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A EFETIVIDADE DAS RECOMENDAÇÕES DA COMISSÃO INTERAMERICANA DE
DIREITOS HUMANOS NO BRASIL
Cristina Figueiredo Terezo*
RESUMO
O presente artigo versa sobre a análise das Recomendações
apresentadas pela Comis-são Interamericana de Direitos Humanos
diante dos casos brasileiros em tramitação neste órgão, identifi
cando-se a relação das Recomendações com políticas públicas,
inovações e alterações legislativas ocorridas no Estado
brasileiro.
Palavras-chaves: direitos humanos. Direito internacional
público. Sistema intera-mericano de proteção aos direitos humanos.
Comissão interamericana de direitos humanos.
1 CONSIDERAÇÕES INICIAIS
Os sistemas regionais de proteção aos Direitos Humanos assumiram
um pa-pel relevante diante do contexto atual, vêm correspondendo a
uma alternativa para o acesso de mecanismos internacionais que
estão mais próximos da realidade sócio-econômico e cultural dos
países que os compõem e se pressupõe que sua atuação seja mais
efetiva, em razão da proximidade com os Estados-membros, bem assim
pelo fato de conseguir suplantar a barreira do “relativismo
cultural”.
* Doutoranda em Direito, professora de Direitos Humanos da
Universidade Federal do Pará e advogada do Progra-ma Acesso à
Justiça da Sociedade Paraense de Defesa dos Direitos Humanos.
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212TEREZO, Cristina Figueiredo. A efetividade das recomendações
da comissão interamericana de direitos humanos no Brasil.
RIPE – Revista do Instituto de Pesquisas e Estudos, Bauru, v. 1,
n. 46, p. 211-234, jul./dez. 2006.
Os sistemas regionais são admitidos pelos cidadãos e pelas
cidadãs, enquanto sujeitos de Direito Internacional, bem assim por
entidades que compõem a sociedade civil organizada, como mecanismos
para promoção e implementação dos Direitos Humanos em seu país.
O Sistema Interamericano de Proteção aos Direitos Humanos, por
sua vez, enquanto um órgão com atuação nos Estados que fazem parte
da Organização dos Estados Americanos (OEA), dentre eles o Brasil,
tornou-se referência com relação à promoção e à garantia dos
Direitos Humanos, em razão de ser um dos sistemas mais antigos e
pelas constantes alterações e inovações de mecanismos e de
instrumentos de Direitos Humanos que propicia, sempre com o escopo
de se adequar a nova rea-lidade. No entanto, apesar de sua inegável
importância, o sistema em apreço ainda apresenta falhas na
efetividade de seus julgados e de suas Recomendações,
primor-dialmente no tocante aos casos brasileiros.
O Sistema Interamericano é resultado de um processo evolutivo,
que culmi-nou com o reconhecimento de diversos instrumentos
internacionais por parte dos Estados americanos, que estruturariam
na IX Conferência Interamericana, um sis-tema regional de promoção
e de proteção dos Direitos Humanos, no qual admitem e defi nem a
existência dos mesmos, determinando normas de condutas obrigatórias
e ainda estabelecendo órgãos destinados a velar pela sua fi el
observância.
O mecanismo regional que tem por escopo a garantia e a promoção
dos Di-reitos Humanos somente tornou-se possível em 1959 quando
ocorreu, em Santiago dos Chile, a V Reunião dos Ministros das
Relações Exteriores. Por conseguinte, a OEA instituiu um órgão
denominado Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH).
Como o ano de 1968 foi proclamado pela Assembléia Geral da
Organização das Nações Unidas (ONU) o ano internacional dos
Direitos Humanos, e como a maio-ria dos Estados que compunha na
época a OEA não estava sob regime militar, consi-derou-se o momento
ideal para levantar a bandeira dos Direitos Humanos e debater o
assunto. A Conferência então foi marcada para 1969 em San José. Na
ocasião, se adotou a Convenção Americana de Direitos Humanos
(CADH), também chamada de Pacto de San José da Costa Rica, que
identifi ca dois órgãos que compõem o Sistema Interamericano: Corte
Interamericana de Direitos Humanos e Comissão Interameri-cana de
Direitos Humanos. O primeiro órgão tem por fi nalidade a
interpretação da Convenção e de Tratados que estão relacionados à
proteção dos Direitos Humanos nas Américas e o exame de casos em
que os Estados tenham violado a Carta da OEA, Declaração Americana
ou CADH, que revela sua competência contenciosa, por pro-ferir
sentenças com força vinculante, de execução imediata. O segundo
órgão tem
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como principal atribuição processar denúncias individuais, bem
assim monitorar o cumprimento das obrigações decorrentes da ratifi
cação de instrumentos internacio-nais de promoção e de garantia aos
Direitos Humanos, podendo desempenhar suas atribuições mesmo
naqueles Estados-partes que não tenham ratifi cado a CADH, por
força da Carta da OEA e da Declaração Americana.
A Comissão Interamericana representa o primeiro órgão no sistema
regional que estabelece a responsabilidade internacional de um
Estado-membro por violação dos direitos previstos nos instrumentos
internacionais, garantindo um procedimen-to baseado nos princípios
do contraditório e da ampla defesa aos peticionários e
pe-ticionárias e ao Estado demandado.
Com a evolução da Comissão e com a conseqüente ampliação das
suas atri-buições, a mesma tem desenvolvido uma jurisprudência
bastante diversa para o pro-cessamento das petições individuais,
principalmente na análise dos requisitos para admissibilidade,
adotando cada vez mais critérios fl exíveis e por vezes subjetivos,
realizando o exame de cada caso em sua particularidade.
Diante da importância que a CIDH assume perante o funcionamento
do Siste-ma Interamericano, o presente artigo tem por escopo
estudar a efetividade das Reco-mendações da Comissão Interamericana
e suas implicações quanto à jurisdição inter-na, correlacionando
tais Recomendações com políticas públicas, alterações e inovações
legislativas ocorridas no Brasil.
Os relatórios anuais1 publicados pela Comissão Interamericana
foram utilizados como fonte, vez que indicam os casos admitidos
pela Comissão e encaminhados à Corte Interamericana; os fatos que
ocasionaram as lesões dos direitos fundamentais do peti-cionário;
as razões que fundam a interposição das denúncias, os artigos
violados pelo Estado demandado; a posição dos peticionários e do
Estado-parte acerca das matérias processuais e de mérito indicadas
na denúncia; os motivos que levaram a aceitação da petição pela
Comissão Interamericana, a análise de mérito da Comissão, se for o
caso; e por fi m suas Recomendações sobre a denúncia ao Estado
demandado; revelando assim o perfi l dos casos brasileiros que
ingressam no Sistema Interamericano, a evolução do entendimento
jurisprudencial da Comissão no tocante aos requisitos processuais e
de mérito, bem assim os casos em que o mérito foi a julgamento e
que ensejaram Reco-
1 Os relatórios analisados foram àqueles disponíveis no endereço
eletrônico da CIDH, onde constavam os re-latórios contendo casos
brasileiros dos anos de 1971-75, de 1984-85, de 1997-2000 e de
2002-2004. Logo, os casos identifi cados por esta pesquisa perfazem
um total de 50, os quais correspondem às denúncias incluídas no
relatório, mesmo sem terem sido admitidas formalmente; e com a
mudança no Regulamento da Comissão, casos que foram aceitos ofi
cialmente.
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mendações por parte da Comissão Interamericana, fazendo-se a
relação com políticas públicas, alterações e inovações legislativas
ocorridas no Brasil.
2 CUMPRIMENTO DAS RECOMENDAÇÕES DA COMISSÃO IN-TERAMERICANA DE
DIREITOS HUMANOS PELO GOVERNO BRASILEIRO
Quando a Comissão Interamericana iniciou, em 1970, suas
atividades, rece-beu imediatamente denúncias individuais contra o
Estado brasileiro, envolvendo violações de Direitos Humanos
cometidas pelo regime militar. Porquanto, desde seu
estabelecimento, acompanha a trajetória dos Direitos Humanos no
Brasil, mediante informações de organizações não governamentais que
buscam a implementação dos Direitos Humanos em sua integralidade, e
ao se pronunciar sobre alguns casos que lhe eram submetidos de
forma individual, formula algumas Recomendações2 e ob-serva ainda
as reformas legislativas que visam a consolidação do Estado
democrático de Direito no país.
