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UNIVERSIDADE FEDERAL DE JUIZ DE FORAINSTITUTO DE CINCIAS HUMANAS
PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM HISTRIA
O Sagrado Direito da Liberdade:escravido, liberdade e abolicionismo em
Ouro Preto e Mariana (1871 a 1888).
DISSERTAO DE MESTRADO
LUIZ GUSTAVO SANTOS COTA
JUIZ DE FORA2007
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II
UNIVERSIDADE FEDERAL DE JUIZ DE FORAINSTITUTO DE CINCIAS HUMANAS
PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM HISTRIA
O Sagrado Direito da Liberdade:escravido, liberdade e abolicionismo em
Ouro Preto e Mariana (1871 a 1888).
Dissertao de mestrado apresentadaao Programa de Ps-Graduao emHistria da Universidade Federal deJuiz de Fora como requisito parcial obteno do ttulo de mestre emHistria por Luiz Gustavo SantosCota.
Linha de pesquisa: Narrativas,Imagens e Sociabilidades.
Orientadora: Profa. Dra. SilvanaMota Barbosa.
JUIZ DE FORA2007
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III
Dissertao defendida e aprovada em 19 de dezembro de 2007, pela banca constitudapor:
__________________________________________Presidente: Prof. Dr. Alexandre Mansur Barata (UFJF)
__________________________________________Titular: Profa. Dra. Keila Grinberg (UNIRIO)
__________________________________________Orientadora: Profa. Dra. Silvana Mota Barbosa (UFJF)
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IV
O sentimento de ser a ltimanao de escravos humilhava anossa altivez e emulao de pasnovo.
Joaquim NabucoMinha Formao
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V
Aos que mais amo neste mundo,Maria das Graas, Luiz Gregrio, Sara e Celzia.
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VI
AGRADECIMENTOS
A todos vocs, que eu amei e que euamo, cones guardados num corao-caverna, como quem num banquete
ergue a taa e celebra, repleto de versoslevanto meu crnio.A Flauta VertebradaVladimir Maiakovski
Sempre gostei de ler agradecimentos. Mesmo quando tenho certa urgncia em
iniciar a leitura de uma obra acadmica, acabo dando um jeitinho de dar uma olhada nas
palavras que os autores dedicam queles que de alguma forma colaboraram para a
materializao de seu trabalho. nesse trecho da obra, que podemos constatar que um
trabalho de pesquisa, muitas vezes desenvolvido durante anos, no construdo de
forma solitria. As orientaes, dilogos e ensinamentos absorvidos na academia, bem
como o carinho, as palavras de incentivo e os diversos tipos de auxilio prestados por
todos aqueles que cercam o autor, so parte integrante de sua obra. Evidentemente que o
mesmo aconteceu comigo.
Chegar at aqui no foi fcil. Voc pode at pensar, ora, todo mundo diz isso,
mas acredite, no foi fcil mesmo, e por uma srie quase inumervel de razes. Foram
muitas viagens de nibus (muitas vezes lotado), caronas, noites sem sono, noites com
sono e que eu no podia dormir, dores de cabea (essas foram muitas mesmo...), dvida,receio, tristeza, inrcia, saudade, miojos, falta de recursos, e por a vai... Mas
sempre tive a sorte e o privilgio de contar com pessoas que, mesmo sem saber,
injetaram em mim o nimo necessrio para seguir em frente, mesmo com a insistente
dor de cabea.
Primeiramente, devo minha orientadora, a Profa. Dra. Silvana Mota Barbosa,
um muito obrigado do tamanho do mundo. Ela acreditou em mim e no meu projeto de
dissertao desde o primeiro dia em que conversamos. Muitas vezes, sua animao em
relao pesquisa parecia maior que a minha, mostrando-me que eu no precisava serto pessimista. Paciente, compreensiva e amiga, soube ser rigorosa quando necessrio,
ou melhor, quando eu mereci. Muito obrigado!
Aos professores Drs. Alexandre Mansur Barata e Cludia Andrade dos Santos,
agradeo a prestimosa participao no exame de qualificao, ocasio em que deles
recebi inmeras e valiosas contribuies para o trabalho. Ainda ao Prof. Alexandre
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VII
agradeo os puxes de orelha em relao aos meus barroquismos e tambm sua
dedicao enquanto esteve frente da coordenao do Programa de Ps-Graduao em
Histria da UFJF.
Agradeo Profa. Dra. Keila Grinberg o privilgio de poder contar com sua
presena na banca de defesa.O perodo que passei na cidade de Juiz de Fora foi incrivelmente proveitoso. L
fiz novas e boas amizades, alm de ter fortalecido antigas; e cresci muito enquanto
historiador. Nesse sentido, devo um agradecimento especial s Profas. Drs. Cludia
Viscardi, Beatriz Domingues, Snia Lino e Cludia Andrade dos Santos que
generosamente dividiram comigo e meus colegas seus conhecimentos e experincia.
Aos meus colegas agradeo as discusses em sala, os papos na cantina e a farra durante
o XXIII Simpsio Nacional de Histria em Londrina. Entre eles, dedico um
agradecimento especial ao meu amigo Jos Gaspar Bisco Jnior, com quem eu dividi omesmo teto desde os tempos de Repblica Anarquia no ICHS/UFOP. Gaspar, que aturo
praticamente 06 anos, um de meus amigos mais queridos e com ele enfrentei
algumas aventuras tambm no mestrado.
Falando em velhos amigos e colegas de ofcio, devo um agradecimento aos
historiadores Andr Luiz Mantovani e Fabiano Gomes da Silva. A esses dois tributo no
s minha gratido, mas tambm uma profunda admirao e respeito. Mesmo longe e
assoberbados com suas prprias pesquisas, meus amigos Mano e Baiano, sempre
responderam aos meus pedidos de socorro prestando observaes e conselhos sempre
pertinentes.
No posso deixar de agradecer aos meus mestres do tempo de graduao no
ICHS/UFOP. Especialmente Helena Miranda Mollo, Andra Lisly Gonalves, Rosana
Areal de Carvalho, Renato Pinto Venncio e lvaro de Arajo Antunes, que me
ensinaram os caminhos do ofcio de dar voz aos mortos. Muito obrigado.
Agradeo, e muito, ao Programa de Ps-Graduao em Histria da UFJF que me
concedeu uma bolsa de estudos durante um ano e sem a qual esta caminhada teria sido
quase impossvel.
Tenho gratido e admirao pelos funcionrios das instituies arquivsticas
onde pesquisei. Tendo sempre que enfrentar inmeros problemas, j que este um pas
que ainda no d a devida importncia sua memria, essas pessoas cuidam de um
patrimnio inestimvel com dedicao e responsabilidade, mesmo com toda a sorte de
problemas. Deixo aqui meu muito obrigado e um abrao especial ao Cssio e o Sr. Jos
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VIII
da Fonseca do Arquivo Histrico da Casa Setecentista de Mariana; ao meu xar
Gustavo Ferraz, Aline, Sr. Jairo e Clio da Hemeroteca Pblica do Estado de Minas
Gerais. Os inmeros e divertidos papos que tive com essas pessoas muitas vezes
ajudaram a suportar a dura rotina de pesquisa.
Nas minhas andanas por Minas Gerais fui calorosamente acolhido sempre queprecisei de um pouso. Aos filhos de Lula, Carlos Medeiros, Carlos Rodrigo e Vera,
agradeo a hospitalidade e o bom humor durante todo o tempo que permaneci em Belo
Horizonte. Aos amigos da extinta e saudosa Repblica Anarquia, em especial ao
Sossegado e Marcelo, agradeo por sempre abrirem as portas de minha antiga morada.
Aos meus familiares agradeo todo o apoio que sempre me devotaram.
Agradeo especialmente s tias Lela e Dra com quem tenho convivido bastante nos
ltimos tempos e que tem sempre procurado me confortar quando estou beira de uma
crise de nervos. Tambm agradeo tia Marise que junto com aquelas me ajudou apagar um curso de ingls para que pudesse prestar a seleo do mestrado. Nunca
esquecerei disso.
Por fim, mas no menos importante, tenho que agradecer queles a quem dedico
este trabalho. Meus pais, Maria das Graas e Luiz Gregrio, minha irm Sara e minha
namorada Celzia, so os meus pilares de sustentao.
Minha me sem dvida minha maior incentivadora. Sempre disposta a
compreender e apoiar minhas escolhas, no pensa duas vezes em pedir aos seus santos
que intercedam por seu filho insone e cercado de um amontoado confuso de papis e
livros. Mesmo quando no entende nada do que eu falo se esfora para eu deixe o
pessimismo de lado e olhe pra frente.
Meu pai, que, vez por outra, demonstra certa impacincia, natural verdade, de
ver o filho trabalhando, me dando choques de realidade o tempo todo, nunca deixou
que eu desistisse de um sonho, me ajudando material e principalmente moralmente
sempre que dele precisei.
Com minha irm, divido, alm dos laos de sangue, o gosto pela produo do
conhecimento. Mesmo pertencendo a reas completamente distintas, Biomedicina e
Histria, temos a mesma vontade, a mesma paixo pela cincia. Sem saber, ela sempre
me enche de nimo toda vez que se senta ao meu lado para saber como anda minha
pesquisa ou para contar as idias que tem em mente.
Por derradeiro, Celzia tem responsabilidade direta na materializao deste
trabalho. Quando seu namorado pessimista pensou em desistir da seleo do mestrado
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IX
tratou de demov-lo da idia, ajudando-o a estudar e at mesmo levando almoo do
Restaurante Universitrio quando no podia abandonar os livros. Alm de agradecer a
todo carinho e dedicao que a tambm colega de ofcio me devota h mais de cinco
anos, tenho que pedir-lhe perdo pelo longo perodo de ausncia e isolamento. No tem
sido fcil encarar uma distncia de mais de trezentos quilmetros e as altas taxastelefnicas, mas como disse meu amigo Maiakovski, no acabaro com o amor, nem as
rusgas, nem a distncia, e por isso te amo firme, fiel e verdadeiramente.
A todos vocs meus amigos, um muito obrigado e aquele abrao!
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X
Resumo
O presente trabalho tem como objeto o estudo do movimento antiescravista nas
cidades mineiras de Ouro Preto e Mariana. Atravs de jornais, relatos de poca e
processos judiciais tentou-se perceber como se desenrolou a luta pelo fim da escravido
nessas duas importantes cidades da ento provncia de Minas Gerais, no perodo entre a
promulgao da chamada Lei do Ventre Livre (1871) e a abolio (1888). As primeiras
reaes ao processo de emancipao gradual, desencadeado em 1871; a promoo de
alforrias; os debates travados atravs da imprensa; a criao de sociedades e jornaisabolicionistas; as manifestaes pblicas contra o regime escravista; a participao do
clero diocesano; a radicalizao de parte do movimento abolicionista; alm da ao dos
prprios escravos que chegaram a recorrer Justia em busca da liberdade; so alguns
dos elementos observados nesta dissertao.
