado, colocou-se ao lado

das forças modernas materializadas na indústria e nas tecnologias que prometiam

transformar o mundo em um futuro finalmente redentor em termos políticos, econômicos

e tecnológicos. Porém, o impulso futurista, levado às últimas consequências, fez com que

o movimento compactuasse com o Fascismo italiano, o que resultou na capitulação da

máquina futurista e na sua captura por parte do Estado. De imediato, o Dadaísmo desferiu

um golpe com a máxima intensidade dirigindo seus ataques às ideologias burguesas

dominantes, operando uma máquina de guerra contra o nacionalismo, o belicismo, a pátria

e a ordem, a começar pela concepção de arte em vigor, interpretada indigna, limitada e

inútil para os propósitos mais altos da vida. Em seguida veio o Surrealismo, que demoliu

de vez as fronteiras que separavam a arte da vida canalizando as forças do inconsciente

em prol da existência, ao mesmo tempo que inventou possibilidades de expressão artística

até então inimagináveis, carregando a arte com forte apelo político. Assim, as três

primeiras vanguardas artísticas que se colocaram no campo político, o Futurismo, o

Dadaísmo e o Surrealismo, foram diretamente responsáveis pela contínua invenção de

formas expressivas nos campos imagéticos, discursivos e práticos sempre permeados de

teor político.

Nas décadas de 1950-60, após a experiência trágica das guerras, as neovanguardas

levaram às últimas consequências certas pretensões de seus antecessores e, a partir de

então, a arte-revolta tornou-se constitutivamente política. A virada se deu principalmente

pelo empenho da Internacional Situacionista em conectar em um só corpo teórico-prático

a causa comum das vanguardas artísticas e proletárias em torno da revolução da vida

cotidiana. No entanto, ao invés de colocar a arte a serviço da revolução como fizeram

antes os surrealistas, desta vez os situacionistas defenderam a revolução à favor da poesia

e assim se propuseram a criar uma máquina de guerra artística inteiramente operativa e

livre dos imperativos espetaculares. Desta forma, o projeto situacionista de realizar a arte

suprimindo-a enquanto esfera separada (fazendo da vida a matéria artística) resultou na

criação de conceitos operativos e na invenção de procedimentos práticos para substituir

as técnicas tradicionais herdadas da arte burguesa e já apropriadas pelo espetáculo. O

conceito de situação, definido como momento vivido livremente construído por uma

Page 36: critical art ensemble - UFRN

36

coletividade para a realização do desejo, foi fundamental, pois, junto aos procedimentos

do détournement, da deriva e da psicogeografia, demarcou uma ruptura com a arte

espetacular da representação e abriu espaço para um outro paradigma no qual a vida

cotidiana veio a ocupar o lugar central e o foco da criação. Com esse gesto, preparado

durante anos em termos teóricos e experimentais, a arte deixou de ser considerada em

termos puramente formais e tornou-se operativa, existencial e micropolítica. Da mesma

forma, a arte deixou de ser uma prerrogativa de homens cultos que dominam técnicas

sofisticadas e se tornou situacionista, vivencial, ou seja, da ordem do experimento

existencial aberto à invenção em todos os níveis por qualquer pessoa que queira realizá-

la.

Enquanto Walter Benjamin antevia a democratização da arte burguesa com as

técnicas de reprodução, os situacionistas, com uma visão completamente diversa,

elaboraram uma teoria radical para libertar de vez a criação dos imperativos artísticos

espetaculares, tornando a vida (e não a arte) a sua razão de ser. A reversão da revolução

a favor da poesia ganhou sua fórmula situacionista no projeto da transformação poética

da vida cotidiana para a qual devem contribuir todas as artes micropolíticas. Assim, a

maior contribuição dos situacionistas para a história da arte-revolta foi ter dado um

acabamento radical ao processo de fusão da política na arte e da arte na práxis (processo

iniciado pelas vanguardas) inventando conceitos e procedimentos operativos que nada

mais são do que dispositivos micropolíticos.

Desta forma, a arte que há um século tinha pretensões vagamente políticas, desde

então dispõe de várias linhagens, vertentes e formas de expressão intrinsecamente

políticas. Na nomadologia da arte-revolta, portanto, é possível identificar a formulação

de um outro paradigma artístico em contraposição à arte-espetáculo. Ao longo do século

XX, por meio de rupturas, desvios, transformações, retomadas, prolongamentos e

superações, viu-se constituir um campo de discursos e práticas para o qual a arte é a

continuação da política por outros meios. Enquanto o espetáculo toma a arte em função

dos poderes constituídos, a arte-revolta erige suas máquinas de guerra submetendo o

campo político à sua determinação libertária primeira.

No Tratado de Nomadologia, Gilles Deleuze e Félix Guattari defendem a tese de

que, “do ponto de vista da história universal”,19 coube aos nômades a invenção da

máquina de guerra, máquina que não tem por objeto a guerra como seu objetivo principal.

19 Deleuze e Guattari. Mil platôs: capitalismo e esquizofrenia (vol. 5), p. 103.

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37

“Os nômades inventam a máquina de guerra” significa que o modo de vida nômade, sua

forma específica de ocupar o espaço liso, de deslocar-se nele, resulta na formação de uma

máquina de guerra, que é por definição e historicamente exterior ao aparelho de Estado e

distinta da instituição militar. Apesar disso, quem primeiro faz a guerra são eles próprios,

os nômades, ao encontrar cidades e Estados em seus caminhos.20 A guerra, na realidade,

é um objeto apenas suplementário ou sintético, que pode derivar da máquina de guerra

em determinadas condições. A máquina de guerra toma a guerra por seu objeto quando o

aparelho do Estado a toma para si e constitui uma instituição militar. Neste momento, a

máquina de guerra muda de natureza e de função. Somente então, quando o aparelho de

Estado se apropria de uma máquina de guerra, é que ela toma a guerra por objeto e que a

guerra fica subordinada aos fins do Estado.21

Para melhor esclarecer, são definidos dois grandes polos da máquina de guerra.

Em um polo, a máquina de guerra que tem por objeto a guerra e “forma uma linha de

destruição prolongável até os limites do universo”.22 Em outro polo, “quando a máquina

de guerra, com ‘quantidades’ infinitamente menores, tem por objeto não a guerra, mas o

traçado de uma linha de fuga criadora, a composição de um espaço liso e o movimento

dos homens nesse espaço”.23 Seria neste polo que se encontraria a “essência” de uma

máquina de guerra. E é nesse polo também que se encontra a máquina de guerra artística

aqui defendida.24

Deleuze e Guattari demonstram todas as proposições e axiomas que constituem a

organização do Tratado de Nomadologia recorrendo a acontecimentos históricos, a

argumentações demonstrativas circunscritas a uma história universal, propensão que aliás

subjaz à obra Capitalismo e Esquizofrenia desde o primeiro volume, O Anti-Édipo.25 No

entanto, há uma virada conceitual importante quando os autores definem o nômade por

um conjunto de características que constituem a sua essência: “Não é o nômade que define

esse conjunto de características, é esse conjunto que define o nômade, ao mesmo tempo

em que define a essência da máquina de guerra”.26 Do mesmo modo, não é a máquina de

20 Id. Ibidem, p. 102. 21 Id. Ibidem, p. 103. 22 Id. Ibidem, p. 109. 23 Id. Ibidem, p. 103. 24 Posição identificada pela Prof. Drª Norma Takeuti em seus comentários desenvolvidos no Exame de

Qualificação desta Tese, no final de 2017, sobre o conceito de máquina de guerra e sua aplicação possível

ao que é defendido aqui com o conceito de “máquina de guerra artística”. 25 Cf. Gilles Deleuze e Félix Guattari. “Selvagens, bárbaros, civilizados”, in O Anti-Édipo: capitalismo e

esquizofrenia 1. Lisboa: Assírio & Alvim, 2004, p. 144, onde se lê: “a história universal não é apenas

retrospectiva mas é também contingente, singular, irónica e crítica”. 26 Deleuze e Guattari. Mil platôs: capitalismo e esquizofrenia (vol. 5), p. 109-110.

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guerra que define as características do conceito, são as características que definem a

máquina de guerra enquanto tal. Com essa virada, é possível tratar de máquina de guerra

em muitos sentidos, desde que sejam satisfeitas as características essenciais supostas do

conceito. Máquina exterior e irredutível ao aparelho de captura, dotada de potência de

metamorfose,27 que produz um espaço liso e uma forma turbilhonar de ocupá-lo. É nesse

sentido que se pode falar de uma ciência nômade,28 por exemplo, e de uma máquina de

guerra artística, como é feito nesta Tese.

Há, portanto, dois planos conceituais que atravessam o Tratado de Nomadologia.

O primeiro, amparado em argumentos históricos, e o segundo, que só pode ser apreendido

como resultado ou conclusão do que se depreende do primeiro, histórico-nomádico: o

plano essencial definidor da máquina de guerra enquanto máquina abstrata supostamente

pura.29 Um preocupado com a história e outro conforme a essência.

Assim, a afirmação de que os nômades não possuem o segredo da máquina de

guerra adquire todo o seu sentido, e é por esse argumento que se pode ampliar e

multiplicar as aplicações possíveis do conceito a vários fenômenos. Conforme a essência,

“um movimento artístico, científico, ‘ideológico’, pode ser uma máquina de guerra

potencial, precisamente na medida em que traça um plano de consistência, uma linha de

fuga criadora, um espaço liso de deslocamento, em relação com um phylum”.30

No livro Guerres et Capital, Éric Alliez e Maurizio Lazzarato reativam o conceito

da máquina de guerra com a proposta de aplicá-lo a uma análise política e histórica do

capitalismo. Em uma passagem em que se discute a importância do conceito para pensar

a política capitalista, mundial e global atual enquanto “guerra generalizada”, “guerra civil

mundial”, os autores chamam atenção para a “recepção crítica deleuziana” (feita por seus

intérpretes) que se empenhou em estetizar a máquina de guerra em vez de incorporá-la

nas análises políticas, econômicas, sociológicas e históricas.31 No lugar de tratar a

27 Id. Ibidem, p. 12-13. 28 Cf. Id. Ibidem. Ciência nômade “que se apresenta tanto como arte quanto como técnica” (p. 36),

caracterizada pelo modelo problemático (p. 25), por ser “anexata e contudo rigorosa” (p. 33) e que segue

os fluxos (p. 39). Ver também na mesma obra: “Proposição III: a exterioridade da máquina de guerra é

confirmada ainda pela epistemologia, que deixa pressentir a existência e a perpetuação de uma ‘ciência

menor’ ou ‘nômade’” (p. 24). 29 Id. Ibidem, p. 230. 30 Id. Ibidem, p. 109. 31 Cf. Éric Alliez e Maurizio Lazzarato. Guerres et Capital. Paris: Editions Amsterdam, 2016, p. 26: “A

problematização da guerra que eles [Foucault, Deleuze e Guattari] fazem está estreitamente vinculada às

mutações do capitalismo e das lutas que se lhe opuseram ao longo do dito pós-guerra, até cristalizar na

estranha revolução de 1968: a ‘microfísica’ do poder avançada por Foucault é uma atualização crítica da

‘guerra civil generalizada’; enquanto a ‘micropolítica’ de Deleuze e Guattari lhe é indissociável, colada ao

conceito de ‘máquina de guerra’ (a sua construção teórica não acontece sem contar com o percurso militante

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39

máquina de guerra a fim de pensar as lutas concretas, vinculando as guerras que o

capitalismo faz reinar em toda parte à realidade micropolítica das resistências, estetiza-se

o conceito como que esterilizando-o do problema ao qual tenta responder. É assim que,

do Tratado de Nomadologia, geralmente se faz uso do conceito conforme a essência e não

com a preocupação política que lhe é constitutiva. Alliez e Lazzarato resgatam o conceito

na sua preeminência histórico-política para demonstrar que o capitalismo opera uma

máquina de guerra mundial que se volta contra a população. Segundo os autores, “o

capitalismo e o liberalismo trazem a guerra em seu seio como as nuvens trazem a

tempestade”.32

A história do capitalismo é, desde a origem, atravessada e constituída

por uma multiplicidade de guerras: guerra de classe(s), de raça(s), de

sexo(s), guerras de subjetividade(s), e guerras de civilização (escrita no

singular, como se escreve História com letra maiúscula). As “guerras”

e não a guerra.33

Nesta Tese, longe de estetizar o conceito de máquina de guerra, pretende-se

demonstrar como a arte entra no campo das lutas constituindo para isso uma máquina de

guerra artística, desde quando os sujeitos, revoltando-se contra os poderes, tornam-se

deliberadamente agentes da resistência. Para que todo esse argumento adquira

consistência será de suma importância uma exposição detalhada, pois em relação à

máquina de guerra artística não basta repetir que tudo é político, nem que a arte sempre

foi de algum modo política, sem explicar em que termos, segundo quais circunstâncias,

de que modo e como tais afirmações podem ser válidas. É preciso identificar em que

processos a arte, tomada pelo impulso da revolta, foi se politizando segundo parâmetros

formulados no campo das lutas micropolíticas, e a partir desta virada, explicar como e em

que sentido a arte-revolta se colocou em termos práticos, discursivos e expressivos no

campo da resistência cultural.

de um dos dois). Se isolarmos a análise das relações de poder da guerra civil generalizada, como faz a

recepção crítica foucaultiana, a teoria da governamentalidade não será nada mais do que uma versão da

‘governance’ neoliberal. Se, por outro lado, nós separarmos a micropolítica da máquina de guerra, como

faz a recepção crítica deleuziana (que igualmente se empenhou em estetizar a máquina de guerra), não

sobrará nada a não ser ‘minorias’ impotentes diante do Capital, que por sua vez mantém a iniciativa”.

Tradução da UniNômade disponível em: http://www.ihu.unisinos.br/185-noticias/noticias-2016/561607-

guerras-e-capital Acesso 30 de julho de 2019. 32 Éric Alliez e Maurizio Lazzarato. Guerres et Capital, p. 13. 33 “L’histoire du capitalisme est, depuis l’origine, traversée et constituée par une multiplicité de guerres:

guerres de classe(s), de race(s), de sexe(s), guerres de subjectivité(s), guerres de civilisation (le singulier a

donné sa capitale à l’Histoire). Les ‘guerres’ et non la guerre”. Alliez e Lazzarato, Guerres et Capital, p.

18.

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40

No conceito de máquina de guerra interessa, sobretudo, a sua dimensão política,

do mesmo modo como interessa à micropolítica seus efeitos transformadores no campo

das lutas práticas. Na perspectiva de Alliez e Lazzarato, os dois conceitos não podem ser

pensados separadamente.34

O núcleo da conceituação da máquina de guerra artística aqui desenvolvida

consiste na sua relação com o espetáculo enquanto aparelho de captura da produção

cultural em geral. Quando se trata da máquina de guerra artística é fundamental discernir

dois polos, igualmente como fazem Deleuze e Guattari no Tratado de Nomadologia. Um

polo refere-se à máquina de guerra artística operada pela arte-revolta, e um outro polo

concerne ao espetáculo, que desempenha o papel de aparelho de captura. A arte, quando

capturada, submete-se a fins intrínsecos ao aparelho do espetáculo, o Estado e suas

microrracionalidades, que podem ser a indústria cultural, empresas, partidos,

movimentos, etc., quaisquer instâncias que se apropriam da máquina de guerra artística,

atribuindo-lhe outros objetos e fins.

Historicamente, não é o espetáculo que faz a máquina de guerra artística. Quem

deflagra a guerra artística são as vanguardas da arte-revolta, mas porque, ao mesmo

tempo, criam outra coisa, que são novas éticas e estéticas. A máquina de guerra artística

declara guerra a começar contra o espetáculo que tende sempre a tomar a arte em uma

esfera produtiva separada da vida. As vanguardas da arte-revolta se insurgem justamente

contra esse preceito ao afirmarem, cada uma à sua maneira, que a arte precisa transformar

a vida por dentro, segundo preceitos irredutíveis ao que o espetáculo espera das pessoas.

Esta operação é primeira, e exatamente como isto aconteceu é o que precisa ser

demonstrado.

No princípio, o espetáculo sequer possui máquina artística. Foi preciso capturar a

máquina artística, submetê-la ao regime de produção do Capital ou do Estado e assim

estetizar a guerra por lucro e dominação que impera por toda parte. A máquina de guerra

artística, irredutível à forma-Estado que o espetáculo representa (seja em que regime for),

ao invés de estetizar a guerra, como faz o espetáculo, opera uma arte politizada, ou uma

guerrilha da qual a arte é motor, veículo e arma. Aqui reside o fundamental.

A fórmula benjaminiana contemporânea das vanguardas do início do século XX

(segundo a qual o fascismo e o futurismo estetizam a guerra, e em resposta os comunistas

politizam a arte)35 ignora a exterioridade da máquina de guerra artística a quaisquer

34 Cf. Alliez e Lazzarato. Guerres et Capital, p. 26. 35 Cf. Walter Benjamin. A obra de arte na época de sua reprodutibilidade técnica. Porto Alegre: Zouk,

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aparelhos de captura do espetáculo, sejam eles capitalistas ou soviéticos. Na realidade, a

politização da arte (a deflagração da guerra artística) se fez a princípio pelas vanguardas

da arte-revolta, e nos dois casos do fascismo e do comunismo, o que se deu foi a

instrumentalização (captura) da máquina de guerra artística para os fins dos distintos

regimes. Quem permanece politizando a arte de forma radical e implacável, sem

submeter-se às formas espetaculares, são os adeptos e praticantes da arte-revolta, cuja

potência e revolta encontram-se necessariamente fora do âmbito de ação dos Estados e

do Capital.

Em termos conceituais, a politização da arte se faz sempre que, no interior de uma

micropolítica da criação, a arte compõe um meio tático da resistência. A partir do

momento em que a máquina de guerra artística é capturada pelas forças do Espetáculo,

do Estado ou do Capital, ela muda de natureza em função dos fins intrínsecos aos

aparelhos e assim sai do plano tático micropolítico e entra nos regimes estratégicos de

dominação: torna-se uma peça do aparelho, por definição, contra as revoltas libertárias

que lhes são exteriores. Para se ter uma rápida ideia, em dimensões interpessoais foi o

que levou Antonin Artaud a romper com André Breton quando o surrealismo aderiu ao

Partido Comunista.36

As linhagens da arte-revolta mantêm-se à parte, formam grupos sujeitos,

produzem rupturas, clivagens com a arte-espetáculo, e, enquanto sujeitos ativos da guerra

artística, miram seus arsenais contra os aparelhos de captura da revolta artística e de sua

2012, p. 123: “‘Faça-se arte, pereça o mundo’, diz o fascismo, e espera a satisfação artística da percepção

sensorial transformada pela técnica, tal como Marinetti confessa, da guerra. Isso é evidentemente a

consumação da arte pela arte. A humanidade, que outrora, em Homero, foi objeto de espetáculo para os

deuses olímpicos, tornou-se agora objeto de espetáculo para si mesma. Sua autoalienação atingiu um grau

que lhe permite vivenciar sua própria destruição como um gozo estético de primeira ordem. Essa é a

situação da estetização da política que o fascismo pratica. O comunismo responde-lhe com a politização

da arte”. 36 Em um texto de junho de 1927, Artaud responde à sua expulsão do grupo surrealista em torno de André

Breton. cf. Antonin Artaud. Em plena noite ou o bluff surrealista. Lisboa: Frenesi, 2000. Os argumentos

buscam a coerência da arte-revolta em sua dinâmica exterior a todo aparelhamento: “Coloco acima de

qualquer necessidade real as exigências lógicas da minha própria realidade. Só esta lógica julgo aceitável,

e não uma lógica superior cujas irradiações me afectam unicamente na medida em que ferem a minha

sensibilidade. Não há disciplina à qual me sinta forçado a submeter-me, por mais rigoroso que seja o

raciocínio apelando à minha adesão”, p. 17-18. O breve texto encerra com um arremate: “Sei que neste

debate terei comigo todos os homens livres, todos os verdadeiros revolucionários que pensam ser a

liberdade individual um bem superior ao de qualquer conquista obtida no plano relativo”, p. 20. Isso não

significa, entretanto, que o surrealismo bretoniano tenha capitulado uma vez por todas. Mais à frente,

Breton se afasta do comunismo e se inclina ao anarquismo, evidência da revolta em sua permanente

perlaboração de sentido. Para maiores detalhes da relação do surrealismo com o anarquismo, ver Plínio

Augusto Coelho (org.). Surrealismo e anarquismo: “Bilhetes surrealistas” de Le Libertaire. São Paulo:

Imaginário, 1990. No mesmo livro há um texto que pode interessar ao leitor desta Tese. Trata-se do capítulo

“O revoltado de Camus é dos nossos?”, de Georges Fontenis, uma resenha de O Homem Revoltado

publicada em 1952 no Le Libertaire. Cf. p. 109-117.

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42

potência libertária porque criam outra coisa e querem a liberdade para fazê-lo com

autonomia. É no mesmo movimento em que a máquina de guerra politiza a arte que os

sujeitos e os grupos da resistência cultural assumem um papel ativo nas lutas em curso.

Ou seja, é por meio dessa tomada de posição que deixam de ser sujeitados à guerra para

se tornarem sujeitos da guerra (artística). Passagem sem dúvida fundamental que

escapou à compreensão de Benjamin acerca da máquina de guerra artística e as

micropolíticas que lhe correspondem.

A questão da máquina de guerra formada pela arte-revolta se coloca, por

conseguinte, de maneira tática no campo das lutas sociais, culturais e políticas. A fim de

seguir as linhas de seu aparecimento no século XX se faz necessária uma Nomadologia

da Arte-Revolta, bem entendida, apta a seguir e interpretar as linhas de fuga e os

acontecimentos determinantes para que a arte pudesse se tornar uma máquina de guerra

operativa em termos micropolíticos tal como hoje se pratica.

Em certas vertentes, a arte-revolta torna-se deliberadamente política em termos

concretos, práticos, intrínsecos e extrínsecos, a tal ponto que, em muitos casos, não há

como distinguir nitidamente uma dimensão (estética) da outra (política). Uma pintura

pode ser carregada de sentidos políticos (como A Liberdade Guiando o Povo, de

Delacroix, ou Guernica, de Picasso), mas não é da mesma forma que uma performance,

em termos práticos, interativos, muldimensionais, em atos. A performance coloca em

contato não só a visão, mas o ser inteiro em sua complexidade, sentidos corporais,

sensibilidade subjetiva, universos incorpóreos, etc, que de forma ativa entram no

agenciamento coletivo da performance com a participação de outras pessoas no mesmo

processo, e é assim que ela é operativa e pragmática no sentido forte empregado aqui.

Das belas-artes à performance, de uma arte codificada em formas clássicas, como

era a arte burguesa do final do século XIX, à sua descodificação expressiva e prática

empreendida pelas vanguardas artísticas, foi assim que a arte tornou-se pouco a pouco,

com rupturas e saltos, retomadas e superações, uma estratégia de ação, uma tática de

combate, um escudo político, uma trincheira para a resistência, em suma, uma máquina

de guerra da revolta para operar dispositivos de efeitos sociais sem se prender às restrições

institucionais ou mercadológicas, a qual tornou indistinta a esfera artística da atuação

política, e que hoje parece ser uma das poucas formas de expressão nas quais ainda é

possível resistir criativamente e experimentar novos possíveis.

Nos tempos atuais, sob as aparências de uma democracia liberal, por trás das

revoluções tecnológicas e do “capital artista”, os processos da arte-revolta em levante

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43

contra as guerras em curso perpetradas pelo capitalismo e veladas pelo espetáculo

integral, que tomam a vida por alvo e a totalidade do ser como suporte. A arte-revolta não

estetiza a guerra; a revolta toma a arte como forma de politizar a cultura e a vida em suas

mais diversas manifestações.

Sumário Descritivo

Durante a pesquisa, nas fontes consultadas, não foi encontrada referência sobre a

formação da máquina de guerra artística no registro histórico tal como o fazem Deleuze

e Guattari recorrendo à história universal, e Alliez e Lazzarato, à história moderna do

capitalismo. Com o objetivo de lançar luz sobre esse processo, uma das contribuições da

pesquisa será a de rastrear os acontecimentos e as circunstâncias determinantes para a

formação da máquina de guerra artística que, no decorrer de um século, contrapôs sua

revolta aos aparelhos de captura nas suas formas modernas até atingir as expressões

contemporâneas. O primeiro capítulo será dedicado inteiramente a desenvolver esse

argumento basilar. A importância de tratar a questão logo no início dispensa maiores

justificativas por se tratar de um pesquisa que se propõe a pensar o Critical Art Ensemble

como uma máquina de guerra artística.

Para vincular a discussão teórica ético-filosófica da revolta com a arte torna-se

providencial resgatar a guinada política na história da arte moderna como um reflexo do

autoesclarecimento social da revolta artística. Nesta trajetória, a ênfase dada ao elemento

político nas vanguardas do século XX se intensifica até a sua máxima expressão no pós-

guerra com as neovanguardas, quando se constituem então as condições de possibilidade

da arte contemporânea.

Um dos críticos de arte mais destacados da atualidade, Hal Foster, defende a tese

de que o desenvolvimento da arte contemporânea em toda sua diversidade se deve a uma

articulação complexa iniciada pela recepção das vanguardas históricas no contexto das

neovanguardas, sobretudo nas três décadas após a Segunda Guerra Mundial.37 Portanto,

é imprescindível retomar esse desenvolvimento ainda que em linhas gerais, a fim de

contribuir com o entendimento do fenômeno de conjunto da arte atual.

37 Cf. Hal Foster. O retorno do real: a vanguarda no final do século XX. São Paulo: UBU Editora, 2017,

p. 32ss. Mais à frente, na página 46, afirma o autor: “A vanguarda histórica e a neovanguarda são

constituídas de maneira semelhante, como um processo contínuo de protensão e retenção, uma complexa

alternância de futuros antecipados e passados reconstruídos – em suma, num efeito a posteriori que

descarta qualquer esquema simples de antes e depois, causa e efeito, origem e repetição”.

Page 44: critical art ensemble - UFRN

44

Por consequência, o primeiro capítulo será dedicado a traçar uma Nomadologia

da Arte-Revolta, assim denominada a tarefa do pensamento que busca rastrear as maiores

criações micropolíticas da arte-revolta no curso de um século: a máquina futurista, que

demarcou uma ruptura radical na experiência da temporalidade histórica; a máquina de

destruição dadaísta, que liberou as forças do caos na arte; a máquina onírica-desejante do

surrealismo, que liberou e canalizou as forças do inconsciente para o campo artístico e

político, abrindo as portas da percepção em busca do maravilhoso e da super-realidade; e

por fim, a máquina de guerra situacionista, que fundiu arte e política revolucionária a fim

de transformar a vida cotidiana em torno do projeto da realização da poesia.

O enfoque dado às vanguardas de início tem por função situar o Critical Art

Ensemble no contexto geral da história da arte-revolta com a qual o grupo frequentemente

dialoga de forma direta ou velada. Assim, será possível compreender sua singularidade e

seu lugar na histórica formação da máquina de guerra artística hoje em pleno

funcionamento.

Depois de definir os termos e apresentar o argumento histórico-nomadológico, o

passo seguinte será dedicar-se inteiramente ao Critical Art Ensemble, o coletivo estudado

detidamente nesta pesquisa. O segundo capítulo, portanto, será dedicado a expor um breve

histórico do grupo, com destaque para a formação dos primeiros anos e a apresentação de

suas influências, características e produções que formaram seu estilo de ação.

Na longa trajetória do CAE, as experiências iniciais na resistência cultural junto a

artistas, ativistas e produtores serviram para a formação micropolítica do grupo. Neste

capítulo será dada atenção à Micropolítica da Criação, na prática da qual se evidenciará a

tomada de posição do CAE quanto às lutas em jogo e sua postura enquanto sujeito da

guerrilha artística em curso, exemplarmente ilustradas na parceria junto a outros coletivos

artísticos e grupos minoritários, bem como no seu engajamento nas movimentações em

torno da Crise da AIDS que assolou os Estados Unidos nos anos 80. Momento importante

sem dúvida para a arte-revolta, que adentrará em uma nova fase, denominada por alguns

de Pós-Socialismo, com repercussões importantes para a deflagração de micropolíticas

da criação somente comparável à que ocorreu nas movimentações contraculturais dos

anos 60 e 70 nos Estados Unidos e no mundo.

Lazzarato ilustra bem a lógica dessa movimentação pós-socialista no campo da

política com o exemplo dos intermitentes da França.38 Muito do que ele demonstra com

38 Cf. Maurizio Lazzarato, “Resistência e criação nos movimentos pós-socialistas”, in As revoluções do

capitalismo. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2006.

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45

relação ao que se passou na França aplica-se às micropolíticas colocadas em prática pelo

Critical Art Ensemble e outros coletivos, artistas e ativistas na resistência cultural dos

Estados Unidos. Basicamente, à máquina de guerra artística correspondem micropolíticas

de um novo tipo, denominadas aqui de Micropolíticas da Criação. Conceitualmente toda

micropolítica é de alguma forma criativa, pois na dimensão molecular das relações são

produzidas e veiculadas linhas de criação e destruição que dinamizam a realidade social.

Porém, isso não significa que sejam necessariamente micropolíticas da criação. Estas

micropolíticas concernem a Grupos Sujeitos ou Grupos de Criação que se ocupam,

deliberadamente, da invenção e da inovação na arena da cultura. Invenção e inovação

enquanto exercícios de transformação micropolítica na perspectiva da resistência.

O terceiro capítulo tratará detidamente sobre os Arsenais Antropotécnicos da

Resistência Cultural inventados, praticados e teorizados pelo CAE. Depois de uma breve

passagem pelo ativismo tradicional, o Ensemble assume de vez a micropolítica da criação

em seus próprios termos. O CAE então deixa para trás a política identitária e começa a

elaborar inovações nas formas de pensar, agir e interagir culturalmente. Engajado com

igual interesse nas artes, na cultura e na política, começa a forjar seus arsenais

antropotécnicos da resistência empreendida pelo coletivo: o Plágio Utópico, o Teatro

Recombinante e a estratégia micropolítica adotada pelo coletivo denominada aqui de

Estética do Distúrbio, sintetizada posteriormente na virada Mídia Tática nos anos 2000,

quando então, aparecem transformados novos arsenais: as Intervenções Moleculares e os

Choques Semióticos.

Desde então já se pode falar de uma máquina de guerra do Critical Art Ensemble,

que dinamiza uma micropolítica da criação com a finalidade de criar brechas culturais,

zonas autônomas temporárias, espacialidades outras, formas diferenciadas de pensar, agir

e relacionar-se, em suma, possíveis e aberturas ao novo. Mas se em suas campanhas por

vezes promove guerrilhas, não é com batalhas, e sim com outros meios, que são os

distúrbios, as intervenções moleculares e os choques semióticos. Esquematicamente, a

máquina de guerra do CAE se efetua como Potência Destituinte, Estética do Distúrbio,

Desobediência Civil Eletrônica e Biologia Contestatária ou Biorresistência. Em relação a

cada um dos componentes da máquina de guerra agenciada pelo CAE são elaborados

arsenais teóricos e práticos, estéticos e micropolíticos correspondentes.

Enquanto potência destituinte, o CAE inventa, fabrica e produz distúrbios e

choques semióticos. Em vez de buscar constituir poderes, instituições, o Ensemble

promove a desarticulação das antropotécnicas hegemônicas a fim de restituir ao

Page 46: critical art ensemble - UFRN

46

pensamento crítico sua cidadania na esfera pública. Destituir no sentido de subtrair dos

poderes seus efeitos sobre o pensamento, a cultura e a vida. A lógica da destituição é da

desobediência, da subtração, porque cria alternativas que escapam às capturas. Destituir

não é, portanto, atacar as instituições, mas, sim, a necessidade que se tem delas.39 Não se

trata de vencer, tomar o poder, mas de superá-lo, o que se dá por super-ações que

aumentam a potência de agir e a força de viver, para usar as expressões de Spinoza.

Nas campanhas do Critical Art Ensemble, a estética nada mais é que o suporte

expressivo e sensível dos meios táticos usados para atingir certos objetivos

micropolíticos. Em determinadas situações, midiatáticas ou pedagógicas, o distúrbio e o

choque incidem no processo de subjetivação de forma política. Os elementos estéticos os

mais variados são combinados, agenciados e dispostos de modo a formar circuitos

antropotécnicos que possibilitam exercícios éticos e de pensamento crítico.

O conceito de antropotécnica tem sido desenvolvido por Peter Sloterdijk há

muitos anos. A princípio, a expressão aparece em uma intervenção pública do filósofo

acerca das biotecnologias de produção de seres humanos em laboratório.40 Em um estreito

diálogo com Martin Heidegger, Friedrich Nietzsche e Platão, Sloterdijk defende a tese de

que o ser humano é um produto tecnológico desde suas origens pré-históricas e não é de

hoje que, para entendê-lo, é necessário se perguntar sobre os meios empregados para

produzi-lo enquanto tal. O teorema central da antropotécnica diz que no fundo o homem

é um produto e só pode ser compreendido na medida que forem identificados os

procedimentos de sua produção.41 Por antropotécnica deve-se entender, portanto, as

técnicas colocadas em ação para produzir o homem no curso da história e em

conformidade com sua cultura.

Posteriormente, o termo reaparece na obra Tens de Mudar de Vida, no entanto, em

relação a outros problemas. Finalmente, a fonte do conceito é revelada. O termo foi usado

pela primeira vez nos anos da Revolução Russa e pode ser encontrado no terceiro volume

da Grande Enciclopédia Soviética de 1926.42 Sloterdijk se apropria da expressão e lhe

atribui um estatuto filosófico próprio.

39 Cf. Comitê Invisível. Motim e destituição agora. São Paulo: N-1 Edições, 2018, p. 96. 40 Peter Sloterdijk. Regras para o parque humano: uma resposta à carta de Heidegger sobre o

humanismo. São Paulo: Estação Liberdade, 2000. 41 Cf. Peter Sloterdijk. Règles pour le parc humain, suivi de La domestication de l’être: pour un

éclaircissement de la clairière. Mille et Une Nuits, 2018, p. 86. 42 Peter Sloterdijk. Tens de mudar de vida: sobre antropotécnica. Lisboa: Relógio D’Água: 2018, p. 23-

24.

Page 47: critical art ensemble - UFRN

47

O que interessa então é a proposição de “uma teoria global da existência como

exercício”.43 Sloterdijk encontra os aportes teóricos para embasar sua proposição nos

estudos culturais. Desde o século XIX tem sido uma constante a demonstração de que o

homem produz de fato o homem, porém, não pelo trabalho (Marx) sobre si (Foucault),

nem na interação ou comunicação, mas através da sua vida em diferentes formas de

exercícios. Em diálogo com Nietzsche e Foucault, os processos de autoprodução do

homem não são referidos mais a processos milenários constitutivos do homo sapiens,

como na primeira formulação das Regras para o parque humano. Agora, as

antropotécnicas são pensadas diretamente como exercícios, que ao serem repetidos,

retroagem sobre o exercitante, formando-o com novas qualidades.

À medida que interessa pensar a formação continuada e em atos do ser humano

por meios técnicos, o componente conceitual das antropotécnicas torna-se o exercício

definido como “qualquer operação pela qual a qualificação do agente é estabilizada ou

melhorada até à execução seguinte da mesma operação, seja ela declarada ou não como

exercício”.44 Torna-se possível então falar em toda sorte de antropotécnicas: místicas,

religiosas, ascéticas, guerreiras, artísticas, humanistas, etc. É nesse sentido que o Critical

Art Ensemble pratica, produz e promove antropotécnicas situacionistas como forma de

estimular o exercício do pensamento crítico e ético com relação a problemáticas

contemporâneas.

As atividades do CAE e seus produtos, sobretudo o teatro recombinante e as

intervenções moleculares, nas quais ocorrem interações e diálogos com os participantes,

operam antropotécnicas de desinibição metanoica assistida, e enquanto tais, incidem nos

processos de subjetivação liberando o pensamento crítico por meio de exercícios aqui

denominados situacionistas. Metanoia significa uma mudança de pensamento

fundamental pela ação do sujeito sobre si mesmo ou pela ação de outros sobre si. A

desinibição refere-se ao efeito de liberação do pensamento de sua clausura doxológica.

Tais antropotécnicas são assim nomeadas porque estão circunscritas no espaço-tempo

fragmentário, sem linha de continuidade, mas possibilitam aos participantes das

performances do CAE exercícios autoplásticos, que nada mais são do que exercícios do

livre pensar, exercitações de um pensamento emergente.

43 Cf. Peter Sloterdijk. Tens de mudar de vida: sobre antropotécnica, p. 19. 44 Cf. Peter Sloterdijk, Tens de mudar de vida: sobre antropotécnica, p. 16.

Page 48: critical art ensemble - UFRN

48

Em qualquer antropotécnica existe uma tensão vertical que indica e configura seu

sentido em relação a objetivos e fins autoplásticos. Essa tensão é no mais das vezes

moldada e se faz perceber pelos valores éticos, morais, religiosos, filosóficos, culturais,

etc. No caso das antropotécnicas situacionistas do Critical Art Ensemble, o vetor de tensão

que orienta os exercícios não é senão o pensamento crítico, caracterizado por certo

ceticismo, pelo questionamento e pela suspeita. Pretende-se assim contribuir com a

emergência de focos de enunciação autônomos, autoposicionados e portanto libertos das

opiniões reinantes. Esta tem sido a proposta de toda atividade realmente comprometida

com o pensamento e com a produção de conhecimento. Mas no caso do CAE, trata-se de

um pensamento e uma sensibilidade vinculados a valores como autonomia, liberdade e

justiça social que se pretendem emergir na esfera pública por meio de experimentos e

interações. O pensamento crítico então é o que se pode chamar de atrator estranho45 das

antropotécnicas da resistência cultural que incidem na produção das subjetividades, seja

por meio de artefatos (vídeos, pôsteres, livros, imagens), seja por meio das situações

construídas no Teatro Recombinante e nas Intervenções Moleculares.

Depois de tratar dos arsenais antropotécnicos da resistência, o quarto capítulo

prioriza a questão da Resistência Cultural tal como aparece na trajetória do Ensemble, na

obra teórica do grupo e em entrevistas, sobretudo nos livros onde estão registradas suas

perspectivas teóricas e táticas, as concepções analíticas do poder e as proposições para

uma resistência antiautoritária. Serão discutidos os temas da resistência cultural na

sociedade do espetáculo, a virada da resistência eletrônica, a concepção do CAE quanto

à resistência inspirada nos situacionistas e o ideal de revolução. O quarto capítulo focará

nesses termos, fenômenos e acontecimentos.

Em linhas gerais, a convergência dos grupos sujeitos, de suas ações e de seus

efeitos produz o que se pode chamar a Resistência Cultural, que nada mais é do que uma

multiplicidade de movimentos, grupos, células e agentes de transformação no seio da vida

social. Em certo sentido, as Micropolíticas da Criação efetuam uma Anarquia Orgânica46

composta por células mutantes e atratores estranhos, que processam, catalisam e

45 “O termo oriundo da Teoria do Caos a partir da análise de turbulência de fluidos. O atrator estranho se

dá no gráfico como padrão não-linear, fractal, cuja relação de vários vetores aparentemente aleatórios

resultam nesse padrão não-linear, cujo exemplo mais conhecido de atrator estranho é o efeito borboleta. Na

filosofia de Deleuze e Guattari, foi precedido pelo conceito de máquina abstrata. Ex: nuvem de pássaros”.

Verbete disponível em http://cosmoseconsciencia.blogspot.com/2010/01/atrator-estranho-verbete.html

Acesso 30 de julho de 2019. 46 Termo sugerido pela Prof. Drª Maria da Conceição de Almeida na ocasião de seus comentários referentes

à pré-qualificação do projeto de pesquisa na disciplina Seminário de Tese, realizada no final de 2016.

Page 49: critical art ensemble - UFRN

49

impulsionam a imaginação, a criatividade e a inventividade no ambiente cultural.

Anarquia devido à lógica não centralizada, aberta e rizomática,47 portanto, heterogênea e

transversal que lhe é característica; e orgânica pelo motivo de se viabilizar por relações

solidarísticas de resistência no interior de um sistema dominante.

A lógica que impera nos movimentos tradicionais é totalmente outra: busca a

unidade e o consenso com seus programas, com suas plataformas e ideologias. Enquanto

as micropolíticas da criação investem na inovação e na invenção, os movimentos

tradicionais tendem a reproduzir e adaptar modelos considerados canônicos, devido a que,

sobrecodificam iniciativas discordantes e dissidentes. É o que destaca Lazzarato: “A

lógica da invenção é a da criação e efetuação de diferentes mundos em um mesmo mundo

que desbasta o poder, ao mesmo tempo que permite que deixemos de obedecê-lo”.48

Por meio da criação, a micropolítica dos grupos sujeitos promove uma modalidade

de resistência que se faz perceber também pela desobediência. Enquanto fenômeno

cultural, a desobediência é o correlato da revolta seja individual ou coletiva. Em suma, a

desobediência está implicada na revolta, e nessa articulação teórica, o quinto capítulo

apresenta a temática Resistência e Desobediência Civil Eletrônicas, propostas pelo CAE

na década de 1990, exatamente em resposta à abertura do ciberespaço da internet.

Frédéric Gros diz que desobedecer é uma declaração de humanidade e expõe a

questão. O problema da desobediência inscreve-se na perspectiva de “uma ética do

político”.49 O ponto de inflexão no valor da desobediência na esfera política ocorre

durante a Segunda Guerra Mundial, momento histórico crucial pois “pela primeira vez,

homens foram punidos por terem obedecido”.50 A experiência do totalitarismo no século

XX revela o monstruoso que advém da obediência cega. Não se trata mais do modelo da

primeira modernidade segundo o qual a razão deveria se opor aos instintos primitivos. Na

segunda modernidade, a oposição deixa de ser entre o homem e o animal para se tornar

uma oposição entre o homem e a máquina.

47 Conceito elaborado por Gilles Deleuze e Félix Guattari, “Introdução: rizoma”, in Mil platôs: capitalismo

e esquizofrenia (vol. 1). Rio de Janeiro: Editora 34, 2006. 48 Maurizio Lazzarato, “Resistência e criação nos movimentos pós-socialistas”, in As revoluções do

capitalismo, p. 231. 49 Frédéric Gros. Desobedecer. São Paulo: Ubu Editora, 2018, p. 33. 50 “Durante séculos, os homens foram punidos por desobedecer. Em Nuremberg [julgamento dos nazistas

logo após sua derrota na Segunda Guerra Mundial], pela primeira vez, homens foram punidos por terem

obedecido. As repercussões desse precedente estão começando a se fazer sentir”. Trata-se de uma nota feita

por Hannah Arendt em seus diários. A frase foi copiada pela filósofa de Peter Ustinov. Cf. Frédéric Gros.

Desobedecer, p. 27.

Page 50: critical art ensemble - UFRN

50

O homem puramente obediente nada mais é do que o correlato autômato que tem

como signo a máquina mecânica. As redes hierarquizadas do poder, na divisão social do

trabalho de tipo autoritário, exigem plena obediência aos comandos superiores por parte

dos demais, que agem como peças do mecanismo. Na medida em que aderem aos

comandos sem qualquer consideração ética, humana, agem como meros autômatos. É o

que Gros denomina “a inversão das monstruosidades”.51 O monstro deixa de ser o homem

submetido ao seu lado animalesco representado pelos instintos e se revela como o

homem-máquina submetido aos comandos de uma razão instrumental supostamente pura

e inquestionável. Esse é o perigo que todo encadeamento autoritário potencialmente

alimenta. A saída do ciclo da obediência monstruosa passa pela recusa inerente ao ato de

revoltar-se. Ambas têm seu lugar no interior de uma resistência cultural mais ampla, a

qual será problematizada com relação à analítica do poder nômade do pancapitalismo52

proposta pelo grupo e com relação ao aparelho de captura do espetáculo tal como

apresentado no primeiro capítulo.

Com relação à base teórica da pesquisa, o aporte conceitual e metodológico de

base é formado principalmente pelas abordagens dos seguintes autores, que ocupam a

linha de frente argumentativa: Albert Camus e Julia Kristeva (a questão da revolta), Gilles

Deleuze e Félix Guattari (nomadologia, máquina de guerra, micropolítica, sociedade de

controle e subjetivação), Michel Foucault (microfísica do poder, resistências, sociedades

disciplinares, biopolítica), Giorgio Agamben (o contemporâneo), Walter Benjamin (arte

e política), Peter Sloterdijk (antropotécnica e a discussão sobre as mídias), Maurizio

Lazzarato (subjetividade e máquinas) e Frédéric Gros (com o tema da desobediência). Da

parte dos pesquisadores ou dos críticos que estudam o fenômeno das artes engajadas, faz-

se mister elaborar um diálogo epistemológico com as fontes teóricas que inspiram os

coletivos, e assim aproximar os discursos das práticas, colocando em perspectiva, sempre

que possível, o contexto social do qual emergem e no qual interatuam. Por isso a

aproximação das referências do CAE se dará por meio de autores comuns às perspectivas

do próprio grupo, ou que o tomam como objeto de análise, como forma de ampliar e

aprofundar a compreensão de suas formas de expressão textuais, imagéticas, estéticas e

51 Frédéric Gros. Desobedecer, p. 27. 52 Pancapitalismo: conceito elaborado pelo Critical Art Ensemble para designar um sistema de dominação

que pode operar em bases aparentemente democráticas e ainda assim se exercer com forte teor autoritário.

O conceito aparece na primeira obra teórica do coletivo em 1994, período marcado pela assunção da

hegemonia capitalista em dimensões globais, após a queda do regime soviético. O pancapitalismo nada

mais é do que o sistema capitalista expandido em escala planetária com todos os desenvolvimentos

tecnológicos que lhe acompanham. O conceito é tratado com mais profundidade nos Capítulos 4 e 5.

Page 51: critical art ensemble - UFRN

51

práticas. Em segunda instância, mas com igual importância para dialogar diretamente

com os referenciais do grupo estudado, as fontes são: as vanguardas históricas, Guy

Debord (a sociedade do espetáculo), Hakim Bey (zonas autônomas temporárias e

terrorismo poético) e os críticos de arte contemporânea Hal Foster, Nicolas Bourriaud,

Nato Thompson, Gregory Sholette e Claire Bishop, entre outros.

Durante todo o texto aparecerão imagens, citações e notas com o propósito de

ilustrar o conteúdo abordado, indicar as fontes, ampliar a discussão e definir termos

secundários. De certa forma, é possível lê-lo sem recorrer às notas, que atuam de forma

complementar ao texto principal. Mas como se trata de uma pesquisa, elas demonstram

as fontes da pesquisa e sugerem referências para estudos correlatos ou posteriores. Ao

final da Tese encontram-se as referências bibliográficas da pesquisa aqui apresentada,

bem como os apêndices com a lista dos livros publicados pelo Critical Art Ensemble e

suas formações ao longo do tempo.

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52

CAPÍTULO 1

NOMADOLOGIA DA ARTE-REVOLTA:

A MÁQUINA DE GUERRA ARTÍSTICA

Não há sujeitos fixos ou genéricos na arte política: a especificidade

histórica, o posicionamento cultural é tudo aqui. Desse modo,

reconsiderar o status da vanguarda não é desafiar sua eficácia crítica no

passado, mas, ao contrário, ver como hoje ela pode ser reinscrita como

resistente, como crítica no presente. – Hal Foster, Por um conceito

político na arte contemporânea.53

Uma das principais questões, senão a mais fundamental, que a arte contemporânea

coloca para a época presente é a de saber como a arte pode modificar a vida. Transposta

para o plano político, a questão passa a ser como criar um novo mundo seguindo o

exemplo da arte. Em um caso como no outro, entre a recusa completa e a aceitação total

da realidade, vibra o impulso criador originário que anseia por realizar-se. No império do

niilismo, o movimento da revolta arrasta consigo Eros e Thanatos, e para realizar a síntese

que haverá de levar a civilização além de seus impasses, será necessário apropriar-se de

suas forças para dissipar os enganos que levaram à tirania atual e criar enfim o que ainda

hoje não possui nome, mas que é tão necessário.

Não se trata de ecoar um grito insensato e sem propósitos a se perder no vazio,

mas para superar a confusão que domina o tempo presente, há que se extrair um

pensamento coerente da imensa energia acumulada em torno da revolta, que nas artes e

na política deu o tom dos últimos dois séculos. As forças titânicas alojadas no

inconsciente coletivo, sejam quais forem as suas formas, dinamizam o movimento

histórico, constituem o mal-estar e a vontade de mudança que marcam de forma indelével

a aurora do milênio. Em um cenário de problemáticas aparentemente insolúveis, cabe ao

pensamento contemporâneo lançar luzes sobre as sombras que insistem em obliterar os

sentidos criadores aí latentes.

A situação não é das melhores, no entanto, um mundo que a cada dia propaga o

inaceitável, por mais que queira não será capaz de conter os impulsos transformadores

53 Hal Foster, “Por um conceito do político na arte contemporânea”, in Recodificação: arte, espetáculo,

política cultural. São Paulo: Casa Editorial Paulista, 1996, p. 199.

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53

que se insurgem contra a dominação, a servidão e o conformismo, as faces mais humanas

do espetáculo de horror que se instalou na história recente. Mesmo porque, se as forças

da vida forem simplesmente recalcadas e reprimidas, os efeitos de retorno, imponderáveis

em suas intensidades no psiquismo individual e coletivo, tornar-se-ão fatalmente

devastadores.

Quando os instintos não encontram uma forma adequada de se expressar na

realidade, e o desejo não converte sua energia em atos, não resta outra saída: a vida se

inquieta, a revolta se inflama. Se a condição for partilhada, então, a paixão se torna

coletiva, as mentes conspiram revoluções intestinas e as resistências logo se organizam.

As insurgências dos últimos anos, vistas em retrospecto, são a confirmação prática de que

os poderes constituídos não governam sozinhos a realidade, de que a revolta tem um poder

ainda desconhecido em todas as suas consequências. Que os tiranos cometam o erro de

impor o peso da morte sobre a voz dos poetas, recolham os livros, fechem os teatros e

interditem os palcos, desativem os sítios eletrônicos e apreendam as ferramentas

artísticas, e então, mais cedo do que tarde, o espírito da revolta retornará pelo avesso

como fúria incendiária, insurreição e levante popular.

A arte oferece um excelente laboratório para a experiência da revolta catártica e

estética. Na poesia, na literatura e nas artes em geral, as vanguardas sempre encontraram

um canal de expansão da consciência e da sensibilidade. O acontecimento estético, porém,

é muito mais do que isso. Nele, signos, gestos, sons e sentidos geram forças que, uma vez

evocadas, despertam as mentes, agitam os corpos, devastam fronteiras e adentram uma

realidade coletiva de outra forma difícil de acessar. Por isso as vanguardas exploraram

também suas potencialidades no campo mais amplo da cultura, em suas dimensões

políticas e sociais. Em certas manifestações artísticas contemporâneas, ao colocar em

xeque o próprio princípio de realidade, o experimento torna-se o prenúncio de uma

consciência estética e política, assim como no ritual mágico se evocam as forças do

espírito elevado em cada um dos participantes para daí retirar um aprendizado a ser

incorporado na existência.

Em sintonia com essa compreensão da arte, Julia Kristeva afirma que “a noção de

experiência compreende o princípio de prazer e o renascimento de um sentido para o

outro, que só seria possível compreender à luz da experiência-revolta”.54 A experiência

da revolta que, na sua acepção subjetiva e política de transgressão da normalidade, da

54 Julia Kristeva. Sentido e contra-senso da revolta: poderes e limites da psicanálise I. Rio de Janeiro:

Rocco, 2000, p. 24.

Page 54: critical art ensemble - UFRN

54

ordem, da lei, da autoridade, da tradição, deu o tom na história moderna tanto nas

revoluções políticas quanto nas artes.

Não é à toa que o espetáculo das indústrias culturais desempenha há muito sua

função política ao domesticar as potências artísticas. O espetáculo integrou os

procedimentos puramente formais e estéticos criados pelas vanguardas e transformou a

arte em puro entretenimento desligado dos problemas enfrentados pelos mesmos sujeitos

que a consomem no seu dia a dia. Em vez de vozes determinadas, confiantes e criadoras,

reproduzem-se em escala massiva as celebridades e seus clones ávidos por visibilidade.

No entanto, a arte que se instalou comodamente na vida cotidiana não deixou de

sentir os choques, as distorções, as interferências e os distúrbios que são os efeitos de uma

arte-revolta, a qual, apesar das dificuldades, continua a produzir suas valiosas rupturas

libertárias no dia a dia, no espetáculo e em cada ocasião que se mostrar necessária. O

combate que os Futuristas, os Dadaístas, os Surrealistas e os Situacionistas deflagraram

na cultura criou as condições para a formação da máquina de guerra artística que ainda

hoje se debate contra as tentativas de captura do espetáculo. Entre a violência e a sedução

dos poderes, o abandono e o estado de exceção, a arte-revolta forja os laços, os valores e

as obras que haverão de inspirar aqueles que nutrem em si a vontade de superação tão

necessária a uma vida mais livre e plena. O espectro da revolta, que durante muito tempo

foi o guardião dos sonhos utópicos, ronda às voltas na arte e na política contemporâneas,

por vezes em silêncio, elaborando um sentido visionário capaz de inspirar outra vez o

mundo.

Espectros da Revolta

O mundo foi transformado pela obstinação de homens e mulheres devotados a

questionar e produzir conhecimento. As ciências que estão à frente dos processos

civilizatórios, mercadológicos e tecnológicos há séculos surgiram de rupturas

epistemológicas instauradas por mentes que se esquivaram aos poderes, quando não os

combateram frontalmente em um período histórico no qual pensar era algo desafiador e

muitas vezes perigoso.

A coragem de inovar no pensamento, como nas artes, no passado e no presente,

tem sido a marca daqueles que recusam uma parte do mundo para afirmar uma

possibilidade até então insuspeitada. A criação, considerada atividade humana por

excelência, sempre adiciona algo novo à realidade, e por meio dela o mundo se transforma

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55

desde a aurora dos tempos.

A história do pensamento e da arte moderna foi igualmente impulsionada pela

vontade na direção da criação. A curiosidade, a ânsia por saber, por descobrir os segredos

da natureza, o desejo de captar a beleza em uma escultura ou em uma tela, tudo o que a

vontade projetou no tempo, sobre o real, contribuiu para a construção da magnífica e

terrível máquina do mundo sobre a qual se debruçou Camões do alto dos montes

prefigurando a visão da Terra séculos atrás.55

No entanto, as conquistas do pensamento, as inovações artísticas e as revoluções

sociais que fizeram a história moderna ser o que é sofreram a influência arrebatadora da

revolta como jamais acontecera, e até as figuras da loucura nas formas extremas de recusa,

negação, crítica, devaneio e crueldade tiveram seu lugar na construção do mundo atual.

Concretamente, não se pode falar dos grandes acontecimentos recentes na história

da humanidade sem considerar as potências da revolta que os anima ao fundo. A liberdade

em si tão almejada nada mais é que a inteira positividade da revolta que os iluministas,

os revolucionários e depois os artistas reafirmaram no pensamento, na práxis e nas obras

que hoje se conhece.

Por isso, quando alguém se interroga sobre as relações da arte com a política, na

revolta fatalmente se revela o elo que une uma dimensão à outra. A vontade de verdade,

de saber, a vontade de poder, de transformar, de criar, destruir, todas elas estão

relacionadas de alguma forma com o movimento da revolta, sobretudo na política e nas

artes.

A revolta é compreendida por Albert Camus como uma relação do ser com o

mundo, um certo movimento interior que, face à realidade, diz sim e não, para, negando

uma parte, melhor afirmar a outra. Como tal, a revolta não se compraz nem na aceitação

completa nem na negação absoluta e, portanto, coloca-se a tarefa de criticar a realidade

sempre em função da criação, o que significa, no campo estritamente estético, produzir

uma arte que expressa e exige uma modificação da realidade, e no plano político, um

compromisso ético com a transformação social a fim de valorizar e respeitar cada ser vivo

enquanto tal.

55 “Digamos, para simplificar, que o desconcerto entrevisto por Camões, latente nos desvãos de um mundo

que todos, então, acreditavam harmonioso e concertado, foi chegando, aos poucos, à tona das obras e

consciências, no decorrer desses quatro séculos, até aflorar, em largo volume, com a grande insurreição

surrealista”. Carlos Felipe Moisés. O desconcerto do mundo: do renascimento ao surrealismo. São

Paulo: Escrituras Editora, 2001, p. 22. Sobre a “máquina do mundo” na poesia de Camões, ver no mesmo

livro o capítulo “A máquina do mundo”, p. 23ss.

Page 56: critical art ensemble - UFRN

56

É possível dizer portanto que a revolta, quando desemboca na

destruição, é ilógica. Ao reclamar a unidade da condição humana, ela é

força de vida, não de morte. Sua lógica profunda não é a da destruição;

é a da criação. Para que continue autêntica, seu movimento não deve

deixar para trás nenhum dos termos da contradição que o sustenta. Ele

deve ser fiel ao sim que contém, ao mesmo tempo que a esse não isolado

na revolta pelas interpretações niilistas.56

Nesse sentido, a revolta desencadeia o movimento na sensibilidade, na ação e no

pensamento que, na política, projeta-se historicamente nos incessantes conflitos contra o

poder ilimitado, e na arte, converte-se em fonte aparentemente inesgotável de criação.

Realmente, o homem moderno tem feito a si mesmo e seu mundo inspirado pela revolta,

e insatisfeito ou exasperado pela urgência de realizar-se, quando não consegue fazê-lo de

imediato no campo social, quando algo além de suas forças o impede de ser o que é,

sublima seu mais nobre desejo na obra artística, um dos últimos redutos para a livre

expressão do espírito.

Nas artes revelam-se assim os estertores dos oprimidos, o gozo dos lascivos, a

inocência dos apaixonados, a fúria dos traídos, o sonho dos visionários, enquanto se

preparam e se acumulam as potências revolucionárias para a guinada no mundo.

Aproveitando-se de tantas possibilidades, as vanguardas criaram as condições para a livre

expressão da imaginação, do desejo e do inconsciente em termos estéticos além dos

parâmetros tradicionais que capturavam as forças criadoras nas formas previamente

admitidas, e conduziram a vontade criadora para o campo da ação e da prática por meio

da invenção de matrizes performáticas. Eis o arcano que modelou as vanguardas artísticas

do século XX apesar de suas diferentes formas de compreender o fenômeno da arte, sua

função no mundo e as atitudes que encarnaram existencial e socialmente. Um dos maiores

feitos das vanguardas foi reconverter as forças que a arte sublimava em termos

psicológicos para o plano da ação, dotando de potência revolucionária as forças da

criação.57 Assim, de expressão do espírito, a arte tornou-se canal do desejo e da

ressurgência das imensas forças até então reprimidas que encontraram na revolta histórica

sua forma mais atual de manifestação: a Arte-Revolta, que toma a revolta como princípio

de criação, e a criação como princípio de ação.

56 Albert Camus. O Homem Revoltado. Rio de Janeiro: Record, 2003, p. 327. 57 Mario Perniola capta bem esse preceito implícito no projeto de superação da arte e sua correspondente

realização entre os Situacionistas: “En vez de sublimarse en el arte, el deseo debe tender hacia la

formulación de un proyecto que haga posible su realización”. Cf. “El concepto de ‘situación’”, in Los

situacionistas: história crítica de la última vanguardia del siglo XX. Acuarela & A. Machado, 2007, p.

29.

Page 57: critical art ensemble - UFRN

57

Por isso, na história da arte moderna e contemporânea é possível identificar a

atividade de uma série de indivíduos, movimentos, organizações e coletivos que se

esforçaram por fazer da práxis artística um gesto político. Para uma gama considerável

de artistas cujas linhagens remontam às vanguardas históricas, vale uma concepção de

arte que está relacionada intrinsecamente à vida, às venturas e às vicissitudes que a

existência comporta, o que exige ao lado da estética uma atitude correspondente no

mundo. Uma forma de se portar, agir, ser. Uma arte, portanto, vivida intensamente como

um componente existencial, criativo, rebelde, afirmativo e, como tal, político.

O artista moderno foi moldado pela conjunção de elementos advindos de dois

arquétipos históricos: o alquimista e o dândi. Na genealogia apresentada por Nicolas

Bourriaud, a figura típica do artista encarna a experiência da invenção de si por meio da

experimentação e da ascese, bem como, a busca por um estilo de vida autônomo,

despojado dos valores dominantes.58 Tanto o alquimista quanto o dândi concebem a

existência como um campo aberto à experimentação, consigo e com o mundo:

O artista moderno mostra que criar não significa para ele fabricar

objetos, e sim fazer avançar uma obra, mesclar produção e produto num

dispositivo de existência. Unindo práxis e poiésis, ele visa a uma

totalização da experiência, totalidade de que o homem foi desapossado

pela civilização industrial. A arte moderna se autocritica enquanto

atividade ‘separada’, em busca de uma unidade perdida.59

Durante algum tempo, esse elemento constitutivo do tipo de subjetividade artística

nutriu as prerrogativas éticas, estéticas e políticas que encontraram seu canal de expressão

mais radical no início do século XX, com a deflagração da guerra artística pelas

vanguardas.

Um século de transformações, conflitos, rupturas, inovações e lutas intestinas no

universo das artes resultou profundamente revolucionário para a livre expressão do

pensamento e da sensibilidade humana.60 A arte contemporânea deve muito ao impulso

58 Nicholas Bourriaud, “Uma genealogia do artista moderno”, in Formas de vida: a arte moderna e a

invenção de si. São Paulo: Martins Fontes, 2011, p. 39ss. 59 Nicholas Bourriaud, “O fim da arte: rumo a uma existência unificada?”, in Formas de vida: a arte

moderna e a invenção de si, p. 68. 60 “O movimento [surrealista] exerceu enorme influência sobre sucessivas gerações de artistas. Sua ênfase

na coletividade e na ruptura da distinção entre o privado e o público, o artista e o espectador, voltaria à tona

em outros modos de fazer arte, como, por exemplo, o situacionistmo e o movimento Fluxus. (...) Num certo

sentido, toda obra de arte que toma como objeto as operações da mente ou prioriza a subjetividade pode ser

vista como ‘influenciada’ pelo surrealismo. (...) O surrealismo foi um movimento internacional que

espalhou sua influência mediante a imigração de seus membros e a divulgação de suas ideias. Sua rede de

influência é potencialmente imensa”. Fiona Bradley, “O legado do surrealismo”, in Surrealismo. São

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58

transgressor, crítico e revolucionário de indivíduos e grupos que se beneficiaram do que

as vanguardas históricas das primeiras décadas do século XX produziram e deixaram para

a posteridade.

Portanto, na hora de fazer o balanço, o que a história da revolta atribui como

legado das lutas aos movimentos sociais no campo da política, no campo cultural (das

visões de mundo, dos comportamentos, dos estilos e dos modos de ser, sentir, desejar,

imaginar e pensar atuais) precisa reconhecer o legado das vanguardas artísticas, que se

deve sobretudo ao impulso inaugural da criação nas dimensões subjetivas que ninguém

jamais pode lhes negar ter aberto para o mundo político.

Afinal, se hoje o paradoxo aparentemente insolúvel colocado pela história da arte

se formula nos termos “tudo pode ser arte”, sem dúvida isso se deve ao movimento da

revolta que marcou igualmente as artes e a política mundial, e no interior do qual

multiplicaram-se estéticas, sentidos, valores, formas diferenciadas de pensar, sentir e

experimentar a vida e o mundo. Tanto que no pós-guerra, os movimentos de

contracultura, o Provos, os Beatniks, os Hippies, os Punks, os ecologistas, as feministas,

os movimentos negros e indígenas, juntos aos demais movimentos de experimentação e

resistência que perfazem desde então as lutas libertárias, atualizaram uma vez mais a

revolta mesclando os seus ideias políticos com as mais diferentes e criativas expressões

estéticas.61

Foi assim que, na sua escalada histórica, o movimento da revolta conseguiu

montar, com as pistas deixadas pelas vanguardas, uma autêntica máquina de guerra ao

fundir os dispositivos artísticos com os dispositivos políticos, e sem que poder algum

pudesse deter de todo, ainda agora, em vários recantos da Terra, uma quantidade imensa

de artistas e ativistas dinamizam e dão vida às suas criações com o desejo revolucionário,

passando adiante, uns aos outros, o legado de linhagens que se desdobram e constituem

o assalto à cultura da arte-revolta contemporânea.62

Paulo: Cosac & Naify, 2001, p. 73-74. Pode-se dizer o mesmo das repercussões do dadaísmo, do futurismo

e dos situacionistas, com as devidas ressalvas. 61 O Provos foi um movimento pioneiro nesse sentido contracultural. Cf. Matteo Guarnaccia. Provos:

Amsterdam e o nascimento da contracultura. São Paulo: Conrad, 2001. 62 O que aqui se conceitua como linhagens de arte-revolta, Stewart Home denomina “corrente utópica” da

arte no século XX, cuja genealogia remonta às heresias medievais: “Percebendo isso, é fácil distinguir uma

tradição vinda do Livre Espírito, pelos escritos de Winstanley, Coppe, Sade, Fourier, Lautréamont, Wiliam

Morris, Alfrefd Jarry, atravessando o Futurismo e o Dadá – e depois o Letrismo, via Surrealismo,

continuando através dos vários movimentos situacionistas, Fluxus, Mail Art, punk rock, Neoísmo e cultos

anarquistas contemporâneos”. Cf. Assalto à cultura: utopia subversão guerrilha na (anti) arte do século

XX. São Paulo: Conrad, 2004, p. 14-15.

Page 59: critical art ensemble - UFRN

59

A MÁQUINA DE GUERRA ARTÍSTICA

A relação da arte com a crítica tem uma história e ela se confunde com a própria

modernidade. Ao invés, porém, de relacionar unicamente a dimensão artística com a

crítica, será melhor perguntar sobre os fluxos da crítica que, na arte, livre de quaisquer

racionalismos, encontra seu lugar de expressão por excelência como acontecimento

estético. Afinal, se a arte é o espelho no qual uma época pode se ver refletida, talvez

tenhamos que nos perguntar o que aconteceu na história recente para que o Critical Art

Ensemble pudesse existir. Tal pergunta lança o pensamento na busca pela nomadologia

da arte que encontra na revolta seu impulso criador.

A fim de melhor esclarecer as ligações da arte com a política exploradas

criticamente por diversos coletivos da atualidade, em especial o Critical Art Ensemble, e

de como o movimento da arte-revolta se desenvolveu até o presente, montando sua

máquina de guerra, cumpre, então, realizar um breve resgate histórico dos movimentos

que fizeram do gesto artístico uma reivindicação política, e da resistência uma guerrilha

artística.

Arte e Política

A arte não é bem-vinda onde impera a tirania, a não ser para dar cores à glória dos

poderes, quando então perde sua mais nobre função, que é atribuir um sentido elevado à

condição humana. Realmente, a conquista da liberdade artística tem atrás de si uma longa

história de silenciamentos, incompreensões e ameaças, e nos casos mais infelizes,

tragicamente maculada por ostracismos, prisões e assassinatos.

Se na modernidade a arte tornou-se livre, isso aconteceu devido à incessante

recusa de uma legião de artistas, literatos e poetas em continuar reproduzindo com

variações meramente estilísticas as mesmas tendências dominantes encontradas na esfera

da cultura. Muitos tiveram que camuflar suas reais intenções, produzir pequenos desvios,

ousar quase imperceptivelmente, enquanto esperavam o momento propício para a

revelação completa da grande obra, que quase sempre coincidia com o calor das

revoluções sociais.

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60

Seguindo uma tendência desviante nas artes e nas letras, algumas subjetividades

radicais iniciaram um movimento subterrâneo na cultura ocidental e deixaram suas

pegadas no caminho que conduziu as artes para além de todas as fronteiras. Hoje, ao lado

de personalidades eminentes que contribuíram para a liberdade de pensamento na

filosofia e nas ciências, figuram artistas como Caravaggio, Goya, Poe, Baudelaire,

Courbet e Dostoiévski, só para mencionar alguns nomes conhecidos de uma série

histórica de gênios malditos que celebraram as saturnais da revolta.

Imagem 2 – Francisco Goya. El sueño de la razon produce monstruos, 1797-1798.63

A promessa de uma arte autônoma que, no Século das Luzes, era um mero ideal,

tornou-se uma realidade no século XIX. A burguesia em ascensão, perseguindo uma arte

livre dos imperativos religiosos, empunhou a bandeira com o lema l’art pour l’art ao

mesmo tempo em que lutava pela valorização da razão e da ciência. A consciência

histórica burguesa deu provas de que a revolução haveria de ser social, política e

63 “Esta água-forte do artista adormecido, ameaçado por rostos irreais, pretendia ser a primeira obra do ciclo

Caprichos”. Rose-Marie & Rainer Hagen. Francisco Goya. Taschen, 2004, p. 34.

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61

ideológica, ou não seria nada. Assim, enquanto cabeças rolavam no cadafalso, com algum

esforço a burguesia conseguiu libertar o gênio artístico, mas tão só para confiná-lo

imediatamente ao culto de uma elite formada por ilustres mecenas, déspotas esclarecidos,

eruditos, colecionadores e dândis.

Depois das primeiras investidas na formação e na propagação de uma arte social,

ainda no século XIX, com sua recusa da arte burguesa, tradicional e acadêmica,64 o

surgimento das vanguardas artísticas na aurora do século XX deu um claro sinal de que,

finalmente, a sensibilidade artística e poética havia escapado da influência aristocrática,

como foi durante muito tempo. E à semelhança do que aconteceu na época do Iluminismo,

que produziu artistas ousados como Goya, inspirados nos ideais revolucionários, chegou

o tempo em que personalidades como Tristan Tzara e André Breton tomaram a palavra,

desta vez abertamente, para declarar guerra em alto e bom som à sociedade burguesa

desde dentro. A arte, que há muito expressava a revolta com estilo, tornou-se enfim

eminentemente política.

Acerto de Contas

O século XX foi a culminância e um acerto de contas com o que o antecedeu. A

modernidade atingiu seu ápice e nele se revelaram os limites e as contradições do projeto

de civilização inspirado no racionalismo positivista. Não bastasse o projeto iluminista ter

se desvirtuado, o romantismo foi traído nos seus mais altos ideais utópicos, artísticos e

poéticos.65 Assim, o movimento romântico, que há mais de um século arrastava consigo

uma sensibilidade dilacerada entre os anseios nostálgicos que se recusavam a aderir à

modernidade e a esperança progressista da redenção futura, ganhou uma nova

oportunidade de se manifestar na crítica do esclarecimento, da razão e da técnica, os

64 Na Belle Époque, já havia um amplo debate nos círculos anarquistas e artísticos sobre o “artista engajado”

e sobre a função da “arte social”. Cf. Gaetano Mandredonia, “Arte e anarquismo na Belle Époque”, in

Michel Ragon, et. at. Arte e anarquismo. São Paulo: Editora Imaginário, 2001, p. 35-60. Desde 1840,

havia uma luta entre três concepções de arte disputando a hegemonia cultural na França: uma arte comercial,

uma arte social, e por fim, uma arte pretensamente pura. Cf. Nildo Viana, “Bourdieu: campo artístico e

fetichismo da arte”, in A esfera artística: Marx, Weber, Bourdieu e a sociologia da arte. Porto Alegre:

Zouk, 2007, p. 46ss. 65 “O romantismo – e o remoinho de imaginação utópica por ele desencadeado – é aqui analisado como um

movimento sociocultural profundamente enraizado na paisagem histórica europeia, entre fins do século

XVIII e meados do século XIX. Movimento sociocultural complexo e de múltiplas faces que não pode ser

reduzido, portanto, apenas às formas utópicas de pensamento e de criação. Em contrapartida, contudo,

dificilmente se compreende a mentalidade romântica se não se analisa o enorme potencial de energia

utópica por ela desencadeado”. Elias Thomé Saliba. As utopias românticas. São Paulo: Estação Liberdade,

2003, p. 14.

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62

mesmos elementos que, a despeito de tudo, conseguiram transformar o mundo sem no

entanto realizar os anseios humanistas.66

No auge das Guerras Mundiais as promessas iluministas colapsaram de uma só

vez, e o imenso poder das ciências mostrou-se igualmente implacável e destruidor. A

própria vida foi atingida em seu núcleo pelo progresso da razão. Agenciada por estados

totalitários e pelas indústrias capitalistas, à época, em franco desenvolvimento, a razão

técnica refez o mundo de acordo com os projetos de dominação. O processo de

desencantamento do mundo não poupou nem seu mais importante bastião, pois a razão,

tão logo tomou a dianteira dos rumos históricos, foi despida de seus ideais de

esclarecimento, libertação e fraternidade.67 Nunca antes a razão pura esteve tão engajada

em interferir no mundo prático.

A rápida expansão das estruturas do estado moderno e da indústria produtivista

foi acompanhada pelo sentimento de inadequação de massas inteiras de operários,

pensadores, movimentos artísticos e culturais.68 O poder se espalhou de uma ponta à outra

da sociedade e com ele o sentimento de revolta se intensificou. A nostalgia do passado

perdido mostrou-se conservadora demais para acompanhar o ritmo histórico, enquanto

parcelas consideráveis dos movimentos sociais tiveram que mostrar sua capacidade de

resistir formando frontes revolucionárias, outorgando-se o direito de avaliar o legado

moderno na intenção de julgar a exploração econômica e os acontecimentos das guerras.

Fiel em parte ao humanismo oitocentista, o pensamento crítico fez questão de demarcar

o compromisso de uma razão sensível com os ideais libertários.

Na fileira formada pelos movimentos revolucionários, ao lado das linhagens

anarquistas e socialistas, destacaram-se as vanguardas nas artes que, nas primeiras

décadas do século XX, deram voz a um pensamento crítico baseado em uma apreensão

sensível e estética do mundo. No contato com a dimensão artística, o Futurismo, o

Dadaísmo e o Surrealismo produziram discursos, práticas e subjetividades que deram

visibilidade a obras e meios de ação de teor contestatório, crítico e subversivo, fazendo

66 “O romantismo representa uma crítica da modernidade, isto é, da civilização capitalista, em nome de

valores e ideais do passado (pré-capitalista, pré-moderno). Pode-se dizer que desde a sua origem o

romantismo é iluminado pela dupla luz da estrela da revolta e do ‘sol negro da melancolia’ (Nerval)”.

Michael Lowy e Robert Sayre. Revolta e melancolia: o romantismo na contracorrente da modernidade.

São Paulo: Boitempo, 2015, p. 38-39. 67 De acordo com Max Horkheimer e Theodor Adorno: “O racionalismo das Luzes adota a mesma atitude

com relação aos objetos que o ditador com relação aos homens. Conhece-os para melhor os dominar”.

Citado por Olgária Matos, “O eclipse da razão”, in A Escola de Frankfurt: luzes e sombras do

Iluminismo. São Paulo: Moderna, 1993, p. 45. 68 Cf. Manuel Cruells. Los movimientos sociales en la era industrial. Barcelona: Editorial Labor, 1967.

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63

ecoar um grito que representou, junto ao coro dos movimentos revolucionários, a mais

alta expressão da revolta de seu tempo.

Imagem 3 – Luigi Russolo. La rivolta, óleo sobre tela, 1911. “Nossos quadros são futuristas na medida em que são o resultado de ideias éticas, estéticas, políticas e sociais absolutamente futuristas”.69

Avant-Garde

O fato agora reconhecido em todo o mundo de que a arte contesta os fundamentos

da realidade, coloca em suspenso o princípio ordenador do mundo e devolve o ser à sua

dimensão essencialmente criadora – desponta no fim de um processo complexo que tem

uma história, necessariamente múltipla, e que no entanto se fez de alguma forma especial

na vida e nos sonhos de jovens, artistas, poetas e escritores, visionários, utópicos, amantes

e loucos, que dia e noite deram voz e corpo ao impulso primitivo elevado à máxima

potência, como para testemunhar o crepitar da revolta ante um mundo perdido em seus

próprios paradoxos.

Com o Futurismo, o Dadaísmo e o Surrealismo a história da arte atingiu seu ponto

crítico no qual o apelo do ser, em resposta ao clamor das massas, tingiu as pinturas e os

poemas com as cores da revolta. Ao longo de um processo de amadurecimento histórico,

69Cf. Sylvia Martin. Futurismo. Madrid: Taschen, 2005, p. 38-39.

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64

a sensibilidade poética, a imaginação artística e o espírito revoltado fundiram-se até que

as portas da percepção foram definitivamente abertas. Pouco a pouco, a revolta tornou-se

consciência poética, artística e política. A princípio, nas mentes de indivíduos animados

por uma singularidade radical, depois, potencializada coletivamente nos movimentos de

vanguarda, nos quais a psicoesfera artística, liberta de quaisquer constrangimentos

formais ou morais, foi definitivamente lançada no espaço infinito da imaginação.

Imagem 4 – Os Futuristas italianos em frente à sede do jornal Le Figaro, Paris, em fevereiro de 1912. Da esquerda para a direita: Russolo, Carrà, Marinetti, Boccioni e Severini.70

O futurismo tomou a dianteira no processo de modernização das artes, louvou a

velocidade, as máquinas, colocou o homem no centro do destino e com isso afirmou seu

ímpeto modernista face à tradição. Assim, foi o primeiro movimento artístico do século

declaradamente político.71 No entanto, a algaravia iniciada por Marinetti, embora tenha

sido compartilhada também por anarquistas, mostrou-se gradativamente comprometida

com ideais belicistas mais afinados com as conquistas militares, tecnológicas e políticas

do que com o espírito libertário. No Manifesto Futurista publicado em 1909 no jornal Le

Figaro pode-se ler essa passagem: “Glorificamos a guerra – a única higiene do mundo –,

o militarismo, o patriotismo, o gesto destrutivo dos portadores da liberdade, as belas

70 Sylvia Martin. Futurismo, p. 7. 71 “A arte, ele [Marinetti] acreditava, fundira-se com a ação política”. Richard Humphreys, “‘A guerra:

única higiene do mundo’”, in Futurismo. São Paulo: Cosac & Naify, 2001, p. 65.

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65

ideias pelas quais vale a pena morrer e o desprezo pela mulher”.72 O chamado “teatro de

ação” futurista apoiou o esforço de guerra estimulando os artistas a exprimir a beleza e o

“esplendor da conflagração”. As inovações nas formas de manifestação artística com seu

pioneirismo nas performances disruptivas73 não resultou na formação de uma resistência

artística. Antes o contrário. O grupo de Marinetti revelou sua verdadeira face na idolatria

do Estado e da guerra, e com isso, o impulso da revolta inicial que aparentemente estava

na origem do movimento foi traído e não logrou construir algo que excedesse sua adesão

ao fascismo.

Imagem 5 – Alfredo Ambrosi. Retrato de Benito Mussolini com uma vista de Roma ao fundo, 1930.74

72 Cf. Richard Humphreys, “Crash: tempo, máquinas de sexo e manifesto de fundação”, in Futurismo, p.

11. 73 “In Futurism, then, performance became the privileged paradigm for artistic and political operations in

the public sphere. More than painting, sculpture or literature, performance constituted a space of shared

collective presence and self-representation. The Futurism desire for dynamism, activation and emotional

arousal is repeated in innumerable avant-garde calls of subsequent decades, when performance was

perceived as able to rouse emotion more vividly than the perusal of static objects”. Claire Bishop. Artificial

Hells: participatory art and the politics of spectatorship. New York: Verso, 2012, p. 48. Para maiores

detalhes, cf. “Provocation, Press and Participation”, p. 42-49. 74 Cf. Sylvia Martin. Futurismo, p. 24.

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66

Seria necessário ainda encontrar as forças externas à esfera artística constituída

para poder desferir o golpe contra a arte régia e libertar toda a potência criadora recalcada

aí sob a égide burguesa. O futurismo, que pela primeira vez ousou montar a máquina, por

mais que tenha vinculado a arte com a guerra, não conectou as peças corretamente. Ao

invés de potencializar a revolta com forças capazes de liberar a máquina artística, preferiu

vincular-se à violência e à guerra sob um projeto de dominação que lhe conduziu para os

braços de ferro do fascismo, tornando-se assim uma arma de seu aparelho. Não demorou,

Marinetti e Mussolini deram-se as mãos deixando para trás os anarcofuturistas russos.75

Já o dadaísmo, justamente por ter se colocado desde o início frontalmente contra

a guerra empreendida pelos estados, não perdeu tempo e conectou a revolta, livre de todas

as formas tradicionais, diretamente às potências do caos, e assim, assumindo o risco de

ser tragado pelas imensas forças liberadas no processo, conseguiu montar a máquina de

guerra artística com êxito. Mas isso tão só porque fez da revolta contra a guerra do Estado

uma potência capaz de destruir a arte burguesa em seu núcleo, devastando o campo (com

suas regras, convenções e formalidades) para dar vazão enfim à livre criação. Mais do

que realmente canalizadas pelos dadaístas, as potências do caos foram liberadas ao

mesmo tempo em todos os sentidos. Com esse golpe de mestre, Tristan Tzara e seus

parceiros aliaram-se ao caos sem pensar duas vezes para retirar dele uma potência

intempestiva e devastadora que tentaram direcionar contra os pilares da civilização, a

começar pela arte.

O Grito Dadaísta

O supremo ato dadaísta, a completa recusa do mundo e da arte, deflagrou se não

a ruína do mundo, ao menos o início de uma guerra sem fim contra todo autoritarismo,

na sociedade e no espírito.

O grito rebelado pelo movimento dadaísta foi uma resposta imediata à tragédia da

Primeira Guerra Mundial que havia convocado a juventude para compor as fileiras de um

teatro de horrores no qual desfilavam lado a lado as maravilhas do progresso e da morte.

75 Interessa neste ponto a relação do Futurismo com a máquina de guerra artística. Em termos históricos, o

movimento é muito rico e variado. “O Futurismo vai além da pintura, da poesia e da música. Cria também

moda e arquitetura e, talvez mais importante, uma política, que funde todas as outras atividades futuristas

numa totalidade redescoberta (...). Desconsiderar a política futurista como sendo fascista é tão comum

quanto incorreto. Nos seus primórdios, o Futurismo foi bastante influenciado pelos escritos de Proudhon,

Bakunin, Nietzsche e, especialmente, Georges Sorel”. Stewart Home. Assalto à cultura: utopia subversão

guerrilha na (anti)arte do século XX, p. 16.

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67

Com esse gesto, repetido em Berlim, em Zurique, depois em Paris e em Nova Iorque, o

dadaísmo colocou em funcionamento uma máquina de guerra artística com forte apelo ao

choque, ao distúrbio e à confusão. Com o passar do tempo, multiplicou a crítica, a ironia

e a negação de tal modo que nem a contradição, nem o paradoxo e o paroxismo

mostraram-se capazes de lhe deter.76

Dada é uma tempestade que eclode sobre a arte como a guerra sobre os

povos, um fogo de revolta e audácia. Ele vai opor sua loucura à desrazão

universal, e desenvolver uma filosofia do não. Dada se quer

simultaneamente subversivo e terrorista. Nesse período em que a

civilização ocidental soçobra na carnificina e no horror da guerra, e com

ela todos os valores burgueses sobre os quais ela repousa, o dadaísmo

ataca os próprios fundamentos dessa sociedade. Pisoteia os valores,

abole todas as concepções fundamentais de sua época, combate a lógica

que permite justificar o assassínio e a mutilação de milhões de homens,

ataca a ciência considerada como máquina de matar. Toma por alvo a

arte, a literatura, a ideologia burguesa, questiona o conjunto da

organização social, e duvida de tudo. 77

Em um mundo que reduziu a vida a nada, qualquer ato diferente estava autorizado.

Seguindo a lógica da urgência, seria um direito de qualquer pessoa determinar-se a

destruir um mundo doravante sem valor. Os golpes se seguiram nas artes plásticas, na

poesia, na música e em cada uma das formas de expressão conhecidas e praticadas então.

Uma a uma, as artes foram submetidas à decomposição, à fragmentação, à sublimação da

pulsão de morte, do instinto de crueldade.

A revolta fez valer sua capacidade criativa e inovadora no campo estético de

maneira inusitada e radical. De certa forma, os dadaístas se sentiam sobreviventes da

guerra empreendida pela civilização, perdida que estava nos labirintos da demência

humana. A ruptura com as formas figurativas, a decomposição imposta às linguagens, a

demolição dos fundamentos, a des/montagem do discurso, das imagens e da realidade,

cada ato desses exigia uma obstinação somente comparável à de um homem que escapa

de uma sessão de tortura com a ânsia de vingar-se com todas as suas forças.78 O

romantismo jamais teria abrigado em seu meio uma sensibilidade tão brutal e violenta.

Seria mero acaso o impulso vital eclodir com tamanha intensidade e virulência? Como

explicar um acontecimento dessa magnitude? Afinal, quantas guerras não presenciaram

76 Ver Dietmar Elger e Uta Grosenick (Ed.). Dadaísmo. Taschen, 2010. 77 Dominique Berthet, “Dada, nem Deus nem Arte”, in Michel Ragon, et. at. Arte e anarquismo, p. 63-64. 78 Des/montagem, termo empregado por Norval Baitello Junior ao conceituar a atividade recorrente nos

círculos dadaístas de decompor as formas culturais em suas partes elementares. Cf. Dadá-Berlim:

des/montagem. São Paulo: Annablume, 1993.

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os poetas e artistas séculos afora? E por que só então a revolta se prontificou a deflagrar,

em revanche, uma guerra total no espírito da época? Não há como saber. O certo é que o

grito dadaísta se fez ouvir nos quatro cantos do mundo ocidental, acompanhou as rajadas

das metralhadoras com o sem sentido das glossolalias, explodiu as imagens com suas

colagens, tornou o caleidoscópio feito com suas pinturas o espelho quebrado no qual a

civilização se viu despida de todas as ilusões.

