SUMÁRIO
Introdução 1
I - Quando atingimos o joelho 7
II - Razões erradas de uma improvável parada de expansão 15
III - Os grandes sistemas e a sua engenharia 25
IV - A insubmissão dos grandes sistemas 35
V - A impotência elétrica 43
VI - Congestionamento urbano e paralisações dos transportes 51
VII - O bloqueio das comunicações (telefônicas, telegráficas, postais) 67
VIII - Esperanças mal ocultas e temores infundados em relação aos computadores
eletrônicos 77
IX - Falta de água e excesso de lixo 89
X - A conjuração dos sistemas urbanos 93
XI - A inutilidade da guerra como meio de destruição 101
XII - Inutilidade da contestação 107
XIII - Uma causa remota da degradação dos sistemas: a crise da administração 115
XIV - Diferenças nos períodos iniciais e na duração da próxima Idade Média em vários
países 123
XV - Benefícios a curto prazo e danos secundários a longo prazo das situações
involutivas do tipo medieval 129
XVI - Evolução das formas de vida associativa anteriormente ao knock-out e na
próxima Idade Média 137
XVII - Fundamentos de uma nova tradição 145
XVIII - Projeto de comunidades monásticas capazes de conservar a cultura e favorecer
um novo renascimento 153
A PRÓXIMA IDADE MÉDIA
Orelha do Livro da Edição de 1975
Em 1965, nos Estados Unidos, trinta milhões de pessoas, de repente, ficaram sem
energia elétrica durante quatorze horas. Somente na cidade de Nova York, seiscentas
mil pessoas ficaram bloqueadas nas ferrovias metropolitanas. Quatro anos depois
repetiu-se o black-out, que tornou a ocorrer passados outros dois anos. Em 1969, ainda
em Nova York, como decorrência de um aumento inesperado de tráfego, uma central
telefônica automática ficou bloqueada e, por dois dias consecutivos, foi virtualmente
impossível conseguir linha nesta central.
1970: o sistema ferroviário Penn Central, que serve às cidades de Nova York e
Filadélfia, por um acúmulo de circunstâncias ocasionais, sofreu uma pane tão grande
que 117 trens, de um total de 413, não correram e 290 das 296 viagens efetuadas
registraram grandes atrasos. As comunicações nas estradas ficaram
supercongestionadas, as decolagens e aterragens nos aeroportos passaram a ser
realizadas com atrasos cada vez mais imprevisíveis.
O sistema "estalou": estes fenômenos não são, na verdade, esporádicos e independentes
uns dos outros, mas representam a primeira advertência da degradação desta tecnologia
responsável pelo conforto e existência das populações altamente concentradas nas
metrópoles e megalópoles. Já as conquistas da ciência e da tecnologia não são
suficientes para fazerem funcionar os grandes sistemas, que proliferam de modo
desordenado, mal projetados e não integrados entre si, e a crescer muito além de seus
limites, avizinhando-se das condições de instabilidade, nas quais se tornam
ingovernáveis.
Este livro - escrito por um especialista em Engenharia de Sistemas - analisa outros
sintomas, ainda não revelados, da deterioração dos sistemas. Explica como se chegou a
esta situação e descreve como, porque e quando as grandes cidades começaram a
morrer, arrastando, neste seu retrocesso, os mais avançados países da atualidade.
Roberto Vacca nasceu em Roma em 1927.
Laureado em Engenharia Eletrotécnica, projetou e construiu linhas de transmissão de
energia elétrica de alta tensão, engenhos automatizados, aparelhos mecânicos e circuitos
de cálculo eletrônico.
Desde 1962, dirige uma empresa romana que constrói sistemas de controle eletrônico.
Em 1961, recebeu o título de Visiting Fellow da Universidade de Cambridge, na
Inglaterra, e em Harvard, na América. Desde 1960 é livre docente de Automatização do
Cálculo, e entre 1960 e 1966 foi encarregado do Curso de Computadores Eletrônicos na
Faculdade de Engenharia da Universidade de Roma.
Publicou um livro didático sobre computadores eletrônicos e numerosos artigos
científicos e técnicos, publicados em Automatização e Instrumentação, A Pesquisa
Científica, Atos da Academia dei Lincei, Traffic Quaterly, Matemática de Computação
e problemas referentes ao cálculo eletrônico e de engenharia de sistemas.
