1 Sempre no Meu Coração Barbara Cartland Coleção Barbara Cartland nº 3 Um novo e inesperado rumo na vida de lady Gracila No dia em que lady Gracila Sheringham descobriu que seu noivo, o duque de Radstock, era amante de sua madrasta, levou um terrível choque… Então, seu próprio casamento tinha sido arranjado apenas para facilitar os encontros daqueles traidores imorais? Revoltada, sem poder revelar nada ao pai, Gracila não sabia como escapar aquela horrível união. Afinal, estava rejeitando um dos homens mais cobiçados de todo o império britânico! Desnorteada, Gracila resolveu fugir. Mas, sozinha, que seria dela? Quem se importaria em ajudar uma moça desamparada que não podia sequer revelar sua identidade?
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Sempre no Meu Coração
Barbara Cartland
Coleção Barbara Cartland nº 3
Um novo e inesperado rumo na vida de lady Gracila
No dia em que lady Gracila Sheringham descobriu que seu noivo, o duque de Radstock, era
amante de sua madrasta, levou um terrível choque… Então, seu próprio casamento tinha sido
arranjado apenas para facilitar os encontros daqueles traidores imorais?
Revoltada, sem poder revelar nada ao pai, Gracila não sabia como escapar aquela horrível união.
Afinal, estava rejeitando um dos homens mais cobiçados de todo o império britânico! Desnorteada,
Gracila resolveu fugir. Mas, sozinha, que seria dela? Quem se importaria em ajudar uma moça
desamparada que não podia sequer revelar sua identidade?
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NOTA DA AUTORA
A história do presente livro se passa durante a época da rainha Vitória. Educada desde
cedo num ambiente severo, ela não tinha amigas nem confidentes e sua maior
preocupação era preparar-se para suas futuras obrigações de governante. Foi um reinado
muito longo (1837/1901) e, desde que subiu ao trono, Vitória mostrou uma inabalável
rigidez de princípios. Ela passou então a representar uma nova moral e um novo estilo de
vida, que causou, na época, uma impressão muito favorável entre as camadas populares.
Em 1840, Vitória casou-se com seu primo Alberto, com o qual teve nove filhos e uma vida
familiar harmoniosa. Entretanto, apesar de ser muito querida e respeitada, Vitória sofreu
seis atentados contra sua vida. Este romance se inspira, entre muitos outros
acontecimentos, num desses atentados…
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CAPÍTULO I
1842
Millet colocou um avental cinza e sentou-se à mesa da copa, sobre a qual
dispusera a prataria.
Era o momento da noite que mais apreciava, pois havia ordenado aos criados que
fossem dormir e agora encontrava-se inteiramente a sós.
Sabia limpar a prataria como ninguém, usando para tanto aquela parte mais
polpuda do polegar, aliás, uma técnica que havia aprendido quando era criado.
Incrementara e elaborara a tal ponto sua técnica que qualquer peça de prata que
passasse por suas mãos adquiria um brilho extraordinário.
Naquela noite, Millet havia decidido empreender uma tarefa muito especial. Tirou
do cofre-forte, quase do tamanho de uma pequena sala, uma taça de prata com base de
cristal de rocha e que quase o fez perder a respiração, tão admirado ficou ao contemplá-la
pela primeira vez.
Tinha sido desenhada pelo famoso prateiro sir Martin Bowes, em 1554, e há
muitos e muitos anos não via a luz do dia.
Estava muito necessitada de uma boa limpeza, e Millet acariciou-a delicadamente
com a ponta dos dedos, à maneira de um homem que tocasse a mulher amada.
De fato, a prata era para Millet uma verdadeira paixão, e ele sofreu um duro golpe
quando teve de deixar a coleção do conde de Sheringham, de cuja limpeza e manutenção
fora encarregado durante quase trinta anos.
Naquele momento, não queria pensar em semelhante assunto e sim concentrar a
atenção nos tesouros que descobria continuamente no novo emprego.
Sabia que logo aquilo se tornaria uma obsessão, da qual não poderia mais se
desligar dia e noite.
A taça de prata, com seus ornatos na base e no bocal, e que representavam deusas
nuas em meio a folhagens, era, no gênero, a mais bela peça que Millet jamais vira.
Sentiu um formigamento no polegar, pois estava mais do que disposto a iniciar a
tarefa, e colocou um pó branco em um pires, esfarelando-o até que ficasse finíssimo. Em
seguida, lançou mão do pedaço de linho com que costumava trabalhar.
Justo nesse instante, bateram à porta da copa, e Millet levantou a cabeça, cheio de
impaciência.
Era um homem muito distinto e os criados da casa gostavam de caçoar dele,
dizendo-lhe que parecia um bispo.
— Quem é? — perguntou, não cuidando de disfarçar o tom de impaciência com
que se expressava.
Como se a pergunta fosse um convite para entrar, o vigia noturno abriu a porta e
sorriu, tímido.
— Ah! É você! Estou ocupado. Hoje à noite não teremos tempo de bater um papo.
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— Está aí alguém que quer vê-lo, sr. Millet.
— Uma visita? — indagou Millet, ainda irritado.
Não suportava que o interrompessem quando estava entregue à ocupação de
limpar a prataria.
Antes que perguntasse quem o estaria visitando, àquela hora da noite, uma figura
esguia passou pelo vigia e entrou na copa.
Millet contemplou-a espantado, pois tratava-se de uma mulher, com um véu a
ocultar-lhe o rosto. Não tinha a menor idéia de quem se tratava ou por que viera vê-lo.
Assim que o vigia fechou a porta, a desconhecida levantou o véu. Millet, muito
espantado, levantou-se.
— Milady!
— Ficou surpreso em ver-me, Mitty? Sei que já é tarde, mas tinha certeza de que
você ainda não tinha ido dormir.
— Pois não, Milady. Mas não devia sair a esta hora da noite.
Puxou uma cadeira, limpou-a com a barra do avental e fez um gesto para a
inesperada visita.
— Sente-se, Milady.
A jovem agiu conforme ele lhe solicitava, mas antes tirou a pesada capa de
montaria que usava por cima de um traje de veludo e removeu da cabeça o chapéu de
copa alta.
Colocou-o sobra a mesa, ao lado das taças de prata, e ajeitou o cabelo com as mãos.
Parecia que um raio de sol havia penetrado na penumbra da copa. A luz difusa do
lampião iluminava as mechas douradas daquela farta cabeleira e também os olhos grandes
e expressivos, estranhos, de um azul-hortênsia.
As pestanas, grandes e encurvadas, pretejavam nas pontas, conferindo-lhe um ar
jovem e primaveril.
Ao contemplá-la, sentia-se que os problemas e dificuldades deste mundo jamais
haviam-na atingido e nem deveriam fazê-lo.
— Veio sozinha, Milady?
A jovem voltou-se para Millet, com um sorriso nos lábios. . — Vim cavalgando
César. Está lá fora, amarrado a um poste.
— Sozinha! E veio montada em César! Sabe que seu pai não vai gostar nem um
pouco!
— Há tanta coisa de que meu pai não gosta, portanto, uma a mais não tem a
menor importância.
A jovem exprimia-se com uma determinação que Millet jamais havia notado, e ele
a fitou, apreensivo.
Achou que o fidalgo faria muito bem em preocupar-se um pouco mais com uma
filha tão linda quanto lady Gracila.
Millet, no entanto, havia aprendido a duras penas que o patrão sempre tem razão
e aguardou em silêncio uma possível explicação.
Sabia que lady Gracila contaria o porquê de sua visita, em um momento em que já
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deveria estar recolhida a seu quarto, no castelo de Sheringham.
— Sente-se, Mitty — disse lady Gracila, empregando o apelido que lhe dera em
criança.
Aquilo lhe trazia recordações tão gratas, que o velho Millet sentia vontade de
chorar pelos dias felizes que nunca mais voltariam.
— Sentar-me, milady? — perguntou, surpreso.
— Ora, Mitty, pare de ser tão formal e respeitoso. Preciso de uma ajuda, como
precisei quando perdi mamãe e você era a única pessoa que podia me consolar.
A voz de lady Gracila oscilou um pouco e percebia-se que ela estava comovida.
Millet sentou-se e encarou-a, ansioso. A jovem lhe pareceu um tanto pálida e não
tão feliz quanto ele desejaria.
— O que a está preocupando, milady? — perguntou, com uma inflexão toda
especial na voz, que utilizava quando queria que ela lhe confiasse seus problemas, desde
pequena.
— Fugi de casa, Mitty.
— Milady não pode fazer uma coisa destas! Seu casamento está marcado para
daqui a alguns dias!!!
— Não posso me casar com o duque! Simplesmente, não posso! — declarou lady
Gracila. — E por isso que você tem de me ajudar, Mitty.
Percebeu que o velho mordomo havia ficado muito espantado, e após um
momento prosseguiu:
— Esperei até que a casa mergulhasse no silêncio e então deixei um bilhete para
papai, em cima de meu travesseiro. Saí pela porta dos fundos. César veio ao meu encontro,
assim que assoviei. Selei-o e vim a galope, a fim de encontrá-lo!
— Mas, milady…
— Não pretendo voltar e não fui tola a ponto de vir até aqui de mãos vazias.
Trouxe alguns de meus melhores vestidos e uma valise com tudo aquilo de que for
necessitar.
Millet contemplou-a, boquiaberto.
— Mas milady não pode ficar aqui…
— Tenho de ficar, Mitty. Você não compreende. Este é o único lugar em que
jamais pensariam me encontrar.
Deu uma risada irônica, desprovida de humor.
— Papai jamais seria capaz de supor que eu faria algo tão repreensível quanto vir
para a mansão do barão!
— Mas, milady…
— Sei que você vai querer discutir, Mitty, mas antes pegue meus vestidos e minha
valise. Agora é tudo o que possuo neste mundo.
Millet abriu a boca, pronto para protestar, mas lady Gracila contornou a situação,
dizendo em um tom quase de súplica, absolutamente irresistível:
— Por favor, Mitty. Por favor, Mitty, querido, faça o que lhe peço.
O mordomo deu um suspiro e saiu da copa, fechando a porta.
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Assim que ele saiu, lady Gracila levou as mãos ao rosto, em um gesto como que de
defesa.
— Tenho de ficar aqui — disse a si mesma. — Para que outro lugar poderia ir?
Não quero que me encontrem… Além do mais, estou com muito pouco dinheiro.
Antes de fugir do castelo, pensou em todos os meios possíveis de conseguir
fundos. Até aquele momento de sua vida, precisara de apenas algumas moedas, e assim
mesmo para dá-las como esmola nas missas, aos domingos.
Trouxera entretanto todas as jóias de sua mãe que não se encontravam guardadas
no cofre.
Era impossível apoderar-se das demais, pois o novo mordomo do castelo não era
como o velho Mitty, e sem dúvida teria recusado abrir o cofre e entregar as jóias, sem que
para isso houvesse permissão de seu pai.