Diante da grave situação de violação Direitos Humanos no Brasil
no período da ditadura militar, a CIDH solicitava ao governo
autorização para uma missão in loco ao país, a fi m de observar as
medidas que estavam sendo tomadas para a promo-ção e a garantia dos
Direitos Humanos.
A visita ofi cial da comitiva da CIDH ao Brasil ocorreu em 1995
e várias ques-tões foram analisadas e objeto de relatório e de
Recomendações em 1997, dentre elas:
2 A Recomendação é, no entender de André de Carvalho Ramos, “uma
opinião de órgão internacional (por defi nição não vinculante),
fruto da existência de obrigação internacional de monitoramento e
supervisão dos direitos humanos por parte de instâncias
internacionais [...]” (RAMOS, André de Carvalho. Processo
internacional de direitos humanos: análise dos sistemas de apuração
de violações de direitos humanos e a implementação das decisões no
Brasil. Rio de Janeiro: Renovar, 2002, p. 298). Para o autor
existem três tipos de Recomendação, a primeira resulta da análise
dos relatórios que são enviados obrigatoriamente pelos gover-nos,
versando sobre a implementação de determinado direito no país; a
segunda deriva da apreciação de certo tema em um país pelas
organizações internacionais; e a terceira, que se aplica a atuação
da Comissão Intera-mericana, se origina a partir do exame de mérito
dos procedimentos que dispõem das petições individuais, analisando
casos específi cos de violação de Direitos Humanos (RAMOS, op.
cit., p. 229). As Recomendações apresentadas pela Comissão devem
ser sim vinculantes, sendo obrigatória para o Estado demandado a
sua observância, na medida em que o caso é analisado em primeira
instância por este órgão, e apenas em situa-ções excepcionais,
casos, que preencham determinados requisitos, poderão ser
encaminhados para a Corte: “[...] resta o relatório da Comissão,
que, enquanto órgão de promoção de direitos humanos, está
perfeitamente legitimada pela Convenção Americana de Direitos
Humanos em exigir determinada conduta por parte dos Estados, já que
os mesmos, ao aderir à Convenção aceitam a competência da própria
Comissão em processar petições individuais” (RAMOS, op. cit., p.
310).
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direitos sócio-econômicos, judiciário, violência policial,
sistema carcerário, os direi-tos da infância, dos indígenas e dos
trabalhadores rurais, direitos das mulheres e discriminação
racial.
De modo a monitorar o cumprimento das Recomendações, a CIDH, em
1999, solicitou ao governo brasileiro informações. Foi enviado,
então o primeiro relatório nacional sobre Direitos Humanos3. E em
2000, a Comissão elaborou um relatório contendo suas observações
acerca das informações encaminhadas pelo governo brasileiro em
1999, bem assim das organizações não governamentais que atuam na
promoção e na defesa dos Direitos Humanos4.
Em 2001, como forma de monitorar os casos individuais que lhe
são subme-tidos e cujos méritos já foram analisados, e por força da
Resolução 1828, que dispõe sobre Avaliação do Funcionamento do
Sistema Interamericano de Proteção e Promo-ção dos Direitos Humanos
para seu Aperfeiçoamento e Fortalecimento, a Comissão
Interamericana incluiu em seu relatório anual, informações sobre o
cumprimento das Recomendações.
A aludida Resolução também foi destinada aos Estados-membros,
com o es-copo de obrigá-los a implementar as Recomendações que lhes
foram apresentadas e atender as solicitações da Comissão quanto ao
cumprimento de suas Recomenda-ções5. Tal procedimento foi adotado a
partir dos casos individuais de 20006.
3 O primeiro Relatório Nacional sobre Direitos Humanos foi
preparado pelo Núcleo de Estudos da Violência, da Universidade de
São Paulo.
4 OEA. Comissão Interamericana de Direitos Humanos. Relatório de
seguimento do cumprimento das reco-mendações da CIDH constante no
relatório sobre a situação dos direitos humanos no Brasil de 1997,
parágra-fo 2.
5 A CIDH avalia a aplicação das Recomendações observando quatro
categorias de níveis de cumprimento: (1) cumprimento total (aqueles
casos em que o Estado cumpriu plenamente com todas as recomendações
for-muladas pela CIDH); (2) cumprimento parcial (aqueles casos em
que o Estado cumpriu parcialmente com as recomendações formuladas
pela CIDH, seja por ter dado cumprimento somente a alguma(as) das
recomen-dações ou por ter cumprido de maneira incompleta com todas
as recomendações); (3) não cumprimento com informação por parte do
Estado (aqueles casos em que o Estado enviou uma resposta a
solicitação de informação sobre as recomendações, mas a CIDH
considera que não houve cumprimento das recomenda-ções); (4) não
cumprimento sem informação (aqueles casos nos quais o Estado não
respondeu a solicitação de informação e a critério da CIDH não
houve cumprimento de suas recomendações). Disponível em: . Acesso
em: 17 fev. 2005.
6 Os casos brasileiros solicitados pela Comissão para análise do
cumprimento das Recomendações nos anos de 2000 a 2004 são os casos
Maria da Penha Maia Fernandes (caso n.º 12.051), Aluísio Cavalcante
e outros casos que foram admitidos como conexos e julgados
conjuntamente (casos n.º 11.286, 11.406, 11.407, 11.412, 11.413,
11.415, 11.416 e 11.417), Diniz Bento da Silva (caso n.º 11.517),
Parque São Lucas (caso n.º 10.031) e José Pereira (caso n.º
11.289).
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A Comissão Interamericana, ao apresentar Recomendações ao Estado
bra-sileiro após a análise do mérito de uma denúncia individual,
pode dispor sobre o processo interno judicial em curso ou ainda
tratar de questões gerais que envolvam a temática daquele
dispositivo da Convenção ou de outro instrumento internacional que
foi considerado violado.
No que se refere aos processos em andamento na justiça
brasileira, pouco o governo tem feito no sentido de acelerar os
julgamentos de tais casos, principalmente na esfera cível, vez que,
em sua maioria, as ações judiciais estão sendo apreciadas nas
justiças estaduais, não cabendo, qualquer interferência do governo
federal, ressaltan-do que este é o ente demandado nos procedimentos
internacionais instaurados.
Resta, na esfera de competência do governo federal, a adoção de
ações mais amplas para reverter o quadro de violações de Direitos
Humanos, levando em consi-deração as Recomendações feitas pela
Comissão Interamericana neste aspecto.
As Recomendações da Comissão somente começaram a surtir efeitos
a partir do processo de redemocratização iniciado no Brasil, em que
pese a noção clássica de soberania ainda estivesse enraizada nas
instituições governamentais tradicionais.
A adesão de Tratados, a submissão à organismos internacionais, a
obrigação em observar os dispositivos previstos nos mecanismos e
nos instrumentos interna-cionais, aliadas ao fortalecimento do
Sistema Interamericano em razão das altera-ções nos seus Estatutos
e Regulamentos, fi zeram com que o governo brasileiro
com-preendesse que o cidadão é visto como um sujeito de Direito
Internacional e que questões afetas aos Direitos Humanos não estão
adstrita ao domínio reservado do Estado, e que portanto, o
cumprimento das Recomendações internacionais não são apenas objeto
da política externa de um país, mas refl etem, principalmente, em
suas ações internas.
Porquanto, se identifi ca que algumas ações desenvolvidas pelo
governo bra-sileiro tiveram forte infl uência das determinações e
observações apresentadas pela Comissão Interamericana ao discorrer
e analisar casos que foram submetidos a sua apreciação e que, por
conseguinte ensejaram em mudanças de políticas públicas in-ternas
relevantes para a promoção de Direitos Humanos no Brasil. Nesse
diapasão, destacam-se algumas que se seguem, admitidas como
importantes.
2.1 CRIMES PRATICADOS POR AGENTES DE SEGURANÇA PÚBLICA
Pode-se vislumbrar a interferência das Recomendações da CIDH
primeira-mente nos crimes praticados por agentes de segurança
pública. Dos 50 casos ana-
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lisados pela presente pesquisa, 40 envolvem agentes de segurança
sejam civis ou militares.