Em 1958, escreveu contos e ensaios. Em 1963 publicou uma coletânea de contos de
science-fiction: O Robô e o Minotauro, e em 1965, um volume de ensaios e contos:
Exemplos do Futuro.
Ocupa-se da Teoria dos Números, Psicologia, Filosofia e também, ativamente, da
Agricultura.
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Nota em junho de 2001:
Na parte inicial do livro (Caps. 1 a 13), Vacca levanta o problema da dificuldade de se
administrar sistemas urbanos muito grandes e complexos, com os riscos de exibirem
comportamento caótico e fora de controle. O capítulo 5 tem muito a ver com a crise
energética de hoje.
Na parte final (Caps. 14 a 18), o autor infere que tais sistemas complexos chegarão a um
ponto de ruptura, desmembrando-se então em muitos sistemas pequenos e
independentes, similar à organização social da Idade Média.
A primeira parte é um alerta. A segunda contém previsões de ruptura global que até hoje
não se têm verificado.
Introdução
1. Então vi descer do, céu um anjo que tinha na mão a chave do abismo e uma grande corrente;
2. Ele agarrou a dragão, a antiga serpente, que é o diabo, Satanás, e o prendeu por mil anos;
3. Lançou-o no abismo, fechou-o e pôs um selo sobre ele, para que não mais enganasse as nações até
se completarem os mil anos. Depois disto é preciso que ele seja solto por pouco tempo.
4. Vi também tronos e nestes sentados aqueles aos quais foi dada autoridade de julgar. Vi ainda as
almas dos decapitados por causa do testemunho de Jesus e pela palavra de Deus, aqueles que não
adoraram a besta, nem tampouco a sua imagem e nem receberam o sinal da besta na fronte e nas
mãos; e viveram e reinaram com Cristo durante mil anos.
5. Os outros mortos não reviveram até que se completassem os mil anos. Esta é a primeira
ressurreição.
(Apocalipse de São João Evangelista, cap. XX)
A leitura desta passagem do Apocalipse foi o bastante para convencer uma multidão de
homens que o fim do mundo chegaria com o ano 1000 da nossa era. Os homens
sentiam-se condenados e impotentes e procuravam refúgio e perdão na oração e na
penitência: inúmeras horas de trabalho foram perdidas pela população ativa, que
passava de joelhos o tempo antes empregado em atividades produtivas.
Passou o ano 1000 e o mundo, é claro, não acabou. Mas nem por isto as crendices e
superstições apocalípticas sofreram uma queda digna de nota. Durante o correr dos
séculos seguintes, astrólogos e numerólogos tiveram grande divulgação ao predizer
cataclismos e desgraças. Na história dos últimos séculos, cataclismos e desgraças não
faltaram, mas suas datas e características não coincidiram com aquelas antecipadas de
modo casual e gratuito pelos profetas improvisados.
No momento em que escrevo, faltam trinta anos para terminar o segundo milênio de
nossa era e, por motivos diversos dos de mil anos atrás, muitos esperam para breve uma
trágica catástrofe total. Os profetas de hoje não dizem que devemos temer anjos,
dragões e abismos, mas que devemos temer o holocausto nuclear, a superpopulação, o
aniquilamento e o desastre ecológico.
Aqueles que anunciam catástrofes iminentes são hoje tão numerosos que John Crosby,
em artigo no Observer de 13 de setembro de 1970, inventou um novo termo para indicar
a sua atividade: "doomwriting" - que pode ser traduzido por "catastrografia". Crosby
afirma que as catástrofes anunciadas nunca se verificaram, que as condições de vida na
cidade e no mundo em geral nunca foram melhores do que agora e zomba dos
"catastrógrafos", acusando-os de pessimismo e de sustentar opiniões facilmente
aceitáveis apenas para tirar proveito de seus escritos.
Devem ser muitos os que estão de acordo com tal ponto de vista, haja vista que a
opinião corrente é a de que no ano 2000 a população do mundo será de seis bilhões de
pessoas; e especialistas afirmam ainda que nos próximos trinta anos a população
mundial superará o dobro da atual, que é estimada em três bilhões e meio. Fred Charles
Iklé, do Massachusetts Institute of Technology, asseverou que em 2000 "a população
mundial será de sete a oito bilhões de homens, mais do que os cinco bilhões", como
previu, em 1963, num estúdio da Rand Corporation.
