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TRANS- Revista Transcultural de Msica/Transcultural Music Review
2011
TRANS 15 (2011) DOSSIER: OBJETOS SONOROS-VISUALES AMERINDIOS /
SPECIAL ISSUE: AMERINDIAN SONIC-VISUAL OBJECTS Anlise musical e
contexto na msica indgena: a potica das flautas Accio Tadeu de C.
Piedade (Universidade do Estado de Santa Catarina)
Resumen Este artigo discute a necessidade de uma anlise musical
aberta para o contexto do objeto, tomando como base a investigao de
um repertrio de msica indgena na qual, naquilo que tomamos por mera
repetitividade, se ocultam sofisticadas operaes musicais e um
carter potico. Examinarei aqui a msica instrumental do ritual de
flautas sagradas dos ndios Wauja, habitantes do alto Xingu, no
Brasil Central. Esta msica est baseada em um sistema no qual a
dimenso motvica e os princpios de variao constituem o cerne, isto
no apenas da msica, mas de todo o ritual, que por sua vez est
profundamente alicerado na viso de mundo nativa. A anlise musical
deste repertrio, realizada a partir da adequao de um modelo
analtico, revela finas operaes de repetio e diferenciao entre
motivos, frases e temas musicais, constituindo um jogo de idias,
uma espcie de manipulao artstica de estados formais
pr-estabelecidos, enfim, um procedimento potico. Neste artigo, alm
de ponderaes crticas sobre teoria e anlise musical, tratarei de
questes sobre cosmologia, filosofia, ritual e xamanismo Wauja,
procurando mostrar a profundidade scio-cultural desta msica.
Abstract This article discusses the need for an open musical
analysis in the context of a repertoire of indigenous music where
what we might take as mere repetition hides sofiticated operations
at a poetic level. I will examine the instrumental music of the
ritual of sacred flutes of Wauja indians of Central Brazil. The
musical analysis will reveal subtle operations of repetition and
diferentation between motives, musical phrases and themes that
reveal a poetic procedure. Along with a critical examination of
questions relating to music analysis, this article also deals with
issues of cosmology, xamanism, philosophy and ritual in an attempt
to show the socio-cultural embededness of this music.
Palabras clave Msica indgena; anlise musical; ndios do
Xingu.
Key words Indigenous Music, Music Analysis, Xingu Indians
Fecha de recepcin: octubre 2010 Fecha de aceptacin: mayo 2011
Fecha de publicacin: septiembre 2011
Received: October 2010 Acceptance Date: May 2011 Release Date:
September 2011
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2 TRANS 15 (2011) ISSN: 1697-0101
Anlise musical e contexto na msica indgena: a potica das flautas
Accio Tadeu de C. Piedade (Universidade do Estado de Santa
Catarina)
Desde os primeiros viajantes que observaram rituais musicais
amerndios observa-se uma
convico generalizada sobre a repetitividade nas msicas destes
povos. Esta qualidade ganhou,
no discurso do senso comum, um carter de negatividade: a ausncia
de elaborao, do cultivo, da
sofisticao, e da a pobreza musical. Este carter negativo aponta
para uma espcie de
incapacidade de controle da forma musical, um atrofiamento
evolutivo do pensamento musical
que impede sua expanso para alm do meramente repetitivo.
Naturalmente, o espelho disto
tudo uma concepo da msica ocidental em todo seu desenvolvimento
histrico, entendido
como uma linha evolutiva que se inicia no canto gregoriano e se
estende at o serialismo e alm.
Entretanto, a convico da repetitividade negativa das msicas
amerndias parece colocar-se em
suspenso a julgar pelos resultados de estudos recentes dedicados
s msicas indgenas que se
propuseram a transcrever e analisar o texto musical de
repertrios musicais indgenas (Bastos,
1990; Mello, 1999, 2005; Montardo, 2002; Piedade, 2004). Um
olhar aprofundado para a
repetio pode apontar para o fato de que nunca h, de fato, uma
repetio no mundo que no
seja uma novidade na percepo, ecoando aqui problemas filosficos
muito antigos. O essencial ,
para alm da repetio ela mesma, compreender seu sentido no
contexto. Esta tarefa cabe ao
cuidadoso analista que, mergulhado no texto musical, procura
transcend-lo e encontrar seu
enrazamento no pensamento musical e na cultura. Nesta direo,
caminha-se para a superao
da auto-suficincia do formalismo nos modelos de anlise musical e
a conseqente ampliao da
complexidade do objeto de estudo neste campo. Uma Musicologia do
sculo XXI1 -
epistemologicamente enriquecida pela pluralidade de paradigmas
advindos da revoluo ps-
moderna, como o ps-estruturalismo, a hermenutica, a semitica, a
antropologia, a histria
cultural, entre outras perspectivas (Cook & Everist, 2001),
cada orientao portando suas
ideologias, explcitas ou implcitas (Krims, 1998) - leva a
indagar como a anlise de uma pea
musical, atravs do emprego de um ou mais modelos analticos
atualmente existentes, pode
contribuir efetivamente para a compreenso da mesma em sua
plenitude estrutural-musical e 1 Entendo por Musicologia do sculo
XXI uma musicologia no sentido alargado pelo movimento ps-moderno
(McClary, 2000; Kramer, 1995) e em seu sentido mais amplo e geral
(Kerman, 1987; Nattiez, 2005), abarcando tanto a musicologia
histrica quanto a sistemtica e a etnomusicologia, sendo fundamental
nesta Musicologia ampla a presena da rea da anlise musical.
