Faces das práticas inovadoras:
da creche aos anos iniciais da alfabetização
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Faces das práticas inovadoras:
da creche aos anos iniciais da alfabetização
Wagner Antonio Junior
Organizador
edição Carlos Eduardo Vieira Fendel
diagramação
Wagner Antonio Junior
capa Carolina Vaitiekunas Pizarro
supervisão e apoio
Daniela Melaré Vieira Barros
impressão e acabamento Viena Gráfica e Editora Ltda
F138 Faces das práticas inovadoras: da creche aos anos
iniciais da alfabetização. / Organizador Wagner Antonio Junior - Bauru, SP : Canal 6, 2008.
206 p. ; 16 x 23 cm.
CDD 372.21
Canal6 Projetos Editoriais
Rua Engenheiro Alpheu Ribas Sampaio, 3-40 17012-631 – Bauru – SP
Tel.: (14) 3313-7968 / 8115-5068 www.editoracanal6.com.br
Inclui Bibliografia ISBN 978-85-99728-59-8 1. Edução Infantil 2. Alfabetização I. Antonio Junior,
Wagner (org)
SUMÁRIO
PREFÁCIO ................................................................................ 8
APRESENTAÇÃO ...................................................................... 13
FACE 1
PRÁTICAS PEDAGÓGICAS DA CRECHE AOS ANOS INICIAIS DA
ALFABETIZAÇÃO....................................................................... 17
UM INÍCIO DE CONVERSA: OS JOGOS E AS BRINCADEIRAS NA
EDUCAÇÃO INFANTIL
Maria do Carmo Monteiro Kobayashi........................... 19
EDUCAÇÃO INFANTIL: O JOGO NA CONSTRUÇÃO DO CONCEITO
NUMÉRICO
Elaine Cristina Feijó Kelly Cristina Ducatti-Silva........................................... 36
A EDUCAÇÃO MORAL: DIMENSÃO EDUCATIVA NECESSÁRIA
PARA A INFÂNCIA
Marta de Castro Alves Corrêa Antonio Francisco Marques ......................................... 54
FACE 2
PRÁTICAS PEDAGÓGICAS DA ALFABETIZAÇÃO............................. 76
ALFABETIZAÇÃO: EXPECTATIVAS DA PROFESSORA E A
APRENDIZAGEM DOS ALUNOS
Carmem Ligia Coutinho Santos Faria Maria da Glória Minguili................................................ 78
ERA UMA VEZ... OS CONTOS DE FADAS E A ALFABETIZAÇÃO
Vera Lúcia Messias Fialho Capellini Edson Alexandre de Lima Célia Regina F Bortolozo............................................. 101
AS HISTÓRIAS EM QUADRINHOS E O EDUCADOR: UMA PRÁTICA
PEDAGÓGICA EM CONSTRUÇÃO
Ana Maria Lombardi Daibem Mariana Vaitiekunas Pizarro........................................ 121
HISTÓRIAS LEGAIS E REAIS DA EDUCAÇÃO DO SURDO NA
REDE ESTADUAL DE ENSINO DO ESTADO DE SÃO PAULO
Eliana Marques Zanata Enicéia Gonçalves Mendes....................................... 136
FACE 3
PRÁTICAS PEDAGÓGICAS COM O USO DE TECNOLOGIAS.............. 157
ESTRATÉGIAS EDUCACIONAIS PARA O ENSINO DE
INFORMÁTICA COM CRIANÇAS CEGAS
Naiana Paula Bocardo Thaís Cristina Rodrigues Tezani.................................. 159
OBJETOS DE APRENDIZAGEM VIRTUAIS: INOVAÇÃO PARA A
PRÁTICA PEDAGÓGICA
Daniela Melaré Vieira Barros Wagner Antonio Junior................................................. 179
CONCLUSÕES......................................................................... 201
COLABORADORES ................................................................... 203
Faces das práticas inovadoras: da creche aos anos iniciais da alfabetização
8
PREFÁCIO
O estudo organizado por Wagner e que inclui o pensamento
de vários autores com posições teóricas diferenciadas sobre a
criança, tem por síntese três conceitos-chave que abrem ao leitor a
compreensão da obra como um todo: Educação Infantil, Práticas
Pedagógicas da Alfabetização e Formação de Professores de
Educação Infantil.
1- Educação Infantil: a maioria dos autores estudiosos da
Infância são unânimes em afirmar que a Educação Infantil, como
direito da criança brasileira, se configura como conquista a partir de
muitas e longas lutas na sociedade brasileira.
De 1975, quando se realizou o 1o Diagnóstico Nacional da
Educação Pré-Escolar, feito pelo MEC, e 1979, quando se
comemorou o Ano Internacional da Criança, passando pela
Constituição Federal de 1988, pelo Estatuto da Criança e do
Adolescente [ECA] de 1990 e, por último, pela Lei de Diretrizes e
Bases da Educação Nacional de 1996.
Prefácio
9
Nunca, na História do Brasil, a criança brasileira foi
contemplada com tantas leis garantindo seus direitos. Apesar da
quantidade das leis em vigor, na prática, o cumprimento da lei na
sociedade e nas instituições, principalmente a Escola, deixa muito a
desejar, “há um verdadeiro divórcio”, como diz Maria Malta
Campos (2002, pág. 77)1 entre a legislação e a realidade da criança
brasileira, isto porque nossa tradição cultural e política sempre foi
marcada pela distância e até pela oposição entre o que colocamos no
papel e o que fazemos na realidade.
Basta observar a vida nacional: o ECA, considerado uma
das leis mais avançadas no mundo, convive com cenas de extrema
violência a crianças e adolescentes, cenas de abandono, fome,
miséria, falta de conquista dos direitos básicos de cidadania.
Poderíamos nos estender em análise a outras omissões nacionais,
mas este espaço não é propício a estas críticas...
Pensar a Infância no prisma que os autores desse livro
pensam é manter viva a esperança de que mais cedo do que se pensa,
seremos capazes de conciliar a realidade caótica da Educação
Infantil brasileira e o imperativo urgente de oferecer às nossas
crianças um atendimento que integre os aspectos físicos, cognitivos,
afetivos e sociais, entendendo que a criança é um ser indivisível
(KRAMER, 2002, pág. 120)2.
2- As Práticas Pedagógicas da Alfabetização: as práticas
pedagógicas, particularmente as que se referem à pré-alfabetização e
às práticas de alfabetização, são o marco basilar da entrada da
1 MACHADO, M. L. de A. (org.) Encontros e desencontros em Educação Infantil. São Paulo: Cortez Editora, 2002. 2 KRAMER, S. Encontros e desencontros em Educação Infantil. São Paulo: Cortez Editora, 2002.
Faces das práticas inovadoras: da creche aos anos iniciais da alfabetização
10
criança no universo cultural do adulto. Os estudiosos da Infância
afirmam na maioria de suas obras a importância dessa prática
pedagógica para o desenvolvimento psíquico-social da criança.
Ao pensar no processo de alfabetização das crianças, os
professores alfabetizadores devem ter presentes as experiências de
Luria que associa a aprendizagem da escrita ao desenho infantil e à
linguagem. Em suas experiências, Luria (1989, pág. 129)3 observa:
...Para isso a criança precisa fazer uma descoberta básica – a que se pode desenhar, além de coisas, também a fala. Foi esta descoberta, e somente ela, que levou a humanidade ao brilhante método da escrita por letras e frases, a mesma descoberta conduz às crianças à escrita literal. Do ponto de vista pedagógico, essa transição deve ser propiciada pelo deslocamento da atividade da criança do desenhar coisas para desenhar a fala. É difícil especificar como esse deslocamento ocorre, uma vez que somente pesquisas adequadas a serem feitas poderão levar a conclusões definitivas e o método geralmente aceito do ensino da escrita não permitem a observação dessa transição. No entanto, uma coisa é certa – o desenvolvimento da linguagem escrita nas crianças se dá, conforme já foi descrito, pelo deslocamento do desenho de coisas para o desenho de palavras. De uma maneira ou de outra, vários métodos existentes de ensino da escrita realizam isso. Muitos deles empregam gestos auxiliares como meio de unir o símbolo falado ao símbolo escrito. Outros empregam desenhos que representam os objetos apropriados. Na verdade, o segredo do ensino da linguagem escrita é preparar e organizar adequadamente essa transição natural. Uma vez que ela é atingida, a criança passa a dominar o princípio da linguagem escrita, resta então, simplesmente, aperfeiçoar o método4.
Os estudos e as pesquisas do autor citado refletem a
sociedade e o grau de civilização que a sociedade russa atingiu no
3 LURIA. A formação social da mente. 3.ed. São Paulo: Martins Fontes, 1989. [citado por Vygotski à pág.129]. 4 VYGOTSKI, L. S. A formação social da mente. 3.ed. São Paulo: Martins Fontes, 1989.
Prefácio
11
início do século XX. É preciso refletir que o modo de medir o grau
de civilização ou de barbárie que uma sociedade atingiu é só medir o
tipo de atenção, educação e cuidados que esta sociedade destina às
suas crianças. Como é a saúde das crianças? E a Educação? E as
Escolas? E a Formação dos Professores?
Que grau de civilização atingiu a sociedade brasileira? Se
pensarmos desde a entrega e abandono das crianças recém-nascidas
nas “rodas” dos conventos no período da colonização, até a
violência, o abandono, o tráfico de drogas, a prostituição nas ruas,
no período contemporâneo?
3- Formação de Professores de Educação Infantil: este é o
ponto crucial de quem pensa e reflete sobre a Infância, a Educação
Infantil – a formação de educadores infantis.
Algumas reflexões, colocadas nos textos desse livro,
precisam ser feitas para se compreender a complexidade da
formação de professores de Educação Infantil:
• É preciso considerar o saber educativo, como uma área
de saber específico, não genérico.
• É preciso pensar que um curso de Pedagogia, à moda
antiga, extremamente acadêmico, talvez represente, o ir
“além” da Educação Infantil. O “aquém” também não
garante, por si só o equilíbrio, dará respostas às questões:
- Quais as concepções de criança e de Educação
Infantil;
- Quais as formas de organização e gestão das escolas
infantis;
Faces das práticas inovadoras: da creche aos anos iniciais da alfabetização
12
- A organização e gestão de questões curriculares que
devem servir de base à formação profissional de
Educação Infantil;
- O processo de aprendizagem infantil.
• Pensar no perfil do Profissional da Educação Infantil: Só
professor? Só educador?
• A prática pedagógica precisa se tornar área científica
com um corpo próprio de conhecimento. Não pode se
confundir com procedimento de ensino, técnicas
didáticas. Colocar a prática pedagógica no final do curso
de formação, baseada no engano de que precisa teoria, é
não entender a relação dialética reflexão-ação-reflexão e
fazer da prática pedagógica uma prática vazia de
conteúdo, alienada, sem compromisso e sem paixão.
Quem lê este livro, reflita sobre esses elementos que os
autores destacam nos seus artigos e reflexões.
Profa Dra Adriana J. F. Chaves
Apresentação
13
APRESENTAÇÃO
“Faces das práticas inovadoras: da creche aos anos
iniciais da alfabetização” é obra coletiva de alunos e professores,
organizada por Wagner Antonio Junior. Trata-se de livro com a
produção de estudos e pesquisas de pequena parcela de partícipes do
Curso de Pedagogia da Faculdade de Ciências da UNESP, campus
de Bauru (SP).
O texto e estruturado com base em práticas pedagógicas
relacionadas diretamente à educação infantil, alfabetização nos anos
iniciais do ensino fundamental, ao uso de tecnologias no ensino de
crianças cegas e a aprendizagem escolar pela via virtual.
Maria do Carmo Monteiro Kobayashi evidencia a
importância dos jogos e brincadeiras na educação infantil. Evidencia
a necessidade de se “estabelecer grandes categorias correspondentes
às principais formas da atividade lúdica”, como E (para jogos de
exercícios), S (para simbólico), A (para acoplagem) e R (para
regras) com base nas etapas de desenvolvimento do jogo, segundo a
teoria psicogenética de Piaget sobre a formação do símbolo na
criança.
Faces das práticas inovadoras: da creche aos anos iniciais da alfabetização
14
Elaine Cristina Feijó e Kelly Cristina Ducatti-Silva chamam
a atenção para a importância das atividades lúdicas na construção do
conceito numérico. O jogo em seu aspecto lúdico, segundo o estudo,
favorece a aprendizagem do aluno da educação infantil em relação
aos conceitos da matemática elementar, alicerçados na capacidade
de abstração e autonomia do sujeito que aprende.
Marta de Castro Alves Corrêa e Antonio Francisco
Marques argumentam, apoiados em Cambi, que “é na idade pré-
escolar que se desenvolve o germe da personalidade humana”,
quando a criança absorve valores importantes que a guiarão por toda
vida. Pesquisa com professoras revela que a dimensão moral é vital
para a formação dos estudantes, para a definição de projetos
coletivos de vida e para a atualização pedagógica de professores.
Carmem Lígia Coutinho Santos Faria e Maria da Glória
Minguili focam a séria questão da alfabetização em função das
expectativas da professora e a aprendizagem dos alunos. Evidenciam
que nem sempre as professoras alfabetizadoras utilizam, na prática,
as teorias estudadas durante o curso de graduação. Trabalham de
forma tradicional sem levar em conta a realidade física, humana,
pedagógica e política da sala de aula. Idealizam o aluno e usam
estratégias repressivas na busca do aluno imaginário. Concluem
afirmando que a análise da realidade, reflexão sobre ela e
planejamento da ação podem ser uma saída para o trabalho dinâmico
da professora.
Vera Lúcia Messias Fialho Capellinni, Edson Alexandre de
Lima e Célia Regina F. Bortolozo tratam dos contos de fadas
articulado ao processo de alfabetização. Os autores afirmam que o
uso dos contos de fada na alfabetização corresponde ao uso de
Apresentação
15
recurso expressivo importante e, ao mesmo tempo, necessário ao
desenvolvimento do ser humano e elemento facilitador no processo
de aquisição da leitura e da escrita.
Ana Maria Lombardi Daibem e Mariana Vaitiekunas
Pizarro abordam a relação entre as histórias em quadrinho (HQ) e o
educador. Além de veículo eficiente de comunicação a HQ é,
também, recurso a serviço da educação. A questão central é
“permitir um olhar pedagógico” que permita a sua inserção no
espaço escolar, pois, em futuro não distante, a HQ será “sinônimo de
diversão, entretenimento e também educação”.
Eliana Marques Zanata e Enicéia Gonçalves Mendes
trabalham a história legal e real da educação do surdo na rede
estadual de ensino de São Paulo. Mostram como na última década as
políticas públicas dirigiram a atenção para o aluno com necessidades
especiais, objetivando incluí-lo ao sistema regular de ensino
mediante o acesso e permanência na escola.
Naiana Paula Bocardo e Thaís Cristina Rodrigues Tezani
procuram estratégias educacionais para o ensino de informática com
crianças cegas comparando dois softwares para deficientes visuais,
Dosvox e Virtual Vision. A intenção e apontar o meio apropriado
para trabalhar com esse segmento populacional que freqüenta a 1ª
série do ensino fundamental. A falta de acesso à tecnologia impede o
uso da informática na educação dos deficientes visuais. Dosvox e
Virtual Vision, sintetizadores de voz, permitem aos alunos de
necessidades especiais a oportunidade única de manuseio do
computador em condições favoráveis a sua aprendizagem, ademais,
a capacitação do professor para o trabalho com software específico
Faces das práticas inovadoras: da creche aos anos iniciais da alfabetização
16
em sala de aula favorece, e muito, o processo de inclusão digital no
âmbito escolar.
Daniela Melaré Vieira Barros e Wagner Antonio Junior
abordam a questão dos objetos de aprendizagem virtuais como
recursos potencializadores da ação pedagógica em sala de aula.
Resultados da pesquisa indicam que é possível e desejável a
construção de materiais didáticos com objetos de aprendizagem
virtuais na educação básica, embora a inserção deles na escola
pública seja tarefa difícil e problemática diante das condições
materiais e financeiras, tanto da escola como dos professores.
Como se nota o conteúdo desta publicação é variado e
contém quantidade enorme de informações que pode, quando bem
assimilada, redundar em ensino de qualidade intelectual e social.
Penso que seria este o desejo dos autores, os quais, palidamente,
tentei sintetizar nesta apresentação.
Por fim, posso afirmar que o Curso de Pedagogia da
UNESP/Bauru cumpre com esta publicação a função maior de
formação de professores para a educação infantil e primeiras séries
do ensino fundamental ao incentivar a produção científica de seus
alunos. Oxalá este trabalho coletivo seja seguido de muitos outros
que venham a atestar o empenho de alunos e professores no
desenvolvimento da cultura pedagógica tão necessária ao ensino dos
conteúdos e à aprendizagem significativa dos alunos.
Bauru, 29 de outubro de 2007.
Professor Doutor José Misael Ferreira do Vale
Apresentação
17
FACE 1
PRÁTICAS PEDAGÓGICAS DA CRECHE AOS ANOS
INICIAIS DA ALFABETIZAÇÃO
Daniela Melaré Vieira Barros
As práticas de educação no século XXI se tornaram alvo de
análises, experiências e reflexões, originando várias modalidades de
pesquisa, tais como a pesquisa-ação. Essa metodologia de
investigação possibilitou à prática docente formas de atualização e
melhoria dos processos educativos. Partindo dessas reflexões, os
trabalhos aqui apresentados têm percepções críticas de experiências
e ações diretamente das práticas pedagógicas desenvolvidas por
docentes com experiência e docentes iniciais. Essas experiências nos
auxiliam a compreender os olhares da prática e os olhares dos
profissionais recém formados, que fazem a análise direta da prática
com os conhecimentos adquiridos na graduação.
Esses olhares são críticos e fundamentados pela literatura
acadêmica. Não são somente experiências em si, mas ações que
Práticas pedagógicas da creche aos anos iniciais da alfabetização
18
podem constituir eixos para estratégias em diferentes séries e áreas
de atuação.
Para tanto, temos textos que contemplam temas como: as
creches, os brinquedos e as estratégias educativas.
Esses textos são abordagens inovadoras de temas que são
comuns, mas ainda pouco explorados pelas práticas educativas. São
temas contemplados nas áreas de metodologia e recursos didáticos,
mas que não foram ainda observados em sua essência para o
processo de ensino e aprendizagem. O que se pretende com estes
temas é ampliar as formas transdisciplinares de ver os recursos
educativos na atualidade, formas que podem ser inusitadas, mas
podem revolucionar idéias e ampliar qualitativamente os
procedimentos para desvendar os mistérios da aprendizagem.
Maria do Carmo Monteiro Kobayashi
19
UM INÍCIO DE CONVERSA: OS JOGOS E AS BRINCADEIRAS
NA EDUCAÇÃO INFANTIL
Maria do Carmo Monteiro Kobayashi
Agora eu era o rei [...] Era bedel era também juiz,
E pela minha lei a gente era obrigado a ser feliz [...] [...] Não, não fuja não, finja que agora eu era o seu brinquedo
o seu bicho preferido [...] No tempo da maldade acho que gente ainda não tinha nascido.
Chico Buarque e Sivuca
Muitos de nós ainda pudemos desfrutar do prazer de brincar
na rua, no quintal, nas praças, nos terrenos vazios, enfim, em lugares
escolhidos por quem deles se utilizava, assim determinado pelas
próprias crianças. No entanto, essa realidade mudou. A necessidade
do trabalho feminino fez com que a família reivindicasse instituições
educativas para deixar seus filhos, e as transformações no mundo do
trabalho com a exclusão dos que não atendem ao perfil necessário
que é almejado a um profissional, e uma sucessão de problemas
políticos, sociais e econômicos, tem levado a uma onda de violência
que assola nossas cidades inviabilizando esses espaços de liberdade
Um início de conversa: os jogos e as brincadeiras na educação infantil
20
destinados ao brincar, que cada vez mais se constituem em
ambientes artificialmente criados e destinados às crianças, sendo
verdadeiras “ilhas” para que os pais ou responsáveis deixem-nas
enquanto realizam várias atividades.
Hoje em shopping centers, supermercados e lojas, são
reservadas áreas para as crianças, para que seus responsáveis possam
gozar de tranqüilidade e segurança durante suas compras. Muitas
vezes, esses espaços são construídos sem conhecimentos sobre a
criança, sua natureza e suas necessidades; algumas mesinhas e
cadeiras com jogos de armar, outros com sofás e tapetes e vídeos de
Walt Disney ou da Xuxa, e, em sua maioria, com pessoas pouco
habilitadas para tão importante função. Mas também, para a criança
brincar, jogar ou “ver um filminho” não precisa muito. Brincar é
próprio da criança. Mas será mesmo? Não. Segundo os estudos de
Brougère (2001, p. 98), aprende-se a brincar; as brincadeiras, os
jogos e os brinquedos nos mostram o perfil da nossa sociedade, mas
como? “A criança entra progressivamente na brincadeira do adulto,
de quem ela é inicialmente o brinquedo, o espectador ativo e, depois,
o real parceiro”.
Assim como a crença de que o brincar é espontâneo e
natural da criança, é comum ouvirmos que a escola de educação
infantil é para brincar, mas o brincar precisa ser mais estudado.
Iremos fazer uma retrospectiva histórica sobre o brincar, os teóricos
e as teorias do brincar e como esta atividade pode ser utilizada na
área da Matemática na educação infantil.
Maria do Carmo Monteiro Kobayashi
21
BRINCAR, BRINCADEIRA, BRINQUEDO E JOGOS
A infância, “período do crescimento, no ser humano, que
vai do nascimento até a puberdade; meninice, puerícia”
(FERREIRA, 1995, p. 360), é marcada por novos olhares sobre as
particularidades desses seres a partir do século 18. A obra Emílio,
de Rousseau, mostra-nos como deve ser a educação do nascimento à
maturidade. Brougère (2003), ao buscar os vínculos entre jogo e
representação da criança faz uma análise mostrando como o conceito
de criança e o jogo evoluem e como o jogo passa a ser um recurso
educativo.
Os estudos sobre a criança e a infância têm em Philipe
Ariès (1981, p.8) um referencial que não pode ser ignorado. Sua
obra realiza um estudo sobre a evolução do sentimento de infância
que vai da sociedade tradicional à sociedade industrial para mostrar
como esse sentimento foi alterado nesse período: do anonimato à
conquista de um lugar de destaque na sociedade, do sentimento de
“paparicação”, como o autor denomina, ao centro da preocupação da
família, da sociedade e da mídia:
[...] reservado à criancinha em seus primeiros anos de vida, enquanto ela ainda era uma coisinha engraçadinha. As pessoas se divertiam com a criança pequena como um animalzinho, um macaquinho impudico. Se ela morresse então, como muitas vezes acontecia, alguns podiam ficar desolados, mas a regra geral era não fazer muito caso, pois outra criança logo a substituía. A criança não chegava a sair de uma espécie de anonimato.
Segundo Áries, a partir do século 17 ocorre uma alteração
considerável em função de duas abordagens distintas na primeira; a
aprendizagem deixa de ocorrer no seio da família e da sociedade e a
Um início de conversa: os jogos e as brincadeiras na educação infantil
22
criança deixa o mundo adulto para permanecer “resguardada” na
escola, que “substitui a aprendizagem como meio de educação”. Mas
essa mudança não seria possível sem o aval e a cumplicidade
sentimental da família, sendo esta a segunda abordagem. A família
passa a ser um lugar de afeição entre os cônjuges e entre os pais e
filhos, assim, a escola passa a ter um papel decisivo na sociedade,
como nos dias atuais, em que nossos horários são em função da
escolarização dos nossos filhos. A rotina familiar gira, normalmente,
em função da escola e a educação escolar passa a ser uma área de
pesquisas que arrebanham profissionais das mais diversas
especialidades, tanto que o brincar passa a ser não mais algo
assistemático, ao acaso, e se torna objeto de estudo para se
transformar em recurso de aprendizagem.
Mas a história da infância no Brasil nos remete a um quadro
um tanto quanto diferente da visão eurocêntrica descrita por Ariès,
posto que, quando os portugueses aqui chegaram, nossas crianças
tinham uma vida muito diferente das crianças européias; porém esse
não é o nosso tema, mas para pontuarmos que podemos estudar a
história da criança pelos seus brinquedos e jogos, o que, aliás, seria
um belíssimo trabalho se fôssemos tomar as brincadeiras das nossas
crianças no período do Descobrimento e da colonização; poderíamos
até imaginar que seria tudo o que Rousseau pregou em sua educação
negativa.
VAMOS JOGAR? VEM BRINCAR COMIGO?
Esse convite é muito comum, brincar é próprio da criança,
usamos no dia-a-dia a palavra jogo em várias situações: jogo do
Maria do Carmo Monteiro Kobayashi
23
mercado, jogo financeiro, a vida é um jogo, jogo de interesses, jogo
de chaves, jogo de cartas... Em relação ao brinquedo e às
brincadeiras, a utilização é mais pejorativa – “não foi sério, foi só de
brincadeira”, mas o que dizem os estudiosos do lúdico?
Usamos essa terminologia – brincar, brinquedo, jogar e
jogo indiscriminadamente, num jogo de palavras sem sabermos
quais são as similaridades e diferenças entre brincar, brincadeira,
brinquedo, jogar e jogos. O que essas palavras têm em comum?
Tomaremos o Dicionário Aurélio para iniciarmos uma conversa
sobre o lúdico e suas possibilidades educativas.
Brincar: “1. Divertir-se infantilmente; entreter-se em jogos de criança. 2. Divertir-se, recrear-se, entreter-se, distrair-se, folgar. 3. Agitar-se alegremente; foliar, saltar, pular, dançar. [...]” (FERREIRA, 1995, p. 105).
De origem latina, brincar, como aponta Fortuna (2004, p.
49), resultou das transformações que ocorreram da palavra vinculum,
vinclu, vincru e vrinco; podemos constatar que de vínculo – laço
passa por um enfeite, uma jóia que adorna as orelhas femininas até
chegar ao brincar e ao brinquedo. “[...] Na mitologia grega, Brincos
eram pequenos deuses que ficavam voando em torno de Vênus,
alegrando-a e enfeitando-a”.
• Brincadeira “Ato ou efeito de brincar; brinco. 2.
Divertimento, sobretudo entre crianças; brinquedo, jogo.”
• Brinquedo “1. Objeto que serve para as crianças
brincarem. 2. Jogo [1] de crianças; brincadeira. 3.
Divertimento, passatempo, brincadeira.”
Um início de conversa: os jogos e as brincadeiras na educação infantil
24
• Jogar “1. Entregar-se ao, ou tomar parte no jogo de;
executar as diversas combinações de [um jogo]. 2.
aventurar ou arriscar ao jogo; perder no jogo. 3. Manejar
com destreza ou habilmente. 4. Pôr em risco; arriscar [...]
14. Entregar-se ao jogo; ter hábito ou vício do jogo”.
Nesse verbete, encontramos dezessete possíveis
definições sobre jogar, mas como podemos verificar a
maior parte delas tem um aspecto pouco recomendável
(FERREIRA, 1995, p. 377).
• Jogo “1. Atividade física ou mental organizada por um
sistema de regras que definem a perda ou o ganho.
2. Brinquedo, passatempo, divertimento [...]”. De origem
latina, jocus significa brinquedo.
Kishimoto (2001, p. 18) mostra a diferença entre o
brinquedo e o jogo. O primeiro supõe uma relação íntima com a
criança, pois é ela quem lhe atribui o significado, o que lhe dá
liberdade para criar no seu uso. Um cabo de vassoura vira um
cavalo; um enrolado de pano vira um bebê; ao passo que o jogo
possui regras que lhes são definidas pela própria estrutura do objeto
com suas regras. Segundo essa autora, “um dos objetivos do
brinquedo é dar à criança um substituto dos objetos reais, para que
possa manipulá-lo”.
O LÚDICO NA EDUCAÇÃO
Os estudos sobre o lúdico e a educação criam grande
interesse, o que pode ser constatado com a quantidade de
publicações sobre o tema, mas essa preocupação não é algo recente.
Maria do Carmo Monteiro Kobayashi
25
Se brincar é próprio da criança e se o ser humano necessariamente
passa por essa etapa da vida, ele brinca, e o brincar, conforme
Kishimoto (2002), aparece no diálogo As Leis, de Platão, o
“aprender brincando”, como uma indicação pedagógica opondo-se à
violência e à repressão. Seu discípulo Aristóteles nos fala em Ética a
Nicômaco sobre a recreação como descanso do espírito.
Falar de jogos e brincadeiras na educação infantil não é
algo recente. Friedrich Froebel (1782-1852) foi o primeiro a se
preocupar com valor pedagógico do jogo. Alemão, nascido na
floresta da Turíngia, em uma pequena aldeia, órfão de mãe muito
pequeno, teve no contato com a natureza a primeira escola e as
influências recebidas dos ideais educacionais de Pestalozzi podem
ser vistas em sua obra, mas o criador dos kindergarten nos legou
também os brinquedos que até hoje são pouco conhecidos pelos
professores – os dons.
[...] Froebel delineia a metodologia dos dons e ocupações, dos brinquedos e jogos, propondo: 1 dons, materiais como bola, cubo, varetas, anéis etc., que permitem a realização de atividades denominadas ocupações, sob a orientação da jardineira, 2 brinquedos e jogos, atividades simbólicas livres, acompanhadas de música e movimentos corporais, destinados a liberar a criança para a expressão das relações que estabelece sobre objetos e situações do seu cotidiano (KISHIMOTO, 2002, p. 64).
Por que a criança brinca? As explicações do brincar da
criança, segundo Nelson Rosamilha (1979, p. 49), podem ser
sintetizadas em seis tendências:
• Aristóteles, Claparède, Freud e Erikson: as crianças
brincam para descarregar suas emoções.
Um início de conversa: os jogos e as brincadeiras na educação infantil
26
• Spencer: as crianças brincam por terem excesso de
energia; para Groos, brincam porque é um instinto que as
leva à preparação para a vida futura.
• Stanley Hall: o brincar é fruto da hereditariedade e do
instinto que as leva a recapitular as atividades ancestrais
importantes para o indivíduo.
• Hurlock e Sutton-Smith: o brincar é agradável à criança;
a criança joga por seu caráter hedônico [pelo prazer].
• Piaget: “o brincar é um aspecto de todo o
comportamento. Ele está implícito na assimilação que o
indivíduo realiza em relação à realidade”.
Duas obras de Piaget nos mostram o desenvolvimento do
jogo infantil: O Juízo moral na criança e A formação do símbolo na
criança. O primeiro, como o próprio título sugere, é referente aos
julgamentos morais das crianças, suas atitudes em relação às regras e
à justiça ao comportamento ético e Piaget usa o jogo de bolas de
gude para saber como as crianças se submetem e aprendem as
regras. A segunda faz um estudo detido e minucioso sobre a
passagem da inteligência prática ou sensório-motora2 à inteligência
representativa e nos mostra as etapas de desenvolvimento do jogo:
do exercício, jogo simbólico ou faz-de-conta, os jogos de regras e de
construção:
2 Para Piaget, o desenvolvimento da inteligência ocorre em fases, a primeira sensório-motora, “termo que caracteriza o desenvolvimento da criança do nascimento até a idade de dois anos aproximadamente [...], pode ser descrita como desprovida de pensamento ou representação, sem linguagem e sem conceito. [...]. Mas essa inteligência, cujo desenvolvimento se processa de forma extraordinariamente rápida, elabora, nesse nível, as subestruturas cognitivas da inteligência ulterior. Isso constitui prova bastante a sua importância no desenvolvimento genético” (DOLLE, 1995, p.59).
Maria do Carmo Monteiro Kobayashi
27
Existem três categorias principais de jogo e uma quarta que faz a transição entre o jogo simbólico e as atividades não lúdicas ou adaptações “sérias”. A forma primitiva do jogo, a única representada no nível sensório-motor, mas que se conserva em parte com o passar do tempo é o “jogo do puro exercício”, [...] que consiste em repetir por prazer das atividades adquiridas. [...]. Depois vem o jogo simbólico, cujas características se viram, e que encontra seu apogeu entre os 2-3 e 5-6 anos. Em terceiro lugar, aparecem os jogos de regras (bolas de gude, amarelinha, etc.) que se transmitem socialmente de criança para criança e aumentam, portanto, de importância com o progresso da vida social da criança. (PIAGET; INHELDER, 1994, p. 52-53).
As categorias dos jogos apontadas por Piaget nos mostram
inicialmente que o período sensório-motor não comporta ainda
nenhum simbolismo, a criança repete por prazer as atividades
realizadas ao acaso, como por exemplo, ao tocar um objeto
pendurado e balançá-lo e depois voltar a repetir o mesmo ato, o que
não é um jogo propriamente dito, mas a repetição pelo prazer.
O jogo simbólico, que sucede ao jogo do exercício, tem seu apogeu no período que coincide com a educação infantil. A criança, como mostra Piaget, obrigada a se adaptar ao mundo adulto tem no jogo do faz-de-conta um instrumento “indispensável ao seu equilíbrio afetivo e intelectual” (1994, p. 51) e é no jogo simbólico que a criança pode transformar-se no que quer. É o espaço privilegiado em que ela aprende a lidar com as funções e relações sociais; brincando, a criança exterioriza seus sentimentos e pensamentos.
Paulatinamente, o jogo simbólico vai cedendo lugar ao jogo
de regras, pois, para que a criança possa pertencer a um grupo social,
é preciso que se submeta às regras do grupo e os jogos e as
brincadeiras irão impor situações em que deverá haver um contrato
entre os seus participantes. Assim, por volta dos sete anos, as
Um início de conversa: os jogos e as brincadeiras na educação infantil
28
crianças passam a brincar e participar dos jogos que requerem a
compreensão de regras; estes são transmitidos socialmente no
convívio com o grupo em que as regras serão construídas e,
portanto, passam a ter um papel importante no convívio social [jogos
de amarelinha, de bafo, de pião, de gude etc.].
Contemporâneo de Piaget, Vygotsky, vai falar sobre o
brinquedo e sua relação com o aprendizado. Segundo Oliveira
(1993, p.66): “A brincadeira de ‘faz-de-conta’, estudada por
Vygotsky, corresponde ao jogo simbólico de Piaget”. Para ele,
[...] no brinquedo, a criança segue o caminho do menor esforço – ela faz o que mais gosta de fazer, porque o brinquedo está unido ao prazer – e, ao mesmo tempo, aprende a seguir os caminhos mais difíceis, subordinado-se a regras e, por conseguinte, renunciando ao que ela quer, uma vez que a sujeição a regras e a renuncia à ação impulsiva constitui o caminho para o prazer no brinquedo. (VYGOTSKY, 1994, p.130).
Ao brincar, a criança tenta ser o que ela pensa que deveria
ser o comportamento esperado ou o papel que deveria assumir; as
crianças, ao brincarem, tentam encarnar corretamente os papéis que
assumem – o que passa despercebido no dia-a-dia, na situação do
brinquedo, torna-se regra de comportamento; “a situação imaginária
contém regras ocultas” (VYGOTSKY, 1994, p.126) que vai criar
uma zona de desenvolvimento proximal3.
3 “[...] é a distância entre o nível de desenvolvimento real, que se costuma determinar através da solução independente de problemas, e o nível de desenvolvimento potencial, determinado através da solução de problemas sob a orientação de um adulto ou em colaboração de um companheiro mais capaz” (VYGOTSKY, 1994, p.112).
Maria do Carmo Monteiro Kobayashi
29
BRINCAR E A EDUCAÇÃO ESCOLAR
A criança hoje tem os mais diversos tipos de brinquedos,
dos objetos simples que ela elege e atribui funções, aos brinquedos
eletrônicos. Mas os brinquedos produzidos industrialmente têm ao
seu favor a força da mídia, o apelo aos dias eleitos para se
presentear: dia da criança, Natal, aniversário, e outros contratos
realizados entre pais e filhos. Para Oliveira (1986, p. 59): “O
brinquedo produzido na sociedade capitalista procura seduzir tanto
os filhos quanto os pais. Os primeiros para sentirem-se atraídos; os
segundos, para que adquiram os brinquedos a seus filhos.”
Mas como bem no mostra Ariès (1981), a família moderna,
que limitou sua prole para oferecer condições ideais de cuidado, tem
exagerado algumas vezes na dose do amor, do proteger, do zelar e
do agradar incessantemente as suas crianças, oferecendo-lhes
“desmedidamente” as “coisas”. Em artigo recentemente publicado
em Folha de São Paulo, no Caderno Mais, intitulado “De olhos bem
fechados”, a superproteção dos pais e responsáveis que suprimem a
possibilidade de erro das crianças e dos jovens leva à formação de
indivíduos inseguros e em estado de dependência permanente. “Na
estufa em que se transformou o processo de criação das crianças, o
brincar é algo que praticamente desapareceu. Mais de 40 mil escolas
americanas não tem mais recreio e o pouco de tempo que resta para
brincar foi corrompido”.