Observa-se que o Brasil foi demandado em razão de agentes do
próprio Es-tado por terem violado os Direitos Humanos, o que
constitui um descumprimento grave dos Tratados internacionais.
No tocante a essas violações praticadas por policiais, a CIDH
emitiu várias Recomendações ao Brasil em denúncias individuais. Um
dos casos de maior reper-cussão no país e que foi encaminhado à
Comissão trata-se do caso conhecido como Parque São Lucas (10.301)7
que versa sobre o episódio ocorrido em 5 de fevereiro de 1989, no
42° Distrito Policial do Parque São Lucas, na cidade de São Paulo,
em que cerca de 50 detentos foram encarcerados em uma “cela forte”
de um metro por três, na qual foram jogados gases lacrimogêneos e
que 18 dos detentos morreram por as-fi xia e 12 foram
hospitalizados.
A Comissão, em março de 1996 analisando o mérito da causa
recomendou ao Estado brasileiro dentre outras questões, que
transferisse a competência da Justiça Militar para a Justiça Comum,
os julgamentos dos crimes praticados por policiais. Em agosto do
mesmo ano, o Brasil aprovou a Lei n.º 9.299 que altera dispositivos
do Código Penal Militar e do Código de Processo Penal Militar,
proporcionando a trans-ferência para a Justiça Comum da competência
sobre processamento e julgamento de crimes dolosos contra a vida
praticados por policiais militares contra civis.
Muito embora a CIDH recomendasse a transferência de todos os
crimes prati-cados por policiais para serem julgados pela Justiça
Comum, em parte sua Recomen-dação foi observada, tendo reiterado a
mesma em 2003, quando retomou a análise do caso.
Outro aspecto que envolve agentes de segurança pública e que é
objeto de Re-comendações freqüentes pela CIDH, bem assim está no
relatório de monitoramento das Recomendações sobre situação geral
de violação de Direitos Humanos no Brasil, trata-se da competência
de investigar crimes cometidos por policiais pelos próprios órgãos
da corporação.
Em que pese a implementação de Corregedorias e de Ouvidorias,
que são consideradas pela Comissão Interamericana importantes
medidas governamentais, a constituição de órgãos imparciais e
independentes, para investigar as condutas de-lituosas praticadas
por policiais, representa uma ação fundamental para a defesa dos
Direitos Humanos no Brasil.
7 OEA. Comissão Interamericana de Direitos Humanos. Caso n.º
10.301, relatório n.º 40/03.
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A CIDH manifestou tal entendimento ao analisar o caso Eldorado
dos Carajás (11.820), que versa sobre o assassinato de 19 de
trabalhadores rurais e a lesão de dezenas de outros em 17 de abril
de 1996, quando 155 policiais militares cercaram pelos dois lados
um grupo de aproximadamente 1.500 trabalhadores rurais que se
encontravam acampados na margem da rodovia estadual PA 150, no
município de Eldorado dos Carajás, Estado do Pará. Dentre os 19
trabalhadores mortos, 6 foram assassinados com os disparos iniciais
e 13 executados sumariamente após a desobs-trução da estrada8.
Mais uma vez, a Comissão reiterou o seu entendimento de que o
processo investigatório fosse realizado por um órgão independente
quando o crime era co-metido por agente de segurança pública, vez
que em diversos casos que envolvem policiais, o procedimento de
investigação se mostrava falho, inefi ciente e demasia-damente
lento, o que comprometia posteriormente a própria instrução do
processo criminal em caso de denúncia do crime9.
2.2 CRIMES DE TORTURA
No que se refere às práticas de tortura no Brasil, a CIDH
também, ao ser acio-nada, apresentou Recomendações sobre esta
temática. 12 são os casos brasileiros, os quais tramitam na
Comissão, que envolvem atos de tortura identifi cados na pesquisa,
sendo que a maioria dos casos ocorreram no regime militar. No
entanto, isso não representa que a tortura tenha diminuído no país,
a partir do processo de redemo-cratização.
8 OEA. Comissão Interamericana de Direitos Humanos. Caso n.º
11.820, relatório de admissibilidade n.º 21/03.9 “26. Um dos
pressupostos essenciais do devido processo é a independência,
autonomia e imparcialidade dos
órgãos nacionais encarregados tanto de investigar como de punir
as supostas violações dos direitos humanos. 27. A esse respeito, a
Comissão considera que a Polícia Militar não goza da independência
e da autonomia ne-cessárias para investigar de maneira imparcial as
supostas violações dos direitos humanos presumivelmente cometidas
por policiais militares. 28. A Comissão explicou que o problema da
impunidade na justiça penal militar não se vincula exclusivamente à
absolvição dos acusados, mas que ‘a investigação de casos de
violação dos direitos humanos pela justiça militar em si implica
problemas’ e que a investigação do caso por parte da justiça
militar elimina a possibilidade de uma investigação objetiva e
independente executada por autorida-des judiciais não ligadas à
hierarquia de comando das forças de segurança. O fato de que a
investigação de um caso tenha sido iniciada na justiça militar pode
impossibilitar uma condenação mesmo que o caso passe logo à justiça
ordinária, dado que provavelmente não foram colhidas as provas
necessárias de maneira oportuna e efetiva. Também a investigação
dos casos que permanecem no foro militar pode ser conduzida de
maneira a impedir que cheguem eles à etapa de decisão fi nal.” OEA.
Comissão Interamericana de Direitos Humanos. Caso n.º 11.820,
relatório de admissibilidade n.º 21/03, parágrafos 26-28.
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Pode-se citar como exemplo de uma interpelação internacional que
foi de-nunciada pela prática de tortura, o caso n.º 12.32810 que
trata sobre adolescentes, ao quais estavam encarcerados nas
Unidades da Fundação do Bem Estar do Menor (FEBEM) em São Paulo,
onde eram torturados e espancados, e sofriam maus tra-tados. Uma
situação que expunha os menores a tensões internas que fi ndavam em
rebeliões, lesões corporais graves, fugas e morte.
O Ministério Público Estadual, nos anos de 1999 e de 2000,
instaurou vários procedimentos administrativos com pedido de
liminar e ingressou com duas Ações Civis Públicas. A Procuradoria
Geral do Estado de São Paulo obteve a cassação das liminares e
recorreu das Ações Civis Públicas.
Em fevereiro de 2001, o Estado brasileiro encaminhou um ofício
do Secre-tário de Assistência e Desenvolvimento Social do Estado de
São Paulo à Comissão Interamericana esclarecendo que: (1) vários
projetos estavam sendo implementados na FEBEM/SP; (2) que o Estado
não pode ser responsabilizado pela morosidade do Poder Judiciário;
e (3) que havia demitido servidores e contratado outros.
Em razão de denúncias internacionais tratarem sobre a matéria,
bem assim pelas Recomendações feitas pelo Relator Especial das
Nações Unidas sobre Tortura e outros Tratamentos Cruéis, Desumanos
ou Degradantes, em 200111, perante a As-sembléia Geral da Comissão
de Direitos Humanos da ONU. Naquele mesmo ano, o governo adotou
inúmeras ações de combate à tortura no Brasil.
Em julho de 2001, o governo brasileiro lançou o Plano Nacional
de Combate à Tortura, dentre as medidas previstas neste plano
estavam: lançamento na mídia da Campanha Nacional contra a Tortura;
uma central única de denúncias; expansão de Ouvidorias
independentes do Departamento de Polícia; aperfeiçoamento e
amplia-ção do Sistema Nacional de Assistência à Vítimas e
Testemunhas Ameaçadas e do Serviço de Proteção ao Depoente
Especial; estímulo aos governos estaduais para que criassem
conselhos e programas estaduais de Direitos Humanos que
priorizassem o combate à tortura; Proposta de Emenda Constitucional
que prevê a federalização dos crimes de Direitos Humanos; aceitação
do direito de petição individual ao Comitê contra a Tortura das
Nações Unidas.