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Anlise musical e contexto na msica....3
amplitude scio-cultural e histrica. Em outras palavras,
necessrio um equilbrio entre o
aspecto tcnico e imanente e a dimenso poitica e estsica
(Nattiez, 1975) para que se
desvende uma pea ou repertrio musical em seu esqueleto
estrutural, em seus nexos histricos e
razes culturais.
com estas prerrogativas que comentarei, neste artigo, a msica do
ritual de flautas
kawok entre os ndios Wauja, habitantes da regio do Alto Xingu,
Brasil Central. As flautas
kawok fazem parte do chamado complexo das flautas sagradas, tal
como observado nos outros
povos xinguanos e em vrias sociedades amaznicas, bem como em
outras partes do mundo. A
investigao deste ritual envolve necessariamente o estudo da
cosmologia, do xamanismo, da
socialidade, da poltica e da musicalidade. Seguindo as pistas
dadas pelo discurso nativo, o foco
deste estudo est no sistema musical Wauja, especialmente em sua
esfera motvica, que
entendida como cerne do ritual de flautas, nvel no qual os
msicos Wauja realizam importantes
operaes e processos musicais. Na base destas operaes esto
princpios de repetio e
diferenciao que constituem o pensamento musical nativo, um dos
pilares de sua cosmologia e
filosofia. Tratarei inicialmente do mundo ritual no alto Xingu,
enfocando especialmente as flautas
sagradas xinguanas. Aps uma breve descrio do ritual de flautas,
apresentarei consideraes
analticas sobre a msica das flautas sagradas Wauja.
Por falta de espao, dispenso-me aqui de apresentar
detalhadamente o cenrio
etnogrfico, remetendo o leitor para a vasta bibliografia sobre
os povos do alto Xingu (Franchetto
e Heckenberger, 2001; Bastos, 1999) e, particularmente, sobre os
Wauja (Mello, 1999, 2005;
Piedade, 2004; Neto, 2004). No centro da cosmologia xinguana
esto as chamadas flautas
sagradas2, presentes em todos os grupos locais (kawok para os
Wauja e Mehinku, yakui para os
Kamayur, kagutu para os Kuikru e Kalapalo). Sua centralidade se
expressa espacialmente pela
existncia da edificao conhecida como casa das flautas, onde
devem ser guardados estes
instrumentos, casa que tambm referida como casa dos homens, e
que localizada sempre no
centro das aldeias xinguanas, espao exclusivamente masculino. A
casa das flautas Wauja e
Mehinku se chama kuwakuho (em Kuikro kwakto, em Kamayur
tapy).
As flautas sagradas consistem em um conjunto de trs idnticos
aerofones tipo flauta,
quase sempre executados em trio. Cada flauta tem quatro furos,
usando-se os dedos indicador e
mdio de cada mo. Quando as flautas sagradas so tocadas, tanto
dentro da casa dos homens
2 Utilizarei o termo flautas sagradas sem aspas, j que se trata
de expresso consagrada na literatura etnolgica.
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4 TRANS 15 (2011) ISSN: 1697-0101
quanto no ptio da aldeia, as mulheres fecham as portas de suas
casas e se mantm l dentro,
pois se uma mulher vir os instrumentos ser penalizada com o
estupro ritual coletivo por parte de
todos os homens da aldeia3. H um ritual intertribal de flautas
sagradas e tambm h uma verso
de mbito intratribal. Os rituais intratribais de flautas
sagradas so ligados cura de uma pessoa
doente de forma semelhante s outras festas de apapaatai.
O cosmos Wauja povoado de entes usualmente invisveis que tm um
papel
determinante na vida dos humanos: os apapaatai. A princpio
essencialmente perigosos e
malficos, os apapaatai exibem tambm vrias caractersticas
benficas e confiveis nas suas
relaes com os humanos. Quando domesticados pelo paj, atuam como
protetores do ex-doente
contra outros apapaatai. Em todos os grupos xinguanos h nexos
semelhantes com entes como os
apapaatai. Os apapaatai so exilados vingativos: conforme a
cosmogonia Wauja, o que hoje este
mundo visvel h muito tempo era o mundo dos ierupoho. Os Wauja
eram pobres entes que
viviam no escuro do cupinzeiro, em um mundo escuro, sem fogo. O
demiurgo kamo (sol) trouxe
a luz para o mundo, e ento os Wauja puderam sair do cupinzeiro e
colonizar este mundo onde
hoje esto. Mas os ierupoho no suportam a luz, e tiveram que
fugir, e transportaram-se para
detrs de suas mscaras, transformando-se em apapaatai 4. Dentre
os inmeros apapaatai,
destaca-se kawok, considerado o mais poderoso e perigoso
(kawokapai, perigoso), o mais
temido, o nico que, ao invs de se esconder atrs de uma mscara,
criou as flautas homnimas e
ali se abrigou. A mscara do kawok , portanto, o conjunto de
flautas sagradas, a msica sua
epifania5.
Esta presena dos apapaatai no dia a dia dos Wauja uma realidade.