Palavras-chave: Abolicionismo, escravido, liberdade, Minas Gerais.
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XI
Abstract
The present work has as object the study of the movement anti-slavery in the
cities of Ouro Preto and Mariana, Minas Gerais. Through newspapers, time reports and
lawsuits tried to notice as the fight was uncoiled then by the end of the slavery in those
two important cities of the province of Minas Gerais, in the period among the
promulgation of the call Lei do Ventre Livre (1871) and the abolition (1888). The first
reactions to the process of gradual emancipation, unchained in 1871; the promotion ofenfranchisements; the debates locked through the press; the creation of societies and
abolitionist newspapers; the public manifestations against the slavery regime; the
participation of the clergy; the radicalization of part of the abolitionist movement;
besides the own slaves' action that got to appeal to the Justice in search of the freedom;
they are some of the elements observed in this dissertation.
Key Words: Abolitionism, slavery, freedom, Minas Gerais.
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XII
Sumrio
Lista de abreviaturas e siglas......................................................................................... XIII
Lista de mapas, fotografias e ilustraes....................................................................... XIV
Lista de grficos e quadros............................................................................................. XV
Introduo.......................................................................................................................
A Rota 13 de Maio: o abolicionismo na historiografia brasileira e mineira.........
01
03
Captulo 1 - O palco, os cenrios, todo o elenco e o incio da histria.........................1.1 - O que h entre as montanhas? O palco e os cenrios...................................1.2 - Do prlogo ao: as primeiras reaes acerca do processo deemancipao.............................................................................................................
2626
44
Captulo 2 - Uma onda entre as montanhas: crtica escravido e movimentoabolicionista....................................................................................................................
2.1 - A subida da onda abolicionista......................................................................2.2 - A petulncia estudantil................................................................................2.3 - F, poder e abolio em Mariana...................................................................2.4 - Prximo de um eplogo inesperado: os fugidos se escondem na capital......
6363
103110131
Captulo 3 - Por trs da legalidade tambm h luta: abolicionistas e escravos nasaes de liberdade..........................................................................................................
3.1 - O Direito, a Justia e a luta pelo fim da escravido.......................................3.2 - Nos caminhos da lei.......................................................................................3.3 - Os homens da lei e a abolio.........................................................................
136136145180
Eplogo...........................................................................................................................Ave Libertas.............................................................................................................
217217
Fontes Primrias............................................................................................................ 221Referncias Bibliogrficas............................................................................................ 228
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XIII
Lista de abreviaturas e siglas
AEAM - Arquivo Eclesistico da Arquidiocese de Mariana
AHCC - Arquivo Histrico da Casa dos Contos (Ouro Preto)
AHCMM - Arquivo Histrico da Cmara Municipal de Mariana
AHCP - Arquivo Histrico da Casa do Pilar (Ouro Preto)
AHCS - Arquivo Histrico da Casa Setecentista (Mariana)
BN - Biblioteca Nacional (Rio de Janeiro)
EFOP - Escola de Farmcia de Ouro Preto
EMOP - Escola de Minas de Ouro Preto
FDSP - Faculdade de Direito de So Paulo
HPEMG - Hemeroteca Pblica do Estado de Minas Gerais (Belo Horizonte)
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XIV
Lista de mapas, fotografias e ilustraes
Mapa 01: Regio de Ouro Preto e Mariana na segunda metade do sculo XIX............... 40
Fotografia 01: Primeira pgina dos jornais abolicionistas O Trabalho e A Vela doJangadeiro........................................................................................................................ 84
Mapa 02: Planta da cidade de Ouro Preto com destaque para o trajeto da passeataabolicionista ocorrida em 25 de maro de 1884................................................................ 92
Fotografia 02: Vista panormica da Praa Tiradentes..................................................... 93
Ilustrao 01: Pintura a leo da primeira sede da Escola de Minas, de autoria de H.Esteves................................................................................................................................ 108
Fotografia 03:Capela de Nossa Senhora das Mercs nos dias atuais.............................. 121
Fotografia 04: Nossa Senhora das Mercs........................................................................ 122
Mapa 03: Mariana entre 1800 e 1920............................................................................... 125
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XV
Lista de grficos e quadros
Grfico 01: Aes de liberdade entre 1871 e 1888 Mariana e Ouro Preto......... 172
Quadro 01: Argumentos utilizados nos processos judiciais.................................... 179
Quadro 02: Advogados atuantes nas aes de liberdade dos tribunais de OuroPreto e Mariana entre 1871 e 1888......................................................................... 190
Quadro 03: Nome e desempenho dos advogados atuantes em cinco ou mais
processos.................................................................................................................. 191
Quadro 04: Advogados envolvidos nas aes de liberdade de trfico ilegal.......... 210
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INTRODUO
Treze de maio de 1888. A notcia da assinatura de um decreto pela Princesa
Regente do Imprio fazia com que os sinos das igrejas e o povo nas ruas da ainda jovemnao anunciassem a liberdade. As estrondosas exploses de fogos de artifcio e os
repiques dos sinos se misturavam com os gritos de viva liberdade e princesa
redentora que ecoavam pelas ruas do Imprio naquele dia, e nos que se seguiram,
anunciando a promulgao do decreto salvador. Chegava ao fim a escravido no
Brasil. Era o fim de um tortuoso caminho percorrido ao longo de mais de trezentos
anos. Uma rota percorrida por escravos, senhores, libertos, livres pobres, quilombolas,
polticos, intelectuais e monarcas.
At o fim desse caminho, bem longo por sinal, e que ganhou contornos mais
definidos em fins do sculo XIX, no foram poucos os obstculos encontrados. Como j
foi dito, a rota da abolio no foi pouco tortuosa. At a festa do 13 de maio de 1888,
uma emaranhada teia de discusses e projetos sobre a extino da escravido em terras
brasileiras foi sendo fiada ao longo do caminho. Desde os primeiros passos
independentes da nao at os ltimos suspiros do trabalho escravo, foram apresentados
inmeros argumentos pr e contra a emancipao dos escravos. 1
Para muitos, o estabelecimento de um processo gradual que assegurasse os
direitos dos proprietrios e a manuteno da economia nacional, era um fator decisivo.
A emancipao imediata traria consigo efeitos desastrosos como o desrespeito
propriedade privada, a quebra da ordem pblica, causada pelas hordas de ex-escravos
entregues ao cio e ao crime, bem como a completa runa da economia nacional.
Inmeros integrantes do diminuto crculo intelectual e poltico do Brasil Imperial,
adeptos da soluo emancipacionista, sustentaram a argumentao de que o fim
imediato da escravido representava um perigo ao pas. Apenas atravs de um processo
gradual, sem um prazo bem delimitado, e controlado pelo Estado, que a transio ao
trabalho livre poderia ser feita com sucesso. O influente poltico e jurisconsulto mineiro
1Figuras como Jos Bonifcio de Andrada e Silva, Joo Severiano Maciel da Costa, Jos Eloy Pessoa daSilva e Frederico Csar Burlamaque desenvolveram argumentos favorveis emancipao cativa deforma gradual ainda no contexto do ps-independncia. Para a chamada gerao da independncia, aescravido era um dos temas centrais na formao nacional. Veja: ANDRADA E SILVA, Jos Bonifciode, 1763-1838. Jos Bonifcio de Andrada e Silva. Organizao e introduo de Jorge Caldeira. SoPaulo: Ed. 34, 2002. & ROCHA, Antonio Penalves. Idias antiescravistas da Ilustrao na sociedadeescravista brasileira. In:Revista Brasileira de Histria. vol.20 n.39 So Paulo, 2000.
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Agostinho Marques Perdigo Malheiro, teceu argumento semelhante na ocasio da
promulgao da Lei do Ventre Livre em 1871, votando contra o projeto. 2 A
preocupao era grande, pois, afinal de contas, o carro chefe da economia do ltimo
bastio da escravatura no mundo ocidental, a agro-exportao, sustentava-se ainda s
custas do suor cativo.Aquele que transpirava pela escravido tambm poderia ser o mesmo que traria
a runa ao pas. Os brbaros negros arrancados da frica representavam aos olhos de
inmeros intelectuais e polticos do Brasil oitocentista uma ameaa clara ao futuro da
nao. Tidos vrias vezes como seres abjetos e inferiores, biolgica e moralmente, em
relao aos civilizados europeus, os negros, escravos ou livres, irradiariam um conjunto
perigoso de influncias negativas a uma nao que pretendia trilhar os caminhos da
civilizao. Uma das solues apontadas para eliminar esse entrave seria a substituio
ou a mescla desses brbaros com homens civilizados importados do velho mundo. 3Masos brbaros tambm se mexiam.
O longo caminho trilhado pelo sistema escravista brasileiro foi permeado pela
ao de milhares de homens e mulheres que resistiram das mais variadas formas ao
cativeiro. Violncia, fugas, adaptao, resistncia cultural e negociao foram as armas
utilizadas. Os escravos, a parte mais interessada na caminhada rumo ao fim da
escravido, tambm souberam agir a seu favor lutando de forma significativa por sua
liberdade at o ltimo instante. 4
Quase ao fim da caminhada, surgiu aquele que foi considerado o movimento
social mais marcante do sculo XIX. O movimento abolicionista marcou a
intensificao dos debates acerca do fim da escravido, levando-os para fora das
tribunas parlamentares, das reunies de salo e pginas de jornal. A abolio ganhava as
ruas onde os abolicionistas promoviam seus meetings, ocasio em que proferiam
discursos contra aquele sistema nefasto, totalmente contrrio s luzes do sculo e
2 Veja: PENA, Eduardo Spiller. Pajens da casa imperial jurisconsultos, escravido e a lei de 1871.
Campinas: Editora da Unicamp/Centro de Pesquisa em Histria Social da Cultura, 2001.3Durante todo o Imprio, a discusso sobre a introduo do trabalho livre europeu ocupou um lugar deconsidervel importncia. Para muitos polticos, o influxo de trabalhadores vindos do velho continentepossibilitaria a conformao completa da nao. A substituio da mo-de-obra nacional ou sua misturacom o elemento europeu poderia trazer resultados benficos para a escalada evolutiva do pas. Sobre asprimeiras experincias de introduo de trabalhadores europeus no sculo XIX veja: LAMOUNIER,Maria Lcia.Da escravido ao trabalho livre, So Paulo: Papiros, 1988; ALENCASTRO, Luiz Felipe de,Caras e modos dos migrantes e imigrantes. In:Histria da vida privada no Brasil: Imprio: a corte e amodernidade nacional, So Paulo, Companhia das Letras, 1997.4 AZEVEDO, Clia Maria Marinho. Onda Negra, Medo Branco: O negro no imaginrio das elites Sculo XIX. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987.