Imagem 6 – Raoul Hausmann. ABCD, colagem, 1923-1924.79 “Não é o Dada que é absurdo – mas a essência da nossa era que é absurda”. – Os Dadaístas.

Na história da arte moderna, o efeito dadaísta teve as mesmas proporções de um

apocalipse, depois do qual só restaria a redenção. A intenção era reduzir tudo a nada e

deliberadamente destruir os pilares da civilização, a começar pela arte, onde os homens

sublimes esperavam encontrar a beleza, a eternidade, um valor superior antes acessado

somente pela via divina. Contra Deus e o Homem, os dadaístas opuseram o gesto radical

da negação.

79 Cf. Dietmar Elger e Uta Grosenick (Ed.). Dadaísmo, p. 41.

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Imagem 7 – Grupo Dadaísta. Da esquerda para a direita: Paul Chadourne, Tristan Tzara, Philippe Soupault e Serge Charchoune. Na frente: Man Ray, Paul Éluard, Jacques Rigaut, Mme Soupault e

Georges Ribemont-Dessaignes.80

A Super-Realidade

Assim, no cenário da Primeira Guerra Mundial, foi o dadaísmo que bradou a

revolta contra o belicismo na tentativa desesperada de colocar a vida em seu devido lugar.

A fúria do movimento, direcionada ao mundo que reduziu o valor da vida a nada, insistiu

em uma abordagem puramente negativa da arte: desfez os versos, reduziu o poema a

glossolalias e palavras desconexas, rasgou os cânones literários e tornou visível a

desrazão, ora nas colagens feitas por elementos encontrados ao acaso, ora nas atitudes

desafiadoras do condicionamento corpóreo, no uso subversivo da voz e das palavras, e

nas posturas consideradas ridículas por espectadores perplexos com as performances

polemológicas dos dadaístas.81

Coube aos surrealistas, entretanto, a tarefa de atribuir um caráter positivo ao

dadaísmo. Não por acaso, o movimento surrealista respondeu ao apelo que, no

movimento dadaísta, apareceu de forma incompleta e inconsciente. O que o surrealismo

80 Imagem disponível em https://steemkr.com/film/@emily-cook/dada-and-film-rebellion-of-the-objects-

the-curious-and-bizarre Acesso 23 de julho de 2019. 81 “Assim, enquanto outros Dadás, especialmente Paris e Zurique estiveram/estavam/estariam ocupados em

‘épater le bourgeois’ através da literatura e da arte, mesmo que explodindo seus limites, Dadá-Berlim não

utiliza apenas a literatura e a arte como matéria-prima, mas a propaganda, o jornal, a notícia, a informação,

as figuras políticas e a própria práxis política”. Norval Baitello Junior, “República Dadá vs. República de

Weimar”, in Dadá-Berlim: des/montagem, p. 83.

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fez, quanto a isso, foi fornecer uma consciência poética positiva ao que havia sido

colocado pelos seus antecessores de forma puramente negativa e impulsiva, afinal, a

exposição simples e direta ao caos nem sempre evocava uma atitude criadora, tão

necessária quanto urgente para retirar a humanidade de seu estado de letargia a que a

guerra havia levado. Desiludido assim pela incapacidade do dadaísmo em levar a arte a

outro patamar que superasse a pura negação, o surrealismo, com Breton, logrou propor

objetivos e estratégicas diferenciadas.82

Imagem 8 – Os Surrealistas em Paris, 1933. Da esquerda para a direita: Tristan Tzara, Paul Éluard, André Breton, Hans Arp, Salvador Dalí, Yves

Tanguy, Max Ernst, René Crevel e Man Ray. Foto por Anna Riwkin-Brick.83

Contrapondo-se ao mundo racional, o movimento surrealista, em vez de se aferrar

à negação de qualquer sentido, propôs o resgate das imensas potências arcaicas alojadas

no inconsciente, com a convicção de que, uma vez libertas, poderiam dar vazão à

produção do “maravilhoso”, um mundo reencantado. Na história da arte e da poesia, de

82 Depois do rompimento de Breton com Tzara, um pequeno grupo formado por artistas e escritores em

torno da revista Littérature deu início a uma série de experimentos que envolviam “temporada dos sonos”,

investigação sobre as potencialidade do transe e dos estados oníricos da mente, o que deu origem ao

surrealismo em sua essência. “A ênfase era no experimentalismo, com a exploração sistemática de uma

criatividade que pudesse oferecer alternativas ao anarquismo dadá, tão estimulante, mas em última análise

destrutivo”. Fiona Bradley, “‘Como duas ondas quebrando uma na outra’. Surrealismo e Dadá”, in

Surrealismo, p. 19. 83 Imagem disponível em https://www.culturabrasil.org/breton.htm Acesso 23 de julho de 2019.

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acordo com Edgar Morin, o surrealismo encarna uma revolta que se compara ao

renascimento do hiperespírito poético.84

Na leitura histórica da modernidade feita pelo surrealismo, a promessa iluminista

da razão fracassou em libertar o homem, e como não bastasse, encerrou a vida em

organizações sociais aparentemente inamovíveis de cujas instituições foram excluídas a

poesia, a imaginação, a sensibilidade e o desejo. Justo o que, desde o romantismo,

representava parte integral do sujeito definido em termos poéticos e artísticos, concepção

esta resgatada pelos surrealistas. De forma semelhante à visão de mundo surrealista,

Ernesto Sabato descreve a que ponto a civilização chega com a “tragédia da cultura”:

Nesse empobrecimento se atrofiam as capacidades profundas da alma,

tão atraentes para a vida humana quanto os afectos, a imaginação, o

instinto, a intuição para desenvolver, ao extremo a inteligência

operativa e as capacidades práticas utilitárias. (...) agora, diante da

vulnerabilidade, ou o fracasso, da Razão, da Política e da Ciência, o ser

humano oscila no vazio sem encontrar onde se enraizar no céu nem na

terra, enquanto é sufocado por uma avalanche de informação que não

pode digerir e da qual não recebe alimento algum.85

A humanidade teria perdido assim parte considerável de si por ter relegado a

poesia e a sensibilidade ao degredo. O fato do mundo ter sido refeito pelo princípio da

eficácia total, pela razão calculadora e pela vontade de poder incondicional, resultou em

uma realidade sem alma, incolor, desnaturada e fria. Por um lado, a arte, separada da vida,

foi reduzida a mera expressão formal, e por outro, a vida cotidiana continuava submetida

aos imperativos da razão mercantil e utilitária. A conclusão vitalista de tons românticos

conduziu o surrealismo à dimensão política. Seu apelo poético apostou na desrazão e

colocou em cena a noção da vida como eterna aventura, sonho e jogo. A única saída para

a realização da super-realidade seria a expansão do maravilhoso para além da fronteiras

da razão, dentro e fora do sujeito. Daí a valorização da escrita automática, do sonho, do

devaneio, do acaso, do jogo, que teriam como fonte de criação as inesgotáveis

potencialidades do inconsciente.

84 Segundo Edgar Morin, houve duas revoltas históricas da poesia. A primeira foi a do romantismo, e a

segundo foi a do surrealismo. Ambos movimentos insurgiram-se contra os imperativos prosaicos que

sobrepuseram-se sobre a vida, deixando de lado os aspectos poéticos constitutivos da experiência humana.

Cf. “A fonte de poesia”, in Amor, poesia, sabedoria. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2005. 85 Ernesto Sabato. La resistencia. Buenos Aires: Editorial Planeta, 2000, p. 11 da segunda carta.

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Imagem 9 – Salvador Dalí. Criança geopolítica observando o nascimento do homem novo, 1943.86

A Revolta Artística

Por suposto, as vanguardas artísticas haviam incorporado uma forma de arte que,

comparada aos movimentos anteriores, tornou-se algo mais do que simplesmente uma

expressão das inquietações sociais representadas em pinturas e livros. Realmente, com as

vanguardas, no campo das belas artes e mais especificamente da pintura, o universo das

artes continuou o processo de inovação nas formas de expressão e nas técnicas, dando

sequência ao que o impressionismo iniciou no final do século XIX, o que sem dúvida foi

fundamental na formulação imagética e portanto estética correspondente às visões de

mundo que tentavam a todo custo acompanhar os ritmos dos acontecimentos históricos

recentes. Na poesia, o rompimento com as formas canônicas, a abolição das rimas e dos

versos métricos, por mais que pudesse parecer uma simples questão formal, na realidade

86 Gilles Néret. Dalí. Germany: Taschen, 2002, p. 57.

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continha uma reivindicação muito mais profunda de vozes que, ao desmantelarem as

estruturas da linguagem, queriam extrair da literatura e dos poemas sua potência

transformadora como para realizá-la concretamente na vida cotidiana.

As pretensões das vanguardas não eram modestas. Em resposta ao belicismo

louvado nas guerras, o dadaísmo propôs destruir os pilares da civilização por dentro,

enquanto o surrealismo, em seguida, atribuiu a si a tarefa de reconstruir o mundo a partir

de seus próprios escombros. Para realizar o ato supremo da destruição, o dadaísmo expôs

de uma só vez o mundo a seu absurdo a partir da liberação das forças do caos, tornando

a arte o espelho quebrado no qual o sonho mau da modernidade deveria se refletir.87 O

surrealismo, a fim de edificar a realidade acima da fria razão, invocou as forças criadoras

da poesia e do inconsciente tornando a arte o crisol alquímico no interior do qual deveriam

fundir-se todas potências do “maravilhoso”.88

Com tais objetivos, as rupturas inauguradas pelos movimentos dadaístas e

surrealistas promoveram rachaduras na cultura burguesa ao direcionarem seus ataques ao

princípio de realidade que sustentava a visão de mundo dominante e suas crenças

progressistas, claramente falaciosas se colocadas face ao horror perpetrado pelos estados-

nações nos processos de colonização e nas guerras mundiais. O movimento da revolta

que animou as vanguardas foi, desde então, direcionado contra o princípio de realidade e

os fundamentos ordenadores do mundo que sustentavam todo o edifício da civilização. O

mundo moderno foi atacado diretamente nas suas bases ideológicas inconscientes a fim

de que suas razões de ser e as regras que lhe caracterizam, colocadas ante uma indagação

poética profunda, revelassem as inconsistências, as contradições e os paradoxos contidos

no próprio princípio de realidade.

Nada escapou ao furor da revolta artística, que começou no psiquismo individual,

para, logo em seguida, se expressar no mundo cultural e político. Nem o ego e as ilusões

pessoais, nem as esperanças futuristas ou revolucionárias foram poupadas. A revisão

deveria ser completa e passar pelo crivo da sensibilidade poética. Os ataques que as

vanguardas direcionaram contra a civilização ocidental expuseram o reino das

87 “Uma obra de caos não é certamente melhor do que uma obra de opinião, a arte não é mais feita de caos

do que de opinião; mas, se ela se bate contra o caos, é para emprestar dele as armas que volta contra a

opinião, para melhor vencê-la com armas provadas”. Gilles Deleuze e Félix Guattari, “Do caos ao cérebro”,

in O que é a filosofia? Rio de Janeiro: Ed. 34, 2004, p. 263. O caos contra a opinião, mas também contra

a ideologia, o princípio de realidade, os fundamentos metafísicos, sociológicos e políticos atribuídos ao ser. 88 “O período de 1922-1924 viu os membros do grupo de Littérature empreenderem uma resoluta busca do

maravilhoso. Encontravam-se em cafés ou em suas casas e ateliês para escrever e falar em estado de transe”.

Fiona Bradley, “A imagem surrealista automática”, in Surrealismo, p. 20.

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representações e das ideologias a uma inquirição profunda como forma de desferir um

golpe no âmago do espírito racional e sua pretensa posse da verdade última.

Imagem 10 – Johannes Baader. O grande plasto-dio-dada-drama, 1920. Fotografia da "Primeira Feira Internacional Dada".89

Desde então, o esforço coletivo de incontáveis artistas fez com que o princípio da

realidade explodisse por dentro (nas subjetividades) e por fora (no campo social). Uma

vez aberto o campo das percepções sensíveis, a arte encontrou sua forma de se multiplicar

pelo mundo – saiu dos museus, espalhou-se pelas ruas, alojou-se em pequenos aposentos

e, por fim, passou a circular entre gentes simples cuja sensibilidade era mais próxima

daqueles que levavam o mundo nas costas e colocavam as máquinas para funcionar,

homens e mulheres, crianças, jovens e velhos que sonhavam com um trabalho digno e

melhores condições de vida. Com esse ímpeto, multiplicaram-se manifestos, libelos,

pinturas, poemas e performances, em suma, formas discursivas, práticas, sonoras e visuais

que se disseminaram nas sociedades ocidentais. Como partículas de universos

89 Cf. Dietmar Elger e Uta Grosenick (Ed.). Dadaísmo, p. 59.

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incorpóreos revolucionários, passaram a desafiar a noção de realidade onde quer que

chegassem. Favorecendo-se dos meios técnicos de reprodução, circulação e consumo das

artes, bem como das novas formas de expressão artísticas, os movimentos animados pelas

vanguardas abriram espaço no campo dos possíveis históricos ao trabalharem uma nova

práxis artística no campo social e político.

Desregramento dos Sentidos

Nesse sentido, as vanguardas marcaram a história da arte de uma maneira muito

mais profunda e complexa do que uma mera análise formal e estética poderia demonstrar.

O que as vanguardas colocaram em questão foi o estatuto político da arte em relação à

vida social, e não em referência a questões formais ou técnicas internas à esfera da arte.

O que faz toda a diferença. Assim, ao mesmo tempo em que inventavam novas formas de

expressão, as vanguardas questionaram a suposta autonomia da arte de forma prática,

interferindo no espaço público com reivindicações de caráter político, ainda que de uma

perspectiva considerada artística. As rupturas formais, os experimentos na composição e

nas técnicas artísticas, desse ponto de vista, nada mais foram do que efeitos colaterais da

crítica central direcionada ao distanciamento da arte em relação à vida.

Esse distanciamento se deu ao longo de um processo iniciado no século XVIII,

com o ideal iluminista da autonomia da arte em relação aos imperativos religiosos, que

foi desenvolvido posteriormente no século XIX com a realização do ideal l’art pour l’art,

quando finalmente a arte passou a girar em torno de si mesma como uma esfera separada

na qual tentava proteger-se de intromissões repressoras de sua potência criadora.90

Posteriormente, no século XX, as mutações formais e a recusa em representar a realidade

que resultariam mais tarde no abstracionismo puro, confirmavam um distanciamento

estético e formalista cada vez maior do modernismo em relação à realidade, sintoma de

que a arte, não somente havia se isolado em uma esfera separada, como também, não

nutria qualquer interesse na realidade, manifestando assim uma atitude tipicamente

90 Em um artigo, Gaetano Manfredonia apresenta um breve histórico da politização da arte na França, no

período que marca a passagem do século XIX para o século XX e que antecede a emergência das

vanguardas. “De fato, na virada do século, a atividade que os libertários exibem em favor da arte social vai

ser orientada essencialmente em três direções que, ainda que coincidindo parcialmente, não se

sobrepunham: a primeira visando a desenvolver nos meios populares toda uma série de práticas cujo

objetivo era colocar a arte ao alcance de todos; a segunda preconizando o desenvolvimento de práticas

artísticas no próprio seio da classe operária; a terceira, enfim, esforçando-se para valorizar formas de

criações artísticas populares”. Cf. “Arte e anarquismo na França da Belle Époque (1880-1914)”, in Michel

Ragon, et. at. Arte e anarquismo, p. 51.

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evasiva e portanto infecunda. Nesse cenário, coube às vanguardas colocar em xeque a

arte burguesa rompendo os limites impostos à arte como tal para, desta maneira,

reaproximar a poiesis, a dimensão prática implícita na atividade estética (o seu caráter

criador) da dimensão da vida cotidiana propriamente dita, premida pelos poderes

constituídos.

Imagem 11 – Raoul Hausmann. O crítico de arte, colagem, 1919/20.91

Com o dadaísmo, a recusa da arte burguesa tornou-se uma negação completa da

arte separada da vida. A interpretação radical do movimento foi a de que não havia mais

sentido fazer arte enquanto milhões de pessoas morriam nos campos de batalha ou

perdiam suas vidas servindo a um mecanismo cego. Paradoxalmente, os dadaístas

quiseram abolir a arte valendo-se de meios artísticos. A estratégica escolhida para demolir

a arte por dentro, nas suas vertentes extremistas, foi expor as linguagens verbais, visuais

e sonoras diretamente ao caos, sem no entanto mediar esse processo com algum sentido.

Na operação dadaísta, o real, despido assim de seus preceitos figurativos e significantes,

91 Dietmar Elger. Dadaísmo, p. 37.

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eclode por meio de signos e, embora possa preencher um espaço, na realidade o faz para

esvaziar ou mesmo anular qualquer possibilidade de reconversão de sentido. A busca pelo

sentido que está vinculado à exposição ao absurdo desta maneira é no mais das vezes

reflexo, porém está fadada ao fracasso de antemão, ao menos nos termos propostos pelo

procedimento. Por si só tal operação sobre o real pela via da liberação do caos na arte,

ainda que possa implicar, por parte do artista e do espectador, uma atitude reativa, seja de

questionamento radical, seja de repulsa ou desprezo, resulta em definitiva em pura

negatividade. Por isso, o dadaísmo ficou conhecido como um movimento niilista, embora

seja possível reconhecer caracteres anárquicos nele.

O dadaísmo levou às últimas consequências a fórmula proferida por Rimbaud do

desregramento completo de todos os sentidos. O resultado desta interpretação literal foi

nada menos do que a ressurgência do instinto de morte nas artes de forma devastadora, o

que lhe custou a própria desintegração como movimento artístico, pois as forças liberadas

no processo voltaram-se contra si (“o dada é anti-dada!”).92 O surrealismo reconheceu o

papel do dadaísmo na emancipação das artes de seus preceitos tradicionais mas não se

deteve ante a função puramente destrutiva proposta e praticada pelo dadaísmo, a começar

pela nova interpretação da fórmula vidente do jovem Rimbaud. Para escapar do impulso

de autodestruição liberado pelo dadaísmo em resposta à guerra mundial e ao mundo

burguês, o surrealismo vinculou a fórmula de Rimbaud ao princípio do prazer, e ao invés

de colocar a poesia a serviço da destruição, propôs uma busca poética pela super-realidade

do “maravilhoso”.

Desta forma, em revanche à pura negatividade dadaísta, o surrealismo se insurgiu

igualmente contra a arte tradicional burguesa mas sem preconizar o fim da arte. A busca

pelo maravilhoso, na vida privada e coletiva, foi o lema surrealista para o necessário

reencantamento do mundo e da vida, tão fundamental quanto urgente em um mundo

administrado por burocracias e alimentado por uma forma tecnocientífica de pensamento

que, da perspectiva da vida, encontrava-se comprometido com a morte. Assim, enquanto

o dadaísmo propôs abolir a arte sem realizá-la, o surrealismo demarcou seu compromisso

com uma estética generalizada ao propor realizar a arte sem no entanto aboli-la. O

procedimento escolhido para efetuar os fins da criação de uma super-realidade foi o da

92 “Rebelião, sempre houve. Dada, mais do que o Surrealismo, radicalizou e proclamou a rebelião absoluta:

‘Os verdadeiros dadaístas são contra o Dadaísmo’, foi a conclusão a que chegou Tristan Tzara”. Carlos

Felipe Moisés, “Desconcerto concertado”, in O desconcerto do mundo: do renascimento ao surrealismo,

p. 330.

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livre expressão do desejo e das forças alojadas no inconsciente, no qual residiriam

potências profundas da vida humana que caberia libertar dos condicionamentos racionais

e conscientes a que estariam submetidas na vida cotidiana.93

Imagem 12 – René Magritte. Memória, óleo sobre tela, 1954.94

Assim, o ideal da arte pela arte, que premia o impulso criativo no formalismo e

nos referenciais canônicos da tradição, foi definitivamente superado pelas vanguardas

históricas, e desde então, a arte tem sido marcada pelo movimento criativo da revolta, a

um só tempo subjetiva, formal, estética e discursiva, bem como prática, social e política.

A arte do século XX, ao romper com a tradição e com a arte burguesa, passou a ser um

campo privilegiado de expressão da revolta que está na base do psiquismo moderno. A

93 “Em 1924, no Manifesto do Surrealismo e na revista La Révolution Surréaliste, Breton definiu o

automatismo como a prática artística surrealista mais importante, o principal caminho de acesso ao

maravilhoso: ‘Surrealismo. S. m. Automatismo psíquico puro, por meio do qual alguém se propõe a

expressar – verbalmente, utilizando a palavra escrita, ou de qualquer outra maneira – o verdadeiro

funcionamento do pensamento, na ausência do controle exercido pela razão, livre de qualquer preocupação

estética ou moral’”. Fiona Bradley, “A imagem surrealista automática”, in Surrealismo, p. 20-21. 94 Capa do livro Plínio Augusto Coelho (org.). Surrealismo e anarquismo: “Bilhetes surrealistas” de Le

Libertaire. São Paulo: Imaginário, 1990.

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partir de então, tanto nos rompimentos formais e na abordagem dos conteúdos

produzidos, quanto no gestos dos artistas de vanguarda, evidencia-se um forte caráter

político, reafirmado na produção e na discussão em torno das artes, da vida coletiva, da

cultura e até mesmo da revolução.

Rebeldes e Malditos

Nada disso teria como se realizar não fosse o movimento da revolta impulsionando

a criação de subjetividades rebeladas, inovadoras, contestatárias e afirmativas. Numa

época em que as pessoas, aos milhares, eram convocadas para lutar e morrer nos fronts

de batalha para satisfazer a vontade de tiranos – quem poderia imaginar que o impulso

renovador das artes nasceria nos devaneios de jovens poetas e artistas que encontraram

nas artes e na vida moderna imensas potencialidades ainda pouco aproveitadas pela

humanidade?

Na realidade, o movimento da revolta visto nas artes tem uma história bem antiga,

na qual se inserem as pinturas de Caravaggio e Goya na vertente das belas artes. Na

literatura moderna, a revolta aparece na escrita de Turguêniev, de Dostoiévski e antes

deles em Sade, enquanto na poesia a revolta está bem representada nas Flores do Mal,

entre o romantismo e o modernismo dos Paraísos Artificiais de Baudelaire, e no

simbolismo da Estadia no Inferno de Rimbaud com sua fórmula vidente do desregramento

completo de todos os sentidos. Na sequência histórica, o niilismo anárquico do

movimento dadaísta prolongou o legado da literatura e dos revolucionários russos, assim

como o Surrealismo foi um efeito da linhagem de poetas malditos que tem Baudelaire e

Lautréamont como patronos e Rimbaud como príncipe.

Com uma atenção bem direcionada, não é difícil identificar e reconhecer os

diversos focos de rebelião no pensamento, nas artes, na cultura e na política modernas.

No rico universo das artes contemporâneas, as multiplicidades de estilos e dispositivos

estéticos atualmente em uso nada mais são do que efeitos de um processo coletivo de

rupturas, transformações, adaptações, críticas e experimentações em torno do princípio

de prazer e da vontade de potência inerentes ao movimento da revolta. Com relação ao

exemplo das vanguardas da arte-revolta, Michel Onfray diz:

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Suas lições, sempre boas, ensinam a vontade radical de subversão,

desejo do advento de um real onde os prazeres e os desejos existiriam

em paz, reconciliados, onde a vida e as sensações, os sentimentos e as

emoções, os impulsos, os instintos e as paixões deixariam de ser

monstros a destruir para se tornar parceiros a domar. Lá onde o

princípio de realidade triunfou, sustentado por Tânatos, ator da história,

eles opuseram, mágico e magnífico, o princípio de prazer, turgescente

de um sangue insuflado por Eros. Sua atualidade permanece.95

Estética Generalizada

O cenário político montado pela arte moderna revelou-se fecundo quando as

vanguardas avançaram no campo da cultura ultrapassando os limites que até então

tentavam separar a esfera das artes do restante da vida. Ao enfatizar questões que

colocavam a normalidade da vida dominante em um estado de perpétua crise, a arte-

revolta das vanguardas deslocou o discurso para a esfera pública, tornando a palavra e o

gesto artísticos potencialmente políticos.

Sobre as relações estabelecidas entre a arte e a política no contexto das

vanguardas, Walter Benjamin chamou de estetização da política o caso da apropriação

fascista do Futurismo, e de politização das artes a resposta do Construtivismo socialista.

A denominada estetização da política levada a cabo pelos futuristas aconteceu, no entanto,

depois de se tornar um estandarte empunhado pelo fascismo. Na realidade, se a política

institucional se apropriou da estética foi porque na arte de vanguarda o teor e as intenções

das quais as obras são efeitos já haviam se tornado políticos e de interesse social.

Onfray questiona a validade dessa dialética benjaminiana pois, para começar, a

estética na política não é uma premissa do Fascismo e do Nazismo, haja visto que,

historicamente, onde houve governos lá também encontrava-se uma estética para conferir

imagens e símbolos gloriosos às vestes, aos estandartes e a todos os signos do poder.

Além disso, a arte, ainda que se queira livre dos imperativos políticos, mesmo assim não

deixa de ser um campo atravessado por forças culturais, necessariamente sociais e

políticas. Em um caso como no outro, o que se percebe é a íntima relação que se

estabelece entre a política e a estética, que no contexto do século XX, ora pende para o

uso político da arte, ora para a politização realizada na “arte pela arte” de questões sociais

95 Michel Onfray, “Por uma estética generalizada”, in A política do rebelde: tratado de resistência e

insubmissão. Rio de Janeiro: Rocco, 2001, p. 222.

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representadas na dimensão estética. A questão, no entanto, é mais profunda, e passa por

um esclarecimento teórico-político.

Onfray reconhece a distinção, já feita neste trabalho, da arte-revolta, que é

irredutível às ideologias, ao Estado, ao Capital. Nessa perspectiva, a tese de Benjamin

“reúne, mais do que opõe, o nazismo e o bolchevismo sobre o terreno da apropriação da

arte e de sua sujeição aos imperativos políticos”.96 Entretanto, o que Onfray denomina

uma estética generalizada consiste exatamente na mais ampla expressão da máquina de

guerra artística, que promove suas lutas por meio de criações estéticas no interior de suas

micropolíticas da criação.

Contra a estética particular, submetida aos imperativos separados, e

com muita frequência colocados como auxiliar do poder dominante, ela

[a estética generalizada] visa à ultrapassagem das oposições entre a arte

e a vida, a rua e o museu, não para fazer, como ocorre frequentemente,

da vida e da rua referências e critérios novos, mas para convocar a arte

e o museu a uma dinâmica ascendente.97

Vista em seu conjunto, a história das vanguardas deixa entrever um processo

incessante de transformações, experimentações e mudanças no sentido de uma estética

generalizada que, depois de descodificar as formas de expressão das artes tradicionais,

tomou a vida em sua totalidade como matéria a ser trabalhada pelo agenciamento artístico,

a começar pelo modo de viver dos próprios artistas, os comportamentos, as apropriações

do espaço, as relações com a realidade, as visões de mundo, para logo em seguida exceder

a dimensão individual e atrair nas linhagens da arte-revolta os componentes sociais, as

maneiras engajadas de se portar com relação ao que se passa no mundo, na cultura, na

política, que exigem um outro código social, mais aberto à criação. É nesse sentido que a

arte-revolta contribui para a formação de uma máquina de guerra libertária que faz da arte

a continuação da política por outros meios. “A arte que deixou de resistir deve perecer,

substituída por uma outra que, ela sim, resistirá. Nessa guerra, quando um cai, o seguinte

segura a bandeira”.98

96 Michel Onfray, A política do rebelde: tratado de resistência e insubmissão, p. 219. 97 Michel Onfray, A política do rebelde, p. 220. 98 “L’art qui a cessé de résister doit périr, remplacé par un autre qui, lui, résistera. Dans cette guerre, quand

l’un tombe, le suivant reprend le drapeau”. Michel Onfray. Politique du rebele: traité de résistance et

d’insoumission. Paris: Bernard Grasset, 1997, p. 253.

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Neovanguardas

No período pós-guerra, o caráter político explicitado nas vanguardas artísticas foi

retomado pelas novas gerações de artistas e ativistas de uma maneira ambivalente, por

vezes crítica mas também condescendente. O momento histórico exigia uma revisão do

trabalho desenvolvido até então.

Os estudiosos trabalham com a ideia de que os grupos de artistas, na Europa

ocidental e nas Américas, serviram-se do legado das vanguardas ora apropriando-se de

seus elementos a fim de atualizá-los ao contexto histórico, ora servindo-se da

originalidade crítica inerente às vanguardas históricas como prerrogativa para inovar

dando mais um impulso ao movimento revolucionário das artes modernas. “Em 1955,

Lionel Trilling já podia lamentar a ‘legitimação do subversivo’ numa universidade

pluralista, e, em 1964, Herbert Marcuse já condenava o pluralismo como um ‘novo

totalitarismo’”.99

A questão tornou-se problemática com a recepção das vanguardas na instituição

artística de então sem maiores constrangimentos. A admissão do legado vanguardista no

interior do establishment artístico, aparentemente um sinal de êxito de todo o esforço da

geração de Marinetti, Tzara e Breton, no entanto, podia significar também uma derrota,

pois a incorporação da arte vanguardista na instituição retirou-lhe o caráter transgressor,

que em parte perdeu em efeito. O que a princípio era pura transgressão política ou estética,

tornou-se forma institucionalizada, aceita, domesticada e, ademais, rentável

economicamente. Peter Burger identifica o problema:

A retomada das intenções vanguardistas com os meios do

vanguardismo não pode mais, num contexto modificado, sequer

alcançar o efeito limitado das vanguardas históricas. Dado que, com o

tempo, os meios com os quais os vanguardistas esperavam produzir a

superação da arte tenham adquirido o status de obra de arte – sua

utilização não pode mais, de modo legítimo, ser associada à pretensão

de uma renovação da práxis vital. Pormenorizando: a neovanguarda

institucionaliza a vanguarda como arte e nega, com isso, as genuínas

intenções vanguardistas.100

Isso sem dúvida foi motivo de ampla discussão entre os críticos e os artistas que

viveram a transição para o contexto das neovanguardas que se formaram nas primeiras

99 Hal Foster, “Contra o pluralismo”, in Recodificação: arte, espetáculo, política cultural, p. 33ss. 100 Peter Burger, “A obra de arte de vanguarda”, in Teoria da vanguarda. São Paulo: Cosac & Naify, 2014,

p. 109.

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décadas do pós-guerra. Para se ter uma ideia, o caráter ideológico protofascista do

Futurismo havia se esgotado nas realizações e nas desilusões desencadeadas pelas guerras

mundiais; os estilos Surreal e Dadá, desvirtuados de suas origens transgressoras e críticas,

foram incorporados não só pela instituição da arte, mas também pelas indústrias culturais

de então, já sob a égide da sociedade do espetáculo, como forma de propaganda; e mesmo

o deslumbre dos surrealistas com o comunismo foi renegado pelos dissidentes da ala

bretoniana.

Foi preciso esperar o surgimento das neovanguardas para que se pudesse dar início

à revisão histórica do legado artístico e político das vanguardas, tarefa que foi assumida

pela Internacional Situacionista, considerada a mais proeminente expressão da arte no

contexto das neovanguardas, e na qual se empreendeu a elaboração de uma consciência

artística que retomou a discussão proposta pelo Dadaísmo e pelo Surrealismo de forma

fiel, crítica e consequente no contexto da sociedade do espetáculo.101 Em 1974, Burger

afirmava que a recuperação das vanguardas pela instituição artística lançava a história da

arte em uma época pós-vanguardista. O crítico de arte só não contava com as proezas da

arte-revolta em se reinventar.

A Realização da Arte

Durante a década de 1960 a Internacional Situacionista produziu uma crítica

radical à sociedade do espetáculo a partir da história da poesia e da arte modernas.

Diferentemente de todas as ideologias existentes no mesmo período, a crítica situacionista

foi formulada com referência às atividades das vanguardas por considerar que, no legado

da arte moderna em geral e na poesia em especial, residia uma fórmula secreta a qual, se

colocada em prática, serviria para a realização das mais altas aspirações humanas.102

Ao considerar o homem um ser poético e, portanto, criador por excelência, a arte

moderna libertou o sujeito de todos os grilhões na expressão poética e nas artes. A questão

101 Hal Foster demonstra a “necessidade de novas genealogias da vanguarda que complexifiquem seu

passado e respaldem seu futuro”, e sugere “um intercâmbio temporal entre as vanguardas históricas e as

neovanguardas, uma relação complexa de antecipação e reconstrução”, o que parece ter sido feito na

discussão situacionista sobre o legado da arte moderna em relação à política, sob a perspectiva da arte-

revolta. Cf. Hal Foster, “Quem tem medo da neovanguardas?”, in O retorno do real: a vanguarda no

final do século XX. São Paulo: Ubu Editora, 2017, pp. 26 e 32. 102 “O ponto de partida era ‘a superação da arte’, realizável naquele momento ‘a partir da autodestruição da

poesia moderna’ (...): ‘Afinal, era a poesia moderna, desde há cem anos, que nos havia levado a esse ponto.

Éramos alguns que pensávamos ser necessário executar seu programa na realidade’ (...). Sem dúvida

alguma, Debord permaneceu fiel a essa intenção”. Anselm Jappe, “A prática da teoria”, in Guy Debord.

Petrópolis: Vozes, 1999, p. 69.

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a ser resolvida pelos situacionistas era a de saber como realizar concretamente na vida a

imensa capacidade poética do homem que, nas artes, já havia se realizado como prenúncio

revolucionário.

Imagem 13 – Eugène Delacroix. A Liberdade Guiando o Povo, óleo sobre tela, 1830.103

As imagens e os versos que a revolta artística e poética do século XIX haviam

plasmado nas obras legadas para a história foram recebidos pelos situacionistas de uma

maneira mais exigente do que o mais sério crítico de artes poderia supor. Para eles, uma

pintura como A Liberdade Guiando o Povo, na qual a revolução é representada segundo

a visão do artista, impõe para as novas gerações o dever de realizá-la concretamente na

práxis social, com a mesma força originária do acontecimento político que serviu de causa

prima da pintura, desta vez, concretizando na prática aquilo que está representado na arte.

Para os situacionistas, portanto, a questão principal que a arte e a poesia modernas

colocavam para as novas gerações era a de saber como converter a potência artística-

poética em força revolucionária da vida cotidiana. Para atingir tal objetivo, a ideia seria

103 Cf. Gilles Néret. Delacroix: o príncipe do romantismo. Lisboa: Taschen, 2011, p. 25.

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transformar o projeto das vanguardas da arte-revolta em tarefa das neovanguardas, a fim

de realizar os ideais poéticos e humanistas, a liberdade, a beleza e a mais sublime imagem

humana, reificando todas as promessas já preconizadas pelas artes e pelas letras.104

Imagem 14 – Painel de Guy Debord.105

Assim como o jovem Marx havia afirmado a necessidade de transformar a

realidade ao invés de continuar a interpretá-la filosoficamente,106 de forma análoga os

situacionistas anunciaram a premência de realizar a arte transformando a vida em vez de

simplesmente continuar a representá-la artisticamente. Desta maneira, os fins da arte

foram interpretados de uma forma elevada e compromissada com a vida, do mesmo modo

que os ideais artísticos foram elevados para além da esfera artística e colocados em função

de um desejo político de transformar a realidade. O lema de Lautréamont da “poesia feita

por todos”, interpretado à luz da arte-revolta, ecoava na atmosfera das vanguardas desde

os surrealistas e agora ganhava uma conotação inteiramente revolucionária.

104 O texto central sobre a realização da poesia, “All the king’s men”, foi publicado na Internationale

Situationniste. Bulletin central édité par les sections de L’Internationale Situationniste. Numéro 8. Paris:

Janvier 1963. Para uma versão em inglês, cf. Ken Knabb (Ed.). Situationist International Anthology.

Berkeley: Bureau of Public Secrets, 2006, p. 149-153. 105 Imagem disponível em https://www.revistapunkto.com/2014/11/realizar-poesia-guy-debord-e-

revolucao_30.html Acesso 30 de julho de 2019. 106 “Os filósofos só interpretaram o mundo de diferentes maneiras; do que se trata é de transformá-lo”. Karl

Marx, “Teses sobre Feuerbach”, in Karl Marx e Friedrich Engels. A ideologia alemã. São Paulo: Martins

Fontes, 2002, p. 103.

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Para a vanguarda, essa emergência de uma estética unitária é

inseparável da noção de ‘fim da arte’, ou seja, de seu desaparecimento

enquanto atividade especializada. Para que essa noção de estética do

comportamento e a de uma arte unitária possam adquirir uma real

consistência, é preciso que, primeiro, se desenvolvam diferentes relatos

do fim da arte, e que sua ‘superação’ seja teorizada. A isso iriam se

dedicar o futurismo, o dadaísmo, o suprematismo, o surrealismo e

muitos outros movimentos.107

Inclusive os situacionistas. Após a tentativa dadaísta de suprimir a arte sem

realizá-la, e do ensaio surrealista de realizar a arte sem suprimi-la, “a posição crítica

elaborada desde então pelos situacionistas mostrou que a supressão e a realização da arte

são os aspectos inseparáveis de uma mesma superação da arte”.108 A tarefa

revolucionária, ao mesmo tempo artística e política, tornou-se a de realizar a arte

superando-a enquanto atividade especializada em uma esfera separada. Para a

neovanguarda situacionista, havia chegado o momento de reverter o lugar da arte na vida

cotidiana e colocar a revolução a favor da poesia.109

A práxis se introduz constantemente na poiésis, e vice-versa. Não existe

liberdade efetiva que não seja também uma transformação material, que

não se inscreva historicamente na exterioridade, como tampouco existe

um trabalho que não seja transformação de si.110

A retomada poética da vida, no entanto, só poderia ocorrer superando a arte

enquanto esfera autônoma, ou seja, ultrapassando as forças do espetáculo que convinha

destruir. À luz da teoria situacionista, o espetáculo se apropriou da potência artística

alienando o homem de sua atividade criadora, que agora contempla o mundo ser reificado

por forças hostis das quais se separou e que operam segundo o “movimento autônomo do

não-vivo” no dizer de Guy Debord.111

107 Nicholas Bourriaud, “O fim da arte: rumo a uma existência unificada?”, in Formas de vida: a arte

moderna e a invenção de si, p. 65-66. 108 Guy Debord, “A negação e o consumo na cultura”, in A sociedade do espetáculo. Rio de Janeiro:

Contraponto, 1997, § 191. “De acuerdo con el concepto hegeliano de ‘superación’, ésta tiene un doble

aspecto: crítica y realización, negación y alcance de un nivel superior”. Mario Perniola, “La superación del

arte”, in Los situacionistas: história crítica de la última vanguardia del siglo XX, p. 21. 109 Internationale Situationniste, “All the king’s men”, in Internationale Situationniste. Numéro 8, p. 31. 110 Étienne Balibar, citado por Nicholas Bourriaud, “O fim da arte: rumo a uma existência unificada?”, in

Formas de vida: a arte moderna e a invenção de si, p. 67. 111 Guy Debord, “A separação consumada”, in A sociedade do espetáculo, § 2 e § 31.

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Colocando-se deliberadamente contra a sociedade espetacular, os situacionistas

elaboraram uma série de procedimentos a serem praticados para a realização de uma arte

revolucionária. Assim fizeram com os conceitos de urbanismo unitário, deriva e

psicogeografia, que anteciparam diversas práticas artísticas urbanas. A própria noção de

situação que dá nome ao grupo revela-se também inteiramente operacional: “Situação

construída: Momento da vida, concreta e deliberadamente construído pela organização

coletiva de uma ambiência unitária e de um jogo de acontecimentos” .112

Imagem 15 – Dispositivos micropolíticos situacionistas. “Novo teatro de operações na cultura. A dissolução das ideias antigas vai de par com a dissolução das antigas condições de existência”.

Detalhe de panfleto da Internacional Situacionista.113

Contra a arte espetacular que se contenta em simplesmente representar o mundo,

os situacionistas construíram uma série de conceitos operativos para munir a juventude

112 Outras definições: “Psicogeografia: Estudo dos efeitos exatos do meio geográfico, conscientemente

planejado ou não, que agem diretamente sobre o comportamento afetivo dos indivíduos. Deriva: Modo de

comportamento experimental ligado às condições da sociedade urbana: técnica da passagem rápida por

ambiências variadas. Diz-se também, mais particularmente, para designar a duração de um exercício

contínuo dessa experiência. Urbanismo unitário: Teoria do emprego conjunto de artes e técnicas que

concorrem para a construção integral de um ambiente em ligação dinâmica com experiências de

comportamento”. Internacional Situacionista, “Definições”, in Paola Berenstein (org.). Apologia da

Deriva: escritos situacionistas sobre a cidade. Rio de Janeiro: Casa da Palavra, 2003, p. 65. Sobre o

pensamento urbano da Internacional Situacionista, ver Vanessa Grossman. A arquitetura e o urbanismo

revisitados pela Internacional Situacionista. São Paulo: Annablume; Fapesp, 2006. 113 Imagem disponível na capa do livro de Mario Perniola. Los situacionistas: história crítica de la última

vanguardia del siglo XX.

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de meios práxicos criativos capazes de revolucionar a vida cotidiana sem esperar por

partidos redentores, nem lutar pela tomada do poder espetacular. Na vida cotidiana, a

realização da poesia deveria se dar pela criação coletiva de situações, nas quais os

integrantes, artistas micropolíticos por excelência, realizariam uma práxis sem mediação

e de forma direta se tornariam capazes de revolucionar a vida.

Da Internacional Situacionista derivam os conceitos-chave do movimento que

posteriormente se espalharão pelo mundo: a deriva, a psicogeografia e as situações, que

surgiram no contexto artístico mas já apontavam na direção de uma arte práxica,

operativa, realizadora da vida cotidiana. Assim também com relação à inversão do mote

surrealista “o surrealismo (e portanto a arte) a serviço da revolução”, que se tornou, com

o projeto situacionista de realizar a arte suprimindo-a, o seguinte: “a revolução a favor da

poesia”, poesia enquanto elemento criador de toda a arte e de toda a vida.114

Imagem 16 – Conferência da Internacional Situacionista em Munich, abril de 1959. Da esquerda para a direita: Giors Melanotte, Giuseppe Pinot-Gallizio, Hans-Peter Zimmer, Maurice Wyckaert, Asger Jorn,

Gretel Stadler, Helmut Sturm, Heimrad Prem, Armando, Constant, Guy Debord e Har Oudejans.115

114 “Toute révolution a pris naissance dans la poésie, s’est faite d’abord par la force de la poésie. C’est un

phénomène qui a échappé et continue d’échapper aux théoriciens de la révolution – il est vrai qu’on ne peut

le comprendre si on s’accroche encore à la vieille conception de la révolution ou de la poésie –, mais qui a

généralement été ressenti par les contre-révolutionnaires”. Internationale Situationniste, “All the king’s

men”, in Internationale Situationniste. Numéro 8, p. 32. Tradução livre: “Toda revolução nasceu na

poesia, começou por ser desencadeada pela força da poesia. Este fenômeno escapou e continua a escapar

aos teóricos da revolução – é certo que ninguém pode compreendê-lo se continuar a agarrar-se à velha

concepção da revolução ou da poesia – mas foi em geral sentido pelos contra-revolucionários”. 115 Imagem disponível em http://www.notbored.org/munich-1959.jpg Acesso 30 de julho de 2019.

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Assim, em vez de alimentar a sociedade do espetáculo com mercadorias

glamourizadas com o selo da arte, operações situacionistas (“uma série de métodos que

visam aprimorar o cotidiano mediante a construção de situações e ambientes

originais”)116 com forte teor contestatório e crítico, verdadeiramente rebeldes se

projetaram internacionalmente à contragosto dos marchands e dos museus. A eterna

chamada vanguardista de reaproximar a arte da vida pela via da revolta veio para ficar

definitivamente marcada no imaginário artístico e político do pós-guerra. A arte, com os

situacionistas, tornou-se micropolítica,117 colocou em debate a realização do desejo e com

base nas experiências da revolta com fins situacionistas, inteiramente operativas, celebrou

a atividade revolucionária na vida cotidiana.

Com o acabamento dado ao processo de politização que a arte-revolta vinha

experimentando no decorrer de 50 anos desde que os futuristas intervieram com impacto

no espaço público com uma arte engajada pela primeira vez, os situacionistas

conclamaram um projeto revolucionário na cultura, a um só tempo artístico e político,

com o qual a arte-revolta consagrou a sua máquina de guerra contra as estruturas do

espetáculo. Assim, impulsionada pela revolta, a arte tornou-se política continuada por

outros meios e é somente nesse sentido que se pode falar de uma autêntica máquina de

guerra artística; uma máquina que, como tal, não tem absolutamente por objeto a guerra,

mas outra coisa. Uma máquina que opõe aos aparelhos do estado e do espetáculo a

potência da sua revolta libertária, a força insurreta que nega o ilimitado poder afirmando

uma outra medida ética e portanto micropolítica.118

É a questão historicamente variada e complexa de todas as formas de

apropriação das máquinas de guerra pelos aparelhos de Estado (mas

também das “máquinas de guerra” filosóficas e artísticas pelas grandes

instituições, pela história da literatura, a história da arte e a história da

filosofia, pelos museus ou as universidades).119

116 Nicholas Bourriaud. Formas de vida: a arte moderna e a invenção de si, p. 88. 117 “O situacionismo apoderou-se da ideia moderna de uma arte unitária e reverteu-a para o plano político”.

Nicolas Bourriaud. Formas de vida: a arte moderna e a invenção de si p. 90. 118 “Para falar como Aristóteles, dir-se-ia que a guerra não é nem a condição nem o objeto da máquina de

guerra, mas a acompanha ou a completa necessariamente”. Gilles Deleuze e Félix Guattari, “1227 – Tratado

de nomadologia: a máquina de guerra”, in Mil platôs: capitalismo e esquizofrenia (vol. 5). São Paulo:

Ed. 34, 2002, p. 102. Sobre a distinção conceitual entre guerra e guerrilha (que se propõe explicitamente à

não-batalha), ver no mesmo capítulo a demonstração da Proposição IX, p. 100-101. 119 “Ces’t la question historiquement variée et complexe de toutes les formes d’appropriation des machines

de guerre par les appareils d’État (mais aussi des ‘machines de guerre’ philosophiques et artistiques par les

grandes institutions, par l’histoire de la littérature, l’histoire de l’art et l’histoire de la philosophie, par les

musées ou les universités)”. Manola Antonioli, “Machines de guerre”, in Géophilosophie de Deleuze et

Guattari. Paris: L’Harmattan, 2003, p. 129.

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Os efeitos micropolíticos da máquina de guerra artística operada pela revolta são

necessariamente libertários e prospectivos. No lugar da guerra mortuária, financiada pelas

instâncias autoritárias ou totalitárias, uma guerrilha multiplicada ao infinito de artes,

performances, instalações, manifestos, coletivos, poesias, gestos em suma que nada mais

são do que sopros, revides, espasmos, potências de um contra-senso a se gestar na

confluência de subjetividades, relações e experiências que denotam a vida em seu

processo contínuo de expansão.

Imagem 17 – Revolta micropolítica. Paris, Maio de 1968.120

Como por efeito em cadeia, nas décadas seguintes ao Maio de 1968, uma espécie

de virada situacionista se operou no universo das neovanguardas e além delas

extrapolando para o campo da cultura em geral, com a ênfase cada vez maior dada às artes

coletivas, às performances, aos happenings, às intervenções urbanas, às atividades com

mídias, etc., todas elas formas de arte-revolta que tentam escapar à lógica espetacular da

120 Erick Corrêa e Maria Teresa Mhereb (org.). 68: como incendiar um país. São Paulo: Veneta, 2018, p.

58.

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mercadoria e da passividade, ao mesmo tempo, inscrevendo na história da cultura e da

vida cotidiana suas linhas subversivas, alternativas e contraculturais. Desde então, a

máquina de guerra artística opera na multiplicidade de iniciativas que fazem valer, a cada

vez de uma forma diferente, uma potência no entanto mutante, libertária e nômade, nas

mais diversas matrizes performáticas inventadas e produzidas pela arte-revolta na sua

incansável luta pela resistência da vida contra a morte.

Reencantamento do Mundo e Espetáculo

Na história da arte-revolta, o projeto surrealista de reencantar o mundo teve sua

importância, primeiro, na superação da atitude negativa do dadaísmo, e em segundo lugar,

como um chamado à ação na arte em sua dimensão existencial e, neste sentido, na sua

dimensão política. Mais do que uma estética, o surrealismo era encarado como uma

atitude, uma postura diante do mundo.121 O problema é que os surrealistas não contavam

com um concorrente de maior magnitude, materializado no capitalismo pela indústria

cultural.

O mercado capitalista já havia notado que as mercadorias despertam o desejo não

somente pelo seu valor de uso. Há algo na mercadoria que chama atenção, desperta o

interesse e faz com que adquira um poder encantatório. Benjamin denominou o elemento

simbólico que reveste a materialidade da mercadoria de fantasmagoria. O fetichismo da

mercadoria, tratado por Marx anteriormente, foi remodelado pela sociedade espetacular

para adaptá-lo às novas técnicas produtivas.122 Assim como a esfera do consumo tornou-

se em si uma dimensão própria para investimento da indústria cultural, o valor de uso foi

sobrepujado pelo valor estético, ou ainda, pelo valor simbólico.123

O surrealismo, em vez de se debruçar na aura das obras-primas tradicionais,

direcionou suas energias artísticas na busca e na produção do maravilhoso. O capitalismo,

121 “O surrealismo representa para os seus membros tanto uma estética da existência como um espaço de

criação. Pois os procedimentos inventados pelos surrealistas visam – pelo menos teoricamente – produzir

certo tipo de subjetividade, para além de toda e qualquer preocupação literária”. Nicolas Bourriaud. Formas

de vida: a arte moderna e a invenção de si, p. 76. 122 Anselm Jappe elabora um estudo aprofundado sobre a mercadoria à luz da crítica do valor realizada pelo

Grupo Krisis. Uma contribuição interessante para a discussão sobre o fetichismo aparece no capítulo “O

fetichismo e a antropologia”, in As aventuras da mercadoria: para uma nova crítica do valor. Lisboa:

Antígona, 2006. 123 “Nesse contexto, o aspecto sensível torna-se portador de uma função econômica: o sujeito e o objeto da

fascinação economicamente funcional”. Wolfgang Fritz Haug, “A estética da mercadoria e sua origem na

contradição da relação de troca”, in Crítica da estética da mercadoria. São Paulo: Editora Unesp, 1997,

p. 27. Cf. também na mesma obra: “Tecnocracia da sensualidade geral”, p. 67ss.

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de outra parte, ao se apropriar das técnicas de reprodução da arte, contribuiu para destruir

a aura com que se revestiam as obras clássicas por sua natureza únicas, e ao mesmo tempo,

propôs um modelo mais direto a ser oferecido na sua forma acabada como produto a ser

consumido massivamente. Nem mais uma obra-prima única, mas uma massa de imagens

e cópias fetichizadas envoltas de fantasmagorias sedutoras ao desejo disponível na esfera

do consumo de bens estéticos e simbólicos.124

Nessa concorrência desleal, a estética surrealista foi tragada e recuperada pelo

espetáculo. Tornou-se um mero estilo artístico, moderno, sem dúvida, o que fez com que

chegasse às massas, deixando de ser, porém, o que os seus idealizadores tanto queriam

que fosse, uma alternativa ao modo de viver dominante. Assim, de modo de viver poético

e subversivo segundo os parâmetros do mundo racionalista e calculador, o surrealismo

foi recebido por meio do espetáculo na sua face puramente formal, estetizada. O

maravilhoso da super-realidade, destituído de seu potencial transformador, foi inscrito

paradoxalmente no mundo das mercadorias como exotismo estético, imaginal e

decorativo, por esse motivo caindo em desgraça aos olhos de uma geração revolucionária

seguinte, os situacionistas.125

No contexto do espetáculo, a arte tornou-se um produto a ser consumido e,

portanto, destituído de poder transformador. Como não bastasse, ainda serve de consolo,

substituindo o espaço que seria melhor aproveitado para a vivência da liberdade, para a

revolução da vida cotidiana.

A forma com que os situacionistas interpretaram o projeto surrealista foi

profundamente crítico. O surrealismo, por querer realizar a arte na vida sem suprimi-la

no mesmo processo, deixou o seu maior projeto desprotegido e completamente à mercê

do espetáculo, que logo capturou a estética na lógica fetichista da mercadoria cultural.

Para os situacionistas, o projeto do reencantamento do mundo foi tomado pelo

capitalismo na sua versão espetacular do surrealismo, e portanto, deveria ser alvo de uma

dura crítica para, enfim, ser superado.

O mundo capitalista não precisa mais ser reencantado pela arte. Isso, o espetáculo

deturpou tornando-se “artístico”. Em vez de reencantar o mundo, na política da

124 A destruição da aura foi colocada e desenvolvida por Walter Benjamin no seu ensaio “A obra de arte na

era de sua reprodutibilidade técnica” (primeira versão), in Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre

literatura e história da cultura. São Paulo: Brasiliense, 1996. 125 “Uma medida do sucesso e da popularidade que o surrealismo atingiu pode ser obtida verificando-se o

modo como ele foi encampado pelos mundos da moda e da publicidade”. Fiona Bradley, “O legado do

surrealismo”, in Surrealismo, p. 74.

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Internacional Situacionista francesa, cumpre transformá-lo. Deste modo, os situacionistas

conectaram a causa revolucionária da arte de vanguarda com a causa das vanguardas

revolucionárias organizadas em torno dos movimentos operários.126 A realização da arte,

sua efetiva transformação da vida, só se tornaria possível na práxis política, justamente

porque revolucionária em termos práticos e não meramente estéticos. A condição para

que a arte pudesse ser realizada de fato era a de desaparecer enquanto esfera separada ao

fim do mesmo processo, uma vez que teria se tornado a própria vida. Não basta realizar

a arte, diziam os situacionistas, é mister dar vida finalmente à poesia.

Enfrentando Dilemas

O dilema da arte enfrentado no período pós-guerra e que ainda hoje se coloca foi

o de tentar responder em que condições se pode produzir uma arte cujo impulso criativo

coincide com a revolta, no momento em que o mercado tenta englobar a produção artística

neutralizando, docilizando e domesticando o impulso crítico característico dela. Do que

resulta uma outra questão igualmente fundamental: de que maneira uma arte que se

pretende crítica, contestatária, transgressora, pode manter-se fiel à sua revolta libertária e

antiautoritária sem com isso incorrer no risco de fechar-se sobre si mesma e cair na

incompreensão geral, perdendo assim a chance de fundar discursividades e incitar

revoltas no âmbito social mais amplo e produzir os efeitos políticos desejados? Seja como

for, o que restou no imediato pós-guerra foram os ecos da revolta artística com o absurdo

do mundo convulsionado por guerras e totalitarismos, pela razão utilitária e pelas

indústrias nas suas várias facetas que tornaram a vida um acessório do grande mecanismo

econômico-político.

Assim também, o dilema da revolta se colocou ante a captura da potência crítica

e criadora no âmbito estritamente político. Enquanto o capitalismo se apropriava da

imaginação para fins produtivos na indústria espetacular, no campo da política mundial a

revolta libertária das bases revolucionárias foi no mais das vezes traída pelas ideologias

autoritárias que se apoderaram dos órgãos de poder estatal, na Espanha, na Itália, na

Alemanha, na Rússia e na China, só para mencionar os casos mais proeminentes. No

modelo capitalista, o espetáculo cooptou a potência de criação separando-a da revolta,

por motivos óbvios considerada prejudicial ao processo de acumulação. No modelo

126 Sobre a “teoria dos conselhos operários” desenvolvida pelos situacionistas, ver Mario Perniola, Los

situacionistas: história crítica de la última vanguardia del siglo XX, p. 138ss.

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soviético, uma vez instalada a tirania, a revolta propriamente dita foi duramente rechaçada

e banida, exceto nos casos em que se submetia aos ditames impostos pelo partido, o que

destituiu a revolta de seus preceitos contestadores, críticos e libertários, afogando suas

forças na clandestinidade.

No primeiro caso, a cooptação do impulso criador artístico pelas estratégias do

espetáculo e sua cultura-entretenimento, e no segundo, a subsunção da revolta nas

ideologias totalitárias. Neutralização, cooptação, recuperação, rechaço, perseguição,

prisão, tortura e fuzilamento. E ainda assim, nada foi capaz de aplacar as vozes e os gestos

dissidentes, insubmissos, criativos, hedonistas, refratários.

Entre repúblicas desertadas pelos poetas e democracias celebradas

pelos medíocres, restam figuras individuais e rebeldes, artistas cuja

negação visa primeiramente à preparação do terreno para seu poder

afirmativo. Se eles são amantes das potências negadoras, é para melhor

deixar o campo livre à força que age em seus corpos e transbordam sua

existência de modo a semear as terras onde florescem as plantas

carnívoras da política. As obras daqueles que, através da história,

contam os poderes e a potência de toda estética que quer a vida e

escarnece a morte, se abrindo como estranhas mandrágoras

desabrochadas ao pé dos cadafalsos.127

No que se refere à desintegração do sentido dadaísta e à liberação do inconsciente

e do desejo empreendida pelo surrealismo, as vanguardas conseguiram produzir

mudanças duradouras na história das artes e das subjetividades ocidentais. Afinal, cada

uma delas realizou parcialmente seus objetivos de alguma maneira, e ainda hoje, um

século depois, os artistas têm um débito enorme para com elas. Porém, mais do que as

neovanguardas do pós-guerra, o capitalismo conseguiu se apropriar das imensas forças

liberadas pelas vanguardas históricas, não sem antes redirecioná-las para fins de produção

de mercadorias culturais a serem consumidas na escalada reprodutiva do capital na sua

versão espetacular.

A produção de imagens e demais mercadorias culturais capturou os dispositivos

artísticos que as vanguardas se esforçaram por montar para potencializar os sujeitos e lhes

atribuiu uma outra função no modo de produção espetacular.128 A intenção que estava na

origem dos dispositivos artísticos das vanguardas era de contribuir com a libertação do

127 Michel Onfray. A política do rebelde: tratado de resistência e insubmissão, p. 210. 128 “A arte moderna, portanto, só constitui um modelo ético a partir de seus modos de produção, e não a

partir de um estetismo, ou seja, de um ‘bom gosto’: ela produz possibilidades de vida, subjetividade,

relações com o outro”. Nicolas Bourriaud, “Uma ética segunda a arte moderna”, in Formas de vida: a arte

moderna e a invenção de si, p. 186.

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desejo, da imaginação e do pensamento como preparação para a realização da arte na vida

cotidiana segundo uma potência que derivava da revolta uma força política de cunho

libertário. Ocorre que o capitalismo cultural desvirtuou o caráter político que estava

contido nas operações artísticas, neutralizando assim os efeitos da revolta e retendo para

si somente uma produção ilimitada sem qualquer conteúdo político evidente. A

imaginação que se desvencilhou da tradição por meio das máquinas artísticas foi

rapidamente cooptada pelas indústrias culturais, que passaram a se alimentar muito cedo

da potência criadora liberada pelas vanguardas, porém, separada da revolta da qual surgira

historicamente.

Nessa perspectiva, a história teria seguido em linhas gerais a seguinte sequência:

o movimento da revolta, herdeiro em parte de uma sensibilidade revolucionária

encontrada na literatura, nas artes e nos movimentos sociais do século XIX e que foi

recebida pelas primeiras gerações do século XX, produziu as vanguardas artísticas, as

quais, por sua vez, criaram dispositivos artísticos que, embora fossem agenciados para

produzir efeitos micropolíticos de resistência no contexto da revolta histórica, tão logo

foram apropriados pelo capitalismo e separados da potência política a que deviam sua

existência inicial. Incapaz de ser previsto, o golpe que tornou o capitalismo o espetáculo

conhecido hoje foi separar a potência criadora (que nas vanguardas, era derivada da

revolta) de seu caráter contestador e portanto crítico, e torná-la, desta maneira, a principal

força produtiva espetacular.

Para manter-se fiel ao princípio libertário que resulta de sua origem, a revolta teve

que pagar um alto preço por sua incessante busca por coerência e autonomia, pois não

deixou de ser alvo de censura, perseguições e repressão. Isso tem um significado histórico

importante pois como se não bastasse ter que lidar com os dilemas artísticos e políticos

inerentes ao movimento da revolta, a cultura crítica e a cultura-revolta, tal como as define

Kristeva, tem perdido espaço para a cultura espetacular há décadas.

Entretanto, a máquina de guerra artística enquanto tal modificou-se e multiplicou

as matrizes performáticas, nas intervenções, no teatro pós-dramático, nas instalações, nos

contra-espetáculos, chegando até às mídias táticas e guerrilhas digitais no presente.

Ademais, uma rápida retrospectiva histórica da cultura ocidental no século XX pode

ilustrar que o incansável esforço da arte-revolta não foi de todo em vão. O ímpeto da

revolta artística contribuiu para libertar o pensamento, o inconsciente, a imaginação e o

desejo das grades a que estavam aferrados e, embora a aplicação da revolta vanguardista

tenha se plasmado em inúmeras vertentes hoje exibidas em museus, o gesto existencial,

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96

político, contestatório, criativo e por vezes irreverente das vanguardas ecoou nos

movimentos contraculturais subsequentes, como por exemplo entre os Beatniks, Hippies

e Punks, respectivamente nas décadas de 50, 60 e 70 do século XX. O surrealismo,

enquanto movimento, espalhou-se pelo mundo. Na América Latina teve adeptos em

diversos países e especificamente no Brasil influenciou gerações de poetas.129 Na

contracultura, a Antropofagia, o Tropicalismo, a Sociedade Alternativa, foram alguns dos

expoentes das gerações tupiniquins ao longo das décadas. E mesmo em Natal, capital do

Rio Grande do Norte, encontram-se linhagens artísticas, poéticas e literárias inspiradas

nas vanguardas e na contracultura.130 Somente o legado dos situacionistas teve uma

recepção tardia, comparada com outros países como os Estados Unidos. No Brasil, por

volta dos anos 2000, no auge das Ações Globais dos Povos, os livros começaram a

circular em português, diferentemente de Portugal, que contou com uma tradução do livro

A sociedade do espetáculo, de Debord, na sequência do Maio de 68.131 Enquanto a estética

oriunda das vanguardas era cooptada pela instituição da arte, a postura existencial que a

arte-revolta reclamava para si tornou-se uma miríade de estilos de vida contraculturais,

dissidentes e afirmativos, em parte realizando o sonho das vanguardas de refundar uma

nova vida à luz da arte e da poesia.

Novas Trincheiras

Sem que ninguém pudesse cogitar, as inovações artísticas do Futurismo, do

Dadaísmo e do Surrealismo, e depois, marcadamente pelos Situacionistas, estabeleceram

parâmetros que ainda hoje tem validado as ações de incontáveis grupos e indivíduos,

jovens poetas, artistas de rua, intelectuais e críticos devotados à trabalhar a matéria

estética, seja ela qual for.132 Para além das artes consagradas pela tradição, ao lado da

129 Cf. Floriano Martins. O começo da busca: o surrealismo na poesia da América Latina. São Paulo:

Escrituras Editora, 2001. 130 O historiador Artemilson Lima apresenta sua pesquisa sobre a contracultura em Natal no livro Escaladas

da contracultura: Natal, década de 1980. Belo Horizonte: Moinhos, 2018. 131 As tratativas para a publicação em Portugal do livro de Debord iniciam em 1971. Cf.

https://www.revistapunkto.com/2014/11/realizar-poesia-guy-debord-e-revolucao_30.html Acesso 30 de

julho de 2019. No Brasil, a primeira edição vem a público em 1997 pela editora Contraponto. Poucos anos

depois, aparece uma coletânea com textos situacionistas na Coleção Baderna: Situacionista: teoria e

prática da revolução. São Paulo: Conrad, 2002. 132 Anselm Jappe faz um balanço da atualidade dos situacionistas e da recepção contemporânea de seu

legado no artigo “Os situacionistas e a superação da arte: o que resta disso após 50 anos?”. Disponível em

http://www2.marilia.unesp.br/revistas/index.php/baleianarede/article/view/1767/1500 Acesso 30 de julho

de 2019.

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escultura, da pintura, do desenho, do teatro e da música clássica, para o deleite da

humanidade as manifestações artísticas se multiplicaram; desde a invenção do cinema até

então, o gênio artístico e as forças poéticas tem alimentado o imaginário social, os sonhos

e os devaneios das mais variadas formas, com instalações, performances, intervenções

urbanas, artes digitais, lançando mão de máquinas e tecnologias para produzir efeitos

artísticos, estéticos e culturais ainda por serem analisados com a devida atenção.

Com a queda do Muro de Berlim, no contexto pós-fordista da produção e

acumulação flexíveis, o novo desafio enfrentado pela crítica, na arte, no pensamento e na

política, face à hegemonia da democracia capitalista no mundo, passou a ser como

atualizar a revolta, ou ainda, como erigir uma resistência artística à altura dos problemas

da época e que responda coerentemente à urgência que o tempo reclama, sem perder sua

vitalidade, sem renegar a esperança, sem ser tragada outra vez pela institucionalização.

Nesse momento, é preciso lembrar que a globalização da economia arrastou

consigo o sistema artístico e suas instituições. Assim como havia acontecido com a

potência rebelde do rock, recuperada pela indústria cultural, a arte das neovanguardas

encontrou seu lugar no sistema e passou a produzir muito lucro. Grandes eventos

formaram o circuito internacional do mercado das artes tais como as bienais. As feiras e

os festivais artísticos compuseram as agendas capitalistas, selando parcerias entre

instituições de arte-cultura estatais e corporações interessadas em propagar suas marcas

junto aos artistas integrados ao sistema.

Entretanto, desde que a máquina de guerra artística passou a operar, onde o poder

produz suas intrincadas armadilhas, as potências da arte-revolta se reinventam para

encontrar formas de produzir e existir a despeito do mainstream, agenciando relações e

produções autônomas. Não foi diferente durante a década de 1990, período marcado

fortemente pela internet no campo das tecnologias da comunicação e informação, e

também, pelos movimentos de Ação Global dos Povos:

O período que vai do final dos anos 1980 até o final da década de 1990

testemunhou conjunções muito ricas da arte e as políticas da

democracia, seja na forma de ação direta, pedagogia pública crítica,

meditação poética e várias combinações das mesmas. No entanto, um

grande divisor de águas viria com a Batalha de Seattle em 1999 e o

maior ciclo de lutas alterglobalização cristalizado então.133

133 “The period stretching from the late 1980s to the late 1990s saw many rich conjunctions of art and the

politics of democracy, whether in form of agitational direct action, critical public pedagogy, poetic

meditation, and various combinations thereof. However, a major watershed would come with the Battle of

Seattle in 1999 and the larger cycle of alterglobalization struggles it crystallized”. Yates Mackee.

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98

Imagem 18 – Ação Global dos Povos, Praga, 2000.134

O Critical Art Ensemble surgiu exatamente nesse contexto. No campo artístico, o

pós-modernismo problematizava a ideia de autor e a arte individual. No campo político,

o liberalismo ampliava suas articulações internacionais. Enquanto isso, em resposta à

crescente privatização do espaço público e da escalada do poder capitalista, um conjunto

de iniciativas oriundas de um campo difuso de artistas e ativistas que começaram a criar

circuitos alternativos às redes da instituição de museus e galerias formou novos fronts

para a resistência cultural. Por toda parte das Américas e da Europa, a emergência de

grupos sujeitos deram corpo às micropolíticas da criação que marcaram o período em

mais uma metamorfose da máquina de guerra artística.135

Da avassaladora produção artística disponível desde então, uma parcela

considerável se beneficia do legado das vanguardas históricas, embora nem sempre de

forma direta ou consciente. Contrariando os pessimistas, a atitude que impulsionou as

vanguardas, o verdadeiro gesto incorporado na máquina de guerra artística atual, continua

ativo reformulando o estatuto da arte-revolta aos novos tempos, atualizando a tarefa da

arte sempre por se fazer de construir o espelho no qual a época deve projetar-se. Onde for

possível encontrar uma arte que coloca em questão o tempo presente, que elabora uma

“Contemporary art and the politics of democracy, 1987-2011”, in Strike Art!: contemporary art and the

post-Occupy condition. Brooklyn: Verso, 2016, p. 49. 134 Imagem disponível em https://www.nadir.org/nadir/initiativ/agp/free/pga/hallm.htm Acesso 30 de julho

de 2019. 135 O Capítulo 4 – Resistência Cultural desenvolve as implicações da micropolítica da criação na máquina

de guerra artística do período.

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99

visão alterada e estrangeira da realidade, que faz pensar de modo distinto o fenômeno a

que se chama vida na sociedade global, lá onde a força poética reivindica, enfim, seu

direito de duvidar, de evocar um pouco de ar para a dignidade humana, estará a força de

um pensamento autenticamente contemporâneo e por isso herdeiro de uma tradição

insurrecional que encontra na genealogia da revolta sua linhagem poética. Não mais a de

uma vanguarda no sentido modernista, que acreditava estar à frente de um progresso

unilinear inexorável. Agora, se a noção de vanguarda ainda tem alguma importância,

passa por uma ressignificação, para tornar-se necessariamente micropolítica, pois as

linhas de frente do combate, os fronts da resistência cultural na aurora do milênio se

multiplicam a cada vez que os poderes se infletem sobre a vida e sobre as subjetividades.

Assim também tem sido a resistência da arte que encontra nas possibilidades abertas pelas

máquinas um novo canal de expansão das forças da vida.

Conceituando a Arte-Revolta

Agora que o contexto histórico da formação da máquina de guerra artística foi

apresentado em seu conjunto e se pode ter uma compreensão mais clara de suas

características, cumpre estabelecer os parâmetros conceituais da arte que encontra na

revolta seu impulso criador.

Historicamente, a arte-revolta teve seu impulso político decisivo com as

vanguardas e se caracteriza desde então por uma atitude, por um pathos mais do que por

um estilo. A constante invenção de estilos, técnicas e formas de expressão proveio sempre

da potência criativa da revolta, que questionou os padrões clássicos de representação

artística da realidade e depois não parou de questionar a si mesma, reinventando-se

continuamente. No entanto, a atitude característica da arte-revolta não se restringe a

inovações formais, que é um fenômeno secundário e não define a atitude enquanto tal.

A arte-revolta encarna antes de tudo uma atitude perante o mundo, uma atitude

que diz ao mesmo tempo sim e não à realidade com a qual se depara na história. Assim

nas artes como na micropolítica, não se nega em absoluto, como também não convém

afirmar indiscriminadamente o que existe. O caráter negativo inerente à revolta, seu

aspecto crítico, coloca-se em função de uma positividade primeira que define a criação

artística.

Ao invés de evadir-se do confronto com as contradições e os problemas da

realidade, como faz normalmente a arte espetacular, a arte-revolta instala-se nas

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rachaduras culturais, perfura o consenso, atravessa rotas sociais não traçadas, sempre de

maneira diferente para que a vida reencontre sua potência afirmativa. E embora a arte-

revolta não tenha programa, sua maior contribuição é liberar o pensamento, o desejo, as

utopias e a vida, cumprindo assim sua função clínica, ecosófica e micropolítica a que se

deve considerar e esclarecer criticamente a cada vez. A arte-revolta demonstra assim sua

contemporaneidade e sua positividade ante um mundo submetido a poderes que

continuam as guerras por vários meios a despeito de valores éticos, humanos e ecológicos.

As micropolíticas da criação constituem o motor da máquina de guerra artística,

na qual as artes, as matrizes performáticas, a linguagem, os corpos, todos os dispositivos

com que se lançam na arena pública, nada mais são do que veículos táticos de lutas, as

mais diversas da resistência cultural no tempo presente.

Em termos teóricos, a arte-revolta não se confunde com o que alguns historiadores

e críticos denominam arte social. A arte-revolta tem um viés político enquanto expressão

estética, se de um indivíduo ou de um grupo é secundário. Para ser política, uma arte não

precisa ser forçosamente engajada em uma causa específica e delimitada com plataforma,

programa, métodos e objetivos, o que a distingue de uma resistência ideológica ou

identitária. Enquanto expressão da revolta, uma arte porta em si potenciais efeitos

libertários, seja na forma de apresentação, seja no conteúdo, seja nos seus efeitos. Por isso

também, a chamada arte engajada não coincide sempre com a expressão da arte-revolta,

como atestam os exemplos na história da arte moderna em que grupos se colocaram à

disposição de ideologias para serem meros propagandistas, perdendo assim a autonomia

que pressupõe o ato criador. A arte-revolta opera como potência destituinte e por isso

tantos mal-entendidos têm circulado na crítica artística. É de surpreender o que se disse

das vanguardas, de seus “fracassos”, da “catástrofe” decorrente de seus ataques.

Dificilmente se percebeu que a arte-revolta escapou das instituições montando máquinas

de guerra fora dos circuitos consagrados à arte-espetáculo e assim espalhou-se pelo

mundo à sua própria maneira.

Com uma obstinação própria, a arte-revolta não fixa objetivos, identidades,

padrões ou referenciais uma vez por todas; seu pendor, mutante e dissidente, é mais afeito

a rupturas e dissonâncias do que à adesão, ao consenso e à reprodução. Suas trilhas não

passam pela institucionalização. Subtraem-se a elas. O que se produz são micropolíticas

da criação, que se definem pela busca incessante e deliberada de invenção e inovação

culturais. Por isso mesmo, implicada no processo de colocar o mundo em perpétuo

questionamento, coloca-se igualmente em questão. Pretende ser sujeito de sua

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enunciação, de seu modo de ser e agir na realidade. A arte-revolta, portanto, nada mais é

do que a potencialização incessante da força criativa inerente ao ser humano, na dimensão

individual e coletiva.

Tudo considerado, nunca será demais lembrar que, na história da arte e da revolta,

o impulso dado pelas vanguardas históricas e pelas neovanguardas do pós-guerra se

intensificou com suas reiteradas resistências, nas modificações técnicas empregadas por

incontáveis grupos, na invenção de formas de expressão adequadas à atualidade e devido

à escolha dos conteúdos abordados para melhor problematizar a época. Para mencionar

algumas dessas mudanças consideráveis a uma abordagem da arte contemporânea, é

fundamental destacar a noção aberta do que é arte, que deixou de ser unívoca; a

relativização do objetivo artístico, não restrito ao belo; a arte performática, que se

desvencilhou da forma dramática e narrativa típica do teatro ocidental para tornar-se

eminentemente política. Além disso, enquanto a política instituída foi tragada pelo

espetáculo e capturada em suas ideologias, as artes críticas romperam com a lógica

mercadológica, tornaram-se conceituais, performáticas, evadiram-se dos museus,

ocuparam as ruas com seus projetos coletivos, adentraram a vida cotidiana com a criação

de situações e zonas autônomas temporárias e mais recentemente iniciaram a crítica das

ciências e das tecnologias, como no caso do Critical Art Ensemble, a ser tratado nesta

pesquisa.

Como se vê, a questão da revolta toca igualmente a arte e a sociedade, a estética e

a política. Isso porque o impulso criador da época presente, livre de quaisquer

imperativos, encontra no movimento da revolta uma fonte de inspiração. A superação do

niilismo, nas artes como na política, passa necessariamente pelo movimento criador da

revolta. Ainda que ela, em si mesma, não seja uma causa suficiente para a produção de

uma civilização digna de nome, na origem de um novo horizonte histórico encontram-se

os germes da revolta, que no presente têm gerado mudanças substanciais nos planos da

cultura, das ideias e da ação.

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CAPÍTULO 2

POR DENTRO DO CRITICAL ART ENSEMBLE:

ARTE E REVOLTA NO CORAÇÃO DO IMPÉRIO

Imagem 19 – Critical Art Ensemble em 1987. Da esquerda para a direita: Steve Barnes, Ricardo Dominguez, Hope Kurtz, Steve Kurtz e Dorian Burr.136

Faz trinta e três anos desde que, pela primeira vez, estudantes de artes dos Estados

Unidos utilizaram o nome Critical Art Ensemble (CAE) para designar um pequeno grupo

com propósitos artísticos. Para um coletivo que começou com duas pessoas investindo no

campo dos vídeos conceituais de curta duração, é de surpreender a produção prolífica e

numerosa do grupo durante as últimas décadas.

Formado inicialmente na cidade de Tallahassee, na Florida, o coletivo surgiu por

iniciativa de Steve Kurtz e Steven Barnes. Passou por várias formações, estabeleceu

parcerias e alianças com artistas, movimentos sociais, cientistas, universidades, museus e

organizações internacionais mundo afora. Fez-se conhecer por suas ações, produções

culturais e publicações teóricas nas intersecções entre arte, teoria crítica, tecnologia e

política radical.

136 CAE, Disturbances. London: Four Corners Books, 2012, p. 20.

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103

Atualmente, o portfólio do coletivo conta com a produção de curtametragens,

passando por performances, obras de mídia tática, intervenções micropolíticas, páginas

na internet, assim como exposições dentro e fora dos museus em diversos países.

Além dessa variedade de formas de expressão, o Critical Art Ensemble também

se mostra um coletivo versado na reflexão teórica-crítica e nas letras, como se pode

comprovar com os escritos, ensaios e livros publicados pelo grupo no decorrer de sua

carreira. Hoje a produção teórica do grupo soma ao todo oito livros, dentre os quais, sete

estão inteiramente disponíveis para livre acesso na página do grupo http://critical-art.net/.

Os temas abordados nas publicações são ricos em conteúdo e expressam um pensamento

antenado com a atualidade no campos das artes, da política, da tecnologia, da teoria e dos

movimentos sociais.

Os títulos das obras resumem bem a preocupação do CAE com temas que

interconectam arte, ciência, filosofia, política e tecnologias: The Eletronic Disturbance

(1994), Eletronic Civil Disobedience and Other Unpopular Ideas (1996), Flesh Machine:

Cyborgs, Designer Babies, and the New Eugenic Consciousness (1998), Digital

Resistance: Explorations in Tactical Media (2001), The Molecular Invasion:

Contestational Biology (2002), Marching Plague: Germ Warfare and Global Public

Health (2006), Disturbances (2012) e, por fim, Aesthetics, Necropolitics, and

Environmental Struggle (2018). Desde a publicação do primeiro título, em 1994, o grupo

tem lançado livros que sintetizam as pesquisas e os aspectos teóricos sobre a temática

trabalhada no momento.

Imagem 20 – Livros de autoria do CAE, um deles traduzido e publicado no Brasil (imagem do autor).

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Há mais de três décadas, portanto, o CAE tem explorado as possibilidades de uma

resistência ativa no interior das democracias capitalistas. O seu histórico deixa antever

uma arte engajada, desafiante e crítica.

Em uma época na qual o uso da internet como ferramenta de luta política e social

era ainda um prospecto de ficção científica, os membros do CAE, de forma pioneira,

lançaram-se na pesquisa e nos experimentos para a formação de uma resistência

eletrônica, afinada com os mais recentes desenvolvimentos tecnológicos no campo da

informática e da comunicação de massas.

Posteriormente, acompanharam as inovações no campo da biotecnologia. A

decodificação do genoma humano, a manipulação de DNAs, a fabricação de alimentos

transgênicos, também foram problematizados pelo pensamento crítico do grupo, que

ousou com a arte da performance e do Teatro Recombinante levantar questões

contemporâneas, sempre de forma inovadora na linha de frente da arte e da tecnologia.

O CAE tem por inspiração a arte guerrilha, o intervencionismo, a mídia tática e o

ativismo cultural, práticas que vão na contramão da lógica global da busca por lucro,

competição e consumo. Em vez disso, sempre se engajou em atividades orientadas pelos

princípios de autonomia, cooperação e prazer.

Dentre as várias formas de expressão do ativismo cultural do grupo se destacam

intervenções de mídia tática, performances, provocações e distúrbios com o objetivo

declarado de revelar, confrontar e subverter tendências autoritárias na esfera da cultura.

No mundo dominado pelo pancapitalismo, escolher o caminho aberto pela revolta

requer uma obstinação e uma coragem raras, pois galgar os passos nas trilhas da

autonomia exige trabalho duro para enfrentar uma série de dificuldades. Porém, todo o

esforço do grupo resultou em tempo livre para pensar, interagir, escrever, pesquisar, criar,

viajar e experimentar com outros grupos e ativistas engajados na resistência cultural para

concretizar suas visões micropolíticas.

Durante sua trajetória, é possível identificar pelo menos três grandes linhas

mestras que nortearam as ações do grupo, cada uma caracterizada por uma abordagem de

conjunto. A primeira marcou os anos iniciais, de 1986 até 1994 aproximadamente, o

período da produção de vídeos e de eventos multimídia, no qual o CAE adquiriu ampla

experiência com o ativismo artístico na esfera cultural e acumulou reflexões sobre o papel

das tecnologias na resistência, a partir da produção de vídeos estilo garage quase sempre

conceituais e uma série de eventos multimídia.

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Em seguida, a produção do CAE foi marcada pela junção da teoria crítica com a

práxis artística, norteada pela incorporação das tecnologias da informação e da

comunicação às suas reflexões e performances, bem como ao ativismo do grupo. Em

torno das tecnologias da informação e comunicação, o grupo publicou de forma pioneira

seus livros teóricos que sintetizam os aspectos críticos e reflexivos basilares para o

ativismo e a resistência cultural praticada por seus integrantes.

Em um momento histórico no qual o ciberativismo era apenas uma possibilidade

tratada como ficção científica, as obras The Eletronic Disturbance e Eletronic Civil

Disobedience and Other Unpopular Ideas tiveram uma repercussão considerável. A

primeira delas tornou-se uma espécie de best-seller underground entre os títulos não-

ficcionais, e por conta disso, logo foi traduzido para diversos idiomas. Nessas obras, as

tecnologias da informação e comunicação são investigadas na tentativa de apontar formas

de usos possíveis em prol de uma resistência eletrônica, a despeito dos imperativos do

empreendedorismo e do lucro geralmente associados a tais mídias.

Imagem 21 – Machine World. Imagem que abre o livro Flesh Machine, do CAE.137

Por fim, a terceira linha de força temática do grupo foi a das biotecnologias, que

focou nas pesquisas científicas de clonagem e decodificação do genoma humano, nas

questões acerca da manipulação do DNA, da reprodução artificial da vida, assim como

dos alimentos transgênicos e de questões ecológicas e ambientais. As pesquisas sobre

essas temáticas resultaram na publicação de quatro obras: Flesh Machine: Cyborgs,

Designer Babies and New Eugenic Consciouness, The Molecular Invasion, Marching

137 Critical Art Ensemble. Flesh Machine: cyborgs, designer babies, and new eugenic consciousness.

New York: Autonomedia, 1998, p. 2.

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Plague: Germ Warfare and Global Public Health e, por fim, o mais recente, Aesthetics,

Necropolitics, and Environmental Struggle, publicado em 2018 depois de um hiato na

produção teórica de mais de uma década. (Ao final do trabalho há uma sucinta

apresentação das obras, ver Apêndice 2).

Desta forma, o grupo tem abordado alguns dos maiores sistemas tecnopolíticos de

nosso tempo: o complexo informático dos meios de comunicação e o complexo

biotecnológico. Os livros que tratam dessas temáticas fazem dialogar outsiders da crítica

radical com o cânone científico e filosófico do ocidente, especialmente o pensamento

moderno e contemporâneo. A partir desse escopo, emerge um pensamento que funda

discursividades acerca da política e das tecnologias, com uma diferença em relação à

produção acadêmica, por se tratar de um pensamento engajado nas lutas.

O Critical Art Ensemble pode ser considerado portanto um coletivo de criação e

estudos integrados na sua acepção mais complexa, ou seja, um coletivo que se esforça

por empreender pesquisas teóricas, empíricas e práticas nas intersecções entre arte, teoria

crítica, tecnologia e política radical. Com muita criatividade, o grupo une as caóides do

pensamento (arte, ciência e filosofia) em um agenciamento no qual política e tecnologia

desempenham papeis cruciais tanto no pensamento como objeto de reflexão, quanto na

prática da resistência cultural.

Nessa espécie de máquina de guerra artística montada pelo grupo, a arte é

praticada como tática micropolítica que se vale da ciência e da filosofia como recursos

para nutrir o pensamento crítico, ao passo que a tecnologia, sempre presente, opera como

meio de produção e propagação dos inventos teóricos e estéticos do grupo.

O resultado desse duplo processo de pesquisa e criação é nada menos que o

prenúncio de uma espécie de Universidade Experimental e Nômade,138 que tenta seguir

os fluxos e as tendências da sociedade global para melhor questionar os rumos da

civilização, da cultura e das instituições conectadas por altas tecnologias.

Na prática de uma universidade experimental, os artistas intervêm em um campo

particular de estudo (que pode ser urbanismo, informática, biotecnologia, antropologia ou

ecologia, por exemplo) a fim de apresentar perspectivas críticas alternativas. Por vezes,

as pesquisas conduzidas nos moldes de uma universidade experimental demonstram uma

urgência que as alinham com um tipo de ativismo contemporâneo. Nela, a escolha do

138 Ver Nicholas Mirzoeff, “Anarchy in the ruins: dreaming the experimental university”, in Nato

Thompson and Gregory Sholette (Ed.). The Interventionists: users’ manual for creative disruption of

everyday life. Massachusetts: MASS MoCA Publications, 2004.

