MASARYKOVA UNIVERZITA
FILOZOFICKÁ FAKULTA
ÚSTAV ROMÁNSKÝCH JAZYKŮ A LITERATUR
PORTUGALSKÝ JAZYK A LITERATURA
Natálie Bartošová
As peças existenciais de Luiz Francisco Rebello
Magisterská diplomová práce
Vedoucí práce: Mgr. Silvie Špánková, Ph.D.
Brno 2011
Prohlašuji, že jsem diplomovou práci vypracovala samostatně s využitím uvedených pramenů a literatury.
..........................................
2
Natálie Bartošová
Za vstřícné a pečlivé vedení práce, cenné rady a připomínky bych velice ráda poděkovala
Mgr.Silvii Špánkové Ph.D.
3
É urgente o amor.
É urgente um barco no mar.
É urgente destruir certas palavras,
ódio, solidão e crueldade,
alguns lamentos,
muitas espadas.
É urgente inventar alegria,
multiplicar os beijos, as searas,
é urgente descobrir rosas e rios
e manhas claras.
Cai o silêncio nos ombros e a luz
impura, até doer.
É urgente o amor, é urgente
permanecer.
Eugénio de Andrade «Urgentemente»
4
1 Índice
2 INTRODUÇÃO.........................................................................................................7
3 INTRODUÇÃO AO TEATRO PORTUGUÊS DO SÉCULO XX.....................10
3.1 O teatro português antes da segunda guerra mundial...............................................11
3.2 O Estado Novo e a Censura......................................................................................13
3.3 O teatro português pós-guerra..................................................................................15
3.3.1 Teatro Nacional de D. Maria II................................................................................15
3.3.2 Companhias Experimentais......................................................................................16
3.3.3 Teatro-Estúdio do Salitre..........................................................................................17
3.3.4 Os dramaturgos principais após-guerra....................................................................20
4 LUIZ FRANCISCO REBELLO E A SUA LUTA PELA LIBERDADE...........22
4.1 Actividades de Luiz Francisco Rebello no campo literário.....................................22
4.2 Actividades de Luiz Francisco Rebello no campo político-cultural........................23
5 DRAMATURGIA DE LUIZ FRANCISCO REBELLO.....................................27
5.1 Existencialismo de Luiz Francisco Rebello.............................................................30
6 O DIA SEGUINTE..................................................................................................33
6.1 Realidade e absurdo.................................................................................................33
6.2 O direito à Morte......................................................................................................34
6.3 O dia seguinte e Huis Clos.......................................................................................37
6.4 Encenações e críticas................................................................................................37
7 ALGUÉM TERÁ DE MORRER...........................................................................41
7.1 O direito à Morte......................................................................................................43
7.2 A personagem do Desconhecido..............................................................................44
7.3 Composição..............................................................................................................45
7.4 Encenações e críticas................................................................................................46
8 É URGENTE O AMOR.........................................................................................48
8.1 Primeira versão.........................................................................................................49
8.2 Segunda versão.........................................................................................................50
8.3 Verdade e Mentira....................................................................................................51
8.4 Encenações e críticas................................................................................................53
9 OS PÁSSAROS DE ASAS CORTADAS..............................................................56
5
9.1 Medo da responsabilidade........................................................................................58
9.2 Liberdade inútil........................................................................................................59
9.3 Composição..............................................................................................................60
9.4 Encenações e críticas................................................................................................61
10 CONDENADOS À VIDA.......................................................................................63
10.1 Prólogo: dialéctica metafísica..................................................................................63
10.2 Duas partes dramáticas: dialéctica existencial.........................................................65
10.3 Epílogo: dialéctica metafísica..................................................................................67
10.4 Encenações e críticas................................................................................................69
11 CONCLUSÃO.........................................................................................................71
12 BIBLIOGRAFIA.....................................................................................................77
6
2 INTRODUÇÃO
Quando nos debruçamos sobre o teatro português pós-guerra, encontramos
inevitavelmente o nome de Luiz Francisco Rebello. Na verdade não existia nada de
arte teatral que lhe ficaria desconhecido e alheio. E quando enumeramos as áreas da
sua actuação, não há dúvida que se trata duma pessoa invulgar. O dramaturgo,
tradutor, historiador, ensaísta e advogado de profissão está de certo um dos mais
importantes homens de teatro português do século XX.
O que é na verdade a arte teatral para um homem que lhe dedicou a vida
inteira? A arte teatral significa para Luiz Francisco Rebello um processo colectivo
sendo o resultado deste processo a mais efémera essência de todas as formas de arte.
“Tudo, no teatro, tende para a consecução do espectáculo, e nenhum espectáculo se
repete nunca, porquanto ainda que o texto, os actores e a encenação possam ser os
mesmos, não o é o público, e este é também uma das componentes do espectáculo.”1
Desta arte efémera o que tem forma mais estável de todos os componentes
teatrais é decerto o texto. Cada texto teatral tem de levar dentro de si algumas
comunicações e ideias as quais os actores em voz alta dirigem ao público. Qual é,
então o enunciado das peças de Luiz Francisco Rebello?
A dramaturgia de Luiz Francisco Rebello está sempre vinculada ao momento
histórico-social e contrariamente a alguns dramaturgos pós-guerra como por exemplo
Eugène Ionesco que pretendiam despolitizar o teatro, o dramaturgo português acha o
teatro ser sempre político.
A propósito do seu tema e estética tem-se falado da influência e da
semelhança de vários dramaturgos estrangeiros. Há quem acha a sua obra
influenciada pelo dramaturgo italiano Luigi Pirandello, há quem identifica na sua
obra os elementos do teatro de Jean-Paul Sartre e Alberto Camus e há quem vê nele
uma tradição de August Strindberg ou de Eugène O´Neill.
De facto, a obra de Luiz Francisco Rebello não se pode encaixar em linha
directa numa só estética dramatúrgica nem se pode identificar com esses dramaturgos
1 Rebello, Luiz Francisco. «Breve introdução» In Sena, Jorge de. Do teatro em Portugal.Edições 70,1989, p.14
7
acima mencionados, embora isto não queira dizer que a sua arte teatral não se liga com
nenhum deles por completo
No entanto o que tem mais influenciado a sua criação artística era desde
sempre sobretudo a situação actual duma dada época – o ar que se respira. Toda a sua
arte teatral abrange, portanto, problemas existenciais julgados sobretudo sob o ponto
de vista da atitude moral.
Para a nossa análise da obra de Luiz Francisco Rebello escolhemos a sequência
dramatúrgica de cinco peças do ramo designado como existencial – O dia seguinte, É
urgente o amor, Alguém terá de morrer, Os Pássaros de asas cortada e Condenados à
vida. Trata-se das peças que na nossa opinião fazem parte da obra de Luiz Francisco
Rebello mais significativa. Da primeira peça de um acto com aspecto ainda
experimental até a peça vasta Condenados à vida próxima de um argumento
cinematográfico vamos seguir as ideias existenciais do autor.
Antes da própria análise decidimos dedicar o capítulo inicial à situação do
teatro português ao longo do século XX. Duas guerras mundiais e aparecimento de
ideologias totalitárias causaram efeitos naturalmente no domínio cultural.
Enquadraremos, portanto, o teatro português no contexto político para que ficassem
esclarecidas as condições da criação teatral pós-guerra.
No segundo capítulo desejamos apresentar o próprio autor, notavelmente a
sua actuação no campo cultural e político e acentuar a sua importância na luta pela
liberdade do país. Neste capítulo tomamos por base antes de mais o seu livro de
memórias O Passado na minha frente. Deste livro chegamos a conhecer além da
vida pessoal do autor também as circunstâncias sociais e políticas que se mantinham
em Portugal durante o regime ditatorial e depois da revolução dos cravos.
A partir do terceiro capítulo vamos preocupar-nos puramente com a
dramaturgia de Luiz Francisco Rebello. Depois da divisão da sua obra em três fases –
em fase experimental, fase existencial e fase de sátira política, tentaremos fazer a
caracterização da obra designada como existencial.
Nos cinco subcapítulos seguintes analisaremos as peças por nós escolhidas,
preocupando-se com os elementos unitivos. Pretendemos focar os elementos típicos
de autor confrontando os seus significados diferentes ou iguais em todas as cinco
peças. Além da temática bosquejamos também a contextura teatral destas peças.
8
Como as peças têm o seu destino no palco, no final de cada capítulo
mencionaremos também o seu ímpacto no público e na crítica.
No capítulo final deste trabalho vamos objectivar e sumarizar todos os
elementos que interpenetram todas as peças.
O objectivo deste trabalho pretenderá não só dar conhecimento sobre este
dramaturgo e da sua actuação, como notavelmente descobrir a sua obra existencial. O
trabalho deseja revelar o significado dos elementos presentes e assim compreender as
intenções e os enunciados das suas peças.
Antes de começarmos com a nossa análise, ajuntemos ainda, que o próprio
Luiz Francisco Rebello, não é um grande admirador de análises pormenorizadas da
sua obra, pois, muitas vezes ultrapassam as suas próprias intenções: “Sim, fui eu que
escrevi aquelas peças, aqueles livros, e no entanto era como se tivesse sido outro a
escrevê-los. Não me surpreende, por isso, que, sobretudo em relação às peças, a leitura
que delas fazem, o significado que atribuem a determinados aspectos, não coincidam
por vezes com os meus próprios.”2 Mas, acrescenta com modéstia que são os outros
quem terão razão: “A distância permite lhes uma visão certamente mais apurada do
que a mim a proximidade.”3
Vamos portanto aproveitar esta distância que nos divide da criação
dramatúrgica do autor e tentaremos encontrar as ideias da sua obra.
2 Rebello, Luiz Francisco. O passado na minha frente. Lisboa, Parceira A.M. Pereira, 2004, p.3573 Ibidem, p.357
9
3 INTRODUÇÃO AO TEATRO PORTUGUÊS DO SÉCULO XX
Ao falarmos sobre a arte do teatro em Portugal, no primeiro lugar temos que
levar em conta que não se trata dum país com a tradição dramatúrgica muito forte,
seja por causa da situação social seja política. Isto não quer dizer, que na dramaturgia
portuguesa não encontramos obras, peças ou manifestações consideráveis. Além dos
nomes célebres de um Gil Vicente, um António Ferreira ou um Almeida Garrett,
cujas obras ultrapassaram as fronteiras do país pequeno, o teatro português viveu
momentos significativos também no decorrer do século XX, apesar de não ter
posição fácil.
O número dos autores que se regularmente dedicavam à criação dramatúrgica
no século XX não ultrapassa a centena. E, muitos deles, ocupam um lugar dos
autores, digamos, ocasionais. Trata-se dos autores que durante a sua vida publicaram
apenas uma ou duas peças teatrais. Dessa maneira podemos falar sobre um “acidente
feliz” da peça Marinheiro (1913) de Fernando Pessoa ou do Render dos Herois de
Cardoso Pires (1960).4
Mas embora a dramaturgia portuguesa não tenha atingido o nível da poesia e
da ficção, sempre haviam empenhos e esforços de elevar ou visualizar a criação
dramatúrgica nacional, “para que a chama do teatro se mantivesse acesa, como
fenómeno estético e comunitário (...).”5
Conforme o historiador Fernando Peixoto, podemos dividir o teatro português
contemporâneo em três partes: o teatro antes de Salazar, o teatro no Estado Novo e o
teatro do pós 25 de Abril de 1974.6
Para o nosso trabalho o que mais interessa é o teatro depois da segunda guerra
mundial, quer dizer o teatro português durante o regime do Estado Novo. Para
conseguirmos enquadrar esta época de pós-guerra era conveniente relancearmos
alguns traços da história teatral que a esta época precedeu. Não vamos pormenorizar
4 Rebello,Luiz Francisco. 100 anos de teatro portugues. Brasília Editora, 1984, p. 7-85 Idem,O teatro português no pós-guerra, Secretaria de estado da informação e turismo, 1972, p.46 Peixoto, Fernando. História do teatro europeu.. Lisboa, Edições Sílabo, 2006, p. 350
10
os acontecimentos dramatúrgicos e teatrais que decorreram ao longo dos primeiros
cinquenta anos do século XX, mas como o teatro de pós-guerra é uma reacção directa
às tendências estêticas da primeira metade do século XX, convinha darmos uma
olhada para esta altura anterior.
3.1 O teatro português antes da segunda guerra mundial
Quanto ao teatro antes de Salazar, a arte de teatro viveu no final do século
XIX e nos primeiros anos do século XX uma produção dramatúrgica muito rica e
intensa. A vida teatral não se limitou apenas às encenações dos autores nacionais,
mas apareceram também quantidades de peças traduzidas e adaptadas e notava-se
uma presença frequente das companhias estrangeiras.
As primeiras dificuldades na vida cultural surgiram depois da proclamação
da República em 1910, a seguir a participação de Portugal na primeira guerra
mundial e por fim o golpe militar em 1926 que logo instalou uma censura rigorosa. O
interesse pelo teatro foi ameaçado também pelo surgimento de novos produtos
atractivos como cinema comercial, televisão e rádio.7
No princípio do século XX, na dramaturgia portuguesa não encontramos
nenhumas correntes nem escolas as quais associariam ou agrupariam autores e
dramaturgos de estilos literários iguais. Isto quer dizer que o teatro português no
século XX tem de ser considerado e estudado mais na sucessão de autores do que
propriamente na definição de épocas.8 Mas mesmo assim, decerto, é possível
enunciar as linhas estéticas predominantes que caracterizam a dramaturgia da
primeira metade do século XX e às quais reagiram os intelectuais e homens de letras
imediatamente depois da segunda guerra mundial.
No que toca às linhas dramatúrgicas, após o aparecimento do romantismo
histórico renascido na viragem dos séculos, surgira no teatro português uma corrente
naturalista que se manteve até ao fim da guerra, não se desvinculando inteiramente
7 Rebello, Luiz Francisco. História do teatro português. 4.ª ed., Lisboa, Pub. Európa-América, 1989, p.118-1218 Cruz, Duarte Ivo. História do teatro português.Lisboa,Editorial Verbo, 2001, p.189
11
das estruturas românticas. A estas correntes são ligados os nomes como Marcelino
Mesquita, Júlio Dantas, Lopes de Mendonça, Mendonça Alves etc.9
Mas os autores que merecem o maior benefício pelo seu empenho
dramatúrgico, são com certeza Raúl Brandão, cuja dramaturgia moderna preveniu
um existencialismo, Alfrédo Cortez e Carlos Selvagem que nas suas obras
submeteram a sociedade burguesa a uma crítica social e Vitoriano Braga com o seu
psicologismo moralizante. A estes dramaturgos deve-se o préstimo por tentarem
romper as linhas ultrapassadas e introduzirem estéticas modernas, embora as peças
não tivessem sido recebidas com grande entusiasmo. De facto, foram apenas algumas
as peças de Raúl Brandão, Alfredo Cortez e Carlos Selvagem levadas à cena.10
Não foram só os dramaturgos como também vários grupos e agrupamentos
com objectivos de actualizar e introduzir algo moderno no teatro português. Trata-se
sobretudo dos teatros pequenos experimentais, cuja existência era por um lado
efémera, em contrapartida, a curta duração trouxe contributos incontestáveis para a
evolução do teatro português. Mencionemos por exemplo o Teatro Juvénia (1924) e
o Teatro Novo (1925) cuja ideia era dar a conhecer um teatro diferente. Em suma,
estas iniciativas teatrais, “representaram um marco importante na evolução do nosso
teatro, tanto pela revelação de novas personalidades de autores, actores e
encenadores, como pela afirmação polémica de uma atitude combativa frente ao
marasmo da vida teatral portuguesa,” escreve Luiz Francisco Rebello na sua História
do teatro português.11
São estes os teatros que podem ser considerados antepassados dos vários
teatros experimentais aflorados imediatamente depois de fim da segunda guerra
mundial sobre os quais referimos mais adiante.
9 Ainda no final do século XIX apareceu em Portugal o simbolismo encontrando o seu lugar também na criação dramatúrgica, apesar de ser uma corrente débil quando confrontada com a poesia. A dramaturgia portuguesa representa elementos simbolistas muitas vezes diferentes em comparação com a dramaturgia europeia. Como na dramaturgia portuguesa do início do século XX decorria certa revivescência do teatro histórico e ultra-romântico, não surpreende que os aspectos da nacionalidade, messiânismo, religião e ideias saudosistas incorporam-se também na dramaturgia simbolista portuguesa. (Barata, José Oliveira. História do teatro português.Lisboa, Univ. Aberta, 1991, p. 343).10 Destes autores foram representadas as peças seguintes: O Gebo e a Sombra de Raúl Brandão em 1927, Gladiadores de Alfrédo Cortez em 1934 e Dulcineia de Carlos Selvagem em 1944 ( Rebello, Luiz Francisco. 100 anos de teatro Português, Porto, Brasília Editora, 1984, p. 8)11 Rebello, Luiz Francisco. História do teatro português.4ªed., Lisboa, Pub. Európa-América, 1989 p. 113
12
3.2 O Estado Novo e a Censura
No início do século XX, Portugal sofria duma economia muito fraca e
inconstante. A jovem República proclamada no ano 1910 não estava durante 16 anos
da sua existência em condições de resolver este problema. Um país que ainda não
passou pelas modificações da industrialização, com incessantes mudanças de
governos, não conseguiu chegar ao nível social e económico estável. Foi por esta
causa que no ano 1926 decorreu um golpe militar que dois anos mais tarde levou à
posse de presidente Óscar Carmona. E logo a seguir foi com a posse do Ministério
das finanças encarregado António Oliveira Salazar para que em 1933 instalasse ao
peso do estado fascista de Benito Mussolini o assim chamado Estado Novo que se
mantinha em Portugal até ao ano 1974.12
O regime de Estado Novo desvinculou-se na totalidade dos princípios
democráticos e em vez disso instalou-se uma ditadura militar com princípios
antidemocráticos, antiparlamentaristas e anti-sociais.
Foi imposta a censura, não existia liberdade de expressão e de manifestações,
os cidadãos de ideias antagónicas foram presos. No que se refere ao controlo do
Estado Novo, grandes incumbências tinha a polícia de segurança do Estado –
P.I.D.E. Esta polícia possuía o direito punir e prender todas as pessoas que
desatendiam ao regime.
Ainda antes de estabelecimento do Estado Novo, em 6 de Maio de 1927 foi
publicado o Decreto nº 13.564 implantando a censura. E já imediatamente depois do
golpe militar foram proibidos os espectáculos considerados “ofensivos da lei, da
moral e dos bons costumes.”13
Ao longo da existência do Estado Novo haviam vários decretos renovados e
actualizados. Ao ser promulgado o Decreto no ano 1933, António Salazar próprio
acrescentou quais são os assuntos não permitidos emitir ao público. “Não se discute
Deus e a sua virtude; não se discute a Pátria e a Nação; não se discute a autoridade e
o seu prestígio.”14 Era proibido publicar ataques ou críticas ao estado, ao governo, às
suas personalidades e instituições, anúncios que pudessem ofender práticas
12 Klima, Jan. Dějiny Portugalska. Nakladatelství Lidové Noviny,1996, p. 17113 Peixoto, Fernando. História do Teatro Europeu. Edições Sílabo, 2006, p. 35014 Figueiredo, António. Portugal:50 Anos de Ditadura. Lisboa, Publicações Dom Quixote,1976, p.191
13
religiosas, pormenores sobre suicídios e crimes ou artigos que pudessem prejudicar
as relações diplomáticas com países estrangeiros.