10 OEA. Comissão Interamericana de Direitos Humanos. Caso n.º
12.328 (FEBEM). 11 O Relator Especial das Nações Unidas sobre
Tortura e outros Tratamentos Cruéis, Desumanos ou Degradantes,
Sir. Nigel Rodley, em 2000, entre os dias 20 de agosto a 12 de
setembro, visitou a capital brasileira, os Estados de São Paulo,
Rio de Janeiro, Minas Gerais, Pernambuco e Pará, estando em
instituições do sistema prisional e centros de detenção de
adolescentes infratores, realizando entrevistas com vítimas,
testemunhas e familiares, encontros com membros de organizações
não-governamentais e do Poder Público.
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Neste mesmo ano, foi lançada a Campanha Nacional contra Tortura
através de um convênio fi rmado entre Ministério da Justiça,
Secretaria de Estado dos Direitos Humanos e da Sociedade de Apoio
aos Direitos Humanos, tendo por objetivos os se-guintes: criação de
disque denúncia e de rede nacional de acolhimento e encaminha-mento
de denúncias; capacitação da equipe que compõe a aludida rede; e
divulgação pública sobre a campanha.
A central nacional foi encarregada de receber os casos de
tortura e tratamento cruel, desumano ou degradante, repassando às
centrais estaduais, que fi caram res-ponsáveis por dar andamento às
denúncias perante às vítimas, testemunhas e suas famílias. No
entanto, os recursos para a consecução dos objetivos a que se
propunha a campanha eram escassos, o que veio a prejudicar uma
implementação realmente efetiva, por não ter sido feita uma
divulgação ampla à população em geral da impor-tância do combate à
tortura, e some-se a isso o fato das centrais estaduais não terem
sido devidamente equipadas com recursos materiais e humanos para
erradicar um problema da dimensão comprovada pelo Relator
Especial.
Ressalta-se ainda que, até o presente momento não foi
implementado, como havia sido previsto, o Programa de Capacitação
de Operadores de Direito para a Pre-venção da Tortura, que tinha
por escopo a formação de membros do Judiciário, das Defensorias e
do Ministério Público.
Em junho de 2003, foi assinado o Protocolo de Ação Contra a
Tortura em que se comprometeram Superior Tribunal de Justiça,
Procuradoria Geral da República, Ministérios Públicos dos Estados,
Ordem dos Advogados do Brasil, Ministério da Jus-tiça, Secretaria
Especial de Direitos Humanos entre outros a identifi car os fatores
que difi cultam o combate à tortura. O Protocolo previa ainda a
instituição de ofi cinas de trabalho para troca de experiências na
luta contra a tortura12.
Cumpre esclarecer que grande parte dos problemas relativos ao
encaminha-mento de denúncias de maus tratos e de tortura está
relacionada à completa falta de independência dos órgãos
investigadores, que são basicamente controlados pela mesma
instituição que é acusada dessas práticas.
Nos casos em que denúncias são levadas adiante, pouco ou nada de
efetivo é feito para afastar a autoridade em questão. É comum que
as pessoas denunciadas se-jam transferidas a outro local de
trabalho, mas não afastadas do cargo que ocupam.
No tocante à aplicação por promotores e juízes da Lei n.º 9.455,
de 07 de abril de 1997 que defi ne os crimes contra tortura, os
casos ocorridos no país, em sua maio-
12 CENTRO PELA JUSTIÇA E O DIREITO INTERNACIONAL (Org.). Tortura
no Brasil: implementação das reco-mendações do relator da ONU. Rio
de Janeiro: CEJIL, 2004, p. 13-19.
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ria, são tratados pelos investigadores e, por conseguinte, pelos
promotores de justiça, como lesões corporais, comprometendo a
aplicação da Lei, bem assim intimidando as vítimas de prestarem
denúncia e de identifi carem os torturados quando agentes do
sistema de segurança pública.
Outrossim, diante da pressão da comunidade internacional, o
Brasil assinou o Protocolo Facultativo que permite o envio de
petição individual ao Comitê contra Tortura, em 13 de outubro e
2003, mas o Congresso Nacional ainda não o ratifi cou.
2.3 VIOLAÇÃO DOS DIREITOS DAS MULHERES
Outro tema tratado pelas políticas governamentais versa sobre
direitos das mulheres, mencionado no relatório da Comissão
Interamericana sobre o monitora-mento de suas Recomendações, bem
assim na análise de mérito de uma petição in-dividual que
denunciava violações aos direitos das mulheres entre outros artigos
da Convenção Americana.
Dos 50 casos pesquisados, 5 confi guram mulheres como
peticionárias, que tiveram seus direitos violados e não observados
pelo Estado brasileiro e constam sua identifi cação na petição
individual, ressaltando que existem outros casos de-nominados pela
CIDH de gerais, que também tratavam de violações de direitos de
mulheres.
A denúncia de maior repercussão, sobretudo na esfera
internacional, foi o caso conhecido como Maria da Penha (caso n.º
12.051), que dispõe sobre violência cometida por seu marido, na
cidade de Fortaleza, durante os anos de convivência matrimonial,
que culminou numa tentativa de homicídio em 29 de maio de 1983 e
novas agressões em junho de 1983. Em decorrência dessas agressões,
a vítima sofre de paraplegia irreversível e outras enfermidades
desde a referida data13.
A Comissão recomendou ao Brasil uma série de medidas com o
intuito de sensibilizar autoridades policiais e judiciais para os
direitos das mulheres, principal-mente aqueles previstos na
Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erra-dicar a
Violência contra a Mulher, conhecida também como Convenção de Belém
do Pará14.
13 OEA. Comissão Interamericana de Direitos Humanos. Caso n.º
12.051, relatório n.º 54/01.14 Aprovado no Brasil pelo Decreto
Legislativo n.º 107, de 31 de agosto de 1995 e promulgado pelo
Decreto n.º
1.973, de 01 de agosto de 1996.
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222TEREZO, Cristina Figueiredo. A efetividade das recomendações
da comissão interamericana de direitos humanos no Brasil.
RIPE – Revista do Instituto de Pesquisas e Estudos, Bauru, v. 1,
n. 46, p. 211-234, jul./dez. 2006.
No que se refere às mudanças legislativas ocorridas após a
denúncia inter-nacional, verifi ca-se a aprovação da Lei n.º
10.778/2003 que estabelece a notifi cação compulsória no território
nacional, do caso de violência contra a mulher que foi aten-dida em
serviços de saúde públicos ou privados; e também da Lei n.º
10.886/2004 que acrescenta parágrafos ao artigo 129 do Decreto-lei
n.º 2.848/40 (Código Penal), criando o tipo especial denominado
“violência doméstica”.
Torna-se mister mencionar que o Brasil foi o primeiro país do
mundo a criar uma Delegacia Especializada para tratar dos direitos
das mulheres em 1985, na ci-dade de São Paulo. Tal iniciativa
ocorreu em função de atender as reivindicações de grupos de
mulheres que passaram a ter mais representatividade e força com a
rea-bertura política do país e que denunciavam ora que as
delegacias eram compostas em sua maioria por policiais homens que
não dispunham de nenhuma formação técnica para tratar de violência
doméstica e sexual, submetendo as vítimas à situ-ações
constrangedoras e ora que os Tribunais brasileiros ainda admitindo
tese de “desonra”, absolviam maridos que haviam assassinado suas
esposas.
As Delegacias de Mulheres foram constituídas inicialmente no
âmbito dos governos estaduais e foram objeto, portanto de uma
política pública estadual, fazen-do com que sua competência fi
casse adstrita aos crimes de lesão corporal, ameaça,
constrangimento ilegal, atentado violento ao pudor e adultério.
Em 1996, ainda por meio de um ato normativo estadual, a
competência das Delegacias das Mulheres foi ampliada, passando
então a investigar crimes de homi-cídio que envolvessem
mulheres.
Em 1996, as Delegacias de Mulheres deixaram a esfera estadual,
para se tor-narem uma política pública do âmbito federal através do
I Programa Nacional de Direitos Humanos (PNDH), o qual além de ter
proposto a pesquisa e divulgação de informações sobre formas de
proteção e de promoção dos direitos da mulher e a in-clusão da
perspectiva de gênero na educação e no treinamento de servidores
públi-cos, civis e militares e nas diretrizes curriculares para o
ensino fundamental e médio, recomendou também ações relacionadas ao
aprimoramento e a expansão da rede de Delegacias de Mulheres.