Tentou ser prática e imaginar de que recursos lançaria mão, antes de fugir do
castelo.
Durante o tempo todo, um único pensamento a atormentava, a convencia que
precisava escapar, custasse o que custasse: jamais casaria com o duque.
Tinha sido tola e imatura, ao permitir que a levassem a aceitar a idéia daquelas
núpcias.
Tudo aquilo tinha sido artimanha de sua madrasta, que, aliás, não encontrou a
menor oposição a seus planos. Era uma mulher astuta e inteligente. Gracila se deu conta
de que, comparada a ela, não passava de uma jovem crédula e ignorante.
Parecera-lhe tão excitante ser cortejada pelo duque de Radstock e receber a notícia
de que seria sua esposa…
Sabia muito bem que todas as jovens de seu conhecimento ambicionavam
semelhante posição. Não somente o duque era um dos nobres mais importantes e ricos do
país, como também era um desportista consumado. Seus cavalos de corrida ganhavam
quase todas as competições, trazendo-lhe sempre maior glória.
— Os diamantes da família Radstock são fantásticos. Superam até mesmo os da
rainha — comentara certa vez sua madrasta.
Dissera aquilo como quem não quisesse nada, mas havia em sua voz um nota de
inveja que mal conseguia disfarçar.
— E você será a camareira-mor da rainha — prosseguiu. — Participará de todos os
bailes oficiais. Murmura-se que a rainha tem um fraco pelo duque! Aliás, é fato sabido que
Sua Majestade gosta de homens bonitos!
Tudo aquilo era por demais perturbador.
Gracila amava cavalos e como sempre havia vivido em um enorme castelo, não se
deixou impressionar pelos comentários relativos ao palácio de duque, repleto de tesouros
colecionados há muitos séculos.
Ficou um pouco desapontada pelo fato de seu pretendente dirigir-se em primeiro
lugar a seu pai, em vez de consultá-la antes a respeito de seus sentimentos. O bom senso
levou-a porém a concluir que jamais passaria pela cabeça do duque que alguém pudesse
recusá-lo. Afinal de contas, ele era o partido mais cobiçado de todo o Império britânico!
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Sua madrasta havia feito um breve comentário, relativo ao fato de o duque ter sido casado.
Sua esposa, porém, tinha morrido e não fazia muito sentido debruçar-se sobre o passado
ou constatar, que ele tinha idade suficiente para ser seu pai.
A imaginação de Gracila a tinha levado a sonhar com uma vida de duquesa e ela
deixou de cogitar sobre o duque enquanto homem e enquanto marido. Ele lhe parecia um
ser nebuloso, como um dos heróis míticos do passado. Tais seres, para ela, eram mais reais
do que as pessoas que encontrava em sua existência diária.
Era muito mais jovem do que seus irmãos e irmãs. Sentia-se, portanto, muito
solitária e nos livros que lia com avidez sempre encontrou a companhia de que precisava.
Suas babás e governantas aconselhavam-na continuamente a poupar olhos.
— Esta menina só quer saber de ler, ler, ler! — dizia a babá que a havia
amamentado. — Quando tiver a minha idade, vai ser cega como um morcego! Tome nota
do que estou dizendo!
Gracila não dava ouvidos a semelhantes comentários. Sabia que os livros
estimulavam-lhe a imaginação e transportavam-na para o país das fadas, onde tudo
transpirava beleza e felicidade.
Além do mais, lá não havia mulheres desagradáveis, donas de voz esganiçada, e
que a atormentassem continuamente, como fazia sua madrasta.
O ressentimento de Gracila não era devido ao fato de que a nova condessa de
Sheringham estava tomando o lugar de sua mãe; não é que tivesse ciúmes, por perder as
atenções de seu pai. O instinto lhe dizia que Daisy Sheringham não era uma boa mulher.
Não conseguia explicar para si mesma o que o instinto lhe ditava. Sabia apenas
que por mais que quisesse superar seus sentimentos tinha horror a estabelecer quaisquer
contatos com a madrasta. Deveria, portanto, ter ficado bastante desconfiada, quando Daisy
lhe comunicou que ela se casaria com o duque de Radstock.
Eu estava cega… completamente cega… como um gatinho que ainda não abriu os
olhos, pensava Gracila, rememorando o acontecido. .
Esta constatação só fazia exacerbar seu desespero, e ainda se sentia fisicamente
mal, a exemplo do que sucedera naquela tarde, quando a verdade lhe foi revelada.
O duque viera hospedar-se no castelo, a fim de terminar os preparativos para o
casamento.
Gracila, até então, estivera muito poucas vezes com seu pretendente. De acordo
com os velhos costumes, jamais ficou a sós com ele, exceto durante os breves momentos
em que seu pai lhe ordenara vir até o Salão Vermelho onde ela encontrava o duque. Nem
sequer sabia que o homem com quem ia se casar achava-se no castelo.
Sentiu-se portanto muito surpreendida ao vê-lo e a timidez apoderou-se dela no
momento em que teve consciência de que ele a contemplava.
Fez-lhe uma reverência bastante polida, mas sentia-se envergonhada demais para
levantar os olhos.
— Sua madrasta já deve ter lhe comunicado, Gracila, que o duque de Radstock
deu-nos a grande honra de pedir sua mão em casamento. Quer falar com você e portanto
vou deixá-los a sós.
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O conde saiu do aposento e Gracila, com o coração quase a lhe saltar pela boca,
esperou, de olhos baixos.
— Tenho certeza de que seremos felizes, Gracila, e espero que goste do anel que
lhe trouxe.
Enquanto falava, tomou sua mão esquerda e enfiou-lhe nos dedos um anel com
um diamante enorme.
— Obrigada… é muito… belo… — balbuciou, esforçando-se para superar a
confusão que experimentava.
— Está na minha família há quase quinhentos anos. Faz parte de um adereço
completo - colar e tiara - e que você usará após nosso casamento.
— Vai me dar muito prazer.
O duque não respondeu e Gracila, surpreendida com seu silêncio, levantou os
olhos.
Ele a contemplava de um jeito estranho, como se a estivesse inspecionando, à
procura de algo, e ela não tinha a menor idéia de que se tratava.
Finalmente, o duque declarou, sorrindo:
— Você é muito bonita, Gracila. Tenho certeza de que será reconhecida como uma
das mais belas duquesas de Radstock. E olhe que já houve muitas!
— Muito obrigada — respondeu Gracila, com simplicidade. Havia em sua voz um
pouco mais de calor do que antes e ela ficou a imaginar se o duque iria beijá-la. Em vez
disso, ele levou a mão da jovem a seus lábios e naquele exato momento o conde entrou na
sala.
Mais tarde, quando se encontrava sozinha, Gracila tentou esclarecer para si
mesma o que pensava dele.
Tinha certamente uma bela aparência, mas, afinal de contas, tratava-se de um
homem bem mais velho. Os cabelos estavam ficando grisalhos nas têmporas e seu corpo já
não tinha mais a elegância atlética de um jovem.
— Será que eu gostaria que ele me beijasse? — perguntou-se Gracila.
Estranho, como era inexperiente naquele assunto! Jamais tinha sido beijada, mas
imaginava que, como expressão de amor, deveria ser algo maravilhoso.
Mas como? E que espécie de sentimento um beijo evocaria?
Nos livros que lera, especialmente os franceses, o amor era descrito como um
sentimento muito emocionante. Parecia ser também um modo de transporte, que levava os
que o experimentavam a perseguir o impossível e até mesmo a sacrificar suas vidas.
— Será que eu conseguiria sentir isso pelo duque? Quando ele deixou o castelo, na
manhã seguinte, ela ainda não tinha encontrado a resposta.
Ele voltou uma semana antes do casamento e ela tomou a firme solução de
conhecê-lo melhor.
Mesmo às voltas com o enxoval, que lhe ocupava todas as horas disponíveis,
Gracila entregava-se a seus pensamentos secretos.
Achou difícil concentrar-se nos presentes, que chegavam ao castelo em profusão,
bem como nas centenas de cartas de congratulações e nas infindáveis conversas de sua
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madrasta, relativas ao futuro.
O casamento sempre tinha sido colocado como o grande objetivo da vida, desde
que ela deixou os cuidados da babá e começou a aprender a ler e escrever.
— Você precisa concentrar-se no aprendizado da aritmética — dizia-lhe
continuamente a governanta. — O que acontecerá, se o seu marido descobrir que você é
incapaz de cuidar corretamente das despesas caseiras?
— Espere até casar e ter filhos. Nesse momento compreenderá — respondia-lhe a
babá, quando ela lhe perguntava algo a respeito de crianças.
Ambas pareciam não saber falar de mais nada. A babá não perdia uma deixa, a
governanta, pelo visto, tinha sido incumbida de prepará-la para a vida de uma mulher
casada; a madrasta censurava sua aparência o tempo todo.
— Você nunca conseguirá marido, Gracila, com esse seu ar de cigana! Cuide-se,
menina!
— Os homens detestam as mulheres espertas e marido algum há de querer uma
mulher assim! Pare de ler e vá para o quarto costurar um pouco!
Tudo o que as pessoas lhe diziam encerrava a preocupação com o homem que um
dia a desposaria.
Gracila afagava a idéia de que seu pretendente seria um cavaleiro perfeito, como
sir Galahad, aventureiro como Ulisses e belo como lorde Byron.
Como sua governanta reprovava os poemas de lorde Byron, lia-os na biblioteca do
castelo, a exemplo do que fazia com numerosos outros livros que teriam sido confiscados,
caso fosse surpreendida a lê-los em outro lugar.
Havia um cantinho na biblioteca que tornou-se seu lugar preferido. Tratava-se do
espaço compreendido entre uma altíssima janela e o pesado reposteiro de veludo
vermelho que a cobria. Era um esconderijo perfeito e quem entrava na biblioteca não o
percebia.
Lá se punha a devorar todos os livros que lhe interessavam. Um belo dia,
concentrada em um poema, não percebeu que alguém entrava na biblioteca. Reconheceu
logo a voz de sua madrasta e do duque.
— Eles jamais haverão de me descobrir - pensou Gracila. Prosseguiu na leitura,
pois não desejava ouvir o que diziam. Ouviu, no entanto, que mencionavam seu nome e
levantou a cabeça, intrigada.
— Gracila é tão jovem, tão inexperiente, que jamais suspeitaria, a menos que
alguém lhe dissesse — comentava sua madrasta.
— Com efeito — respondeu o duque. — A juventude e a inocência vem-lhe de
proteção.
— Você tem razão e será maravilhoso poder vê-lo sem maiores dificuldades.
Podemos ficar com você, como também você poderá vir ficar aqui conosco.
A condessa soltou um profundo suspiro e acrescentou:
— Oh, querido! Estes anos foram insuportáveis sem você! Gracila sentiu que um
frio lhe percorria a espinha. Como era possível sua madrasta dizer tais palavras, em um
tom de voz que jamais empregara?
