1
Mutações nos comportamentos e na culturaPor Raul Silva
Em 1918, quando termina a Primeira Guerra Mundial, o mundo não será mais o mesmo.
Uma nova ordem internacional cresce, assente no direito dos povos a disporem de si próprios.
É a ordem política dos estados-nação. A democracia liberal regista progressos no Ocidente e o
socialismo marxista consolida-se na Rússia soviética. Nas grandes urbes do mundo ocidental,
questionam-se os valores tradicionais e manifesta-se o feminismo. Novas teorias, como a da
relatividade, obrigam a ciência a rever os seus fundamentos. Nas artes plásticas e na literatura,
as vanguardas rompem com as regras seculares que perseguiam o Belo. Mas pesadas pairam
sobre esse mundo novo do primeiro pós-guerra. Crises deflacionistas, turbulência social,
radicalismos de esquerda e de direita minam governos e a confiança política no
parlamentarismo, abrindo caminho ao autoritarismo.
CADERNODIÁRIO
EXTERNATO LUÍ´S DE CAMÕES
N.º 11
http://externatohistoria.blogspot.com
12 d
e Fe
vere
iro
de
2014
2
Mutações nos comportamentos e na culturaExercícios
CADERNODIÁRIO
12
de
Feve
reir
o d
e 20
14
As cidades e a nova sociabilidade
“As cidades estão cheias de gente. As casas, cheias de inquilinos. Os hotéis, cheios de hóspedes. Os comboios, cheios de viajantes. Os cafés, cheios de consumidores. Os passeios, cheios de transeuntes. As salas de espera dos médicos famosos, cheias de doentes. Os espetáculos, cheios de espectadores. As praias, cheias de banhistas. O que antes não costumava ser problema, começa a sê-lo quase continuamente: encontrar um lugar. (...)O que é que vemos e ao vê-lo nos surpreende tanto? (...) Pois então, não é o ideial? O teatro tem os seus lugares para que se ocupem; portanto, para que a sala fique cheia. (...) Mas o facto é que antes nenhum destes estabelecimentos e veículos costumava estar cheio, e agora transbordam, fica fora gente sôfrega por usufruí-los.”
J. Ortega y Gasset, A Rebelião das Massas, 1930
1. Partindo dos documentos, descreva as principais transformações na vida urbana nos anos 20.
2. Tendo em conta os documentos, explique a crise dos valores tradicionais.
Os novos valores
Cartaz da Revista Time,novembro de 1927
A decadência
“O último século foi o inverno do Ocidente, a vitória do materialismo, do cepticismo, do socialismo, do parlamento e do capital. Mas neste século, o poder do instinto e da violência recuperarão o seu ascendente sobre o poder do inteleto e do dinheiro. A era do individualismo, liberalismo e democracia, do humanitarismo e da liberdade está no fim. As massas aceitarão com resignação a vitória dos Césares, dos homens fortes, e obedecer-lhes-ão. A vida tenderá para um uniformidade generalizada, uma nova forma de primitivismo. (...)”
Oswald Spengler, A Decadência do Ocidente, 1922
Crise de consciência
“A crise militar acabou talvez, adivinha-se a crise económica em toda a sua pujança. (...) Ninguém poderá dizer o que estará amanhã vivo ou morto em literatura, em filosofia, em estética; ninguém sabe ainda que ideias e que modos de expressão hão-de inscrever-se na lista de perdas, que novidades serão proclamadas. Os factos no entanto são claros e impiedosos: há milhares de jovens escritores e de jovens artistas que morreram, há a perdida ilusão duma cultura europeia e a evidência da incapacidade do conhecimento para salvar o que quer que seja; há a ciência mortalmente atingida nas suas aspirações morais, e como que desonrada pela crueldade das suas aplicações. ”
Paul Valéry, La Crise de L’Espirit, 1919
3
Mutações nos comportamentos e na culturaExercícios
CADERNODIÁRIO
12
de
Feve
reir
o d
e 20
14
O confronto de gerações
“Se me julgam pelas aparências, acho que sou uma flapper. Estou dentro da idade. Uso cabelo curto, escorrido, o emblema da flapper. Ponho pó de arro no nariz. Uso saias com franjas, sweaters berrantes, écharpes, (...) sapatos se alto baixo. Adoro dançar. Paso muito tempo em automóveis. Vou a festas, jogos, corridas e outros eventos nas escolas de rapazes. (...)Quero pedir-vos, a todos vós, pais e avós, e amigos e professores e clérigos, a vós que constituis a geração mais velha, que esqueçais as nossas fraquezas, pelo menos de momento, e que aprecieis as nossas qualidades. (...)Todos vós gritais: É o resultado da guerra! E então (...) condenam-nos publicamente. (...)Nós debatemo-nos com um terrível problema. Têm de ajudar-nos. Dêem-nos confiança, não desprezo. Dêem-nos ajuda e conselho, não críticas. Elogiem-nos quando merecemos. Sejam pacientes e compreensivos perante os nossos erros. Nós somos a geração mais nova. A Guerra destruiu os nossos alicerces espirituais e desafiou a nossa fé. Estamos a lutar para readquirir o equilíbrio. E não temos ninguém para quem nos voltar (...). ”