Segundo a escritora do artigo, Hana E. Marano, editora da
Psychology Today, o brincar ajuda a criança a se controlar e a
interagir com outras crianças. Quando se “rouba a infância (e a
brincadeira) de alguém, o resultado em última análise, é que a
Um início de conversa: os jogos e as brincadeiras na educação infantil
30
infância se prolonga para sempre”. Para a autora, quando se remove
a brincadeira da fase inicial do desenvolvimento, ela surge no final,
prolongando-a mais do que o desejado. Assim, temos visto a
adolescência se prolongar cada vez mais.
O brincar como vimos, em Vygostsky, cria situações em
que as crianças podem e devem experimentar situações futuras. “É
brincando que aprendemos a dar e a tomar, que forma o ritmo
fundamental de todos os relacionamentos”.
SALA DE AULA É LUGAR DE BRINCAR?
O título do artigo de Fortuna (2000) por si só é bem
sugestivo, mas o que impede o educador de usar o brincar nas ações
educacionais? E se a sala de aula for lugar de brincar, qual o seu
papel? Nesse ponto, Freud sabiamente afirmava que o educador
deve se reconciliar com a criança que há dentro dele e que ele foi,
não para voltar a ser criança, mas para entender que para se querer
aprender é necessário que algo nos mova para tanto e o brincar pode
fazer a criança querer aprender. Como afirma Cunha (2000, p. 24), a
Psicanálise nos mostra que a aprendizagem não está restrita aos
aspectos técnico-metodológicos, mas muito mais aos aspectos
interpessoais.
Uma aula lúdica é uma aula que se assemelha ao brincar – atividade livre, criativa, imprevisível, capaz de absorver a pessoa que brinca, não centrada na produtividade. Como “brincar”, na concepção de Winnicoti, “é um modo particular de viver”, é preciso aprender a brincar para ver com prazer e, por extensão aprender com prazer. Assim como um jogo é tanto melhor quanto maior for o potencial instigador e seu espaço para a ação, a aula lúdica é aquela que desafia
Maria do Carmo Monteiro Kobayashi
31
o aluno e o professor e situa-os como sujeitos do processo pedagógico (FORTUNA, 2000, p. 161).
O jogo e a brincadeira passam a ser então um espaço
privilegiado de confiança em que o professor é autorizado pelo
aluno a saber algo a seu respeito, a conhecê-lo e em que ele pode
identificar as dificuldades dos seus alunos na vida intelectual, social
e afetiva para auxiliá-los, mas diferente da postura diretiva, em que o
professor controla as variáveis da aprendizagem e escolhe o que, e
como fazer; ou da postura espontaneísta, que deixa o jogo correr
livremente; o professor deve posicionar-se com respeito ao rumo que
vai tomar a atividade, considerando o fator acaso no desenrolar do
jogo.
Para que o brincar e o jogar se tornem ações aliadas ao
processo de aprendizagem e, portanto, seja a sala de aula também o
seu lugar, os professores precisam saber quais os objetivos das
propostas de trabalho, quer sejam advindas dos alunos ou propostas
por ele, para ter condição de julgar e saber como utilizar o lúdico no
processo ensino-aprendizado.
Para que possamos nos valer do jogo e do brinquedo – das
atividades lúdicas não só como instrumento de entretenimento
infantil, mas como um valioso recurso pedagógico, é preciso que
conheçamos formas de agrupá-los, pois somente saberemos para
quem, como, quando e onde utilizá-los se soubermos agrupá-los por
diferentes quesitos que servirão de parâmetros para sua utilização.
Várias são as classificações que podem ser realizadas, mas usaremos
como referência as classificações de André Michelet e de Denise
Garon (FRIEDMANN, 1998).
Um início de conversa: os jogos e as brincadeiras na educação infantil
32
Por que classificar os jogos e brinquedos? A classificação
vai auxiliar a mantê-los organizados de forma funcional. Quando
conhecemos cada brinquedo, poderemos fugir às “tentações” de
escolhermos um brinquedo para nós e nos centrarmos nossas
atenções a quem eles se destinam, num mundo onde os fabricantes e
vendedores estão à espreita no sentido de convencer sobre a sua
última criação classificar o objeto lúdico é primordial para os
educadores e pais.
Os jogos e as brincadeiras podem ser classificados de várias
maneiras, segundo as características etnológicas ou sociológicas, em
função do papel que lhes é atribuído nas diversas sociedades;
filogenéticas, quando analisamos sua evolução no decorrer da
humanidade; psicológicas, em função do desenvolvimento da
criança; e pedagógicas, quando consideramos os aspectos relativos
aos métodos educativos.
André Michelet (FRIEDMANN, 1998) classifica os
brinquedos e jogos segundo os critérios do ICCP [Internacional
Council for Chilgren’s Play], que são relativos a quatro qualidades:
valor funcional, ou seja, sua adaptação em relação ao uso que a
criança vai fazer dele; valor experimental, o que a criança vai fazer e
aprender com ele; valor de estruturação, que é relativo ao “conteúdo
simbólico” que, para Michelet, concerne à elaboração da área afetiva
e, finalmente, o valor de relação que está centrada na possibilidade
de seu usuário estabelecer relações com crianças e adultos, propondo
o aprendizado de regras. “Cada brinquedo encerra estas quatro
qualidades num maior ou menor nível; geralmente, uma delas é
dominante e esta será utilizada para a classificação básica”
(FRIEDMANN, 1998, p. 163).
Maria do Carmo Monteiro Kobayashi
33
A classificação e catalogação de material lúdico de acordo
com o Sistema ESAR, criado por Denise Garon, em Quebec, no
Canadá, entre 1980 e 1985, passando depois por novas versões
(GARON, 2002), baseia-se nas grandes etapas do desenvolvimento
da criança e nas principais características do brinquedo.
Apresentando de forma simplificada, esta abordagem agrupa os
termos mais comuns no domínio da psicologia e os apresenta em
grandes categorias correspondentes às principais formas da atividade
lúdica. E – exercício; S – simbólico; A – acoplagem; R – regras.
Como podemos verificar, esse sistema é baseado na teoria de Piaget
e nas etapas de desenvolvimento do jogo apresentados na obra A
formação do símbolo na criança.
Os jogos e brinquedos classificados como E – exercício são
aqueles sensoriais ou motores em que a criança repete pelo prazer de
exercitar a ação que lhe produziu resultados interessantes, agitar um
chocalho, pular corda etc. Os simbólicos estão ligados aos
brinquedos que possibilitam atribuir novos significados aos objetos,
aos personagens, aos acontecimentos, como quando as crianças
brincam com bonecas, com personagens de seriados; montam
estruturas cuja imaginação flui e elas podem criar situações reais no
mundo do faz-de-conta. Os de acoplagem são relativos aos
brinquedos de armar, tais como Lego, que consistem em combinar,
construir, montar com vários elementos tendo em vista um objetivo,
a construção de um avião, por exemplo. Finalmente, os de R –
regras, podem ser subdivididos em regras simples e complexas. São
aqueles que comportam as regras relativas às ações, aos objetos, às
estratégias para que se desenvolva o brincar ou jogar; os de
estratégias simples e as complexas que envolvem a combinação e
Um início de conversa: os jogos e as brincadeiras na educação infantil
34
submissão às regras que têm várias implicações. Aqui, podemos
exemplificar com os jogos de múltiplas estratégias como o War,
Banco imobiliário e RPG4, voltados aos maiores, que já entendem e
podem jogar em grupo.
Não vamos mencionar os jogos eletrônicos tão em moda,
este é um outro assunto que daremos continuidade no estudo dos
jogos e brinquedos futuramente.
Como tão sabiamente nos fala Drumond: “Brincar com a
criança não é perder tempo, é ganhá-lo; se é triste ver meninos sem
escola, mais triste ainda é vê-los sentados enfileirados, em salas sem
ar, com exercícios estéreis, sem valor para a formação do homem”.
Mas como afirmamos no início, esse é um começo de
conversa necessário para que se conheça a possibilidade do jogar e
do brincar na Educação, muito mais temos a aprender sobre o
brincar da criança, pois, como elas, ainda estamos na infância do
conhecimento sobre os processos de aprendizagem.
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ABERASTURY, A. A criança e seus jogos. Porto Alegre: ARTMED, 1992.
ARIÈS, P. A história social da criança e da família. Rio de Janeiro: Editora Guanabara, 1981.
4 RPG é a sigla de Role Playing Game, o que significa “Jogo de Interpretação de Papéis”. É um jogo surgiu por volta de 1974, nos EUA, baseado em jogos de estratégia e literatura fantástica, e rapidamente ganhou vários adeptos pelo mundo todo.
Maria do Carmo Monteiro Kobayashi
35
BROUGÈRE, G. Jogo e educação. Porto Alegre: Artes Médicas, 2003.
______ . Brinquedo e cultura. São Paulo: Cortez, 2001.
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VYGOTSKY, S. A formação social da mente. São Paulo: Martins Fontes, 1994.
Educação infantil: o jogo na construção do conceito numérico
36
EDUCAÇÃO INFANTIL: O JOGO NA CONSTRUÇÃO DO
CONCEITO NUMÉRICO
Elaine Cristina Feijó
Kelly Cristina Ducatti-Silva
“Aprender é a única coisa que a mente nunca se cansa,
nunca tem medo e nunca se arrepende”.
Leonardo da Vinci
RESUMO
Trabalhar o conceito de número desde a Educação Infantil significa estar atento às mudanças que ocorrem no meio social em que vivemos atualmente. Desta forma, iniciar o trabalho de numeralização das crianças também contribui para um melhor processo de abstração e autonomia, que elas passam a adquirir desde os anos iniciais, favorecendo seu desenvolvimento lógico e cognitivo. Este estudo qualitativo pretendeu investigar metodologias que favorecem o trabalho do professor com as crianças enquanto colaborador no processo de desenvolvimento numérico. Os resultados da pesquisa mostram que o trabalho do professor de Educação Infantil deve estar integrado às atividades voltadas para o desenvolvimento do lúdico com a criança, uma vez que, trabalhando com ela jogos que estimulem o seu desenvolvimento e, ao mesmo tempo, lhes dêem prazer, favorece não somente o desenvolvimento lógico-matemático da criança, mas também de todo seu aspecto cognitivo, biológico, sociológico e afetivo, possibilitando a aquisição de habilidades e capacidades, reveladas como essenciais para o desenvolvimento pleno do indivíduo, aprendiz.
PALAVRAS-CHAVE: matemática; jogos; educação infantil.
Elaine Cristina Feijó
Kelly Cristina Ducatti-Silva
37
INTRODUÇÃO
Os conteúdos da Matemática se fazem importantes no
cotidiano escolar desde a mais tenra idade, ou seja, já no percurso da
criança inserida na Educação Infantil.
Sendo um dos componentes curriculares importantes para
nossa vida, a preocupação e motivação que impulsionaram este
estudo partiu da forma como a Matemática é desenvolvida [de
maneira exaustiva] na maioria dos espaços escolares. Observou-se
que as metodologias adotadas para o ensino de Matemática, muitas
vezes, se resumem à resolução de problemas e nas famosas
“continhas”. Quer-se, com esse recorte, resgatar os aspectos
positivos no ensino da Matemática. Em se tratando de Educação
Infantil, vale ressaltar a importância dos trabalhos lúdicos, que além
de proporcionarem momentos de prazer às crianças nesta faixa
etária, também estimulam seu desenvolvimento. Utilizando-se do
exemplo de jogos, vemos que ao jogar, várias estruturas internas são
acionadas: a memória, a atenção, o contexto social e afetivo, o
processo de resolução de problemas e as primeiras planificações
geométricas.
E para afirmar a importância desse trabalho, vemos que
trabalhar o conceito de número com as crianças na Educação Infantil
significa estar atento às mudanças submetidas à sociedade pós-
moderna. Vivemos tempos cujo predomínio da tecnologia exige
cada vez mais diferentes competências dos sujeitos e enfatiza a
tomada de consciência para o exercício da cidadania.
Educação infantil: o jogo na construção do conceito numérico
38
Nesse contexto, é fundamental iniciar, já no cenário
infantil, a familiarização da criança com o “mundo” numérico e com
a construção de conceitos matemáticos.
De acordo com estudos de Nunes e Bryant (1997), o
conceito de “ser numeralizado” remete a idéia de:
ser capaz de pensar sobre e discutir relações numéricas e espaciais utilizando as convenções (ou seja, sistemas de numeração e medida, terminologia como volume de área, ferramentas como calculadores e transferidores, etc) da nossa própria cultura (NUNES; BRYANT, 1997, p.19).
Diante deste saber, se faz necessária uma reflexão particular
do professor, à medida que este desempenha papel nuclear no
processo de formação do sujeito-cidadão. Valorizar o ensino do
conceito de número parece ser um dos conceitos fundamentais para
instrumentalizar as crianças no processo de aquisição de um
conteúdo que auxilia na forma do pensar, do compreender, de
simbolizar as relações numéricas.
De acordo com Moro (2004), uma das primeiras idéias de
Jean Piaget foi que os conceitos numéricos mais elementares surgem
de toda uma complicada e rica atividade da inteligência da criança
em suas relações interativas com seu meio-ambiente. As relações ou
idéias que ela, desde pequena, pode retirar de suas ações sobre as
coisas do mundo real; por exemplo, quando conta uma coleção de
coisas quaisquer, quando compara coleções nos termos
bastante/pouco, mais/menos.
Para garantir o desenvolvimento autônomo da criança, é
necessário um estudo mais aprofundado sobre o caminho que ela
percorre para chegar ao conceito de número, partindo das
Elaine Cristina Feijó
Kelly Cristina Ducatti-Silva
39
quantidades e designando-lhes símbolos. É importante que o
conceito de número seja trabalhado pelo professor considerando os
mecanismos desse processo cognitivo infantil. A elaboração da
relação quantidade-numeral, os signos operatórios, as representações
gráficas do tipo pictóricas, a oralidade são conceitos que deverão ser
construídos e entendidos pelas crianças de forma mais significativa,
podendo levá-las a uma aprendizagem mais satisfatória e, sobretudo,
permitindo aguçar cada vez mais a curiosidade da criança que se
lança a um novo conhecimento.
Tendo em vista os Referenciais Curriculares Nacionais
(BRASIL, 1998), a aprendizagem significativa implica sempre em
alguma ousadia: diante de um problema proposto, o aluno precisa
elaborar hipóteses e experimentá-las. Fatores e processos afetivos,
motivacionais e relacionais são importantes nesse momento. Os
conhecimentos gerados na história pessoal educativa têm um papel
determinante na expectativa que o aluno tem da escola, do professor
e de si mesmo, nas suas motivações e interesses, em seu
autoconceito e sua auto-estima. Assim como significados
construídos pelo aluno estão destinados a serem substituídos por
outros no transcurso das atividades. Diante disso, o jogo tem um
papel importante nesses aspectos, pois irá proporcionar a criança o
aprendizado através do concreto, viabilizando assim com que ela
realize a própria construção do seu conhecimento.
O CONCEITO DE NÚMERO
As crianças estão cada vez mais participando da vida de
seus pais e o mundo em que vivem é hoje extremamente
Educação infantil: o jogo na construção do conceito numérico
40
“numeralizado”, conforme afirmações de Tancredi (2006). O
número, segundo a autora, é uma forma de expressão que está
presente na sociedade e, independente da classe social, as crianças
estão em contato com ele e vão construindo esse conceito dia-a-dia,
através da imitação, do levantamento e do teste de hipóteses.
Moro (2004) nos relata que instigar a criança a contar e
deixá-la contar conforme sua capacidade é algo indispensável para
que ela tenha progressos com os números. Somente assim ela estará
construindo suas primeiras idéias quantitativas: de que o mundo real
pode ser quantificado, pode ser medido, avaliado numericamente.
O conceito de ser “numeralizado”, ou seja, estar
familiarizado, fazer uso das habilidades matemáticas e de ser
alfabetizado vem mudando significativamente na sociedade
contemporânea.
A CRIANÇA E A CONTAGEM
Figura 1: A representação das primeiras contagens feita pelas crianças
Fonte: TAXA-AMARO, 2004, p.30.
Elaine Cristina Feijó
Kelly Cristina Ducatti-Silva
41
Dessa forma, vale ressaltar que estamos cercados por um
ambiente de números e quantidades; e para funcionarmos de maneira
apropriada e eficiente nesse ambiente é necessário que sejamos
numeralizados. Tomamos como exemplo o caso de uma criança que
não foi alfabetizada. De acordo com Spinillo (2006), essa criança,
apesar de não dominar a leitura e a escrita, utiliza as convenções e
estruturas lingüísticas apropriadas a cada situação de uso,
conhecendo as funções e as práticas de uso da escrita. Desta forma,
pessoas pouco escolarizadas que não dominam a matemática escrita
[armar contas, usar algoritmos] são capazes de realizar cálculos
mentais complexos em atividades de compra e venda, nas ruas ou na
feira: passam o troco de forma apropriada, calculam o aumento dos
produtos que vendem ou o desconto que podem dar ao freguês.
Essas pessoas, apesar das limitações com a matemática escrita,
demonstram certo nível de numeralização.
Neste caso, ser numeralizado requer familiaridade com o
mundo dos números, pensar matematicamente em situações
diversas, empregando sistemas eficientes de representação e
compreendendo as regras lógicas que regem os conceitos
matemáticos inseridos nessas situações. Dessa forma, tornar-se
numeralizado, segundo Nunes e Bryant (1996), é algo que está
fortemente relacionado ao que a literatura tem denominado “sentido
de número”, ou seja, termo que requer uma análise teórica, mais do
que uma definição, visto que este termo refere-se a domínio
conceitual dos números e das quantidades, podendo ser considerado
um ambiente [no sentido metafórico] no qual as pessoas aprendem a
atuar.
Educação infantil: o jogo na construção do conceito numérico
42
Podemos considerar as idéias da autora Spinillo (2006):
O sentido de número pode ser entendido como uma habilidade cognitiva que permite que o indivíduo interaja de forma bem-sucedida com os vários recursos que o ambiente fornece, de maneira que se torne capaz de gerar soluções apropriadas para realizar as atividades do cotidiano que envolve a matemática (SPINILLO, 2006, p. 85).
Diante deste cenário, se faz necessária uma reflexão
particular do professor, à medida que este desempenha papel nuclear
no processo de formação do sujeito-cidadão, ou seja, o ensino do
conceito de número parece ser um dos conteúdos conceituais
fundamentais para instrumentalizar nossas crianças no processo de
aquisição de um conteúdo que auxilia na forma do pensar, do
compreender, do simbolizar as relações numéricas.
De acordo com estudos feitos por Rangel (1992), sendo a
matemática uma ciência hipotético-dedutiva, deve ser apresentada
dessa maneira desde as fases iniciais. Assim, professores que
oferecem um nível de abstração e formalização que está acima da
capacidade dos seus alunos dificultam o aprendizado, pois os
quadros lógicos de seus pensamentos não estão desenvolvidos o
suficiente. A saída encontrada pelos alunos é memorizar alguns
procedimentos que lhes permitem chegar aos resultados exigidos
pelo professor.
Segundo estudos feitos por Cerquetti-Aberkane e
Berdonneau (1997), é possível explorar muitas das situações vividas
em aula, utilizando-as como base para o aprendizado da Matemática;
contudo, não devemos ignorar a dificuldade de “matematizar” uma
situação concreta, ou seja, partir de um contexto material, extrair
através de simplificação, de abstração e de diversos outros processos
Elaine Cristina Feijó
Kelly Cristina Ducatti-Silva
43
intelectuais, um modelo matemático, que é uma estrutura abstrata,
passando a raciocinar dentro do modelo matemático, isto é, dentro
desta estrutura matemática.
Além dessas questões, destacamos o ritmo acelerado das
mudanças tecnológicas, o que nos leva a refletir quais seriam os
conteúdos de Matemática mais úteis aos alunos no futuro.
Deparamo-nos com uma questão de difícil resposta, porém,
podemos nos certificar de que estamos no caminho certo à medida
que preparamos as crianças para enfrentar situações novas com
criatividade e entusiasmo diante do desafio, em vez de ser apenas
instrumentalizadas com fórmulas e modelos-padrão para aplicar em
situações conhecidas e específicas.
Algumas propostas de trabalho para o ensino da
Matemática nos dias de hoje, como nos exemplifica Brito (2001),
estão relacionados aos conteúdos de interesse dos alunos e que se
tornam de importante papel para a aprendizagem matemática. Dentre
eles podemos destacar a “resolução de problemas”, que é uma
proposta mais atual e visa à construção de conceitos matemáticos
pelo aluno através de situações que estimulem sua curiosidade
matemática. Nesse processo o aluno envolve-se com o “fazer”
Matemática no sentido de criar hipóteses e conjecturas e investigá-
las a partir da situação-problema proposta.
Conforme o Referencial Curricular Nacional (BRASIL,
1998), as situações lúdicas, competitivas ou não, são contextos
favoráveis de aprendizagem, pois permitem o exercício de uma
ampla gama de movimentos que solicitam a atenção do aluno na
tentativa de executá-los de forma satisfatória e adequada. Eles
incluem, simultaneamente, a possibilidade de repetição para
Educação infantil: o jogo na construção do conceito numérico
44
manutenção e por prazer funcional, segurança e oportunidade de ter
diferentes problemas a resolver. Além disso, pelo fato de construir
um momento de interação social bastante significativa, as questões
de sociabilidade constituem motivação suficiente para que o
interesse pela atividade seja mantido (BRASIL,1998).
Dentro desse contexto, vemos a importância dos jogos na
educação matemática e seguindo a teoria piagetiana que vê o jogo
como uma atividade em que prevalece a assimilação, o jogo reveste-
se de um significado funcional, por meio do qual a realidade é
incorporada pela criança, quer em função das necessidades do “eu”
[jogo simbólico], quer em função das exigências de reciprocidade
social [jogo de regras].
Tomamos como exemplo, as idéias de Dias (2005):
É nesse sentido que podemos dizer que o jogo simbólico constitui a gênese da metáfora, possibilitando a própria construção do pensamento e aquisição do conhecimento. Apontamos a importância do trabalho com o jogo e as linguagens artísticas na formação do educador pré-escolar como caminho para a construção de uma pedagogia da criança (DIAS, 2005, p. 47).
Cabe também esclarecer, como nos alerta Mariani (2006),
que não somente os objetos estruturados, inventados pelos
fabricantes que servem como jogos ou brinquedos. Utilizando o
imaginário, a criança “dá vida” a outros objetos simples que a
rodeiam. E isso ocorre muitas vezes quando alguns aspectos sociais
também estão envolvidos, como podemos citar as crianças do sertão
nordestino brincando com “ossinhos de animais”, como se fossem
carrinhos, bonecos, jogos etc.
Elaine Cristina Feijó
Kelly Cristina Ducatti-Silva
45
A IMPORTÂNCIA DOS JOGOS NA EDUCAÇÃO MATEMÁTICA
Na educação hoje, um dos temas que tem merecido atenção
dos estudiosos é o das relações entre as brincadeiras e os processos
de desenvolvimento e aprendizagem dos alunos. Em virtude disto
busca-se analisar e constituição e a emergência do jogo e seu papel
no contexto educativo, tendo em vista a questão da ludicidade, que
tem papel importante, tanto no desenvolvimento cognitivo quanto no
desenvolvimento social da criança. Os jogos trazem oportunidade
para o desenvolvimento e aprendizagem do aluno. Neste contexto,
também permitem a autonomia do aluno, que é entendida pelo ato de
ser governado por si mesmo, sendo que passam a fazer suas escolhas
mediante a prática de tomada de decisões, que pode ser por uma
pessoa ou por um grupo. A essência da autonomia é que as crianças
se tornam capazes de tomar decisões por elas mesmas, porém
autonomia não é a mesma coisa que liberdade completa. Kamii e
Clark (1991) defendem a idéia de que autonomia significa ser capaz
de considerar os fatores relevantes para decidir qual deve ser o
melhor caminho da ação. Isso vale tanto para os materiais a serem
usados como para as atividades a serem realizadas. Para o professor,
é importante ressaltar que quando ele não perde de vista a autonomia
com fim maior da educação, ele sempre favorece a própria iniciativa
da criança.
Para ampliar esta discussão, é enfatizado no RCN
(BRASIL, 1998):
A progressiva independência na realização das mais diversas ações, embora não garanta a autonomia, é condição necessária para o seu desenvolvimento. Esse processo valoriza o papel do professor como
Educação infantil: o jogo na construção do conceito numérico
46
aquele que organiza, sistematiza e conduz situações de aprendizagem (BRASIL, 1998, p. 39).
E neste enredo, no que se refere aos jogos, vemos que os
mesmos não funcionam por si, eles necessitam de uma intervenção
importante do professor, antes, durante e após o momento do jogo e
incentivar as crianças a participarem de todas as atividades.
Devemos ressaltar a importância do jogo em grupo, pois é no jogo
que as crianças praticam a adição, pois são motivadas a pensar e a
lembrar combinações numéricas. Também permitem que as crianças
decidam qual jogo querem jogar e incentivam a interação social e
competição, ou seja, quando as crianças têm a permissão de
tomarem suas próprias decisões, elas negociam regras e vêem as
conseqüências de suas próprias decisões. A interação social é
valorizada na abordagem piagetiana por causa de sua importância
para a construção do conhecimento lógico-matemático.
De acordo com as idéias de Piaget (1978), que se refere
dizendo que primeiramente, o jogo é simples assimilação funcional
ou reprodutora, ou seja, em vez do pensamento objetivo, que procura
submeter-se às exigências da realidade exterior, o jogo da
imaginação constitui, com efeito, uma transposição simbólica que
sujeita as coisas à atividade do indivíduo, sem regras nem
limitações. Porém, não devemos concluir que o jogo se constitui
após a imitação ou que se diferencie menos depressa do que ela em
relação às condutas de adaptação propriamente ditas. É
simplesmente mais fácil de interpretar.
Segundo Kamii e Clark (1991), o jogo é uma forma natural
de atividade humana que desabrocha aos cinco anos de idade e
continuam a ser de interesse durante toda a vida. Justificam dizendo
Elaine Cristina Feijó
Kelly Cristina Ducatti-Silva
47
que as crianças são mais ativas mentalmente enquanto jogam o que
escolheram e que lhes interessa do que quando preenchem folhas de
exercícios.
Para Moura (2005), a análise dos elementos incorporados
ao ensino de matemática não pode deixar de considerar o avanço das
discussões a respeito da educação e dos fatores que contribuem para
uma melhor aprendizagem. O jogo aparece, deste modo, dentro de
um amplo cenário que procura apresentar a educação, em particular
a educação matemática, em bases cada vez mais científicas.
De acordo com essa idéia, Moura (2005) nos relata que:
ao analisar o jogo no ensino da matemática, podemos fazer uma retrospectiva sobre como este foi sendo incorporado às atividades educativas para que, a partir daí, tenhamos claramente a justeza de seu uso. Não é nossa pretensão fazer uma história do jogo na educação matemática. O nosso objetivo é buscar razões do uso do jogo na educação matemática, atentos aos cuidados a serem tomados com os modismos adotados, sem uma análise prévia das condições em que aparecem as propostas de ensino e das bases teóricas que as sustentam (MOURA, 2005, p.77).
Ainda segundo a autora, o raciocínio decorrente do fato de
que os sujeitos aprendem através do jogo é de que este possa ser
utilizado pelo professor em sala de aula. As primeiras ações de
professores apoiados em teorias construtivistas foram no sentido de
tornar os ambientes de ensino bastante ricos em quantidade e
variedade de jogos, para que os alunos pudessem descobrir conceitos
inerentes às estruturas dos jogos por meio de sua manipulação.
Essas concepções têm como principal característica a
crença de que o desenvolvimento cognitivo é a sustentação da
aprendizagem, isto é, que para haver aprendizagem é necessário que
Educação infantil: o jogo na construção do conceito numérico
48
o aprendiz tenha um determinado nível de desenvolvimento. Tal
crença pode colocar o educador na posição dos que apenas
promovem situações desafiadoras para os sujeitos em situação
escolar.
Para afirmar essa idéia, tomamos como exemplo as idéias
de Moura (2005):
o jogo, ainda segundo essa concepção, deve ser usado na educação matemática obedecendo a certos níveis de conhecimento dos alunos tidos como mais ou menos fixos. O material a ser distribuído para os alunos deve ter uma estruturação tal que lhes permita dar um salto na compreensão dos conceitos matemáticos. É assim que materiais estruturados, como blocos lógicos, material dourado, Cuisinare e outros - na maioria decorrentes destes -, passaram a ser veiculados nas escolas (MOURA, 2005, p.78).
Desta forma, o jogo, na educação Matemática, passa a ter o
caráter de material de ensino quando considerado promotor de
aprendizagem. A criança, colocada diante de situações lúdicas,
apreende a estrutura lógica da brincadeira e, deste modo, apreende
também a estrutura matemática presente.
Nesta perspectiva, o jogo será conteúdo assumido com a
finalidade de desenvolver habilidades de resolução de problemas,
possibilitando ao aluno a oportunidade de estabelecer planos de ação
para atingir objetivos, executar jogadas segundo este plano e avaliar
sua eficácia nos resultados obtidos.
Para facilitar o trabalho do educador, Kamii e Clark (1991)
nos propõem cinco aspectos seqüenciais dos jogos, que são: escolhê-
los, ou seja, não escolha jogos que não sejam nem muito difíceis,
nem muito fáceis, mas não se preocupe muito sobre esse aspecto e
Elaine Cristina Feijó
Kelly Cristina Ducatti-Silva
49
sobre a questão de ser ou não apropriados. As próprias crianças
acabam por decidir se elas gostam ou não de um jogo.
Já na introdução dos jogos em sala de aula, podemos seguir
algumas sugestões:
• Jogar com poucas crianças em frente da classe para
demonstração, pois fomenta a interação entre jogadores e
espectadores, que trocam idéias sobre estratégias para
vencer o jogo. Obviamente não é bom para jogos com
regras muito complicadas.
• Jogar com várias crianças e dizer ao restante da classe
que poderiam aprender com elas. Neste caso, o professor
deve escolher para primeiros jogadores as crianças que
sejam hábeis e altruístas para que expliquem as regras a
seus companheiros, tendo em vista, que o professor tem
certeza de que estes jogadores entenderam bem as regras
e estão passando corretamente para os companheiros.
• Jogar em pequenos grupos até que todas as crianças
chegassem a jogar com o professor. Embora leve mais
tempo, é o melhor meio de introduzir jogos com regras
muito complicadas.
• Mostrar um jogo para as crianças e perguntar se ele
precisava ser explicado, tendo em vista que alguns jogos
por serem mais simples, já são de conhecimento das
crianças e porque também contribuem para desenvolver a
autonomia, resolvendo suas próprias disputas e
inventando regras para os jogos.
Com relação à participação nos jogos, a teoria de Piaget
mostra-nos a necessidade de agir de forma diferente daquela que os
Educação infantil: o jogo na construção do conceito numérico
50
adultos em geral têm quando jogam com crianças. Eis os princípios
a serem seguidos:
• Concorde com as idéias das crianças e sua forma de
pensar, mesmo que elas lhe pareçam estranhas. Quando a
construção da autonomia das crianças é valorizada, é
importante que elas mesmas façam suas próprias regras.
• Dê às crianças muito tempo para pensar. A perda de
interesse no jogo, às vezes, acontece quando uma criança
avançada joga com uma mais lenta. Tentemos fazer com
que a vez de todos seja respeitada.
• Interfira sempre de forma indireta, nunca corrigindo
respostas erradas ou jogadas pouco inteligentes, ou seja,
o professor deve agir sempre como se fosse apenas um
dos jogadores.
• Incentive a interação, ou seja, é bom para as crianças
trocar pontos de vista.
Para encerrar um jogo, desestimule a competição e
simplesmente pergunte às crianças o que elas querem fazer em
seguida. Ganhar não é a coisa mais importante. Uma boa regra é o
professor perguntar: “Quem ganhou?” e em seguida “O que vocês
querem fazer agora?”.
A avaliação dos resultados deve ser feita posteriormente
aos jogos com uma espécie de discussão, levando em conta
acontecimentos durante os jogos, como uma forma de raciocínio de
algum jogador participante.
Elaine Cristina Feijó
Kelly Cristina Ducatti-Silva
51
CONSIDERAÇÕES FINAIS
As considerações acerca das reflexões sobre o jogo na
construção do conceito numérico das crianças na Educação Infantil
revelam-se como nova possibilidade de desenvolver concepções
numéricas, utilizando-se de atividades lúdicas que favoreçam tal
aquisição.
É constatado, a partir da literatura pesquisada e da
observação dos jogos em sala de aula, que o trabalho do professor de
Educação Infantil também deve estar voltado para o
desenvolvimento de atividades lúdicas que favoreçam o aprendizado
do aluno, pois tais atividades, além de prazerosas para crianças nessa
faixa etária, também contribuem para o desenvolvimento da
autonomia, valores e habilidades.
Neste sentido, o jogo, como material lúdico é de grande
função para a educação e deve ser explorado de forma produtiva e
intencional, ou seja, o trabalho realizado em sala de aula deve ter a
intervenção do professor e apresentar um contexto didático que ele
possa estar trabalhando com os alunos, como podemos citar os
conceitos numéricos, por exemplo.
Quando se trabalha questões matemáticas, desde a
Educação Infantil, valendo-se da questão lúdica e prazerosa que o
jogo proporciona às crianças, oportunizando um contato voltado aos
seus interesses de modo que atenda às necessidades da faixa etária
em questão, o contexto ensino-aprendizagem apresenta um melhor
resultado e novas possibilidades de abstração e de autonomia por
parte das crianças. Trata-se de um cenário favorece a provocação de
Educação infantil: o jogo na construção do conceito numérico
52
novos conhecimentos e a constituição de sujeitos críticos, a partir
das relações estabelecidas com a vida cotidiana.
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Elaine Cristina Feijó
Kelly Cristina Ducatti-Silva
53
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TOLEDO, M.; TOLEDO, M. Didática de matemática: como dois e dois: a construção da matemática. São Paulo: FTD, 1997.
Educação moral: dimensão educativa necessária para a infância
54
A EDUCAÇÃO MORAL: DIMENSÃO EDUCATIVA NECESSÁRIA
PARA A INFÂNCIA
Marta de Castro Alves Corrêa
Antonio Francisco Marques
RESUMO Este artigo procura a partir do contexto de contemporaneidade discutir o papel da educação infantil no processo de formação humana, focando de modo específico a formação moral das crianças. A educação moral que é vista de forma secundária, ignorada ou mesmo negada nas escolas, é colocada como uma necessidade para a educação infantil.
PALAVRAS-CHAVE: Educação infantil, formação humana, educação
moral.
INTRODUÇÃO
Ao defrontar com o limiar do século XXI, quando as
sociedades parecem caminhar de modo inexorável para o caos e a
barbárie, com o risco sério para a sobrevivência da vida no Planeta
Terra, se impõe a necessidade de formação de um novo homem. A
constituição desse novo sujeito humano impõe a superação de uma
Marta de Castro Alves Corrêa Antonio Francisco Marques
55
formação fragmentada, decorrente de uma visão positivista e
materialista, por uma perspectiva de educação integral que
possibilite o desenvolvimento total de todas as dimensões humanas,
seja corporeidade, inteligência, sensibilidade, sentido estético,
responsabilidade pessoal, consciência social e espiritual.
A necessidade da escola contribuir para a construção social
de novo projeto humanista, que leve a superação desmedida da
competitividade e do economicismo, demanda urgência de
transformar-se em um espaço de reflexão e mudanças das relações
ético-morais em uma sociedade em crise. Assim, nos parece
pertinente que o ensino de valores se edifique nas instituições
educativas, posto que são espaços privilegiados de geração de
comportamentos e atitudes construídos pelos alunos desde a
infância. Portanto, as escolas de Educação Infantil devem cada vez
mais voltar-se para o ensino intencional desses conteúdos para que
seus sujeitos educativos cresçam convencidos da necessidade de
uma cultura de paz, fundada nos princípios de respeito, solidariedade
e responsabilidade para consigo mesmo e com os outros.
