Dona Sinhá
Eu quero a memória acesa depois da angústia apagada.
Cecília Meireles
Dona Sinhá, assim era conhecida por todos na cidade apesar de seu nome
verdadeiro, doce, e suave, que traduzia a leveza da sua alma: Isabel. A mais velha das
quatro filhas de meu avô. Uma mulher forte, de fibra. Casou-se com meu pai aos vinte e
dois anos, um casamento arranjado entre primos. Viveram sessenta e um anos, de uma
vida conjugal que não foi, talvez, a mais romântica, mas, creio que se amavam apesar
das diferenças individuais.
Meu pai, um homem rústico, pouco afeito a dengos, minha mãe, uma mulher que só
vivia para o lar, saía apenas para ir à igreja ou quando estava lavando roupa no Rio
Gongogi, ou no Rio Preto. Criou nove filhos. Amava-os incondicionalmente, eram
como joias preciosas em suas mãos, ou pintainhos debaixo das suas asas.
Nunca entendeu e não se conformava com as peças que a vida muito cedo lhe
pregou: perdeu, ainda crianças, dois de seus filhos, uma menina e um menino. Assistiria
outros dois, já adultos, partirem prematuramente.
Dona Isabel não tinha escolaridade, desenhava, com dificuldade o seu nome, quando
era preciso assinar algum documento público ou cumprir, através do voto, seu papel de
cidadã. Aprendera a ler na fase adulta estudando a Bíblia, sua fonte de doutrina e fé, de
onde tirava ensinamentos para sua vida.
Falava de Jesus e compartilhava, com todos que chegavam lá em casa, do que Ele
significava na sua vida. Dava exemplos de como viver conforme os preceitos do
Evangelho, citava versículos, lia passagens bíblicas. Sabia “de carreirinha” onde estava,
na Bíblia, quase tudo do que, naquele momento especificamente, ela iria precisar. Tinha
uma palavra de fé para cada um.Uma vez por mês, o pastor ministrava um culto lá em
casa, almejava que todos os seus filhos estivessem ali e comungassem com ela a mesma
fé. Sonhara, por toda a vida, ver seu marido, aos domingos, acompanhando-a à igreja.
Nunca conseguiu. Porém, testemunhou a sua conversão ao Deus Supremo, já no fim da
sua jornada aqui na terra. Ficou feliz, glorificou o nome do Senhor.
E, a cada dia, procurava viver conforme os ensinamentos de Jesus, como uma
verdadeira cristã: “Amar a Deus sobre todas as coisas e ao próximo como a si mesmo”.
Fundadora da 1ª Igreja Batista da cidade, aí congregou por mais de sessenta anos.
Esposa sempre dedicada ao marido, mesmo nos momentos em que esse não
correspondia às suas expectativas, quando chegava em casa zangado ou até muito
agressivo explodindo com quem achasse pela frente.
Em casa, tinha a companhia silenciosa, mas muito amorosa do seu bichinho de
estimação – o Lourinho, como era chamado o papagaio que recebera da irmã que foi
morar em Recife, em um mil novecentos e sessenta e quatro. Amava-o, como a um
membro da família. Conversava com ele, que respondia com arrufos de alegria
chamando-a Sinhá, Sinhá... Nunca mais o deixaria. Apesar da ausência saudosa da sua
protetora, ele sobrevive tristonho até hoje.
Ainda menina, eu presenciava, sem condições de nada fazer, minha mãe sofrer
dilaceradamente. Os seus três filhos mais velhos partiram em busca de trabalho no Sul
do país. Um a um era pranteado diariamente, numa época em que não havia as
facilidades tecnológicas de hoje, nem ao menos um telefone.
Logo mais, minha irmã mais velha se casa, ficam com meus pais eu e dois irmãos
mais moços. Um desses, parte mais tarde em busca de estudo e trabalho. De resto, eu e
meu irmão caçula, como seus ajudadores. E eu, como sua cuidadora.
A princípio, minha irmã continuou morando na nossa cidade, o que nos consolava,
poderíamos vê-la sempre. Minha mãe tinha um cuidado especial com ela. Quando o
marido viajava, ou eu ou um dos meus irmãos mais novos teria que ir dormir em sua
casa. Ninguém questionava, era uma ordem, apesar de não gostar muito de deixar a
minha cama.