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107

tema sempre se faz em função de um problema que emerge do presente, e a forma de

colocá-lo não raro a vincula à dimensão política. Por isso, a universidade experimental

pode ser responsável por colocar em prática, com soluções criativas e inovadoras, o

problema político da produção especializada do conhecimento.

É nesse sentido que o CAE promove uma arte crítica como expressão da revolta

direcionada a questões que dizem respeito à humanidade e a cada um de nós. Sua

resistência artística lança luzes sobre a problemática do novo Leviatã Tecnológico que

cresce implacável acoplando organismos, subjetividades e máquinas sob a égide do

pancapitalismo. Essa arte metamórfica e mutante se dirige a “corações e mentes”, a

grupos e sujeitos, para desafiá-los com a instauração de espaços de questionamento.

Assim, ao colocar em questão as estreitas relações da tecnologia com a ciência e

o capitalismo, o CAE elabora um discurso político que expressa e produz um outro tipo

de sujeito, mais propenso a experimentar éticas e estéticas libertárias. Demonstra em suas

obras, portanto, que o propósito da crítica não é simplesmente seguir as pistas deixadas

pelos governos, corporações, agências dos mass media e complexos militares, como se a

tarefa da resistência fosse viver à sombra do poder.

À revolta positiva e afirmativa cabe muito mais. A crítica, o combate, a resistência,

todas essas expressões micropolíticas validam a positividade da ação e do pensamento na

medida em que se colocam afirmativamente a serviço da criação de novas formas de

viver, sentir, agir e pensar, portanto, em favor de novas éticas e estéticas da existência.

A postura da revolta do CAE se sustenta por cultivar um ceticismo alerta e

intrépido que não se deixa cair nas ilusões totalizantes ou paralisantes que plasmam as

teorias e a política. Por mais que mudem as táticas e as estratégias, a revolta permanece

firmemente ativa com uma determinação antiautoritária de base que está presente na

história do grupo desde seu início.

Por fim, cabe destacar uma característica da subjetividade do Critical Art

Ensemble: sua mobilização da teoria com criatividade, ousadia, coragem e intrepidez

artística que o grupo transfere para o campo da resistência micropolítica. A práxis do

CAE é motivada pelo desejo de contribuir com a resistência cultural por meio de seus

atos artísticos, epistemológicos e políticos, que são performados por subjetividades

imbuídas de uma coragem extrema, que não retrocede nem ante a mais proeminente

potência mundial.

O legado que o CAE traz consigo até os dias atuais deixa entrever sua imensa

capacidade criativa em condensar problemas fundamentais da época presente, ao mesmo

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108

tempo que demonstra o resultado de um incansável esforço em estabelecer as condições

para que os experimentos artísticos ultrapassem quaisquer fronteiras, estéticas,

epistemológicas, políticas e tecnológicas, para enfim atingirem a vida cotidiana.

Os Anos de Formação

Um coletivo de ativistas como o Critical Art Ensemble, que possui uma trajetória

de mais de três décadas, tem atrás de si necessariamente muitas histórias para contar,

acontecimentos, desafios, impasses, mudanças de rumos, superações. Ainda mais quando

se trata de um grupo dado à experimentação cultural, que pretende intervir na esfera

pública com suas distintas formas de expressão, ensejando debates, reformulações de

práticas, valores, ideias e discursos sobre capitalismo, ciência, técnica, ecologia e artes,

alguns dos temas centrais para a humanidade que agora adentra o novo milênio com a

tarefa de repensar seu próprio destino.

Hoje considerado um dos expoentes da arte-revolta norte-americana, o CAE surge

no final da década de 1980 como um pequeno grupo que fez do desejo de transformação

uma fonte de criação. Nos anos iniciais de sua formação, a soma de talentos individuais

com uma determinação coletiva fez do experimentalismo um meio de empregar sua

revolta no campo artístico cultural, e o que é mais importante, na sua autoprodução

enquanto ser-coletivo-para-a-ação. Conhecido no mundo como praticante de mídia tática,

o CAE começou produzindo vídeos estilo garage, organizou eventos, happenings,

exibições, fez parcerias com artistas undergrounds e ainda atuou junto a movimentos

sociais minoritários à semelhança do ativismo tradicional.

Vistos em retrospectiva, os primeiros anos foram definidores quanto ao estilo e às

formas de ação empregadas ao longo da trajetória do grupo. A abertura para a

experimentação permitiu a aquisição de conhecimento, a descoberta de vocações, o

aperfeiçoamento de habilidades e técnicas que serviram de base para a constituição do

que veio a ser conhecido mundo afora como o Critical Art Ensemble.

O estilo de um artista surge aos poucos, precisa de tempo para amadurecer, e

quando é o caso de um grupo, então, não é diferente, a experiência torna-se fundamental

até que ele adquira vida própria. Em tempos de resistência, no entanto, a urgência exige

uma resposta ágil, por vezes improvisada no calor das batalhas. O CAE mostrou-se apto

a responder ao apelo da época com sua práxis nômade, no pensamento e na ação, porque

passou pela prova dos anos iniciais com determinação e criatividade, constituindo ao

Page 109: critical art ensemble - UFRN

109

mesmo tempo um estilo próprio que consolidou sua carreira nos circuitos internacionais

nos anos seguintes.

O período inicial da trajetória do CAE foi especialmente produtivo. Nele o grupo

empregou diversas formas de expressão, estabeleceu parcerias com artistas renomados na

cena underground, trocou experiências com produtores da resistência, fez trabalhos junto

a grupos minoritários aos moldes do ativismo tradicional e ainda reformulou a

organização interna do coletivo. Toda essa abertura para o novo, uma espécie de

disposição experimental, estética e micropolítica permitiu a formação de seu arsenal

artístico-cultural de base, desenvolvido posteriormente de forma exemplar.

Virada do Século

O tempo histórico não pode ser abstratamente circunscrito. Sua realidade consiste

nos acontecimentos concretos que transformam o conjunto da vida. A cronologia nada

mais é do que um referencial para algo que os números jamais poderiam contar. É com

essa compreensão que Eric Hobsbawm apresenta no seu livro Era dos Extremos uma

perspectiva histórica interessante segundo a qual o século que teria iniciado com a

Primeira Guerra Mundial havia chegado a seu termo logo após a queda do Muro de

Berlim.139 Mais do que um acontecimento político, a falência do regime soviético fora

interpretado como um signo entre outros para representar a fronteira de uma era, além da

qual se anunciava o século vindouro por meio de uma nova hegemonia, ao mesmo tempo

econômica, política e cultural.140

A predominância do capitalismo na esfera econômica, fato doravante inexorável,

também teve repercussões na arena política e na cultura. Junto ao capital globalizado, a

democracia burguesa e a cultura espetacular: assim dispostos, os três pilares da civilização

ocidental fincaram suas raízes na entrada do novo milênio.

No mesmo período que Francis Fukuyama declarava o fim da história, outras

forças sociais, culturais e políticas se agitavam nas rachaduras do ocidente, disputando os

mínimos espaços de resistência às tendências então dominantes. Afinal, a existência do

poder pressupõe seu contrário. Aparentemente, a hegemonia capitalista havia se

139 Cf. Eric Hobsbawm. Era dos extremos: o breve século XX: 1941-1991. São Paulo: Companhia das

Letras, 1995. 140 Cf. Richard Gilman-Opalsky. Specters of Revolt: on the intellect of insurrection and philosophy

from below. London: Repeater Boooks, 2016, p. 11.

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110

desvencilhado do incômodo socialista, mas não ao ponto de conter a revolta interna que

carcomia por dentro as engrenagens do império em formação com o fim da Guerra Fria.

Nos Estados Unidos não foi diferente. E o Critical Art Ensemble é um exemplo vivo

disso, pois formou-se exatamente no período de transição para a hegemonia do

capitalismo global protagonizado pelo estado norte-americano como um de seus avatares

mais destacados.

Quem poderia imaginar que, no bastião econômico e militar do ocidente, o sonho

de um grupo de jovens por um outro mundo possível daria vida a uma arte ousada como

a do Critical Art Ensemble, capaz de desafiar o Leviatã de seu tempo? A história tem

dessas surpresas, nem sempre é possível antever o que virá. Às vezes basta uma fagulha,

um desejo inflamado, para que o improvável, ou até mesmo o aparentemente impossível

torne-se realidade. No eterno retorno da ordem, um desvio, um pequeno distúrbio nas

engrenagens do tempo, e eis que algo novo surge.

Anos 80

No final dos anos 80 a administração Reagan implementava o seu projeto de

resgate das raízes capitalistas dos Estados Unidos. O programa de governo, denominado

Morning in America, representou uma verdadeira virada neoliberal: por um lado, com a

destruição dos serviços públicos, e por outro, com isenções fiscais para os mais ricos. Ao

nível internacional, seu corolário foi o intervencionismo bélico em nome da luta contra o

comunismo. A polarização acirrada que alimentava o imaginário político da época

ganhou novo fôlego neste período. Quando o Critical Art Ensemble ganhou forma, seu

alvo macropolítico tinha contornos bem definidos. Pouco depois, a crise da AIDS

despertou comoção e indignação, e teve um papel central na mobilização do coletivo.141

No campo artístico, os anos 80 tiraram do foco a arte engajada, herdeira da contracultura,

enquanto artistas como Barbara Kruger, Hans Haacke, Leon Golub e Jenny Holzer se

projetavam com trabalhos conceituais.142 Ao mesmo tempo, Basquiat e Schnabel,

representantes do neo-expressionismo, abriam espaços nas galerias e ganhavam para si

os holofotes do espetáculo com as cifras do mercado artístico ávido por novidades.

141 Cf. Steve Kurtz, in Stéphanie Lemoine e Samira Ouardi. Pour une résistance culturelle permanente.

Entretien avec Steve Kurtz du Critical Art Ensemble. Mouvements, 2011/1 (n° 65), p. 146 e p. 148. 142 Cf. Nato Thompson e Gregory Sholette (Ed.). The Interventionists: users’ manual for creative

disruption of everyday life, p. 13.

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111

Enquanto isso, fora dos circuitos consagrados, outras expressões artísticas, desta vez,

mais engajadas, viabilizavam suas produções com iniciativas coletivas, como o Group

Material e o General Idea, que persistiam em seus projetos experimentais e críticos

enfrentando o desafio de colocar em prática seus desejos, ante uma sociedade “alienada

por sonhos fabricados pelo marketing”.143

Princípios

Nesse momento histórico, enquanto as forças internacionais se rearranjavam e os

Estados Unidos se projetavam globalmente, o Critical Art Ensemble surgiu com sua verve

crítica, questionadora e radical. Desde então, a resistência cultural tem se beneficiado de

seus produtos culturais inteiramente políticos e artísticos. Os temas escolhidos pelo grupo

(capitalismo, tecnologia, poder) e as abordagens dadas a suas atividades (distúrbio,

intervencionismo) são referidos sempre a uma micropolítica da criação que anseia

produzir efeitos na cultura.

No livro Disturbances, lançado em 2012 pela Four Corners Books de Londres, o

CAE publicou pela primeira vez na forma impressa um portfólio com o vasto material

produzido pelo grupo ao longo de seus 25 anos de existência. Na obra estão registradas

as atividades do coletivo que marcou emblematicamente a história da arte-revolta com

uma trajetória ousada e crítica.144

A coletânea Disturbances oferece também a oportunidade do CAE fazer um

balanço de sua trajetória e uma chance de lançar uma nova visão sobre sua vasta obra,

tanto em termos de criação quanto na dimensão política que a subjaz. No prefácio que

abre o livro, o CAE define a perspectiva adotada para a edição do livro: “Nós queríamos

argumentar porque uma pessoa curiosa e inventiva escolheria uma trajetória cultural que

desafia ou mesmo se opõe a empresa, competição e lucro, e em vez disso se engaja com

autonomia, cooperação e prazer”.145

Nesta simples afirmação fica clara a postura de resistência do coletivo. Aí estão

expressos seus valores e motivos que norteiam a sua atividade: autonomia para pensar,

143 Cf. Steve Kurtz, in Stéphanie Lemoine, Samira Ouardi. Pour une résistance culturelle permanente.

Entretien avec Steve Kurtz du Critical Art Ensemble, p. 146-147. 144 CAE. Disturbances. London: Four Corners Books, 2012. 145 “We wanted to make an argument for why an inventive, curious person would want to choose a cultural

path that defies or is even hostile to enterprise, competition, and profit, and instead engages with autonomy,

cooperation, and pleasure”. CAE, Disturbances, p. 9.

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112

agir e criar; cooperação para produzir coletivamente, não só arte, mas relações de

colaboração entre os diversos agentes da resistência cultural; e por fim, prazer como signo

de satisfação, alegria e vontade de potência.

Os prós e os contras relativos a essa postura são também apresentados. Como

acontece com praticamente todos os grupos ou artistas que se engajam na arte-guerrilha,

no intervencionismo, na mídia tática e, em suma, no ativismo cultural, dificilmente há

algum retorno comercial para suas produções, por motivos óbvios. Isso significa, entre

outras coisas, que, para viver enquanto ativista cultural, é necessário muito trabalho e

dedicação, dentro e fora do universo da arte.

Não bastasse certa repulsa pelo trabalho alienado, a postura escolhida pelo CAE

desperta, por vezes, a desconfiança das agências disciplinares (do Estado, da indústria, e

até mesmo do campo artístico), ainda mais quando a forma ou o conteúdo da produção

do grupo demonstra o propósito de romper com o status quo ao fazer a crítica das

tendências autoritárias no universo da cultura: “Desde o início, estávamos ligados por

nossa crença comum na necessidade de resistência cultural às tendências autoritárias na

cultura e às injustiças do capitalismo”.146

No entanto, a disposição para o desafio, para a resistência, também tem o seu lado

positivo. O engajamento no ativismo micropolítico proporcionou ao CAE tempo livre

para criar, viajar, pesquisar, experimentar, inventar, interagir e, claro, inquietar, provocar,

romper as ideologias dominantes, os poderes disciplinares, as tecnologias de controle. E

o que é mais impressionante, o CAE conseguiu convencer algumas instituições a pagar

por tudo isso. O grupo resume assim o balanço geral de sua atividade ao longo das últimas

décadas:

Quando o processo está funcionando bem, somos capazes de nos

libertar da inexorável alienação e do conflito desnecessário inerente ao

impiedoso mundo da competição e da acumulação capitalista, enquanto

ao mesmo tempo trabalhamos com os outros para alcançar sua visão de

autonomia, cooperação e convivência.147

146 “From the beginning, we were bonded by our common belief in the necessity for cultural resistance to

authoritarian tendencies in culture and to the injustices of capitalism”. CAE, Disturbances, p. 20. 147 “When the process is working well, we are able to lift ourselves out of the relentless alienation and

unnecessary conflict inherent in the pitiless world of capitalist competition and accumulation, while at the

same time working with others to achieve their vision of autonomy, cooperation, and conviviality”. CAE,

Disturbances, p. 9.

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113

Autonomia, cooperação, convivência e prazer, estas foram sempre as motivações

do Critical Art Ensemble. Tendo elas em mente torna-se possível compreender a

longevidade do coletivo, a opção por colocar em ação práticas e movimentos culturais

que se inspiram no jogo, no bom combate, na resistência criativa, mais do que

institucional, encarnando um desejo ativo e uma intrepidez artística que assume a vontade

de mudança e o prazer na transformação como princípios micropolíticos norteadores de

suas atividades culturais.

Desde o seu surgimento, o CAE não parou de se metamorfosear. Ao longo dos

anos, os integrantes mudaram, alguns saíram, outros voltaram; as formas expressivas se

multiplicaram, do vídeo para a performance, da arte conceitual para os livros de ensaios;

e a alternância dos focos temáticos trabalhados pelo grupo, do mesmo modo, tudo isso

indica sua potência metamórfica, nômade, criativa.

Imagem 22 – Uma das primeiras formações do CAE, 1986-87. Da esquerda para a direita: Steven Barnes, Claudia Bucher, George Barker, Steve Kurtz, Greg Carter e Joel Whitaker.148

Os primeiros anos foram especiais quanto a isso, pois na passagem da década de

1980 para os anos 90 o CAE experimentou diversas formas de expressão e organização,

estabeleceu parcerias, trocou experiências com outros artistas e ativistas até configurar

uma micropolítica interna e externa que depois marcou toda a trajetória do coletivo.

148 CAE, Disturbances, p. 22.

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Exatamente como isso aconteceu é o que será tratado agora com uma breve retrospectiva

dos acontecimentos que moldaram a trajetória, a produção e o ativismo do coletivo nos

seus anos iniciais.

Surgimento

A história do Critical Art Ensemble começa na década de 1980, quando os futuros

membros do coletivo ainda cursavam universidade. Segundo o testemunho do CAE, as

origens históricas do grupo remontam aos anos de 1986 e 1987.149 Naquele período, as

ideias modernistas, a valorização do expressionismo abstrato e o culto ao gênio reinavam

nas abordagens acadêmicas e historiográficas das artes. A arte era tratada como expressão

individual de um gênio estético que o artista supostamente trazia em si. Muito embora

inseridos nos circuitos artísticos universitários, os mentores do CAE, Steven Barnes e

Steve Kurtz, inspiravam-se em outras referências que se projetavam fora da história da

arte modernista:

O engajamento político por meio da ação cultural que víamos nos

trabalhos do movimento de arte feminista, dos Situacionistas, do Living

Theater, do Teatro do Oprimido, do Art Action Group e do Group

Material parecia muito atraente e relevante.150

A vertente politizada da arte contemporânea, profundamente marcada pelas

temáticas sociais, aparece aí representada por alguns dos seus maiores expoentes.

Enquanto as artes bem comportadas animavam o espetáculo das indústrias culturais, a

arte-revolta traçou suas linhas criativas, contestatárias e, por vezes, imperceptíveis,

despertando o interesse de jovens em diversos países. E se ela inspirou os membros do

Critical Art Ensemble na origem não foi à toa: uma sensibilidade artística, estética, social

e política atenta ao mundo contemporâneo foi sempre um fator determinante para os

membros fundadores do grupo, que clamavam por expressões culturais mais engajadas

nos problemas históricos, nas questões pertinentes à época. O próprio nome do coletivo

designa a escolha por se colocar ao lado das linhagens politizadas da arte, com as quais o

coletivo pretendia colaborar doravante à sua maneira.

149 Cf. CAE, Disturbances, p. 24. 150 “Engagement with politics through cultural action that we had seen in the work of the feminist art

movement, the Situationists, the Living Theater, Theater of the Oppressed, Guerilla Art Action Group, and

Group Material seemed so much compelling and relevant”. CAE, Disturbances, p. 19.

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115

Imagem 23 – Membros do Group Material em 1980, um dos coletivos de arte que inspiraram o CAE. Em sentido horário, a começar no alto à esquerda: Szypula, Brennan, Rollins, Ault, Lebron, Nelson,

Jaker, Dones, Alderfer, Pakulsk.151

A questão do gênio, no entanto, permanecia intrigante, pois, segundo a

representação do mundo da arte tradicional por vezes dá entender, somente os muito raros

entre os mortais teriam a capacidade de se tornar artistas. A ideia então de montar um

grupo fazia sentido para ultrapassar a concepção um tanto romântica do gênio artista e

ainda proporcionaria a possibilidade de várias pessoas impulsionarem suas criações

mutuamente.

A resposta inicial foi um conjunto [ensemble] – nós teríamos muitas

das vantagens da produção em grupo, mas ainda mantendo a expressão

individual. Como um conjunto de jazz, nós escolheríamos o tema, e

cada membro poderia improvisar de maneira ‘única’ usando um meio

específico.152

151 Cf. Julie Ault (ed). Show and Tell: a chronicle of Group Material. London: Four Corners, 2010, p. 8.

– Ao longo de seus 16 anos de atividade, o Group Material produziu mais de quarenta e cinco exposições

e projetos públicos com a intenção de transformar a produção, apresentação e recontagem da cultura

contemporânea, inventando novas formas de atuação em museus e nas ruas. “Group Material foi fundado

por vários artistas que buscavam uma prática colaborativa na qual pudessem fundir seus interesses em arte

e política. Os treze membros originais incluíam Tim Rollins, Patrick Brennan, Julie Ault, Mundy

McLaughlin, Marybeth Nelson e Beth Jaker. Em 1980 e 1981, o Group Material operou no espaço de

exposições da loja na East Thirteenth Street, onde realizou uma série de shows focados em temas sociais.

Depois de 1981, o grupo encolheu para três membros e optou por não manter seu próprio espaço, mas criar

instalações em locais já existentes (espaços de arte alternativa, galerias universitárias e museus) e projetos

multiformes em público (principalmente através de intervenções que usam espaços públicos)”. Tradução

do excerto originalmente publicado em obra editada por Julie Ault, membro fundadora do Group Material:

Alternative Art, New York, 1965–1985: a cultural politics book for the Social Text Collective: the

Drawing Center, New York. Minneapolis: University of Minnesota Press and The Drawing Center, 2002.

Fragmento disponível em: http://dlib.nyu.edu/findingaids/html/fales/groupmaterial/bioghist.html Acesso

10 de abril de 2019. 152 “The initial answer was an ensemble – we would have many of the advantages of group production, but

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116

Como em uma banda de jazz cada membro tem o seu momento de apresentar sua

individualidade artística com solos improvisados, assim também, o Ensemble de arte

crítica foi pensado originalmente para ser o suporte para a expressão individual de seus

integrantes.

No primeiro momento, o nome Critical Art Ensemble foi pensado para designar

os trabalhos em vídeos low-tech ou de garagem produzidos por Steven Barnes e Steve

Kurtz. Contrariando uma convenção comum presente no campo da produção de vídeos

de assinar a autoria com nomes pessoais, Barnes e Kurtz optaram por assinar os

curtametragens que eles produziam então com o nome do grupo. Embora algo

aparentemente simples, a atitude de formar um conjunto artístico para atuar no campo da

produção de vídeos amadores foi importante pois a partir desse impulso inicial a

criatividade do grupo mostrou-se cada vez mais fecunda.

Os títulos dos curtametragens realizados no início da carreira do grupo indicam

algumas das influências artísticas, literárias e conceituais de então. Para mencionar alguns

exemplos, eis os títulos nos quais se identifica mais diretamente as referências do CAE:

Artaud’s Thoroughly Modern Express, Baudrillard’s Lasso, Crystals and Praxis,

Excremental Culture, Foucault’s Paradox, Godard Revisited, Homo Duplex, Hyperbole

and Insubordination, Hysterical (Re)marks, Ideological Virus, An Immortal’s

Distractions, Isou’s Chisel, Less Than Utopia, Misappropriation, Sign of Desire, Speed

and Violence.153

Nominalmente, aparecem Artaud, Baudrillard, Foucault, Godard e Isou (fundador

da Internacional Letrista que precedeu os Situacionistas na França), e implicitamente é

possível abstrair Guy Debord (na forma de composição dos vídeos), Paul Virilio (com a

problemática da velocidade) e Deleuze e Guattari (que aparecerão com mais destaque em

seguida).

Com a produção dos vídeos, a proposta era tornar visível problemáticas tratadas

no mais das vezes teoricamente nos campos especializados de conhecimento das

humanidades, nos departamentos de artes e ciências sociais. Havia uma certa

desconfiança por parte do CAE que as teorizações elaboradas nas universidades

permaneciam muito abstratas, de difícil acesso e compreensão para a maior parte do

público externo ao campo acadêmico.

still maintain individual expression as well. Like a jazz ensemble, we would pick the theme, and each

member could riff on it in their own ‘unique’ way using specific medium”. CAE, Disturbances, p. 20. 153 Cf. CAE, Disturbances, p. 26-29.

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117

Imagem 24 – Frames de dois filmes produzidos pelo CAE.154

Os vídeos eram tentativas de traduzir o pós-estruturalismo e o pós-marxismo em

algo acessível e mais próximo à realidade do público não especializado, que normalmente

se mostrava reticente à postura hiperteórica que trazia consigo jargões, neologismos e

ambiguidades.

Ainda que os membros do grupo tenham se esforçado para aprender, compreender

e aplicar nas suas artes o universo conceitual acadêmico, a situação não era fácil, pois

saindo das universidades, das faculdades de artes e ciências humanas, o valor da

comunicação praticamente cessava. A linguagem acadêmica permanecia pouco eficaz

para a compreensão do público não-iniciado.

Foi por esse motivo que o CAE investiu sua criatividade conceitual, técnica e

artística na produção de 25 curtametragens até os anos 90 a fim de experimentar com a

linguagem audiovisual formas de comunicação para um público amplo na esfera da

cultura; uma produção, portanto, numerosa e diversificada, que demandou envolvimento

e um cuidado especial por parte do coletivo.

154 CAE, Disturbances, p. 26 e p. 28.

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Primeiros Movimentos

Ainda em 1987, os membros fundadores do CAE resolveram experimentar outras

formas de expressão além do vídeo, o que resultou na incorporação de novos integrantes

para somar com a dupla inicial. As incursões nas atividades multimídias e os trabalhos

coletivos começavam a ganhar forma. A ideia de tornar as produções do coletivo

diversificadas ganhou realidade com a contribuição de diferentes especialidades no

campo das técnicas artísticas que os novos membros do grupo trouxeram consigo.

Depois de mais um ano, em 1988, a formação do CAE, então composta por 7

integrantes, passou por novas mudanças. Os membros fundadores, Barnes e Kurtz,

permaneceram após uma rápida recomposição do grupo. Deixaram o CAE George

Barker, Claudia Bucher e Jeniffer Canterberry, e entraram Hope Kurtz, Dorian Burr,

Beverly Schlee e Ricardo Dominguez, conformando assim um grupo que se manteve

coeso por mais de uma década. (Ver Apêndice 3 – Formações do CAE).155

Com as mudanças de formação iniciais, o conceito do grupo foi reformulado.

Havia chegado o momento em que não fazia mais sentido tratar o Critical Art Ensemble

como plataforma para expressões puramente individuais. A inserção no campo mais

amplo das artes, a interação com outros grupos, o aprofundamento da reflexão, os debates

que animavam as conversas certamente inspiraram perspectivas inovadoras e a ideia de

agenciamento coletivo ganhou destaque nas práticas do grupo.

Tamanha efervescência resultou ainda na modificação da autoimagem conceitual

do CAE, que assumiu definitivamente o viés coletivo de sua produção. Tornou-se

portanto um coletivo artístico propriamente dito, que opera ao mesmo tempo como

catalisador e expressão de uma inteligência eminentemente coletiva.

Muito embora a concepção de um grupo pequeno baseado na afinidade privilegie

uma organização na qual a individualidade dos integrantes seja respeitada, o Critical Art

Ensemble ganhou com tal metamorfose um estatuto próprio, singular, que não representa

nenhum membro especificamente. O que poderia parecer contraditório com a proposta

inicial, significa na realidade a busca pela coerência com a crítica que se faz à própria

ideia de autoria vinculada ao indivíduo, concepção que está em consonância com a

discussão da arte-revolta desenvolvida nas últimas décadas face ao modernismo artístico.

155 Cf. CAE, Disturbances, p. 272.

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119

Diferente do que aconteceu no universo da pop art (com Andy Warhol), a feição

pública do CAE não tem rosto. O que existe concretamente é uma assinatura, que vem

ocupar o lugar normalmente designado ao autor. Assim, a autoria individual é superada

pelo agenciamento coletivo, que nesse sentido leva a assinatura do Critical Art Ensemble,

considerado entidade com existência e subjetividade próprias.

Tanto é que ao longo de seus mais de 30 anos de existência houve em torno de 8

formações, com entradas e saídas de membros,156 sem que o coletivo perdesse com isso

seus traços característicos, seus princípios geradores. Do mesmo modo, toda a rica

produção composta por obras escritas, vídeos, exibições, performances, instalações, foi

selada pela insígnia do coletivo. A questão colocada pelo CAE não é produzir de forma

anônima (seus integrantes estão sempre presentes nas performances, são personagens

conhecidos nos circuitos da arte-revolta), mas de reconhecer o caráter coletivo da

produção artística e cultural nos termos da arte contemporânea experimentada pelo

coletivo.

Desde então, a nova conceituação do CAE modificou a práxis interna do grupo:

cada indivíduo tem seu papel na nova dinâmica interna e passa a trabalhar em torno de

conceitos e projetos agenciados coletivamente, afinal, o objetivo almejado sempre foi a

cooperação e não a competição. Na prática, os projetos coletivos, agenciados mediante o

modelo orgânico da interdependência entre os membros do grupo, tornaram-se a forma

predominante de criação e trabalho do CAE até o presente, somando a eventuais parcerias

culturais, artísticas e micropolíticas que também fazem parte da história do grupo.

Dinâmica Interna

Com a entrada de novos integrantes, tornou-se necessário decidir sobre o tamanho

do grupo. Se o objetivo era formar um coletivo coeso e capaz de colocar em prática seus

objetivos, respeitando os princípios de autonomia, amizade, cooperação, convívio e

prazer, então a questão da organização interna tornava-se fundamental.

Desde o princípio, o grupo se formou com base nas afinidades dos integrantes

entre si. Para manter a sinergia interna funcionando bem foi preciso pensar um modelo

de organização no qual as individualidades, respeitadas em si mesmas, também dessem

156 Cf. CAE, Disturbances, p. 272.

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120

vida a uma vontade partilhada de produzir conjuntamente algo que fosse ao mesmo tempo

relevante para o coletivo e prazeroso para o indivíduo.

Pouco a pouco, a cooperação em torno de processos coletivos de criação substituiu

o modelo individualista, e essa mudança por si só repercutiu na dinâmica interna do

grupo, na maneira de coordenar as ações e colocar em prática os potenciais de cada

integrante. Até o início dos anos 90 o modelo do conjunto (ensemble) foi perdendo espaço

para a prática dos projetos coletivos (collective), nos quais as potencialidades de cada

membro entram em um processo orgânico de interdependência que cria uma entidade

maior do que a soma das partes.

Nós reunimos membros de modo que as habilidades não se

sobrepusessem. Esta solução funcionou por um curto período de tempo,

mas entre os que permaneceram após o primeiro ano (dois dos sete

originais), bem como entre os novos recrutas (Hope Kurtz, Dorian Burr,

Ricardo Dominguez e Bervely Schlee), arraigou-se a ideia de que

deveríamos ser mais um coletivo [collective] do que um conjunto

[ensemble]. O individualismo tinha que ser abandonado porque criava

muito atrito por meio da competição, em vez de produzir a cooperação

necessária. Na prática o modelo do conjunto [ensemble] continuou com

uma capacidade cada vez menor até meados dos anos 90, enquanto os

projetos coletivos [collective projects] tornaram-se cada vez mais parte

da nossa prática. Ao mesmo tempo, o modelo orgânico

(interdependência através de especialização visando criar uma entidade

maior que a soma de suas partes) continua até o presente. A tatuagem

modernista foi lentamente lavada.157

A dinâmica e a dimensão do grupo foram pensadas com o intuito de possibilitar a

participação direta dos integrantes nos processos de criação, em relações face a face nas

quais a amizade dá o tom do convívio. Por vezes, os coletivos de artistas tem sido uma

das instâncias encontradas para a vivência de relações interpessoais significativas. No

contexto sociocultural capitalista, onde impera a competição desenfreada, afirmar os

valores de cooperação, solidariedade, prazer e autonomia demarca uma postura de

resistência. Além do mais, indica uma posição política fundamentada em uma voz de

autorreferência elaborada coletivamente.

157 “We assembled members so that our skill bases did not overlap. This solution worked for a short period

of time, but among those remaining after the first year (two of the original seven) as well as among the new

recruits (Hope Kurtz, Dorian Burr, Ricardo Dominguez, and Bervely Schlee) the idea began to take root

that we had to be more of a collective than as ensemble. The individualism had to be abandoned, because

it created too much friction through competition rather than producing the needed cooperation. While in

practice, the ensemble model continued in an ever-diminishing capacity into the mid-90s, collective

projects became an ever-increasing part of our practice. At the same time, the organic model

(interdependence through specialization aimed at creating an entity greater than the sum of its parts)

continues into the present. The modernist tattoo was slowly washing off”. CAE, Disturbances, p. 20.

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121

O formato celular fundamentado na afinidade opera também como uma espécie

miniaturizada de sociedade contra o Estado.158 No caso do Critical Art Ensemble não

existe a necessidade de um líder público, e contando com o número pequeno do grupo

(que teve uma única formação de 7 membros durante toda a sua trajetória, sendo as

demais formações ainda menores numericamente) a questão do poder se coloca de outra

maneira. O certo é que há uma forma de organização que dispensa a figura de autoridade

e se ampara na horizontalidade das relações, afastando desta forma, antecipadamente, o

surgimento de qualquer autoridade separada da vontade do grupo.

O tamanho do grupo por si só não explica em absoluto a ausência de autoridade

ou liderança formal em um grupo, mas a dimensão do coletivo influencia nas relações de

poder. Em uma organização celular, composta por um número pequeno de integrantes,

diminuem as chances dos indivíduos serem anulados. Suas vozes encontram

voluntariamente ressonância no grupo. O contato próximo, pessoal e amigável de uns

com os outros permite uma participação direta em quase todos os processos, sem

necessidade de hierarquia fundada na obediência.

O agenciamento coletivo do CAE optou por se diferenciar no modelo de

protagonismo dos seus membros nas atividades do grupo. Ao invés de exigir

comprometimento e produtividade iguais para todos no tempo e na dedicação às suas

atividades, o grupo preferiu considerar as disposições individuais, que nem sempre são

as mesmas, e para respeitar as diferenças, em termos micropolíticos, optou por deixar em

aberto a forma como cada membro se dedicará às atividades do coletivo.

O modelo padrão da vez era o da igualdade: todos faziam a mesma

quantidade de trabalho e tinham participação igual nas decisões do

grupo. O CAE rejeitou esse modelo acreditando que as pessoas não são

iguais na maneira como encontram prazer na produção e no serviço; as

diferenças podem ser extremas. Nós acreditamos que os indivíduos tem

a capacidade de se colocar no processo como uma pessoa em vez de ser

reduzida a um mecanismo de trabalho cumprindo uma cota. O processo

de trabalho emerge com as interações ao longo do tempo, e não através

de contratos, regras e regulamentos, por mais consensuais que tais

acordos possam ser.159

158 Cf. Pierre Clastres. A sociedade contra o estado: pesquisas de antropologia política. São Paulo: Cosac

& Naify, 2003, p. 222-224. 159 “The standard model of the time was one of equality: everyone did the same amount of work, and had

equal input into group decisions. CAE rejected this model, believing people are not equal in the way they

find pleasure in production and service; the differences can be extreme. We believed that individuals should

be able to bring themselves to the process as a person and not be reduced to a mechanism of labor fulfilling

a quota. Work process had to emerge through interactions over time, rather than through contracts, rules,

and regulations, however consensual such agreements might be”. CAE, Disturbances, p. 20.

Page 122: critical art ensemble - UFRN

122

Para o CAE, portanto, o processo de participação surge dinamicamente, nas

interações, com o passar do tempo, e não segundo a fórmula contratual. Fiel a uma

pragmática experimental, o agenciamento do coletivo é processual e aberto, passível de

mudanças e adaptações conforme as necessidades e os desejos dos envolvidos, o que

permite dinamicidade, flexibilidade e reconhecimento dos participantes do processo

inteiro.

Com relação à organização e à dinâmica do poder internas, o CAE decidiu assumir

um modelo que comporta uma certa divisão de tarefas, muito embora modificável e

meramente funcional no que se refere aos processos de criação do grupo:

(...) nos quais a pessoa com mais experiência em uma determinada área

teria o poder de fazer julgamentos finais sobre um projeto ou um

elemento específico de um projeto. Por exemplo, o designer teria a

última palavra em questões de design. Isso mantém o processo de

tomada de decisão eficiente, mas sem introduzir a variedade de

alienações comuns na divisão industrial e pós-industrial do trabalho.160

A divisão das tarefas responde ao princípio de respeitar as individualidades e

valorizar os talentos de cada integrante. O CAE sempre se opôs ao princípio econômico

da eficácia e da produtividade que normalmente opera nas indústrias culturais, a começar

pela dinâmica do grupo, e se empenhou em neutralizá-lo internamente colocando em

primeiro lugar os princípios da liberdade e do prazer.

Ainda assim, a divisão de tarefas que subjaz à produção cultural do grupo condiz

com a escolha de se valer de vários meios e técnicas de expressão em suas produções

culturais, afinal, gestar projetos e processos que envolvem vídeo, performance, escrita,

tecnologias, propaganda, etc., requer muitas habilidades, competências,

responsabilidades e, sobretudo, pessoas comprometidas. Projetos dessa natureza são

impensáveis sem colaboração e pressupõem necessariamente um trabalho em equipe.

Este tem sido inclusive um desafio enfrentado pelos artistas mais convencionais, que são

forçados a acumular diversas atribuições a fim de viabilizarem seus projetos.

O contexto das artes na passagem do século XX para o século XXI, devido à

industrialização do entretenimento, da cultura e das artes, passou a requerer cada vez mais

160 “(…) in which the person with the most expertise in a given area would have the power to make final

judgments on a project or on a specific element of a project. For example, the designer would have the last

word on design questions. This kept the decision-making process efficient, but without introducing the

variety of alienations common in the industrial and postindustrial division of labor”. CAE, Disturbances,

p. 20.

Page 123: critical art ensemble - UFRN

123

competências dos artistas e produtores culturais em geral, que necessitam somar diversas

habilidades e técnicas para darem vida a seus projetos e se destacarem no meio cultural.

Uma das respostas a tais imperativos da arte institucional, industrial e espetacular que

gira em torno de museus, órgãos financiadores, estatais ou privados, foi dada pelo boom

da arte coletiva, performática e social que caracterizou as últimas décadas.

Tais escolhas marcam a micropolítica da criação e do convívio do CAE, que prima

pela somatória das contribuições individuais para que os membros do coletivo se vejam

no produto final. Do contrário, dificilmente seria possível distinguir a atividade

empreendida pelos indivíduos no grupo do trabalho alienado que ocupa a vida dos

indivíduos nas empresas capitalistas.

Segundo a concepção clássica de Marx, o trabalho alienado promove um processo

produtivo no qual o produtor não se reconhece no produto de seu trabalho. O resultado

do trabalho alienado aparece ao produtor como algo que lhe é estranho. A fim de superar

isso, no CAE houve sempre o cuidado de não reduzir a prática criativa à mera

produtividade, nem confundir a criação com obrigação, dever, trabalho. O prazer no

convívio, na inventividade, no jogo, no combate, e a satisfação na resistência cultural, nas

alianças micropolíticas, nos agenciamentos coletivos, nas viagens e nos resultados nem

sempre esperados, foram alguns dos princípios da dinâmica do grupo ao longo dos anos.

Tudo considerado, enquanto coletivo formado por artistas engajados nas

problemáticas sociais e preocupados com a criação de novos conteúdos, sua expressão

pública, ao mesmo tempo estética e social, pretende ser o resultado de um processo

micropolítico de tipo afirmativo e criador. Nesse sentido, o Critical Art Ensemble encarna

uma micropolítica da criação por excelência, antes de tudo, de amizades, e em termos

gerais, de discursividades, visibilidades e experiências partilhadas por quem mantém

contato com o grupo e suas obras.

Grupos de Criação

Ao tratar da produção cultural é possível distinguir conceitualmente dois tipos de

grupos, que Félix Guattari denomina sujeitos e sujeitados. Um grupo é considerado

sujeito sempre que remete sua produção enunciativa, discursiva, prática e imagética, ao

próprio desejo sem submeter-se aos imperativos sociais. Diz-se sujeitado, por sua vez,

aquele grupo no qual o processo de enunciação ocorre no sentido contrário, ou seja,

submetido às estruturas estabelecidas. Nas palavras do autor:

Page 124: critical art ensemble - UFRN

124

O grupo sujeito, ou que tem vocação para sê-lo, se esforça para ter um

controle sobre sua conduta, tenta elucidar seu objeto e, nesse momento,

secreta os meios desta elucidação. (...) O grupo sujeitado não se presta

a tal perspectivação; ele sofre hierarquização por ocasião de seu

acomodamento aos outros grupos. Poder-se-ia dizer do grupo sujeito

que ele enuncia alguma coisa, enquanto que do grupo sujeitado se diria

que “sua causa é ouvida”. Ouvida, aliás não se sabe onde nem por quem,

numa cadeia serial indefinida. Esta distinção não é absoluta, ela

constitui apenas uma primeira aproximação nos possibilitando indexar

o tipo de grupo com que lidamos em nossa prática. Na realidade ela

funciona à maneira de dois pólos de referência; qualquer grupo, mais

especificamente os grupos sujeitos, tendem a oscilar entre estas duas

posições: a de uma subjetividade com vocação a tomar a palavra, e a de

uma subjetividade alienada a perder de vista na alteridade social.161

Um grupo de criação é sujeito antes de mais nada de sua própria constituição.

Opera com relação a saberes e poderes de modo a retroagir sobre seu ser mesmo.

Implicado nos processos ativos no mundo social, experimenta uma abertura subjetiva e,

portanto, micropolítica, que se mantém em constante questionamento. No primeiro tomo

da obra Capitalismo e Esquizofrenia, Deleuze e Guattari desenvolvem a distinção, que é

feita nos seguintes termos:

Todos os investimentos são colectivos, todos os fantasmas são

fantasmas de grupo e, neste sentido, afirmação de realidade. Mas os

dois tipos de investimentos [um segregativo e outro nomádico] são

radicalmente distintos, porque um relaciona-se com as estruturas

molares que a si subordinam as moléculas e o outro, ao contrário,

relaciona-se com as multiplicidades moleculares que a si subordinam

os fenómenos estruturais de massa. Um é um investimento de grupo-

sujeitado tanto na forma de soberania como nas formações coloniais do

conjunto gregário, que reprime e recalca o desejo das pessoas; o outro

é um investimento de grupo-sujeito nas multiplicidades transversais em

que o desejo é um fenómeno molecular, isto é, objectos parciais e

fluxos, em oposição aos conjuntos e às pessoas”.162

O caso do Critical Art Ensemble é exemplar quanto a isso. Ao se esforçar em

tornar conscientes seu desejo, os motivos de sua atividade e os pressupostos de suas ações

no campo artístico e cultural, o CAE pode ser considerado um grupo sujeito e portanto de

criação no sentido específico aqui empregado. Ademais, a produção de desejo inerente

161 Cf. Félix Guattari, “A transversalidade”, in Revolução molecular: pulsações políticas do desejo. São

Paulo: Brasiliense, s/d, p. 92. 162 Cf. Gilles Deleuze e Félix Guattari, “Introdução à esquizo-análise”, in O Anti-Édipo: capitalismo e

esquizofrenia 1. Lisboa: Assírio & Alvim, 2004, p. 292. Para mais referências sobre a distinção, ver Gilles

Deleuze, “Três problemas de grupo [1972]”, in A ilha deserta – textos e entrevistas (1953-1974). São

Paulo: Iluminuras, 2006.

Page 125: critical art ensemble - UFRN

125

ao agenciamento do coletivo, como potência afirmativa, elabora seus próprios valores,

discursos e processos aos quais correspondem a atitude do grupo no mundo. Atitude esta

que se reflete nas relações interpessoais, nas pragmáticas artísticas, na micropolítica da

resistência e nas formas de expressão escolhidas para viabilizar sua arte crítica e torná-la

conhecida. Do mesmo modo, a maneira como os integrantes se relacionam entre si, as

formas como produzem e deliberam os processos criativos caracterizam uma

micropolítica da criação, que surge e emana do agenciamento coletivo acionado por seus

integrantes.

A distinção entre grupos sujeitos (chamados neste trabalho de Grupos de Criação)

e grupos sujeitados foi elaborada por Guattari no contexto da década de 1960, período

que entrou para a história pela eclosão do desejo e pela multiplicação dos movimentos

sociais, os mais diversos. Uma época que, animada por novos protagonistas sociais e

micropolíticos, colocou em xeque as formas consolidadas de ativismo político.

Na França começaram a se formar pequenos grupos que deviam sua existência a

afinidades socioculturais não abarcadas no movimento operário. As condições de

existência mudaram muito nos países industrializados. A juventude europeia do pós-

guerra teve que reconstruir o mundo após a ruína deixada para trás pelos Nazistas. A

reorganização das instituições francesas, a reestruturação do capitalismo a nível mundial,

a complexificação das sociedades em termos internacionais, todos esses fatores afetaram

a produção do desejo revolucionário.

Havia chegado o momento histórico do surgimento de novos movimentos cujas

reivindicações, agendas e bandeiras possuíam especificidades próprias. Ao lado das lutas

de classes típicas do ativismo tradicional da classe trabalhadora eclodiram os movimentos

feministas, a luta antipsiquiátrica, os ecologistas, o movimento gay, e mesmo o

movimento estudantil desenvolveu pautas diferenciadas.

Nos Estados Unidos aconteceu algo semelhante. Depois dos Beatniks, entraram

em cena movimentos de luta por direitos civis. Os Black Panthers, os Hippies e toda sorte

de grupos contraculturais ganharam o mundo com suas bandeiras, éticas e estéticas

inovadoras. Houve, em suma, uma efervescência política e cultural importante em vários

países, inclusive no Brasil, durante as décadas de 1960-70.

Os protagonistas das novas reivindicações culturais e políticas vieram somar seus

esforços e suas esperanças como vias alternativas aos partidos e sindicatos há muito

consolidados como instâncias da luta de classes. Ocuparam a arena pública movimentos

minoritários, grupúsculos de afinidade e as mais distintas agremiações com intenções

Page 126: critical art ensemble - UFRN

126

políticas específicas. Neste fenômeno, Guattari viu a eclosão do desejo revolucionário

que não cabe em fórmulas definitivas e por isso se expressa de distintas formas no campo

social, cultural e político como uma potência mutante, transformadora.

Nas décadas de 1980-90 ocorreu um fenômeno semelhante no campo das artes e

das resistências: uma eclosão do desejo revolucionário, mais especificamente nos

circuitos da arte-revolta que tentava se reinventar para contrapor uma alternativa à

cooptação da potência artística para propósitos capitalistas, espetaculares, industriais e

mercadológicos. O impasse diante da apropriação espetacular das artes no contexto

neoliberal obrigou a resistência cultural a desenvolver novas formas de atuação na esfera

da cultura sem se submeter aos imperativos dominantes. A isso se deve a histórica

tendência da arte-revolta em recorrer a formas de intervenção pragmáticas que

caracterizou o período. As artes coletivas, socialmente engajadas, os grupos de criação

que se organizaram em distintos países começaram a intervir em comunidades, em locais

específicos, realizando um trabalho cultural de intervenção micropolítica que mais tarde

culminou nas parcerias com os movimentos pela alterglobalização, e mais recentemente,

no Occupy Wall Street.

Pluralismo

Durante os anos 80, o mundo das artes foi tragado pelos imensos aparelhos de

captura do espetáculo capitalista. A indústria cultural imperava praticamente sozinha. As

artes formais, o neoexpressionismo e o recrudescimento da arte pop cooptaram não só as

mais distintas técnicas, concepções e estéticas outrora inovadoras, como ainda foram

capazes de colocar em xeque os ícones da resistência cultural. Após tanto tempo na

resistência anticapitalista e antiautoritária, a arte crítica foi convidada a ocupar um lugar

modesto no palco do espetáculo capitalista. As democracias liberais haviam encontrado

uma forma de neutralizar a arte-revolta, já que extingui-la parecia algo impossível. Agora

que quase tudo podia ser arte, a vertente crítica tornou-se, no melhor dos casos, uma

curiosidade.

Visto em retrospectiva, a mistura de todos os estilos, técnicas e estéticas em um

universo artístico pluralista não fez bem à arte-revolta, paradoxalmente. Pois se a fórmula

niilista do “tudo é permitido” vale para o universo artístico, e qualquer coisa pode ser

considerada arte, então a arte crítica é igualmente integrada como uma categoria a mais

admitida no campo, e o que poderia resultar positivo, na realidade contribui para

Page 127: critical art ensemble - UFRN

127

neutralizar o aspecto disruptivo contido nas expressões da arte-revolta, a partir de então

considerado algo normalizado, estilístico, exotismo, expressão quiçá radical de sujeitos

descontentes com o mundo.

Hal Foster, crítico de arte destacado no cenário contemporâneo, foi um dos

primeiros a chamar a atenção para os efeitos regressivos do fenômeno. Ele defende a tese

de que “num estado pluralista a arte e a crítica tendem a se dispersar e se tornar

impotentes”.163 E ao contrário do que se poderia supor, o pluralismo na arte, ao invés de

liberar as potências da revolta, assinala uma forma de tolerância que não ameaça o status

quo, simplesmente, porque as imensas capacidades criativas que encontram na crítica e

no descontentamento sua fonte de inspiração são canalizadas para a fabricação de mais

representações artísticas a fim de que não se tornem combustível para rupturas políticas.

Assim, não há perigo de revolta real, mas uma pálida ou estridente representação da

revolta em circunstâncias controladas. A revolta corporal, que seria a mais impactante,

no entanto, chega a ser admitida mediante o processo de dessublimação regressiva, ou

seja, em espaços delimitados e condições circunscritas. O estado pluralista da arte tolera

a crítica e a revolta enquanto tema, discurso, representação, contanto que nunca se

apresentem como alternativas práticas de transformação para além das fronteiras do

establishment artístico.

Por outro lado, o uso de signos e imagens em um contexto cultural saturado

colocou um problema a mais para os artistas, ativistas e produtores culturais da

resistência. Como disputar a atenção do público sem a concorrência desleal dos produtos

massivos da indústria cultural e suas microrracionalidades publicitárias, que operam um

marketing quase onipresente? Que formas usar para fazer a produção cultural chegar até

o público sem passar pelos meios de produção do espetáculo? De que maneira superar a

arte-mercadoria?

Face a tais questões, uma gama de novos agentes micropolíticos, artísticos e

culturais dispuseram-se a investir em experimentos, ações e performances que jogam com

o ser inteiro, seu corpo e as subjetividades, atuando junto a grupos específicos, in loco,

em comunidades, no espaço urbano, como estratégia de burlar as artes da representação

capturadas pelo capitalismo espetacular e, ao mesmo tempo, intervir diretamente na vida

cotidiana.

163 Cf. Hal Foster, “Contra o pluralismo”, in Recodificação: arte, espetáculo, política cultural. São Paulo:

Casa Editorial Paulista, 1996, p. 33-38.

Page 128: critical art ensemble - UFRN

128

O Revide da Arte-Revolta Contra o Espetáculo

A arte-revolta adentrou a década de 1990 com o desafio de se reinventar. Frente à

sociedade do espetáculo que torna os sujeitos passivos em relação à vida e ao mundo, a

jogada dos coletivos de arte e produção cultural de resistência foi apostar nos dispositivos

artísticos que possuem uma expressividade micropolítica diferenciada, focada na

presença do corpo a corpo. As artes performáticas, que já tinham uma história importante,

pareciam os meios de intervenção mais adequados para enfrentar o impasse da época. O

pressuposto para superar o registro da representação (inscrito e mantido pelo espetáculo)

era empregar novos meios de produção artísticos e culturais distintos daqueles utilizados

pela indústria cultural.

A carga simbólica das imagens ou os textos abertamente políticos deixavam de

ser as melhores formas de comunicar em uma época na qual a pregação é vista com

suspeita. Em parte pela exaustão visual provocada pelas indústrias culturais, em parte pela

queda do Muro de Berlim e pela privatização do espaço visual e público, o cenário

cultural dos anos 90 se transformou e impôs à resistência cultural a busca por uma

resposta à altura do desafio.164

O Critical Art Ensemble desempenhou um papel de destaque neste movimento

com sua práxis inventiva. O interesse em organizar exibições multimídia, ações artísticas,

happenings e performances desencadeou uma metamorfose do coletivo. A produção de

curtametragens, com suas filmagens, colagens e edições, por mais que fosse interessante,

tornou-se limitada face à vontade de promover acontecimentos artísticos de impacto,

realmente mobilizadores dos desejos, da imaginação e das subjetividades envolvidas nos

processos em geral, inclusos produtores culturais, artistas e público. O elemento

tecnológico, presente na produção conceitual dos vídeos, continuou desempenhando um

papel importante mas tornou-se um componente, entre outros, à disposição do novo

agenciamento coletivo. Do mesmo modo, a arte conceitual, a abordagem social e crítica

que constituíam partes importantes na produção do grupo passaram para o primeiro plano,

vindo a ocupar funções centrais para o que viria a ganhar forma logo mais.

Segundo o testemunho do CAE,165 o que estava em jogo era a vontade de superar

uma arte demasiado presa à representação. Agora, o grupo se movia pelo desejo de se

164 Cf. Nato Thompson, “Trespassing Relevance”, in Nato Thompson e Gregory Sholette (Ed.). The

Interventionists: users’ manual for creative disruption of everyday life, p. 14. 165 Cf. CAE, Disturbances, p. 24.

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129

lançar na experimentação com as tecnologias, com os corpos, nas interações vivas com

as pessoas, na dimensão propriamente performática, muito mais propícia aos

acontecimentos transformadores junto ao público. Concretamente, foi a entrada em cena

dos corpos, a configuração de ações deliberadas em um ativismo micropolítico cultural,

artístico, tecnológico e performático. Pouco a pouco, o corpo saiu da posição de

manipulador das técnicas (de filmagem, edição, montagens, etc.) para ocupar ele mesmo

o cenário de uma experiência estética múltipla.

O CAE assume neste período uma postura ativa no campo das resistências, coloca-

se à frente, estabelece alianças, amplia laços artísticos, viabiliza parcerias com outros

coletivos e opera sua micropolítica da criação. A ideia motriz passava a ser intervir na

cena cultural por meio de exposições, performances e instalações, as mais diversas.

Tecnologias, corpos, imagens, conceitos, ações, relações, discursos, subjetividades, as

ricas combinações entre os elementos agenciados deram vida ao que, posteriormente, veio

a ser denominado pelo coletivo de Teatro Recombinante.

Os eventos produzidos desde então materializaram no campo mais amplo da

cultura o anseio de ultrapassar a mera representação artística, para dar vida a artes

performáticas, relacionais, antropotecnológicas no sentido de promoverem plataformas

interativas, também denominadas situações, que funcionam como catalisadoras de

mudanças, sejam discursivas, subjetivas, relacionais, sociais ou mesmo antropotécnicas.

Com essas práticas, o Critical Art Ensemble foi parte ativa de um processo de

reconfiguração da resistência cultural desencadeada na passagem da década de 1980 para

a de 1990.

Para melhor compreender o lugar do CAE nas transformações mais amplas da

resistência cultural é preciso considerar o fenômeno de conjunto da arte-revolta desse

período, pois segundo Nato Thompson, se é possível fazer uma generalização sobre a arte

política que emerge após a queda do Muro de Berlim, deverá ser a recusa quase unânime

em restringir suas ações a meras representações.166

Se o espetáculo oferece uma cultura pronta e reproduzida em escala industrial para

imediato consumo, então, a arte-revolta produz seus efeitos de resistência operando

dispositivos micropolíticos nos quais os elementos estéticos, discursivos e performáticos

são ao mesmo tempo relacionais, coletivos e micropolíticos, pois rompem com a

passividade do espectador por meio do contato direto entre os produtores e o público.

166 Nato Thompson, “Trespassing Relevance” in Nato Thompson and Gregory Sholette (Ed.). The

Interventionists, p. 14.

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130

As artes performáticas, a tendência site specifc art, os happenings, a arte comunal,

os projetos de arte social engajada, entre outras denominações, compõem desde então as

nomenclaturas da nova resistência artística que se formou na contramão da ordem

espetacular ganhando as formas de um movimento de tipo novo, disperso a princípio, mas

concatenado em redes de compartilhamento de ideias e apoio mútuo.

Enquanto o capitalismo continua investindo massivamente em artes de

representação, ou em formas de recepção passivas de seus produtos, a arte-revolta, em

revanche, decide por ir ter com as pessoas, estabelece plataformas interativas, inventa

processos estéticos coletivos, faz valer sua potência micropolítica afetando os indivíduos

diretamente, chamando-os a se expressar em conjunto, em resistência aos imperativos

autoritários infiltrados no cotidiano, nas relações interpessoais, ou até mesmo nas

subjetividades.

Essas práticas de intervenção com teor artístico, poético e político acionadas pela

resistência cultural no final do século XX não são necessariamente novas.

Historicamente, é possível afirmar que elas foram inventadas pelas vanguardas do

futurismo, do dadaísmo e do surrealismo, e desde então tornaram-se referenciais para as

vertentes de artes performáticas, coletivas e sociais retomadas e desenvolvidas a partir da

década de 1960.

No sentido práxico, a arte que busca criar situações com uma estética da presença

engajada na vida cotidiana, possui uma pré-história muito mais ligada aos

desenvolvimentos do teatro e da performance do que à história da pintura e do ready-

made, vertente esta consumada na arte de instalação.167 Com engenhosidade, os

movimentos da arte-revolta do pós-guerra investiram pesado na invenção de dispositivos

performáticos híbridos, em termos conceituais, teóricos e práticos, de tal modo que por

vezes tornaram-se difíceis distinguir os elementos políticos de uma prática artística dos

elementos estéticos de uma práxis micropolítica. Vinte anos depois, na passagem para a

década de 1990, a tendência performática atinge seu grau mais difundido, justo no período

em que o Critical Art Ensemble começa a despontar na resistência cultural ao apostar nas

intervenções micropolíticas.

167 Claire Bishop sugere que “the pre-history of recent developments in contemporary art lies in the domain

of theatre and performance rather than in histories of painting or the ready-made”. Cf. “Artificial Hells: the

historic avant-garde”, in Artificial Hells: participatory art and the politics of spectatorship. New York:

Verso, 2012, p. 41.

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131

A crítica da arte-revolta, sobre a apropriação das estéticas outrora subversivas pela

instituição da arte e pelo capitalismo espetacular, fez com que as artes performáticas se

tornassem uma alternativa muito real de resistir às tendências mercadológicas e

capitalistas. Enquanto as estéticas surrealista e dadaísta eram apropriadas pela cultura

pop, os artistas socialmente engajados nas questões da época perceberam que uma saída

para a arte-revolta conseguir manter-se livre dos imperativos capitalistas seria produzir e

veicular um tipo de arte incapturável para os propósitos mercadológicos. Ao invés de

fabricar bens de consumo como quadros, pinturas, objetos – contrapor-se com a invenção

de experimentos, com a elaboração de intervenções no espaço social, a fim de ocupar a

esfera pública por dentro, nas relações entre as pessoas.

Produções Multimídias

Diante dos impasses enfrentados na época, o CAE começou a organizar projetos

que envolviam palestras, elaboração de roteiros, ensaios escritos, livros conceituais,

vídeo-performances e intervenções que, de um modo geral, descortinavam e subvertiam

as tendências autoritárias na cultura. Em uma época na qual quem pensasse que arte e

política podiam andar juntas corria o risco de ser considerado um pária, o coletivo fez

valer sua revolta criadora ampliando ainda mais suas formas de expressão micropolíticas

por meio da arte.

Colocar-se na contracorrente do que se esperava de um grupo de artistas

desconhecidos oriundos da Universidade do Estado da Florida, onde o expressionismo

abstrato permanecia em alta conta, significava uma postura rebelada, carregada de

ousadia, criatividade e determinação nem sempre fáceis de encontrar.

Os questionamentos se multiplicavam. À semelhança das preocupações do

coletivo com as dinâmicas internas ao grupo, como a questão do poder inerente às

relações interpessoais, havia um cuidado especial com relação à recepção do público, há

muito acostumado ao papel de mero espectador. O CAE se questionava com o mesmo

ímpeto: quais as melhores formas de trabalhar em grupo? Que táticas usar para ampliar

as redes de colaboração dos produtores culturais no contexto da resistência? Como

produzir um evento multimídia, que une performance, artes visuais, discursos e

tecnologia de ponta? E o que é mais importante: como manter o questionamento crítico

da política e da economia sem recorrer aos típicos métodos da propaganda ou do

didatismo?

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132

Imagem 25 – Programação e cartaz do evento Political Art in Florida (?).168

Com tantas ideias animadoras, faltava entretanto a experiência de como colocar

tudo em prática. As primeiras incursões nos projetos coletivos serviram de aprendizado.

Era preciso inventar meios de produção artísticos que proporcionassem ao público uma

experiência extracotidiana, ao mesmo tempo convidativa e questionadora, sem no entanto

entregar tudo pronto, aos moldes da propaganda comercial ou ideológica.

Uma das primeiras ideias foi organizar um evento multimídia, que teve o nome

Political Art in Florida (?). A essa altura, em 1988, o Critical Art Ensemble era um

coletivo com pouca ou nenhuma projeção e dava ainda seus primeiros passos na produção

cultural. Mesmo assim, convidou o coletivo de artistas Group Material a participar. Com

anos de experiência e uma trajetória de certa forma consolidada na cena underground

norteamericana, o Group Material enviou um representante. Dough Ashford169

168 CAE, Disturbances, p. 33. 169 “Doug Ashford é professor, artista e escritor. Ele é Professor Associado da Cooper Union para o Avanço

da Ciência e da Arte, onde ministra seminários de design tridimensional, escultura, arte pública e teoria

desde 1989. A principal prática visual de Ashford, de 1982 a 1996, foi a colaboração junto ao Group

Material, que produziu mais de 40 exposições e projetos públicos internacionalmente. O Group Material

desenvolveu exibições justapondo design e curadoria como uma locação crítica onde o público era

convidado a imaginar formas democráticas. O trabalho do Group Material foi coletado no livro Show and

Tell: a chronicle of Group Material (Four Corners Press, 2010) – editado pela colaboradora de longa data

de Ashford, Julie Ault. Desde 1996, Ashford continua a fazer pinturas, escrever e produzir projetos em

museus e espaços públicos. Seu trabalho em práticas públicas foi compilado no livro Who Cares (Creative

Time, 2006), uma publicação construída a partir de uma série de conversas entre Ashford e um conjunto de

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133

compareceu ao evento e abriu os trabalhos com uma palestra, atraindo curiosos e

admiradores devido ao renome artístico de seu grupo. Foi uma ótima oportunidade para

dialogar, aprender, trocar ideias e experiências sobre os rumos da arte engajada

socialmente. O balanço do CAE foi positivo. O evento contou com uma programação

diversificada: palestra, exibição de vídeos, performances, música e até poesia espacial.

Esse tipo de evento, ao estilo dos happenings com várias formas de expressão, tornou-se

uma inspiração para o Critical Art Ensemble.

Imagem 26 – Critical Art Ensemble em ação multimídia durante a turnê Political Art in Florida (?).170

Em seguida, uma série de eventos menores foram realizados, até que o CAE sentiu

a vontade de experimentar um outro tipo de ambiente, mais distante do campo acadêmico

e do universo artístico. Desta vez, o lugar que abrigou a intervenção cultural foi o Pappy’s

Blues Bar, em Jackson, capital do Mississippi. A escolha do local não poderia ser mais

inusitada.171 O espaço era frequentado geralmente por negros com idade mais avançada

do que a dos integrantes do Critical Art Ensemble, e por um público afeito ao blues e ao

jazz. Mesmo assim, a interação com toda a produção multimídia preparada pelo CAE sob

o título Live Art foi positiva e satisfatória, de tal maneira que o grupo se deu conta das

vantagens de levar sua arte e suas produções até o público, ao invés de simplesmente

outros profissionais da cultura em expressão pública, beleza e ética em 2006. A recente publicação,

Writings and Interviews de Doug Ashford (Mousse Publishing e Grazer Kunstverein) foi publicada em

2013”. Cf. http://www.dougashford.info/?page_id=64 Acesso 10 de abril de 2019. 170 CAE, Disturbances, p. 33. 171 Cf. CAE, Disturbances, p. 34.

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134

esperar que as pessoas viessem aos eventos. Esse foi, sem dúvida, o impulso inicial que

resultou em uma certa prática de nomadismo, caracterizado não só pelo uso flexível de

técnicas e formas de expressão, como ainda, na movimentação geográfica, que opera

deslocamentos em busca de novos pontos de ocupação temporária para a manifestação da

arte micropolítica.

O próximo projeto marcante no histórico do Critical Art Ensemble foi

denominado Frontier Production. O formato live com várias atrações intercalando

palestra, vídeos, slides, poesia e performance, dessa vez introduziu um número de dança.

O evento teve início com uma palestra proferida pelo artista e escritor Thomas Lawson,172

uma atração de renome. Entre outros colaboradores, o CAE participou com um número

de poesia hipertextual, performance, vídeo e excepcionalmente uma cena de dança.173

Imagem 27 – Ricardo Dominguez, do CAE, em uma performance multimídia na turnê Frontier Production, em 1988.174

172 “Thomas Lawson (nascido em 1951, Glasgow, Escócia) é artista, escritor, editor de revista e decano da

Escola de Arte do Instituto de Artes da Califórnia. Ele emergiu como uma figura central nos debates

ideológicos na virada da década de 1980 sobre a viabilidade da pintura através de ensaios críticos, como

‘Last Exit: Painting’ (1981) e como um dos artistas no vagamente definido grupo ‘Pictures Generation’.

Ele tem sido descrito como ‘um correspondente firmado [e] editorialista polêmico’ que articulou uma

posição progressista e oposicionista para a pintura representacional dentro de um ambiente de arte e mídia

cada vez mais reacionário”. Cf. https://en.wikipedia.org/wiki/Thomas_Lawson_(artist) Acesso 10 de abril

de 2019. 173 Cf. CAE, Disturbances, p. 36-39. 174 CAE, Disturbances, p. 37.

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135

Na sua especificidade, este projeto levou a produção multimídia para as fronteiras

dos Estados Unidos. A ideia era deslocar o ativismo cultural para onde ele mais

necessitava. Normalmente, as artes contemporâneas encontram seu lugar de destaque nos

grandes centros urbanos, em termos gerais formando circuitos de arte institucional, um

mercado cultural mais bem delineado e ainda algumas cenas undergrounds. Disso resulta

uma concentração de atividades culturais, artísticas e mesmo de resistência em

determinadas localidades, enquanto outras cidades carecem de algo minimamente

parecido.

O experimentalismo do Critical Art Ensemble adquiriu movimento, cruzou

distâncias, interviu em cenas locais, colocou em prática suas discussões teóricas, e no

meio do processo, ganhou aliados, promoveu sua inserção no circuito da arte engajada.

De certa maneira, o projeto Frontier Production foi uma verdadeira turnê, na qual o

coletivo de jovens artistas da experimentação estética redescoberta colocaram à prova

tudo o que sabiam e pensavam sobre arte, crítica, tecnologia e política.

Apocalipse e Utopia

Um dos últimos filmes produzidos pelo CAE foi Apocalypse and Utopia (1992),

uma resposta ao típico documentário que parecia dominar a cena de vídeos politizados no

início dos anos 90. Em geral, um documentário dessa natureza comportava cenas de

agitadores, palavras de ordem e exposição dos alvos da crítica realizada, no mais das

vezes, em tom de denúncia. Isso por si só não desqualifica nenhuma produção, porém, na

interpretação do CAE o formato se mostrava muito artificial e quase um clichê.

Uma alternativa a esse modelo foi modificar o método em dois aspectos

fundamentais. Primeiro, no lugar de focar nos pontos de crise (uma injustiça ocasional,

um acontecimento de grande comoção, algo realmente excepcional), lançar luzes sobre

subestruturas autoritárias latentes em fenômenos ordinários.175 Uma das vantagens de

mudar o foco do acontecimento pontual para o fenômeno cotidiano, corriqueiro, é

permitir uma certa aproximação do tema abordado com o universo de referências dos

espectadores, facilitando assim a produção de uma percepção e um entendimento

diferenciados quanto ao que é vivido.

175 Cf. CAE, Disturbances, p. 242.

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136

Em segundo lugar, a mensagem do filme deveria tornar clara ao espectador a

natureza subjetiva da obra, escapando à tendência hegemônica de vincular a produção de

documentários à fabricação da verdade. Produzir um vídeo realmente crítico que se

diferencie da competição em torno da verdade pressupõe inovar nos meios empregados

para expor as ideias. A suspeita implícita a tal decisão é que o poder das mídias gira em

torno da fabricação e propagação de ideologias com valor de verdades, quando o mais

coerente, da perspectiva de uma arte realmente crítica, seria evidenciar o caráter

construído, editável, parcial, de toda produção filmográfica.

O Apocalypse and Utopia poderia ser classificado como documentário ou não-

ficção, pois trata de dar voz a produtores culturais cujo trabalho é discutir e debater sobre

o que é real. A reunião de várias vozes em perspectiva sobre determinados temas

proporciona, além do mais, a percepção da realidade a partir de vários pontos de vista,

permitindo ainda ao espectador uma oportunidade de refletir por si próprio sobre os

assuntos tratados.

Do vídeo participaram Arthur e Marilouise Kroker (que trabalham com teoria,

tecnologia e cultura),176 Tom Kalin (do Gran Fury),177 o Coletivo Autonomedia,178 Greg

Ulmer179 e o próprio Critical Art Ensemble. Entre os assuntos presentes na obra estão

zonas autônomas temporárias, redesignação de gênero, sacrifício animal e corpo sem

órgãos, temáticas que demonstram algumas das influências da resistência cultural norte-

americana do início dos anos 90: Hakim Bey, Artaud, Deleuze e Guattari, feminismo,

entre outros.

176 “Arthur e Marilouise Kroker são os hipsters da teoria da mídia canadense. A mídia os ama porque seu

estilo de apresentação é urbano e sexy, suas ideias, mergulhadas em savoir-faire, cyberpunk e pomo lit crit.

Os Krokers têm uma grande quantidade de textos na Web: enquanto alguns são promocionais para suas

publicações sob a marca do New World Perspectives, há seleções substanciais de livros publicados,

entrevistas e artigos sobre eles, e ensaios coletados no jornal on-line CTheory

http://ctheory.concordia.ca/krokers/.” Cf.: https://www.media-studies.ca/articles/kroker.htm Acesso 8 de

abril de 2019. 177 Gran Fury formou-se a partir do grupo de ação direta no contexto da crise da AIDS na América. O nome

do grupo deriva da expressão usada para designar o automóvel usado pela política de Nova York. O grupo

criou trabalhos para a esfera pública tocando em questões médicas, morais e públicas relacionadas à crise

da Aids. Cf.: http://www.tomkalin.com/gran-fury Acesso 8 de abril de 2019. 178 Autonomedia se autodefine como uma zona autônoma para as artes radicais que se valem tanto de mídias

antigas quanto novas. Trata-se de uma editora que durante alguns anos manteve parceria com a

Semiotext(e), responsável por introduzir o pensamento francês pós-estruturalista nos Estados Unidos. Os

livros publicados pelo coletivo Autonomedia versam sobre mídia radical, política e artes que se inspiram

em linhagens anarquistas heterodoxas. Cf.: http://autonomedia.org/node/78 Acesso 8 de abril de 2019. 179 “Gregory Leland Ulmer (nascido em 23 de dezembro de 1944) é professor do Departamento de Inglês

da Universidade da Flórida (Gainesville) e professor de Linguagem Eletrônica e Cybermedia na Escola

Europeia de Pós-Graduação em Saas-Fee, Suíça”. Cf.: https://en.wikipedia.org/wiki/Gregory_Ulmer

Acesso 8 de abril de 2019.

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137

Segundo o CAE,180 a coleção dos discursos veiculados pelos interlocutores do

filme poderia revelar uma visão geral das correntes autoritárias latentes no interior da

cultura norte-americana. O tratamento conceitual do vídeo, as reflexões que ele causou,

os efeitos de pensamento oriundos de sua concepção e realização, serviram para a

elaboração de um ensaio que compôs o primeiro livro teórico do grupo. No processo de

produção do filme, a aproximação com o Autonomedia Collective, que edita publicações

com teor anarquista e crítico, mostrou-se fecunda pois a parceria se consolidou de maneira

exemplar nos anos seguintes, com a edição e publicação de quase todos os títulos do

Critical Art Ensemble até os tempos atuais, com exceção de um único livro, o portfólio

Disturbances.

Conexões com o Ativismo Tradicional

O último projeto realizado em Tallahassee antes do CAE ganhar o mundo teve

como tema a crise da AIDS que acometia os Estados Unidos no final de 1989. Desta vez,

o evento teve o propósito de arrecadar fundos para o AIDS Support Services da cidade e

formar, com as pessoas envolvidas com a crise, a primeira AIDS Coalition to Unleash

Power (ACTUP) da Florida. A situação era difícil pois a discussão, à época, era guiada

pela visão cristã. Então, apesar da dificuldade, mobilizar as pessoas na formação de

grupos, promover reflexões e problematizar a situação dada já era algo positivo.

Contribuir nesse sentido significava demonstrar que nem o Estado, nem os preconceitos,

governam sozinhos a realidade.

A experiência com a campanha Cultural Vaccines mostrou-se fecunda e os

objetivos foram atingidos. Cartazes da campanha, elaborados em parceria com o Gran

Fury, circularam nos espaços públicos da cidade, e novas alianças micropolíticas deram

força para a formação da coalisão dos comitês de trabalho sobre a crise da AIDS.

Pouco tempo depois, o Critical Art Ensemble se envolveu em um segundo projeto

relacionado a minorias. Desta vez, as ações se desencadearam junto à organização de

trabalhadoras do sexo PoNY, Prostitutas de Nova York.

Nos anos 80 e 90 o clima não era dos melhores para quem oferecia seu serviço

sexual nas ruas da metrópole. Havia se instalado uma política urbana para varrer a

prostituição da cena pública. As mortes que noticiavam os jornais e os boatos que

180 Cf. CAE, Disturbances, p. 242.

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138

circulavam no mercado pornô sobre provável envolvimento da polícia com os

assassinatos indicavam a gravidade da situação. Se o próprio estado tratava a prostituição

como crime, então não havia a quem recorrer. Expor o corpo a céu aberto para possíveis

clientes tornara-se definitivamente uma atividade perigosa.

Imagem 28 – Pôster de autoria do coletivo Gran Fury, apresentado na campanha Cultural Vaccines produzida pelo CAE.181

Da crise envolvendo a AIDS à associação das prostitutas, o CAE deu continuidade

a atividades de propaganda. Aproximou-se do universo underground da prostituição,

interagiu com as agentes do campo, debateu sobre uma realidade complexa e estabeleceu

laços de cooperação e solidariedade. Ao mesmo tempo, o medo que pairava no ar

inflamou o desejo de resistir.

Com as alianças motivadas pela luta, foi organizada a exibição New Sex Experts,

promovida por cartazes e pequenas panfletagens nas ruas da cidade. As imagens

distribuídas passavam a mensagem do empoderamento e da resistência de quem

trabalhava com o sexo. A crítica travestida de ironia e contradição deu o tom da campanha

publicitária em volta da exibição e do projeto.

181 CAE, Disturbances, p. 42.

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139

Imagem 29 – Premiação oferecida ao Critical Art Ensemble pela associação PoNY.182

A parceria com o movimento resultou na publicação da primeira PoNY Press: a

newsletter published by and for the New York City sex-worker’s community. A exibição

propriamente dita contou com a participação da modelo e correspondente de uma revista

pornô, Veronica Vera, que palestrou diante de uma plateia acalorada pelos ânimos

exaltados de algumas feministas anti-pornô. Além disso, as atividades do projeto se

estenderam em uma instalação realizada no New Museum pelo Gran Fury, outro coletivo

apresentado à organização PoNY pelo Critical Art Ensemble.

Nesse ínterim, a prática social havia transformado a arte em um meio de produção

da crítica, e a experiência coletiva, em um aprendizado constante. Mesmo assim, o êxito

dos processos não aplacou o vontade de criação. Tendo diante de si os fatos recentes, a

sensação do Critical Art Ensemble oscilava. Não havia um consenso quanto a continuar

182 CAE, Disturbances, p. 107.

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140

com um trabalho da mesma natureza, colocando-se como instrumento ou porta-voz dos

outros. Desde Maio de 68 que esse modelo de ativismo tradicional passava por

transformações. Foucault desnudou em palavras o sentimento por vezes inconfessável de

alguns que se outorgam o poder de falar pelos demais, ao invés de falar com eles. Além

disso, tornar-se instrumento do que os outros fazem também não é coerente com os

prospectos de uma resistência que encontra na autonomia um princípio de ação.

Imagem 30 – À direita, Hope Kurtz, integrante do CAE, durante a campanha do grupo com a associação PoNY em 1990.183

De fato, haviam problemas sociais delicados e graves afetando as pessoas, e

quanto mais a resistência se organizasse a fim de ajudar a quem precisava de apoio em

um momento tão crítico, tanto melhor. Uma causa sem dúvida nobre. Entretanto, o

sentimento do grupo apontava para caminhos diferentes. Parecia muito mais estimulante

aplicar a criatividade coletiva nos seus próprios projetos, com o conhecimento adquirido

em pesquisas, na troca de ideias com os amigos e parceiros da resistência artística.

Colocar-se à disposição para trabalhar com uma causa específica possui seus aspectos

positivos, mas o CAE havia adquirido a convicção de que poderia contribuir de maneira

mais relevante para os prospectos da resistência cultural dedicando-se a seus próprios

projetos. Viajando pelo mundo, ocupando museus, as ruas, o ciberespeaço, dentro e fora

das instituições, na arena pública, o CAE desejava lançar sua potência criadora nos fluxos

da resistência artística e cultural, com intervenções e pensamentos críticos, doravante

183 CAE. Disturbances, p. 109.

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141

focando nos problemas da civilização. É o que o grupo afirma na retrospectiva de sua

trajetória:

Nós não queríamos nos esgotar. Queríamos um relacionamento coletivo

de longo prazo. Queríamos pesquisar novas táticas e técnicas de

resistência. Queríamos usar todo o espectro de nossas habilidades

intelectuais e inventivas para nos tornarmos uma ala de pesquisa

generalizada e produção cultural para a Esquerda.184

O coletivo ansiava desenvolver pesquisas mais amplas, concernentes a questões e

problemas relativos à civilização, ao capitalismo, à produção de conhecimento e

tecnologia. A verve teórica, conceitual, presente desde a formação do grupo, ganhava

novos contornos, afetando sua micropolítica interna e externa (com relação aos

movimentos sociais tradicionais de então). A tendência em problematizar temáticas

abrangentes como a internet, a razão, a tecnologia e o capitalismo sempre de uma

perspectiva crítica e engajada veio a se tornar, pouco a pouco, o modelo de atuação do

CAE na esfera da cultura. Somado a isso, o emprego de vários meios de expressão como

forma de intervir e ocupar temporariamente a arena pública exigia do CAE dedicação a

pesquisas, estudos, criações estéticas, entre outras atividades de organização e produção

culturais que tomavam quase completamente a atividade de seus integrantes. Dividir o

tempo e a energia com outros processos tornava-se cada vez mais custoso. Era preciso

então decidir os rumos a seguir. A escolha, quanto a isso, talvez não tenha sido tão difícil

de fazer:

A afiliação do CAE com o ativismo tradicional acabou. Nós nunca mais

nos amarramos a um grupo específico ou a uma campanha novamente.

Em 1990, nosso treinamento no trabalho também estava terminado.

Sabíamos quem éramos, quais eram nossos interesses e como

desenvolvê-los.185

Neste momento tem-se uma tomada de posição autorreferencial do CAE quanto à

sua própria trajetória. As atividades desenvolvidas ao longo dos anos, em parceria com

artistas, ativistas e minorias, todas as práticas inerentes à organizações dos eventos

184 “We didn’t want to burn out. We wanted a long-term collective relationship. We wanted to research new

tactics and techniques for resistance. We wanted to use the full spectrum of our intellectual and inventive

abilities in order to become a generalized research and cultural production wing for the Left”. CAE,

Disturbances, p. 40. 185 “CAE’s affiliation with traditional activism was over. We never tied ourselves to a specific group or

campaign again. By 1990, our on-the-job training was also over. We knew who we were, what our interests,

and how to develop them”. CAE, Disturbances, p. 40.

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142

multimídia, as viagens, os debates, a troca de experiências, sem dúvida geraram

aprendizados somente possíveis de serem interiorizados e assimilados no interior dos

movimentos. A escola da resistência se faz na prática, com engajamento nos processos

inerentes às micropolíticas da criação. Doravante o CAE passará por novas

transformações e emergirá para o cenário internacional, com suas performances,

intervenções e livros. O que resultou desse ponto de bifurcação na trajetória do Critical

Art Ensemble será assunto dos próximos capítulos.

Imagem 31 – Steve Kurtz do CAE em ação durante uma apresentação na turnê Frontier Production.186

Imagem 32 – Hope Kurtz do CAE em ação durante uma apresentação na turnê Frontier Production.187

186 CAE, Disturbances, p. 36. 187 CAE, Disturbances, p. 38.

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CAPÍTULO 3

OS ARSENAIS ANTROPOTÉCNICOS DA REVOLTA:

A ESTÉTICA DO DISTÚRBIO

Em toda criação existem, desde o início, iniciativas sempre singulares

(sejam dos grupos ou dos indivíduos), mais ou menos diminutas, mais

ou menos anônimas. Tais iniciativas provocam uma interrupção,

introduzindo uma descontinuidade não apenas no exercício do poder

sobre a subjetividade, mas também e sobretudo na reprodução dos

hábitos mentais e corporais da multiplicidade. O ato de resistência

introduz descontinuidades que são novos começos, e estes começos são,

por sua vez, múltiplos, disparatados, heterogêneos. – Maurizio

Lazzarato, Resistência e criação nos movimentos pós-socialistas.188

Palavras e Gestos Radicais

Nos anos 90 o CAE dá uma guinada na produção de teoria crítica. Depois das

experiências na resistência cultural, dos eventos multimídia e da colaboração na

militância junto a minorias, chegou a vez de apostar no jogo das teorias ativistas. As

práticas de arte engajada, que faziam parte das atividades do grupo, comportavam

também interesse pela discussão conceitual em decorrência da formação acadêmica dos

membros do CAE. Steve Kurtz possui doutorado interdisciplinar em história da arte,

literatura comparada e filosofia, e Steven Barnes também é professor e designer.

Se por um lado os conteúdos veiculados pelas universidades mostram-se de difícil

acessibilidade para os não iniciados nas elucubrações teoréticas pós-modernas, por outro,

as práticas culturais, artísticas e multimídias demandam constantes reflexões sobre

questões sociais, políticas e tecnológicas. Nesse cenário, os praticantes da arte-revolta

tornam-se personagens híbridos.

Desde a década de 1990, o ativista, o pesquisador, o produtor, o performer, o

técnico, o teórico, todas essas figuras, quando não encarnam em uma só pessoa

superdotada, formam redes de interações nas quais se formam outros tipos de artistas,

intelectuais e ativistas. Cada vez mais, as ações artísticas envolvidas com o público

pressupõem discussões teóricas.

188 Maurizio Lazzarato. As revoluções do capitalismo. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2006, p. 233.

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A insistente problemática de como tornar as ideias científicas e filosóficas de fácil

apreensão necessitava de uma saída. A crítica ao modelo artístico de viés conceitual

acadêmico, que acompanhava o grupo desde a sua formação, precisava ser enfrentada

com criatividade. Pensando nisso, o CAE começa a produzir seus próprios ensaios

teóricos como forma de embasar suas práticas e se fazer compreender. E ao se deparar

com a falta de obras gestadas pelos artistas ativistas sob uma perspectiva engajada nos

processos de resistência, um novo campo de atuação se descortina.

Artists’ Books

A princípio, a investida em publicações impressas se deu na forma de livros

artísticos (artists’ books). Enquanto os modernistas se aferravam a valores como

originalidade, o CAE, formado por uma geração pós-moderna no campo teórico e prático

(alguns dos seus membros foram punks na adolescência e acadêmicos na juventude),189

ousou na incorporação de métodos de apropriação, recombinação, plagiarismo,

détournement e remix como forma de produção poética.190

Subverter assim o princípio da “genialidade” implícito na noção de autoria tal

como entendida no registro da tradição parecia fácil por se tratar de uma prática presente

na história das artes. Os dadaístas com as colagens e os situacionistas com os desvios

foram mestres na subversão textual e imagética. Com boa vontade, desprendimento,

imaginação e veia poética, os textos fluem. O desafio a ser enfrentado pelo CAE tinha a

ver com a publicação de seus escritos. A questão a ser respondida era como viabilizar

suas publicações e fazê-las circular.

Para determinados nichos, mesmo no campo da resistência, o livro sempre

mantém o seu valor, porém, dificilmente uma editora aceita imprimir e lançar obras de

artistas desconhecidos do grande público, ainda mais com textos subversivos na forma e

no conteúdo. O CAE assume então diretamente a tarefa de publicar seus escritos poéticos

no formato de livros artísticos, feitos sob os próprios cuidados, a começar pelo design e

pela escrita, passando pela composição material e feitura até a distribuição. Para torná-

los atrativos, a alternativa adotada foi fabricá-los em edições limitadas com materiais

189 Cf. Stéphanie Lemoine, Samira Ouardi. Pour une résistance culturelle permanente. Entretien avec

Steve Kurtz du Critical Art Ensemble. Mouvements, 2011/1 (nº 65), p. 143-158. Disponível em:

https://www.cairn.info/revue-mouvements-2011-1-page-143.html Acesso 10 de julho de 2019. 190 Cf. CAE, Disturbances. London: Four Corners Books, 2012, p. 248.

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especiais, usando técnicas tipográficas e encadernações manuais, tudo feito com esmero

para tornar os livros-objetos ainda mais atrativos esteticamente. Assim, tem-se uma ótima

forma de camuflagem: com a aparência sedutora, o conteúdo provocativo circula mais

facilmente.

Eis como o CAE consegue superar as dificuldades e publicar seus primeiros livros

impressos, fazendo com que seus escritos se insinuassem nos circuitos da impressa

poética e educacional da época.191 Em formatos variados foram publicados ao menos 6

títulos no decorrer de 10 anos (1988-1998): Cronicas Brazileiras (1989, 20 p.),

Texthypertext (1989, 12 leaves), Nova Text (1990), Arkaeologika (1990), Traces of the

Virtual (1993) e Diseases of Consciousness (1998, 64 p.).