Estes ndios baseiam
seu comportamento em preceitos ticos e estticos que visam a sade
fsico-espiritual (Mello,
1999). Um indivduo doente precisa ser tratado para recompor sua
beleza e integridade. Aps o
diagnstico de uma pessoa doente, o paj iakap revela qual
apapaatai est causando a doena.
O iakap realiza a cura por meio da fumaa, retirando o feitio de
apapaatai do corpo do doente.
Aps isto, a cura esttica realizada atravs de rituais musicais,
incluindo aqueles com mscaras.
Se o apapaatai for kawok, o mestre de flautas da aldeia
contratado para produzir um conjunto
de flautas para o ex-doente. Quando o conjunto estiver pronto, h
uma primeira performance
ritual na qual ele oficialmente entregue. No ritual de cura, o
apapaatai ele mesmo est presente,
3 Trata-se de uma medida radical, raramente necessria, com
profundas implicaes simblicas para homens e mulheres. Uma violncia
totalmente desvinculada da idia de humilhao (ver Mello, 2005). 4
Ver uma narrativa completa deste mito em Mello (1999). 5
Lvi-Strauss j havia observado correlaes cosmolgicas entre mscaras e
sons (1979).
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Anlise musical e contexto na msica....5
e a msica precisa lhe agradar para que sua braveza seja
domesticada.
Faz parte do corpo mitolgico xinguano a histria de que as
flautas sagradas pertenceram
s mulheres, tendo sido recuperadas pelos homens. H, portanto, um
nexo aqui que aponta para
as relaes de gnero, que vai de encontro com a importncia capital
da esfera da sexualidade e
das relaes amorosas na vida xinguana (Mello, 1999, 2005). O
universo das flautas sagradas
onipresente no Alto Xingu, englobando o perigoso mundo
sobrenatural e a esfera fundamental
das relaes de gnero, nexos constitutivos do cerimonial xinguano
e do sistema social 6.
A msica executada com as flautas sagradas xinguanas extremamente
apreciada pelos
xinguanos em geral, inclusive pelas mulheres, que, na verdade,
constituem uma audincia
essencial na performance de flautas. Como em todas as regies
onde h o complexo das flautas
sagradas, as mulheres no podem ver os instrumentos, mas o fato
que estar na aldeia para ouvir
a msica uma espcie de prescrio cultural, ou seja, as mulheres
devem ouvir a msica (ver
Piedade, 1997, 1999). Essa proibio-visual/prescrio-auditiva tem
a ver com o fato de que as
mulheres xinguanas possuem um repertrio de cantos iamurikum
baseado nas melodias das
flautas sagradas, podendo-se dizer que o ritual das flautas
sagradas e o de iamurikum mantm
uma relao dialgica7.
A estruturao da msica de flautas sagradas dos Wauja denota uma
ateno especial
esfera motvica, como mostrarei adiante, constituindo este o
ncleo mais significativo do kawok.
Muitas das melodias do repertrio das flautas sagradas so
tratadas como valiosas, secretas e
perigosas (kakaiapai), e os flautistas no podem cometer erros na
sua execuo, sob o risco de
serem acometidos e causarem infortnios, doenas e morte. O
discurso Wauja sobre a msica das
flautas kawok aponta o nvel motvico como camada principal: nas
exegeses nativas sobre as
peas musicais, uma pequena alterao no nvel motvico era apontada
como o fator que fazia
com que aquela pea fosse outra, e no a mesma anterior. Guiado
pela exegese do mestre de
flautas kawokatop, compreendi que no se tratava de repeties ou
variaes fortuitas, mas de
princpios de diferenciao que ali eram aplicados. Com as
transcries musicais e anlise,
constatei o emprego estvel de finas operaes de repetio e
diferenciao entre motivos e
frases musicais, tais como aumentao, diminuio, transposio,
duplicao, entre outras. O 6 As flautas sagradas xinguanas no
representam um fenmeno isolado, que se d unicamente no Alto Xingu.
Trata-se aqui de uma verso do chamado complexo das flautas
sagradas, que tem uma abrangncia notvel nas terras baixas da Amrica
do Sul (Chaumeil, 1997; Hill & Chaumeil, 2008), bem como existe
em outras partes do mundo. Devido aos impressionantes paralelos no
complexo das flautas sagradas tal como aparece na Amaznia e na
Melansia, estas duas regies tm sido objeto de estudos comparativos
h muito tempo (ver Gregor & Tuzin, 2001). 7 Para uma etnografia
do ritual de iamurikum com nfase na msica, ver Mello (2005).
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6 TRANS 15 (2011) ISSN: 1697-0101
emprego sistemtico destas operaes constitui uma espcie de jogo
que, para alm do plano
sonoro, aponta para uma sucesso de idias: trata-se de uma espcie
de manipulao artstica de
estados formais pr-estabelecidos que se assemelha a um
procedimento potico, aplicado aqui na
esfera motvica da msica instrumental. Desenvolverei adiante esta
idia, que entendo ser um
jogo de motivos que configura uma potica da msica de kawok. Mas
para isso necessito explicar
como foi o processo de descoberta analtica e o sistema sinttico
que desenvolvi para dar conta
deste repertrio.