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aos seus ideais de progresso. Provavelmente, tais palavras ecoaram at os ouvidos e
mentes dos transeuntes, entre eles escravos, que assistiam a tais manifestaes.
O objetivo deste trabalho exatamente observar o desenrolar desse processo em
duas importantes cidades da Minas Gerais oitocentista: a episcopal Mariana e a capital
Ouro Preto. Tema ainda pouco explorado na regio, o abolicionismo em Minas Geraisfoi interpretado por alguns autores como um processo pautado por aes tmidas,
legalistas e paternalistas, fruto dos costumes dos habitantes das alterosas ou da
importncia que o regime de trabalho compulsrio ainda tinha para sua economia. A
pesquisa que lhes apresentada tambm procurou matizar o processo de abolio
mineiro verificando as teses descritas acima, e que sero comentadas com o detalhe
mais frente, revelando o contedo dos debates e aes empreendidas pelos atores
desse enredo, procurando dessa forma preencher lacunas ainda existentes acerca de um
episdio importante da histria do pas e de Minas Gerais.Todavia, antes que a histria comece a ser contada, ou melhor, interpretada,
peo licena para lhes conduzir pelo variado caminho traado pela historiografia
brasileira sobre o tema em questo que, assim como a atuao do abolicionismo e seu
contato com os tais transeuntes, seguiu em direes bem variadas. De um movimento
meramente elitista a responsvel por agitaes populares, as interpretaes elaboradas
pelos historiadores sobre o abolicionismo durante os ltimos 30 anos, apontam para
uma multiplicidade de atuaes dos antiescravistas nas ltimas dcadas do XIX. Creio
que esta visita ao variado caminho traado pela historiografia, sendo que faz parte de
nosso itinerrio uma visita ao ainda curto caminho traado pela historiografia mineira
sobre a abolio, colaborar para que possamos compreender melhor os
desdobramentos do processo histrico em questo.
Rota 13 de maio: o abolicionismo na historiografia brasileira e mineira
Um negcio de brancos para brancos. Esta foi a definio com que parte da
historiografia sobre escravido e sua abolio no Brasil, pelo menos at a dcada de
1970, identificava o abolicionismo. Para os autores ligados chamada Escola
Sociolgica Paulista, o movimento abolicionista representava os interesses da diminuta
elite branca e ilustrada, nascida principalmente a partir das camadas mdias citadinas na
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segunda metade do XIX. 5De acordo com Emlia Viotti da Costa, o crescimento das
cidades e das profisses liberais teria sido um fator decisivo para que o abolicionismo
despontasse na dcada de 1880. Assim, a uma camada nova menos comprometida com
a escravido formaria a base do movimento abolicionista, entretanto, sua adeso no
teria significado a inteno de modificar a estrutura social vigente, mas sim mant-la.6
O abolicionismo seria ento um movimento de brancos visando apenas a
resoluo de seus prprios problemas, entre eles a transio para a economia
capitalista, a generalizao da liberdade e a conseqente equalizao jurdica entre
brancos e negros, atendendo s necessidades do capitalismo em ascenso. Nas palavras
de Octvio Ianni, o abolicionismo foi uma revoluo branca, isto , um movimento
poltico que no se orientava no sentido de transformar, como se afirmava, o escravo em
cidado, mas transfigurar o trabalho escravo em trabalho livre.7
O que estava em jogo, segundo os integrantes da referida Escola, era amanuteno da hierarquia econmica e social vigente. Diante da possibilidade de quebra
dessa ordem era necessrio que os abolicionistas agissem a favor de uma transio
pacfica, orientando o processo de forma a buscar uma posio conciliadora com seus
companheiros de classe (os senhores) e excluindo os escravos de um papel mais
significativo nas movimentaes em torno da causa. Era necessrio criar uma imagem
positiva em torno das atividades de produo, identificadas pela sociedade branca como
exclusividade dos escravos. Por outro lado, no cabia a estes, apontados como uma
massa inculta, inconsciente e perigosa, tomar parte ativamente desse processo. 8Ainda
segundo Ianni,
No , pois, uma revoluo de cativos que destri o trabalhoescravo para implantar o livre. So transformaes internas aosistema que paulatinamente arrunam os ltimos vestgios do regime,pois ele se tornara inadequado, envelhecido, e novas formas deproduo e existncia social se haviam instalado e expandiam-se. 9
5Nas dcadas de 1960 e 70, o grupo de socilogos da USP sob o comando de Florestan Fernandes foiresponsvel por um significativo avano no que diz respeito produo de estudos sobre a escravido noBrasil. Seus principais representantes seriam o prprio Florestan Fernandes, Octvio Ianni, Fernando
Henrique Cardoso, Carlos Alfredo Hasenbalg e Emlia Viotti da Costa. Veja: IANNI, Octvio. Asmetamorfoses do escravo. So Paulo: Difuso Europia do Livro, 1962; CARDOSO, Fernando Henrique.Capitalismo e Escravido no Brasil meridional: o negro na sociedade escravocrata do Rio Grande doSul. 2 ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1977; FERNANDES, Florestan. A Integrao do Negro naSociedade de Classes. 2 vols., 3 ed. So Paulo: tica, 1978; HASENBALG, Carlos. Discriminao eDesigualdades Raciais no Brasil. Rio de Janeiro: Graal, 1979; COSTA, Emlia Viotti da Costa. DaSenzala Colnia. So Paulo: Ed. Brasiliense, 3 edio, 1989.6COSTA, Emlia Viotti da Costa. Op. cit., p.441.7IANNI, Octvio. Op. cit., p.235.8Idem, ibidem.9Idem, ibidem, p.233-234.
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Inspirado nas palavras de Joaquim Nabuco, Fernando Henrique Cardoso dizia
endossar o que o lder abolicionista havia definido como base do abolicionismo. Para o
socilogo, o abolicionismo autntico de Nabuco seria fruto da ao de indivduos
humanitrios e progressistas, que influenciados pelas luzes do sculo XIX, seriam os
nicos capazes de auxiliar os escravos em seu caminho rumo liberdade.10
Segundoessa tica, o escravo era incapaz de lutar sozinho por sua liberdade, tornando necessria
a tutela de uma elite devidamente capacitada para conduzir o processo de emancipao
e transio para o capitalismo.
As propostas dos abolicionistas seriam baseadas nas necessidades da prpria
elite e no na perspectiva dos escravos, afastados do processo de transio. Contudo,
Fernando Henrique Cardoso afirma que, apesar de no se basear nos anseios dos
cativos, o abolicionismo autntico no deixaria de refletir sobre necessidades que,
teoricamente, corresponderiam ao ponto de vista dos escravos como a generalizao daliberdade e a equalizao jurdica entre negros e brancos. 11O socilogo considera que
esta era a nicaforma possvel de conscincia totalizante da sociedade escravocrata
brasileira, fundada na violncia e na supremacia da raa branca sobre a raa
negra. 12(O grifo meu)
Assim como seus abolicionistas autnticos, Fernando Henrique Cardoso
considerou o escravo como um ser inerte e incapaz de agir em favor prprio de forma
consciente. A coero violenta exercida pelo escravismo teria despersonalizado e
embrutecido os cativos, tornando-os incapazes de uma reao coordenada contra o
sistema e de perceber criticamente sua situao. 13Ser cativo significaria ser uma coisa,
uma propriedade desprovida de direitos e conscincia. Para o socilogo, a condio
jurdica de propriedade, de coisa, corresponderia diretamente condio social dos
cativos. A reificao do escravo se daria objetiva e subjetivamente, ou seja, os prprios
escravos se auto-identificariam como seres desprovidos de valores morais e capazes de
agirem de forma autnoma. Assim, apesar de empreender aes humanas, o cativo
apenas reproduzia as orientaes e significaes sociais impostas por seus senhores. 14
Nesse caso, o nico tipo de reao que lhes seria possvel era o puro sentimento de
revolta traduzido atravs das fugas e outras atitudes divergentes. Tais aes no
10CARDOSO, Fernando Henrique. Op. cit.11Idem, ibidem, pp.219 e 220.12Idem, ibidem, p.221.13Idem, ibidem.14Idem, ibidem, p.125.
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poderiam ser consideradas como imbudas de um significado poltico-social que tinha
como alvo a negao da escravido, mas, to somente, como gestos de desespero e
revolta e pela nsia indefinida e genrica de liberdade. 15O primeiro ato humano do
escravo o crime, afirmou Jacob Gorender em seu O escravismo colonial,
concordando com a perspectiva adotada por Fernando Henrique Cardoso.16
Tanto Ianni quanto Cardoso insistiram em afirmar que uma reao consciente
por parte dos escravos seria impossvel e que, no mximo, as fugas, atos de violncia ou
mesmo a formao de quilombos, significariam apenas uma resposta violncia sofrida.
Tal qual um animal maltratado, ou como um ser que manifesta a primeira caracterstica
humana, o brbaro escravo, s vezes, respondia a agresso com outra. Em geral, a
conscincia de revolta no chegava a exprimir-se no ato de negao da situao
escrava. 17Ainda como um ser no autonmico, vrias vezes a reao aos desmandos
de seus proprietrios tinham como obstculo os laos afetivos que os mancpios comeles mantinham, o que fez com que muitos permanecem nas unidades produtivas em
que viviam mesmo aps terem sido libertados. 18
Em geral, a possibilidade de percepo acerca da condio a qual os escravos
estavam submetidos tinha relao direta com seu contato com as relaes de produo.
Segundo Cardoso, quanto mais distante do setor produtivo que movia o sistema
escravista, no caso o setor exportador, mais possibilidade haveria do cativo
compreender a situao de explorao a qual era submetido. 19Entretanto, esta tomada
de conscincia no foi um fato geral, j que os cativos no perceberam a situao como
explorao de uma classe sobre a outra, mas como uma relao de violncia. Assim, a
reao cativa seria caracterizada como uma resposta violncia exercida pela
escravido, e no uma reao poltica luta de classes. 20
J para Florestan Fernandes, tal inabilidade em perceber a explorao a que eram
submetidos, selou o futuro dos negros na sociedade brasileira mesmo aps a abolio.