Imagem 33 – Artists’ Books do Critical Art Ensemble.192

Hoje em dia esses livros são verdadeiras raridades. Geralmente fazem parte de

coleções especiais em museus ou pertencem a colecionadores. Em uma das obras se lê

uma frase que resume a concepção com a qual o CAE trabalha: “Poesia hipertextual é

uma metáfora para uma constelação textual que já foi sempre nova [has aways already

191 Cf. CAE, Disturbances, p. 248-255. 192 CAE, Disturbances, p. 249.

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gone nova]”.193 Na mesma página, onde aparecem os nomes de Lautréamont, Roland

Barthes, Stewart Home, Baudelaire e Burroughs, os Neoístas e os Letristas, é possível ler

uma passagem, sem qualquer referência, que no entanto revela uma das influências do

grupo: “As ideias melhoram. O sentido das [Antigas e Modernas] palavras entra em jogo.

O plágio é necessário. O progresso supõe o plágio. Ele se achega à frase de um autor,

serve-se de suas expressões, apaga uma ideia errônea, a substitui pela ideia correta”.194

Trata-se de uma citação do livro A sociedade do espetáculo, publicado em 1967

por Guy Debord. O aforismo 207 faz parte do capítulo intitulado “A negação e o consumo

na cultura” e é bastante conhecido pois nele o plágio ganha seu estatuto político assumido.

Na tradução brasileira: “As ideias melhoram. O sentido das palavras entra em jogo. O

plágio é necessário. O progresso supõe o plágio. Ele se achega à frase de um autor, serve-

se de suas expressões, apaga uma ideia errônea, a substitui pela ideia correta”.195 O CAE

simplesmente copiou o aforismo e inseriu as palavras [Ancients and the Moderns] para

imprimir sua marca, aplicar o método e incrementar o sentido. O plágio como tática de

subversão da cultura-espetáculo é uma constante na produção do CAE. O tema do Plágio

Utópico, ainda insipiente, será amplamente desenvolvido em um ensaio que vem a

público no primeiro livro propriamente teórico do grupo, lançado em 1994.

Teoria Crítica Engajada

Na trajetória do CAE, a publicação dos livros artísticos registra uma experiência

poética inspirada no conceito de détournement (traduzido como desvio), procedimento

inventado por Isidore Isou, mentor do Letrismo, e desenvolvido posteriormente pela

Internacional Situacionista. Segundo Anselm Jappe:

No letrismo de Isou já se encontra uma boa parte do espírito que, mais

tarde, caracterizará Debord e os situacionistas, quer lhe permaneçam

fieis ou o superem: antes de tudo, a convicção de que o mundo inteiro

deve, primeiro, ser desmontado e, depois, reconstruído, não mais sob o

signo da economia mas sob o da criatividade generalizada.196

193 “Hypertextual poetry is a metaphor for a textual constellation that has aways already gone nova”. CAE,

Disturbances, p. 251. 194 “Ideas improve. The meaning of [Ancients and the Moderns.] words participates in the improvement.

Plagiarism is necessary. Progress implies it. It embraces an author’s phrase, makes use of his expressions,

erases a false idea, and replaces it with the right idea”. CAE, Disturbances, p. 251. 195 Guy Debord. A sociedade do espetáculo. Rio de Janeiro: Contraponto, 1997, p. 134. 196 Anselm Jappe. Guy Debord. Petrópolis, Vozes, 1999, p. 70.

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As obras compostas de “poesia hipertextual” atualizam as bricolagens das

vanguardas e antecipam o desdobramento posterior dado pelo CAE à própria concepção

da prática, que aparece de forma amadurecida pouco depois no ensaio intitulado “Plágio

utópico, hipertextualidade e produção cultural eletrônica”197.

Em meio às atividades multimídia, uma mudança política interna direciona os

interesses do grupo para os aspectos macropolíticos. Agir na micropolítica não deve

eximir a análise macro. Com a internet e a abertura do ciberespaço, a atenção volta-se

também para as tecnologias e as articulações do poder.

Em meio a esse processo, começam a aparecer fragmentos de ideias, novas

nomenclaturas e esboços teóricos. As leituras de autores modernos e contemporâneos,

como Thoreau, Artaud, Baudrillard, Deleuze e Guattari, ganham novos sentidos à luz das

produções culturais engajadas. De forma poética, a produção textual se metamorfoseia e

torna-se ensaística, teórica. A criatividade começa a gestar uma teoria de tipo radical.

Nem espontânea, nem livresca. Engajada. Faltava no entanto um canal de publicação. Por

intermédio de um conhecido, o CAE é apresentado ao grupo editorial

Autonomedia/Semiotext(e).198

Sediada em Nova York, a editora Semiotext(e) foi responsável por introduzir o

pensamento francês nos Estados Unidos. Desde o final da década de 1970, por iniciativa

de Sylvère Lotringer, obras seminais de autores como Baudrillard, Foucault, Lyotard,

Deleuze, Guattari e Virilio, compõem um catálogo editorial cujos títulos circulam bem

igualmente em circuitos universitários e redes contraculturais.199 O Autonomedia

Collective, que durante certo tempo trabalha em parceria com a Semiotext(e), tem uma

linha editorial mais anarquista. Ligado ao movimento sindical e militante do bairro de

Brooklyn, onde o coletivo Autonomedia tem sua base, a proximidade com o universo

ativista colabora para a parceria se firmar com o CAE, e em 1994, o livro The Electronic

Disturbance sai da gráfica e ganha o mundo na sua versão impressa.

De toda a bibliografia produzida pelo CAE, o livro Distúrbio Eletrônico é sem

dúvida o livro manifesto do grupo, embora de um novo tipo se comparado com os

197 Trata-se do quarto capítulo do livro Distúrbio Eletrônico. São Paulo: Conrad Editora do Brasil, 2001.

Depois o tema será retomado no capítulo “The finantial advantages of anti-copyright”, in Digital

Resistance: explorations in tactical media. New York: Autonomedia, 2001. 198 Cf. CAE, Disturbances, p. 112. 199 Cf. François Cusset, “A aventura de Semiotext(e)”, in Filosofia francesa: a influência de Foucault,

Derrida, Deleuze & cia. Porto Alegre: ArtMed, 2008, p. 72-76.

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manifestos das vanguardas históricas. A elaboração ensaística que dá forma ao conteúdo

da obra destoa dos manifestos futuristas por não carregar o tom laudatório, do dadaísmo

pela escolha de uma escrita que busca a coerência discursiva, e do surrealismo por não

divagar sobre o maravilhoso. Ainda que a verve às vezes inflamada do verbo ali

materializado reverbere o tom vanguardista, a forma de expressão dos ensaios que

compõem o Distúrbio Eletrônico está mais próxima dos escritos da Internacional

Situacionista. Isso se deve ao fato da obra não ser inteiramente artística e poética, e porque

nela se entrelaçam análises sociológicas, elucubrações filosóficas e rompantes de crítica

política radical. Há claramente uma articulação teórica inventiva, mas que não se

preocupa com os requisitos metodológicos acadêmicos científicos, combinação que

marca o estilo do Critical Art Ensemble até os dias atuais.

Diferente de outras elaborações conceituais, analíticas e interpretativas, o CAE se

esmera em contribuir com teorizações surgidas no contato direto com a resistência

cultural de seu tempo. Mais do que isso. Os livros do coletivo são produtos e efeitos de

seus engajamentos nas lutas micropolíticas. Enquanto agente ativo no campo das

resistências, o CAE nutre-se de suas experiências e reflexões e, somando à produção

performática, multimídia, de suas obras estéticas, começa a municiar o campo também

com ensaios, discussões, teorias e conceitos. Um antropólogo certamente diria que as

teorias encontradas nos livros são teorias nativas da resistência cultural vivida e

alimentada pelo CAE. Por isso também, podem ser consideradas obras vanguardistas,

com a ressalva de que, enquanto os mentores dos movimentos modernos pretendiam

liderar, o CAE aposta e investe na proliferação das ideias, das matrizes performáticas, dos

meios de ação e intervenção, de modo que cada grupo tenha a liberdade e a autonomia de

agir de acordo com seu desejo e em conformidade com a realidade enfrentada a cada vez.

Mas se não se trata de uma obra acadêmica, também não se assemelha ao que

fazem os críticos de arte. Na história da arte moderna o papel do crítico é contribuir com

a recepção dos produtos no campo artístico cultural, no mercado e nas instituições. O

crítico desempenha a função de intermediar o setor produtivo e o setor de consumo. Faz

parte portanto do setor responsável pela circulação das obras nos circuitos institucionais

envolvidos com produção artística e cultural.

Nada comparado ao trabalho escrito que o CAE começa a desenvolver nesse

período e que se tornará uma marca do grupo até os dias atuais. Nas suas obras,

encontram-se ensaios breves marcados por uma elaboração teórica inventiva e aplicada a

problemas identificados e percebidos da perspectiva de um pensamento engajado nas

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149

lutas. São obras indistintamente teóricas, críticas e vanguardistas. Em vez de leituras

comentadas, os escritos fornecem arsenais para a resistência cultural.

A primeira publicação desse tipo foi o Distúrbio Eletrônico, de 1994. Nela, o

problema principal refere-se a como as tecnologias digitais e a internet proporcionam a

reconfiguração das relações de poder, e o que os produtores da resistência podem fazer

para corresponder às exigências que as circunstâncias exigem.

O CAE fura a bolha tecno-utópica hegemônica ao apontar de forma crítica, teórica

e engajada uma lacuna importante na discussão sobre a internet e sobre as táticas da

resistência cultural. Enquanto muitos se deixavam levar pela otimismo irrefletido com

relação à internet, o CAE se coloca na contramão e propõe uma leitura crítica radical da

tecnopolítica que subjaz à rede mundial de comutadores.

Do mesmo modo, quando, na década de 1990, o ativismo identitário atinge seu

ápice e os movimentos de rua ganham força, o CAE aposta numa abordagem

macropolítica sobre o capitalismo globalizado e sugere a resistência eletrônica como

campo privilegiado de ação.200 Em capítulo à parte, a temática da resistência eletrônica

será tratada em detalhes.

Nos ensaios de autoria do CAE estão presentes elementos epistemológicos,

técnicos e práticos, teóricos e políticos, todos eles mobilizados nos demais livros do

grupo. O formato compacto do livro impresso faz com que caiba na palma da mão ou no

bolso de uma jaqueta. A ideia é tornar o livro uma ferramenta de uso capaz de circular

facilmente de mão em mão, do mesmo modo como a forma ensaio faz no plano do

pensamento, com agilidade para melhor circular entre os cérebros, as pessoas,

alimentando o pensamento de formas múltiplas. Eis a concepção do grupo quanto à forma

ensaística adotada em seus escritos teóricos:

O CAE considera que as mais poderosas formas do plagiarismo estão

intimamente ligadas à hipertextualidade: a metodologia digital encontra

a tecnologia digital. (…) Nos livros, a coisa mais importante para o

CAE é compensar seu emaranhado com um estilo rápido. Queremos

fornecer evidências suficientes para mostrar que um dado imperativo é

crível e depois passar para outra coisa. Virilio chama isso de construção

de escada – um salto seguido por uma pequena explosão horizontal,

repetido conforme necessário. Eu acho que é assim que a maioria das

pessoas lê agora. Ninguém quer ler os grandes volumes, onde todas as

evidências são exaustivamente apresentadas e dissecadas. Além disso,

o CAE quer que seus textos alcancem uma audiência tão ampla quanto

possível – todo mundo, desde o intelectual lumpen nos squats

200 Cf. CAE, Disturbances, p. 112.

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150

[ocupações urbanas] do East Village até os que estão escondidos na

torre de marfim. Você não pode ter essa apresentação não especializada

se o trabalho seguir a convenção acadêmica. Essa forma transforma a

escrita em discurso especializado. (...) Tentamos cercar o maior número

possível de campos – gostamos de oscilar entre eles. Nós não temos que

usar um estilo que tende a totalizar o trabalho em um campo ou outro,

então isso nos permite uma certa mobilidade nômade, além de resistir à

privatização da produção de conhecimento.201

Até o momento, o livro Distúrbio Eletrônico é o único título traduzido e publicado

no Brasil. Nele, um discurso que lembra os manifestos das vanguardas históricas fornece

elementos epistemológicos e práticos à resistência cultural, nesta Tese denominados de

arsenais antropotécnicos da resistência. Como praticante de um ativismo pós-socialista,

para usar uma expressão de Lazzarato,202 o CAE sente a necessidade de inventar formas

de ativismo que não passem necessariamente pelas relações diretas com o Estado, com os

sindicatos ou partidos.

Guerrilha Cultural

A década de 1990 foi o campo propício ao desenvolvimento de formas diferentes

de atingir objetivos políticos. A convergência da arte-revolta, das tecnologias

informáticas e biotecnológicas e das resistências à ascensão das políticas neoliberais

desencadeia as condições de possibilidade das quais emergem outras formas de resistir

até então incipientes. Curiosamente, parte da novidade micropolítica advém do campo

artístico.

201 “CAE finds the strongest forms of plagiarism to be intimately linked to hypertextuality: digital

methodology meets digital technology. (…) In books, the most important thing for CAE is to make up for

its clunkiness with a speedy style. We want to give enough evidence to show that a given imperative is

credible, and then move on to something else. Virilio calls it a staircase construction – a jump up followed

by a short horizontal burst, repeat as needed. I think that’s the way most people read now. No one wants to

read grand tomes where every piece of evidence is exhaustively presented and dissected. Further, CAE

wants its writing to reach as broad an audience as possible – everyone from the lumpen intellectual in the

squats of the East Village to those holed up in the ivory tower. You can’t have that nonspecialist

presentation if the work follows academic convention. That form turns writing into specialized discourse.

(…) We try and encircle as many camps as possible – we like to oscillate between them. We don’t have to

use a style that tends to totalize work in one camp or another, so it does allow us a certain nomadic mobility

in addition to resisting the privatization of knowledge production”. CAE, in Tactical Media Practitioners:

an interview by Jon McKenzie and Rebecca Schneider. The Drama Review, 44, 4 (T168). New York:

University and the Massachusetts Institute of Technology, Winter, 2000, p. 141-142. 202 Cf. Maurizio Lazzarato, “Resistência e criação nos movimentos pós-socialistas”, in As revoluções do

capitalismo. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2006.

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151

A máquina de guerra fabricada pelas vanguardas artísticas no século XX

contribuiu para a conexão da arte com o ativismo crescente nas últimas décadas. A cultura

até então à mercê dos investimentos da sociedade do espetáculo torna-se, assim, mais

uma vez a arena política que constitui o campo de batalha a ser ocupado pelas novas

resistências, artísticas, midiáticas, minoritárias, etc. É nesse cenário que o CAE toma a

voz e inicia o protagonismo teórico, a começar com o livro Distúrbio Eletrônico, depois

desenvolvido nas obras Electronic Civil Disobecience e Digital Resistance: Explorations

in Tactical Media, respectivamente, de 1996 e 2001.

A contribuição das obras vai além da fundamentação teórica. Os livros lançam as

teorias que embasam o rico trabalho desenvolvido pelo CAE em seus anos de experiência.

A técnica da produção hipertextual, as performances com tecnologias, o

experimentalismo cultural, a resistência eletrônica, são apresentados e discutidos

teoricamente como a ilustrar e exemplificar o que se pode fazer no front da resistência

por vias alternativas às formas tradicionais de ocupação de prédios, passeatas nas ruas,

protestos civis, propaganda partidária, etc.

O curador e crítico de arte contemporânea Nato Thompson apresenta o CAE no

registro micropolítico como máquina de guerra artística:

Emprestando da linguagem do teórico Michel de Certeau, o coletivo de

arte Critical Art Ensemble definia “mídia tática” como uma forma

intervencionista de produção cultural de guerrilha que perturbaria

estruturas políticas específicas. “Entre e saia” era o seu mandato. Eles

viam o mundo como um complicado campo de poder, no qual artistas-

ativistas intervinham: era preciso transgredir para fazer sentido. O

medium não era importante ou predeterminado – em vez disso, seria

determinado pela linguagem estética de um discurso particular. Se os

artistas fossem abordar questões de biotecnologia, seu medium seria

laboratórios e pesquisas. Seu adágio – “por qualquer meio necessário”

– era uma espécie de chamado às armas para que os artistas entrassem

nos campos da sociedade fora das artes e usassem todo o espectro de

formas disponíveis para eles. Como uma forma radical de política, o

Critical Art Ensemble encorajou a arte a fazer isso, em muitos aspectos,

deixando o mundo da arte para trás.203

203 “Borrowing from the language of theorist Michel de Certeau, the art collective Critical Art Ensemble

defined ‘tactical media’ as an interventionist form of guerrilla cultural production that would disturb

specific political structures. ‘Get in and get out’ was their mandate. They saw the world as a complicated

field of power, in which artist-activists would intervene: one had to trespass to make meaning. The medium

was not important or preordained – instead, it would be determined by the aesthetic language of a particular

discourse. If the artists were going to address issues of biotechnology, their medium would be laboratories

and research. Their adage – ‘by any medium necessary’ – was a kind of call to arms for artists to enter into

fields of society outside the arts and use the entire spectrum of forms available to them. As a radical form

of politics, Critical Art Ensemble encouraged art making that, in many ways, left the art world behind”.

Nato Thompson, “Cultural production makes a world, in Seeing Power: art and activism in the 21st

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152

O CAE aposta em guerrilhas culturais que podem se dar pelas artes, pelo teatro,

pelas mídias: guerrilhas recombinantes de fragmentos e micro-ordens culturais, que não

têm por objetivo a batalha propriamente dita. São as chamadas guerras de guerrilha.

Conforme a Proposição IX do Tratado de Nomadologia, de Deleuze e Guattari, a guerra

não tem por objetivo necessariamente a batalha, assim como, a máquina de guerra

(artística) não tem por objeto necessário a guerra, e quando guerreia o faz ao mesmo

tempo que cria outra coisa.204

De acordo com Manola Antonioli, as guerrilhas se caracterizam principalmente

pelos modos de organização descentrados, por uma certa fluidez de ação, por uma

liberdade de manobra muito flexível ao nível local, pela dinâmica estabelecida entre

batalha e não-batalha no conflito, e também por um tipo de relação política e psicológica

com as demandas sociais, culturais e os desejos de quem elas exprimem as reivindicações.

Por definição e de fato, a guerrilha tem maneiras particulares de se inscrever no espaço e

no tempo: ela se inscreve na longa duração, não tem localização precisa e se desenvolve

sobre o espaço o mais vasto possível. Suas ações, em suma, podem se produzir não

importa qual lugar e não importa qual momento para fazer pesar uma ameaça permanente

sobre o adversário ao qual ela impõe seus ritmos e métodos.205

Há, portanto, inúmeras formas de guerrear, de combater, de resistir, sem chegar

às vias de fato como ocorre no emprego de violência física. No campo da cultura, a guerra

artística adquire a forma de guerrilha pois nem sempre se propõe a batalha, e porque se

multiplica e se dissemina em incontáveis iniciativas. A cultura, encarada como

multiplicidade móvel, pode ser recombinada de distintas formas. É possível trabalhá-la

por dentro, seja por meio da potência destituinte, minando elementos indesejáveis,

efetivando o desejo em atos, seja edificando com arranjos, sentidos, imagens, práticas,

relações outras, não inscritas nos códigos existentes.

Uma obra com esse teor está longe de ser meramente artística, nem é unicamente

crítica no sentido tradicional. Trata-se nesse caso específico de uma obra que advém de

experiências nascidas no combate e que é pensada e preparada para retornar ao campo

century. Brooklyn: Melville House Printing, 2015, p. 20. 204 “Proposição IX: a guerra não tem necessariamente por objeto a batalha, e, sobretudo, a máquina de

guerra não tem necessariamente por objeto a guerra, ainda que a guerra e a batalha possam dela decorrer

necessariamente (sob certas condições)”. Gilles Deleuze e Félix Guattari, “Tratado de nomadologia: a

máquina de guerra”, in Mil platôs: capitalismo e esquizofrenia (vol. 5). São Paulo: Ed. 34, 2002, p. 100.

– Na introdução desta Tese a proposição foi tratada em detalhes com relação à máquina de guerra artística. 205 Tradução e adaptação de um trecho original de Manola Antonioli, “Machines de guerre”, in

Géophilosophie de Deleuze et Guattari. Paris: L’Harmattan, 2003, p. 127.

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das lutas. Se a arte-revolta se caracteriza pela insurgência contra as guerras em curso, ao

assumir um protagonismo nelas, então a proposta de uma estética do distúrbio e suas

matrizes performáticas do Plágio Utópico, do Teatro Recombinante e da Resistência

Eletrônica, apresentadas inicialmente no livro Distúrbio Eletrônico, compõem a

contribuição do CAE para a formação dos arsenais antropotécnicos da resistência cultural

encarnada e praticada pelo coletivo. Eis uma super-ação orquestrada para formar uma

epistemologia e uma pedagogia das lutas.

MATRIZES E FORMAS DE EXPRESSÃO

Como um coletivo de artistas ativistas, o Critical Art Ensemble mobiliza uma série

de meios teóricos e práticos para consolidar seu pensar e agir. Às diversas formas de

expressão do grupo correspondem algumas matrizes executadas exemplarmente na

elaboração de suas obras teóricas e práticas.

A primeiro delas é o Plágio Utópico, que pode ser compreendido como uma

espécie de colagem conceitual de ideias, imagens ou signos apropriados dos mais diversos

contextos e inseridos em um novo agenciamento, discursivo, imagético ou micropolítico.

Sejam quais forem os elementos apropriados (que podem ser ideias, imagens, teorias,

objetos, práticas, etc.), o objetivo é produzir novos sentidos e significados com a

recombinação artística deles.

A segunda matriz refere-se mais às performances e intervenções do grupo. Uma

das principais formas do CAE atuar no campo das artes é por meio do Teatro

Recombinante. Embora seja algo semelhante a uma performance, está mais para uma

intervenção. O grupo inova, no entanto, ao colocar o elemento tecnológico como um

componente fundamental na prática do Teatro Recombinante. Além do corpo do

performer, é comum o uso de aparelhos e dispositivos maquínicos recombinados em uma

matriz performativa que une diversos elementos em seu agenciamento, sejam

componentes humanos ou tecnológicos, semióticos, imagéticos ou discursivos, etc.

apropriados para criar um acontecimento micropolítico de teor artístico.

Para tratar das matrizes e das formas de expressão do Critical Art Ensemble será

apresentada inicialmente a matriz do Plágio Utópico.

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Arte Conceitual e Plágio Utópico

Geralmente, toda arte engajada com a sociedade, a cultura e principalmente com

o público, demanda uma leitura da realidade que é pelo menos parcialmente sociológica.

O emprego de termos oriundos das ciências humanas tem sido uma prática comum nas

artes micropolíticas do tempo presente. Além do mais, o teor da arte voltada para o

contato com o público e interessada nos efeitos coletivos, sociais e culturais, exige, por

parte do próprio artista, a elaboração de discursos e terminologias que remetem ao

universo teórico das ciências sociais, e por isso as linguagens assim elaboradas são

frequentemente carregadas de significado político.

O Critical Art Ensemble assumiu esta tendência claramente ao construir um

campo teórico no qual agencia um diálogo entre arte, ciência, filosofia e tecnologia. Nesse

sentido, o aspecto teórico do grupo chama atenção pela criatividade conceitual. Tal

inventividade nutre-se de muitas formas da filosofia, da ciência, da literatura e das artes.

Não raro, o grupo se apropria de noções extraídas da história das ideias por uma espécie

de afinidade eletiva para então compor o seu próprio pensamento conceitual. Atitude que

remete à história da arte conceitual.206

As apropriações, porém, não pretendem captar uma ideia ou um conceito para tão

somente reproduzi-lo. Para além da postura escolástica de simplesmente apresentar e

reproduzir conceitos elaborados por terceiros, como também para além da técnica do

decalque típico da pop art, o grupo se apropria de noções, signos e conceitos existentes

como operadores cognitivos que são remodelados pelo pensamento e adquirem outros

sentidos em função de novos problemas.

Os sentidos e significados das palavras e das imagens são, assim, submetidos a

torções e deformações pela operação artística que, a um só tempo, provoca uma mutação

e uma recombinação (de signos, significantes e significados) capazes, portanto, de

estimular a produção de subjetividades. Exemplos disso são os conceitos de

pancapitalismo, poder nômade e mesmo plágio utópico. Ambos, construídos pela

colagem e pela recombinação de conceitos e ideias pré-existentes, e que passam a compor

206 Cf. Paul Wood. Arte conceitual. São Paulo: Cosac & Naify, 2002. “A arte conceitual cresceu num

espaço criado pela vanguarda, e o utilizou para estruturar uma crítica aos pressupostos do modernismo

artístico, em particular ao seu foco exclusivamente dirigido ao estético e às reivindicações de autonomia da

arte”, p. 28. “A atitude de certa forma relaxada da contracultura mais ampla, a sua característica

ligeiramente nômade, assim como a postura universal de resistência ao brilho e ao consumo, pairavam sobre

muitas das manifestações conceituais”, p. 37.

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155

um conteúdo modificado por serem remetidos a uma realidade distinta da que lhe deu

origem a princípio.

O objetivo dessa espécie de plagiarismo não é citar, comentar, inserir notas ou

referências, como seria de se esperar, senão experimentar uma livre desapropriação dos

mais variados elementos encontrados na cultura pop ou na alta cultura com o propósito

de atualizar o alvo do plágio utópico em novos contextos e fazê-lo ressoar algo diferente

em relação ao que já se produziu até então (neste registro a palavra utopia adquire um

sentido semelhante a virtualidade, real porém ainda não atual). Isso se dá sobretudo com

as teorias, sejam artísticas, científicas ou filosóficas, que adentram no escopo do CAE em

função de problemas concretos, reportadas, portanto, a situações sociais que exigem uma

reflexão profunda para melhor compreendê-las. “É aqui que o plágio progride além do

niilismo. Ele não injeta somente ceticismo para ajudar a destruir sistemas totalitários que

paralisam a invenção: ele participa da invenção, e dessa forma também é produtivo”.207

Esta prática de apropriação artística de ideias, conceitos, noções e teorias é

denominada de Plágio Utópico pelo CAE, porém se assemelha com um tipo de atitude

incorporada pelas vanguardas artísticas desde o Dadaísmo, passando pela noção de

détournement da Internacional Letrista e dos Situacionistas, chegando até o tempo

presente transformada com a pop art, já sem os traços críticos pelo qual era reconhecida:

Readymades, colagens, found art ou found text, intertextos, combines,

détournement e apropriação – todos representam incursões no plágio.

De fato, esses termos não são sinônimos perfeitos, mas todos cruzam

uma série de significados básicos à filosofia e à atividade de plagiar.208

No entanto, a operação do plágio utópico é mais artística do que a mera colagem,

e muitas vezes, mais filosófica do que publicitária, pois supõe uma atividade intelectual

crítica, intuitiva e construtivista no campo do pensamento conceitual propriamente dito.

Na década de 1960 os situacionistas designaram détournement o método de

desapropriar as ideias, os signos, as teorias e os conceitos de forma subversiva para

incorporá-los em um contexto diferenciado. O método consiste em provocar um desvio,

um deslocamento para um novo arranjo que resulta em uma torção no significado original,

com o que, o objeto do détournement adquire nova vida e uma potência revigorada

canalizada para propósitos de resistência.

207 CAE, “Plágio utópico, hipertextualidade e produção cultural eletrônica”, in Distúbio Eletrônico, p. 89. 208 CAE, Distúbio Eletrônico, p. 85.

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“O plágio é necessário”, afirma Lautréamont. Os situacionistas, que o trouxeram

de volta à cena da arte-revolta no pós-guerra, respondem: “O que queremos, de fato, é

que as ideias voltem a ser perigosas”.209 O uso emancipatório da linguagem passa pelo

uso crítico, político e engajado das palavras, dos sentidos, das significações. Por isso, o

détournement é o contrário da citação, que supõe a autoridade teórica. Mais

fundamentalmente, “o desvio é a linguagem fluida da antiideologia” e se coloca como um

recurso ao alcance de todos para efetuar a crítica ao presente.210

O desvio atualiza uma violência ou crueldade que está na base da ação criadora, e

por isso “incomoda e arrasta toda ordem existente”.211 No entanto, o desvio é subversivo

somente para a ideologia burguesa, que se beneficia da ideia romantizada de autor como

gênio. A genialidade metafísica é um embuste e uma barreira fácil de ser transposta

quando a urgência da transformação social é o que importa. Contra a recuperação

capitalista do ideal romântico do autor enquanto gerador de lucro, os situacionistas

questionaram com a prática do desvio sua inutilidade para fins revolucionários.

O desvio é um método revolucionário que manifesta por meio da linguagem uma

potência do pensamento e uma afirmação existencial engajada no presente. A tática do

desvio restitui ao sujeito uma certa ousadia micropolítica, uma inocência poética que o

impulsiona ao experimentalismo expressivo, seja na linguagem, na teoria, seja nas artes

visuais, no cinema. É portanto um método ágil de passar uma mensagem, de subverter

uma estrutura significante, pois estimula uma atitude ativa que trai o pacto velado da

sociedade espetacular de se manter passivo, enquanto espectador, diante da privatização

das ideias, das imagens, dos textos – interdição primeira e última da poesia.

O desvio situacionista tinha por função contribuir para a revolução da vida

cotidiana, e assim adquiria o sentido revolucionário da expropriação da cultura burguesa,

do uso restrito da linguagem e da expressividade codificada pelos parâmetros da

propriedade intelectual, da genialidade, do artista sagrado pelo campo mercadológico.

O conceito de plágio utópico, no Critical Art Ensemble, é por si só um desvio,

uma atualização do détournement situacionista, pois consubstancia uma desobediência

poética enquanto revolta micropolítica contra o estatuto de autoridade que se atribui à

209 “En fait, nous voulons que les idées redeviennet dangereuses”. Internationale Situationniste, “Nos buts

et nos méthodes dans le scandale de Strasbourg”, in Internationale Situationniste. Bulletin central édité

par les sections de l’Internationale Situationniste. Numéro 11. Paris: Octobre 1967, p. 30. Na versão

brasileira, ver Internacional Situacionista, “Nossos objetivos e métodos no escândalo de Strasbourg”, in

Situacionista: teoria e prática da revolução. São Paulo: Conrad, 2002, p. 72. 210 Guy Debord, “A negação e o consumo na cultura”, in A sociedade do espetáculo, § 208, p. 134. 211 Guy Debord, A sociedade do espetáculo, § 209, p. 134.

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linguagem, à imagem e às obras culturais em geral. Os situacionistas empregavam o

desvio a favor da criação e do estímulo à construção de situações, momentos vividos

diretamente. O CAE insere o plágio utópico como tática para a recombinação da cultura

em sentido amplo e multidimensional. Nesse sentido, détournement e plágio utópico nada

mais são do que formas de experimentalismo expressivo, crítico e subversivo, colocados

à disposição da resistência em suas mais diversas frontes.

Será que no desvio situacionista revela-se a expressão e a operatividade de uma

potência destituinte? Debord concebe o método do dépaysement como duplo movimento

de détournement (“desvio”) e de renversement (“desarranjamento”, “reviravolta”),

colocação no “reverso” das produções da cultura moderna. Détournement e renversement

são operados segundo uma compreensão crítica das condições e contradições presentes

na sociedade.212 A recombinação perseguida pelo plágio utópico do CAE nada mais é do

que o desvio e a reversão da linguagem, das imagens, dos sentidos, das significâncias, da

cultura em seu campo máximo de intervenção.

Com base nessa prática encontra-se no léxico usado pelo CAE noções pouco

usuais como pancapitalismo, poder nômade, máquina de visão, matriz performativa,

teatro recombinante, corpo sem órgãos, entre outras, que compõem um vocabulário rico

e exótico agenciado para descrever ora os elementos da resistência cultural, ora a

sociedade contemporânea.

Com o Plágio Utópico vê-se a retomada do valor de uso do conhecimento no

mesmo momento de sua transformação em mercadoria global. Ante a tendência de

transformar as ideias em propriedade privada, as resistências da atualidade expropriam as

linguagens, os significados e o conhecimento em geral, seguindo a tendência do

compartilhamento de informações e arquivos na rede internacional de computadores.

Pirataria contracultural nos mares da modernidade líquida. Ou como diz o CAE:

É uma questão de reunir várias técnicas recortadas a fim de responder

à onipresença dos transmissores que nos alimentam com seus discursos

obsoletos (meios de comunicação de massa, publicidade, etc.). É uma

questão de desacorrentar os códigos – não mais o sujeito – tal que

alguma coisa arrebente, escape: palavras por trás de palavras, obsessões

pessoais. Nasce outro tipo de palavra, que escapa do totalitarismo da

mídia, mas que retém seu poder, e o volta contra seus velhos mestres.213

212 Cf. João Emiliano Fortaleza de Aquino. Reificação e linguagem em Guy Debord. Fortaleza:

EDUECE/Unifor, 2006, p. 173. 213 CAE, Distúbio Eletrônico, p. 88.

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Assim, o chamado plágio estético opera entre a possibilidade dada pela autonomia

do pensamento e da criatividade, de um lado, e a urgência das tarefas que a revolta se

coloca ante a época, de outro, o que exige respostas rápidas e de impacto aos desafios do

tempo presente. Desta forma, o CAE coloca em ação velhas ideias recolhidas do

inesgotável arquivo da história com uma nova abordagem de método adaptada aos tempos

atuais.

Anteriormente foi mencionado que, além do plagiarismo aplicado ao universo

teórico e imagético elaborado pelo CAE, existe a forma de expressão prática denominada

Teatro Recombinante, uma espécie de matriz performática elaborada para a ação do

grupo. Por meio de uma fusão do teatro com a performance o Critical Art Ensemble

conecta os corpos, os signos e as tecnologias para criar um acontecimento micropolítico

nas fronteiras da arte e da vida cotidiana. A forma de expressão práxica que compõe o

teatro da resistência contemporânea agora tem seu lugar.

Teatro Recombinante

O CAE sempre vislumbrou uma gama de atividades artísticas com potencial para

compor a resistência, e por isso se permitiu explorar livremente formas de pensar, fazer e

praticar a arte, seja por que meio for. O Plágio Utópico sintetiza algumas contribuições

extraídas exemplarmente da história da arte moderna, pois se nutre da colagem dadaísta,

do détournement situacionista e da arte conceitual. Além desse método estético e político,

segue-se o Teatro Recombinante, mais direcionado à práxis artística levada ao limiar da

performance e da vida cotidiana.

Ao longo de vários anos, o CAE insistiu na prática do Teatro Recombinante, que

consiste em ambiências performativas nas quais os participantes podem fluir. Um desses

ambientes é o teatro da vida cotidiana, que inclui o teatro de rua e os happenings (de Alan

Kaprow). Porém, o teatro de rua concebido e praticado em um sentido próprio, e não

como nas formas tradicionais de teatro que pressupõem a passividade do público, como

uma arte espetacular a céu aberto. Em uma fórmula: “O que o CAE considera como teatro

de rua são aquelas performances que inventam situações efêmeras, autônomas, das quais

emergem relações públicas temporárias que podem possibilitar o diálogo crítico sobre

uma determinada questão”.214

214 “What CAE does consider street theater are those performances that invent ephemeral, autonomous

situations from which temporary public relationships emerge that can make possible critical dialogue on a

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159

As inspirações para o tipo específico de prática de intervenção do CAE advém do

ativismo do Living Theater, do Teatro do Oprimido, do Guerrilla Art Action Group, do

Rebel Chicano Art Front e dos Situacionistas. Nas palavras do próprio CAE, o grupo de

teatro anarquista experimental Living Theater, oriundo de Nova York, cumpriu um papel

importante na história recente das artes pois realizou a proeza de destruir a distinção entre

arte e vida. Assim, foi capaz de estabelecer um dos primeiros palcos recombinantes da

história da arte-revolta.215

O teatro praticado pelo CAE é, portanto, uma espécie de performance com teor

intervencionista. Tal concepção de teatro coloca em prática uma arte com características

que remetem à performance e aos happenings. Diferente do teatro tradicional, que se

orienta por uma narrativa, com personagens, tramas e clímax no qual tudo aparentemente

se resolve, a performance lida com o espaço e o tempo de forma fragmentária,

situacionista e efêmera. Por isso prescinde praticamente de tudo o que constitui o teatro

clássico, inclusive de palco. Não que seja uma restrição. Os elementos do teatro podem

compor uma performance, mas tudo se torna opcional, pois o que importa é antes de tudo

o corpo do performer e os efeitos de suas ações em uma dada realidade social.

Na história da arte contemporânea, a performance ocupa um lugar privilegiado

pois parece expressar melhor o mundo fragmentado da modernidade líquida do que as

encenações tradicionais orientadas por uma narrativa. Em uma performance, segundo

uma definição histórica consagrada, o artista não precisa de um papel para interpretar, e

muito menos de uma sequência de cenas encadeadas por uma linha narrativa. Mais do

que isso. O performer não precisa sequer ser ator para incorporar uma série de

movimentos, ações e falas. Uma pessoa comum pode muito bem performar sem remeter-

se a um eu artista. Em termos corporais, então, a liberdade atinge seu nível máximo na

performance. Do mesmo modo, geralmente não há local específico para realizá-las. Pode

ocorrer em qualquer lugar. Na medida em que a performance constrói um acontecimento

estético, dirige-se igualmente a um coletivo de sujeitos que podem ou não participar

diretamente do desenrolar da ação.

Nesta linha, como um desdobramento da arte performática, surgiu o

intervencionismo, ainda mais irruptivo, pois tem um caráter essencialmente penetrante no

que se refere à coletividade e à dinâmica da vida cotidiana. Por tudo isso, muitas

given issue”. CAE, “Recombinant theater and digital resistance”, in Digital Resistance: explorations in

tactical media, p. 87. 215 Cf. CAE, “Teatro recombinante e a matriz performativa”, in Distúrbio Eletrônico, p. 65.

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performances intervencionistas levam a arte às fronteiras da vida cotidiana, produzindo,

assim, um acontecimento único e irrepetível cujas repercussões são muitas vezes

imprevisíveis. É o que faz o Critical Art Ensemble vez por outra. Um exemplo ajuda a

ilustrar o modo intervencionista do grupo atuar.

Imagem 34 – Exemplo de uma intervenção nômade na vida cotidiana.216

Em um ponto turístico bem movimentado, uma pessoa munida de alguns pequenos

brinquedos, como carrinhos em miniatura e umas pistas de plásticos montáveis, ocupa

um lugar próximo a uma entrada ou saída de pessoas, onde o público circula mas também

com a possibilidade das pessoas pararem. Em seguida, o performer senta-se e começa a

brincar com os carrinhos, oferecendo um brinquedo para quem se mostrar interessado em

participar. Enquanto isso, outros integrantes do grupo podem se insinuar no jogo sem se

identificar como participantes. O que acontecerá não é possível antecipar por completo.

Porém, como se trata de um local turístico, qualquer alteração na dinâmica pode chamar

atenção das autoridades locais. Passados alguns minutos, as pessoas se aproximam,

questionam-se acerca da atitude incompreensível, outras, podem interagir, perguntar algo,

ou mesmo brincar com a situação. Até que, momentos depois, seguranças ou policiais da

216 Imagem do CAE. Cf. Electronic Civil Disobedience. New York: Autonomedia, 1996, p. 54.

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área se aproximam para saber do que se trata. É quando a situação começa a se tornar

mais intensa, pois o simples ato de brincar em uma passagem pública pode despertar

atitudes autoritárias. Talvez os seguranças solicitem ao performer se retirar do local

alegando algum motivo. Apesar das ordens, o performer ignora tudo à sua volta e continua

brincando como se ninguém estivesse ali. E assim, chega-se ao momento de tensão,

quando as pessoas no entorno podem falar, intervir, concordar, discordar. Instaura-se uma

zona molecular na qual o resultado das ações torna-se imprevisível: as opiniões das

pessoas afloram em palavras, gestos, e em alguns casos, pode acontecer inclusive do

performer ser detido fisicamente, com ou sem truculência. Por questões de segurança, é

preciso identificar o momento de cessar a intervenção, antes que se chegue às vias de fato

e as pessoas envolvidas, entre si e com os seguranças, agridam-se fisicamente.

O importante em uma intervenção como essa é promover uma situação

extracotidiana como forma de instaurar em espaço público um debate sobre o

autoritarismo, a ineficácia das leis ou a realidade do poder. As conclusões a que se pode

chegar são muitas e variadas, como por exemplo: brincar em determinados lugares pode

despertar o despeito, a ira e a simpatia, suscitar as autoridades e até mesmo o abuso de

poder. A liberdade civil não é sempre assegurada por aqueles que deveriam promover as

condições para seu exercício. Uma intervenção nômade e simples semelhante a esta pode

ser realizada por qualquer pessoa em praticamente toda cidade turística como forma de

estimular diálogos e reflexões críticas.217

Na prática do Critical Art Ensemble, o teatro da vida cotidiana adquire outro

estatuto quando incorpora as tecnologias da informação e comunicação, com seus

aparelhos e usos demonstráveis rearranjados em cena. Eis o seu Teatro Recombinante,

que atualiza a arte da performance em um teatro intervencionista. Com uma diferença

importante, pois inova no uso deliberado que faz de equipamentos eletrônicos nas cenas

performáticas.

Sinteticamente, o teatro recombinante consiste em ambientes performáticos

entrelaçados através dos quais os participantes podem fluir.218 Teatro invisível, teatro de

rua, teatro da vida cotidiana, entre outras possibilidades, podem ser turbinados com

tecnologias de vários tipos, e o experimento então ganha um novo sentido.

217 Cf. CAE, “Resisting the bunker”, in Electronic Civil Disobedience, p. 52-54. 218 “For the past decade, Critical Art Ensemble has repeatedly suggested that recombinant theater consists

of interwoven performative environments through which participants may flow” CAE, “Recombinant

theater and digital resistance”, in Digital Resistance, p. 87.

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Imagem 35 – Dorian Burr do CAE performando uma cena do Teatro Recombinante.219

Na matriz performativa do grupo, a tecnologia compõe um elemento crucial,

porém, ao mesmo tempo em que os aparelhos e as tecnologias são apropriadas pelo

agenciamento, seu sentido, quando remetido ao conjunto conceitual de base, adquire um

caráter crítico. O principal objetivo é claro: “O novo teatro deveria dizer ao espectador

como resistir à autoridade, independentemente da sua identidade política”.220 O CAE

ilustra com um breve exemplo:

Considere o seguinte cenário: um hacker está no palco com um

computador e um modem. Trabalhando sem limite de tempo, o hacker

invade bancos de dados, acessa seus arquivos e parte para apagá-los ou

manipulá-los de acordo com seus próprios desejos. A performance

termina quando o computador é desligado. Essa performance, embora

tão simplificada, exprime a essência do distúrbio eletrônico. Uma ação

como essa percorre em espiral a rede performativa, interligando de

maneira nômade o teatro da vida quotidiana, o teatro tradicional e o

teatro virtual. Representações múltiplas do artista participam

explicitamente desse cenário para criar uma nova hierarquia de

representação.221

219 CAE, Disturbances, p. 51. 220 CAE, “Teatro recombinante e a matriz performativa”, in Distúrbio Eletrônico, p. 69. 221 CAE, Distúrbio Eletrônico, p. 65-66.

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Com uma simples performance como essa é possível trazer ao debate uma série

de questões. Como os dados eletrônicos de um indivíduo podem ser manipulados,

distorcidos ou eliminados, ao dispor de um estranho, e a partir disso, repercutir seus

efeitos na vida cotidiana, a despeito de leis. É possível discutir de uma perspectiva mais

ampla, simulando, por exemplo, a invasão de um sistema de armazenamento de dados

que acumula informações privadas de milhões de pessoas, mas que são agenciadas por

corporações a fim de se obter lucros sem a devida autorização. Em uma cena de teatro

recombinante dá para simular uma operação de disparos de e-mails tipo spams em grande

quantidade, aleatoriamente, com vírus, worms ou fake news. Ou ainda, demonstrar como

é relativamente fácil alterar dados e fotos digitais com o simples uso de programas de

computador de modo a falsear um registro, e associar isso a um crime ou a uma situação

completamente diversa.

O Critical Art Ensemble trabalhou com esse tipo de teatro durante muitos anos em

suas apresentações multimídias. As possibilidades são infinitas e podem ser aproveitadas

para muitos propósitos de resistência. Existe até mesmo um potencial pedagógico de

performances recombinantes como as esboçadas aqui rapidamente. Embora a sociedade

tenha incorporado altas tecnologias, poucas pessoas têm real noção do que é possível

fazer com elas quando se tem o domínio de ferramentas somente acessíveis a

especialistas. Demonstrações criativas de algumas dessas habilidades, reais ou simuladas,

por técnicos ou performers, e de seus efeitos na vida das pessoas na esfera pública,

proporcionam grande potencial elucidativo, questionador e crítico. O debate daí advindo

é um dos efeitos esperados do teatro recombinante.

O CAE denomina a prática de tais performances de teatro recombinante

justamente porque os elementos humanos e não-humanos, linguísticos e discursivos, bem

como simbólicos, sígnicos e imagéticos, espaciais e tecnológicos, são combinados ao

espaço cênico e virtual. A ideia é construir uma situação na qual a arte crítica tenha as

condições de produzir seus efeitos sensíveis, estéticos e de pensamento no público.

Recombinante também nos seus efeitos, ao repercutir nas subjetividades e na dinâmica

da vida cotidiana, contribuindo assim para possíveis reconfigurações ideacionais,

perceptivas ou mesmo micropolíticas.

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Imagem 36 – CAE, Teatro Recombinante Cult of the New Eve. World Information Exhibition, Bruxelas, 2000.222

Esse teatro foi pensado para explorar a realidade com o mesmo ímpeto do hacker

face a um sistema informático. Na perspectiva do CAE, a prática hacker é a melhor

maneira de desestabilizar a realidade e a estrutura prática de todos os teatros. Pekka

Himanen chama a atenção para a abertura semântica do termo:

Os próprios hackers sempre admitiram essa aplicação maior de sua

atuação. Seu arquivo de jargões chama a atenção sobretudo para o fato

de que um hacker é, fundamentalmente, ‘um perito ou um entusiasta de

qualquer área. É possível ser um hacker em astronomia, por exemplo’.

Nesse sentido, é possível ser hacker sem ter nada a ver com

computadores.223

O teatro recombinante, portanto, submete as tecnologias eletrônicas e virtuais a

um tratamento hacker para levar ao público algum grau de questionamento acerca do que

essas mesmas tecnologias desempenham na esfera social, política e cultural. Assim, as

222 Imagem disponível no endereço http://future-nonstop.org/c/e2f4036011ec400aae80fa02fcac8d41

Acesso 10 de julho de 2019. 223 Pekka Himanen. A ética dos hackers e o espírito da era da informação: a importância dos

exploradores da era digital. Rio de Janeiro: Campus, 2001, p. 8. Nesta passagem há uma citação extraída

do The New Hacker’s Dictionary (3rd. Ed., 1996). O verbete hacker está disponível em:

http://www.catb.org/jargon/html/H/hacker.html Acesso 22 de julho de 2019. A acepção ampliada do termo

aparece no item 6: “An expert or enthusiast of any kind. One might be an astronomy hacker, for example”.

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matrizes da performance, do teatro eletrônico e da vida cotidiana se combinam para tornar

patente os aspectos autoritários das tecnologias. Ora para desafiar os códigos e

normatividades, ora para demonstrar os usos possíveis das tecnologias para os propósitos

da resistência.

Ante as infinidades de matrizes interpretativas moldadas pelo espetáculo, todas

investidas do caráter de verdade, cabe à estética do distúrbio minar o império das opiniões

que obstruem a construção da autonomia nas suas dimensões individuais e coletivas. A

provocação, a confusão e o distúrbio são meios de que se vale o teatro da resistência para

desmontar as máquinas ideológicas e revelar potenciais escolhas não previstas pela grade

interpretativa dominante do espetáculo.224

Tanto no caso do plágio utópico quanto na teoria prática do teatro recombinante

nota-se um teor crítico e político latente, afinal, era de se esperar que um conjunto de arte

crítica elevasse a estética ao patamar da contestação.

A Estética do Distúrbio

Na sociedade do espetáculo, realmente, não se pode esperar que os estados ou os

mercados promovam mudanças comportamentais, éticas e existenciais contrárias a seus

pressupostos de controle, disciplina e consumo. Justo para fazer frente às tendências

dominantes é que se formam as frentes da resistência cultural, nas quais os artistas e

ativistas desempenham suas funções de revolucionários da vida cotidiana. Assim, a arte

engajada, estimulada pelo ímpeto criador da revolta, pode contribuir com a tarefa de

injetar novo ânimo na cultura.

O Critical Art Ensemble tem sua própria maneira de praticar a resistência. Há duas

formas de atuação que se complementam no amplo espectro de ação do grupo. A primeira,

direcionada à teoria crítica, funda discursividades a partir da arte conceitual e do plágio

utópico. Trata-se de uma forma de expressão de tipo racional, que articula discursos a fim

de problematizar temáticas contemporâneas.

Além desta forma de intervenção na esfera epistemológica, existe a matriz

performática do teatro recombinante, que une diversos registros performáticos tais como

teatro da vida cotidiana, teatro de rua e teatro eletrônico. Por meio de performances,

instalações, contraespetáculos e intervenções, as formas de expressão do grupo

224 “Deve-se buscar uma estética da confusão que revele potenciais escolhas, fazendo dessa forma a estética

burguesa da eficiência entrar em colapso”. CAE, Distúrbio Eletrônico, p. 69.

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ultrapassam os limites da racionalidade e do senso comum com técnicas lúdicas,

desviantes e mesmo improvisadas capazes de afetar a imaginação e os sentidos do

público. Nesse caso, tem-se uma forma de expressão irracional, com proeminência

estética, simbólica, metafórica, em suma, poética.

Em ambos os casos, na teoria e na prática, os materiais manipulados pelo

agenciamento do grupo são recombinados para fins transformadores, seja no plano do

pensamento, seja no campo do imaginário e das sensibilidades coletivas e individuais. Ao

unir arte e conceitos, recombinados pela revolta bem direcionada, a resistência cultural

do CAE torna-se extremamente poderosa, e consegue, assim, experimentar todo o seu

potencial libertário junto às subjetividades tocadas pelos efeitos transformativos da arte.

No caso da sociedade do espetáculo, fica a questão de saber qual a efetividade de

uma resistência que encontra no distúrbio sua estratégia de ação. Como Debord

demonstrou, o espetáculo atua sobre as subjetividades para além dos limites da razão e da

consciência, mirando sobretudo a dimensão inconsciente do imaginário e do desejo.

Contrapor-se a essa tendência com meios inteiramente racionais dificilmente surtirá os

efeitos desejados. Primeiro, porque o ser humano não é somente racional. E segundo,

porque a imaginação e a sensibilidade são mais propensas aos efeitos estéticos das artes.

Portanto, o paradigma estético da resistência artística e cultural que se vale da

força criativa do distúrbio parece ser, senão o único, muitas vezes o mais apropriado para

fazer frente ao poder de captura do desejo e das subjetividades na sociedade do

espetáculo. Uma resistência antenada com o contemporâneo precisa compreender a

política dos afetos, do desejo e do irracional, para, a partir dessa apreensão, poder atuar

de forma efetiva.

No século XIX, Charles Baudelaire afirmou que toda arte choca, embora nem tudo

que choca seja considerado arte.225 Ao que parece o Critical Art Ensemble levou a sério

a afirmação do poeta, pois tirou da fórmula todas as suas consequências. Na resistência

artística não importa diferenciar uma coisa da outra. A partir desta premissa, a conclusão

lógica a que chega o grupo é primorosa: para despertar a passividade do espectador, nada

melhor do que uma fórmula de impacto.

Na resistência ao espetáculo, a arte crítica reconhece o valor e a pertinência do

imperativo estético do choque.226 Em um mundo cujas sensibilidades são amortecidas e

225 Ver o comentário de Teixeira Coelho sobre a concepção do belo, da arte e do choque em Baudelaire e

Valéry, in Charles Baudelaire. A modernidade de Baudelaire. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1988, p. 17. 226 “Muitas pessoas dizem que a estética do choque se foi, e em termos de choque através da transgressão

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embotadas pela entropia de estímulos, a estética do distúrbio assume sua função como

uma arte provocativa assumidamente impactante. Ao propor o distúrbio como tática da

resistência artística, o choque torna-se um dos objetivos das intervenções do teatro

recombinante e desempenha a mesma função que o distúrbio das ações de resistência

eletrônica no ciberespaço. Face aos códigos e enclaves culturais, o artista e o ativista

fazem o papel do hacker: furam barreiras ideacionais, subvertem lógicas, decodificam

normalidades, descriptografam ideologias e assim por diante, sempre no interesse de

liberar um elemento fechado em um dado sistema.

Imagem 37 – Flesh Machine, projeto e campanha do CAE, 1997-98. Dorian Burr e Steve Kurtz.227

Por meio de suas produções, que podem ser artefatos ou performances, o CAE

incide nos processos de subjetivação do público a fim de estimular rupturas e a

ultrapassagem das fronteiras ideológicas de uma dada ordem simbólica, na tentativa de

proporcionar a emergência de focos autônomos de subjetivação: “O trabalho

juvenil (bad grrrl, estética bad boy), isso é provavelmente verdade. No entanto, se você ajudar alguém a

experimentar a face do capital removendo a máscara do estado de bem-estar e mostrar sua desumanidade

predatória de maneiras não concebidas pelo espectador (representações de guerra, mulheres espancadas ou

crianças famintas não farão isso), você descobrirá que a estética do choque ainda existe”. CAE, in Tactical

Media Practitioners: an interview. Jon McKenzie and Rebecca Schneider. The Drama Review, p. 143. 227 Imagem disponível em http://critical-art.net/flesh-machine-1997-98/ Acesso 31 de julho de 2019. A

descrição que segue é baseada no texto original, que foi traduzido e adaptado.

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verdadeiramente perturbador (que para o CAE não significa ‘chocante’) de representação

cultural ajudará cada indivíduo a progredir em direção a uma subjetividade mais completa

– ele/ela será capaz de separar a si mesmo da objetividade da máquina”.228 Essa é uma

das principais funções políticas da subjetivação provocada pelas ações do Critical Art

Ensemble: trabalhar para a emergência de subjetividades autônomas, críticas,

autoposicionadas. Um exemplo ajuda e entender a estética do distúrbio na prática.

No projeto Flesh Machine, de 1997, o CAE abordou em uma performance ao vivo

o tema da reprodução humana em laboratório e as aplicações econômicas no campo da

manipulação de DNA. Tecnologias, laboratórios, empresas, cientistas, todos esses

elementos estavam representados no projeto de forma estética. As pessoas eram

convidadas a participar da performance como se o CAE fosse uma empresa representante

de uma corporação biotecnológica.

Ao testar a adequação dos participantes para passar seus genes através de um

programa de doadores, foi possível revelar o aspecto latente da eugenia no mercado de

fertilização artificial. Além de problematizar a eugenia implícita nas biotecnologias de

reprodução humana artificial e de manipulação de DNAs, o projeto Flesh Machine trouxe

para o domínio público os processos científicos da tecnologia reprodutiva. Em Viena, os

visitantes do projeto usaram o CD-ROM da BioCom, nome fantasia de uma suposta

empresa, com um programa previamente planejado para a campanha. Tudo criação do

CAE.

No computador, os participantes tinham acesso a alguns dados sobre o tratamento

de fertilização in vitro, novos métodos de reprodução assistida, perfis de doadores de

óvulos e espermatozoides. Enquanto tomavam conhecimento sobre o assunto, alguns

participantes eram convidados a fazer um teste de triagem para doação. O voluntário

então preenchia formulários com seus dados, as informações eram coletadas e

processadas pelo próprio programa de computador e o resultado era, enfim, emitido.

Implicitamente, a performance veiculava um subtexto crítico destinado a direcionar o

participante a formar uma visão mais cética com relação à apresentação acrítica

disseminada pelos meios de comunicação, no mais das vezes financiada por corporações

interessadas em investir na economia biotecnológica. Os participantes que se habilitavam

228 “The truly disturbing (by which CAE does not mean ‘shocking’) work of cultural representation will

help each individual progress toward a more complete subjecthood – s/he will be able to separate him-

herself from the objecthood of the machine”. CAE, “Resisting the bunker”, in Electronic Civil

Disobedience, p. 39.

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a fazer a triagem eram então examinados, primeiro, pelo programa do computador, e

depois por técnicos da área da saúde que acompanhavam os integrantes do CAE.229 Quem

passava pela triagem era solicitado a doar sangue para extração do DNA em um

laboratório montado no mesmo local. No laboratório de criopreservação, amostras de

células eram coletadas para congelamento rápido. Um perfil de mídia cruzada das

representações genéticas de um indivíduo então era construído (consistindo de amostras

de células, de DNA, um teste de perfil de doador e uma fotografia). Ao final, os

participantes podiam avaliar o valor potencial de seus corpos como commodities e,

portanto, seu lugar na nova economia genética de mercado.

Imagem 38 - Apresentação do programa BioCom utilizado nas campanhas sobre biotecnologias.230

229 O questionário respondido pelos voluntários está disponível em

http://critical-art.net/Original/biocom/biocomWeb/form.html Acesso 3 de agosto de 2019. 230 O programa encontra-se disponível online no endereço:

http://critical-art.net/Original/biocom/biocomWeb/ Acesso 3 de agosto de 2019.

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Os casos mais interessantes aconteciam com os voluntários que não passavam na

triagem para doação. As pessoas ficavam chateadas e logo questionavam porque foram

rejeitadas. Geralmente, o motivo era bem evidente como o uso de drogas ou o histórico

familiar com doenças graves. Nas conversas que se seguiam, as questões em torno da

seleção e da comercialização do material biológico humano eram questionadas e

refletidas. Questões éticas sobre que parâmetros seriam ou deveriam ser usados para a

alteração de DNAs humanos logo tornavam-se focos de discussão.

É possível entender o que se passa nessa performance com a terminologia

conceitual de Sloterdijk. A performance em si, com os aparatos tecnológicos, estéticos,

textuais e semióticos, fornece as condições de emergência de circuitos antropotécnicos

situacionistas que induzem os participantes a exercitarem a reflexão, o pensamento e o

julgamento ético sobre a problemática tratada no projeto. O contato com textos

informativos, artigos e definições científicas no software BioCom exerce a função de

qualificar os participantes para uma reflexão informada sobre o assunto.

Imagem 39 – Uma arte do CAE usada na campanha Flesh Machine sobre biotecnologias. 231

231 CAE, Disturbances, p. 57.

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Em si mesmo, a performance como um todo, é um dispositivo antropotécnico na

medida em que coloca em jogo, para apreciação dos participantes, um conhecimento

especializado que exige dos participantes um tipo de exercício intelectual, cognitivo e

epistemológico. No entanto, a leitura textual e imagética que enseja o desenrolar da

performance tem a função de preparar o participante para exercícios metanoicos mais

sofisticados nos quais será exigido até mesmo um juízo crítico sobre o conteúdo abordado

nos textos, nas imagens, nas conversas e com relação à toda experiência vivida.

O pensamento, a sensibilidade, o diálogo e a reflexão são ativados pela operação

como um todo. No contato com os materiais informativos, com a estética e com os demais

produtores, técnicos e participantes formam-se circuitos antropotécnicos extracotidianos

que exigem uma atitude reflexiva dos observadores e participantes. Nesse sentido, o CAE

compõe uma situação com todo o aparato estético construído para ser o suporte de

exercícios metanoicos sobre os conteúdos propostos.

Na abordagem crítica do coletivo, os participantes são convidados a refletirem por

si mesmos sobre os conteúdos veiculados, segundo seus próprios julgamentos, em diálogo

com os produtores e técnicos, e nesse sentido, trata-se de um exercício de autonomia. De

forma semelhante, no que se refere às apreciações de valor. Dificilmente, alguém sai da

experiência sem buscar ou expressar um sentido valorativo sobre a experiência, o

conhecimento e as tecnologias que foram o foco da performance. No conjunto, a

performance efetua as condições pedagógicas propícias à reflexão crítica e a apreciações

éticas, e pode ser considerada, portanto, uma operação metanoica em seus participantes.

Com razão pode-se comparar a estética do distúrbio ao Teatro da Crueldade

concebido por Artaud, que fez da força vital um ímpeto transformador da cultura: “Do

ponto de vista do espírito, a crueldade significa rigor, aplicação e decisão implacáveis,

determinação irreversível, absoluta”.232 O teatro artaudiano foi pensado para despertar o

corpo e o espírito da passividade e da letargia, ao passo que a matriz performática do

teatro recombinante agencia as forças da crueldade artística e instala uma zona autônoma

temporária no campo social, no imaginário e na ordem simbólica:

Em nosso trabalho público, o CAE sempre tentou inventar maneiras de

falar o indizível e revelar o invisível, seja a invisibilidade das margens,

as alavancas ocultas de controle ou as ameaças e forças latentes que

fundamentam a complacência normativa.233

232 Antonin Artaud, “Cartas sobre a crueldade”, in O teatro e seu duplo. São Paulo: Max Limonad, 1984,

p. 131-132. 233 “In our public work, CAE has always tried to invent ways to speak the unspeakable and reveal the

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Lá onde impera a certeza, o distúrbio leva a dúvida, o questionamento, o ceticismo

que varre as opiniões; onde reina a eficácia, o controle, a disciplina e a repressão, provoca

o entrechoque das partículas imagéticas e comportamentais para promover um salto

quântico, um corpo sem órgãos, uma visão intempestiva sobre a vida, livre e aberta à

criação. Trata-se, portanto, de um teatro micropolítico e tático que devasta ideologias sem

recorrer a propaganda panfletária. É por isso uma arte micropolítica sagaz que se insinua,

na perspectiva do CAE, nas mentes e nos corações dos participantes para injetar ânimo

nas forças latentes da crítica e da revolta, no inconsciente individual e coletivo.

Imagem 40 – Dorian Burr em uma performance do CAE.234

invisible, whether it is the invisibility of the margins, the hidden levers of control, or the latent threats and

forces that underlie normative compliance”. CAE, Disturbances, p. 134. 234 CAE, Disturbances, p. 50.

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A resistência ao poder nômade, tal como promulga o CAE, adquire assim um

caráter destituinte, ao invés de instituinte. Aqui encontra-se a categoria de negação da

negação como tática de que se vale a resistência cultural para abrir o campo de possíveis

na história sem recorrer necessariamente a imagens pré-estabelecidas a serem impostas

ao conjunto da sociedade. A recusa do proselitismo ou a recusa de encarnar o modelo das

vanguardas tradicionais que levavam a boa nova às massas, adquire seu sentido à medida

que o CAE e as resistências culturais se permitem afirmar a vida em sua multiplicidade,

e garantir a autonomia dos sujeitos históricos, individuais e coletivos. Não cabe mais às

vanguardas contemporâneas guiar as massas rumo à instauração de um modelo de

sociedade idealizado, senão que, mais apropriadamente, desfazer entraves, desestabilizar

e desmantelar as redes de poder para abrir caminhos possíveis e virtuais, contribuindo

com bifurcações criativas nas dimensões da cultura e de tudo o que comporta a vida

cotidiana. Intervindo na ordem simbólica e nos regimes semióticos, a estética do distúrbio

praticada pelo CAE tem, por isso, o propósito de desafiar o poder e provocar panes, falhas

e avarias na funcionalidade reprodutiva do sistema. Assim, é possível colapsar as

estruturas autoritárias e fazer crescer, por meio de uma bifurcação nos rumos históricos,

nem que sejam vacúolos e vazios plenos de virtualidades, tanto nos processos subjetivos,

epistemológicos e tecnológicos, quanto nas dimensões existenciais, no imaginário e nos

modos de pensar, sentir, fazer e viver. Realmente, trata-se de uma aposta nas táticas do

distúrbio para abrir brechas no entrecruzamento dos campos cultural, subjetivo, artístico

e político. Mesmo o caos, outrora compreendido como ausência de ordem, propicia a

criatividade, e a complexidade, seja em qual sistema for, promove novos arranjos e

patamares de reorganização.235

Para manter o princípio da revolta aceso, sem que as potências sociais se percam

na reencarnação do poder, o Critical Art Ensemble faz valer sua tática na estética do

distúrbio, aparentemente a melhor alternativa da potência destituinte de que lança mão.

A arte-revolta aposta suas fichas no jogo da resistência libertária – no campo

macropolítico, face ao Leviatã Tecnológico, e no campo cultural, contra o espetáculo –

agenciando, para tanto, dispositivos e matrizes performáticas a fim de colapsar os

circuitos do pancapitalismo por dentro com os distúrbios e choques bem direcionados.

235 “Nas ciências naturais, o ideal tradicional era alcançar a certeza associada a uma descrição determinista,

tanto que até a mecânica quântica persegue esse ideal. Ao contrário, as noções de incerteza, de escolha e

de risco dominam as ciências humanas, quer se trate de economia, quer de sociologia”. Ilya Prigogine, As

leis do caos. São Paulo: UNESP, 2002, p. 13.

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174

Conceituando o Distúrbio

No livro Distúrbio Eletrônico, o CAE projeta-se como coletivo de artistas ativistas

com a missão de fornecer subsídios teóricos e matrizes performativas que municiam os

arsenais antropotécnicos da resistência cultural na idade do pancapitalismo, com suas

tecnologias da informação e comunicação. O título que estampa a capa do livro anuncia

a aposta na estética intervencionista do distúrbio.

Distúrbio significa pane, defeito, desajuste, alguma falha cujo efeito é atrapalhar,

interromper, cessar, romper o encadeamento de um processo, fenômeno ou

acontecimento qualquer. A palavra tem sido usada comumente para designar distúrbios

sociais, urbanos, civis, e nesse registro sociológico carrega consigo alguma valência

política. Com a proposta da estética do distúrbio, o CAE dirige-se aos produtores

culturais, ativistas e artistas conclamando-os a se lançarem na resistência cultural de

forma a interferir na ação dos poderes e saberes que se pretendem autoritários, por

identificar nessas instâncias tendências que colocam em risco a soberania individual e

coletiva.

A expressão conceitual elaborada pelo CAE aparece a princípio na discussão

sobre a necessidade de montar a resistência eletrônica, entretanto, a noção tem seu uso

aplicado a várias instâncias. O distúrbio eletrônico, especificamente (tratado no Capítulo

5 – Subvertendo a Máquina), refere-se ao curto-circuito tecnológico que pode ocorrer na

dimensão informática e comunicacional entre componentes maquínicos quaisquer.

Movimentar-se no tanque de poder líquido não precisa ser

necessariamente um ato de aquiescência e cumplicidade. A despeito de

sua situação difícil, o ativista político e o ativista cultural

(anacronicamente conhecido como artista) ainda podem produzir

distúrbios. Embora tal movimento possa assemelhar-se mais aos gestos

de quem se afoga, e não esteja claro exatamente o que está sendo

perturbado, nesta situação o lance do dado pós-moderno favorece o ato

de distúrbio.236

A conceituação de distúrbio elaborada pelo CAE entrelaça duas outras categorias:

o cínico e o utópico, palavras que, por si mesmas, dão muito o que pensar (“o peculiar

entrelaçamento do cínico e do utópico no conceito de distúrbio”).237 Historicamente, o

236 CAE, “Poder nômade e resistência cultural”, in Distúrbio Eletrônico. São Paulo: Conrad, 2001, p. 21-

22. 237 Cf. CAE, Distúrbio Eletrônico, p. 22.

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175

cinismo remete a uma vertente filosófica grega, que se origina com Antístenes, discípulo

direto de Sócrates, e tem na figura de Diógenes, o cão, um de seus mais conhecidos

adeptos. O termo cinismo advém de kynos, palavra que em grego significa cão, cachorro.

Nos primórdios, o termo surge em decorrência do estilo de vida adotado pelos adeptos do

cinismo enquanto filosofia de vida caracterizada por uma existência frugal, afeita ao

naturalismo, despojada dos pudores culturais e que, portanto, faz pouco caso das

convenções sociais. A postura típica do filósofo cínico é frequentemente associada à

impiedade, ao falar francamente (parresía) e ao desprezo altivo com relação aos valores

sociais ancorados na vaidade humana. A coragem, a intrepidez e o ar provocativo são

também signos característicos do cinismo filosófico. Foucault dedicou um curso inteiro

no Collège de France para pensar a parresía, o discurso da veridicção, o falar francamente,

e toma a filosofia cínica como objeto privilegiado de estudo.238

Fora da filosofia, existe outro significado atribuído ao cínico. No registro

contemporâneo a expressão aplica-se a pessoas sem escrúpulos, que fazem de tudo para

atingirem seus objetivos. Essa interpretação faz sentido no horizonte do niilismo

moderno, fenômeno que se propaga desde ao menos o século XIX pela Europa e que hoje

ganha contornos quase mundiais. Por niilismo pode-se entender a queda e o descrédito

dos valores outrora considerados supremos. Com esse significado, cínico nada mais é que

um indivíduo sem valores que se outorga agir a seu bel-prazer, mesmo que isso implique

o mal de alguém; uma atitude que ignora, portanto, toda alteridade.

Não é nesse cinismo niilista que o CAE se inspira para elaborar o conceito de

distúrbio. No campo mais amplo da resistência cultural, o distúrbio representa o colapso,

a falência, a quebra de uma cadeia de procedimentos, de um dado sistema. Produzir um

distúrbio, causar uma pane, interromper um determinado processo, são efeitos

desencadeados por uma ação destemida, desafiadora, astuciosa e necessariamente

provocativa. Por isso, o elemento cínico, quando associado ao conceito de distúrbio,

refere-se à postura combativa assumida pelos ativistas culturais frente aos poderes

constituídos, postura similar a dos filósofos, motivada por determinados valores que

orientam suas ações. Frequentemente algumas características do cinismo filosófico

repercutem no ativismo contemporâneo, por exemplo, nas investidas contra tendências

culturais que se pretendem inquestionáveis, padrões de consumo, comodismo político e

modas estéticas.

238 Cf. Michel Foucault. A coragem da verdade: o governo de si e dos outros II: curso no Collège de

France (1983-1984). São Paulo: Martins Fontes, 2011.

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176

A noção de distúrbio (“disturbance” no original) carrega o significado de

perturbação, cujo sentido proposto pelo CAE indica uma ação provocativa que tem por

efeito intervir em um dado âmbito da realidade, seja social, geográfico, institucional,

cultural, etc., sempre com o intuito de desvelar as semióticas e os discursos que tentam a

todo custo legitimar ordens, leis e padrões considerados questionáveis do ponto de vista

do ativismo. Mas além do aspecto combativo, a atitude cínica demonstra uma certa

intrepidez que desestabiliza os poderes quando assume a missão de desafiar as regras, as

convenções, as leis, as ideias, os comportamentos e os hábitos arraigados em um dado

estrato cultural pelas vias sarcásticas, irônicas, bem humoradas e lúdicas. Atitudes como

as desencadeadas pela seção dadaísta de Zurique, no Cabaré Voltaire, com sua

metodologia de produção aleatória, e sobretudo, as investidas do dadaísmo berlinense,

com suas guerrilhas culturais que faziam a arte desaparecer na ação política.239 Ambos

reconhecidos pelo CAE como precursores do distúrbio.240 O duplo aspecto do Dadaísmo

é identificado por Peter Sloterdijk:

O ataque Dada possui dois aspectos: um kynikos e outro cínico. A

atmosfera do primeiro aspecto é brincalhona e produtiva, pueril e

infantil, sábia, generosa, irônica, soberana, inatacavelmente realista; o

segundo aspecto mostra fortes tensões destrutivas, ódio e reações de

defesa arrogantes contra o fetiche burguês interiorizado, muita projeção

e uma dinâmica afetiva marcada por desprezo e desilusão,

autoenrijecimento e perda da ironia. Não é simples cindir esses dois

aspectos; eles transformam o fenômeno Dada como um todo em um

complexo brilhante (...).241

Além do cínico, o outro componente do conceito de distúrbio elaborado pelo CAE

é a utopia. A palavra tornou-se conhecida com a divulgação da obra homônima de

Thomas More, publicada no século XVI. A etimologia da palavra refere-se a uma

realidade geográfica, topos, em grego, que é precedida de uma partícula negativa, o que

explica a recepção do termo na sua acepção de não-lugar, ou de um lugar que não existe.

Mais tarde, com o avanço da modernidade europeia, o significado de utopia foi

reinterpretado à luz do progresso e adquiriu um sentido histórico mais proeminente.

Utopia então como ideal de perfeição que inspira mudanças históricas em sua direção,

239Cf. Norval Baitello, “República Dadá vs. República de Weimar”, in Dadá-Berlim: des/montagem. São

Paulo: Annablume, 1993, p. 83. 240 Cf. CAE, Distúrbio Eletrônico, p. 23. 241 Peter Sloterdijk, “Caotologia dadaísta. Cinismos semânticos”, in Crítica da razão cínica. São Paulo:

Estação Liberdade, 2012, p. 526.

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um lugar que ainda não existe mas que pode ser construído. No século XIX aparece uma

nova acepção quando Marx se apropria da palavra para desvincular suas ideias dos

primeiros socialistas franceses, denominados então de utópicos.

Na rede conceitual do CAE, quando a utopia aparece junto à noção de cinismo

para qualificar o distúrbio, o sentido geográfico é retomado e a noção subverte o que havia

estabelecido o socialismo científico. Utopia passa a ser um lugar do que ainda não existe,

mas que pode ser concretizado, espaço portanto aberto à realização pela criação. Como o

CAE não trabalha em prol de uma revolução nos termos burgueses, comunistas ou

anarquistas tradicionais, o que interessa na utopia é a sua realidade potencial enquanto

catalisadora dos acontecimentos, ou o campo espaço-temporal da experiência criadora no

qual já trabalhavam os situacionistas na década de 1960. O elemento utópico do distúrbio

representa, portanto, o objeto do desejo na realidade psicogeográfica (termo situacionista)

que precisa ser construído na relação direta com o presente em toda sua multiplicidade.

É justamente a utopia que se pretende invocar desde já, na realidade imediata produzida

pelas forças libertas pelo distúrbio dos poderes, das ideologias, do princípio de realidade

que, por distintos meios, tentam impedir a transformação da realidade ordinária. É por via

do princípio utópico que o aparentemente inexistente exige seu espaço no mundo, e o que

de outra forma talvez fosse impossível de se realizar finalmente se dignifica a existir por

força da criação individual e coletiva.

Os atos de distúrbios são também jogos de azar.242 A concepção de resistência

cultural proposta pelo CAE no seu livro-manifesto passa pela consideração de uma

micropolítica da aposta, que se vincula à ideia de utopia. Um dos aspectos do distúrbio

remete-se a uma aposta utópica de que a resistência cultural, desprovida de um projeto ou

modelo de sociedade, pode desferir golpes de sorte na história e contribuir criativamente

na abertura de situações possíveis, com a expansão dos espaços de liberdade e autonomia.

Se uma revolução em larga escala, em termos sociológicos globais, não parece factível

aos contemporâneos do colapso soviético, como é o caso do CAE, então faz sentido

investir na construção de alternativas anticapitalistas no interior das democracias liberais.

Nada melhor do que o jogo, a ludicidade e o entusiasmo para inspirar uma micropolítica

artística. Aliás, esse é um dos aspectos positivos da revolta e da desobediência encarnadas

pelo coletivo e que transparece no humor de algumas obras. “Apesar de tudo, há um

espaço decisivo para a comédia e o humor como meio de resistência. Talvez esta seja a

242 Cf. CAE, Distúrbio Eletrônico, p. 117.

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maior contribuição da Internacional Situacionista à estética pós-moderna”, diz o CAE.243

A resistência não se faz unicamente em resposta ao sofrimento. A combinação de uma

potência elevada com a imaginação radical basta para inspirar os ânimos, e uma vez

direcionados à política, a reação tende a ser contagiante. A aposta no distúrbio como meio

de ação da resistência significa um otimismo prático.

Mas nem tudo são jogos. Confusão, ceticismo e pânico são algumas das palavras

que aparecem quando a resistência ao poder nômade do pancapitalismo é conclamada a

investir na estética e na micropolítica do distúrbio. Estética artística e cultural da

confusão, micropolítica enquanto prática de “liquidação de estruturas”.244

Há uma combinação de sentimentos e convicções paradoxais que permeiam os

capítulos do Distúrbio Eletrônico. Se a noção de distúrbio por si só causa espanto, por

vezes o que se propõe com a convocação ao distúrbio é a confusão como “uma estética

aceitável”: “o momento de confusão é a precondição para o ceticismo necessário ao

surgimento do pensamento radical”.245 Ceticismo concebido como postura ativa do

pensamento diante das aparências, dos emaranhados de crenças e verdades, das capturas

do poder, da sedução do espetáculo.

O método paranoico-crítico de Salvador Dalí, que se propunha a projetar

alucinações despertas no mundo cotidiano, anunciou uma nova antropotécnica artística-

existencial de tipo intervencionista. Embora uma atividade perseguida pelo indivíduo,

seus efeitos possuem uma potencialidade social e situacionista: “Através de um processo

de cunho paranoico e ativo do pensamento, será possível (simultaneamente ao

automatismo e outros estados passivos) sistematizar a confusão”. Era o que fazia Dalí

com frequência em suas performances extravagantes, que, com criatividade estética,

tornava-se capaz de criar o pânico no cotidiano.246

Na concepção de resistência do CAE, a noção de aposta supõe um construtivismo

radical inerente à realidade, individual e social, cognitiva e imaginal, que é preciso liberar

por força da inventividade artística. Por isso, o investimento na desmontagem das ordens,

no desarranjo dos sistemas, no embaralhamento dos códigos, como tática propícia a uma

243 CAE, Distúrbio Eletrônico, p. 29. 244 CAE, Distúrbio Eletrônico, p. 57, onde se lê: “É o distúrbio por meio da liquidação dessas estruturas o

que a mídia nômade da resistência tenta conseguir. Isso não pode ser feito produzindo-se mais monumentos

eletrônicos, mas, pelo contrário, por uma intervenção imaginativa e uma reflexão crítica libertadas em um

momento eletrônico incerto e não resolvido”. 245 CAE, Distúrbio Eletrônico, p. 56. 246 Cf. Nicolas Bourriaud, in Formas de vida: a arte moderna e a invenção de si. São Paulo: Martins

Fontes, 2011, p. 77-78.

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recombinação diferencial, libertária, propensa à manifestação da autonomia por meio do

experimentalismo generalizado:

As ideias, as artes e a paixão podem florescer igualmente bem, se não

melhor, em um ambiente de desordem. A estética da ineficiência, das

apostas desesperadas, de incomensuráveis suposições, de interrupções

insuportáveis, fazem parte da soberania do indivíduo. Estas são

situações nas quais ocorre a invenção.247

Em situações extracotidianas, quando os indivíduos se deparam com o inesperado

e o imprevisível lhes salta aos olhos, não há como escapar ao peso da realidade que lhes

cai sobre a cabeça. É preciso agir, nem que seja improvisar alguma reação, com o que se

cumpre a função relacional do distúrbio e da confusão. Imersos em uma realidade espaço-

temporal desconfigurada, de uma forma ou de outra os indivíduos são chamados à ação.

A eles, torna-se premente entrar no modo ativo de intervir na sua própria existência, em

relação ao que experienciam, percebem, sentem e pensam. A confusão, vivenciada assim,

não raro reflete-se em choque de realidade e impõe um estado de alerta de outra forma

adormecido. O CAE indica o motivo profundo de sua aposta na confusão:

Como afirma Baudrillard: “A despeito de si mesmo, o esquizofrênico

está aberto a tudo e vive na mais extrema confusão. O esquizofrênico

não se caracteriza, como geralmente se afirma, por sua perda de contato

com a realidade, mas por uma absoluta proximidade e total

instantaneidade com as coisas, uma superexposição à transparência do

mundo”.248

A mistura de sentimentos de atração e repulsa, o estranhamento decorrente de uma

experiência impactante, que causa espanto, coloca em dúvida, perfaz um ceticismo, toda

sorte de questionamento mais profundo sobre qualquer coisa, tudo isso de alguma forma

se assemelha a uma experiência esquizofrênica no sentido apresentado acima de contato

mais imediato e portanto instantâneo, sem mediações, com a realidade, que se descortina

em suas articulações até então imperceptíveis, invisibilisadas, não pensadas. Nesse

sentido, o que se pretende com a estética da confusão nada mais é do que a produção

artística de experiências esquizofrênicas minimalistas em instâncias antropológicas

circunscritas, mas que, em dimensões culturais determinadas, no melhor dos casos,

carrega a possibilidade de se tornar uma esquizofrenia anticapitalista.

247 CAE, Distúrbio Eletrônico, p. 134. 248 CAE, Distúrbio Eletrônico, p. 71.

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Como se não bastasse, na lógica paroxística do CAE o ápice da estética do

distúrbio, que busca forjar instâncias de abertura à reconfiguração necessariamente

prefigurada pela confusão, não pode ser mais do que o pânico.

O poder nômade criou o pânico nas ruas com suas mitologias de

subversão política, deterioração econômica e infecção biológica, o que

por sua vez produz uma ideologia de fortificação, e consequentemente

uma demanda por casamatas [bunkers, no original]. Agora é necessário

levar pânico à casamata, perturbando desta forma a ilusão de segurança

e não deixando nenhum lugar para se esconderem. O jogo pós-moderno

consiste no incitamento ao pânico em toda parte.249

Uma afirmação como essa não deixa de causar espanto. Afinal, que tipo de

ativismo é esse que ao invés de reivindicar direitos, razão democrática, participação

política, perturba a ordem existente, impele à confusão, exalta o pânico? É preciso

esmiuçar essa questão intrincada para evitar mal-entendidos.

Primeiro, trata-se de levar o pânico para dentro das fortificações do poder, seus

bunkers, que se pretendem seguros e firmes para agir sobre, e às vezes contra, a soberania

dos indivíduos. De acordo com o CAE, bunkers podem ser físicos, arquitetônicos,

eletrônicos, virtuais, mas também, ideacionais, semióticos. O princípio da fortificação

muda conforme as configurações históricas e por vezes se sofistica em termos

sociológicos ao ponto de não aparecer ao público como o que é. O caso da ideologia, tal

como definida por Marx, é exemplar quanto a isso: por meio de um discurso social, a

dominação e a exploração são mascaradas aos olhos de quem sofre com elas, de modo

que não sejam reconhecidas enquanto tais.250

Em termos materiais, um castelo, um forte, um quartel, são claramente bunkers.

Mas a burocracia moderna também pode ser considerada um bunker, que tem a

capacidade de resistir a guerras, revoluções e catástrofes naturais. Indústrias, escolas,

centros informáticos, cada um à sua maneira são bunkers que produzem e promovem as

estruturas sociais necessárias ao funcionamento do pancapitalismo com seus imperativos

ao trabalho e ao consumo como modelo de vida dominante. Mais recentemente, a

249 CAE, Distúrbio Eletrônico, p. 37. 250 A ideologia enquanto produtora de falsa consciência. Cf. Karl Marx e Friedrich Engels. A ideologia

alemã. São Paulo: Martins Fontes, 2002. Para um estudo aprofundado do fenômeno da ideologia em seus

aspectos sociológicos, antropológicos, políticos, epistemológicos e psicológicos, ver Alípio DeSousa Filho,

“A ideologia, o discurso ideológico e de poder e sua desconstrução”, in Tudo é construído! Tudo é

revogável! A teoria construcionista crítica nas ciências humanas. São Paulo: Cortez Editora, 2017.

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sociedade do espetáculo passou a contar com o mass media como um bunker dos mais

formidáveis:

Neste caso, o bunker é material e ideacional. Por um lado, serve como

uma guarnição de concreto onde as imagens (tropas) residem. Por outro

lado, confirma a realidade patrocinada pelo Estado, consolidando para

sempre as noções reificadas de classe, raça e gênero. Bunkers em sua

totalidade como espetáculo colonizam a mente e constroem o micro-

bunker da reificação, que por sua vez é o mais difícil de todos para

penetrar e destruir.251

Os bunkers nada mais são do que configurações de saber-poder situadas no

espaço-tempo social. Desafiá-los com o distúrbio significa desmontá-los em seus efeitos

sociais, que nos indivíduos se convertem em conformismo, temor, sectarismo e

dogmatismo. Assim como é possível atuar nos bunkers materiais (com a desobediência

civil tradicional e suas ocupações pacíficas) e nos bunkers eletrônico e virtual (com a

prática da desobediência civil eletrônica), agir sobre as fortificações ideacionais

disseminadas na sociedade e instaladas nos indivíduos é uma premissa da resistência

cultural contemporânea. Uma forma de tocar os micro-bunkers alojados nas

subjetividades é direcionar os esforços do distúrbio estético ao imaginário social e às

representações hegemônicas assentadas em opiniões de todo tipo, que o CAE denomina,

em geral, de ordem simbólica. E aqui é preciso elucidar um outro ponto importante

quando se trata de causar pânico por meio da estética do distúrbio.

No Segundo Manifesto Surrealista há uma passagem que ainda hoje causa

polêmica devido à imagem empregada por André Breton: “O ato surrealista mais banal

consiste em sair correndo pelas ruas, com uma arma em punho, atirando às cegas na

multidão, apertando o gatilho o mais rápido possível”.252 Um desavisado, que não

conhece minimamente a história da arte moderna, reprovaria peremptoriamente tal

afirmação. Aqui é fundamental lembrar que o Surrealismo, enquanto estética da

existência, anseia restituir ao ser humano sua capacidade imaginativa, resgatar as forças

inconscientes do espírito poético, para que, enfim, a super-realidade do maravilhoso se

manifeste, a começar pelo deslumbramento do ser com a vida e o mundo.