Cumpre esclarecer que o Brasil por meio do Decreto n.º
4.316/2002, promul-gou o Protocolo Facultativo à Convenção sobre a
Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra a Mulher,
permitindo que petições individuais fossem encami-nhadas ao Comitê
sobre a Eliminação de Discriminação contra a Mulher das Nações
Unidas (CEDAW).
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223TEREZO, Cristina Figueiredo. A efetividade das recomendações
da comissão interamericana de direitos humanos no Brasil.
RIPE – Revista do Instituto de Pesquisas e Estudos, Bauru, v. 1,
n. 46, p. 211-234, jul./dez. 2006.
Hodiernamente, os Tribunais superiores superaram a concepção de
“defesa da honra” que motivava a prática de homicídio de maridos
contra suas esposas15 e a constituição de Delegacias das Mulheres
não está mais limitada ao âmbito estadual.
2.4 TRABALHO ESCRAVO
Outro tema que foi levado para apreciação da Comissão dispõe
sobre trabalho escravo, o que resultou ao governo brasileiro o
cumprimento de várias Recomenda-ções gerais sobre a matéria, bem
assim sobre a reparação aos direitos da vítima que foram
violados.
O caso que alcançou a esfera internacional fi cou conhecido como
Fazenda Es-pírito Santo (11.289) que trata da prática de trabalho
escravo no Sul do Pará. Os peti-cionários alegaram que em setembro
de 1989, José Pereira foi gravemente ferido por disparos de arma de
fogo e que outro trabalhador rural conhecido por “Paraná” foi morto
quando tentavam fugir da Fazenda Espírito Santo, onde realizavam
trabalhos forçados em condição de escravidão, juntamente outros 60
trabalhadores.
Em 18 de setembro de 2003, os peticionários e o Estado
subscreveram um acordo de solução amistosa, no qual o Brasil
reconheceu a responsabilidade interna-cional e foi estabelecida uma
série de medidas a serem cumpridas16.
O caso em apreço foi denunciado em 1994 perante a CIDH, tendo
sido o go-verno federal, em março do mesmo ano, notifi cado da
denúncia.
15 “Mulher. Violência. Adultério. Legítima defesa da honra.
Inexistência. Recurso Especial. Tribunal do Júri. Du-plo homicídio
praticado pelo marido que surpreende sua esposa em fl agrante
adultério. Hipótese em que não se confi gura legítima defesa da
honra. Decisão que se anula por manifesta contrariedade à prova dos
autos (art. 593, parágrafo 3º, do CPP). Não há ofensa à honra do
marido pelo adultério da esposa, desde que não existe essa honra
conjugal. Ela é pessoal, própria de cada um dos cônjuges. O marido,
que mata sua mulher para conservar um falso crédito, na verdade,
age em momento de transtorno mental transitório, de acordo com a
lição de Himénez de Asuá (El criminalista, Buenos Aires: Zavalia,
1960, v. 4, p. 34), desde que não se comprove ato de deliberada
vingança. O adultério não coloca o marido ofendido em estado de
legítima defesa, pela sua incompatibilidade com os requisitos do
artigo 25, do Código Penal. A prova dos autos conduz à auto-ria e à
materialidade do duplo homicídio (mulher e amante), não à
pretendida legitimidade da ação delituosa do marido. A lei civil
aponta os caminhos da separação e do divórcio. Nada justifi ca
matar a mulher que, ao adulterar, não preservou a sua própria
honra. Nesta fase do processo, não se há de falar em ofensa à
soberania do Júri, desde que os seus veredictos só se tornam
invioláveis, quando não há mais possibilidade de apelação. Não é o
caso dos autos, submetidos, ainda, à regra do artigo 593, parágrafo
3º, do CPP. Recurso provido para cassar a decisão do Júri e o
acórdão recorrido, para sujeitar o réu a novo julgamento”. BRASIL.
Superior Tri-bunal de Justiça. Recurso Especial n.º 1.517-PR, 6ª
Turma, Relator Ministro José Cândido, Brasília, DF, 15 de abril de
1991, DJU, p. 4.309.
16 OEA. Comissão Interamericana de Direitos Humanos. Caso n.º
11.289, relatório n.º 95/03.
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224TEREZO, Cristina Figueiredo. A efetividade das recomendações
da comissão interamericana de direitos humanos no Brasil.
RIPE – Revista do Instituto de Pesquisas e Estudos, Bauru, v. 1,
n. 46, p. 211-234, jul./dez. 2006.
Em 1995, o governo do então Presidente Fernando Henrique
Cardoso, anun-ciou a criação do Grupo Executivo para Combate ao
Trabalho Escravo e o Grupo Es-pecial de Fiscalização Móvel.
No entanto, após a solução amistosa realizada pelo Brasil e os
peticionários de denúncia diante da CIDH em setembro de 2003, fez
com que o tema fosse tratado com mais seriedade e redundasse em
ações mais concretas.
Em 24 de setembro de 2003, o governo federal aperfeiçoou o Plano
Nacional para Erradicação do Trabalho Escravo e o lançou ofi
cialmente em março do mesmo ano, contendo as medidas que irão por
fi m a prática de trabalho escravo no país.
Dentre as ações previstas no novo Plano estão: a criação da
Comissão Nacio-nal de Erradicação do Trabalho Escravo, em que
representantes da sociedade civil organizada e órgãos do Poder
Público irão discutir e buscar a implementação das medidas
previstas no Plano, bem assim o seu monitoramento; o Grupo Móvel
terá como um dos seus integrantes ora Procuradores do Trabalho, ora
Procuradores da República que deverão ajuizar ações de natureza
criminal e trabalhista; varas itine-rantes em locais de difícil
acesso determinando o pagamento de verbas trabalhis-tas aos
trabalhadores libertados; criação de colegiados com o escopo de
tratar sobre trabalho escravo, devendo participar dos mesmos
representantes da sociedade civil organizada e de órgãos do Poder
Público, que atuarão em caráter deliberativo17.
Ademais, outra mudança em âmbito doméstico no que se refere ao
combate ao trabalho escravo se deu através de alteração
legislativa, ocorrida em dezembro de 2003, por meio da Lei n.º
10.803, a qual alterou o artigo 149 do Código Penal, identi-fi
cando as formas contemporâneas de escravidão como tipo penal18.
17 Disponível em: . Acesso em: 01 abr. 2005.18 “Artigo 149
Reduzir alguém a condição análoga à de escravo, quer submetendo-o a
trabalhos forçados ou a
jornada exaustiva, quer sujeitando-o a condições degradantes de
trabalho, quer restringindo, por qualquer meio, sua locomoção em
razão de dívida contraída com o empregador ou preposto:
Pena - reclusão, de dois a oito anos, e multa, além da pena
correspondente à violência. § 1o Nas mesmas penas incorre quem: I –
cerceia o uso de qualquer meio de transporte por parte do
trabalhador, com o fi m de retê-lo no local de
trabalho; II – mantém vigilância ostensiva no local de trabalho
ou se apodera de documentos ou objetos pessoais do
trabalhador, com o fi m de retê-lo no local de trabalho. § 2o A
pena é aumentada de metade, se o crime é cometido: I – contra
criança ou adolescente; II – por motivo de preconceito de raça,
cor, etnia, religião ou origem”.
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225TEREZO, Cristina Figueiredo. A efetividade das recomendações
da comissão interamericana de direitos humanos no Brasil.
RIPE – Revista do Instituto de Pesquisas e Estudos, Bauru, v. 1,
n. 46, p. 211-234, jul./dez. 2006.
2.5 CONFLITOS FUNDIÁRIOS
Outras medidas governamentais que foram infl uenciadas pelas
Recomenda-ções da CIDH para serem implementadas em âmbito doméstico
dizem respeito aos confl itos fundiários existentes no país.
A Comissão, no relatório de monitoramento das suas
Recomendações, fez menção particular à situação agrária do Estado
do Pará, em que observa que os con-fl itos fundiários também estão
relacionados com a impunidade e a péssima condu-ção das
investigações policiais e dos processos criminais.
O Brasil, enquanto um país de longa extensão territorial e com
capacidade produtiva de larga escala, o que o coloca em posição
economicamente mais vantajosa com relação a outras nações, deveria
ser um Estado de uma política séria de assen-tamento rural.