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— Precisamos tomar muito cuidado — declarou o duque.
— Mas é claro! Esta noite, porém, não devemos temer nada, querido.
— Hoje? Mas com George em casa?
— Está resfriado e dormirá em outro quarto. Virei ao seu encontro. Ah, Andrew,
se você soubesse o quanto o quero, o quanto preciso de você!
— Minha pobre Daisy! Não podíamos prosseguir com aquela situação! Como é
que eu poderia adivinhar que Elise morreria apenas seis meses após nosso casamento?
— O destino estava contra nós, mas voltarei a tê-lo! Se soubesse quanta falta você
me fez! Nunca encontrei um homem tão bonito e tão atraente quanto você.
Fez uma pausa e, baixando a voz, declarou com paixão:
— Não há ninguém no mundo que possa ser um amante tão maravilhoso…
Gracila teve a impressão de que havia se transformado em uma estátua de pedra.
Fez-se silêncio e ela teve certeza de que o duque beijava sua madrasta. Após
alguns momentos, a porta da biblioteca fechou-se e ela concluiu que estava a sós.
Durante alguns instantes, não conseguia nem mesmo se mexer e sentiu um
enorme vazio interior, incapaz de entender o que acabava de se passar. Finalmente,
enfrentou a verdade.
O duque era amante de sua madrasta e tal situação já existia antes mesmo que ela
desposasse seu pai.
Quando o conde voltou a se casar, nunca ocorreu a Gracila que sua madrasta fosse
desejável não somente como esposa, mas também como mulher.
Havia lido vários livros, sobretudo franceses, que falavam de mulheres de meia-
idade à procura do amor, em uma busca desesperada e geralmente trágica, mas jamais
imaginou que aquilo poderia ocorrer um dia em seu próprio lar.
Seu pai era um homem um tanto rígido, e devido ao fato de ela ser a caçula da
família, ele sempre lhe parecera muito velho, mesmo quando ela era apenas uma criança.
Sua mãe o amara e sempre tinha sido feliz com ele, mas quando o conde casou-se
pela segunda vez tratou sua esposa, tão mais nova do que ele, como uma criança a quem
tivesse de proteger e mimar.
A mãe de Gracila ficou com a saúde abalada, após seu nascimento, mas mesmo
assim parecia surpreendentemente jovem e em algumas ocasiões assemelhava-se por
demais à sua filha mais moça.
Somente quando ela morreu, Gracila entendeu que companheira perfeita ela tinha
sido, sentindo-se perdida e solitária.
Foi então que o conde deixou-se cativar por uma mulher resoluta e sofisticada.
Daisy proporcionava-lhe, em sua velhice, tudo aquilo de que ele sentia falta.
Agora, porém, Gracila compreendia porque havia desconfiado instintivamente de
sua madrasta e porque as coisas que ela dizia tantas vezes lhe pareciam trazer a marca da
falsidade.
Quando, finalmente, saiu de seu esconderijo, na biblioteca, sentiu que o choque da
revelação a tornara um pouco mais velha.
Colocou o livro no lugar exato de onde o havia tirado. Sabia que jamais consentiria
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em casar com um homem que não a amava.
— Como foi possível eles se comportarem daquela maneira? — perguntou a si
mesma, ao mesmo tempo em que um calafrio a percorria, pois sofria intensamente pelo
que tinha acontecido.
Foi para seu quarto, mudou de roupa e desceu para o jantar, procurando
aparentar muita calma. Ao deparar com sua madrasta e o duque, teve a sensação de que
era a única espectadora em um teatro, enquanto que no palco desenrolava-se uma trama
das mais desagradáveis.
Seu pai procurava ser simpático, desempenhando com a maior gentileza o papel
de anfitrião perfeito. Era evidente que se sentia muito feliz por ter alguém tão importante
quanto o duque como seu genro.
Se ao menos ele soubesse! Pensou Gracila.
Pela primeira vez encarava a madrasta não como alguém que tivesse autoridade
sobre ela, mas como uma mulher imoral. Não lhe escapou o quanto era atraente, mas
agora a odiava por exibir seus encantos.
Observando melhor, percebia claramente que havia algo equívoco no modo como
a condessa falava e se movimentava e que também se revelava através da expressão de
seus olhos.
Era um dado significativo unicamente para quem estivesse a par do enigma.
Ficou a imaginar o que poderia fazer para não se engajar naquele horrível
compromisso e chegou à conclusão de que a única solução possível seria fugir.
Não poderia magoar seu pai, contando-lhe a verdade. Sabia que, quando
declarasse não mais desejar casar-se, sua decisão seria interpretada como um capricho.
Suas objeções, a menos que conseguisse fundamentá-las, seriam desconsideradas.
Em breve se veria constrangida a desposar um homem que não tinha o menor
interesse nela como pessoa, a não ser na medida em que ela lhe propiciaria a oportunidade
de prosseguir sua relação com a madrasta!
Gracila sentiu que não podia mais continuar no castelo, pois sabia muito bem o
que aqueles dois tramavam para mais tarde.
— Preciso fugir! Tenho de desaparecer daqui!
Nenhum de seus parentes a acolheria, pois todos ficariam pasmos, ao saber que
ela havia rejeitado alguém tão importante quanto o duque, e isto no último momento.
Suas amigas teriam idêntica reação e pensou na cólera das dez damas de honra
que haviam sido escolhidas por sua madrasta entre as mais importantes famílias da
nobreza do país. Gracila estremeceu.
Todas elas tinham mandado fazer vestidos caríssimos; as flores para seus buquês
já tinham sido encomendadas; o rico broche de diamantes, com suas iniciais entrelaçadas
com as do duque, presente das damas de honra, já haviam chegado ao castelo.
Os convidados, após a cerimônia, seriam recepcionados em um imenso pavilhão,
decorado especialmente para a ocasião.
Como era possível cancelar tudo isto? Mas não havia outra solução.
Havia uma única alternativa, a fim de impedir o casamento: desaparecer.
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Durante todo o jantar a mesma pergunta voltava sem cessar à mente atormentada
de Gracila. — Para onde irei? Para onde irei? Não lhe escapava o sorriso disfarçado de sua
madrasta, ao contemplar o duque de soslaio, enquanto seu pai discorria sobre a situação
política.
— Champanhe, milady?
O tom de impaciência com que o mordomo lhe falava fez Gracila perceber que ele
já havia se dirigido a ela por mais de uma vez. Foi então que lhe ocorreu a solução
salvadora: Millet!
Fora sua madrasta que despedira o velho Millet, alegando que não gostava dele e
não confiava em seu trabalho.
Millet sempre fizera parte da família e era inconcebível que, após trinta anos no
castelo, fosse despedido.
Sua madrasta, no entanto, não gostava de criados que eram mais leais ao conde do
que a ela.
Agora, ocorria a Gracila um outro motivo.
Os criados sempre sabiam de muita coisa e nunca deixavam de fazer comentários!
Millet pareceu-lhe o salva-vidas providencial, lançado a um náufrago. Depois de
seu pai e sua mãe, era o ser a quem ela mais amava no mundo.
Uma das primeiras palavras que aprendera a dizer foi Mitty, enquanto lhe
estendia os braços, tentando andar.
Sempre que conseguia fugir da vigilância da babá ia correndo para a copa, onde
sentava-se no colo de Mitty, contemplando extasiada a prataria que ele tirava do cofre-
forte, especialmente para lhe mostrar.
Ele sempre a presenteava com frutas do pomar do castelo, às escondidas da babá.
— Mitty me dará abrigo.
Ao pensar nele, sentiu que o céu se desanuviava. Sabia onde ele tinha ido
trabalhar, desde o dia em que se despediu dela, com os olhos banhados de lágrimas.
Nos seus trajes de todos os dias ele parecia um homem bastante simples e não
lembrava o imponente mordomo, parecido com um bispo, sempre muito solícito para com
os convidados ou a servir as refeições dos donos do castelo.
— E agora, o que você vai fazer? Para onde vai, meu querido Mitty? — indagou
Gracila.
— Encontrarei outro emprego, milady. No momento, vou ficar com minha irmã.
— A sra. Hansell, no solar do barão?
Mitty fez que sim, pois sentia um aperto na garganta e não conseguia falar.
— Mas quando chegar lá, prometa que vai me comunicar seu novo endereço!
— Prometo sim, milady.
— E que vai se cuidar!
— Pensarei muito em milady. Nunca deixarei de pensar.
— E eu também pensarei em você, querido Mitty.
Ao dizer esta frase, passou os braços em volta do pescoço do velho mordomo e
beijou-o, como fazia quando era pequena.
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Não se importava com o que pensassem ou dissessem. Mitty fazia parte de sua
vida e pertencia-lhe, de um modo como sua madrasta jamais conseguiria.
Não teve forças para dizer mais nem uma palavra, enquanto ele subia em uma
pequena carruagem, que o levou e a sua insignificante bagagem para bem longe do único
lar que ele havia conhecido durante trinta anos.
— Mas como é que o senhor foi deixar que minha madrasta despedisse Millet?
Justamente Millet, papai? —'- perguntou Gracila ao conde, assim que soube o que estava
acontecendo.
— Você sabe muito bem que nunca interfiro nos assuntos domésticos, Gracila —
replicou o pai, com grande frieza.
— Mas Millet trabalha conosco desde que nasci! Aliás, muito antes, pois já estava
aqui antes de o senhor se casar com mamãe!
— Sua madrasta diz que ele não está mais dando conta de suas tarefas.
— Não é verdade! Todo mundo elogia as pratas, quando temos algum jantar de
cerimônia, e o senhor sabe, tanto quanto eu, que as famílias aqui da região fazem questão
de empregados que tenham sido treinados por Millet!
— Não tenho elementos para discutir, Gracila. Deixo estes assuntos nas mãos de
sua madrasta.
Era uma resposta insatisfatória e Gracila sabia que seu pai sentia-se constrangido.
Sem dizer mais nada, saiu da sala, fechando a porta com força.
Trancada no quarto, chorou copiosamente, como só tinha feito por ocasião do
enterro de sua mãe, pois sabia que após a partida de Millet se sentiria mais sozinha do que
nunca.
Como é que não pensei nele imediatamente? Perguntou-se, sentindo que agora
tudo ficava bem mais simples.
Era impossível saber como, mas de alguma maneira Millet resolveria seu
problema, pois ele não fizera outra coisa no passado!
A porta da copa abriu-se, dando passagem a Millet.
Carregava em uma das mãos uma enorme trouxa, dentro da qual estavam os
vestidos de Gracila, e na outra, a valise. Ambos pesavam um bocado, porém César era um
cavalo bastante forte, treinado por Gracila desde que era potro.
Millet colocou a trouxa e a valise sobre duas cadeiras e aproximou-se de Gracila.
Ao contemplar sua expressão, sentiu que iriam ter um momento difícil.