251 “In this case, the bunker is both material and ideational. On one hand, it serves as a concrete garrison

where images (troops) reside. On the other hand, it confirms state-sponsored reality, by forever solidifying

the reified notions of class, race, and gender. Bunkers in their totality as spectacle colonize the mind, and

construct the micro-bunker of reification, which in turn is the most difficult of all to penetrate and destroy”.

CAE, “Resisting the bunker”, in Electronic Civil Disobedience, p. 37. 252 Citado por Fiona Bradley, in Surrealismo. São Paulo: Cosac & Naify, 2001, p. 11.

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A imagem de um jovem em meio à multidão com arma em punho, desferindo tiros

a esmo, remete a uma anedota sobre o filósofo Diógenes, o Cínico, que em pleno meio-

dia, conta-se, ao caminhar em uma feira de Atenas com um lanterna acesa, perguntava

aos passantes: “Um homem, onde posso encontrar um homem verdadeiro?”. É preciso

visualizar o jovem surrealista com efeito deliberadamente performático, mirando os

transeuntes como a lhes provocar uma reação pelo choque da situação inusitada,

disparando não projéteis (não há munições), mas proporcionando-lhes, por meio de

gestos, uma experiência com sensações, espasmos, surpresas, fúria, risos, vexames,

revoltas, quem sabe, até desmaios, de modo a não saírem incólumes do momento. Espera-

se assim que a performance surrealista retire o ser de seu estado inerte com relação à vida,

depois de uma experiência na qual as sensações remetem à morte.

O pânico do CAE nada mais é que uma versão do cínico que indaga seus

interlocutores incitando-os a pensar, e uma versão política do ato surrealista de provocar

um choque nas pessoas a fim de que despertem para a verdadeira vida das sensações.

Durante todo o século XX, nas mais diferentes vertentes, é possível encontrar esse apelo

à estética do choque. Antes dos surrealistas, essa já era a atitude do Dadaísmo.

Walter Benjamin, no clássico ensaio sobre a obra de arte na era de sua

reprodutibilidade técnica, trata da estética do choque, justamente quando menciona o

Dadaísmo: “De espetáculo atraente aos olhos, a obra de arte, com o dadaísmo, fez-se

choque. Ela confrontou o espectador ou o ouvinte. Adquiriu um poder traumatizante”.253

O que Benjamin identifica de forma mais evidente nos dadaístas, aparece entre os

futuristas e surrealistas. Ambos buscam chocar os observadores nas performances que

realizam. O CAE confere aos escândalos, às algazarras e aos choques provocados pelas

vanguardas um novo significado, desta vez, deliberadamente político. É nesse sentido que

a estética do distúrbio pode ser compreendida como uma micropolítica.

Porém, mais do que chocar os indivíduos, a ideia da estética do distúrbio é

perturbar a ordem simbólica fortificada (ideológica) dos bunkers, sejam eles materiais,

ideacionais, eletrônicos ou virtuais. O que se pretende com isso é liberar espaços-tempos

de autonomia, sensibilidades reflexivas, pensamentos críticos. O alvo privilegiado para

se atingir tais objetivos não é senão o regime semiótico que flui na cultura dominante de

um bunker a outro.

253 Citado por Nicolas Bourriaud, in Formas de vida: a arte moderna e a invenção de si, p. 34.

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Perturbar a ordem simbólica dos bunkers, das fortificações sociais, é uma antiga

técnica de contestação social. De acordo com o Critical Art Ensemble há dois modelos-

chave de distúrbio: o modelo sedentário, que produz contra-espetáculos para rivalizar

com as produções simbólicas hegemônicas e dominantes, e o modelo nômade, que busca

minar a ordem simbólica com métodos efêmeros e processuais. Ambos correspondem ao

que Thompson denomina estética social e mídia tática. Nos dois casos, o que há em

comum é o elemento pedagógico.254 Na ação cultural nomádica é possível identificar um

tipo performativo orientado por processos que estimulam o diálogo. Este tipo abrange

teatro de rua, performances, intervenções moleculares, site specific art, entre outras

possibilidades. Um outro tipo de atuação nomádica produz arsenais os mais variados na

forma de produtos, imagens, pôsteres, histórias em quadrinhos, vídeos, projeções

multimídias, etc., preparados para intervir em áreas específicas. O objetivo almejado com

a criação de tais produtos é provocar no observador questionamentos, um certo grau de

ceticismo com relação a problemáticas do âmbito social. O termo mídia tática atualiza em

um só conceito esses tipos de ação cultural nomádica, adaptáveis e mutantes no plano

micropolítico. De acordo com o CAE, na era do supergerenciamento as ações nomádicas

são as únicas táticas viáveis por meio das quais qualquer tipo de participação cultural

democrática pode ser alcançada.255

Com uma certa liberdade de interpretação, as fórmulas revolucionárias das

vanguardas artísticas são assim atualizadas pelo CAE em um outro plano conceitual e

pragmático correspondente ao contemporâneo: a utopia representa o maravilhoso tão

almejado pelos surrealistas, a atitude cínica, cara aos dadaístas, um meio de injetar

ceticismo e provocar o campo da cultura, e por fim, o distúrbio, a investida micropolítica

de que se valem os ativistas como meio tático de catalisar super-ações no seio do

ordinário, finalmente liberto dos grilhões na forma de crenças ideológicas, dogmas,

poderes repressivos e subjetividades capturadas nos sistemas de disciplina e controle.

Enquanto tática política ofensiva, o distúrbio, na perspectiva do CAE, traz em seu

conceito uma potência guerreira que é direcionada aos poderes, aos saberes, ao Estado,

às tendências autoritárias na cultura e aos imperativos predatórios do pancapitalismo. Em

determinadas circunstâncias, o distúrbio resulta em choques, rupturas, clivagens, cisões.

Nesse sentido, produz-se um distúrbio pelos procedimentos de uma máquina de guerra.

O agenciamento máquina de guerra ocupa o espaço sem medir e produz dois tipos de

254 Cf. CAE, “Resisting the bunker”, in Electronic Civil Disobedience, p. 38-39. 255 Cf. CAE, “Resisting the bunker”, in Electronic Civil Disobedience, p. 49.

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linhas, uma linha de fuga sobre a qual a invenção e a criação se atualizam, e uma linha de

destruição que resvala detritos, restos e decomposição. Entre uma e outra, a passagem de

uma à outra, não há certeza nem controle, senão a presença imanente do caos.

Historicamente, a noção de caos tem seu lugar na resistência artística como aposta

desde ao menos o dadaísmo, ainda que apareça em outros termos. As teorias na

termodinâmica desenvolvidas no século XX reconhecem que a entropia de um sistema

promove sempre, em condições muito variadas, o rearranjo de seus elementos e a

reorganização de seu conjunto. Disso se pode concluir que o caos não é necessariamente

o contrário da ordem, pois é possível conceber um sistema caótico ou entrópico repleto

de organizações complexas, do mesmo modo que as ordens complexas comportam

elementos entrópicos que põem em movimento as organizações e dinamizam a vida.

Com o desenvolvimento da biologia e da física, a teoria da evolução e a teoria

termodinâmica, afirma Ilya Prigogine, o caos adentrou no núcleo da cosmologia atual e

passou a ser a noção central para compreender os fenômenos da natureza, da sociedade e

do cosmos, a partir de categorias como probabilidade e irreversibilidade.256 “A

reconsideração do ‘caos’ leva também a uma nova coerência, a uma ciência que não fala

apenas de leis, mas também de eventos, a qual não está condenada a negar o surgimento

do novo, que comportaria uma recusa da sua própria atividade criadora”.257

Em termos conceituais e factuais o caos possui um significado ambivalente. Pode

ser pensado em sentido criador, mas também destruidor. Caos, portanto, enquanto

possibilidade de transformação. Na história da arte-revolta, a aposta dadaísta no caos

encontrou novas bases entre os situacionistas. A princípio sem qualquer preocupação com

efeitos e fins, torna-se estratégia política dotada de sentido. Debord, nas suas teses sobre

a revolução cultural, em 1958, defende a desordem como estímulo da transformação:

Os que querem superar, em todos os aspectos, a antiga ordem

estabelecida não se podem ater à presente desordem, nem mesmo na

esfera da cultura. É preciso lutar sem delongas, e também na cultura,

para o aparecimento concreto da ordem movente do futuro. É sua

possibilidade, já presente entre nós, que desvaloriza qualquer forma de

expressão cultural conhecida. É necessário levar à total destruição todas

as formas de pseudocomunicação, a fim de chegar um dia a uma

comunicação real direta (em nossa hipótese de utilização de meios

culturais superiores: a situação construída). A vitória caberá a quem

souber fazer a desordem sem compactuar com ela.258

256 Cf. Ilya Prigogine, As leis do caos, p. 16. 257 Ilya Prigogine, As leis do caos, p. 8. 258 Guy Debord, “Teses sobre a revolução cultural”, in Paola Berenstein Jaques (org.). Apologia da deriva:

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Desordem provocada pela exposição dos elementos negados ao caos

desintegrador, enquanto prefiguração de uma tomada de consistência a partir de eventos

desencadeados pelas situações construídas. Ao apresentar a postura antissistemática de

Georges Bataille, Bourriaud conclui: “Nessa luta contra o esqueleto arquitetônico, os

artistas são precursores: abrem caminho para uma ‘monstruosidade bestial’, a única coisa

capaz de nos fazer reaprender a pensar”.259

A aposta na estética do distúrbio como produção de uma máquina de guerra supõe

um risco que é inerente a todo jogo. A arte luta com o caos mas para combater outra coisa,

que são as opiniões, exatamente as opiniões que pretendem aprisionar o pensamento e a

vida com seus valores de verdades absolutas, ou com as convicções petrificadas uma vez

por todas. Libertar a vida, é sempre disso que se trata quando a arte se põe a rasgar o reino

das opiniões, ideologias, comunicações para trazer um pouco do caos tempestuoso ao

mundo. É o que dizem Deleuze e Guattari:

Num texto violentamente poético, Lawrence descreve o que a poesia

faz: os homens não deixam de fabricar um guarda-sol que os abriga, por

baixo do qual traçam um firmamento e escrevem suas convenções, suas

opiniões; mas o poeta, o artista abre uma fenda no guarda-sol, rasga até

o firmamento, para fazer passar um pouco do caos livre e tempestuoso

e enquadrar numa luz brusca, uma visão que aparece através da fenda,

primavera de Wordsworth ou maçã de Cézanne, silhueta de Macbeth

ou de Ahab. Então, segue a massa dos imitadores, que remendam o

guarda-sol, com uma peça que parece vagamente com a visão; e a massa

dos glosadores que preenchem a fenda com opiniões: comunicação.

Será preciso sempre outros artistas para fazer outras fendas, operar as

necessárias destruições, talvez cada vez maiores, e restituir assim, a

seus predecessores, a incomunicável novidade que não mais se podia

ver. Significa dizer que o artista se debate menos contra o caos (que ele

invoca em todos os seus votos, de uma certa maneira), que contra os

“clichês” da opinião.260

Chamam-se caóides as realidades produzidas em planos que recortam o caos. Por

meio da criação de uma zona caóide temporária (a confusão produzida pelo distúrbio), os

indivíduos são expostos às velocidades infinitas do caos que atravessa o reino das

opiniões. Nesse cenário, o pânico representa um dos efeitos colaterais possíveis da

exposição das subjetividades à revelação do caos. Assim, tem-se uma linha composta por

choque semiológico, esquizofrenia minimalista taticamente induzida e lapso de

escritos situacionistas sobre a cidade. Rio de Janeiro: Casa da Palavra, 2003, p. 72-73 259 Nicolas Bourriaud, in Formas de vida: a arte moderna e a invenção de si, p. 117. 260 Gilles Deleuze e Félix Guattari. O que é a filosofia? Rio de Janeiro: Ed. 34, 2004, p. 261-262.

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186

pensamento descomprimido. Não à toa, dizem Deleuze e Guattari, é preciso prudência.

Prudência que não se confunde com precaução, porque da ordem do acontecimento.

Trata-se, em linguagem comum, de assumir os riscos. O CAE não teme surfar no caos.

Distúrbio, por tudo o que foi dito, nada mais é do que um dos efeitos provocados

pelas pragmáticas culturais de que se podem valer os mais variados produtores, ativistas,

artistas e militantes como forma de desarticular poderes, dispositivos, ordenamentos

funcionais e ideologias dominantes. Enquanto conceito operativo, adquire consistência

na conjunção de duas dimensões aparentemente indiscerníveis que somam quatro

elementos: uma dimensão estética, lúdica e utópica, e uma dimensão micropolítica, cínica

e tática (guerreira).

Imagem 41 – Fator-X: Matriz Conceitual do Distúrbio. Conceito do autor, arte de Sandro Freitas.

Considerado uma forma de se concretizar super-ações, o distúrbio tem a

potencialidade de se efetuar segundo matrizes micropolíticas variantes (teatro da vida

cotidiana, teatro recombinante, teatro eletrônico, resistência eletrônica), que se atualizam

conforme o desejo dos praticantes, as intenções envolvidas, os objetivos almejados e a

reação desencadeada pelas interações com o público, com as instituições e a cultura mais

ampla. Vista em retrospectiva, a estética do distúrbio se desenvolve paralelamente aos

movimentos de mídia tática surgidos nos anos 90, prolonga as linhagens performáticas da

arte-revolta e se lança com prodigalidade no século XXI.

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187

EXPLORAÇÕES EM MÍDIA TÁTICA

No campo das artes, o século XX começou com o Futurismo. A transição para o

século XXI que, segundo Hobsbawm, coincide com o fim da Guerra Fria e com a queda

do Muro de Berlim, viu a ascensão de uma miríade de práticas artísticas inovadoras

sobretudo ao assumirem um caráter coletivo e performático. O CAE foi parte integrante

desse movimento difuso no campo das artes que se misturou com a política e com a

sociedade de forma direta ao longo dos anos 90.

O CAE é herdeiro das vanguardas históricas do século XX, mas se faz órfão pois

não pretende reproduzir o legado moderno: vai além e supera as ilusões e os valores que

mobilizaram as gerações anteriores. Por exemplo, com relação aos vínculos que as

vanguardas mantinham com os partidos políticos. O Futurismo e o Surrealismo são

exemplos claros das ligações que os movimentos artísticos de vanguarda mantinham com

os movimentos políticos no campo institucional. O CAE traça uma via transversal a essa

tendência e se afirma enquanto um coletivo autônomo em relação a partidos políticos ou

ideologias, assumindo assim uma postura independente.

No fim do século XX, a arte revolucionária das vanguardas havia cumprido o seu

papel histórico e explorado quase todas as possibilidades técnicas até então

desenvolvidas, sobretudo com o impulso renovado dado pelos Situacionistas franceses no

campo da arte-revolta. A sociedade do espetáculo, por sua vez, incorporou e domesticou

como pôde as estéticas criadas pelos inventores de estilos e expressividades das

vanguardas. Segundo uma fórmula consagrada, a resposta à estetização da política sempre

foi a politização das artes.

Com relação a isso, a saída encontrada pelo CAE foi relacionar-se com a arte

mantendo uma movimentação de distanciamento e aproximação, entre adesão e crítica às

convenções, regras, instituições e concepções típicas do campo artístico. Fazendo arte ou

não, entre o campo artístico e a arena da cultura, o CAE antecipa algumas das maiores

tendências do século XXI. O grupo deu origem e forma a maneiras artísticas e estéticas

de atuar na cultura que se mostraram à altura de seu tempo.

As práticas de intervenção do coletivo por meio tecnológicos, os mais variados,

tornaram-se uma de suas marcas distintivas. No entanto, foi necessária uma

movimentação internacional para que algumas práticas já em uso adquirissem o estatuto

hoje conhecido como Tactical Media. As atividades que ficaram assim conhecidas na

virada do milênio repercutiram mesmo antes de terem adquirido um conceito próprio. Na

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188

realidade, suas raízes remontam às práticas das vanguardas modernas, e muito embora os

dadaístas, futuristas, surrealistas e situacionistas tenham interferido, com suas práticas na

dinâmica cultural de uma maneira nova, com o corpo, apelando para escândalos, agitações

performáticas e guerrilhas artísticas, tais práticas permaneceram durante todo esse tempo

sem qualquer definição conceitual que abarcasse todas elas sob uma só designação.

Foi somente na década de 1990, já passando para os anos 2000, que, nas

discussões sobre os usos das tecnologias e mídias para efeitos culturais e artísticos com

forte teor intervencionista, que o conceito de Tactical Media finalmente veio à tona e

passou a ser empregado nos circuitos da resistência cultural. Desde então, sempre que se

trata de nomear, caracterizar, distinguir, descrever práticas culturais com forte apelo

micropolítico, o termo mídia tática sobrevém.

Contexto Histórico

O surgimento da mídia tática ocorre na culminância do desenvolvimento das

tecnologias da informação e a subsequente explosão comunicacional desencadeada pela

internet, período marcado pela guerra contra o terrorismo, pela expansão do capitalismo

financeiro à escala global e por uma intensificada implementação das políticas neoliberais

nos anos imediatamente após o fim da Guerra Fria. Gradativamente a mídia tática

constitui um conjunto de discursos, práticas e estéticas críticas que emergem no interior

desses processos, e em resposta a eles. A entrada das sociedade ocidentais na situação

pós-industrial e a globalização neoliberal foram acompanhadas pela emergência de um

conjunto de práticas artísticas e ativistas mais fluidas, extensivas e potencialmente

poderosas do que aquelas até então conhecidas.261

A globalização do capitalismo fez crescer também a resistência a seus imperativos

por dentro, e a circulação de meios tecnológicos de comunicação e informação, como a

internet e os celulares, permitiu a formação de redes de ativistas para além das fronteiras

locais, regionais e nacionais. Durante a década de 1990 um dos lemas das resistências

anticapitalistas tornou-se “Pensar globalmente, agir localmente”. As práticas de mídia

tática representam em termos artísticos e micropolíticos exatamente essa assertiva da

resistência alterglobalização da época.

261 Cf. Rita Raley. Tactical Media. London: University of Minnesota Press, 2009, p. 3.

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189

A economia da informação alçada a uma magnitude então inédita produz o que o

CAE denomina a inteligência tecnocrática, formada por corpos de especialistas no uso

das tecnologias de ponta no campo da comunicação e da informação. Desde a década de

1970 pelo menos, a tecnologia tem sido acompanhada pelos ativistas, produtores culturais

e artistas com igual interesse. O desenvolvimento de tecnologias para uso pessoal, como

câmeras fotográficas e cinegrafistas amadoras, bem como o empreendimento de rádios

comunitárias, provocaram deslocamentos e transformações importantes na produção

estética, comunicacional e informacional da cultura de massas. Embora a indústria tenha

direcionado as aplicações para propósitos mercadológicos, e os governos, para fins

políticos-ideológicos, no campo mais aberto da cultura inúmeros agentes sociais, entre

eles, os produtores amadores e os ativistas, alimentaram a imaginação tecnológica,

artística e micropolítica com muito empenho e criatividade.

Efetivamente, no período pós-guerra algumas linhagens das vanguardas modernas

nas artes e na política encontraram-se com toda uma multiplicidade de amadores e

profissionais do campo publicitário e jornalístico que ensaiavam apropriações inovadoras

das tecnologias da comunicação e informação: movimentos sociais, associações civis,

ativistas, artistas, militantes, sindicalistas, repórteres, intelectuais, entre outros agentes

sociais. A série é longa e flexível, entretanto a confluência do interesse artístico-estético

e do interesse comunicativo-político com as mídias na sociedade pós-industrial promoveu

um cenário propenso a uma produção midiática descentralizada, logo apropriada pela

resistência em suas redes de produção cultural.

O termo Tactical Media começou a circular em 1993, quando um conjunto de

grupos europeus e norte-americanos envolvidos com produção de vídeos organizou o

evento Next 5 Minutes (N5M) em Amsterdam com o tema Tactical Television. Os tópicos

discutidos no evento giravam em torno do uso tático da produção visual, da vídeo cultura,

modelos alternativos de produção e distribuição de curtas, documentários amadores,

sempre visando a uma produção engajada politicamente. O termo tática aparece na

primeira edição do evento inspirada no trabalho de Michel de Certeau (A invenção do

cotidiano), direcionado especificamente à televisão.262

Outros produtores culturais estavam experimentando no mesmo período mídias

diferentes para intervir na cultura e essa tendência repercutiu no escopo da discussão, que

262 Cf. Michel de Certeau. A invenção do cotidiano: arte de fazer. Petrópolis: Vozes, 1998, p. 46-48, 97-

102.

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190

logo se abriu para abranger toda sorte de mídias, de tal maneira que, nos anos de 1996 e

1999, o tema do Next 5 Minutes foi diretamente Tactical Media, direcionado às mídias

eletrônicas então vigentes como rádio, TV e internet.263 Os organizadores do N5M

propuseram uma definição básica da terminologia com a seguinte fórmula:

O termo “mídia tática” se refere à utilização crítica e à teorização de

práticas de mídia que recorrem a todas as formas, antigas e novas,

lúcidas e sofisticadas, dos media para a realização de diversos objetivos

não comerciais, e que impulsionam todos os tipos de questões políticas

potencialmente subversivas.264

Definição Ativista

Geralmente referido a práticas muito diversas como engenharia reversa,

hacktivismo, robótica contestatária, software cooperativo, tecnologia com código livre, o

termo mídia tática tem um sentido aberto e maleável que pode ser aplicado a vários

processos, com ou sem uso de aparatos tecnológicos. Em um arquivo que atesta a origem

do conceito, The ABC of Tactical Media, a ideia central é assim apresentada por David

Garcia e Geert Lovink, em 1997:

Mídia tática acontece quando as mídias baratas “faça você mesmo”,

possibilitadas pela revolução na eletrônica de consumo e pelas formas

expandidas de distribuição (do acesso público à internet) são exploradas

por grupos e indivíduos que se sentem lesados ou excluídos pela cultura

mais ampla.265

A mídia tática não se limita a relatar eventos. O princípio do it yourself (faça você

mesmo) oriundo do movimento punk supõe a participação efetiva dos praticantes e

produtores que se valem da mídia tática, e isso, mais do que qualquer coisa, os separa da

263 Cf. CAE. Digital resistance: explorations in tactical media, p. 4-5. 264 “The term ‘tactical media’ refers to a critical usage and theorization practices that draw on all forms of

old and new, both lucid and sophisticated media, for achieving a variety of specific noncommercial goals

and pushing all kinds of potentially subversive political issues”. Citado por CAE, in Digital Resistance, p.

5. 265 “Tactical Media are what happens when the cheap ‘do it yourself’ media, made possible by the revolution

in consumer electronics and expanded forms of distribution (from public access cable to the internet) are

exploited by groups and individuals who feel aggrieved by or excluded from the wider culture. Tactical

media do not just report events, as they are never impartial they always participate and it is this that more

than anything separates them from mainstream media”. David Garcia e Geert Lovink, The ABC of Tactical

Media. Texto completo disponível no seguinte endereço: https://www.nettime.org/Lists-Archives/nettime-

l-9705/msg00096.html Acesso 4 de agosto de 2019.

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191

mídia tradicional. Na realidade, o termo mídia tem a função de valorizar os meios

colocados em prática pelos midiativistas, que se valem de uma miríade de processos para

atingirem seus fins, sejam eles culturais ou políticos.

No mesmo artigo, The ABC of Tactical Media, isso fica muito claro. Após tratar

os praticantes de mídia tática como ativistas, “nomadic media warriors”, hackers, rappers

das ruas, existe uma passagem relevadora que às vezes passa despercebida: as atividades

de mídia tática colocam em ação formas híbridas, performativas e pragmáticas, sempre

provisórias, e estabelecem conexões temporárias instaladas no “aqui e agora” de situações

polimórficas, seja recorrendo a aparatos eletrônicos, como TVs, novas e velhas mídias (o

texto é de 1997), mas que podem ser também “teatro, demonstrações de rua, filmes

experimentais, literatura, fotografia”. A mídia que aparece na assinatura do conceito deve

ser entendida, portanto, como um meio qualquer usado de forma tática, ou seja, para

efeitos de resistência micropolítica. Eric Kluitenberg identifica o mesmo sentido

incorporado na prática do CAE:

O Critical Art Ensemble entende a Mídia Tática primeiro como uma

forma de intervencionismo digital. No entanto, eles não querem limitar

o escopo da Mídia Tática à tecnologia digital: “‘digital’ para o CAE

significa que a mídia tática é sobre copiar, re-combinar e re-apresentar,

e não que isso só pode ser feito com a tecnologia digital”. Para o Critical

Art Ensemble, a prática política emergente da Mídia Tática existe

principalmente como a apropriação de qualquer tipo de meio, qualquer

forma de conhecimento ou produção visual, e qualquer processo

político ou social, que desafie hierarquias e falsas dicotomias à medida

que avança.266

Nesse sentido, mídia tática é mais do que simplesmente ativismo tecnológico,

como poderia dar a entender uma primeira aproximação, e vai além do intervencionismo

técnico: o termo, no design elaborado pelos organizadores do N5M, designa uma estética

aberta e, portanto, amorfa ou mutante, que serve como uma pragmática para a crítica

política. A fórmula-chave que condensa a mídia tática pode ser assim enunciada: amorfa

no design e mutante nas formas encarnadas que o conceito abarca. Dada a abrangência de

266 “Critical Art Ensemble understand Tactical Media first as a form of digital interventionism. However,

they do not want to limit the scope of Tactical Media to digital technology: ‘By ‘digital’ CAE means that

tactical media is about copying, re-combining, and re-presenting, and not that it can only be done with

digital technology’. For Critical Art Ensemble the emerging political practice of Tactical Media exists

foremost as the appropriation of any kind of medium, any form of knowledge or visual production, and any

social or political process, challenging hierarchies and false dichotomies as it goes along”. Eric Kluitenberg.

Legacies of Tactical Media. Amsterdam: Institute of Network Cultures, 2011, p. 13. Cf. CAE, Digital

Resistance, p. 7.

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192

sentido, fica difícil definir a expressão para algum tipo de prática específica. Na realidade,

essa é uma das vantagens da definição.

A inovação promovida pelas recentes gerações de produtores culturais colocou

uma nova dificuldade da qual os ativistas retiram alguma vantagem. Ao imergir as

práticas de intervenção na esfera da vida cotidiana, de formas muito variadas, os

praticantes de mídia tática dificilmente se enquadram inteiramente nos estereótipos de

artistas ou de militantes, o que, por si só, lhes confere maior liberdade de ação. Por um

lado, os midiativistas não se consideram artistas no sentido tradicional do termo, pois não

produzem necessariamente produtos vendáveis, e por outro, também não se apresentam

como militantes no sentido histórico clássico, pois se recusam a permanecer no embate

racional reativo. Ao invés disso, lançam mão de outros meios de intervenção direta no

campo cultural sem defenderem uma ideologia política específica.267

O ativismo paradigmático da mídia tática desenvolve uma nova postura. Nele, o

ativista assume as atribuições de um inventor, ou de um experimentador, porque também

ele precisa escapar, para que sua ação seja eficaz, à cadeia de hábitos e imitações do

ambiente que codifica o espaço da ação política. Em geral, no ativismo contemporâneo

da arte-revolta, a dimensão contestatária e guerreira transforma-se em força-invenção, em

potência de criação e realização dos agenciamentos antropotécnicos, no sentido ao mesmo

tempo organizacional e midiático aqui aplicado. O ativista deixa de ser um condutor

ideológico, como a noção de “intelectual orgânico” (de Gramsci) poder aludir, e torna-se

micromecânico, aquele que agencia os mais distintos elementos maquínicos, sejam

discursivos, tecnológicos, imagéticos, antropológicos, estéticos em um campo

micropolítico transversal, heterogêneo e aberto às multiplicidades recombináveis.

Para o ativista, o experimentador e o criador, a crítica e a criação, a destruição e a

invenção, o ceticismo e a aposta coexistem e se retroalimentam reciprocamente; e se o

movimento que promove é prospectivo, sempre ocorre em função de algo novo, positivo.

Isso significa que a crítica e a destruição não se perdem no vazio: são momentos de uma

experimentação e de uma criação mais fundamentais. Assim, a postura ética do ativista,

por definição, pro-move a resistência inserindo uma ação inovadora no campo de atuação.

Ao abordar os movimentos políticos nas sociedades neoliberais, Lazzarato

descreve os “movimentos pós-socialistas” que emergem em decorrência de mudanças

políticas, econômicas e tecnológicas no contexto da produção pós-fordista.268

267 Cf. CAE, Digital Resistance, p. 3-4. 268 Maurizio Lazzarato, “Resistência e criação nos movimentos pós-socialistas”, in As revoluções do

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Imagem 42 – Imagem de autoria do CAE, de 1999, que ilustra a introdução do livro Digital Resistance: Explorations in Tactical Media, publicado em 2001.269

O modo de produção taylorista, marcado pela flexibilização das funções e pelo

trabalho cognitivo e social (mais do que propriamente material e fabril), gera no campo

das resistências o que pode ser considerado seu correlato, dado o desenvolvimento das

condições sociais e tecnológicas até então incipientes. A multiplicação de agendas

micropolíticas, na sequência do que Maio de 68 tornou visível, e o desenvolvimento

tecnológico atingido nas sociedades afluentes do capitalismo, fomentaram uma gama de

novas formas de organização e atuação no espaço público. Municiados de pautas

identitárias, de gênero, étnicas, anticoloniais, ecológicas e minoritárias, os ativismos que

as décadas recentes viram surgir, apostam, cada vez mais de forma explícita, nas

multiplicidades micropolíticas e nas mídias táticas. O fato é que a experiência social e a

capitalismo. 269 CAE, Digital Resistance, p. 2.

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comunicação em massa decentralizada pelas mídias miniaturizadas e de fácil acesso

contribuem para a multiplicação dos grupos e das coalizões formadas por dissidentes e

recalcitrantes em vários campos culturais, e por isso a importância dos elementos

tecnológicos e organizacionais não pode ser minimizada quando se pretende analisar os

movimentos sociais pós-socialistas.

Não raro, quem se envolve com mídia tática possui características que faz com

que se assemelhe a artistas, cientistas, técnicos, artesãos, teóricos, ativistas, etc. Um

praticante de mídia tática é, portanto, um agente híbrido em uma cultura encarada como

campo de experimentação, e portanto, prestes a ser recombinada. Com tantos aparelhos

eletrônicos domésticos à disposição, multiplicam-se possíveis formas de ação,

comunicação e intervenção de acordo com a criatividade individual e coletiva. A

sociedade do conhecimento, que gera seus corpos de especialistas nas universidades e nas

corporações, também abre a cultura para a experimentação tecnológica dos mais diversos

produtores culturais, amadores, ativistas e inventores em geral.

O que poderia significar uma desvantagem, em sociedades submetidas aos

imperativos neoliberais de flexibilização, produtividade e inovação, a maleabilidade

implícita na definição e na prática da mídia tática demonstra todo o seu potencial na

resistência, que, para ser eficaz em seus prospectos, precisa ser moldável aos contextos

onde aplica suas táticas. Lazzarato, em seu livro As revoluções do capitalismo, ao tratar

da resistência e dos movimentos pós-socialistas, assim denominados os movimentos

micropolíticos herdeiros do Maio de 68, identifica uma relação histórica entre o modo de

produção flexível tipicamente neoliberal e o surgimento de novos modos de resistência:

Às desregulações da economia, do trabalho e dos direitos sociais,

contrapõe-se uma desregulamentação do conflito, que persegue a

organização do poder até as redes de comunicação, nas máquinas de

expressão (com a interrupção das emissões de televisão, apropriação de

espaços publicitários, intervenções nas redações de jornais).270

Assim como o modo de produção pós-fordista incorporou as tecnologias da

inteligência na idade informática, desestruturando as relações de produção até então

predominantes, sucede com as resistências no campo estratégico e tático. Os modos

codificados como a resistência típica do capitalismo fordista praticava entram em choque

com as realidades econômico-políticas que o neoliberalismo traz consigo. Ao mesmo

270 Maurizio Lazzarato, As revoluções do capitalismo, p. 221.

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tempo em que se diversificavam em multiplicidades micropolíticas, as resistências

inovavam nos meios de ação, ora redirecionando os usos tecnológicos à disposição, ora

inventando formas disruptivas de intervenção no espaço social, cultural e político. No

seio da cultura-revolta do norte ocidental forma-se, assim, pouco a pouco, uma resistência

antropotécnica correspondente ao nível tecnológico nas sociedades de controle, e que

alimenta as práticas dos mais distintos coletivos com uma imaginação tática, ao mesmo

tempo social, tecnológica e política.

A vaga definição da mídia tática expressa a potência de metamorfose das práticas

que podem se realizar sob sua insígnia. O certo é que uma das únicas funções que talvez

permita sintetizar em uma categoria o sentido da mídia tática talvez seja o distúrbio. Ao

menos esta é a compreensão de Rita Raley:

Se houvesse uma função ou lógica crítica que produzisse um senso de

unidade categórica, seria o distúrbio [disturbance]. Em sua articulação

mais expansiva, a mídia tática significa a intervenção e a perturbação

[disruption] de um regime semiótico dominante, a criação temporária

de uma situação na qual signos, mensagens e narrativas são colocadas

em jogo e o pensamento crítico torna-se possível. A mídia tática opera

no campo do simbólico, o lugar do poder na sociedade pós-industrial.271

Segundo Kluitenberg, Raley discute a mídia tática engajada como uma

micropolítica do distúrbio, com intervenção e educação.272 Muito provavelmente por isso

o Critical Art Ensemble tenha adotado para si, como expressão definidora do próprio

grupo, a alcunha de praticante de mídia tática. Ademais, enquanto praticante de mídia

tática, o CAE tornou-se uma referência das mais conhecidas no campo da resistência

cultural dos Estados Unidos e do mundo, e isso repercutiu na produção teórica também.

Como isso aconteceu é o que será tratado a seguir.

271 “If there were one function or critical rationale that would produce a sense of categorical unity, it would

be disturbance. In its most expansive articulation, tactical media signifies the intervention and disruption

of a dominant semiotic regime, the temporary creation of a situation in which signs, messages, and

narratives are set into play and critical thinking becomes possible. Tactical media operates in the field of

the symbolic, the site of power in the postindustrial society”. Rita Raley, Tactical Media, p. 7. 272 “Os projetos de Mídia Tática que Raley discute se engajam em micropolíticas do distúrbio, intervenção

e educação” (“The Tactical Media projects Raley discusses engage in a micropolitics of disruption,

intervention, and education”). Cf. Eric Kluitenberg, Legacies of Tactical Media, p. 22.

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Praticando Mídia Tática

O Critical Art Ensemble funda uma nova modalidade da arte-revolta que não faz

distinção entre arte, ciência, filosofia, tecnologia, política e cultura. Na realidade, foi

necessário inventar os meios de produção da arte-revolta com a experimentação dos

meios tecnológicos à disposição, e até mesmo criá-los, a fim de superar as mídias

humanistas (textuais, escritas) e os meios espetaculares de produção cultural. Pois assim,

no contexto das sociedades do conhecimento e da informação, a revolta artística, estética

e micropolítica tem chances de interferir e modificar o campo de atuação onde incidem

suas intervenções.

A expressão Tactical Media aparece pela primeira vez na trajetória do Critical Art

Ensemble em uma entrevista realizada por Jon McKenzie e Rebecca Schneider em 1999

(publicada posteriormente em 2000), quando o CAE se define categoricamente como um

coletivo de artistas de mídia tática.273 A essa altura de sua trajetória, o coletivo tinha um

histórico de 12 anos de existência, vasta produção cultural e ampla experiência no campo

das resistências. Depois de organização de eventos, happenings, agit props (agitações e

propaganda), exposições, performances, ativismo nos movimentos sociais, o grupo

trabalhava sobre grandes temas como resistência cultural e desobediência civil eletrônica

e havia se projetado na cena internacional como uma neovanguarda da arte-revolta na

idade da informática. Antes disso, o conceito mídia tática não aparece.

No livro Distúrbio Eletrônico, de 1994, encontra-se a expressão “mídia nômade

de resistência” no contexto da discussão sobre a estética do distúrbio, justamente no

capítulo intitulado Vídeo e Resistência.

Durante anos, a CAE elabora suas matrizes performativas como o Teatro

Recombinante e o Teatro Eletrônico nos quais o elemento tecnológico desempenha um

papel importante e sempre orientado a provocar distúrbios nas zonas de poder autoritário

no interior da cultura. O distúrbio inclusive se consolidou como um conceito central para

a atividade do coletivo desde muito cedo. Entretanto, a noção de mídia tática começa a

fazer parte de seu repertório teórico e pragmático aos poucos, com o passar do tempo,

quando o grupo expande mais contatos nas redes de resistência, nas interseções

estabelecidas entre norte-americanos e europeus.

273 Cf. Jon McKenzie e Rebecca Schneider. Tactical Media Practitioners: an interview. The Drama

Review, 44, 4 (T168). New York: University and the Massachusetts Institute of Technology Winter, 2000.

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A mídia tática tornou-se então um elemento definidor, empírico e conceitual do

CAE, e em 2001, o livro Digital Resistance, publicado pela editora anarquista norte-

americana Autonomedia, trouxe em seu subtítulo a expressão: Explorations in Tactical

Media. A essa altura, o CAE se configura como uma neovanguarda que expande o campo

da arte-revolta para as mídias táticas. Com a decadência das utopias revolucionárias, as

micropolíticas da resistência cultural vêm ocupar o lugar de destaque onde antes os

sindicatos e partidos políticos desempenhavam a função de agenciar as ações coletivas da

resistência.

A conceituação das práticas de mídia tática caiu como uma luva para o CAE. A

criatividade do grupo, expressa em seus múltiplos meios de produção culturais e que de

certa forma faz escapar a definições rigorosas, encontrou as palavras mais adequadas para

sintetizar em uma fórmula sua práxis cultural. Uma micropolítica de novo tipo: a mídia

como arte, a arte como meio e a tática como prática de resistência. Nos termos do Critical

Art Ensemble:

Mídia Tática é situacional, efêmera e auto-finalizadora. Ela encoraja o

uso de qualquer mídia que se engaje em um contexto sociopolítico

específico a fim de criar intervenções moleculares e choques semióticos

que contribuam para a negação da crescente intensificação da cultura

autoritária.274

As práticas da mídia tática valem-se de intervenção e distúrbios em vários âmbitos

culturais ao criar situações temporárias nas quais signos, mensagens, tecnologias e

narrativas são recombinadas de forma a tornar o pensamento crítico possível. O propósito

das intervenções midiatáticas não é impor uma mensagem pronta e definitiva. Não se

pretende ser um apelo à verdade última. A intenção é provocar e revelar, desfamiliarizar

e criticar aspectos até então impensados, imperceptíveis, invisibilizados. O campo de

atuação por excelência de tais táticas torna-se a cultura. De acordo com o CAE,

Cultura é uma palavra diplomática para a ordem simbólica ou para

regimes semióticos. O período militar da globalização (colonização)

está fundamentalmente terminado. Agora, a dominação é exercida

predominantemente por mecanismos de mercado global

interconectados com um aparato global de comunicação e informação.

274 “Tactical Media is situational, ephemeral, and self-terminating. It encourages the use of any media that

will engage a particular sociopolitical context in order to create molecular interventions and semiotic shocks

that contribute to the negation of the rising intensity of authoritarian culture”. CAE, in Nato Thompson e

Gregory Sholette (Ed.). The Interventionists: user’s manual for the creative disruption of everyday

life. London: MIT Press, 2004, p. 115.

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198

Qualquer tipo de produção da resistência com relação à representação

intervém por meio de engenharia reversa nos displays, software e

hardware deste aparato.275

Se a ordem simbólica participa dos processos de dominação e corroboram com a

instauração de injustiças e autoritarismos nas sociedades atuais, aí está um dos alvos

privilegiados pelos midiativistas. Não é à toa que a mídia tática intervém nos regimes

semióticos constitutivos das ordens simbólicas do poder nas sociedades pós-industriais.

A resistência cultural promove um campo fecundo para a proliferação de intervenções

táticas.

Os midiativistas desafiam regimes semióticos dominantes impondo-lhes um

tratamento crítico por meio de um processo de reconfiguração no qual operam signos,

discursos e ações alternativas a um dado âmbito. Esse processo de intervenção pode ser

tratado como uma espécie de engenharia reversa que atua nos softwares e hardwares dos

mais diversos aparatos, sejam culturais, sociais, econômicos, políticos, arquitetônicos,

tecnológicos, virtuais, digitais, etc.

Por engenharia reversa deve-se entender os procedimentos de investigação e

análise que tem por objetivo descobrir como um dado processo tecnológico ocorre, quais

são seus componentes estruturais, suas funções e seus modos operacionais de produzir

determinados efeitos. Enquanto a engenharia comumente produz a tecnologia a começar

por suas bases estruturais mais elementares até chegar ao resultado final, a engenharia

reversa toma uma tecnologia pronta e se põe a desmontá-la para analisar sua forma de

funcionamento a partir do seu estado finalizado. Somente conhecendo como um processo

funciona é que se torna possível modificá-lo tecnologicamente, intervindo no modo como

ele opera em seus meios e fins. A mídia tática, que com frequência pressupõe esse

trabalho de reversão, é um meio de intervir em uma realidade situada no espaço-tempo

social a fim de recombiná-la de maneira crítica.

Nas situações podem se dar meios racionais e não-racionais de interação, e ambos

podem ser valiosos a depender da proposta. O que importa é o caráter necessariamente

experimental dos processos, que deixa em aberto os resultados e carrega consigo o

aspecto lúdico do jogo, pois não há desfecho inteiramente previsível. O risco, que para

275 “Culture is a diplomatic word for the symbolic order or for semiotic regimes. The military period of

globalization (colonization) is fundamentally over. Now domination is predominantly exercised through

global market mechanisms interconnected with a global communications and information apparatus. Any

type of resistant production of representation intervenes and reverse-engineers the displays, software, and

hardware of this apparatus”. CAE, in Jon McKenzie and Rebecca Schneider. Tactical Media

Practitioners: an interview. The Drama Review, p. 137.

Page 199: critical art ensemble - UFRN

199

alguns pode ser um empecilho a ser evitado, é na realidade encarado pelo CAE como

inerente ao processo e uma aposta que é preciso fazer, sob pena de fechar a experiência

para os acontecimentos e devires. Os intervencionistas, ainda que possam exercer um

papel pedagógico, estão mais para instigadores do processo, e qualquer discrepância entre

produtores e público se dilui nas interações gerativas de experiências extracotidianas, o

que por si só estimula questionamentos, reflexões e mudanças de perspectivas.

O CAE recomenda aos produtores culturais, artistas e ativistas, a aproximação

com a vida cotidiana das pessoas. Se a tática empregada adquire as características de uma

situação pedagógica, então nada melhor do que a experiência dos indivíduos nessas

situações. Sejam os temas como exploração, preconceito, ciência, tecnologia, os

elementos que constituem os fenômenos, os discursos, as práticas incorporadas sem

reflexão, podem ser a matéria-prima a ser trabalhada inventivamente e de forma crítica.

O Critical Art Ensemble tem insistido que a mídia tática põe em prática distintas

formas de intervenção a fim de provocar distúrbios, sempre com uma abordagem crítica:

performances e ações que precisam ser reconfiguradas constantemente em resposta às

demandas sociais locais.

A mídia tática provê sua capacidade de resistência à arte-espetáculo (que retêm a

passividade das pessoas) por ser forjada no estreito contato dos ativistas com o campo

onde irão atuar. Existe a preocupação de buscar uma correspondência entre as demandas

locais e os meios táticos que irão operar in loco. Por isso, não raro, a mídia tática tem sido

associada às práticas da site-specific art, que a precedeu em algumas décadas.

Essa relação estreita entre o meio de intervenção e o campo de atuação exige, por

parte dos intervencionistas, uma atitude investigativa, inquiridora. Destoa das práticas de

mídia tática elaborar uma forma de intervenção sem conhecer minimamente as

características do lugar considerado. No caso de atuações em campos culturais, por sua

própria natureza social, a relação com o alvo pressupõe algo semelhante a uma pesquisa

de campo antropológica. A propósito, o teor antropológico das artes coletivas, das

práticas sociais, das intervenções de mídia tática, já foi identificado por alguns críticos da

arte contemporânea, como Hal Foster, que denominou o fenômeno de “virada

etnográfica” no campo das artes.276

276 Cf. Hal Foster, “O artista como etnógrafo”, in O retorno do real: a vanguarda no final do século XX.

São Paulo: Ubu Editora, 2017, p. 159 ss.

Page 200: critical art ensemble - UFRN

200

A esse respeito, o CAE apresenta algumas ideias mestras que orientam as etapas

do trabalho criativo que empreende. De um modo geral, o CAE escolhe um assunto,

coloca-o em um pretendido contexto, relaciona com uma audiência particular e, com base

nesses elementos, tenta construir um trabalho significativo em relação ao contexto

selecionado. O CAE começa, portanto, questionando um dado território, ou um estrato

social, para melhor compreendê-lo. Pretende, assim, adequar os meios de ação à

especificidade do lugar da intervenção. De forma crítica, então, tenta expor um estrato

ideológico escondido ou transparente, que por algum motivo não possui visibilidade, ou

não é objeto para o discurso onde se faz realidade.277 Com este procedimento, o coletivo

atua em contextos culturais, públicos, educacionais, acadêmicos e artísticos, com um

trabalho que se esmera em desmistificar discursos, práticas, saberes, ideologias e

instituições que operam nas sociedades capitalistas seus programas culturais por vezes

economicistas, impositivos e autoritários.

O elemento tático das ações refere-se também a um processo relacional das

práticas de intervenção e distúrbio levadas a termo pelos produtores culturais do CAE.

Para os defensores do status quo, a resistência pode não parecer um processo amigável

pois na realidade pressupõe, em suas formas de combate inventivos, algo como uma

violência simbólica, que no entanto, não é nem deve ser um fim em si mesmo. Espera-se

com a mídia tática manter campos que já existem abertos e, no melhor dos casos, expandir

os espaços de liberdade (no pensar, no agir, no sentir e coexistir) contribuindo para

prolongá-los no tempo.

Os praticantes de mídia tática promovem processos sociais participativos por meio

dos quais a percepção sobre o sistema social e os papeis que as pessoas e as instituições

desempenham nele se modificam, sofrem alterações com relação à percepção

normalizada dos mesmos fenômenos considerados. Trata-se de colocar em xeque – para

usar a expressão enxadrista – os códigos do jogo social, econômico, institucional,

perceptivo e discursivo, em primeiro lugar no que eles têm de automatizados e não

refletidos, e ademais, no que possuem de potencialmente autoritário e invisibilizado,

quando os códigos até então transparentes tornam-se opacos e perceptíveis aos

participantes. Nesse sentido, as práticas culturais participativas são o coração das

performances.

277 CAE, in Jon McKenzie and Rebecca Schneider. Tactical Media Practitioners: an interview. The

Drama Review, p. 136-138.

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201

O CAE dá ênfase aos eventos diretos com a noção experiencial, inventando

formas de envolver as pessoas em situações explicitamente experienciais nas quais os

participantes percebem, vivenciam e comprovam por si mesmos que as ideias, os

discursos, os valores, os costumes e os poderes (nem sempre perceptíveis) produzem

efeitos concretos e práticos. E mais do que isso, que podem ser modificados desde as

ínfimas ações cotidianas.

Mas se a situação extracotidiana vivenciada assim promove uma sensação de

perplexidade nos participantes, produz ao mesmo tempo determinadas condições

potencialmente emancipatórias. A socialidade e a cooperação entre os agentes dessa

experiência coletiva geram novas condições de possibilidade facilitadoras para a

emergência de um campo existencial outro: pensar o não-pensado, perceber o não-

percebido, sentir diferentemente as circunstâncias, o acontecimento, o devir. Todo esse

trabalho incide nos processos de subjetivação que a intervenção molecular possibilita,

enquanto modalidade de mídia tática participativa.

Intervenção Molecular

No início dos anos 2000, com o lançamento do quarto livro do grupo, o CAE

começa a trabalhar com um outro conceito, desta vez mais abrangente. Com a experiência

adquirida ao longo de sua trajetória, as formas de expressão se diversificam e os conceitos

igualmente se multiplicam. Depois do teatro recombinante, do teatro eletrônico e da

estética do distúrbio, chega a vez das chamadas Intervenções Moleculares,278 que

abarcam uma diversidade imensa de possíveis formas de ação no campo da cultura e são

assim denominadas pois tomam como cenário a vida cotidiana dos indivíduos para

projetar na arena da cultura, problemáticas de interesse público.

Após anos focados no complexo tecnopolítico da internet, o CAE direciona suas

investigações em torno das biotecnologias. As campanhas sobre o poder materializado no

complexo biotecnológico promoveram uma metamorfose na abordagem do coletivo. Em

vez de buscar a estética da confusão ou do pânico, uma forma de intervenção molecular

com caráter pedagógico. No apêndice do livro The Molecular Invasion, publicado em

2002, o CAE faz uma retrospectiva de suas intervenções na esfera pública:

278 CAE, Digital Resistance, p. 6 e 10.

Page 202: critical art ensemble - UFRN

202

Nos últimos seis anos, o trabalho do Critical Art Ensemble se

concentrou no vasto campo da biotecnologia. O grupo tentou identificar

as questões problemáticas centrais, inspirar e enfocar o discurso público

em um esforço para explorar o atual vácuo de autoridade. Enquanto

praticante de mídia tática, o grupo concluiu cinco grandes projetos de

teatro participativo que examinam aspectos particulares da

biotecnologia. Esses projetos identificam áreas problemáticas extremas

no campo, na representação associada a ele e nas políticas sociais que

orientam o desenvolvimento e a implantação de suas aplicações. Esses

trabalhos levantam questões que concernem a (1) vestígios eugênicos

em tecnologia de reprodução assistida (Flesh Machine); (2) intervenção

médica extrema na reprodução e a morte da sexualidade (Society for

Reproductive Anachronisms); (3) aquisição de materiais biogenéticos

(Intelligent Sperm On-line); (4) a retórica utópica que gira em torno do

Projeto Genoma Humano (Cult of the New Eve); e (5) manejo de

recursos ambientais transgênicos e biológicos e sua relação com a

ideologia do medo (GenTerra). Por meio de atividades coletivas, os

membros esperam substituir um medo geral por ferramentas críticas e

substituir a impotência pública por ferramentas de ação direta.279

Tem-se aqui o plano geral das campanhas desenvolvidas e colocadas em ação pelo

coletivo ao longo dos anos. Em suas performances, o CAE cria várias identidades

performativas. Ora aparece como um grupo de cientistas, ora se reveste da identidade

visual de uma corporação. Para representar o maquinário de alta tecnologia, o coletivo

usa com criatividade equipamentos de laboratório de ensino médio, suprimentos

domésticos e mantimentos. Essa escolha é baseada nas limitações econômicas do grupo,

e reflete sua opção pelo nomadismo, mas também reduz a sofisticação científica a um

nível de compreensão mais acessível ao público, que pode então entender e se envolver

com as performances. O estilo lúdico das performances, no entanto, é muito diferente dos

conteúdos presentes nos livros e manifestos publicados pelo coletivo, que têm um foco

analítico e crítico.

279 “For the past six years Critical Art Ensemble’s work has focused on the vast field of biotechnology. The

group has tried to identify key problematic issues and inspire and focus public discourse in an effort to

exploit the current vacuum of authority. As tactical mediaists, the group has completed five major

participatory theater projects that examine particular aspects of biotechnology. These projects pinpoint

extreme problem areas in the field, in associated representation, and in the social policies guiding

application development and deployment. These works raise questions concerning (1) eugenic traces in

assisted reproductive technology (Flesh Machine); (2) extreme medical intervention in reproduction and

the death of sexuality (Society for Reproductive Anachronisms); (3) flesh materials acquisition (Intelligent

Sperm On-line); (4) the utopian rhetoric spinning off of the Human Genome Project (Cult of the New Eve);

and (5) transgenics and biological environmental resource management and its relationship to the ideology

of fear (GenTerra). Through the collective’s activity, members hope to replace a general fear with critical

tools and replace public impotence with tools for direct action”. CAE. The Molecular Invasion. New

York: Autonomedia, 2002, p. 139-140.

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203

Imagem 43 – Vista da instalação Cult of the New Eve, Museu de Arte Contemporânea, Toulouse, França, 2000. Este projeto examinou a apropriação da retórica cristã por especialistas industriais e científicos, a fim de persuadir o público sobre a natureza utópica da nova biotecnologia. O CAE / Vanouse / Wilding moveu essa retórica do contexto das constelações socioeconômicas mais legítimas e autorizadas e colocou-a no contexto da menos legítima de todas as constelações sociais – um culto – para dar ao público uma nova percepção desta tensão peculiar de representação social.280

280 Cf. CAE, Disturbances, p. 266. Descrição disponível na página do CAE:

http://critical-art.net/cult-of-the-new-eve-1999-2000-cae-paul-vanouse-and-faith-wilding/ Acesso 4 de

agosto de 2019.

Page 204: critical art ensemble - UFRN

204

Um trabalho como esse que exige muita pesquisa e determinação para fazê-lo. As

intervenções são dotadas de conteúdo pedagógico (disponibilizado ao público

participante), tratamento conceitual, sofisticação epistemológica e desenvoltura

educacional. Além disso, as intervenções possuem um acabamento estético igualmente

atraente, o que requer criatividade, competência técnica para trabalhar design, semiótica,

materiais científicos e tecnologias, tudo junto. Como se não bastasse, os resultados das

pesquisas são publicados na forma de livros.

Nesses casos, trata-se de um tipo de prática social e cultural engajada

politicamente, que se insinua na esfera pública valendo-se das vantagens estéticas para

captar a atenção das pessoas, das instituições, do público. O que se pretende é colocar

uma problemática, que pode ser política, social, cultural, ética ou ecológica, para ser

pensada publicamente. Por exemplo, a questão da eugenia com relação às biotecnologias

de manipulação de DNAs. Para fazer o discurso emergir de forma qualificada, com

conhecimento, é necessário pesquisar os discursos científicos da área, os dispositivos

tecnológicos empregados, as corporações envolvidas no processo de financiamento e

comércio dos produtos, e por trás de tudo, investigar os interesses governamentais,

econômicos e políticos envolvidos. Paralelamente, é preciso ainda intuir, criar, maquinar

uma matriz performativa adequada ao caso, que seja economicamente viável, com

estética atraente, conteúdo pedagógico e efeito performático.

Neste período, o CAE atinge o ápice de sua inventividade enquanto grupo de

criação e estudos integrados. Considerando o período relatado, foram realizadas pelo

menos cinco campanhas (com diversas exibições, intervenções e performances) e

publicados três livros: Flesh Machine, Digital Resistance e The Molecular Invasion.

Momento fecundo no qual entra em curso uma mudança importante na concepção e na

prática que o CAE começa a nutrir em relação a seu papel na arena pública.

A chamada para a estética do distúrbio como prática micropolítica de resistência

metamorfoseia-se em bases mais dialógicas do que as sugestões do livro Distúrbio

Eletrônico davam a entender. O lado experimental do grupo junto à resistência cultural e

ao público surtiu efeito sobre a subjetividade de seus integrantes e uma nova mutação se

deu. A partir de então, efetivamente, passa a existir uma dimensão educacional nos

processos de intervenção cultural colocados em prática pelo CAE: “Participação,

processo, pedagogia e experimentação são os componentes chaves para uma

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205

recombinação adicional que vem do teatro da vida cotidiana”.281 Não há como dissociar

esse aspecto educacional das experiências de Steve Kurtz como professor de artes na

Universidade de Buffalo em Nova York.282

Imagem 44 – Visão da performance Cult of the New Eve, no saguão do Hospital St. Clara, em Rotterdam, 2000. Os participantes acessam informações do projeto e conversam com os artistas (de

vermelho) sobre questões relacionadas às biotecnologias.

Conceitualmente, as intervenções moleculares colocadas em práticas então são

modelos de participação cultural estabelecidos em um espaço pedagógico efêmero. Em

uma zona espaço-temporal momentânea, a matriz performativa criada pelos ativistas

promove a interação do público com os produtores por meio de diálogos temáticos. A

situação geralmente é pensada como ocasião para problematizar algum assunto, e as

relações extracotidianas estabelecidas pelos participantes abarcam algum tipo de reflexão

crítica, o que constitui um espaço de aprendizado. Há um diferencial importante com

relação a outras práticas do coletivo, que faz questão de esclarecer:

281 “Participation, process, pedagogy, and experimentation are the keys components for further

recombination that come from the theater of everyday life”. CAE, Digital Resistance, p. 88. 282 Cf. Gregory Sholette. Dark Matter: art and politics in the age of enterprise culture. London:

Plutopress, 2011, p. 139.

Page 206: critical art ensemble - UFRN

206

Aqui é onde fazemos uma distinção entre o político e o pedagógico.

Algumas atividades, embora sejam performadas, não são

performativas. São atividades que intervêm diretamente na distribuição

do poder em nível macro. Uma forma estratégica é a construção e a

reforma políticas; uma forma tática é a desobediência civil eletrônica.

Esses tipos de atividades o CAE considera políticas. A outra forma de

intervenção consiste na mudança de percepções por meio do

intercâmbio representacional. Os praticantes da mídia tática iniciam

processos sociais que ajudam as pessoas a perceber um sistema social e

seus papéis nele de uma maneira diferente da percepção normalizada

desses fenômenos. Esse tipo de ação é pedagógica, e a performatividade

desempenha um papel fundamental para que esses processos

funcionem.283

Em determinados casos, trata-se realmente de uma situação pedagógica não

institucional e portanto aberta, dialógica e efêmera, muito distinta do tipo de educação

bancária, para usar uma expressão de Paulo Freire, citado pelo CAE.284 A construção de

um público temporário, por meio de um campo performático aberto às interações,

pretende possibilitar relações horizontais que efetuam uma espécie de pedagogia

produtiva, ao invés de se confundir com didatismo unilateral que algumas artes reativas

por vezes tentam empreender para convencer as pessoas com ideias prontas.

Nas suas pesquisas, o CAE percebe que os temas e assuntos relacionados às

biotecnologias que tocam a reprodução humana artificial, os projetos que envolvem

manipulação de DNA e os alimentos transgênicos, todos eles são de difícil acesso ao

público leigo, muito embora os elementos inerentes às biotecnologias tenham um caráter

político com o potencial de incidir na vida das pessoas e até mesmo no destino da espécie

humana. Por vezes, o debate escapa completamente ao senso comum, e mesmo as pessoas

informadas, não raro, sentem dificuldades em acessar adequadamente as discussões

políticas que envolvem ciências aplicadas em tecnologias biológicas.

283 “Here’s where we make a distinction between the political and the pedagogical. Some activities, though

they are performed, are not performative. These are activities that directly intervene in the distribution of

power on a macro level. A strategic form is policy construction and reform; a tactical form is electronic

civil disobedience. These types of activities CAE considers political. The other form of intervention is in

changing perceptions through representational exchange. Tactical media practitioners initiate social

processes that aid people in perceiving a social system and their roles within in it in a manner that is different

from the normalized perception of these phenomena. This type of action is pedagogical, and performativity

plays a key role in making these processes function”. CAE, in Jon McKenzie and Rebecca Schneider.

Tactical Media Practitioners: an interview. The Drama Review, p. 142. 284 “Como Paulo Freire apontou, o ‘método bancário’ da educação é de uso modesto no aumento da

consciência crítica, porque não está fundamentado nas estruturas significativas da vida cotidiana”. CAE,

Digital Resistance, p. 99. No original: “As Paolo Freire has pointed out, the ‘banking method’ of education

is of modest use in raising critical consciousness because it is not grounded in the meaningful structures of

everyday life”.

Page 207: critical art ensemble - UFRN

207

Eis um problema epistemológico crucial que atravessa a política na democracia

contemporânea: à medida que os discursos científicos tornam-se cada vez mais

especializados e o domínio de certos campos do conhecimento se retrai para o âmbito

econômico, o debate de interesse público fica restrito a especialistas. O resultado é que o

biopoder ligado à manipulação e modulação dos elementos da vida fica nas mãos de

burocratas, de agências reguladoras e de especialistas, fora portanto dos procedimentos

minimamente democráticos.285

Imagem 45 – Grupo de pesquisa e desenvolvimento da campanha GenTerra no laboratório da Universidade de Pittsburgh, em 2001. Os membros do CAE, Dorian Burr, Hope Kurtz, Steve Kurtz e

Steven Barnes com Beatriz da Costa e outros colaboradores.286

Pensando nisso, o CAE elabora um plano de ação para intervir no debate público.

Na época em que o poder toma a vida por objeto, a resistência torna-se a própria vida.

Depois da Resistência Eletrônica, chegou o momento da Biologia Contestatária. No livro

The Molecular Invasion são apresentados sete pontos que compõem o plano da

biorresistência:

285 CAE, The Molecular Invasion, p. 65. 286 Imagem disponível na página do CAE: http://critical-art.net/genterra-2001-03-critical-art-ensemble-

and-beatriz-da-costa/ Acesso 4 de agosto de 2019.

Page 208: critical art ensemble - UFRN

208

1. Desmistificar a produção e os produtos transgênicos. 2. Neutralizar

o medo público. 3. Promover o pensamento crítico. 4. Debilitar e atacar

a retórica utópica edênica. 5. Abrir as portas da ciências. 6. Dissolver

as fronteiras culturais da especialização. 7. Construir o respeito ao

amadorismo.287

Assim, os objetivos da resistência recaem na educação uma vez mais. No teatro

recombinante a ideia era demonstrar usos libertários das tecnologias, denunciar usos

autoritários por meio de uma estética do distúrbio, fomentar, em suma, uma reflexão

crítica sobre as tecnologias eletrônicas da informática. Agora, com relação às

biotecnologias e seus usos potenciais, trata-se de promover, por meio de intervenções

moleculares, campanhas, ações, performances, teatro participativo, uma série de situações

com o objetivo de instruir minimamente as pessoas e alertar sobre a importância do debate

público qualificado quanto aos desenvolvimentos tecnológicos contemporâneos.

De acordo com o CAE, “o objetivo da resistência cultural é a criação de um espaço

público temporário no qual se possa ter lugar uma educação e um intercâmbio cultural”.

Para isso, “abrir os bancos de dados e dissolver as fronteiras da especialização é um

objetivo primordial”.288 É preciso desmistificar os assuntos por meio de informação de

qualidade, complexa mas acessível. O que vem ao primeiro plano é fomentar a tomada

de consciência do que as biotecnologias têm feito da vida. Em vez de ignorar ou

mistificar, conhecer:

A tomada de consciência no campo das biotecnologias erradica o medo

pela realização da agência individual e do poder coletivo. A capacidade

das pessoas de compreender, e assim, afetar as situações, permite a

participação individual na formulação de políticas, leis, produtos, etc.

no campo biotecnológico. No processo pedagógico, apenas o medo se

dissipa, a dúvida permanece.289

287 “1. Demystify transgenic production and products. 2. Neutralize public fear. 3. Promote critical thinking.

4. Undermine and attack Edenic utopian rhetoric. 5. Open the halls of science. 6. Dissolve cultural

boundaries of specialization. 7. Build respect for amateurism”. CAE, “Transgenic production and cultural

resistance: a seven-point plan”, in The Molecular Invasion, p. 59. 288 “The goal for cultural resistance is to create temporary public space where education and intersubcultural

labor exchange can occur. Opening the knowledge bases and dissolving boundaries of specialization is a

primary goal”. CAE, The Molecular Invasion, p. 65. Tradução compatível com a versão espanhola. Cf.

CAE. La Invasión Molecular: biotecnologías: teoría y prácticas de resistencia. Madrid: Enclave de

Libros, 2013, p. 114. 289 “Consciousness raising, on the other hand, removes fear through the realization of individual agency

and collective power – the ability of people to understand and thereby affect situations allows individual

participation in shaping the policies, laws, products, etc., concerning the biotechnological. In the

pedagogical process, only the fear dissipates, the doubt remains”. CAE, The Molecular Invasion, p. 61.

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209

Mais do que isso. Para que as pessoas possam fazer as próprias perguntas, é

fundamental que cada indivíduo saiba exatamente contra o que está resistindo. O

problema do conhecimento é também uma problemática que implica a linguagem. Sem

os conceitos, as teorias, os modelos interpretativos adequados, como diagnosticar um

caso, analisar um fenômeno, dispor de questões relevantes em correspondência com a

realidade? Não se trata, porém, de simplesmente informar o que a ciência diz sobre o que

faz. A construção de linguagens acessíveis que descrevam adequadamente quais são os

problemas de uma posição minoritária é uma necessidade. O banco de dados da ciência

régia precisa ser aberto e acessível ao público, de uma vez por todas. A caixa-preta

científica gerada em corporações privadas, por empresas que buscam tão só lucros, ou

por governos e instituições sem qualquer regulação com participação da sociedade, torna-

se fatalmente uma máquina de poder, uma incubadora de projetos suspeitos e autoritários.

O risco é muito grande. A história mostrou o que a internet é capaz de fazer com as

democracias quando o ciberpoder circula sem transparência. O que dizer do complexo

tecnopolítico que toma a vida, os alimentos, a reprodução artificial e a manipulação

genética a seu dispor, sem qualquer debate público sério e qualificado sobre o assunto?

Ignorância, mistificação, opiniões, moralismos, não ajudam a resolver o problema. São

partes dele.

Neste ponto, percebe-se as relações intrínsecas da intervenção molecular enquanto

arsenal antropotécnico da resistência e a elaboração teórica crítica que politiza os temas

a serem tratados nas ações culturais. Articulam-se a teoria crítica engajada e a matriz

performativa em uma micropolítica da criação que age, ao mesmo tempo, nas dimensões

prática, semiótica, discursiva e política. A máquina de guerra artística sofistica-se a esse

patamar de complexidade quando os ativistas, em contraposição aos especialistas

privados, tornam-se amadores de determinados campos do conhecimento científico para

agirem na esfera pública como catalisadores discursivos ou operadores antropotécnicos

que incidem na produção discursiva a fim de promover alguma alteração metanoica na

cultura.290 Ao lançarem mão de intervenções de caráter pedagógico, incidem diretamente

nos processos de subjetivação.

290 Claire Pentecost discute a bioarte e o papel desempenhado pelos ativistas em se apropriar do

conhecimento científico especializado para compartilhá-lo na esfera pública, colocando assim o

conhecimento à disposição das pessoas de forma politizada. Steve Kurtz do CAE é citado como um exemplo

pela autora no artigo “Outfitting the laboratory of the symbolic: toward a critical inventory of bioart”, in

Beatriz da Costa & Kavita Philip (Ed.). Tactical biopolitics: art, activism, and technoscience. London:

The MIT Press, 2008, p. 112.

Page 210: critical art ensemble - UFRN

210

Subjetivação Política

A resistência que as micropolíticas da criação produzem, seja com artivismo,

mídia tática, social practices, teatro, performances, veiculam signos, símbolos e

imagéticas, discursos e práticas que, combinados, dinamizam a vida cultural. Mas como

nem sempre se trata de tomar as instituições por alvo, nem de confrontá-las diretamente

(como nas ações de desobediência civil), as micropolíticas se interpõem na produção das

subjetividades. Por serem criativas, as micropolíticas artísticas que emergem nos anos 90

não respondem a um sujeito de classe, nem são simplesmente formas multiplicadas de

criticar a representação. Elas procedem diretamente sobre os modos de subjetivação, ora

desafiando os modelos hegemônicos, ora produzindo seus próprios meios. Essa é a linha

de frente da potência destituinte encarnada na resistência cultural. Interessam as ideias,

crenças e opiniões, assim como a sensibilidade, as socialidades, as formas de vida, seus

modos de ser, raramente levados em conta nos movimentos sociais do século XX que

acompanharam o taylorismo e o fordismo. Algo muito distinto do que os movimentos

pós-Maio de 68 e contraculturais tomaram para si, de atuar por dentro na cultura, como

para dissolver e destituir as formas padronizadas de subjetivação em suas criações

existenciais, vitalistas, moleculares.291

O protagonismo das micropolíticas da criação que a geração emergente nos anos

90 desempenha no histórico da arte-revolta expõe por si só um sintoma, uma fragilidade

da subjetivação proposta pelo neoliberalismo. Lacuna que revela também uma dimensão

aberta, passível de ser ativada e que tem sido criativamente explorada pelas mais variadas

micropolíticas quando elas se propõem a inventar seus próprios meios de subjetivação.

Por isso não é de surpreender que nos países capitalistas mais proeminentes a resistência

cultural seja tão atuante.

A interpretação contrária é mais otimista e coerente em termos teóricos com a

abordagem que Deleuze e Guattari emprestam a suas análises micropolíticas. A

fragilidade, a ineficiência e a incapacidade do neoliberalismo em dar um arremate à crise

na produção da subjetividade podem ser interpretadas como efeitos das inúmeras

291 Cf. Gilles Deleuze e Félix Guattari. Mil platôs: capitalismo e esquizofrenia (vol. 3). Rio de Janeiro:

Ed. 34, 2004, p. 94-95: “Maio de 68 na França era molecular, e suas condições ainda mais imperceptíveis

do ponto de vista da macropolítica. (...) todos aqueles que julgavam em termos de macropolítica nada

compreenderam do acontecimento, porque algo de inassimilável escapava. Os homens políticos, os

partidos, os sindicatos, muitos homens de esquerda, ficaram com raiva; eles ficavam lembrando sem parar

que as ‘condições’ não estavam dadas. É como se tivessem sido destituídos provisoriamente de toda a

máquina dual que fazia deles interlocutores válidos”.

Page 211: critical art ensemble - UFRN

211

iniciativas, por vezes improvisadas, deliberadas, das pessoas e dos agrupamentos em se

reinventarem às expensas dos padrões oferecidos pelo espetáculo. Uma virada na

produção das subjetividades talvez esteja em vias de acontecer. Pode-se inclusive

trabalhar para sua precipitação. Essa é a aposta da resistência cultural e das micropolíticas

da arte-revolta que aqui se tenta evidenciar.

O projeto central da política do capitalismo contemporâneo consiste na articulação

de fluxos econômicos, tecnológicos e sociais com a produção de subjetividade. Não há

como o capitalismo se sustentar sem uma economia subjetiva correspondente à economia

política. Esse é o núcleo da crise que o neoliberalismo vem arrastando nas últimas

décadas, e também, seu ponto fraco. Afinal, como manter as classes, os grupos, os

indivíduos, na cifra dos milhões, conformados a um modelo econômico que lhes reduzem

a seres endividados?292 Esse fenômeno crítico enfrentado pelo neoliberalismo nada mais

é do que a atualização de uma problemática política antiga, que acompanha a

modernização do ocidente, de fundar uma sociedade conforme aos imperativos

governamentais e que, em outros momentos históricos, tentou-se resolver por via das artes

de bem governar (Maquiavel), pelo modelo absolutista (Hobbes), ou mais recentemente,

na modernidade, por meio da formação dos indivíduos por aparelhos disciplinares e das

massas por biopolíticas (como demonstrado por Foucault).293

Atualmente, os processos que tentam viabilizar os modelos de subjetividades

conformados ao sistema valem-se de todo tipo de maquinismos, os quais ultrapassam os

limites propriamente tecnológicos e mesmo institucionais, pois são compostos de

máquinas semióticas, estéticas, produtivas, subjetivas, midiáticas, culturais, etc., que

atravessam transversalmente o corpo social. O fato da vida ter se tornado maquinocêntrica

exprime a objetivação de meios tecnológicos que ampliam os efeitos sociais, econômicos

e políticos que a sociedade produz.

Não bastasse as mutações resultantes de processos multifários presentes no socius

contemporâneo, o capitalismo, para se sustentar, tenta se impor por modos de

subjetivação que se fazem sentir negativamente. Como a crise não se resolve, novos

dispositivos autoritários estão se intensificando face ao impasse, ao mesmo tempo que a

subjetivação promovida pelo capitalismo mundial integrado tende a se tornar negativa,

292 Cf. Maurizio Lazzarato. O governo do homem endividado. São Paulo: N-1 Edições, 2017. 293 Problema que Michel Foucault tratou como o da governamentalidade. Cf. Michel Foucault. Microfísica

do poder. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2015, p. 407ss.

Page 212: critical art ensemble - UFRN

212

repressiva e regressiva.294 O que ajuda a explicar a relação do liberalismo econômico com

regimes políticos de tendências autoritárias.

A noção de produção de subjetividade, ou melhor, de processos de subjetivação,

provém das pesquisas de Guattari no âmbito de experiências psi mas que não se limitam

aos aportes psicoanalíticos. O autor propõe pensar uma subjetividade aberta e processual

que se produz no entrecruzamento de vários regimes, semióticos, imagéticos, sensíveis,

existenciais, maquínicos, cósmicos, etc. No seu paradigma estético, não há qualquer

predominância que se possa afirmar de antemão de um regime sobre outro. A

subjetividade é plural e polifônica, “não conhece nenhuma instância dominante de

determinação que guie as outras instâncias segundo uma causalidade unívoca”.295 A

dimensão discursiva, durante muito tempo considerada determinante, como o modelo

estruturalista ou a linguística dão a entender, entretém relações plurívocas e heterogêneas

com a dimensão não-discursiva. E entre uma e outra, ou atravessada por ambas, encontra-

se um elemento existencial inapreensível que, em determinadas situações, uma vez

ativado, duplica as relações de poder e de saber a fim de desafiá-las. Uma força de

autoafecção, autoafirmação e autoposicionamento capaz de se desvencilhar das

determinações a que até então se encontrava submetida. É nesse confronto entre um tipo

de saber com outro, entre os poderes e outras forças, que se estabelece as condições de

uma subjetivação política.

Por subjetivação política deve-se entender toda e qualquer subjetivação que

acarreta algum tipo de mutação existencial, que opera sobre o elemento existencial do

sujeito repercutindo sobre sua forma de ser, sentir, pensar e agir no mundo. Processo em

suma que implica uma reconversão da subjetividade que afeta assim a existência. Trata-

se portanto de um processo de modificação ocasionado pela eclosão de forças irredutíveis

à linguagem, ao discurso dos saberes e aos efeitos de poder, e que corresponde à

emergência de focos existenciais outros, autoposicionados. Aqui reside o Fator-X, ou

melhor dizendo, a matéria plástica ou caosmológica da qual provém isso que se pode

chamar indeterminação irredutível do existencial vivido. A ativação dessa matéria

plástica fornece as condições para os processos de subjetivação política propriamente dita

que propicia alterações, rupturas e mutações existenciais.

294 Cf. Maurizio Lazzarato. Signos, máquinas, subjetividades. São Paulo: Edições Sesc: N-1 Edições,

2014, p. 14-15. 295 Félix Guattari, “Heterogênese”, “Da produção da subjetividade”, in Caosmose: um novo paradigma

estético. São Paulo: Ed. 34, 2006, p. 11ss.

Page 213: critical art ensemble - UFRN

213

O CAE e outros coletivos da arte-revolta contemporânea se insinuam no

entrecruzamento dos modelos dominantes de subjetivação obediente alimentados pelo

espetáculo e pela arte-entretenimento. Pretendem, com suas intervenções moleculares na

esfera pública, produzir distúrbios, interrupções nos processos de subjetivação

estabelecidos pela maquinaria capitalista e industrial, com o fim de possibilitar

experiências nas quais as significações dominantes sejam suspensas e destituídas de seus

efeitos de verdade sobre as pessoas. Esse tipo de intervenção cultural, por mais simples

que seja, promove situações nas quais se opera uma subjetivação política. Questões pouco

refletidas, no mais das vezes sob a ótica interessada do marketing, são problematizadas

para que o ceticismo desperte as condições do pensamento eclodir e recombinar os

elementos semióticos, discursivos e epistemológicos sobre o assunto. Para que possa

ocorrer, a subjetivação política deve necessariamente atravessar esses momentos nos

quais as significações dominantes são suspensas.296

Aqui, não são as subjetividades imaculadas e virginais que aparecem,

mas, sim, os pontos focais, as emergências, os começos de subjetivação

cuja atualização e proliferação dependem do processo construtivo que

deve articular a relação entre “produção” e “subjetivação” de uma nova

maneira.297

Embora o CAE afirme que produz choques semióticos, o que efetivamente se

produz, com suas matrizes performativas, são circunstâncias em que a produção de

subjetividade é ativada. A estética previamente preparada pelo coletivo serve como

suporte para a entrada em cena de antropotécnicas situacionistas que, enquanto tais,

incidem na subjetivação dos participantes.

As intervenções moleculares do CAE operam uma maquinaria semiótica, artística,

social e micropolítica que interfere nas significações dominantes porque são elas que

codificam a visão cultural. Os choques então ocorrem entre os códigos culturais existentes

e o conteúdo intervencionista que se lança para destituí-los de seus efeitos nas

subjetividades. O principal, no entanto, é o estímulo ao debate, ao exercício do

pensamento, individual e coletivo. Não se trata de destruir os discursos veiculados na

sociedade, mas de colocá-los em perspectiva, a fim de observá-los de outro ângulo

possível. Assim, o pensamento não-pensado emerge nas interações entre os elementos em

jogo. A participação do público nas performances e nas intervenções, por isso, é um

296 Cf. Maurizio Lazzarato. Signos, máquinas, subjetividades, p. 21. 297 Cf. Maurizio Lazzarato. Signos, máquinas, subjetividades, p. 22.

Page 214: critical art ensemble - UFRN

214

elemento fundamental, pois por meio dela o Fator-X da mutação (metanoica, sensível e

ética) tem a possibilidade de se atualizar.

Guattari, que acompanhou com interesse a história da arte contemporânea,

reconhece a importância que a criação estética desempenha na produção de

subjetividades: “É evidente que a arte não detém o monopólio da criação, mas ela leva ao

ponto extremo uma capacidade de invenção de coordenadas mutantes, de engendramento

de qualidade de ser inéditas, jamais vistas, jamais pensadas”.298 As intervenções

moleculares, as performances, as situações extracotidianas nas quais entram em ação os

produtores culturais, artistas e ativistas, promovem condições de possibilidade para a

emergência de novas ideias, questionamentos, sensibilidades, relações outras. “Como em

toda criação (não importa se artística, científica ou social), a suspensão do curso habitual

das coisas afeta antes de tudo a subjetividade e suas formas de expressão ao criar as

condições para uma nova subjetivação, cujo processo deve ser problematizado”.299

O modelo de problematização praticado pelo CAE junto ao público desempenha

a função de colocar em xeque as opiniões, as crenças, os códigos culturais que dão suporte

ao conformismo tácito ou implícito na conduta habitual das pessoas nas atuais sociedades

de controle. Mas proporciona sobretudo a problematização política de assuntos

contemporâneos que causam impacto na vida individual e social.

298 Félix Guattari, “O novo paradigma estético”, in Caosmose: um novo paradigma estético, p. 135. 299 Cf. Maurizio Lazzarato. Signos, máquinas, subjetividades, p. 23.

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215

CAPÍTULO 4

RESISTÊNCIA CULTURAL:

TRANSFORMAR O MUNDO, MUDAR A VIDA

Resistência é a categoria geral para qualquer manifestação material ou

imaterial, ativa ou passiva que entra em conflito de alguma maneira

com as exigências dos poderes de dominação. Intervenções são uma

subcategoria da resistência. Crítica é uma análise sistemática de um

objeto ou sistema que pode ser usada para informar estratégias ou

táticas de resistência. – Steve Kurtz, integrante fundador do Critical Art

Ensemble.300

Ecos da Arte-Revolta

O Critical Art Ensemble tem atrás de si o legado oriundo da história das artes

modernas. Nos capítulos anteriores, foram apontadas algumas dessas características que

tocam os aspectos teóricos e práticos do grupo. O plágio utópico e o teatro recombinante,

a mídia tática e a estética do distúrbio atualizam alguns conteúdos extraídos de grupos e

vanguardas que precederam o mundo atual e imprimem a marca da novidade por meio da

recombinação contemporânea.

Assim, o CAE faz com desenvoltura e criatividade o seu trabalho de resgatar e

atualizar alguns elementos do passado ao contemporâneo. Para um estudioso das artes,

não será difícil reconhecer outras reminiscências das vanguardas no grupo que pratica a

arte crítica. Entretanto, há algo que ainda não foi desenvolvido com a devida atenção. As

reminiscências do passado aqui mencionadas são eletivas e, ao invés de buscar puras

semelhanças, a ideia é apontar o que o CAE resgata para se lançar adiante na tarefa de

recombinar com atualidade as obras artísticas que tiveram na revolta sua mais profunda

inspiração.

300 “Resistance is the general category for any material or immaterial, active or passive manifestation that

conflicts in some manner with the demands of the powers of domination. Interventions are a subcategory

of resistance. Critique is a systematic analysis of an object or system that can be used to inform strategies

or tactics of resistance”. Steve Kurtz, in “Digital resistance in digital cultures: an interview with Steve Kurtz

by Martina Leeker”, in Howard Caygill; Martina Leeker; Tobias Schulze (Ed.). Interventions in digital

cultures. Meson Press, 2017, p. 110.

Page 216: critical art ensemble - UFRN

216

A arte moderna foi profundamente marcada por transformações de ordem técnica

e expressiva, mas também pela postura contestatária, inicialmente em relação aos padrões

clássicos de forma e conteúdo, com o impulso dado ainda no século XIX pelo

impressionismo. Com o tempo, porém, a crítica e o questionamento afetaram a própria

definição do que é arte e de sua função, como no caso paradigmático do dadaísmo. Em

um ambiente social propenso a transformações de toda sorte como foi o início do século

XX, não demorou para que se formassem vanguardas artísticas inspiradas pelo espírito

da revolta que grassava nos países industriais ante a exploração dos primeiros

capitalismos e a eclosão das grandes guerras mundiais.

No mesmo período, ocorreu na história da arte moderna uma verdadeira virada

social na abordagem das formas de expressão e conteúdo. O universo da arte aberto pelas

vanguardas artísticas como o futurismo, o dadaísmo e o surrealismo alargou as

possibilidades de expressão estética com teor claramente social, contestatório, político,

experimental e crítico. Essa tendência da arte em incorporar o universo social, por outro

lado, foi agenciada no campo cultural com propósitos políticos.

Desde então, a ambição de expressar a revolta face ao tempo tem sido uma

característica marcante da arte engajada. Com base no impulso inicial dado pelos

futuristas, dadaístas e surrealistas, nos pós-guerra as artes da performance, conjugadas

com a arte conceitual, puderam se somar dando origem a um tipo de arte crítica

profundamente revolucionária quando aplicada a temáticas que tocam aspectos da vida

cotidiana.

A associação da arte com a dimensão política da experiência que se acentuou nas

últimas décadas trouxe para o primeiro plano, na crítica, na análise e na ação, os efeitos

das ciências e filosofias apropriadas pelo agenciamento artístico, atingindo por meio

desse entrecruzamento amplos efeitos, sobretudo subjetivos e políticos.

Pouco a pouco, as artes performáticas, os happenings, as intervenções e mesmo o

teatro, incorporaram discursos oriundos de outros campos disciplinares, como se fez com

o marxismo, a psicanálise e a linguística durante a década de 1970. De fato hoje é comum

o uso nas artes de concepções oriundas da filosofia política, da arquitetura, da história do

teatro, das engenharias, da cibernética e da biotecnologia. A própria noção do que é arte

tem se modificado para se tornar marcadamente transdisciplinar e multimídia. Tanto é

que a outrora chamada arte pura veio a se tornar um tipo de arte entre outros.

Assim, quando inserimos o Critical Art Ensemble na história da arte moderna, vê-

se claramente que o grupo faz parte desta tendência artística que remonta às vanguardas

Page 217: critical art ensemble - UFRN

217

do século XX, principalmente no que se refere à aproximação da arte à vida cotidiana, a

criação artística unida à experimentação do desejo no campo social e político.

Sem dúvida, o aspecto político que as vanguardas empregaram às artes atravessa

as práticas e formas de expressão do CAE e perfaz toda a carreira do grupo. Não é difícil

identificar reminiscências futuristas, dadaístas, surrealistas e, sobretudo, situacionistas na

teoria e na prática do coletivo (por exemplo, a importância atribuída à tecnologia do

futurismo italiano, a técnica da colagem dadaísta, a ênfase na revolução da vida cotidiana

e a noção de espetáculo dos situacionistas, etc.).

Com muita criatividade o CAE contribui para o desdobramento da arte-revolta na

virada do milênio, ao unir arte, teoria, política e tecnologia, agenciando de maneira

transdisciplinar um tipo de resistência cultural que pauta sua práxis encrustada na vida

cotidiana e baseada nos princípios de autonomia e cooperação. Ao unir essas

características às tecnologias da informação e da comunicação agenciadas como mídias

táticas, a fusão da arte e da tecnologia gera uma gama de discursos e regimes de

visibilidades marcados claramente por uma visão política contestatória sobre a realidade.

Na história da arte, a singularidade do Critical Art Ensemble consiste em

prolongar o ímpeto das vanguardas com inovação, atualizando-o ao contemporâneo. Ao

unir arte, teoria e política com tecnologias, produz uma resistência multimídia e

transdisciplinar atenta à vida cotidiana e lança luz sobre os desenvolvimentos da

macropolítica global.

Micropolíticas da Criação

O engajamento da arte-revolta em problemáticas da ordem social, cultural ou

política converge mais claramente com as críticas sociais e com os movimentos políticos

em certos momentos históricos, como foi apontado no primeiro capítulo Nomadologia da

Arte-Revolta, ao traçar os movimentos que culminaram na montagem da máquina de

guerra artística: por exemplo, no período do Fascismo, na Revolução Russa, durante as

Guerras Mundiais e em Maio de 68.