Considerando que a opinião a respeito desta previsão é quase unânime, estou
convencido de que a previsão não será cumprida. De resto, há outros indícios de que as
taxas atuais de crescimento do número de homens e das estruturas criadas pelos homens
serão quase anuladas ou invertidas. Não é preciso detonar alguns quilomegatons de
bomba-H para matar centenas de milhões de homens. O mesmo resultado pode ser
conseguido através de meios menos violentos e mais eficazes como, por exemplo,
tornando a vida dos enormes e densos conglomerados humanos dependente de sistemas
tão complicados que se tornem ingovernáveis. Esta segunda hipótese de catástrofe - pela
sua aridez formal, por sua casualidade e pela sua falta de premeditação - parece mais
trágica do que a primeira.
Escrevi este livro para analisar um dos tipos de catástrofe que poderá ocorrer em virtude
da deterioração dos grandes sistemas que se tornam excessivamente complicados. A
minha hipótese é de que os grandes sistemas de organização, tecnológicos, associativos,
continuam a crescer desordenadamente até atingirem dimensões críticas e instáveis.
Neste ponto, a crise de um único sistema não será suficiente para provocar distúrbios
nas grandes concentrações metropolitanas, mas uma concomitância casual de distúrbios
em muitos sistemas na mesma área poderá deflagrar um processo catastrófico que
paralisará o funcionamento da sociedade mais desenvolvida, produzindo a morte de
milhões de pessoas.
Dediquei alguns capítulos à descrição dos caracteres das crises já incipientes dos
sistemas de produção e distribuição de energia, dos transportes, das comunicações, do
aprovisionamento de água, da incineração de lixo, do tratamento das informações. Estas
crises são, provocadas, pelo congestionamento crônico de quase todos os grandes
sistemas, projetados e estruturados, de modo errado ou, o que é pior, disseminados sem
planos pela inadequada capacidade e disponibilidade de informações daqueles que
deverão controlá-los e prever seu crescimento ulterior.
Não se pode demonstrar rigorosamente, a priori, que uma casual conjunção de eventos
deterioráveis e congestivos conduzirá a uma catástrofe - pelo menos seguindo um
desenvolvimento idêntico ao que descrevo. Entretanto, parece bastante verossímil que
as nações mais desenvolvidas se encaminham para crises de grandes dimensões e
considero oportuno aceitar certas hipóteses e esmiuçar em detalhes as conseqüências
lógicas para demonstrar mais realisticamente quais são os perigos mais iminentes que se
podem esperar.
Chamei de "Idade Média" esta futura situação de crise generalizada.
Os países menos desenvolvidos (ou em via de desenvolvimento, ou subdesenvolvidos,
ou ainda simplesmente atrasados) serão envolvidos apenas superficialmente pela crise.
Deste modo, cerca de setenta por cento da população mundial não será muito atingida
pela primeira onda de destruição. Os países mais adiantados, por seu turno, são mais
vulneráveis aos danos conseqüentes da deterioração dos grandes sistemas. A nova Idade
Média coincidirá, portanto, com uma situação que somente deverá atingir a população
dos países mais adiantados. Se considerarmos entre estes os europeus, inclusive a União
Soviética, os da América do Norte e o Japão, estamos falando - em 1970 - de cerca de
novecentos milhões de pessoas, ou seja, cerca de trinta por cento da população mundial.
Morrendo 450 milhões de homens nos países mais desenvolvidos, param: o progresso
das ciências, a pesquisa tecnológica, as grandes construções civis, a produção industrial
em série e a baixo custo, o funcionamento integral da estrutura organizadora e diretiva
da sociedade moderna. Com um certo atraso, os países do terceiro mundo sofrerão
graves conseqüências secundárias pela falta de manufaturados, produtos de longa
duração, remédios, instrumentos e implementos de produção e consultas e diretrizes
anteriormente fornecidos pelas nações mais desenvolvidas.
A reorganização será lenta e árdua e, no caminho da reconstrução, não serão
necessariamente favorecidos os países que antes estavam na vanguarda. Os novos
mandatários e os novos governos dos países estarão decididos a trocar entre si know-
how e informações, assim como empenhar-se-ão no trabalho de encontrar novas formas
eficientes de vida associativa e organizada, levando em consideração a capacidade de
motivação e a agressividade dos vários grupos de homens.
A duração da próxima Idade Média será menor do que a da anterior Idade Média: talvez
um século em lugar de um milênio.