A INFÂNCIA E A ESCOLA
A contemporaneidade será definida, segundo o historiador
da educação Franco Cambi (1999), pela afirmação, desenvolvimento
e centralidade de novos sujeitos educativos: a criança, a mulher, o
deficiente, as etnias e as minorias culturais. No caso específico da
criança, esta passa a ser descoberta já nas primeiras manifestações
da Modernidade [entre Humanismo e Renascimento], reclamando a
construção de instituições educativas voltadas ao atendimento
Educação moral: dimensão educativa necessária para a infância
56
específico desta faixa etária. Esse reconhecimento se dá de forma
gradativa pelos séculos posteriores, sendo ainda no presente desafio
em muitas sociedades.
Hoje, “os direitos das crianças estão claramente
regulamentados, seus maus tratos perseguidos e punidos; a
mortalidade infantil foi reduzida de maneira drástica; a escolarização
obrigatória está sendo ampliada” (PALÁCIOS, 2004, p.20). Embora
muito ainda há que ser feito, a educação escolar assume um papel
imprescindível no/e/pelo processo de construção social da infância.
Isso quer dizer que, se por um lado, o reconhecimento da infância
como fase específica da vida humana com seu papel e com suas
necessidades demandou por espaço próprio para ação educativa
formal e intencional - a escola-; por outro, pautadas nas práticas
educativas desenvolvidas nestes locus levaram ao progresso das
idéias sobre a criança com seu potencial, necessidades humanas e
sociais.
É importante salientar que as transformações da infância
não ocorrem de modo tranqüilo ou sem conflitos e contradições.
Esta realidade se fez presente na sociedade brasileira de modo
nítido. Se a escola para todos representa, nas sociedades
contemporâneas, a expressão do seu estado civilizatório, no caso
específico do Brasil a educação escolar ainda constitui, a partir de
uma análise mais apurada e crítica, um direito social usurpado
(MARQUES, 2000).
Mesmo com o início da implantação do Fundo de
Manutenção e Valorização dos Profissionais da Educação Básica -
FUNDEB5, que em si já representa uma imensa conquista, pelo fato
5 Lei Nº. 9.424, de 24 de dezembro de 1996.
Marta de Castro Alves Corrêa Antonio Francisco Marques
57
de ampliar os recursos financeiros aos outros níveis da educação
básica, a escola obrigatória ainda se reduz ao ensino fundamental,
para crianças de sete a quatorze anos, que neste momento ainda não
pode ser considerada uma escola para todos, mesmo que os números
das estatísticas oficiais desde o final do século passado falem na
universalização desse nível de escolaridade, a realidade tem
apontado que a democratização ainda está distante, pois não basta
garantir o acesso de todos à escola, sem garantir a permanência e
aprendizagem dos conteúdos curriculares.
Porém, não seria justo deixar de reconhecer que, com muito
esforço e luta, com avanços e recuos, aos poucos as classes
populares vão conquistando para suas crianças e jovens o direito
efetivo de acesso e permanência à escolarização. Podemos destacar
o ensino infantil, o qual, foi nos últimos anos reconhecido como
atividade pedagógica de extrema relevância. A riqueza do ensino
formal nos primeiros anos de vida está no fato de que, “[...] é
justamente na idade pré-escolar que se desenvolvem o germe da
personalidade humana” (CAMBI, 1999, p. 387). Entretanto, há uma
necessidade de superar a visão predominante apenas de cuidado,
deste nível de ensino, por uma compreensão mais educativa que leve
a superação das práticas pedagógicas marcadas pelo laissez-faire,
diante da exigência de conhecimentos e habilidades precisas e
profundas na ação dos educadores, a fim de garantir um
desenvolvimento pleno da criança que se encontra em acelerado
processo de formação, devendo ser atendida nos aspectos: cognitivo,
afetivo, social e cultural. Sendo, portanto, a responsabilidade destes
profissionais as funções de educar e cuidar.
Educação moral: dimensão educativa necessária para a infância
58
Como já salientado, o ensino da criança menor de sete anos,
nem sempre foi visto dessa forma. Devido a forte influência de uma
concepção higienista de cuidados assistenciais que tinha o intuito de
atender exclusivamente as crianças de baixa renda, e advindos da
incorporação da mulher no mercado de trabalho, emergindo a
necessidades de espaços destinados ao atendimento de crianças desta
faixa etária (OLIVEIRA, 2002).
Neste contexto, foi a partir das décadas de 60 a 80 do
século XX que as transformações ocorreram de forma mais
significativas em âmbito da preocupação com a Educação Infantil,
na qual se efetiva no Brasil na Constituição Federal de 1988,
defendendo a criança de zero a seis anos, o direito a esta modalidade
de ensino, sendo dever do Estado e facultativo a família. Também o
Estatuto da Criança e do Adolescente [ECA], de 1990, menciona
este atendimento, no sentido de acatar a Constituição quanto ao
direito da criança pequena à educação formal, conforme destaca
Montenegro (2001).
A Lei nº. 9.394, de Diretrizes e Bases da Educação
Nacional – LDBEN de 1996 estabeleceu de forma normativa a
vinculação da criança de zero a seis anos, como primeira etapa da
Educação Básica. Desse modo, a Educação Infantil passa a fazer
parte da Estrutura e Funcionamento da Educação Escolar Brasileira
com a finalidade explícita de “cuidar e educar”, como expressa seus
objetivos no Referencial Curricular Nacional para a Educação
Infantil (BRASIL, 1998).
Contudo, o binômio cuidar e educar ainda não estão muito
claros entre os profissionais da educação, os quais vêem o cuidar
como atividade de menos prestígio, como salienta Montenegro
Marta de Castro Alves Corrêa Antonio Francisco Marques
59
(2001). A escola de educação infantil tem oscilado entre estas duas
funções. Acredita-se que o cuidar está mais voltado ao cotidiano das
creches, e o educar, está ligado à pré-escola, ou seja, instituições de
meio período que atendem crianças de três a seis anos, apresentando
uma clara dificuldade de integrar as duas funções, que na realidade
não se separam.
Seguindo este raciocínio, vários municípios, formalmente,
não separam mais creches de pré-escola, mas incluem-nas como
modalidades de ensino infantil, distinguindo apenas na questão do
período de permanência da criança na escola, podendo ser matutino,
vespertino ou integral, para melhor atender as necessidades da
criança e da família. Contudo os aspectos educacionais devem
permear na garantia das mesmas oportunidades, dentro de uma
proposta pedagógica que segundo Oliveira (2002, p. 48)
[...] deve considerar a atividade educativa como ação intencional orientada para a ampliação do universo cultural das crianças, de modo que lhes sejam dadas condições para compreender os fatos e os eventos da realidade, habilitando-as a agir sobre ela de modo transformador.
É notória a importância que a educação assume diante das
vivências das práticas sociais e culturais. O imperativo que impõe
para a sociedade brasileira com relação a infância é que trata-se de
um voltar-se aos direitos da pessoa, isto é, reconhecimento do tempo
da infância atrelado a "um tempo humano, social, cultural e
identitário" a exemplo que Arroyo (2005, p. 21) defende para a
juventude e os adultos. Contrariamente, as políticas públicas para a
infância a nível concreto não têm atentado para a efetivação desse
direito, mesmo que as convenções internacionais assinadas pelo país
Educação moral: dimensão educativa necessária para a infância
60
imponha esse imperativo. Dessa forma, mudanças políticas,
pedagógicas e culturais devem ser implementadas para que garantam
as crianças, educação infantil necessária ao seu desenvolvimento
humano.
Segundo Oliveira (2002), muitas escolas de educação
infantil que se julgam progressistas6, orientam-se primordialmente
nos pressupostos do desenvolvimento cognitivo, e ainda assim, de
modo muito restrito, ignorando a função do afeto e do cuidado neste
processo, a ênfase está em conteúdos e ações didáticas, muitas
vezes, próprios do ensino fundamental.
Não queremos aqui dizer, que tais conhecimentos não
sejam possíveis de serem trabalhados, desde que, estejam dentro de
vivências significativas das crianças, que propiciem a ampliação da
leitura do mundo e seus fenômenos, num trabalho que inicie a
formação de atitudes mais elaboradas de compreensão da realidade.
Sem a pretensão de generalizar, hoje, a educação infantil
mesmo buscando uma identidade própria no sistema de ensino, tem
muitas vezes, seguindo rígidas rotinas com turmas seriadas, fazendo
prevalecer a idéia de período preparatório para o ensino
fundamental. A educação infantil não surge como base prévia para
o ensino fundamental e nem esta constitui continuidade daquela. A
origem do ensino fundamental é anterior a educação infantil.
Dessa forma entendemos que a educação infantil necessita
buscar a justa medida, a qual, na procura de se institucionalizar não
acabe por regular demais a infância, cerceando sua natureza. Por
6 Comprometida com a transformação social, de inspiração socialista. A este respeito consultar, SNYDERS, Georges. Pedagogia progressista. Portugal: Almedina, 1974.
Marta de Castro Alves Corrêa Antonio Francisco Marques
61
outro lado, não pode torná-la um espaço da espontaneidade do
laissez faire, na qual, as dominações e os interesses pessoais
prevaleçam.
Neste sentido, é necessário ao educador o conhecimento do
Referencial Curricular Nacional para a Educação Infantil (BRASIL,
1998), os Parâmetros Nacionais de Qualidade para a Educação
Infantil e os Parâmetros Básico de Infra-estrura para Instituições de
Educação Infantil (BRASIL, 2006) que visam subsidiar o trabalho
educativo e técnico dos professores e demais profissionais da
educação infantil, considerando-se as especificidades afetivas,
emocionais, sociais e cognitivas das crianças de zero a seis anos.
Estabelecendo objetivos, conteúdos e orientações didáticas que
devem nortear os espaços físicos e os projetos político pedagógico
das escolas de Educação Infantil.
Deve-se buscar, neste contexto, uma visão ampliada dos
conteúdos escolares:
Os conteúdos abrangem, para além de fatos, conceitos e princípios, também os conhecimentos relacionados a procedimentos, atitudes, valores e normas como objetos de aprendizagem. A explicitação de conteúdos de naturezas diversas aponta para a necessidade de se trabalhar de forma intencional e integrada com conteúdos que, na maioria das vezes, não são tratados de forma explícita e consciente (BRASIL, 1998, p. 49).
É nesta perspectiva que o ensino de valores deve edificar-se
nas instituições educativas, posto que são espaços geradores de
atitudes transmitidas aos alunos, mesmo que implicitamente, porém,
“[...] conceber valores normas e atitudes como conteúdos, implica
Educação moral: dimensão educativa necessária para a infância
62
torná-los explícitos e compreendê-los como passíveis de serem
aprendidos e planejados”(idem p. 51).
Esta prática exige reflexão dos educadores sobre os valores
que são transmitidos cotidianamente e os valores que pretende-se
desenvolver, afim de promover a gradativa autonomia do aluno.
Uma educação que busca a autonomia vê na criança seres
com vontade própria, com capacidade para serem sujeitos de suas
aprendizagens, e uma vez estimulados em situações cotidianas, serão
também capazes nas questões valorativas.
Desse modo, oportunizar atividades nas quais as crianças
sejam estimuladas a realizarem suas próprias ações e julgamentos,
gerenciando-as por princípios que não sejam os da simples
obediência, mas antes, de um entendimento das regras e sanções
como co-partícipe de suas elaborações, promovendo assim, o avanço
da heteronomia para a autonomia, que envolve tanto os aspectos
cognitivos e afetivos como os sócio-culturais. Neste ínterim, a
criança passa a ter noção da importância da cooperação e
reciprocidade em um ambiente humano que se propõe à construção
do bem comum.
O EDUCADOR E A FORMAÇÃO MORAL DA CRIANÇA
Diante da confusão valorativa sobre o certo e o errado, o
bem e o mal, que se vivencia, não há mais clareza entre os limites do
permitido e do proibido. A violência e o desrespeito à pessoa
humana vêm se tornando ao mesmo tempo insustentável para muitos
e paradoxalmente comum e corriqueiro a outros, que se encontram
apáticos diante de fatos que deveriam ser combatidos.
Marta de Castro Alves Corrêa Antonio Francisco Marques
63
A escola se vê envolta, nesse quadro que parece
encaminhar as sociedades para a violência, o caos ou a barbárie,
sendo cobrada a sua contribuição para superação desse drama social.
Por um lado há considerações analista sociais de que a sociedade
contemporânea está marcada pela incapacidade de socialização das
instituições educativas tradicionais, como a família e a escola, para
"garantir e transmitir com eficácia valores e normas culturais de
coesão social” (TEDESCO, 2004, p. 30).
Porém, se impõe a necessidade das escolas criarem uma
nova cultura da aprendizagem para se dar conta desses desafios, o
que é visto como deterioração da aprendizagem resulta das
exigências de "novos conhecimentos, saberes e habilidades que
propõe a seus cidadãos uma sociedade com ritmos de mudança
muito acelerados” (POZO, 2002, p.23). Quando se fala em educação
moral ou formação ética do educando acaba sendo visto como uma
prática educativa impossível ou mesmo indesejável.
Num contexto de desumanização, como Paulo Freire diria
de "desgentificação" em sua análise existencial-fenomenológica,
suscita-se a premente análise e a reflexão sobre quais contribuições
o professor dará para a formação de sujeitos humanizados? Está
trabalhando os valores humanos de forma que façam sentido à vida,
a introspecção e à ação dos alunos? Que função a educação formal
assume frente à realidade posta? Neste sentido, Marina Subirats
(2000) coloca sobre a necessidade de que a educação no século XXI
tem a urgência de uma educação moral.
Educação moral: dimensão educativa necessária para a infância
64
Para Puig (1998, p. 16), a educação moral deve:
a) Converter-se em âmbito de reflexão individual e coletiva que permita elaborar racional e autonomamente princípios de valor, princípios que ajudem a defrontar-se criticamente com realidades como a violência, a tortura ou a guerra. b) Ajudar a analisar criticamente a realidade cotidiana e as normas sócio-morais vigentes, de modo que contribua para idealizar formas mais justas e adequadas de convivência. c) Aproximar os educandos de condutas e hábitos mais coerentes com os princípios e normas que vão construindo. d) Formar hábitos de convivência que reforcem valores como a justiça, a solidariedade, a cooperação ou o cuidado com os demais.
Sabemos, no entanto, que a formação de valores não é
responsabilidade única da família e/ou da escola, uma vez que a
criança está inserida num contexto sócio-cultural mais amplo, que
repercute na formação da personalidade moral do aluno por sofrer
influências informais bastante marcantes através da mídia, grupos de
lazer, do convívio comunitário, entre outros, que embora não tenham
finalidades educativas explícitas são amplamente formativas. Tais
influências são classificadas por Puig (1998) como práticuns morais,
que se configuram em situações habituais da vida, que transmitem os
“guias culturais” de valor. Assim, por não viver alheia a este
processo a criança reproduz o sistema de valores que lhes são
transmitidos.
O educador atento deve utilizar-se das situações de
práticum moral como estratégias eficientes para transmitir os
recursos morais que norteiam uma comunidade, além de ensaiar
novas formas de comportamentos frente às intervenções educativas,
através da instituição de práticas cooperativas de trabalho, situações
de debate coletivo, entre outros.
Marta de Castro Alves Corrêa Antonio Francisco Marques
65
Desse modo, os conflitos cotidianos, tão presentes nas
relações escolares como: tomar um brinquedo de um amigo, agredir,
romper acordos, podem e devem ser resolvidos através da reflexão e
do diálogo, no qual os julgamentos morais não dependam
exclusivamente dos valores convencionados, mas de princípios e
critérios que variam conforme as exigências de uma situação,
marcada pela compreensão que avalia as peculiaridades.
Neste sentido os jogos e as brincadeiras devem ser
entendidos como um grande aliado, onde a partir da detecção de
conflitos os quais as crianças não conseguem resolverem por si
mesmas, possam ser explorados em situações de brincadeiras,
principalmente as que envolvem trocas de papéis, pois as levam a
refletir sobre outras possibilidades e pontos de vistas, como enfatiza
Elkonin (apud, ALVAREZ; DEL RIO, 1996).
É nas relações com os companheiros em sala de aula que as
crianças vêm a conhecerem mais claramente a si mesmas e aos
outros. A tomada de consciência das diferentes intenções é fator
crucial ao desenvolvimento moral, que se dá como um processo e
não como um produto, onde as crianças enfrentam questões sobre o
que acreditam ser bom ou mau, certo ou errado, enfim, “constroem
seu senso de moral a partir das experiências da vida cotidiana”
(DEVRIES; ZAN, 1998, p. 37). Ao mesmo tempo em que a
consciência moral é pessoal, também é sócio-cultural.
Embora pareça simples este processo não ocorre de forma
natural entre as crianças, há que se promover às intervenções
necessárias que encoraje o grupo a gradativamente assumir uma
postura comunicativa de resolução de conflitos, o professor
representa neste contexto o grande mediador e exemplo, do qual é
Educação moral: dimensão educativa necessária para a infância
66
possível manter a coerência entre os valores morais que são
pregados e os que realmente são praticados. Ele deve intervir na
realidade escolar rejeitando certos valores e reforçando outros.
Puig (1998) entende a educação moral como um ato de dar
forma moral à própria identidade partindo da reflexão e da ação em
situações próprias do universo do sujeito, construindo
gradativamente sua personalidade. É nesta perspectiva de relacionar
a moral e a personalidade que o autor avança na discussão sobre a
moralidade proposta por Piaget. Haja vista que o homem não é
apenas um ser natural, mas principalmente social, e a sua
personalidade se forma na ação conjunta destas forças.
Montenegro (2001) observa que a síntese de personalidade
moral que Puig propõe é de que ela apresenta-se como uma junção
da consciência pessoal do indivíduo, somada a aquisição dos
modelos externos enfatizados nos convívios sociais.
A autora salienta ainda, que o educador necessita
compreender que o desenvolvimento moral contempla vários
aspectos, cognitivos, emocionais, pessoais e universais, os quais dão
fundamento à formação para o cuidado delas próprias e de seus
alunos. O cuidado está intimamente atrelado ao desenvolvimento da
personalidade moral do sujeito, a este respeito afirma que ”[...] não
só é possível, mas também necessário, educar para o cuidado”
(MONTENEGRO, 2001, p. 140).
O desafio dos educadores que buscam esta perspectiva deve
ter como base a vivência prática da moral que se almeja como
referência de educação sistemática e possível. Mas para que isso
ocorra é preciso tratar da formação do professores de modo que se
sintam aptos para exercer a educação moral com seus alunos.
Marta de Castro Alves Corrêa Antonio Francisco Marques
67
Metaforicamente a educação moral como construção da
personalidade se assemelha a uma oficina onde se pratica um ofício.
Assim, descreve Puig:
[...] a educação como construção supõe um processo no qual o educando adota o papel de um aprendiz que trabalha junto a um especialista ou tutor, e este, no mesmo ato de produzir bens, lhe transmite conhecimentos e o ajuda a adquirir capacidades, em suma, forma-o como um novo especialista nas tarefas próprias da oficina [no nosso caso, nas tarefas próprias da vida moral] (PUIG, 1998, p. 229).
Nunca é tão cedo para que a criança adentre ao mundo dos
valores morais, e assim como a família, a escola desempenha um
importante papel neste processo. "As escolas vão se tornando cada
vez mais agentes primários de socialização, instituições totais,
porque incidem na globalidade do indivíduo" (SACRISTAN, 2000,
p.56).
É neste sentido, que apontando para a formação de sujeitos
mais autônomos e reflexivos, bem como, afirmando a importância
da cooperação, pautada em uma relação dialógica e dialética, como
estratégia a conceber a construção de formas de vida mais humanas
do ponto de vista ético, que se dá, o papel fundamental de mediação
do professor, o qual deve conduzir sistemática e intencionalmente a
criança, a fim de:
Estabelecer e ampliar cada vez mais as relações sociais, aprendendo aos poucos a articular seus interesses e pontos de vista com os demais, respeitando a diversidade e desenvolvendo atitudes de ajuda e colaboração (BRASIL, 1998, p. 63).
Educação moral: dimensão educativa necessária para a infância
68
Para que este objetivo se concretize é premente que a
questão dos valores ocupe um espaço privilegiado na formação dos
professores, descentrado do foco exclusivo dos conteúdos
curriculares tradicionais. É preciso um novo olhar que radicalize os
fundamentos deste pensar na educação das novas gerações, que não
seja tão somente transmissora de conhecimentos acadêmicos
avaliáveis, mas acima de tudo, transmissora de valores que conduza
o indivíduo a agir com autonomia e responsabilidade necessárias,
condizentes a uma educação que possibilite aos educandos e ao
educador apropriação de características humanas e humanizadoras.
Ao postular o eu na conquista da autonomia por parte do
educando se faz necessário colocar a experiência de autonomia
como meta básica. DeCharms, em um projeto desenvolvido com
crianças, coloca que para que esse processo aconteça há a
necessidade de que se leve em conta aspectos motivacionais internos
do formando, pois assim este assume os objetivos educativos
propostos como seus, e não como algo estranho e imposto
externamente, não passando de uma marionete nas mãos dos adultos.
Para isso os professores que trabalharam no projeto procuraram
levar as crianças a tomar consciência de:
1) suas próprias motivações; 2) a necessidade de ser sensível ao direito e à necessidade que os demais têm de ser autônomos; 3) o que significa aprender e a satisfação que isso comporta; 4) o que significa ser autônomo, comparado a ser marionete; 5) como se pode incrementar a própria autonomia, impondo-se metas realistas e trabalhando para sua consecução; e 6) a importância de assumir a própria responsabilidade (in TAPIA e GARCIA-CELAY, 1996, p. 166).
Marta de Castro Alves Corrêa Antonio Francisco Marques
69
Em um trabalho anterior7 realizou-se um estudo qualitativo
com alguns professores de educação infantil sobre suas
representações quanto à formação moral das crianças em suas
práticas pedagógicas cotidianas. Partia-se do pressuposto de que
embora exista uma grande preocupação com a formação moral da
criança em instituições de educação infantil, este processo se dá de
forma assistemática e paliativa, com ênfase na informação. Isso se
dá, por desconhecimento do professor de uma teoria pedagógica que
sustente suas práticas e mesmo pela falta de consciência da função
social da educação escolar. E, dentro da dimensão de formação
moral da criança, podemos ainda somar o papel das relações
interpessoais, habilidades aprendidas que muitas vezes os
professores não dominam. Tal fato pouco possibilita uma mudança
de comportamento do sujeito e conseqüentemente das relações
sociais que estão postas.
Para Tavares (2001, p. 59e 64):
[...] as relações interpessoais deverão ser reflexivas, flexíveis, resilientes por natureza pelo que a resiliência deverá ser considerada não apenas como um dos pontos de convergência do desenvolvimento pessoal e social das pessoas, mas também como um fator de equilíbrio interior e exterior do sujeito. [...] a reflexibilidade, a flexibilidade e resiliência serão o novo rosto da sociedade emergente que pretende ser mais esclarecida, autêntica, cordial, tolerante, solidária, humana, em que as relações pessoais e interpessoais assumirão o seu verdadeiro sentido e relevância em todas as formas de manifestação da ação humana.
7 CORRÊA, Marta de Castro Alves. O desenvolvimento moral da criança na instituição de Educação Infantil. Trabalho de Conclusão de Curso (Licenciatura em Pedagogia) – Faculdade de Ciências, Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, Bauru, 2006, 71f.
Educação moral: dimensão educativa necessária para a infância
70
Os resultados das análises indicaram, que de modo geral, as
professoras carecem de suporte teórico consistente quanto ao
desenvolvimento e formação da personalidade moral da criança,
podendo esta ser autônoma ou heterônoma, dependendo das
situações objetivas que forem mediadas neste processo. Tal fato
verifica-se pelas colocações superficiais apresentadas e suas
desvinculações de estudos científicos. A maioria das professoras
reproduz aquilo que viveram e tiveram como exemplos, baseadas no
senso comum, pautam-se então em “achismos” ou apegam-se a
preceitos religiosos como parâmetro.
Reiteramos aqui, que não dá para ignorar que a religião
pode ter um papel importante no processo de formação humana e os
valores morais colocados pelas crenças dos professores influenciam
as suas práticas educativas.
Este fato em si, não traria nenhum estranhamento se a
escola que estivéssemos nos referindo fosse confessional, e mesmo
se a professora tenha discernimento suficiente para utilizar-se de
referenciais ético-morais comuns aos educandos. Aliás, não se pode
perder de vista que a escola que se está referindo é uma pública,
laica, aberta democraticamente a todos, independentes de credo. O
risco está em impor aos alunos uma perspectiva que Vidal (2007)
denomina de "fundamentalismo religioso" da moral. Para ele “A
articulação correta entre moral e religião é que estabelece
respeitando a peculiaridade de cada uma das formas de expressão do
mundo pessoal e integrando-as numa síntese superior”. Ela dará
origem a uma ética civil que para o autor é “dimensão moral da
sociedade em seu conjunto”, isto é, o “mínimo moral”, enquanto
marca a quota de aceitação moral da sociedade mais abaixo da qual
Marta de Castro Alves Corrêa Antonio Francisco Marques
71
não pode situar-se nenhum projeto válido de sociedade” (VIDAL,
2007, pg 6-8).
Assim, ao fazer essa consideração não se quer negar as
contribuições das grandes tradições religiosas ao longo da história as
questões ético-morais, porém que as visões religiosas nestes campos
"devem estar submetidos a análise crítica, na mesma maneira que
outras propostas devem sê-lo. [...] Sem conhecimento, sem
sentimento, sem isenção e sem liberdade para decidir, não há moral
possível" (ALMEIDA, 2007, p. 4 e 5).
Apesar de quatro, entre as cinco professoras, sujeitos da
pesquisa, citada acima, terem nível superior ou estarem na etapa
final desta formação, evidenciaram que não se garantiu um
conhecimento mais aprimorado quanto ao desenvolvimento moral da
criança e as práticas educativas da escola, o que levou a supor que
seria aconselhável uma reflexão sobre a maneira como estes cursos
vem sendo ministrados, pois, parece ter muito pouco, contribuído
para uma concepção mais comprometida com a formação urgente de
pessoas morais.
Em alguns casos a formação foi útil apenas para tomar
conhecimento superficial da temática. O suporte teórico pareceu
bastante insuficiente à medida que as professoras mostraram
desconhecer autores ícones desta área de formação, como Piaget,
Kolberg, Vigotysky, Puig, La Taille, entre outros, os quais
elaboraram estudos e procedimentos para a construção da
moralidade.
Percebeu-se também uma certa tendência dos professores
em atribuir a responsabilidade da formação moral da criança à
família, colocando a escola num segundo plano e apontando-a
Educação moral: dimensão educativa necessária para a infância
72
apenas como aquela que reforça ou nem interfere no que já está
posto, dando a impressão que pouco pode contribuir, como se a
questão ético-moral ficasse definida apenas num ambiente menor, a
família. Principalmente dentro de um contexto social, como já foi
apontado, em que cada vez mais a escola se vê obrigada a assumir
funções de socialização primária da criança que antes era próprio da
família.
Por outro lado, o que pareceu um fato de extrema
importância é que todas as professoras desta pesquisa reconheceram
a necessidade de trabalhar a perspectiva moral dos alunos, bem
como o urgente acesso à atualização pedagógica nesta área. Este fato
demonstra um ponto de partida para um ensino e aprendizagem mais
engajados na edificação de princípios norteadores de um projeto de
vida coletivo.
Dessa forma seria interessante que os dirigentes dos cursos
de formação inicial e continuada, voltassem a atenção para a
importância deste conhecimento pelo professor, na busca de garantir
uma formação global da criança, para que esta não aceite e nem se
conforme com a banalização da existência, e caminhe para a
construção de uma sociedade mais humana, justa e com potencial de
transformação.
Enfim, podemos afirmar que as práticas educativas infantis
devem ser orientadas no sentido de que deve expressar o
reconhecimento da criança como sujeito educativo e indivíduos
independentes não subordinados aos interesses e desejos dos adultos,
através de uma ação educativa que dentro da filosofia freiriana que
levem todos os envolvidos no processo pedagógico - sejam as
crianças, sejam os adultos - a dinâmicas dialógicas que possibilitem
Marta de Castro Alves Corrêa Antonio Francisco Marques
73
aprendizagens instrumentais, bem como o desenvolvimento da
solidariedade entre todos.
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Educação moral: dimensão educativa necessária para a infância
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76
FACE 2
PRÁTICAS PEDAGÓGICAS DA ALFABETIZAÇÃO
Daniela Melaré Vieira Barros
Alfabetizar é um dos temas mais discutidos e pensados no
âmbito educacional, mas também nos parece algo encantador de se
refletir em outras áreas e um grande espaço para inovar. A
alfabetização, atualmente, tem diversas facetas e interpretações,
além das teorias e métodos que a subsidiam.
Propor práticas na alfabetização requer peculiar
conhecimento e experiência na área, mas também requer teorização
e aprofundamento acadêmico. Portanto, o que apresentaremos aqui
se refere ao trabalho desenvolvido por alunos e docentes com
práticas iniciais e experiências teóricas que auxiliam a entender e
ampliar as formas de alfabetizar.
A alfabetização abrange, hoje, campos como a inteligência
emocional, a inteligência ambiental, o uso de tecnologias, a busca de
informação, dentre outras. Esses são campos que requerem novas
Práticas pedagógicas da alfabetização
77
competências e que expõem, no conceito de alfabetização, suas
necessidades básicas para o cidadão do contexto atual.
Portanto, alfabetizar requer mais do que conteúdos e formas
a serem aprendidos, mas sim elementos que se estruturam em
competências e habilidades a serem desenvolvidos ou adquiridos.
A seguir veremos textos que contemplam temas como o
processo de alfabetização e o trabalho com conceitos base de
alfabetização. Ambos voltados aos conhecimentos de conteúdos,
mas ampliados às necessidades da sociedade.
Alfabetização: expectativas da professora e a aprendizagem dos alunos
78
ALFABETIZAÇÃO: EXPECTATIVAS DA PROFESSORA E A
APRENDIZAGEM DOS ALUNOS
Carmem Ligia Coutinho Santos Faria
Maria da Glória Minguili
RESUMO Este artigo tem como ponto de partida a prática didático-pedagógica de professores em relação aos alunos que não correspondem aos seus modelos pré-estabelecidos, ou seja, suas expectativas e percepções trazidas antes mesmo de conhecerem os alunos concretos, reais. Isto se reflete em sala de aula, nas situações em que o professor exclui o aluno que “não aprende”, considerado “indisciplinado” etc. Foi realizada uma investigação qualitativa cujos instrumentos de coleta de dados foram a entrevista, mediante questionário e a observação, pela pesquisadora, da prática pedagógica dos professores entrevistados. O resultado da pesquisa apontou que os alunos excluídos pelos professores são aqueles que apresentam agressividade e comportamentos considerados inadequados. Dos professores analisados, destacamos para este artigo apenas a professora alfabetizadora, embora na pesquisa original tenhamos trabalhado com professores da 1ª a 4ª série. Tal destaque se deve à necessidade de nos aprofundar mais detalhadamente na questão da alfabetização, uma vez que a
Carmem Lígia Coutinho Santos Faria Maria da Glória Minguili
79
avaliação nacional da educação brasileira apontou um certo fracasso no desempenho dos alunos da escola pública.
PALAVRAS CHAVES: Professora alfabetizadora; sala de aula; ensino e
aprendizagem.
A INFLUÊNCIA DAS EXPECTATIVAS NA EDUCAÇÃO ATUAL
Desde que ingressei na profissão como professora eventual
em escola da Rede Estadual de Ensino e, posteriormente, como
estagiária do curso de Pedagogia da UNESP, apresentei uma
inquietude em relação aos alunos que se isolam, se excluem, são
indisciplinados, tem atitudes agressivas, desinteresse por aprender
etc. Sempre quis compreender porque reagem desta maneira no
processo de ensino e aprendizagem.
Percebi que muitos destes comportamentos poderiam ser
explicados através dos reforços dados pelos próprios professores em
sala de aula, que reproduzem suas concepções pré-estabelecidas
dentro do espaço pedagógico, ou seja, apresentam expectativas e
percepções em relação à aprendizagem de seus alunos, sem ao
menos conhecê-los anteriormente. Esta percepção da realidade deu
origem ao meu interesse em pesquisar a questão e se transformou em
um Trabalho de Conclusão de Curso [TCC], sob orientação da
professora Maria da Glória Minguili. Foi destacada para este artigo a
questão da alfabetização por conta da discussão a respeito do fraco
desempenho dos alunos na avaliação realizada em nível nacional.
O aluno que se difere da concepção que o professor
idealizou é deixado à margem, considerado indisciplinado,
Alfabetização: expectativas da professora e a aprendizagem dos alunos
80
desinteressado, demonstrando assim, vestígios de uma concepção
tradicional de prática educativa, época em que o professor dizia para
justificar a reprovação do aluno: “Eu ensinei, se o aluno não
aprendeu, é problema dele”; essa concepção tradicional é bem
definida por FLEURI (1990), como uma prática educativa de
professor que pensa poder oprimir, reprimir, sem ser contestado em
momento algum, criando estratégias para a solidificação de tal
modelo educacional, exemplos: castigos aos que recusam o
autoritarismo e prêmios aos passivos; provas, notas, como meios de
controles; permissão de participação dos alunos em situações
irrelevantes, evitando participações em decisões fundamentais. A
conclusão é sempre do “chefe”, no caso, do professor.
Foi possível perceber a divisão existente em algumas salas
de aula: à frente os alunos considerados “modelos” participando da
aula, com todos os conteúdos no caderno e sua aprendizagem sendo
estimulada o tempo todo; ao fundo, os alunos com dificuldades de
aprendizagem, que não gostam ou não conseguem anotar conteúdos
no caderno, nem recebem atividades individualizadas de acordo com
seus graus de dificuldade em relação ao seu desenvolvimento, sendo
esquecidos, abandonados e, na maioria das vezes, repreendidos o
tempo todo da aula pelo professor, restando-lhes alienação às aulas,
bem como possíveis ações de indisciplina e agressividade. Percebe-
se, também, que muitos professores, logo na primeira semana de
aulas, já emitem considerações [pré-conceitos] sobre o desempenho
final do aluno naquele ano.
Quando os professores verificam que há grandes diferenças
em sala, tendem a reforçá-las ainda mais, demonstrando todo
preconceito que incorporou durante sua vida.
Carmem Lígia Coutinho Santos Faria Maria da Glória Minguili
81
Com tais posturas, o professor consegue convencer o aluno
da incapacidade que acredita que tenha e a criança passa a ser
realmente incapaz; a isso se dá o nome de profecia auto-realizadora,
bem definida por Rosenthal e Jacobson (1986):
as expectativas do professor sobre o desempenho dos alunos podem funcionar como uma profecia educacional que se auto-realiza. O professor consegue menos porque espera menos [...].(ROSENTHAL; JACOBSON, 1986, p.258).
Rosenthal e Jacobson (1986), afirmam que as expectativas
negativas dos professores são a causa do insucesso, do fracasso e da
mediocridade de seus alunos:
Se um médico prediz o progresso de um paciente, não podemos dizer se ele fez um prognóstico sofisticado ou se o progresso do paciente baseia-se em parte do otimismo gerado pela previsão do médico. Se os escolares que apresentam um desempenho pobre, são aqueles que seus professores esperam que apresentem este nível de desempenho, a expectativa dos professores é a causa da realização medíocre de seus alunos [...] (ROSENTHAL; JACOBSON, 1986, p.260-261).
Quando o educador procura ver os alunos de maneira
uniforme em relação ao desenvolvimento psicológico, físico,
cognitivo etc., está reforçando seus pré-conceitos, sentenciando a
crianças ao fracasso, apoiando-se a uma prática “tradicional”.
Nos dias de hoje, esse cenário histórico-cultural, demonstra
ainda, as principais características do educador, dos alunos e do
espaço físico, como tais características se manifestam dentro do
espaço escolar e na realização do processo de educação:
expectativas, preconceitos, padronizações, organização do horário e
do espaço etc.
Alfabetização: expectativas da professora e a aprendizagem dos alunos
82
AS RAÍZES TRADICIONAIS E A SALA DE AULA HOJE: O OLHAR
DOS PROFESSORES
A prática docente no contexto de educação tradicional está,
ainda nos dias de hoje, muito presente na relação ensino e
aprendizagem, apesar das correntes e propostas pedagógicas que
foram surgindo nos determinados períodos da história brasileira do
século XX.
Na prática tradicional, os professores sentem-se seguros,
pois exercem domínio sobre os alunos, com o objetivo de manter a
ordem, o respeito, independentemente de quais mecanismos serão
necessários para alcançar esses objetivos.