— Trouxe suas coisas para cá, milady, porque me pediu, mas assim que estiver
descansada, volto a colocá-las em cima do cavalo e a mandarei de regresso para casa.
— Não tenho a menor intenção de voltar, Mitty, devido a… a razões que eu não…
não posso lhe contar. Juro-lhe, porém que há um forte motivo que me impede de desposar
o duque.
Millet olhou-a com ar de surpresa. Conhecia-a desde o dia em que nascera e agora
deparava-se com algo que nunca havia notado antes, algo que lhe dizia que ela havia
passado por um grande choque.
O que poderia ter acontecido?
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Percebeu que aquela jovem, a quem amava mais do que a tudo neste mundo,
estava profundamente preocupada.
— Tem algo a ver com sua madrasta! — disse com seus botões, declarando em
seguida:
— Se quer mesmo fugir, milady, deve ir à procura de sua avó. Ela sempre a amou.
— E que conselhos você acha que ela me daria, Mitty? Desposar o duque, é claro!
Gracila respirou fundo e, estendendo os braços para Mitty, fez um gesto para que
ele voltasse a sentar-se a seu lado.
— Ouça, Mitty, sabe que confio em você e você tem que confiar em mim. Juro que,
com exceção de você, ninguém mais me obrigaria a voltar para o castelo e desposar o
duque. Sei que você acreditará em mim, se eu lhe disser que prefiro a morte. Tenho certeza
absoluta de que seria um erro casar com ele. Se mamãe estivesse viva, ela diria exatamente
a mesma coisa. Você acredita em mim, Mitty?
— Acredito, sim, mas qual é a solução?
— Quero que você me dê refúgio aqui, na mansão do barão, onde ninguém
pensará em me procurar, até que o reboliço causado pelo meu desaparecimento diminua
de intensidade e o duque aceite a situação.
— Mas não posso fazer uma coisas destas, milady!
— E por que não?
— Porque o senhor voltou. Ele está aqui na casa!
— Lorde Damien!
— Sim, milady, chegou há três dias!
CAPÍTULO II
Durante alguns momentos Gracila, atônita, não conseguiu dizer sequer uma
palavra.
— Mal posso acreditar! — declarou, quando conseguiu refazer-se da surpresa. —
Ele não vem aqui há doze anos!
— É verdade, milady.
— E ele voltou mesmo de vez?
— Sim, milady. Chegou da Itália.
Durante os últimos anos sempre havia quem desse notícia do jovem lorde Damien,
que fora visto em Roma, Veneza, Palermo, Nápoles e diversas cidades italianas. Toda vez
que se referiam a ele, pairava no ar um certo mistério.
Gracila desconfiava que as pessoas se sentiam um tanto chocadas, toda vez que ela
se referia a lorde Damien, mas ao mesmo tempo achavam excitante falar a seu respeito.
Ela era jovem demais para entender o que havia sucedido, quando explodiu
aquele famoso escândalo.
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Tinha apenas seis anos, mas ao rememorar aquela história, parecia-lhe que
durante toda sua vida lorde Damien fora tema de conversas não só entre os adultos, na
sala de estar do castelo, como entre os criados. Sempre lhe pareceu que os adultos
conversavam diante das crianças como se estas fossem surdas ou débeis mentais.
Não custou muito para descobrir que havia algo misterioso, secreto e ao mesmo
tempo excitante, relativo àquele jovem que deveria herdar um dia o solar do barão.
Inicialmente, pareceu-lhe que ele havia cometido algo terrível, quem sabe um
assassinato ou a pilhagem de algum tesouro sem preço.
Mais tarde compreendeu que tudo aquilo girava em torno de uma mulher. O que
ouvia a seu redor era bastante revelador.
— Ele sempre foi muito atirado, mas nunca imaginei que pudesse acontecer
semelhante coisa!
— E possível imaginar coisa mais desagradável? Imagine que ele estava a serviço
da rainha Adelaide no mês anterior!
— Querida, eu os vi em Paris, na Ópera, em meio ao maior descaramento e ela
usava jóias fantásticas!
— Claro, não resta a menor dúvida que ele é belo como um deus, mas mesmo
assim… fugir com ele!
Inicialmente não tinha consciência do que estava fazendo, mas percebeu que aos
poucos tentava juntar pedaços das frases que eram ditas ao seu redor, procurando montá-
las como se se tratasse de um quebra-cabeças.
Acabou finalmente por conhecer toda a verdade!
O fato não se deu através de sua mãe, que jamais fazia comentários sobre a vida
alheia, mas, para grande surpresa, de seu pai, quando morreu seu grande amigo, o velho
lorde Damien.
— Que absurdo! Sinto-me envergonhado, ao pensar que seu único filho não estava
presente em seu enterro! Acreditei que aquele renegado viria, a despeito de tudo o que
aconteceu no passado!
— Ouvi dizer que Virgil se encontra na índia — replicou sua mãe, com aquela
delicadeza de sempre.
— Pois, na minha opinião, deveria estar aqui, no desempenho de seus deveres! É
intolerável, que um de nossos vizinhos mais chegados, seja um homem de péssima
reputação!
A sós com seu pai naquela mesma noite, Gracila perguntou-lhe, muito nervosa:
— O que foi que o novo lorde Damien fez, papai, para que o senhor e as outras
pessoas refiram-se a ele com tamanha severidade?
— Ele “ultrapassou todos os limites da conveniência!
— De que forma, papai?
Seu pai hesitou, como se a estivesse considerando jovem demais para saber do que
se tratava, mas logo declarou:
— Acho melhor você saber a verdade, pois se eu não lhe disser alguém mais vai
colocá-la a par do assunto!
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— As pessoas sempre falam dele, papai.
— O que, aliás, não é nada surpreendente!
— O que foi que ele fez que é assim tão condenável?
— Fugiu com a marquesa de Lynmouth!
Gracila fitou seu pai com os olhos arregalados. Sabia o quanto a marquesa era
importante. Visitara algumas vezes seu castelo, em companhia dos pais, e aquele lugar lhe
parecera frio e pouco hospitaleiro, apesar de inspirar grande respeito.
— Ela era mais jovem do que ele e além do mais estrangeira. A gente nunca deve
confiar nessas mulheres de fora, mas isto não é desculpa para o fato de Damien ter agido
como um salafrário!
Gracila não conseguiu obter outras informações de seu pai, mas agora tinha a
chave do enigma e foi-lhe fácil acabar de montar o quebra-cabeça.
O jovem lorde Virgil Damien foi muitíssimo mimado, desde criança, segundo a
babá confidenciou à mãe de Gracila. Tinha muitas qualidades e era bastante brilhante sob
vários aspectos, porém dono de um temperamento fogoso e bonito demais para poder
proporcionar qualquer paz de espírito às mulheres.
Era inevitável que o belo sexo se apaixonasse por ele, a exemplo da marquesa de
Lynmouth.
Pelo visto, todo mundo sabia quando eles se encontravam clandestinamente,
cavalgando lado a lado pelos bosques, onde achavam que ninguém os veria. Que engano!
Os olhos curiosos dos caçadores, camponeses e mulheres da aldeia vigiavam-nos de perto
e eles estavam sempre dispostos a revelar o que tinham visto.
As duas únicas pessoas que não percebiam o que estava acontecendo eram o
marquês e lorde Damien, seu pai.
Para eles foi um choque total quando se soube que a marquesa e Virgil tinham
fugido.
O condado pegou fogo e as línguas não paravam de falar. Foram levantados os
mínimos detalhes e criou-se uma grande expectativa em torno das atitudes que o marquês
com toda certeza haveria de tomar.
Para grande decepção de todos, ele não fez nada!
Não se trancou entre as quatro paredes de seu castelo e continuou com suas
tarefas de sempre, participando de reuniões e comitês, patrocinando competições
esportivas e promoções cívicas. Nunca discutiu ou mencionou com quem quer que fosse o
que tinha se passado.
Seu comportamento foi digno, distinto, honroso e muito aplaudido pelo pai de
Gracila.
— Não imaginava que Lynmouth fosse capaz de se respeitar tanto — ele
comentou com sua esposa, uma ocasião em que Gracila encontrava-se por perto.
Ela conseguiu entender o desapontamento das pessoas, ao constatar que o
marquês não havia tomado nenhuma atitude dramática.
— Era de se imaginar — comentou a governanta com a babá —, que um cavaleiro
como o marquês ter-se-ia batido em duelo, exigindo a volta de sua esposa.
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— Talvez ele não queira que ela volte — retrucou a babá.
— Ele não poderá voltar a se casar, a menos que se divorcie dela.
— Pois, se quer saber minha opinião, o marquês já teve suficientes mulheres em
sua vida e com uma mulher daquelas não se pode censurar o que aconteceu!
Gracila havia notado que, enquanto as senhoras como sua mãe e suas amigas
censuravam a marquesa, os cavaleiros consideravam que Virgil havia se comportado
como um tolo.
— Aquele idiota perdeu a cabeça! — ouviu um senhor de suas relações comentar,
sem perceber que ela se encontrava presente. — Que necessidade havia de fugir, quando
podia perfeitamente aproveitar-se da caça sem abandonar o lar?
Quando Gracila ficou mais velha, parecia-lhe muito estranho que o dono da
mansão do barão e herdeiro do título ainda vivesse no exílio. Soubera, com efeito, que a
marquesa com quem havia empreendido a sensacional fuga, abandonara-o e já não
estavam mais juntos.
Um ano após a morte de seu pai — aliás, no mesmo ano em que o pai de Gracila
voltou a casar-se —, começaram a circular boatos relativos ao novo lorde Damien.
— Ele faz um tremendo sucesso em Paris — confidenciou uma das amigas de sua
madrasta. — Encontrei-o, lá, em uma recepção. Na noite seguinte encontrava-se no teatro
com uma mulher tão fabulosa que todos os homens presentes, em vez de olharem para o
palco, olhavam para seu camarote!
— Quem era? — perguntou a madrasta de Gracila.
— Uma das grandes cocotes de Paris… Minha cara, poucas vezes vi jóias
semelhantes! Era de ficar sem fôlego!
A conversa encaminhou-se para a moda e para as jóias, mas todas as pessoas que
haviam viajado pela Europa traziam notícias de lorde Damien.
Quando ouviu dizer que se encontrava na Itália, Gracila invejou-o.
Que vontade sentia de estar naquele país ensolarado, visitar os edifícios e estátuas
magníficas sobre os quais lera nos livros… os jardins Borghese, a Fontana di Trevi, o
Coliseu, São Pedro!
Em sua imaginação, tais lugares eram o cenário ideal para um homem que tinha a
beleza do poeta lorde Byron e cuja vida era igualmente objeto de tantos comentários.
A coincidência não parava aí, pois seu poeta favorito também tivera de fugir do
país por estar envolvido em muitos escândalos… E agora, por mais incrível que parecesse,
quando todos já haviam desistido de vê-lo retornar à pátria, lá estava ele!