A princpio, realizei transcries integrais de vrias peas da msica
de kawok. Ou seja,
inclu nelas todos os eventos musicais possveis, uma linha
separada para cada uma das trs
flautas, linha de ritmo, todas as notas do incio ao fim de cada
pea (ver exemplo adiante). Aps
anlise inicial, verifiquei que havia frases musicais que se
repetiam ao longo de cada pea,
enquanto outras eram sempre diferentes. As frases que se
repetiam eram as mesmas em todas as
peas de um mesmo grupo (uma mesma sute, como explicarei adiante)
e as frases diferentes
eram nicas. Esta verificao foi de encontro ao que eu havia
aprendido, na prtica, nas aulas de
flauta, onde eu conseguia decorar estas frases-padro, tendo mais
dificuldade com as frases
nicas. Lembrando-me de que justamente estas frases nicas de cada
pea constituam o que meu
mestre indicava como mais valioso e importante de se saber tocar
perfeitamente, conclu que este
jogo de frases-padro e frases nicas era prprio da constituio das
peas, e mais tarde confirmei
que todas as peas obedeciam a este jogo e s suas regras. Assim,
todas as peas kawok que
conheo se iniciam com a execuo de frases-padro tpicas da sute e
somente aps isto so
tocadas as primeiras frases nicas, e ento, volta-se s frases
padro, aps o que so apresentadas
novas frases nicas, a pea terminando sempre com frases-padro,
conforme mostrarei a seguir.
Estas frases-padro chamei de motivos-de-toque e, as frases
nicas, motivos-de-tema.
A relao entre tema e toque fundamental. Os motivos-de-tema, que
constituem os
temas, so os motivos principais executados, novos a cada pea,
nicos, fundamento esttico da
beleza deste repertrio8. Os motivos-de-tema somente so tocados
pelo flautista que fica no meio
do trio, o kawokatop, o flautista-mestre. Os motivos-de-toque,
que constituem o que chamei de
toque, funcionam como momentos intermedirios entre os temas,
sendo iguais em todas as peas
de uma mesma sute, e sendo tocados pelos trs instrumentistas em
unssono. So marcados por
nmeros, de modos que podem ser representados por uma seqncia
numrica. H quatro tipos
8 So estes motivos-de-tema que os apapaatai doam aos humanos em
sonhos ou situaes especiais, so eles que devem ser memorizados e
executados na sua forma e ordem perfeita, pois errar um perigo para
a sade humana.
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Anlise musical e contexto na msica....7
de toque: toque de abertura (TA) ou encerramento (TE), toque
inicial (TI), toque central (TC) e
toque final (TF). H dois tipos de tema, o primeiro e o segundo,
representados por A e B.
Exemplo de motivos-de-tema (marcados com colchetes inferiores e
letras)
Exemplo de motivos-de-toque (marcados com colchetes inferiores e
nmeros)
Os temas A e B, constitudos por motivos-de-tema, aparecem sempre
aps um TC. No TC,
os trs flautistas esto tocando em unssono. Ento, o kawokatop
inicia um tema, executando
sozinho os motivos-de-tema, enquanto os flautistas acompanhantes
kawokamonawatu passam
para a linha meldica de acompanhamento, constituda por notas
longas que se guiam pelas notas
do tema. Este sistema de acompanhamento muito especial configura
um tipo de cho plano sobre
o qual os motivos-de-tema podem ser enunciados em seu mximo
brilho, espcie de cantus firmus
s avessas, conseqncia do contraponto executado pelo flautista
mestre, que a linha principal.
Os motivos-de-tema so representados por letras minsculas
podendo, portanto, ser
representados por uma seqncia alfabtica. Importante lembrar que
estas letras tm uma
validade apenas naquela pea, ou seja, o que a em uma pea
diferente do que a em
outra. Os motivos-de-tema que constituem os temas A e B podem
ser variados segundo princpios
que esclarecerei mais adiante (a, a, etc.).
Podemos agora falar da estrutura formal das peas. Pode-se
resumir a sucesso de trechos
da forma geral de uma pea kawok ao seguinte esquema:
1. TI (toque inicial, msicos de p sem danar).
2. tema A
3. TC (toque central da sute e incio da dana no final
deste).
4. repetio do tema A
5. TC (repetio do item 3)
6. tema B
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8 TRANS 15 (2011) ISSN: 1697-0101
7. TC (inteiro ou somente uma parte)
8. repetio de B
9. TC (inteiro ou somente uma parte)
10. TF (final a dana).
Forma: TI + A + TC + A + TC + B + TC + B + TC + TF
Esta a estrutura geral das peas de msica de kawok. As variantes
formais so poucas,
tais como a no repetio de B. importante verificar que, de algum
modo, h sempre um
retorno para A depois da exposio de B, pois ocorre que A se
encontra contido em B. Aps o TF,
terminada uma pea, h uma pausa curta, de 30 segundos a 2
minutos, os instrumentistas ficando
na posio de execuo, em p, mantendo o instrumento pendurado no
pescoo, podendo chegar
at uma panelinha que contm gua e faz-la escorrer por dentro da
flauta, ou conversar muito
rpida e restritamente, sempre em volume muito baixo, geralmente
acerca de algum ajuste
musical ou sobre os motivos da pea seguinte. Logo em seguida, o
mestre d o TI, toque inicial
tpico da sute, no que imediatamente seguido pelos acompanhantes,
e assim inicia-se a outra
pea. Aps a ltima pea de uma sute, o kawokatop toca o TE sozinho,
aps o que os trs
instrumentistas guardam seus instrumentos para a prxima sesso.