Quando minha irmã engravidava, cuidados redobrados. Nos dias que antecediam a
data provável do parto, não tinha quem fizesse ela arredar pé da casa da filha, e me
levava junto, caso precisasse de alguma coisa. Lembro uma noite em que seu marido
viajara, e tive que “dormir” sentada na porta do quarto onde as duas estavam. Eu
chorava e pedia compaixão, que me deixassem entrar, e nada. O importante, naquele
momento, era o bem-estar da minha irmã. Na verdade, falecera alguém na cidade, e eu
estava com medo de dormir sozinha. As duas alegaram que não me cabia onde elas
dormiam, voltasse então para meu quarto. É claro, não dormi. No outro dia, meu
coração estava sofrido, repleto de raiva, a vontade era desaparecer, se isso fosse
suficiente para tirar, de dentro de mim, aquele sentimento de rejeição. Não fiz nada
disso. Estava com muito sono e precisava, com urgência, de uma cama. Hoje, resta a
lembrança de um momento bastante desagradável, sem qualquer ponta de mágoa.
Quando minha irmã entrou em trabalho de parto da segunda filha, sobrou para mim,
aos dez anos de idade, às quatro horas da manhã, ter que buscar a parteira. Fazia um frio
de quebrar os ossos - o mês de maio sempre foi muito frio. E, sem um agasalho mais
apropriado, saí a galope pela madrugada, atravessando a cidade enrolada em um lençol,
da cabeça aos pés. Parecia mais uma alma penada nas ruas nebulosas e sombrias da
cidade. Meu corpo se arrepiava e sentia calafrios. Medo ou frio? Provavelmente os dois.
Nascida a menina e, já no outro dia, eu teria o trabalho de lavar-lhe as fraldas. Isso
todos os dias. Quando recusava realizar a tarefa, apanhava ou, no mínimo, ficava de
castigo sem poder ir ao encontro de minhas primas. Para mim, um castigo e tanto! Não
tinha em casa irmã que brincasse comigo. Alguma prima cobria a falta. Moravam
próximas umas das outras. Apanhei várias vezes por não cumprir uma obrigação a fim
de ir brincar com elas.
Mais tarde, essa irmã, acompanhando o marido, muda para Minas Gerais –
Nanuque. E, depois, para o extremo sul da Bahia, precisamente, Alcobaça. Fica comigo
a responsabilidade de, como a única filha mulher presente, tomar conta de minha mãe.
Tudo era comigo. Mensalmente, em um dia exato escolhido por ela, tinha de escrever
três cartas, uma para cada um dos filhos que moravam no Sul e Sudeste do país.
Sentávamos à mesa, e ela ia ditando o que iria dizer: pedia cuidado com os perigos da
cidade grande, falava da saudade que sentia, mandava lembranças de todos os
familiares, incluía fotos e, ao final, implorava que respondessem a carta assim que a
recebessem.
Ao ditar a carta, chorava, lamentava a falta dos filhos, como se já os tivesse perdido
para sempre. Muitas das vezes, eu chorava com ela. O seu sofrimento me deixava com
muito ódio dos meus irmãos que, de longe, não viam o que se passava. Angustiava-me
vê-la à espera de uma carta deles, que demorava meses ou até mesmo anos. Quando
chegava, eu tinha que ler pelo menos três vezes e por vários dias. Ao arrumar os seus
pertences, após ter nos deixado aos noventa e quatro anos de idade, encontro esta
enviada por meu irmão, de 1958. Estava eu com doze anos de idade.
Após receber essa correspondência, nós o vimos por umas duas vezes. Decorridos
oito anos, ele morre, aos trinta e três anos de idade, em circunstâncias trágicas. Caíra do
oitavo andar de um prédio no centro de São Paulo - o apartamento onde morava, havia
pegado fogo.
A causa real, nunca se soube. Sobre o episódio, só tivemos notícias alguns dias
depois. Um primo distante, que não víamos há anos, leu, nas páginas policiais de um
jornal de São Paulo, uma nota sobre um corpo que caíra de um prédio no centro da
cidade. O nome que aparecia no jornal era de Xenaldo Matos Rocha, meu irmão. O
mesmo primo, após a identificação do corpo, assumiu o sepultamento e nos comunicou
o que ocorrera através de carta.
Na época, eu ensinava Educação Física no Ginásio de Iguaí. Em um exato dia, antes
de receber a triste notícia da morte de meu irmão, acordara às cinco horas da manhã,
para me encontrar com os alunos, onde íamos ter uma atividade. Não me lembro do
assunto, mas era algo ligado à alvorada, ensaio de desfile ou coisa parecida. Logo ao
acordar, de passagem pela a cozinha, para ir ao banheiro, que ficava fora do corpo da
casa, me deparo com minha mãe chorando sem consolo. Assustada, pergunto o que
havia acontecido e, aos prantos, ouço o que jamais esqueci:
- Minha filha, acordei sem um pedaço de mim. Arrancaram um pedaço do meu
coração. Está doendo muito.