Fundou-se uma Comissão de Censura, cujos funcionários desempenhavam o
seu trabalho sob a supervisão do Ministro do Interior que tinha também o controlo
central da P.I.D.E. Classificaram-se quatro categorias de censura. O texto dum artigo,
dum livro, duma peça ou dum espectáculo podia ser: Censurado ou Cortado,
Suspenso, Autorizado ou Autorizado com Cortes.15
Entre as várias manifestações artísticas nacionais, na arte teatral sentia-se
provavelmente a censura com rigores mais fortes. Com efeito o teatro significava
para o regime fascista um dos inimigos mais perigosos, porque a grande pujança do
teatro consistia desde sempre em comunicação imediata entre os artistas e o seu
público divulgando as ideias e atitudes. Não há quase nenhuns textos teatrais que
pretendiam ficar em forma de livro, porém, desde sempre o objectivo era serem
representados e transformados numa obra de arte viva, quer dizer numa arte que
dirigisse as palavras aos seus espectadores em voz alta. Por isso, as peças teatrais
tinham que passar pela censura dupla. Após a censura do texto próprio, passou-se a
exigir ainda uma censura prévia ao espectáculo antes de ser apresentado ao público.16
Além disso existia uma lista dos dramaturgos, ora nacionais, ora estrangeiros
cujos textos foram proibidos a representar integralmente. Esta proibição prendeu-se
não só aos dramaturgos contemporâneos mas também aos clássicos. A censura não
permitia levar à cena algumas peças de Gil Vicente, ou de Shakespeare. Dos
contemporâneos estrangeiros proibiram-se encenar por exemplo as peças de Bertolt
Brecht, Jean-Paul Sartre, Ionesco, Alfred Jarry, Jean Anoulih ou de Samuel Beckett.
Na lista dos autores portugueses desagradados ao regime pertenciam entre outros
Luiz Francisco Rebello, Luís de Sttau Monteiro ou Bernardo Santareno, por muitos
considerado o maior dramaturgo português do século XX.17
Com a presença da censura liga-se naturalmente também a forma e a
qualidade dos espectáculos. Em vez do teatro progressivo, sucedido as linhas
modernas e procurando a expressão contemporânea, conservava-se em Portugal um
teatro reaccionário, pegado nas linhas românticas e naturalistas, com o único
15 Ibidem16 Barata, Oliveira. História do Teatro Português. Lisboa, Univ. Aberta, 1991, p.35317 Peixoto, Fernando. História do teatro europeu., Edições Sílabo, 2006, p. 351
14
interresse comercial. “A baixa qualidade dos repertórios, em que largamente
predominavam os subprodutos importados de França e Espanha, o conformismo das
encenações, o estilo da representação, que hesitava entre um atardado romantismo e
um naturalismo mal digerido, a intervenção castradora da censura, tudo concorria
para a degradação do nível do espectáculo teatral – com raras excepções,” afirma
Luiz Francisco Rebello. 18
3.3 O teatro português pós-guerra
3.3.1 Teatro Nacional de D. Maria II
Quanto ao teatro profissional, o único teatro suportado pelo regime salazarista
era o Teatro Nacional chefiado por Amélia Rey – Colaço e Robles Monteiro. Apesar
de a companhia responsável pelo repertório do Teatro Nacional entre os anos 1929-
1974 ter sido subordinada aos ditames estatais, durante a sua actuação conseguiu
montar espectáculos de grande rigor estético.19
A grande actriz Amélia Rey-Colaço tinha que balançar entre o contratado de
concessão adoptado pelo Estado e as suas ideias sobre encenações. Como escreve
Rebello nas suas memórias, “a programação do Teatro Nacional (...) sofria de um
excessivo eclectismo, dividida entre grandes textos da dramaturgia mundial e obras
menores, indignas de um teatro nacional.”20
E assim deve-se a este casal um grande agradecimento por levarem à cena
textos fundamentais da dramaturgia contemporânea. Dos textos estrangeiros
podemos frisar a trilogia Electra de O´Neill, A Visita da Velha Senhora de
Dürrenmat, das peças portuguesas destacam-se Os Gladiadores de Alfredo Cortez ou
a Dulcinea de Carlos Selvagem.21 E é também a obra dramatúrgica de José Régio
revelada pelo Teatro Nacional.22
18 Rebello, Luiz Francisco. «Prefácio» In. Redol, Alves et.al. Teatro-Estúdio do Salitre. 50 anos. SPA, 1996, p.12 19 Peixoto, Fernando. História do teatro Europu.,Edições Sílabo, 2006,p.35220 Rebello, Luiz Francisco. O passado na minha frente. Parceira, A.M. Pereira, 2004, p.12921 Peixoto, História do teatro Europeu,Edições Sílabo, 2006,p.35222 Trata-se da peça Benilde ou a Virgem Mãe representada em 1947. ( Cet – base. Teatro em Portugal, http://www.fl.ul.pt/CETbase/default.htm)
15
Mas foram também muitas as encenações proibidas a representar. É o caso do
Dia seguinte de Luiz Francisco Rebello, na cuja encenação Amélia Rey-Colaço se
havia muito empenhado, a probição de Mãe Coragem e seus filhos de Bertolt Brecht
ou o Motim de Miguel Franco. Este espectáculo foi proibido de representar ao fim de
cinco dias de representações. O Motim, a peça encenada em 1965 contou a história
do povo de norte que se levantou contra o monopólio concedido pelo Marquês de
Pombal à Companhia dos vinhos de Porto. A resposta a esta revolta chegou em
forma das repressões violentas. “Era óbvia a metáfora: o esmagamento da revolta
popular, o espectáculo das torturas a que os presos eram submetidos, o simulacro de
justiça culminando como condenação à morte dos revoltosos, tudo remetia para a
situação real que no país se vivia,”23
Por isso, haviam alguns artistas insatisfeitos com a limitada possibilidade de
criação artística renovadora do Teatro Nacional, e assim ingressaram na companhia
Comediantes de Lisboa (1944 -1950). Sob a direcção de Francisco Ribeiro
começaram a aparecer os dramaturgos estrangeiros como G.B. Shaw, Tolstoi ou
Giraudoux.24
3.3.2 Companhias Experimentais
Durante o período do Estado Novo haviam somente dois momentos de tal
enfraquecimento dos aparelhos estatais. Primeira vez, logo depois de fim da segunda
guerra mundial, quando Salazar quis dar a ideia que Portugal ia alinhar-se aos países
ocidentais com ideologias democráticas e pela segunda vez aconteceu assim em 1968
com a chegada de Marcelo Caetano.
Estes dois momentos, e notavelmente a derrota do nazi-fascismo causou na
Península Ibérica certo abrandamento da censura. Com a atenuação surgiram várias
iniciativas importantes, que sentiam uma necessidade de actualizar urgentemente o
teatro português. É o caso do teatro amador, que se torna importante a partir dos anos
cinquenta, o teatro universitário e sobretudo o aparecimento de companhias
experimentais. Graças a estas iniciativas chegaram aos palcos novos dramaturgos
portugueses, dos quais alguns conseguiram abordar palcos profissionais. Assim, o
23 Rebello, O passado na minha frente. Parceira, A.M. Pereira, 2004, p.19824 Peixoto, História do teatro Europeu,Edições Sílabo, 2006,p.352
16
Teatro-Estúdio do Salitre (1946) deu a conhecer as primeiras peças de Luiz
Francisco Rebello, Alves Redol, Pedro Bom ou de David Mourão-Ferreira. O Pátio
das Comédias (1948) revelou a obra de Costa Ferreira e Jorge de Sena, O Teatro
Experimental do Porto (1953) onde o papel fundamental teve o director António
Pedro apresentou as peças de Bernardo Santareno, Luiz Francisco Rebello e de
Romeu Correia.25
Entre outras companhias temos que destacar o Teatro Moderno de Lisboa
(1961-1965) a representar a peça de José Cardoso Pires O Render dos Heróis e Dente
por Dente de Luiz Francisco Rebello.
Outra companhia considerável era com certeza O Teatro Estúdio de Lisboa
fundado em 1964 por Luzia Maria Martins e Helena Félix e o Teatro Experimental
de Cascais fundado em 1965 por Carlos Avilez.26
O Teatro-Estúdio do Salitre foi fundado no ano 1946. É o mesmo ano, em
que Luiz Francisco Rebello tinha terminado o seu curso de direito. E embora durante
a sua vida nunca abandonasse o ambiente de fôro, o teatro significava para ele desde
infância grande paixão e interesses superiores. “Não estranhará, por isso, que o
grande acontecimento de 1946 não tivesse sido para mim a licenciatura e o início do
estágio, mas a fundação do Estúdio do Salitre,”escreve Rebello no seu livro de
memórias.27
Como a fundação deste teatro era um marco decisivo na evolução do teatro
português pós-guerra como também na própria vida de Luiz Francisco Rebello,
esboçaremos no capítulo seguinte a breve história deste agrupamento.
3.3.3 Teatro-Estúdio do Salitre
É um pouco paradoxal, que a personagem, digamos, fundamental, que esteve
à frente da iniciativa de criar um teatro que renovasse e regenerasse o teatro
português, era um escritor, dramaturgo e ensaísta da nacionalidade italiana. Gino
Saviotti, director do Instituto da Cultura Italiana em Lisboa, publicou no ano 1944
25 Rebello, Luiz Francisco. História do teatro português. 4ª ed., Lisboa, Pub. Europa-América, 1989,p.13626 Porto, Carlos. 10 anos de cinema e teatro em Portugal. Lisboa, Caminho, 1985 p.2227 Rebello, Luiz Francisco. O passado na minha frente,Parceira, A.M. Pereira, 2004, p.77
17
um livro polémico sobre a concepção de arte dramática intitulado Paradoxo sobre o
Teatro à semelhança do livro de Denis Diderot.
Depressa, concorriam-se à volta deste teatrólogo italiano vários escritores,
críticos e intelectuais, que apesar de serem de géneros, ideologias, formações e
tendências estéticas diferentes, ocuparam um elemento unitário - a paixão pelo teatro
e o desejo de o regenerar. “Todos consideravam que alguma coisa tinha de mudar no
teatro português – e que era chegado o momento de o fazer.”28 Assim nasceu um
estúdio experimental de teatro, a reunir profissionais e amadores com objectivo de
representar textos novos como também suscitar um novo estilo de representação e
libertar o teatro de preconceito naturalista.29
Entre doze pontos do Manifesto do essencialismo teatral, podemos citar o
décimo ponto, que com propriedade adivinha o que este agrupamento tinha em
mente: É preciso encontrar de novo – nas palavras do texto, e consequentemente no
jogo das cenas, nos gestos dos actores, nos agrupamentos, nas cores, nas luzes, nas
linhas e na atmosfera cenográfica – o ritmo, o estilo, a poesia da representação.30
Junto com Gino Saviotti, são Luiz Francisco Rebello, o mais novo do grupo
e Vasco Mendonça Alves, o mais velho, considerados os fundadores, como os
directores responsáveis também pela escolha do repertório. 31
O êxito decisivo adquiriu Estúdio do Salitre graças ao seu Segundo
espectáculo que se estreou no ano 1947.32 Para o repertório foram escolhidas três
peças vanguardistas e como escreveu Jorge de Sena a ordenação do espectáculo foi
inteligentemente graduada, pois “conduzia o público, desde o realismo
burguesamente fantástico da farsa de João Pedro de Andrade (O Saudoso Extinto) à
alegoria oportuna de Luiz Francisco Rebello (O mundo começou às 5 e 47))
passando pelo expressionismo satírico da peça de Rodrigo Mello (Uma Distinta
28 Rebello, Luiz Francisco. «Prefácio» In. Redol, Alves et.al. Teatro-Estúdio do Salitre. 50 anos. SPA, 1996, p.14 29 Rebello, Luiz Francisco. O Jogo dos homens. Lisboa, Ática, 1971, p.4030 Redol, Alves et.al. Teatro-Estúdio do Salitre. 50 anos. SPA, 1996, p.26731 O núcleo e membros de Estúdio do Salitre por ordem alfabético: Alves Redol, António Vitorino, Vieira Pinto, Arquimedes Silva Santos, Eduardo Scarlatti, Gino e Grazia Saviotti, Jorge de Faria, Luiz Francisco Rebello, Manuela de Azevedo e Vasco de Mendonça Alves 32 A estreia do primeiro espectáculo do “ 1º espectáculo de Teatro Essencial” ocorreu no dia 30 de Abril de 1946 no salão do 1º andar do Instituto Italiano de Cultura em Portugal situado no nº 146 da rua do Salitre em Lisboa. Para o pequeno palco com uma plateia de aproximadamente cem lugares surgiu a designação “microteatro”. No 1º espectáculo foram representadas estas peças seguintes: O Beijo do Infante (D.João de Câmara), Viúvos (Vasco Mendonça Alves), O homem da Flor na Boca (Pirandello), Maria Emília (Alves Redol). Mas como escreveu o director teatral António Pedro, o êxito decisivo do Estúdio do Salitre chegou só com o 2º espectáculo. (Rebello, Luiz Francisco. O jogo dos homens, Lisboa, Ática, 1971: 42)
18
Senhora).33É esta a altura, em que começou a profissão dramatúrgica profissional de
Luiz Francisco Rebello.
Digamos que apesar do manifesto comum, o cariz deste projecto caracterizou-
se logo pela heterogeneidade e pelas ideias e atitudes diferentes, quando não
opostas. A coexistência das ideias conservadoras e vanguardistas resultaram em
repertório mais ecléctico e conciliador do que revolucionário. Encontraram-se aqui
personagens como Vasco Mendonça Alves, dramaturgo de comédias de costumes a
nunca abandonar o naturalismo ao lado de Alves Redol ou de Luiz Francisco
Rebello, bem distanciados das linhas estéticas ultrapassadas.
E de mesma forma que a direcção do teatro estivesse heterogénea, também o
seu público tinha sido caracterizado pela bastante diversidade. E apesar do ponto sete
do Manifesto que defendia a ideia de substituir o público de snobs e intelectuais
decadentes pelo “verdadeiro público”, o resultado era diferente. “(...) A audiência
desses espectáculos reduzia-se a sectores restritos, em que o snobismo e a
curiosidade intelectual se misturavam.” 34
A dissolução do Salitre em 1950 teve, portanto, razões previsíveis. A
heteróclita composição, eclectismo do repertório e dispersão das ideias acabaram por
ser fatais.
Ao longo da sua existência entre os anos 1946 e 1950 o estúdio apresentou
dezassete espectáculos, nas quais se misturavam peças vanguardistas com peças
conservativas. Para estarmos rigorosos, apenas seis destes espectáculos levaram à
cena peças de estética vanguarda.35
Mas apesar de o projecto não ter trazido resultados puramente radicais, a sua
existência teve grande significado de vários pontos de vista.
No primeiro lugar, tratava-se da primeira iniciativa pós-guerra que tentasse
destruir os moldes estéticos desactualizados e o conformismo persistente e mostrar
outras possibilidades da concepção teatral.
Segundo, graças ao Estúdio do Salitre, foram revelados autores nacionais,
cujas peças até aí nunca subiram aos palcos. Trata-se sobretudo de Almada
33 Sena, Jorge de. Do teatro em Portugal. Lisboa, Edições 70, 1989, p.4034Rebello, Luiz Francisco. «Prefácio» In. Redol, Alves et.al. Teatro-Estúdio do Salitre. 50 anos. SPA, 1996, p.2635 Ibidem, p.22
19
Negreiros, Branquinho da Fonseca e João Pedro de Andrade. “(...) O Salitre prestava
assim homenagem às gerações do Orpheu (...) e da Presença (...)”36
O Estúdio não tinha medo de apresentar também os autores novos, como era
no caso de David Mourão-Ferreira, Alves Redol, Pedro Bom ou de Luiz Francisco
Rebello.
E afinal, o teatro não se limitou a encenar somente os autores nacionais. Pelo
contrário, nos repertórios entraram os autores como Luigi Pirandello, Gozzi,
Ruzzante ou Tchekov.
Além disso, o Estúdio do Salitre teve grande influência nos outros
agrupamentos que começaram de maneira semelhante criar outros teatros, muito
importantes na história do teatro português da segunda metade do século XX.
Terminemos este capítulo com palavras de Luiz Francisco Rebello, que em
1971 escreve: “Temos em aberto uma dívida de gratidão para com Gino Saviotti.
Sem o Estúdio do Salitre, o teatro português talvez estivesse ainda no século XIX.” 37
3.3.4 Os dramaturgos principais após-guerra
O maior florescimento teatral pós-guerra decorreu na década de 60. Nos anos
sessenta surgiram escritores jovens que produziram quantidades de textos teatrais. E
apesar de que nem sempre fossem apresentadas peças dum nível elevado, estes
autores têm mêrito de manter viva a literatura dramática em Portugal.
Há relativamente grande número dos autores que iniciaram a sua carreira em
escrever romances e de tal altura vinham ao campo dramatúrgico. É o caso de
romancista Luis de Sttau Monteiro cuja peça Felizmente há luar! recebeu em 1962
Grande Prémio de Teatro, de José Cardoso Pires que em 1960 publica a sua única
peça O Render dos Heróis ou de contista e poeta David Mourão-Ferreira que em
1965 apresenta a peça intitulada O Irmão. E, podemos revelar entre outros os
dramaturgos que ganharam mais fama por outra actuação literária senão dramática. É
o caso de José Rodrigues Miguéis, João Gaspar Simões e sobretudo de Jorge de
Sena.38
36 Ibidem, p.2237 Rebello,Luiz Francisco. O jogo dos homens, Lisboa, Ática, 1971,4338 Mendonça, Fernando. Para o estudo do teatro em Portugal.1946 – 1966.Assis, Fac. De Filosofia, 1971, p.16
20
Entretanto, segundo Fernando Mendonça na história do teatro português pós-
guerra figuram sobretudo três nomes da relevância significativa: Bernardo Santareno,
Romeu Correia e Luiz Francisco Rebello.39
Bernardo Santareno (1924-1980), cuja dramaturgia reflecte a diversa
sociedade portuguesa, toca os temas dos conflitos de religiosidade, injustiças sociais
até o questionamento sexual. Trata-se de uma dramaturgia que adopta as estruturas
do naturalismo para as aplicar ao serviço de temas de raiz popular interligados com
as grandes preocupações que agitam a carne e o espírito do homem de hoje.40 Entre
as 19 peças que Santareno escreveu até ao ano da sua morte destacam-se A Promessa
(1957), O crime de Aldeia Velha (1959) ou a peça Judeu (1966), obra-prima,
baseada na verdadeira história do dramaturgo de origem judaica António José da
Silva queimado vivo pela Inquisição em 1739. A peça desagradou à crítica sobretudo
pela proximidade entre a perseguição inquisitorial do século XVIII e a perseguição
da polícia do regime de Estado Novo. À intolerância do regime respondeu Santareno
publicamente pela Voz do Autor na sua peça autobiográfica Português, escritor, 45
anos de Idade (1974) com as seguintes palavras: “Tenho quarenta e cinco anos
e ...estou farto, cansado, já não acredito em nada. Esta será a minha última peça.
Estou desesperado, a vida , dói-me horrivelmente (...).”41
Romeu Correia (1917 – 1996) nascido na Alemanha, encontra a inspiração na
tradição popular, no mundo operário e pequeno burguês. Inicialmente influenciado
pela linguagem naturalista passa este dramaturgo ao expressionismo. Das peças mais
importantes temos que mencionar Bocage (1965), O Andarilho das sete Partidas
(1983) e Palmatória (1996).
39 Ibidem, p.2540 Rebello, Luiz Francisco, Breve História do teatro, Európa-América, p.15141 Barata, José Oliveira. História do teatro português.Lisboa, Univ. Aberta, 1991, 355
21
4 LUIZ FRANCISCO REBELLO E A SUA LUTA PELA LIBERDADE
4.1 Actividades de Luiz Francisco Rebello no campo literário
Luiz Francisco Rebello (10 de Setembro, 1924), o cofundador do Teatro-
Estúdio do Salitre (sobre que referimos no capítulo anterior) é uma das figuras
centrais de cultura teatral da segunda metade do século XX.
No primeiro lugar Luiz Francisco Rebello é um dramaturgo. As peças que
escreveu e publicou até hoje fazem dois volumes intitulados Todo o teatro I e II
contendo cerca de duas dezenas de peças. É difícil enquadrar a sua dramaturgia numa
só tendência estética, há quem considera o seu drama próximo do existencialismo, há
quem o acha neo-realista ou naturalista e até há quem o julga um autor “de
circunstância, “mas não nos resta qualquer dúvida ao afirmamos que se há alguém
em Portugal que se tenha preocupado com uma sociologia do Teatro esse alguém é
indubitavelmente Luiz Francisco Rebello.42 Como a sua dramaturgia é o nosso
objectivo principal deste ensaio, vamos pormenarizá-la nos capítulos seguintes.