O Brasil tem entre seus indicadores aquele que demonstra ser um
dos maiores países do mundo com concentração de propriedade. Os
estabelecimentos agrícolas chegam a 4,8 milhões e a área ocupada
representa 353,6 milhões de hectares. Os mi-nifúdios e as
propriedades com menos de 100 hectares somam 89,1% dos imóveis e
20% da área total. E apenas 1% do total dos imóveis que detém 45%
do total das terras cadastradas são as grandes propriedades com
áreas acima de 1.000 hectares. Além disso, os dados demonstram que
35 mil imóveis considerados latifúndios estão sem produzir, ou
seja, 1% do número de propriedades, os quais ocupam mais de 60% de
área total cadastrada19.
A história demonstra que o desenvolvimento agrícola no país
privilegiou os latifúndios e, por conseguinte, a concentração da
propriedade da terra, benefi ciando assim somente uma minoria,
expulsando os trabalhadores rurais do campo.
Há no Brasil, atualmente, 4,5 milhões de famílias sem terra. De
1995 a 2002, o governo federal afi rma ter assentado 565 mil
famílias20, dados não admitidos pelos movimentos sociais, aos quais
sustentam que 900 mil famílias terem sido obrigadas a abandonar o
campo.
A partir destas estatísticas, verifi ca-se que a reforma agrária
deve ser compre-endida como uma medida realmente urgente, para que
se garanta o direito à proprie-dade e à terra e que sejam evitados
confl itos fundiários.
19 Dados provenientes do Instituto Brasileiro de Geografi a e
Estatística (IBGE).20 INSTITUTO DE PESQUISA ECONÔMICA APLICADA.
Secretaria Especial de Direitos Humanos. Ministério
das Relações Exteriores. A segurança alimentar e nutricional e o
direito humano à alimentação no Brasil, Brasília, 2002, p. 41.
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226TEREZO, Cristina Figueiredo. A efetividade das recomendações
da comissão interamericana de direitos humanos no Brasil.
RIPE – Revista do Instituto de Pesquisas e Estudos, Bauru, v. 1,
n. 46, p. 211-234, jul./dez. 2006.
Em abril de 1996, ocorreu um massacre de trabalhadores rurais
que entraria para a história do Brasil, alcançando repercussões
internacionais. No Município de Eldorado dos Carajás, interior do
Pará 19 trabalhadores rurais perderiam suas vidas. Com outra
chacina que culminaria com a morte de 07 trabalhadores rurais,
ocorrida em 12 de setembro de 2003, em São Félix do Xingu, Estado
do Pará, este assume novamente a liderança em índices de
trabalhadores rurais assassinados, o que tem gerado um sentimento
de insegurança para a sociedade brasileira e indignado as entidades
de Direitos Humanos.
Segundo levantamento feito pela Federação dos Trabalhadores na
Agricultura (FETAGRI) e pela Comissão Pastoral da Terra (CPT), de
1958 a 2003, foram assassi-nados 521 trabalhadores, lideranças
sindicais, religiosas e políticas, sendo que foram registrados 327
casos de violência no campo. O fato mais grave é que 10 desses
casos foram levados a julgamento, e apenas 5 mandantes e 8
executores foram condenados e 10 executores, absolvidos21.
O Pará é o segundo maior Estado do Brasil, sendo que as áreas
mais carecedo-ras de atenção por parte do poder público e da
comunidade internacional são as re-giões sudeste e sudoeste, que
têm servido de cenário para uma crescente violência no campo, com o
assassinato de centenas de trabalhadores rurais, lideranças
sindicais, religiosos e profi ssionais que atuam na assessoria de
organizações não governamen-tais voltadas para as questões
atinentes aos Direitos Humanos e acesso à terra.
Um dos casos de repercussão da CIDH e que gerou ao Brasil o
cumprimento de Recomendações afetas as questões agrárias trata-se
do caso n.º 11.517 que versa sobre a morte de Diniz Bento da Silva,
ocorrida em 08 de março de 1993, praticada por policiais militares
do Estado do Paraná22. Diniz era procurado pelo polícia, acusa-do
de ter assassinado um policial militar, depois de um confronto
entre trabalhadores “sem-terra” e policiais no Estado do Paraná. A
vítima foi localizada pelos policiais e, segundo testemunhas, se
entregou sem oferecer resistências, mas foi executado.
Inquérito policial militar foi instaurado para apurar a conduta
dos policiais em março de 1993 e concluído em abril do mesmo ano.
Embora apontasse a existên-cia de crime militar, dez meses depois,
o Ministério Público pediu o arquivamento, sendo tal pedido acatado
pelo juiz auditor em 08 de março de 1994.
21 PEDROSA, Miro; BRASILIENSE, Ronaldo. Até a próxima morte.
Isto é, São Paulo, n. 1845, p. 32-38, 23 fev. 2005.
22 OEA. Comissão Interamericana de Direitos Humanos. Caso n.º
11.517, relatório n.º 111/01.
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227TEREZO, Cristina Figueiredo. A efetividade das recomendações
da comissão interamericana de direitos humanos no Brasil.
RIPE – Revista do Instituto de Pesquisas e Estudos, Bauru, v. 1,
n. 46, p. 211-234, jul./dez. 2006.
Em 30 de setembro de 1994, foi solicitado desarquivamento e, em
maio de 1996, o Ministério Público entendeu que não se tratava de
provas novas, tendo o juiz auditor mantido o arquivamento.
Em agosto de 1997, o Ministério Público pediu o desarquivamento
diante de denúncia de envolvimento do Secretário Estadual de
Trabalho no crime e face à Lei n.º 9.299/96 que determina a
competência da Justiça Comum para julgamento de crimes dolosos
contra a vida cometidos por policiais militares, o juiz estadual
decla-rou-se competente e acatou o pedido do Parquet.
Em 20 de fevereiro de 2001, a CIDH admitiu a petição (relatório
n.º 38/01) e fez as seguintes Recomendações: (1) investigação
imparcial e punição dos responsá-veis; (2) punir os responsáveis
pelas irregularidades nas investigações; e (3) repara-ção civil dos
familiares.
Em 15 de outubro de 2001, a CIDH analisou o mérito do caso e
reiterou as Re-comendações ressaltando a necessidade de buscar
meios de soluções pacífi cas para os confl itos agrários, indicando
que, antes de cumprir com mandados de reintegra-ção de posse ou
fazer uso de formas coercitivas para a devolução da posse aos
pro-prietários, sejam esgotados os meios de negociação para solver
o confl ito fundiário.
O governo brasileiro então lançou, através da Ouvidoria Agrária,
o Plano Na-cional de Combate à Violência no Campo para os Estados
do Pará, Mato Grosso, Ron-dônia, Bahia e Paraná.
2.6 FEDERALIZAÇÃO DOS CRIMES DE DIREITOS HUMANOS
Outro tema analisado pela Comissão Interamericana em seu
relatório de mo-nitoramento e que redundou em medidas
governamentais internas, trata-se da indi-cação de que os crimes de
Direitos Humanos fossem julgados pela Justiça Federal.
Tal questão vinha sendo ventilada não apenas pela CIDH, mas
assim pelos movimentos sociais que atuam na promoção e na defesa
dos Direitos Humanos e também pelas Nações Unidas, tendo sido a
federalização recomendada pelo Rela-tor Especial sobre Tortura e
outros Tratamentos Cruéis, Desumanos ou Degradantes, após sua
missão ao Brasil propondo que a Emenda Constitucional fosse
apreciada e votada no Congresso Nacional para admitir, em
determinadas circunstâncias, que a Justiça Federal solicitasse
autorização, ao que o Relator denominou de Tribunal de Recursos,
que no caso seria o Superior Tribunal de Justiça, para apurar e
julgar os cri-mes que envolvam violações de Direitos Humanos com
repercussões internacionais.
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228TEREZO, Cristina Figueiredo. A efetividade das recomendações
da comissão interamericana de direitos humanos no Brasil.
RIPE – Revista do Instituto de Pesquisas e Estudos, Bauru, v. 1,
n. 46, p. 211-234, jul./dez. 2006.
A primeira proposição de Emenda Constitucional prevendo a
atribuição à Justiça Federal da competência para julgar crimes
contra Direitos Humanos surgiu em 1996 e foi uma iniciativa do
Poder Executivo, encaminhada por ocasião do lan-çamento do I
PNDH23.