Ellen Welles Page, Apelo de uma Flapper aos Pais, 1922
3. Tendo em conta os documentos, defina o feminismo.
4. Com base nos documentos, descreva o impacto das novas concepções científicas no quotidiano e na cultura.
5. Relacione, com base nos documentos, o surgimento dos movimentos de vanguarda no conjunto das inovações artísticas e literárias.
O relativismo
Albert Einstein e a teoria da relatividade (1916)
As concepções psicanalíticas
“Como era possível que os doentes tivessem esquecido tantos factos da sua vida exterior e interior e que não obstante pudessem lembrar-se deles quando se lhes aplicava a técnica referida? A observação respondeu a estas questões. Tudo quanto fora esquecido tinha sido penoso ou pavoroso ou doloroso ou vergonhoso relativamente às pretensões da personalidade. (...) Justamente por isso havia sido esquecido, isto é, não tinha permanecido consciente. (...) A fim de voltar a trazê-lo à consciência, era preciso vencer algo no doente, algo que se defendia, era necessário empregar esforços para fazer pressão sobre este e obrigá-lo. (...) ”
Sigmund Freud, 1928 - Ma Vite et la Psychanalyse, Paris,
Edvard Munch, O Grito (1916)
4
Mutações nos Comportamentos e na CulturaGuia de estudo
CADERNODIÁRIO
12
de
Feve
reir
o d
e 20
14
Objetivo 1. Caraterizar a vida urbana no mundo ocidental no início do século XX
Nas vésperas da 1.ª guerra mundial havia cerca de 180 grandes centros urbanos com mais de 1000 mil
habitantes, nomeadamente Londres, Paris, Moscovo e Berlim. Esta crescente concentração populacional
provocou significativas alterações na vida e nos valores tradicionais do mundo ocidental: um novo de viver e
de convívio no meio da multidão.
Ao vir para as cidades, a população chegada do campo deixa para trás os hábitos e vínculos sociais anteriores e adquire novas formas de sociabilidade, num ambiente estranho e, muitas vezes, hostil.Este desenraizamento individual desumaniza e despersonaliza a vida urbana que segue um modelo estandartizado, isto é, atinge a massificação. A vida das pessoas resume-se a normas estandardizadas, como por exemplo a saída para o emprego, o uso de meios de transporte, bem como viver em apartamentos, comprar os mesmos produtos e até fazer tarefas iguais. Surge uma nova visão do ócio e forma de organizar os tempos e espaços dedicados ao lazer e lugares públicos de convívio: jardim, clubes noturnos, esplanadas, etc. A racionalização e consequente redução do tempo de trabalho, assim como a melhoria do nível de vida, permitiram dispor de tempo e dinheiro para o divertimento e o prazer. Abriu-se um outro ciclo de solidariedade humana e convivência entre sexos, de modo mais ousado e livre, que rompeu com todas as regras sociais impostas até aqui. O ritmo de vida torna-se frenético e o gosto pela ação e pela velocidade é visível pela prática desportiva e uso do automóvel.
Objetivo 2. Explicar crise dos valores tradicionais
A superioridade que o mundo ocidental detinha na viragem do século, foi posta em causa pelo primeiro
conflito mundial e toda a moral burguesa oitocentista se desmorona, como provam as mudanças nos
comportamentos. A morte de milhões de soldados, a miséria e a destruição visíveis a cada passo gerou um
sentimento de desalento e descrença no futuro, afectando toda a sociedade, desde trabalhadores a
inteletuais. Por outro lado, a massificação da vida urbana, a laicização social que terminara com a influência
da Igreja e as novas concepções científicas e culturais são, igualmente, responsáveis por esta ruptura no
padrão de valores e comportamentos sociais vigentes.