Além de ser dramaturgo, Luiz Francisco Rebello é também um tradutor
importante. Graças a ele entraram em Portugal peças por ele traduzidas de Ibsen,
Strindberg, Bertolt Brecht, Maeterlinck, Tchechov, Pirandello, Lorca, Arthur Miller,
Samuel Beckett e muitos outros.
A seguir, um grande destaque merece sobretudo o seu trabalho de historiador
do teatro português. Ao imaginarmos que até a segunda metade de século XX existia
em Portugal a História do teatro português somente do ano 1870 de Teófilo Braga
(apesar de não termos nenhuma intenção de depreciar os seus quatro volumes), o
contributo de Luiz Francisco Rebello ao ter publicado a sua História do teatro
português actualizada no ano 1968 em Buenos Aires é enorme.43
Entre os anos 1977 e 1994 publicou 10 livros historiográficos que com uma
investigação cuidadosa referem sobre várias épocas e modalidades do teatro
português.44 Entre os inúmeros ensaios, análises, críticas e livros historiográficos
42 Peixoto, Fernando. História do teatro europeu. Edições Sílabo, 2006, p. 36743Oliveira, Fernando Matos. «Luiz Francisco Rebello» Biblos – Enciclopédia das Literaturas de Língua Portuguesa.vol.4.,Verbo, 2001,p.630 44 Entre outros podemos destacar as seguintes publicações: O teatro simbolista e modernista (1979) , O teatro romântico em Portugal (1980),O primitivo teatro português (1977), 100 anos de teatro português(1984) etc.
22
destaca-se a publicação de dois volumes de História do Teatro de Revista em
Portugal concluídos nos anos 1984-1985.
Luiz Francisco Rebello é também autor de vários prefácios e apresentações
nos livros dos seus colegas dramaturgos e organizador de várias publicações. Trata-
se por exemplo da crítica estudiosa do teatro completo de Bernardo Santareno ou a
colecção de ensaios e críticas de Jorge de Sena reunidos no livro Do teatro em
Portugal (1989).
4.2 Actividades de Luiz Francisco Rebello no campo político-cultural
A singularidade e excepcionalidade de Luiz Francisco Rebello consiste no
facto que a sua actuação não fica apenas no ramo de arte. É que, Luiz Francisco
Rebello não é um dos artistas a considerar a arte, neste caso o teatro, como uma pura
essência artística, alheia e afastada da vida quotidiana, da sociedade ou da política.
Pelo contrário, Luiz Francisco Rebello considera o teatro muito mais profundo e
vasto do que o simples texto artístico. “O teatro foi – e é ainda para LFR – uma
forma artística que atravessa o tecido social e implica um sentido verdadeiramente
político, de intervenção na cidade,” afirma Maria Helena Serôdio.45 À semelhança
do dramaturgo alemão Bertolt Brecht, Luiz Francisco Rebello exige que o teatro não
seja alheio à situação política, pois, segundo o dramaturgo, “o teatro nas suas formas
superiores é sempre político, porque a sua função é integrar os homens na cidade e
ajudá-los a torná –la habitável.”46
Luiz Francisco Rebello licencionou-se em direito e embora a área jurídica não
tenha aparentamente muitos aspectos parecidos com a arte, Rebello ao longo da sua
actuação literária nunca abandonou o domínio de direito, porém, aproveitando os
seus conhecimentos jurídicos, empenhava-se na área política, lutando durante o
tempo da ditadura contra a censura. Bateu-se pela liberdade da escrita e da vida
democrática e dedicou-se à defesa dos prisioneiros políticos presos pela polícia
P.I.D.E.
45 Serôdio, Maria Helena. «Luiz Francisco Rebello: o lugar da consciência«, In Cadernos de Teatro, nº 16, Almada, Companhia de Teatro de Almada, Junho de 2000, p. 3746 Rebello, Luiz Franciso. O passado na minha frente. Parceira A.M. Pereira, 2004, p. 181
23
Por isso, todas as actividades deste autor, seja dramatúrgicas, teóricas ou
políticas não se opõem, porém, pelo contrário, interligam-se.
A luta contra censura encheu sem dúvida grande parte da sua vida. Luiz
Francisco Rebello próprio tinha que enfrentar as restrições da censura. Já a sua
primeira peça O mundo começou as 5 e 47 foi depois da repetição do espectáculo
proibida. A peça O dia seguinte conseguiu atingir os palcos onze anos após a sua
escrita, entretanto a censura proibiu apresentar a peça Condenados à vida.
A intratabilidade de censura e restrições cada vez piores levaram Luiz
Francisco Rebello em 1965 a redigir um protesto. Era um protesto alusivo ao
cancelamento do espectáculo O Motim no Teatro Nacional. No documento que
subscreveram 150 intelectuais, entre outros Luís de Sttau Monteiro, Bernardo
Santareno, José Cardoso Pires, José Régio, Sophia de Mello Breyner, Natália Correia
ou António Pedro, reclamava-se: a imediata abolição das restrições que pesam sobre
o teatro português e o estão condenando a um silêncio que se assemelha, cada vez
mais, ao da morte.”47 A resposta chegou sob a forma dum despacho que mandava
extinguir a Sociedade Portuguesa de Escritores, à que estes signatários pertenciam,
sob o pretexto da atribuição do Grande Prémio De Novelística ao livro de contos de
Luandino Vieira Luuanda, ou seja ao livro dum autor que esteve preso “por actos de
terrorismo” num campo de concentração em Angola.48 A delegação portuguesa não
podia aceitar este ordenado com obediência, portanto, num Congresso da
Comunidade Europeia dos escritores que se realizou em Roma, apresentou a moção
condenando a violenta extinção da Sociedade Portuguesa de Escritores. A Comissão
de Censura não se fez esperar. E no dia 16 de Novembro de 1965 ordenou à toda a
imprensa cortar qualquer referência aos nomes e membros do júri que atribuíra o
prémio a Luaindino Vieira. As palavras da censura foram bem claras: “Estes nomes
são cortados, estes escritores morreram!” 49 Era proibido referir-se de qualquer
modo aos escritores, quer dizer os nomes deixaram de existir apesar de que as obras
ou traduções deles tivessem sido divulgadas – mas sem nenhumas assinaturas.Todos
os nomes realmente desapareceram.
47 Ibidem, p. 19948 Ibidem, p. 19949 Ibidem, p. 202
24
Em 1968 após a nomeação de Marcelo Caetano como presidente de
Conselho, Rebello, com outros intelectuais de letras – entre outros Fernando
Namora, Vergílio Ferreira, Bernardo Santareno ou Natália Correia - criou um
documento de sete pontos solicitando as principais reivindicações alusivo à liberdade
de escrita. Em suma este documento exigiu: “a abolição imediata das arbitrárias
restrições que continuam limitando a criação dramatúrgica e impedem a livre
manifestação, de um teatro que seja a expressão viva e actual dos problemas e
anseios da colectividade (...).”50 Mas apesar de Caetano ter proclamado o desejo pela
modernização e democratização do país, o resultado delimitou-se em pura alteração
dos nomes institucionais. A Direcção dos Serviços de Censura começou a chamar-se
Direcção-Geral da Informação, sendo substituída a expressão de “censura” pela de
“exame prévia”.51
Em 1971 Rebello recebeu um convite para chefiar a Companhia do Teatro
Municipal no Teatro de São Luis. Luiz Francisco Rebello, um batalhador resistente
pela dignidade de arte, elaborou um projecto ambicioso e só depois da aprovação
desta proposição, aceitava a posse do chefe. Rebello aceitava dirigir o teatro desde
que na sua competência fosse a selecção do repertório, a escolha do elenco, dos
encenadores e demais colaboradores técnicos a artísticos, e além disso, no teatro
deviam ter lugar também outras actividades além das teatrais. O teatro deverá ser um
lugar de um centro vivo de cultura, utilizado para manifestações artísticas de diversa
índole (concertos, recitais de poesia, cinema etc).52 A sua actuação nesta posição
demorou apenas alguns meses, porque quando a censura impediu a representação da
Mãe de Witkiewicz designando a peça uma apologia da droga, o director apresentou
a demissão, “mantendo sempre uma postura íntegra, na impossibilidade de cumprir
esse propósito.”53
Dois anos depois, em 1973, Luiz Francisco Rebello, viria a ser eleito
presidente da Sociedade Portuguesa de Autores. O esforço na função de presidente
que o dramaturgo desempenhou até ao ano 2003 comenta o seu amigo, laureado do
50 Ibidem, p. 21451 Ibidem, p. 21452 Ibidem, p. 22453 Fadda, Sebastiana. « A dramaturgia de Luiz Francisco rebello: Do teatro estúdio do Salitre às significações de palco».In Estudos Italianos em Portugal. Nova serie, nº 1, 2006 p.8
25
prémio Nobel José Saramago ao dizer que “a independência da SPA teve sempre
em Rebello o seu mais corajoso e competente defensor e o seu mais sólido escudo.”54
Luiz Francisco Rebello exerceu durante o tempo ditatorial a profissão de
advocacia. Defendia os presos políticos, muitas vezes da organização MUD, bem
como escritores despropositadamente acusados e prejudicados nos seus direitos e
estatuto. Mencionemos aqui por exemplo a apreensão da antologia de Poesia
Portuguesa Erótica e Satírica organizada por Natália Correia ou as Novas Cartas
Portuguesas apreendidos cinco dias depois de lançamento por serem desigandos
livros pornográficos que desagradavam ao regime.55
A luta pela liberdade de pensamento reflecte-se também na participação de
elaboração do novo Código do Direito de Autor ratificado em 1985. A intenção de
cada peça e as ideias inseridas no texto eram para Rebello sempre consagradas.
“Bati-me pela inclusão, entre as criações protegidas, da encenação teatral, a título
igual ao da coreografia ou da realização cinematográfica,” afirma o dramaturgo.56
Além de ser professor na Universidade de Coimbra onde lecciona o curso de
Direito de Autor, Luiz Francisco Rebello coopera hoje em dia com alguns teatros
portugueses (p.ex.com O teatro Experimental de Cascais) e colabora com jornais,
por exemplo com a revista mensal Sinais de cena. 57
54 Saramago, José. «Sobre Luiz Francisco Rebello» In. Programa de Teatro Experimetal do Porto – É urgente o amor. Câmara municipal de Gaia, Círculo de Cultura Teatral, 2004, p.2055 Rebello, Luiz Francisco. O passado na minha frente. Parceira A.M.Pereira, 2004, p.12856 Ibidem, p. 19357 Da sua vida pessoal o que podemos destacar é a sua vontade de viajar. No seu livro de memórias descreve a impressão que lhe fizeram as visitas aos vários países, seja se tratava das viagens de férias, seja das viagens aos congressos. Rebello adorava viajar sobretudo à França. Paris cheia de museus, cinemas e teatros representava para ele o centro da liberdade cultural. Durante o tempo de salazarismo voltava lá com regularidade mais tarde acompanhado com a sua mulher e actriz Mariana Villar com que casou em 1949. O amor e a admiração pela sua esposa é sentido ao longo da toda a narrativa das suas memórias. É o ano 1998 do falecimento da actriz que o autor assinala o ano mais doloroso, dedicando-lhe no ano seguinte a edição do seu teatro quase completo com estas palvaras: Para a Mariana, porque não há limites nem fronteiras para o amor. (Rebello, Luiz Francisco.O passado na minha frente. Parceira, A.M. Pereira.2004,pp.341-380)
26
5 DRAMATURGIA DE LUIZ FRANCISCO REBELLO
Luiz Francisco Rebello revelou os interesses pelo teatro muito cedo. A partir
de 1930 começou a frequentar teatros lisboetas ora com os seus pais ora com o seu
avó que fazia amizade com vários actores e homens do teatro. Assim, não estranhará,
que o desejo de escrever uma peça logo apareceu. Já em 1931 Luiz Francisco
Rebello escreve a sua primeira peça com a duração não superior a 20 minutos,
intitulada A Culpa. Fazemos referência sobre esta peça para mostrarmos que já na
sua criação inicial apareceu um dos elementos frequentemente presentes na sua obra
de maior fôlego: o tribunal.58 O salão de tribunal além de ser o lugar onde se
desenrolou uma parte da vida profissional do autor tem certo lugar também na sua
obra. Nas peças de Luiz Francisco Rebello acha-se muitas vezes um tribunal não
como espaço físico mas na maioria das vezes como um tribunal das consciências ao
qual são as personagens submetidas.
Como Luiz Francisco Rebello confessa, durante a década de 30 e 40 escrevia
inúmeras peças, algumas incompletas, algumas só esboçadas que o autor não
considera dignas de serem publicadas.59 Só a peça surrealista de humor absurdo que
escreve em 1944 com o seu colega da Faculdade de Direito José Palla e Carmo com
o título A Invenção do Guarda-Chuva decidiu incluir no primeiro volume do Todo o
Teatro.60
A obra dramatúrgica de Luiz Francisco Rebello está até hoje constituída por
23 textos, dos quais 13 são de maior dimensão. Ao modo de vários teatrólogos a sua
obra vigorosa pode ser dividia em várias épocas e tendências estéticas. Embora por
todas as peças interpenetrem elementos parecidos e uma divisão possa fazer efeito de
um esquematismo fácil, para o nosso aclaramento resolvimos também distinguir a
sua obra em épocas parciais.
58 Rebello, Luiz Francisco. «Memória de um percurso». In.Todo o Teatro I. Lisboa, Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 199, p.66259 Em 1942 e 1943 ganhou o Prémio de Teatro da Mocidade Portuguesa com as peças A lição do tempo e O ouro que Deus dá, ambas representadas no Teatro Nacional D. Maria II. (Fadda, Sebastiana. « A dramaturgia de Luiz Francisco rebello: Do teatro estúdio do Salitre às significações de palco».In Estudos Italianos em Portugal. Nova serie, nº 1, 2006, p.11)60 A peça surrealista foi escrita ainda seis anos antes do surgimento da Cantora Careca de Ionesco. Esta “none-sense comédia” foi posta em cena em 1999 pelo Teatro Nacional, cinquenta e cinco anos depois da representação escolar do Liceu Charles Lepierre.”O gozo foi grande, para intérpretes e espectadores, quase todos estes colhidos de surpresa pelo none-sense da comédia impossível, tornada agora possível após a explosão do anti-teatro de Ionesco,” relembra Rebello. (Rebello,Luiz Francisco. O passado na minha frente, Parceria A.M.Pereira,2004, p.350)
27
A primeira fase experimental é mais próxima do expressionismo. Nesta fase
inicial pertencem as peças O mundo começou às 5 e 47 (1946) e O fim na última
página (1951).61
Expressionismo, como forma estética teatral apareceu com grandeza na
Alemanha logo depois da primeira guerra mundial. A jovem geração pós-guerra a
discordar com a guerra e a vida autoritária manifestava a necessidade de reencontrar
os valores fundamentais, como humanidade e fraternidade. Os expressionistas
conceberam o teatro como um sítio de culto, donde devia ser proclamado o “paraíso
humano.” 62 Os sucessores do expressionismo são considerados o director famoso
Erwin Piscator e sobretudo o dramaturgo alemão Bertolt Brecht com a sua concepção
do teatro épico.63
A estética expressionista misturada com as formas brechtianas encontramos
também na obra do dramaturgo português, em concreto, na peça O mundo começou
às 5 e 47. Esta “Fábula em um acto” que Fernando Mendonça considera ser o marco
na história da moderna dramática portuguesa64 reflecte a tomada posição do autor
depois de fim da guerra. É nesta fábula de um acto, onde se pode antever a futura e
constante problemática nas peças do autor: a concepção do mundo onde os homens
puros são expostos diante da agressividade da sociedade enriquecida, corrupta e sem
respeitos.
A segunda fase da criação teatral de Luiz Francisco Rebello é designada
como existencialista. Nesta fase prevalecem os problemas sociais com a presença
dos elementos típicos deste autor. A questão da responsabilidade humana, o valor da
vida e da morte e a importância do amor são evidentes antes de tudo nas peças mais
61 Entre as peças de linha experimental é as vezes encaixada ainda a peça O dia seguinte. Embora a composição desta peça remonte à fase inicial experimentalista do autor, pelo seu tema recai na fase já existencialista.62 Grande importância na estética expressionista consiste em cenografia: na maioria das vezes a cena devia ser esvaziada, isenta da decoração a permitir os adereços apenas imaginários. O carácter de linguagem é patético e mecânico, os actores costumam exprimir os gestos de modo exaltado e muito expressivo. As personagens são muitas vezes completamente alegóricas, isentas de qualquer carácter, pois trata –se de assim chamadas personagens–tipos generalizando as atitudes e comportamentos humanos. (Richter, Luděk, Praktický divadelní slovník. Dobré divadlo dětem.2008, p.44) 63 O teatro épico de Bertolt Brecht pretende ser um teatro político. Brecht aproxima o teatro a um laboratório experimental que com à integração do espectador devia participar em mudança da realidade política e social. Uma categoria principal do teatro épico era o „efeito de distanciação“, que recusava a metamorfose integral do actor na personagem representada. O „efeito de distancionamento“ devia impedir ao espectador sofrer as emoções da história representada no palco e relembrar que o seu dever consiste em reflexão crítica da sociedade. (Peixoto, Fernando. História do teatro europeu. Edições Sílabo, 2004, p.289-293). 64 Mendonça, Fernando, Para o estudo do teatro em Portugal. 1946-1966. Assis, Fac. De Filosofia.1971p.13
28
acentuadas do autor: O dia Seguinte(1949) ,Alguém terá de morrer (1956), É urgente
o amor (1958), Pássaros de Asas Cortadas (1959) e Condenados à vida (1964). A
problemática existencialista é evidente também nas peças mais recentes, como é no
caso de As Páginas Arrancadas (1999) ou de Triângulo escaleno (2002).
A terceira fase, pode ser assinalada como sátira política. A esta linha
pertencem as peças que denunciam a vida de repressões e o regime totalitário. Neste
fase alinham-se: A visita da sua Excelência (1965), À Lei é Lei (1977),Grande
Mágico (1979) , Portugal anos quarenta (1982) ou Prólogo Alentejano (1976).
O autor começou a escrever as peças intervenientes sobretudo com o regresso
da democracia, quer dizer depois do ano 1975. Digamos que nestas peças com a
intenção política, Rebello deslocou o ambiente familiar das peças existenciais para um
ambiente da história passada. Enquanto as peças existenciais denunciam as atitudes
imorais de membros singulares de família, as peças políticas denunciam o regime
imoral salazarista. Por isso a dimensão moral tão importante no primeiro ciclo da
criação do autor continua a ter grande importância também nas obras sociopolíticas.
Nestas peças Rebello defende “(...) certos valores sociais como a justiça e a liberdade
associados a uma perspectiva marcada pela História.”65
É certo, que estas peças têm também o valor didáctico. A peça Portugal, Anos
quarenta, intitulado pelo autor, “espectáculo – documentário em 10 sequências”
retrata uma década totalitária por intermédio de vida quotidiana duma família
portuguesa.
O Prólogo Alentejano é por sua vez uma transcrição brechtiana. Ao ter
traduzido O Círculo de Giz Caucasiano de Bertolt Brecht, Rebello tinha inserido nesta
peça as realidades e actualidades do seu país e deslocou o prólogo que teve lugar no
Cáucaso numa herdade do Alentejo, onde se o debate travava em torno da posse
legitima da terra.66
Ao lado destas três linhas fundamentais aparecem ainda peças que têm uma
posição singular. Trata-se de Todo o amor é amor de perdição (1990), teledrama
(uma série televisiva em três episódios) sobre o julgamento de Camilo Castelo
65 Teixeira, António Braz. «Prefácio Breve e talvez inútil». In. Todo o Teatro II, Lisboa, Imprensa nacional-Casa da Moeda, 2004, p.1266 Rebello, Luiz Francisco.O passado na minha frente.Parceria A.M. Pereira, 2004, p.263
29
Branco, Desobediência (1999), sobre a personagem de Aristides Sousa Mendes,
cônsul que desobedeceu a Salazar, e Dente por Dente (1964), uma versão livre da
tragicomédia de Shakespeare originalmente intitulada Measure for Measure.