Segundo Fernandes, a marginalizao dos negros aps a libertao seria inevitvel, uma
vez que traziam consigo uma forte herana da escravido: a incapacidade de
compreender sua posio nas relaes de produo. 21Tal fato fez com que os negros
15Idem, ibidem, p.152 & IANNI, Otvio. Op. cit., p.234.16GORENDER, Jacob. O escravismo colonial. So Paulo tica, 1978, p.65.17CARDOSO, Fernando Henrique. Op. cit., p.218.18IANNI, Otvio. Op. cit., p.222.19CARDOSO, Fernando Henrique. Op. cit., pp.218-219.20Idem, ibidem.21FERNANDES, Florestan. Op.cit.
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no se integrassem na nova estrutura scio-econmica, pois no estavam estrutural e
funcionalmente ajustados s condies dinmicas de integrao e de expanso da ordem
social competitiva. 22 Mesmo depois de se verem livres das amarras escravistas, os
negros conservariam consigo os defeitos herdados do cativeiro entre os quais estariam a
incapacidade de sentir, pensar e agir socialmente como homens livres, perdendo lugarpara a mo-de-obra importada da Europa.23
A tese da inadaptabilidade do negro nova conjuntura econmica e a ligao
entre a ao abolicionista e interesses do setor produtivo acabaram por limitar a anlise
dos membros da Escola Sociolgica Paulista. Sua interpretao leva apenas a um
caminho: a influncia econmica no processo histrico e o choque entre classes
dominantes e subalternas dentro das relaes de produo.
O problema era que a anlise economicista e esquemtica proposta pelos
marxistas ortodoxos enterrava nas sombras do passado algo que ia muito alm dasrelaes de produo. Fora dos muros da economia, pessoas comuns conseguiam
mover-se e transformar seu meio independentemente das grandes estruturas sociais. Era
preciso conferir suas prprias experincias e reaes diante do mundo que lhes cercava.
Era preciso entender o processo histrico tambm como um processo com sujeito. 24
Se a anlise historiogrfica acerca da escravido no Brasil fosse uma pea de
teatro, poderamos dizer que a partir da dcada de 1980 o palco assistiu a entrada de
mais um importante ator em cena: o escravo.
A crise dos paradigmas marxistas nas duas dcadas anteriores impulsionou uma
profunda reviso do processo histrico, levando ampliao dos objetos, das fontes e
valorizao do indivduo comum enquanto agente transformador. O foco foi desviado
das grandes estruturas sociais, da ao dos dirigentes polticos, dos grandes
acontecimentos, e concentrado ento nos comuns, no pobre descalo, no agricultor
ultrapassado. 25A chamada histria vista de baixo, inaugurada com os estudos do
historiador britnico Edward Palmer Thompson, entre outros, representou essa mudana
de foco seguida mais tarde pelos micro-historiadores italianos, interessados no estudo
das trajetrias individuais dos novos atores da histria. 26O proscnio estava aberto
22Idem, ibidem.23Idem, ibidem.24THOMPSON, Edward Palmer.A misria da teoria ou um planetrio de erros. Rio de Janeiro: Zahar,1981.25Idem,A formao da classe operria inglesa.Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987.26SHARP, Jim. A Histria Vista de Baixo. In: BURKE, Peter. A Escrita da Histria: Novas Perspectivas.So Paulo: EDUNESP, 1992, pp.39-62; THOMPSON, Edward Palmer. Senhores e Caadores: a origem
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para aqueles que raramente entravam em cena na historiografia. Ao invs de observar
apenas as grandes mudanas estruturais, passou-se a levar em considerao a tenso
entre a ao humana e as presses sofridas pelas estruturas sociais. 27
Os reflexos de tais mudanas no panorama historiogrfico internacional foram
sentidos na historiografia brasileira principalmente a partir da dcada de 1980.Influenciados pela histria vista de baixo e pelos novos trabalhos espraiados pelo
mundo, os historiadores brasileiros passaram a se dedicar ao resgate daqueles sujeitos
colocados margem da histria, o que resultou na criao da nova histria social do
trabalho. 28 Evidentemente que essa mudana tambm afetou substancialmente a
histria da escravido e sua abolio em terras brasileiras.
A antiga tese de que os negros/escravos no passariam de uma massa inerte e
brutalizada, desprovida de conscincia, obra do trato violento imposto pelo regime
escravista, foi jogada por terra. Os figurantes transformaram-se em protagonistas deuma pea cotidiana que culminou no 13 de maio de 1888. Sem dvida, seu papel no
era de coadjuvante. 29
As novas pesquisas mostraram que os cativos possuam suas prprias percepes
acerca da escravido, ao contrrio do que argumentaram os autores da Escola
Paulista. Conseguiram jogar luz sobre o cotidiano de rebeldia, resistncia e negociao
exercidas pelos escravos dentro do prprio sistema. Alguns historiadores passaram a
incluir a experincia dos cativos em seus estudos sobre a escravido brasileira
imprimindo uma nova abordagem na anlise da relao senhor-escravo. A influncia
thompsoniana era patente como observou Silvia Hunold Lara:
da Lei Negra. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987; DAVIS, Natalie Zemon. O retorno de Martin Guerre.Traduo de Denise Bottman. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987; GINZBURG, Carlo. O queijo e osvermes: o cotidiano e as idias de um moleiro perseguido pela Inquisio . Traduo de Maria BetniaAmoroso. So Paulo: Companhia das Letras, 1987.27XAVIER, Regina. Biografando outros sujeitos, valorizando outra histria: estudos sobre a experinciados escravos. In: SCHMIDT, Benito Bisso. O biogrfico: perspectivas interdisciplinares. Santa Cruz doSul: EDUNISC, 2000, pp.97-130.28 LARA, Slvia H. Blowin in the wind: E. P. Thompson e a experincia negra no Brasil. Projeto
Histria. So Paulo: PUC, outubro, 1995, pp. 43-56.29Dentre os vrios trabalhos que adotam essa perspectiva podemos citar: LARA, Slvia H. Campos daviolncia. Escravos e senhores na capitania do Rio de Janeiro 1750-1808.Rio de Janeiro: Paz e Terra,1986; REIS, Joo Jos. Rebelio escrava no Brasil. A histria do Levante dos Mals (1835). So Paulo:Brasiliense, 1986; REIS, Joo Jos & SILVA, Eduardo. Negociao e Conflito: a resistncia negra noBrasil escravista. So Paulo: Companhia das Letras, 1987; AZEVEDO, Clia Maria Marinho. Op. cit.;CHALHOUB, Sidney. Vises da Liberdade: uma histria das ltimas dcadas da escravido da corte.So Paulo: Companhia das Letras, 1990; PAIVA, Eduardo Frana.Escravos e libertos nas Minas Geraisdo sculo XVIII: estratgias de resistncia atravs dos testamentos. So Paulo: Annablume, 1995;MATTOS, Hebe Maria. Das cores do silncio: os significados da liberdade no sudeste escravista -Brasil, sc. XIX.Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1998.
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Ao tratarmos da escravido e das relaes entre senhores e escravos, tantoquanto ao tratarmos de qualquer outro tema histrico, lembramos, comThompson, que as relaes histricas so construdas por homens emulheres num movimento constante, tecidas atravs de lutas, conflitos,resistncias e acomodaes, cheias de ambigidades. Assim, as relaesentre senhores e escravos so fruto das aes de senhores e escravos,enquanto sujeitos histricos, tecidas nas experincias destes homens emulheres diversos, imersos em uma vasta rede de relaes pessoais dedominao e explorao. 30
A noo de que os escravos construram sua prpria viso sobre o cativeiro e a
liberdade, impondo dessa forma limites ao escravismo, mesmo estando a ele
subjugados, suplantou totalmente as interpretaes historiogrficas anteriores focadas,
em grande medida, na avaliao que os senhores escravistas formulavam a respeito dos
escravos ou ainda das estruturas econmicas. Como observou Sidney Chalhoub,
Os negros tinham suas prprias concepes sobre o que era o cativeirojusto, ou pelo menos tolervel: suas relaes afetivas mereciam algum tipode considerao; os castigos fsicos precisavam ser moderados e aplicadospor motivo justo; havia maneiras mais ou menos estabelecidas de os cativosmanifestarem sua opinio no momento decisivo da venda. 31
Contudo, se o papel do escravo nessa histria havia mudado, alguns autores
mantiveram a anlise do abolicionismo e do movimento abolicionista unicamente como
representantes dos anseios da elite oitocentista, aquele negcio de brancos,
comprometido com os interesses agrrios e preocupado apenas em controlar os
mancpios (que j no eram mais seres inertes) e direcionar suas reivindicaes.
Para autores como Lana Lage da Gama Lima e Clia Maria Azevedo, havia um
comprometimento muito claro entre a atuao abolicionista e um projeto elitista de
manuteno da estrutura social aps a transio.
Segundo Lana Lage, mesmo tendo rompido com uma parcela considervel da
elite, colaborando para que viesse tona uma rebeldia latente nas classes exploradas
economicamente, um de seus pontos de apoio, o abolicionismo buscava limitar o
processo de aprofundamento dessa rebeldia no momento que esta passava a ameaar os
interesses de sua classe. 32
30LARA, Slvia H. Blowin in the wind. Op. cit., p.46.31CHALHOUB, Sidney. Op. cit., p.27.32LIMA, Lana Lage da Gama. Rebeldia negra e abolicionismo. Rio de Janeiro: Achim, 1981, p.22.
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Ao analisar as interaes entre a rebeldia negra e o movimento abolicionista na
cidade fluminense de Campos, a autora constatou que nos anos finais da escravido, a
ao de ambos se complementavam. Uma teria potencializado a outra acelerando o
processo de abolio. Com o auxlio abolicionista a rebeldia escrava teria se
conscientizado ainda mais, ganhando contornos de uma reivindicao poltica aos olhosdo sistema:
E, se a aliana com a violncia negra torna o movimento abolicionismomais incisivo, a rebeldia do escravo tambm se torna, a partir da, maisameaadora, porque mais conseqente. Assim, ao fazer do negro um aliado,apadrinhando suas exploses de revolta, o abolicionismo confere,imediatamente, a essa rebeldia uma conotao poltica anteriormentenegada pelo sistema. 33
Aps a abolio, os ex-abolicionistas teriam passado a primar pelo controle damo-de-obra livre. Diante da ameaa de vadiagem por parte dos libertos, os ex-
abolicionistas tentavam ajust-los s novas condies de trabalho, pedindo que se
mostrassem dignos de sua nova condio e que entendessem que a liberdade deveria
corresponder aplicao ao trabalho e obedincia ao patro, o novo senhor. 34Com a
aliana feita na luta contra a escravido desfeita, os negros viam-se sozinhos diante de
uma nova situao de explorao. A partir daquele momento suas atitudes
divergentes, antes imbudas de um carter poltico conferido pelos abolicionistas,
transformaram-se em caso de polcia.35
J para Clia Azevedo, que explorou o medo da reao negra por parte da classe
senhorial em Onda Negra, Medo Branco, a rebeldia negra, identificada atravs de
assassinatos, revoltas e fugas, teria acelerado o processo de abolio de forma mais
independente. 36O no quero dos escravos manifestado atravs de sua rebeldia, teria
forado as elites e o prprio movimento abolicionista e se definirem diante da questo
da abolio. Para a autora, assim como para Lana Lima, o comprometimento dos
abolicionistas com os interesses dos grupos dominantes fez com que no houvesse outro
interesse que no o controle dos perigosos escravos. Estes que deveriam na verdadecolher os louros da liberdade. 37
33Idem, ibidem, p.139.34Idem, ibidem, p.150.35Idem, ibidem, p.151.36AZEVEDO, Clia Maria Marinho. Op. cit.37Idem, ibidem.