Os instrumentos so
colocados no cho, um ao lado do outro, apoiados na parte do
bocal em algum tronco ou
banquinho. Esta estrutura geral est presente em todo o repertrio
kawok.
Cada pea est inserida em uma sute nomeada9. A noo de sute serve
aqui em vrios
pontos: na msica para flautas kawok h conjuntos de peas que
constituem uma unidade formal
nomeada, ligada a um apapaatai em particular, a um momento
particular do dia ou da noite no
qual deve ser executada. Em todas as peas da sute h elementos em
comum, notadamente no
nvel dos motivos, frases e temas musicais, conferindo sute um
aspecto de totalidade musical do
ponto de vista do sistema tonal-motvico10. Cada pea de uma sute
kawok no exibe
caractersticas estilsticas intrnsecas, mas tem um mesmo carter
dado pela sute como um todo,
9 Na tradio musical europia, desde o perodo barroco, o termo
sute se refere a um conjunto de peas instrumentais compostas para
serem tocadas de uma s vez, estando na mesma tonalidade e sendo
baseadas em formas ou estilos de dana. A chamada sute barroca, que
formada basicamente por quatro peas, allemande, courante, sarabande
e giga, podendo ser includas outras danas, geralmente entre a
sarabande e a giga, como boure, gavotte, minuet, chaconne e
passacaglia (Bukofzer, 1947). 10 Nisto, a sute barroca diferente,
pois o os temas meldicos no so proeminentes, apenas constituem uma
apresentao bem marcada do ritmo caracterstico de cada dana (Morris,
1976).
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Anlise musical e contexto na msica....9
sua particularidade se dando no nvel do motvico e semntico. O
fato que as vrias sutes
kawok so constitudas de um nmero especfico de peas musicais de
cerca de dois minutos
cada uma. A ordenao correta das sutes do repertrio kawok remonta
aos seus criadores
originais, os mapapoho, o povo-abelha11. Esta ordenao fixa
original regulamenta: quais as
sutes que devem ser tocadas de manh, tarde ou noite, e em que
ordem; e em cada sute,
qual o nmero correto de peas e qual a ordem de sua execuo; e
ainda, em cada pea, qual o
primeiro tema, qual o segundo, qual o jogo motvico (que motivo
deve sair, entrar, ser variado,
como, etc). A ordem interna das peas dentro da sute algo muito
importante de ser cumprida
risca, pois um erro (como pular uma pea, trocar a ordem correta,
ou realizar incorretamente o
jogo motvico) pode desagradar o apapaatai e isto perigoso.
Considero a totalidade da msica
de flautas kawok como um gnero musical, no sentido de uma
totalidade musical que exibe
estabilidade do ponto de vista temtico, estilstico e
composicional12.
Da mesma forma que uma sinfonia deve ser analisada em todos os
seus movimentos,
importante que um ritual seja analisado em sua integralidade, no
sentido de uma descrio densa
dos eventos musicais e para que no se perca de vista os vrios
nexos que esto em jogo tanto no
seu nvel micro-estrutural quanto no macro. A abordagem de peas
de uma nica sute pinada do
conjunto do ritual, que me proponho fazer neste artigo, tem na
verdade um rendimento
explicativo limitado, pois perde de vista o jogo motvico no nvel
macro-estrutural, o que para a
msica kawok um aspecto fundamental: a apreciao do prprio
apapaatai como julgadora
do correto encadeamento. A busca da compreenso deste ritual deve
ser guiada pela apreciao
nativa dos elementos envolvidos, e o recorte na direo do sistema
motvico-frasal segue esta
pista, j que o prprio discurso nativo ali focaliza o cerne deste
gnero musical. O primeiro passo
a transcrio. Trata-se aqui de um conjunto extenso para
apresentar e analisar, e por isso foi
necessrio realizar um estudo prvio no sentido de desenvolver uma
partitura sinttica de cada
pea, destacando o que nela principal, ou seja, os
motivos-de-tema. A anlise musicolgica
molda-se s caractersticas de seu objeto e, portanto, toma
diferentes rumos a cada repertrio, e
cada anlise justifica a pertinncia da abrangncia do material
etnogrfico atravs do recorte das
implicaes que se pretende salientar. Em seguida apresentarei
transcries analticas das 12
primeiras peas da sute ielatujata, seguidas de comentrios
analticos. Antes das peas est o
11 Importante frisar que o sufixo poho tem o sentido duplo de
povo e aldeia. 12 Este entendimento de um gnero musical se inspira
em Bakhtin (1986,1999). Para um aprofundamento nesta definio de
gnero musical, ver Piedade (1997, 2003).
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10 TRANS 15 (2011) ISSN: 1697-0101
quadro dos motivos da sute ielatujata.
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Anlise musical e contexto na msica....11
Quadro de motivos de ielatujata Sute Ielatujata (I1-12)
I 1
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I 2
I 3
I 4
I 5
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I 6
I 7
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I 10
I 11
I 12
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Anlise musical e contexto na msica....15
Comentrios analticos
O pulso na sute ielatujata composto (ou seja, sub-divisvel por
trs), e o andamento gira
em torno de =27-28. Diferentemente da maioria das sutes, nesta
sute no tocada a nota mib.