5.1 Existencialismo de Luiz Francisco Rebello
A segunda guerra mundial devastadora causou nas sociedades de culturas
diferentes crises nas vidas individuais. Vacuidade e desamparo das pessoas postas
diante dos escombros do seu país, o colapso da fé colocada em dúvida por causa dos
campos de concentração e armas nucleais reflectiu-se sobretudo nos pensamentos
sobre o sentido da vida.
As reflexões sobre os problemas sociais reflectem duas estéticas teatrais ou
seja, o absurdismo e o existencialismo. Os representantes mais conhecidos da
filosofia existencialista são os filósofos e ao mesmo tempo dramaturgos Albert
Camus e Jean-Paul Sartre. A solidão das pessoas num mundo sem sentido em busca
do sentido da existência própria é o tema principal das suas peças existenciais e
absurdas. Também outros dramaturgos estilisticamente diferentes, como Arthur
Adamov, Harold Pinter, Jean Genet, Eugène Ionesco, Edward Albee e Samuel
Beckett acercaram-se a esta problemática, utilizando muitas vezes as técnicas da
paródia e grotesco, e uma linguagem automática que exprime a alienação das pessoas
diante dos outros e de todo o mundo.67
Luiz Francisco Rebello, depois de ter proclamado a esperança num mundo
melhor em O mundo começou às 5 e 47, virou o seu interesse à problemática dos
indivíduos solitários na sociedade pós-guerra.
O ambiente das suas peças concentra-se sobretudo num universo familiar de
nível da burguesia alta ou da classe social inferior. Nestes ambientes de luxo ou de
pobreza encontramos as personagens a meditar sobre a condição e o destino do
homem.68 Muitas vezes são nos apresentadas figuras que apesar de coexistirem sob o
mesmo tecto, ou seja numa só família, ocupam atitudes opostas. Uns deles defendem
67 Brockett, Oscar G. Dějiny divadla. Nakladatelství Lidové noviny. 2001, p.628-67168 Teixeira, António Braz. «Prefácio Breve e talvez inútil». In. Todo o Teatro II, Lisboa, Imprensa nacional-Casa da Moeda, 2004, p.7
30
o valor moral e os outros para salvarem a sua aparência perfeita remam a cobardia e
falsidade.
Outra problemática presente nesta linha existencialista é o facto de que os
seres humanos apesar de não terem pedido de nascer nem as condições da vida, não
possuem a capacidade de recusar a vida e são, portanto, condenados a vivê-la.
A condição mais importante e mais urgente que possibilita transformar esta
condenação à vida, é segundo o dramaturgo, o amor. Seja o amor familiar, seja o
amor na relação de duas pessoas de sexo diferente ou igual, sem existência desta
necessidade humana fundamental, a vida perde o sentido. A ausência do amor às
vezes em ligação com outros elementos proporciona a presença da morte à qual as
personagens desiludidas com a vida facilmente sucumbem.
Quanto às personagens, não se pode falar das figuras de grande psicologia
elaborada. O comportamento das personagens é determinado já no início de cada
peça e não sofre nenhumas transformações marcantes no decorrer da acção. Deste
modo tornam-se as personagens arquétipos de virtudes e sobretudo de vícios
humanos. Isto não quer dizer que as personagens carecem do carácter por completo,
pois apesar de representarem lados pretos ou brancos da sociedade, cada uma das
personagens possui a própria história e traços humanos que distinguem uma
personagem de outra.
Esta tipificação que divide as personagens em personagens positivas e
negativas facilita revelar com maior exactidão a intenção e enunciado das peças.
Assim, não as personagens, mas os elementos parciais criam as ideias destas peças
existenciais.
As personagens que fogem desta tipificação e possuem a psicologia mais rica
são nas peças de Luiz Francisco Rebello as personagens femininas desempenhando
na maioria das vezes os papéis cruciais. É a mulher que toma a decisão final e com
ela ligam-se os maiores sofrimentos causados pelas injustiças na vida. António Braz
Teixeira afirma, que “as personagens femininas parecem-nos anímicas e moralmente
mais fortes do que os homens, defrontando mais enérgica e denodadamente a
adversidade ou o imprevisto, de súbito, irrompe nas suas vidas e manifestando, no
seu agir ou reagir, uma mais firme fidelidade a valores como a verdade, a honra a
31
dignidade ou a autenticidade existencial, não hesitando em dar-se a morte (...).”69
Seja serem as mulheres consideradas por autor os seres mais frágeis seja mais
sensíveis, são muitas vezes elas que se dão à morte quando lhes parece a única
solução digna.
No que toca ao estilo estético, digamos, que as peças existencias de Luiz
Francisco Rebello são anti-naturalistas mas não recusam os temas realistas
enriquecidos pelas correntes estéticas modernas. Das primeiras peças de um acto,
Rebello envereda às peças mais extensas. A unidade do tempo, lugar e acção
mantem-se ainda nas peças Alguém terá de morrer e em Pássaros de asas cortadas,
que pela sua forma remontam mais ao drama de costume, a peça experimentalista O
dia seguinte e as suas peças tardias como É urgente o amor (a versão nova de 2002)
e Condenados à vida incluem por seu turno mais as formas épicas e narrativas
aproveitando as possibilidades retrospectivas (flash-back) e estruturas
cinematográficas.70
Nas peças de Luiz Francisco Rebello oscilamos quase sempre entre a
realidade e o fantástico, apesar de o real ter sido sempre a base fundamental. A
realidade é quase sempre interpenetrada pelos elementos irreais, seja alegóricos,
simbólicos ou metafísicos, os quais causam a percepção mais densa da problemática
existencial.
A modernidade e a retrealidade do teatro de Rebello consiste também na
linguagem inovadora que dá aos diálogos uma cadência fluente e natural. A fala das
personagens livre de ornamentos desnecessários fluindo de modo simples e ágil o
que proporciona criar situações verosímeis com efeitos profundos. Assim as peças
levam dentro de si uma actualidade persistente. Não em vão designa Fernando
Peixoto a língua das suas peças como “elegância de uma escrita teatralmente rigorosa
e literariamente brilhante.”71
69 Teixeira, António Braz. «Prefácio Breve e talvez inútil». In. Todo o Teatro II, Lisboa, Imprensa nacional-Casa da Moeda, 2004, p.770 Ibidem, p.871 Peixoto, Fernando. História do teatro europeu.Edições Sílabo, 2006, p.366
32
6 O DIA SEGUINTE
A ideia de escrever a peça O dia seguinte surgiu durante a estada de Luiz
Francisco Rebello no hospital militar de Belém em 1949.
A peça conta a peripécia de um jovem casal, que acossado pela vida e
afligido pela miserável situação económica decidiu não obrigar à vida o seu filho que
estava prestes a nascer e deixando o fogareiro aceso durante a noite comete um
suicídio duplo.
O seu acto é posto em causa num julgamento ou seja num alegórico juízo
final. Num lugar, separado e afastado da vida, este casal defronta um tribunal para
que justificasse a sua vida conjunta. Do início feliz, Ele e Ela, contam os momentos
decisivos, em que Ele perde o trabalho, até ao dia, no qual não viram outra solução
do que o suicídio voluntário. Duma maneira retrospectiva, utilizando a técnica de
“flash-back” conhecemos a sua vida e o motivo da sua escolha pela morte.
Os remorsos começam a surgir no momento quando na cena aparece a figura
da Filha já adulta a dizer que ia ter um filho. Ao avisar o nascimento do seu filho
acrescenta a Filha, que “só para conhecer esta alegria, valeu a pena ter vindo ao
mundo.”72 Ao ouvirem estas palavras felizes os pais dela começaram arrepender-se
do seu acto cometido. O caminho para trás já está encerrado, porque citando as
palavras de Juiz,” há só uma vida para viver.”73
6.1 Realidade e absurdo
A peça trata um tema realista e social mas concebe-o de maneira
experimental que se aproxima mais da estética expressionista do que realista. Foi
essa também a intenção do próprio autor, que confessa que “o tom da linguagem
tinha um cunho realista, porque era realista (...) mas eu queria abordá-lo e
desenvolvê-lo numa perspectiva deliberadamente não-naturalista (...)”.74
A escolha do ambiente irreal, que neste caso podemos aproximar do
purgatório ou do inferno, apesar de que nenhuma destas palavras seja usada no
72 Rebello, Luiz,Francisco. « O dia seguinte » In.Todo o teatro I. Lisboa, Imprensa Nacional-Casa sa Moeda, 1999, p.8673 Ibidem, p.8874 Rebello, Luiz Francisco.O passado na minha frente. Parceria A.M. Pereira,2004, p.98
33
decorrer da peça, possibilita colocar nele as duas personagens já mortas – Ele e Ela –
que são, segundo o Juiz julgados pelo crime de deserção da vida. Neste caso o
aspecto absurdo representa o tribunal que julga as duas personagens já mortas, à
realidade ligam-se os problemas sociais que estes dois combateram. “Todas as
personagens estão marcadas de veracidade, ainda que movimentando-se no território
do inverossímil. É esse, aliás, o mais peculiar timbre do teatro de Luiz Francisco
Rebello.”75
6.2 O direito à Morte
Como foi dito, nas peças de Luiz Francisco Rebello é muitas vezes a
personagem de mulher que faz os momentos decisivos. E é também o caso de
Matilde de O dia seguinte. Apesar de que a morte fosse a decisão comum, dela e de
Carlos,76a primeira iniciativa provinha da sua mente. Enquanto Ela via na morte a
única saída possível, a opinião de Ele era mais reservada. E depois de descobrirem
que são mortos, Ela sente certo tipo de alívio, Ele crê que se trata só dum pesadelo
que com a madrugada desaparece. E é também Matilde que afinal toma como mãe
potencial as consequências maiores da morte voluntária e solicita ao Juiz para que
possam tornar à vida.
E por fim, é outra vez a personagem de Matilde que manifesta a expressão-
chave da peça, quer dizer o direito à morte. Podemos dizer, que já nesta peça, a
personagem mais enérgica e mais tocada pela decisão, é a personagem feminina,
embora os participantes da história são os dois.
Ele: Mas que vento foi este que soprou nas nossas vidas e secou tudo o que encontrou pelo caminho.Ela: Tem um nome...Podes chamar-lhe direito à morte...77
O casal não tem quase nenhuns meios para uma vida digna, nem dinheiro
para conseguir dar boas condições ao filho que ia a nascer. Assim, depois de
75 Mendonça, Fernando.Para o estudo do teatro em Portugal.1946-1966. Assis, Fac. De Filosofia.1971, p.3376 As personagens de Matilde e de Carlos são designados pelo autor como Ele e Ela. Porém, quando falam entre si, chamam-se pelos nomes próprios.77 Rebello, Luiz Francisco. « O dia seguinte » In.Todo o teatro I. Lisboa, Imprensa Nacional-Casa sa Moeda, 1999, p.68
34
incessante esforço de Carlos de arranjar trabalho sem resultados nenhuns, e depois da
ânsia persistente de viverem uma vida feliz sem o serem capazes realizar, o casal
sente-se atraiçoado pela sociedade e por toda a vida. Neste contexto Rebello desvela
a problemática social pós-guerra e as injustiças ligadas às classes sociais diferentes.
Porquanto quem levou os dois jovens ao desespero não foi o seu pessimismo mas a
própria sociedade. A sensação da traição da vida fez o casal a considerar que lhes
pertence o direito de morrer. É a personagem de Juiz que põe em dúvida a sua acção.
O Juiz: Mas quem lhes disse que a morte era uma solução?
Ela: Tudo acabou com a morte, senhor juiz. Todos os problemas, todas as aflições. Tudo arrumado definitivamente dentro de uma gaveta que não é possível tornar a abrir, porque se deitou fora a chave...
O Juiz: E, no entanto, todo esse passado continua a pesar-vos sobre os ombros. Continua a seguir-vos passo a passo, como uma sombra a que se não pode fugir, a que se está preso para sempre...Todo esse passado, imóvel, de pé, com um dedo estendido na vossa direcção para vos acusar.78
Este casal não cometeu apenas um suicídio duplo, mas impediu a vida ao ser
humano ainda não nascido, sem o dar nenhuma possibilidade de escolher. É
sobretudo por esta razão que o casal está julgado. É o julgamento da consciência dos
dois jovens alusivo ao aborto do seu filho.
A figura da Filha surge na cena duas vezes. Primeira vez a Filha hipotética (o
futuro já morto) representa um retrato da vida miserável. É a imagem do futuro que
justifica a decisão correcta do casal.
Mas logo aparece a segunda Filha que demonstra a felicidade atingida,
mesmo que lhe as condições de vida tenham parecido desagradáveis. Esta mulher
feliz por estar à espera de um filho é o símbolo de um mundo cheio de esperança.79
O Juiz: Porque não havia de ser feliz a vossa filha? Bastava que houvesse uma possibilidade, uma só, de ser feliz, para valer a pena viver o dia seguinte.
Ela: Então...foi tudo inútil?
O Juiz: Inútil, sim. A causa está julgada. E quem vos condenou não fui eu, mas sim a filha a quem recusaram a vida. E os filhos que ela nunca chegará a ter. A linha de vida que nas vossas mãos se quebrou...
78 Ibidem, p.82 79 Mendonça, Fernando.Para o estudo do teatro em Portugal.1946-1966. Assis, Fac. De Filosofia.1971,p.31
35
Ela: (numa súplica)Eu não sabia, senhor juiz...Nós não sabíamos
Ele: Parecia impossível haver um dia seguinte..
Ela: E agora? Que podemos nós fazer agora?
O Juiz: Nada. Absolutamente nada. Tudo se consumou.80
O casal está condenado sem possibilidade do remédio. Para quem começa,
então, “o dia seguinte”? Enquanto estes dois nunca verão o dia seguinte, os outros
que não desistiram lidar com as dificuldades de vida vão ter em consciência sempre
uma visão, uma esperança de um dia seguinte melhor.
Com propriedade descreveu o tema da peça Urbano Tavares Rodrigues, um
crítico muito exigente de teatro: “(...) Aliás, um dos valores mais altos e
impressionantes desta obra é o seu halo de esperança – de esperança dura, sem mel,
de esperança nos outros, esperança na Humanidade, que fica a nimbar o palco após a
catástrofe modesta e dolorosa de um casal vencido pela injustiça da Sociedade e que
renuncia a vida. Caíram dois amantes cujo amor sem dinheiro secou. E com eles o
fruto desse amor que se chamava medo antes de ser um filho. Mas a vida prossegue
como marcha indelével para “o dia seguinte” É essa a mensagem simples, e muito
bela, da peça de Luiz Francisco Rebello,”81
É a mensagem da peça, resumida em palavras finais da personagem de
Secretário.
O Secretário: (...) a estas horas, lá no mundo, um novo dia começa. Um dia de trabalho e de luta, mas também de alegrias e esperanças. Os primeiros raios de Sol aquecem a cidade. As sereias das fábricas chamam para a vida. As ruas enchem-se de gente. E nas águas-furtadas de um bairro pobre, num quarto igual ao vosso, entre risos e lágrimas, entre miséria e amor, entre desespero e a esperança, nasce um ser humano em cujos olhos se acende já a luz do dia seguinte...82
80 Rebello, Luiz Francisco.« O dia seguinte ».In.Todo o teatro I. Lisboa, Imprensa Nacional-Casa sa Moeda, 1999, p.p.87-8881 Rodriguês, Urbano Tavares. no programa do Teatro Moderno de Lisboa referente a este espectáculo, In. Lívio, Tito. Dolores, Carmen.Teatro Moderno de Lisboa (1961 – 1965) um marco na história do teatro português.Editorial Caminho, 2009, p.8182 Rebello, L.F. O dia seguinte.In.: Todo o teatro I.1999, p.88
36
6.3 O dia seguinte e Huis Clos
Depois da estreia da tradução francesa intitulada Le Lendemain, a peça foi
muitas vezes confrontada com um Huis Clos de Jean-Paul Sartre escrita em 1944. E
os críticos começaram logo a falar sobre a influência sartriana e existencialismo na
obra de Luiz Francisco Rebello.
De facto a semelhança de Huis Clos com a problemática de O dia seguinte é
visível. Em Huis Clos aparecem três personagens mortas fechadas num quarto sem
nenhuma possibilidade de escapar, nem do quarto fechado como também das suas
consciências e remorsos. Os seus pecados de deserção de vida, o suicídio e o
assassinato do próprio filho assemelham-se de certo à problemática de O dia
seguinte. Mas, enquanto o fim de Huis Clos não traz nenhumas ideias optimistas, a
ideia de esperança em O dia seguinte é evidente.
As ideias existenciais de Sartre podem-se ver com certeza na obra do
dramaturgo português mas atrevemo-nos constatar que é mais o clima de pós-guerra
que influenciou as peças de Luiz Francisco Rebello do que o próprio Jean-Paul
Sartre.
Luiz Francisco Rebello disse sobre a ligação da sua obra ao Sartre o seguinte:
“É evidente que à sua escrita [a O dia seguinte] não havia sido estranha a leitura de
Huis Clos – mas quantas peças já existiam cuja acção se passa depois de as
personagens transporem os umbrais da morte? (...)”83
Ou seja, podemos justificar que pela força das circunstâncias os dois
dramaturgos foram impressionados pela problemática de uma época igual e por isso
nas suas obras reflectem-se as preocupações parecidas.
6.4 Encenações e críticas
Jorge de Sena divide as proibições de censura em duas partes. Na primeira
secção ficaram retidas as peças que foram consideradas de meterem medo ao público
como por exemplo a peça Jacob e o Anjo de José Régio. Na segunda secção do
“purgatório” foram colocadas peças que tratam, com um mínimo de seriedade, as
83 Rebello, Luiz Francisco. O passado na minha frente.Parceria A.M. Pereira, 2004, p. 120
37
questões da vida quotidiana.84 O destino de O dia seguinte acabou por ser fechado na
gaveta do segundo purgatório.
A estreia no Teatro Nacional de D. Maria II em encenação de Amélia Rey-
Colaço foi anunciada para o dia 19 de Abril de 1952 o que, por causa da censura a
encontrar na peça um espírito “subversivo” não veio a acontecer. Na verdade Luiz
Francisco Rebello desagradou ao estado ao ter apoiado no ano anterior da estreia a
candidatura do professor Ruy Luis Gomes à Presidência da República e defendera
dirigentes e militantes do Movimento nacional Democrático e do Partido
Comunista.85
Entretanto a estreia internacional decorreu em Paris em 1953 no Teatro de la
Huchette e desde então chamava a atenção nos vários países estrangeiros. O dia
seguinte traduzido até hoje em doze línguas estrangeiras teve com certeza das todas
as peças de L.F.Rebello o maior sucesso internacional.86 No Brasil foi a peça
representada por diversos agrupamentos, uma vez sob o título Teriam o direito.
A proibição de ençenação de O dia seguinte levantada em 1957 possibilitou
aos grupos amadores diversos levá-la à cena. Mas era o ano 1963 em que dois
teatros profissionais pela primeira vez apresentaram a peça ao público.
Primeiro aconteceu assim em 1963 no Teatro Nacional D. Maria II sob a
proposição da Amélia Rey-Colaço a quem a censura proibiu a estreia da mesma peça
onze anos antes. A encenação de Pedro Lemos marcou certo sucesso, apesar de que
os críticos reprovassem frequentemente a linguagem ultrapassada.
No jornal República escreveu-se: “ A peça que foi escrita há 14 anos, perdeu
um pouco de actualidade no que diz respeito à linguagem, muito embora o assunto
seja um problema dia a dia.”87
Porém os críticos conseguiram às vezes reconhecer a falha na encenação que
a linguagem da peça transformou numa linguagem desactualizada.