Gracila percebeu que enquanto se entregava aos devaneios da imaginação, Millet
esperava, cheio de paciência.
— Milady percebe a posição difícil em que se encontra. Siga meu conselho, volte
para casa e diga ao senhor conde que não tem o menor desejo de se casar com o senhor
duque. Tenho certeza de que conseguirá persuadi-lo.
— Meu pai não entenderia e em absoluto não lhe posso dizer a razão pela qual,
por nada deste mundo, eu desposaria o duque!
Gracila exprimia-se com paixão e nesse momento notou um lampejo de
19
compreensão nos olhos de Millet.
Ele sabe, pensou. Antes de sair de casa, deve ter descoberto que minha madrasta
não é o que aparenta ser!
Millet talvez não soubesse nada a respeito do duque, mas tinha acompanhado seu
pai e a madrasta quando foram a Londres passar uma temporada, como faziam todos os
anos.
Naquela ocasião, habitavam a tristonha casa de Hanover Square durante dois
meses e Gracila ficava no castelo.
Se houvesse um amante na vida da madrasta, a possibilidade era de que houvesse
outros e os criados, como sempre, acabariam sabendo.
Millet não disse nada e Gracila compreendeu que ele, no momento, tinha desistido
de persuadi-la a voltar para casa.
— Veja bem, Mitty, este é um lugar onde ninguém pensará em procurar por mim,
sobretudo se lorde Damien estiver aqui. Depois de tudo o que se murmurou a seu
respeito, no passado, duvido que ele receba tantos visitantes assim.
— Também acho, milady. Ao mesmo tempo, como é possível que fique a sós com
um homem, sobretudo alguém como lorde Damien? Sua reputação sofreria sérios danos,
milady!
— Concordo, se as pessoas soubessem que me encontro aqui, mas acontece que
ninguém ficará sabendo, nem mesmo lorde Damien!
— Quer dizer, então, que milady espera que eu a esconda?
— E por que não? A mansão do barão é suficientemente grande para esconder um
batalhão do exército, se for necessário! Além do mais, se eu for dar crédito a tudo que se
comenta a respeito de lorde Damien, duvido que ele permaneça aqui durante muito
tempo.
Aquele lugar era aborrecido demais para um homem que, segundo se dizia,
sentia-se mais à vontade no meio de festas ou até mesmo de orgias…
— Ouvi falar dos fantásticos bacanais que ele dá em seu palazzo em Veneza —
dissera certa vez sua madrasta, com uma ponta de inveja, segundo pareceu a Gracila.
— Bacanais? — indagou a amiga com quem conversava. — E o que acontece?
— Bem que gostaria de saber! — respondeu a condessa. -— Emily estará de volta
na semana que vem e ela nos contará. Não há o que ela não saiba!
Acontece que sua madrasta, em vez de esperar a visita da amiga, foi procurá-la e
Gracila nunca soube o fim da história.
— Tenho certeza, Mitty, de que lorde Damien não vai permanecer aqui durante
muito tempo. Tranqüilize-se, portanto, e esconda-me.
— Mas não posso, milady! Não é só porque não gosto de enganar o senhor conde,
que sempre me tratou como um cavalheiro. Acontece que não quero perder meu novo
emprego. Estou ficando velho, milady, e para mim seria muito difícil conseguir trabalho
em outra casa.
— Oh, Mitty, como foi possível minha madrasta mandá-lo embora? Foi uma
maldade e eu chorei demais quando você partiu!
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— Ela tinha suas razões, milady.
— Não duvido! — retrucou Gracila, revoltada.
Millet voltou a lhe lançar um olhar significativo, antes de responder:
— Já que não pode voltar para casa, milady, precisamos pensar em outro lugar.
— Não tenho para onde ir. Cansei de pensar no assunto. A coisa se complica na
medida em que não tenho dinheiro algum.
— Não tem dinheiro?
— Trouxe algumas jóias de minha mãe, mas mesmo que você as vendesse para
mim, teria muito medo de ir sozinha para Londres!
— Está fora de cogitação, milady! Impossível!
— Pois então, receio Mitty, que você vai ter de me abrigar…
O velho mordomo contemplou-a e certificou-se de que não haveria nenhuma
outra solução. Como poderia deixar aquela linda criança — e Gracila, para ele, não
passava daquilo — atirar-se sozinha em um mundo que desconhecia? Estremeceu ao
pensar no que podia acontecer com ela.
Decidiu que, se o fato de lhe dar abrigo implicaria em sua ruína futura, então,
valia a pena correr o risco, pois era um preço por demais pequeno para a felicidade que
ela lhe proporcionara, desde que era um bebê.
Ao olhar para trás, parecia-lhe que toda sua vida girara em torno de suas pratas e
de lady Gracila.
Amava-os com tanta dedicação que era difícil pensar neles como algo separado.
— Sim, eu a esconderei, milady, mas vai ter de me jurar que em hipótese alguma
aparecerá diante de lorde Damien.
— Querido Mitty, você sabe que não quero lhe causar problemas. Obrigada, do
fundo do coração! Sabia que você não me desapontaria.
— Lembre-se, milady, não aprovo o que estou fazendo. Como bem sabe, o bom
criado é fiel a quem o paga, e lorde Damien espera que eu seja tão leal para com ele quanto
espero que ele seja para comigo.
— Parece-me que lorde Damien não se encontra em posição de criticar o que
acontece nesta casa, pois abandonou-a há muito tempo.
Subitamente, ocorreu-lhe algo.
— Lorde Damien veio sozinho?
— Trouxe somente um valete em sua companhia, e que está com ele desde que ele
era um menino. Eu o conheço. Chama-se Dorkins e é de uma aldeia da redondeza.
Gracila quedou-se pensativa e logo notou que Mitty assumia uma expressão
enigmática. Lembrou-se de que quando ele organizava uma festa ou dava ordens aos
criados, assumia um ar autoritário que inspirava grande respeito. Naqueles momentos não
se parecia nem um pouco com o bondoso, gentil e compreensivo Mitty, a quem ela sempre
procurava nos momentos difíceis.
— Espere um pouco, milady, que vou procurar minha irmã. Ela tem de participar
de nosso segredo.
— Claro! Confio na sra. Hansell como confio em você. Millet saiu da copa e
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Gracila sentou-se, contemplando pela primeira vez os tesouros que ele havia espalhado
sobre a mesa.
Era bem o que ela esperava: encontrar Mitty limpando a prataria, tarde da noite,
quando todo mundo já tinha ido dormir!
Sentiu-se subitamente fraca e exausta, pois o pior já ficara para trás. O choque por
que passara naquela tarde, aliado à necessidade de fugir de casa, dava-lhe agora uma
enorme vontade de chorar.
Tudo aquilo era horrendo e sórdido! Sua madrasta tinha um amante às escondidas
de seu pai e confiava que seu casamento com o duque seria um biombo, atrás do qual
ficaria escondida aquela ligação infame!
Talvez conseguissem enganar seu pai, mas a ela durante quanto tempo
enganariam? Como poderia imaginar que a mulher que desposara seu pai e tomara o
lugar de sua mãe seria capaz de comportar-se de modo tão imoral? Ou que o duque, que
afinal era um cavalheiro, casar-se-ia com o objetivo de prosseguir sua ligação com a
amante?
Gracila sentia-se até certo ponto atingida por toda aquela podridão, mas chegou à
conclusão de que precisava ter um pouco mais de equilíbrio e compreender que as
pessoas, de fato comportavam-se daquela maneira. Poderia parecer incompreensível, mas
era algo que fazia parte da natureza humana e da fragilidade que lhe era inerente.
Havia encontrado aquela situação em vários livros, mas eles lhe pareciam irreais.
Nunca lhe passara pela cabeça que semelhante coisa pudesse acontecer a pessoas como
seu pai ou a ela própria.
Acho que é porque sou muito jovem e ignorante, pensou.
A porta da copa abriu-se e a sra. Hansell entrou.
Era uma senhora de certa idade, com uma expressão de grande bondade, muito
parecida com seu irmão. Usava um severo vestido negro e de sua cintura pendia um
molho de chaves.
— Milady! Milady! — exclamou. — Mal posso acreditar que se encontra aqui!
— E não é só isso, sra. Hansell. Mitty já deve ter dito que preciso de sua ajuda.
— Disse-me sim, milady, mas juro que não sei o que a senhora sua mãe pensaria
disto tudo!
— Se mamãe fosse viva, sra. Hansell, garanto que ela compreenderia por que tive
de fugir e porque sei que o único lugar onde me encontro a salvo é com o meu querido
Mitty e também com a senhora, é claro.
— Milady, eu a conheço desde que era um bebê e jamais poderia recusar seu
apelo. Rezo apenas para estar agindo de modo correto.
—- Estarei muito bem em sua companhia e na de Mitty e é só isso que importa.
— Muito bem, vou instalar milady em um quarto ao lado do meu — respondeu a
sra. Hansell, disposta a tomar uma atitude prática, a partir do momento que chegara a
uma solução.
Sua atenção voltou-se para a bagagem de Gracila e de repente exclamou:
— Tenho uma idéia melhor! Se eu instalar milady no fim do corredor da ala oeste
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do castelo e ficar com o quarto ao lado, a criadagem não perceberá nada. Lorde Damien
acaba de voltar e no momento conto apenas com algumas criadas mais velhas, nas “quais
tenho confiança absoluta. Talvez seja obrigada a contratar mais gente e milady sabe como
as mulheres falam!
— Sei, sim, e acho sua idéia muito boa.
Conhecia aquela casa muito bem, pois seu pai costumava visitar o velho lorde
Damien nos últimos dias de sua vida e ela várias vezes o acompanhou até o solar do
barão. Enquanto os dois fidalgos conversavam, ela ia à procura da sra. Hansell, que
sempre a levava para dar uma volta pela casa.
Enquanto Gracila seguia a sra. Hansell escadas acima, sentia como se estivesse
regressando ao passado.
Chegaram finalmente ao quarto situado no fim do corredor.
— Estive pensando, milady… O que poderíamos dizer para explicar sua presença
aqui na casa?
— Talvez eu pudesse ser apresentada como sua sobrinha, sra. Hansell…
— Seria muito lisonjeiro, mas garanto que milady não se parece nem um pouco
com as sobrinhas que vieram me visitar aqui na mansão.
Gracila lembrava-se que elas também tinham ido visitar Millet. Tratava-se de
mulheres robustas, mães de numerosos filhos.
— Acho que o mais plausível, milady, seria apresentá-la como uma senhora de
boa família, que na verdade é, e que está passando por uma situação difícil.
— Se por situação difícil quer significar falta de dinheiro, então acertou em cheio,
no que me diz respeito!
— Antes de vir trabalhar nesta casa, há quinze anos, era empregada de sir Ronald
Deering, que era um cavalheiro muito agradável.
— Sim, lembro-me de que Mitty contou que a senhora estava a serviço dele, em
Londres.