Abraçamo-nos, chorei com ela até acalmá-la enquanto buscava ajuda. Após alguns
dias, recebemos a notícia da data e hora exata da morte de meu irmão. Eram as mesmas
daquele momento em que encontrei minha mãe chorando na cozinha.
Foi muito forte e muito difícil de acreditar no que estava assistindo. Minha mãe, no
seu amor extremo, sentira prematuramente as dores da perda de seu filho. Eu sofria duas
vezes: pela perda do meu irmão e por minha mãe. Por muito tempo, permaneci
anestesiada, assustada, sem ação, querendo ajudá-la e sem saber como. Cobria-a com
todo zelo, mas os problemas estavam apenas começando.
Janeiro de um mil novecentos e sessenta e seis, mês em que meu irmão morrera.
Minha mãe parecia um trapo humano. Eu, fortemente fragilizada, fazia tudo para não a
deixar sucumbir. Teríamos de ir para Nanuque. Minha irmã estava esperando, para o
mês de fevereiro, o nascimento do seu quinto filho. Sabia que a viagem representava um
dos maiores desafios que iríamos enfrentar. Minha mãe enjoava bastante em viagens
terrestres, e essa duraria, mais ou menos, uns quatro dias. Não havia ônibus direto para a
cidade. Em algum trecho, teríamos que pegar um trem. Mas, o amor de mãe falou mais
alto, e ela não pensou duas vezes.
Preparamos tudo e pegamos a estrada. No caminho, o sofrimento foi duas vezes
maior. Minha mãe, com a alma despedaçada e, ainda, aguentando firme o enjoo. Foram
quatro dias sem comer, sem beber. Tomava água aos golinhos provocada por mim.
Através da janela, olhando a paisagem, eu divisava, no horizonte, um amanhã nebuloso
e a incerteza se chegaríamos ao nosso destino. O ritmo cadenciado do trem fazia
lembrar que a realidade era aquela, nua e crua. Tínhamos de ser fortes. Porém, confesso
que tive muito medo de minha mãe sucumbir à viagem.
Chegamos! Não sei como, mas chegamos. Minha mãe logo me recomendou que não
contasse nada sobre o que acontecera ao nosso irmão. A notícia poderia comprometer o
parto. Padecendo a dor da perda do filho, não tinha o direito de deixar transparecer um
semblante triste, choroso. O bem-estar de sua filha, naquele momento, estava acima do
seu próprio sofrimento. Que amor incondicional! Que coração é esse para aguentar, ao
mesmo tempo. a alegria de estar com a filha e o sofrimento de perder um filho. Como
explicar tal dialética?
Na primeira quinzena de fevereiro, em uma tarde de domingo, chega à casa de
minha irmã uma nossa conhecida que viera fazer uma visita de pêsames à família. Logo
na entrada, descarrega, desastradamente, estendendo a mão à minha mãe:
- Meus pêsames!
Minha irmã fica paralisada, minha mãe treme como vara verde e eu, naquele fogo
cruzado, tive de contar a história tentando não me emocionar para não piorar as coisas.
Poucos dias depois, como num filme, lá estava eu novamente, numa cidade distante,
agora não mais embrulhada num lençol, mas enrolada, às voltas, sem saber ao certo
como achar o caminho do hospital para chamar o médico que iria fazer o parto em casa.
Logo ao chegar, ele pediu-me que entrasse no quarto para ajudar-lhe. Nos meus vinte
anos, com a coragem de uma leoa e a fragilidade de quem não sabia nada de nada sobre
o parto, recebi, nos meus braços, uma menina linda, enquanto o médico cortava o
cordão umbilical. Concluiu o seu trabalho e foi embora. Fiquei com a criança
limpando-a e arrumando-a. Só depois, a entreguei à mãe para amamentar.
A menina linda que peguei em meus braços, hoje, compartilha o seu amor e toda a
sua dedicação à sua mãe, como um dia eu fiz com a minha. Que seja, para sempre,
abençoada.
Depois dessa bendita maratona, decidimos que não havia mais condições de minha
mãe viajar para tão longe por via terrestre. As próximas viagens para Alcobaça, onde
minha irmã passou a morar, aconteceriam de outra forma. Iríamos de carro até Ilhéus
onde ela pegaria o avião para Caravelas onde estaria meu cunhado, esposo de minha
irmã, à sua espera.
Recordo-me, com carinho, do meu cunhado. Gostava de mim, como de uma filha.
Presenteou-me com uma penteadeira recomendando que era um brinquedo de boneca.
Quando recebi o móvel, fiquei estatelada. Enfeitou o meu quarto enquanto morei em
Iguaí e até hoje faz parte das minhas relíquias, na casa da minha cidade. Sempre nas
idas a Alcobaça, procurava nos agradar com comidas exóticas que mandava preparar na
beira da praia, ou outros quitutes que, para nós, eram novidade. Meu cunhado não está
mais entre nós, para ele, a minha gratidão e saudade eternas.