O papel do professor nesta concepção pedagógica
manifesta-se de diversas maneiras e facetas. Primeiramente, ele é o
responsável pela organização do conteúdo escolar, da linguagem
etc.; ou seja, é quem retêm o conhecimento científico e o sistematiza
para transferi-lo ao aluno. Ele ensina e o aluno aprende. O professor
é um “depositante de saberes”. E, o aluno um depósito de
conhecimentos recebidos, que muitas vezes não tem nenhum
significado para sua vida ou para a realidade social em que está
inserido.
O professor tem o dever de desempenhar a função de
facilitador do processo de ensino e aprendizagem do educando,
minimizando o quanto puder o trabalho dele em relação às
atividades e suas soluções. Segundo esta concepção, o professor
nunca irá propor atividades nas quais o aluno deverá pesquisar,
refletir, construir, discutir ou debater, buscando suas próprias
respostas, construindo conceitos e tomando decisões. Nesta teoria, o
Carmem Lígia Coutinho Santos Faria Maria da Glória Minguili
83
aluno é dependente do seu professor, pois este representa a
“verdade” pronta e acabada, portanto, indiscutível.
O professor deve dar garantias aos seus alunos em relação à
aprendizagem de conceitos, ou seja, o principal foco do professor
nesta corrente pedagógica é fazer o aluno ter domínio de conteúdos,
confundindo-os com “conceitos”. E isto é alcançado através de pura
memorização, sem compreensão do que está sendo estudado.
A postura do docente nesta concepção é autoritária, com
utilização de métodos disciplinadores, pois acredita que a
aprendizagem só ocorrerá se tomar atitudes de treino, correção,
perseguição, aconselhamento e, até mesmo, de castigos quando
necessário, pois há obrigação em utilizar severidade, rigor, objetivo;
isto tudo para a manutenção da ordem, da obediência e da disciplina.
Para tanto, há que ser: “severo, rigoroso, objetivo, distante e
exigente, preservando a disciplina escolar – via de acesso aos
valores essenciais.” (SILVA,1986, p.85).
Todos estes meios são utilizados para manter os alunos
“disciplinados” não atrapalhando o percurso do processo pedagógico
em sala, pois o conhecimento será assim alcançado com sucesso,
sem interferências no meio do caminho, sem desordem, indisciplina,
somente com obediência.
O fundamento de sua prática docente é a impessoalidade,
não havendo envolvimento afetivo com os alunos, não conhecendo
suas histórias, o espaço social ao qual estão inseridos, seus desejos,
suas tristezas, suas particularidades, suas potencialidades, seus
limites etc. O comportamento do professor restringe-se à exposição
de conteúdos, numa tentativa de transmitir conhecimentos
socialmente construídos, mesmo que não haja nenhuma significação
Alfabetização: expectativas da professora e a aprendizagem dos alunos
84
aos alunos. Nada além disso. Desta forma, o professor tem que se
limitar à reprodução de conteúdos, sem se envolver afetivamente
com seus os alunos.
Na pedagogia tradicional, o aluno é visto como imaturo,
considerado uma “tábula rasa”, ou seja, desempenha um papel
fragilizado na escola, sem história nenhuma, passível de realizar as
ações propostas, inexperiente, em contraposição ao poder do adulto
e sua importância quanto a deter o saber e, conseqüentemente, o
“poder”.
Nesta proposta, o aluno deve ser guiado pelo adulto ao
caminho do conhecimento científico, recebendo um quadro
referencial que o direcionará e orientará na organização dos
conteúdos e dos meios que garantam a aprendizagem.
O aluno é considerado um adulto em potencial, que deverá
deixar sua curiosidade natural [da infância], para concentrar-se e
aprender através da atenção, utilizando a disciplina e o esforço
[características dos adultos]. É valorizado por recitar, ler, memorizar
e copiar, pois essa é a concepção de “aluno educado”.
Outro aspecto marcante na concepção tradicional é a
organização do espaço físico, que é um aliado do educador para o
reforço da impessoalidade em sala, havendo distanciamento nos
relacionamentos humanos, tanto entre os alunos quanto entre o
professor e os alunos, pois as salas de aula são organizadas com as
carteiras em filas indianas, ou seja, um aluno olhando para o pescoço
[nuca] do outro, sem poder olhar nem conversar com os colegas de
classe.
Carmem Lígia Coutinho Santos Faria Maria da Glória Minguili
85
Esta organização facilita o controle do professor, pois,
consegue observar todo movimento da classe, controlando e
chamando a atenção dos alunos.
A disposição do professor na sala de aula é sempre à frente:
em pé, expondo os conhecimentos teóricos oralmente e escrevendo
os conteúdos na lousa para serem copiados pelos alunos. E
repreendendo o tempo todo os que não se enquadram e não se
comportam de acordo com o método tradicional, utilizando meios
para ser o centro do processo de ensino e aprendizagem e os alunos,
meros expectadores, sem palavra. E, quando a palavra é dada a eles,
é porque a participação será sem peso nas decisões sérias para o
processo educacional, pois a última palavra sempre será do docente.
Os professores ainda esperam dos seus alunos um
comportamento ideal; aguardam que os alunos correspondam às suas
expectativas e percepções justamente por terem incorporado a
concepção tradicionalista de educação ao longo da infância e
adolescência.
Vêem no processo de ensino e aprendizagem algo vertical,
de cima para baixo, ou seja, eles ensinam e os alunos aprendem. E
aqueles que não aprendem são considerados indisciplinados,
desinteressados, desajustados etc.
As expectativas que apresentam sobre o aluno não são
correspondidas pelos alunos concretos no cotidiano da escola,
podendo trazer conseqüências negativas ao processo educativo: ao
chegar em sua nova sala de aula, inicia o trabalho da mesma forma
dos anos anteriores, não respeitando a realidade afetiva, histórico-
social, cultural e existencial daquelas crianças, bem como, não
percebendo e nem respeitando a diversidade humana. Até hoje,
Alfabetização: expectativas da professora e a aprendizagem dos alunos
86
cientificamente está comprovado que nenhuma pessoa é igual à
outra e, portanto, nenhum aluno é igual ao outro; vale dizer que
nenhuma classe de alunos será idêntica à outra do ano anterior ou do
ano vindouro.
Quando se procura uniformizar os alunos a um mesmo grau
de compreensão, de desenvolvimento psicológico, físico, de
apreensão de conhecimentos, o professor está reforçando o
preconceito e o tradicionalismo, porém o faz para atender ao padrão
do aluno ideal dentro das regras impostas pela sociedade. Isto nos
remete à teoria de Émile Durkheim (apud MEKSENAS, 1995), que
influenciado pelas Ciências Físicas e Naturais propõe em sua
Ciência Social aspectos biológicos, como demonstra Meksenas
(1995):
A sociedade se apresenta como um corpo social [...] Ela possui vários órgãos, cada qual desempenhando sua função, e cada órgão desempenhando uma função específica [...] Entretanto, à partir do momento que um desses órgãos ficar doente, todo corpo se ressente. (MEKSENAS, 1995, p.33).
Desta maneira, coube à Educação a transmissão da Moral
Social, ou seja, dos valores e ideais compartilhados como
verdadeiros e que servem como mantenedores da ordem. E muitos
professores ainda acreditam que uma forma de manter a ordem é não
respeitando a individualidade, trabalhando com os alunos como se
fossem todos iguais e, desta forma, a comunidade escolar não terá
transgressores e a sociedade não padecerá.
Quando os professores percebem que há grandes diferenças
em sala, trabalham apenas com os alunos que se enquadram no
discurso atual da sociedade e excluem os que se distanciam desse
Carmem Lígia Coutinho Santos Faria Maria da Glória Minguili
87
discurso e prática social. No Funcionalismo, há um exemplo clássico
de pessoa que não se enquadra no padrão social: o ladrão; como não
é capaz de viver em sociedade e desestabiliza o corpo, há um lugar
apropriado para excluí-lo, a cadeia. Com o professor ocorre quase a
mesma coisa, como não pode colocar o aluno diferente na “cadeia”,
prende-o de outra maneira, dentro da falta de afetividade, do
desrespeito, da insignificância, da baixa-estima etc.; excluindo-o do
processo de ensino e aprendizagem, rotulando-o de ignorante.
Todos estes comportamentos elencados até aqui, são
conseqüência da concepção pedagógica tradicional, reforçada pelos
“preconceitos” que cada professor apresenta, como ser humano
inserido em um espaço social: “a vivência do preconceito pode ser
notada pela prática da diferença, que é muito presente no cotidiano
brasileiro” (ITANI, 1998, p.120)
Esses preconceitos podem ser expostos de várias maneiras
por parte do educador em sala de aula; pode ser pelo tom de voz, na
fala, pelo movimento do corpo etc.; isto tudo manifesta o
pensamento dos professores em relação aos alunos que não se
enquadram ao seu modelo padrão:
O preconceito é latente na fala, seja na palavra, seja pelo tom de voz, seja pelo cochicho, a linguagem do corpo serve como um instrumento de distinção entre os diferentes, deixando suas marcas pela expressão. (ITANI, 1998, p.123).
Os preconceitos, na maioria das vezes, não são claramente
declarados e sim camuflados pelo professor através de belos
discursos, cheios de termos técnicos e pedagógicos decorados nos
cursos de formação. Mas ao observar a sala de aula, este mesmo
Alfabetização: expectativas da professora e a aprendizagem dos alunos
88
professor comporta-se diferente em relação a um ou outro aluno: o
aluno com uma situação sócio-econômica mais elevada, com hábitos
de higiene e uma certa facilidade na aprendizagem é tratado de uma
maneira mais amigável, mais paciente, mais cordial do que um aluno
sem hábitos de higiene, bem “sujinho”, sem condições financeiras
nenhuma etc.
Muitas vezes, este professor acha mais conveniente e
prático esquecer que estes alunos diferentes existem, anulando-os do
processo educativo, cometendo um crime, pois sua condição sócio-
econômica, moral, física, sexual etc., não pode ser fator
determinante para o processo de aprendizagem.
a violência do preconceito não está na diferença que realizamos mentalmente, mas na forma como agimos com base nessa noção. Ou, pior, na estratégia apoiada na possibilidade de eliminar o outro que é diferente.[...] é a atitude de recusa de aceitação do outro tal como é. (ITANI,1998, p. 128).
É preciso compreender que todos aprendem, o que
diferencia é que cada um tem particularidades e potencialidades
diferenciadas, respondem de uma determinada maneira: uns com
mais facilidade, outros, com dificuldades. Assim, cabe ao professor
criar meios para atingir a todos, mecanismos diversificados.
Não deve negar o que é visível, evidente, pois diferenças
realmente existem. O que não é correto acontecer é eliminar, agredir
e até destruir o outro, porque não é como imaginava, baseando essa
atitude excludente na proposta tradicional de educação.
A negação ao diferente, esse comportamento de
intolerância, de recusa, nada mais é do que a insegurança ao lidar
com alguém diferente de si próprio e de seus ideais:
Carmem Lígia Coutinho Santos Faria Maria da Glória Minguili
89
As atitudes de intolerância que realizamos ou que podem ser notadas em nosso cotidiano são, nesse contexto, compreendidas como práticas de defesa contra nossa fragilidade diante do outro. (ITANI,1998,p.131) Tolerar é admitir a liberdade de existência desse outro, o direito desse outro ser diferente de mim, seja na maneira de pensar, de agir, de crer e, enfim, da liberdade de ser. A prática da tolerância como prática de liberdade, por conseguinte, não pode ser trabalhada com indiferença, e não há dúvida de que, em certos momentos, requer um desempenho com responsabilidade, e sobretudo com muita paciência por parte do professor. (ITANI,1998, p.134)
Somando à prática docente, seus preconceitos construídos
durante toda vida, suas inseguranças, seus anseios, sua formação
enraizada em fundamentos tradicionalistas etc.; teremos uma
transferência, mesmo que inconsciente, das expectativas em relação
aos seus alunos.
Desta maneira, a tendência é o aluno reproduzir e ser o que
seu professor espera que seja. Isto não é um processo visível, mas
perceptível dentro das salas de aula. O aluno percebe o que o
professor pensa a seu respeito, e sem notar, está sendo o que
realmente seu educador profetizou.
A este comportamento profético do educador denominamos
“profecias auto-realizadoras”, pois o professor obterá em sala tanto
sucessos como fracassos, determinados por ele próprio.
As profecias auto-realizadoras funcionam como um pré-
diagnóstico ao aluno, pois o professor, ao invés de conhecê-lo,
avaliar seu desenvolvimento dentro do processo de ensino e
aprendizagem, detectar suas dificuldades para planejar e aplicar
estratégias didáticas e superá-las, prefere apoiar-se em conclusões
fundamentadas em preconceitos e expectativas sem fundamento,
Alfabetização: expectativas da professora e a aprendizagem dos alunos
90
somente pelas primeiras impressões construídas nos primeiros dias
de aula: “Esse será burro”; “Não vai passar de ano, pois não sabe
nada”; “Esse além de educado, é inteligentíssimo” etc.
Todo este comportamento existe até os dias de hoje porque
o professor, apesar de ter uma formação em nível médio e superior e
conhecer, muitas vezes, diversas teorias, ainda tem a ilusão de
moldar e alcançar o modelo-padrão de aluno, o “aluno ideal”.
Este aluno ideal, tão desejado pelos educadores, é algo
inexistente, que atrapalha o próprio trabalho pedagógico: ”A
expectativa dos professores é a causa da realização medíocre de seus
alunos.” (ROSENTHAL e JACOBSON, 1986, p.261).
Isto é tão real que pesquisas comprovam que o educador
trata bem quem ele acredita que desempenhará um bom papel,
mesmo que tenha sido enganado. Um exemplo é uma pesquisa
realizada por Rosenthal em 1964: aplicou testes a diversos sujeitos e
expôs aos examinadores quais os que demonstravam maior
competência intelectual, porém escolheu aleatoriamente as pessoas,
sem nenhum fundamento. O resultado foi o seguinte:
Evidenciou-se que quando os examinadores constatavam sujeitos que supostamente haviam recebido notas altas, comportavam-se de maneira mais amigável, simpática, interessada e encorajadora, mostrando uma face mais expressiva e valendo-se de mais gestos anuais. (ROSENTHAL; JACOBSON, 1986, p.268)
Portanto, as expectativas criadas pelos educadores em
relação ao desempenho intelectual dos educandos funcionam como
profecias auto-realizadoras.
Eis porque esta pesquisa tem como principais objetivos: a)
detectar as expectativas construídas pelos professores nos primeiros
Carmem Lígia Coutinho Santos Faria Maria da Glória Minguili
91
meses de aula e quais conseqüências vêm trazendo dentro da sala de
aula, tanto no espaço físico quanto nas relações interpessoais e
didáticas; b) verificar se, apesar dos professores terem uma formação
teórica, na maioria das vezes acadêmica, ainda desejam ter em sala
de aula o aluno dos seus “sonhos”, motivo pelo qual apresentam, às
vezes, posturas extremamente rigorosas e agressivas para com os
alunos, assemelhando-se à prática da pedagogia tradicional.
EM BUSCA DA COMPREENSÃO ANALÍTICA: A
FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICO-METODOLÓGICA
Buscou-se embasamento nos estudos de Verônica Edwards
(1997), educadora chilena que desenvolveu sua pesquisa no México,
sob a orientação da professora Justa Ezpeleta, educadora que
trabalha com pesquisa qualitativa do cotidiano escolar. Edwards
publicou o livro Os sujeitos no universo da escola (1997); seu
trabalho foi realizado em salas de aula do México para investigar as
relações entre os sujeitos envolvidos no espaço escolar no contexto
mexicano dos anos 1970/1980, uma época que ela mesma definiu
como “prenhe de sonhos”, na qual os educadores queriam
reconstruir o sujeito educativo: do plano do “dever ser”, para o plano
do “ser”; do ideal para o real.
A partir dos estudos de Edwards (1997), embora as
circunstâncias da América Latina e do Brasil serem outras, foram
levantadas três categorias para a análise dos dados coletados para a
atual pesquisa sobre os sujeitos, o espaço educativo, a organização e
as relações interpessoais:
Alfabetização: expectativas da professora e a aprendizagem dos alunos
92
• Categoria A – Sujeitos do Espaço Escolar:
identificação do professor [idade, anos de carreira etc] e
também dos alunos [quantidade por classe, idade média
etc].
• Categoria B – Espaço físico e organização do tempo: a
possibilidade de compreensão das posturas pedagógicas e
didáticas implícitas sobre a organização do tempo e
espaço.
• Categoria C – Relação interpessoal e didática entre os
sujeitos do espaço escolar: disponibiliza uma análise em
função dos relacionamentos dentro da sala de aula, entre
professor e alunos - expectativas, necessidades,
percepções, relações.
Foram utilizados os seguintes instrumentos para a coleta de
dados: 1) elaboração do questionário aplicado aos educadores, cujas
questões procuraram contemplar as categorias levantadas; 2)
observação, pela pesquisadora, das relações pedagógicas em sala de
aula, com registro das informações; 3) confronto destas informações
com as respostas obtidas nos questionários buscando as possíveis
relações [contradições ou não] ocorridas entre a teoria e a prática e
suas conseqüências na sala de aula, com os alunos.
A pesquisa foi realizada em meados do ano letivo de 2005
[Maio e Junho]; o estudo tem um relato descritivo, expondo
informações que enriqueceram o processo de investigação e as
conclusões posteriores. Desta maneira, a investigação qualitativa,
baseada no método dialético, consistiu na preocupação de estudar e
pesquisar as pessoas reais, o sujeito concreto que se constrói e é
Carmem Lígia Coutinho Santos Faria Maria da Glória Minguili
93
construído na interação com os outros, suas circunstâncias e o
mundo.
INVESTIGAÇÃO DA REALIDADE: O ESTUDO DE CASO
Tomamos como sujeitos da pesquisa quatro professores e
suas respectivas classes de alunos, correspondendo à séries iniciais
do Ensino Fundamental. Os educadores e respectivas classes foram
numerados seqüencial e aleatoriamente de 1 a 4 para não permitir a
identificação dos sujeitos analisados.
No presente artigo, fazemos um pequeno recorte no estudo
de caso, para analisarmos apenas a questão da alfabetização. Iremos
analisar as expectativas, percepções, conceituações e concepções
que envolvem a postura e prática da professora alfabetizadora
pesquisada em relação aos alunos de sua classe segundo as
categorias elencadas inicialmente.
CATEGORIA A – SUJEITOS DO ESPAÇO ESCOLAR
O número de alunos da sala de aula, variava entre 30/35
alunos, a maioria com 7 anos e alguns com 8 anos. A professora, na
época da pesquisa, tinha 56 anos e estava trabalhando com
alfabetização havia 3 meses e na profissão docente há mais ou
menos 20 anos. Possui curso Superior em Pedagogia, porém não
cursou o Magistério em nível médio [antiga habilitação de
magistério no 2º Grau].
O motivo que a levou optar pela profissão foi: “sempre foi
meu sonho”. Assim, pode-se concluir que ela optou pela profissão
Alfabetização: expectativas da professora e a aprendizagem dos alunos
94
para sua auto-realização e não por vontade de contribuir na
formação dos alunos e humanizá-los.
Esta resposta demonstrou o contexto histórico em que esta
educadora vivenciou como aluna: um período em que a Educação
era algo “mágico”, e o educador simbolizava o “poder” [Pedagogia
Tradicional]. Questionada se pudesse voltar ao tempo, faria a mesma
opção, a resposta foi afirmativa.
CATEGORIA B - ESPAÇO FÍSICO E ORGANIZAÇÃO DO TEMPO
Em relação ao espaço físico da sala de aula, a professora
alfabetizadora afirmou ser um espaço satisfatório. Isso se justifica
pela forma que organiza a sala de aula: “em filas indianas”, sem
mudanças. Assim, não há necessidade de um espaço diferente, uma
vez que todas atividades são centralizadas na pessoa da professora,
não favorecendo o dinamismo e movimento dos alunos em classe.
Foi possível comprovar práticas tradicionais, exatamente
como Saviani (2002) exemplifica, pois a educadora organiza a sala
em filas, utiliza mecanismos de controle para manter os alunos em
silêncio, disciplinados [repreensão].
Sobre os mecanismos de controle utilizados, pode-se
observar a “pressão verbal”: chamava a atenção dos alunos, não
parava de falar. Permaneceu em pé o tempo todo e passava em todas
as carteiras, não para verificar o desenvolvimento dos alunos e sim
para manter o silêncio na sala.
Interrogada em relação a um espaço ideal de aprendizagem,
atribui a ele a existência de recursos materiais, pois afirma que
“espaço ideal seria aquele em que houvessem computadores
Carmem Lígia Coutinho Santos Faria Maria da Glória Minguili
95
para todos os alunos”. Dessa forma, inutiliza o papel preponderante
da relação didática interpessoal entre professor e aluno.
Quanto à organização do tempo, ainda objeto de análise
desta categoria, afirmou organizá-lo de acordo com a necessidade da
classe. Porém, durante as observações, detectou-se uma rotina pré-
estabelecida e, algumas vezes, a “improvisação” de atividades sem
planejamento prévio.
Durante as observações, a professora não procurou
acompanhar as dificuldades dos alunos e seus progressos, dando
mais importância ao cumprimento do tempo e atividades
[cronograma] que ao processo de aprendizagem.
O educador deve organizar o seu tempo à sua maneira, pois
não há ninguém que conheça melhor o contexto da classe que ele
mesmo, fugindo do risco de cair no cronometrismo educativo, ou
seja, evitando que isto passe a ser mais importante no lugar de
vivenciar os processos educativos dentro da sala de aula (SEKKEL;
GOZZI, 2003)
CATEGORIA C - RELAÇÃO INTERPESSOAL E DIDÁTICA ENTRE OS
SUJEITOS NO ESPAÇO ESCOLAR
A professora afirmou ter expectativas em relação aos
alunos logo nos primeiros dias de aula. Cinco meses após o início
das aulas, pôde-se verificar que as expectativas construídas no início
do ano letivo permaneceram. Comportava-se em função dos
preconceitos que havia construído sobre os alunos, utilizando a
repreensão para fazê-los acomodarem-se nos tais pré-conceitos.
Alfabetização: expectativas da professora e a aprendizagem dos alunos
96
No entanto, em relação às mudanças nas expectativas
iniciais, a professora afirmou terem ocorrido mudanças: “o grau de
desafios e do conteúdo trabalhado diminuiu”. Porém, o que foi
observado pela pesquisadora é que quando as expectativas iniciais
não são correspondidas, sofrem transformações negativas, ou seja,
os alunos são nivelados “por baixo”. Ao invés da educadora buscar
novas estratégias e metodologias para alcançar os alunos que
demonstraram dificuldades iniciais na alfabetização, preferiu igualar
toda a sala em um mínimo necessário.
Em relação ao conceito de “aluno ideal”, não demonstrou
nenhum tipo de definição. À respeito da didática, percebe-se que a
realidade vivenciada por ela, o que foi registrado pela observação,
bem como pelas respostas que apresentou, indicam falta de clareza
teórico-metodológica, pois não conseguiu definir a concepção que
permeia sua prática pedagógica em sala. As atividades que
desenvolveu em classe com sua turma restringiram-se a cópias e
memorização.
Afirmou manter um bom relacionamento com seus alunos,
porém utiliza uma postura punitiva e não educativa: além de
atrapalhar seu próprio trabalho pedagógico, uma vez que cortou
várias vezes a atividade de leitura coletiva e outras, para chamar a
atenção dos alunos e repreendê-los.
Essa professora é um exemplo de postura tradicional de
educação e organização social: “visa formar gente que saiba repetir
as idéias do chefe, e cumprir as ordens dadas por ele”.
(FLEURI,1990)
Carmem Lígia Coutinho Santos Faria Maria da Glória Minguili
97
PROPOSTAS E CONSIDERAÇÕES FINAIS
Após os estudos, observações e análises dos dados, pode-se
concluir que a professora-alfabetizadora analisada, apesar de ter
formação em nível de Educação Superior no Curso de Pedagogia,
não utiliza em sua prática as teorias que estudou no curso de
Graduação.
Possui expectativas em relação aos alunos, pois quando
afirmou que “diminuiu o grau de dificuldades das atividades
para os alunos”, demonstrou que havia idealizado uma classe de
alunos homogêneos, sem dificuldades de aprendizagem e problemas
de disciplina. Por isso utilizava meio punitivo para manter a ordem e
igualar a turma, ou seja, não resolver as dificuldades de
aprendizagem dos alunos, mas “discipliná-los” para não ela,
professora, ter problemas.
Não apresentou conceitos alternativos em relação ao espaço
físico, humano, pedagógico e político da sala de aula. Ainda trabalha
de uma maneira tradicional, baseada em expectativas e preconceitos,
acreditando na existência de um aluno ideal. Essa expectativa não
permitiu, aos alunos, um aprofundamento pedagógico na questão da
alfabetização.
A professora pesquisada viveu sua juventude num período
em que o país estava mergulhado na ditadura, mas “prenhe de
sonhos” de liberdade. Os educadores, estudantes, artistas e
intelectuais formaram uma grande massa de resistência à ditadura,
gestaram a transição democrática. No entanto, mesmo vivenciando
esse período de abertura política da qual a Educação era um dos
suportes, manifestou, na prática pedagógica do cotidiano escolar,
Alfabetização: expectativas da professora e a aprendizagem dos alunos
98
hoje [2005], uma postura tradicional, fundamentada na expectativa
do “aluno ideal” e estratégias repressivas, bem como excludentes,
para alcançar esse aluno ideal. Não o alcançando, deixa-se de lado,
sem ensiná-lo a vencer as possíveis dificuldades, muitas vezes
criadas pelo próprio professor.
Ao concluir este trabalho de estudo de caso, sem querer
generalizar, podemos afirmar que o tradicionalismo é algo muito
forte, que está ainda enraizado no cotidiano escolar. Cabe a nós,
educadores, buscarmos a superação desta prática, através do
processo ação/reflexão/ação, fundamentada numa clareza teórico-
metodológica que contemple o ser humano por inteiro, dentro de
suas possibilidades biológicas, cognitivas, afetivas e sócio-
históricas: o sujeito que se constrói na inter-relação consigo mesmo,
com os outros e com o mundo.
Ao educador compete analisar a realidade onde atua, para
poder modificá-la mediante um planejamento de ação inteligente.
Não é algo imediato, de improviso, ou então, uma rotina copiada ano
após ano, fundamentada num “ideal” a atingir. O trabalho do
educador tem que ser, na verdade, um processo dinâmico, que
envolve reflexão sobre a realidade, conhecimento teórico-prático e
sensibilidade ao interagir com pessoas, particularmente com alunos
em desenvolvimento.
Carmem Lígia Coutinho Santos Faria Maria da Glória Minguili
99
REFERÊNCIAS
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FLEURI, R. M. Educar para quê ? 3.ed. São Paulo: Cortez, Uberlândia, 1990 (Biblioteca da Educação. Série 1. Escola, v. 12)
FREIRE, P. Ensinar exige tomada consciente de decisões. In: FREIRE, P. Pedagogia da autonomia: saberes necessários à prática educativa. 14.ed. São Paulo: Paz e Terra, 1996
ITANI, A. Vivendo o preconceito em sala de aula. In : AQUINO, J. G. (Org.) Diferenças e preconceito na escola: alternativas teóricas e práticas. 3.ed. São Paulo: Summus, 1998. p. 119-134
MEKSENAS, P. Sociologia da educação: introdução ao estudo da escola no processo de transformação social. 7.ed. São Paulo: Edições Loyola, 1995.
PATTO, M. H. (Org.) Introdução à psicologia escolar. São Paulo: Libertad, 1986. p. 258-295.
PIAGET, J. Seis estudos de psicologia. Trad. Maria Alice Magalhães D’ Amorim [et al.] 22.ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1997.
PIMENTA, S. G. Saberes da docência. In: PIMENTA, S. G. (Org.) Saberes pedagógicos e atividade docente. 3.ed. São Paulo: Cortez, 2002.
SAVIANI, D. Escola e democracia. 35. ed. Campinas, SP: Autores Associados, 2002 (Coleção Polêmicas do Nosso Tempo; v. 5)
ROSENTHAL, R., JACOBSON, L. Profecias auto-realizadoras na sala de aula: as expectativas dos professores como determinantes não intencionais da capacidade intelectual dos alunos. In: PATTO, M.H. (Org.). Introdução à psicologia escolar. São Paulo: Libertad, 1986. p.258-295.
SEKKEL, M. C., GOZZI, R. M. O espaço: um parceiro na construção das relações entre pessoas e o conhecimento. In:
Alfabetização: expectativas da professora e a aprendizagem dos alunos
100
NICOLAU, M. L. M. et al. Oficina de sonhos em realidade na formação da educação da infância. 2.ed. Campinas: Papirus, 2003. p.11-37.
SILVA, S. A. I. Valores em educação: o problema da compreensão e da operacionalização dos valores da prática educativa. 2.ed. Petrópolis: Vozes, 1986.
VASCONCELLOS, C. S. Para onde vai o professor?: resgate do professor como sujeito de transformação. São Paulo: Libertad, 2003.
VYGOTSKY, L. S. A formação social da mente. 4.ed. São Paulo: Martins Fontes, 1991.
Vera Lúcia Messias Fialho Capellini Edson Alexandre de Lima Célia Regina F. Bortolozo
101
ERA UMA VEZ... OS CONTOS DE FADAS E A
ALFABETIZAÇÃO
Vera Lúcia Messias Fialho Capellini
Edson Alexandre de Lima
Célia Regina F Bortolozo
RESUMO Toda criança se encanta com contos de fadas. Por isso a importância de utilizá-los dentro do processo de alfabetização, principalmente nos anos iniciais do Ensino Fundamental. Este estudo tem por objetivo possibilitar a formação dos professores que atuam na Educação Infantil e nas séries iniciais do Ensino Fundamental, apresentando-lhes uma metodologia de alfabetização baseada nos contos de fadas, capaz de estimular, de forma prazerosa, os alunos provenientes destas séries, bem como contribuir muito para um maior desenvolvimento das capacidades de leitura e escrita dos mesmos.
PALAVRAS CHAVES: Contos de fadas; alfabetização; leitura e escrita.
Era uma vez... os contos de fadas e a alfabetização
102
INTRODUÇÃO
Ao iniciar um trabalho sobre a leitura e a escrita muito pode
vir à cabeça, especialmente porque ambos os termos são assuntos
muito discutidos e debatidos no meio acadêmico, em inúmeros
congressos e livros. Mesmo assim, é certo que há muito que discutir
a respeito, ainda mais quando se olha para o sistema educacional
brasileiro atual e percebe-se a grande problemática de alunos com
idade própria para já estarem alfabetizados e que ainda mostram-se
com muitas dificuldades, tanto em leitura quanto em escrita. Muitas
vezes até conseguem ler, mas não conseguem entender ou interpretar
aquilo que lêem.
O Brasil dispõe hoje de uma das legislações mais avançadas
do mundo em termos de proteção aos direitos da infância e da
adolescência: o Estatuto da Criança e do Adolescente - Lei 8069, de
13 de junho de 1990 (BRASIL, 1990). Infelizmente, vemos que tal
legislação não conseguiu modificar a terrível realidade do
analfabetismo brasileiro. Segundo o Censo de 2004, ainda temos em
torno de 15% da população considerada analfabeta (BRASIL, INEP,
2006).
É neste contexto histórico-social que faz surgir uma
inquietação pedagógica no sentido de querer banir esta deficiência
do sistema educacional brasileiro, ou seja, de nossas escolas. Como
professor, o convívio com esta realidade tão triste e ao mesmo
tempo tão instigante é inevitável. Não se trata, simplesmente, de
alguns dados estatísticos, mas sim de uma realidade muito comum e
que, de tão comum, acaba se tornando incômoda.
Vera Lúcia Messias Fialho Capellini Edson Alexandre de Lima Célia Regina F. Bortolozo
103
Não há como entrar numa sala de aula e simplesmente
despejar nos alfabetizandos todo o conteúdo alienado que se propõe
a trabalhar com o alfabeto e as famílias silábicas, sem nenhum
contexto. Não tem como se acomodar dentro de um orgulho
pedagógico, vendo o aluno como aquele que não sabe e que, por
isso, tem que aceitar tudo o que lhe é proposto. Assim, já que o
aluno é tido como alfabetizando e não como analfabeto, se insere
num processo criador, de que ele é também sujeito (FREIRE, 1999,
p. 29).
Pode se afirmar sobre a necessidade de se levar em
consideração a realidade histórico-social na qual os alfabetizandos
se encontram. Antes de lhes mostrar e lhes cobrar as letras, há que
despertá-los para que possam ler o mundo no qual vivem. Faz-se
necessário trazer para a sala de aula o universo vocabular que lhes é
significante. Nestes termos “leitura da palavra foi à leitura da
palavramundo”, neologismo perfeito criado por Freire (1999), que
resume de forma singular e precisa esta dialética existente entre
leitura da palavra e leitura do mundo, numa visão histórico-social de
Educação.
Para Pinto (1993), uma visão crítica de educação é aquela
que se propõe a praticar mais que simples conteúdos escolares, a
matéria propriamente dita. O conteúdo da Educação vai muito mais
além.
O conteúdo da educação não está constituído somente pela “matéria” que se ensina, mas incorpora a totalidade das condições objetivas que concretamente pertencem ao ato educacional, assim, são parte do conteúdo da educação: o professor, o aluno, ambos com todas suas condições sociais e pessoais, as instalações da escola, os livros e
Era uma vez... os contos de fadas e a alfabetização
104
materiais didáticos, as condições locais da escola, etc (PINTO, 1993, p. 42).
Não se trata aqui de negar a função social da escola de
sistematizar o saber elaborado construído historicamente. Nem ao
menos deixar que o aluno entre e saia da escola da mesma forma que
entrou. A escola tem, por excelência, que possibilitar oportunidades
de ampliação dos conhecimentos por parte do educando. Porém,
sempre o respeitando e partindo daquilo que o mesmo traz consigo,
sua bagagem cultural. Neste sentido, o aluno é encarado como
sujeito de sua própria aprendizagem.
O processo de aprendizagem de uma escrita que nega a funcionalidade desta forma de interlocução, nega a subjetividade de autor e leitor e, sobretudo, nega o direito de usar a escrita para dizer a própria palavra (SOARES, 2004, p. 81).
De acordo com César Coll (2004), a alfabetização, dentro
de uma perspectiva construtivista de educação, é encarada como um
processo de aprendizagem e desenvolvimento que se inicia antes
mesmo da escolarização formal e acompanha o indivíduo durante
toda a sua vida.
Para Azevedo (1997) o objetivo final da alfabetização está
em fazer com que todas as crianças construam uma teoria que esteja
em consonância adequada em relação ao fonema–grafema, o falado
e o escrito na língua portuguesa, ou seja, alfabetizar é o mesmo que
fazer com que todos cheguem ao domínio da hipótese alfabética.
A alfabetização está vinculada à luta pela conquista da
cidadania, porém, ainda assim a alfabetização “não é condição
imprescindível ao exercício ou à conquista da cidadania” (SOARES,
Vera Lúcia Messias Fialho Capellini Edson Alexandre de Lima Célia Regina F. Bortolozo
105
2004, p. 57). A autora completa afirmando que há também que situar
a alfabetização no tempo histórico e no espaço político–social em
que a mesma ocorre ou deve ocorrer. Nestes termos:
A alfabetização é um instrumento necessário à vivência e até mesmo à sobrevivência política, econômica, social, e é também um bem simbólico, um bem cultural, instância privilegiada e valorizada de prestígio e de poder (SOARES, 2004, p. 58).
Soares afirma que a alfabetização não é condição
imprescindível para a conquista da cidadania, mostra também que
esta só acontecerá quando, ao promover a alfabetização, seja
propiciado ao educando condições que faça com que os indivíduos
se tornem conscientes de seu direito à leitura e à escrita, ou seja,
perceber-se com direitos de reivindicar o seu acesso à leitura e a
escrita.
É dentro desta perspectiva de alfabetização que Pinto
(1985) afirma que alfabetizar está relacionado à constituição de uma
consciência crítica no educando, ou seja, conclui que alfabetizar é
[...] constituir no educando uma consciência crítica de si e de sua realidade, e admite que, como elemento, como parte dessa consciência, surge espontaneamente a compreensão da necessidade de alcançar um plano mais elevado do saber, o plano letrado. (PINTO, 1985, p. 98).
Segundo Moura
a alfabetização consiste num processo pedagógico e epistemológico e deve possibilitar ao sujeito, a apropriação do sistema de representação da linguagem escrita e a sua conseqüente reconstrução e utilização para si como objeto possibilitador da apropriação de novos
Era uma vez... os contos de fadas e a alfabetização
106
conhecimentos e de intervenção em diferentes situações sociais (MOURA, 1999, p. 140).