- Acontece que sir Ronald começou a enfrentar determinadas dificuldades, pois
gostava de jogar, além do que fez maus investimentos. Acabou fechando sua casa,
despedindo a criadagem e é por isto que me encontro aqui.
Gracila limitava-se a ouvir. Sabia muito bem o que a sra. Hansell ia lhe dizer, mas
pressentia que a governanta não gostava que a apressassem.
— Que tal dizermos que milady é uma das netas de sir Ronald, e que não tinha
mais ninguém para sustentá-la, após a morte e a falência do avô?
— Acho uma idéia esplêndida! Basta lembrar que meu nome é Deering, o que aliás
não é nada difícil. Como é esperta, sra. Hansell! Inventou uma ótima história!
— Ainda bem que milady aprova.
— E tenho certeza de que Mitty também aprovará. Também conseguirei explicar a
presença de César. Afinal de contas, a neta pobre de sir Ronald ainda pode possuir um
cavalo!
— Isto não quer dizer, milady, que sir Damien deve tomar conhecimento de sua
presença. Thomas, a quem Millet está acordando neste momento, poderá cuidar do cavalo.
23
É casado com uma prima nossa.
— Então, podemos confiar nele.
— Amanhã de manhã conversarei com Cable. É um bom homem, apesar de um
tanto lento no seu raciocínio.
Cable era um dos criados mais graduados da casa e estava no solar do barão há
muitos e muitos anos.
A sra. Hansell tirou da trouxa os vestidos de Gracila e pendurou-os no guarda-
roupa. Eram muito vistosos e Gracila achou seu preço excessivo, mas a madrasta resolvera
que ela deveria trajar-se como uma verdadeira duquesa.
Duvido que alguém me verá usando estes lindos vestidos, mas pelo menos terei o
prazer de desfilar com eles neste casarão vazio, pensou Gracila.
Ocorreu-lhe subitamente um pensamento: se mais tarde encontrasse meios de se
sustentar, aqueles trajes cairiam muito bem em uma governanta ou uma dama de
companhia.
Não havia outras carreiras apropriadas para uma senhora de posição e Gracila,
tomada de pessimismo, achou que não teria sorte suficiente para alcançar tal situação.
A sra. Hansell parecia estar adivinhando os pensamento de Gracila e declarou,
enquanto esvaziava a valise:
— Não se preocupe com o futuro, milady. Dentro de alguns dias as coisas
parecerão muito melhores do que hoje.
— Duvido. Papai e minha madrasta esperam que eu volte antes das bodas, apesar
de eu ter deixado bem claro que jamais casarei com o duque!
— Sem dúvida haverá uma enorme perturbação! Milady, tem certeza de que está
tomando a atitude correta?
Era como se a governanta se sentisse na obrigação de fazer um último apelo a
Gracila, mas esta sabia ao mesmo tempo que a sra. Hansell, a exemplo de Millet, tinha
uma certa intuição dos motivos de sua fuga.
— Não posso me casar com o duque, sra. Hansell, e não tenho a menor intenção
de voltar para casa, até que papai e ele aceitem minha decisão.
— Muito bem milady, já que resolveu assim, não voltaremos ao assunto.
Esperemos que ninguém venha à sua procura nesta casa.
—- É o último lugar que investigariam.
— Espero que milady tenha razão.
Por fim a sra. Hansell desejou-lhe boa noite e Millet trouxe-lhe um copo de leite
quente, acompanhado de alguns biscoitos de chocolate. Para ele, Gracila não passava de
uma menina.
Ao ver-se a sós, Gracila despiu-se lentamente, examinando com prazer o aposento
que lhe fora destinado. Os reposteiros de veludo eram recamados de fina renda e o pesado
leito de carvalho era ricamente esculpido.
Sentiu naquele momento que todos os problemas e dificuldades por que estava
passando acabariam por importar muito pouco, a exemplo do que havia sucedido com os
antepassados da família Damien, que haviam dormido naquele quarto.
24
Talvez eles tivessem sentido medo um dia!
Talvez tivessem fugido!
Talvez tivessem lutado por aquilo que acreditavam ser justo!
Gracila sentiu-se reconfortada com este último pensamento.
Ao deitar-se, sentiu-se rodeada por fantasmas gentis, que sem dúvida alguma
velariam por ela.
Ao fechar os olhos, começou a pensar em lorde Damien, que se encontrava no
outro lado da enorme casa e imaginou o que ele estaria sentindo naquele instante.
Será que está contente por ter voltado? E por que regressou, após tanto tempo?
Tais questões, no momento, pareciam sobrepujar seus próprios problemas.
Como deveria ter sido estranho viver durante doze anos longe da Inglaterra e de
tudo aquilo que lhe era familiar…
Lorde Damien agora devia ter trinta e um anos, pois era um rapaz de dezenove
quando fugiu com a marquesa.
Era mais velha do que ele, e a despeito da descrição preconceituosa de sua babá e
da governanta, todos concordavam que se tratava de uma linda mulher. Gracila, mais uma
vez, juntou tudo o que se dizia a seu respeito, a fim de compor um quadro mais completo.
A marquesa era morena, com cabelos negros como ébano e um par de olhos
fantásticos que, segundo um dos criados do castelo, eram capazes de fazer o coração de
um homem parar de bater, no momento em que ela o encarasse.
Gracila ficara por demais intrigada com a fuga daqueles dois, e agora parecia-lhe
incrível que aquela aventura romanesca tivesse alguma ligação com sua própria vida.
O principal ator, o jovem Romeu, como alguém o descrevera com ironia,
encontrava-se ali. Ela dormia em sua casa, apesar de ele ignorar o fato.
— Não importa o que a sra. Hansell e Mitty digam, mas preciso vê-lo, só para
constatar se ele se parece de fato com lorde Byron. Tenho de decidir por mim mesma se ele
é tão perverso quanto dizem.
Ainda conseguia escutar a voz de seu pai dizendo para a esposa:
— Aquele demônio partiu o coração do pai. Como nos sentiríamos, Elizabeth, se
um filho nosso agisse de semelhante maneira?
Havia uma certa hesitação no tom de voz do conde, pois para ele era uma tristeza
ter uma única filha do segundo matrimônio. A primeira esposa dera-lhe três filhos.
Gracila tinha pouco contato com seus meio-irmãos, todos casados, e que
raramente vinham ao castelo.
O conde era muito jovem quando nasceram. Nunca se deram muito bem com o
pai e tinham muito pouco interesse em Gracila.
— Talvez o que eu precise é de um irmão de verdade, com o qual possa contar e
que apóie minha decisão de não desposar o duque.
Ficou a imaginar se lorde Damien, a exemplo daquele hipotético irmão,
compreenderia as razões que a haviam levado a dar um passo tão decisivo.
Afinal de contas, ele tinha fugido de casa, ainda que por razões muito diversas!
— Garanto que muita gente há de pensar que minha atitude foi covarde.
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Na verdade, semelhante ato exigira-lhe muita coragem. Houve um determinado
momento, quando cavalgava César, em direção à mansão do barão, em que sua
determinação fraquejou e ela quase voltou atrás.
Os trinta quilômetros que separavam as duas casas tinham-lhe parecido uma
distância enorme e subitamente sentiu que cavalgava em direção ao desconhecido.
Era como se alguém a estivesse tentando, no sentido de regressar e tornar-se uma
duquesa, esquecer o que ouvira na biblioteca e fingir que nada tinha se passado.
Certificou-se logo de que isto teria sido possível com qualquer outra mulher que
não sua madrasta. Tratava-se, porém, de alguém que tinha ocupado o lugar de sua mãe,
que se casara com seu pai e era simplesmente impensável aceitar aquela sujeira!
Não, não fraquejarei! Não volto em hipótese alguma e não terei medo de nada! O
que estou fazendo é certo, pensou Gracila.
Tinha toda razão em tomar aquela resolução e não se prestar a um papel
desprezível! Fazia muito bem em não rebaixar seus ideais! Agora sabia que se sentiria
contente por não ter sido covarde a ponto de regressar, quaisquer que fossem as surpresas
que o futuro lhe reservava.
Era quase uma ironia que lorde Damien, de quem se falava horrores, fosse agora
seu protetor, apesar de desconhecer sua presença naquela casa.
Era lorde Damien que a impediria de ser descoberta e ser levada de volta, a fim de
enfrentar a situação.
Devido ao fato de gozar de uma reputação lamentável, ninguém jamais imaginaria
que uma jovem tão inocente quanto Gracila estaria escondida em sua casa, principalmente
quando aquele monstro de devassidão encontrava-se lá!
Gracila sorriu, imaginando o quanto as amigas maledicentes de sua madrasta
ficariam horrorizadas, ao saberem o que estava acontecendo.
Que prato cheio! Quanto assunto para fofocas e mais fofocas!
— Sabe para onde foi a noivinha fujona? Para a mansão do barão!
— Isto só pode ser mais uma façanha de lorde Damien!
— Mas como será que ela o encontrou?
— E isso lá importa? Está lá, em sua companhia!
— Vocês estão dizendo que Gracila se acha na mansão do barão? Sempre imaginei
que aquela garota não era absolutamente o que parecia!
— Ainda bem que o pobre duque descobriu, antes de enfiar-lhe o anel no dedo!
— Para ele será muito fácil encontrar outra noiva, mas agora é pouco provável que
Gracila Sheringham consiga marido!
Ao ouvir esse comentário todas ririam e uma delas diria:
— De uma coisa podemos ter certeza: lorde Damien não se casará com ela! Jamais
desposou as dezenas de mulheres que passaram por sua vida e por que haveria de
começar agora?
Gracila riu de suas fantasias. Tinha a impressão de estar assistindo a uma peça de
teatro! Em seguida veio-lhe o pensamento de que, pelo menos por respeito a seu pai,
ninguém deveria saber que ela e lorde Damien encontravam-se sob o mesmo teto.
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CAPÍTULO III
Gracila esgueirou-se por uma das portas dos fundos da mansão e caminhou
cautelosamente em direção ao regato que desembocava no lago. Era a primeira vez que
ousava sair, desde que chegara à mansão do barão. Os jardins que a rodeavam nunca lhe
pareceram mais belos e recendiam ao perfume de mil flores.
Desde a morte de lorde Damien, há dois anos, ninguém mais se ocupava
seriamente com os canteiros e agora tudo parecia selvagem e luxuriante. Os encarregados
do inventário haviam decidido dispensar todos os criados jovens e conservar apenas
aqueles que estavam, há muitos anos a serviço da família Damien e que em breve se
aposentariam.
A sra. Hansell tinha conseguido manter a casa quase no mesmo estado em que se
encontrava, enquanto lorde Damien vivia, mas os jardineiros não foram capazes de domar
a natureza. Agora tudo parecia sem governo, como se as próprias plantas tivessem gosto
em se sentir livres, espalhando-se por todos os lados.