A Proposta de Emenda Constitucional (PEC) foi apensada à de nº
96/92, que previa uma reforma constitucional no Poder Judiciário, o
que fez com que a discussão e a votação em plenária fossem adiadas
várias vezes, para por fi m, ser aprovada e publi-cada no fi nal de
2005.
Após a visita em outubro de 2004, do Relator Especial das Nações
Unidas para Independência de Juizes e Advogados, tem-se no Brasil a
aprovação da Emenda Constitucional n.º 45, de 08 de dezembro de
2005, que dispõe entre outras alterações e inovações
constitucionais, a possibilidade de transferência para Justiça
Federal da apuração e do julgamento de crimes praticados contra os
Direitos Humanos24.
A transferência de competência possibilitou que a União antes de
ser deman-dada em alguma denúncia internacional, buscasse atuar no
sentido de responsabili-zar criminalmente os responsáveis por
delitos atentatórios aos Direitos Humanos.
Uma das principais difi culdades que o Estado brasileiro
enfrenta para cum-prir com as Recomendações de organizações
internacionais, refere-se ao fato de que a União arca
exclusivamente com a defesa internacional do Brasil e com o ônus
perante a comunidade internacional, muito embora essa
responsabilidade deve ser suporta-da pela União, que representa os
Estados federados em âmbito internacional, e pelos Estados da
Federação, onde ocorreram os crimes contra os Direitos Humanos no
que se refere primordialmente ao pagamento do quantum
indenizatório, celeridade dos processos de jurisdição estadual e
que também deveria agir no sentido de implemen-tar políticas
públicas voltadas para a proteção e a defesa dos Direitos
Humanos.
Diante de tal difi culdade, a Emenda Constitucional que
introduziu a possibi-lidade de transferência de competência para
julgamento de crimes contra os Direitos Humanos, visa em primeira
instância evitar que novas denúncias alcancem a esfera
internacional e que o Estado brasileiro seja demandado novamente,
vez que se julga
23 Proposta de Emenda à Constituição (PEC) nº 368-A, de 1996.24
“Artigo 109 [...] V- A As causas relativas a direitos humanos a que
se refere o § 5º deste artigo; [...] § 5° Nas hipóteses de grave
violação de direitos humanos, o Procurador-Geral da República, com
a fi nalidade
de assegurar o cumprimento de obrigações decorrentes de tratados
internacionais de direitos humanos dos quais o Brasil seja parte,
poderá suscitar, perante o Superior Tribunal de Justiça, em
qualquer fase do inquérito ou processo, incidente de deslocamento
de competência para a Justiça Federal.”
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229TEREZO, Cristina Figueiredo. A efetividade das recomendações
da comissão interamericana de direitos humanos no Brasil.
RIPE – Revista do Instituto de Pesquisas e Estudos, Bauru, v. 1,
n. 46, p. 211-234, jul./dez. 2006.
que a Justiça Federal disponha de um aparato que agiliza a
conclusão dos processos, sendo este um dos requisitos mais argüidos
pelos peticionários ao ingressarem com uma denúncia perante órgãos
internacionais, motivando seus pedidos pela demora injustifi cada
da prestação da tutela jurisdicional doméstica.
2.7 DEFENSORES DE DIREITOS HUMANOS
A Comissão Interamericana também fez Recomendações expressas
sobre a proteção daqueles que atuam na defesa dos Direitos Humanos
no Brasil. Ao dispor em seu relatório de monitoramento sobre a
situação de confl itos agrários no país, dando especial atenção às
questões de terra no Estado do Pará, a Comissão, com base em dados
da CPT, indicou o número crescente de assassinatos contra
defensores e defensoras de Direitos Humanos e recomendou
providências no sentido de evitar mortes de trabalhadores rurais,
bem assim daqueles que atuam na defesa dos Direi-tos Humanos.
Um dos casos mais emblemáticos que se referem à defensores de
Direitos Humanos que tramita na Comissão trata-se do caso n.°
12.058 que versa sobre o assassinato do advogado e defensor de
Direitos Humanos, Gilson Nogueira Carvalho, ocorrido em 20 de
outubro de 1996 em Natal, por ter denunciado um esquadrão de
extermínio conhecido como “Meninos de Ouro”, integrado por agentes
da polícias civil e militar e por servidores civis25.
Outro caso que gerou Recomendações sobre a situação de risco em
que vivem defensores de Direitos Humanos no Brasil foi o caso n.º
11.40526 que trata do assas-sinato de Newton Mendes, Moacir Rosa de
Andrade, José Martins dos Santos, seu fi lho Gilvan e tentativa de
homicídio contra Juscelino Rosa da Silva e sua esposa Ana Beatriz,
seqüestro e tortura de Valdemir Soares Pereira e ameaças de morte
contra os Padres Benedito Rodrigues Costa, Henri Burin de Roziers e
Ricardo Rezende Figue-roa, todos ocorridos nas cidades de Xinguara
e de Rio Maria, Estado do Pará.
A denúncia relata ainda que os crimes ocorreram em função de
disputa de terra na região e que existiriam “lista dos marcados
para morrer”. Os responsáveis pelas violações seriam proprietários
de fazendas, pistoleiros contratados e policiais civis e militares
que não cumpriam com as ordens judiciais e facilitavam fugas.
25 OEA. Comissão Interamericana de Direitos Humanos. Caso n.º
12.058.26 OEA. Comissão Interamericana de Direitos Humanos. Caso
n.º 11.405.
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230TEREZO, Cristina Figueiredo. A efetividade das recomendações
da comissão interamericana de direitos humanos no Brasil.
RIPE – Revista do Instituto de Pesquisas e Estudos, Bauru, v. 1,
n. 46, p. 211-234, jul./dez. 2006.
Os peticionários relatam vários exemplos de crimes que fi caram
impunes, embora alguns mandantes e executores tenham sido identifi
cados e respondido a processos criminais.
Em 01 de outubro de 1997, a CIDH admitiu a petição e apresentou
uma série de Recomendações27 que tratavam também de proteção dos
defensores e de defenso-ras de Direitos Humanos no Estado do
Pará.
Os defensores e defensoras de Direitos Humanos, até o período
das Recomen-dações, não recebiam nenhuma espécie de proteção por
parte do Estado, sendo que quando as denúncias de suas ameaças eram
feitas, aqueles muitas vezes eram ridi-cularizados e quando as
ameaças eram cumpridas, o procedimento investigatório se mostrava
repleto de falhas e os processos criminais difi cilmente eram
concluídos.
É em função das denúncias feitas pelos defensores e defensoras,
que os índi-ces de violação de Direitos Humanos no que se refere ao
Estado do Pará correspon-dem a realidade, sendo, portanto, o Pará
líder em casos de violações, como assassina-to de trabalhadores
rurais por disputa de terras, trabalho escravo, trabalho escravo
infantil, etc.
Diante disso, os defensores/as de Direitos Humanos, que são
lideranças sin-dicais, advogados, religiosos e até mesmo membros do
Poder Judiciário e do Minis-tério Público são ameaçados, sofrem
tentativas de homicídios e são assassinados. E os órgãos do Poder
Público não adotavam nenhuma medida para impor a ordem e garantir a
segurança daqueles que lutam pelo bem-estar social.
Segundo dados da CPT, de janeiro de 1996 a março de 2004, foram
assassi-nados 144 defensores de Direitos Humanos, e 161 sofrem
ameaças em decorrência
27 “La Comisión Interamericana de Derechos Humanos reitera al
Estado brasileño las siguientes recomenda-ciones: 1. Que tome las
medidas para que las autoridades competentes pongan en marcha los
mecanismos y garantías necesarias para realizar una investigación
independiente, completa, seria e imparcial de los hechos que se
vienen desarrollando en la zona sur del Estado de Pará, en
perjuicio de las víctimas mencionadas en este informe, con el
objeto de identifi car y sancionar a todas las personas que
resulten individualizadas como responsables de las violaciones a
los derechos humanos mencionadas en las conclusiones expuestas
supra VIII. 2. Que en cumplimiento de sus obligaciones previstas en
los artículos 2, 8 y 25 de la Convención Americana, adopte las
medidas necesarias con arreglo a sus procedimientos
constitucionales, a fi n de hacer plenamente efectivos, en lo
sucesivo, los derechos a la vida, a la integridad personal, y a las
garantías y protec-ción judicial para todos los habitantes de la
zona sur del Estado de Pará, y en particular para los trabajadores
rurales, sus representantes y los defensores de derechos humanos.