Diante de todas estas afirmações a respeito do termo
alfabetização, fica evidente o papel social, político e transformador
que a mesma exerce na vida do educando de um modo geral. Por
outro lado, não há como desprezar a função alienadora e dominadora
que a alfabetização pode exercer sobre a vida das pessoas, uma vez
que
[...] a introdução, tanto da criança quanto do adulto no mundo da escrita vem-se fazendo, quase sempre, mais para controlar, regular o exercício da cidadania que para liberar para esse exercício. Alfabetiza-se para que o indivíduo seja mais produtivo ao sistema, não para que se aproprie de um bem cultural fundamental à conquista da cidadania (SOARES, 2004, p.59).
Caberá ao professor reorganizar essa função politicamente
distorcida que os programas de acesso à leitura e à escrita vêm quase
sempre exercendo. Há que se colocar caminhos para que o acesso à
alfabetização seja marcado pelo significado que o vincula à
conquista e ao exercício da cidadania.
CONTOS DE FADAS E A ALFABETIZAÇÃO
Embora os contos de fadas terminem logo depois da décima página, o mesmo não acontece a nossa vida. Somos coleções com vários volumes. Em nossa vida, ainda que um episódio possa terminar mal, sempre há outro em nossa espera e depois desse, mais outro. Sempre há novas oportunidades para consertar o estrago, para moldar nossa vida da forma que emocionalmente merecemos. Não perca tempo odiando um insucesso. O insucesso é um mestre melhor do que o sucesso. Escute. Aprenda. Continue. Essa é a essência de todo conto. Quando prestamos
Vera Lúcia Messias Fialho Capellini Edson Alexandre de Lima Célia Regina F. Bortolozo
107
atenção a essas mensagens do passado, aprendemos que há ladrões desastrosos, mas também aprendemos a prosseguir com a energia de quem percebe as armadilhas, jaulas e iscas antes de depararmos com ela ou de sermos nelas ou por elas capturados (ÉSTES, 2005, p. 11).
É fato que na literatura sobre educação muito se encontre a
respeito de metodologias para se enfrentar o problema das
“dificuldades de aprendizagem”, muito também se fala a respeito de
metodologias de alfabetização. Todas estas estratégias podem ser
utilizadas e apresentarem sucesso ou não, dependendo de cada
contexto, de cada aluno, de cada professor.
Este trabalho tem como objetivo propor uma intervenção
por meio de contos de fadas, visando minimizar os problemas de
aprendizagem na alfabetização, não será mencionado aqui as outras
tantas possibilidades de intervenções existentes.
Era uma vez... uma criança que adorava ouvir histórias... ela mais nada esperava que viver cada momento, mas a cada passo dado nesse mundo de sonho e fantasia, pouco a pouco, sem o perceber, está encontrando um sentido para a vida... E quanto àquela criança que adorava ouvir histórias?... O mais importante que resta disso tudo é que nunca esqueçamos a lição... crianças, jovens e adultos, no mundo das fadas, todos seguimos encantados e ... FELIZES PARA SEMPRE! (URBAN, 2001, p.17).
A literatura infantil surgiu somente no século XVII, com a
descoberta da imprensa. As histórias infantis e os contos populares,
no entanto, existem desde que o ser humano adquiriu a fala. Há
notícias de histórias antigas na África, na Índia, na China, no Japão e
no Oriente Médio — como a coleção de contos árabes As Mil e Uma
Noites. A fantasia é um mecanismo inventado pelo homem na Era
Medieval para superar as dificuldades da vida real, conta Canton
Era uma vez... os contos de fadas e a alfabetização
108
(1984), especialista em contos de fadas pela Universidade de Nova
York.
A origem dos contos de fadas parece residir em uma
potencialidade humana arquetípica [aliás, não somente os contos de
fadas, como todas as fantasias]. Antigamente os pastores, lenhadores
e caçadores passavam bom tempo de suas vidas sozinhos nas
florestas, campos e montanhas. Acontecia que, repentinamente, eram
assaltados por uma visão interior muito forte, que os alvoroçava por
inteiro. Corriam, então, de volta a suas aldeias e relatavam o que
lhes tinha acontecido a todos que quisessem ouvir.
Daquela visão inicial, iam-se formando lendas e, mais
tarde, “contos maravilhosos”. O pensamento mítico, no caso dessas
visões espontâneas, é compreendido como um pensamento
essencialmente pré-lógico, elementar e arquetípico. Os arquetípicos,
por definição, são fatores e motivos que ordenam os elementos
psíquicos em imagens, de modo típico (CANTON, 1984).
Como afirma Giglio (1991), os contos de fadas
constituíram, através dos séculos, instrumentos para a expressão do
pensamento mítico, perpetuando-se no tempo por desempenharem
uma função psíquica importante relacionada ao processo da
individuação, por meio deles toma-se consciência e vivenciam-se
arquétipos do inconsciente coletivo.
Em Giglio (1991), os contos de fadas numa visão
junguiana, são uma representação simbólica de problemas gerais
humanos e suas soluções possíveis, ou seja, as representações da
fantasia são tão primárias e originais como os próprios desejos e
instintos. Nos conteúdos dos contos de fadas, é possível ver uma
projeção dos estágios originais e arquetípicos do desenvolvimento
Vera Lúcia Messias Fialho Capellini Edson Alexandre de Lima Célia Regina F. Bortolozo
109
da consciência humana. Nos símbolos do inconsciente, nos sonhos e
fantasias, encontram-se os mesmos princípios da expressão dos
mitos e contos de fadas, o que representa um recurso fundamental no
processo do desenvolvimento humano.
Conforme Araújo (1980), para Jung, certas lendas, mitos e
símbolos têm origem na infância da humanidade em que, faltando
recursos intelectuais, o homem apresentava uma disposição natural
para aceitar o sobrenatural. Seria, assim, uma necessidade
psicológica de buscar soluções mágicas e de criar seres fantásticos
para superar uma realidade que lhe impunha limitações. O
inconsciente coletivo guardaria, assim, uma necessidade de retorno
às origens do homem revivendo experiências anteriores da
humanidade.
De acordo com Canton (1984), quem lê Cinderela não
imagina que há registros de que essa história já era contada na
China, durante o século IX d.C. E, assim como tantas outras, tem-se
perpetuado há milênios, atravessando toda a força e a perenidade do
folclore dos povos, sobretudo, mediante a tradição oral.
Pode-se dizer que os contos de fadas, na versão literária,
atualizam ou reinterpretam, em suas variantes, questões universais,
como os conflitos do poder e a formação dos valores, misturando
realidade e fantasia, no clima do "Era uma vez...”. Por lidarem com
conteúdos da sabedoria popular, com conteúdos essenciais da
condição humana, é que esses contos de fadas são importantes,
perpetuando-se até hoje. Neles encontramos o amor, os medos, as
dificuldades de ser criança, as carências materiais e afetivas, as
autodescobertas, as perdas, as buscas, a solidão e o encontro
(CANTON, 1984).
Era uma vez... os contos de fadas e a alfabetização
110
Os contos de fadas, segundo Canton (1984), caracterizam-
se pela presença do elemento "fada". Etimologicamente, a palavra
fada vem do latim fatum [destino, fatalidade, oráculo]. Tornaram-se
conhecidas como seres fantásticos ou imaginários, de grande beleza,
que se apresentavam sob forma de mulher. Dotadas de virtudes e
poderes sobrenaturais, interferem na vida dos homens, para auxiliá-
los em situações-limite, quando já nenhuma solução natural seria
possível.
Podem, ainda, encarnar o mal e apresentarem-se como o
avesso da imagem anterior, isto é, como bruxas. Vulgarmente, se diz
que fada e bruxa são formas simbólicas da eterna dualidade da
mulher, ou da condição feminina.
Algumas histórias tratam de temas que fazem parte da
tradição de muitos povos e apresentam soluções para problemas
universais. É o caso de O Pequeno Polegar. O personagem
representa o desejo de vingança do mais fraco contra o mais forte.
Os pequenos se identificam com os heróis e experimentam diversas
emoções. Que criança não fica com medo ao imaginar o Lobo Mau
devorando a Vovozinha? Ou odeia a bruxa quando ela prende
Rapunzel na torre?
Para a escritora Ana Maria Machado, os contos de fadas
pertencem ao gênero literário mais rico do imaginário popular.
"Essas histórias funcionam como válvula de escape e permitem que
a criança vivencie seus problemas psicológicos de modo simbólico,
saindo mais feliz dessa experiência”.
A idéia foi difundida após a divulgação dos estudos do
psicólogo austríaco Bruno Bettelheim [1903-1990]. Para ele,
nenhum tipo de leitura é tão enriquecedor e satisfatório do que os
Vera Lúcia Messias Fialho Capellini Edson Alexandre de Lima Célia Regina F. Bortolozo
111
contos de fadas, pois eles ensinam sobre os problemas interiores dos
seres humanos e apresentam soluções em qualquer sociedade. Ou
seja, a fantasia ajuda a formar a personalidade e, por isso, não pode
faltar na educação. "A criança aumenta seu repertório de
conhecimentos sobre o mundo e transfere para os personagens seus
principais dramas", diz a terapeuta Mariúza Pregnolato Tanouye, de
São Paulo.
Uma obra é clássica e referência em qualquer época quando
desperta as principais emoções humanas. O que os pequenos mais
temem na infância? A separação dos pais; e esse drama existencial
aparece logo no começo de muitas histórias consideradas referências
na literatura. Para Bettelheim (1980), a agressividade e o
descontentamento com irmãos, mães e pais são vivenciados na
fantasia dos contos: o medo da rejeição é trabalhado em João e
Maria, a rivalidade entre irmãos em Cinderela e a separação entre as
crianças e os pais em Rapunzel e O Patinho Feio.
A leitura das histórias no passado tinha um propósito muito
claro: apontar padrões sociais para as crianças. O objetivo das moças
ingênuas era encontrar um príncipe, como mostrado em A Bela
Adormecida e Cinderela. Em A Polegarzinha, de Andersen, a
recompensa final da protagonista, Dedolina, também era o
casamento. Já garotas desobedientes, como Chapeuzinho Vermelho,
deparavam com situações dramáticas, como enfrentar o Lobo Mau.
Essa história tinha forte caráter moral na sociedade rural do século
17: camponesas não deviam andar sozinhas. "Isso mostra como os
contos serviam para instruir mais que divertir”, afirma Mariúza.
O enredo básico dos contos de fadas expressa os
obstáculos, ou provas, que precisam ser vencidas, como um
Era uma vez... os contos de fadas e a alfabetização
112
verdadeiro ritual iniciático, para que o herói alcance sua auto-
realização existencial, seja pelo encontro de seu verdadeiro "eu",
seja pelo encontro da princesa, que encarna o ideal a ser alcançado.
De acordo com Oliveira (2006) a estrutura básica dos
contos de fadas é:
• Início: nele aparece o herói [ou heroína] e sua
dificuldade ou restrição. Problemas vinculados à
realidade, como estados de carência, penúria, conflitos
etc., que desequilibram a tranqüilidade inicial;
• Ruptura: é quando o herói se desliga de sua vida
concreta, sai da proteção e mergulha no completo
desconhecido;
• Confronto e superação de obstáculos e perigos: busca
de soluções no plano da fantasia com a introdução de
elementos imaginários;
• Restauração: início do processo de descobrir o novo,
possibilidades, potencialidades e polaridades opostas;
• Desfecho: volta à realidade. União dos opostos,
germinação, florescimento, colheita e transcendência.
Canton (1984) afirma que é fácil reconhecer um conto de
fadas. Animais que falam, fadas madrinhas, reis e rainhas não
podem faltar, assim como a introdução "era uma vez". As narrativas
se passam em um lugar distante — "muito longe daqui" — e têm
personagens com nomes comuns ou apelidos, como João e
Chapeuzinho Vermelho. Esses elementos facilitam a memorização e
tornam a narrativa apropriada à oralidade.
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113
Por que histórias de reis e rainhas e de moçoilas à espera de um príncipe ainda fazem sentido hoje em dia? "Os contos são um patrimônio da humanidade. Eles foram escritos em outra época e a criança consegue compreender isso. Clássicos são clássicos porque se perpetuam, e as obras infantis devem ser respeitadas como a literatura para adultos". [...] no entanto, que as histórias mudam de acordo com a cultura e a época. Canibalismo e incesto, por exemplo, foram retirados de histórias antigas. Na versão original de Chapeuzinho Vermelho, o Lobo devora a Vovó e a própria Chapeuzinho, e o Caçador não existe. A vida da menina foi poupada na versão dos irmãos Grimm (CANTON, 1984, p. 89).
A tendência de retirar o mal, o medo e o castigo das
narrativas é forte atualmente. As mudanças de enredo apaziguam as
emoções que precisam ser vividas. Canton (1984) explica que não é
saudável evitar que as crianças enfrentem os conflitos.
Assim, é possível usar e abusar de filmes que recontam A
Bela e a Fera e O Patinho Feio, por exemplo, mas é preciso
apresentar primeiro as obras que mais se aproximam dos originais.
Um critério é escolher livros traduzidos por um escritor conhecido.
Fazer paródias, promover uma visão crítica dos temas tratados e
indicar a época em que as novas versões foram escritas ajudam a
garotada a refletir.
Para Lajolo e Zilberman (2001), o mais importante é que
pais e professores se sintam confortáveis ao contar uma história.
Todos os estudiosos do assunto afirmam que as crianças gostam de
violência. Aliás, um dos prazeres da arte, para crianças e adultos,
parece ser exatamente a sensação de viver por empréstimo grandes
aventuras, grandes amores e... grandes crueldades também.
Os contos de fadas não surgem na sala de aula como uma
ação mágica, por meio de uma varinha de condão, sendo assim o
responsável pela resolução dos problemas identificados dentro do
Era uma vez... os contos de fadas e a alfabetização
114
sistema educacional brasileiro. No entanto, os contos de fadas
surgem como uma alternativa, dentre as muitas existentes, como um
facilitador do processo de aprendizagem (BETTELHEIM, 1980).
Bettelheim (1980, p.13) comenta que os contos de fadas são
muito ricos quando aplicados à educação e, com toda certeza, os
mesmos poderão garantir o desenvolver em sala de aula de trabalhos
muito ricos, uma vez que “nada é tão enriquecedor e satisfatório
para a criança, como para o adulto, do que o conto de fadas”.
Neste sentido, autores consagrados, como é o caso de
Bruno Bettelheim, justificam o uso dos contos de fadas como
recurso didático em sala de aula. Esta arte tão rica não deve ser
simplesmente reduzida a uma arte menor que se limitava a um
simples recurso pedagógico, mas sim explorar toda a sua riqueza
estrutural e psicológica, as quais, na atualidade, são amplamente
discutidas, reconhecidas e valorizadas.
Ainda que este trabalho proponha o uso do conto de fadas
como recurso de trabalho, não se pretende reduzi-los ou segregá-los
à condição única de recurso didático, e sim ampliar suas
potencialidades, de modo a transcender os limites da escola.
O prazer que experimentamos quando nos permitimos ser suscetíveis a um conto de fadas, o encantamento que sentimos não vêm do significado psicológico de um conto... mas das suas qualidades literárias (BETTELHEIM, 1980, p. 20).
Mas para que um conto de fadas possa verdadeiramente
cumprir sua função de encantamento, de magia, de construção da
personalidade, há que ser muito bem ouvido, o que necessariamente
exigirá que o mesmo seja muito bem contado.
Vera Lúcia Messias Fialho Capellini Edson Alexandre de Lima Célia Regina F. Bortolozo
115
Se o adulto não tiver condições emocionais para contar a história inteira, com todos os seus elementos, suas facetas de crueldade, de angústia (que fazem parte da vida, senão não fariam parte do repertório popular...), então é melhor dar outro livro para a criança ler (ABRAMOVICH, 1989, p. 121).
Quando a questão da magia presente nos contos de fadas é
mencionada pela autora, fica claro que “a magia não está no fato de
haver uma fada já anunciada no título, mas na sua forma de ação, de
aparição, de comportamento, de abertura de portas, na sua
segurança” (ABRAMOVICH, 1989, p. 121).
É na infância que o ser humano constrói sua personalidade,
e os contos vêm para facilitar ou contribuir com sugestões em forma
simbólica sobre a forma como este indivíduo poderá lidar com
algumas situações que aparecerem durante a vida, crescendo, assim,
a salvo para a maturidade (BETTELHEIM, 1980).
Afinal nos contos de fadas o mal é tão presente quanto a virtude. Em praticamente todo conto de fadas o bem e o mal recebem corpo na forma de algumas figuras e de suas ações, já que bem e mal são onipresentes na vida e as propensões para ambos estão presentes em todo homem (BETTELHEIM, 1980, p. 15).
Ainda que os contos estejam recheados de questões
relacionadas à formação psicológica do ser e de despertar para uma
vida adulta mais saudável a respeito de como lidar com as questões
cotidianas, não há como desprezar a magia, já citada, e o
maravilhoso, nos quais os contos de fadas estão contidos. E por que
os contos de fadas estão contidos no maravilhoso?
Era uma vez... os contos de fadas e a alfabetização
116
Porque se passam num lugar que é apenas esboçado, fora dos limites do tempo e do espaço, mas onde qualquer um pode caminhar. Porque as personagens são simples e colocadas em inúmeras situações diferentes, onde têm que buscar e encontrar uma resposta de importância fundamental, chamando a criança a percorrer e a achar junto uma resposta sua para o conflito (ABRAMOVICH, 1989, p. 120).
É nesse sentido que Éstes (2005) afirma que
quando as pessoas ouvem os contos, não estão propriamente “ouvindo”, mas lembrando; lembrando ideais inatos. Quando o corpo ouve contos, algo ecoa em seu interior. Um forte “viento dulce”, o sopro doce que carrega o conto, revela os sentimentos íntimos que se escondem sob sua superfície (ÉSTES, 2005, p. 12).
Assim, os educadores necessitam de uma consciência tal
que os faça perceber a necessidade de ter os contos de fadas não
simplesmente como um recurso didático em sala de aula, mas
também como uma forma rica de entretenimento, que deverá
transcender às paredes da sala de aula e aos muros da escola.
O uso das histórias para entreter tem suas raízes na palavra latina “intertenere” que significa “inter”, entre + ‘tenere”, deter. “Entreter” significa deter alguma coisa mutuamente, unir entrelaçando. A palavra contém a idéia de reciprocidade, ou seja, que cada um mantém o outro no estado ou condição desejada (ÉSTES, 2005, p.14).
O mais mágico de tudo o que há nos contos de fadas,
quando se faz referência à questão do entretenimento, é que os
mesmos não mostram respostas prontas e acabadas para as situações
apresentadas. Assim, a lógica dos contos de fadas caminha por um
terreno que não é o mesmo da lógica de outros tipos de literaturas,
pois “a preocupação do conto de fadas não é uma informação útil
Vera Lúcia Messias Fialho Capellini Edson Alexandre de Lima Célia Regina F. Bortolozo
117
sobre o mundo exterior, mas sobre os processos interiores que
ocorrem num indivíduo” (BETTELHEIM, 1980, p. 34).
Os contos têm o poder de suscitar esquemas nos diferentes
ouvintes, de formas tão particulares e singulares que deixam a
impressão de serem histórias personalizadas, dirigidas a cada
ouvinte em particular. Desta forma, os contos de fadas tornam-se
atemporais e de suma importância à vida de cada ouvinte, seja este
criança ou adulto.
As estórias de fadas não pretendem descrever o mundo tal como é, nem aconselham o que alguém deve fazer... Os contos de fadas dirigem a criança para a descoberta de sua identidade e comunicação, e também sugerem as experiências que são necessárias para desenvolver ainda mais o seu caráter. (BETTELHEIM, 1980, p. 32-33).
CONSIDERAÇÕES FINAIS
É por estes e muitos outros motivos que o presente trabalho
mostra-se no dever de propor uma experiência de motivação para o
desenvolvimento da alfabetização e da aprendizagem com um
recurso tão rico e tão necessário à vida de qualquer ser humano, do
ponto de vista literário. Recurso este que nada mais é do que uma
das mais fabulosas formas de expressão artística: os contos de fadas.
É nesta dimensão de análise e de estudo pedagógico dos
contos de fadas que fica claro que, a partir da motivação suscitada
pelos contos, a aprendizagem se tornará muito mais interessante e
muito mais estimulante. Ainda mais se o conto conseguir atingir
profundamente a emoção do educando.
Era uma vez... os contos de fadas e a alfabetização
118
Desde a descoberta do fogo, os seres humanos se sentem atraídos pelos contos místicos. Por quê? Porque apontam para um fato importante: embora a alma em sua viagem possa tropeçar ou se perder, no fim ela encontrará seu coração, sua natureza divina, sua força, seu caminho para Deus em meio à floresta sombria – ainda que leve vários episódios ou “dois passos à frente e um atrás” para descobri-los e recuperá-los (ÉSTES, 2005, p. 11).
Assim acontece com cada uma das pessoas, seja no setor
pessoal de suas vidas, seja durante o processo de alfabetização
durante o período de suas vidas escolares. Portanto, que seja mágico,
porém que não deixe de ser real, consistente e eficiente, o processo
de desenvolvimento da aprendizagem e da aquisição de leitura e
escrita, para que todos, após concluírem este processo, da melhor
forma possível, possam dizer de suas próprias vidas... “e viveram
felizes para sempre”...
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Ana Maria Lombardi Daibem Mariana Vaitiekunas Pizarro
121
AS HISTÓRIAS EM QUADRINHOS E O EDUCADOR: UMA
PRÁTICA PEDAGÓGICA EM CONSTRUÇÃO
Ana Maria Lombardi Daibem
Mariana Vaitiekunas Pizarro
INTRODUÇÃO
A sala de aula torna-se um espaço cada vez mais plural e
inovador. Os educadores, em sua maioria, buscam inserir em sua
prática uma grande variedade de materiais e linguagens que possam
contribuir de maneira significativa para o processo ensino-
aprendizagem.
As histórias em quadrinhos surgem na realidade escolar de
maneira tímida, após muitos anos de marginalização e censura,
especialmente por parte dos mais tradicionais que viam nesse
veículo um perigo para a mente fértil de crianças e adolescentes.
Aos poucos se desfaz aquela visão extremamente deturpada
que se tinha dos quadrinhos entre os anos de 1950 e as últimas
décadas do século XX, onde se acreditava que os mesmos poderiam
comprometer seriamente o hábito de leituras mais sérias,
As histórias em quadrinhos e o educador: uma prática pedagógica em construção
122
corrompendo “...as inocentes mentes de seus indefesos leitores.”
(VERGUEIRO, 2004).
No momento em que as historias em quadrinhos, ou
simplesmente “HQs”, como são chamadas, se tornam populares e
começam a despertar o interesse infantil, conseguimos perceber,
com muita clareza, qual era o receio e a aflição de pais e educadores
da época. Como poderia uma leitura popular e, de certa maneira,
marginal e que surgiu nos jornais como forma de entretenimento
puro, ocupar o lugar de clássicos no interesse das crianças? Como
uma criança poderia adquirir cultura e, talvez, até um pouco de
conhecimento com esses quadrinhos coloridos?
Neste panorama, as histórias em quadrinhos nunca foram
vistas como possível alternativa para a prática pedagógica e, sim,
como ressalta Vergueiro:
responsáveis por todos os males do mundo, inimigas do ensino e do aprendizado, corruptoras das inocentes mentes de seus indefesos leitores. Portanto, qualquer idéia de aproveitamento da linguagem dos quadrinhos em ambiente escolar seria, à época, considerada uma insanidade (VERGUEIRO, 2004)
Esse movimento anti-quadrinhos, fortemente endossado por
pais e educadores da época, provocou a criação do Comic Code ou
“Código de Ética”8 dos quadrinhos, que exerceu uma verdadeira
ditadura contra muitos desenhistas e suas produções. Contudo, ao
longo dos anos, sem a existência de pesquisas respeitáveis que
8 Criado em 1940 nos Estados Unidos e posteriormente adotado também no Brasil, o Comic Code ou Código de Ética consistia em regras para publicações e criação de “selos” de censura, visando filtrar os quadrinhos ditos nocivos ao público. Esta medida acabou gerando o desaparecimento de muitos desenhistas e revistas que não se adequavam às exigências do código.
Ana Maria Lombardi Daibem Mariana Vaitiekunas Pizarro
123
comprovassem o real efeito “subversivo” dos quadrinhos em seus
pequenos leitores e com o surgimento de histórias e personagens
voltados para o público infantil, além da entrada massiva dos meios
de comunicação no cotidiano familiar, essa posição equivocada
atribuída aos quadrinhos se dissipa. E, nesse momento, surgem
pesquisadores, desenhistas, leitores e educadores que partem em
defesa dos quadrinhos, como o pedagogo Abrahão Aziz, que
destaca:
Não é, portanto, a literatura em quadrinhos que faz mal à infância; é tôda e qualquer literatura mal orientada, são todos os livros e revistas que caem nas mãos da criança, quando não lhe servem (ABRAHÃO, 1972, p. 169-70)
Assim, as histórias em quadrinhos passam a ser vistas não
mais como puro entretenimento, mas também como transmissora de
mensagens. Timidamente, começam a ser inseridas nos livros
didáticos, vistas agora como um instrumento pedagógico plausível já
que se tornam presentes no material indicado oficialmente para a
sala de aula.
A maior prova da evolução na aceitação dos quadrinhos
enquanto material contribuinte à prática pedagógica está
concretizada nos documentos oficiais do Estado que apresentam as
diretrizes para a Educação Infantil [RCN – Referencial Curricular
Nacional] e o Ensino Fundamental [PCN – Parâmetros Curriculares
Nacionais], mais especificamente os de Língua Portuguesa e Artes,
que recomendam o uso de várias linguagens incluindo as histórias
em quadrinhos em sala de aula.
As histórias em quadrinhos e o educador: uma prática pedagógica em construção
124
No RCN, as histórias em quadrinhos são sugeridas como
um importante material didático no que se refere à prática de leitura
e escrita na educação infantil desde 0 a 6 anos, sendo incluídas
também nos conteúdos pertinentes a essa faixa etária, como um
importante material para observação, manuseio e para a prática de
leitura. Para a faixa etária de 4 a 6 anos especificamente, o
documento apresenta como orientação didática, a promoção de
“...situações em que as crianças precisam descobrir o sentido do
texto apoiando-se nos mais diversos elementos, como nas figuras
que o acompanham, na diagramação, em seus conhecimentos
prévios sobre o assunto, no conhecimento que têm sobre algumas
características próprias do gênero etc.” (BRASIL, 1998), ressaltando
a importância de serem escolhidos materiais que “... possibilitam às
crianças deduzir o sentido a partir do conteúdo, da imagem ou
foto...”.
No PCN de Artes, as histórias em quadrinhos aparecem
como conteúdo presente durante o trabalho com artes visuais, como
meio de expressão, comunicação e também como objeto de
apreciação. Já no PCN de Língua Portuguesa, elas surgem nos
objetivos específicos, como gênero para o trabalho com a linguagem
escrita. De maneira mais geral, o documento salienta que a
“diversidade textual que existe fora da escola pode e deve estar a
serviço da expansão do conhecimento letrado do aluno”. (BRASIL,
2000). Entende-se, portanto, que a presença de textos sociais em sala
de aula devem figurar a preocupação dos professores e também de
seu planejamento, conforme aponta Smoka:
... a leitura e a escrita ganham, fora da escola, outras marcas e se realizam de outras formas no contexto da indústria cultural: não só
Ana Maria Lombardi Daibem Mariana Vaitiekunas Pizarro
125
suas funções, mas seus usos se modificam, se transformam [...]. São as marcas da modernidade, que a escola tem medo de assumir, mas não pode impedir que se revelem. (SMOKA, 2003, p. 80)
Na área de Comunicação notamos que, pela falta de
educadores que apresentassem seu ponto de vista acerca do assunto,
muitos comunicadores acabaram assumindo esse papel em defesa
das histórias em quadrinhos como recurso em sala de aula, tentando
preencher essa lacuna. Como exemplo, podemos citar Sonia Maria
Bibe Luyten, que publicou dois artigos sobre “HQ” e educação
presentes no livro História em Quadrinhos – Leitura Crítica que
reúne vários artigos de outros autores, Flávio Calazans que publicou
História em Quadrinhos na Escola, apresentando uma abordagem
muito mais juvenil do que infantil e, finalmente, Waldomiro
Vergueiro e Ângela Rama que organizaram o livro Como usar
histórias em quadrinhos em sala de aula, onde apontam possíveis
trabalhos com quadrinhos em aulas de Língua Portuguesa,
Geografia, História e Artes.
Contudo, nota-se uma real lacuna de produções
pedagógicas voltadas para a reflexão do uso de quadrinhos em sala
de aula e para a busca da melhor forma de fazê-lo, pois a criança tem
cada vez mais contato com diversos tipos de texto e linguagens no
seu dia a dia, especialmente fora da escola. Os meios de
comunicação exercem cada vez mais influência no processo de
formação da criança e a escola não pode negar essa realidade na
aprendizagem de seus alunos.
Portanto, o papel do educador é fundamental no tocante ao
trabalho com quadrinhos em todos os sentidos, desde a pesquisa
científica no meio acadêmico apresentando um olhar pedagógico
As histórias em quadrinhos e o educador: uma prática pedagógica em construção
126
sobre esse material [que até o presente momento possui poucas
produções realizadas por pedagogos] até a análise e escolha do
material para a sala de aula, o que se pretende com ele, qual é o seu
papel no plano de ensino e, principalmente, na aprendizagem dos
alunos.
UMA PESQUISA COM QUADRINHOS: A TURMA DA MÔNICA E
SEU PAPEL EM SALA DE AULA
A busca por caracterizar o real papel dos quadrinhos em
sala de aula e por compreender a maneira como o educador
incorpora este meio em sua prática pedagógica nos levou a
realização de um estudo sobre essa temática.
O objetivo principal desse estudo foi o de analisar
criticamente a produção de histórias em quadrinhos de Maurício de
Sousa, identificando conteúdos pertinentes ao Ensino Fundamental,
as práticas pedagógicas com histórias em quadrinhos existentes,
visando propor sua aplicação em sala de aula através de formas
didáticas que contribuam para aprimorar qualitativamente o processo
ensino-aprendizagem, tendo em vista também subsidiar programas
de formação continuada para professores.
Para analisar a prática pedagógica de alguns educadores e o
real uso de quadrinhos como um importante recurso para essa
prática, tornou-se condição fundamental conhecer a historicidade
desse material, visando encontrar o momento exato no qual o
caminho dos quadrinhos e da educação se cruzam. Esse resgate
histórico foi de vital importância para compreender o surgimento
dessa nova linguagem comunicacional que tem origem nas pinturas
Ana Maria Lombardi Daibem Mariana Vaitiekunas Pizarro
127
rupestres e foi evoluindo juntamente com as sociedades e sua
cultura. É dentro desse cenário que surge Maurício de Sousa e sua
criação genuinamente brasileira que, no futuro, se tornaria a
mundialmente famosa Turma da Mônica.
Dessa forma, o estudo teve como foco principal o uso das
histórias em quadrinhos Turma da Mônica em sala de aula,
especialmente pelo fato de, mesmo com a concorrência de outros
quadrinhos, ainda ser preferência maciça na faixa etária que
compreende as séries iniciais do ensino fundamental9. Para a
realização desse estudo, além do resgate histórico, foi
imprescindível o estudo sobre a relação quadrinhos e educação,
ensino e aprendizagem, leitura e escrita, que foi elaborado através de
estudos teóricos preliminares.
A escolha da terceira série do ensino fundamental para a
realização desse estudo se deu pelo fato de ser uma série
intermediária entre primeira-segunda séries onde as crianças ainda
se habituam ao uso da leitura e escrita, e a quarta série, onde se
pressupõe que esse aprendizado já esteja mais avançado e autônomo.
Como metodologia de pesquisa, optou-se pela pesquisa
qualitativa com enfoque dialético, que fornece subsídios teórico-
metodológicos para a elaboração de um estudo qualitativo, buscando
o confronto entre teoria e prática e visando a transformação da
realidade através de reflexões sobre a mesma e sobre a prática
humana, como salienta Chizzotti:
9 Essa afirmação foi baseada em recente pesquisa do jornal Folha de São Paulo, no caderno infanto-juvenil Folhinha de 12/06/2004 onde, numa amostragem de 167 crianças, 108 crianças [na faixa etária de 5 a 11 anos] apontaram a Turma da Mônica como preferência, mesmo com concorrentes como Homem Aranha de Stan Lee e Mickey Mouse de Walt Disney.
As histórias em quadrinhos e o educador: uma prática pedagógica em construção
128
A pesquisa qualitativa objetiva, em geral, provocar o esclarecimento de uma situação para uma tomada de consciência pelos próprios pesquisados de seus problemas e das condições que os geram, a fim de elaborar os meios e estratégias para resolvê-los. (CHIZZOTTI, 2001, p. 104)
Na busca por contribuir para essa tomada de consciência e
transformação no tocante ao trabalho com quadrinhos, inicialmente,
foi realizada a análise de alguns gibis de Maurício de Sousa,
procurando localizar nos mesmos historinhas que apresentassem
conteúdos relevantes e que pudessem ser explorados em sala de aula.
Constatada essa potencialidade dos quadrinhos, partimos para a
observação da realidade, participando de aulas com quadrinhos em
três terceiras séries do ensino público estadual e, posteriormente,
realizando uma entrevista com as educadoras observadas, para
conhecer suas idéias e sugestões sobre o uso de quadrinhos em sala
de aula.
Após essa coleta de dados na realidade, foi feita, através do
levantamento de categorias, a análise qualitativa desses dados
encontrados, confrontando-os com a bibliografia estudada ao longo
da pesquisa.
Assim, ao realizar o resgate histórico através do estudo
bibliográfico preliminar, observar a prática pedagógica, entrevistar
as educadoras e analisar os dados encontrados, constatou-se que os
educadores possuem grande clareza sobre a riqueza pedagógica da
linguagem quadrinizada. Contudo, não conseguem efetivar suas
idéias pelo receio de se lançar ao “novo”.
Sabe-se sobre a presença dos quadrinhos em sala de aula,
mas muito pouco sobre essa linguagem. Sabe-se que a leitura de
Ana Maria Lombardi Daibem Mariana Vaitiekunas Pizarro
129
quadrinhos agrada aos alunos, mas não se sabe como transpor a
linguagem quadrinizada em atividades realmente significantes para o
processo ensino-aprendizagem. Pensa-se sobre os quadrinhos como
linguagem a ser estudada na disciplina de Língua Portuguesa, mas
dificilmente relaciona-se essas histórias com as demais disciplinas.
O professor que trabalha com quadrinhos possui ótimas idéias e
sugestões, mas também tem muitas dúvidas.
O papel do educador no uso de quadrinhos como alternativa
didática vai além das atividades corriqueiras. Ele deve se sentir
responsável por apresentar aos alunos uma outra maneira de ler
quadrinhos. Ir além de descobrir “qual é o personagem principal” é o
grande desafio no uso de quadrinhos em sala de aula.
AS HISTÓRIAS EM QUADRINHOS E O PROFESSOR: UMA
RIQUEZA DE RELAÇÕES
A relação quadrinhos - prática pedagógica ainda é vista
como novidade. Embora existam muitos estudos comunicacionais a
esse respeito, o estudo na dimensão pedagógica ainda necessita de
muitas contribuições. Contudo, ao final da pesquisa (PIZARRO,
2005) relatada acima, pôde-se fazer algumas considerações que
tendem a contribuir de maneira inicial para as futuras reflexões que
se espera serem realizadas por pedagogos de forma efetiva a partir
destas aqui apontadas. Vale ressaltar ainda que, mesmo estando
apresentadas em pequenos tópicos, as sugestões a seguir são
complementares, visando um trabalho interdisciplinar, portanto, não
são atividades isoladas ou individuais:
As histórias em quadrinhos e o educador: uma prática pedagógica em construção
130
A ESCOLHA DO MATERIAL
A escolha da historinha que será utilizada em sala de aula
depende do conteúdo que o professor irá abordar e dos objetivos que
pretende atingir com suas atividades. Definidos esses dados, o
trabalho na escolha da historinha se dá na banca de jornal ou em
sebos. Na pesquisa aqui relatada, abordamos mais especificamente
as histórias de Maurício de Sousa. São gibis fáceis de serem
encontrados em bancas toda a semana e também em grande
quantidade nos sebos.