Na década de 1990, com o protagonismo dos movimentos políticos pós-

socialistas, de tendências autonomistas e com forte teor libertário, ocorre uma nova

convergência da arte com a política, desta vez com uma multiplicidade de grupos sujeitos

oriundos da arte-revolta que alimentam com suas micropolíticas da criação uma ampla

resistência cultural aos ditames do espetáculo capitalista no Ocidente. Micropolíticas da

Page 218: critical art ensemble - UFRN

218

criação em que se misturam arte e política de forma intrínseca, as quais culminaram nos

Dias de Ação Global.301 Nesse cenário, segundo Nato Thompson, “protesto, anarquista,

e práticas de arte-ativista convergiram em uma forma nova e excitante”.302

Este período é caracterizado pelas intervenções estéticas, culture jamming, e

sobretudo, pelas abordagens neossituacionistas de mídia tática, que logo se tornaram a

linguagem visual do movimento dos protestos globais.303 O que parece novo nesse

momento histórico é a importante influência da resistência cultural para a formação de

coalizões micropolíticas em um vasto espectro ativista.

O livro Urgência das Ruas, lançado no Brasil, compila documentos, relatos e

reportagens dos Dias de Ação Global que aconteceram na virada do século. Nesses

eventos de rua, a emergência de grupos de afinidade libertários, que atuam de forma

autogestionária, não-hierárquica, autônoma e criativa, foi a tônica micropolítica da vez.304

As manifestações no J18 (junho de 1999), que prepararam a Batalha de Seattle, ocorreram

em mais de 40 países e 120 cidades. Em Londres, por exemplo,

mais de quarenta grupos participaram organizando atividades e

formando uma rede onde a autonomia e a liberdade de cada grupo foram

sempre mantidas (...) dando um caráter libertário desde a forma de

organização, passando pela consciência política (radical) dos grupos,

até o desenrolar dos eventos em si. (...) O dia começou com um Critical

Mass de manhã cedo – as bicicletas tomando as ruas – e se estendeu

com música, dança nas ruas, performances, marchas, numa espécie de

carnaval politizado.305

Talvez se possa falar de uma renovação da resistência pelo papel desempenhado

por grupos e iniciativas desencadeadas no campo da cultura pela ala das artes engajadas,

301 “O fenômenos das manifestações-bloqueio em encontros dos gestores do capitalismo internacional, ou

mais genericamente Dias de Ação Global, que têm impedido e perturbado as reuniões de instituições

reguladoras do capitalismo global”. Cf. “Antes de mais nada...”, in Ned Ludd (org.). Urgências das ruas:

Black Block, Reclaim The Streets e os Dias de Ação Global. São Paulo: Conrad, 2002, p. 9. 302 Cf. Nato Thompson, “Of relations and tactics”, in Seeing Power: art and activism in the 21st century.

Brooklyn: Melville House Printing, 2015, p. 23. 303 Cf. Nato Thompson, Seeing Power: art and activism in the 21st century, p. 22. 304 “A Ação Global dos Povos (AGP) é uma rede mundial de movimentos sociais, responsável pela invenção

dos “dias de ação global”. Foi criada para combater o livre-comércio e a Organização Mundial do Comércio

(OMC). Não é uma organização formal, com sócios, membros regulares ou porta-vozes oficiais, mas uma

rede de comunicação e coordenação de lutas em escala global, baseada apenas em princípios comuns: a

rejeição ao capitalismo e a todas as formas de dominação e opressão. Tem uma filosofia organizacional

fundamentada na descentralização, na autonomia, na desobediência civil e na ação direta”. Martín Bergel

e Pablo Ortellado. Verbete disponível em http://latinoamericana.wiki.br/verbetes/a/agp Acesso 31 de julho

de 2019. 305 Cf. Ned Ludd (org.). Urgências das ruas: Black Block, Reclaim The Streets e os Dias de Ação

Global, p. 28ss.

Page 219: critical art ensemble - UFRN

219

e não o inverso, como até então parece ter sido a tendência mais evidente (apropriação

política das artes). Ao tratar do coletivismo na arte-revolta contemporânea, Blake Stimson

e Gregory Sholette dizem:

Em outras palavras, o que foi apenas muito recentemente uma batalha

cultural primariamente travada por modos de representação,

manifestações de identidade e até escolhas de estilo de vida

transformou-se abruptamente em um confronto cada vez mais direto

que, como Brian Holmes argumenta, é constituído por “ação coletiva

descentralizada que se propaga por todos os meios: boca-a-boca,

rumores, comunicação entre grupos políticos, reuniões de movimentos

sociais e transmissões através de meios de comunicação especializados

e de massa – sobretudo a Internet”.306

Não à toa, a emergência das micropolíticas da criação neste período está na origem

do que o antropólogo David Graeber descreve como New Anarchism. A chave do

fenômeno é a “ação direta criativa”, entendida como uma ação autônoma que se realiza

sem qualquer poder mediador – como partidos ou instituições artísticas – e na qual a

ordem dominante é desafiada à medida que um novo mundo é “prefigurado” em ação, ou

seja, na ação mesma. Nesse sentido, resistência cultural e invenção coletiva são

inseparáveis, e são nessas situações construídas coletivamente que as formas sensíveis e

as visões imaginativas da arte por si são liberadas da clausura institucional para participar

na construção de novas formas de vida em comum, maneiras de ser, relacionar-se, agir,

sentir, fazer, viver.307

O movimento alterglobalização que se forma durante a década de 1990 recrutou

artistas e ativistas a trabalhar lado a lado, formando redes de compartilhamento de ideias,

projetos, iniciativas inovadoras e experimentais que deram forma às novas micropolíticas

da criação.308

O CAE não teve um papel nas manifestações de rua típicas do período. Seu

ativismo passou ao largo das movimentações que acompanhavam as reuniões dos órgãos

306 “In other words, what was only very recently a primarily cultural battlefield waged over modes of

representation, manifestations of identity, and even choices of lifestyle has abruptly shifted into

increasingly direct confrontation that, as Brian Holmes argues, is constituted by ‘decentralized collective

action that propagates itself via every means: word-of-mouth and rumor, communication between political

groups, meetings of social movements, and broadcasts over specialized and mass media – above all the

Internet’”. Blake Stimson e Gregory Sholette, “Introduction: Periodizing Collectivism”, in Blake Stimson

e Gregory Sholette (Ed.). Collectivism after modernism: the art of social imagination after 1945.

London: University of Minessota Press, 2007, p. 12. 307 Cf. Yates MacKee. Strike Art!: contemporary art and the post-Occupy condition. Brooklyn: Verso,

2016, p. 16. 308 Cf. Nato Thompson, Seeing Power: art and activism in the 21st century, p. 21.

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220

internacionais do capitalismo. Na realidade, o grupo apostava pelo menos em dois frontes

de atuação: no espaço cibernético, por meio do apoio e da promoção da resistência hacker

e da desobediência civil eletrônica (objeto do próximo capítulo), e em segundo lugar, no

campo das práticas artísticas socialmente engajadas diretamente no meio cultural que o

grupo materializou com a biologia contestatária.

Em termos práticos, não há evidências de que o coletivo tenha se envolvido

diretamente com atividades hackers no ciberespaço. A micropolítica do CAE ficou

conhecida na experimentação artística e cultural junto ao público. Em particular, duas

vertentes de produção artística se destacam como importantes precedentes na informação

do trabalho da arte e da política nesse período e que marcará os desenvolvimentos

posteriores na virada do século: estética social e mídia tática.309

De certa maneira, o Critical Art Ensemble se inscreve nas duas. A estética social

foca nas pessoas (e enquanto tal, possui seu caráter político), ao passo que a mídia tática

estabelece uma relação diferenciada com a arte, pois a considera uma ferramenta, entre

outras, para perturbar o poder, desafiá-lo, expô-lo em sua nudez. Thompson diferencia

uma da outra pelo fato de que a mídia tática possui uma ligação constitutiva com o

ativismo, enquanto a estética social possui uma relação menos óbvia e direta com o

ativismo, e tem uma mobilidade mais fluida com as instituições artísticas.

Na perspectiva histórica da arte engajada do século XX, as vanguardas da arte-

revolta pleiteiam a necessidade de ativar, despertar, incitar a ação e a participação da

audiência para romper com a ordem espetacular (que requer a passividade) e emancipá-

la do estado de alienação induzido pela ordem ideológica dominante, não importa se em

um contexto capitalista, totalitário ou ditatorial. A arte participativa pretende, por meios

inovadores, restaurar e realizar um espaço comunal, coletivo de engajamento social

compartilhado, nem que seja em uma situação construída.310

Há pelo menos duas formas de intervenção, segundo Claire Bishop: uma

afirmativa, de caráter utópico, e outra, negativa, de feições niilistas. Nos processos em

que se recusa as injustiças do mundo por meio de gestos construtivos, a afirmação se faz

perceber pela proposição de alternativas, enquanto a recusa niilista se projeta na cena

artística pública com críticas radicais às alienações em seus próprios termos, que podem

variar mas possuem em comum a fórmula da “negação da negação”.

309 Cf. Nato Thompson, Seeing Power, p. 17. 310 Claire Bishop, “Participation and spectacle: where are we now?”, in Nato Thompson (Ed.). Living as

Form: socially engaged art from 1991-2011. New York: Creative Time Books, 2017, p. 36-37.

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221

O Critical Art Ensemble oscila entre um polo e outro, dada sua ampla e rica

produção, que é marcada por uma verve teórica “pessimista”, segundo o próprio coletivo,

embora o esforço seja muito mais direcionado à invenção de projetos que propõem

alternativas a um dado problema colocado e enfrentado pelo coletivo (seu aspecto

“otimista”). É o caso das propostas do plágio utópico, do teatro recombinante, da

resistência eletrônica e das intervenções moleculares (estas, munidas até mesmo de

elementos pedagógicos, tais como as campanhas Flesh Machine, Cult of the New Eve,

GenTerra, Free Range Grain, entre outras).

Resistência Cultural na Sociedade do Espetáculo

Atualmente, a resistência encontra um campo privilegiado de atuação na cultura,

pois segundo a aposta da arte-revolta, é na esfera cultural que se pode estimular e extrair

as potências sociais transformadoras. No entanto, o problema já identificado pelos

ativistas com relação à cultura é que muito tem se investido por parte do poder econômico

e político para moldar os valores, os comportamentos e as subjetividades aos imperativos

econômicos.

Historicamente, na passagem do século XIX para o século XX o ocidente viu o

surgimento das indústrias culturais que se apropriaram de setores mercadológicos criados

pelo próprio estilo de vida urbano e metropolitano, carente de lazer e diversão.311 As

sociedades industriais expandiram seus negócios para se ocupar da esfera cultural,

ampliando assim o campo de atuação econômico com bens simbólicos. As tecnologias

agenciadas por tais indústrias se estruturaram conformando a base material e sociotécnica

para a ascensão da sociedade do espetáculo.

Como meio de reprodução social, a cultura tem sido usada para manter e expandir

a influência do espetáculo capitalista na conformação dos sujeitos às estruturas de

domínio e exploração. Desde então, as mídias formam uma parte crucial de como o

mundo contemporâneo funciona e opera. Inclusive, a política tem se modificado devido

ao poder estratégico que as mídias desempenham no contexto atual.

311 “Esse estágio ‘espetacular’ do desenvolvimento capitalista se impôs progressivamente a partir da década

de [19]20 e se fortaleceu após a Segunda Guerra Mundial. (...) todos os sistemas sócio-políticos do mundo

participam do reino da mercadoria e do espetáculo. Do mesmo modo que no interior de uma sociedade, o

espetáculo é uma totalidade em escala mundial”. Anselm Jappe. Guy Debord. Petrópolis: Vozes, 1999, p.

22-23.

Page 222: critical art ensemble - UFRN

222

Assim também, as artes sofreram os efeitos da apropriação econômica e política.

Por meio da literatura e das artes visuais, a indústria cultural tem acessado o inconsciente

coletivo e modulado os recônditos subjetivos, com o que a vida cotidiana adquire

contornos em conformidade com imperativos econômicos como o consumismo e a

docilidade política face ao status quo.

Na história da arte contemporânea, o espetáculo é uma das palavras-chaves usadas

pelos artistas engajados para designar a entidade contra a qual suas matrizes performáticas

de intervenção social se opõem. Isso se explica pelo fato de que o conceito de espetáculo,

tal como empregado no léxico da arte-revolta desde os situacionistas, representa o tipo de

sociedade na qual os sujeitos, submetidos aos poderes espetaculares, tornam-se passivos

não só diante da política institucional, como também face à vida cotidiana, que levam

sem qualquer aspiração criativa.312

Spectacle é uma palavra francesa que vem do spectare e do speculare

latinos, verbos que remetem às noções de contemplação, observação,

de acompanhamento passivo de algo exterior pela visão. Estes verbos

estão também na raiz de speculatio, spéculation, Spekulation.313

Enquanto elaboração teórica, o espetáculo tem como um de seus componentes o

personagem conceitual do espectador. No sentido tradicional, espectador significa aquele

que usufrui das formas estéticas por meio da contemplação. Transposto para o plano

político, refere-se a quem simplesmente observa o que se passa, inerte, sem qualquer

participação no desenrolar dos fatos, como se estivesse diante de uma tela, ou de uma

encenação teatral. É portanto alguém que se contenta com seu papel passivo de mero

espectador face à realidade, realidade esta que, na dimensão histórica, é fabricada pelas

forças políticas, econômicas e sociais.

A noção de espetáculo, tal como foi elaborada no contexto da Internacional

Situacionista, não caracteriza um trabalho artístico. Refere-se a um modo de definir as

relações sociais mediadas por imagens, no momento histórico em que o desenvolvimento

312 Claire Bishop, “Participation and spectacle: where are we now?”, in Nato Thompson (Ed.). Living as

Form: socially engaged art from 1991-2011, p. 35. 313 Cf. João Emiliano Fortaleza de Aquino. Reificação e linguagem em Guy Debord. Fortaleza:

EDUECE/Unifor, 2006, p. 73: “Como ‘especulação’ materializada, fundada na ‘contemplação’, ‘o

espetáculo’, segundo Debord, ‘filosofiza a realidade’, sendo, nisto mesmo, ‘o herdeiro de toda a fraqueza

do projeto filosófico ocidental que foi uma compreensão da atividade, dominada pelas categorias do ver

(...) É a vida concreta de todos que se degradou em universo especulativo”. Trata-se de uma citação do

aforismo 19 de A sociedade do espetáculo, de Guy Debord. A tradução de Stela dos Santos Abreu, para a

Editora Contraponto, está melhor.

Page 223: critical art ensemble - UFRN

223

do capitalismo atinge o seu ápice e tudo adquire valor de troca. Guy Debord, um dos

expoentes situacionistas, deu um acabamento filosófico político ao conceito da seguinte

forma: “O espetáculo apresenta-se ao mesmo tempo como a própria sociedade, como uma

parte da sociedade e como instrumento de unificação”.314 A sociedade mesma é o

espetáculo à medida que ela se impõe aos sujeitos históricos como algo concreto; é uma

parte da sociedade porque existe uma divisão entre o trabalho vivo e o trabalho morto; e

um instrumento de unificação que organiza todo o campo da visibilidade a fim de unir os

indivíduos enquanto seres separados.

Do ponto de vista histórico, o modelo produtivo que sintetizou o fordismo e o

toyotismo foi uma prévia do que estava por vir com a sociedade do espetáculo integral,315

na qual o espectador acredita se beneficiar da interatividade, quando, na realidade,

participa plenamente e em tempo integral da reprodução ampliada do capital. Na maioria

dos casos, as massas se submetem espontaneamente ao espetáculo e se engajam na sua

manutenção pagando o tributo que lhes é exigido na forma dupla de trabalho e consumo,

convertida na alienação da vida cotidiana.

Com base em uma nova plataforma maquínica surge um tipo de poder autoritário

que se espalha pelo campo social e floresce na ausência, contando ainda com a adesão

das massas aos efeitos especiais do espetáculo integral e suas promessas de felicidade

atrelada ao habitus do hiperconsumismo de informações, imagens e toda sorte de bens,

materiais e simbólicos, pré-fabricados como veículos da forma-valor.

O poder nômade do pancapitalismo se proliferou tanto que fica difícil reverter o

jogo das forças políticas, ainda mais se levarmos em conta o dinamismo e a velocidade

com que os regimes políticos silenciam, derrotam ou cooptam as forças contrárias das

resistências. O CAE percebeu muito bem o sentido que Debord atribuiu ao último modelo

do poder espetacular integral: a síntese do poder sedentário e do poder nômade em uma

sociedade espetacular integrada.

Durante a Guerra Fria as duas grandes potências políticas internacionais, os

Estados Unidos e a União Soviética, sob os signos do Capitalismo e do Socialismo, foram

os países pivôs de dois modelos de sociedade espetaculares: um de tipo difuso e outro de

tipo concentrado. O concentrado foi assim denominado o espetáculo dos estados fascista

314 Guy Debord. A sociedade do espetáculo. Rio de Janeiro: Contraponto, 1997, p. 14. 315 Nos “Comentários sobre a sociedade do espetáculo”, Guy Debord identifica o “espetacular integrado”

como uma terceira forma do “poder espetacular”. Cf. A sociedade do espetáculo, p. 172. Aqui o termo é

empregado com uma sutil diferença. O espetáculo torna-se integral no interior do pancapitalismo.

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224

e stalinista, cujo olhar voltava-se para cultuar a personalidade do ditador, enquanto o

difuso representava o grau máximo de desenvolvimento do capital, caracterizado

sobretudo pelas indústrias de imagens que moldam o desejo na forma da mercadoria. Com

a queda do Muro de Berlim, o mundo viu gradativamente a expansão planetária do

capitalismo se valer dos dois tipos de técnicas espetaculares de reprodução social, cuja

síntese deu origem ao denominado espetáculo integrado.

A sociedade do espetáculo integrado faz coexistir o espetáculo concentrado, típico

dos regimes totalitários, e o espetáculo difuso, cujo poder fracionado nas corporações

impele a sociedade a reproduzir a dinâmica de sua própria perpetuação econômica e

política. A superfície do espetáculo integral aparenta ser difuso, porém em seu interior, e

de forma cada vez mais paradoxal, forma-se uma espécie de estado oculto que impera e

parece escapar à consideração até mesmo dos governantes, colocando em risco por vezes

a própria governabilidade. Nos termos de Debord: “A sociedade modernizada até o

estágio do espetacular integrado se caracteriza pela combinação de cinco aspectos

principais: a incessante renovação tecnológica, a fusão econômico-estatal, o segredo

generalizado, a mentira sem contestação e o presente perpétuo”.316

Imagem 46 – O espetacular difuso, no qual tudo se torna mercadoria. Imagem publicada na revista Internationale Situationniste.317

316 Guy Debord, “Comentários sobre a sociedade do espetáculo”, in A sociedade do espetáculo, p. 175. 317 Internationale Situationniste. Bulletin central édité par les sections de L’Internationale Situationniste.

Numéro 10. Paris: Mars 1966, p. 45.

Page 225: critical art ensemble - UFRN

225

Infelizmente Debord não viveu para ver a fase mais tardia do espetáculo, justo

agora quando o espetáculo integral forma as novas gerações de espectadores que,

doravante, vangloriam-se de sua integração no sistema de consumo via interatividade

programada por altas tecnologias, capazes, inclusive, de modular as subjetividades em

tempo real. À medida que o poder espetacular penetra a vida cotidiana, as subjetividades

são produzidas em conformidade com os imperativos mercadológicos, ao passo que o

poder nômade, propiciado pela combinação da eletrônica, da informática e da cibernética,

sucede o poder sedentário, englobando o corpo social de uma ponta à outra. E nesse

cenário, mesmo o capital torna-se artista, na visão de alguns analistas.318

Um dos efeitos mais notáveis do espetáculo é a sua imensa capacidade de

manipulação midiática, que afeta diretamente a percepção pública e o reino das opiniões.

Paul Virilio faz uma arqueologia do complexo dos meios de comunicação, na qual

demonstra o que denomina golpe de Estado informacional do quarto poder:

Se as leis, como previa Montaigne, são ditadas por usos que aceitam

indiferentemente o que quer que seja e nascem do mar flutuante das

opiniões de um povo ou de um príncipe, os mass media que dispõem do

poder de gerar a informação e portanto de agitar o mar flutuante da

opinião pública deveriam fatalmente apoderar-se dos usos e dos

costumes, através deste conjunto indefinido de regras e proibições que

fundam uma legislação da qual eles se tornaram, com o passar dos anos,

os ocultos inventores – isto ocorrendo independentemente do regime

econômico e político.319

Aproveitando-se dessa situação há quase um século, o espetáculo tem investido

em uma série de inovações técnicas para propagar efeitos comunicativos e assim legitimar

a si mesmo. A máquina de visão emprega torrentes de imagens para produzir o fetichismo

espetacular, o fascínio e a sedução como forma de angariar adesão dos sujeitos ao

movimento e ao ciclo reprodutivo da mercadoria. As antigas formas de pilhagem hostis

se sofisticaram e agora são formatadas em um modelo de pilhagem amistosa conduzida

de modo sedutor, por vezes participativa, conexionista e inclusiva.320

318 É o caso de Gilles Lipovetsky e Jean Serroy. A estetização do mundo: viver na era do capitalismo

artista. São Paulo: Companhia das Letras, 2015. Os autores acertam quando defendem a tese de que o

capitalismo transestético, ao se apropriar da criatividade artística em seu complexo econômico-estético,

opera uma estetização do mundo. O que fazem as vanguardas da arte-revolta é o procedimento contrário:

politizam a arte, a cultura e tudo o mais. 319 Paul Virilio. A arte do motor. São Paulo: Estação Liberdade, 1996, p. 12. 320 Cf. CAE, Distúrbio Eletrônico. São Paulo: Conrad, 2001, p. 24.

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226

Segundo Debord, o espetáculo veicula um modelo ideológico que tende a reificar

a realidade pela adesão dos indivíduos aos pressupostos de interpretação da realidade

promulgados pelas indústrias socioculturais.321 Na realidade social, os indivíduos agem

como receptores/transmissores das imagens e dos discursos de verdade produzidos

industrialmente pelo espetáculo. Parece que a saturação de explicações e justificativas do

status quo corresponde a uma carência inconsciente das massas em consumir discursos

prontos que venham a neutralizar a ameaça da angústia que seria viver sem explicações

o absurdo que se tornou a existência da vida cotidiana nas sociedades atuais.

Imagem 47 – Ilustração do livro Distúrbio Eletrônico, do CAE.322

321 “O espetáculo é a ideologia por excelência, porque expõe e manifesta em sua plenitude a essência de

todo sistema ideológico: o empobrecimento, a sujeição e a negação da vida real”. Guy Debord. A sociedade

do espetáculo, p. 138. E também, p. 40-41: “Como vedete, o agente do espetáculo levado à cena é o oposto

do indivíduo, é o inimigo do indivíduo nele mesmo tão evidentemente como nos outros. Aparecendo no

espetáculo como modelo de identificação, ele renunciou a toda qualidade autônoma para identificar-se com

a lei geral de obediência ao desenrolar das coisas”. 322 CAE, Distúrbio Eletrônico, p. 108.

Page 227: critical art ensemble - UFRN

227

Na sociedade do espetáculo, o valor de verdade dos discursos e das imagens

produz efeitos de poder que tendem a se sobrepor às subjetividades por ação coletiva,

individual e institucional, contornando inclusive o questionamento, a crítica e as atitudes

rebeldes com formas de adesão e inclusão pseudovoluntárias ao “movimento autônomo

do não-vivo” perpetuado pelo espetáculo.323

Na produção subjetiva, o choque entre universos incorpóreos, sonhos, desejos,

crenças, opiniões e ideais coletivos que se vê hoje em dia deixou para trás a

predominância das relações de corpos sobre corpos vivos interatuando uns sobre os

outros; o teatro das carnes foi tomado por uma dinâmica sociotécnica na qual as máquinas

e os dispositivos desempenham um papel crucial e muitas vezes preponderante. Com isso,

as estruturas antropotécnicas tradicionais e modernas se desarticulam; a conexão dos

corpos aos aparatos cibernéticos opera uma quase completa fusão de homens e máquinas

que resulta na formação de antropotécnicas de um outro tipo, por vezes improvisadas e

precárias.

Com relação às tendências contrárias, a situação não é das melhores. Enquanto

nas atuais economias proliferam os figurantes e as vedetes do espetáculo como

prestadores de serviços e profissionais liberais, a revolta dos insatisfeitos e rebeldes, que

rejeitam os papéis pré-estabelecidos de meros espectadores, assim como a indisposição

em contribuir com as tendências do poder, são canalizadas para a burocracia ou ainda

para a luta partidária no campo institucionalizado, desviando assim as divergências, a

revolta e o antagonismo para longe do campo da resistência cultural. Tal estratégia coopta

igualmente a potência da revolta, que poderia levar a uma ruptura radical, para os canais

regrados pelo Estado, sempre vigilante contra os arrivistas e revolucionários.

Talvez por isso a resistência tradicional, sobretudo o movimento operário clássico,

partidário e sindical, durante muito tempo interpretou a cultura como algo secundário em

relação à economia, assim como propôs sempre políticas racionais e reformistas com

pouco apelo a dimensões não racionais, afetivas e estéticas.

Na contramão dessa interpretação de teor marxista, Max Weber e Walter

Benjamin explicitamente rejeitaram a tese do determinismo econômico e promulgaram,

cada um à sua maneira, a concepção segundo a qual a cultura possui um grau de

independência causal relativamente às estruturas econômicas.324 Nos termos de

323 “O espetáculo em geral, como inversão concreta da vida, é o movimento autônomo do não-vivo”. Guy

Debord, Ibidem, p. 13. 324 Diz Walter Benjamin: “. Cf. “A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica”, in Magia e

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228

Benjamin: “A dialética dessas tendências [as tendências evolutivas da arte, nas atuais

condições produtivas] não é menos visível na superestrutura que na economia. Seria,

portanto, falso subestimar o valor dessas teses para o combate político”. De acordo com

Hal Foster: “Os historiadores e antropólogos argumentaram também que o modelo

base/superestrutura é historicamente limitado – outros períodos e culturas não podem ser

adequadamente medidos por ele”.325

A possibilidade de uma “comutação do cultural e do econômico” coloca uma

problemática política à resistência cultural. Na discussão apresentada por Foster, há duas

posições quanto ao lugar da cultura no interior das lutas políticas.326 A primeira defende

a ideia de que o cultural é um lugar de contestação, e não mero efeito econômico ou

reflexo ideológico. Existe enquanto dimensão transversal que atravessa as instituições, as

classes e os mais diversos grupos sociais. Abre-se portanto como uma arena, uma

dimensão onde distintas forças disputam a hegemonia dos valores, das ideias, das práticas

e das subjetividades inerentes a um dado âmbito social. A estratégia de luta na cultura

que se segue com essa concepção é de resistência ou de interferência neo-gramsciana no

código hegemônico materializado nas representações, nos valores, nos modos de viver,

relacionar-se, organizar-se, etc.

Outra posição quanto à comutação do cultural e do econômico sofre uma

influência pessimista de tons niilistas. Com uma visão totalizante do social a resistência

torna-se pífia, por mais que insista, pois de um lado o cultural torna-se uma mercadoria

entre outras, talvez até mais importante do que as demais (sobretudo nos países em que

há relativo bem estar-social), e por outro, o econômico se apropria da produção simbólica

para fins de autorreprodução do sistema como um todo. A totalidade do social e portanto

da cultura passa pelo econômico, assim como a cultura torna-se produto selado pelas

indústrias capitalistas. Em um modelo assim fechado em si mesmo, no qual cada

segmento reproduz a lógica total em cada uma de suas partes de forma inapelável, fica

difícil pensar o papel da resistência.

Técnica, Arte e Política: ensaios sobre literatura e história da cultura. São Paulo: Brasiliense, 1996, p.

166. A tese de Max Weber defendida na obra A ética protestante e o espírito do capitalismo (São Paulo:

Martin Claret, 2003) refere-se à influência que fatores culturais exercem sobre o desenvolvimento

econômico. No livro A Jaula de Aço: Max Weber e o Marxismo Weberiano (São Paulo: Boitempo,

2014), Michael Lowy apresenta um estudo minucioso do debate implícito entre as teses culturalistas de

Weber e as teses econômicas de Marx. 325 Hal Foster, “Por um conceito do político na arte contemporânea”, in Recodificação: arte, espetáculo,

política cultural. São Paulo: Casa Editorial Paulista, 1996, p. 194. 326 Cf. Hal Foster, Ibidem, p. 195-196.

Page 229: critical art ensemble - UFRN

229

As práticas do Critical Art Ensemble se inscrevem com mais coerência na primeira

posição. Suas atividades incidem na cultura hegemônica, interferem nos códigos

dominantes, direta ou indiretamente, abrindo brechas, catalizando inovações, fomentando

contra-sentidos em práticas experimentais. E ainda que a segunda posição estivesse

correta na sua leitura da realidade, os arsenais antropotécnicos que o Ensemble agencia

(Teatro Recombinante, Intervenções Moleculares, Situações, Distúrbios, Desobediência

Civil Eletrônica, Biologia Contestatária) operam seus efeitos destituintes na cultura

totalizante, perturbando as dinâmicas ideológicas, cindindo as conexões cibernéticas,

desmantelando em suma as maquinarias do sistema que tenta se fechar. De uma forma ou

de outra, a estética do distúrbio desempenha sua função de desfazer os poderes instituídos

na cultura, liberando espaços em zonas autônomas temporárias, nas situações construídas

coletivamente, em atividades que destituem os artifícios implicados nos regimes de

poderes e saberes dominantes.

Historicamente, a tese que reverte ou coloca em suspenso o primado econômico

foi revigorada com o surgimento dos movimentos contraculturais no pós-guerra, que

demonstraram na prática o potencial da cultura na mudança dos rumos sociais como um

todo. Inclusive, o movimento Provos de Amsterdam e os Situacionistas franceses se

valeram desta tese com propósitos revolucionários.327 Com o tempo, diversos artistas,

coletivos, produtores culturais e ativistas engajados na micropolítica da vida cotidiana

contestaram o aparentemente determinismo econômico afirmando que o primado pode

ser revertido desde o campo cultural. Steve Kurtz diz textualmente:

Os elementos da sociedade que antes eram considerados abstrações

superestruturais da economia que não importavam, realmente

importam. Eles têm um impacto causal na determinação de como

vivemos, como nos comportamos e qual será a estrutura da sociedade

em geral. Então, a cultura torna-se uma grande frente de batalha

adicional.328

327 Cf. Matteo Guarnaccia. Provos: Amsterdam e o nascimento da contracultura. São Paulo: Conrad,

2001. Ver também as “Teses sobre a Revolução Cultural” apresentadas por Guy Debord no primeiro

número da revista homônima da Internacional Situacionista, de 1958. Cf. Paola Berenstein Jacques (org.).

Apologia da deriva: escritos situacionistas sobre a cidade. Rio de Janeiro: Casa da Palavra, 2003. 328 “Those elements of society that were once considered superstructural abstractions of the economy that

didn’t matter, actually do matter. They have causal impact in determining how we live, how we behave,

and what the structure of society will be in general. So culture becomes an additional major battlefront”.

Steve Kurtz, in Konrad Becker e Jim Fleming (Eds.). Critical strategies in art and media: perspectives

on new cultural practices. New York: Autonomedia, 2010.

Disponível em http://criticalstrategies.t0.or.at/txt?tid=6292cf62466279d6fedff591331f5538 Acesso 15 de

julho de 2019.

Page 230: critical art ensemble - UFRN

230

Para além do modelo marxista que correlaciona as forças políticas, sociais e

culturais em termos superestruturais, circunscritos portanto pelas estruturas produtivas

consideradas determinantes das relações sociais, o CAE se esforça por pensar a resistência

na sua dimensão cultural, isto é, em seus caracteres éticos, epistemológicos, estéticos,

semióticos e tecnológicos. Trata-se, por conseguinte, de abrir a noção de resistência para

uma concepção cultural, na qual as micropolíticas da criação desempenham seu papel

sem unificação forçada de objetivos, táticas, estratégias, formas de expressão e

organização. Manter a resistência aberta à invenção e à inovação é um princípio basilar

que define as micropolíticas da criação.

Como anti-autoritários, estamos sempre em posição minoritária, nossas

políticas nunca são as políticas dominantes, elas são sempre uma forma

de resistência, e quando estamos nessa posição minoritária, acho que

nos convém sermos bastante tolerantes com pessoas que tentam várias

formas de resistência em níveis muito diferentes de intensidade. Eu não

acho que nos ajuda tanto dizer: “Estou desenhando a linha aqui,

qualquer pessoa do outro lado dessa linha é parte do problema!” Eu não

posso realmente viver com isso. Mas isso também não quer dizer que a

crítica séria de se localizar em certo ponto ao longo do continuum da

resistência e não em outro não seja valiosa.329

A própria noção de vanguarda se modifica no contexto contemporâneo.

Inicialmente, as vanguardas da arte-revolta avançaram até os limites da transgressão em

suas variadas formas em relação a normas, códigos e valores; trataram as antropotécnicas

existentes com desdém, inventaram seus próprios meios alargando assim o conceito de

arte. Posteriormente, com a esfera artística liberada, as neovanguardas deixam de compor

o setor avançado na transgressão para se tornar cada vez mais coalizões que se posicionam

na linha de frente da resistência cultural, sempre que se afirmam, em atos, agentes

catalisadores de formas de vida outras, de maneiras de pensar, sentir, agir, relacionar-se,

organizar-se e viver autoposicionadas por potências irredutíveis aos aparelhos de captura,

aos efeitos sobrecodificadores que insistem em reificar, muitas vezes inutilmente, uma

realidade inapreensível, vibrátil, mutante e indeterminável.

329 “As anti-authoritarians we are always in the minority position, our politics are never the dominant

politics, they are always a form of resistance, and when we are in that minority position I think it behooves

us to be fairly tolerant of people trying various forms of resistance at very different levels of intensity. I

don’t think it helps us all that much to say, ‘I am drawing the line here, anyone on the other side of that line

is part of the problem!’ I can’t really live with that. But this is also not to say that serious criticism of

locating oneself at a certain point along the continuum of resistance and not another is not valuable”. Steve

Kurtz, in Konrad Becker e Jim Fleming (Eds.). Critical strategies in art and media: perspectives on new

cultural practices.

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231

Mas como então se pode resistir ao espetáculo na dimensão cultural? No contexto

da arte-revolta, sobretudo pós-situacionista, não faz mais sentido produzir arte se não for

para transformar a realidade. O adágio situacionista mais complacente era o de que a arte

deveria ser usada para fins situacionistas. A participação que se exige nas investidas

artísticas, desde então, possui um caráter ativador das relações sociais. Eis o principal

motivo de colocar o público no centro das experiências artísticas: restituir-lhe seu papel

humano ativo. No fundo, haveria algo profundamente existencialista nessa concepção de

arte-revolta, não fosse o componente sociológico que lhe é intrínseco. Jacques Rancière

reconhece a importância do conceito crítico elaborado pelos situacionistas na história da

arte-revolta contemporânea ao afirmar que “a ‘crítica do espetáculo’ permanece muitas

vezes o alfa e o ômega das ‘políticas da arte’”.330

O significado da resistência ao espetáculo na sua acepção crítica, quando aplicado

especificamente ao universo da arte, pode ser compreendido com os aportes de Benjamin,

constantemente mobilizados por grupos da arte-revolta contemporânea.

No ensaio “O autor como produtor”, Benjamin propõe pensar a produção literária,

teatral e, portanto, artística no interior de uma teorização marxista mais ampla que vincula

a discussão da arte com a luta de classes. Há pelo menos dois pontos importantes que vale

mencionar: a do artista operador e a refuncionalização dos meios. Primeiro, a distinção

feita por Tretiakov entre o escritor operativo e o informativo. “A missão do primeiro não

é relatar, mas combater, não ser espectador, mas participante ativo”.331 O escritor pode

muito bem representar o artista em geral que, ao invés de simplesmente oferecer sua arte,

age como um produtor do mundo real, por meio de ações engajadas nos acontecimentos

políticos. O próprio Tretiakov ilustra sua atividade enquanto produtor, diz Benjamin:

Quando na época da coletivização total da agricultura, em 1928, foi

anunciada a palavra de ordem: “Escritores aos colcoses!”, ele viajou

para a comuna Farol Comunista e em duas longas estadias realizou os

seguintes trabalhos: convocação de comícios populares, coleta de

fundos para a aquisição de tratores, tentativas de convencer os

camponeses individuais a aderirem aos colcoses, inspeção de salas de

leituras, criação de jornais murais e direção do jornal colcós,

reportagens em jornais de Moscou, introdução de rádios e de cinemas

itinerantes, etc.332

330 “The ‘critique of the spectacle’ often remains the alpha and omega of the ‘politics of art’”. Citado por

Claire Bishop, “Participation and spectacle: where are we now?”, in Nato Thompson (Ed.). Living as

Form: socially engaged art from 1991-2011, p. 35. 331 Walter Benjamin, “O autor como produtor”, in Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre

literatura e história da cultura, p. 123. 332 Walter Benjamin, Ibidem, p. 123.

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232

A simples descrição das atividades de Tretiakov colide com o que se espera de um

escritor burguês, o gênio das palavras inspiradas. Um escritor, enquanto produtor, além

de escrever, participa ativamente do ambiente político, produzindo junto aos demais uma

realidade social, cultural, outra. Deixando de lado o teor claramente marxista do ensaio,

o autor enquanto produtor nada mais é do que o artista engajado nas lutas práticas que lhe

concernem politicamente.

Bertolt Brecht também é citado no mesmo ensaio. É dele a criação do conceito de

“refuncionalização” para caracterizar a transformação de formas e instrumentos de

produção por uma inteligência progressista.333 A exigência fundamental passa a ser “não

abastecer o aparelho de produção, sem o modificar”. O que se pretende com isso não é

senão tornar o artista (autor) um agente de transformação, a começar pelos meios técnicos

cujos fins cabe modificar.

Para Brecht, trata-se de buscar fins socialistas, mas no que se refere à discussão

sobre a resistência cultural e suas micropolíticas da criação no âmbito da sociedade do

espetáculo, isso significa que não cabe ao artista produtor alimentar indiscriminadamente

o aparelho espetacular, que se nutre de toda e qualquer produção meramente artística para

lucrar. Do ponto de vista da arte-revolta, comprometida portanto com a transformação

social, por menor que seja, convém imprimir um valor de uso revolucionário àquilo que

se produz, e com esse objetivo o meio de produção cultural torna-se uma máquina de

guerra artística. Nesta perspectiva engajada, é preciso refuncionalizar os meios de

produção culturais e artísticos em função do desmantelamento, da destituição dos meios

culturais autoritários e dos meios econômicos predatórios capitalistas.

Benjamin ilustra essa refuncionalização com os dadaístas, que inventaram os

gestos radicais determinantes de quase toda a história da arte moderna posterior. O

exemplo mobilizado por Benjamin, no entanto, está circunscrito a uma questão estética

secundária e tem pouca importância se comparada ao gesto radical que funda o

movimento e demarca um antes e depois na história da arte, o primeiro ato autenticamente

revolucionário advindo do campo das artes. Em uma fórmula: a expropriação da arte.

Os dadaístas demoliram as barreiras que separavam a arte da vida, atacando a

própria noção burguesa de arte tradicional. Esse gesto, que hoje pode parecer trivial para

alguns, foi da maior importância. No início, a pretensão era destruir a arte por dentro e

por fora, mas o que aconteceu em decorrência do supremo ato dadaísta foi algo ainda

333 Id. Ibidem, p. 127.

Page 233: critical art ensemble - UFRN

233

mais visceral. Na ânsia de destruir, o dadaísmo declarou guerra à arte e libertou a

atividade criativa das fortificações ideológicas burguesas (e suas limitações

institucionais) que se amparavam nas definições de arte e artista de feições românticas.

Com esse gesto destruidor, as antropotécnicas artísticas burguesas foram

desmanteladas em atos: o campo da arte, tomado de assalto, alargou-se e se expandiu para

incorporar novas antropotécnicas experimentais de toda ordem: colagens, garatujas,

técnicas simplórias de pinturas, primitivismo, performances, agitações, etc., compuseram

então os arsenais da arte-revolta. Assim, fazer arte deixou de ser atividade especializada

de virtuoses técnicos. Tornou-se possível para qualquer pessoa comum tomar parte ativa

na guerra artística deflagrada pelo grito dadaísta.

Todos os meios de produzir arte-revolta tornaram-se válidos e com isso as armas

culturais se multiplicaram. Com a descodificação dadaísta dos meios de produção ético-

estéticos das artes, em tese qualquer indivíduo está apto a assumir seu papel ativo na

guerra artística. E em decorrência do mesmo ato, a máquina de guerra artística multiplicou

seus meios de ação. Numa leitura retrospectiva, a arte tornou-se mídia tática disponível

socialmente e imediatamente apropriável por qualquer pessoa. Enquanto o paradigma

estetizante, desde o fascismo, submete a arte a propósitos de propaganda e dominação, o

ato dadaísta instaura o paradigma da arte-revolta que desencadeia a expropriação dos

meios de produção artísticos e sua infinita multiplicação para fins de resistência.334

Peter Sloterdijk nomeia o acontecimento e seus desdobramentos na arte moderna

como a “catástrofe da arte”.335 Interpreta o fenômeno à luz da maestria técnica perseguida

pela arte tradicional que até o início do século XX reinava praticamente sozinha como

arte bela. O autor afirma que, ao longo de cem anos, as três gerações de artistas das artes

visuais (de 1910 a 1945, de 1945 a 1980 e de 1980 a 2015) “alargaram o âmbito do seu

ofício lançando-se numa busca vertiginosa de novas maneiras de fazer”.336

Os artistas modernos abandonaram a ideia de prosseguir a corrente de imitações

temáticas, técnicas e formais, e se dispuseram a experimentar sem limites. O que é

denominado de catástrofe, no entanto, nada mais é do que efeito da recusa em continuar

o trabalho da mimesis nos temas, nas formas expressivas e nas técnicas já conhecidas, e

334 A estetização se dá em função dos poderes constituídos, que instrumentalizam as artes (é a captura). A

politização da arte (que Benjamin identifica com o uso comunista) se faz pela arte-revolta e tem como

paradigma histórico a deflagração da guerra dadaísta. 335 Cf. Peter Sloterdijk. Tens de mudar de vida: sobre antropotécnica. Lisboa: Relógio D’Água, 2018,

p. 532ss. 336 Peter Sloterdijk. Tens de mudar de vida: sobre antropotécnica, p. 531.

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234

uma afirmação da busca por outras formas de exprimir o conteúdo artístico sem passar

pelo crivo da maestria e da tradição.

Sloterdijk identifica um dos fatores dessa mudança em decorrência do

deslocamento do poder de produção (as antropotécnicas da maestria) para a o poder da

exibição (arte para efeitos de consumo massivo). Quem primeiro mostrou a passagem da

obra de arte de seu ambiente ritual aurático, na qual a obra se presta à contemplação, para

a esfera pública aberta na qual o poder de exposição prepondera, foi Benjamin no seu

clássico ensaio sobre a obra de arte. Na passagem do culto à obra para a arte na dimensão

política, Sloterdijk diagnostica a degradação das formas tradicionais de se produzir artes

visuais. Diz ele,

com o deslocamento da arte como poder de produção (...) para a arte

como poder de exibição (...), a forma de imitação que se torna

dominante [a busca vertiginosa por novas formas expressão] é a que

vira as costas ao ateliê para colocar o lugar da apresentação no centro

dos acontecimentos.337

No entanto, é preciso distinguir a arte-revolta do que se tornou o modernismo. De

fato, a revolta estava na fonte do modernismo,338 mas o que se viu desenvolver entre os

modernistas foi uma linha evolutiva de experimentações formais e técnicas circunscritas

ao campo artístico. Algo muito diferente ocorre na arte-revolta, pois o ímpeto inflamado

pelas vanguardas clama pela imersão da arte nos problemas da vida. Se havia um projeto

implícito nas vanguardas era o de fazer a arte desaparecer na vida e portanto na política

(“superação da arte na práxis de vida”, ou ainda, “superação da instituição arte, união de

arte e vida”, nas formulações de Peter Burger).339 O modernismo fez o contrário,

refugiou-se na esfera artística.

Historicamente, enquanto o modernismo montava seu teatro de operações nas

galerias, entre críticos de arte, curadores, marchands e investidores, a arte-revolta

rebelou-se contra todos os bunkers artísticos, ateliês, museus, galerias, contra o campo

artístico em suma, porque eles estariam muito distantes da vida que era preciso

337 Peter Sloterdijk. Tens de mudar de vida: sobre antropotécnica, p. 532. 338 “Segue-se daí que, enquanto uma forma de arte pode ser identificada como moderna com base

unicamente em seu estilo, chamar de modernista uma obra de arte é estabelecer uma distinção mais sutil.

É registrar o seu surgimento como indicativo de certos posicionamentos e atitudes críticos adotados pelo

artista em relação tanto à cultura mais ampla do presente quanto à arte do passado recente”. Charles

Harrison, “O que é o modernismo”, in Modernismo. São Paulo: Cosac & Naify, 2001, p. 14. 339 Cf. Peter Burger. Teoria da vanguarda. São Paulo: Cosac & Naify, 2014, p. 17 e p. 108

respectivamente.

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235

transformar. No formalismo moderno, o que se revelou com o abandono das técnicas

artísticas tradicionais foi o surgimento de um sistema artístico autocentrado cuja maior

característica seria a sua perda de contato com o mundo. Sloterdijk diz então que na

terceira geração da imitação-selfishness cega (o modernismo levado aos extremos), tem

tudo, exceto uma relação explícita com o mundo. Se a obra de arte, como dizia Heidegger,

dis-põe um mundo carregado de sentido, a arte autorreferencial que circula nos museus

autocentrados exibe muitas vezes obras carentes de sentido, vazias de mundo porque

estéticas supostamente puras. “O que dis-põe, é o seu corte manifesto com tudo o que se

situa no exterior da sua própria esfera”.340

A arte-revolta, pelo contrário, surgiu do ímpeto em tornar a arte um meio de

interferir na vida, não para efeitos “artísticos”, mas para efeitos concretos, culturais,

comportamentais, metanoicos, políticos. A máquina de guerra dadaísta demoliu as

fronteiras entre a arte e a vida com esse propósito. O que o modernismo fez, na busca

incessante e autorreferencial, foi afastar-se cada vez mais, isolando-se em seu universo à

parte. A divisa l’art pour l’art tornou-se the art system for the art system, diz Sloterdijk.341

Enquanto a arte-revolta luta para realizar as potencialidades da arte na vida, o

modernismo pôs em marcha sua própria catástrofe, hoje reconhecida nos bunkers da arte-

selfishness. Essa já era a crítica feita pelos dadaístas e situacionistas. Essa foi a crítica

realizada por Camus na obra O Homem Revoltado quanto à arte puramente formal que

perde qualquer contato com o mundo.342 Esta é ainda a crítica dirigida pelos grupos da

arte-revolta do presente à arte-espetáculo. Por motivos muito diferentes dos que parecem

animar Sloterdijk.

Na crítica do espetáculo, o artista enquanto produtor, no sentido benjaminiano,

opera mudanças significativas no meio de produção, a partir do momento em que se

recusa a simplesmente alimentar o aparelho, produzindo, por exemplo, meros objetos

estéticos consumíveis, para, em vez disso, investir em matrizes performativas que

rompem com a passividade generalizada que o mundo consumista típico do capitalismo

reproduz. Que o espetáculo induza a passividade pela fruição estética de modas cíclicas,

isso não impede que a arte-revolta refuncionalize os meios de produção artísticos

existentes em um sentido crítico (é o que faz a mídia tática), porém, o mais importante é

340 Peter Sloterdijk. Tens de mudar de vida: sobre antropotécnica, p. 533. 341 Peter Sloterdijk. Tens de mudar de vida: sobre antropotécnica, p. 534. 342 A crítica feita ao formalismo (sua recusa total da realidade) é dirigida também ao realismo pelo motivo

inverso (sua adesão completa ou irrefletida ao que supostamente existe). Cf. Albert Camus, “Revolta e

estilo”, in O Homem Revoltado. Rio de Janeiro: Record, 2001, p. 307ss.

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236

a modificação ou mesmo invenção do meio de produção, que pode se tornar então

ativador da participação dos indivíduos e grupos nas lutas em curso.

Por isso, a resistência cultural contra a sociedade espetacular que tem se destacado

desde Maio de 68 aposta em artes participativas, coletivas, relacionais, comunitárias,

situacionistas e mídia táticas. Suas matrizes performativas de ação e produção culturais

ultrapassam os meios produtivos do espetáculo ao exigirem uma outra postura do público,

e ao mesmo tempo, por promoverem engajamentos de todos aqueles a quem tocam de

alguma forma. Assim, espera-se que os sujeitos se posicionem de outra maneira na

realidade: que renunciem à passividade que lhes mantém na condição de sujeitados e

assumam seu lugar ativo nas lutas de seu tempo.

A resistência cultural de que trata o Critical Art Ensemble não é do mesmo tipo

que se denominou uma resistência de classe como no modelo marxista. A chamada

resistência cultural, mais do que ser exatamente uma resistência específica (classista,

étnica ou de gênero, por exemplo), ou ainda institucional, configura-se como uma

multiplicidade de micropolíticas da criação que atuam nos mais diversos campos da

cultura, em termos estéticos, performáticos e tecnológicos que afetam os aspectos

comportamentais, éticos, políticos e antropotécnicos da cultura. Face ao poder dominante

que molda a cultura, caracteriza-se por uma postura ativa de autodeterminação que tem

seu fundamento na afirmação de uma contracultura e do modo de ser daqueles que

resistem.

Por isso também, talvez não seja a melhor forma falar de uma cultura da

resistência unívoca, senão que, mais propriamente, de processos de resistência

contraculturais ante os poderes e seus modelos de vida dominantes que a todo custo

tentam se impor às singularidades. O campo dessa resistência necessariamente plural

comporta, portanto, diversas frontes de atuação, maneiras distintas de se autoafirmar e se

contrapor no campo social e político. Na realidade da vida cotidiana, cabe a cada sujeito,

a cada grupo ou coletivo colocar em prática seu modo particular de resistir à dominação

que constrange a autonomia e a liberdade. Essa é a novidade da micropolítica da criação

trazida pela máquina de guerra artística.

O ponto em comum capaz de aproximar as formas de resistência cultural díspares

é, na perspectiva do CAE, a luta contra as tendências autoritárias na esfera da cultura, ou

seja, a luta que rejeita, a um só tempo, a cega obediência ou a leniente aceitação das forças

que pretendem imperar sem apelos sobre os indivíduos, grupos, povos e instituições, e

igualmente atacar o poder nômade do pancapitalismo nas suas formas de se reproduzir na

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237

cultura e na vida cotidiana. A médio prazo, o resultado da convergência das diversas

formas de resistência pode ser um impulso eficiente no desenvolvimento de uma espécie

de cultura libertária, por princípio aberta, fluida, complexa e metamórfica. A questão

fundamental passa a ser então saber quais são os impactos que um experimento cultural

dessa natureza podem desencadear na política global, nas relações micropolíticas da

existência e no palco da vida cotidiana.

Situações e Revolução Cultural Permanente

Nos primórdios de sua trajetória, o CAE investia muita energia na produção de

eventos. Tudo era planejado, projetado e executado por seus membros. Os meios

empregados para se expressar eram muito variados, no mais das vezes, as atividades eram

elaboradas em conformidade com o local, a instância e o espaço em questão. Não à toa,

o grupo é referido aos artistas que praticam site-specific art, uma modalidade de

intervenção artística que se molda ao lugar de atuação, que implementa projetos

específicos ao local, seja em termos geográficos, arquitetônicos, comunitários, sociais,

antropológicos ou simplesmente ambientais.343

Os meios expressivos sempre variaram: arte comunal, instalação em museus,

exibições em galerias, ações de telepresença, projeção de slides, performances, entre

outros. Tudo combinado com abordagens ora mais intelectuais, como palestras, obras

conceituais, ora mais práticas, como trabalhos estilo arte-guerrilha nas ruas. Quando o

computador tornou-se um equipamento comum, logo foi incorporado como uma das

ferramentas importantes para a elaboração de projetos e intervenções, sobretudo depois

que a internet foi popularizada. No entanto, mesmo com tantas possibilidades de ação, o

CAE sempre priorizou um aspecto em especial: o engajamento no imediato. Ao invés de

produzir artes para o mercado, a primazia na experiência, na experimentação. É o que

afirma o CAE em uma entrevista de 1997:

Nós tínhamos atividades que engajavam no imediato. Geralmente, tais

ocorrências não emergem da arte. Elas vêm de outras maneiras.

Gostamos do aforismo de André Breton: “A beleza será convulsiva ou

não será”. A arte tem poucas características convulsivas. Ir a uma

galeria é mais como ir à igreja, já que é um ambiente repressivo. Agora

há muitas atividades no mundo que têm a ver com imediatismo,

343 Cf. Miwon Kwon. One place after another: site-specific art and locational identity. London: Mit

Press, 2002, p. 7, p. 151-152.

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sensualidade direta e pedagogia extrema; infelizmente, a maioria dessas

atividades, especialmente nos EUA, é ilegal. A pergunta do CAE era:

como criar situações através do uso de produção cultural que, de alguma

forma, tornasse a atividade cultural excitante e divertida, ao mesmo

tempo em que provocaria uma perspectiva política radical? É claro que

em nosso caminho estão as estruturas autoritárias da cultura. Esse

bloqueio levou a um corpo de trabalho destinado a expor ou interromper

essas estruturas, e à criação de ambientes ou situações em que o poder

autoritário (dominação) seria diminuído. Então, em um sentido geral,

nossa missão permaneceu a mesma. Em um sentido particular, questões

específicas mudam à medida que a cultura muda.344

Eis a principal linha de ação do Critical Art Ensemble: criar situações, que sejam

excitantes, envolventes e divertidas para o grupo e os demais participantes, e que ao

mesmo tempo instiguem a eclosão de perspectivas políticas radicais. A dimensão do

desafio torna-se perceptível pois as situações esbarram nas estruturas autoritárias da

cultura, que tentam impedir ou dificultar a experimentação para além de seus limites

artificiais pretensamente universais e inamovíveis.

Em um contexto com essas características, restam ao menos duas alternativas:

criar e promover situações por meio das quais as estruturas de poder são expostas,

reveladas e por fim perturbadas em suas normalidades, ou então, aprofundar os efeitos

libertários das situações vividas, criando ambientes, instâncias, relações, zonas espaço-

temporais de autonomia nas quais o poder é destituído de seus efeitos reificadores. Assim,

os poderes autoritários inscritos na cultura, que não admitem a experimentação do desejo,

do livre pensar, de formas de vida diferenciadas, são desafiados onde eles mesmos tentam

se manter e se reproduzir, nas instituições, nas relações, nas representações discursivas,

nos comportamentos irrefletidos. Digno de nota também é a apropriação que o CAE faz

da definição de beleza como algo convulsivo, concepção que reverbera na estética do

distúrbio.

344 “We were activities that engaged the immediate. Generally, such occurrences do not emerge out of art.

They come out in other ways. We like Andre Breton’s aphorism: ‘Beauty will be convulsive or not at all’.

Art has very few characteristics that are convulsive. Going to a gallery is more like going to church, since

it’s such a repressive environment. Now there are plenty of activities in the world that have to do with

immediacy, direct sensuality, and extreme pedagogy; unfortunately, most of these activities, particularly in

the US, are illegal. CAE’s question was, how do we create situations through the use of cultural production

that would somehow make cultural activity exciting and fun, while at the same intiating a radical political

perspective? Of course standing in our way are the authoritarian structures of culture. This blockage led to

a body of work aimed at either exposing or disrupting these structures, and to the creation of environments

or situations in which authoritarian power (domination) would be diminished. So in a general sense, our

mission has remained the same. In a particular sense, specific issues change as culture changes”. CAE,

Interview, Nettime.org, 1997, Part 1. Disponível em http://amsterdam.nettime.org/Lists-Archives/nettime-

l-9708/msg00102.html Acesso 10 de julho de 2019.

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239

Nas últimas décadas, o conceito de situação tornou-se central para uma parte

considerável da arte-revolta, incluindo o CAE, sobretudo nas vertentes performáticas. No

resgate que Yates McKee faz da história da arte contemporânea nas suas relações com as

políticas da democracia, o Critical Art Ensemble é tratado como um coletivo

neossituacionista.345

A trincheira política dos situacionistas deslocou o universo da arte para o espaço

público, e a revolução para o campo da cultura. O urbanismo unitário e a psicogeografia

situacionistas prefiguraram distintas apropriações criativas dos espaços sociais urbanos,

nas ruas, nas paredes, nas passagens, nos equipamentos sociais. As pichações, o stencil,

alguns esportes radicais urbanos, como o parkour e o skate, entre outras formas de ação

micropolíticas, tornaram-se práticas juvenis importantes nas décadas seguintes, antes das

ruas serem tomadas pela violência.

Os situacionistas conclamavam os revolucionários profissionais a atuarem na

cultura, promovendo desvios, projetos coletivos, intervenções diretas sobre o espaço

urbano e social, de modo a remodelarem a vida cotidiana sem intermediações. O conceito-

chave que deu nome ao grupo é assim definido: “Situação construída: Momento da vida

concreta deliberadamente construído pela organização coletiva de uma ambiência unitária

e de um jogo de acontecimentos”.346 Os situacionistas promulgavam a seguinte concepção

de resistência cultural:

A orientação realmente experimental da atividade situacionista consiste

em estabelecer, a partir dos desejos reconhecidos com maior ou menor

clareza, um campo de atividade temporária favorável a esses desejos.

Só o seu estabelecimento pode esclarecer os desejos primitivos e o

aparecimento confuso de novos desejos cuja raiz material será a nova

realidade constituída pelas construções situacionistas.347

Os situacionistas tornaram-se conhecidos por suas teses em defesa da revolução

cultural que influenciaram o Maio de 68. Surgida do campo artístico, a Internacional

Situacionista ampliou suas frontes de batalha para a esfera da cultura e trouxe a discussão

política radical para a vida cotidiana, na qual se formulam e materializam os desejos, a

imaginação, o prazer, a revolta. Assim, a luta revolucionária deixa de ser unicamente

345 Cf. Yates McKee. Strike art! contemporary art and post-Occupy condition, p. 50-51. 346 Internacional Situacionista, “Definições”, in Paola Berenstein (org.). Apologia da deriva: escritos

situacionistas sobre a cidade. Rio de Janeiro: Casa da Palavra, 2003, p. 65. 347 Internacional Situacionista, “Questões preliminares à construção de uma situação”, in Paola Berenstein

(org.). Apologia da deriva: escritos situacionistas sobre a cidade, p. 62.

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240

contra a economia política e torna-se cultural. Ao mesmo tempo, dirige seus arsenais

contra as representações políticas das democracias burguesas e desfere golpes

implacáveis na forma de críticas radicais ao regime soviético, considerado equivocado e

falsamente socialista.

As fórmulas do dadaísmo e do surrealismo são atualizadas ao contexto do pós-

guerra no conceito operativo de situação e desde então a fórmula situacionista inspira

coletivos, artistas e produtores da resistência nos mais variados cenários culturais.

Ao considerar a difusão das artes performáticas nos anos 70, engajadas no

imediato das relações sociais vivas, e o sucesso das zonas autônomas temporárias nos

anos 80, que atualiza os situacionistas para as novas gerações sobretudo na cultura-revolta

norte-americana, não será exagero afirmar que o conceito de situação, enquanto

ambiência coletiva criada pelo desejo, pode ser considerado uma das invenções mais

proeminentes da história da arte-revolta do século XX. Nele se consubstancia um

significado prático mobilizador de relações e experiências coletivas, ou para usar uma

linguagem contemporânea, um dispositivo pragmático, social e micropolítico, que de

certa maneira atualiza o anseio legado pelas vanguardas históricas de unir arte e vida

diretamente. Transformar o mundo (Marx) e mudar a vida (Rimbaud) tornam-se uma só

fórmula entre os situacionistas.

Inspirado no situacionistas, o Critical Art Ensemble prolonga a resistência na

cultura por considerá-la uma dimensão fundamental da vida política. Embora não trabalhe

com a noção tradicional de revolução, o grupo incorpora como sua palavra de ordem a

“revolução cultural permanente” e investe seus esforços na criação de situações e

ambiências coletivas desafiadoras, a fim de contribuir com a reconfiguração da cultura

em seus diversos registros, simbólicos, imagéticos, comportamentais, reflexivos e

tecnológicos. Mais do que limitar a cultura a suas expressões artísticas, como música e

literatura, a cultura, segundo o CAE, deve ser entendida em um sentido mais amplo:

A cultura é a soma total de componentes sociais ideacionais e materiais,

como valores, normas, linguagem e artefatos. Infelizmente, formas

específicas dessas categorias se tornam hegemônicas. Por sua vez,

outras categorias são marginalizadas ou eliminadas (...) Para o CAE, a

cultura é um termo amplo que abrange tudo, do social ao político e ao

econômico.348

348 “Culture is the sum total of ideational and material social components such as values, norms, language,

and artifacts. Unfortunately, specific forms of these categories become hegemonic. In turn, other categories

are marginalized or eliminated (…) For CAE, culture is a grand term that encompasses everything from the

social to the political to the economic”. CAE, Interview, Nettime.org, 1997, Part 1.

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241

As intervenções do CAE são dirigidas diretamente à cultura ao invés de insistir na

arena política institucionalizada (da política Estatal) ou na esfera econômica (por meio do

sindicalismo). O que se pretende com isso não é evadir-se das lutas, ou recusar as

possibilidades inerentes a outras frentes políticas, mas atuar na dimensão onde rumos

existenciais igualmente importantes se decidem, no interior da vida cotidiana, diretamente

sobre as pessoas, nos espaços de interação, ao estilo situacionista, sempre com o fito de

reconfigurar a cultura.

A estratégia da resistência cultural permanente tem como premissa a ideia de que

a cultura é uma variável com potencial de transformação real sobre a vida, e pode até

mesmo, em determinadas circunstâncias, sobrepor suas tendências às reificações

econômicas, estatais ou institucionais hegemônicas. O CAE atribui aos situacionistas

franceses uma ideia essencial para a resistência cultural:

Eles [os situacionistas] nos ensinaram que a batalha cultural é uma

batalha em si e que nenhuma luta política pode ter sucesso a menos que

seja acompanhada pela produção de uma contracultura, tanto uma

cultura de resistência quanto uma cultura resistente.349

Coube aos movimentos contraculturais dos anos 60 demonstrar a força da cultura

de resistência face aos imperativos econômicos e políticos de então. Na França, os

situacionistas tinham como lema uma frase curiosa: “Não queremos morrer de tédio”. O

capitalismo pode assumir a forma do wellfare state, mas se mostra incapaz de conter o

descontentamento, a revolta e a potência criadora do desejo que não se pode realizar

segundo a lógica puramente capitalista.

A contracultura norte-americana é a prova histórica de que a revolta e a

contestação são movimentos afirmativos, pró-ativos, criadores e não meramente reativos.

A revolta não surge como efeito simples do poder, da opressão, da miséria. Ela eclode

muitas vezes como vontade de potência, desejo de inovação, força experimental que se

projeta no mundo, salta das subjetividades e adentra no cenário social da cultura como

fenômeno vivo. O movimento pelos direitos civis, os panteras negras, o movimento

349 “Ils nous ont appris que la bataille culturelle est une bataille en soi et qu’aucune lutte politique ne peut

aboutir si elle n’est pas accompagnée par la production d’une contre-culture, à la fois culture de la résistance

et culture résistante”. Cf. Stéphanie Lemoine, Samira Ouardi. Pour une résistance culturelle permanente.

Entretien avec Steve Kurtz du Critical Art Ensemble, Mouvements, 2011/1 (n° 65), p. 148-149. Disponível

em: https://www.cairn.info/revue-mouvements-2011-1-page-143.htm Acesso 10 de julho de 2019.

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242

antibelicista, os ambientalistas e os hippies são exemplos de como as formas de vida

culturais que não passam pela instituição política oficial, nem tem apelos diretamente

econômicos, operam efeitos nas mais distintas dimensões da vida social. Ainda que a

cultura tenha sido capturada pelas indústrias de entretenimento, enquanto fenômeno vital,

a cultura emana de outras fontes. A cultura-revolta que resiste nos interstícios das

instituições hegemônicas da cultura-espetáculo produz, fabrica e agencia uma máquina

de guerra que propulsiona os desejos libertários.

A escolha pela aplicação de uma micropolítica da criação e, portanto, sem

mediações de qualquer tipo, evidencia a afinidade das pragmáticas do CAE com o

princípio do it yourself do movimento punk, propagado no cenário underground

Hardcore nos Estados Unidos e demais países industrializados na década de 1980.

Segundo o testemunho de Steve Kurtz, os membros fundadores do CAE passaram pelo

movimento punk quando eram jovens,350 o que talvez explique certo ceticismo do grupo

quanto às utopias. Afinal, foi o movimento punk que, no final da década de 1970, fez

ecoar de forma radical a revolta de jovens desiludidos com o mundo destinado a eles pelo

modelo de vida capitalista. Depois do dadaísmo, o grito punk – No future!– reativou uma

recusa quase absoluta que por vezes beirou o niilismo.351

Nos ensaios que compõem seus livros, o coletivo dialoga com a esquerda

tradicional e o marxismo teórico, porém, por recusar que a produção seja a regra da

organização social e da vida como um todo, o CAE se aproxima da postura situacionista

(e sua crítica do trabalho e da produção como valores em si) e explica a desconfiança face

ao marxismo (que organiza seu pensamento e sua luta em torno da questão da produção

e da produtividade). Quanto às posições mais gerais, “elles étaient clairement du côté de

la pensée anarchiste”, estão claramente do lado do pensamento anarquista.352 Realmente,

não se pode negar a influência das ideias e dos ideais ácratas sobre a prática e o estilo

adotados pelo grupo ao longo de sua trajetória. A aposta na formação de grupos de

afinidades, ao invés de se vincular a partidos, e a preferência por coalisões

350 “M.: La culture punk a donc été importante pour les membres du groupe?. – Steve Kurtz: Oui, clairement,

nous avions tous été punks dans l’adolescence. Nous avions tous cet ethos expressionniste caractéristique

du punk”. Cf. Stéphanie Lemoine, Samira Ouardi. Pour une résistance culturelle permanente. Entretien

avec Steve Kurtz du Critical Art Ensemble, Mouvements, 2011/1 (n° 65), p. 143-158. 351 Para maiores detalhes sobre o movimento punk, suas apropriações e transformações nas décadas

recentes, ver o estudo do pedagogo e cientista social Vantiê Clínio C. de Oliveira. O movimento

anarcopunk: a identidade e a autonomia nas produções e nas vivências de uma tribo urbana juvenil.

Natal: Edição do Autor, 2008. 352 Cf. Stéphanie Lemoine, Samira Ouardi. Pour une résistance culturelle permanente. Entretien avec

Steve Kurtz du Critical Art Ensemble, Mouvements, 2011/1 (n° 65), p. 148.

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descentralizadas que primam pela autonomia dos participantes, indicam uma postura

política alinhada aos princípios de organização anarquistas.

Entre influências e inspirações situacionistas, punks e anarquistas, o CAE elabora

sua própria coerência política vinculada à resistência cultural. Esses elementos culturais

constituem parte importante da cultura-revolta que atravessou a segunda metade do

século XX, e da década de 1990 em diante tem desempenhado um papel importante nos

movimentos de contestação sociais heterodoxos pós-industriais. A noção de situação e a

pragmática das zonas autônomas temporárias, que fazem sucesso nas linhagens da arte-

revolta e nos movimentos sociais contemporâneos, estão em pleno acordo com o princípio

punk do it yourself, bem como a ação direta e a recusa a toda forma de autoritarismo

presentes no anarquismo histórico.353 É o que se comprova, afinal, com a declaração do

coletivo: “Agir como agentes da anarquia cultural (isto é, diversidade máxima) é outro

objetivo do CAE. Nós queremos revelar e promover perspectivas alternativas ou produzir

uma situação na qual elas possam se revelar”.354

A escolha pela resistência artística, midiática, micropolítica, intervencionista na

cultura fundamenta-se na convicção de que os regimes semióticos são tão importantes

quanto os regimes materiais e econômicos. A luta cultural é transversal a todo o campo

social, perpassa os registros político, econômico, subjetivo, discursivo, imagético,

conceitual e afetivo. Paralela a outras lutas progressistas, a revolução cultural permanente

oferece a sua contribuição para os movimentos contemporâneos de resistência.

Resistência, Revolução e Destituição

Em um cenário político tomado de forma quase completa pelo poder, uma efetiva

revolução, nos termos modernos, parece improvável, para não dizer impossível, pois as

pessoas estão engajadas (desde dentro pelo desejo, e por fora nos processos de reificação)

nos processos de dominação. A única alternativa realista é a expressão da revolta que

impulsiona a resistência em suas várias formas de ação afirmativas; afinal, se o poder se

instalou em cada ponto da sociedade e fez valer seus efeitos criando uma dimensão virtual

para acessar qualquer lugar a todo momento, então tudo indica que a saída será resistir a

353 Para uma breve apresentação do anarquismo, suas origens e características, ver Nicolas Walter. Do

anarquismo. São Paulo: Imaginário, 2000. 354 “To act as agents for cultural anarchy (that is, maximum diversity) is another CAE goal. We want to

either reveal and promote alternative perspectives or to produce a situation in which they can reveal

themselves”. CAE, Interview, Nettime.org, 1997, Part 1.

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244

ele igualmente em cada ponto se apropriando das ferramentas tecnológicas para virá-las

contra ele.

A análise política da resistência e do poder contemporâneos proposta pelo CAE

por vezes manifesta um viés cético, para não dizer pessimista, face à titanomaquia com

que se reveste o pancapitalismo. Ademais, o grupo faz uma leitura histórica das

revoluções sem qualquer nostalgia, como quando afirma que as revoluções, ainda que

pareçam vitoriosas, findam substituídas por um novo regime de poder instalado para

obliterar as forças da revolta, e o que resta dos acontecimentos revolucionários são os

lapsos históricos liberados temporariamente dos grilhões institucionais opressores.

Nesse sentido, o ideal de revolução precisa ser despido de seu fetichismo

teleológico ou metafísico, para dar vez a uma noção mais próxima da realidade da vida

cotidiana. Dessa forma, a resistência deixa de ser considerada um meio de preparação

para a revolução por vir, e torna-se um fim digno de ser praticado a partir da existência

coletiva e individual na esfera da cultura. Ao adotar essa perspectiva, o próprio caráter da

resistência muda, pois desloca a visão de conjunto sobre como prover a existência de

autonomia desde já, sem recorrer a promessas vindouras em um futuro idealizado.

Como a revolução não é uma opção viável, a negação da negação é o

único curso de ação realista. Após dois séculos de revolução e quase

revolução, uma lição histórica aparece continuamente – a estrutura

autoritária não pode ser destruída; só pode ser resistida. Toda vez que

abrimos nossos olhos depois de percorrer o caminho brilhante de uma

revolução gloriosa, descobrimos que a burocracia ainda está de pé.

Encontramos a Coca-Cola saindo e deixando a Pepsi-Cola em seu lugar

– parece diferente, mas tem o mesmo gosto. É por isso que não há

necessidade de temer que um dia nós iremos acordar e encontraremos a

civilização destruída por anarquistas loucos. Essa ficção mítica se

origina no estado de segurança para incutir no público um medo de ação

efetiva.355

À medida em que o ciberespaço se torna um lugar privilegiado para as interações

sociais, rivalizando com as até então antropotécnicas cosmológicas, cabe à resistência

cultural atuar nesse campo antes que tudo esteja perdido. Do mesmo modo que o

355 “Since revolution is not a viable option, the negation of negation is the only realistic course of action.

After two centuries of revolution and near revolution, one historical lesson continually appears –

authoritarian structure cannot be smashed; it can only be resisted. Every time we have opened our eyes after

wandering the shining path of a glorious revolution, we find that the bureaucracy is still standing. We find

Coca-Cola gone and Pepsi-Cola in its place – looks different, tastes the same. This is why there is no need

to fear that we will one day wake up and find civilization destroyed by mad anarchists. This mythic fiction

is one that originates in the security state to instill in the public a fear of effective action”. CAE, Electronic

Civil Disobedience. New York: Autonomedia, 1997, p. 24.

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245

capitalismo penetrou o universo da cultura, adentrou as subjetividades para formá-las em

benefício de opiniões, crenças e desejos moldados estatisticamente pelo complexo

midiático. Para além dos benefícios que a internet parece ter trazido, os sujeitos se veem

tomados por fora e por dentro pelos imperativos econômicos dominantes, que investem

igualmente pesado no sistema informático e na produção subjetiva. Afinal, é preciso

abastecer a economia da acumulação com consumismo, com a adesão dos sujeitos

considerados clientes e catalogados em conjuntos de dados processados por programas e

algoritmos fabricados com o objetivo de aumentar a eficácia a seu patamar máximo, ao

final, nunca alcançado.

Que o ideal de revolução tenha se desfeito aos olhos dos pós-modernos não

significa necessariamente abandono dos propósitos libertários implícitos nas utopias

políticas que animaram os séculos passados. O aparente pessimismo teórico do CAE nada

mais é que um dos aspectos inscritos na crítica do capitalismo e das formas autoritárias

inerentes à cultura, cujo correlato prático, ou seja, seu pressuposto micropolítico, é

reconhecido em sua atitude positiva, prospectiva e afirmativa de resistência. Bem

compreendido, o ímpeto do CAE projeta-se com ceticismo no plano teórico e com

otimismo na dimensão prática. Seu objetivo maior é propagar com atos exemplares os

efeitos libertários das mais variadas formas de resistência, e com isso, alargar o campo

dos possíveis.

De certa forma, esta já era a atitude dadaísta, que, na sua concepção do tempo

histórico não-linear e caótico, dadas as possibilidades não inscritas nas estruturas

históricas, rompia com as ideias de determinismo teleológico e linearidade dialética,

quase unânimes nas correntes do marxismo e nas leituras progressistas da história. Franco

Berardi, ao discutir a questão do tempo nas vanguardas, afirma:

Se não há consequencialidade obrigatória entre o presente e o futuro, na

realidade não está implícita uma única possibilidade, mas muitas.

“Ampliar a área do possível” é a mensagem que anima a contracultura

e o antiautoritarismo dos anos 1960. Allen Ginsberg diz “Ampliar a área

da consciência”. Entre as duas frases não há muita diferença.356

O CAE, em sua resistência antiautoritária, retém inspirações dos movimentos

contraculturais e promove com seu exemplo uma postura crítica de caráter não-futurista,

que aposta na criação de possibilidades desde o presente. A lição situacionista é

356 Franco Berardi. Depois do futuro. São Paulo: Ubu, 2019, p. 80.

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246

incorporada sem o viés utópico característico dos movimentos revolucionários. O CAE

prima pelas táticas, pela micropolítica das aberturas, das destituições, das eclosões de

possíveis. Este é o real significado do experimental da arte-revolta que opta pelas

pragmáticas ao invés de simples representações.

A lógica constituinte exige emparelhamento dialético com o poder, com o Estado.

Foi sempre nessa direção que os revolucionários fizeram história. A lógica destituinte

anseia outros meios. “Destituere significa, em latim: colocar em pé à parte, erigir

isoladamente; abandonar; pôr de lado, deixar cair, suprimir; decepcionar, enganar”.357 Em

vez de combater frontalmente o poder e as instituições, a lógica destituinte busca realizar

o que se pretende sem recorrer a eles nem mesmo para destruí-los. Mais importante do

que isso, trata-se de tornar as instituições inúteis por efeito das ações criativas, pela

efetivação do que faz valer com o desejo. No contexto da resistência, implica

desligamento, procura de vias alternativas que não passam pelas instituições

estabelecidas.

Isso não significa, no entanto, renúncia à luta. A lógica das ações muda, as táticas

são direcionadas à potência e não ao poder. Trata-se então de vincular-se às próprias

capacidades, no sentido de assumir a tarefa radical de produzir o que se quer, diretamente,

com os meios disponíveis e a se construir, ainda que se torne necessário inventar o que se

precisa para realizar a vontade coletiva. Erigindo projetos ao lado, entre, para além e

aquém das instituições, ou mesmo dentro delas deslizando possibilidades insuspeitas, o

que acontece em decorrência dessa potência primeira é que as instituições tornam-se

fatalmente inúteis, disfuncionais. No melhor dos casos, perdem sua razão de ser, tornam-

se desnecessárias.

A potência destituinte, em vez de alimentar a luta pelo poder, vincula-se à sua

própria potência a fim de torná-la uma realidade efetiva, o quanto antes. É um tipo de

bricolagem maquínica que inventa com o que tem a satisfação das necessidades e dos

desejos envolvidos. Quando se trata das micropolíticas, mesmo o termo destituição é

imperfeito, porque ele é, conceitualmente, resultado, efeito de uma criação primeira. A

fórmula destituinte pode então ser proferida com maior precisão: quanto mais se cria,

mais se resiste; quanto mais se resiste, mais se ganha em potência. Em decorrência do

aumento da potência, os poderes são subtraídos em seus efeitos. O círculo virtuoso da

potência destituinte promove um tipo de arte marcial micropolítica que encontra os meios

357 Comitê Invisível, “Destituamos o mundo”, in Motim e destituição agora. São Paulo: N-1 Edições,

2017, p. 94.

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247

de realizar super-ações, no sentido de aumentar a potência à medida que se realiza. Não

se trata de vencer, mas de superar. Não a vitória sobre, mas a super-ação, o aumento da

potência. Um combate nômade, uma aritmética política na qual somas e subtrações se

fazem em função da mais otimizada forma de viver e resistir. A revolução cultural

permanente é, além disso, uma máquina de guerra turbinada pela teoria do caos.

No interior das estruturas de controle e dominação, a potência destituinte da

máquina de guerra artística promove distúrbios na ordem estabelecida, não para

disseminar o caos pura e simplesmente, como anseiam alguns niilistas de plantão.

Enquanto demonstram fascínio pela destruição, ignoram os efeitos contraproducentes de

mencionada atitude. O intuito prático da resistência cultural defendida pelo Critical Art

Ensemble é possibilitar o rearranjo dos elementos em jogo, a reorganização da vida

cotidiana diretamente por quem está implicado nela. No lugar da revolução como ideal

de construção do futuro, a aposta na resistência que trata a luta política como um jogo

propenso a desafios, altos e baixos, vitórias e desenlaces probabilísticos. Por meio de seus

arsenais antropotécnicos, propaga seus produtos e dá vida às artes relacionais, mesmo

pedagógicas, com o que, o pensamento crítico, uma outra sensibilidade, a revolta, enfim,

espalham-se como por contágio.

Que o CAE aposte no distúrbio como estética política de resistência não significa

uma postura negativa. Antes, na medida em que o grupo mira na criação de zonas

autônomas temporárias, a potência destituinte se coloca como um meio de afirmar algo

ainda mais fundamental para o grupo. É portanto sinal de que existe uma concepção de

sociedade e sujeito político dotados de funções e propriedades auto-organizativas. A

resistência do CAE se apresenta como uma espécie de engenharia reversa que atua

destituindo os poderes instituídos como um meio de consecução de algo mais importante,

que é a livre expressão do desejo, a realização das potências da vida em experiências de

liberdade e autonomia.

A estética do distúrbio não quer o caos absoluto, mas uma reorganização da vida

sobre bases mais livres. A estética do distúrbio opera, por meio das mais criativas táticas

de intervenção (no espaço público, nas instituições, no campo das ideias, nos processos

de produção das subjetividades, em toda sorte de maquinismos), autênticas máquinas de

guerra que não querem nem produzem a guerra, mas potências destituintes, porque

nômades. Os distúrbios são formas práticas, discursivas, corporais, imagéticas, artísticas,

de desestabilizar os fundamentos da normalidade, os pressupostos pré-conscientes do

poder, os efeitos inibidores dos regimes da verdade.

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248

A Teoria do Caos abriu para a resistência micropolítica a possibilidade de

trabalhar positivamente com as intervenções sem ter que justificar a luta por alguma ideia

de futuro. Primeiro, porque o futuro, nesta perspectiva, escapa a qualquer vontade unívoca

e não pode ser predeterminado, mas tão só pensado como uma noção espaço-temporal

aberta de probabilidades, para as quais se pode no máximo contribuir para que se

atualizem. E em segundo lugar, a suposta ausência de um projeto utópico delineado

previamente, ao invés de indicar niilismo, falta de responsabilidade, afirma um

compromisso ético ainda mais profundo da revolta com sua dimensão coletiva no

processo de transformação da realidade, que abre mão da autoridade do ideal, para se

fazer partícipe de um movimento necessariamente coletivo da construção da vida em

sociedade. Trata-se de uma postura radical, porque afirma a política como construção

direta do ser-no-mundo. Encontra-se aí seu aspecto necessariamente agonístico.

A resistência na cultura, assim definida pelo Critical Art Ensemble, abre-se como

um campo de inúmeras possibilidades a serem exploradas. Cabe aos produtores culturais,

entendidos como os agentes micropolíticos da resistência (os mais diferentes artistas,

escritores, roteiristas, livre pensadores, ativistas não-convencionais, curadores, cineastas,

atores, agentes comunitários, terapeutas, professores, etc.) a tarefa de inventar formas de

intervir no espaço público para abrir a cultura por dentro e libertá-la, seja produzindo

brechas, rachaduras nas instituições, seja forjando fissuras ou portais, justo onde a

experiência da autonomia, a princípio escondida por debaixo das normalidades

cotidianas, parecia difícil eclodir, mas onde a vida pode enfim, com o emprego dos meios

da resistência bem direcionados, expandir-se para além das estruturas calcificadas que

tentam, em vão, a todo custo, embrutecer, alienar e apropriar-se da potência criativa das

subjetividades, individuais e coletivas. Entendida desta maneira, a resistência cultural

desempenha uma função libertária, existencial, micropolítica, atualizando um dos desejos

mais antigos da humanidade de liberar a vida por meio de ações inspiradas no exercício

do livre pensar, desta vez, colocando em prática, diretamente, nas relações sociais dos

seres uns com os outros, e naquilo que produzem, um construtivismo estético, artístico,

cultural, que tem seu fundamento de ser na partilha do sensível.

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249

Tecnologia, Poder Nômade e Pancapitalismo

Na visão do Critical Art Ensemble, a estrutura social contemporânea tornou-se um

campo difuso de poder sem localização e uma máquina de ver como espetáculo: “a

primeira prerrogativa abre caminho ao aparecimento da economia global, enquanto a

segunda age como uma guarnição militar em vários territórios, mantendo a ordem da

mercadoria com uma ideologia específica a cada área”.358 O CAE acompanha com

atenção a passagem de um espaço de poder sedentário para um modelo contemporâneo

de poder nômade que conta com o suporte de uma rede eletrônica.

Desde que a internet e os computadores são disponibilizados para a sociedade

civil, sua popularização desencadeia efeitos políticos, econômicos e culturais que ainda

hoje precisam ser analisados. Antes das populações terem acesso à rede mundial de

computadores, a incorporação de toda a tecnologia digital aos dispositivos econômicos e

políticos reconfigurou quase completamente o campo do poder, tanto na esfera do Estado

quanto nas redes de mercados interconectados, dando origem ao que se denomina

ciberpoder.

Coincidência ou não, a internet e o ciberespaço vieram a público no período após

a derrocada da Cortina de Ferro, acontecimento marcante de uma era cujo significado tem

sido interpretado como a vitória do sistema capitalista em dimensões planetárias. O que

se viu desde então foi a expansão aterradora do capitalismo a despeito de hecatombes,

genocídios e violações ao patrimônio das humanidades, transplantando modelos

dominantes e autoritários dos países ultradesenvolvidos para regiões e continentes

tratados como neocolônias do capital desterritorializado e suas ondas de poder

devastador. Esse mesmo poder cujos signos se desmaterializaram é denominado

criativamente pelo CAE de poder nômade, característico do mais sofisticado modelo do

capital, o pancapitalismo.

Durante muito tempo a sede do poder parecia facilmente identificável. Embora

tenha se multiplicado com as burocracias, era possível definir locais estratégicos nos quais

as resistências podiam atuar para combater o poder. Porém, no final do século XX, o

poder sedentário montou uma estrutura para atuar de forma quase completamente

desmaterializada. O dispositivo que emana o poder, desde então, reside na geografia

virtual mantida por processadores computacionais, bancos de dados e fluxos de

358 Cf. CAE, “Poder nômade e resistência cultural”, in Distúrbio Eletrônico, p. 25.

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250

informação. Seguindo a mesma lógica, o dinheiro tem migrado seu valor para bites

demonstrando que as elites encontraram um campo de atuação que escapa às formas de

resistência tradicionais típicas dos movimentos operários e trabalhistas, assim como dos

movimentos sociais que surgiram com a contracultura.

A arquitetura do poder migrou para o espaço virtual, cujas condições de

possibilidade as tecnologias da informática criaram. Por isso, a resistência cultural,

artística e política precisam rever seus postulados e estratégias. Para o CAE, a tática da

ocupação de prédios e ruas não surte os mesmos efeitos de outrora, a menos que seja

articulada à atuação no ciberespaço. Afinal, do que serve ocupar um prédio estatal se o

governo pode operar até fora da geografia física, agenciando um não-lugar pelas

tecnologias virtuais? O que realmente adianta atacar estabelecimentos multinacionais se

eles podem muito bem se recompor em outro lugar sem maiores problemas? Aliás, essa

realidade é cada vez mais perceptível pois as tendências do mercado tem incentivado as

empresas a migrarem para o comércio virtual, o que tem tornado opcional o

estabelecimento de sedes arquitetônicas.