84 Sena, Jorge de. Do teatro em Portugal,Edições 70, 1989, p.19885 Rebello, Luiz Francisco. O passado na minha frente.Parceria A.M. Pereira, 2004, p. 116-11786 Algumas traduções de O dia seguinte : Le Lendemain (tradução francesa, 1952), El dia seguinte (tradução espanhola, 1953 e 1956), Handen voor Morgen (tradução flamenga, 1956), Le jour Suivant (tradução francesa em Canadá, 1967), Il Giorno Dopo (tradução italiana, 1968), Naslednji Dan (tradução eslovena, transmitida pela TV de Ljubljana, 1970), Przebudzenie (tradução polaca, 1974), Das Erwachen (tradução alemã, 1976), Der folgende Tag (tradução alemã, 1978)87 Autor desconhecido.No Nacional - «O dia seguinte» de Luiz Francisco Rebello, e «O sr. Biederman e os incendiários» de Max Frisch.In República, 16 Fevereiro, 1963
38
Na crítica de Diário de Lisboa diz-se: “(...) as palavras são-nos recitadas com
um acento declamatório que valorizam as palavras que nem sempre são os mais
importantes.”88
Parecida é a observação de José Reis que na revista A Voz anota: “Da
encenação de Pedro Lemos não podemos dizer bem. Não serve a peça precisamente,
porque abre um abismo entre a obra e os intérpretes. Abismo estreito, é certo, mas
suficiente para mostrar aquilo que não desejaríamos ver: frieza.”89
Apenas três meses depois da estreia no Teatro Nacional, o Teatro Moderno de
Lisboa tinha incluído a mesma peça no seu repertório. O dia seguinte junto com A
Pátria de Strindberg em tradução de Luiz Franciso Rebello e O professor Taranne de
Adamov faz parte do terceiro espectáculo da temporada 1962-63.90
A encenação de Paulo Renato com Carmen Dolores e Rui de Carvalho a
terem personificado o casal viveu o sucesso maior do que no Teatro Nacional. A
crítica ficou contente sobretudo com a revisão de texto que de repente adquiriu uma
linguagem actual. O paradoxo é, que nesta segunda estreia de O dia seguinte não
fosse alterada nem uma palavra. Era a concepção da encenação que lhe emprestou
um cariz actual.91
No prefácio do livro sobre o Teatro Moderno de Lisboa,92 que foi publicada
em 2009, quer dizer 46 anos depois da primeira encenação de O dia seguinte,
Rebello escreve: “De todas as encenações de O dia seguinte a que assisti, em
Portugal e no estrangeiro, foi esta sem dúvida, a mais perfeita. (...) E Paulo Renato
realizou aqui, bem como no denso acto de Strindberg e na peça de Adamov, um dos
seus melhores trabalhos de encenador.”93
88 Autor desconhecido. « O dia seguinte» e «O sr. Biederman e os Incendários», no Teatro D. Maria II. In.Diário de Lisboa, 16 Fevereiro, 196389 Reis, José. «O dia seguinte e O sr. Biederman e os incendiários. In. A voz, 18 Fevereiro, 196390 Lívio, Tito. Dolores, Carmen. Teatro Moderno de Lisboa (1961-1965), um marco na história do teatro português. Editorial Caminho 2009, p.8091 „Aconteceu que alguns críticos, escrevendo sobre a representação do Teatrto Nacional, acharam “datada” a linguagem da peça. E depois de verem o espectáculo do Teatro Moderno de Lisboa, congratularam-se por eu ter sido sensível a essa observação, retocando o diálogo. Ora bem: o texto dito pelos actores do Teatro Moderno era exactamente o mesmo que esses críticos tinham ouvido três meses antes. Não alterei nem cortei uma palavra, não corrigi uma vírgula. Só que...a encenação era outra,” escreve Rebello nas suas memórias. ( Rebello, Luiz Francisco. O Passado na minha frente. Parceria A. M. Pereira.2004, p 193)92 Além de O dia seguinte, o Teatro Moderno de Lisboa levou à cena deste autor ainda a peça Dente por Dente- uma versão livre da tragicomédia Measure for Measure de Shakespeare.93Rebello, Luiz Francisco. «Prefácio. Era uma vez…»In Lívio, Tito. Dolores, Carmen. Teatro Moderno de Lisboa (1961-1965),um marco na história do teatro português. Editorial Caminho, 2009, p.19
39
É difícil dizer qual das peças de Rebello é a peça melhor. Decerto que as
experiências adquiridas ao longo da escrita dramatúrgica reflectem os progressos tal
na linguagem como na forma das peças seguintes. Mas mesmo assim, O dia seguinte,
conseguiu exprimir com intensidade, num só acto a problemática existencial nem só
de pós-guerra mas também de hoje.
Para concluirmos a análise desta peça podemos citar as palavras de Baptista
Bastos: ”Numerosas e extremamente bem conseguidas são as peças de sua lavra, mas
eu tenho uma especial paixão por uma delas: O dia seguinte, onde tudo é sugerido,
onde tudo é posto em causa, onde a inteligência do espectador é solicitada a intervir
(...).Uma obra-prima da dramaturgia europeia deste século.”94
94 Bastos, Baptista. »Luiz Francisco Rebello: Um homem do nosso tempo» In Programa de Teatro Experimental do Porto – É urgente o amor, Câmara Municipal de Gaia, Círculo de Cultura Teatral, 2004, p.18
40
7 ALGUÉM TERÁ DE MORRER
A peça em três actos foi escrita em 1954 e ao subir à cena do Teatro Nacional
D. Maria II em 1956 assinalou o primeiro grande êxito dramatúrgico do autor.
Alguém terá de morrer abre o conjunto das quatro grandes peças de Luiz Francisco
Rebello e como o próprio dramaturgo alega, a sua carreira de “dramaturgo
profissional” iniciou-se com a subida à cena de Alguém Terá de Morrer.95
No primeiro acto de ritmo um pouco lento chegamos a conhecer os membros
duma família da alta burguesia que por ser rodeada de luxo e da riqueza preocupa-se
apenas com coisas fúteis. Ocupando-se apenas consigo, os familiares não reparam o
que se passa à sua volta. Rui,“o chefe de família” está interessado apenas na sua
empresa, porém, sendo perdulário, está de repente em frente do colapso financeiro.
A sua mulher Marta, ornamento de chás-canastas circulando pelas visitas
convencionais nos ambientes de luxo não omitindo assistir às óperas sem que esteja
verdadeiramente interessada em música, tem a única preocupação com a sua
fisionomia tocada pela idade de cinquenta anos.
A única coisa que os pais valorizam é manutenção de boa aparência duma
família bem ordenada, educada e rica, custe o que custar.
A irmã de Marta, tia Augusta, seca e desgraciosa, esconde o
descontentamento da própria vida e o ódio à sua irmã mais nova e mais bonita em
dedicação à religião.
À família completam dois filhos quase adultos. Ambos, Gabriela e Vítor
Manuel, nunca tinham dificuldades económicas, com facilidade entraram nas
universidades, e a sua vida tem-se desenrolado sem nenhuns obstáculos. Mas, mesmo
assim, ou seja, por isso mesmo, sentem-se infelizes, abandonados pelos pais, que
não se interessam onde passam o tempo nem o que pensam e sentem. Entre os pais e
os seus filhos existe um fosso da incompreensão, com o tempo sempre mais cavado.
Vítor Manuel, um valdevinos para encontrar o sentido da vida até experimenta tomar
droga, enquanto Gabriela apaixonada sofre do amor infeliz.
95 Rebello, Luiz Francisco.« Percurso de uma memória».In Todo o Teatro. Lisboa, Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 1999, p. 674
41
No primeiro acto, cada um dos familiares (além de Vítor Manuel que aparece
só no final do segundo acto) sucessivamente proclama que em vez de suportar as
dificuldades de vida, aceitava a morte – Gabriela a sentir-se abandonada pelo amor,
anuncia que nos dias nos quais “se sente infeliz do que nunca, só lhe apetece
morrer,”96 a tia Augusta assegura que graças a sua fé, “aceita com resignação tudo o
que a vida lhe tem destinado. É por isso que a morte não (a) assuste.”97 A seguir
Marta responde que na sua opinião “devia-se morrer quando a velhice e a decadência
começassem tomar conta de nós.”98 E acrescentemos que é a velhice que Marta não
quer reconhecer no seu corpo. O último que se refere à morte é Rui, que em vez de se
conformar com a perda da sua empresa pensa em dar um tiro na cabeça . 99 Estas
afirmações criam no final do primeiro acto uma atmosfera propícia para intervenção
do destino, ou seja da personagem do Desconhecido.
O Desconhecido – o mensageiro da morte- ao ouvir o chamamento destas
proclamações, veio, como ale próprio tinha anunciado tratar de um caso de vida ou
de morte.100 E logo explica que até o relógio bater meia-noite alguém da família terá
de morrer. Oferece, porém, uma oportunidade excepcional. É a família à qual cabe o
prestígio de designar quem o acompanhará para o sítio donde ninguém regressará.
O segundo acto é designado pelo triste e ridículo espectáculo das
personagens. Os familiares, que no acto anterior fingiram dignidade e respeito uns
aos outros, tiraram agora as máscaras e mostraram as suas atitudes verdadeiras:
egoísmo, ódio mútuo, luta pela sobrevivência e a preferência de imolar qualquer
membro de família para que se salvassem da morte imprevista. “De súbito, todos
possuem um argumento para não morrer e as personagens subjazem em exame de
consciência permanente,” escreve Fernando Mendonça.101
Depois de ninguém deles ter aceitado o sacrifício aparece no final do
segundo acto Vítor Manuel que sem grande hesitação, oferece a sua vida
voluntariamente. Porém, no seu caso não se trata dum sacrifício com objectivo de
96 Rebello, Luiz Francisco. Alguém terá de morrer.Lisboa, SPA, 1982 p.1397 Ibidem, p.2798 Ibidem, p.2799 Ibidem, p.40100 Ibidem,. p.45101 Mendonça, Fernando. Para o estudo do teatro em Portugal. 1946-1966. Assis, Fac. De Filosofia.1971, p. 34
42
salvar o resto da família, pelo contrário, o desprezo e o tédio da vida e do ambiente
familiar conduziu-o a decisão de acabar com a vida, para ele insignificante.
O Desconhecido, apesar de que todo o tempo tenha insistido para que a
família decidisse e escolhesse um deles, recusa de aceitar rigorosamente a oferta do
rapaz a explicar que primeiro é preciso ter-se amado a vida para se ter o direito de
morrer.
O terceiro acto acaba com a badalada da meia-noite e a apuração da família
chocada que quem decidiu aceitar a morte, era Gabriela, desiludida com amor. È de
facto a família egoísta e o amor desgraçado que a matou e ao qual ninguém da
família dava importância. É no primeiro acto, quando Rui diz: “Na idade de Gabriela
os únicos desgostos que se podem ter são de amor...e esses, actualmente, já não
matam ninguém.”102
7.1 O direito à Morte
Se o tema do direito à morte assistia já em O dia seguinte, nesta peça
desenvolve o autor a ideia da morte com relevo ainda maior. Em maior dimensão
desenvolve-se o tema de vida e de morte no terceiro acto.
O Desconhecido: Ainda é cedo para si. E é preciso ter-se amado a vida para se ter o direito de morrer.
Vítor Manuel (amargamente): - Amado a vida! Como se a alguém fosse possível amar esta sucessão de dias que se repetem monotonamente, iguais, todos iguais...103
(...)
Vítor Manuel : Quer então dizer que terei de continuar a representar esta comédia? A fingir, como os outros, e a imitar os seus gestos, as suas palavras sem significação? Mas até quando? Até quando?
O Desconhecido: Até aprender a amar a vida.
Vítor Manuel: Só os inconscientes são capazes de amar a vida.
O Desconhecido: É preciso vivê-la, acreditar nela, encontrar-lhe um sentido... E depois, sim, depois já se pode morrer. Porque a vida e a morte não se opõem: completam-se uma à outra.104
102 Rebello, Luiz Francisco. Alguém terá de morrer.Lisboa, SPA, 1982, p.20103 Ibidem. p.97104 Ibidem. p.101-102
43
A ligação da problemática desta peça com O dia seguinte é óbvia. Não tem
direito de morrer (voluntariamente) quem ainda não chegou a conhecer o sentido de
vida e, principalmente quem se não esforçou de o procurar. Desistir desta maneira
fácil, quer dizer cometer o suicídio, pode ser percebido como a desvalorização de
vida em geral. Por isso a morte é concebida para quem a não merece como uma fuga
de maior cobardia.Quem tem, então o direito de morrer, é segundo Rebello, uma
pessoa pura, que já aprendeu amar a vida e para quem a morte significa a única
solução digna numa situação-limite.
A personagem alegórica da morte, o Desconhecido, acentua em diálogo com
Vítor Manuel:
O Desconhecido: A morte não é um prémio de consolação para os que não sabem viver. Aprenda primeiro amar a vida. Nas horas boas e nas horas más. No sofrimento e na alegria. No desespero e na esperança. E depois sim, terá então o direito de morrer.105
É, portanto, Gabriela que era a mais pura e não discutiu o preço da vida: a
filha naufragada num amor desiludido. Na personagem de Gabriela pode-se ver certa
antecipação da problemática da morte digna causada pelo amor inalcançável que é
muito mais desenvolvida na peça posterior É urgente o amor, precisamente dito na
personagem de Branca.
7.2 A personagem do Desconhecido
Embora a presença alegórica da morte condicione toda a acção da peça, não
se pode falar duma peça simbólica. Ao contrário, esta peça baseia-se nos lastros da
realidade muito mais do que O dia seguinte. A presença da personagem do
Desconhecido apenas fomenta visualizar, revelar e ao mesmo tempo denunciar a
realidade já existente. No programa de Alguém terá de morrer Luiz Francisco
Rebello escreve que seria um equívoco considerar esta peça simbólica. E acrescenta
que “(...) tudo o que se passa e diz ao longo dos seus três actos deve ser tomado em
sentido literal. O próprio ´Desconhecido` é, muito simplesmente e apenas, o
desconhecido. E a história, nem por ser impossível, deixa de ser real. Tenha ou não
105 Ibidem, p. 102
44
tenha acontecido – é ao espectador que pertence concluir – a sua realidade não pode
ser posta em dúvida.106
É a presença da personagem do Desconhecido que mete a família rica
perante uma situação absurda. Os familiares são arrancados num momento da sua
vida quotidina para que escutassem e obedecessem uma personagem absurda e
sobrenatural. Porém, o Desconhecido – o enviado da morte - apesar de que lance
inesperadamente ao meio da família uma questão crucial, não remonta na evolução
da história de maneira nenhuma. O seu papel consiste em observação dum
espectáculo como se fosse um dos espectadores. Entretanto, não omite de repreender
e comentar este espectáculo de maneira educativa. Como se outra vez assistíssemos
a um julgamento de consciências comentado por frases moralizantes do
Desconhecido.
7.3 Composição
À diferença de O dia seguinte, esta peça é do ponto de vista dramático
rigorosamente construída, digamos, até com demasiada perfeição. Contrariamente a
O dia seguinte, o dramaturgo não transgride as regras de três unidades. Durante todo
o tempo segue-se a linha do presente sem aplicação das técnicas modernas, sem se
intercalarem como nas peças anteriores quaisquer elementos perturbadores do
rigorismo dramático. 107
Enquanto em O dia seguinte, Luiz Francisco Rebello intencionou criar uma
estrutura renovadora, em Alguém Terá de morrer nem o tema nem a construção
pretende evocar curiosidades pela inovação de algum novo. E o que mais, o autor
confessa no programa da estreia em 1956 que esta peça não tem nenhuma intenção
de aspirar à originalidade. “O tema que é o do homem bruscamente colocado em face
da morte, serviu já de ponto de partida (e de certo continuará servindo) a um número
infinito de obras. A técnica, de certo modo inspirada na forma de conduzir um
inquérito policial, vem já pelo menos de Pirandello até Priestley.108 É por isso, que há
106 Rebello, Luiz Francisco. Programa de Teatro Nacional – Alguém Terá de Morrer. 1957107 Mendonça, Fernando. Para o estudo do teatro em Portugal.1946-1966. Assis, Fac. De Filosofia, 1971, p.35108 Rebello, Luiz Francisco. Programa de Teatro Nacional – Alguém Terá de Morrer. 1957
45
quem sente na peça de Luiz Francisco Rebello a falta da originalidade e
personalidade.
7.4 Encenações e críticas
A estreia de Alguém terá de morrer em Maio de 1956 no Teatro Nacional D.
Maria II decorreu ainda antes da representação de O dia seguinte, bem que fosse a
peça escrita mais cedo. Por isso, a estreia desta peça alegórica significou importante
revelação do autor, embora o seu nome já fosse conhecido em relação ao Estúdio do
Salitre e à fábula O Mundo começou às 5 e 47.
Amélia Rey – Colaço, cuja encenação planeada de O dia seguinte em 1952
foi reprovada, decidiu não desistir e levar à cena outra peça do mesmo dramaturgo.
Nesta encenação, também ela própria exerceu o papel de actriz a personificar a
personagem de Marta.
Alguém terá de morrer viveu no palco do Teatro Nacional um sucesso
considerável. “ Nenhuma das outras minhas estreias se igualou a esta. Ainda hoje, e
mais de quarenta anos decorreram, não é sem emoção que o recordo. Habitualmente
frio e reservado o público do Nacional acolheu a peça com tal entusiasmo que logo
no final do segundo acto tive de vir ao palco agradecer as suas insistentes palmas. E a
crítica nos dias seguintes (...) não foi menos calorosa,”109 relembra Rebello à
encenação.
A crítica chamou atenção sobretudo ao aspecto moderno e actual da peça
considerando-a um bom caminho para tirar o teatro português do seu confrangedor
estatismo. E além da apreciação da peça a crítica destacou também a encenação bem
realizada.110
No Diário de Lisboa, Urbano Tavares Rodrigues anotou que “pela densidade
psicológica das figuras, pelo rigor na condução de uma acção habilmente preparada e
desenvolvida, com lúcido sentido teatral, pela sobriedade, naturalidade e exactidão
da linguagem, como pela inteligente e cuidada encenação, pela harmoniosa
109 Rebello, Luiz Francisco.« Memória de um percurso.» In Todo o teatro I.Lisboa, Imprensa Nacional-Casa da Moeda ,1999, p.674-675110 Ao lado de Amélia Rey-Colaço a encarnar Marta, na ençenação do Teatro Nacional actuaram: Palmira Bastos (Augusta), Carmen Dolores (Gabriela), Raul de Carvalho (Rui), José de Castro (Vítor Manuel) e Rogério Paulo (O Desconhecido). In. Programa do Teatro Nacional, Alguém Terá de morrer, 1956
46
interpretação, Alguém terá de morrer, conquistou, nesta primeira apresentação, o
êxito que merece.”111
No Diário de notícias escreveu –se que “ Alguém terá de morrer é, no fundo
e na forma, uma peça de hoje. Pelos problemas debatidos e pela sua linguagem
dramática – qualquer deles ajustados às inquietações e ao espírito do nosso
tempo.”112
Além da estreia de sucesso, Alguém terá de morrer, viveu desde então várias
reposições. Entre os principais alinha-se a representação em Março de 1968 pelo
Círculo de Divulgação do Teatro Português, em 1964 pela Companhia de Teatro
Popular, em 1968 na inauguração do teatro Municipal de Luanda113 e em 1997
quarenta anos após a estreia pelo Teatro de Animação de Setúbal.114
111 Rodriguês, Urbano Tavares. Noites de teatro I. Lisboa, Àtica 1961, p. 140112 Autor Desconhecido. « Alguém Terá de Morrer » no Nacional. In Diário de Notícias, 23 Maio, 1956113 Luiz Francisco Rebello assistiu a inauguração do Tetaro Municipal de Luanda, e este ano, assinalou o primeiro contacto do autor com a África114 CET – base. Teatro em Portugal. Disponível online: http://www.fl.ul.pt/CETbase/default.htm Consultado em 20 de Novembro de 2010
47
8 É URGENTE O AMOR
A peça escrita em 1956 intitulava-se originalmente Nó Cego. Mas tanto o
título como também o texto próprio não satisfazia o autor, por isso no ano 1957
sofreu a peça uma refundição textual e recebeu um título novo – É urgente o amor –
o título emprestado do primeiro verso do poema Urgentemente de Eugénio de
Andrade.