É impossível saber se os historiadores do futuro escolherão 1960 ou 1980 ou uma outra
data convencional posterior para o início desta Idade Média. Há muitos indícios de que
já começou uma época de fenômenos degenerativos, tanto que não parece absurdo falar
hoje de uma próxima Idade Média, levando-se em conta que a expressão compreende
três hipóteses: que uma era de desordem, destruição e deterioração esteja para começar;
que este início seja iminente; e que esta era será seguida por uma outra de
Renascimento. A última hipótese não tem outra justificação senão a periódica
alternativa de todas as coisas humanas até agora geralmente verificada.
No século XX estamos habituados a considerar as mudanças como a característica mais
constante de nosso mundo, e somos induzidos a procurar antecipar as próximas
transformações. Richard Lewinsohn, no seu livro Die Enthüllung der Zukunft (A
Descoberta do Futuro), demonstra que hoje somos muito mais predispostos a fazer
previsões e planificações do que o fomos no passado. Minha convicção nesta sua
demonstração justifica que eu escreva que uma "Era Medieval" está ainda no início,
ainda mais se considerarmos que só sé começou a falar da Idade Média passada depois
que ela terminou (o primeiro a usar a expressão "media tempestas", ao que tudo indica,
foi Giovanni Bussi, Bispo de Aleria, ao responder a um elogio de Nicolo Cusano,
composto em 1469).
Não será difícil acusar este livro de catastrófico e de pessimista. Nós, pessimistas,
porém, chamamos realismo ao nosso modo de ver as coisas, e não deixamos de ser
menos eficientes do que os otimistas no preparo dos remédios e nos projetos das
inovações.
Roma, fevereiro 1970 - março 1971.
I - Quando atingimos o joelho
Imagine que o leitor esteja dirigindo um enorme caminhão por uma estrada de subida. A
rampa aumenta e torna-se necessário passar à marcha de força. Depois de haver
engrenado a primeira, o motor continua a ser exigido: o aclive se acentua mais ainda. O
trabalho é árduo, mas o motor é muito potente e parece não haver risco de falha.
Entretanto, o capô do motor aparece cada vez mais no nosso campo visual e parece que
está se aproximando da vertical. A subida continua a aumentar. Não se pode pensar em
voltar atrás e não se pode prever quando a estrada ficará plana. O problema é saber se o
caminhão capotará antes disto ou não.
Este fato se assemelha ao comportamento de todas as curvas que representam a variação
no tempo de qualquer número que mede um aspecto da nossa civilização. Tudo cresce,
tudo aumenta e, a cada ano, a velocidade deste aumento é maior.
A população do mundo era de oitocentos milhões em 1750, de um bilhão e duzentos
milhões em 1850, de dois bilhões e quatrocentos milhões em 1950 e hoje ultrapassa a
casa dos três bilhões.
A velocidade máxima dos meios de transporte era de sessenta quilômetros por hora em
1850, de 160 em 1900, de 1600 em 1950 e agora os astronautas viajam a velocidades
em torno de quarenta mil quilômetros por hora. O número de automóveis em circulação
na Itália dobra a cada quatro anos.
Do mesmo modo aumenta, segundo leis semelhantes, a extensão das estradas, o número
de telefones, de comunicações telefônicas, de viagens aéreas, de livros que se editam a
cada ano, o número de elementos de qualquer classe de objeto ou de atividade.
Todas estas medidas têm, portanto, um caráter de crescimento contínuo e exponencial, e
suas variações obedecem a uma lei matemática bem conhecida: a dos fenômenos de
crescimento em presença de fatores limitativos. Inicialmente, os fatores limitativos
quase não fazem sentir seu efeito, mas, a partir de um dado momento, começam a ter
ação preponderante. Passam a ocorrer, então, fenômenos de saturação e a curva
apresenta um "joelho". Deste modo, o aumento da subida da curva se reduz cada vez
mais, e depois, a subida começa a diminuir até um ponto em que não há mais
crescimento. A medida do fenômeno considerado torna-se constante e a curva que a
representa é uma reta horizontal. Terminou a subida. Chegamos a um planalto.
Da mesma maneira que um caminhão, que segue por uma estrada cada vez mais
íngreme, e corre o risco de capotar antes de chegar ao planalto, a curva abordada acima
não é menos dramática. Na verdade, nem sempre na natureza as coisas ocorrem de
maneira assim moderada. Frequentemente, o efeito dos fatores limitativos não se faz
sentir de maneira gradual, mas surge de imprevisto e, em lugar de um joelho
arredondado, o que ocorre são oscilações turbulentas acompanhadas de fenômenos
desorganizados e destrutivos.