O poder não se restringe à dimensão física, sua eficácia não depende de

materialização em monumentos arquitetônicos. Na realidade, prescinde da fixação

espacial. O que um dia foi sinal de poder real, sua constituição arquitetônica

correspondente, hoje tornou-se uma mera representação facilmente substituível. Com ou

sem fortificação arquitetônica, o poder nômade não cessa de modular mercados

globalizados, logísticas políticas, bolsas de valores, economias inteiras de capitais

internacionais, inteligências coletivas agenciadas para a produção industrial

desmaterializada, etc. No caso de seus mecanismos de poder serem desafiados de alguma

forma em um espaço determinado, eles movem-se para outro lugar, com rapidez quase

instantânea, deslocam-se com maior ou menor eficácia, simplesmente porque a agência

que opera a máquina do poder não é fixa, estável nem visível. A elite planetária

desaparece atrás das tecnologias de ponta.

Em 1994, a análise que o CAE faz da nova estrutura de poder leva-o a concluir

que as ruas não são mais lugares tão importantes para atuar pois a elite do poder nem o

capital se interessam mais por elas. Na realidade as cidades e suas ruas são abandonadas

à própria sorte. O desprezo do estado e do capital pelo espaço público faz com que as ruas

sejam invadidas pelo crime e pelas enfermidades, como uma clara demonstração de que

não possuem mais valor para os agentes estatais ou corporativos. Se elas fossem

realmente importantes, então não estariam em tão péssimas condições.

Page 251: critical art ensemble - UFRN

251

Parece que essa tendência tem sido assumida pelas elites e pelas frações de classe

que operam o poder estatal. Nas metrópoles, as ruas e os espaços públicos são relegados

à criminalidade e à insegurança, e em seu lugar, prosperam os bunkers do pancapitalismo:

shoppings centers, condomínios fechados e demais espaços privados que oferecem um

simulacro de segurança e familiaridade em troca da autonomia e da liberdade dos

indivíduos.

O modelo contemporâneo de poder nômade conseguiu atualizar uma estratégia

antiga colocada em prática pelo Império dos Citas. O CAE desenvolve uma argumentação

baseada na obra As Guerras Pérsicas de Heródoto.359 Os citas conseguiram resistir à

colonização principalmente pela forma de vida nômade de suas hordas. Sem cidades ou

territórios fixos para manter e desenvolver, esse povo não podia ser localizado facilmente,

tanto por seu estilo de vida nômade, quanto devido à geografia que habitavam, a zona

inóspita e de difícil acesso ao norte do Mar Negro, com um clima igualmente desafiante.

Além de conseguir manter sua autonomia por meio do movimento, antes mesmo

de serem encontrados, os citas frequentemente empreendiam ofensivas militares valendo-

se da vantagem da surpresa sobre seus oponentes. Com isso, uma zona flutuante, sem

fronteiras estabelecidas, era mantida em torno de pontos de atuação das hordas,

garantindo assim sua autonomia.

Os citas não faziam da ocupação espacial sua estratégia de poder, pois para eles o

poder não era uma questão de ocupação, mas de movimento. Por isso, vagavam de um

ponto a outro pilhando, cobrando impostos e fugindo antes de uma reação se formar, para

logo depois desaparecerem no horizonte sem pistas, deixando atrás de si o espectro do

temor e a amostra de seu poder.

Assim, conta-se, os citas construíram um império invisível que se espalhou pela

Ásia e se estendeu até o Egito por cerca de 27 anos. O preço para manter esse império era

não estabelecer guarnições ou posses territoriais fixas. O que era uma vantagem, por outro

lado, mostrou-se o ponto fraco dos citas, pois seu império logo tornou-se insustentável.

No entanto, o modelo arcaico de poder nômade conseguiu evoluir para um meio

sustentável na atualidade pois encontrou nas tecnologias eletrônicas e digitais seus

dispositivos para distribuir os efeitos de poder em praticamente qualquer lugar. Desta

forma, o modelo arcaico de distribuição de poder foi de certa maneira atualizado pelas

359 Cf. CAE, Distúrbio Eletrônico, p. 23-24.

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252

elites do poder nômade, valendo-se de aparatos tecnológicos produzidos e apropriados a

objetivos praticamente idênticos aos dos citas.

Fortemente influenciado pelas teorias de Foucault e Deleuze, o CAE percebe o

poder operando anonimamente no ambiente pós-industrial em parte considerável do

mundo.360

Enquanto o poder é pensado na filosofia política moderna segundo um modelo

jurídico ou econômico, em termos de soberania, direito ou posse, a analítica conduzida

por Foucault demarca uma definição distinta e trata o poder como tecnologia. A analítica

do poder demonstra que o poder funciona e se exerce a despeito dos limites jurídicos, é

da ordem pragmática das relações e não uma coisa ou algo que se possui, porque,

concretamente, se exerce em atos, e como não está na posse de alguém em especial ou de

um grupo privilegiado, o poder é anônimo e circula entre os sujeitos, as instituições e os

saberes e se espraia por todo o campo social de uma ponta à outra em virtude de seu

caráter penetrante, dispersivo e capilar.361

A microfísica do poder de Foucault enfatiza com originalidade o caráter produtor

e positivo das tecnologias e dos dispositivos de poder. Para ele, indo além de uma

concepção puramente negativa, o poder possui uma natureza produtora mais do que

propriamente repressiva. Na realidade, o poder produz, induz, incita, fabrica, e mediante

relações de poder perpetuadas pelos sujeitos implicados nos processos, constitui o próprio

indivíduo. Nessa perspectiva, o poder apresenta um aspecto produtor de realidades, no

sentido da fabricação de corpos, comportamentos, identidades e desejos dos sujeitos;

assim como das discursividades e estratégias de dominação segundo determinadas

instituições estabelecidas; mas que também fomenta reações, recusas, resistências e tudo

o mais que se pode depreender de um campo complexo de estratégias, no qual o que está

em jogo são relações de forças, disputas, conflitos e lutas.362

As genealogias da modernidade europeia empreendidas por Foucault identificam,

a partir da análise microfísica dos poderes, a coexistência de dois dispositivos de saber-

poder que, embora não se encontrem no mesmo nível, enredam o sujeito para produzi-lo

360 Cf. Gregory Sholette, “Disciplining the avant-garde: the United States versus The Critical Art

Ensemble”, p. 4. Trata-se de um ensaio que apareceu primeiramente em 2005 no jornal CIRCA:

Contemporary Visual Culture in Ireland. Circa. No. 112 (Summer, 2005), pp. 50-59.

Disponível em: http://www.neme.org/texts/disciplining-the-avant-garde Acesso 18 de julho de 2019. 361 As noções de microfísica do poder, anátomo-política, mecânica e máquina do poder são aplicadas por

Michel Foucault ao poder disciplinar, e podem ser encontradas no final do primeiro capítulo da obra Vigiar

e punir. Petrópolis: Vozes, 1987, p. 26ss. 362 Cf. Michel Foucault. Em defesa da sociedade: curso no Collège de France (1975-1976). São Paulo:

Martins Fontes: 1999, p. 32-40.

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253

no campo de forças das sociedades disciplinares.363 Primeiro, o dispositivo disciplinar,

que se desenvolve no século XVIII nas escolas, nas prisões, nos hospitais e nos quartéis,

voltado para o indivíduo, com suas técnicas de fabricação normativa dos corpos em

termos de utilidades produtivas e efeitos de vigilância sob regimes panópticos de

visibilidade (anátomo-política do tempo e do espaço, lógica dos corpos em confinamento,

individualizados). E em segundo lugar, o dispositivo do biopoder, que surge no final do

mesmo século (época da emergência capitalista) e investe sobre o corpo vital da

população tomado como fenômeno de massa (regulação populacional, regência numérica

e estatística de grandes massas humanas, controle de natalidade e mortalidade, políticas

sanitárias, gestão da vida, etc.).364

A modernidade europeia foi moldada pelo desenvolvimento de tecnologias e

dispositivos que tomam os corpos individual e social como alvos de saber e poder. No

decorrer do século XX, no entanto, o modelo disciplinar nas sociedades ocidentais passa

por dificuldades e entra em crise. Foucault é o primeiro a alertar:

A disciplina, que era eficaz para manter o poder, perdeu uma parte de

sua eficácia. Nos países industrializados, as disciplinas entram em crise.

(...) Nos últimos anos, a sociedade mudou e os indivíduos também; eles

são cada vez mais diversos, diferentes e independentes. Há cada vez

mais categorias de pessoas que não estão submetidas à disciplina, de tal

forma que somos obrigados a pensar o desenvolvimento de uma

sociedade sem disciplina.365

Essa constatação é crucial pois, a partir dela, começa-se a pensar que dispositivo

de poder entra em cena nas sociedades cujas instituições disciplinares se enfraquecem, ou

ainda, qual lógica se impõe desde então. Coube a Deleuze anunciar de forma pioneira a

passagem das sociedades disciplinares para as sociedades de controle, caracterizadas por

novas tecnologias de poder que tratam o indivíduo como alvo micropolítico segundo uma

reconfiguração dos dispositivos de saber-poder.366

363 Para uma introdução às genealogias empreendidas por Foucault, ver Roberto Machado, “Por uma

genealogia do poder”, in Microfísica do poder. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2015. 364 No curso do Collège de France (1975-1976), Foucault apresenta uma síntese de suas pesquisas

genealógicas na qual identifica e distingue dois tipos de poderes, o disciplinar, descoberto nas pesquisas

sobre a história das prisões, e o poder biopolítico, uma “biopolítica da espécie humana” colocada em prática

por instituições estatais e governos que tomam por alvo de seus investimentos as populações. Cf. “Aula de

17 de março de 1976”, in Em defesa da sociedade, p. 289. 365 Michel Foucault. Ditos & escritos IV: estratégia, poder, saber. Rio de Janeiro: Forense Universitária,

2006, p. 268. 366 Cf. Gilles Deleuze. Conversações. São Paulo: Ed. 34, 2008, p. 219-226.

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254

Após a Segunda Guerra Mundial, as técnicas disciplinares e biopolíticas se

desenvolvem com maior intensidade, reativando dispositivos de aprisionamento e gestão

da vida: proliferação de prisões, manicômios, asilos, e também, desenvolvimento de

políticas estatais sanitárias e demográficas de caráter eugenista, etc. Contudo, ao mesmo

tempo em que se intensificam, sofrem o impacto de novas forças no interior das quais as

antigas técnicas de poder se acoplam cada vez mais a outro dispositivo que se vai

montando nesse período. A partir daí surge uma tensão entre o modelo disciplinar e o de

controle que se prolifera pouco a pouco no campo social. Na realidade, os modos de

sujeição das sociedades de controle se superpõem às técnicas disciplinares e passam a

coexistir no campo social de modo que as redes de poder e assujeitamento se tornam cada

vez mais invasivas.

As sociedades de controle anunciadas por Deleuze compõem com as antigas

técnicas de poder um novo dispositivo com o qual o controle dos corpos se dá de maneira

contínua e não mais localizada no interior das instituições. Nesse novo dispositivo, já não

se passa de um seguimento a outro – família, escola, exército, hospital, fábrica, prisão –

como outrora, segundo o princípio do molde. Nas sociedades de controle, a lógica é tal

que os espaços de poder parecem se confundir e as funções sociais que exigem adesões

dos sujeitos não são mais localizadas nem fixas. Concretamente, o controle se dá mediante

uma modulação reiterada e contínua em todo o campo social: trabalho em casa, escola na

empresa, policiamento e vigilância ostensivos dentro e fora das instituições, nas ruas, nas

mídias de massa, etc. Na lógica do controle não interessa confinar para disciplinar, mas

sobretudo modular, seja onde for: a atenção, o comportamento, os afetos, os papeis e o

sujeito – a cada instante, mesmo em trânsito, nos deslocamentos e sempre que possível

em tempo real. Portanto, a nova lógica do poder não é mais fixa, senão que dinâmica,

dada a quantidade e a mobilidade das tecnologias difundidas na vida cotidiana.367

As próprias tecnologias humanas cresceram em número e se complexificaram com

seus exércitos de técnicos voltados para a vigilância contínua. Nos ambientes econômico,

industrial e empresarial, uma reformulação da divisão social do trabalho passou a exigir

técnicos com novas especialidades, da segurança do trabalho até gerentes de controle de

qualidade e seus séquitos de supervisores, a fim de aumentar a produtividade, a qualidade,

a eficiência e o regime de velocidade ao nível máximo. Ao mesmo tempo, o modelo

produtivo correspondente das novas formas de empreendimento capitalistas passou a ser

367 Cf Gilles Deleuze, Conversações, p. 220-224.

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255

a empresa com seus agenciamentos flexíveis, o que gerou mudanças consideráveis no

modo como os funcionários devem se portar desde então. Por outra parte, no âmbito das

ruas, no trânsito das avenidas, nos centros comerciais, nas paragens públicas, a vigilância

ganhou destaque crescente junto com os agentes que materializam as tecnologias de poder

como policiais, seguranças e agentes secretos, vigilantes, guarda-costas, detetives, etc.

No pós-guerra, todas as tecnologias humanas e seus agentes foram acoplados a

novos dispositivos que propiciaram um incremento de poder e possibilidades de controle

e vigilância nunca antes vistas. Socialmente, o fenômeno da vigilância tornou-se uma

questão prática a ser tratada na sua dimensão política e econômica por governos,

instituições, empresas e até homens comuns, que desde então contam com diversos

aparelhos tecnológicos para esse fim.

Com eficácia, o avanço tecnológico nos mais variados campos, da guerra aos

laboratórios, das mídias aos registros burocráticos, dos sistemas computacionais à ciência

cibernética, contribuiu fortemente com a fabricação de um novo dispositivo maquínico

que se pode denominar ciberpoder. Esse dispositivo produz um novo regime de

dominação que se vale de aparatos maquínicos tais como os meios de comunicação de

massa, rádio, televisão e cinema, assim como, na sua versão mais atual, bancos de dados,

computadores, internet, celulares e demais derivados que integram e colocam em circuito

os corpos, as mentes, os discursos, as imagens, os seres e as coisas.

O agenciamento de todos esses componentes conectados resulta na transformação

das antigas instituições, organizações e relações, dando origem a um novo regime de

dominação que vem afetando com pungência tanto a produção das subjetividades quanto

as formas de administração e controle internos às nações sobre a própria população.

Com efeito, a nova maquínica do ser passa a operar mediante uma tecnologia de

poder em que os circuitos pressupõem subjetividades conectadas em redes, criando assim

um fenômeno recursivo: o produto do ciberpoder, o sujeito equipado e inserido nos

sistemas homens-máquinas, é o que confere ao poder sua efetiva existência, encarnada e

maquínica, com a complicação, porém, de que a própria subjetividade pode se apropriar

das maquinarias, em tempo real e de forma remota, para inumeráveis fins, inclusive,

subversivos e de resistência. É no entrecruzamento das tecnologias eletrônicas e digitais

com a revolta que emergem os agentes da resistência como o Critical Art Ensemble.

Doravante, novas tecnologias da vigilância e do poder se desenvolvem fora do

eixo das prisões e das instituições fechadas em si mesmas que erigiam dispositivos

disciplinares para atuarem sobre os indivíduos com fins de incitar determinadas formas

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256

de comportamento, seja nas fábricas, nas escolas, nos asilos, nos quarteis militares. Além

da manutenção dos panópticos nos espaços fechados e disciplinares que sobrevivem

reconfigurados, outras formas de vigilância se adaptam ao mundo da mobilidade e das

altas tecnologias com suas câmeras e drones que podem estar em qualquer lugar.

Deleuze diz que “o estudo sócio-técnico dos mecanismos de controle, apreendidos

em sua aurora, deveria ser categorial e descrever o que já está em vias de ser implantado

no lugar dos meios de confinamento disciplinares, cuja crise todo mundo anuncia”.368

Ainda que as máquinas não sejam determinantes, elas exprimem as formas sociais

capazes de lhes dar nascimento e utilizá-las. Depois das sociedades de soberania, com

suas máquinas simples, alavancas, roldanas e relógios, as sociedades disciplinares do

capitalismo industrial deram origem às máquinas energéticas. O século XX viu nascer

gradativamente uma terceira geração de máquinas técnicas, desta vez, da ordem

informática e computacional, compondo a nova maquínica do ser que deu origem à

cibercultura. O que se vê com isso é o processo de fabricação de uma composição

maquínica que se desenvolve junto a uma produção vertiginosa de práticas discursivas

(técnicas, tecnológicas, científicas, informacionais e cibernéticas), o que resulta na

transformação das antigas instituições, organizações e relações, dando origem um novo

regime de dominação.

O ciberespaço produziu uma nova dimensão virtual na qual os mundos subjetivos

fluem em uma trama de manipulação, incitação e capturas, formando e modulando

subjetividades alimentadas com furor pelas indústrias socioculturais dinâmicas e suas

microrracionalidades que operam a lógica da acumulação de capitais em todas as suas

formas: financeiro, econômico, político, tecnológico, epistemológico, imagético e

subjetivo. Assim, a metamorfose do poder sedentário, baseado na ação de corpos sobre

corpos (típico das sociedades disciplinares), em poder nômade, mediado por altas

tecnologias provenientes da revolução informacional-digital, proporcionou uma estrutura

cibernética para as elites atuarem em um outro tipo de espaço liso de âmbito

transnacional, ou mesmo anacional, rompendo fronteiras geográficas e políticas até então

fortemente controladas pelos Estados-Nações.

A própria ideia de vigilância se transforma tornando-se mais suave no momento

da desestruturação das instituições sólidas.369 Valendo-se de meios sofisticados de

368 Cf. Gilles Deleuze. Conversações, p. 225. 369 Parte da argumentação apresentada aqui teve seu primeiro formato no artigo “Civilização, tecnologia e

poder na modernidade líquida”, de Lucas Fortunato e Alexsandro Galeno, publicado no Dossiê “Educação,

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257

tecnologia, na realidade, quanto menos a vigilância se mostra, mais pretende prender e

fisgar para o controle, como a imagem de uma teia de aranha pode aludir. Décadas atrás,

Bertolt Brecht escreveu um poema para os revolucionários não deixarem pegadas nem

pistas em seu caminho como forma de evitar perseguições. Hoje em dia tornou-se muito

complicado passar despercebido aos olhos biônicos do ciberpoder, que registra cada

detalhe, ainda mais quando os sujeitos contribuem voluntariamente (por vezes sem

consciência de que o fazem) com o sistema de controle.

Imagem 48 – Imagem do CAE que abre o capítulo “Nomadic power and cultural resistance” do livro The Electronic Disturbance.370

Artes e Tecnologia” na Revista Inter-Legere – Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais da

Universidade Federal do Rio Grande do Norte, Natal, v. 1, n. 23, jul/dez 2018, p. 94-114.

Disponível em https://periodicos.ufrn.br/interlegere/article/view/15878 Acesso 1 de agosto de 2019. 370 CAE. The Electronic Disturbance. New York: Autonomedia, 1994, p. 10.

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258

Na perspectiva de Zygmunt Bauman, agora é a vez da era pós-pan-óptico, com

uma tecnologia móvel, dinâmica, adaptativa, modular e recombinante, pois, com esses

caracteres, torna-se mais capilar e capaz de penetrar no tecido social como nunca antes,

de forma suave e mesmo imperceptível.371 O que se vê é o desenvolvimento de

tecnologias limpas, miniaturizadas e automáticas que multiplicam os campos de

visibilidade e registros para a atuação do poder, como smartphones, câmeras, drones,

gravadores, etc.

O questionável de tudo isso é que, no labirinto formado pela cidade equipada, o

poder penetra de tal maneira na dimensão cotidiana, in e outdoors, que ameaça a esfera

privada e íntima. Com a miniaturização dos dispositivos, no caso das microcâmeras e dos

drones, a situação se agrava ainda mais pois as condições técnicas dadas possibilitam a

invasão praticamente imperceptível de espaços outrora reservados tão só ao âmbito

privado. Os drones são um caso à parte, pois estão se miniaturizando até o limite de se

tornarem invisíveis, ao passo que podem captar informações de outra forma impossível

de conseguir. No pior dos casos, podem ser projetados para decidirem autonomamente

sobre o que fazer em determinadas circunstâncias.

Não bastasse isso, no campo social em que impera o modelo administrativo das

empresas flexíveis, uma nova espécie de panoptismo pessoal se desenvolve junto com a

lógica da formação profissional contínua, que exige do sujeito uma consciência voltada

sobre si mesma para autovigiar-se mediante o imperativo do it yourself. Ademais, a quase

onipresença das câmeras e sistemas de vigilância pode gerar nos sujeitos uma paranoia

reativa que aloja na consciência o correlato de um drone no plano psíquico, a saber, um

superego que corresponde, na psique, à tecnologia panóptica externa, algo como um drone

imaginário produzido pela inserção do sujeito no labirinto da arquitetura moral tomada

pela vigilância líquida e descentralizada. É o que o CAE denomina o micro-bunker da

reificação que se instala na subjetividade.372

Ao mesmo tempo, além da esfera pública ser invadida pelos dispositivos de poder

panópticos, a dimensão íntima é capturada nas redes sociais que, no ciberespaço, por

vezes ganha prevalência sobre a dimensão comum. O contraste da vigilância encontra

aqui seu aspecto mais inquietante, contando com a conivência dos próprios sujeitos: a

vigilância que adentra a esfera privada com os sistemas de informação, e a dimensão

371 Cf. Zygmunt Bauman, “A vigilância líquida como pós-pan-óptico”, in Vigilância líquida. Rio de

Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2014. 372 Cf. CAE, “Resisting the bunker”, in Electronic Civil Disobedience, p. 37

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259

íntima que se abre ao campo público por meio das redes sociais e dos blogs, somam-se a

uma superexposição produzida pelo próprio sujeito.

Curiosamente, com a adesão massiva às redes sociais há indícios de que o medo

da humilhação diante da possibilidade de ser esquecido e colocado de lado dos laços

sociais repercute à sua maneira nas novas mídias e nos relacionamentos virtuais. O

narcisismo gregário parece combinar muito bem com o fenômeno da vaidade egóica que

sente necessidade de reconhecimento. Um sinal disso, as redes sociais produziram um

lugar por vezes apropriado pelos usuários como verdadeiros confessionários pós-

modernos, que substituem a figura do confessor pessoal, religioso ou psicanalista, para se

estender ao circuito de todos os perfis conectados. Disso resulta a hiperconectividade e a

superexposição a que aderem milhões de indivíduos ávidos por visibilidade, atenção,

reconhecimento, notoriedade e admiração, compondo um sistema de autoexposição no

qual os próprios sujeitos se vigiam mutuamente mediante uma servidão voluntária, e onde

as esferas privadas e públicas se confundem ou se tornam indiscerníveis.

Assim, o poder se sofistica ao ponto de se realizar em cada indivíduo sem recorrer

necessariamente à coerção, pois apela para artifícios que seduzem, encantam, dirigem-se

à curiosidade, ao desejo e ao entretenimento no palco das imagens veiculadas pelas

antenas e ondas cibernéticas, resultando em impulsos e subjetividades engrenadas nos

circuitos do ciberpoder.

Com a implantação dos sistemas informacionais que são a estrutura maquínica do

ciberespaço, e na medida da conexão com eles, quanto mais os sujeitos se movimentam,

mais rastros são deixados. Assim, os indivíduos tornam-se vulneráveis aos poderes de

cibervigilância ainda que não queiram, o que pode ocorrer mesmo nos campos do

consumo, do entretenimento e da diversão. Quando a vigilância é incorporada como algo

normal, de alguma maneira torna-se sedutora, prazerosa, por isso a entrega de bom grado

aos sistemas de informação, segurança e controle. Inclusive, há todo um discurso que

afirma a positividade de se adaptar ao jogo da vigilância consentida, sempre com

justificativas de possíveis ganhos para o sujeito ou para a sociedade.

Entretanto, quanto mais são categorizados ou tomados em dispositivos de poder,

os indivíduos tornam-se menos singulares e humanos e são manipuláveis como dados

estatísticos apropriados por corporações estatais e privadas. Nos sistemas de informação,

como em uma esteira que se estende virtualmente a todo o campo social, os indivíduos

são vigiados, checados, registrados e controlados sucessivamente. Quando fazem

compras on line, transações bancárias, respondem a questionários, disponibilizam seus

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260

dados, fornecem senhas, registram passos, deixam pistas em históricos armazenamos por

empresas privadas e assim por diante. Eis que a máxima de Pierre-Joseph Proudhon

atualiza-se em bases tecnológicas inimagináveis no século XIX: “Ser governado é ser,

em cada operação, em cada transação, em cada movimento, notado, registrado, arrolado,

tarifado, timbrado, medido, taxado, patenteado, licenciado, autorizado, apostilado,

admoestado, estorvado, emendado, endireitado, corrigido”.373 O indivíduo, mais do que

nunca implicado nos poderes anônimos e automatizados, governado em seus mínimos

detalhes.

Porém, do mesmo modo como as conexões se fazem, de maneira banal, as

desconexões também. Nas sociedades com relações densas e estreitas é difícil se infiltrar

porque as pessoas estabelecem vínculos duráveis com significações profundas, ao passo

que no mundo líquido, os elos são frágeis e fragmentários. Na medida em que as relações

são consideradas intercambiáveis do ponto de vista virtual, a conexão e a desconexão

tornam-se o modelo mais fácil para lidar com as mudanças e a superficialidade dos laços

sociais. Tudo se passa como se a lógica da mercadoria praticada nas redes sociais virtuais

(a da utilidade, da aparência e do fetiche) repercutisse de forma análoga na esfera das

relações pessoais. Do mesmo modo que as mercadorias são descartáveis, as relações com

os outros adquirem valores de uso e de troca, tornando-se, em decorrência disso,

igualmente permutáveis.

Com efeito, das sociedades marcadamente disciplinares e portanto panópticas, as

atuais sociedades tornam-se pós-panópticas com o surgimento de outros dispositivos de

poder como o sinóptico, que modifica os papeis dos agentes: enquanto no dispositivo

panóptico poucos vigiam muitos, no sinópticos muitos vigiam poucos. A lógica típica da

sociedade espetacular, portanto, inverte-se. Devido aos meios de comunicação de massa

e ao patamar de desenvolvimento do aparato maquínico nas sociedades líquidas, milhões

de pessoas que compõem as massas de expectadores prestam-se ao papel de seguir

virtualmente personalidades midiáticas, políticos, artistas e celebridades do momento,

personagens que se destacam no espetáculo produzido para as massas cênicas

midiatizadas.

373 Cf. Pierre-Joseph Proudhon, in Proudhon (textos escolhidos). Daniel Guérin (seleção e notas). Porto

Alegre: L&PM, 1983, p. 79: “É, sob pretexto de utilidade pública, e em nome do interesse geral, ser pedido

emprestado, adestrado, espoliado, explorado, monopolizado, concussionado, pressionado, mistificado,

roubado; depois, à menor resistência, à primeira palavra de queixa, reprimido, corrigido, vilipendiado,

vexado, perseguido, injuriado, espancado, desarmado, estrangulado, aprisionado, fuzilado, metralhado,

julgado, condenado, deportado, sacrificado, vendido, traído e, para não faltar nada, ridicularizado,

zombado, ultrajado, desonrado”.

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261

No livro Vigilância líquida Bauman ainda trata de um outro dispositivo que se

apropria do poder panóptico para voltá-lo a grupos específicos. O dispositivo assim

denominado banóptico está ligado à noção de insegurança e não de disciplina. O

banóptico fabrica um olhar que discerne, seleciona, categoriza e estigmatiza, segundo

critérios estabelecidos, um determinado grupo arquetípico para melhor excluí-lo. Como

tal, esse dispositivo nada mais é do que uma especialização do panóptico, que direciona

o poder e a vigilância a um conjunto considerado refugo humano a ser isolado e mantido

sob controle.

O banóptico vem satisfazer a um anseio ainda mais penetrante da vontade de

controle, ao operar um dispositivo de vigilância que se pretende preventivo em relação às

possibilidades do que pode vir a acontecer. Dado o contexto, determinados perfis são

elaborados para isolar indivíduos tratados como potencialmente perigosos e suspeitos,

como ocorreu imediatamente após os atentados de 11 de setembro nos Estados Unidos.

Na medida em que a vigilância de prevenção se materializa em uma antecipação logística

do campo possível de acontecimentos, o banóptico opera com filtragens baseadas em

características previamente programadas e que podem ser estéticas, étnicas,

comportamentais, culturais, etc., características estas que são computadas como variáveis

a serem isoladas do conjunto mais amplo vigiado a fim de que o controle no espaço e no

tempo seja otimizado ao máximo. Para tanto, são criados perfis aplicáveis a determinados

grupos, por vezes, minoritários considerados marginais, como forma de, em seguida, a

partir de categorias de exceção, executar o banimento que isola, ostraciza e exclui os

indesejados. Com relação ao problema das imigrações, por exemplo, o banóptico

funciona de uma forma mais aberta e perceptível nas zonas fronteiriças, afinal, o controle

do tráfego de pessoas e mercadorias pressupõe uma vigilância permanente, e o dispositivo

banóptico desempenha uma função importante quanto a isso.

Uma outra questão crucial que se percebe na modernidade líquida é a separação,

identificada por Bauman, entre poder e política. Como um anel recursivo, a vigilância

líquida estimula a disjunção entre a esfera política e os poderes: quanto mais os poderes

se proliferam com a produção de novos dispositivos por instituições, empresas e

megacorporações, mais se produz realidades a despeito de quaisquer considerações

políticas. O poder separado da política se exerce na dimensão global, e como se infiltra

na vida cotidiana com os fluxos mercadológicos, comunicacionais e informáticos em

escala planetária não há para ele fronteiras bem definidas. Nem há também qualquer tipo

de regulação minimamente democrática sobre a produção tecnológica. Ao passo que a

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262

política propriamente dita limita-se cada vez mais aos ditames do mercado glocal que

ameaça toda soberania, fragilizada pelas constantes interferências dos fluxos e das

produções planetárias que se revelam desde dentro até fora. Tudo se passa como se a

política tivesse que lidar com uma profusão de fluxos e tecnologias que escapam aos

códigos jurídicos e exercem assim uma pressão sobre as esferas políticas da sociedade

civil, sobre os aparatos estatais e mesmo militares.

Dadas as atuais condições sociotécnicas da informática e da comunicação nas

sociedades de controle, há um tipo de poder que opera de maneira desterritorializada, ou

seja, sem território físico do qual dependa ou que tenha a necessidade de defender.

Dificilmente os centros de tal poder podem ser identificados, se é que existem de fato

geograficamente. Trata-se de uma realidade que, como o capital, no seu conjunto é

abstrata para o pensamento. Não se presta a análises totalizantes. Opera de tal forma a se

fazer perceber em seus efeitos, eis tudo.

Ao mesmo tempo, as técnicas de vigilância privadas proliferam o poder de

visibilidade; as máquinas de visão eletrônica instalam o olho biônico dos poderes em cada

esquina bem movimentada, nos estabelecimentos comerciais, nas agências públicas e nas

residências fortificadas. Com isso, o poder autoritário reforça a si mesmo com o espectro

da insegurança e da criminalidade. A façanha do poder na idade da técnica planetária é

fazer com que os sujeitos desejem o poder em suas vidas e nos mínimos detalhes,

conformando uma verdadeira servidão maquínica voluntária, para lembrar a fórmula de

La Boétie.374

A questão se torna mais complexa quando se tenta identificar quem está por trás

dos poderes econômicos e políticos. Embora seja possível apontar pessoas à frente de

nações, estadistas, parlamentares, gestores de grandes corporações, o macropoder não

possui rosto e se torna conhecido por meios de representações que no fundo nada mais

são do que especulações. Ainda que pudessem ser nomeados, a situação é tal que seria vã

qualquer tentativa de responsabilizar indivíduos por um fenômeno cuja realidade e função

autonomizadas escapam à agência humana. Sua realidade pode ser no máximo

diagnosticada em suas repercussões no mundo prático, porém, em termos concretos,

realiza-se para as pessoas em efeitos cujas causas primeiras e últimas escapam à

compreensão. O que Marx havia identificado com relação à mercadoria, acomete o poder

nômade: sua realidade adquire uma forma fantasmática em decorrência mesma da

374 Étienne de La Boétie. Discurso sobre a servidão voluntária. São Paulo: Edipro, 2017.

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complexidade e da velocidade com que se realiza, muito além da frágil compreensão das

pessoas. No campo especulativo assim aberto, reinam as opiniões conspiratórias, os

delírios paranoicos, as hipóteses hiperbólicas. Ou no caso da filosofia, das ciências sociais

e políticas que tentam acompanhar as metamorfoses do mundo hodierno, cartografias,

modelos de interpretação aproximativos, conceitualizações parciais, sempre feitos com a

urgência que a época reclama.

No curso de um século de capitalismo internacionalizado tudo o que era sólido se

desfez. A estrutura do poder nômade identificada pelo CAE na década de 1990 é o

resultado da ascensão da economia capitalista globalizada. Desde então, os estados

nacionais, quase sempre, perdem sua soberania face aos processos econômicos de que

necessitam para prover a subsistência de seus quadros populacionais. Bauman identifica

a causa desse fenômeno na separação cada vez mais evidente entre a política e o poder.

Enquanto a política diminui sua eficácia na direção dos fluxos e agenciamentos sócio-

políticos devido à expansão do poder econômico, o poder ganha em autonomização face

à gerência humana, adquirindo movimento, destinação e eficácia próprias, a despeito da

consideração política.

Rompida a fronteira física e geográfica, o poder nômade floresce na ausência e os

monumentos do poder estatal e corporativo, facilmente identificáveis outrora, veem-se

tomados e atravessados pelas autopistas da informação desmaterializada que torna o

poder, a eficácia e o funcionamento de economias inteiras uma questão tecnológica de

altíssima complexidade. Doravante, ao invés de cérebros humanos, um cibercérebro

composto de algoritmos e microprocessadores opera a máquina pura do pancapitalismo.

No decorrer do processo de globalização do capitalismo, com a divisão

internacional da produção, o poder também se espalhou ocupando de distintas formas os

mais diversos espaços geográficos, urbanos, sociais e também tecnológicos. A expansão

capitalista suplantou primeiro as distâncias geográficas, ultrapassando fronteiras políticas

e comerciais, instalando seus meios de capitalização material, financeiro, bancário,

cultural em cada recanto onde algum lucro se mostrasse viável. Os Estados nacionais

tiveram que lidar com as pressões do poder econômico transnacional, e junto da expansão

do capital, o poder se descentralizou. Assim, o capital tornou qualquer tentativa de

mudança radical das estruturas algo ainda mais difícil, dado o intrincado mecanismo

econômico, político e tecnológico constituído então. Tornou-se uma tarefa quase

impossível desmontar um mecanismo tão sofisticado do qual derivam, paradoxalmente,

a vida e a sobrevivência de bilhões de seres humanos na escala mundial

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CAPÍTULO 5

SUBVERTENDO A MÁQUINA:

RESISTÊNCIA E DESOBEDIÊNCIA CIVIL ELETRÔNICA

A Arte Crítica na Era Digital

O CAE projeta-se nos circuitos da arte e do ativismo norte-americano e

internacionais justo no período que, segundo Suely Rolnik,375 o universo da arte é agitado

por uma tendência crítica em resposta à política instalada no globo desde a década de

1970 e que rege ainda neste período, duas décadas depois, os processos de subjetivação.

A passagem da década de 1980 para a de 1990 viu se multiplicar os coletivos de arte, as

investidas da arte engajada politicamente na cultura, experimentando, reinventando,

multifacetadas formas de expressão.

No mesmo período, o advento da internet e o ciberespaço, o computador e as

tecnologias correlatas colocaram ao campo artístico e ao campo cultural uma série de

novas perguntas. Isso ocorre sempre que novos problemas surgem em dada realidade. Os

corpos e o pensamento são afetados pelo que lhes ultrapassa e então surgem

questionamentos, dúvidas, impasses, cujas respostas escapam ao universo de referência

atual, exigindo desta forma a criação de sentidos adequados às questões e aos problemas

do presente. Frank Popper expõe a recepção artística desencadeada pelos desdobramentos

tecnológicos e científicos desse período:

A tomada de consciência desse fenômeno por jovens artistas, mas

também por artistas engajados há muito tempo na valorização de

técnicas para fins estéticos é o ponto essencial nesse desenvolvimento.

É a partir desse momento que se pode falar de uma arte da tecnociência,

de uma arte em que intenções estéticas e pesquisas tecnológicas

fundadas cientificamente parecem ligadas indissoluvelmente e, em todo

caso, se influenciam reciprocamente. No plano mais geral, a invasão

das novas tecnologias em todas as regiões da vida social, com seus

efeitos benéficos, seus sérios perigos e suas enormes possibilidades,

leva cada um de nós a se confrontar com problemas cuja solução não se

acha mais nas lições a tirar das experiências anteriores. Os artistas,

375 Suely Rolnik, Geopolítica da cafetinagem, 2006. Disponível em

https://www.pucsp.br/nucleodesubjetividade/Textos/SUELY/Geopolitica.pdf Acesso 12 de julho de 2019.

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nessa nova conjuntura, se veem investidos de uma nova

responsabilidade; buscam desenvolver propostas visuais que fazem

surgir relações significativas entre as experiências humanas

fundamentais – físicas, psicológicas ou mentais – e as novas técnicas

com seu fundo de pensamento científico.376

O resultado do acontecimento advém não raro de uma crise provocadora de

processos regressivos e criativos. Por vezes, a inspiração traz de volta o legado histórico

à luz da urgência que o presente exige. Eventualmente, as rupturas se dão prontamente

dada a radicalidade com que se formulam as tentativas de produção de sentido. Nas artes,

as respostas são ensaiadas em diversos registros. Podem advir na literatura, nas artes

visuais e plásticas, no cinema, no teatro. E assim também no campo do pensamento

filosófico, ou no âmbito existencial.

Fenômenos como esses não podem ser tratados simplesmente como uma

tendência no sentido midiático. Rolnik insiste neste ponto para enfatizar que o processo

de criação, seja nas artes, seja no pensamento, sempre está vinculado às mudanças ou a

algo de outra natureza que força a inventar o que auxiliará a dar conta do real. Enquanto

a filosofia tende a elaborar repertórios conceituais e discursivos na tentativa de contribuir

com o entendimento do atual, as artes contemporâneas, sobretudo as vertentes engajadas

diretamente nos campos social, cultural e político, desempenham a importante função de

inventar possíveis existenciais, pragmáticos, sensíveis, expressivos, discursivos,

semióticos, visuais, epistemológicos, etc. A realidade tal como se apresenta impulsiona o

pensamento, e a arte desafia a mesma realidade com sua potência criativa que demove os

padrões para dar passagens a outros possíveis, no imaginário, nas condutas, nas formas

de sentir, agir, pensar, relacionar-se e habitar o mundo.

Esse foi um dos desafios encarados pelo CAE, que acompanhou de perto, com

atenção, ceticismo e curiosidade, os desenvolvimentos tecnológicos e científicos de seu

tempo. Com o diferencial de que as questões e os problemas colocados no contato com

as tecnologias se inserem em um questionamento político mais amplo. Para o Ensemble,

não se trata apenas de experimentar as tecnologias esteticamente. A estética é uma das

formas de expressão de algo considerado mais importante, e que passa, primeiro, pela

análise política, sociológica e ética de uma dada realidade, e em segundo lugar, pelos usos

possíveis de todos os meios à disposição da resistência cultural e eletrônica.

376 Frank Popper, “As imagens artísticas e a tecnociência (1967-1987)”, in André Parente (org.). Imagem-

máquina: a era das tecnologias do virtual. Rio de Janeiro: Ed. 34, 2011, p. 203.

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Resistência Eletrônica

Ao longo da década de 1990, no momento em que o Brave New World mostra-se

em todo o seu potencial, o CAE se envolve diretamente com o debate sobre a resistência

eletrônica suscitado pela instauração da internet. O Ensemble posiciona-se à frente na

reflexão acerca da resistência eletrônica e propõe uma análise acurada do fenômeno.

Assim, o grupo projeta-se internacionalmente como um dos primeiros coletivos de artistas

ativistas a tomar a palavra sobre o assunto de maneira lúcida, crítica e prospectiva.

Os dois primeiros livros de autoria do CAE, The Electronic Disturbance (1994) e

Electronic Civil Disobedience (1996), publicados pela editora anarquista Autonomedia,

tocam em pontos cruciais sobre o tema, e delineiam em parte a discussão sobre o ativismo

na internet e no ciberespaço em uma época na qual falar de invasão de sistemas

informacionais, sequestro de dados ou desobediência civil eletrônica parecia mais ficção

científica no melhor estilo cyberpunk do que uma realidade de fato.

Mas há um motivo sociológico e uma inspiração literária para isso. O fato do CAE

atuar nos Estados Unidos, um dos primeiros países a liberar a internet para a sociedade

civil, responde ao primeiro. A inspiração no imaginário cyberpunk, a segunda.

Desencadeado na cultura pop na década de 1980, o imaginário cyberpunk pode

ser lido como um alerta do que as sociedades ocidentais estavam em vias de se tornar.

Megacorporações transnacionais, tráfico de órgãos, pirataria de dados, sabotagens

industriais, decadência do Estado, falência da política, corrupção das relações humanas

submetidas aos imperativos do capital, tecnologia usada para controle e repressão: são

apenas alguns dos fenômenos sociológicos amplamente figurados na literatura de ficção

científica do período, denominada pela alcunha de cyberpunk. Adriana Amaral expõe o

surgimento da expressão:

Se pensarmos em termos de uma “árvore genealógica” do cyberpunk,

temos basicamente três polos geradores: a literatura, as teorias sociais e

a cultura pop. Forças e poderes que interagem e influenciam uma à

outra. A literatura em um ramo que vai do romantismo ao chamado

movimento “cyberpunk” em si, rotulado pelos jornalistas na década de

80; as chamadas teorias da pós-modernidade; e por fim, a aqui

denominada cultura pop através de seus ícones estéticos da cultura

jovem como o rock (em especial, o movimento punk) e a própria cultura

do computador.377

377 Para um estudo pormenorizado sobre o assunto, ver Adriana Amaral. Visões perigosas: uma arque-

genealogia do cyberpunk. Porto Alegre: Sulina, 2006, p. 74.

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267

O elemento cyber advém da cibernética, ramo da ciência da comunicação aplicada

às relações de homens e máquinas conjugados em sistemas input-output. Punk: insígnia

do movimento contracultural surgido no final da década de 1970 na Inglaterra, um dos

países considerados mais prósperos, como expressão da revolta juvenil contra os

imperativos práticos impostos aos indivíduos e às classes pelo capitalismo de seu tempo,

de tons neoliberais. Nesse cenário, o punk designa a postura de negação e combate

daqueles a quem o mundo impõe-se sem apelos, quando então o que lhes motiva é a

revolta acima de tudo.

O imaginário cyberpunk, nesse sentido, adquire um teor incontestavelmente

político. Nas suas produções, mesmo os problemas do indivíduo são diretamente

coletivos, sociais, econômicos, políticos. As realidades ficcionais são elaboradas de uma

percpectiva micropolítica, de forma que os problemas mais cotidianos adquirem um

significado intrigante no interior de uma trama de dimensões grandiosas e mesmo

labirínticas. A literatura com tais inspirações pode ser caracterizada, portanto, como uma

literatura menor, no sentido apreciado por Deleuze e Guattari.378

Autores como Philip K. Dick e William Gibson já haviam formulado em suas

obras um cenário sociológico rico em detalhes, sombrio, repleto de becos sem saídas,

túneis virtuais, armas lasers e tramas soturnas, com violência, autoritarismo e sangue

derramado em uma terra sem lei, na qual computadores, inteligência artificial, androides,

ciborgues, homens e máquinas compõem um jogo mortal somente vencido pelos menos

escrupulosos. O lema implícito no universo cyberpunk é “salve-se quem puder”.

A política das máquinas dirigida aos investimentos tecnológicos salta no cenário

distópico e adquire realidade material, virtual, complexa e assustadora, sob os auspícios

de governos corruptos e autoritários.379 Cada livro, cada conto, cada filme de ficção

científica que projeta o futuro social com a medida da distopia traz em si algo que a verve

cyberpunk delineou muito bem constituindo seu próprio estilo.

Há certamente um tom niilista, desencantado, crítico e até mesmo acusador na

produção cyberpunk, que desde os anos 80 inspira escritores, artistas, intelectuais,

cineastas, produtores culturais e ativistas a lançarem mão do imaginário distópico para

378 Cf, Gilles Deleuze e Félix Guattari, “A literatura menor”, in Kafka ou por uma literatura menor. Rio

de Janeiro: Imago, 1977. “As três características da literatura menor são de desterritorialização da língua, a

ramificação do individual no imediato-político, o agenciamento coletivo de enunciação. Vale dizer que

‘menor’ não qualifica mais certas literaturas, mas as condições revolucionárias de toda literatura no seio

daquela que chamamos de grande (ou estabelecida)”, p. 28. 379 Cf. Fábio Oliveira Nunes, “Cyberpunks”, in Crtl+Art+Del: distúrbios em arte e tecnologia. São Paulo:

Perspectiva, 2010, p. 162.

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advertir, denunciar e dar visibilidade aos problemas existentes no mundo, mas que nem

sempre aparecem para as pessoas e o público como o que realmente são.

Quando motivados pelo senso crítico, os pensadores, artistas, intelectuais,

jornalistas e escritores, tornam-se muitas vezes os porta-vozes da época, os sonâmbulos

ou insones que não se deixam tomar pelos sonhos fabricados nas ilusões hodiernas que

servem para manter a apatia generalizada, ou a alienação reinante nas sociedades do

espetáculo. Despertos ante um mundo dominado por forças tirânicas e instituições

decadentes, eles prefiguram a criação necessariamente múltipla de um pensamento vivo

contemporâneo e portanto questionador, inquieto, às vezes inflamado, que levanta a voz

para acordar os vivos ante a insanidade que se apodera da história recente nas atuais

sociedades de controle.

É o que tenta fazer o Critical Art Ensemble nas suas publicações, ao exercitar a

reflexão crítica com relação ao mundo em que vive e no qual identifica problemas

políticos intrigantes. Quase de imediato, o primeiro título do CAE obtém sucesso no

campo progressista crítico internacional e é traduzido para outros idiomas. A versão

italiana traz estampado na capa um subtítulo indicativo de como a Europa recebe a obra:

Sabotagem Eletrônica: o primeiro grupo americano de crítica e ataque ao mass media.

Com todas as dificuldades que as acontecimentos tecnológicos em torno da

internet e do ciberespaço impuseram à resistência tradicional, a resistência cultural conta

com a contribuição do Critical Art Ensemble. Quando ocorre a liberação do ciberespaço

para a sociedade civil, os membros do grupo estão em plena atividade produzindo suas

artes críticas. Sem qualquer base sólida na qual se apoiar, dada a novidade, eles

acompanham o momento com ceticismo, curiosidade e coragem, exatamente o que se

espera de quem se inspira no imaginário cyberpunk.

Para não ficar para trás frente ao desenvolvimento tecnológico, o CAE assume

então o desafio de pensar e experimentar os novos dispositivos comunicacionais com uma

postura reflexiva, ao mesmo tempo cética e crítica. Enquanto a mídia dissemina em tons

laudatórios uma imagem inteiramente positiva do fenômeno, o grupo, tocado pelo

imaginário distópico da rica produção cyberpunk da época, identifica na geografia virtual

um novo campo político de ação, e por isso destaca a importância da resistência ocupar

seu lugar no cenário virtual.

O debate gira em torno da legitimidade e da vantagem de lançar mão de estratégias

de desobediência civil eletrônica, por meio de táticas hackers que miram sistemas

informacionais estatais e corporativos, para de alguma forma perturbar, bloquear, reter,

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redirecionar, atrapalhar, sabotar empreendimentos e instituições que, por via eletrônica,

digital, tecnológica, tenham efeitos autoritários sobre a vida de indivíduos e grupos nas

sociedades de controle. Trata-se de um debate proposto pelo CAE que é, a um só tempo,

teórico e político, com implicações conceituais e práticas para os prospectos da resistência

no campo mais amplo da cultura e, mais especificamente, da resistência eletrônica.

Imagem 49 – Edição italiana do primeiro livro do CAE: Sabotaggio Elettronico. Il primo gruppo americano di critica e attacco ai mass media.

Castelovecchi, 1995.380

Na analítica do poder empreendida pelo CAE, o elemento tecnológico,

profundamente questionado pelos cyberpunks, desempenha um fator importante e integra

em uma só análise o poder difuso e a máquina de ver do espetáculo.381 Os dois primeiros

livros de autoria do grupo, The Electronic Disturbance e Electronic Civil Disobedience,

são verdadeiros trunfos colocados na mesa para apreciação no jogo da resistência, uma

380 Imagem disponível em

http://libridicasamia.com/upload/articoli/Sabotaggio_Elettronico__Il_primo_gruppo_americano_di_critic

a_e_attacco_ai_Mass_Media_1870.jpg Acesso 27 de julho de 2019. 381 Cf. CAE, Distúrbio Eletrônico. São Paulo: Conrad, 2001, p. 25.

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chamada para os rumos futuros da resistência cultural e artística na idade da

reprodutibilidade informática, cibernética e virtual das artes e da cultura como um todo.

Afinal, qualquer reflexão acerca da capacidade contemporânea de resistir ao poder

precisa considerar a questão da tecnologia da resistência, e em particular a contribuição

da tecnologia digital. A questão da relação da resistência com a tecnologia, embora hoje

seja quase onipresente, com raras exceções foi colocada de modo explícito e direto como

fez o CAE de forma pioneira na década de 1990. A eclosão de acontecimentos políticos

como a Primavera Árabe e o Occupy Wall Street chama a atenção para as estreitas

relações da resistência com as tecnologias digitais.382 Abordar essa estreita conexão nos

tempos atuais como uma temática fundamental leva a considerar a importância de

compreender o fenômeno a fim de melhor avaliar o estado contemporâneo, a capacidade

global de resistir e seus possíveis desdobramentos.

Na perspectiva do CAE, a esquerda continua praticando a desobediência civil ao

modo antigo, dirigindo a força coletiva para determinadas instituições representativas do

poder, e ao fazer isso, comete um erro de análise da estrutura do poder contemporâneo,

que não pode ser mais identificado aos locais físicos, aos prédios, que outrora abrigavam

as autoridades constituídas.

Na idade do pancapitalismo, sucedâneo planetário do capitalismo pós-Guerra Fria,

o poder volatiliza-se, converte-se em uma realidade ubíqua e torna-se finalmente nômade.

Embora concreto, o poder nômade quase se desmaterializa à medida que sua estrutura se

transforma. Conforme torna-se nômade, fica cada vez mais difícil de ser localizado.

Em 1994, o CAE vê com certo ceticismo as típicas manifestações de rua, e aposta

suas fichas na resistência eletrônica, que mostra seus primeiros sinais. Nesse momento, o

raciocínio defendido pelo CAE é formulado claramente. O ativismo tradicional da

esquerda precisa atualizar sua estratégia a fim de se adaptar às mudanças, tirar proveito

das circunstâncias e assim superar as táticas consagradas.

Em parte isso se explica pela presença, na década de 1990, de quadros de ativistas

da chamada “nova esquerda” que tiveram algum êxito no passado e por isso insistem em

atuar de forma semelhante a como agiram outrora. A crítica que o CAE faz à esquerda é

incisiva: a falta de imaginação para inventar novas táticas de atuação na esfera política

parece um efeito de algo mais profundo, um erro de análise da conjuntura. Embora o

campo progressista e mais especificamente esquerdista insista na necessidade de se

382 Cf. Howard Caygill, “The technology of resistance”, in On resistance: a philosophy of defiance.

London: Bloomsbury Publishing, 2015, p. 199ss.

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271

produzir teoria vinculada à prática, ou seja, produzir análises, modelos de interpretação,

conceituações, em estreita ligação com a realidade dada na vida política, econômica e

cultural, ao que parece, em dado momento o vínculo entre pensamento e ação se perdeu,

ou então foi superado pela realidade dos acontecimentos. Como atuantes da resistência

cultural libertária, o CAE não nega os ganhos históricos, políticos e culturais conseguidos

por meio da desobediência civil organizada. A suspeita é que o ativismo dos anos 1990

tenha pouco efeito sobre a política militar e corporativa, se continua a investir tão só na

ocupação das ruas.

Com uma forma que pode lembrar a atitude da vanguarda futurista na sua versão

anarquista, clamando pela inteira adesão ao desenvolvimento das máquinas, o CAE

convoca as artes e as resistências para montar seu teatro de operações no campo de batalha

eletrônico por considerá-lo um lugar estratégico onde os rumos da política e da cultura

parecem se decidir. A verdade é que, de futurista, o CAE não tem quase nada. O fato de

trabalhar a tecnologia, de incorporar a máquina, não implica adesão irrefletida. A crítica

não poupa os aparelhos, seus usos e efeitos, nem as implicações e apropriações políticas.

Do mesmo modo como se fez ao longo do século XX na Teoria Crítica com relação à

razão e o projeto iluminista,383 o CAE se põe a fazer com a tecnologia e a ciência, porém,

à sua maneira, ou seja, de uma perspectiva engajada.

A primeira obra do CAE, Distúrbio Eletrônico, além do que foi dito com relação

aos arsenais antropotécnicos da resistência, é um autêntico manifesto da resistência

eletrônica. Nela, o grupo demonstra como as tecnologias eletrônicas reconfiguram as

relações de poder, e como os produtores culturais, artistas e ativistas podem lançar mão

das mesmas tecnologias para propósitos de resistência.

O livro toca em temas com uma abordagem profundamente atual mas não é muito

bem recebido por parte da resistência tradicional, em parte porque, nos Estados Unidos,

a década de 1990 vive o ápice das políticas identitárias, e há uma revalorização das ações

de rua decorrente de toda a movimentação da crise envolvendo a AIDS (da qual o CAE

participa, para, logo em seguida, mudar seus rumos políticos). Isso faz com que os muitos

vejam com reserva o chamado às armas eletrônicas.384

383 Olgária Matos afirma: “A razão ocidental configura-se, na crítica feita por Adorno e Horkheimer, como

razão de dominação, de controle da natureza exterior e interior, de renúncia e ascetismo”. Cf. “O eclipse da

razão”, in A Escola de Frankfurt: luzes e sombras do Iluminismo. São Paulo: Moderna, 1993, p. 48. Ver

a obra original: Max Horkheimer e Theodor W. Adorno. Dialética do esclarecimento: fragmentos

filosóficos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1985. 384 Cf. CAE, Disturbances. London: Four Corners Books, 2012, p. 112.

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272

Nesse cenário, um dos principais desejos do grupo é alertar a vanguarda

tecnocrática (formada pelos especialistas da informática, programadores, hackers em

potencial), bem como a resistência cultural em geral, sobre a tarefa histórica de

corresponder, de maneira criativa, às forças produtivas disponibilizadas pelos aparatos e

dispositivos que vieram em conjunto formatar a nova estrutura maquínica do ser no

mesmo período. Assim como a cada desenvolvimento das forças produtivas

correspondem necessariamente mudanças nas relações de produção, as tecnologias

digitais (informáticas e comunicacionais, os processadores de texto, som e imagem, etc.)

criaram outras relações de poder e consequentemente de resistência que precisam ser

atualizadas o quanto antes. O CAE abre assim seu livro Distúrbio Eletrônico:

As regras da resistência cultural e política mudaram radicalmente. A

revolução tecnológica causada pelo rápido desenvolvimento do

computador e do vídeo criou uma nova geografia das relações de poder.

Uma nova ordem que há cerca de vinte anos só poderia existir na

imaginação: as pessoas estão reduzidas a dados, a vigilância ocorre em

escala global, as mentes estão dissolvidas na realidade da tela. Surge

um poder autoritário que floresce na ausência. A nova geografia é uma

geografia virtual, e o núcleo da resistência política e cultural deve se

afirmar neste espaço eletrônico.385

Tudo indica que a resistência ouve o chamado do grupo materializado nos

primeiros livros publicados pelo coletivo, pois, com o tempo, diversos artistas e grupos

de ativistas logo se prontificam a montar um teatro de operações no campo virtual com

relação ao qual os rumos da civilização tem se processado desde então.

Por força das circunstâncias, não demora para que as formas de resistência cultural

se transformem radicalmente acompanhando o desenvolvimento da internet e das

tecnologias afins. Hackers, programadores, fotógrafos, designers, jornalistas, escritores e

toda sorte de produtores culturais passam a produzir sites e mídia tática para formar uma

resistência eletrônica. Agenciando as redes de conexões às suas necessidades, a

resistência aos ditames do capital e de toda forma de autoritarismo adentra o universo das

novas mídias do espetáculo, a internet e o ciberespaço, voltando contra a máquina política

dominante suas armas eletrônicas e culturais. Com base nas possibilidades materiais e

tecnológicas, a resistência eletrônica ganha em possibilidades de ação, pois uma vez

apropriados, os dispositivos podem ser revirados contra o poder mesmo que os criou,

desta vez, dando voz e visibilidade à revolta contra a máquina autoritária que opera sob a

385 CAE, Distúrbio Eletrônico, p. 11.

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273

lógica do capital planetário.

Aliás, colocando em questão a tecnologia, a ciência e o capitalismo, a arte crítica

do CAE forja com astúcia uma práxis correspondente às forças produtivas que resultaram

na formação da cibercultura. Afinal, para que os artistas, ativistas e produtores culturais

acompanhem os avanços da civilização planetária sem cair nas armadilhas do passadismo,

torna-se fundamental assumir as tecnologias como forças produtivas da resistência nas

mais diversas linhas de ação contra projetos de dominação e tendências autoritárias na

esfera da cultura. Eis o motivo do chamado feito pelo CAE para a formação de uma

resistência eletrônica: a apropriação artística e política das tecnologias da informática e

da comunicação com fins de resistência cultural.

Por outro lado, quando o poder nômade se desmaterializa, desvincula-se de locais

claramente identificáveis, e assim, fica ainda por saber o que ou quem a resistência deve

combater. O CAE aposta no combate a tendências e não figuras de poder. A situação não

é nada simples. O poder autoritário se espalha pelo corpo social mesmo nas sociedades

ditas democráticas. O inimigo, se é que faz sentido ainda trabalhar com essa noção,

prescinde da presença física e por isso não pode ser localizado. Sem uma figura como

alvo, resta ao menos resistir aos autoritarismos e às forças opressoras. Mas claro, resistir

a essas tendências significa, além de combatê-las, fazer valer um contrapoder ou uma

potência libertária, seja subvertendo as forças dominantes, seja causando distúrbios e

panes nos sistemas. Assim, torna-se possível provocar danos ao princípio de eficiência de

agências econômicas e políticas que operam a máquina de guerra planetária.

Brian Holmes, na introdução ao livro Disturbances, estabelece relações da

analítica do CAE com o conceito de dominação de Sheldon S. Wolin em seu livro

Democracy Incorporated: Managed Democracy and the Specter of Inverted

Totalitarianism, de 2008, segundo o qual uma sociedade nominalmente democrática, tal

como os Estados Unidos, pode desenvolver níveis quase totalitários de controle sem um

líder todo poderoso, um aparato formal de censura, uma polícia secreta onipresente ou

uma mobilização ideológica constante dos cidadãos em blitz, buscas, revistas militares,

etc. Em vez disso, o efeito é conseguido por meio de subordinação dos governos aos

imperativos das corporações, com a expansão da soberania a dimensões globais que são

inacessíveis a um público não iniciado, com a proliferação de burocracias secretas e

estados de exceção, bem como, por meio de uma arte de construção de opinião que

combina tecnologia avançada, ciência social acadêmica, contratos governamentais e

subsídios corporativos – conjunção geradora de um superpoder que se prolifera através

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274

da contínua expansão econômica, não importa a que custos humanos e ecológicos.

Protestos podem ocupar as ruas, mas indivíduos e grupos indesejáveis podem ser

silenciados economicamente, legalmente ou por força, do mesmo modo, as eleições, que

podem ser aparelhadas, guerras falsas agenciadas como um meio extremo de conseguir

suporte de uma suposta maioria. O pancapitalismo é isso, à escala mundial.386

Lidar com o poder nômade que flui nas autopistas do ciberespaço requer formas

de resistência que sejam capazes de escapar dos efeitos de poder igualmente eficazes na

maneira de combater as tendências antiautoritárias. Ao invés de ficar na defensiva, ou

buscar no escapismo ou no conformismo uma desculpa para a inércia, o CAE aposta no

ataque eletrônico como tática de ação resistente. A lógica é ofensiva: não se pode baixar

a guarda, nem permanecer na defensiva o tempo inteiro, do contrário, o autoritarismo

tende a crescer e se intensificar.

Afinal, contra o poder nômade, somente uma resistência nomádica pode fazer

frente, ou seja, uma resistência que se organize e opere mediante estratégias e táticas não

sedentárias facilmente localizáveis. Para o CAE, o campo dessa resistência é

precisamente o ciberespaço, a dimensão informacional que se propaga em seu próprio

plano, paralelo à geografia física dos materiais: uma geografia abstrata e virtual dos fluxos

e dados informacionais:

A resistência ao poder nômade deve se dar no ciberespaço e não no

espaço físico. O jogador pós-moderno é um jogador eletrônico. Um

pequeno mas coordenado grupo de hackers poderia introduzir vírus e

bombas eletrônicas em bancos de dados, programas e redes de

autoridade, colocando a força destrutiva da inércia contra o domínio

nômade. A inércia prolongada se iguala ao colapso da autoridade

nômade em nível global. Tal estratégia não requer uma ação unificada

de classe, e nem uma ação simultânea em várias áreas geográficas. Os

menos niilistas poderiam ressuscitar a estratégia da ocupação mantendo

como reféns dados em vez de propriedades.387

Às resistências cibernéticas cabe a provocação de distúrbios que tenham a

capacidade de causar uma pane no modo normal de funcionamento de um dado sistema.

A tática da resistência nômade capaz de fazer frente ao poder nômade é uma tática que

busca na prática do distúrbio estético, político e eletrônico a forma eficiente de ativismo

no presente.

386 Cf. Brian Holmes, “Three keys and no exit: a brief introduction to Critical Art Ensemble”, in CAE,

Disturbances, p. 15-16. Trecho traduzido e adaptado. 387 CAE, Distúrbio Eletrônico, p. 33.

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275

Toda essa abordagem crítica promulgada pelo CAE funda um discurso político

sobre a tecnologia e a artes e, ao mesmo tempo, produz um tipo específico de

conhecimento sobre o atual. A crítica engajada demonstra, afinal, que uma das melhores

formas de agir passa pelo direcionamento do esforço da resistência cultural no sentido de

encontrar os recursos necessários para resistir às normas sociais, perseguindo uma linha

de questionamento, ao mesmo tempo que desenvolve uma posição autônoma. A questão

fundamental passa a ser, então, saber quais são os impactos que um experimento cultural

pode ter na política global e nas relações micropolíticas da existência da vida cotidiana.388

Subvertendo a Máquina

Imagem 50 – Ilustração do livro Flesh Machine, do CAE.389

O CAE defende a ideia de que a desobediência civil na sociedade de controle

alimentada pelos complexos informáticos, comunicacionais e de vigilância necessita

atuar na dimensão eletrônica do ciberespaço.

Em determinadas realidades sociais é praticamente impossível desvincular-se dos

efeitos do ciberpoder. Cada indivíduo, cada cidadão está conectado aos sistemas de

informação e controle, a despeito do que pense a respeito. A vida normal de um cidadão

típico das metrópoles na virada do século pressupõe sua conexão ao aparato

cibertecnológico do poder nômade. Nesse sentido, se a reivindicação é por liberdade,

388 O tópico “Resistência, Revolução e Destituição”, do Capítulo 4 – Resistência Cultural, pode ser lido

como uma resposta a esta questão. 389 CAE. Flesh Machine: cyborgs, designer babies, and new eugenic consciousness. New York:

Autonomedia, 1998, p. 2.

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276

contra o exercício do poder sobre a vida das pessoas, então a luta passa também pelas

instâncias eletrônicas, tecnológicas, cibernéticas, informacionais.

Além do mais, as máquinas externas tem como aliadas as máquinas internas,

semióticas, a-significantes, que compõem os sistemas maquinocêntricos do

pancapitalismo. O funcionamento das instituições estatais e corporativas pressupõem,

dado o grau de complexidade de suas operações, dependência quase total de

interconectividade informacional e comunicativa em redes e circuitos sociotécnicos nos

quais circulam fluxos e dados muito variados. Por isso mesmo, desde cedo formaram-se

sistemas de defesa e vigilância com a função de garantir o bom funcionamento de suas

operações sem perturbações externas a seus sistemas. A criação de departamentos de

serviço secreto específicos, polícias virtuais, agências de segurança privada, com fins de

vigiar e ordenar o ciberespaço se deve à exposição a que estão submetidos tanto

organismos estatais e governamentais, como privados, corporativos, empresariais e

bancários nas autopistas da rede internacional de computadores.

O uso da internet e do ciberespaço implica riscos. Para o bem e para o mal, da

perspectiva da resistência, há pontos fracos que podem ser atacados. Foi com base nesse

raciocínio que os primeiros hackers começaram a mirar determinados alvos,

conglomerados de empresas, departamentos governamentais, centros de dados bancários.

Os objetivos dos ataques quase sempre são a obstrução dos fluxos, o bloqueio ao acesso

às informações, a invasão de sistemas, o sequestro de dados e, nos casos extremos, com

o emprego de violência eletrônica, a destruição de centros de armazenamento de dados,

a derrubada de portais, a manipulação de dados bancários, entre outras formas de atacar

empresas, corporações, instituições e até mesmo pessoas.

A lógica que Paul Virilio emprega para chamar atenção sobre os aspectos não-

refletidos ou não-planejados inerentes a quaisquer inventos humanos, sobretudo,

tecnológicos, aplica-se perfeitamente à internet:

Criação e queda, o acidente é um obra inconsciente, uma invenção no

sentido de descobrir o que estava oculto – esperando para acontecer em

plena luz do dia. Ao contrário do acidente natural, o acidente artificial

resulta da inovação de uma máquina ou de um material substancial.390

390 “Création et chute, l’accident est une oeuvre inconsciente, une invention au sens de découvrir ce qui

était caché – en attente de se produire au grand jour. A la différence de l’accident naturel, l’accident artificiel

résulte de l’innovation d’un engin ou d’une matière substantielle”. Cf. Paul Virilo, “L’invention des

accidents”, in Paul Virilio: la pensée exposée (textes et entretiens). Paris: Foundation Cartier pour l’art

contemporain, 2012, p. 77ss.

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277

A cada invenção humana, surge um acidente correspondente, como um aspecto

inerente à tecnologia em questão. A invenção dos trens criou os descarrilamentos, a

invenção da navegação com navios, o naufrágio, e assim por diante. Qualquer máquina

traz em si o acidente que lhe corresponde, pois a máquina, por definição e de fato só

funciona se avariando. Entretanto, a questão é ainda mais profunda. Antes mesmo de

pensar sobre os acidentes, é fundamental analisar os usos possíveis dos dispositivos e das

máquinas. No caso da internet, a tecnologia de compartilhamento, comunicação e difusão

de dados e informações traz consigo o risco e a possibilidade de difusão de falsas notícias,

de vazamento de dados e uma série de efeitos colaterais como roubo e sequestro de dados,

extorsões relacionadas às informações assim apropriadas, imagens, vídeos e toda sorte de

gravações captadas na rede de forma não autorizada, para mencionar apenas alguns

exemplos.

As sociedades de controle, que, segundo Deleuze, sucedem as sociedades

disciplinares, são impensáveis sem os sistemas informáticos e comunicacionais providos

de altas tecnologias.391 O controle se faz valer com elas, e na realidade, operam por meio

delas. Ademais, como dito anteriormente, as tecnologias informacionais surgiram no

contexto da Guerra Fria e foram desenvolvidas pelos militares com propósitos

estratégicos. Somente depois que deram origem à internet tornaram-se disponíveis para

uso civil comum.

Tudo isto para enfatizar elementos intrínsecos às tecnologias que, no mais das

vezes, não são pensados com a devida atenção. Há uma espécie de magnetismo

tecnológico (dada sua existência em âmbito social) que reveste as máquinas e seus

produtos do que Walter Benjamin denomina fantasmagoria, seguindo o conceito de

fetichismo primeiramente aplicado por Marx às mercadorias.392 Nas sociedades atuais, o

391 Cf. Gilles Deleuze, “Post-scriptum: sobre as sociedades de controle”, in Conversações. São Paulo: Ed.

34, 2008. 392 Em um estudo sobre a filosofia de Walter Benjamin, Rainer Rochlitz trata do conceito de fantasmagoria:

“Se o desenvolvimento técnico não é suficiente para enfraquecer o reino das fantasmagorias, todo o

problema é saber como trabalhar com o despertar suscetível de nos libertar delas. As técnicas têm uma

função subversiva que a sociedade deve saber captar para deixar de ser prisioneira do mito. A técnica

despoja o mundo de seus sonhos ilusórios; o desenvolvimento do mercado, em compensação – perpetuação

da ordem social ‘antiga’ – favorece a fantasmagoria”. Rainer Rochlitz. O desencantamento da arte: a

filosofia de Walter Benjamin. Bauru: Edusc, 2003, p. 231. A recuperação do surrealismo no âmbito da

sociedade do espetáculo foi evidenciado no capítulo Nomadologia da Arte-Revolta. Tal fenômeno é um

claro exemplo de como o capitalismo se apropria da potência artística para fabricar fantasmagorias. E de

como é capaz de esterilizar a arte-revolta de seus princípios críticos. Hoje em dia, a palavra surrealismo foi

inteiramente devassada. Seu uso comum remete a quaisquer atos ou fenômenos absurdos, sem sentido e,

portanto, nulos de valor. Exatamente o contrário do que significa para os autênticos surrealistas.

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fetichismo das máquinas, sejam elas externas ou internas, tende a se impor por meio de

discursos que beiram o ufanismo tecnológico. Pouco se fala na esfera pública sobre os

aspectos negativos, não planejados, das tecnologias, que compõem necessariamente um

campo de contra-finalidade, a despeito da suposta racionalidade que elas possuem em um

nível superficial de análise. A produção discursiva gira em torno dos efeitos especiais

tecnológicos segundo uma perspectiva utilitarista e mercadológica que se projeta sobre

os inventos para que sejam incorporados sem quaisquer questionamentos críticos ou

éticos. A indução ao erro consiste em concentrar-se exclusivamente nos aspectos

supostamente positivos, desprezando as análises sobre os efeitos negativos ou danosos

das tecnologias que necessariamente as acompanham como possibilidade ou virtualidade.

Impossível eliminar por completo esses aspectos, sem dúvida. O que Virilio

defende, e que o CAE coloca em prática nas suas abordagens da internet, é a necessidade

de se analisar os dispositivos em seus mais distintos aspectos, usos, potencialidades, etc.,

para que, assim, não se reproduza nem se aceite tudo sem consciência, sem discussão,

sem esclarecimento. Condição primeira de autonomia individual e coletiva.393

Internet e Poder

A crítica que o CAE elabora sobre o complexo tecnopolítico da internet não

pretende ser expressão neoluddita, que nega a priori a tecnologia.394 Diferente dos

neoprimitivistas, que identificam na tecnologia um grande mal, o CAE reconhece o valor

das técnicas aplicadas, tanto que faz uso delas sempre que necessário. Mas isso não deve

impedir o exercício do pensamento crítico, que tem a função de pensar os problemas em

toda sua complexidade.

Para fazer jus ao pensamento radical é mister ultrapassar as aparências dos

fenômenos em busca dos fundamentos do que acontece e constitui uma dada realidade. O

ceticismo do grupo com relação à internet é embasado em argumentos sociológicos: “A

internet não existe no vácuo. Está intimamente relacionada com todo tipo de estruturas

sociais e dinâmicas históricas”.395 Assim como a Escola de Frankfurt demonstrou os usos

393 Steve Kurtz afirma que o CAE produz uma crítica da alienação tecnológica. Cf. Pour une résistance

culturelle permanente. Entretien avec Steve Kurtz du Critical Art Ensemble. Stéphanie Lemoine, Samira

Ouardi. Mouvements, 2011/1 (n° 65), p. 151. 394 Cf. CAE, “Utopian promises – net realities”, in Flesh Machine, p. 139. 395 “The internet does not exist in a vacuum. It is intimately related to all kind of social structures and

historical dynamics”. CAE, Flesh Machine, p. 153.

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políticos e sociais da razão tecnocientífica nos processos totalitários e nas indústrias

culturais, o CAE faz com a rede internacional de computadores.

Com o objetivo de esclarecer as relações da internet com o estado, a ciência e o

capitalismo, o grupo retoma em linhas gerais a origem histórica da internet, e assim

fazendo, traça um diagrama no qual a World Wide Web aparece enredada nos interesses

sociais, governamentais e mercadológicos. A tese defendida aparece assim formulada no

apêndice do livro Flesh Machine:

Existe uma zona livre eletrônica (o agregado de domínios que têm

características resistentes ao pancapitalismo), mas, do ponto de vista do

CAE, trata-se apenas de um desenvolvimento modesto, na melhor das

hipóteses. De longe, o uso mais significativo do aparato eletrônico é

manter a ordem, replicar a ideologia pancapitalista dominante e

desenvolver novos mercados.396

Os motivos das reservas que o CAE apresenta com relação à internet podem ser

encontrados na histórica formação da rede de computadores e nas contradições

identificadas entre a retórica deslumbrada sobre os supostos benefícios trazidos por ela e

os argumentos céticos elaborados pelo CAE e outros críticos da tecnologia informática.

As origens da internet remetem ao contexto da Guerra Fria, quando os militares

sentiram a necessidade de elaborar um meio de preservar a estrutura de comando no caso

de um ataque nuclear. Era preciso se precaver e inventar meios logísticos de garantir a

comunicação entre os destacamentos e os alto-comandos, requisito de qualquer campanha

estratégica. Depois dos militares, os cientistas foram os próximos a dispor da internet.

Financiados pelo Estado, que nutria grande interesse em ganhos teóricos e

epistemológicos, e por corporações que investiam nas pesquisas com fins de reter

conhecimento com potencial de desenvolvimento econômico, os cientistas contribuíram

à sua maneira com a viabilização tecnológica da internet. As corporações e demais

investidores das pesquisas logo demandaram participação no empreendimento com vistas

a abrir o ciberespaço para seus negócios. Com o aperfeiçoamento do sistema adiantado,

outros agentes entraram no filão com a expectativa de que dali surgiria um ramo industrial

promissor, tanto com relação ao hardware, o aparato tecnológico de base física, quanto à

dimensão abstrata, virtual, dos softwares, inerente ao ciberespaço que a infraestrutura

396 “There is an electronic free zone (the aggregate of domains that have characteristics resistant to

pancapitalism), but from CAE’s perspective, it is only a modest development at best. By far the most

significant use of the electronic apparatus is to keep order, to replicate dominant pancapitalist ideology, and

to develop new markets”. CAE, Flesh Machine, p. 141.

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material origina. Assim, não demorou, a dimensão virtual aberta tornou-se realidade, e os

investidores perceberam nela um mecanismo a ser explorado com fins comerciais.397

Em poucas linhas, o diagrama histórico-sociológico da internet traçado pelo CAE

ganha contornos: surge como tecnologia de guerra, torna-se objeto da razão financiada

por governos e corporações, e finalmente se consolida como tecnologia para uso massivo

à disposição tanto do Estado (aplicada nos campos militar, burocrático e policial) como

do mercado (como um espaço virtual de livre comércio). Estado, razão e capital (controle,

ciência e mercado), combinação que gerou um complexo tecnopolítico da mais alta

complexidade com o poder de revolucionar as sociedades contemporâneas em termos

políticos, econômicos e culturais. “Assim nasceu o aparato repressivo de maior sucesso

de todos os tempos; e ainda assim foi (e ainda é) representado com sucesso sob o signo

da liberação”.398

Nesse ponto, surgiu um paradoxo peculiar: o capitalismo de livre

mercado entrou em conflito com o desejo conservador por ordem.

Tornou-se aparente que, para que essa nova possibilidade de mercado

atingisse todo o seu potencial, as autoridades teriam que tolerar um

certo grau de caos. Isso era necessário para seduzir as classes mais ricas

a usar a rede como local de consumo e entretenimento, e, em segundo

lugar, para oferecer a rede como um álibi para a ilusão da liberdade

social. Embora o controle totalizador das comunicações tenha sido

perdido, o custo total desse desenvolvimento para governos e

corporações era mínimo e, na verdade, o custo não era nada comparado

ao que foi ganho.399

O CAE, com seu ceticismo, insiste ainda em outro aspecto do ciberespaço e da

internet, divergindo da retórica que trata as tecnologias da comunicação e da informação

como parte de uma tecnorrevolução radicalizada. Não se pode a ignorar a expansão da

internet e das tecnologias digitais como extensão do território da tecnocracia

pancapitalista.400

397 Cf. CAE, Flesh Machine, p. 142-144. 398 “Thus was born the most successful repressive apparatus of all time; and yet it was (and still is)

successfully represented under the sign of liberation”. CAE, Flesh Machine, p. 143. 399 “At this point, a peculiar paradox came into being: Free market capitalism came into conflict with the

conservative desire for order. It became apparent that for this new market possibility to reach its full

potential, authorities would have to tolerate a degree of chaos. This was necessary to seduce the wealthier

classes into using the Net as site of consumption and entertainment, and second, to offer the Net as an alibi

for the illusion of social freedom. Although totalizing control of communications was lost, the overall cost

of this development to governments and corporations was minimal, and in actuality, the cost was nothing

compared to what was gained”. CAE, Flesh Machine, p. 143. 400 Cf. CAE, Tactical Media Practitioners: an interview. Jon McKenzie and Rebecca Schneider. The

Drama Review, 44, 4 (T168). New York: University and the Massachusetts Institute of Technology

Winter, 2000, p. 148.

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281

O poder nômade se sustenta em redes sociotécnicas ramificadas em diversos

países. A lógica pós-sedentária do poder é informacional, comunicacional. Pressupõe

continuidade de fluxos para manter as estruturas econômicas, políticas, institucionais e

militares funcionando. Desde que a informática foi incorporada às instituições, o

funcionamento do sistema capitalista, das burocracias estatais e dos sistemas de

reprodução de conhecimento depende da conexão com as redes de computadores.

Exatamente nessas complexas redes de conexão repousa um dos alvos que podem servir

para os propósitos da resistência.

Nos anos iniciais de sua instauração a internet parecia uma utopia realizada. A ela

estavam ligados sentimentos de deslumbramento e esperança com relação aos usos que

possibilitaria. O compartilhamento de conhecimento, o livre acesso à informação, maior

participação política da sociedade civil organizada nos processos decisórios, o

encurtamento das distâncias entre as pessoas de distintos lugares, a conectividade, o

incremento de eficiência a vários processos (sociais, econômicos e políticos), entre outras

ideias vinculadas à noção geral de progresso circulavam na opinião pública. Essa coleção

de truísmos retóricos alimentou a imagem da internet como algo inteiramente positivo.401

Entretanto, o advento da internet foi recebido com desconfiança pelo pensamento

crítico. Enquanto no mainstream filosófico autores como Paul Virilio e Jean Baudrillard

debatiam, na contramão do que professava Pierre Lévy, as reviravoltas que a internet e o

ciberespaço trouxeram ao campo da cultura e da política – na cena underground norte-

americana, diversos autores (como Pit Schultz, Geert Lovink, Richard Barbrook, Konrad

Becker, Lev Manovich, Inke Arns, Oliver Marchart, Matt Fuller, Mark Dery e o próprio

Critical Art Ensenble) formaram uma frente de desmistificação dentro da resistência,

preocupados com questões políticas práticas que tocavam à existência de movimentos

concretos de resistência.

Eles se esforçaram para esvaziar as promessas dos marketeiros em seus

muitos disfarces, para revelar a infra-estrutura ideológica da tecnologia

e sua representação, e para demonstrar que mesmo a menor

possibilidade utópica contida na retórica provavelmente não seria em

geral realizada pela maioria da população mundial.402

401 Cf. CAE, “The promissory rhetoric of biotechnology in the public sphere”, in Digital Resistance:

explorations in tactical media. New York: Autonomedia, 2001. p. 42-43. 402 “They have endeavored to deflate the promises of marketers in their many guises, to reveal the

ideological infrastructure of the technology and its representation, and to demonstrate that even the smallest

utopian possibility contained in the rhetoric would probably not be generally realized by most of the world’s

population”. CAE, Digital Resistance, p. 42.

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Para além do deslumbramento, que cabia desmitificar, havia desde o início um

lado escuro, um ponto cego das tecnologias da informática e da comunicação que abriram

caminho para a internet e o ciberespaço. Era preciso maquinar um trabalho coletivo de

difusão das perspectivas críticas junto à opinião pública, e esses autores se propuseram a

ser porta-vozes de um pensamento cético, questionador e crítico, capaz de alertar sobre

os aspectos que não estavam claros por trás dos disfarces retóricos propagados pelos

meios de comunicação de massa.

O poder que um dia foi sedentário fez-se poder cibernético, informático,

comunicacional, fabricando para si seu próprio espaço onde circular de forma

desterritorializada: o ciberespaço da rede mundial de computadores. A internet se

instalou, pouco a pouco, alimentada inicialmente por fibras óticas, depois por satélites e

toda sorte de aparatos, com e sem fios, e ao invés de servir a propósitos democráticos,

apresentou-se como um espaço colonizado pelos imperativos do comércio internacional

e pela inteligência secreta da classe militar. Os imensos potenciais mercadológicos,

financeiros, publicitários, mostraram-se predominantes desde o princípio. Por trás das

aparências civis, não há como negar correlações entre parcelas da classe capitalista com

setores governamentais civis e militares com interesse na expansão da internet, que antes

de ser aberta para a sociedade civil fora uma tecnologia militar.

A Escola de Frankfurt já havia alertado sobre as estreitas relações da ciência e da

tecnologia com os aparatos totalitários, e sobre a íntima relação delas, desde as origens

da indústria moderna, com as demandas do capital.403 A ciência dos iluministas, quando

começou a gozar de reconhecimento perante a sociedade, tornou-se uma das maiores

fontes produtivas para a economia capitalista, que soube muito bem apropriar-se de seus

imensos potenciais, investindo somas suntuosas de recursos em pesquisas voltadas para

produtos e conhecimentos úteis e, sobretudo, rentáveis. Universidades, centros de

pesquisa, agências privadas, institutos corporativos, polos de invenção e desenvolvimento

tecnológico tornaram-se ótimos negócios para governos, estados, complexos militares e

corporações capitalistas. Essa tendência histórica foi acentuada ao longo do século XX

durante a Guerra Fria com a Corrida Espacial e culminou com a internet, resultado e

síntese de investimentos multilaterais em tecnologias aplicadas a interesses voltados a

princípio para a guerra.

A suspeita com que a resistência recebeu a abertura da internet e do ciberespaço

403 Cf. Max Horkheimer e Theodor W. Adorno. Dialética do esclarecimento.

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283

considerou todos esses fatores. Por isso mesmo desenvolveu toda uma argumentação

sobre a necessidade de se organizar uma resistência eletrônica acoplada intimamente aos

processos tecnológicos da internet e do ciberespaço. Em um mundo tomado por aparelhos

informacionais, a resistência será cibernética ou não será. Eis a divisa do Critical Art

Ensemble em meados dos anos 90. Uma das formas de ação propostas pelo CAE à

resistência cultural foi denominada Desobediência Civil Eletrônica.

Desobediência Civil Eletrônica

O pano de fundo em questão na abordagem do CAE à resistência eletrônica é uma

discussão mais ampla em torno da necessidade de se articular uma resistência cultural

antiautoritária na esfera pública. Cético quanto ao ideal de revolução, o Ensemble aposta

na promulgação de uma resistência plural, baseada em uma política das diferenças, que

faz valer uma práxis criadora e promotora de instâncias de autonomia, individuais e

coletivas.

No quadro de análise assim exposto, a defesa da desobediência civil eletrônica

aparece como uma ideia, entre outras, de valorização de novos e variados meios de

produção (mídias táticas) a serem empregados pela resistência a fim de conter os avanços

autoritários na esfera da cultura e frear a velocidade da economia política capitalista. As

propostas de ação para a resistência cultural apresentadas pelo CAE não são poucas,

afinal, a produção de resistência pode se dar de múltiplas formas: vídeos, livros,

exibições, performances, intervenções, teatro recombinante, teatro eletrônico, plágio

utópico, mídias táticas, instalações, poesia, palestras, todas elas, formas praticadas pelo

coletivo ao longo de sua trajetória, e servem como exemplo para que outros grupos

inventem suas próprias formas de expressão micropolíticas.

Com relação às ideias e as recomendações do grupo sobre a desobediência civil

eletrônica, pesam sempre argumentos sérios e um raciocínio sóbrio que pretendem evitar

deslizes niilistas ou contraproducentes, um pensamento autenticamente crítico em suma,

preocupado com os aspectos éticos, sociais e políticos que lhe são intrínsecos. Por isso,

opta por falar somente em termos gerais e sobre casos hipotéticos, por acreditar que a

resistência eletrônica eficaz é a que ocorre no anonimato necessariamente

underground.404

404 Cf. CAE, “Electronic civil disobedience, simulation, and the public sphere”, in Digital Resistance, p.

26-27.