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A autora afirma que a campanha abolicionista restringiu-se apenas imprensa,
s tribunas parlamentares e s conferncias de salo. Para ela, o abolicionismo
restringia-se praticamente aos limites estreitos da diminuta elite brasileira. 38(Grifo
meu) Seus principais interlocutores seriam os prprios senhores de escravos, a quem
tentavam convencer da irracionalidade do sistema escravista que deveria ser substitudopelo trabalho livre. Nisso, os abolicionistas teriam feito muito mais propaganda de seus
intentos do que marcado de forma incisiva sua posio diante da abolio. Ao invs
disso, teriam eles adotado posturas extremamente moderadas como o projeto de
emancipao gradual ou mesmo o fomento de alforrias condicionais por parte dos
senhores.
Mesmo crescendo consideravelmente na dcada de 1880, no mais se
encarcerando apenas no parlamento, sales ou jornais e apesar de alguns de seus
membros apresentarem crticas estrutura fundiria do pas, setor que mantinhapraticamente a responsabilidade sobre a persistncia da escravido no Brasil -, o
movimento abolicionista, segundo Clia Azevedo, teria deixado claro que suas
intenes no possuam nenhum trao revolucionrio, mas to-somente reformista. 39
Para a autora, o temor dos abolicionistas era de que o processo fugisse das
rdeas por eles colocadas. Assim, teriam procurado manter o movimento dentro da
legalidade institucional, muito embora vezes tivessem que transgredi-la por fora das
circunstncias de um tempo de conflitos de classe e inter-classes generalizados. 40O
objetivo seria um s: reordenar o social a partir das prprias condies sociais
vigentes, sem nunca enveredar por utopias revolucionrias. 41 Segundo a autora, ao
mesmo tempo em que lutava pela libertao dos cativos e sua integrao social, o
movimento abolicionista envidava todos os esforos para manter o poder da grande
propriedade, ou melhor, o poder do capital. Isso seria possvel apenas pelas vias legais.
De acordo com Clia Azevedo, o ponto nevrlgico entre os abolicionistas era
formao da mo-de-obra aps o fim do sistema escravista. Muitos inclusive se
esforaram em demonstrar a inexistncia de preconceito racial no Brasil, o que
facilitaria a incorporao dos libertos na nova estrutura de produo. Corroborando com
as teses elaboradas por vrios intelectuais da poca como o mdico francs Louis Couty,
que via no Brasil um verdadeiro paraso racial se comparado a outras naes escravistas
38Idem, ibidem, p.88.39Idem, ibidem, p.8940Idem, ibidem, p.89.41Idem, ibidem.
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como os Estados Unidos, onde imperava o preconceito e a violncia, os abolicionistas
acreditavam que essa paz entre as raas poderia viabilizar a incorporao dos negros no
futuro como trabalhadores livres. 42Contudo, isso no significa que os abolicionistas
equiparavam negros e brancos. Estes eram tidos quase sempre como superiores moral e
racialmente. J os negros deveriam se aperfeioar atravs do contato com os brancos,principalmente os que vinham da Europa, e com o trabalho livre. 43
Contudo, militantes como Joaquim Nabuco e Andr Rebouas chegaram a
elaborar dura crtica grande propriedade, assumindo uma posio favorvel ao projeto
de educao tcnica dos ex-escravos e da reforma agrria, ou democracia rural, como
queria Rebouas, acompanhada de um imposto territorial rural ou da desapropriao de
terras incultas em favor da distribuio destas entre os nacionais.
A existncia de projetos que tinham como base a crtica a um dos pilares centrais
da escravido, a grande propriedade, pelo menos abala as teses vistas at aqui. Semdvida, a macia maioria dos figures abolicionistas pertencia elite que se mantinha
com o suor dos escravos. Entretanto, nada garante que alguns desses filhos da elite
escravagista tenham elaborado propostas que lhe quebrariam as pernas. O fato de que
um projeto de abolio tenha sido vitorioso no garante que outros imbudos de intentos
mais prximos de uma efetiva reestruturao social tenham existido.
Ainda no fim da dcada de 1970, Richard Graham ao analisar textos assinados
por Andr Rebouas e Joaquim Nabuco, verificou que os militantes intentavam algo que
ia alm da simples equalizao jurdica. 44Os projetos traziam em si, alm da proposta
de abolio imediata e sem indenizao, uma profunda crtica estrutura fundiria do
Imprio e o clamor pela democracia rural, em outras palavras, a reforma agrria. O
que para alguns autores no passou de uma adeso tardia a um projeto que tinha como
eixo a insero dos ex-escravos na sociedade e que no poderia ir muito longe devido
vinculao dos abolicionistas com o racialismo45, a meu ver abre possibilidades para
que possamos visualizar a complexidade do movimento abolicionista.
42Idem, ibidem, p.90.43Idem, ibidem, p.91.44GRAHAM, Richard.Escravido, reforma e imperialismo. So Paulo: Perspectiva, 1979.45 Optei por utilizar o conceito de racialismo elaborado por Tzvetan Todorov ao invs de racismocientfico como tem feito alguns autores. Todorov faz uma distino clara entre racismo e racialismo ondeo primeiro caracterizado por um comportamento revestido de dio e desprezo para com indivduos decaractersticas fsicas diferentes. J o racialismo seria uma ideologia, uma doutrina referente s raashumanas forjada na Europa Ocidental em um perodo amplo que vai do sculo XVIII a meados do XX.Para Todorov, a presena de um no significa a presena de ambos. Um indivduo pode ser racista semser necessariamente um terico que justifica seu comportamento com argumentos cientficos. Ao mesmotempo, o terico racialista no necessariamente um racista no sentido lato, pois suas vises tericas
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Em seu panfleto Abolio imediata e sem indenizao, Andr Rebouas deixa
claro que a abolio da escravido seria apenas um estgio da luta encampada pelo
movimento abolicionista. 46Para Rebouas, o prximo passo seria a constituio de uma
poltica baseada na reorganizao da estrutura fundiria do pas atravs do
estabelecimento de um imposto territorial e da distribuio de terras entre os libertos.
(...) O maior dano financeiro e econmico, produzido peloescravagismo sobre a nao brasileira provm do monoplioterritorial. Os exploradores da raa africana so simultaneamentegrandes monopolizadores da terra. Insaciveis em sua ambio nempermitem a formao da Democracia Rural com pequena lavoura,exercida por brasileiros, nem o estabelecimento de imigrantesagricultores e proprietrios.Nas regies agrcolas, o brasileiro no tem outro recurso senoreduzir-se a agregado ou, mais rigorosamente, a capanga de algumfazendeiro. 47
De acordo com o projeto de Rebouas, abolio e reforma agrria andavam de
mos dadas. Para o abolicionista, a regenerao do escravo s seria possvel atravs da
propriedade rural que seria obtida a partir da diviso das terras antes destinadas
exclusivamente grande lavoura. Segundo ele, ser livre e ser proprietrio rural
constitui a maior aspirao do escravo desta terra miservel. 48Tais palavras rompem
com a tese da inadaptabilidade do negro ao trabalho cunhada pelos intelectuais
oitocentistas e sorvida por alguns historiadores, uma vez que identifica como seu maior
anseio lavrar sua prpria terra.
Para Graham, a existncia de tais projetos, principalmente aps a promulgao
da Lei urea, determinou a adeso dos grandes proprietrios ao movimento
republicano. Segundo o autor, eles aderiram ao movimento republicano no tanto por
despeito e amargura, mas para evitar aquilo que lhes parecia um desastre at maior
que a abolio: a reforma agrria. 49 (Grifo meu) Cientes de que a reforma agrria
podem no ter qualquer influncia sobre seus atos. Veja: TODOROV, Tzvetan. Ns o os outros: a
reflexo francesa sobre a diversidade humana. Traduo Srgio Ges de Paula. Rio de Janeiro: JorgeZahar Ed., 1993.46REBOUAS, Andr.Abolio imediata e sem indenizao.Rio de Janeiro, Typ. Central E.R. da Costa,1883.47Idem, ibidem.48 Idem, Agricultura Nacional, Estudos Econmicos; Propaganda Abolicionista e Democrtica. Rio deJaneiro: Lamoureux, 1883. Apud GRAHAM, Richard. Op. cit., p.185. Sobre o projeto de democraciarural de Andr Rebouas veja tambm: TRINDADE, Alexandro Dantas. Andr Rebouas: daEngenharia Civil Engenharia Social. Tese do doutorado apresentada ao Departamento de Sociologia doInstituto de Filosofia e Cincias Humanas da Universidade Estadual de Campinas. Campinas: 2004.49GRAHAM, Richard. Op. cit. p.183.