A probabilidade de que ocorram variações rápidas, violentas e incômodas é assim muito
maior do que a correspondente à hipótese de que cada transição se verifica de modo
gradual, lento e suportável. É melhor que se esforce no sentido de prever as graves
conseqüências da primeira hipótese - a mais provável - aceitando o ponto de vista de R.
Lewinsohn de que todos nós somos profetas, não tanto porque decidamos sê-lo, mas por
absoluta necessidade.
A propósito, é curioso notar como este tipo de pesquisa se encaminha para
conseqüências extremas e, como é óbvio, não é muito popular. Isto se relaciona com o
fato de que cada um de nós, que vivemos em uma sociedade desenvolvida, é
testemunha, durante toda a vida, de crescimentos e auMentos de densidade (de homens,
casas, máquinas, etc.) e não se consegue imaginar situações diversas, como de
paralisação ou contração. Cada fenômeno de afrouxamento, de recessão, de crise, é
implicitamente considerado como passageiro e o mesmo termo "conjuntura" que
originariamente se usava para definir o período no qual as colheitas do ano precedente
estavam terminando, enquanto as novas ainda não tinham sido feitas, indica como estes
fenômenos de afrouxamento podem se conservar anormais e, transitórios. E, com efeito,
a apreciação dos dados e das experiências dos últimos 150 anos está de acordo com
ponto de vista e leva a concluir que os planificadores são muito conservadores e
prevêem crescimentos e aumentos em medida insuficiente. Esta conclusão é
substancialmente correta. Tradicionalmente, os projetistas e os engenheiros estão
atrasados em relação à evolução da realidade em que operam e, assim, projetam
estradas, linhas telefônicas, casas, para satisfazer exigências que existiam dez anos antes
da redação do projeto e não para as exigências de um futuro mais ou menos longinquo.
As exceções são poucas e de destaque. Ocorre-nos, por exemplo, o nome de Pierre
Charles L'Enfant, engenheiro do Exército, que planificou e projetou, com grande
providência (planned and designed with great foresight) a cidade de Washington, D.C.
A capital dos Estados Unidos - concebida no final do século XVIII - funcionou a
contento pelo menos durante 150 anos. A obra de L'Enfant foi asperamente criticada no
seu tempo: toda vez que alguém se referia a ele era para tachá-lo de subornável e
dissipador.
Não basta, todavia, simplesmente, dar-se conta do fato de que as dimensões de certo
problema estão aumentando: é preciso também determinar a lei segundo a qual estão
crescendo e a que leis obedecerão para crescer em um futuro menos próximo.
Infelizmente, acontece que alguns planificadores menos avisados aplicam princípios de
infantil linearidade nos seus cálculos de previsão e, naturalmente, depois se dão conta
de que a realidade mudou muito mais depressa do que tinham previsto. Também em
níveis mais evoluídos, e quando as leis de crescimento são conhecidas e expressas por
meio de simples fórmulas matemáticas, pode ocorrer que os planificadores mais
informados adotem expressões empíricas indevidamente simplificadas e cometam, por
conseguinte, erros graves.
De tudo o que foi dito, poderá parecer que cada previsão normalmente estará errada, ao
contrário do que sustentava a tese inicial, de que, mais cedo ou mais tarde, se chegaria a
um joelho de algum tipo. Parece oportuno, portanto, dar uma demonstração da
impossibilidade de que as atuais taxas de crescimento se mantenham imutáveis por
longo tempo.Tomemos o exemplo da explosão populacional, problema
indubitavelmente grave e para o qual, muito freqüentemente, surgem remédios de vários
tipos.
Assim, se tomarmos como lei de crescimento do número de homens que compõem a
população mundial uma das fórmulas mais modestas e prudentes das que foram
sugeridas, esta fórmula leva à conclusão de que, dentro de sua prolongada validade,
teremos, dentro de dois mil anos, uma população mundial de 150 bilhões de habitantes,
ou seja, quase um homem para cada metro quadrado da superfície terrestre (excluindo-
se os mares) e dentro de oito mil anos uma população de 1011 (1 seguido de 23 zeros)
de habitantes, com uma densidade de 666 milhões de pessoas por metro quadrado. O
absurdo desta segunda situação - se se tivesse necessidade de comprová-la - é
confirmado pelo fato de que ela implicaria na igualdade do peso de toda a população
terrestre e o peso do globo terrestre (inclusive o pesado núcleo central constituído
principalmente, de níquel e ferro). É óbvio que os fatores limitativos entrarão em ação
muito antes de se atingir qualquer uma das duas hipotéticas metas citadas.