O educador, tendo em mente o que pretende trabalhar, deve
buscar em meio às revistinhas aquilo que mais atende aos seus
objetivos pedagógicos. É uma atividade trabalhosa, mas que
certamente culmina em escolhas bem pensadas e adequadas.
É importante ressaltar, portanto, que este momento é crucial
para a decisão do tipo de material que o educador pretende levar
para a sala de aula. É aí que o olhar crítico faz a diferença por conta
da ideologia presente neste tipo de material.
OLHAR CRÍTICO E IDEOLOGIA
Quando falamos sobre a importância de analisar
criticamente todo e qualquer material que se pretende levar para a
sala de aula, sabemos que não é uma tarefa fácil e que requer muita
atenção e preparação para perceber inclusive o caráter ideológico
presente nos meios de comunicação e, por conseguinte, nos
quadrinhos.
Ana Maria Lombardi Daibem Mariana Vaitiekunas Pizarro
131
Há literatura que aborda essa temática e que esclarece ao
leitor sobre a gravidade da ideologia implícita nos quadrinhos e
também a importância de percebê-la e refletir sobre ela. Contudo,
sendo inviável abarcar esses conhecimentos neste pequeno espaço
de reflexão, mesmo porque os estudos sobre ideologia e consumo
requerem profundidade, salientamos aqui alguns cuidados que
devem ser tomados pelos educadores na escolha das historinhas e
que não fogem muito à prática de todo educador crítico e
preocupado com a qualidade dos recursos que utiliza em sala de
aula:
• Procure ler a historinha também em suas entrelinhas. Não
se contente com deduções à primeira vista. Os alunos são
extremamente atentos à muitas mensagens que para os
educadores passam desapercebidas.
• Evite levar historinhas que promovam algum tipo de
produto ou brinquedo. Leve em conta que nem todas as
crianças possuem o mesmo grau sócio-econômico e,
portanto, o que para algumas será trivialidade, para
outras será apenas vontade e sentimento de incapacidade
por não poder possuir certos pertences. Além disso, essas
histórias podem promover o consumo e a aceitação de
padrões e estereótipos.
• Procure evitar o uso de histórias que reforcem os
estereótipos vigentes. Nem sempre aquilo que é certo ou
errado é percebido da mesma maneira em uma escola no
centro da cidade ou em uma escola de periferia. O
educador deve escolher as historinhas sempre de acordo
com o contexto no qual seus alunos estão inseridos e
As histórias em quadrinhos e o educador: uma prática pedagógica em construção
132
problematizar com os mesmos, em constantes discussões,
aquilo que lhes é apresentado na história estudada.
• Busque sempre o estudo de textos ou livros que reflitam
e analisem a questão ideológica presente não só nos
quadrinhos, mas também em muitas outras áreas de
conhecimento. Somos muito mais influenciados pela
ideologia vigente do que imaginamos. Nada é neutro em
nossa sociedade. Nem mesmo nossa própria prática está
isenta de direcionamentos e ideologias.
HISTORICIDADE
Trabalhar com a historicidade da história em quadrinhos é
um bom motivo para aproximar os alunos da linguagem
quadrinizada. Sugerir pesquisas em diversos meios como jornais,
internet, livros e enciclopédias, sobre a história dos quadrinhos, seu
surgimento, sua evolução, seus autores, é um excelente primeiro
passo para um estudo mais aprofundado sobre o tema e permite aos
alunos a aquisição de um conhecimento de quadrinhos além das
onomatopéias. Conhecer os quadrinhos no mundo, o surgimento dos
quadrinhos no Brasil, o processo de criação de uma historinha, entre
outros, são elementos muito importantes para o conhecimento dessa
linguagem.
A LINGUAGEM
Estudar a historicidade dos quadrinhos inevitavelmente
levará ao conhecimento mais aprofundado dessa linguagem. O
Ana Maria Lombardi Daibem Mariana Vaitiekunas Pizarro
133
estudo da linguagem visual do quadrinho [ou vinheta], da
montagem, dos planos e ângulos de visão, dos enredos
[protagonistas e personagens] pode ser um excelente material para as
aulas de Artes, onde o educador pode explorar esses elementos
apresentando aos alunos outros tipos de quadrinhos existentes
[mangás, clássicos, hq de cunho político, social, tiras de jornal etc.],
a influência dos quadrinhos nas obras de arte, entre muitas outras
atividades que podem surgir no cotidiano escolar.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Entre muitos pontos importantes destacados no trabalho
com quadrinhos está a busca por uma metodologia que dê conta de
elucidar o que é “certo ou errado” no uso desse material. Contudo,
importa ressaltar que não existe uma receita que indique a melhor
maneira de conduzir o trabalho com quadrinhos em sala de aula, até
mesmo porque esse debate [e as sugestões existentes] têm sido
fomentado muito mais por comunicadores do que por educadores
que seriam responsáveis por preencher essa lacuna, afinal tudo o que
diz respeito à sala de aula, conseqüentemente, diz respeito ao
educador. Daí a importância de pedagogos e educadores em geral se
engajarem nesse propósito de estudo, pois, embora este seja
considerado um veículo de comunicação, em sala de aula o mesmo
se torna também um recurso à serviço da educação e ninguém
melhor do que o próprio educador para conhecer o espaço escolar,
suas dinâmicas e práticas.
No espaço escolar, os educadores encontram as mais
criativas e diversas formas de trabalhar com este material, mas
As histórias em quadrinhos e o educador: uma prática pedagógica em construção
134
compartilhar essas experiências com os demais educadores têm se
tornado extremamente difícil por uma série de fatores, entre eles, o
fato de os mesmos colocarem em xeque a qualidade daquilo que
aplicam, fatores esses que puderam ser notados durante o
desenvolvimento da pesquisa aqui relatada.
Portanto, a formação do educador para o trabalho com os
quadrinhos pode ser um importante passo para aproximá-lo desse
estudo e, conseqüentemente, do debate na busca da construção
contínua de uma metodologia para o uso consciente, crítico e
socialmente engajado dos quadrinhos como auxílio didático.
O diálogo sobre o uso das histórias em quadrinhos em sala
de aula pode e deve ir além da esfera comunicacional e permitir um
olhar pedagógico que se torna elemento-chave na seleção e inserção
desse material no espaço educativo. Cabe, novamente, aos
educadores, avançar nesse conhecimento e compartilhar através dos
diversos meios possíveis [sejam eles publicações, pesquisas, grupos
de estudos entre outros] a sua prática e as alternativas, sucessos e
também fracassos que encontram no caminho que percorrem, com o
uso de quadrinhos como auxílio didático, pois, conforme ressalta
Luyten (1984) “...No momento em que pais e pedagogos
considerarem as histórias em quadrinhos como seus aliados, isso
virá a possibilitar um número ilimitado de práticas a seu serviço”.
Assim, a presença das histórias em quadrinhos em sala de
aula pode ser vista como sinônimo de diversão, entretenimento e
também educação. Depende exclusivamente do uso que se faz dela
dentro e fora do espaço escolar.
Ana Maria Lombardi Daibem Mariana Vaitiekunas Pizarro
135
REFERÊNCIAS
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Histórias legais e reais da educação do surdo na rede estadual de ensino do Estado de São Paulo
136
HISTÓRIAS LEGAIS E REAIS DA EDUCAÇÃO DO SURDO NA REDE ESTADUAL DE ENSINO DO ESTADO DE SÃO PAULO
Eliana Marques Zanata
Enicéia Gonçalves Mendes
O caminho da Educação Especial no contexto da história da
Educação Brasileira vem sendo trilhado sob a égide de um
paradigma excludente. Pessoas que não são producentes na
sociedade tendem a ser excluídas do contexto social e,
conseqüentemente, do contexto educacional.
As preocupações educacionais em relação aos alunos com
deficiência, então clientela da Educação Especial, estiveram
centradas no paradigma institucional. Nesta perspectiva, acreditava-
se que a educação destas pessoas deveria ocorrer em instituições
fechadas e segregadas de forma que os cuidados e atendimentos ali
prestados enveredassem tanto para o desenvolvimento clínico quanto
educacional. Contudo, estas pessoas manteriam-se separadas das
pessoas ditas normais, não causando assim contradições e
constrangimentos.
No decorrer da história da educação especial houve sensível
mudança neste paradigma, de forma que a sociedade buscou,
gradativamente, encontrar caminhos que trouxessem os deficientes
Eliana Marques Zanata Enicéia Gonçalves Mendes
137
cada vez mais próximos ao convívio social e educacional. Este
paradigma passa a ser conhecido por Integração. Assim, soma-se a
preocupação em formar e capacitar profissionais que pudessem
desenvolver um trabalho qualitativo em termos de habilitação e
reabilitação da pessoa com deficiência. Até então, as atenções
estavam voltadas para uma abordagem muito mais clínica do que
educacional.
Durante décadas houve a preocupação por parte do governo
em capacitar professores da educação especial, com o intuito de que
estes “preparassem” os alunos surdos para que pudessem
“acompanhar” o ensino em classes comuns, para que estes
apresentassem resultados bem próximos daqueles dos alunos
ouvintes. Os anos se passaram e os resultados esperados nem sempre
foram atingidos.
Segundo documento da Secretaria de Estado da Educação,
no Estado de São Paulo, em 19 de dezembro de 1917 foi promulgada
a Lei n.º 879, cujo artigo 39 criava na capital a primeira “escola de
anormais” que, entretanto, não chegou a ser instalada. Anos mais
tarde, em 1930, foi instalada no Largo do Arouche uma “Escola de
Anormais”, local onde hoje funciona a Coordenadoria de Ensino do
Interior, parte da Secretaria da Educação (SÃO PAULO, 1972).
Em 1938, a Secção de Higiene Mental Escolar, subordinada
ao Serviço de Saúde Escolar, é incumbida da orientação técnica do
pessoal docente das classes especiais e de promover a habilitação e o
aperfeiçoamento de técnicos especializados, pela Lei n.º 9.872 de 28
de dezembro de 1938. Segundo documento da Secretaria de
Educação, o atendimento de surdos iniciou-se em 1959, depois de
criado e regulamentado o Serviço de Educação de Surdos-Mudos
Histórias legais e reais da educação do surdo na rede estadual de ensino do Estado de São Paulo
138
pelo Decreto n.º 380, de 29 de dezembro de 1958 (SÃO PAULO,
1972).
A Educação Especial no Brasil aparece pela primeira vez
em forma de lei no ano de 1961, com a promulgação da LDB
4.024/61, apontando que a educação dos excepcionais deveria, no
que fosse possível, ajustar-se no sistema geral da educação (Art. 88).
Surge então a idéia de que a pessoa com deficiência poderia
freqüentar a escola da mesma forma que os demais, desde que sua
condição permitisse que se adaptasse às condições que a escola
comum lhe oferecesse. Eis a justificativa para o termo “sempre que
possível”, ou seja, se o indivíduo não tivesse condições de se adaptar
ao ambiente escolar, o ambiente escolar não seria adaptado a ele,
situação esta que impediria seu acesso ao ensino regular, ficando o
aluno restrito a freqüentar Instituições ou Escolas Especiais, as quais
receberiam subvenções do governo (Art. 89).
No ano de 1961, segundo registros oficiais do livro de
matrícula, foi instalada a primeira classe especial para deficientes
auditivos numa escola pública na cidade de Bauru, com sete
meninos e três meninas, na faixa etária de 5 a 15 anos. Dados
obtidos no livro de matrícula apontam que nesta época a classe
especial passava pelos mesmos processos de avaliação das classes
do então Ensino Primário. Os alunos recebiam ao final do ano letivo
a menção “aprovado” ou “conservado”. O aluno permanecia na
mesma classe especial com repetição dos mesmos conteúdos, se sua
menção tivesse sido “conservado”, ou, com aprendizagem de novos
conteúdos, caso sua menção tivesse sido “aprovado”.
O Decreto 47.186, de 21 de novembro de 1966, criou o
Serviço de Educação Especial em cumprimento ao estabelecido
Eliana Marques Zanata Enicéia Gonçalves Mendes
139
pelos artigos 88 e 99 da Lei de Diretrizes e Bases da Educação
Nacional nº 4.024/61. O referido setor passou, então, a responder
pelo atendimento de deficientes mentais, auditivos e físicos.
A partir de 1967, conforme o documento da Secretaria de
Estado da Educação, nas classes especiais para surdos, os alunos
passam o período escolar sob a responsabilidade de um professor
especializado; entretanto, em alguns momentos, os alunos
participam de atividades comuns à escola (SÃO PAULO, 1972).
No que diz respeito à educação primária e secundária, a
educação dos alunos que apresentam deficiências passa a ter os
mesmos fins da educação geral, encarnando o princípio democrático
de que cada indivíduo deve receber atendimento educacional
adequado, de acordo com as normas fixadas pelos Conselhos
Estaduais de Educação.
No Estado de São Paulo, os serviços de Educação Especial
passam a ser incorporados pelo Departamento de Ensino Básico,
após a publicação do Decreto 52.324, de 1º de dezembro de 1969,
sendo que sua primeira estruturação e definição de funções só foi
regulamentada pela Resolução SE n.º 8/7, publicada em 2 de
fevereiro de 197110.
De acordo com a Resolução SE nº. 8/7, caberia ao serviço
de Educação Especial, através da Equipe Técnica de Estudos
Pedagógicos:
10 Em se tratando de nomenclatura para designação de uma Resolução da Secretaria de Educação do Estado de São Paulo, a notação utilizada refere-se ao número da resolução, seguindo-se os dois últimos dígitos do ano de publicação. No documento original produzido por esta Secretaria de Estado em 1972, a nomenclatura da Resolução SE n.º 8, de fevereiro de 1971, não apresenta a forma de notação prevista, referente ao ano de publicação, sendo a mesma referenciada como resolução SE n.º 8/7.
Histórias legais e reais da educação do surdo na rede estadual de ensino do Estado de São Paulo
140
Artigo 7º [...] organizar e orientar serviços educacionais destinados aos excepcionais, organizar currículos e programas adequados, orientar procedimentos metodológicos, orientar a avaliação do rendimento escolar, elaborar e executar programas de ensino e estudar e se pronunciar sobre os pedidos de instalação de unidades de educação especial estaduais, municipais e particulares (SÃO PAULO, 1972).
Os dados da Secretaria da Educação indicavam que, para o
ano de 1972, estava previsto o funcionamento de serviços como
classe especial, sala de recursos, ensino itinerante, classes
hospitalares e ensino domiciliar. Também havia registros de que, na
década de 1970, o Serviço de Educação Especial respondia por cerca
de 930 classes especiais.
A regulamentação específica desse serviço ocorre através
da Deliberação CEE n.º 13/73 do Conselho Estadual de Educação, a
qual fixa as normas gerais para a educação de excepcionais, segundo
previsto no artigo 9º da LDB 5.692/71.
Em julho de 1973, a equipe técnica do Serviço de Educação
Especial promove uma orientação para professores das classes
especiais de surdos, abordando como tema central um texto de Maria
Cecília Bevilacqua intitulado Desenvolvimento do Trabalho em
Qualquer Abordagem Auditiva, envolvendo orientações aos
professores, aos pais e à escola (BEVILACQUA, 1973)11.
Nos anos de 1976 e 1977, o Serviço de Educação Especial
propõe e executa o Projeto 02/SEE/DS, intitulado Aperfeiçoamento
de Professores de Deficientes Auditivos para utilização de Recursos
11 O conteúdo do referido texto está pautado na abordagem oral, ainda que seu título sugira que o trabalho possa ser desenvolvido em qualquer abordagem.
Eliana Marques Zanata Enicéia Gonçalves Mendes
141
Técnicos Específicos. Tal projeto estava totalmente pautado nos
princípios de métodos da abordagem oral, tendo como texto base
Aural Reabilitation de Dereck Sanders, um dos referenciais desta
abordagem. O aperfeiçoamento dos professores ocorreu tendo por
base treinamento auditivo, treinamento de discriminação da fala e
atividades de sala de aula (SÃO PAULO, 1976).
Em 23 de junho de 1978, é homologada a Resolução SE n.º
73/78, estabelecendo, entre outras providências, as modalidades de
atendimento do serviço de educação especial [classe especial, sala
de recursos e ensino itinerante], além de regulamentar as formas de
instalação destes serviços, bem como a formação do professor e os
critérios de elegibilidade da clientela. Já postula em seu Artigo 9º
que o aluno deveria, sempre que possível, ser transferido para a
forma de atendimento mais integradora e, somente quando mais
necessário, para a segregadora. Também foi nesta Resolução que
surgiu a caracterização do alunado. Era considerado eletivo para o
atendimento especializado em classe especial, sala de recursos ou
ensino itinerante na modalidade referente à deficiência auditiva,
aqueles com perda auditiva acima de 45 dB, nas freqüências da fala
em ambos os ouvidos. A instalação de salas para surdos dependia de,
pelo menos, cinco alunos devidamente caracterizados, com idade
entre 3 e 11 anos [quando se tratava da primeira matrícula], em sala
de, no mínimo, 30m², com tomadas para instalação de equipamento
audiovisual12. Esta legislação esteve em vigor até 1999.
12 Professoras que trabalhavam na época lembram que as classes especiais contavam com aparelhos de amplificação sonora coletivos com oito saídas de fones de ouvido e vibradores. Relatam ainda que as classes contavam com gravador K7, sonata, discos e fitas, inclusive com gravações de sons ambientais e de fala para treinamento auditivo.
Histórias legais e reais da educação do surdo na rede estadual de ensino do Estado de São Paulo
142
Em uma das escolas da rede pública que contava,
antigamente, com classe especial para surdos, havia uma cópia, em
carbono datilografada, de um documento em forma de relatório de
desenvolvimento individual, datado de dezembro de 1978, transcrita
a seguir:
“BVB, foi matriculada nesta escola, em março de 1976, na classe especial para deficientes auditivos. Através de técnicos especializados para o ensino da fala, e tratamento adequado, hoje ela está apta a freqüentar uma classe comum de crianças ouvintes de 1ª série. É uma criança que goza de boa saúde, possui reações normais, e se adapta muito bem a outras crianças. Participa de atividades lúdicas com as crianças ouvintes, entende e se faz entender. Fala um número razoável de palavras, com dicção própria de criança portadora de tal deficiência, possui boa leitura labial, isto é, percebe palavras olhando nos lábios de quem fala, fator essencial na compreensão da fala e ditados. Acha-se no início da alfabetização, e já conhece e domina os fonemas p, b, t, m, l, f, v, d. Conhece diversas palavras com esses fonemas, principalmente ligadas à alimentos, necessidades pessoais e familiares. Entende sentenças simples, com os verbos ser, comer, beber, ver; sabe completar orações, faz ditado com palavras aprendidas, lê, forma orações simples, tem noções de singular e plural. Quanto a parte matemática domina os numerais de 1 a 15, representa as quantidades, tem noção de conjunto, faz adição. Aconselha-se que ela freqüente a classe comum, à fim de que se integre em seu meio e seja um elemento útil a sua comunidade, e não alguém dependente. A nossa preocupação para que logo freqüente classes comuns, reside no fato de coloca-la junto com crianças de sua idade, cujos interesses são comuns. Tal fato beneficiará para melhor se comunicar, e às crianças normais será um estímulo e uma forma de orienta-las no auxílio ao próximo torna-las mais humanas e desprendidas. Esta criança continuará recebendo um reforço da classe especial, e atendimento na parte da fala, e dúvidas que apresentar. Sugerimos que a coloquem na primeira carteira, para melhor observar a professora, e que a ela seja dispensado um tratamento normal sem diferenciações, o mesmo a ser dado a classe. Caso haja alguma dúvida ou dificuldade estaremos sempre prontas a atende-las”. (Profª. L.L.S).
Eliana Marques Zanata Enicéia Gonçalves Mendes
143
Nas classes especiais e salas de recursos para surdos no
Brasil e, especificamente, no Estado de São Paulo, dentre as diversas
filosofias educacionais destacou-se por muitos anos o oralismo,
abordagem esta que defende o uso da língua oral como linha de
trabalho das instituições públicas de atendimento ao deficiente
auditivo. O relatório acima transcrito oferece subsídios suficientes
para a identificação da abordagem oral como orientadora do trabalho
desenvolvido pela professora.
Na abordagem unisensorial o enfoque está voltado para o
treinamento de habilidades auditivas, iniciado em programas de
estimulação precoce, visando, a partir daí, o desenvolvimento da
linguagem do deficiente auditivo. Dentro dessa visão podemos citar
a abordagem acupédica de Pollack (1970).
Ainda em referência ao relatório, a intenção primeira dele
nos parece ser o encaminhamento da aluna para uma classe comum
do então 1º Grau. Fica clara a posição da professora quanto ao
princípio da integração no sentido de “preparar” a aluna surda para
que ela possa “acompanhar” a classe de 1ª série, de forma bem
próxima aos alunos ouvintes. Além disso, a professora da 1ª série
não terá a necessidade de propor modificações na dinâmica da sala
de aula, devendo dispensar o mesmo tratamento que dispensa aos
demais alunos da classe à aluna surda. Havia apenas a recomendação
de que a mesma fosse colocada na primeira carteira.
Encontramos neste posicionamento ramificações nas
abordagens uni e multisensoriais. Na abordagem multisensorial, a
recepção da linguagem pela criança se dá com a leitura orofacial,
além da estimulação e treinamento das habilidades auditivas e do
resíduo, através de instrumentos como sistemas de amplificação
Histórias legais e reais da educação do surdo na rede estadual de ensino do Estado de São Paulo
144
sonora individual e coletiva. Podemos citar como principais
expoentes desta abordagem Sanders (1971), Perdoncini (1980),
Guberina (1983), entre outros.
Em 1979, Ano Internacional da Criança, foi publicada a
Proposta Curricular para Deficientes Auditivos, pelo MEC em
conjunto com a Pontifícia Universidade Católica de São Paulo,
Centro Nacional de Educação Especial e Divisão de Educação e
Reabilitação dos Distúrbios da Comunicação - DERDIC. A
publicação foi composta de oito volumes abrangendo as oito séries
do então Ensino de 1º Grau, com base na Lei de Diretrizes e Bases
da Educação Nacional n.º 5.692/71. Esta proposta teve como modelo
o ensino comum e como objetivo ser um instrumento de trabalho
para o professor
Nas décadas de 1970/80, no Brasil, é marcante na Educação
Especial a iniciativa governamental e da comunidade científica,
ainda que discreta, referente à política de integração13. Entretanto,
este perfil do estigma social em relação ao deficiente imperou e
ainda impera na sociedade até os dias de hoje e surte efeitos no
momento em que estes cidadãos passam a exigir seu lugar e respeito
na vida social. Muito se tem feito para que isso mude no plano
teórico; entretanto, na prática de sala de aula, esta ação ainda não se
efetivou.
13 Entende-se o conceito de integração como “um processo dinâmico de participação das pessoas num contexto relacional, legitimando sua interação nos grupos sociais. A integração implica em reciprocidade. E, sobre o enfoque escolar é processo gradual e dinâmico que pode tomar distintas formas de acordo com as necessidades e habilidades dos alunos”. CARVALHO, Rosita Edler. Integração e inclusão: do que estamos falando? In: BRASIL. Educação Especial: tendências atuais. TVE – texto de apoio pedagógico da Série Salto para o Futuro. Ago. 1998, p.35.
Eliana Marques Zanata Enicéia Gonçalves Mendes
145
A Secretaria de Estado da Educação publica, no ano de
1981, o livro A educação do deficiente auditivo: escola, família e
comunidade, coordenado por Marcos José da Silveira Mazzota e
pelo Serviço de Documentação e Publicações da CENP -
Coordenadoria de Estudos e Normas Pedagógicas (SÃO PAULO,
1981). Esta publicação configura-se num tipo de manual para a
educação do surdo, com definição e classificação da surdez,
modalidades de ensino, orientações à família e à comunidade, bem
como orientações para encaminhamento de crianças e jovens surdos.
No ano de 1982, a CENP publica o livro Você e os problemas da
linguagem, com um capítulo específico sobre a linguagem do aluno
surdo. Tal publicação referia-se a questões diagnósticas referentes à
época da perda e suas conseqüências, bem como as atividades
possíveis de se realizar em sala de aula com base na abordagem oral.
Em 1985, a CENP promove o Encontro de Professores de
Deficientes Auditivos, no qual a temática central diz respeito à
estrutura da linguagem. Em dezembro do mesmo ano, o relatório de
atividades do Serviço de Educação Especial indica 1.288 surdos
matriculados na Grande São Paulo e 848 no Interior, totalizando
2.136 matrículas. Naquele ano foram criadas 17 classes especiais
para surdos e colocados 23 alunos em cursos profissionalizantes do
SENAI. O relatório destaca como “problemas no desenvolvimento
de suas atividades” a falta de professores habilitados em nível
superior e a dificuldade de integração do aluno egresso de classe
especial, dentre outros (SÃO PAULO, 1985).
O ano de 1986 foi marcado pelo investimento em
publicações da CENP específicas para a área. Foram publicados os
livros: O deficiente auditivo entra na escola: elementos para um
Histórias legais e reais da educação do surdo na rede estadual de ensino do Estado de São Paulo
146
trabalho pedagógico, o qual apresentava sugestões de acolhimento
do aluno pela escola e comunidade, bem como de atividades
voltadas para o desenvolvimento da fala e da linguagem; Posso
entrar?... uma reflexão sobre o início da vida escolar, livro que
aborda de forma geral a acolhida do aluno na escola, resgata a
questão social e a bagagem cultural que ele trazia; Psicologia, lar,
escola, que tratava especificamente do convívio e dos princípios de
educação que a criança deve receber na escola e no lar, tornando-se
indiretamente extensivo às orientações gerais para que o aluno surdo
seja tratado da mesma forma que os demais alunos na escola. Outra
publicação relevante, Você e os problemas da audição, abordava
questões sobre a prevenção, a importância da audição e o trabalho
específico do professor da classe comum. Todas essas publicações
estavam embasadas na abordagem oral e enfatizavam a integração
escolar.
Em 1988 é promulgada a nova Constituição Brasileira que,
no Artigo 208, garantiu o atendimento educacional especializado aos
portadores de deficiência, preferencialmente na rede regular de
ensino. E, em 1989, a Constituição do Estado de São Paulo acolhe
esta garantia em seu Artigo 239, mantendo o pressuposto da
Constituição Federal.
Na Conferência Mundial de Educação para Todos, em
Jomtien, na Tailândia, ocorrida em 1990, o Brasil fixou metas
básicas para melhorar o sistema educacional nacional. Entre tais
metas constava a necessidade de melhorar a educação de crianças e
jovens com necessidades educacionais especiais. Entretanto, essa foi
uma das metas não cumpridas até o ano 2.000, como era esperado.
Segundo estimativa do próprio MEC, só 5% dos cerca de 6 milhões
Eliana Marques Zanata Enicéia Gonçalves Mendes
147
receberam atendimento especializado em 1997 (MENDES, 2001,
p.11)
Não há, contudo, como negar a existência de
intencionalidade para efetivação e cumprimento destas metas, pelo
menos no que diz respeito ao campo teórico. Segundo relatório da
Secretaria de Estado da Educação, no ano de 1994 havia 2.163
classes especiais e salas de recursos em funcionamento, 144
professores das diversas áreas [DA, DM, DV e DF] foram
capacitados em nove cursos de “Informática na Educação Especial”,
entre outras ações do governo do Estado.
Chega ao Estado de São Paulo, surgida no final do século
passado, nas décadas de 1980 e 1990, a abordagem da Comunicação
Total. Sua proposta visa valorização dos mais variados recursos que
possam facilitar o acesso do surdo à linguagem. É apoiada em
práticas bimodais/simultâneas, sinais e fala, com base na língua
falada sinalizada, visando com isso possibilitar ao surdo acesso às
modalidades oral e escrita da língua. Foi bastante defendida nos
trabalhos de Ciccone et. al. (1990).
Tanto na abordagem oral quanto na Comunicação Total,
podemos imprimir um ponto em comum: ambas defendem uma
perspectiva monolingüe, na qual a aprendizagem das modalidades
oral e escrita da língua são condições sine qua non para a integração
do surdo na sociedade, vindo ao encontro da política de
normalização e integração. Ambas apóiam a necessidade de um
trabalho terapêutico com o surdo que venha a habilitá-lo a falar, pois
a perda auditiva é entendida como uma patologia.
Nos documentos publicados pelo MEC, na Série Diretrizes
(BRASIL, 1995), foram indicadas as alternativas de atendimento
Histórias legais e reais da educação do surdo na rede estadual de ensino do Estado de São Paulo
148
que os deficientes auditivos14 poderiam vir a receber. As orientações
estavam divididas de acordo com o grau da perda auditiva,
denominando os educandos como “portadores de surdez”. Consta
ainda desta Série Diretrizes que a opção inicial da educação do
aluno deficiente auditivo pela Abordagem Oral, pela Comunicação
Total, pelo Bilingüismo ou por qualquer outra forma de atendimento
educacional deve ser feita pelos pais15.
No Brasil, as questões referentes a teorias e práticas
inclusivas vêm sendo discutidas com maior ênfase e abertura por
meio da mídia, na última década. Desde a Conferência Mundial de
Educação de 1990 e deflagrado pela Declaração de Salamanca em
1994, firma-se o conceito de inclusão16. É notório que apenas leis e
declarações, por mais pertinentes e apropriadas que sejam, por si só
não revertem situações e crenças arraigadas na consciência social
dos indivíduos.
14 Em referência a terminologia, na Série Diretrizes, volume 6, encontramos uma divergência conceitual. O título da publicação indica Subsídios para Organização e Funcionamento de serviços de Educação Especial: área de deficiência auditiva. Entretanto, no interior do referido volume, o item I, intitulado Caracterização dos tipos de educandos portadores de deficiência auditiva, descreve detalhadamente, com base no BIAP e na Portaria Interministerial n.º 186 de 10/03/1978, a classificação da perda auditiva, sendo o sujeito classificado como portador de surdez. Parece, assim, não haver por parte da SEESP, preocupação com a especificidade da terminologia empregada em seus documentos [grifos do autor]. 15 No Brasil, nos parece que esta é uma opção fictícia, uma vez que os pais não têm acesso a informação sobre a abordagem, não tem opção de escolha e a abordagem acaba sendo determinada pelo serviço que tem disponível no município [quando tem]. 16 Entende-se o conceito de inclusão como “um processo de educar conjuntamente de maneira incondicional, nas classes do ensino comum, alunos ditos normais com alunos – portadores ou não de deficiências, que apresentem necessidades educacionais especiais”. CARVALHO, Rosita Edler. Integração e inclusão: do que estamos falando? In: BRASIL. Educação Especial: tendências atuais. TVE – texto de apoio pedagógico da Série Salto para o Futuro. Ago. 1998, p.37.
Eliana Marques Zanata Enicéia Gonçalves Mendes
149
A Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional - Lei nº.
9394/96, dedicou um capítulo para a Educação Especial, a qual
passou a fazer parte do Sistema Educacional Brasileiro, mas não se
inseriu especificamente na estrutura didática da educação básica,
como deveria ser, permeando desde a Educação Infantil até o Ensino
Superior. A nova LDB prevê que os Sistemas Estaduais assegurem
currículos, métodos, técnicas, recursos educativos específicos e
terminalidade específica para o Ensino Fundamental.
Também está previsto em Lei a provisão de professores com especialização adequada em nível médio ou superior para atendimento especializado do alunado com necessidades educacionais especiais. Assim, de acordo com as Diretrizes da Educação Especial (BRASIL, 2001) a formação deste profissional esta prevista em cursos de graduação e pós-graduação. Mesmo assim, a procura por esses cursos ainda parece bastante insuficiente para atender a demanda escolar.
O Conselho Estadual de Educação do Estado de São Paulo
aprovou, em 12 de dezembro de 1999, a Indicação n.º 12/99 que
prevê a inclusão do aluno deficiente na classe comum, bem como
propõe algumas medidas que possam garantir sua permanência;
entretanto, não é descartada a hipótese da existência de alunos que
não venham a se beneficiar do ambiente da classe comum e a
previsão que a estes deverá ser garantido atendimento em classe
especial. Na declaração de voto, há uma única restrição, que é a
permanência da nomenclatura “classe especial” o que pode colocar
em risco, segundo o relator17, a idéia de inclusão presente no
conjunto do texto e abrir uma perigosa possibilidade de continuidade
das práticas vigentes de não inclusão.
17 A restrição diz respeito ao Conselheiro Francisco José Carbonari.
Histórias legais e reais da educação do surdo na rede estadual de ensino do Estado de São Paulo
150
Em 5 de maio de 2000, é publicada a Deliberação n.º 05/00,
fixando as normas gerais para a Educação Especial no sistema de
ensino do Estado de São Paulo, revogando a Resolução 13/73.
Mediante esse documento, o aluno com necessidades educacionais
especiais deverá preferencialmente estar matriculado em classe
comum do sistema regular de ensino. Entretanto, as outras formas de
atendimento ainda permanecem asseguradas por lei.
Entre as mudanças estabelecidas pela nova LDB nº
9.394/96 (BRASIL, 1996), encontramos o processo de
municipalização do Ensino Fundamental a partir das classes de 1ª a
4ª séries (Inciso V, art. 9º) que, paulatinamente, deverão passar para
a responsabilidade dos governos municipais. Durante essa transição,
que não é uniforme em todos os municípios, as classes especiais e as
salas de recursos também deverão ser municipalizadas. Torna-se
passível uma possibilidade acerca do entendimento do texto da
Deliberação nº. 05/00, quando diz que “o educando com
necessidades educacionais especiais deve ser educado
preferencialmente nas classes comuns do ensino regular”. Este, por
sua vez, tem conduzido ao raciocínio de que as classes especiais e as
salas de recursos não são mais necessárias, na linha da inclusão, pois
esta só se verificará se todos freqüentarem classes comuns. Assim,
corre-se o risco de que as classes especiais e as salas de recursos
sejam fechadas e o atendimento, que anteriormente não supria a
demanda, passe a restringir ainda mais as possibilidades de inserção
educacional, se nenhuma outra forma de apoio for prevista.
Eliana Marques Zanata Enicéia Gonçalves Mendes
151
Nos anos de 2003 e 2004, a Secretaria de Estado vem
promovendo, pela CENP18, capacitação continuada para professores
de surdos. A capacitação está centrada no ensino de Português para
surdos.
Por fim, a última iniciativa do governo do Estado de São
Paulo ocorreu em 26 de janeiro de 2006 com a publicação da
Resolução SE nº 8/06, que altera a Resolução SE n º 95/00. Ela
dispõe sobre o atendimento de alunos com necessidades
educacionais especiais nas escolas da rede estadual de ensino e dá
providências correlatas referentes a instalação de serviço de ensino
itinerante e possibilidade de terminalidade de estudos para os alunos
com necessidades educacionais especiais, ficando a escola
responsável pelo encaminhamento social deste aluno.
§ 3º - A escola deverá articular-se com os órgãos oficiais ou com as instituições que mantenham parceria com o Poder Público, a fim de fornecer orientações às famílias no encaminhamento dos alunos a programas especiais, voltados para o desenvolvimento de atividades, que favoreçam sua independência e sua inserção na sociedade. (RES. SE n º. 8/06)
A população do Estado de São Paulo hoje é de cerca de
39.6 milhões de habitantes, dado este que indicaria uma população
de 59.400 pessoas com algum tipo de perda auditiva, tendo-se por
referência a estimativa da OMS19. No Estado de São Paulo, as
matrículas dos alunos com necessidades educacionais especiais
devem ser distribuídas pelas várias classes da série em que estes 18 CENP – Coordenadoria de Estudos e Normas Pedagógicas, órgão vinculado à Secretaria de Estado de Educação do Estado de São Paulo. 19 OMS – Organização Mundial de Saúde.
Histórias legais e reais da educação do surdo na rede estadual de ensino do Estado de São Paulo
152
forem classificados [por idade e série]. Acredita-se que o objetivo
seja tirar vantagens das diferenças e ampliar positivamente as
experiências de todos os alunos, dentro do princípio de educar na
diversidade (BUENO, 2004).
Segundo dados do INEP, o Estado de São Paulo conta com
1.476 alunos surdos matriculados em classes comuns do ensino
regular com o apoio da sala de recursos e 1.644 alunos, também
matriculados em classes comuns do ensino regular sem o apoio da
sala de recursos. Vale ressaltar aqui que estes dados não são
específicos da rede estadual de ensino, mas sim comportam as redes
Estaduais, Municipais e Privadas.