Deu-se uma profunda crise de consciência que atinge todos os setores da vida: na família, no casamento, na
moral sexual, na religião, no papel da mulher, enfim, em toda a conduta social. Trata-se da anomia social.
onde a alienação visível em comportamentos desviantes, devido ao alheamento das regras impostas pela
sociedade, e o distanciamento do indivíduo em relação a tudo o que o rodeia é tal que já não distingue o
certo do errado.
5
Mutações nos Comportamentos e CulturaGuia de estudo
CADERNODIÁRIO
12
de
Feve
reir
o d
e 20
14
Objetivo 3. Compreender o movimento de emancipação feminina
O novo papel que a mulher vai ocupar na sociedade é bem o exemplo das alterações verificadas. Nos
Loucos Anos 20, fruto da euforia do pós-guerra, da procura de prazer e evasão, as jovens sobem as saias até
ao tornozelo e ajustam-nas, cortam o cabelo à rapaz, desafiam todas as convenções sociais.
Mas este foi, apenas, o lado escandaloso do nascente feminismo ou da emancipação da mulher. Este
movimento, que teve início já nos finais do século XIX, começa por reivindicar certos direitos das mulheres
casadas: propriedade dos bens, tutela dos filhos, acesso à educação e a uma carreira profissional, isto é, o
reconhecimento social de modo a tirar a mulher da posição secundária e subalterna que a obrigavam a ter
na sociedade burguesa.
Já no século XIX, a mulher lutou pelo direito à participação política, através do voto. É, então, que surgem
as sufragistas (defensoras do alargamento do voto às mulheres). Na Europa, destacam-se o nome Emmeline
Pankhurst, na Inglaterra, onde as sufragistas atraíram a atenção do grande público através de diversas ações
de rua, na imprensa, manifestações e greves de fome.
Em Portugal, em 1909, aparece a Liga Republicana das Mulheres Portuguesas e, em 1911, a Associação de
Propaganda Feminina com os mesmos objetivos, salientando-se nomes como Ana Castro Osório e Carolina
Beatriz Ângelo, entre outras.
Mas o feminismo utilizou outras formas de chamar a atenção como sejam a moda e o vestuário, valorizando
o corpo e a aparência: novos cortes e tecidos mais leves, saias mais curtas, substituição do espartilho pelo
soutien, etc. Enfim, tudo o que significasse uma libertação da mulher em relação aos preceitos tradicionais.
Alvo de censura e de escárnio, na maior parte dos países, até à Primeira Guerra, após esta, as mulheres
rapidamente conquistaram as suas reivindicações.
Esta mudança deveu-se, principalmente, ao facto demonstrado durante a guerra de que as mulheres tinham
sido capazes de substituir o sexo forte em praticamente todas as tarefas, nomeadamente no sustento da
família, trabalho na fábricas, reparações elétricas, transporte de objetos pesados, tarefas agrícolas e até na
frente das batalhas, como enfermeiras. Esta situação valorizou as pretensões das mulheres e deu-lhes
autoconfiança. Assim, ao terminar o conflito, na maioria dos países, tinham já conseguido tudo aquilo
porque haviam lutado antes.
Embora hoje em dia, existam ainda algumas resistências, sobretudo na prática, a realidade é que a mulher
possui igualdade legal e jurídica para todos os domínios da vida atual.
6
Mutações nos Comportamentos e CulturaGuia de estudo
CADERNODIÁRIO
12
de
Feve
reir
o d
e 20
14
Objetivo 4. Reconhecer o impacto da novas concepções científicas no quotidiano e na cultura
O Positivismo impusera a ideia de que a ciência, através do método experimental, tinha respostas para todos
os problemas da Humanidade. Mas, no início do século XX, verifica-se uma reação anti-positivista e anti-
racionalista, devido às novas perspetivas de alguns cientistas face ao conhecimento e à ciência.
Em 1893, Benedectto Croce, contesta a aplicação das teses positivistas à História, visto as ciências humanas
terem um caráter muito subjetivo, pois a recriação dos factos do passado depende do esforço imaginativo do
historiador.