Um típico exemplo da sensível ação dos fatores limitativos - que levam à saturação -
está no crescimento do parque automobilístico nacional de, diversos países. Como já se
disse, na Itália o número de automóveis dobra a cada quatro anos nos Estados Unidos da
América, por sua vez, o número total de automóveis dobra a cada quinze anos, ou seja,
de modo muito mais lento. Isto significa que a curva na América está num ponto mais
alto e é menor a inclinação da exponencial, que tende para um valor assintótico
constante. Quando a assíntota for alcançada, o número de automóveis crescerá
aproximadamente no mesmo ritmo da população total supondo-se, naturalmente, que,
neste momento, a população ainda esteja crescendo.
Vejamos agora quais poderão ser os sutis inconvenientes relativos ao alcance doce e
gradual do joelho na curva de crescimento da população e das utilidades relativas
(habitação, meios de transporte e de comunicação). É bastante plausível que somente
agora os projetistas e os engenheiros começaram a projetar e construir visando às
necessidades futuras e maiores, em lugar das do passado e mais restritas. Deste modo,
deveremos construir obras imponentes orientadas para um futuro que já terá superado o
joelho e se encontrará numa fase de aumento decrescente ou estabilidade. Neste
momento, o inconveniente será que o equilíbrio da sociedade seja conturbado como
conseqüência de um desperdício dos recursos disponíveis empregados para construir
obras e fornecer serviços excessivos relacionados com um pedido não mais crescente.
Certamente, não se pode deixar de considerar que uma situação deste tipo se verifique,
aquela que Dickson Carr chamava de maldição inserida nas coisas em geral (the
cussedness of things in general). Obviamente, porém, não há nada de trágico nas
hipóteses que os projetistas e os planificadores lançam na perseguição do crescimento
velocíssimo do resto da sociedade, empenhando-se de tal maneira neste encalço que se
tornam incapazes de parar a tempo, de ultrapassar qualquer razoável obstáculo. Não se
dão conta de que também a riqueza pode destruir ou congelar a produção das estruturas,
tornando-as hipertróficas e inúteis.
Muito mais interessante a considerar, e muito mais perigosa, é a outra hipótese: a de que
as curvas de crescimento dos vários parâmetros que medem a nossa civilização
apresentam acentuados overshoot ou andamentos, nos quais o valor assintótico de
equilíbrio, para o qual tende a curva, é logo superado de maneira marcante, ocorrendo,
depois, uma diminuição dos valores representados na curva, tão íngreme quanto o
aumento inicial. Em seguida, um novo aumento que supera novamente o valor de
equilíbrio e assim sucessivamente, até que, moderando-se, estas oscilações, o valor de
equilíbrio é alcançado. Os fenômenos do overshoot se verificam, como já se referiu,
quando os fatores limitativos não exercem a sua ação de modo contínuo e equilibrado e,
de início, são superados pelas causas de expansão até um dado momento em que
possam exercer uma ação cumulativa e lançar em excesso, de novo, os fatores de
expansão. É possível estudar-se matematicamente este tipo de fenômeno, mas tal
estudo, porém, não permite melhorar muito a qualidade e a eficácia das nossas
previsões, já que uma utilização concreta das fórmulas e dos processos requer a
disponibilidade de dados e valores que, com efeito, normalmente falham, e um
conhecimento das relações de causalidade entre os fenômenos, conhecimento este
certamente muito mais profundo do que o atual.
Não interessa, todavia, determinar o número das alternativas que poderão decorrer da
medida dos fenômenos que observamos respectivamente acima e abaixo de seus valores
de equilíbrio, nem o período destes fenômenos de oscilação, sobretudo porque estes
hipotéticos andamentos têm um valor teórico e, na verdade, sabemos que se tornam
irreconhecíveis quando se sobrepõem outros fenômenos, no momento não previsíveis,
além do fato de que a ação cumulativa dos eventos casuais, em número notável,
"encobre" cada curva que se refira às teorias mais próximas da realidade.