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fazia parte do pacote abolicionista, e j tendo sido derrotados diante da abolio, os
latifundirios no tiveram outra sada seno fazer de tudo para que a ao por eles tida
como revolucionria no se completasse. 50
Atualmente, a releitura dos textos de poca, assim como fez Richard Graham,
comea a preencher lacunas da histria da abolio. Trabalhos como o da historiadoraCludia Andrade dos Santos, que segue o caminho aberto por Graham, demonstram
como as propostas de democracia rural dos abolicionistas representavam um projeto
formatado em consonncia com o mundo dos libertos, apresentando um movimento
muito mais amplo do que se pensava anteriormente. 51
A autora critica o fato de parte da historiografia ter desconsiderado a existncia
desses projetos sociais expressos nos documentos de poca e a forma como generalizava
o movimento, no levando em conta a existncia de diferentes tendncias, qualificando
o abolicionismo como unicamente um negcio de brancos. Cludia Santos consideraque o fato dos abolicionistas terem evitado que a abolio se fizesse nas ruas,
inclusive com o emprego da violncia, no caracterizaria por si s um ato reacionrio
como props Clia Azevedo. Para Santos, o discurso da no violncia presente, por
exemplo, nos textos de Nabuco, Andr Rebouas e Jos do Patrocnio, refletia o temor
da poca de ver se repetir no Brasil uma grande insurreio escrava, semelhante ao
ocorrido no Haiti no incio do sculo. Contudo, essa opo no significou a inexistncia
de projetos mais prximos do que seriam os anseios dos escravos como afirmava
Rebouas ao dissertar sobre seu projeto de reforma agrria. Ao mesmo tempo, vrios
grupos abolicionistas teriam primado pela participao dos escravos no movimento,
incentivando fugas e outros atos de desobedincia, principalmente nos anos finais da
escravido. 52 No se trata, portanto, de canonizar ningum, de forjar heris da
liberdade, mas to somente dar conta da existncia de projetos que no foram levados
em conta na histria que j se conhece. Projetos que no caso foram concebidos pelos
mesmos indivduos que antes se alinhavam com os intentos elitistas e teorias
preconceituosas. 53
50Idem, ibidem.51 SANTOS, Cludia Andrade dos. Projetos sociais abolicionistas: ruptura ou continusmo? In: REISFILHO, Daniel Aaro (organizador). Intelectuais, histria e poltica: sculos XIX e XX. Rio de Janeiro:7Letras, 2000, pp.54-74.52Idem, ibidem.53Clia Azevedo criticou artigos publicados por Evaldo Cabral de Mello e Jos Murilo de Carvalho, que,segundo ela, forjavam uma imagem herica de Joaquim Nabuco, mesmo tendo este lanado mo deargumentos racistas em alguns de seus textos. Veja em: AZEVEDO, Clia Maria Marinho. Quemprecisa de So Nabuco? In:Estudos Afro-asiticos, vol.23 no.1. Rio de Janeiro: Janeiro/Junho, 2001.
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Com o avano das pesquisas, a idia do abolicionismo como unicamente um
negcio de brancos foi relativizado. Foram evidenciadas as ligaes entre aquele
movimento antes tido como de salo e as camadas populares que circulavam pelas ruas
e senzalas do Imprio. O abolicionismo passou a ser destacado como um movimento
multifacetado e complexo.54
Essa pluralidade do abolicionismo foi levada em conta por Maria Helena
Machado em O Plano e o Pnico. A autora chama a ateno para a variedade e
complexidade dentro do que se convencionou chamar genericamente de movimento
abolicionista questionando as generalizaes, que ora levavam a um abolicionismo
herico, ora malfeitor e elitista. Seu trabalho relativiza as lideranas incontestes desta
viso, focalizando
uma complexa interao de projetos e atuaes diversas que, aoatingir extratos sociais perigosamente instveis, colocou em cursouma atuao poltica muito menos comprometida com os cnones doliberalismo, do imperialismo e do racismo cientfico do que at omomento se tem admitido.55
Maria Helena Machado rompe com a tese de que o abolicionismo teria se
limitado ao legal condenando apenas as atitudes tidas como inconseqentes.
Matizando a ao abolicionista em So Paulo nos anos finais do regime escravista, a
autora percebeu como a arraia mida e vrios grupos abolicionistas interagiam
mesclando idias de natureza bem diversa. Em vrios pontos do Imprio os meetingse
demais manifestaes de rua organizadas pelos abolicionistas, chamavam a ateno dos
setores populares dos centros citadinos, que mesmo de forma turbulenta e desorganizada
sentiam-se atrados pelas palavras que ecoavam pelas ruas. 56
54O iderio abolicionista europeu tambm foi alvo de reavaliaes nas suas influncias, especialmenteaquelas referentes s contribuies dos colonos do Novo Mundo. O historiador Peter Linebaugh mostracomo no sculo XVII ingleses pobres se dispersaram pela Amrica como exilados polticos, criminosos
deportados e trabalhadores com a obrigao de servios, vindo, em algumas ocasies, a se juntarem aosescravos africanos e crioulos em suas lutas pela liberdade no Novo Mundo. Para ele, durante a segundametade do sculo XVIII, essa tradio se internacionaliza, principalmente quando se verifica o retornodessa experincia para os quadros dos movimentos abolicionista e da classe operria na Inglaterra. Oautor cita a presena de ex-escravos africanos oriundos da Amrica, como Equiano e Cugoano,defensores de ideais antiescravistas, junto aos grupos mais radicais da classe operria inglesa.LINEBAUGH, Peter. Todas as montanhas atlnticas estremeceram. Revista Brasileira de Histria, n 6,7-46, set., 1983.55MACHADO, Maria Helena P. O plano e o pnico: os movimentos sociais na dcada da abolio. Riode Janeiro: Editor UFRJ, EDUSP, 1994, p.146.56Idem, ibidem, p.148.
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Ao contrrio do que se convencionou afirmar, o movimento abolicionista era um
movimento de frente ampla que abriu espao para tendncias e atuaes muito
variadas. Mesmo tendo adotado primeiramente um posicionamento mais conservador, a
adeso do Z povinho e a radicalizao de vrias de suas alas fez com que o
abolicionismo rompesse com as propostas gradualistas e emancipacionistas.57
Mesmo sendo influenciado pelas teorias cientficas que circulavam com
desenvoltura pelo acanhado crculo intelectual brasileiro, o movimento abolicionista no
teria conseguido transformar tais idias, como o racialismo, em uma camisa de fora
ideolgica capaz de uniformizar seu discurso e prtica. 58 Sendo um movimento
composto por agentes to variados, teve uma multiplicidade de interpretaes das idias
em voga. Alm disso, ao tomar contato com os populares, estas mesmas idias
ganhavam cores imprevisveis e pouco ortodoxas.
A autora tambm rompe com a idia de que o movimento teria se limitado aosmuros das cidades, apontando para a ao de grupos radicais como os Caifazesno meio
rural, estabelecendo assim uma ponte entre a ao dos escravos nas fazendas do interior
de So Paulo e o abolicionismo urbano. Aps auxiliar as fugas de fazendas do interior
paulista e da capital, os abolicionistas conduziam os fugidos para a cidade de Santos
onde atravs da unio com outros fugidos refugiavam-se nos quilombos do Jabaquara e
Vila Matias. 59
Essa interao entre abolicionistas e escravos tambm foi alvo da pesquisa
empreendida por Eduardo Silva em As camlias do Leblon e a abolio da
escravatura.60 Empreendendo um trabalho de Histria Cultural, Silva inicia uma
jornada ao Brasil do fim do sculo XIX atravs de um smbolo abolicionista, a camlia.
A flor que simbolizava a luta contra a escravido, usada na lapela, presenteada em
forma de buqu ou cultivada nos jardins da Corte, trazia em si muito mais que um
smbolo de um movimento, mas a sua complexa prtica. O ponto de produo e
distribuio das flores da liberdade era nada mais nada menos que um quilombo
situado no que hoje o bairro do Leblon no Rio de Janeiro. Este, por sua vez,
representava um novo tipo de resistncia ao sistema escravista.
57Idem, ibidem, p.160.58 Sobre discusso das teorias racialistas no Brasil veja: SCHWARCZ, Lilia Moritz.O espetculo dasraas: cientistas, instituies e questo racial no Brasil 1870-1930. So Paulo: Companhia das Letras,1993.59MACHADO, Maria Helena P. Op. cit., p.14960SILVA, Eduardo. As camlias do Leblon e a abolio da escravatura: uma investigao de histriacultural.So Paulo: Companhia das Letras, 2003.
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Diferentemente do que ficou conhecido como quilombo-rompimento,
caracterizado pela negao da ordem escravista e de relativa autonomia em relao
sociedade branca61, o quilombo do Leblon era apoiado ou mesmo patrocinado por
abolicionistas constituindo-se como um ponto de encontro entre estes e escravos
fugidos, alm de smbolo de resistncia e difuso dos ideais do movimento. A existnciado quilombo-abolicionista refora a complexidade da atuao antiescravista, j que
representa a interao entre o movimento e os maiores interessados na abolio, os
escravos. 62
Ao lado do quilombo do Jabaquara em Santos, o quilombo do Leblon servia
como uma espcie de instncia de intermediao entre os fugitivos e a sociedade. Ao
contrrio do modelo clssico de quilombo, os laos entre a comunidade escrava e a
sociedade, ou melhor, entre o quilombo e o crculo poltico da Corte eram muito ntidos.
Entre seus lderes estavam cidados bem conhecidos da sociedade da capital doImprio, muitos deles membros da Confederao Abolicionista. 63
O comerciante portugus Jos de Seixas Magalhes, idealizador e proprietrio
das terras do quilombo, fez com que as belas flores cultivadas em parceria com os
fugidos chegassem at a mesa da realeza. As camlias do Leblon enfeitavam a mesa de
trabalho da Princesa Regente no Palcio das Laranjeiras, uma mostra da cumplicidade
das autoridades com o quilombo abolicionista. 64
Essa visibilidade do mocambo para a sociedade em volta fez com que ele se
tornasse um dos smbolos do abolicionismo ao lado das flores nele cultivadas. Nas
barbas da polcia e demais autoridades, abolicionistas e escravos promoviam belas e
animadas festas inclusive com uma boa batucada. 65 Um batuque desafiador que
marcava o ritmo do clamor pela liberdade.
61GUIMARES, Carlos Magno. Minerao, Quilombos e Palmares. In: Liberdade por um fio:Histriados quilombos no Brasil. So Paulo: Companhia das Letras, 1996, pp.139-163.62 SILVA, Eduardo. Op. cit. Tambm foi muito comum o fato de alguns quilombos participaremmarginalmente da pequena economia das vilas e arraiais dos quais estavam prximos. Muitas vezes, os
quilombolas vendiam seus excedentes para pequenos comerciantes comprando deles os produtos de quenecessitavam, estabelecendo assim uma relao direta com a sociedade. Alm disso, acabavam porfuncionar como uma espcie de vlvula de escape do sistema escravista, j que, ao retirarem das senzalasos escravos mais rebeldes ajudavam a evitar maiores conflitos. Segundo o historiador Donald Ramos, estaseria a explicao para a ausncia de rebelies escravas em Minas Gerais durante o sculo XVIII. Vejaem: RAMOS, Donald. O quilombo e o sistema escravista em Minas Gerais do sculo XVIII. In:Liberdade por um fio:Histria dos quilombos no Brasil. So Paulo: Companhia das Letras, 1996, pp.164-192.63SILVA, Eduardo. Op. cit., p.13.64Idem, ibidem, p.15.65Idem, ibidem.