Estava tudo tão belo que Gracila sentiu vontade de dançar como uma ninfa por
entre os canteiros. Poderia existir algo mais fantástico do que o mês de maio na Inglaterra?
Teria sido por isso que lorde Damien regressara ao lar?
Apesar de viverem sob o mesmo teto, era-lhe difícil descobrir algo a seu respeito.
Sempre que fazia perguntas, a sra. Hansell respondia através de monossílabos e Millet
tomava idêntica atitude.
— Mitty, conte-me o que lorde Damien vai comer no jantar?
— perguntou na véspera, quando o velho mordomo trouxe-lhe a refeição em uma
bandeja.
Comia em um pequeno aposento anexo a seu quarto, transformado pela sra.
Hansell em sala de estar.
— É quase o mesmo que milady está comendo.
Logo em seguida Millet mudou de assunto, demonstrando claramente que não
tinha a menor vontade de falar de seu novo patrão.
Os dois irmãos, pelo visto, temiam que ela começasse a ficar interessada em lorde
Damien. Gracila morria de vontade de dizer-lhes que esse interesse existia desde que ela
era criança.
Mais cedo ou mais tarde, apesar do que eles pudessem dizer, pretendia vê-lo. A
coisa, entretanto, não era nada fácil. Lorde Damien dormia na outra ala da mansão e não
havia lugar onde ela pudesse esconder-se a fim de contemplá-lo a descer a imponente
escadaria ou andar pelos vastos corredores.
— Tenho que dar tempo ao tempo — disse Gracila com seus botões.
Uma coisa era certa: não poderia contar com Millet ou com a sra. Hansell.
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— Vou sair, preciso tomar um pouco de ar fresco — disse à governanta.
Vira-se forçada a permanecer no quarto ou na sala de estar durante todo o dia e
sentia-se como uma prisioneira, sobretudo ao contemplar o sol brilhando no firmamento.
— Impossível, milady — respondera a sra. Hansell com firmeza. — Não tenho a
menor idéia de onde lorde Damien se encontra no momento e sabe tanto quanto eu o que
aconteceria se ele a visse!
— E mesmo? E o que aconteceria?
— Milady teria de ir embora, mesmo que achasse ruim. Gracila sabia que ela tinha
razão, mas ao mesmo tempo sentiu estar sob os cuidados de uma governanta muito severa
ou, o que era pior, de uma babá super protetora.
Tinha certeza de que a sra. Hansell, achava que sua inquietação poderia levá-la a
fazer algo de que se arrependeria mais tarde, mas para sua grande surpresa dissera-lhe
naquela manhã:
— Hoje vai poder dar um passeio, milady.
— E verdade? Que coisa esplêndida! E por quê?
— Lorde Damien só voltará dentro de algumas horas e o seu valete afirmou que
ele almoçará fora.
— Isto quer dizer que posso passar a manhã no bosque! A senhora bem sabe o
quanto o aprecio nesta época do ano.
— Lembro-me de determinada ocasião, em que milady não podia ter mais de
cinco ou seis anos. Fui visitar Millet e milady trouxe-me algumas rosas por ela colhidas.
Era uma flor entregando outra flor! Estava dizendo a Millet ontem à noite que milady não
mudou.
— Espero que tenha crescido mais um pouco!
— Mas o rosto é o mesmo. Tão parecida com sua querida mãe, que nunca
demonstrava a idade que tinha e parecia uma menina, até o dia em que morreu.
— Ela foi sempre muito bonita — disse Gracila, comovida.
— Preparei seu banho, milady, e escolhi um dos vestidos mais simples. Os demais
são suntuosos e não ficaria bem sentar-se no gramado usando um daqueles trajes da corte!
— Tomarei muito cuidado. Tenho a impressão de que meus vestidos vão ter de
durar muito tempo…
Não esperou pela resposta da sra. Hansell. Tomou banho e serviu-se de um farto
café da manhã na pequenina sala de estar.
O sol dardejava através das janelas e ela sentiu-se muito animada, como se
estivesse indo para um baile.
Agora que se encontrava lá fora, compreendia que não havia a menor necessidade
de apressar-se. Podia entregar-se ao gozo de tudo aquilo e com os dedos tocou as enormes
pétalas de uma magnólia. Aquela árvore dava-se muito bem na mansão do barão e Gracila
lembrou-se do quanto o falecido lorde Damien orgulhava-se de suas árvores.
— Não há muitos jardins na Inglaterra onde as árvores floresçam com tanto
esplendor… — ele comentava, toda vez que alguém elogiava suas plantas.
Para Gracila, as magnólias personificavam o Oriente sobre o qual tanto lera e
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desejava ardentemente conhecer um dia.
Quem sabe poderia viajar para o Egito, Pérsia ou índia, países que tinham uma
aura misteriosa e exótica e uma beleza tão irresistível e mística quanto à magnólia que
segurava naquele momento!
Prosseguiu em seu passeio e aproximou-se do regato que desembocava no lago.
Suas águas eram profundas e apresentavam-se muito cristalinas. Através delas conseguia
perceber dezenas de trutas que nadavam com uma agilidade de lhe dar inveja.
— Que bom se eu pudesse nadar deste jeito… — disse para si mesma.
Lembrou-se que quando era criança banhava-se no lago do castelo. Quando fez
dez anos disseram-lhe que já estava crescida demais para aquilo, pois alguém poderia vê-
la.
— Mas quem é que se interessaria em me ver? E que importância tem, se alguém
ver-me? — indagou.
Sabia que para aquela pergunta não havia resposta possível. A natação era algo
proibido para uma menina de boa família, que só poderia se banhar se estivesse coberta
por um traje de banho da cabeça aos pés.
Crescer era uma amolação, pensou Gracila naquele momento, e mesmo agora
ainda achava que não podia existir nada mais enfadonho!
Afinal de contas, por que tinha que pensar em se casar? Não tinha feito nenhuma
escolha e de repente via-se envolvida naquela situação desastrosa. Na realidade, a
perspectiva de desposar um duque era-lhe indiferente, mas sua madrasta, com a única
intenção de alcançar seus objetivos, enfeitara a situação, tornando-a atraente.
— Eu era tão feliz! Como era bom não ter um bando de governantas se
intrometendo na minha vida… E como gostei das poucas festas que assisti em Londres…
rememorou aquele período e de repente compreendeu porque as três semanas passadas
na capital a fim de renovar seu guarda-roupa foram interrompidas pelas madrasta, que
àquela altura já planejava seu casamento com o duque.
— Você poderá voltar para Londres, quando começar a temporada de primavera
— retrucou a madrasta, quando Gracila protestou por ter de voltar para casa, dado que
havia feito numerosas amigas.
— E quando começa a temporada?
— No mês de abril.
Porém, no mês de abril, Gracila ficou noiva e apesar de que esse período, para a
maior parte das moças, se prolongasse durante um bom tempo, Gracila recebeu a notícia
de que o casamento estava marcado para o dia trinta e um de maio.
— Para que esperar tanto? — perguntou a madrasta, argumentado a seguir com
lógica irrespondível. — É preferível vê-la no Palácio Real de Buckingham, como duquesa,
e não como uma simples debutante.
De fato, tudo aquilo parecia bastante razoável, mas ao mesmo tempo Gracila
sentia que estava sendo apressada.
Agora, no entanto, estava livre! Na véspera, mergulhada na escuridão protetora de
seu quarto, decidiu que não faria muitos planos. Era assustador imaginar o que lhe
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aconteceria. Era inquietante tomar uma decisão, não tendo dinheiro ou um lugar onde se
refugiar.
Até agora a sorte esteve do meu lado e não podia ter me acontecido nada melhor,
a partir do momento em que posso conta com Mitty, pensou.
Inclinou-se, mergulhou os dedos nas águas cristalinas do regato e contemplou os
peixes, que fugiam assustados em todas as direções.
A margem do curso de água estava coalhada de violetas e pouco mais adiante, no
interior do bosque, sentia-se o odor dos pinheiros e a fragrância da primavera.
Prosseguindo no passeio, bordejando as margens do regato e chegou até o bosque
espesso, onde os raios do sol não penetravam. Havia ali um ar de mistério e romance, mas
Gracila não queria se afastar do sol.
Voltou para as margens do regato e sem pensar nas possíveis reprimendas da sra.
Hansell, sentou-se sobre a relva.
Colheu algumas violetas, colocou-as sobre o colo e entregou-se àqueles devaneios
que sua governanta costumava censurar tanto.
Inventava uma história, da qual tomava parte.
Nos livros de mitologia havia deparado com histórias felizes, povoadas não com
seres humanos, mas com deuses e deusas místicos.
Era muito mais interessante do que seus amigos ou do que até mesmo sua família
e em sua companhia estavam todas as criaturas que faziam parte do mundo encantado dos
contos de fadas: ninfas e elfos, duendes e faunos, bruxas e ogros.
Era uma fuga para o mundo de sonhos, que atenuava suas preocupações e as
perguntas incessantes, relativas ao que poderia estar acontecendo no castelo naquele
momento. Por exemplo, qual a reação de seu pai e da madrasta, ao descobrirem seu
desaparecimento…
Passaram-se quase duas horas e Gracila, de repente, percebeu um som novo,
diferente do zumbido das abelhas e do arrulhar dos pombos selvagens. Durante alguns
momentos aquele som inusitado misturou-se com a musicalidade à sua volta. Então
percebeu que se tratava do ruído de patas de cavalo e que alguém se aproximava.
Levantou-se rapidamente, como um fauno assustado. — Ninguém deve me
encontrar aqui — pensou, procurando onde se esconder. Se se metesse entre as árvores,
seu vestido branco seria facilmente visível, mas para onde mais poderia ir?
Foi então que notou uma nogueira e percebeu que seria fácil procurar refúgio
entre seus galhos. Sempre tivera muita facilidade em trepar nas árvores, o que, aliás,
deixava sua governanta e a babá desesperadas. Nada mais fácil: bastava levantar a saia e
abrigar-se em meio à galharada frondosa, sem se preocupar demais com o que a sra.
Hansell diria, se por acaso as rendas delicadas do vestido se rasgassem.
Escolheu um galho bem alto, em forma de forquilha, e sentou-se. Era bem pouco
provável que o cavaleiro que se aproximava a visse, a menos que seu olhar vasculhasse as
folhas cerradas.
Agiu a tempo, pois nesse momento cavalo e cavaleiro avançavam através do
bosque.
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Bastou olhar aquele homem de relance para o coração de Gracila disparar. Sabia
que diante dela encontrava-se aquele a quem sempre desejara ver: lorde Damien, em carne
e osso! A distância não conseguiu distingui-lo com clareza, mas assim que ele se
aproximou notou que seu cabelo era preto. O cavalo avançou ainda mais e ela chegou à
conclusão de que o lorde era tudo aquilo que o poeta Byron deveria ter sido um dia! E
causava uma impressão ainda maior, pois dele emanava um ar de autoridade. Possuía um
nariz aristocrático e seus olhos escuros estavam fixados no regato. Fez o cavalo parar, sem
desviar a atenção do curso de água.