Porém, nem a refundição do ano 1957 ganhou a forma final. É urgente o
amor, peça originalmente dividida em duas partes adquiriu no ano 1999 graças à
encenação de Pedro Wilson uma versão definitiva de um acto só. Apesar de o
conteúdo da peça ter-se mantido igual, a estrutura mudou o seu aspecto por
completo, e recebeu assim uma modalidade não só moderna como também uma
unidade que proporciona a percepção da peça com maior densidade.
Branca, uma jovem de profissão prostituta está envolvida na relação com dois
homens diferentes. Enquanto sustentada por Jorge, um homem casado, que lhe dava
dinheiro para que ela não estivesse mais obrigada a vender o amor nos bares, Branca
está inteiramente apaixonada por Alberto, um jovem rapaz, que nunca tinha tomado a
sua relação a sério. Ao passo que, Branca sonha com a vida conjunta com Alberto e
oferece-lhe o seu amor sem-limites, ele considera a relação apenas como uma
desenvoltura aproveitando a comodidade de raros encontros na casa de Branca
alugada e equipada pelo dinheiro de Jorge.
Junto com Branca, vive nesta casa ainda a mãe dela e a sua amiga Madalena.
A personagem da Mãe pode ser considerada um arquétipo da brutalidade e de avidez.
Foi a Mãe de Branca que de facto forçou a sua filha à relação com Jorge, um homem
muito mais velho aproveitando assim a boa situação financeira.
Branca sofre por ser obrigada a esconder a relação com Alberto perante
Jorge, e, não aguentando mentir mais, provoca uma situação na qual todos se
encontram e são atirados em frente do problema. Enquanto Jorge vai-se embora
acusando Branca do desrespeito e acabando assim a relação e a sustentação
financeira de imediato, Alberto recusa de começar uma relação séria tendo medo das
complicações económicas e da responsabilidade que ia nascer da vida conjunta.
Quando Madalena, a boa amiga de Branca delata que a Mãe de Branca tinha
às escondidas dela uma relação duvidosa com o jovem Alberto, Branca sente-se ficar
48
abandonada e traída por todas as pessoas mais próximas. O amor que agora parece
nunca ter existido na sua vida e o conhecimento da cobardia e hipocrisia dos seus
amigos, familiares e amantes levam à decisão de se suicidar. No dia seguinte, o corpo
morto de Branca é encontrado em baixo duma ponte de altura de 30 metros.
8.1 Primeira versão
Na primeira versão são na parte inicial colocadas as premissas e em frente de
espectador é posta toda a história com fluxo sucessivo. A segunda parte está dividida
em dois tempos. No decorrer do primeiro tempo são todas as personagens
sucessivamente submetidas a um inquérito policial que tenta esclarecer a morte de
Branca. Para que as personagens evitassem o compromisso em relação a morte de
Branca, depõem mentirosamente sob as ordens de Jorge. Em virtude dos
depoimentos parecidos nos quais todos numa só voz rejeitavam a possibilidade de
um suicídio como também de um assassínio, a morte de Branca é considerada uma
„morte por acidente.“
Como é natural em Luiz Francisco Rebello, o segundo tempo da segunda
parte leva o espectador para o ambiente irreal ou seja para um tribunal das
consciências, no qual o juiz é desta vez a personagem de Branca. Apesar de que, a
morte de Branca seja considerada um acidente infeliz, por força dos remorsos das
personagens a morte dela tornar-se-á um homicídio.
Foi nomeadamente o tempo final, a acção do tribunal que a uns críticos
desagradava, os outros viam nele a melhor parte da peça. A discussão concentrava-
se à volta da necessidade do último tempo, o qual o autor infligiu num ambiente
sobrenatural. Na nossa opinião, podemos dizer que as discórdias sobre esta primeira
versão foram causadas sobretudo pela concepção estrutural da peça que
impressionava apesar de que fosse representada sucessivamente, certa sensação da
desunidade.
49
8.2 Segunda versão
A reconstrução das sequências de É urgente o amor ocorreu no ano 1999. O
último tempo, na qual as personagens dialogavam com a sua consciência tornou-se o
tempo inicial e a base principal da versão nova. A peça retrata agora um tribunal de
consciências ou seja um mundo irreal e absurdo intercalado pelas acções do primeiro
acto original e pelo interrogatório policial.
Logo no início surge Branca já morta a questionar todas as personagens,
como se todos estivessem num sonho igual. Em oposição à primeira versão,
assistimos ao interrogatório policial ainda antes de chegarmos a conhecer a verdade
de toda a história. Desta vez o interrogatório é transformado em monólogos, por isso
não há presente nenhuma personagem de Chefe que figurava na primeira versão. No
entanto, para criar a impressão do diálogo, no fundo (ouve-se) o tique-taque de uma
máquina de escrever, como se as palavras (das personagens) estivessem a ser
registadas, escreve Rebello.115
Deste modo a peça transforma-se da dramática pura em dramática épica tendo
o carácter narrativo. E à semelhança de O dia seguinte a peça aproveita a técnica de
„flash-back.“ Este facto possibilita revelar as condutas e atitudes das personagens
numa justaposição – as atitudes na realidade, no decorrer do inquérito policial e no
tribunal das consciências. São as atitudes e comportamentos falsos e egoístas que
esclarecem as razões e as consequências da morte de Branca.
„Com estas alterações a peça ganhou, ao que julgo, uma unidade e uma
densidade que a continuidade de uma acção descontínua reforçou – e, como no
programa do espectáculo tive ocasião de dizer – se a tivesse escrito hoje, seria essa a
forma que lhe daria – desejo que assim passe a ser representada,“ acha Luiz
Francisco Rebello sobre a versão nova de É urgente o amor.116
115 Rebello, Luiz Francisco. « É urgente o amor » In Todo o Teatro II. Lisboa, Imprensa Nacional-Casa sa Moeda, 2006, p.129116 Rebello, Luiz Francisco.« Post-scriptum ».In. Todo o teatro II., Lisboa, Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 2006, p. 345
50
8.3 Verdade e Mentira
Caiu ou não caiu Branca voluntariamente da ponte? Ou será que alguém a
empurrou? Cada uma das quatro personagens – Mãe, Alberto, Jorge, Madalena –
não quer admitir outra possibilidade do que se tratava dum acidente infeliz. Mas a
força dos remorsos não se pode abafar, e é a personagem de Madalena que no final
da peça profere o veredicto temeroso.
Branca: Acabem com isso! Não posso ouvi-los mais! Hão-de ser os mesmos até ao fim – mesquinhos, egoístas, sórdidos…E foi essa a razão por que os deixei. Porque me faziam nojo. Mas agora estou longe de tudo isso! Livre de tudo isso! Livre. E para sempre! Para sempre!
Madalena: Branca!
Branca: Que mais queres ainda?
Madalena: Uma pergunta só…Foi verdade que te atiraram da ponte abaixo?
Branca: Pergunta-lhes a eles…Eles é que te podem responder…
Madalena: Mas então…Então não caíste por teres perdido o equilíbrio?
Branca: Foi…Se estar vivo é manter o equilíbrio entre a vida e a morte, eu perdi esse equilíbrio naquela tarde…Mas é preciso que tu saibas, é preciso que todas saibam uma coisa. Foi um corpo já sem vida que caiu da ponte. Não foi nesse momento que morri. Foi antes…Quando todos me abandonaram…Quando pedi um pouco de amor, e ninguém soube compreender-me…Um pouco de amor para que a vida valesse pena... Um pouco de amor para vencer a morte…
Madalena: Afinal sempre era verdade…Atiraram-na da ponte abaixo…E fomos nós…Fomos nós que a empurrámos. Fomos nós!...Fomos nós!117
É o tribunal das consciências, e não o tribunal oficial que descerra o único
veredicto verdadeiro. São os remorsos e as consciências que têm maior peso do que
qualquer depoimento oficial. „Os tribunais julgam factos, o que realmente se prova
ter acontecido e não aquela verdade, às vezes diferente, que anda vestida dessa
aparência. Mas há outro tribunal – o da consciência – onde essa verdade se depura e
esclarece,“escreve António Pedro.118
117 Rebello, Luiz Francisco. « É urgente o amor » In Todo o Teatro II. Lisboa, Imprensa Nacional-Casa sa Moeda, 2006, p. 170 - 171118 Pedro, António. « É urgente o amor, no TEP » In Programa do Teatro Experimental do Porto – É urgente o amor. Câmara Municipal de Gaia, Círculo de Cultura Teatral, 2004, p.10
51
Da maneira semelhante como Gabriela na peça Alguém terá de morrer
também Branca decide fazer um protesto contra o mundo áspero através da própria
morte. O desequilíbrio que ela sente é causado não só pelo desinteresse dos
familiares como era no caso de Gabriela, porém, estamos perante um abuso e
aproveitamento insensível da personalidade de Branca.
Alberto abusou da lealdade e do amor inteiro de Branca por ter mentido
durante todo o tempo da sua relação. Como se para ele Branca fosse apenas um
objecto de divertimento que era melhor no momento do perigo abandonar.
Abandona-a sem sentir nenhuma responsabilidade pelos sentimentos que nela tinha
destruído. E afinal para que salvasse a sua aparência séria, Alberto tenta convencer
Jorge de não ser ele o amante de Branca, e sim, da sua amiga Madalena. Verifica
ainda a sua posição não comprometida em frente do inquiridor quando diz:
Alberto: nenhum de nós tomou isso [a relação] a sério. Nem eu, nem ela. (…) O entusiasmo dos primeiros tempos arrefeceu..Estas aventuras acabam todas mais ou menos assim…Acabam da mesma maneira como começas…sem explicação, sem a gente saber como.119
Outra traição e abuso de Branca foram cometidos pela própria Mãe dela.A
Mãe que perante a polícia fingia o amor materno, sentia na verdade inveja e ciúmes
da sua filha jovem e bonita. Vivia do dinheiro dela, apesar de que soubesse que
Branca não queria ser mais ligada na relação com o homem casado. Na verdade foi a
Mãe que vendeu a sua filha ao homem rico para que recebesse meios para viver. E, o
que mais, para mascarar a sua idade e velhice tentava agradar o jovem Alberto.
Foi sobretudo por revelação destas mentiras chocantes que Branca deixou de
acreditar na vida, na verdade e no amor. Numa das últimas conversas com Alberto
Branca diz:
Branca: Acreditei que o amor pudesse ser uma coisa limpa e decente…precisava tanto que fosse! Mas é mentira! O amor não existe! No mundo em que tu e eu vivemos, não há lugar para o amor!120
119 Rebello, Luiz Francisco. « É urgente o amor » In Todo o Teatro II. Lisboa, Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 2006, p. 170 - 171120 Ibidem, p. 161
52
Mas mesmo assim, deixando de acreditar na existência do amor Branca
rejeita ter uma relação onde em vez do amor existia apenas respeito e gratidão. Ao
falar com Jorge, Branca lhe explica que ela não é um objecto que se pode comprar. A
culpa de Jorge consiste então em convicção egoísta que mediante o dinheiro será
possível realizar qualquer dos seus caprichos (sem respeitar a sua mulher Margarida.)
Branca: Fizeste por mim o que nem todos seriam capazes de fazer. Mas a gratidão não chega para encher uma vida! (...) Tudo o que sei é que sem amor a vida não vale a pena…121
Quanto a Madalena, digamos que a sua culpa tem as consequências menores.
Madalena, sente-se na verdade amiga íntima de Branca, só que não é capaz de
compreender os desejos e as ideias dela. Na fase final, também a Madalena foge à
cobardia quando decide não depor verdades e dizer mentiras no interrogatório
policial.
Em suma, todas estas personagens criaram a atmosfera, na qual Branca
acabou por ter impressão que o amor à volta dela nunca pode existir. A única saída
digna dum mundo vil e egoísta torna-se para ela a morte. É nesta peça, onde Rebello
verifica a sua visão do direito à morte que reprova no caso de Ele e Ela em O dia
seguinte, não aceita no caso de Vítor Manuel em Alguém terá de morrer, porém,
justifica-o no caso de Branca.
8.4 Encenações e críticas
É urgente o amor foi representada pela primeira vez pelo Teatro
Experimental do Porto, em 25 de Fevreiro de 1958 no Teatro S. João sob a direcção
de António Pedro.122
Como já foi dito, esta peça de Luiz Francisco Rebello causou no meio de
críticos certamente as maiores contradições. O desacordo criou notavelmente o
último tempo. Por exemplo Urbano Tavares Rodrigues chamou o último tempo um
postfácio desnecessário e preferia por isso evitar esta pura e simples excrescência
121 Ibidem, p. 150122 A distribuição dos papéis principais na estreia de É urgente o amor : Dalila Rocha ( Branca), Cândida Maria (Mãe), Fernanda Gonçalves (Madalena), Baptista Fernandes (Alberto) e João Guedes (Jorge)
53
acrescentando que no terceiro tempo Luiz Francisco Rebello „cedeu (…) à facilidade
de uma retórica espectacular, rompendo a unidade, a simplicidade do tema, sem nos
dizer afinal mais nada que importasse."123
E contrariamente, Carlos Porto e Jorge de Sena consideraram o terceiro
tempo como „salvador“ duma peça de intriga banal.
Corlos Porto anota que „só no terceiro tempo a problemática da peça se
agudiza e o jogo teatral de cada personagem a sós com os fantasmas da sua
consciência, se singulariza, e adquire uma riqueza dramática que até aí não tivera ou
que até aí tivera transmitida pelo »estilo» que confere à peça de Rebello um lugar à
parte no teatro português.“124 E, a seguir, Jorge de Sena pensa que „a história da
rapariga(…) não ultrapassa o fait-divers cruamente revelado, com arte e coragem e
dissolve-se no artifício de todas os comparsas e mais alguns discutirem com a
imagem da morte que é só a imposição de um terceiro acto por parte do
dramaturgo.“125
Mas, além das suas reservas contra a estrutura da peça, Jorge de Sena
acentua „que se trata da história de um ser humano acossado, como todos nós, um ser
humano que, como nenhum de nós, tem a coragem de se revoltar contra todos os
poderes que não sejam os do Amor.“ E acrescenta que „mesmo assim a peça é
optimista e positiva, na medida em que dá a cada um de nós a consciência da nossa
incompreensão e do nosso desamor, na medida em que, pondo um problema, o
problema angustiante de uma geração que quer antes de tudo sobreviver, dá a cada
um de nós a possibilidade de escolher o único caminho que leva a todas as
dismistificações: »sem o amor nada vale a pena» E que é urgente o amor,
exaustivamente, desesperadamente urgente.“126
Entre as várias reposições convinha destacar a encenação do Teatro Popular
de Lisboa em 1968, a encenção do Teatro de Animação de Setúbal em 1998 e
sobretudo a montagem da peça pelo Ar Cénico em 1999, cujo encenador Pedro
123 Rodriguês, Tavares Urbano. « É urgente o amor de Luiz Francisco Rebello». In Noites do teatro, Vol.2. Lisboa, Ática, 1961, p.12124 Porto, Carlos. « É urgente o amor de Luiz Francisco Rebello» In Em busca do teatro perdido1958-1971, Lisboa, Plátano,1973, p.41125 Sena, Jorge de. « É urgente o amor de Luiz Francisco Rebello » In Do teatro em Portugal.Lisboa, Edições 70,1989, p.189126 Ibidem, p.189
54
Wilson ficou responsável pela versão nova e actual da peça. „A solução encontrada
foi brilhante e o texto adquiriu uma nova frescura“escreve Sebastianda Fadda.127
E, na ocasião da „Exposição Retrospectiva da Obra de L.F.Rebello“ o Teatro
Experimetal do Porto levou à cena pela segunda vez a peça É urgente o amor, desta
vez da nova versão sob direcção de Norberto Barroca.128
127 Fadda, Sebastiana. «A dramaturgia de Luiz Francisco Rebello». In Estudos Italianos em Portuagl. Lisboa, Instituto Italiano de Culturas em Portugal, Nova serie, nº 1, 2006,p.15 128 CET – base. Teatro em Portugal. Disponível online: http://www.fl.ul.pt/CETbase/default.htm Consultado em 20 de Novembro de 2010
55
9 OS PÁSSAROS DE ASAS CORTADAS
Escrita em 1958, Os Pássaros de asas cortadas a peça em dois actos e um
epílogo encadeia-se ao tema social presente já em Alguém terá de morrer. Da
mesma maneira, como na peça anterior em Os pássaros de asas cortadas é nos
apresentada uma família burguesa a oscilar num mundo de luxo e divertimentos
convencionais sem os familiares darem importância à vida pessoal de cada um.
O primeiro acto delineia as personagens como também o ambiente desta
sociedade. Na casa da família rica encontram-se numa tarde os amigos de dois
irmãos – de Rodrigo e de Elsa. A mocidade a não ter outras preocupações na vida,
passa o tempo a jogar poker, ouvir música e a falar sobre automóveis caros e
entretimentos nos bares nocturnos sendo todos estes divertimentos sustentados pelo
dinheiro dos pais deles. Esta vida aborrecida a quem chateia de mais é a Elsa.
Elsa: (...) É esse afinal o problema de todos nós: passar o tempo, inventar uma maneira qualquer de passar o tempo...ah, é difícil viver...”129
Logo, no primeiro acto encontramo-nos ainda com Eduardo, um homem
casado que às ocultas da sua mulher é amante da Elsa. Na cena aparecem ainda os
pais de Rodrigo e de Elsa. Entretanto a mãe Cecília voltando do cabeleireiro
precipita-se a um jantar da sua amiga preocupando-se com o vestido ainda não
entregue na sua casa, o pai Frederico, por sua vez, explica que devido a muito
trabalho não será capaz de a acompanhar, para que prontamente depois da saída de
Cecília ligasse à sua amante e combinasse um encontro com ela.
O dia quotidiano desta família está interrompido no final do primeiro acto,
quando Rodrigo assustado anuncia que mesmo agora acabou por atropelar e matar
uma mulher. E a partir desta situação-limite todos os familiares deixam cair as
máscaras para mostrarem as suas atitudes verdadeiras.
Rodrigo, um rapaz frívolo, afigurando-se como um jovem corajoso e
desafogado, apanha no momento do acidente pavor horrível e foge covardemente às
suas responsabilidades deixando o corpo da mulher morta na estrada.
Eduardo que guiava o carro com Elsa sentada ao seu lado seguindo o carro
de Rodrigo não parou e distancionou-se do sítio também. Por seu turno, Eduardo
129 Rebello, Luiz Francisco. Os Pássaros de Asas Cortadas. Cascais, Câmara Municipal 1999, p.33
56
receava a revelação de que existia uma relação entre ele e Elsa no caso de tentarem
chamar a polícia ou os médicos.
A Frederico e a Cecília a única preocupação que lhes incomoda é o estrago da
boa aparência da família. Por isso desviaram-se às mentiras negando o acidente do
seu filho ao afirmar (no caso de ser necessário) que Rodrigo não saiu essa noite da
casa. Já que na opinião do pai, “uma mentira que não se pode refutar passa
automaticamente a ser uma verdade. E só depende de nós que ninguém possa pô-la
em dúvida.”130
A única personagem, que não admite aceitar as mentiras e irresponsabilidades
da sua família, é Elsa, a heroína desta peça. O fosso entre Elsa – a incarnação da
pureza bravia, consciência desperta e despertadora- como esta personagem
designou Urbano Tavares Rodrigués- e os seus pais amplificou-se depois deste
acontecimento ainda mais.131 Em consequência do acidente desastroso surgiu na cena
o conflito das gerações e o desentendimento de pais e filhos.