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Ao contrrio do ocorrido com a historiografia sobre a abolio em outras
provncias como So Paulo e Rio de Janeiro, o caminho percorrido pela historiografia
mineira sobre o tema ainda bem curto. Talvez um reflexo da ainda pouca ateno que
o sculo XIX mineiro mereceu entre os historiadores se comparado ao dourado sculo
XVIII. bem verdade que a produo sobre o oitocentos vem crescendo nos ltimosanos, mas tambm fato o seu contraste com a grande variedade de trabalhos dedicados
ao sculo anterior, marcado pelo auge do surto minerador e por episdios caros
historiografia nacional como a Inconfidncia Mineira.
A prova da ainda tmida caminhada da historiografia sobre a abolio em
Minas Gerais a existncia de apenas dois trabalhos dedicados exclusivamente ao tema.
Os trabalhos de Oiliam Jos e Liana Maria Reis, ainda ocupam o lugar de primeiras
pesquisas dedicadas ao assunto em Minas Gerais.
Em A Abolio em Minas, trabalho publicado na dcada de 1960, Oiliam Josafirma que, ao contrrio do ocorrido em outras provncias, o movimento abolicionista
no teve em terras mineiras um papel muito ativo. Acostumados ao silncio e quietude
das alterosas, os mineiros teriam preferido agir de forma bem comedida, colaborando
apenas de alguma forma para que nas montanhas mineiras tambm se fizesse ouvir o
protesto contra a escravido. 66
Para o autor, a formao cultural e religiosa dos mineiros teria determinado que
a crtica escravido na provncia fosse marcada por aes isoladas de no mais que
alguns poucos intelectuais, profissionais liberais e estudantes que atuaram
especialmente em Ouro Preto, Campanha, Diamantina e Juiz de Fora, uma vez que,
segundo Oiliam, o ambiente provinciano mineiro, com suas definidas realidades
polticas, sociais e econmicas, no lhes era propcio. 67A distncia do crculo poltico
da Corte somada mineiridade, foram fatores determinantes para que o abolicionismo
ganhasse uma feio to tmida em Minas Gerais.
Em um primeiro momento, Oiliam Jos afirma que se houve alguma defesa da
abolio entre os mineiros esta veio das corajosas vozes do meio clerical, dos fiis da
Igreja, das famlias mais bem dotadas moralmente, ou ainda de estudantes e dos
profissionais liberais. 68 Curiosamente, aps marcar a moderao imposta pela
mineiridade, Jos se voltou aos dois ltimos grupos elencados entre aqueles que teriam
66JOS, Oiliam.A Abolio em Minas.Belo Horizonte: Itatiaia, 1962.67Idem, ibidem, p.99.68Idem, ibidem.
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se pronunciado contra a escravido, identificando-os como responsveis por aes tidas
por ele como radicais.
Ao se referir ao movimento abolicionista ouropretano, o autor destaca a
participao em seus quadros de profissionais liberais e estudantes, que teriam
desenvolvido uma intensa campanha contra a escravido na antiga capital da provncia.Segundo ele, a Sociedade Abolicionista Ouropretana, fundada em 1882, que teria se
limitado em um primeiro momento a uma atuao mais tmida, teve, em um perodo no
precisado, a radicalizao de suas aes a partir da atuao dos estudantes dos cursos
superiores da capital (Engenharia de Minas e Farmcia), que teriam aumentado a
propaganda abolicionista e incentivado fugas entre os escravos e auxiliado em sua
ocultao.69Ao que parece, os abolicionistas mineiros, pelo menos os da capital, no
seriam to tmidos assim. Contudo, a falta de preciso do autor na identificao de suas
fontes complica o caso.Em seu trabalho sobre a presena da rebeldia escrava e do abolicionismo na
imprensa mineira na segunda metade do sculo XIX, Liana Maria Reis destaca essa
falha da obra de Oiliam Jos, que segundo ela, determinou a vitria da ideologia da
mineiridade sobre o abolicionismo embora sem o saber. Para Reis, alm da falta de
rigor metodolgico o autor no levou em conta aspectos importantes como o peso da
conjuntura econmica sobre o processo de abolio. 70
Liana Reis afirma com base na anlise de documentao oficial e da imprensa,
que o movimento abolicionista de fato ocorreu em Minas Gerais acompanhando o
movimento em torno da questo servil que ocorria em mbito nacional. A singularidade
do processo abolicionista em Minas ficaria por conta da especificidade da economia e
do escravismo na provncia. Uma economia diversificada e basicamente agrria, com
destaque para a pequena e mdia posse de escravos, teria colaborado para a manuteno
do regime escravista e para o estabelecimento de limites na atuao do movimento
abolicionista, que teria apresentado ali uma feio mais moderada e presa aos projetos
da elite branca assim como deixou entender Oiliam Jos.
Mesmo apontando para o carter moderado e legalista dos abolicionistas
mineiros, a autora afirma que este teria conseguido, principalmente atravs da imprensa,
auxiliar na construo de uma mentalidade antiescravista na provncia, inclusive entre
69Idem, ibidem, p.95.70 REIS, Liana Maria. Escravos e Abolicionismo na Imprensa Mineira 1850/88. Dissertao demestrado apresentada ao Departamento de Histria da Universidade Federal de Minas Gerais. BeloHorizonte, 1993.
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os escravos. 71 Entretanto, a rebeldia escrava, mesmo sendo influenciada em certa
medida pela propaganda abolicionista, teria se desenvolvido de forma independente,
colaborando para a fragilizao da escravido, o que bem marcado pela autora.
De acordo com Liana Reis, apesar do contato entre escravos e associaes
emancipadoras, especialmente no ambiente urbano, o processo de conscientizao dosmancpios seria estruturalmente limitado. Isso porque a imagem socialmente construda
do escravo seria a de um ser infeliz e vtima de sua condio, ou ainda de um inimigo
em potencial, capaz dos atos mais brbaros. 72 Atravs de notas publicadas pelas
sociedades abolicionistas nos jornais mineiros, a autora afirma que a divulgao das
aes desenvolvidas demonstrava seu carter moderado e legalista, visto que a maioria
no tinha como objetivo promover a libertao de escravos de forma muito ampla, nem
defendiam a abolio como algo a ser resolvido imediatamente. 73 Vinculando-se
perspectiva empreendida por Clia Azevedo, Reis afirma que a mentalidadeantiescravista propagada por estas entidades no pode ser considerada como
revolucionria.
S o aprofundamento do estudo dessas entidades antiescravistas poder revelar
seu modus operandi. Acredito que essas lacunas historiogrficas que ainda persistem
podem ser minoradas atravs da anlise das especificidades regionais da provncia
mineira. Concordando com Liana Reis, creio que a recuperao das singularidades do
abolicionismo em Minas Gerais pode levar a ampliao da anlise do processo como
um todo, destacando suas particularidades em relao a outras regies do Brasil,
impedindo dessa forma generalizaes feitas com base nas anlises empreendidas para
outras provncias. Contudo, foi levando em conta a diversidade e complexidade do
movimento abolicionista demonstrados nos trabalhos de Maria Helena Machado,
Cludia Santos e Eduardo Silva, que analisei o desenrolar das aes antiescravistas em
Ouro Preto e Mariana, levando em considerao as reaes e expectativas que at
mesmo as palavras mais moderadas provocaram entre os atores que circularam por duas
das mais antigas urbes mineiras. A hiptese trabalhada aqui a de que, assim como em
outras plagas do Imprio, Minas Gerais pode ter assistido a uma multiplicidade de
posicionamentos em torno da campanha pelo fim da abolio e no apenas tmidos
71Idem, ibidem, p.201.72Idem, ibidem, p.173.73Idem, ibidem, p.114.
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discursos alimentados pelo esprito mineiro ou pela dependncia econmica da
escravido.
As balizas temporais estabelecidas demarcam um perodo de intensificao dos
debates e da efetiva implementao de mecanismos que visavam, mesmo que
morosamente, a extino do sistema escravista. Com a promulgao da Lei do VentreLivre, em 1871, estava encetado o projeto de emancipao gradual vislumbrado pelo
Governo Imperial que pretendia por a escravido abaixo com doses de conta gotas,
respeitando o sagrado direito de propriedade dos senhores escravistas. Contudo,
mesmo trazendo em si o respeito aos direitos dos proprietrios que seriam devidamente
indenizados pelas perdas, a lei de 1871 tambm abria uma brecha para que os escravos
pudessem conquistar a liberdade.
Alm da notria libertao dos filhos de escravos nascidos aps sua
promulgao, a Lei do Ventre Livre trazia tambm a obrigatoriedade do registro dosescravos, permitindo assim o controle por parte do Estado das transaes de compra e
venda destes. Aliado obrigatoriedade da matrcula, tambm foi criado o Fundo de
Emancipaoque tinha como objetivo libertar o maior nmero possvel de cativos por
parte do Estado, atravs de sorteios anuais utilizando como recurso o imposto pago
pelos senhores sobre a compra e venda de cativos (meia-sisa). Entretanto, alguns
autores destacaram que, mesmo tento colaborado para o colapso da escravido, a Lei de
1871 teria sido ineficaz no que se refere melhoria das condies de vida dos escravos.
A omisso dos senhores no cumprimento das determinaes legais teria determinado o
insucesso da lei transformando-a em mais uma forma de manipulao dos cativos. 74
No entanto, esta perspectiva desconsidera totalmente o fato de que, essa mesma
lei, possibilitou a criao de dispositivos jurdicos que garantiram aos escravos o que
antes era apenas uma prtica costumeira, como a compra da alforria atravs da
acumulao de peclio. A lei conferia aos cativos um subsdio jurdico que os
possibilitaria alcanar a liberdade e contestar o descumprimento dos acordos firmados
com seus senhores nos tribunais, inclusive com o auxlio de advogados vinculados s
idias antiescravistas, o que representou um golpe que auxiliou a desarticular o sistema
escravista.
Constantemente, o perodo posterior promulgao da lei, identificado como
sendo perpassado por atuaes estritamente legalistas, de tom moderado, restringindo-se
74Veja: COSTA, Emlia Viotti da Costa. Op. cit. & CONRAD, Robert,Os ltimos anos da escravaturano Brasil.Rio de Janeiro: Civilizao Brasileira, 1978.
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aos debates legislativos, imigrantistas e atuao forense no que diz respeito crtica ao
escravismo, o que mudaria apenas no incio da dcada seguinte com a campanha
abolicionista.
Para Elciene Azevedo, esse balizamento temporal acaba por dar mais
importncia ao que vem por ltimo, a suposta fase radical, sendo esta melhor que aprimeira, a legalista. Um antagonismo entre despolitizao e politizao. Segundo ela,
os historiadores acabaram incorrendo em anacronismo, j que lanaram mo de um
aparato terico que compreendia caractersticas dos movimentos sociais do incio do
sculo XX no Brasil, como os movimentos operrios e revolucionrios. 75
Corroborando com Elciene Azevedo, no nos limitamos a considerar a atuao
antiescravista empreendida na dcada de 1870 como apenas moderada e legalista.