Bergson, filósofo alemão, defende que há certas realidades que não demonstráveis ou perceptíveis pela
experiência ou pela evidência racional mas apenas pela intuição, uma outra via do raciocínio comparável ao
instinto, com ligações ao transcendente. O Intuicionismo é a corrente que liberta o conhecimento das regras
rígidas do racionalismo e do cientismo.
Em 1905, Albert Einstein revolucionou a Física. Demonstrou que o espaço, o tempo e o movimento não são
absolutos, mas relativos entre si (por exemplo: a massa do corpo depende do movimento) e ao observador.
Os objetos não têm apenas três dimensões (comprimento, altura e espessura) mas quatro, acrescentando-se a
dimensão do tempo. Esta concepção afasta o determinismo e a previsibilidade dos factos e reconhece que o
Universo é instável e misterioso, por isso não têm regras fixas mas probabilidades de resposta científica.
A partir de 1897, Sigmund Freud elaborou uma nova teoria, chamada de Psicologia Analítica ou Psicanálise,
segundo a qual a mente humana está dividida em Id, o inconsciente (zona profunda e significativa mas
quase impenetrável); Ego, o Consciente, racional (a extrimidade visível do iceberg); Superego, o pré-
consciente ou subconsciente, inibor do ego com sentimentos de culpa (sexo, sonhos, religião) que podem
passar para o consciente. Esta teoria explicava, também, que as neuroses são resultado de recalcamentos
(traumas), isto é, impulsos, sentimentos, desejos, instintos naturais, aprisionados no inconsciente pelas
restrições da moral social. As explicações psicanalíticas (lado irracional da natureza humana) forma
conhecidas e muito apreciadas pelo público, em geral, e por inteletuais, em particular, contribuindo
significativamente para justificar os novos comportamentos socais (loucos anos 20) e inspirar alguns
movimentos artísticos, como o surrealismo.
Na década de 30, a crise material e moral vivida após a crise económica, fará surgir uma corrente irracional:
o existencialismo. Heidegger defendeu que a liberdade do homem de nada serve, pois a sua existência é uma
fonte de angústia e de desespero para ele.
7
Mutações nos Comportamentos e CulturaGuia de estudo
CADERNODIÁRIO
12
de
Feve
reir
o d
e 20
14
Objetivo 5. Integrar o surgimento dos movimentos de vanguarda no conjunto das inovações artísticas e literárias
A primeira metade do século XX é, fundamentalmente, marcada por ventos de mudança a que não foi
alheia a revolução na indústria e a evolução científico-técnico que abrangeu todos os setores e modificou aos
estilos da vida das sociedades ocidentais deste período. Tratou-se de inventar o futuro sobre os escombros
do passado destruído.
As Artes Plásticas e a Literatura rompem com os ditames da Sociedade Burguesa e tentam demonstrar uma
nova visão do mundo e da realidade. A cidade de Paris torna-se o epicentro desse movimento, vulgarmente
designado de vanguardismo cultural, representado por uma elite de artistas, pioneiros na inovação e
transformação estético-técnica do universo artístico e literário que lutou contra as ideias impostas pela
tradição e academismo e aceites por todos: é o Modernismo, um novo universo plástico. As principais
influências que possibilitaram essa mudança foram as inovações como: a revolução industrial, os novos
valores e estilos de vida, a evolução da ciência e da técnica, o surgimento da Psicanálise e uma nova noção
de perspetiva no espaço visual. As principais transformações foram as inovações formais; o alargamento do
conceito de arte; a emergência e reconhecimento da funcionalidade decorativa; internacionalização da arte;
ecletismo de motivos: materialistas, alegórico-poéticos e técnico-científicos; exaltação da cor e reação contra
a perspetiva e a visão inteletualista do espaço.
No decorrer do século XIX, foram primeiro o Realismo e, depois, o Impressionismo que dominaram a cena
artística da Europa Ocidental, mas logo no início do século XX, surgiram movimentos de oposição as estas
correntes artísticas literárias e pictóricas: Expressionismo, Fauvismo, Cubismo, Futurismo e Abstracionismo.
Porquê? A Primeira Guerra trouxera, para todos, muitas interrogações que apenas o Homem, e cada um a
seu modo, podia responder. Assim, havia que mostrar e ver a realidade, mas através dos olhos de cada
sujeito, isto é, a arte expressava a forma como cada um de nós via e sentia (emoções) a realidade observada,
ou seja, refletia o seu estado de alma e o “drama interior de cada Homem”. Isto colocou em evidência o Ser
Humano e as suas diversificadas personalidades.