O epílogo transporta-nos ao sítio onde vive o marido pobre da mulher
atropelada. Elsa não apaziguada com o desinteresse egoísta da sua família ao visitar
este operário desempregado chega a conhecer que o valor de dinheiro supera o valor
de vida em qualquer espécie de sociedade. Não é a morte da mulher que aflige o
marido, e sim, é a falta do ordenado dela.
Elsa: Suponha que eu lhe dizia quem foi..(quem matou a sua mulher)O que é que o senhor fazia?
Manuel Jerónimo: Eu contava-lhe a minha triste situação...A falta que a mulher me faz...Era ela quem ganhava para a casa, não é verdade? (...)
Elsa: E não apresentava queixa? Não o entregava à justiça?
Manuel Jerónimo: Entregá-lo à justiça? Para que? Que ganhava eu com isso? O que e que eu queria era que ele me ajudasse, que me desse algum dinheiro..
Elsa: Mas ele matou a sua mulher!
Manuel Jerónimo: Agora já não lhe pode dar outra vez a vida...É mim é que ainda pode valer!132
130 Ibidem p.95131 Rodriguês, Urbano Tavares. « Os pássaros de asas cortadas. A avidez de autenticidade expressa por Luiz Francisco rebello.» In Noites do teatro, vol.2., Lisboa, Ática, 1961 p.152132 Rebello, Luiz Francisco. Os Pássaros de Asas Cortadas. Cascais, Câmara Municipal 1999, p.122-123
57
Depois desta conversa chocante, Elsa apercebe-se que já não quer continuar
mais a viver na sociedade, na qual todos se comprazem em serem surdos e egoístas.
Com a expressão de um “Não” no final da peça, recusa a voltar ao ambiente
sufocante.
9.1 Medo da responsabilidade
À diferença das peças anteriores a morte nesta peça tem uma posição
singular, pois, não está ligada directamente ou seja pessoalmente com nenhuma das
personagens principais. Trata-se duma morte alheia e estranha. Porém, de modo
igual também em Os pássaros de asas cortadas os comparsas tentam enganá-la, fugi-
la e enterrá-la no esquecimento. Rodrigo foge da morte fisicamente por ter medo vê-
la perante de si:
Rodrigo:Era preciso aumentar a distância entre mim e aquela mulher morta, estendida no chão, numa curva da estrada...(...) Tive medo, pai...Um, medo horroroso...Não me lembrei de mais nada senão fugir...”133
Frederico, por sua vez, pretende de esconder a morte excluindo-a da
consciência para que se tornasse inexistente. É o seu carácter cruel que é capaz
manipular com a consciência.
Frederico: A consciência (...) é o sentido exacto daquilo que num dado momento mais nos convém,”134
Rodrigo, ao contrário do seu pai, bem sabe que não será capaz de excluir a
consciência, mesmo que o inteiramente desejasse.
Rodrigo: Seria bom se pudéssemos esquecer...Apagar da nossa memória o que não podemos riscar da nossa vida...Acordar deste pesadelo...135
133 Ibidem, p.70134 Ibidem, p.86135 Ibidem, p.95
58
O medo da responsabilidade e o desejo de escapar da verdade caracterizam
outra vez a ausência de atitudes morais e da sociedade corrupta que o dramaturgo
submete a crítica em todas as suas peças.
9.2 Liberdade inútil
Apesar de que a intriga da peça tem na sua base a morte duma mulher, desta
vez a questão da morte não é o fenómeno principal. A morte é neste caso
notavelmente um elemento de lançamento que proporciona discutir a problemática-
chave, quer dizer a problemática de incompreensão entre as duas gerações e a
questão de “liberdade inútil.”
À semelhança de Vítor Manuel e de Gabriela em Alguém terá de morrer, os
dois jovens irmãos, Ricardo e Elsa vivem numa sociedade, na qual graças à boa
situação financeira dos pais, não são obrigados a fazer completamente nada. Não têm
necessidade preocupar-se com dificuldades da vida. Estudaram nas universidades
mais caras nos países estrangeiros e na sua vida futura nunca terão problemas
existenciais.
Mas mesmo por isso, falta-lhes alguma coisa. Enquanto Rodrigo procura a
felicidade nos jogos de poker, no álcool e nos carros da alta velocidade, Elsa dedica
o seu amor ao homem casado sem que ninguém repare nisso.
A liberdade desta juventude não tem limites, contudo, ninguém deles é capaz
aproveitá-la para uma boa razão de viver. Elsa e Rodrigo não são capazes de gerir a
liberdade a um destino útil. E quem tem culpa desta liberdade inútil, na vida ociosa e
aborrecida desta mocidade são segundo as palavras de Elsa os próprios pais. Em vez
de educarem os seus filhos pelo amor e pelo próprio empenho, substituíram os
sentimentos necessários pelas coisas materiais. Neste conflito opõem-se uma
juventude queimada e uma maturidade vazia.136 Por isso, conforme a Elsa, a sua
geração neste tipo de ambiente social é condenada a uma liberdade inútil. Elsa sente-
se como um pássaro num ar livre, porém, por causa das asas que lhe cortaram, sem
capacidade de voar ou seja sem capacidade de dar sentido à sua vida.
Cecília: Nunca-lhes faltou coisa nenhuma.
136 Fadda, Sebastiana. «A dramaturgia de Luiz Francisco Rebello» In Estudos Italianos em Portugal. Lisboa, Instituto Italiano de Cultura em Portugal, Nova serie, nº 1, 2006,p.15.
59
Elsa: Tens razão, mãe. Nunca nos faltou coisa nenhuma – a não ser o essencial ...
Frederico: E que chamas –tu »o essencial»? Vá, explica-nos já que sabes tudo...
Elsa: É difícil...Sente-se mas não se explica. Um motivo para viver. Qualquer coisa em que pudéssemos acreditar, qualquer coisa que viesse dar um sentido à nossa vida (...)
Frederico: Consentimos numa liberdade que eles não souberam usar como deviam.
Elsa: Não pai. A vossa culpa foi outra. Não está nessa liberdade que nos deram. Está em terem-na tornando inútil-em nos atirarem para um mundo vazio e fechado à esperança, onde é proibido sonhar. Se é uma crueldade encerrar numa gaiola um pássaro que nasceu para viver ao ar livre e livremente soltar as asas no horizonte, é uma crueldade maior ainda deixaram-no em liberdade depois lhe cortarem as asas. Obrigá-lo a rastejar o chão, a arrastar-se como um verme, e torná-lo incapaz de voar no espaço infinito que se abre à sua volta. Sim, é pior do que prendê-lo. E foi isso o que fizeram de nós – pássaros de asas cortadas, pobres pássaros a quem cortaram o voo. (...)Condenaram-nos a uma liberdade inútil! E é disso que os acuso.137
9.3 Composição
De todas as peças aqui analisadas, só em Os Pássaros de asas cortadas, o
autor não transgrediu as fronteiras da realidade. Ao decorrer de toda a peça, cujas
duas partes preenchem as três unidades classicistas, não aparece nenhum elemento
absurdo ou irreal. Os Pássaros de Asas cortadas pode ser a única peça de Luiz
Francisco Rebello considerada como naturalista e segundo as palavras dalguns
críticos estruturalmente enfraquecida por enquadramento do epílogo que fica fora da
sequência dramática. “O epílogo serve apenas como lente de aumento para o
problema da consciência e da ilusão. Tudo o que lá está poderia ter sido posto com
vantagem dentro do segundo acto. Assim, resta, não como um epílogo da acção, mas
como um comentário, um posfácio da acção, sem ampliar os efeitos,” escreve
Fernando Mendonça.138
Mas na verdade, o epílogo completa toda a problemática da peça. A
descoberta de Elsa, que o culto de dinheiro está permeado através de toda a
sociedade diversa, seja rica, seja empobrecida, é justamente verificada pelo epílogo.
137 Rebello, Luiz Francisco. Os Pássaros de Asas Cortadas. Cascais, Câmara Municipal 1999,p. 107138 Mendonca, Fernando.Para o estudo do teatro português.1946- 1966. Assis, Fac. de Asis, 1971,p.39
60
“ Os Pássaros de Asas Cortadas não pretendiam ser uma peça »agradável»
nem uma peça »bem feita». O que através dela se tinha em vista era denunciar a
vileza e hipocrisia de uma determinada orgânica social que tanto contamina os
poderosos como os humildes, os que detêm na suas mãos comprometidas as
alavancas do mando como os que na escala social ocupam o mais ínfimo lugar. Era
isto, que a muitos, por óbvias razões, não terá convindo entender, que o epílogo
queria significar: o dinheiro com que aqueles compram estes, julgando aquietar as
respectivas consciências, é afinal o mesmo para uns e para outros,” diz o dramaturgo
sobre esta peça.139
9.4 Encenações e críticas
Como era nessa época de costume, os directores das companhias pediam aos
autores nacionais que escrevessem peças para os respectivos elencos. L. F. Rebello
recebeu esta proposta de Francisco Ribeiro que lhe tinha pedido escrever uma peça
para a Companhia do Teatro Nacional Popular.140
A estreia em Fevereiro de 1959 no teatro da Trindade registou acolhimento
entusiástico pelo público, entre os críticos gerou reacções contraditórias sobretudo
quanto ao epílogo final sobre que já atrás referimos.141
Jorge de Sena que chamou a peça anterior de Rebello Alguém terá de morrer
uma »fait-divers» considera ser Os Pássaros de asas cortadas uma peça melhor:
“Não será ainda uma peça extraordinária: mas é, sem dúvida, uma peça
excelentemente construída, brilhantemente dialogada e profundamente honesta. (...)
Pela primeira vez numa peça extensa Rebello se eleva acima do fait-divers e do
comentário paralelo e moralizador, para obter uma verdadeira unidade dramática.“142
Três anos depois da estreia, em 1962, Os Pássaros de asas cortadas foram
adaptados num filme que junto com os Anos Verdes de Paulo Rocha e Dom Roberto
de Ernesto de Sousa, marcou o arranco da época conhecida como «o novo cinema
139 Rebello, Luiz Francisco.« A memória de um percurso» In Todo o teatro I., Lisboa, Imprensa Nacional-Casa da Moeda. 1999, p.679140 Rebello, Luiz Francisco. « Nota prévia do autor.» In Os pássaros de Asas Cortadas. Cascais, Câmara Municipal, 1999, p.7141 Entre a companhia de jovens actores, tem de ser destacado a apresentação de Eunic Muñoz (Elsa), Fernanda de Sousa (Cecília), Rui de Carvalho (Eduardo), Canto e Castro (Rodrigo) e Costa Ferreira (Frederico).142 Sena, Jorge de. « Os pássaros de asas cortadas de Luiz Francisco Rebello.» Do teatro em Portugal, 1989, Lisboa, Edições 70 p.228-229
61
português». O filme foi realizado por Artur Ramos com diálogos de Luís de Sttau
Monteiro e Alexandre O´Neill.143
Além dos grupos amadores, convém destacar a reposição da peça pelo Teatro
de Animação de Setúbal em 1996.144
10 CONDENADOS À VIDA
A peça Condenados à vida escrita em 1963 pode ser considerada um ponto de
intersecção de toda a problemática revelada por partes nas peças anteriores. A visão
da sociedade, da vida, da morte, da justiça e do amor amplificar-se-á justamente
143 Pina, Luis de. História do cinema português. Publicações-Europa-América.p.149144 CET-base.Teatro em Portugal. Disponível online: http://www.fl.ul.pt/CETbase/default.htm . Consultado em 25 de Novembro 2010
62
nesta “sequência dramática” como a o autor qualificou. Aliás, o próprio título já traz
consigo certa indicação da preocupação e do interesse do autor.
A “sequência dramática” está composta por um prólogo, duas partes e um
epílogo, sendo possível designar o prólogo e o epílogo uma dialéctica metafísico-
imaginativa e as duas partes incorporados no meio deles uma dialéctica existencial-
realista.145
10.1 Prólogo: dialéctica metafísica
No Prólogo, num sítio irreal são nos apresentados indivíduos ainda não
nascidos colocados numa estranha sala de espera tendo uma chapa de número sobre
si. Todos esperam pelo seu voo que os leva para a vida – ainda completamente
desconhecida e alheia. Por isso, o diálogo entre estas personagens decorre de modo
abstracto, incapaz de revelar outras coisas do que a incerteza e o medo sobre o futuro
inevitável. O futuro, ou seja a vida faz-lhes a maior preocupação, pois, ninguém
deles tem capacidade de “definir e guiar a linha do seu voo.” Cada um deles está
num momento chamado para embarcar ao bordo sem possibilidade de recusar. Todos
são, portanto, obrigados a este voo, precisamente dito, condenados à vida. A sala de
espera é assim o símbolo da vida pré-existencial deslocada para um espaço
sobrenatural.
Nesse esboço da existência humana encontram-se duas personagens
designadas pelo autor como O que será Afonso e O que será Luciana. Estas duas
personagens que simpatizam uma com a outra prometem procurar-se na vida real
depois de atravessarem as fronteiras dessa pre-realidade. Como se verá adiante, nas
duas partes dramáticas, o voo trouxe cada uma para um sítio e destino diferente, de
modo que apesar das simpatias prévias, estes dois não são condenados a uma vida
conjunta. O autor traceja nesta peça a ideia que o destino do homem é duma parte
posto antecipadamente, porque o amor que se funda numa realidade anterior fica no
entanto a depender do jogo enigmático da sorte.146
Mas apesar do jogo do destino, Luiz Francisco Rebello não aceita uma
predestinação total, porém, é sempre o homem que sendo condenado à vida dispõe de
145 Quadros, António. « Do drama social ao drama metafísico». In Crítica e verdade. Introdução à actual literatura portuguesa. Lisboa, Clássica, 1964, p.229146 Ibidem,.p.235
63
plena liberdade para gerar e descobrir a sua vida. A personagem O que será Luciana
diz:
O que será Luciana: E que já nos obrigam a viver, deixem-nos ao menos a emoção de descobrir a vida, de sentir que ela nasce dia a dia de nós próprios, dos nossos sonhos...(...)”147
E, são só os homens que mesmo que nascessem sem terem escolhido as
condições, tomam toda a responsabilidade pelo seu destino.“(...) o nosso destino
ainda não está escrito. Somos nós que o havemos de escrever (...),” diz uma das
personagens ainda não nascida.148
E quando a personagem de Mulher pergunta a O que será Afonso como pode
ficar aí sentado, alheio a tudo o que se passa à sua volta, como se não lhe dissesse
respeito, ale responde:
O que será Afonso: Não é a mim que diz respeito...É a outro que eu ainda não sou. Nós somos, por enquanto, apenas uma hipótese...149
A ideia que o homem primeiro existe e pelo próprio empenho dá a sua vida
certo sentido, corresponde à filosofia sartriana que divide a vida humana entre a
existência e essência: ”Que significa aqui o fato de a existência preceder a essência?
Significa que o homem primeiramente existe, se descobre, surge no mundo, e que só
depois se define.O homem, tal como o concebe o existencialista, se não é definível, é
porque primeiramente não é nada. Só depois será alguma coisa e tal como a si
próprio se fizer. Assim, não há natureza, visto que não há Deus para a conceber.“150
A existência como a forma de vida apenas física, precede, então a essência,
quer dizer, precede aos valores e atitudes às quais o homem ao longo da vida se
apropria. Ou seja, o ser humano é condenado à sua existência, porém depende de
cada um do que se consistirá a sua essência.
147 Rebello, Luiz Francisco. «Condenádos à vida» In Todo o teatro I. Lisboa, Imprensa Nacional-Casa da Moeda 1999, p.148 Ibidem, p. 311149 Ibidem, p.311150 Sartre, Jean-Paul. O existencialismo é um humanismo. Disponível online: http://www.oocities.com/sociedadecultura2/existencialismohumanismosartre.html . Consultado em 20 de Novembro 2010
64
10.2 Duas partes dramáticas: dialéctica existencial
A exigência de cena múltipla possibilita a apresentação de duas comunidades
sociais diferentes numa justaposição. A cena dividida em vários sectores e a acção
que passa rapidamente dum sector para o outro, como se fosse uma montagem
cinematográfica, possibilita a contemplação de duas famílias diferentes.
No primeiro caso, trata-se de Afonso, um jornalista convicto sobre o poder
de justiça, combatendo com a censura e tendo ambições criativas que se reflectem no
seu desejo de escrever um romance. Porém, a sua mulher Eugénia não compartilha os
seus interesses, as suas atitudes dum intelectual, idealista e democrata nem a sua
profissão de jornalista com qual ele não ganha bastante para assegurar uma vida sem
problemas económicos. A vista diferente sobre o mundo gera entre eles um fosso que
impossibilita a compreensão recíproca e faz deles dois estranhos. “Dois estranhos
que vivem debaixo do mesmo tecto e que repetem os gestos do amor sem
acreditarem já nele..,”151 diz Afonso numa conversa com a sua mulher.
Outra cena representa o meio social de alta burguesia, uma casa sumptuosa,
na qual vive Luciana com o seu marido Gonçalo, um médico elegante de Lisboa.
Como é de costume nas peças de Luiz Francisco Rebello, também por este sítio de
luxo flutuam pessoas que o autor denuncia da hipocrisia, da falsidade e da futilidade.
Luciana que foi a esta vida destinada sofre do ambiente desgostoso, do egoísmo do
seu marido, que mais do que o médico é um senhor conceituado de boas conexões
com pessoas no regime.
Afonso e Luciana, duas pessoas nas vidas diferentes, nas situações
aparentemente não compatíveis, vivem na solidão e sentem a falta de compreensão
das pessoas mais próximas. Porém, esta é a misteriosa intuição dos grandes
dramaturgos, ambos estão ligados por um fio invisível, que só o espectador pode ver
(...).”152
Este fio invisível já delineado no Prólogo consiste em mesmas atitudes,
desejos e ânsias e em vista sobre o mundo igual. Mesmo que vivam em ambientes
diferentes, os valores fundamentais, ou seja as “essências” da vida são para estes
dois iguais. O fio invisível entre estes dois, quer dizer o mesmo sentido pela justiça,
151Rebello, Luiz Francisco. «Condenádos à vida» In Todo o teatro I. Lisboa, Imprensa Nacional-Casa da Moeda 1999, p. 387
152 Mendonça, Fernando . Para o estudo do teatro em Portugal1946-1966. Assis, Fac. de Filosofia, 1971,p.41
65
o ódio ao egoísmo e à desatenção humana concretiza-se na história da morte duma
mulher:
Um colega de Afonso e do seu amigo Santiago está preso por causa dalguns
documentos e papéis desagradando ao regime. A mulher dele, que estava à espera de
um filho adoeceu gravemente. O médico célebre a quem chamaram para vir
urgentemente, recusou a assistência médica, por causa de coisas “mais importantes”
que ele tinha naquele tempo de fazer. A mulher morreu e o médico que na verdade
era Gonçalo, o marido de Luciana distanciou-se do assunto. Como o Gonçalo tem
amigos políticos, ficou proibido aos jornalistas divulgar o seu nome no jornal. Assim,
sai no dia seguinte apenas uma curta notícia sobre a morte duma mulher. Enquanto
Afonso e Santiago criam um manifesto denunciando o caso em todos os pormenores
e recolhendo as assinaturas, Luciana ao descobrir que o seu marido deixou a morrer
uma mulher, decide abandoná-lo e partir com o seu amante Miguel para Paris.
Afonso e Luciana, cada um em sua esfera social toma idêntica atitude perante a
hipocrisia social e as formas de injustiça.153
Gonçalo: (...) O artigo não traz o meu nome, pois não? E tu não saberias que o caso aconteceu comigo se eu não te dissesse. Pensa então que eu nada tenho a ver com isto, e não se fala mais do assunto. Estamos entendidos?
(...)
Luciana: Parece-me que só agora começo verdadeiramente conhecer-te...Sabes escolher os amigos...E eles, na primeira altura, sabem mostrar-se gratos, corresponder aos favores que te devem... (...)Como vocês deturpam tudo...Como sabem torcer as coisas à medida das vossas conveniências...Que « ordem estabelecida » é essa que tem um medo tão grande da verdade? E quem a estabeleceu? Vocês!154
A peça torna-se neste aspecto uma denúncia aberta do regime ditatorial
mostrando as injustiças cometidas nas pessoas inocentes e os esforços dalgumas
pessoas, cuja consciência obriga-lhes a lutar contra ele.