Assim como a autora, levamos em consideraoa lgica de consolidao das estratgias
e aes que foram posteriormente rotuladas de radicais ou legalistas. Mesmoenquadrada em mbito legal, como os tribunais, a interferncia dos indivduos
interessados na abolio da escravido poderiam representar na verdade o incio da
fragilizao da ordem vigente. Esse foi o caso dos advogados que se envolveram nas
chamadas aes de liberdade, processos judiciais movidos pelos prprios cativos contra
seus senhores objetivando a liberdade.
A lei era, ao mesmo tempo, a base de sustentao da escravido moderna e o
espao onde esta mesma base poderia ser quebrada. A ambigidade das leis, desde o
Direito Romano at as constituies liberais do XIX, tornou o campo do direito uma
verdadeira arena de batalha entre senhores e escravos. Os primeiros criaram as leis para
assegurar seu domnio sobre os cativos, que, por sua vez, souberam utilizar as brechas
existentes na legislao para alarem a liberdade. 76Assim, as aes de liberdadeforam
uma prova de como o terreno jurdico era movedio, possibilitando que, muitas vezes,
auxiliados por um advogado, os escravos se lanassem nos tribunais em busca da
liberdade. Chegando s ltimas dcadas da escravido, esses processos judiciais
constituram-se como mais um dos instrumentos utilizados pelo movimento
abolicionista e pelos cativos para fragilizar o regime escravista. 77
75 AZEVEDO, Elciene. O Direito dos escravos: Lutas e Abolicionismo na Provncia de So Paulo nasegunda metade do sculo XIX.Tese de doutorado apresentada ao Departamento de Histria do Institutode Filosofia e Cincias Humanas da Universidade Estadual de Campinas. Campinas, SP, 2003.76GRINBERG, Keila. Liberata - a lei da ambigidade: as aes de liberdade da Corte de Apelao doRio de Janeiro no sculo XIX. Rio de Janeiro: Relume Dumar, 1994.77 Veja: CHALHOUB, Sidney. Op.cit.; MATTOS, Hebe Maria. Op. cit.; GRINBERG, Keila. Op. cit.;AZEVEDO, Elciene. Op. cit.
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Esta ser uma de nossas fontes para observar atuao dos militantes
antiescravistas ouropretanos emarianenses. Para que pudesse desnudar o processo de
abolio nos antigos centros de poder mineiros lancei mo de um amplo corpus
documentalcomposto por peridicos, documentao judicial, eclesistica, e por fim de
relatos de poca que possibilitaram visualizar a atuao antiescravista na regio. Aanlise e o cruzamento das fontes cotejadas possibilitaram que se pudessem observar os
debates e aes dos atores envolvidos, fossem escravos, senhores ou abolicionistas.
Nos peridicos procurei verificar como o projeto de emancipao gradual foi
recebido pelos mineiros da Metalrgica-Mantiqueira, regio onde se localizavam Ouro
Preto e Mariana, bem como suas reaes acerca do avano do abolicionismo na
derradeira dcada da escravido, procurando artigos de crticos ou apoiadores do fim da
escravido, alm de notcias que indicassem a existncia e atuao de sociedades
abolicionistas na regio. Foram consultados 33 jornais das cidades de Ouro Preto eMariana, localizados na Hemeroteca Pblica do Estado de Minas Gerais e na Biblioteca
Nacional, editados dentro de recorte temporal estabelecido (1871 e 1888). O critrio
utilizado na leitura dos peridicos foi o de selecionar todas as informaes que, de
alguma forma, diziam respeito ao tema pesquisado, a escravido e a luta por seu fim.
J a documentao judicial, especialmente as aes de liberdade, serviu para
observarmos a atuao dos escravos e dos militantes da abolio no terreno da Lei.
Observamos como os primeiros engendraram estratgias para alcanarem a liberdade
dentro dos tribunais ouropretanos e marianenses, e como os advogados envolvidos
nesses processos os auxiliaram, utilizando muitas vezes argumentos francamente
antiescravistas. As referidas fontes esto localizadas em trs instituies arquivsticas:
Arquivo Histrico da Casa Setecentista de Mariana, Arquivo Histrico da Casa dos
Contos e Arquivo Histrico da Casa do Pilar, ambos em Ouro Preto.
Com relao s fontes eclesisticas, localizadas no Arquivo Eclesistico da
Arquidiocese de Mariana, analisei o papel dos religiosos da ento diocese no processo
de abolio, observando a reao do rebanho diante de sua manifestao sobre o fim
da escravido. Foram observados os reflexos da atuao da Associao Marianense
Redentora dos Cativos, entidade fundada no ano de 1885 e vinculada Confraria de
Nossa Senhora das Mercs, alm de uma Carta Pastoralcontra o elemento servil escrita
pelo ento bispo diocesano, Dom Antonio Maria Correa de S e Benevides, no ano de
1887.
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Relatos e memrias dos que presenciaram o fim da escravido foram utilizados
na tentativa de reconstituir os cenrios dos debates sobre a abolio. No caso, minhas
fontes foram Homens e factos de meu tempo: 1862-1937, um livro de memrias do
farmacutico Aurlio Egydio dos Santos Pires, estudante no Liceu Mineiro e Escola de
Farmcia na dcada de 1880; Ouro Preto, descrio dos fatos e costumes ouropretanosfeita por Henrique Barbosa da Silva Cabral; e um relato registrado em um Livro de
Tombo, um documento eclesistico, de uma freguesia de Mariana, Senhor Bom Jesus do
Monte do Furquim, ou simplesmente Furquim. Quanto ao autor deste texto, sabe-se
apenas que trata-se de um professor que durante algum tempo tambm trabalhou como
funcionrio dos correios da freguesia. As fontes foram usadas como um instrumento de
reconstruo da coletividade oitocentista na qual foram produzidas. Creio que a forma
como os relatores reconstruram o passado, selecionando os fatos dos quais
participaram, presenciaram ou mesmo de que apenas ouviram falar, nos remetediretamente seu tempo, sua coletividade. Concordando com Maurice Halbawachs, a
memria aqui ser entendida como fruto do contato social. 78
No primeiro captulo procurei descrever os cenrios principais deste trabalho,
Ouro Preto e Mariana, discutindo com a historiografia existente sobre a escravido em
Minas Gerais no sculo XIX. Em seguida, foram analisadas as reaes dos habitantes da
Serra do Itacolomi em relao promulgao da Lei do Ventre Livre, observando a
multiplicidade de posicionamentos explicitados nos jornais que expressavam, inclusive,
o temor dos senhores diante da possvel quebra de seu domnio sobre os mancpios.
O segundo captulo apresenta o surgimento do movimento abolicionista na
dcada de 1880 que teve na capital seu principal ponto de ao. Foi verificada a criao
de cinco sociedades e trs jornais abolicionistas entre os anos de 1881 e 1887 em Ouro
Preto. A princpio as atividades das sociedades giravam em torno da promoo de
reunies, encontros e saraus musicais bem comportados, onde, vez por outra, era
promovida a liberdade de um escravo. Entretanto, nos ltimos anos da dcada de 1880,
alguns integrantes do movimento local parecem ter rompido com a tranqilidade
mineira de seus colegas ao acolherem escravos fugidos que vinham de outras paragens
da provncia, transformando a velha Vila Rica em um verdadeiro esconderijo para
muitos daqueles que buscavam a liberdade. J na vizinha Mariana, o clero, atravs da
Associao Marianense Redentora dos Cativos - uma sociedade emancipadora
78HALBWACHS, Maurice. A memria coletiva.Traduo de Laia Teles Benoior. So Paulo: Centauro,2004.
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vinculada Confraria de Nossa Senhora das Mercs -, e da ao do ento Bispo
Diocesano, Antnio Maria Correa de S e Benevides, intentou colaborar, de forma
moderada, para a emancipao gradual dos escravos, porm o tom comedido de suas
palavras pode ter colaborado para o convencimento da necessidade do fim da escravido
entre os fiis da Igreja, alm de ter causado reaes inesperadas por parte dos cativos.Por derradeiro, o terceiro captulo mostra atravs dos processos judiciais as
estratgias utilizadas pelos escravos para alcanar a liberdade, bem como suas
impresses acerca do que seria um cativeiro justo. No obstante, tambm foi observada
a forma como advogados envolvidos nestes processos se posicionaram em relao
escravido, e suas ligaes com o movimento abolicionista que parece estar diretamente
ligado ao aumento do nmero de processos na dcada de 1880, principalmente das
contendas em que o escravo alegava ser um africano importado para o Brasil aps a
primeira lei de proibio do trfico transatlntico, datada de 1831.
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CAPTULO 1 - O PALCO, OS CENRIOS, TODO O ELENCO E OINCIO DA HISTRIA.
De todas as capitanias, porm, era a de
Minas a mais rica, a mais populosa, amais amante da liberdade, e, portanto, adestinada a hastear um dia o pendo darevolta, e convidar suas irms paratomarem parte no convvio das naeslivres e civilizadas.Liberal Mineiro, 21 de abril de 1886.
O sangue do glorioso mrtir, que regou oabenoado solo mineiro, forma hojesobre nossas montanhas altaneiras, comocarter de seus habitantes, uma grandenebulosa donde, mais cedo ou mais
tarde, surgir o sol da liberdade entre asbnos do trabalho livre.Augusto de Lima.O Contemporneo, 21 de abril de1887.79
1.1 - O que h entre as montanhas? O palco e os cenrios.
Terra de um passado literalmente dourado. Bero da liberdade cujo brado foi
sufocado no patbulo. Os dois excertos acima, utilizados como epgrafes deste captulo
que ora se inicia, representam o saudosismo dos mineiros da segunda metade do sculo
XIX (ou mesmo de alguns de nosso tempo) ante a um passado de riquezas
proporcionadas pela minerao e pelo exemplo herico dos inconfidentes, os primeiros
a lutar pela liberdade da terra brasileira, os primeiros a espalhar pelas montanhas
altaneiras o perfume da liberdade.
Bom, poesias parte, a utilizao dos mitos polticos como o de Tiradentes e
seus companheiros, ou mesmo a memria do fausto colonial conferido pela auri sacra
famis, faziam parte de projetos e posicionamentos polticos, no s por parte dos
republicanos, estes diretamente interessados em identificar a sedio de Vila Rica comofundadora da Repblica. A nostalgia estampada na forma de discursos e poesias nos
jornais tambm fazia parte da construo de tradies culturais regionais, de
identidades, de supostas caractersticas inatas aos que viviam entre as alterosas,
principalmente na regio diretamente ligada aos principais smbolos do passado
79 A grafia dos do