Esta nota corresponde ao segundo orifcio da flauta, ou seja, o
flautista levanta apenas o dedo
mdio da mo direita. O fato desta nota no fazer parte desta sute
significativo, um marcador
da sute. Adiciona-se a esta caracterstica o uso de uma variao
microtonal no motivo-de-toque 4,
indicada no quadro de motivos de ielatujata (acima) por uma
flecha. Esta nota mi ali sutilmente
baixada atravs da aproximao do indicador da mo direita no
segundo orifcio, justamente
aquele do mib, de maneira a cobrir uma pequena parcela do
orifcio. H outros usos de variao
microtonal na msica de kawok, mas se trata de um procedimento
pouco freqente no
repertrio, pois, em geral, os orifcios esto inteiramente tapados
ou abertos13.
Nesta sute h vrios exemplos de um tipo de variao que chamei de
reiterao. Ocorre
reiterao quando uma clula final de um motivo repetida logo aps a
apresentao deste,
reiterando, portanto, sua parte final. Isto faz com que esta
clula que se desprendeu do motivo se
torne ela mesma um novo motivo, variao do primeiro. no nvel das
frases que a ao da
reiterao se torna mais clara. Trata-se aqui igualmente da
repetio da parte final da estrutura da
frase, formada por um motivo, e algumas de suas configuraes so:
ab b, abc bc, abc c, aa a, aab
ab. Por exemplo, em I3 A aa aa a, o ltimo a sendo uma reiterao
de aa.
Estes so alguns dos muitos exemplos de reiterao que ocorrem em
todo o repertrio
kawok. Mas creio, a partir da escuta, que este princpio
extensivo ao repertrio vocal da msica
xinguana em geral. Reiterao semelhante ao que Riemman, no sculo
XIX, chamou de
anschlumotiv, motivo anexado (Riemman, 1967 [1895])14, mas a
natureza do motivo especial,
13 Reforo aqui a idia de que as indicaes das alturas musicais em
todas as transcries so sistematicamente aproximativas, o reb sendo
sempre mais baixo e o mib mais alto. Tocadas estas melodias ao
piano, perder-se-ia esta importante e caracterstica desafinao da
msica de kawok. O sistema temperado foi criado no sculo XVIII em
funo dos problemas de afinao entre instrumentos de sons fixos e
instrumentos que utilizavam a escala natural (Cand, 1961): trata-se
da virada para um sistema simtrico que representou uma revoluo
epistemolgica musical (Abdounur, 1999). O temperamento
artificialmente divide a oitava em intervalos iguais e estabelece a
equivalncia das oitavas, quase sempre no sendo perfeitamente
adequado para as transcries das msicas tradicionais, e tambm de
certas msicas ocidentais, como no caso da msica barroca
(Harnoncourt, 1982). 14 Hugo Riemann foi um importante musiclogo
cuja teoria harmnica marcou a escola da chamada harmonia funcional.
A fraseologia deste autor interessante para a msica de kawok na
medida em que ele enfatiza o papel dos motivos na estrutura das
frases, embora conte com princpios de acentuao que somente entram
em jogo na msica erudita ocidental (Riemann, 1967 [1895]).
importante ressaltar que fao a referncia a Riemann e a outros
musiclogos nesta tese porque minha leitura destes autores, que tm
como objeto principal a msica ocidental, revelou que suas
contribuies tm um rendimento transcultural.
-
16 TRANS 15 (2011) ISSN: 1697-0101
pois a parte final do motivo anterior. como um eco, uma
confirmao sinttica da proposio,
um recurso potico, j que produto de um jogo no nvel sinttico da
frase musical.
Nesta sute h tambm um tipo de relao entre os temas que muito
presente em todo o
repertrio kawok. Trata-se de quando B configura-se como uma
espcie de variao do tipo
transposio em relao a A . Em outros termos, B apresenta
motivos-de-tema que so
transposies do motivos-de-tema de A , sempre um grau mais alto.
Desta forma, os motivos-de-
toque de A atingem a regio mais aguda, chegando nota solb . Isto
ocorre em I2, I3, I4 e I8.
Em I1, h um exemplo do uso de variao por aumentao (alargamento
na estrutura
rtmica do motivo) e do comentrio (novo motivo com a mesma
terminao do anterior, ou seja,
com a mesma clula de finalizao). Estas operaes se encontram em B
, que constitudo por:
motivo b + repetio de b + b(variao b por aumentao) + c
(comentrio de b) + c(inverso de
b). Este ltimo motivo, por sua vez, est prximo do motivo a, a
proposio inicial, e de fato,
uma variao de a que o sucede (a) na recapitulao de A . Esta uma
construo temtica
interessante, na qual o primeiro motivo de B sucessivamente
variado at que, por fim, se
aproxima do motivo inicial da pea, ou seja, uma seqncia que
transforma B em A.
A variao por transposio pode se dar dentro de um mesmo tema, e
pode ser para um
grau abaixo na escala, como o caso de A em I3: a + a (variao por
transposio inferior). O
motivo-de-tema de B a (variao de a por transposio superior).
Nesta pea h muita
elaborao formal a partir de um nico motivo, e a forma exibe um
contorno que pode ser
visualizado assim:
A A B A B A A a a
a a a a a a a a a a a aa a aa a aa a aa a
Na pea I4, A ab ab, e B aab aab ab. Ocorre aqui que o motivo aab
de B a
repetio de ab de A antecedida por a, uma variao tipo transposio
de a. Trata-se de um caso
de incluso que vem a transformar a idia inicial no incio de sua
enunciao, transfigurando A em
B . A mesma operao ocorre em I5, na exposio de A aps B .