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284

Com ousadia, no coração dos Estados Unidos, o CAE defende a legitimidade de

práticas de desobediência civil eletrônica como forma da resistência viabilizar suas pautas

e reconfigurar a correlação de forças na idade do pancapitalismo, sempre com vistas a

barrar a expansão dos poderes econômicos e políticos autoritários. No geral, trata-se de

prover a resistência com estratégias e táticas capazes de mobilizar as potências inerentes

à resistência que se anuncia com a constituição do ciberespaço.

O argumento de que, para cada estratégia, existe em potencial uma contra-

estratégia correspondente (que cabe à resistência descobrir ou inventar), é capaz de

convencer até os mais céticos.405 Em cada regime de dominação germinam forças

contraditórias que carregam em si, segundo o raciocínio dialético, possibilidades de

superação. A ideia então consiste em despertar, suscitar, promover, estimular a eclosão

de tais forças, e ao mesmo tempo, usar os pontos fracos do adversário, e o seu peso, contra

ele, revirando assim o jogo das forças em contradição, com o que se pretende direcionar

os resultados para outros fins.

Essa lógica teórica tem fundamento nas estratégias de guerra e foi mobilizada na

sua versão dialética no clássico Manifesto do Partido Comunista, no qual a classe

proletária é identificada como a força revolucionária nascida no seio do próprio

capitalismo. Eis uma passagem que dá uma amostra da forma e do tom usados no texto:

As armas com que a burguesia derrubou o feudalismo viram-se agora

contra a própria burguesia. Mas a burguesia não forjou somente as

armas que lhe trazem a morte; também gerou os homens que vão usar

essas armas – os operários modernos, os proletários.406

Esta citação do manifesto contém, virtualmente, o raciocínio defendido pelo CAE.

Ao aplicar a técnica situacionista de détournement ao texto, ou o plágio utópico que o

coletivo emprega, substituindo algumas palavras pelos conceitos mobilizados na

discussão da resistência eletrônica, é possível conceber, com certa liberdade, a seguinte

afirmação: as tecnologias com que a elite pancapitalista superou o poder sedentário

viram-se agora contra a própria elite. Mas a elite pancapitalista não forjou somente as

tecnologias que lhe trazem a morte; também gerou os homens que vão usar essas

tecnologias – os hackers pós-modernos, a classe tecnocrática.

405 Cf. CAE, Electronic Civil Disobedience and others unpopular ideias. New York: Autonomedia,

1996, p. 29. 406 Karl Marx e Friedrich Engels. Manifesto do Partido Comunista. Edições Progresso: Impresso na

URSS, 1987, p. 40.

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O discurso do CAE desvela as estratégias do poder, revelando usos subversivos a

serem atualizados na resistência. O efeito é duplo: desmascara o poder e fornece subsídios

para a resistência. O capitalismo que projetou o ciberespaço com a intenção de ampliar e

expandir seus mercados terá que enfrentar sua própria nêmesis representada pela ameaça

da resistência eletrônica, que tem o papel histórico de inventar seu modus operandi, suas

estratégias e táticas correspondentes aos níveis tecnológicos desenvolvidos até então,

forjando, nas lutas concretas e virtuais, os meios tecnológicos para resistir, e não deixar

o adversário reinar em paz como em terra conquistada. Se o pancapitalismo inventou o

ciberespaço, a vanguarda tecnocrática de que fala o CAE se utilizará do mesmo espaço a

fim de minar o capitalismo digital por dentro, ademais, com as máquinas que ele mesmo

forneceu.

Porém, a temática da desobediência civil eletrônica coloca em debate a

problemática relação das atividades de resistência eletrônica e o ativismo tradicional no

campo da formação. A resistência eletrônica requer conhecimento técnico especializado

em informática, linguagem de programação, algoritmo, sistemas de segurança, etc. Os

hackers possuem a formação técnica e são mais capacitados tecnologicamente em relação

aos ativistas tradicionais. Porém, como regra, falta aos primeiros a teoria, a consciência e

a prática política igualmente necessárias para bem direcionar o ativismo. Assim, o CAE

identifica um problema que precisa ser pensado e, se possível, resolvido: a falta de

formação política dos hackers, de um lado, e a ausência de capacitação técnica dos

ativistas, de outro. Enquanto um tipo possui o preparo técnico, o outro é dotado do saber

político prático. A problemática assim diagnosticada pelo CAE na década de 1990 leva à

seguinte questão: como tornar a resistência eletrônica algo efetivo, concreto? Uma forma

de superar esse impasse é formar coletivos que, a exemplo do próprio CAE, unam pessoas

com distintas formações e especialidades. Desta forma, as limitações individuais são

compensadas pelas competências dos demais integrantes do grupo.

Paranoia

Em meados de 1990, quando o CAE lançou seus primeiros livros nos quais trata

da temática da resistência eletrônica, o problema já era real. Quem fosse pego adentrando

sistemas sem autorização seria tratado pelas autoridades constituídas como criminoso.

Ainda no início do fenômeno, a atividade dos hackers começa a ser tratada como

criminosa a despeito das diferentes práticas e dos distintos objetivos com que os primeiros

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invasores atuavam. De um modo público, os hackers se defendiam afirmando que agiam

com ética, e se adentravam bancos de dados abrindo brechas nos sistemas de segurança,

assim faziam para mostrar onde haviam falhas. Nos casos em que as ações eram movidas

por um propósito maior, a argumentação girava em prol de alguns princípios básicos,

dentre os quais a defesa da liberdade de informação e o acesso livre à rede e ao

conhecimento nela disponibilizado.

No entanto, os agentes do estado não pensavam da mesma maneira. Havia um

clima tenso que permeava o sistema de inteligência dos Estados Unidos. Instituições

como Computer Emergency Response Team, o Serviço Secreto e a repartição Squad

Crime Computer National do FBI – Federal Bureau of Investigation, trabalhavam com a

ideia de que estratégias e táticas nômades estavam sendo empregadas por grupos e

indivíduos contestatários.407 A situação, na realidade, já vinha se arrastando há alguns

anos.

Em 1990, para se ter uma ideia, houve um caso curioso. O Serviço Secreto dos

Estados Unidos apreendeu os computadores de uma conhecida empresa fabricante de

Role Playing Games sob a suspeita de que uma das equipes da organização trabalhava em

um manual sobre invasões de sistemas de segurança informáticos. Na realidade, a equipe

de designers estava escrevendo simplesmente um livro de ambientação ficcional

intitulado Cyberpunk: High Tech Low Life Roleplaying Sourcebook para o jogo GURPS

– Generical Universal Role-Playing System. O que o Serviço Secreto considerava um

“handbook for computer crime” era uma obra inspirada no subgênero de ficção científica

de mesmo nome bastante difundido na década de 1980, no qual uma das temáticas

centrais, as relações do homem com as máquinas (informacionais e biotecnológicas) em

um contexto econômico político decadente haviam alterado o conjunto da vida social,

cultural e política em um cenário futurista totalmente distópico. O caso é relatado em

detalhes na abertura do livro, que foi reescrito e publicado depois do incidente.408

407 Cf. CAE, Electronic Civil Disobedience, p. 29. 408 Cf. Loyd Blankenship, GURPS Cyberpunk: high tech low life roleplaying sourcebook. Steve Jackson

Games, 1990, p. 4-5.

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Imagem 51 – Capa do livro GURPS Cyberpunk, de 1990.409

Em 1994, a descoberta de programas de captura de senhas com propósitos

desconhecidos levantou a suspeita imediata de que se tratava de ações criminosas. As

autoridades estavam convencidas de que alguns jovens hackers, a princípio simples

curiosos, estavam envolvidos em crimes informacionais. No entanto, algo de maior

importância estava dando seus primeiros sinais. Na leitura do CAE:

O terror do poder nômade está sendo exposto. A elite global está tendo

que olhar no espelho e ver suas estratégias voltadas contra ela – o terror

refletindo sobre si mesmo. A ameaça é virtual. Poderia haver uma célula

de crackers pairando sem ser vista, mas pronta para um ataque

coordenado na rede – não para atacar uma instituição em particular, mas

para atacar a rede em si (o que significa dizer, o mundo). Um ataque

coordenado aos roteadores poderia derrubar todo o aparato de poder

eletrônico.410

409 Loyd Blankenship. GURPS Cyberpunk: high tech low life roleplaying sourcebook. Steve Jackson

Games, 1990. 410 “The terror of nomadic power is being exposed. The global elite are having to look into the mirror and

see their strategies turned against them – terror reflecting back on itself. The threat is a virtual one. There

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Uma vez que a vulnerabilidade do aparato cibernético tornava-se conhecida, o

sinal de uma catástrofe virtual torturava aqueles que o haviam criado, e a ideia mesma

gerava uma resposta persecutória ante qualquer movimento minimamente ofensivo. O

investimento em segurança eletrônica e virtual no ciberespaço demonstrava também a

importância do que estava acontecendo no novo espaço virtual. Tamanha era a paranoia

com a segurança do ciberespaço, que bastava uma pessoa entrar sem autorização em um

dado sítio virtual para ser enquadrado lado a lado com gente do tráfico de drogas, ou com

pessoas perigosas. As campanhas jornalísticas apresentavam a atividade hacker como

uma ameaça social, a fim de formar uma opinião pública contrária ao movimento que

poderia se expandir a partir de então.

Segundo o CAE, o problema é que a criminalização desse tipo de ação na internet

abre brechas para o Estado ameaçar os direitos individuais ou mesmo prender dissidentes

políticos.411 Nesse contexto, tornava-se fundamental distinguir o crime computacional da

desobediência civil eletrônica. Algumas perguntas são levantadas então: em que sentido

é legítimo praticar desobediência civil eletrônica, segundo que parâmetros, com relação

a que preceitos e fins?

Em Defesa da Desobediência Civil Eletrônica

Assim posta, a problemática lança luzes sobre um tema importante para a

resistência eletrônica que se forma na virada do século. O maior risco da identificação da

desobediência civil eletrônica (doravante, DCE) com atos criminosos, ou até com

terrorismo, é permitir ao Estado impedir, por meio de leis autoritárias, sistemas punitivos

severos e pesados, qualquer atividade de resistência política por vias eletrônicas, digitais

e cibernéticas.412 Uma forma de barrar a priori todo meio de DCE na sua origem e tornar

o ciberespaço um ambiente esterilizado de quaisquer formas de resistência.

A preocupação do Critical Art Ensemble tem um fundamento político importante.

Do ponto de vista da resistência antiautoritária, não se pode aceitar simplesmente as

could be cell of crackers hovering unseen, yet poised for a coordinated attack on the net – not to attack a

particular institution, but to attack the net itself (which is to say, the world). A coordinated attack on the

routers could bring down the whole electronic power apparatus”. CAE, Electronic Civil Disobedience, p.

30. 411 Cf. CAE, Electronic Civil Disobedience, p. 17. 412 Cf. CAE, Electronic Civil Disobedience, p. 17.

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designações estatais jurídicas que tentam proibir qualquer atitude política de contestação

no espaço virtual, sob o risco da resistência perder um relevante campo de atuação.

Se perdermos o direito de protestar no ciberespaço na era do capital da

informação, perderemos a maior parte de nossa soberania individual.

Precisamos exigir mais do que o direito de falar; devemos exigir o

direito de agir no “mundo conectado” em nome de nossas próprias

consciências e de boa vontade para todos.413

A defesa não é pela liberdade de expressão na internet. Falar, dizer, parece pouco

para quem pretende empregar os meios tecnológicos como modalidade de ação direta. O

jornalismo, em tese, tem garantida a liberdade de expressão e nem por isso funciona

sempre como agência da resistência. Pelo contrário. Debord denunciava nos anos 60 e 70

que a crítica havia sido incorporada nos mass media, mas apenas como crítica discursiva,

portanto, domesticada no espaço das palavras. Fundamental mesmo, para o CAE, é

garantir o direito à ação no mundo plugado, sem que isso se converta em perda da

soberania individual com as taxações estatais de criminalidade. A ação política no

ciberespaço, em suma, deve ser um direito civil à desobediência eletrônica.

O principal argumento em defesa da DCE insiste na necessidade de se distinguir

as intenções dos atos no ciberespaço. Em termos gerais, o CAE propõe tratar do assunto

diferenciando o criminoso do praticante de DCE, a começar, pelo objetivo almejado.

Enquanto o primeiro busca proveito próprio com ações que prejudicam um indivíduo, a

pessoa implicada na resistência eletrônica só ataca instituições, ademais, na tentativa de

colocar a informação a serviço do interesse público, evitando seu uso exclusivo por parte

de determinadas instituições.

Conceituação

A desobediência civil, enquanto forma de ação política, tem uma história

intrigante. Ao longo do tempo, os mais distintos movimentos sociais recorreram a práticas

de resistência assim denominadas, até mesmo de espectros políticos discordantes entre si,

como o liberalismo, o socialismo e o anarquismo. Geralmente, a origem do termo é

413 “If we lose the right to protest in cyberspace in the era of information capital, we have lost the greater

part of our individual sovereignty. We must demand more than the right to speak; we must demand the

right to act in the ‘wired world’ on behalf of our own consciences and out of goodwill for all”. CAE, “The

mythology of terrorism on the net”, in Digital Resistance, p. 37.

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associada a Henry David Thoreau, que em resposta a uma experiência na qual foi detido

pelas autoridades por se recusar a pagar impostos, escreveu o texto conhecido como “Da

desobediência civil”.414 Na realidade, as circunstâncias levaram-no a se pronunciar em

uma conferência sobre o ocorrido, o que lhe propiciou a oportunidade para tratar de

assuntos importantes como o governo, a escravidão e as guerras, e de como agir em

relação a eles de uma perspectiva libertária. O título original que o autor atribuiu à palestra

proferida em 1848 foi “Resistance to civil government”. O título mais conhecido foi

modificado somente após a morte do autor, na ocasião da publicação de suas obras

completas, em 1866.415 Portanto, quando o assunto é desobediência civil, torna-se preciso

esclarecer alguns pontos iniciais. Primeiro, a atitude de se negar a obedecer a leis

consideradas injustas foi denominada por Thoreau de resistência. A desobediência, como

ato político consciente, não é senão um ato de resistência a poderes considerados injustos.

Segundo, o ato isolado de se negar a obedecer por questões de princípios éticos, como no

caso de Thoreau ao se recusar a pagar impostos, caracteriza-se muito mais como objeção

de consciência do que como desobediência civil.416

A estratégia da desobediência civil, em termos gerais, corresponde a práticas de

insubordinação empregadas por grupos ou massas de cidadãos em um contexto político

considerado inaceitável. Historicamente, as práticas de desobediência civil demonstraram

um caráter pacífico. O objetivo das ações assim denominadas consiste no mais das vezes

em pressionar um dado poder constituído e, em determinados casos, questioná-lo em sua

legitimidade. Em outras circunstâncias, face a forças políticas totalitárias, a desobediência

orquestrada ou espontânea demonstra que muitos não reconhecem tamanha pretensão de

poder. Para atingir tal fim, os desobedientes tentam interferir no funcionamento de

determinadas instituições, ou então nos modos normalizados de agir no campo político.

Agindo assim, pretendem reconfigurar uma relação de forças políticas em torno da

criação de novas condições que sejam mais propensas às mudanças e reivindicações

desejadas por aqueles que acionam a potência da revolta coletiva. Por isso, algumas vezes

a tática visa a impor uma situação aos poderes constituídos que se negam a considerar os

apelos contraditórios, a fim de que eles se disponham a negociar nos termos dos

insubordinados. A ação da desobediência se assemelha à prática da objeção de

414 Henry David Thoreau. Desobediência civil. São Paulo: Edipro, 2016. 415 Cf. Frédéric Gros. Desobedecer. São Paulo: Ubu Editora, 2018, p. 148. 416 “Isso porque a desobediência civil tem uma dimensão pública e, como tal, uma implicação política bem

mais evidente”. Comentário de Pablo Capistrano.

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consciência, com a diferença de que a primeira possui um caráter coletivo, e como

vontade social, é imediatamente política. Frédéric Gros sintetiza a questão:

A desobediência civil designa o movimento estruturado de um grupo, e

não uma contestação pessoal. Supõe a organização de um coletivo

estruturado por regras determinadas de resistência, um credo comum,

ordenado para um objetivo político preciso: em geral, a revogação de

uma lei ou de um decreto considerados escandalosos, injustos,

intoleráveis. Em contrapartida, falar-se-á de dissidência ou de objeção

de consciência quando um indivíduo isolado (por exemplo, o “lançador

de alertas”) assume o risco de denunciar as falhas de uma instituição, a

ignomínia de um sistema. A desobediência civil supõe, ao contrário, um

“desobedecer juntos” que faz o coração do contrato social bater, dá

corpo, por ocasião de uma contestação comum, ao projeto de “fazer-

sociedade”, para além das instituições que se empenham, sobretudo, em

perpetuar a si mesmas e a perenizar o conforto de uma elite. A

contestação comum projeta a sombra do pacto originário numa

dimensão do futuro: viver juntos, mas sobre novas bases, não se deixar

governar assim, não aceitar o inaceitável, reinventar o futuro. O que

embasa o viver-juntos é um projeto comum de futuro.417

As práticas de desobediência civil possuem um caráter imediatamente social. Os

motivos que as animam e lhes dão legitimidade enquanto tais são sociais e nunca

simplesmente individuais. As lutas civis diferem conceitualmente dos atos de objeção de

consciência. O objetivo das intervenções denominadas por desobediência civil, sejam

tradicionais, sejam eletrônicas, é sempre pressionar autoridades, instituições, poderes

constituídos ou forças políticas conflitantes a reverem determinados posicionamentos, ou

ainda, forçar um rearranjo na correlação de forças em jogo, de modo a causar mudanças

em dada constelação social. Enquanto tal, as práticas da desobediência civil são da ordem

social, coletiva, concernem a realidades e interesses compartilhados por grupos da

sociedade civil, que podem ser minoritários ou majoritários.

A estratégia e a tática da DCE são as mesmas da desobediência civil tradicional:

uma atividade não-violenta, posto que as forças em oposição nunca se enfrentam

fisicamente.418 O fim almejado não impera sobre o meio a ser empregado. Segundo a

lógica da desobediência civil historicamente conhecida, os praticantes precisam

considerar determinados princípios se se pretende agir em conformidade com esse tipo

de ação política. Infiltração e bloqueio são táticas típicas reconhecidamente empregadas

417 Frédéric Gros, Desobedecer, p. 149. 418 Cf. CAE, Electronic Civil Disobedience, p. 18. Convém destacar que, no caso específico do movimento

negro estadunidense da década de 1960, houve sérios episódios de violência, mesmo com a prática da

desobediência civil. Comentário de Artemilson Lima.

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pelos praticantes de desobediência civil. Entrada e ocupação, sem autorização, em

espaços e prédios públicos ou privados, obstrução de passagens, intervenções no

funcionamento das instituições, atitudes contrárias a regimentos ou leis consideradas

injustas e inaceitáveis, são outros exemplos de desobediência civil tradicional. No caso

da DCE, a lógica intrínseca se mantém, somente alterada com relação ao espaço onde se

aplica e os meios tecnológicos acionados: o ciberespaço da internet via meios

tecnológicos informáticos e comunicacionais, o que implica algumas vantagens:

Saídas, entradas, condutos e outros espaços-chave devem ser ocupados

pela força contestatória, a fim de pressionar as instituições legitimadas

que estejam envolvidas em ações antiéticas ou criminais. O bloqueio de

condutos de informação é análogo ao bloqueio de locais físicos; no

entanto, o bloqueio eletrônico pode causar estresse financeiro que o

bloqueio físico não pode, e pode ser usado além do nível local. DCE

[desobediência civil eletrônica] é a DC [desobediência civil]

revigorada. O que a DC [desobediência civil] foi um dia, a DCE

[desobediência civil eletrônica] é agora.419

A prática da DCE tem uma série de vantagens em relação às formas tradicionais

de DC. A primeira delas é que os riscos inerentes aos conflitos físicos não existem. Os

ativistas eletrônicos operam suas ações no ciberespaço por meio de equipamentos

tecnológicos. Uma vez escolhido o alvo, em termos táticos, a resistência eletrônica incide

diretamente sobre algo de valor para a organização que é alvo da ação. Uma corporação,

por exemplo, que esteja envolvida em crimes ambientais, ou uma empresa multinacional

que se utilize de trabalho escravo na sua linha de produção globalizada, podem ter seus

portais virtuais invadidos, retirados do ar, sabotados, ou ainda ter seus bancos de dados

capturados ou publicizados a fim de que modifiquem tais atitudes. A pressão causada

pelas ações de DCE tem potencialmente impactos diretos sobre os alvos, inclusive, de

ordem econômica. Seja com campanhas de críticas direcionadas, seja com distúrbios

eletrônicos, de uma forma ou de outra, a DCE pode resultar em perdas financeiras para

as corporações que agem a despeito de quaisquer éticas sociais ou ambientais.

Ao ter em mente casos como esses, o CAE faz questão de elencar uma série de

cuidados a serem considerados pelos ciberativistas. Antes de tudo é importante distinguir

419 “Exits, entrances, conduits, and other key spaces must be occupied by the contestational force in order

to bring pressure on legitimized institutions engaged in unethical or criminal actions. Blocking information

conduits is analogous to blocking physical locations; however, electronic blockage can cause financial

stress that physical blockage cannot, and it can be used beyond the local level. ECD [electronic civil

disobedience] is CD [civil disobedience] reinvigorated. What CD once was, ECD is now”. CAE, Electronic

Civil Disobedience, p. 18.

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a DCE com relação às práticas comuns de DC, pois as práticas hackers, pelo que elas

pretendem, precisam ser necessariamente anônimas. Enquanto a DC tem o propósito de

mobilizar as pessoas e a sociedade civil organizada em ações de caráter público, com a

intenção de promover comoções sociais em apoio à causa, a DCE opera em segredo, é

uma atividade underground, sob pena de ser interceptada pelas autoridades. Deve,

portanto, permanecer à margem da esfera pública ou popular.420

Além de evitar riscos desnecessários, é preciso por outro lado evitar abusos. A

revolta que mobiliza a DCE é, por definição, de tipo altruísta, tem por princípio valores

sociais a defender, e por isso não deve ser orientada por interesses meramente individuais.

Nessa problemática posta pelo grupo acentuam-se discussões e argumentos em torno de

uma ética da resistência eletrônica. Primeiro, os alvos dos ataques devem ser escolhidos

com cautela, sejam eles estatais ou corporativos. O princípio segundo o qual é preciso

respeitar sítios e sistemas virtuais que possam ter funções humanitárias dá o tom das

advertências éticas. De modo geral, não se pode colocar em risco o funcionamento ou a

operacionalidade de sistemas dos quais dependem a vida humana das pessoas, como

hospitais, por exemplo. Nos casos de sistemas informáticos invadidos, os dados ora

capturados não devem ser destruídos nem danificados. Se o propósito é conseguir algum

ganho político com a negociação dos dados coletados por meio de ações de DCE, é

importante resguardar o material em questão por questões éticas. Outro princípio

fundamental defendido pelo CAE é nunca atacar indivíduos, sejam eles dirigentes ou

trabalhadores de uma corporação qualquer. É preciso resguardar as pessoas e mirar as

instituições que se valem delas para funcionar. Atacar contas bancárias ou sistemas de

armazenamento de determinados indivíduos não garante nenhum efeito sobre a política

econômica ou governamental.421

Entretanto, não estão excluídas táticas destrutivas, para os casos mais hediondos

de uso da internet para fins não-éticos, que podem afrontar os princípios defendidos

ferrenhamente pela resistência cultural e eletrônica. Em determinados casos, o CAE

admite o uso de violência. A destruição deve pairar sobre meios produtivos virtuais,

eletrônicos, que tenham operacionalidade política autoritária e que violem a dignidade e

a liberdade das pessoas, ou expressem o desprezo pela vida em geral, incluindo a natureza.

No entanto, a estrutura material pode ser preservada para outros usos possíveis. “O CAE

420 Cf. CAE, “Electronic civil disobedience, simulation, and the public sphere”, in Digital Resistance, p.

14. 421 Cf. CAE, Electronic Civil Disobedience, p. 19.

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ainda insiste que desafiar produtivamente as instituições não ocorrerá com gestos niilistas,

mas sim forçando mudanças no regime semiótico em uma infraestrutura mantida intacta

para reinscrição”.422

Sem maiores pretensões, o CAE se lança na esfera pública como a insígnia de um

autor que não possui rosto, posto que é um coletivo, mas que funda discursividades em

torno de temas contemporâneos, à maneira de autores consagrados nas esferas acadêmicas

e universitárias. Com a diferença de que suas obras e ideias pretendem circular de forma

mais aberta e acessível possível, dada a forma como os conceitos, os modelos teóricos e

a argumentação escrita se apresentam: no conteúdo, uma linguagem fluida que se

aproxima do universo do leitor em potencial sem perder consistência, e na matéria

acabada da obra, na versão impressa, em pequeno formato que cabe no bolso, o mais

próximo que se pode chegar da versão digital que circula na internet, disponibilizada para

livre download.

A discussão sobre a internet, o poder nômade e, mais especificamente, sobre a

desobediência civil eletrônica encabeçada pelo CAE durante os anos de 1994 até os anos

2000 (com a publicação do livro Digital Resistance: Explorations in Tactical Media)

prenunciou uma histórica guerra informática que se prolonga até os tempos atuais. Não

há qualquer evidência de que o CAE tenha atuado diretamente em ações hackers. O

coletivo fez amplo uso de computadores, produz sítios na internet, programas em suas

performances, trabalhou em parceria com dois institutos para produzir tecnologia

contestatária (The Institute for Applied Autonomy para construir um robô, e The Carbon

Defense League para reprogramar um video game),423 mas não se pode afirmar nada de

alguma atividade por conta própria na resistência eletrônica de tipo hacker preconizada

nos seu livros em torno da DCE. A menos que tenha sido em total segredo, como o próprio

coletivo recomenda.

422 “CAE still insists that productively challenging institutions will not occur through nihilistic gestures,

but instead through forcing changes in the semiotic regime on an infrastructure intact for reinscription”.

CAE, Digital Resistance, p. 23. 423 Cf. CAE, “Contestational robotics” e “Children as tactical media participants”, in Digital Resistance.

Page 295: critical art ensemble - UFRN

295

Electronic Dirturbance Theatre

Com relação à resistência eletrônica, a contribuição do Critical Art Ensemble teve

um impacto histórico no debate desencadeado então, porém, foi mais teórica do que

propriamente prática. Ricardo Dominguez, integrante do CAE de 1988 até 1994, após sair

do grupo montou outro coletivo de ativistas. A máquina de guerra do Critical Art

Ensemble desmembrou-se. Mas foi logo replicada. Assim, surgiu outra potência da

resistência, o Electronic Disturbance Theatre – EDT, que à sua maneira deu continuidade

às teorizações, às práticas e aos experimentos com as tecnologias informacionais.

Enquanto o CAE aderia à Biologia Contestatária para lidar com a problemática do

complexo biotecnológico, investigando reprodução humana artificial, manipulação de

DNAs, organismos transgênicos, uso militar de armas bacteriológicas, agrotóxicos, entre

outros temas correlatos, o Electronic Disturbance Theatre aprofundou-se na prática da

resistência eletrônica desenvolvendo ciberativismo e novos arsenais antropotécnicos da

revolta.

Imagem 52 - Ricardo Dominguez, ex-membro do CAE e integrante do Electronic Disturbance Theatre, em um protesto de rua.424

424 Ricardo Dominguez é co-fundador do Electronic Disturbance Theatre, com Carmin Karasic, Brett

Stalbaum e Stefan Wray, co-diretor do THING (bbs.thing. net) um ISP para artista e ativista, ex-membro

do Critical Art Ensemble e membro dos zapatistas de Nova York desde 1º de janeiro de 1994. Suas

performances foram apresentadas em museus, galerias, festivais de teatro, reuniões de hackers, eventos de

mídia tática e como ações diretas nas ruas e ao redor do mundo. Para mais informações sobre o Electronic

Disturbance Theatre, ver www.thing.net/~rdom/ecd/ecd.html Acesso 4 de agosto de 2019.

Imagem disponível em https://rhizome.org/static-media/uploads/professor-ricardo-dominguez-defended-

by-his-students-1.png Acesso 27 de julho de 2019.

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296

A conjuntura tornou cada vez mais difícil as ações ofensivas do tipo DCE da

resistência. Não por motivos técnicos, mas por questões legais. Nos Estados Unidos,

atividades hackers foram tipificadas juridicamente como atos criminosos, e em

determinados casos podem ser enquadradas como terrorismo, com implicações legais,

penais e criminais pesadas. Em resposta à criminalização das práticas hackers, a DCE se

metamorfoseou em Transparent and Civil Act of Disobedience, ato de desobediência civil

transparente, que recolocou o elemento público característico da desobediência civil

histórica de volta à cena, desta vez no espaço da internet. A publicização dos atos

cibernéticos de resistência serve como forma de angariar legitimidade política perante a

sociedade e uma maneira de se proteger de falsas acusações por parte das autoridades

constituídas ou das corporações privadas. Essa foi uma forma de superar o impasse da

resistência eletrônica quanto à sua forma de ativismo sem correr o risco de ser dizimada

por perseguições das autoridades estatais.

Nesse cenário, o Electronic Disturbance Theatre continuou suas explorações em

tecnologia informática e comunicacional para propósitos de resistência, caminhando na

linha tênue da legalidade e da DCE, e assim proveu as lutas de seu tempo com alguns

projetos interessantes em termos teóricos críticos, como também, com ferramentas e

softwares diretamente aplicáveis aos atos resistentes.

Dentre os projetos do Electronic Disturbance Theater, pode-se mencionar um

programa de computadores para ataques cibernéticos chamado FloodNet, que foi

desenvolvido durante a emergência do Movimento Zapatista na rede mundial de

computadores em meados dos anos 90. Questionado sobre o que eram as ações que

envolviam o FloodNet, o EDT responde com peito aberto: “É um Protesto. FloodNet não

é um jogo”. Rita Raley comenta:

Na verdade não é um jogo, mas de fato a arma primária no arsenal do

EDT, que ao longo do tempo tomou como alvo várias instituições e

símbolos do neoliberalismo mexicano, NAFTA, CAFTA, a Escola para

as Américas, o Departamento de Defesa dos EUA, Samuel Huntington,

Representant Sensenbrenner e outros.425

425 Cf. Rita Raley, “Border hacks: electronic civil disobedience and the politics of immigration”, in Tactical

Media. London: University of Minnesota Press, 2009, p. 40ss. No original: “EDT [Electronic Disturbance

Theater] is adamant: ‘This is a Protest. FloodNet is not a game’. It is indeed not a game but in fact the

primary weapon in EDT’s arsenal, over time targeting various institutions and symbols of Mexican

neoliberalism, NAFTA, CAFTA, the School for the Americas, the U.S. Defense Department, Samuel

Huntington, Representative Sensenbrenner, and others”.

Page 297: critical art ensemble - UFRN

297

Um dos ataques desencadeados pelo EDT ocorreu em resposta ao assassinato

político do professor zapatista José Luis Solís López. Em ações orquestradas em vários

domínios cibernéticos, os navegadores do EDT e de aliados enviaram grandes

quantidades de pedidos de páginas ao servidor do Presidente mexicano Enrique Peña

Nieto, preenchendo seus registros de erros com linhas de textos extraídas de Dom

Quixote, comunicados das comunidades zapatistas e de escritos do Critical Art

Ensemble.426 Outro projeto envolveu um programa chamado Transborder Immigrant

Tool, desenvolvido já nos anos 2000 para operar em celulares com GPS a fim de auxiliar

imigrantes na sua localização e na busca de recursos por sobrevivência em áreas remotas

ou desertas, como nas zonas fronteiriças do México com os Estados Unidos.

De forma semelhante ao que aconteceu com Steve Kurtz do Critical Art Ensemble,

que enfrentou uma batalha jurídica de quatro anos para provar sua inocência contra falsas

acusações por parte do governo,427 Ricardo Dominguez teve que lidar com algumas

ofensivas ao longo de sua trajetória. Mas nada disso foi capaz de deter o ativismo de

ambos, que continuam em plena atividade na resistência cultural de seu tempo.

Atualmente, Steve Kurtz é Professor Emérito de Artes vinculado à University at

Buffalo – The State University of New York, e Ricardo Dominguez trabalha como

Professor Assistente de Artes Visuais no California Institute for Telecommunications and

Information Technology. O Critical Art Ensemble desenvolve suas atividades com mais

três integrantes, Steven Barnes (membro fundador do coletivo), Beverly Schlee e Lucia

Sommer, e o Electronic Disturbance Theatre está na sua segunda formação, o EDT 2.0.428

Os desenvolvimentos do ciberativismo nas décadas recentes levaram ao

surgimento de movimentos internacionais que não se contentam em permanecer na

defensiva. Os Centros de Mídias Independentes emergiram junto às movimentações da

426 Há muito material sobre o Electronic Disturbance Theatre disponível na internet. Por si só, o coletivo

merece um trabalho de pesquisa à parte, dado seu histórico, sua produção e o impacto produzido na

resistência de seu tempo. Uma breve apresentação pode ser lida em:

http://artaspoliticalchange.blogspot.com/2017/02/ricardo-dominguez-floodnet-electronic.html Acesso 27

de julho de 2019. 427 O caso de Steve Kurtz ficou internacionalmente conhecido. Após um trágico incidente, relatado em

detalhes no documentário Strange Culture (ver referências), uma ampla rede internacional de apoiadores

se mobilizou para denunciar as falsas acusações do governo e arrecadar fundos para a defesa judicial do

integrante do CAE. Depois de um julgamento que durou quatro anos, finalmente Steve Kurtz foi

inocentado. Cf. Gregory Sholette, “Disciplining the avant-garde: the United States versus the Critical Art

Ensemble”, in CIRCA: Contemporary Visual Culture in Ireland. No. 112. Summer, 2005, p. 50-59.

Disponível em http://www.neme.org/texts/disciplining-the-avant-garde Acesso 27 de julho de 2019. 428 Sítio profissional de Ricardo Dominguez: http://www.calit2.net/people/detail.php?id=465 Acesso 27de

julho de 2019. Para mais informações sobre as atividades do EDT, ver a entrevista:

https://rhizome.org/editorial/2016/jan/26/interview-with-ricardo-dominguez/ Acesso 27 de julho de 2019.

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298

alterglobalização na virada do milênio junto ao ativismo de rua, e em seguida, o

Anonymous e o WikiLeaks vieram à tona para demonstrar o que a desobediência civil

eletrônica é capaz de fazer quando fabrica uma máquina de guerra cibernética, anônima,

invisível e por vezes incapturável pelos radares dos sistemas oficiais de inteligência

governamentais.

Imagem 53 – Electronic Disturbance Theatre 2.0.429

Neovanguardas Contemporâneas

O Critical Art Ensemble e o Electronic Disturbance Theater entrarão para a

história da arte-revolta como pioneiros no desenvolvimento de máquinas de guerra

artísticas, culturais, eletrônicas e cibernéticas. Eles e muitos outros grupos que dão vida

às micropolíticas da criação contemporâneas formam, em conjunto, as neovanguardas da

resistência. O papel que desempenham ao fundar discursividades críticas, promover ações

contestatárias, dotar de sentido político suas práticas no interior do pancapitalismo, tudo

isso os coloca na linha de frente dos processos de transformação experimentados nos anos

429 Imagem disponível no endereço

https://en.wikipedia.org/wiki/Electronic_Disturbance_Theater#/media/File:Electronic-disturbance-

theater.jpg Acesso 27 de julho de 2019.

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299

recentes. Mas existe um detalhe. O conceito de neovanguarda não se refere a quem está

à frente de seu tempo, mas àqueles que, imersos no contemporâneo, arrastam consigo um

mundo em transformação. São atratores estranhos e catalisadores de mudanças. A

vanguarda modernista era filha do progresso, acreditava na linearidade histórica e

fabricava para si uma quimera de que a vanguarda artística estava à frente para guiar a

marcha da história. Imagem reflexa das vanguardas revolucionárias. Era preciso

confrontar o poder frontalmente, tomá-lo de assalto, constituir uma nova instituição. E o

círculo fatalmente recomeçava. As ideologias políticas clássicas desempenhavam nesse

modelo seu papel programático. No entanto, suas palavras de ordem caíram em desuso

uma após a outra, caladas pelo poder novamente instalado. Tragadas por Cronos, as

insígnias revolucionárias tradicionais sentem dificuldades em acompanhar as radicais

mudanças do tempo. Alguns ideais, traídos, mancharam a história, outros perderam-se

pelo caminho. Ainda resistem, tentam se infiltrar nas sendas traçadas pela revolta

contemporânea, e do cruzamento com as sensibilidades e os clamores presentes haverão

de inspirar outra vez o mundo. Enquanto isso, a revolta continua a nutrir a resistência com

formas diversificadas de lutar pela vida, por liberdade e justiça. Enquanto alguns tentam

constituir um novo poder, outros se lançam nas campanhas pela destituição, em fuga

criativa, precipitando mudanças umas após as outras, com a sensação de que a resistência

será sempre um destino da revolta. O brado lançado na história pela arte-revolta ecoa, e

o que outrora constituía expressão de um movimento, com seus axiomas e programas

políticos, tornou-se uma multidão de vozes e gestos em profusão como para fundir corpos,

desejos, espíritos e sonhos, e assim, abrir passagens a realidades até então inimagináveis.

As neovanguardas não possuem nome próprio, não têm rosto, nem são propriamente um

movimento orquestrado, dirigível por agentes ou representantes. Ao invés de firmar um

legado, reinscrevem suas ações criando a cada vez novos mundos possíveis, prefigurados

nos atos mesmos que dão nascimento, nas relações, em coletivos, coalisões, com

tecnologias, discursos, estéticas, que encarnam formas de vida sem qualquer ensaio e,

portanto, necessariamente emergentes. Por isso mesmo, será mais adequado tratá-las

como pura multiplicidade, que, se bem os coletivos, artistas e produtores culturais

encarnem seus personagens conceituais, em sinuosos e ágeis contornos, em toda

singularidade eles nada mais são do que os operadores, entre muitos outros, que lutam

criativamente, sem cessar, a fim de incrementar a dimensão social, imaginal, relacional,

afetiva e ecológica com os toques do único e irrepetível.

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CONSIDERAÇÕES FINAIS

Desde seu surgimento, o Critical Art Ensemble aposta suas fichas no jogo pós-

moderno em prol da autonomia e contra as tendências autoritárias na esfera da cultura,

investindo sua criatividade em práticas de resistência. Para fazer frente ao poder nômade

do pancapitalismo, elabora uma crítica radical aos dois maiores complexos tecnopolíticos

da atualidade, a informática e a biotecnologia, sem recusar, no entanto, o papel das

tecnologias na luta contra a opressão. Por isso, ao mesmo tempo, promove ricas pesquisas

sobre as aplicações possíveis dos conhecimentos e das tecnologias em sentido diverso ao

colocado em prática pelas indústrias e pelos estados. Dessa forma, a fim de combater o

controle e a vigilância, o CAE convoca a resistência a apropriar-se das tecnologias com

propósitos libertários.

O CAE sintetiza a realização da arte engajada no contemporâneo, pois une arte,

tecnologia e pesquisas acadêmicas fundindo-as em um todo coerente. Como dito nesta

pesquisa, o grupo é concretamente um grupo de criação e estudos integrados (no sentido

excepcional aqui empregado) pois agencia a imaginação e a criatividade típicas das artes

com os estudos e as pesquisas pertinentes à tarefa da crítica. O grupo consegue, assim,

orientar o potencial da revolta para o aspecto crítico e inventivo da resistência artística

como forma de problematizar temáticas contemporâneas. Com esse objetivo, elabora

teorias e linguagens argumentativas nos livros e manifestos, bem como linguagens

imagéticas, simbólicas e não-racionais direcionadas à dimensão dos sentidos, dos afetos

e desejos.

Para manter o princípio da revolta aceso, o CAE faz valer uma potência destituinte

na estética do distúrbio, aparentemente a melhor alternativa para combater o espetáculo

integral do pancapitalismo. A estética do distúrbio favorece a criação de possibilidades

nos campos do pensamento e da ação, e em última análise, abre o campo ontológico para

a criação de universos incorpóreos, performáticos, empíricos, capazes de se materializar

nas subjetividades, na vida cotidiana e na cultura. Por meio de antropotécnicas

situacionistas, o grupo estimula exercícios metanoicos naqueles que tomam contato com

suas produções.

Sem dúvida, a prática da resistência cultural e artística contribui para a propagação

da própria resistência como um todo sempre que, de forma exemplar, surgem novas

identificações com a práxis libertária e com os efeitos emancipatórios que ela

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301

desencadeia. O legado do CAE deixa entrever, com singularidade, que a melhor forma de

manter e sofisticar a capacidade de resistir é criar as condições de possibilidade para a

expressão da revolta em processos libertários.

Ainda que a era da reprodutibilidade técnica da arte inaugurada pela fotografia

tenha alcançado o patamar da realidade virtual, a técnica por si mesma jamais plasmará o

maior projeto das vanguardas artísticas do século XX: a realização da arte e da poesia,

quando, finalmente, a arte transformará a vida por completo, a começar pela própria

noção de vida que se tem hoje. Entretanto, a história da arte contemporânea mostra o

ímpeto de inúmeros artistas e coletivos em estreitar as conexões entre a esfera estética do

campo artístico e a dimensão micropolítica da vida cotidiana, até o ponto de fazerem-nas

coincidir na arte existencial ou na experiência da vida como acontecimento estético e

portanto criador.

A tese inicial desta pesquisa era a de que o CAE, na história da arte

contemporânea, desponta como uma das mais expressivas máquinas de guerra da

resistência cultural do presente. E que o paradigma estético da resistência artística e

cultural que se vale da força criativa do distúrbio parecia ser, senão o único, muitas vezes

o mais apropriado para fazer frente ao poder de captura do desejo e das subjetividades na

sociedade do espetáculo.

A ideia de que o CAE consiste em uma neovanguarda da resistência cultural

encontrou evidências nos estudos de críticos de arte contemporânea. Hal Foster identifica

uma mudança conceitual e prática importante no sentido histórico das vanguardas.

Aquelas que deflagaram a máquina de guerra há um século eram consideradas vanguardas

pelo seu ímpeto transgressor, dos limites, das formas, das convenções institucionais. No

contexto do pós-guerra, quando o universo das artes incorpora o legado dos transgressores

na instituição, só faz sentido falar de vanguarda enquanto resistência. De vanguarda

transgressora, a arte-revolta torna-se resistência.

A máquina de guerra, enquanto conceito político, mostrou-se igualmente eficaz

no tratamento crítico dado ao CAE. Diversos autores concordam no caráter combativo do

coletivo, inclusive Nato Thompson, curador e crítico de arte intervencionista, que

descreve as atividades do Critical Art Ensemble usando a expressão guerrilha cultural.

Quanto à hipótese de que a estética do distúrbio é uma das formas mais eficazes

da resistência atual aos imperativos do espetáculo capitalista, acumularam-se evidências

que a confirmam. Nas atuais sociedades pós-fordistas, os processos de subjetivação são

diretamente industriais, e em um ambiente social atomizado, tornam-se fundamentais

Page 302: critical art ensemble - UFRN

302

para produzir subjetividades conformes à normalidade exigida das pessoas. Os arsenais

antropotécnicos formulados pelo CAE, o teatro recombinante, a mídia tática, a resistência

eletrônica, a estética do distúrbio, as intervenções moleculares e a biologia contestatária,

consistem em formas de intervenção social que incidem justamente nos processos de

subjetivação. O entrecruzamento da estética do distúrbio com os processos de

subjetivação negativas típicos do pancapitalismo produz um choque e desmantela, ainda

que temporariamente, a reprodução das opiniões e ideologias dominantes.

Por meio de um ativismo antropotécnico, artístico, midiático, cultural e

micropolítico, o CAE formula as condições de possibilidade para uma subjetivação

política, no sentido que Lazzarato atribui à expressão. As experiências e os produtos

produzidos pelo CAE podem ser considerados, portanto, atratores estranhos e

catalisadores de processos de subjetivação outros, críticos, questionadores, reflexivos,

que remetem a uma outra forma de ser e existir.

PARA UMA SOCIOLOGIA DA REVOLTA

Do ponto de vista científico, esta Tese pode ser lida como um capítulo da obra em

curso e a se fazer continuamente de uma Sociologia da Revolta. O estudo do Critical Art

Ensemble ilustra e exemplifica o que pode ser realizado nesse campo da sociologia

contemporânea. Aqui, o destaque recai sobre a arte como expressão cultural da revolta, e

a micropolítica como campo de formulação coletiva de um sentimento que mobiliza

indivíduos, grupos, classes e massas há pelo menos dois séculos. Os objetos de estudos,

no entanto, podem variar, afinal, enquanto fenômeno social, a revolta adquire vários

formatos, em movimentos sociais e políticos, mas também artísticos e culturais.

Uma época como a que vivemos, de acirramento dos conflitos sociais, culturais e

políticos, não se pode perder de vista o sentido ético da revolta que Albert Camus soube

muito bem legar para a posteridade. Em um diálogo com a obra do autor, inspiração de

primeira magnitude desta pesquisa, proponho nestas considerações finais contribuir para

a elaboração de uma tipologia sociológica da revolta.

Na obra O Mito de Sísifo, sob o tema do absurdo, Camus tenta expor uma saída

ao problema da falta de sentido da existência. No tempo em que as guerras e o terrorismo

de Estado estavam na ordem do dia, quando a ciência tornava-se um tentáculo da máquina

de guerra mundial e a existência perdia seu sentido, a pergunta filosófica central, “afinal,

a que se destina viver?”, adquire os contornos radicais que sua filosofia primeira expressa.

Page 303: critical art ensemble - UFRN

303

Lutando contra os muros do absurdo edificados no interior da civilização pretensamente

racional, Camus propõe uma escolha trágica ao encarar a face mais terrível do niilismo,

espelho interior no qual se refletem, numa fusão irracional, desilusão, angústia, náusea e

desespero humanos. A pergunta é formulada no início do livro:

Só existe um problema filosófico realmente sério: o suicídio. Julgar se

a vida vale ou não vale a pena ser vivida é responder à pergunta

fundamental da filosofia. O resto, se o mundo tem três dimensões, se o

espírito tem nove ou doze categorias, vem depois. Trata-se de jogos; é

preciso primeiro responder. E se é verdade, como quer Nietzsche, que

um filósofo, para ser estimado, deve pregar com o seu exemplo,

percebe-se a importância dessa resposta, porque ela vai anteceder o

gesto definitivo. São evidências sensíveis ao coração, mas é preciso ir

mais fundo até torná-las claras para o espírito.430

O tema não aparece claramente, mas visto em retrospectiva, a obra O Mito de

Sísifo é uma primeira elaboração da revolta no pensamento de Camus. Trata-se, neste

momento, de uma revolta egoísta, enclausurada nos muros do absurdo interior. Diz ele:

“Sempre se tratou o suicídio apenas como um fenômeno social. Aqui, pelo contrário,

trata-se, para começar, da relação entre o pensamento individual e o suicídio. Um gesto

desses se prepara no silêncio do coração, da mesma maneira que uma grande obra”.431

Posteriormente, com a experiência das guerras amadurecida, a revolta contra o absurdo

passa por um novo tratamento na obra O Homem Revoltado, desta vez, com caracteres

éticos e políticos.

Da leitura de O Mito de Sísifo para O Homem Revoltado, percebe-se uma mudança

de sentido da revolta tal como a sente e compreende Camus. A questão deixa de ser se a

vida vale ou não a pena ser vivida. Mas por que vida vale lutar. A fórmula torna-se

“revolto-me, logo existimos”,432 fórmula que expressa a passagem de uma revolta de tipo

egoísta para uma revolta altruísta, com caracteres claramente sociais. Enquanto o suicídio

responde a uma recusa absoluta a continuar vivendo, a revolta elabora uma recusa

circunscrita à existência. Em vez de absoluta, a recusa da revolta é relativizada.433 Trata-

se de continuar a viver, mas negando-se a aceitar a totalidade da vida como ela é (ou

parece ser ao revoltado).

430 Albert Camus. O Mito de Sísifo. Rio de Janeiro: Record, 2004, p. 17. 431 Albert Camus, O Mito de Sísifo, p. 18. 432 Albert Camus. O Homem Revoltado. Rio de Janeiro: Record, 2003, p. 35. 433 A revolta só visa ao relativo e só pode prometer uma dignidade certa combinada com uma justiça

relativa. Ela toma o partido de um limite no qual se estabelece a comunidade humana. O seu universo é o

universo do relativo”. Albert Camus, O Homem Revoltado, p. 333.

Page 304: critical art ensemble - UFRN

304

A disparidade entre o que se sente e pensa, e o mundo no qual se vive, exige uma

resposta para além da negatividade, que precisa ser de alguma forma afirmativa. Eis a

resposta tal como é formulada em O Mito de Sísifo. A consciência absurda se instala na

fenda aberta pelo divórcio do ser com o mundo e, embora sem resolver o dilema, decide-

se pela negação do suicídio, ainda que por motivos unicamente individuais. Entre a vida

e a morte, entre a renúncia absoluta à continuidade da vida, e a possibilidade de viver

outra realidade, no primeiro momento da obra de Camus, a revolta afirma-se em sua

condição existencial.

Em O Homem Revoltado, o problema (individual) do suicídio é transposto para

uma problemática política mais ampla, na qual se insere a discussão da revolta. De

negação absoluta, a resposta, ao mesmo tempo ética e política, formula-se na afirmação

paradoxal da dinâmica da vida. Assim fazendo, as figuras da revolta elaboradas

interiormente, tal como apresentadas por Kristeva, externalizam-se ora como transgressão

social, política, cultural, ora como perlaboração de significados e sentidos, ou então como

jogo, combinatória, possibilidade de transformação.434

O ciclo se completa quando, na mesma obra, a conceituação filosófica contrapõe

a revolta às figuras do niilismo em suas diversas facetas históricas modernas. Em

determinado nível de análise, o tratamento filosófico que Camus dá ao tema da revolta

tem um tom nietzscheano, principalmente porque a temática está articulada ao fenômeno

do niilismo, ou seja, à queda dos fundamentos metafísicos e morais do mundo e a

correspondente ausência de sentido da existência que o acontecimento implica na história

da subjetividade moderna.435 O tema do niilismo, em toda sua complexidade, por si só

merece um trabalho inteiro à parte. Para o que interessa nesta discussão, basta sintetizar

na forma como Jean Granier arremata a definição:

O termo “niilismo”, que já se encontra em Jacobi, Ivan Turguêniev,

Dostoiévski, os anarquistas russos, e que Nietzsche toma a Paul

Bourget, serve para designar, em Nietzsche, a essência da crise mortal

que acomete o mundo moderno: a desvalorização universal dos

valores, que mergulha a humanidade na angústia do absurdo, impondo-

lhe a certeza desesperadora de que nada mais tem sentido.436

434 Julia Kristeva. Sentido e contra-senso da revolta: poderes e limites da psicanálise I. Rio de Janeiro:

Rocco, 2000, p. 37. 435 Friedrich Nietzsche foi o primeiro a elaborar uma problematização filosófica do tema. O niilismo

aparece na Genealogia da moral: uma polêmica. São Paulo: Companhia das Letras, 2004. Nas obras

póstumas, a temática aparece compilada em A vontade de poder. Rio de Janeiro: Contraponto, 2008. Para

uma visão geral do tema, cf. Franco Volpi. O niilismo. São Paulo: Edições Loyola, 1999. 436 Cf. Jean Granier. Nietzsche. Porto Alegre: L&PM, 2009, p. 31. Para uma abordagem contemporânea do

niilismo, ver Peter Pál Pelbart. O avesso do niilismo: cartografias do esgotamento. São Paulo: N-1

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305

Como no ambiente cultural do niilismo os valores se depreciam, falta uma fonte

de valores que sirva de referência para hierarquizar as atitudes individuais e coletivas. No

campo político, o núcleo do niilismo revela-se para Camus na falta de quaisquer critérios

para a ação política, nem humanos, nem éticos. A revolta, no horizonte do niilismo, corre

o sério risco de se degradar em seu avesso, tirania, autoritarismo, sede de vingança,

políticas da morte, microfascismos, entre outras figuras deturpadas. O que tenta Camus

com relação ao problema da revolta é politizá-lo em termos filosóficos e éticos, e assim

o faz passando a limpo a história moderna da revolta como sintoma e possível superação

do niilismo.

De uma perspectiva sociológica, nos últimos dois séculos, sentimentos de

inadequação, incômodo e inadaptabilidade deram a tônica aos afetos coletivos

desencadeados pelas transformações nas estruturas das sociedades ocidentais. Enquanto

o mundo pré-moderno desmoronava com a ruína das ordens feudais e a queda dos valores

tradicionais, o mundo industrial se impôs de forma implacável, sem, no entanto, fornecer

substratos psíquicos ou sociais capazes de conter o estranhamento, a recusa, a indignação

e o ressentimento, que logo encontraram seus canais de expressão nas rebeliões

individuais e coletivas. Em um ambiente conturbado pela transição de um mundo antigo

para uma realidade inteiramente nova, entre uma tradição que perdia sua força, de um

lado, e o poder moderno materializado na indústria e nos Estados, de outro, as figuras de

autoridade e os códigos de valores caíram fatalmente em descrédito.

Com a sensibilidade assim inflamada, nada mais foi capaz de deter a revolta no

seu afã de impulsionar a formação de práticas e discursos claramente revolucionários

como expressão de uma profunda recusa face a sistemas de governo, políticas estatais e

regimes de poderes opressores, que sofreram com os revides dos movimentos de

contestação dos trabalhadores, de estudantes e de vilipendiados na França, na Alemanha,

na Inglaterra, na Rússia e nos Estados Unidos. Desde então, a legitimidade do poder tem

que lidar com a fúria e a insatisfação das massas.

Em uma história marcada por levantes, insurreições, traições e corpos rebelados,

a estaca da revolta moderna foi cravada definitivamente no âmago do poder. O homem

revoltado expôs sua face distorcida no curso da história. Entre sangue, suor e lágrimas, a

modernidade foi convulsionada por lutas as quais jamais cessaram de colocar em xeque

Edições, 2016.

Page 306: critical art ensemble - UFRN

306

os poderes. Todo regime político, desde então, encontra-se permanentemente abalado em

seu núcleo pelas forças insurretas da revolta.

A genealogia moderna traçada por Camus mostra que o movimento da revolta na

história carece muitas vezes de uma consciência sensível à condição humana. Os

totalitarismos do século XX ilustram o pesadelo niilista a ser afastado por todos os que

anseiam manter de pé a figura do homem revoltado. Os regimes autoritários, cada um à

sua maneira – o nazismo com a ideia de raça, o fascismo com o ideal de nação, e o

comunismo com a foice e o martelo do partido –, reduziram o valor da vida e da liberdade

humanas a nada, à medida que outorgavam o assassinato sob o julgo da razão de Estado.

O império da força suplantou qualquer noção de limite face à dignidade humana, valendo-

se, para isso, de justificativas ideológicas que retiravam dos imperativos dos fins sua razão

de ser. Contra todos os apelos em contrário, a razão da raça, da nação e do partido forjaram

de punhos armados a legitimação da tirania absoluta sobre a vida da mais frágil figura da

história, o indivíduo. Num caso como no outro, a revolta que aparentemente estava na

origem da paixão pela mudança, da busca pela justiça e por uma ordem superior, foi

tragicamente tragada por forças que escaparam à consideração humana.

Enquanto isso, nas vanguardas artísticas do mesmo período, a revolta fez sua

própria história. Hoje não se pode falar da história da arte moderna sem remetê-la à

Sociologia da Revolta, a tal ponto da linha genealógica de uma confundir-se com a da

outra. Desde antes, já no impressionismo, e depois, com o futurismo, o dadaísmo, o

surrealismo, etc., os experimentos com as antropotécnicas formais e expressivas nas artes

remodelaram o cenário artístico do Ocidente. As belas-artes, que durante séculos

reinaram impávidas sob o manto da nobreza e das aristocracias, foram alvo de

intelectuais, poetas, artistas e escritores que colocaram em marcha a potência poética da

revolta, alargando as fronteiras do campo artístico, dinamizando as formas de expressão

e os conteúdos trabalhados esteticamente, o que, ademais, estreitou os laços da arte com

os problemas e as venturas da vida.

Em linhas rápidas, tem-se assim uma breve retrospectiva histórica que revela a

plasticidade da revolta em suas várias expressões sociais, nenhuma das quais mostrou-se

capaz de aplacar o mal-estar na civilização nem a crueldade impingida ao coração

humano.

Ao submeter as expressões da revolta ao escrutínio ético-político, o pensamento

de Camus representa o ponto alto da consciência revoltada, pois nele o exame histórico

da revolta e do niilismo resulta em uma avaliação que sintetiza, com lucidez e coerência

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307

inigualáveis, o legado, os acertos e os equívocos em torno da revolta no decorrer dos

últimos séculos, tornando claro inclusive o parâmetro para a avaliação do valor da revolta.

Neste sentido, O Homem Revoltado pode ser lido como uma genealogia na qual a história

da revolta se faz em função de uma avaliação do valor da revolta mesma, com a diferença

de que, ao fim e ao cabo, o que Camus coloca em primeiro plano é o valor positivo da

revolta (seu sentido filosófico, ético-político), que serve como parâmetro para avaliar

qualquer acontecimento no qual a revolta esteja implicada, enfatizando sobretudo seu

caráter libertário e transformador.

A revolta ética, portanto, busca esclarecer seu sentido histórico perante si mesma,

e ao fazê-lo, desmonta as falsas revoltas, as rebeliões traídas, que muitas vezes dão origem

a indivíduos totalitários, e que na dimensão social, política, originam projetos de

dominação, políticas de extermínio. O niilismo, que se reveste das qualidade da revolta,

não passa pelo teste ético a que submete Camus, artistas, escritores e filósofos, e

sobretudo, as ideologias dominantes em seu tempo.437 As revoluções, a pretexto de

realizarem os sonhos de libertação oriundos da revolta, não raro tem erigido regimes

monstruosos, nos quais os que se acreditavam imbuídos da revolta, capitulam ante a

ascensão dos poderes constituintes e sucumbem nos braços de ferro dos governos. Há

sempre o risco do ciclo negativo inerente à revolta se fechar e acabar no niilismo, na

negação da vida e da liberdade a que se deve a legitimidade da revolta enquanto fenômeno

ético-político. É nesse sentido que a obra O Homem Revoltado expressa de forma

exemplar uma consciência histórica, e deve ser lida como o autoesclarecimento mais bem

elaborado da revolta em bases humanistas.

Da revolta egoísta com a qual se lança no Mito de Sísifo, à revolta ética e política

da obra O Homem Revoltado, vê-se a passagem de um tipo de revolta egoísta para um

tipo de revolta altruísta. Decidido a viver entre pares, o homem revoltado adquire a

consciência e a sensibilidade que lhe vinculam aos demais membros da humanidade, à

comunidade política e à natureza de onde tudo advém e para onde tudo retorna. E assim

o faz contrapondo-se ao niilismo, que nada mais é do que efeito de uma revolta traída em

seus pressupostos, resultado não esclarecido, vazio de significado ético, revolta incipiente

que se mostrou equívoca na superação da confusão que o mal-estar gera.

437 O que lhe custou caro em termos políticos e pessoais. Sobre a repercussão da obra O Homem Revoltado,

cf. Ronald Aronson. Camus e Sartre: o polêmico fim de uma amizade no pós-guerra. Rio de Janeiro:

Nova Fronteira, 2007.

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308

Na ausência de um sentido ético-político capaz de equilibrar o aspecto negativo

que lhe é intrínseco, a revolta muda de natureza e se torna seu contrário. Em termos

conceituais, a revolta é negação, mas antes de tudo, afirmação. Essa foi, sem dúvida, a

maior lição que Camus deixou para as gerações que lhe sucederam. No discurso que

profere ao receber o Prêmio Nobel, Camus dá seu testemunho que ecoa até hoje, e no qual

se depreende o sentido engajado que sua elaboração da revolta implica:

Ninguém, suponho, lhes pode exigir que sejam otimistas. E sou mesmo

da opinião que devemos compreender, sem cessar de combatê-los, os

erros daqueles que, por um lance do desespero, têm reivindicado o

direito à desonra e se precipitam no niilismo da época. Mas a verdade é

que a maioria de nós, em meu país e na Europa, tem recusado esse

niilismo e já se colocou em busca de uma legitimidade. Foi preciso

desenvolver uma arte de viver para esses tempos de catástrofe, para

nascer uma segunda vez e, em seguida, lutar francamente contra o

instinto de morte na obra da nossa história.438

O instinto de morte, quando se apodera da revolta, gera os efeitos contrários,

diretos ou colaterais, das tensões suicidárias, do ultimato assassino, do terrorismo e do

totalitarismo. Mas não se trata mais de revolta, conceitualmente falando, nem talvez de

rebeldia. Na revolta convergem forças vitais, existenciais, que anseiam se expandir, e se

revoltam-se, é porque uma forma de vida decretou para si mesma, antes de mais nada,

seu direito à existência, ou então, deve-se a seu desacordo com circunstâncias que deseja

superar para melhor viver, o que dá no mesmo. A revolta visa a uma afirmação superior

da existência, é libertária por princípio e não se confunde com ressentimento nem

vingança. É a conclusão a que chega Camus no final de sua obra:

A revolta prova que ela é o próprio movimento da vida e que não se

pode negá-la sem renunciar à vida. Seu grito mais puro, a cada vez, faz

com que um ser se revolte. Portanto, ela é amor e fecundidade ou então

não é nada. A revolução sem honra, a revolução do cálculo, que, ao

preferir o homem abstrato ao homem de carne e osso, nega a existência

tantas vezes quanto necessário, coloca o ressentimento no lugar do

amor. Tão logo a revolta, esquecida de suas origens generosas, deixa-

se contaminar pelo ressentimento, ela nega a vida, correndo para a

destruição, fazendo sublevar-se a turba zombeteira de pequenos

rebeldes, embriões de escravos, que acabam se oferecendo hoje, em

todos os mercados da Europa, a qualquer servidão. Ela não é mais

revolta nem revolução, mas rancor e tirania. Então, quando a revolução,

em nome do poder e da história, torna-se esta mecânica assassina e

desmedida, uma nova revolta é consagrada, em nome da moderação e

438 Albert Camus, “Discours de Suède, 10 décembre 1957”, in Oeuvres. Imprimé en France: Gallimard,

2013, p. 81.

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309

da vida. Estamos neste extremo. No fim destas trevas, é inevitável, no

entanto, uma luz, que já se adivinha – basta lutar para que ela exista.

Para além do niilismo, todos nós, em meio aos escombros, preparamos

um renascimento. Mas poucos sabem disso.439

Uma obra que começa com a questão da revolta termina com o amor, sentimento

pródigo capaz de fazer o homem nascer de novo em vida. Uma outra vida que emerge

necessariamente de uma profunda metamorfose antropológica.

Assim como a revolta lança o homem no campo da política, o amor abraça valores

que vinculam os seres entre si e os conecta pelo sentimento ao mundo e à experiência da

vida em comum. É possível pensar então uma antropolítica a partir da revolta, como faz

Edgar Morin a começar com o amor. Uma antropolítica que, nas relações entre as pessoas,

opera criações, saídas, acordos e mesmo rupturas, por vias pacíficas, solidárias, que

preservam os ganhos da história humana.

Ao tratar o amor como uma categoria política, é possível pensá-lo como

disposição para a mudança, efusão revolucionária que está na origem de todo processo de

transformação social profundo, quando a revolta e o amor, aflorados e intensificados em

meio aos movimentos da vida, tornam-se fonte de criação e ganham o mundo para

fazerem dele uma nova realidade. É o que Alex Galeno diz quanto ao poder de

transformação do amor, que “nos leva a um exercício de alteridade no qual nos obrigamos

a ser parte do outro” (a exemplo de como dizia Rimbaud, o eu é um outro), mas que

também, expande seus efeitos nas experiências da vida em comum: o amor à humanidade,

à vida, à natureza, aos cosmos.440

Na obra filosófica de Camus, portanto, é possível identificar a trajetória de um

homem que por amor se insurge contra o mundo, ou melhor dizendo, contra a parte

reprovável da realidade, não para negá-la em bloco, mas para melhor afirmar a vida pela

via de uma determinação transfiguradora do real. Ao homem revoltado, real e realidade

não se confundem. A realidade é tão só uma figuração provisória do real, que de fato e

por definição é infinitamente plástico e aberto à criação. A matéria sobre a qual se debruça

a revolta emana da colisão do real com a realidade que o martelo criador de valores revela

ao dilapidar o destino ainda sem formas. Assim fazendo, imprime sua vontade na sucessão

histórica dos acontecimentos que haverão de consubstanciar as forças do por vir.

439 Albert Camus. O Homem Revoltado, p. 349. 440 Cf. Alex Galeno, texto inédito intitulado “Edgar Morin: um pensador legislador”, escrito para o evento

Jornadas Edgar Morin promovido pelo SESC-SP em 2019.

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310

O tema da revolta tratado filosoficamente por Camus presta-se ainda a uma

interpretação sociológica, assim como em Nietzsche, o tema do niilismo. As análises, as

cadeias explicativas, as ordens das razões, quando se considera o fenômeno, são

imediatamente sociológicas, pois se articulam na intersecção entre o psiquismo

individual, a consciência coletiva e os acontecimentos políticos que se encadeiam na

história. A combinação de tais elementos torna possível considerar, a princípio, três tipos

de revolta abstraídos da obra de Camus em uma leitura sociológica: uma revolta egoísta,

uma revolta altruísta e uma revolta anômica, a exemplo do que faz Durkheim ao tratar o

suicídio enquanto fato social. A revolta egoísta tem por sentido motivações estritamente

individuais. É a revolta típica da modernidade e das sociedades altamente

individualizadas. A revolta altruísta tem por motivação sentidos e valores sociais.

Geralmente associada a movimentos políticos e sociais, a revolta altruísta alçou a outras

formações micropolíticas nos movimentos pós-socialistas, neoanarquistas tratados nesta

pesquisa. E por fim, a revolta anômica, que ocorre em momentos de crise de legitimidade

das instituições e dos poderes, quando os sentimentos de base sociais são convulsionados

e, no lugar do conformismo, instala-se uma insatisfação generalizada, crônica ou

patológica. Em um ambiente social assim caracterizado, a revolta tende a se espalhar, e

em determinado grau de intensidade, a despeito de quaisquer poderes, pode culminar em

conflitos, levantes, insurreições ou mesmo revoluções. Os três tipos de revolta assim

definidos têm a potencialidade de se degradar em niilismo, desde quando relegam o

elemento libertário e voltam-se contra sua fonte de origem.441 Mas possuem também um

imenso potencial solidário, com suas inclinações coletivas que emanam das lutas

populares, pela sobrevivência, pelos modos de vida comuns, pelas causas religiosas,

espirituais, ecológicas, culturais.442 A história moderna é rica em exemplos das duas

tendências.

441 Nietzsche e Stirner são exemplos analisados por Camus de revoltas egoístas que cedem ao ultimato

niilista. O marxismo revolucionário, um caso entre outros de revolta histórica que, a pretexto de fundar uma

sociedade em um ideal de justiça terrena, recai no niilismo estatal em que tudo é admitido em prol da causa,

inclusive o assassinato. 442 Cf. Michel Foucault. O enigma da revolta: entrevistas inéditas sobre a Revolução Iraniana. São

Paulo: N-1 Edições, 2019. Ao ensaiar análises sobre o caso iraniano no final da década de 1970, Foucault

vincula o tema da espiritualidade à política. Em determinados casos, existe uma dimensão espiritual na

revolta, desde que se compreenda a espiritualidade como a experiência por meio da qual é possível

modificar-se a si mesmo, tornar-se outro em relação ao que se é, ao que se foi. Ato de revoltar-se que

manifesta uma mudança, ao mesmo tempo, um recusa e uma abertura de sentido. O tema da espiritualidade

e sua relação com a verdade, com o cuidado de si e os saberes será retomado e desenvolvido amplamente

nos cursos do Collège de France, especialmente em 1981-1982. Cf. Michel Foucault. A hermenêutica do

sujeito: curso no Collège de France (1981-1982). São Paulo: Martins Fontes, 2010.

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311

Em definitiva, a tensão que a revolta carrega consigo, interiormente e com relação

ao exterior, é constitutiva de um afeto complexo no qual estão implicados condicionantes

individuais, sociais, políticos, culturais e históricos muito variados, ainda mais nas atuais

sociedades hipercomplexas em que os afetos sociais são submetidos a imperativos e

mudanças intermitentes.

Entretanto, uma tipologia da revolta está longe de se exaurir. Esse é tão só um

ponto inicial. Uma demarcação de partida que enseja todo o trabalho posterior. O próprio

Camus apresenta sua tipologia na genealogia do niilismo moderno. Os exemplos se

multiplicam: revolta metafísica, revolta romântica, revolta histórica, revolta artística.443

Será sempre necessário elaborar uma e outra tipologia em contato com os fenômenos

emergentes das forças históricas que é preciso a cada vez considerar.

Nesse plano conceitual, o Critical Art Ensemble, objeto central desta Tese,

expressa e promove uma revolta de tipo altruísta, pois, como visto, seus propósitos e

valores são claramente sociais. Pode-se notar a diferença da revolta altruísta do CAE,

comparativamente a outros movimentos históricos tradicionais, a começar pelos seus

valores sociais, que não coincidem com os valores promovidos por sistemas ideológicos.

Trata-se de um coletivo que expressa bem o sentido da revolta ética-política abordada por

Camus e descrita por Kristeva, atravessado pelas dinâmicas históricas, autorreflexivo e

aberto às combinações criativas que as mutações da realidade exigem. Ao promover uma

micropolítica da criação, está em constante autoprodução. Suas atitudes e ideias-força,

seus projetos, as implicações sociais, culturais e políticas de seus atos, encontram-se em

contínua reflexão. A transgressão, o jogo, a elaboração dos sentidos que o movem,

perfazem as ações do coletivo desde o princípio de sua trajetória.

Enquanto grupo de criação, o CAE vincula a dimensão cultural da arte com o

campo de forças na política por meio de uma revolta afirmativa que recorre ao

experimentalismo contemporâneo com suas estéticas, matrizes performáticas e arsenais

antropotécnicos. A máquina de guerra artística agenciada pelo coletivo inventa,

recombina, desafia, provoca e destitui com produtos e vivências algumas tendências

443 Michael Lowy e Robert Sayre dedicam uma obra inteira a rastrear as origens românticas da revolta e

seus desdobramentos históricos. A obra delimita o resgate histórico pelo recorte marxista, deixando de lado

outras linhagens, mas faz bem o que se propõe e chega até os tempos recentes. Menciona o surrealismo, a

obra de Guy Debord, o Maio de 68 e sinaliza algo sobre os “novos movimentos sociais”, embora feche a

obra sem considerar a emergência das micropolíticas da criação que marcaram a virada do século XXI. Cf.

Revolta e Melancolia: o romantismo na contracorrente da modernidade. São Paulo: Boitempo, 2015.

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312

autoritárias presentes em seu tempo. Seu ativismo característico, também encontrado em

diversos grupos de criação, denominados artistas ou não, desde ao menos a década de

1990 – culminância da virada social nas artes e nas práticas culturais de resistência –,

demonstra o que uma revolta esclarecida, astuta, imaginativa e inventiva é capaz de

realizar.

Os estudos e as investigações inerentes à Sociologia da Revolta comportam

investimentos epistemológicos em pesquisas sobre movimentos sociais, políticos,

culturais e artísticos variados, fenômenos como resistências, desobediência civil,

levantes, insurreições, revoluções, conflitos pacíficos ou beligerantes no âmbito da

cultura enquanto realidade de manifestação social e política da revolta. Em

correspondência com os fenômenos em foco, trata-se de uma sociologia em perpétuo

estado de alerta aos movimentos que impulsionam e desafiam a imagem do mundo e o

princípio de realidade constituído.

Nesse sentido, a Sociologia da Revolta tem como dimensão privilegiada de

estudo, não as instituições, mas as micropolíticas, pois são nelas que se formulam e

adquirem realidade social as produções da revolta. As instituições, pelo contrário, tendem

a ser confrontadas pela revolta social, direta ou indiretamente. Na micropolítica, segundo

Deleuze e Guattari, ocorrem as mudanças significativas no interior das sociedades. Aliás,

as sociedades se definem pelas mutações que ocorrem no âmbito micropolítico. Quando

se trata de dinâmica social, a micropolítica é primeira, e é justamente por isso que os

poderes tentam reagir sobre ela, por dentro e por fora.

Diz-se erroneamente (sobretudo no marxismo) que uma sociedade se

define por suas contradições. Mas isso só é verdade em grande escala.

Do ponto de vista micropolítico, uma sociedade se define por suas

linhas de fuga, que são moleculares. Sempre vaza ou foge alguma coisa,

que escapa às organizações binárias, ao aparelho de ressonância, à

máquina de sobrecodificação: aquilo que se atribui a uma “evolução

dos costumes”, os jovens, as mulheres, os loucos, etc.444

Microssociologia das revoltas cotidianas, micropolíticas da revolta nas artes, no

pensamento, na cultura, nos movimentos, nas redes sociais. São muitas possibilidades. O

que se tentou evidenciar durante toda a pesquisa foi justamente a dimensão criativa,

afirmativa e prospectiva de mudanças provenientes das micropolíticas da resistência

444 Gilles Deleuze e Félix Guattari. Mil platôs: capitalismo e esquizofrenia (vol. 3). Rio de Janeiro: Ed.

34, 2004, p. 94.

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313

artística ao longo do século XX, e, mais especificamente, no decorrer das três décadas

recentes, período que perfaz a longa trajetória do Critical Art Ensemble.

Page 314: critical art ensemble - UFRN

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DOCUMENTÁRIO

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Page 327: critical art ensemble - UFRN

327

APÊNDICE 1

PRODUÇÕES DO GRUPO DE CRIAÇÃO E ESTUDOS INTEGRADOS GAYA SCIENZA

E DO EXPERIMENTO FLUXUS

Experimento Fluxus, grupo poético-musical, em 2007. Geovane Almeida, Lucas Fortunato e Edson Gonçalves Filho.

Machinapolis e a Caosmologia do Ser.

Livro de autoria do Grupo de Criação e

Estudos Integrados Gaya Scienza, formado

por Lucas Fortunato, Edson Gonçalves Filho

e Lisandro Loreto, com a colaboração de

Geovane Almeida e Robson Duarte.

Formados em ciências sociais, os autores têm

desenvolvido pesquisas no âmbito do

pensamento contemporâneo. O livro, escrito

em meio a práticas de teor poético (no

sentido excepcional atribuído ao termo pelos

autores), trata de questões atuais segundo

perspectivas filosóficas, científicas e

artísticas. Nele, o grupo apresenta os

resultados de sua experiência micropolítica

com as artes e uma vasta pesquisa teórica

sobre a megamáquina de guerra planetária,

em seus aspectos políticos, econômicos,

epistêmicos e tecnológicos. Disponível em

versão digital. Natal: EDUFRN, 2010, 312 p.

Page 328: critical art ensemble - UFRN

328

Pinturas de Lucas Fortunato. Óleo sobre tela.

Instalações de Lucas Fortunato e Geovane Almeida, respectivamente.

Page 329: critical art ensemble - UFRN

329

Instalação psicogeográfica Labirintos, 2005, UFRN.

Lucas Fortunato, Edson Gonçalves Filho e Geovane Almeida.

Page 330: critical art ensemble - UFRN

330

APÊNDICE 2

Os livros do Critical Art Ensemble tratam da replicação profundamente enraizada do

capitalismo nas fronteiras da ciência e da tecnologia. Seja discutindo robótica, tecnologias

da informação ou ciências biológicas, o CAE habilmente expõe as agendas ocultas que

estão na base da vida do século 21 e sugere intervenções e choques semióticos com o

potencial de negar coletivamente a crescente intensificação da cultura autoritária.

The Electronic Disturbance é a primeira coleção de ensaios e peças curtas

do CAE a explicar a natureza do poder nômade e da resistência na era do

virtual. Até o momento, este é o único título vertido para o português. No

Brasil, veio a público em 2001 na Coleção Baderna, coordenada e lançada

pela editora Conrad. “A atual revolução tecnológica criou uma nova

geografia das relações de poder - como dados, os seres humanos enfrentam

um impulso autoritário que prospera na ausência. Assim como uma

geografia virtual de conhecimento e ação, a resistência deve se afirmar no

espaço eletrônico”. Autonomedia, 1994, 156 p.

O livro Electronic Civil Disobedience continua onde The Electronic

Disturbance termina, sugerindo estratégias de resistência ao poder nômade

e investigando táticas de não racionalidade para chegar ao cerne da

autonomia. Fundindo um conceito de arte contestatária influenciado pelos

situacionistas, uma compreensão da natureza paralela da ação cultural e

política emprestada de Gramsci e a compreensão de um hacker de como

funciona a nova tecnologia, o Electronic Civil Disobedience refina a

compreensão da natureza do poder e da resistência na era da informação.

Autonomedia, 1996, 144 p.

Digital Resistance: Explorations in Tactical Media completa um tríptico

sobre a teoria e a prática da oposição nômade ao Poder. Começando com

uma discussão sobre “mídia tática” como um modo de oposição criativa fora

do ativismo político tradicional, o livro apresenta oito ensaios ilustrando a

amplitude de oportunidades que a mídia tática torna possível. Autonomedia,

2001, 192 p.

Em Flesh Machine: Cyborgs, Designer Babies e New Eugenic

Consciousness, o Critical Art Ensemble concentra suas atenções na nova

fronteira do pancapitalismo – o desenvolvimento político e econômico de

produtos e serviços que afetam a reprodução humana. O CAE inicia o

mapeamento desse desenvolvimento examinando o uso de tecnologias

reprodutivas para alcançar um grau de controle intensificado sobre o

trabalhador e o cidadão-consumidor. Este livro visa a estabelecer uma

contra-narrativa sobre as promessas espetaculares das indústrias.

Autonomedia, 1998, 156 p.

Page 331: critical art ensemble - UFRN

331

Molecular Invasion dá continuidade aos estudos iniciados no livro Flesh

Machine. Articulando a política dos transgênicos, desenvolve um modelo

para a criação de uma biologia contestatária e fornece táticas

intervencionistas diretas destinadas a interromper este ataque ao reino

orgânico. Inclui os ensaios “Sabotagem Biológica Fuzzy” e “Produção

Transgênica e Resistência Cultural: Um Plano em Sete Pontos”.

Autonomedia, 2002, 140 p.

Marching Plague examina as evidências científicas e a retórica em torno

da guerra biológica, e apresenta um forte argumento contra a probabilidade

de tais armas serem usadas em uma situação terrorista. Estudando a história

e a ciência militares, o CAE conclui que, por razões de precisão e potência,

as armas biológicas carecem da eficiência necessária para produzir a

devastação generalizada tipicamente associada ao bioterrorismo. “Por que

a urgência pública em torno da guerra biológica, então, e por que canalizar

enormes recursos em pesquisa e desenvolvimento de ferramentas para

combater uma ameaça imaginária? Esse é o foco real do livro: a

desconstrução de uma economia política do medo extremamente

complexa, principalmente por apoiar o desenvolvimento da guerra

biotecnológica e a militarização da esfera pública”. Autonomedia, 2006,

152 p.

Aesthetics, Necropolitics, and Environmental Struggle é o mais recente

livro publicado pelo CAE. “Com o típico sangue-frio, o CAE disseca a

besta de nossa própria criação: o Antropoceno. Esclarecendo as raízes

filosóficas da confusão euro-americana sobre a natureza, este texto oferece

uma medicina severa e essencial para chegar a um acordo com a nossa

situação ecológica”. Claire Pentecost, Professora do Instituto de Arte de

Chicago. Alguns temas abordados na obra: “Antropocentrismo

reconsiderado”, “Táticas: reinvenção da precariedade”, “Antissistemas,

indeterminação e práticas culturais experimentais”. Autonomedia, 2018,

168 p.

Disturbances compila a vasta produção do

Critical Art Ensemble em um álbum ricamente

ilustrado. Em comemoração aos seus 25 anos, a

obra permite ao coletivo fazer uma autoavaliação

de sua história, examinando os temas ambientais,

políticos e biotecnológicos de suas várias

iniciativas. Os projetos selecionados vão desde

as primeiras produções multimídia ao vivo,

passando pelo desenvolvimento de modelos de

desobediência civil eletrônica, resistência

digital, biologia contestatária e ecologia, até

chegar aos seus mais recentes projetos de mídia

tática.

Critical Art Ensemble: Disturbances.

Introdução por Brian Holmes. London: Four Corners Books, 2012, 272 p. Ilustrado.

Page 332: critical art ensemble - UFRN

332

APÊNDICE 3

FORMAÇÕES DO CRITICAL ART ENSEMBLE

1986

Steve Kurtz, Steven Barnes (produção de vídeos); Steve Kurtz, Steven Barnes, George

Barker, Claudia Bucher, Greg Carter, Joel Whitaker

1988

Steve Kurtz, Steven Barnes, George Barker, Claudia Bucher, Hope Kurtz, Dorian Burr,

Jennifer Canterberry

1988-1989

Steve Kurtz, Steven Barnes, Hope Kurtz, Dorian Burr, Beverly Schlee, Ricardo

Dominguez

1990

Steve Kurtz, Steven Barnes, Hope Kurtz, Dorian Burr, Beverly Schlee, Ricardo

Dominguez, Phil Gelb

1990-1993

Steve Kurtz, Steven Barnes, Hope Kurtz, Dorian Burr, Beverly Schlee, Ricardo

Dominguez

1993-2001

Steve Kurtz, Steven Barnes, Hope Kurtz, Dorian Burr, Beverly Schlee

2004

Steve Kurtz, Steven Barnes, Beverly Schlee

2005-Presente

Steve Kurtz, Steven Barnes, Beverly Schlee, Lucia Sommer445

445 Cf. CAE, Disturbances. London: Four Corners Books, 2012, p. 272.

Page 333: critical art ensemble - UFRN

333

ÍNDICE

INTRODUÇÃO 18

Critical Art Ensemble 22

A Tarefa do Pensamento Contemporâneo 26

A Questão da Revolta 28

A Máquina de Guerra Artística 33

Sumário Descritivo 43

CAPÍTULO 1

NOMADOLOGIA DA ARTE-REVOLTA:

A MÁQUINA DE GUERRA ARTÍSTICA 52

Espectros da Revolta 54

A Máquina de Guerra Artística 59

Arte e Política 59

Acerto de Contas 61

Avant-Garde 63

O Grito Dadaísta 66

A Super-Realidade 69

A Revolta Artística 72

Desregramento dos Sentidos 75

Rebeldes e Malditos 79

Estetização Generalizada 80

Neovanguardas 82

A Realização da Arte 83

Reencantamento do Mundo e Espetáculo 91

Enfrentando Dilemas 93

Novas Trincheiras 96

Conceituando Arte-Revolta 99

CAPÍTULO 2

POR DENTRO DO CRITICAL ART ENSEMBLE:

ARTE E REVOLTA NO CORAÇÃO DO IMPÉRIO 102

Os Anos de Formação 108

Virada do Século 109

Anos 80 110

Princípios 111

Surgimento 114

Os Primeiros Movimentos 118

Dinâmica Interna 119

Grupos de Criação 123

Pluralismo 126

O Revide da Arte-Revolta Contra o Espetáculo 128

Produções Multimídias 131

Apocalipse e Utopia 135

Conexões com o Ativismo Tradicional 137

Page 334: critical art ensemble - UFRN

334

CAPÍTULO 3

OS ARSENAIS ANTROPOTÉCNICOS DA REVOLTA:

A ESTÉTICA DO DISTÚRBIO 143

Palavras e Gestos Radicais 143

Artists’ Books 144

Teoria Crítica Engajada 146

Guerrilha Cultural 150

Matrizes e Formas de Expressão 153

Arte Conceitual e Plágio Utópico 154

Teatro Recombinante 158

A Estética do Distúrbio 165

Conceituando o Distúrbio 174

Explorações em Mídia Tática 187

Contexto Histórico 188

Definição Ativista 190

Praticando Mídia Tática 196

Intervenção Molecular 201

Subjetivação Política 210

CAPÍTULO 4

RESISTÊNCIA CULTURAL:

TRANSFORMAR O MUNDO, MUDAR A VIDA 215

Ecos da Arte-Revolta 215

Micropolíticas da Criação 217

Resistência Cultural na Sociedade do Espetáculo 221

Situações e Revolução Cultural Permanente 237

Resistência, Revolução e Destituição 243

Tecnologia, Poder Nômade e Pancapitalismo 249

CAPÍTULO 5

SUBVERTENDO A MÁQUINA:

RESISTÊNCIA E DESOBEDIÊNCIA CIVIL ELETRÔNICA 264

A Arte Critica na Era Digital 264

Resistência Eletrônica 266

Subvertendo a Máquina 275

Internet e Poder 278

Desobediência Civil Eletrônica 283

Paranoia 285

Em Defesa da Desobediência Civil Eletrônica 288

Conceituação 289

Electronic Disturbance Theatre 295

Neovanguardas Contemporâneas 298

CONDIDERAÇÕES FINAIS 300

PARA UMA SOCIOLOGIA DA REVOLTA 302

Page 335: critical art ensemble - UFRN

335

REFERÊNCIAS 314

Livros do CAE 314

Entrevistas com o CAE 315

Documentário 315

Obras Citadas 316

Obras Consultadas 324

APÊNDICES 327

Apêndice 1 – Produções do Grupo Gaya Scienza 327

Apêndice 2 – Livros do CAE 330

Apêndice 3 – Formações do CAE 332

Índice 333