Mediante o processo histórico traçado pela Educação
Especial, é latente que as influências internacionais estiveram e
continuam presentes nos textos legais e nas proposições de políticas
públicas. A dicotomia Educação Comum e Educação Especial,
embora ainda bastante presente, começa a apresentar sinais de
convergência. Entender a Educação Especial como parte do sistema
educacional e não como um apêndice é algo ainda novo para a
comunidade escolar. Tratada durante décadas de forma segregada,
não será apenas a garantia e o embasamento legal os responsáveis
por garantir os processos inclusivos de forma efetiva. Muito mais
que uma mudança legal esta iniciativa requer mudanças de
paradigmas e concepções de homem, sociedade e produção.
Eliana Marques Zanata Enicéia Gonçalves Mendes
153
CONSIDERAÇÕES FINAIS
No Estado de São Paulo, as políticas públicas para
educação do surdo sempre estiveram ancoradas na filosofia de
integração e normalização, de forma que sempre era de
responsabilidade do aluno surdo buscar as condições mais
favoráveis possíveis para sua permanência no ensino comum. Ao
professor da classe especial cabia o papel de ensinar esse aluno a fim
de garantir seu ingresso e permanência futura na classe comum. Ao
professor da classe comum, por outro lado, pouco era solicitado em
termos de formação para atuar com o aluno surdo, pois era o aluno
quem deveria adaptar-se à rotina de sua sala de aula e, não o
professor se adaptar às necessidades educacionais do aluno surdo.
Por meio desta breve retrospectiva histórica, é possível
apontar que as políticas públicas, na última década voltadas para a
atenção do aluno com necessidade educacional especial do Ensino
Fundamental e Médio, sejam embasadas em princípios inclusivos de
forma que todo aluno tenha oportunidade não só de acesso, mas
também de permanência na escola. Pelo menos em termos de
intencionalidade.
É imprescindível atentar para que, nesta nova perspectiva
de escola para todos, não se permita que a Educação Especial seja
entendida como um sistema paralelo ou um sub-sistema no contexto
do Sistema Geral de Educação. Para este novo tempo é inexorável a
ação conjunta da Educação Regular com a Educação Especial.
Histórias legais e reais da educação do surdo na rede estadual de ensino do Estado de São Paulo
154
REFERÊNCIAS
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BUENO, J. G. Educação Especial Brasileira: integração/segregação do aluno diferente. 2.ed. São Paulo: Editora da PUC/SP-EDUC, 2004.
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GUBERINA, P. Método verbotonal. Publicação do Centro de Reabilitação Sydinei Antônio com autorização de Western
Eliana Marques Zanata Enicéia Gonçalves Mendes
155
Pennsylvania School for the Deaf, Pittisburgh. Volume 1, 2, 3, e 4,. Trad. Vera Beatriz Karam Isfer, 1983.
MENDES, E. G. O planejamento de serviços para indivíduos com necessidades educacionais especiais no Brasil. Texto em elaboração para uso interno e exclusivo da disciplina "Educação Especial no Brasil". UFSCar, São Carlos, Abril de 2001.
PERDONCINI, G. Précis de psycologie et de réeducation infantiles. Trad. em Espanhol de José Gisbert Alós (Manual de Psicología y Reeducación) Paris: Flamarion, 1980.
POLLACK, D. Educational audiology for limited heraring infant. Illinois: Charles C. Tomas Publ, 1970.
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SÃO PAULO (Estado). Secretaria da Educação. Informações sobre o serviço de educação especial. São Paulo: Mimeo, 1972.
SÃO PAULO (Estado). Secretaria da Educação. Deliberação CCE nº.13/73. São Paulo. D.O.E. de 11/08/1973.
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Histórias legais e reais da educação do surdo na rede estadual de ensino do Estado de São Paulo
156
Educação Especial nível de 2º Grau a partir de 1972 e Ensino Superior a partir de 1973. São Paulo, 1983.
SÃO PAULO (Estado). Secretaria da Educação. Coordenadoria de Estudos e Normas Pedagógicas. Relatório de atividades do serviço de Educação Especial. São Paulo, 1985.
SÃO PAULO (Estado). Secretaria da Educação. Coordenadoria de Estudos e Normas Pedagógicas. Você e os problemas da audição. São Paulo, 1986.
SÃO PAULO (Estado). Secretaria da Educação. Coordenadoria de Estudos e Normas Pedagógicas. O deficiente auditivo entra na escola: elementos para um trabalho pedagógico. São Paulo, 1986.
SÃO PAULO (Estado). Secretaria da Educação. Coordenadoria de Estudos e Normas Pedagógicas. Posso entrar?... uma reflexão sobre o início da vida escolar. São Paulo, 1986.
SÃO PAULO (Estado). Secretaria da Educação. Coordenadoria de Estudos e Normas Pedagógicas. Psicologia, lar, escola. São Paulo, 1986.
SÃO PAULO (Estado). Secretaria da Educação. Indicação CEE n.º12/99, publicada no D.O.E. de 14/12/1999.
SÃO PAULO (Estado). Secretaria da Educação. Deliberação CEE n.º 05/00, publicada no D.O.E. de 05/01/2000.
SÃO PAULO (Estado). Secretaria da Educação. Resolução SE n.º 95/00, publicada no D.O.E. de 21/11/2000.
157
FACE 3
PRÁTICAS PEDAGÓGICAS COM O USO DE
TECNOLOGIAS
Daniela Melaré Vieira Barros
Inovação é a palavra de ordem nos âmbitos educacionais.
Inovar com qualidade é o desafio que as tecnologias trouxeram ao
contexto das práticas em sala de aula. Inovar na educação não
significa somente utilizar tecnologias ou materiais diferenciados no
processo de ensino e aprendizagem. Além disso, significa ter uma
postura inovadora, estar conectado à inovação e, o mais difícil, saber
realizar uma junção da inovação aos antigos processos e
conhecimentos-base que fazem parte das funções da educação.
A teoria que sustenta esta inovação esta presente nas
tecnologias digitais e interativas que se desenvolvem de forma
assustadora e que a educação não consegue acompanhar. Iniciativas
e tentativas de trabalho são desenvolvidas com êxito e possibilitam
idéias para que outras formas possam ser realizadas.
Práticas pedagógicas com o uso de tecnologias
158
Para tanto, temos textos que contemplam temas como: o
uso das tecnologias para crianças com necessidades especiais e uso
de objetos educacionais para o trabalho docente com os alunos.
São trabalhos que abordam a tecnologia, não na técnica
embutida em sua constituição, mas nas possibilidades e mudanças
que esses meios realizam ao trabalho educativo. Mudanças que
passam pela reestruturação pedagógica e conceitual dos mecanismos
de ensino e aprendizagem.
A tecnologia é hoje um espaço de inovação, mas a
educação tem por desafio ser o objeto da criatividade pedagógica e
didática dos docentes e que ainda não foi. A tecnologia esta na
educação não por opção ou escolha. O conceito de tecnologia é algo
inserido na vida cotidiana de qualquer cidadão, independendo da
cultura ou do poder aquisitivo; ela está à margem dessas diferenças
que sempre foram temas de luta de classes, mas está na história da
própria condição humana.
Naiana Paula Bocardo Thaís Cristina Rodrigues Tezani
159
ESTRATÉGIAS EDUCACIONAIS PARA O ENSINO DE
INFORMÁTICA COM CRIANÇAS CEGAS
Naiana Paula Bocardo
Thaís Cristina Rodrigues Tezani
RESUMO
O presente trabalho buscou apontar estratégias educacionais para o ensino de informática com crianças cegas, comparando dois softwares para deficientes visuais, o Dosvox e o Virtual Vision, com a intenção de apontar qual é o mais apropriado para trabalhar com esse segmento populacional na primeira série do Ensino Fundamental. Este trabalho caracterizou-se pela pesquisa qualitativa, desenvolvendo-se por meio de pesquisas bibliográfica e de campo. Com os resultados obtidos após a aplicação da pesquisa de campo foi possível verificar qual o software mais adequado para a utilização com essas crianças. O uso deste aplicativo pelo professor em sala de aula é uma poderosa ferramenta para o ensino e a aprendizagem, contribui para o desenvolvimento, principalmente das pessoas com necessidades educativas especiais, além de facilitar o processo de inclusão social e educacional.
PALAVRAS-CHAVE: Ensino de informática; softwares para
deficientes visuais; inclusão.
Estratégias educacionais para o ensino de informática com crianças cegas
160
INTRODUÇÃO
A visão é de extrema importância para a obtenção de
informações sobre o mundo em que vivemos, e a falta deste canal
sensorial faz com que a percepção da realidade de um cego seja
diferente da percepção daqueles que enxergam, trazendo
conseqüências para o desenvolvimento, fazendo com que os alunos
deficientes visuais utilizem os demais sentidos como canais para
entrar em contato com o ambiente.
Devemos levar em conta a natureza e o grau de dificuldade
ou deficiência para adequar os recursos, a fim de auxiliar no seu
desenvolvimento. Nesse sentido é importante utilizar o computador
como recurso pedagógico; levar o deficiente visual a desenvolver
habilidades de exploração e utilização; capacitar crianças deficientes
visuais para tal aprendizagem. Por isso este trabalho buscou apontar
estratégias educacionais para o ensino de informática com crianças
cegas.
E se a escola não aceitar as novas tecnologias, estará fadada
ao fracasso, ao insucesso, pois isso significa desprezar os avanços
científicos, a possibilidade de avançar para algo novo. O computador
é um recurso a mais para o professor dinamizar suas aulas. Ao
ignorar as tecnologias a escola fica parada no tempo, enquanto seus
alunos vivem o presente e vêem no futuro novas possibilidades e
necessidades às quais a escola parece não ter condições de atender.
A tecnologia educacional está na nossa sociedade e não apenas pode ser usada por qualquer indivíduo, seja qual for a sua capacidade sensorial, intelectual ou motora, mas para muitos, os recursos tecnológicos da informática possibilitam o único caminho conhecido
Naiana Paula Bocardo Thaís Cristina Rodrigues Tezani
161
até o momento de realizar tarefas tão importantes como expressar-se, comunicar-se, trabalhar ou aprender (SANCHO, 1993, p. 239).
Assim, o computador, com a mediação do professor, torna-
se uma valiosa ferramenta no processo de ensino e aprendizagem, no
qual os indivíduos com necessidades especiais podem utilizar este
recurso a seu favor para facilitar a aprendizagem, no sentido de
propiciar oportunidade de desenvolverem atividades estimulantes,
desafiantes e que tenham propósitos educacionais. Neste caso, os
computadores dão oportunidades, principalmente para as pessoas em
que a aprendizagem não segue os padrões normais de
desenvolvimento. Assim, limitadas pelas deficiências, não são
menos desenvolvidas, mas se desenvolvem de forma diferente.
Assim:
quando falamos em tecnologias e recursos que auxiliam a criança ou adolescente com deficiência na sala de aula, devemos lembrar que eles não são recursos que magicamente farão o aluno superar suas dificuldades. Qualquer que seja o auxílio pensado, sempre passa pela percepção que o professor tem sobre as dificuldades e possibilidades do aluno. O auxílio só faz sentido a partir desta relação. Por isso, dizemos que não há regras, existem sugestões para ajudar o professor a pensar em possibilidades, mas isto sempre será posterior a este primeiro contato e conhecimento prévio em relação à criança ou adolescente (GIL, 2005, p.53).
As adaptações essenciais para que os indivíduos com
deficiência possam se beneficiar da tecnologia vão depender da
necessidade educacional especial que este indivíduo possui. Um
exemplo são as adaptações para o deficiente visual, que podem ser
um teclado adaptado em Braille, software sintetizador de voz,
impressora Braille etc., um conjunto de recursos que podem
Estratégias educacionais para o ensino de informática com crianças cegas
162
contribuir para proporcionar, ou melhor, ajudar na independência,
qualidade de vida e até uma maior inclusão social.
SOFTWARES SINTETIZADORES DE VOZ
São recursos desenvolvidos especialmente para trabalhar
com aplicativos. Tem por objetivo o acesso à informação que
aparece na tela do computador, mediante a leitura, por voz, dos
textos selecionados pelo usuário, permitindo à pessoa cega explorar
a tela, situar-se na mesma, acionar os comandos de leitura etc.
Entre eles estão os softwares: Dosvox e Virtual Vision,
sintetizadores de voz que permitem aos deficientes visuais a
oportunidade de manusear o computador em condições o mais
próximo possível daqueles considerados normais.
DOSVOX
Muitas pessoas acreditam que não podem ter acesso ao
computador por uma dificuldade que vai além da financeira: a
deficiência visual. No entanto, nos dias de hoje, a falta da visão não
impede que estes indivíduos participem da tecnologia, o que impede
é a falta de acesso.
O Dosvox disponibiliza um sistema completo para
deficientes visuais, incluindo desde edição de textos até navegação
na Internet e utilitários, o que possibilita aos seus usuários uma
grande variedade de opções. O que diferencia o Dosvox de outros
Naiana Paula Bocardo Thaís Cristina Rodrigues Tezani
163
sistemas voltados para uso por deficientes visuais, de acordo com
Borges (2005) é que nele, a comunicação homem-máquina leva em
conta as especificidades e limitações dessas pessoas.
Grande parte das mensagens sonoras emitidas pelo Dosvox
é feita em voz humana gravada. O programa é composto por:
sistema operacional que contém os elementos de interface com o
usuário, sistema de síntese de fala, editor, leitor e
impressor/formatador de textos etc.
Apresenta diversos programas de uso geral para o cego,
como: jogos, programas sonoros para acesso à Internet, como
Correio Eletrônico, acesso a Homepages, Telnet e FTP, leitor
simplificado de telas para Windows.
O Dosvox abriu novos caminhos a uma parte importante da
população brasileira, que tem um potencial imenso a ser explorado,
caso lhes sejam fornecidas as ferramentas e oportunidades
convenientes.
VIRTUAL VISION
O programa facilita o ensino do uso do computador para
deficientes visuais por meio do leitor de tela com tecnologia de
síntese de voz, contribui com a capacitação do indivíduo e
proporciona uma integração melhor na sociedade. É por meio do
monitor que normalmente obtemos o retorno que desejamos do
computador. Enviamos as informações via mouse, teclado etc. e
Estratégias educacionais para o ensino de informática com crianças cegas
164
recebemos a resposta através daquilo que vemos na tela. No entanto,
no caso da pessoa com deficiência visual a resposta virá por meio de
áudio [caixa de som ou fone de ouvido]. A distância entre um
usuário de computador com perfeita visão e um deficiente visual
reside apenas na forma com que ambos obtêm resposta para as
informações que enviam à máquina.
É uma aplicação da tecnologia de síntese de voz, um "leitor
de telas" capaz de informar aos usuários quais os controles [botão,
lista, menu,...] estão ativos em determinado momento. Pronuncia as
palavras digitadas letra por letra, palavra por palavra, linha por linha,
parágrafo por parágrafo ou todo o texto. O próprio usuário pode
determinar suas preferências. Seu sintetizador de voz é em
português, podendo ser utilizado em inglês. Permite a localização do
cursor na tela através de teclas de atalho. É auto-instalável,
permitindo a operação do sistema/aplicativos via teclado ou mouse.
Então, podemos perceber que o computador, aliado a uma
prática pedagógica comprometida com a formação de cidadãos, é
uma poderosa ferramenta para o processo de ensino-aprendizagem,
contribui fortemente para o desenvolvimento, principalmente das
pessoas com necessidades especiais. Contudo este recurso é apenas
um mediador do processo que deve estar associado com a prática do
professor.
Tendo no contexto um professor comprometido com as
práticas pedagógicas auxiliadas pelo computador, a fim de criar
ambientes de aprendizado e desenvolvimento por meio da facilitação
do processo, levando em conta sempre a realidade do aluno, seus
desejos, necessidades e vontades pelo qual o aluno tem possibilidade
de contribuir, enfrentar desafios. Desta forma, o sujeito do
Naiana Paula Bocardo Thaís Cristina Rodrigues Tezani
165
aprendizado passa a ter condições de exercer sua criatividade, ter
autonomia, então podemos dizer que as vantagens que a informática
nos propicia são inúmeras. No entanto, vale lembrar que existem
limitações, entre elas está o acesso a essa tecnologia, no caso o
computador.
RELATO DA PESQUISA DE CAMPO
Trata-se de uma pesquisa qualitativa que, segundo Bogdan
e Biklen (1994, p.76.), “conduzir investigação qualitativa assemelha-
se mais ao estabelecimento de uma amizade do que um contrato”. A
pesquisa qualitativa tem em sua fonte direta de dados o ambiente
natural e o pesquisador como seu principal instrumento. Além de
poder desempenhar um papel ativo na realidade analisada, fazer
desta uma ação planejada em que há uma grande interação entre as
pessoas e o pesquisador, possibilitando aumentar o nível de
conhecimento e consciência das pessoas estudadas.
Assim, buscou-se a realização da pesquisa-intervenção, que
é um grande desafio por intervir e ajudar na própria realidade da
pessoa. De acordo com Pereira (2006, p.56) “a pesquisa –
intervenção consiste em movimentos de diagnóstico-ação-avaliação,
de modo que o participante tenha condições de rever sua prática,
compartilhar com seus pares, avaliar e buscar novas possibilidades
de atuação”.
Estratégias educacionais para o ensino de informática com crianças cegas
166
O LOCAL DA PESQUISA E OS PARTICIPANTES
O trabalho foi realizado na sala de recursos para deficientes
visuais, na Escola Estadual “Mercedes Paz Bueno”, município de
Bauru, período vespertino. Quatro alunos da primeira série do
Ensino Fundamental. com média de 7 anos, participaram da
pesquisa. Os atendimentos eram individuais, porém alguns dias
foram realizados em dupla. A pesquisadora é quem dava as aulas de
informática. Os recursos disponíveis eram um computador
[Windows 98, com 64 Mb de memória RAM], CPU, monitor,
teclado, caixa de som, mouse, alfabeto e numerais em EVA, sulfite,
softwares Dosvox e Virtual Vision com síntese de voz, além dos
softwares com músicas para entretenimento.
A EXPERIÊNCIA VIVIDA EM CAMPO: DELINEAMENTO
ETAPA 1
Foi elaborado o planejamento inicial, por meio de um
questionário investigativo, contendo o perfil dos alunos e
informações iniciais para melhor conhecê-los e dar início à
elaboração do planejamento.
ETAPA 2
Aconteceu com a intervenção, a fim de oportunizar ao
aluno, com o auxílio de estratégias educacionais, o aprendizado de
informática, além de desenvolver habilidades de exploração e
utilização do computador; capacitar crianças deficientes visuais para
Naiana Paula Bocardo Thaís Cristina Rodrigues Tezani
167
tal aprendizagem e apontar estratégias educacionais para o ensino de
informática com crianças cegas. Esse processo foi registrado no
diário de campo e no planejamento das aulas.
Assim, com a questão de como se dava o ensino de
informática com crianças cegas e com a efetiva apropriação da teoria
fui à prática.
A experiência de campo foi significativa, houve uma
relação entre a alegria necessária à atividade educativa e a esperança
(FREIRE, 1996). As atividades foram planejadas após o
conhecimento melhor do público alvo e de suas necessidades. Foram
programados os dias dos atendimentos e as etapas pelas quais as
crianças iriam passar, claro que levando em conta o ritmo de
aprendizagem de cada criança. De acordo com Minayo (1993,
p.101) “não se pode ir para a atividade de campo sem se prever as
formas de realizá-lo. Improvisá-lo significaria correr o risco de
romper os vínculos com o esforço de fundamentação, necessário e
presente em cada etapa do processo de conhecimento”. Assim, as
atividades eram planejadas de acordo com os objetivos propostos,
não deixando de levar em conta a necessidade e as idéias das
crianças.
De acordo com Oakeshott, (1968 apud RIOS, 2002, p.52)
“o ensino não é, portanto, um movimento de transmissão que
termina quando a coisa que se transmite é recebida, mas o começo
do cultivo de uma mente de forma que o que foi semeado crescerá”.
Então o ensino de informática visou essa sementinha que, por menor
que seja, dará bons frutos por meio da sua capacidade de aprender.
As aulas [intervenção] foram divididas nas seguintes fases:
Estratégias educacionais para o ensino de informática com crianças cegas
168
1ª Fase
No primeiro dia foram apresentados os componentes
básicos do computador, o monitor, a CPU, teclado, caixa de som,
mouse, estabilizador, deixando os alunos conhecerem,
primeiramente, com o uso do tato. Segundo Coll (1995) o tato
permite a coleta de informações bastante precisa, no entanto, é muito
mais lento que a visão. Assim, a exploração dos objetos precisa ser
potencializada com a sensação, a percepção, a audição e imaginação,
oportunizando, assim, o conhecimento nominal e físico da
ferramenta na qual irão trabalhar.
O monitor foi desligado e ligado várias vezes para saber se
as crianças tinham percepção de claro e escuro. Elas chegavam bem
perto do monitor, quase que encostavam a testa nela e respondiam se
estava claro ou escuro. Foi feito teste com desenhos e letras enormes
para ter certeza que eles não enxergavam. Então, pode-se perceber
que elas tinham apenas percepção de claro e escuro, também de
acordo com o laudo médico.
Expliquei qual o botão que liga o computador e falei um
pouco do software que iríamos trabalhar. Em seguida demos início
ao primeiro software utilizado, o Virtual Vision.
Com o computador ligado, trabalhei o som, para o
reconhecimento do timbre [do som], acionando a caixa de controle
do Virtual Vision, para a criança escolher se prefere o tom de voz
feminino ou masculino e a velocidade da fala.
É bom lembrar que “cada aluno é diferente no que se refere
ao estilo e ao ritmo de aprendizagem” (GIL, 2005, p.26). Assim,
essa diferença foi respeitada em todas as etapas e objetivos do
trabalho.
Naiana Paula Bocardo Thaís Cristina Rodrigues Tezani
169
2ª Fase
Nas primeiras atividades, entramos no Microsoft Word para
trabalharmos digitação, com a intenção da criança se familiarizar
com o som, para associação que, a cada letra teclada, ela ouvirá e
escreverá ao mesmo tempo. Depois os alunos foram digitando as
teclas no teclado aleatoriamente para o conhecimento da disposição
das teclas do teclado. Digitamos o nome da criança, dos pais,
amigos, para trabalhar com sua realidade, levando em conta o
conhecimento prévio, assim ao apertar a barra de espaço ou a tecla
tab era falado o que havíamos escrito.
Por intermédio do gesto de ensinar, o professor, na relação com os alunos, proporciona a eles, num exercício de mediação, o encontro com a realidade, considerando o saber que já possuem e procurando articulá-lo a novos saberes e práticas. Possibilita aos alunos a formação e o desenvolvimento de capacidades e habilidades cognitivas e operativas (LIBÂNEO, 1991, p. 100).
Com relação ao teclado, optei por não utilizar um teclado
adaptado, devido à maioria dos lugares não possuir teclados em
Braille, já que o nosso objetivo também era dar independência a esta
pessoa para utilizar o computador em qualquer lugar, não apenas na
escola ou em casa.
O teclado comum possui as teclas f, j e o número 5 da
calculadora numérica no lado esquerdo do teclado com um risco em
elevação para facilitar a localização das teclas pelos deficientes
visuais. Foi dessa maneira que ajudei os alunos a localizarem as
outras teclas, utilizando estas três teclas como referência padrão. A
criança também pode construir as teclas de sua referência, não
Estratégias educacionais para o ensino de informática com crianças cegas
170
precisa padronizar, vai depender do que ela achar mais fácil para sua
localização.
É importante que a criança tenha o referencial, da ordem de
contagem para facilitar a localização das teclas. Para ensinar a
criança o local que fica a letra A, ela vai até a parte inferior do
teclado, conta primeira, segunda, até chegar à terceira fileira, depois
anda uma tecla para a direita. Também podemos localizar através da
letra F que tem relevo [tecla de referência padrão], anda três teclas
para a esquerda e, assim, chega até a letra A, entre outras
possibilidades. Lembramos que cada criança tem seu tempo e modo
de aprender; foram ensinadas várias maneiras de identificar as
teclas, a partir daí cada uma escolheu a de sua preferência.
3ª Fase
Depois de cada atividade executada, salvávamos no
disquete ou CD e, sempre, explicando para as crianças o que
estavam fazendo, elas ajudavam nas atividades, colocavam o
disquete ou CD no driver. Assim, dava-se uma boa oportunidade
para a criança saber a função. Em todas as aulas eram os alunos que
ligavam o computador e eu os ajudava a desligar. Trabalhamos
muito no Word, digitação para reconhecimento das letras e som. No
final das aulas era colocado um software que contava historinhas, ou
outro que cantava músicas conforme manipulavam o mouse ou
apertavam a barra de espaço. Foi interessante para motivar os
alunos.
Naiana Paula Bocardo Thaís Cristina Rodrigues Tezani
171
4ª Fase
Uma vez familiarizados com o computador e com o
software que trabalhamos, comecei a direcionar as atividades. Por
exemplo, a professora da primeira série estava trabalhando a música
da Copa do Mundo em sala de aula, então trabalhávamos tal música
no computador. Depois que a música foi escrita, demos o comando
Alt + Tecla 4 [para falar desde o início do parágrafo atual], depois
Ctrl + Tecla “.” [para falar o texto todo] e assim foram aprendendo
alguns comandos do Virtual Vision e, claro, trabalhamos a música e
seu significado, quando e por quem foi feita. No entanto, com o
decorrer das aulas, pude perceber que as crianças ficaram cansadas,
desestimuladas, talvez pela complexidade do software. Então, depois
dessas cinco aulas com o Virtual Vision, decidi iniciar as atividades
com o software Dosvox.
5ª Fase
Início da utilização do software Dosvox. No começo das
aulas, foi ensinada a função básica para trabalhar no Dosvox, por
exemplo, entramos no sistema pelas teclas Ctrl + Alt + D; logo que
entramos ouvimos “Dosvox o que você deseja?” e, para saber quais
eram as opções, tínhamos de apertar a tecla F1, aí o sistema dizia
quais eram elas. Para iniciar as atividades, optou-se por testar o
teclado, assim as crianças iriam treinando as teclas que ainda não
sabiam localizar e os nomes das teclas e eu ia falando sobre suas
funções.
Estratégias educacionais para o ensino de informática com crianças cegas
172
6ª Fase
Trabalhamos alguns jogos, entre ele o Letravox: um
programa sonoro para auxiliar na alfabetização de crianças com
deficiência visual, conforme você aperta uma letra, por exemplo, a
letra A , o sistema falava “A , A de avião...”
Para dar um reforço no reconhecimento das letras que
trabalhávamos foi escolhido um material com letras e números de
EVA e, embaralhados, a criança deveria pegar uma peça e dizer qual
era, se era letra ou número e procurar no teclado onde estava a letra
que havia pegado.
Outro jogo foi o da forca, no qual trabalhamos atenção,
escolhas, pensamento dedutivo. Esta atividade foi interessante, pois
tivemos oportunidade de trabalhar com os alunos em duplas, sempre
interagindo.
Outros jogos também foram trabalhados em dupla, para
interação com o amigo, a espera da vez, a socialização.
7ª Fase
Foram trabalhados com as crianças diversos jogos e
atividades do software Dosvox, por exemplo, digitar texto, fazer
cálculos e brincar com números por meio do jogo Calculadoravox,
ouviram historinhas, assim as crianças iam aprendendo ludicamente.
Naiana Paula Bocardo Thaís Cristina Rodrigues Tezani
173
8ª Fase
Deixei as crianças explorarem um pouco do software
Virtual Vision e depois o Dosvox e perguntei para elas qual software
eles queriam utilizar.
ETAPA 3
Avaliação das aulas pelos alunos para optar pelo software
preferido. Todos escolheram o software Dosvox por ser um software
interativo, com jogos, brincadeiras e além de ser mais “adaptado”
para a faixa etária.
ETAPA 4
Avaliação da validade social, esta etapa buscou saber por
parte dos pais e da professora da sala de recursos qual a importância
da criança deficiente visual aprender informática. E o resultado foi
bem positivo, visto que os pais e a professora avaliaram ser muito
importante tal aprendizagem.
PROPOSTA PEDAGÓGICA
Ainda na literatura, percebi que para as pessoas cegas
utilizarem o computador era necessário um software sintetizador de
voz, ou melhor, um software com emissão de som, para o aluno
saber e entender o que faz, quais atividades ele executa. São poucos
os sintetizadores de voz, mas, entre os que existem, escolhi dois para
analisar, que são de fácil acesso e, na dúvida de qual era o mais
Estratégias educacionais para o ensino de informática com crianças cegas
174
adequado, decidi iniciar as atividades por um que era possível
utilizar no ambiente Windows, o Virtual Vision e, depois, utilizei o
Dosvox.
Já em campo, pude perceber que o computador era pouco
utilizado no ensino dessas crianças, era mais utilizado para crianças
com baixa visão. Um dos motivos era a falta de conhecimento de
softwares para trabalhar com crianças cegas, até porque são poucos
os materiais disponíveis para esse público-alvo ter acesso ao
computador e também era pouca a utilização do computador como
instrumento para reforçar a prática pedagógica.
No entanto, os computadores se popularizam cada vez mais
e, em algumas escolas, já é um meio para reforçar as estratégias de
ensino. Então, pensando na possibilidade de ampliação dessas aulas
com o uso do computador e, se na sala de aula tiver crianças com
deficiência visual e não tiver um software especializado que atenda
suas necessidades, as mesmas não se beneficiarão dessas aulas,
podendo, assim, serem excluídas das atividades.
Por isso, este trabalho buscou apontar estratégias
educacionais no ensino de informática com crianças cegas, com a
intenção de identificar qual o mais apropriado para a utilização
dessas crianças da primeira série do Ensino Fundamental de uma
escola pública de Bauru, além de dar a oportunidade de conhecer o
computador e saber utilizá-lo, podendo facilitar o processo de
inclusão social em relação às tecnologias.
Para uma proposta pedagógica de qualidade,
primeiramente, é necessário que as escolas adotem computadores e
os softwares sintetizadores de voz, depois, que os professores
busquem por meio de bibliografias ou trabalhos que possam ajudar
Naiana Paula Bocardo Thaís Cristina Rodrigues Tezani
175
na utilização de tais softwares. E o próprio professor deverá
manipular o software para aprender a utilizá-lo para, depois, ensinar
ao seu aluno. Também é necessário utilizar um software adequado à
realidade do aluno, oferecer primeiro o conhecimento da ferramenta
a ser trabalhada, no caso o computador, por meio da percepção tátil,
auditiva, levar ao conhecimento do aluno à importância de tal
aprendizagem.
As atividades utilizadas no ensino de informática deverão
ser funcionais ao aluno e garantir a finalidade da utilização do
computador na sala de aula, que é mais um recurso didático que veio
para contribuir com a educação escolar. Assim, conceber uma
prática de ensino preocupada com a educação integral do aluno e
com o compromisso social desta formação.
No que se refere a deficiência visual, a importância dos
ambientes computacionais é inquestionável. Segundo Borges (2005),
a pessoa cega pode ter certas limitações, as quais poderão trazer
empecilhos ao seu aproveitamento produtivo na sociedade. Ele
aponta que grande parte destas limitações pode ser eliminada com a
adoção de duas ações: uma educação adaptada à realidade destes
sujeitos e o uso da tecnologia para diminuir as barreiras. Claro que
não só pensando no seu aproveitamento produtivo, mas em sua
inserção na sociedade como um ser de direitos e oportunidades.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Este trabalho buscou apontar estratégias educacionais no
ensino de informática com crianças cegas, assim comparou dois
softwares para deficientes visuais, com a intenção de identificar qual
Estratégias educacionais para o ensino de informática com crianças cegas
176
o mais apropriado para a utilização, pelas crianças, na primeira série
do Ensino Fundamental de uma escola pública de Bauru, além de
dar a oportunidade de conhecer o computador e saber utilizá-lo,
podendo facilitar o processo de inclusão social em relação às
tecnologias.
De acordo com Freire (1996, p.47), “ensinar não é transferir
conhecimento, mas criar as possibilidades para a sua própria
produção ou a sua construção”. Foi dessa forma a realização desse
trabalho, com compromisso, dedicação, acreditando sempre na
capacidade desses alunos, criando possibilidades para ajudar na
construção do conhecimento, na autonomia.
Assim, por meio da prática, da convivência no dia-a-dia,
das respostas dos alunos, podemos perceber que o software Virtual
Vision é muito complexo para essa idade. Então chegamos a
identificar que o software mais adequado para se trabalhar com
crianças cegas da primeira série do Ensino Fundamental é o Dosvox,
por ser um software interativo que contém jogos, ao mesmo tempo
podendo trabalhar alguns conteúdos, apesar de alguns problemas e
de não ter sido desenvolvido com a finalidade de servir a escola.
A informatização escolar poderá também atenuar
problemas sociais presentes no ensino, contribuir para a
aprendizagem e potencializar o indivíduo cego a utilizar tal
ferramenta, possibilitando uma inclusão real na sociedade. De
acordo com Gil (2000, p.47) “o enorme avanço na área de
informática vem proporcionado recursos valiosos para o processo de
ensino-aprendizagem do portador de deficiência visual”. Nesse
sentido, a tecnologia se torna chave para ajudar no processo de
inclusão.
Naiana Paula Bocardo Thaís Cristina Rodrigues Tezani
177
Entendemos, então, que é necessária uma capacitação para
professores, a fim de trabalhar com este software na sala de aula,
facilitando o processo de inclusão.
“Há uma relação entre a alegria necessária à atividade
educativa e a esperança. A esperança de que o professor e os alunos
juntos podemos aprender, ensinar, inquietar-nos, produzir e juntos
igualmente resistir aos obstáculos” (FREIRE, 1996, p.72).
REFERÊNCIAS
BOGDAN, R.; BIKLEN, S. Investigação qualitativa em educação: uma introdução à teoria e aos métodos. Trad. Maria João Álvares, Sara Bahia dos Santos e Telmo Mourinho Baptista. Porto: Porto-Portugal, 1994.
BORGES, J. A. Manual do Dosvox. Núcleo de Computação Eletrônica da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Disponível em <http://www.nce.ufrj.br>. Acesso em: 04 out. 2005.
COLL, C.; PALACIOS, J. MARCHESI, Á. (Orgs.). Desenvolvimento psicológico e educação: necessidades educativas especiais e aprendizagem escolar. 3.vol. Trad. Marcos A. G. Domingues. Porto Alegre: Artes Médicas, 1995.
FREIRE, Paulo. Pedagogia da autonomia: saberes necessários à prática educativa. São Paulo: Paz e Terra, 1996.
GIL, M. (Coord.). Educação inclusiva: o que o professor tem a ver com isso? São Paulo: Imprensa Oficial, 2005.
______. (Org.). Deficiência visual. Brasília: MEC. Secretaria de Educação à Distância, 2000. (Cadernos da TV na Escola).
LIBÂNEO, J. C. Didática. São Paulo: Cortez, 1991. (Coleção Magistério 2º grau).
Estratégias educacionais para o ensino de informática com crianças cegas
178
MICROPOWER . Virtual vision 2.2. Disponível em <http://www. micropower.com.br/v3/pt/acessibilidade/vv2/index.asp> Acesso em: 27 jul. 2006.
MINAYO, M. C. S. O desafio do conhecimento: pesquisa qualitativa em saúde. 2.ed. São Paulo: Hucitec-Abrasco, 1993.
PEREIRA, V. A. A contaminação por chumbo em crianças: subsídios para ação educativa em alfabetização científica. Dissertação de Mestrado. Bauru: UNESP, 2006.
RIOS, T. A. Compreender e ensinar: por uma docência da melhor qualidade. 3.ed. São Paulo: Cortez, 2002.
SANCHO, J. M. Para uma tecnologia educacional. Porto Alegre, Artmed, 1993.
Daniela Melaré Vieira Barros Wagner Antonio Junior
179
OBJETOS DE APRENDIZAGEM VIRTUAIS: INOVAÇÃO PARA
A PRÁTICA PEDAGÓGICA
Daniela Melaré Vieira Barros
Wagner Antonio Junior
RESUMO
O presente artigo traça uma análise sobre o conceito de Objetos de Aprendizagem virtuais, buscando comprovar sua aplicabilidade na educação básica em instituições públicas de ensino. Este trabalho baseia-se em uma pesquisa desenvolvida para elaboração do Trabalho de Conclusão de Curso [TCC], como exigência do Curso de Licenciatura em Pedagogia da UNESP, campus de Bauru. A metodologia baseou-se na construção e aplicação de módulos educacionais com docentes de escolas públicas na cidade de Bauru/SP, seguindo os princípios de aprendizagem orientada a objetos [learning objects], através dos recursos disponíveis no PowerPoint, software da plataforma Windows, com foco na ação do professor na elaboração e construção do material. Os resultados viabilizaram comprovar a aplicabilidade do material produzido e a possibilidade de produção de um material de qualidade pelos professores com os recursos disponíveis na plataforma Windows, bem como a aplicação nas escolas públicas.