Muitas vezes os motivos-de-tema so separados por
motivos-de-toque, que so indicados
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Anlise musical e contexto na msica....17
por nmeros. Alguns motivos-de-toque se engendram de tal forma
entre os motivos-de-tema que
tambm so transformados por variao, como o caso de I6, onde o
motivo-de-toque 4
variado duas vezes, se transformando em 4 e 4.
Alguns temas tm forma binria, do tipo ab, ou ternria, do tipo
abc, ou mesmo
quinqenria, como o caso de I9, onde A ababa e B ababa.
comum uma variao de motivo do tipo diminuio, que o contrrio da
aumentao: h
um encurtamento de valores rtmicos do motivo. No A de I11, a uma
variao deste tipo:
passa-se de 2 semicolcheias e uma semnima pontuada para 2
colcheias e uma colcheia,
diminuindo trs vezes o valor da ltima nota do motivo a. Note-se
ainda nesta pea que, no final
do segundo B h o que chamei de elipse, um motivo de interseco
entre duas frases funcionando
simultaneamente como finalizao da primeira e incio da segunda,
ou seja, neste caso o motivo a
pertence tanto a B enquanto finalizao quanto a A enquanto motivo
inicial.
Destes comentrios analticos pode-se avaliar a dimenso da anlise
quando ela leva em
conta mais de setenta peas, como foi o caso deste ritual (ver
anlise completa em Piedade,
2004). Na parcela aqui analisada, ocorrem as seguintes
transformaes: reiterao, aumentao,
comentrio e diminuio. Outras operaes que pude levantar na msica
de kawok so:
inverso: mudana do contorno meldico fazendo com que o motivo
descendente se torne
ascendente, ou vice-versa.
fuso: dois motivos ou clulas diferentes se agregam, formando um
nico -motivo.
excluso de uma nota ou de uma clula motvica.
incluso de uma nota ou clula motvica, em geral ao final do
motivo, muitas vezes tendo o
carter de repetio da ltima clula do motivo.
duplicao: um tipo de fuso na qual um motivo se agrega a uma
repetio dele mesmo.
triplicao: o mesmo que duplicao, mas com duas repeties.
compresso: um tipo de excluso ou reduo do motivo que deforma sua
estrutura
rtmico-meldica em uma verso mais curta e densa.
reiterao da reiterao: uma dupla reiterao.
fechamento: compresso da parte inicial do motivo e manuteno da
sua parte final, que
com isto ganha salincia.
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18 TRANS 15 (2011) ISSN: 1697-0101
Afirmei anteriormente que o jogo de motivos configura uma potica
da msica de kawok.
Falar em potica aqui, no contexto de uma msica instrumental
indgena, faz sentido com a
exegese nativa, que afirma que a msica de kawok uma fala, a a
fala do kawok,
kawokagatakoja. Trata-se de uma categoria nativa para a msica do
kawok tomada como uma
fala, ou seja, um discurso, o que sustenta uma interpretao dos
temas musicais como
enunciados. Como na msica Kamayur, o processo de significao
musical na msica de kawok
basicamente temtico15, igualmente caracterizando-se por uma
construo de um espao-tempo
memorial, altamente redundante, onde a repetio o trao
fundamental (Bastos, 1990: 519). A
construo temtica (a idia musical) e a repetio, em suas vrias
formas, so os motores do jogo
motvico e do processo de significao, operaes do pensamento
musical que constituem a
potica da msica kawok. Esta potica musical se aproxima do
sentido dado por Jakobson ao
termo potica, especialmente no que se refere questo do
paralelismo16. A questo de fundo
que na potica musical a repetio no uma redundncia (nos termos de
uma teoria da
informao)17 mas, sim, um princpio racional originrio, presente
no apenas nos discursos
artsticos, mas tambm nas filosofias e cosmologias nativas.
No ritual de flautas sagradas Wauja, pode-se notar, atravs da
anlise do nvel motvico
destas peas musicais, que h nesta msica um pensamento sobre a
repetio, a variao e a
diferena. Utilizo a noo de jogo para falar do jogo dos motivos
que se estabelece neste
repertrio, mas com isto no pretendo apontar para um aspecto de
permeabilidade ou
indeterminao, mas sim para o carter regulamentar do jogo, para o
sentido das regras do jogo.
O jogo dos motivos na msica kawok uma potica musical que trata
da confeco da diferena,
dada fundamentalmente do eixo do tempo e da existncia, ou seja,
na temporalidade. Os
diferentes sistemas musicais do mundo resultam no apenas de
poticas diversas, mas de
diferentes formas de perceber a temporalidade. O pensamento
musical uma expresso da
cosmologia posta em ao na msica, revelando concepes fundantes da
filosofia nativa no
mbito da temporalidade. Portanto, o sistema musical tem tambm um
carter existencial, pois
reporta a formas de temporalidade concebendo a finitude. E o
sistema musical no est isolado: o
pensamento que cria a diferena a partir destas operaes mnimas
atua no mbito das artes
15 Conforme mostra Bastos, seguindo a categoria ip, tema musical
(Bastos, 1999:153). 16 Para uma viso geral da questo do paralelismo
em Jakobson, especialmente pelo seu interesse antropolgico, ver Fox
(1977). Lembro que, j no perodo final do renascimento e durante
todo o barroco, a idia de uma potica musical esteve em voga na
Europa, e que o que quero dizer com potica recupera esta mesma
direo. 17 Sobre a importncia da repetio na msica, ver Ruwet
(1972).