Afonso: Talvez seja uma luta absurda. Mas não é com certeza inútil. Pelo menos há uma coisa que eles não podem evitar...
153 Quadros, António. « Do drama social ao drama metafísico. In Crítica e verdade. Introdução à actual literatura portuguesa. Lisboa, Clássica, 1964, p.229.231154 Rebello, Luiz Francisco. «Condenádos à vida» In Todo o teatro I. Lisboa, Imprensa Nacional-Casa da Moeda 1999, p. 407-408
66
Eugénia: O quê?
Afonso: Uma coisa de que, apesar de tudo, ainda somos capazes. Perturbar-lhe o silêncio de que eles precisam para devorar os outros à vontade, transformar-lhes a digestão. Numa palavra chateá-los!155
Ao decorrer de todo o tempo, apenas duas vezes encontram-se
ocasionalmente Afonso e Luciana, sem o saberem. Primeira vez, aconteceu assim
num café, segunda vez no aeroporto ao apanharem o mesmo voo para a França. Ela
ao fugir da casa e do seu marido, ele por causa do trabalho jornalístico. Será possível
que o mesmo voo assinala também o encontro feliz de dois seres iguais? A esta
questão nunca poderemos responder, porquanto a outra intervenção do destino
deixou explodir o avião e as duas personagens principais nesse acidente morreram.
Contrariamente às outras peças de Luiz Francisco Rebello, a morte em
Condenados à vida não é nenhuma consequência de qualquer acção prévia. Não se
trata de nenhum suicídio, nem homicídio. Trata-se de jogo do destino, que depois de
ter condenado as personagens à vida, condenou-as sem nenhuma explicação, sem
nenhum motivo à morte.
10.3 Epílogo: dialéctica metafísica
De mesmo modo como o Prólogo simboliza a vida pre-existencial, na parte
final da peça, no Epílogo encontram-se as personagens numa alegoria da fase pós-
existencial. As personagens que se desencontraram na vida, Afonso e Luciana,
encontram-se outra vez neste espaço sobrenatural para que logo caíssem no
esquecimento de toda a sua vida. Mas ainda antes deste esquecimento total têm
possibilidade de conceituar a sua vida inteira. Infelizmente, a estes dois a vida negou
todos os seus sonhos, todas as suas ânsias. Era uma vida do desencontro, sem
conhecimento do amor. Uma vida cercada por dois lados duma condenação dupla,
primeira à vida e segunda à morte.
Afonso: Condenaram-nos à vida, é certo...Mas também nos condenaram à morte.
Luciana: Duas condenações, ainda antes de nascermos...Qual delas a mais terrível, a mais difícil de suportar...
155 Ibidem, p. 403
67
Afonso: Sossegue. Em breve esqueceremos tudo. O que fomos, o que não chegámos a ser...O que a vida não deixou que fôssemos um para o outro...E então, quando dissolver o que ainda nos resta de memória, quando se partir o último fio, quando nada já nos ligar ao que ficou para trás, quando transpuseram a última fronteira, entraremos os dois num país desconhecido...O deserto infinito do esquecimento...O rio sem margens da eternidade...A noite insondável, o abismo sem fundo da morte...O nada!156
Luiz Francisco Rebello considera a história desta peça um cruzamento de
caminhos que se encontram tarde demais. Por um lado o desencontro das duas
personagens é a consequência do destino imprevisível, no entanto, por outro lado é
culpada a sociedade e os mecanismos de uma ordem social defeituosa que distanciou
os protagonistas, Afonso e Luciana, um do outro.157 No início dissemos, que apesar
de o homem ser condenado a viver, ao mesmo tempo está livre na realização da sua
vida. Mas, a realização livre tem uma condição fundamental. Se a vida, na qual os
homens são lançados, não possibilitasse a presença da liberdade, os sonhos e os
desejos dos indivíduos não podiam ser realizados. Em relação com a presença da
liberdade surge, como nas peças anteriores, a ideia de Luiz Francisco Rebello
concedendo a cada um de nós a responsabilidade pela nossa vida própria como
também pela vida dos outros. E voltemos outra vez à filosofia existencialista que
afirma: „Se verdadeiramente a existência precede a essência, o homem é responsável
por aquilo que é. Assim, o primeiro esforço do existencialismo é o de pôr todo
homem de posse do que ele é e atribuir-lhe a responsabilidade total por sua
existência. E, quando dizemos que o homem é responsável por si próprio, não
queremos dizer que o homem é responsável por sua estrita individualidade, mas que
é responsável por todos os homens.“158
Em consequência disso, podemos afirmar que a sociedade onde em vez da
responsabilidade figurava a covardia safada e indiferença à vida dos outros, impediu
a vida livre de Afonso e de Luciana.
156 Ibidem p. 420157 Rebello, Luiz Francisco. O passado na minha frente. Parceria A.M. Pereira, 2004, 189158Sartre, Jean-Paul. Existencialismo é um humanismo. Disponível online: http://www.oocities.com/sociedadecultura2/existencialismohumanismosartre.html . Consultado em 20 de Novembro 2010
68
10.4 Encenações e críticas
A peça Condenados à vida devia subir à cena em 1964 na encenação do
Teatro Moderno de Lisboa, que das peças do autor já tinha apresentado O dia
seguinte e Dente por dente. Não obstante por causa do regime que induziu a
dissolução desta companhia teatral, a estreia não aconteceu.159
Em 1964 foi a peça distinguida com o Grande Prémio de Teatro da Sociedade
Portuguesa de Escritores, mas mesmo assim a censura não permitiu a sua
representação.
A peça Condenados à vida não foi apresentada até hoje, apesar de que fosse
julgada por muitos críticos a melhor peça do autor. Luiz Forjaz que nesta peça
encontrou certa semelhança com a obra dramatúrgica de Samuel Beckett, considera
Condenados à vida a peça altamente significativa duma opção que é em primeiro
lugar moral.160
António Quadros acha a peça a mais madura das peças do autor, “ já pela
seriedade e profundidade das suas sondagens metafísicas, já pela exactidão da sua
contextura teatral, já pela qualidade do diálogo e do estilo, atingindo momentos tão
altos, que o leitor (o que diria o espectador?) se sente por vezes empolgado.”161
Só em 1976 a peça conseguiu ultrapassar as páginas do livro sendo adoptada
pelo realizador Eslovaco Petr Mikulík em filme com duração de 60 minutos. 162
159 Lívio, Tito. Dolores, Carmen. Teatro Moderno de Lisboa.(1961-1965) um marco na história do teatro português. Editorial Caminho, 2009, p.98160 Trigueiros, Luiz Forjaz. Novas perspectivas.Temas de literatura (1962-1968), União Gráfica, 1969, p.201161 Quadros, António. « Do drama social ao drama metafísico.» In Crítica e verdade. Introdução à actual literatura portuguesa. Lisboa, Clássica, 1964, p.229.231162 A peça foi traduzida por Emília Obouchová sob o título eslovaco Odsúdení na život. Os papéis principais desempenharam Emília Vašáryová e Juraj Kukura. (http://www.csfd.cz/film/268451-odsudeni-na-zivot/) Consultado em 19 de Novembro 2010
69
11 CONCLUSÃO
Chegámos ao termo da análise das cinco peças de Luiz Francisco Rebello,
para que possamos neste momento resumir e definir os elementos da sua obra
existencial.
Podemos constatar que a linha existencial está constituída por certos
elementos fundamentais que passam por todas as peças. Entre estes elementos
decidimos classificar: a vida, a morte, o amor e a responsabilidade moral.
A Vida
Os seres humanos chegam ao mundo por intermédio do destino. Nascemos
sem o pedirmos e em particular não nos foi denunciada a essência da vida.
70
O sentido da vida, é uma questão que vem à mente de todas as personagens
das peças de Luiz Francisco Rebello. Porém, trata-se duma questão da qual se
apercebem sobretudo quando se encontram perante uma situação-limite. Em todas as
peças Rebello coloca as personagens num beco sem saída para os forçar a formular a
pergunta fundamental: Qual é a razão para viver? Deste modo pergunta o casal de O
dia seguinte ao não ver nenhuma saída da sua desgraçada situação económica,
Gabriela e Branca duvidam sobre a razão de vida sem existência do amor, Elsa,
Luciana e Afonso acabam por ser decepcionados do mundo corrupto e injusto. E
estas situações-limites dão lugar a outra questão: Se não somos capazes de ser
felizes, porque é que nascemos? Porque nos condenaram à vida? A questão da
condenação e do sentido da vida é evidente em cada peça de Luiz Francisco Rebello,
não obstante com maior dimensão culmina esta problemática na última peça
Condenados à vida. Numa réplica a personagem de Afonso diz:
Afonso: Às vezes penso que podíamos não ter nascido. Que é só por acaso que estamos no mundo. Porque há-de então ter sentido a vida, se depende apenas de um acaso? Viver é tão absurdo como nascer e morrer.163
Na peça Condenados à vida as personagens não discutem apenas as
dificuldades particulares da vida, porém põem em dúvida toda a existência humana.
Na verdade, todas as personagens nas peças por nós analisadas sentem-se traídas pela
vida e deixam de acreditar nela. Todas caem num abismo, donde a vida parece-lhes
absurda e sem sentido. Entretanto, não é a vida própria que Luiz Francisco Rebello
acusa da absurdez. A culpa pela impossibilidade de encontrar a saída seja da má
situação financeira, seja da incompreensão familiar consiste segundo o autor na
sociedade. Rebello acusa nas suas peças o mundo mal estruturado que não
possibilita transformar esta condenação à vida num momento feliz, mas, pelo
contrário impele-nos até ao desejo de morrer.
O Amor
163 Rebello, Luiz Francisco. «Condenádos à vida» In Todo o teatro I. Lisboa, Imprensa Nacional-Casa da Moeda 1999, p. 367
71
O amor tem na obra de Rebello a posição de grande significado. De facto,
todas as peças podiam ser intituladas dum título só, e assim, É urgente o amor. A
urgência do amor sente-se em todas as peças. E acrescentemos que não se trata do
amor apenas no sentido de paixão e namoro, porém, o amor exige-se também no
meio familiar e dentro de toda a sociedade. A concepção do amor converte-se neste
contexto no respeito e na honra que segundo dramaturgo falta no meio social. Na
verdade o amor empenha na obra de Rebello o papel crucial que proporciona
encontrar o sentido da vida. „Sem amor, sem o que é dádiva e promessa sem outro
preço que o do próprio amor, sem aquele amor, verdadeiro que não é só entretém dos
sentidos ou falso objecto duma mercadoria vil, o que resta da vida é um vazio sem
remédio e sem esperança. E sem esperança a vida não vale a pena.“ escreve Anónio
Pedro, o primeiro encenador da peça É urgente o amor no Programa da estreia em
1958.164
O amor nas peças de Rebello é muitas vezes substituído pelo ódio,
desrespeito e agressividade o que leva as personagens como Gabriela, Branca ou o
jovem casal de O dia seguinte à decisão de recusar a vida. As personagens de Elsa,
de Luciana e de Afonso, apesar de que se esforçassem encontrar no mundo pelo
menos alguns traços do amor e do respeito mútuo chegaram a conclusão que o amor
realmente não existe. Estas personagens vivem por isso no aborrecimento da vida
quotidiana, cansadas da liberdade inútil. Até que se sentem mortos embora ainda
vivam.
Luciana: Vivemos entre mortos (…) Mortos a fingir de vivos…Lentamente, sem darmos por isso, a morte vai corrompendo tudo o que nos rodeia.165
A Morte
“Enquanto existir literatura, a morte será, sem dúvida alguma, o elemento
mais poderoso na revelação do homem profundo,” diz João Gaspar Simões.166 E de
164 Pedro, António. « É urgente o amor, no TEP» Programa do Teatro Experimental do Porto – É urgente o amor. Câmara Municipal de Gaia, Círculo de Cultura Teatral. 2004, p.10165 Rebello, Luiz Francisco. «Condenádos à vida» In Todo o teatro I. Lisboa, Imprensa Nacional-Casa da Moeda 1999, p. 396166 Simões, João Gaspar. Crítica VI.O teatro contemporâneo.Lisboa, Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 1981,p.93
72
facto, o elemento da morte, é uma permanente constância na obra de Luiz Francisco
Rebello.
A morte nas peças de Luiz Francisco Rebello tem duas feições. Primeiro, a
morte é de mesma maneira como a vida um facto imprevisto, inexplicável e por isso
absurdo. De maneira absurda morrem Afonso e Luciana de Condenados à vida - sem
nenhuma razão e nenhuma explicação. Neste contexto Rebello adverte não só a
condenação do homem à vida mas também a condenação à morte.
Outra feição tem a morte intencionada. A ideia do autor assenta no facto, que
só tem direito a morrer quem já aprendeu viver, quem já conheceu todos os bens e
maus da vida, e para quem a vida tinha fechado todas as possibilidades de viver uma
vida digna e feliz.
Como afirma Fernando Mendonça, na obra deste dramaturgo existe sempre
uma coligação da verosimilhança e da inverosimilhança, do absurdo e da realidade.167
E, é notavelmente a morte que na obra de Rebello está ligada com o ambiente
absurdo e irreal. A morte nunca está concebida como um mistério enigmático todavia
as personagens mortas vêem parar ao sítio sobrenatural (O dia seguinte), os mortos
falam com os vivos (É urgente o amor), os mensageiros da morte intervêm ao mundo
humano (Alguém terá de morrer) e é nos apresentada a vida pré-natal e a vida pós-
existencial.(Condenados à vida). No entanto, este retrato da morte tem sempre um só
objectivo simples, e assim, despertar os remorsos das personagens culpadas e
repreender as suas atitudes morais deformadas. Graças à afiguração da morte de
maneira fantástica, as personagens conseguem olhar dentro de si e aperceber-se das
suas faltas, das suas responsabilidades e descobrir as verdades irrecusáveis da vida. É
a presença da morte que cria o tribunal das consciências tantas vezes frequente na
obra de L.F.Rebello.
A Responsabilidade moral
Por toda a obra de Luiz Francisco Rebello passa um elemento marcante de
atitude moral até que podemos sentir uma tendência educadora e moralizante.
Rebello acusa a sociedade sobretudo por falta da responsabilidade moral. A
visão de responsabilidade humana corresponde nestas peças como já foi dito a
167 Mendonça, Fernando. Para o estudo do teatro em Portugal. 1946-1966. Assis, Fac. de Filosofia, 1971, p. 30
73
filosofia sartriana e aparece com maior dimensão na peça Condenados à vida.168
Nesta peça surge com maior intensidade a ideia que todos os homens são
responsáveis pelo funcionamento do mundo e são culpados só pelo facto de
existirem. Uma das personagens de Condenados à vida diz:
Santiago: (...)De tudo o que acontece no mundo cada um de nós tem sempre a culpa, a sua parte de culpa...Só porque existe. Apenas são inocentes os que ainda não nasceram. (...) Por egoísmo, por cansaço, até pela força do hábito, vamos aceitando dia a dia mil pequeninas injustiças, aparentemente insignificantes, inofensivas, sem ver que todas elas, ligadas uma às outra, acabam por transformar-se numa injustiça maior, que nada fizemos para impedir, contra a qual já só podemos protestar..., mas que sem dar por isso fomos nós a tornar possível...(...)169
Como as personagens destas peças não são muitas vezes capazes de se
aperceber do seu cargo da responsabilidade moral, cria o dramaturgo frequentemente
o tribunal de consciências. Só nestes ambientes irreais apura o casal que não tinha
direito recusar a vida à sua filha, na presença do Desconhecido descobre a família
rica que não dava bastante importância aos seus filhos e a personagem de Madalena
constata que foram os familiares e amigos que atiraram Branca da ponte.
Em Os Pássaros de asas cortadas é Elsa própria que descobre a falta da
responsabilidade na sua família que pretende desmentir o crime do seu irmão
Rodrigo, Luciana por sua vez descobre que o seu marido falhou por não ter prestado
o tratamento médico.
Lição de esperança
Qual é, então, o significado das peças que denominámos existenciais? Qual
relevância têm os elementos – a vida, a morte, o amor, e a responsabilidade moral –
que designamos como elementos estáveis na obra de Luiz Francisco Rebello?
Nestas peças encontramos decerto um tom apelativo e moralizante, está
presente a crítica de todas as classes sociais, a denúncia do comportamento corrupto
e falso e a acusação da ausência do amor e da compreensão recíproca.
168 Sobre a ligação entre a peça Condenados à vida e a filosofia existencialista tratamos no capítulo 9.2.169 Rebello, Luiz Francisco. «Condenádos à vida» In Todo o teatro I. Lisboa, Imprensa Nacional-Casa da Moeda 1999, p. 353
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Como escreve António Braz Teixeira a existência na obra deste dramaturgo
português é apresentada como “algo único e irrepetível (..), é um sonho absurdo e
sem sentido, como absurdo é nascer e morrer, já que nos negaram a esperança e
recusaram o amor.”170
A existência humana tem por isso para este dramaturgo o seu valor antes de
mais no seu aspecto ímpar e irrepetível. “(...) A vida nasce da vida, unindo a nós os
que viveram antes e hão-de viver depois, numa cadeia ininterrupta que é a única
resposta possível ao absurdo da morte a que, pelo simples facto de nascer, estamos
condenados,”171 pensa o dramaturgo.
Por isso, embora o destino dos homens seja sempre imprevisto e o decorrer
das vidas não depende apenas deles próprios mas também da sociedade muitas vezes
defeituosa, a vida do homem é uma corrente eterna. E nesta eternidade humana
reconhece Rebello a possibilidade de esperança num mundo melhor. Por isso
sentencia Rebello o jovem casal ao ter recusado a esperança num dia melhor à sua
filha. À filha que podia transformar a liberdade que lhe foi dada numa vida
afortunada. A esperança numa vida feliz sente-se também no Prólogo da peça
Condenados à vida. A personagem O que será Luciana aceita a condenação à vida
sem saber as condições da sua existência futura.
Luciana: Qual interesse teríamos em viver uma vida que já conhecêssemos? Seria como se tudo acontecesse pela segunda vez. Como se fôssemos espectadores da nossa própria vida, sem nada podermos fazer para lhe modificar o rumo.172
Por isso, não seria verdade afirmar, que as peças de Luiz Francisco Rebello
possuem um tom inteiramente pessimista. Apesar de mostrar os lados pretos da
sociedade contemporânea, o autor deixa existir a esperança acrescentando que a
hostilidade e o ódio nas relações humanas é possível diminuir. “O teatro de Luiz
Francisco Rebello equaciona uma problemática social, lançando uma mensagem de
idealismo e de esperança para uma humanidade irremediavelmente presa a formas
170 Teixeira, António Braz. «Prefácio breve e talvez inútil» In Todo o teatro I Lisboa, Imprensa Nacional-Casa da Moeda,1999, p.9171 Rebello, Luiz Francisco. «Condenádos à vida» In Todo o teatro I. Lisboa, Imprensa Nacional-Casa da Moeda 1999, p.185172 Ibidem, p.313
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rígidas, estáticas e minorativas da verdadeira espiritualidade,”escreve António
Quadro.173
A solidão do indivíduo, e a alienação humana no mundo agressivo e egoísta
existia na nossa história desde sempre. Por isso esta problemática não se liga apenas
com a altura de pós-guerra, apesar de que por causa das circunstâncias políticas
tivesse aparecido nessa altura com dimensão muito forte. As peças de Luiz Francisco
Rebello reflectem uma problemática eterna e universal que se pode sentir também na
sociedade do início do século XXI. Assim, Luiz Francisco Rebello tornou-se por
intermédio da sua dramaturgia porta-voz da sociedade não só pós-guerra como
também da sociedade de hoje. É sobretudo por esta razão que as peças deste
dramaturgo português podemos considerar sempre actuais.
12 Bibliografia
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