Deve estar olhando as trutas, exatamente como eu fiz, pensou Gracila.
Agora que contemplava aquele perfil incrível compreendia o porquê da excitação
de todas aquelas mulheres que haviam se referido a ele, começando por sua madrasta e
terminando pelas criadas.
Lorde Damien era o homem mais bonito que jamais vira até então e sua aparência
era idêntica a tudo o que ela imaginara a seu respeito.
Não era de admirar que houvesse tantos escândalos ligados a seu nome!
Percebia-se porque a marquesa tinha fugido com ele, provocando uma comoção
que, passados tantos anos, ainda ecoava por todo o condado.
Era natural que tivesse feito o maior sucesso em Paris, Veneza, Roma, Nápoles e
Palermo! Quem seria capaz de resistir à beleza, onde quer que ela fosse encontrada?
Lorde Damien aproximava-se.
Gracila percebeu que passaria bem por debaixo do galho onde se refugiara e,
como estava a cavalo, sua cabeça quase roçaria nela.
Prendeu a respiração, desejando não ter escolhido justamente aquela árvore. O
lorde chegou até a árvore e abaixou a cabeça, a fim de que os galhos não o arranhassem.
Nesse momento, algo lhe chamou a atenção no regato. Era um grande peixe, cujas escamas
prateadas reverberavam ao sol. Lorde Damien, interessado no que via, deteve o cavalo e
Gracila, se quisesse, poderia tocar-lhe o alto da cabeça, naquele momento.
Ao senti-lo tão próximo, foi incapaz de manter qualquer coerência em seus
pensamentos.
O peixe desapareceu por entre os meandros do regato e lorde Damien alçou as
rédeas, preparando-se para prosseguir. Nesse momento levantou o olhar. Talvez sentisse
instintivamente a presença de alguém ou quem sabe a intensidade com que Gracila o
espreitava o tivesse atingido.
Qualquer que fosse a explicação, percebeu entre a folhagem um delicado rosto
oval, no qual brilhava um par de esplêndidos olhos azuis.
O cavalo já tinha começado a andar e parou, pois foi freado bruscamente.
Fez-se um silêncio denso e lorde Damien perguntou:
— Você é uma ninfa do bosque ou uma estrela cadente que fugiu do céu?
Sua voz era profunda, abaritonada, e encerrava um leve tom de zombaria.
Durante alguns instantes, Gracila ficou tão surpreendida com o que estava
acontecendo que não conseguiu responder.
— Desça daí, a menos que tenha pressa de voltar para o céu de onde veio!
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Gracila hesitou. Haviam-lhe dito que deveria a todo custo evitar semelhante
encontro, mas não via o menor sentido em não lhe dirigir a palavra, depois do que se
passara. Não era possível prosseguir o diálogo naquelas condições, com ela dependurada
em um galho e ele quase quebrando o pescoço para poder vê-la.
Era mais do que evidente que o jovem lorde Damien esperava por uma resposta e,
após alguns instantes, ela disse:
— Está certo, mas afaste-se um pouco.
— E por quê?
Ela sorriu e ele notou duas covinhas de cada lado de sua boca.
— Não é muito decoroso subir em árvores e muito menos descer delas!
Lorde Damien voltou a rir e disse:
— Desça e fale comigo. Não vá desaparecer, porque se não terei de procurá-la
através do céu.
— Sim, eu falarei com você — prometeu Gracila.
Ele prosseguiu, afastando os galhos, e freou o animal. Gracila desceu da árvore,
tomando o maior cuidado com o vestido, mas quando pôs os pés no chão, notou que ele
estava todo manchado de resina.
Ajeitou os cabelos, em um gesto instintivo e faceiro, e avançou até a beira do
regato, onde lorde Damien já estava à sua espera.
Ele era bem mais alto do que ela suponha e tinha ombros muito largos. Visto de
perto não parecia tão poético quanto ela imaginara e a camisa aberta revelava um tórax
bastante viril. Além disso, parecia bem mais velho do que Gracila esperava.
Seu rosto demonstrava surpresa e ele alçou as sobrancelhas, dizendo:
— Imaginava que fosse uma menina. Vejo que me enganei. Havia algo no modo
pelo qual ele se expressava que fez com que Gracila parasse.
— Seria melhor que continuasse a pensar em mim como uma criança ou, se
preferir, como uma estrela cadente!
— Por quê?
— Tenho lá minhas razões.
— E a mais óbvia é que não deveria estar falando comigo, imagino!
A expressão de seu rosto havia mudado e ele não disfarçava o cinismo e a
amargura que devia estar sentindo. Gracila o encarou de frente. Agora sabia porque
achava que sua aparência não era tão poética. Agora descobria porque ele parecia mais
velho.
— Mas eu quero falar com você. Gosto de mistérios e não me lembro de ter
encontrado uma estrela escondida em uma árvore, sobretudo em uma árvore que me
pertence!
— Seria melhor se esquecesse que me viu… — retrucou Gracila, cheia de
hesitação.
— E uma sugestão absurda, e como não tenho a menor intenção de sair galopando
atrás de você, peço-lhe que se sente e converse comigo.
Como se estivesse se rendendo não a ele, mas a algo inevitável, Gracila esboçou
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um gesto.
— Você não me deixa muitas alternativas.
Lorde Damien olhou à sua volta e ela percebeu que ele estava à procura de um
lugar onde pudesse amarrar o cavalo.
— Sampson é um cavalo manso — disse Gracila — e, se ele por acaso sair
correndo, será muito fácil alcançá-lo.
— Com que então sabe o nome do meu cavalo! Gracila se deu conta de que havia
falado sem pensar. Sampson era um cavalo muito velho, como a maioria dos cavalos da
mansão, e ela sempre lhe dava um torrão de açúcar, todas as vezes que ia em visita àquela
casa. É por isso que sabia que o animal não iria sair em disparada para a cocheira, a
exemplo do que um cavalo mais novo teria feito.
— Vamos sentar perto do regato? Acabo de ver um peixe de escamas muito
coloridas.
— Acho que esta é a época da desova.
— Pois então, fale-me disso e de tudo o que você sabe a respeito de minha
propriedade.
Enquanto falava, escolheu um lugar onde o capim estava aparentemente seco.
Gracila sentou-se muito ereta e não conseguia refrear a curiosidade, enquanto
contemplava lorde Damien.
Ele esticou-se a seu lado e ela percebeu que, além de muito elegante, era forte e
atlético. Era o contrário de um poeta ou de um devasso arruinado por uma vida de
dissipação.
— Agora, fale-me de você.
— Infelizmente… não posso…
— E por que não?
— Tenho cá minhas razões… porém são secretas.
— Você está me provocando de propósito?
— Estou lhe dizendo a verdade. Na realidade, estou lhe pedindo que… me
ajude…
— Ajudá-la? Mas como?
— Basta deixar de fazer tantas perguntas. Eu… estava me escondendo de você.
— Por quê?
Gracila hesitou e antes que respondesse ele disse:
— Não quero saber! Você estava se escondendo de mim exatamente como
qualquer mulher sensata e bem-comportada teria feito!
Havia de novo tanta amargura em sua voz que Gracila estendeu a mão, como se
quisesse reconfortá-lo. Interrompeu o gesto pela metade e pousou a mão no colo.
— Não estava me escondendo por essa razão. Bem… não era exatamente por isso.
— Devo dizer que você não está me passando muitas informações…
— Eu sei, mas é… difícil…
— É você quem é difícil. Encontro-a escondida em uma árvore e então você me diz
que se escondia de mim, mas não exatamente!
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Contemplou-a mais atentamente e disse:
— Pensei que você fosse uma menina, mas agora, que a vejo mais de perto, acho-a
uma das mulheres mais belas que conheci até hoje. Ao mesmo tempo, você ainda não é
uma mulher. .O rubor apoderou-se de Gracila e ela desviou o olhar.
— Há várias perguntas que gostaria de lhe fazer. Quem é você? Por que está aqui?
Por que é tão misteriosa? Mas, antes de mais nada, quero dizer que considero um
privilégio contemplá-la e chego até mesmo a achar que estou sonhando!
— Sonhando?
— Como é possível que alguém tão linda, tão inesperada, tão perfeita se encontre
em minha mansão?
Tais palavras foram ditas e num tom de profunda ironia e Gracila observou:
— Não fale desse jeito. Não vê como o solar do barão está lindo, sobretudo agora
que é o mês de maio? Acho que foi por esta razão que você voltou para casa.
— Na verdade, a razão pela qual voltei é o meu desejo de isolar-me.
— Isolar-se! — exclamou Gracila, surpreendida.
— É algo que não quero discutir. Em vez disto, vamos conversar sobre você.
— E isto é algo que eu não quero discutir!
— Então, qual será o tema de nossa conversa? É uma pergunta que eu não
precisaria fazer para a maior parte das mulheres, mas acho, minha pequena estrela, que
você de fato é muito jovem. Por que alguém tão jovem e linda como você deveria
esconder-se?
— Se eu lhe disser algo… só para satisfazer sua curiosidade… você me fará uma
promessa?
— A maior parte das promessas são perigosas.
— Dar-me sua palavra não representaria perigo algum para você, mas se você a
quebrasse, seria perigoso para mim.
_ Pode confiar em mim.
— Então jure que não dirá, a quem quer que seja, que me viu, ou que
conversamos.
—Está se referindo aos criados? Quer dizer que eles têm o privilégio de saber
aquilo que você não me revelará?
— Não é bem assim, mas se você disser a Millet…
— Meu mordomo?
— Sim, Millet. Se você lhe disser que me viu, ou se comunicar o fato à sra. Hansell,
a governanta, eles me mandarão embora.
— Como que então você está em minha casa? No solar do barão?
— Não tinha mais para onde ir.
— Fico muito honrado e encantado em tê-la como minha hóspede, mas não vai me
dizer porque não tinha para onde ir?
Ao falar lorde Damien, contemplava sua saia e Gracila achou que ele tinha plena
consciência de que se tratava de um vestido muito caro. A pobreza não seria a razão que a
levara até lá. De que se tratava, então?
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Sabia que ele estava esperando e após uma pausa declarou, hesitante:
— Eu me vi em meio a uma… situação muito… difícil e da qual precisava escapar.
— Como? Você está me dizendo que fugiu?
— Sim.
— Não foi à toa que achei que você era uma estrela cadente! — Lorde Damien
estudou-a atentamente e declarou:
— Você foi muito magoada. O que será que teria causado isto?
— Como é que você sabe?
— Seus olhos são muito reveladores. Leio seus pensamentos, apesar de você ter
resolvido que não me dirá a verdade!
— Sim, você tem razão. Fiquei magoada com algo que aconteceu e, sendo assim,
fugi para o solar do barão.
— E por que justamente para cá?
— Sabia que era o último lugar onde alguém pensaria em me procurar!