3. Que en virtud de las violaciones de la Convención Americana
arriba expuestas, adopte las medidas más apropiadas para reparar a
las víctimas o sus familiares por el daño sufrido por las personas
identifi cadas en este informe”. OEA. Comissão Interamericana de
Direitos Humanos. Caso n.º 11.405, relatório de admissibilidade n.º
33/97, parágrafo 120.
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231TEREZO, Cristina Figueiredo. A efetividade das recomendações
da comissão interamericana de direitos humanos no Brasil.
RIPE – Revista do Instituto de Pesquisas e Estudos, Bauru, v. 1,
n. 46, p. 211-234, jul./dez. 2006.
de suas atuações e estão com seus nomes citados em listas dos
ditos “marcados para morrer”28.
Em 09 de dezembro de 1998, as vésperas da comemoração do
quinquagési-mo aniversário da Declaração Universal dos Direitos
Humanos, a Assembléia Geral da ONU aprovou a Resolução 53/144 que
prevê uma Declaração sobre o direito e a responsabilidade dos
indivíduos, grupos ou órgãos da sociedade de promover e de proteger
os Direitos Humanos e liberdades fundamentais universalmente
reconhe-cidos, admitida como Declaração dos Defensores de Direitos
Humanos, da qual o Brasil é signatário.
Em maio de 2003, o Brasil ratifi cou a Resolução 1818, aprovada
pela Assem-bléia Geral da OEA, que determina o apoio às tarefas
realizadas pelas pessoas, grupos e organizações da sociedade civil
para promoção e proteção dos Direitos Humanos nas Américas.
Em 2004, a Assembléia Geral da OEA, em reconhecimento ao
trabalho de-senvolvido por pessoas, grupos e organizações da
sociedade civil na proteção e na promoção dos Direitos Humanos,
aprovou a Resolução 2036, que inclui pela primeira vez uma
Recomendação para que os países americanos instituam Planos
Nacionais de Ação sobre Defensores de Direitos Humanos.
Em 2003, através da Secretaria Especial de Direitos Humanos
(SEDH) foi estabelecido o Grupo de Trabalho, composto por membros
do governo e por repre-sentantes da sociedade civil organizada, que
tinha por escopo a formatação de um Programa Nacional de Proteção
aos Defensores de Direitos Humanos.
O “Programa Nacional de Proteção aos Defensores de Direitos
Humanos em Situação de Risco” foi divulgado em 03 de fevereiro de
2005 em Belém, Estado do Pará e prevê a sua implementação por uma
Comissão Estadual que irá coordenar o Programa.
O objetivo do Programa é garantir a segurança dos defensores/as
através de meios que não os impeçam de continuar suas atividades,
como: assessoria jurídica e recursos fi nanceiros. Também prevê a
criação de uma Coordenação Nacional que monitorará o Programa e
será constituída por representantes do Poder Legislativo; Polícias
Federais e Rodoviária Federal; Ministério Público Federal;
entidades civis; Poder Executivo; Poder Judiciário e representantes
das Coordenações Estaduais.
28 PEDROSA, Miro; BRASILIENSE, Ronaldo. Até a próxima morte.
Isto é, São Paulo, n. 1845, p. 32-38, 23 fev. 2005.
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n. 46, p. 211-234, jul./dez. 2006.
A Coordenação Estadual deverá receber as denúncias e analisará
as condi-ções para a inserção do defensor/a de Direitos Humanos no
Programa. Outrossim, os defensores/as irão participar de cursos
para auto-proteção, bem assim os agentes de segurança pública que
farão parte do Programa receberão treinamento adequado.
Além do Pará, outros dois Estados foram selecionados para a
implantação do Programa, em caráter experimental, quais sejam:
Pernambuco e Espírito Santo.
Juntamente com o Programa Nacional de Proteção aos Defensores de
Direitos Humanos, foi editada uma cartilha que dispõe sobre
técnicas de defesa, trata-se do “Ma-nual de Auto-proteção para
Defensores de Direitos Humanos em Situação de Risco”.
3 CONSIDERAÇÕES FINAIS
Os sistemas de proteção aos Direitos Humanos surgiram como
respostas aos horrores ocorridos durante o holocausto, e são
compostos, atualmente, de estruturas complexas, em função da
disponibilidade de vários instrumentos em sua defesa e de
mecanismos que visam também sua garantia e que possibilitam a
responsabilização internacional dos Estados que os violam.
Os sistemas regionais de proteção aos Direitos Humanos possuem
papel rele-vante neste processo, vez que as perspectivas de
ampliação e de fortalecimento des-ses sistemas se deu
fundamentalmente pelo fato de estarem mais próximos daqueles benefi
ciados com ações voltadas para a sua proteção e garantia. Neste
contexto o Sis-tema Interamericano de Proteção aos Direitos Humanos
tem atuado decisivamente sobre o assunto, desde sua concepção até
na promoção dos Direitos Humanos.
A Comissão Interamericana tem se demonstrado, ao longo do seu
funciona-mento, o principal órgão do Sistema Interamericano, não
apenas pela quantidade de casos que processa, comparada ao ínfi mo
número de casos que são decididos pela Corte Interamericana, mas
também, pela supervisão geral da promoção e da garan-tia de
Direitos Humanos nos países que compõem a OEA, mediante a
elaboração de relatórios e a realização de missões in loco.
Por outro lado, o Estado brasileiro tem empreendido esforços, a
partir das Recomendações feitas pela Comissão Interamericana, no
sentido de realizar políticas públicas voltadas para os Direitos
Humanos, procedendo ainda mudanças e inova-ções legislativas com a
mesma fi nalidade, em que pese ainda não ter instalado um órgão na
esfera do executivo, com atribuições específi cas para tratar do
tema e tam-pouco ter uma disposição normativa que preveja a
implementação das Decisões e Recomendações dos organismos
internacionais diante dos casos brasileiros.
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n. 46, p. 211-234, jul./dez. 2006.
Verifi ca-se verdadeiramente uma reação do governo em atender as
solicita-ções da Comissão na esfera federal, como se demonstrou
neste estudo. No entanto, como a resolução dos processos judiciais
internos, com a conseqüente responsabili-zação dos acusados pelas
violações e indenização pecuniária às vítimas ou familia-res, é de
competência das justiças estaduais, e como o governo federal, o
qual é o ente que responde junto aos organismos internacionais não
tem ingerências nos Estados da federação neste aspecto, os
processos judiciais não têm alcançado com celeridade um provimento
fi nal, fazendo com que o Sistema Interamericano tenha apenas infl
u-ência internamente no âmbito federal.
Apesar do governo brasileiro ter atuado para implementar uma
política na-cional para os Direitos Humanos e ter obtido alterações
e inovações legislativas im-portantes para a consecução de tais fi
ns, a alternância daqueles que ocupam os car-gos dos poderes
constituídos no Brasil tem impedido que as políticas públicas, como
as mencionadas neste estudo, sejam realizadas de forma permanente,
monitorada e avaliada sucessivamente e modifi cadas para atender as
demandas sociais.
O que se observa são planos ou programas nacionais voltados para
os Direi-tos Humanos sem um compromisso com sua execução contínua e
aprimorada pelos governos sucessores. São medidas governamentais
que atendem o bramido da co-munidade internacional no momento em
que graves casos de violações de Direitos Humanos ocorrem ou quando
são submetidos à apreciação dos organismos interna-cionais.
Espera-se que as ações governamentais sejam instituídas com
comprometi-mento não apenas daqueles que as constituíram, mas de
seus sucessores, podendo tal exigibilidade ser feita pelos
procedimentos de monitoramento adotados pelos órgãos
internacionais, como é o caso da Comissão Interamericana, a qual
verifi ca o cumpri-mento de suas Recomendações através do
monitoramento dos casos individuais e da situação geral de Direitos
Humanos no Brasil.
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