-
Anlise musical e contexto na msica....19
visuais, por exemplo, no sistema grfico (motivos, desenhos,
adornos), na dana (coreografia), e
mesmo no mito. O tempo do kawok est encarnado na filosofia
nativa.
Neste sentido, a msica kawok um exemplo forte de como a
temporalidade nativa
instaura possibilidades de recortar e recombinar as estruturas
temporais de forma potica. Pode-
se dizer que a msica pronuncia formas da temporalidade, a partir
de uma perspectiva espacial.
Quando ouvia as flautas kawok noite, na aldeia, ouvia os
instrumentos investidos de um
mximo de significado, no apenas para mim, mas certamente para os
Wauja. Para os flautistas, o
esprito apapaatai presentificado, ele mesmo que estava ali
falando, a msica sua fala,
kawokagatakoja, fala do kawok. O esprito apapaatai se pronuncia
pelo jogo dos motivos,
entrecortando o tempo de forma potica. Esta qualidade do som
musical, entrelaado
originariamente no contexto do panorama sonoro onde foi
concebido e construdo, aponta para a
importncia do que foi chamado de acustemologia (ver Feld, 1997).
Neste sentido, ouvir uma
gravao da msica (ex-tica) como perceber uma filmagem potica do
espao que revela as
formas nativas da temporalidade. Da mesma forma que uma pintura
de uma poca do passado foi
produzida segundo uma viso de mundo ancorada em um contexto de
origem (Baxandall, 1991),
e, portanto, feita para ser vista por um olhar que j no existe e
que nos apenas aproximvel,
trata-se aqui da experincia analtico-musical de ouvir como o
outro ouve o espao e expressa o
tempo.
Acredito que a msica de flautas kawok, que entendo como gnero
musical, exibe
unidade: todas as peas parecem vir de uma s matriz formal. A
despeito de um olhar
desconstrutivista ps-moderno, que talvez confunda complexidade
com desunidade (Morgan,
2003), analisar buscar a unidade imanente de uma obra, ainda que
ela no seja postulada. Mas
necessrio lembrar que a anlise musical , em si, mais do que um
procedimento positivo e
cientfico, um ato interpretativo no sentido filosfico (Ricoeur,
1999): h toda uma hermenutica
que envolve a tcnica analtica, fundada em uma viso de mundo que
necessita ser, seno
explicitada, tornada consciente por parte do analista. Ao mesmo
tempo, o subjetivismo radical,
que se encontra, por exemplo, em setores da crtica musical, mina
o rendimento compreensivo da
anlise na medida em que o juzo fundamentado no gosto se torna um
critrio18. Est em curso
uma reavaliao das fronteiras epistemolgicas entre os domnios do
conhecimento musical, bem
como uma investigao das limitaes de abordagens analticas, por um
lado, exclusivamente
18 Trata-se, portanto, de encontrar o meio caminho, algo prximo
do que Kerman chama de musicologia crtica (1987).
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20 TRANS 15 (2011) ISSN: 1697-0101
tcnicas e, de outro, eminentemente histricas e culturais (ver
Kerman, 1980; Samson, 2001;
Lockhead e Auner, 2002; Williams, 2003). Creio que a chave para
o desenvolvimento da
compreenso musicolgica das msicas de qualquer repertrio,
ocidental, no-ocidental,
folclrico, indgena, popular, seria o encaixe do puramente
musical em sua matriz scio-
histrica. A abordagem puramente formalista, guiada pelo suporte
terico do positivismo, j se
mostrou ineficiente, tendo sido suficientemente criticada. Por
outro lado, muitas investigaes
etnomusicolgicas que no tratam do texto musical em si igualmente
acabam se tornando
narrativas circulares, falando de um objeto que nunca se revela
ao leitor. Creio que possvel uma
descrio analtica de uma pea musical em sua plenitude semntica,
reconstituindo de forma
equilibrada a integridade entre texto musical e contexto
histrico e scio-cultural. Neste mbito
da Musicologia do sculo XXI, a msica indgena se revela objeto
analtico pleno, muito longe da
forma de ouvi-la enquanto mera repetio sem significado.
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Acacio Tadeu de Camargo Piedade Possui graduao em Msica
(Composio e Regncia) pela Universidade Estadual de Campinas (1985),
mestrado e doutorado em Antropologia Social pela Universidade
Federal de Santa Catarina (1997, 2004). Atualmente professor
efetivo do Departamento de Msica e do Programa de Ps-Graduao em
Msica (PPGMUS/UDESC) da Universidade do Estado de Santa Catarina.
membro dos grupos de pesquisa MUSICS (UDESC) e MUSA (UFSC). Tem
experincia na reas de Artes e de Antropologia, com nfase em Msica,
atuando principalmente nos seguintes temas: musicologia,
etnomusicologia, anlise musical e composio musical.
Cita recomendada
Piedade, Accio Tadeu de C. 2011. Anlise musical e contexto na
msica indgena: a potica das flautas.TRANS-Revista Transcultural de
Msica/Transcultural Music Review 15 [Fecha de consulta:
dd/mm/aa]