PALAVRAS-CHAVE: Objetos de Aprendizagem virtuais; educação
básica; tecnologias aplicadas à educação; prática pedagógica.
Objetos de aprendizagem virtuais: inovação para a prática pedagógica
180
TECENDO A ESTRUTURA DO TEMA
A tecnologia sempre esteve presente na realidade humana,
sob diversas formas e em distintos contextos. Desde sua gênese, o
homem buscou a perpetuação de sua espécie sob as condições hostis
que a natureza lhe ofereceu, utilizando-se de instrumentos criados
para atender às diversas necessidades, prática essa que se estendeu
por todos os períodos da evolução humana.
Atualmente, as tecnologias exercem um papel de
verdadeiras extensões do cérebro humano. No cenário atual, vemos
isso expresso nas inteligências artificiais, nos sintetizadores de som
e na profusão multiforme das imagens técnicas. Neste profundo
universo, os recursos tecnológicos vão cedendo lugar às conexões
mais fluidas das interfaces, por meio das quais vão crescendo e se
potencializando para novas interações.
Nesta discussão, não podemos deixar de fora a instituição
escolar, cuja prática de ensino permanece na contra-mão à
velocidade frenética da evolução tecnológica, prevalecendo calcada
na cultura rigorosa da linguagem escrita. A aplicação pedagógica de
recursos tecnológicos no ambiente educacional assume valor
estratégico imediato, pois, em plena era digital, a maioria dos
professores em todos os níveis educacionais têm nos livros, nas
cartilhas e na exposição oral os principais instrumentos pedagógicos
e didáticos, em uma constante reprodução de velhas técnicas.
Algumas estruturas ideológicas, que já começam a demonstrar certa
fragmentação, necessitam ser revistas.
Entre essas inovações, damos aqui destaque aos Objetos de
Aprendizagem virtuais, um novo paradigma educacional baseado na
Daniela Melaré Vieira Barros Wagner Antonio Junior
181
mediação das tecnologias no processo de ensino e aprendizagem.
Este artigo abordará o conceito de objetos de aprendizagem virtuais
e seu impacto como potencializadora da ação pedagógica nos anos
iniciais da educação básica. A fundamentação teórica, bem como os
resultados práticos que seguem, são frutos de uma pesquisa realizada
entre os anos de 2003 a 2006, durante o desenvolvimento de um
Trabalho de Conclusão de Curso, exigência do Curso de Pedagogia
da UNESP de Bauru.
OBJETOS DE APRENDIZAGEM VIRTUAIS: CONCEITOS E
CARACTERÍSTICAS
Objetos de Aprendizagem virtuais constituem-se em um
novo parâmetro tecnológico que utiliza a elaboração de um material
didático envolvendo conteúdos, interdisciplinaridade, exercícios e
complementos. Isso tudo com os recursos das tecnologias. Esse novo
tipo de material educativo tem padrões e formas para ser
desenvolvido. Além disso, possibilita repensar o processo educativo
considerando o espaço da virtualidade e suas possibilidades.
CONCEITOS E DEFINIÇÕES SOBRE O TEMA
No Brasil, os Objetos de Aprendizagem têm uma história
recente pela Rede Internacional de Educação Virtual [ou Red
Internacional de Educación Virtual para el Mejoramiento del
Aprendizaje en Ciencias y Matemáticas en América Latina] –
RIVED, que pode ser definido como um projeto de cooperação
Objetos de aprendizagem virtuais: inovação para a prática pedagógica
182
internacional entre países da América Latina, em que atualmente
trabalham de forma colaborativa Brasil, Peru e Venezuela. Esse
programa, no Brasil, é desenvolvido pelo Ministério da Educação,
pela Secretaria de Educação a Distância [SEED], em parceria com a
Secretaria de Ensino Médio e Tecnológico [SEMTEC]. É uma
iniciativa para criação de material didático digital para potencializar
o processo de ensino das ciências da natureza e da matemática no
ensino médio presencial. O material produzido são módulos
educacionais que abordam unidades curriculares das áreas de
conhecimento.
A definição de Objetos de Aprendizagem ainda é
considerada vaga. Talvez por ser um objeto de estudo relativamente
novo, ainda não existe um conceito que seja universalmente aceito.
Segundo Muzio, “existem muitas diferentes definições para Objetos
de Aprendizado e muitos outros termos são utilizados. Isto sempre
resulta em confusão e dificuldade de comunicação, o que não
surpreende devido a esse campo de estudo ser novo” (MUZZIO,
2001, p.02). Dentre os conceitos acadêmicos, destacamos o de Wiley
(apud BECK, 2002, p.1):
Qualquer recurso digital que possa ser reutilizado para o suporte ao ensino. A principal idéia dos Objetos de Aprendizado é quebrar o conteúdo educacional em pequenos pedaços que possam ser reutilizados em diferentes ambientes de aprendizagem, em um espírito de programação orientada a objetos.
South e Monso (apud MUZIO et al., 2001) utilizam o termo
Objeto de Aprendizado e o definem como: objeto que é designado
e/ou utilizado para propósitos instrucionais. Esses objetos vão desde
Daniela Melaré Vieira Barros Wagner Antonio Junior
183
mapas e gráficos até demonstrações em vídeos e simulações
interativas.
CARACTERÍSTICAS DOS OBJETOS DE APRENDIZAGEM
Longmire (2001) destaca que os Objetos de Aprendizagem
possuem características e elementos que procuram resolver diversos
problemas existentes atualmente quanto ao armazenamento e
distribuição de informação por meios digitais. Segundo Longmire
(2001), são elas:
• A flexibilidade: é constituída de forma que possua
início, meio e fim. Os objetos já nascem flexíveis,
podendo ser reutilizados sem nenhum tipo de
manutenção.
• A facilidade para atualização.
• Customização: como os objetos são independentes, o
uso em qualquer das diversas áreas e objetivos é possível.
• Interoperabilidade: reutilização dos objetos em
plataformas e ambientes em qualquer espaço mundial.
• Aumento de valor de um conhecimento: a partir do
momento em que um objeto é reutilizado diversas vezes
em diversas especializações, ao longo do tempo ele
melhora e a sua consolidação cresce de maneira
espontânea.
• Indexação e procura: a padronização dos objetos
também facilitará a idéia de se procurar por um objeto
necessário, quando um conteudista necessitar de
determinado objeto.
Objetos de aprendizagem virtuais: inovação para a prática pedagógica
184
Todas essas características mostram que o paradigma
Objetos de Aprendizagem vem para facilitar e melhorar a qualidade
do ensino, proporcionando aos tutores, alunos e administradores
diversas ferramentas facilitadoras.
ESTRUTURAÇÃO DE UM OBJETO DE APRENDIZAGEM
A partir destas caracterizações, destacamos que, segundo
Bettio e Martins (apud SINGH, 2000, p.4), um Objeto de
Aprendizagem deve ser bem estruturado e dividido em três partes
bem definidas:
• Objetivos: lista de conhecimentos prévios necessários
para um bom aproveitamento de todo o conteúdo
disponível;
• Conteúdo instrucional: aqui deverá ser apresentado
todo o material didático necessário para que o aluno
possa atingir os objetos citados;
• Prática e feedback: avaliação do aprendiz sobre seu
desempenho, suas expectativas sobre o aprendizado.
Além de definir estes três aspectos, a IMS20 também definiu
um padrão de armazenamento de informações necessárias para uma
indexação dos Objetos de Aprendizagem, de tal modo que a
propriedade de indexação e procura possa ser cumprida. A maneira
encontrada pelos pesquisadores envolvidos no consórcio IMS foi a
20 Instructional Management Systems Global Learning Consortium, Inc. é um consórcio mundial de empresas e pesquisadores que tem como intenção padronizar o armazenamento e distribuição de objetos de aprendizagem em um repositório [Learning Content Repository], de modo a viabilizar a interoperabilidade.
Daniela Melaré Vieira Barros Wagner Antonio Junior
185
criação de metadados utilizando-se a tecnologia XML21. Estes
metadados podem ser considerados como dados contendo
informações sobre outros dados, ou como define Wiley (2002, apud
TORI, 2003, p. 33-34), “metadados são informações descritivas
sobre um recurso”.
MODELO DE PLANEJAMENTO DE UM OBJETO DE
APRENDIZAGEM
Esses padrões deram origem aos roteiros denominados
“Encomendas”, as quais são realizadas para serem posteriormente
transformadas em formatos digitais. Tais “Encomendas” são
diretrizes pedagógicas para explicação e desenvolvimento do objeto
de aprendizagem. Para a elaboração técnica, são empregadas
diversas mídias ou formatos, como: applet java, animação flash,
vídeo ou áudio clip, foto, apresentação PowerPoint, website. Essa
característica torna este paradigma universal, pois pode ser utilizado
em qualquer plataforma. No contexto desta pesquisa, a opção mais
viável para as escolas públicas é a elaboração dos Objetos de
Aprendizagem com os recursos do aplicativo Microsoft PowerPoint,
visto ser este um recurso presente na grande maioria dos
computadores e de maior facilidade de uso.
Os conceitos e a delimitação dos objetos nos possibilitam
delinear a forma de estruturá-los e os elementos necessários para
esse processo.
21 eXtensible Markup Language, linguagem digital proposta pelo W3C [Word Wide Web Consortium] como padrão de representação de dados.
Objetos de aprendizagem virtuais: inovação para a prática pedagógica
186
Os princípios para a construção dos Objetos de
Aprendizagem buscam integrar a usabilidade do design e a
usabilidade pedagógica. Segundo Martins (2004) a usabilidade de
design engloba estudos na área da ergonomia, focados em usuário-
interface-sistema, conceito que busca definir as características da
utilização, do desempenho na interação e leitura das - e nas -
interfaces computacionais pelo usuário. Já a usabilidade pedagógica
se refere à necessidade de aprendizagem significativa e à utilização
de ambientes para aprendizagem construtivista. As características da
aprendizagem e o uso da tecnologia são inter-relacionados,
interdisciplinares, interativos e interdependentes.
A interdisciplinaridade, para Fazenda (1991), está
fundamentada na intersubjetividade, mostrando-se presente
mediante a linguagem como forma de expressão humana. A
interdisciplinaridade possibilita o diálogo entre as diversas
disciplinas e uma formação mais completa, na medida em que
viabiliza traçar conexões entre os saberes.
A interatividade, nas análises de Silva (2001) expressa a
bidirecionalidade entre emissores e receptores, a troca e a
conversação. O autor distingue duas acepções: 1) a interatividade
tecnológica, na qual prevalece o diálogo, a comunicação e a troca de
mensagens; 2) a interatividade situacional, definida pela
possibilidade de agir-interferir no programa e/ou conteúdo. Essas
características da interatividade, transferidas para o espaço da
tecnologia, são possíveis e plenamente viáveis.
O planejamento dos objetos tem como referência a teoria do
instrucional design ou, melhor definindo, sistema de técnicas que
Daniela Melaré Vieira Barros Wagner Antonio Junior
187
envolvem a análise, planejamento, desenvolvimento, implementação
e avaliação (FILATRO, 2003).
BASES PEDAGÓGICAS E DIDÁTICAS DE UM OBJETO DE
APRENDIZAGEM
O paradigma utilizado para a elaboração de objetos deve ser
o da virtualidade, um paradigma que tem por princípio: o pensar em
rede, a conectividade, o processo interdisciplinar, o uso da imagem,
a competência em informação e, principalmente, a competência na
virtualidade, aqui caracterizada pela virtual literacy.
O que sustenta o paradigma da virtualidade e sua
aplicabilidade diretamente ao trabalho pedagógico, utilizando o
computador, denomina-se virtual literacy. Tal competência é o uso
dos aplicativos das tecnologias para transformar o conhecimento em
informações, dados e imagem, com os recursos da plataforma
Windows, no processo de uso como ferramenta e mediação da
construção do conhecimento (BARROS, 2007).
A partir desses princípios e considerando a virtual literacy,
utilizaremos especificamente o aplicativo PowerPoint, cuja maior
vantagem é a facilidade de acesso e manuseio, que o torna uma
opção acessível para o trabalho com os Objetos de Aprendizagem
nas escolas públicas, pois além de ser um programa facilmente
encontrado, não exige do professor um conhecimento especializado.
Objetos de aprendizagem virtuais: inovação para a prática pedagógica
188
O OBJETO DE APRENDIZAGEM COMO MEDIADOR DO
PROCESSO EDUCACIONAL
Apresentaremos a seguir os resultados de uma pesquisa
realizada pelos autores em 2006, cuja intenção foi comprovar tanto a
possibilidade de construção como de aplicação dos Objetos de
Aprendizagem virtuais pelos professores da rede pública de ensino.
Este trabalho foi realizado na cidade de Bauru/SP, diretamente com
docentes que lecionam nas séries iniciais da Educação Básica.
O trabalho se dividiu em dois momentos: o primeiro deles,
de caráter diagnóstico, investigou 59 docentes, por meio de um
questionário misto, o qual teve por objetivo colher dados referentes à
ambiência destes com o uso das tecnologias em sua prática
educativa. Em um segundo momento, foi elaborado um módulo
educacional em caráter experimental, baseado em Objeto de
Aprendizagem, o qual foi construído pelos pesquisadores com uso
do PowerPoint, a ser analisado por uma parte da amostra inicial,
com auxílio de um roteiro avaliativo. Para esta segunda fase, foram
selecionados, da amostra inicial de 59 professores, apenas 5.
RESULTADOS E ANÁLISES DA PESQUISA DESENVOLVIDA
Os resultados da pesquisa de campo, em seus dois
momentos, foram organizados mediante estatística descritiva, o que
possibilitou uma visão abrangente dos resultados. No primeiro
momento da pesquisa, reservada ao diagnóstico, o instrumento
utilizado para a coleta de dados foi um questionário, que de acordo
com a metodologia proposta por Lakatos e Marconi (2001),
Daniela Melaré Vieira Barros Wagner Antonio Junior
189
constitui-se de uma série ordenada de perguntas a serem respondidas
por escrito e sem a presença do pesquisador.
O resultado do questionário revelou que a grande maioria
dos professores possui conhecimentos limitados em relação às
tecnologias, bem como não possuem as competências e habilidades
necessárias para a aplicação didática destas tecnologias no processo
educacional.
Após a fase diagnóstica, foi construído um módulo didático
em forma de Objeto de Aprendizagem virtual, o qual foi submetido
a avaliação de alguns docentes investigados, com base em critérios
técnicos e pedagógicos. Por critérios técnicos, considerou-se os
fatores de estética e funcionalidade. Já os critérios pedagógicos
consideraram a adequação dos conteúdos didáticos à idade e/ou
série, os desafios pedagógicos existentes, se o mesmo proporciona
motivação e interesse nos alunos. Este material foi centrado na ação
interativa do educando com os recursos disponíveis.
Esta avaliação foi realizada com base em um roteiro,
contendo tópicos que versam sobre aspectos do módulo e sobre o
perfil do docente. Com os dados obtidos nesta avaliação, foi possível
analisar o grau de aplicabilidade dos Objetos de Aprendizagem nas
escolas de Educação Básica, na rede pública de ensino.
Apresentamos a seguir uma breve descrição do módulo
construído em caráter experimental, em forma de Objeto de
Aprendizagem virtual, que foi submetido a avaliação dos docentes
selecionados na pesquisa. Este material é composto por 51 slides em
modo de apresentação. Em sua elaboração, foram utilizados recursos
multimídia [sons, imagens, arquivos de vídeo, pequenos textos].
Didaticamente, foi dirigido à 1ª série do Ensino Fundamental, na
Objetos de aprendizagem virtuais: inovação para a prática pedagógica
190
disciplina Ciências e contempla conceitos referentes às relações
entre o homem e o meio ambiente, especificamente os recursos
hídricos. O título do módulo é O Homem e a Água.
Apresentamos, na figura 01, a Encomenda referente ao
módulo experimental, contendo as diretrizes pedagógicas e algumas
especificações técnicas.
Na ilustração do módulo, iniciamos pela tela de
apresentação [figura 02]. Neste momento podemos ter uma idéia
inicial do conteúdo a ser abordado. O módulo desenvolve-se em uma
seqüência coerente e coesa, com enfoque na ação do aluno. Esta
primeira tela antecipa o conteúdo que será abordado. A
movimentação das figuras, o contraste das cores e os textos curtos
em tamanho, mas com profundidade de conteúdo científico,
proporcionam atratividade ao aluno. Na seqüência, o módulo
apresentou conceitos sobre as possibilidades de utilização da água,
informações sobre higiene e cuidados com o corpo. Além destes
conceitos científicos, o módulo conta com atividades interativas,
curiosidades e links relacionado a este assunto. Com as informações
na tela, que estão em diferentes linguagens [textuais, imagéticas,
sonoras], é possível para o aluno abstrair diferentes informações
sobre o tema.
Após a elaboração deste módulo, submetemos o mesmo a
um teste informal, realizado com algumas professoras, o que nos
possibilitou passar ao estágio seguinte, uma avaliação formal cujos
resultados apresentamos a seguir. Além dos dados relativos ao
módulo em si, também obtivemos conceitos que os docentes
possuem em relação ao uso das tecnologias.
Daniela Melaré Vieira Barros Wagner Antonio Junior
191
ENCOMENDA INFORMAÇÕES GERAIS SOBRE O MÓDULO Área de Conhecimento: Ciências Nível: Ensino Fundamental Série / Bimestre: 1ª série / 4º bimestre Título do módulo: O Homem e a Água Conceitos: • Fontes de abastecimento de água; • Utilidades do recurso hídrico; • Formas de preservação. Pré-requisitos: • Possuir noções do meio ambiente a partir do próprio contexto. Objetivos: • Ler, articular e interpretar informações a partir de situações do seu cotidiano; • Construir conceitos sobre água e recursos hídricos; • Criar uma consciência para preservação do meio ambiente. Tecnologias utilizadas: • O computador.
Contexto: • Esta aula deverá ser ministrada em sala de informática, com um computador para
cada dois alunos.
Tempo previsto: • 20 minutos. METODOLOGIA Aluno: • Realiza a leitura as orientações explicitadas pelo próprio módulo, por meio da
interação de recursos (sons, imagens, textos escritos); • Interage com o sistema na realização de atividades e jogos contextualizados; • Responde às perguntas expostas nas atividades. Professor: • Orienta os alunos na realização das atividades, intervindo quando necessário. Avaliação: • A avaliação será realizada a critério do professor, com base nos resultados obtidos
nas atividades e nas questões levantadas; • O aluno tem a liberdade de retornar e realizar as atividades quantas vezes achar
necessário.
DESCRIÇÃO TÉCNICA DO MÓDULO O módulo será realizado em formato de apresentação PowerPoint, com inserção de textos escritos, sons, imagens e gifs, contendo 51 (cinqüenta e um) slides. O módulo deverá ser construído de modo que o aluno possa interagir com os objetos constantes.
Figura 01: Encomenda referente ao Módulo Experimental
Fonte: elaborado pelos autores (2006)
Objetos de aprendizagem virtuais: inovação para a prática pedagógica
192
Figura 02: Módulo experimental, tela de apresentação.
Fonte: ANTONIO JUNIOR, Wagner, 2006.
No quadro 01, apresentamos os resultados obtidos nas
questões fechadas da avaliação em relação a aspectos técnicos e
pedagógicos. Os aspectos técnicos se subdividem em estéticos e de
funcionalidade.
Os critérios levantados foram fundamentados em Lévy
(1993) e Oliveira (2001), considerando as capacidades de ordem
cognitiva superiores e de que forma as tecnologias podem
potencializar tais capacidades. Todos os critérios gerais do módulo,
expostos acima, foram avaliados pelos docentes de forma positiva,
com conceitos ótimo e bom. O único item que não foi bem avaliado
por uma das professoras foi a questão da existência de desafios
Daniela Melaré Vieira Barros Wagner Antonio Junior
193
pedagógicos no material, que segundo essa docente o material é
desprovido destes desafios. Isso demonstra que o módulo atingiu os
objetivos em seus critérios mais gerais.
Os docentes foram questionados sobre possíveis falhas do
módulo, bem como convidados a darem sugestões para a melhoria.
Todos responderam que o módulo não necessita de mudanças, pois
atende às expectativas didático-pedagógicas e técnicas. Em seguida,
discorreram sobre as possibilidades da aprendizagem com os
Objetos de Aprendizagem e de que forma eles poderiam
potencializar o ensino.
QUADRO 01: CRITÉRIOS IDENTIFICADOS NA AVALIAÇÃO GERAL DO
MÓDULO
Técnicos Estética • Layout da tela. • Cores. • Figuras. • Tamanhos. • Tipos sociais.
Funcionalidade • Recursos multimídia [imagens, efeitos e sons] adequados.
• Mapeamento [esclarecimento de localização dentro do módulo].
• Clareza nas instruções. Pedagógicos Didática • Objetivos do conteúdo explicado.
• Coerência e coesão [na seqüência de apresentação em relação ao conteúdo].
• Adequação da linguagem. • Série/faixa etária abordados está de acordo
com a realidade. • Atratividade [capacidade em despertar
interesse no aluno]. • Interdisciplinaridade. • Possui desafios pedagógicos.
Fonte: organizado pelos autores (2006) a partir dos resultados da avaliação.
Objetos de aprendizagem virtuais: inovação para a prática pedagógica
194
Estes elementos foram levantados das respostas dos
docentes em relação às potencialidades que este material poderia
proporcionar ao ensino. De acordo com os professores investigados,
os elementos potencializadores dos objetos de aprendizagem
virtuais, sob uma perspectiva pedagógica, são: a) interatividade; b) atratividade; c) motivação; e) desafios pedagógicos. Na assertiva de
Sá Filho e Machado (2004), os recursos por si sós não poderiam
gerar tais inovações, porém oferecem ferramentas que potencializam
as ações da mente humana e as estratégias didáticas. Através desses
itens, os alunos respondem melhor aos estímulos proporcionados
pelos Objetos de Aprendizagem.
Os docentes participantes da avaliação foram investigados
quanto a alguns conceitos que os mesmos trazem em relação às
tecnologias. O quadro a seguir mostra as idéias dos professores em
relação à Internet:
QUADRO 02: CONCEITO DOS PROFESSORES EM RELAÇÃO À INTERNET
• Uma grande “rede”. • Ferramenta para busca de informações. • Vasta fonte de informações. • Utilidade. • Meio de comunicação. • Lazer e distração. • Meio de compras, consultas e pagamentos. • Meio de pesquisa. • Fonte de conhecimentos gerais. • Meio com muitos recursos. • Oportunidade para professores e alunos. • É muito boa, porém necessita de dosagem.
Fonte: organizado pelos autores (2006) a partir dos resultados da avaliação.
Daniela Melaré Vieira Barros Wagner Antonio Junior
195
Estes conceitos levantados mostram que os professores, em
sua maioria, concebem a Internet como um meio de busca de
informações, lazer e entretenimento. Apenas um deles destacou que
a rede pode ser utilizada como oportunidade didática a professores e
alunos. Os docentes também foram questionados quanto ao conceito
que trazem em relação a competências e habilidades, o que está
expresso no quadro a seguir:
QUADRO 03: CONCEITOS DOS PROFESSORES EM RELAÇÃO A
COMPETÊNCIAS E HABILIDADES
Competências Habilidades
• Capacidade para se fazer. • Aptidão. • Capacidade de saber. • Capacidade decorrente do profundo
conhecimento em determinado assunto.
• Algo a ser desenvolvido. • Preparação. • Aptidão. • Agilidade, destreza. • Qualidade de fazer algo.
Fonte: organizado pelos autores (2006) a partir dos resultados da avaliação.
Apesar de todos os docentes saberem o que significam
competências e habilidades, a maioria externou o que sabe pelo
senso comum. As competências e habilidades, para Perrenoud
(2002) compreendem as capacidades em agir de forma eficaz em
determinada situação por meio de conhecimentos, porém não se
limitando a eles. A partir dessa discussão, os docentes foram
questionados sobre qual competência acreditam ser necessária ao
professor no uso das tecnologias: a competência técnica ou a
competência pedagógica. Todos os professores responderam que as
Objetos de aprendizagem virtuais: inovação para a prática pedagógica
196
duas competências são necessárias, pois uma não pode atuar sem a
outra.
Finalmente, indagamos aos professores sobre as possíveis
mudanças que a introdução das tecnologias pode trazer à educação,
no contexto brasileiro. As opiniões estão descritas no quadro 04.
QUADRO 04: POSSIBILIDADES DECORRENTES DA INTRODUÇÃO DAS
TECNOLOGIAS NA EDUCAÇÃO
• Apoio na construção do conhecimento. • Desperta interesse nas aulas. • Pesquisa de informações atualizadas. • Realização e diversificação de trabalhos. • Incentivar o rendimento da criança pela facilidade do manuseio. • Aulas mais dinâmicas. • Desenvolvimento do raciocínio lógico-matemático. • Possibilidade de os professores prepararem melhor suas aulas. • Cooperação. • Compreensão do mundo.
Fonte: organizado pelos autores (2006) a partir dos resultados da avaliação.
Todos os docentes acreditam na melhoria do ensino com a
introdução dos recursos tecnológicos, desde as estratégias didáticas
nos processos de ensino e aprendizagem até a elaboração de
trabalhos mais ricos e diversificados. Hutmacher (1995) aponta a
importância das inovações com a introdução de tecnologias na
instituição escolar, porém este processo requer novas práticas, a
serem construídas de forma coletiva, além de investimentos na área
e mudanças nas atuais políticas públicas.
Daniela Melaré Vieira Barros Wagner Antonio Junior
197
PROPOSTA PEDAGÓGICA COM OS OBJETOS DE
APRENDIZAGEM NA ESCOLA PÚBLICA
Através da avaliação do material pelos docentes, pudemos
analisar que o módulo experimental construído em forma de Objeto
de Aprendizagem virtual atingiu os objetivos dentro dos critérios
técnicos e pedagógicos propostos na ficha avaliativa. Os professores
consideraram que os recursos tecnológicos e didáticos deste material
podem potencializar a ação pedagógica em sala de aula. Analisamos
ainda que os docentes que participaram dessa avaliação possuem
conhecimentos limitados em relação ao uso das tecnologias, o que
dificulta o trabalho desses docentes com os objetos de aprendizagem
virtuais.
Os resultados obtidos nessa etapa da pesquisa de campo
foram importantes na medida em que possibilitaram comprovar a
qualidade do módulo experimental a partir da análise dos
professores. A relevância dessa parte da pesquisa também se deve ao
levantamento das opiniões desses mesmos docentes em relação aos
aspectos das tecnologias que não foram abordados através do
questionário diagnóstico. Juntos, o diagnóstico e a avaliação dos
professores puderam oferecer subsídios para comprovação do
problema dessa pesquisa.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
O objetivo que norteou essa pesquisa foi comprovar a
viabilidade dos Objetos de Aprendizagem virtuais como recurso
potencializador da ação pedagógica em sala de aula, sendo que o
Objetos de aprendizagem virtuais: inovação para a prática pedagógica
198
cenário deste trabalho foi a rede pública de ensino. A hipótese
levantada foi se realmente é possível a aplicabilidade desse tipo de
material na educação básica dentro das condições em que se
encontra a escola pública. As questões que nortearam esta pesquisa
foram: 1) o professor não possui acesso à máquina; 2) o professor é
resistente quanto ao seu uso; 3) o professor não consegue ver
utilização do computador para finalidades didáticas.
Os docentes investigados durante essa pesquisa
demonstraram limitações no conhecimento técnico básico para o
trabalho com esse material. Além disso, apesar da maioria concordar
que as tecnologias podem ser utilizadas no contexto escolar, muitos
deles possuem dificuldades em definir formas para o trabalho
didático com uso de recursos tecnológicos, em especial com Objetos
de Aprendizagem virtuais.
Concluímos, baseados nos resultados deste trabalho, que a
construção de materiais didáticos com Objetos de Aprendizagem
virtuais é viável para a educação básica, visto que oferecem novas
possibilidades ao trabalho pedagógico, potencializando o
aprendizado do aluno, ao mesmo tempo em que é de fácil acesso ao
docente. Porém, sua inserção na rede pública de ensino não é uma
tarefa fácil, considerando as condições em que a escola pública se
encontra, tanto em recursos materiais e financeiros como em corpo
docente preparado para trabalhar com este tipo de material.
Daniela Melaré Vieira Barros Wagner Antonio Junior
199
REFERÊNCIAS
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FAZENDA, I (Org.). Práticas interdisciplinares na escola. São Paulo: Cortez, 1991.
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LAKATOS, E. M.; MARCONI, M. A. Fundamentos de metodologia científica. 4.ed. São Paulo: Atlas, 2001.
LÉVY, P. As tecnologias da inteligência. São Paulo: Editora 34, 1993.
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MUZIO, J; HEINS, T; MUNDELL, R. Experiences with reusable e learning objects: from theory to practice. Victória, Canadá, 2001.
OLIVEIRA, C. C. Ambientes informatizados de aprendizagem: produção e avaliação de software educativo. Campinas: Papirus, 2001.
Objetos de aprendizagem virtuais: inovação para a prática pedagógica
200
PERRENOUD, P. Construir competências desde a escola. Porto Alegre: ArtMed, 2002.
SÁ FILHO, C. S.; MACHADO, E. de C. O computador como agente transformador da educação e o papel dos objetos de aprendizagem. Disponível em: <http://www.google.com.br>. Acesso em 30 mai. 2004
SILVA, M. Sala de aula interativa. 2.ed. Rio de Janeiro: Quartet, 2001
SINGH, H. Introduction to learning objects. Disponível em: <http://www.elearningforum.com/july2001/singh.ppt>. Acesso em 15 mar. 2000.
TORI, R. Tecnologias interativas na redução de distância em educação: taxonomia da mídia e linguagem de modelagem. Tese (Livre Docência). Escola Politécnica da Universidade de São Paulo. Departamento de Engenharia de Computação e Sistemas Digitais. São Paulo, 2003.
Colaboradores
201
CONCLUSÕES
Esta obra teve por objetivo oferecer reflexões teórico-
práticas sobre temas articulados à prática de ensino nos anos iniciais
da educação básica.
Os artigos aqui apresentados são frutos de pesquisas
acadêmicas que tiveram como foco uma prática pedagógica que
considera a criança, seu universo e suas necessidades. Alguns destes
trabalhos são propostas, em face das necessidades da educação hoje.
Todos foram elaborados por ex-alunos de graduação, orientados por
docentes com reconhecida experiência acadêmica, do Curso de
Pedagogia da UNESP, campus universitário de Bauru.
Ao se pensar na composição de informações, conceitos e
saberes que estruturaram esta obra, nos remetemos à questões
educacionais em um contexto que exige inovação, pois a sociedade, a
política e a cultura estão em acelerada evolução, e a escola não pode
ficar à margem deste processo. Também percebemos que a formação
docente, inicial ou continuada, deve considerar os novos paradigmas
que estamos vivenciando.
Faces das práticas inovadoras: da creche aos anos iniciais da alfabetização
202
Temas inerentes à criança, como jogos e brincadeiras, o
lúdico, o processo de alfabetização, a inclusão e o uso de tecnologias
estão intrinsecamente ligados à realidade educativa. Quando os
autores, em conjunto, pensaram nessas questões, enfatizou-se em
oferecer contribuições à educação brasileira, em dois aspectos.
Primeiramente, possibilitar reflexões sobre a importância desses
campos de atuação e, segundo, oferecer propostas concretas como
subsídios para estratégias didáticas do professor na realidade
educativa.
Ressaltamos que a intenção dos autores não foi elaborar um
referencial para um grupo fechado de intelectuais acadêmicos, mas
oferecer contribuições pensadas, construídas e articuladas à uma
prática pedagógica que vá de encontro às reais necessidades da
educação básica brasileira, devolvendo à sociedade os frutos colhidos
na universidade pública. Procuramos, desta forma, aproximar a
universidade da realidade social.
Bauru, 12 de dezembro de 2007
Prof. Wagner Antonio Junior
Colaboradores
203
COLABORADORES
ANA MARIA LOMBARDI DAIBEM – [email protected] Doutora em Educação pela UNESP de Marília. Professora Assistente Doutora voluntária da UNESP de Bauru. Atualmente é Secretária da Educação Municipal da cidade de Bauru/SP.
ANTONIO FRANCISCO MARQUES – [email protected] Doutor em Educação pela UNESP, campus de Marília. Professor Assistente Doutor do Departamento de Educação da Faculdade de Ciências – UNESP de Bauru.
CARMEM LÍGIA COUTINHO SANTOS FARIA – [email protected] Pedagoga graduada pela UNESP de Bauru. Professora efetiva na rede estadual de Educação Básica em São Paulo.
CÉLIA REGINA F. BORTOLOZO – [email protected] Pedagoga graduada pela Uniaras. Professora da rede pública municipal de educação de Santa Bárbara D’Oeste/SP.
Faces das práticas inovadoras: da creche aos anos iniciais da alfabetização
204
DANIELA MELARÉ VIEIRA BARROS – [email protected] Doutora em Educação Escolar – UNESP/Araraquara Pós-doutora – UNICAMP – Brasil / UNED – Espanha, Bolsista Fapesp. Ex-docente do Curso de Pedagogia da UNESP / Bauru na disciplina Educação e Tecnologias
EDSON ALEXANDRE DE LIMA – [email protected] Pedagogo graduado pela UNESP de Bauru. Professor do Ensino Fundamental na rede municipal em Bauru e Agudos/SP.
ELAINE CRISTINA FEIJÓ – [email protected] Pedagoga graduada pela UNESP, campus de Bauru.
ELIANA MARQUES ZANATA – [email protected] Doutora em Educação Especial pela UFSCar. Professora da Faculdade de Ciências – Departamento de Educação da UNESP de Bauru.
ENICÉIA GONÇALVES MENDES – [email protected] Doutora em Psicologia pelo Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo. Professor associado da UFSCar – Depto. de Psicologia e Programa de Pós-graduação em Educação Especial.
KELLY CRISTINA DUCATTI-SILVA – [email protected] Doutoranda em Educação pela UNICAMP. Professora na UNESP de Bauru. Professora do Ensino Fundamental na rede municipal de Bauru.
Colaboradores
205
MARIA DA GLÓRIA MINGUILI – [email protected] Doutora em Educação pela UNICAMP. Professora aposentada da Faculdade de Ciências da UNESP de Bauru. Membro da Comissão Gestora do Projeto Institucional de Formação Continuada de Docentes da UNESP, junto à Pró-Reitoria de Graduação (PROGRAD), UNESP, São Paulo. 2005-2008.
MARIA DO CARMO MONTEIRO KOBAYASHI – [email protected] Doutora em Educação pela UNESP / Marília Docente da Faculdade de Ciências – Departamento de Educação da UNESP / Bauru e na Universidade do Sagrado Coração – USC.
MARIANA VAITIEKUNAS PIZARRO – [email protected] Pedagoga graduada pela UNESP de Bauru. Mestranda do Programa de Pós-Graduação da Faculdade de Ciências – UNESP/Bauru. Área de concentração: Ensino de Ciências. Professora efetiva da educação básica do Governo do Estado de São Paulo.
MARTA DE CASTRO ALVES CORRÊA – [email protected] Pedagoga graduada pela UNESP de Bauru. Professora da Educação Infantil da rede pública municipal de Bauru. Atualmente está junto ao Departamento Pedagógico na Secretaria Municipal de Educação de Bauru.
NAIANA PAULA BOCARDO – [email protected] Pedagoga graduada pela UNESP de Bauru. Especializanda em Educação Especial pela Faculdade de Ciências da UNESP de Bauru. É professora do Ensino Fundamental na rede municipal de Bauru e atua na Educação Especial junto à APAE de Bauru.
Faces das práticas inovadoras: da creche aos anos iniciais da alfabetização
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THAÍS CRISTINA RODRIGUES TEZANI – [email protected] Doutora em Educação pela UFSCar. Professora do Departamento de Educação – Faculdade de Ciências, UNESP de Bauru e na Faculdade Fênix. Professora do Ensino Fundamental da rede pública municipal em Bauru, atuando no cargo de coordenadora pedagógica.
VERA LÚCIA MESSIAS FIALHO CAPELLINNI – [email protected] Doutora em Educação Especial pela UFSCar. Professora Assistente Doutora do Departamento de Educação da UNESP de Bauru.
WAGNER ANTONIO JUNIOR – [email protected] Pedagogo graduado pela UNESP de Bauru e especialista em Gestão Escolar. Professor na Faculdade de Agudos - FAAG.
Colaboradores
207