A previsão que servirá de base às considerações que seguiremos é que se tenha, pelo
menos, um overshoot, ou melhor, que as dimensões dos grandes sistemas cresçam muito
além do início de cada equilíbrio duradouro e que devam, depois, necessariamente
decrescer de novo a níveis inferiores aos atuais. Deste modo, defino como "Nova Idade
Média" o período de tempo que vai do momento em que se atingirá o máximo do
overshoot ao momento em que, superado o mínimo, será iniciado um novo período de
expansão.
É claro que não pretendo referir-me aqui a uma recessão ou a uma crise, ainda que seja
tão grave como a de 1929, mas a fenômenos de importância relativa muito maior. Uma
das minhas teses é a de que a proliferação dos grandes sistemas até atingirem dimensões
críticas, instáveis e antieconômicas, será seguida por uma deterioração rápida, tanto
quanto a expansão precedente, e será acompanhada por numerosos acontecimentos
catastróficos. Por conseguinte, serão duas as características principais que deverão ser
reconhecidas como sintomas do início da próxima Idade Média: a primeira será uma
brusca diminuição da população (seguida por uma posterior contração mais lenta); a
segunda será um dilaceramento dos grandes sistemas e sua transformação num grande
número de pequenos subsistemas independentes e autárquicos.
A diminuição da população foi uma das características da precedente Idade Média
(Roma tinha mais de um milhão de habitantes na época imperial e cerca de trinta mil no
ano 1100), que ocorreu na península italiana e em todo o Mediterrâneo, embora alguns
historiadores afirmem que isto foi causa e não efeito da Idade Média. Este ponto de
vista é discutível. Por seu turno, outros sustentam que a diminuição da produtividade e o
abandono da agricultura não dependeram do decréscimo do número absoluto dos
habitantes do Império, mas das mudanças na destinação da mão-de-obra e,
particularmente, da diminuição da disponibilidade da mão-de-obra servil. É discutível a
questão de quais tenham sido as causas e efeitos da queda do Império Romano.
Todavia, tal questão não é relevante dentro das considerações que estou fazendo, uma
vez que uma causa de retrocesso identificável com uma diminuição da população hoje é
certamente assente: a população está crescendo quase em todas as partes do mundo. Por
isso mesmo, não obstante os fatos tenham ocorrido no passado, no futuro uma brusca
diminuição de população não poderá ser a causa primeira de queda e de retrocesso, mas
será efeito do retrocesso e das quedas produzidas por outras causas.
Se postulamos agora apenas que a população mundial decresça efetivamente dentro de!
poucos anos, obviamente, como consequência do que afirmamos, os bens de consumo,
os bens duráveis e todos os produtos industriais rapidamente se tornarão
superabundantes e sem valor. Uma conseqüência posterior será a interrupção de toda
atividade de pesquisa e inovação, da concorrência e da emulação. Também a pesquisa
científica de base, se não for interrompida, sofrerá uma diminuição e uma estagnação,
causadas, entre outros motivos, pela falta dos produtos industriais mais avançados, de
organização e de financiamento.
Esta antecipação apocalíptica não pode ter prosseguimento se se procurarem paralelos
fáceis entre a Idade Média que terminou há alguns séculos e a próxima. Não procurarei,
deste modo, calcular a probabilidade de novas migrações dos povos, identificando
gratuitamente os chineses de hoje com os godos, os vândalos ou os hunos. Não vou
antecipar um despertar do espírito religioso. Quero apenas mostrar os modos pelos quais
os grandes sistemas se formaram e cresceram desmedidamente e que devem ser
analisados a fim de se conhecerem as causas de sua deterioração que já se percebe por
numerosos indícios.
A observação de que os processos de crescimento e de expansão, atualmente em curso,
não poderão prosseguir indefinidamente, é claramente banal. Por outro lado, não creio
que seja banal a tentativa de prever quando se atingirá o joelho, e que fenômenos
turbulentos poderão ocorrer em correspondência com a passagem de um regime variável
para um eventual regime uniforme. Não será possível examinar (ou apenas enumerar)
todos os diferentes tipos de. processos através dos quais se poderá passar da situação
atual para uma situação estática futura. Limitar-me-ei, portanto, a apresentar adiante,
dentro do razoável, a hipótese citada da ocorrência de um único overshoot seguido por
uma igual e rápida contração e descida, expondo as conseqüências lógicas até o fim do
período que defini como a próxima Idade Média.