Nos momentos de férias em Alcobaça gozava do convívio de minha irmã, de minhas
sobrinhas e sobrinhos. A sobrinha mais velha, a que me deu o trabalho de ir buscar a
parteira às quatro horas da manhã, já me acompanhava nas paqueras aos garotos que
vinham de toda parte do Brasil veranearem na cidade, principalmente da Bahia e de
Minas Gerais.
Uma outra sobrinha mais nova, à época, com aproximadamente cinco anos de idade,
era meu chamego. No deslumbramento de uma infância em contato permanente com a
natureza, (minha irmã morava em um sítio à beira de um caudaloso rio, o Itaitinga),
brincávamos de bambolê, tomávamos banho no rio e, ao colocá-la para adormecer,
pedia-me para cantar ‘Um dia gatinha manhosa eu prendo você no meu coração...”,
música de Erasmo Carlos, de muito sucesso na época. Nas cartinhas que me escrevia no
início do seu processo de letramento enternecia-me com mensagens como esta:
Minha mãe era de uma ingenuidade a toda prova. Para ela, ninguém era mau,
ninguém fazia nada errado, acreditava nas pessoas em seu estado puro de grandeza. Se
alguém lhe falasse sobre um erro de um dos seus filhos, além de não acreditar, tentava
convencê-lo das qualidades que os mesmos possuíam.
Lembro-me que, de volta de uma das suas viagens a Alcobaça, estávamos, eu a
algumas primas, esperando-a no aeroporto de Ilhéus. Ao descer do avião, assustou-se ao
ver que muitas garotas gritavam e corriam em direção a um rapaz que, ao seu lado,
estava chegando ao saguão da sala de desembarque. Fomos ao seu encontro, e ela logo
quis saber o motivo da confusão Não seria aquela uma abordagem violenta injustamente
dirigida ao seu companheiro de vôo?
-Um moço tão simpático, sentou ao meu lado e conversamos muito, perguntei-lhe se
conhecia meus sobrinhos que moram em Salvador, pois ele está indo para lá.
Não acreditei! Minhas primas davam risadas. Daríamos tudo para estar no seu lugar.
O moço bonito e simpático que sentara ao seu lado era nada mais nada menos que nosso
ídolo da Jovem Guarda, Jerry Adriani.
No dia da minha viagem para Salvador, na véspera do vestibular, foi uma chantagem
só:
-É isso mesmo, a gente cria os filhos e no final fica sozinha. Minha única filha
mulher que mora comigo, vai me deixar.
Chorou bastante, tentei convencê-la de que não iria abandoná-la nunca. Meu
primeiro dia das mães longe dela, mandei-lhe este cartão. O primeiro de muitos daí por
diante:
Mesmo não estando morando com ela, continuei sendo sua cuidadora, sua
procuradora, sua amiga. Víamos-nos quatro vezes no ano, e muitas vezes ela passava
férias aqui em casa. Corri para junto dela quando faleceu o seu filho caçula, em 1977.
Sofremos juntas mais uma vez. Trouxe-a para ficar alguns tempos comigo. Tanto meu
pai quanto minha mãe não gostavam de sair. Achavam que só eles poderiam cuidar da
casa, do pomar, das galinhas do jardim.
O destino ainda lhe reservava algumas peças: foi operada, em Feira de Santana, da
tireoide. Devido à complicação da cirurgia, teve que ser reoperada com menos de vinte
e quatro horas. Recuperou-se aqui em casa.Em um mil novecentos e noventa, vivencia a
tragédia acontecida com um filho que, após tomar uma pancada na cabeça, é operado e
fica em coma por quinze dias e quase quatro meses de reabilitação em minha casa.
Recuperou-se quase que totalmente, restando-lhe poucas sequelas.
Concedeu-nos o Senhor a dádiva de comemorarmos os seus noventa e um anos. Um
almoço para toda a família, amigos mais chegados e os seus companheiros e
companheiras da Igreja Batista onde congregava. Repito aqui o que, naquele momento,
eu disse para ela.
-“Mãe, você é a minha alegria, minha amiga mais próxima, meu exemplo de
humildade, de fé e de força. A sua presença me embala como canção de ninar. Os seus
cabelos brancos são, para mim, como lãs que afofam a minha alma. Os seus
ensinamentos fizeram-me melhor porque você mostrou com as suas atitudes que o
importante é SER e não apenas TER. Ensinou-me a enxergar o mundo para além do
que os meus olhos veem. Então, mãe, você é e será sempre a mais bendita das mulheres.
Você é e sempre será: eterna”.