As considerações que se seguem não podem ser consideradas como extrapolações
estatísticas, numericamente apreciáveis no que diz respeito à probabilidade de sua
efetiva ocorrência, mas apenas devem ser apreciadas como intuições ou puramente
baseadas em extrapolações de dados numéricos ou corno aquelas que possam contribuir
para resolver o problema central da deterioração irreversível dos grandes sistemas.
Naturalmente, o interesse maior da análise das causas de deterioração dos grandes
sistemas será o de produzir técnicas, procedimentos e modificações adequados e
próprios para evitar outra grave deterioração. Nos capítulos seguintes, dedicados aos
problemas particulares dos mencionados grandes sistemas, examinarei a possibilidade
de salvação que existe para cada um e procurarei delinear quais as providências
indispensáveis para que a situação não degenere, inevitavelmente, para formas instáveis
e, assim, para formas degradadas. Certas conclusões já podem ser antecipadas: as de que
as soluções necessárias não estão ainda sendo aprestadas, ao passo que as soluções
simples são insuficientes e as mais precisas ainda não estão à vista. A fé na engenharia
de sistemas está mal colocada e é oportuno começar a pensar, desde já, nos projetos de
unidades operativas independentes, aptas a conservarem informações, a sobreviverem à
Idade Média e a permitirem um novo Renascimento.
II - Razões erradas de uma improvável parada de expansão
Entre os comentadores de assuntos norte-americanos faz-se menção ao epitáfio que
Harold S. Geneen, o vulcânico Presidente da ITT (Internacional Telephone and
Telegraph), quer ditar para seu túmulo. O epitáfio deverá dizer que naquele lugar jaz o
homem que conseguiu para sua corporação um aumento anual do faturamento maior ou
igual a quinze por cento durante muitos anos (a seqüência ainda não se interrompeu),
obtendo, no mesmo período, lucros anuais significativos.
A segunda parte do epitáfio não é menos importante do que a primeira. Na verdade, é
muito mais fácil aumentar o faturamento, aceitando uma diminuição dos lucros ou uma
perda, do que não assegurar lucros também crescentes.
Com efeito, numa economia em expansão, os resultados conseguidos por Geneen são
realmente excepcionais. Portanto, de acordo com o que foi dito no primeiro capítulo,
chega-se à conclusão de que os resultados conseguidos por Geneen parecem mais
notáveis e únicos, se atentarmos para o fato de que a probabilidade de que um homem
consiga fazer crescer muitas vezes a organização que criou, ou dirige, é muito baixa. Se,
no século passado, os criadores e os amplificadores dos impérios industriais e
comerciais foram Muitos, não haverá muitos Geneen no próximo século.
A minha tese é, deste modo, que teremos, dentro em breve, uma oscilação com subida a
valores gerais bastante maiores do que os atuais, seguida de uma brusca descida até um
mínimo e, afinal, uma nova subida com inclinação não muito baixa. Procurarei
demonstrar que a amplitude total compreendida entre o máximo positivo e o mínimo
seguinte será algumas vezes maior que a amplitude dos ciclos de prosperidade e de
crises que ocorreram nos últimos cem anos.
Esta última circunstância atribui já um caráter dramático aos eventos que estou tentando
prever. Mais explicitamente, os dramas a que me refiro consistirão de hecatombes de
populações muito mais notáveis do que aquelas, relativamente irrelevantes, causadas
pelas guerras, pelos acidentes de tráfego e pelas epidemias. A drástica redução da
densidade dos homens na Terra trará conseqüências profundas sobre cada forma de vida
associativa e muitas das novidades serão duramente suportáveis.
Frente a esta perspectiva parece curioso que exista atualmente uma corrente de
pensamento que considera já como dramático e perigoso em si o fato de que uma
expansão contínua está se verificando, e supervaloriza os inconvenientes da situação
atual nos países desenvolvidos. Contudo, o número de pessoas que se opõem ao
crescimento do produto nacional bruto, ao aumento das dimensões dos grandes sistemas
e as suas conseqüências atuais é tão grande, e. suas vozes são tão fortes, que seus pontos
de vista merecem ser referidos e discutidos.
Já fiz referência ao fato de que tais pessoas se preocupam com isto por motivos errados,
ainda que muitas críticas que fazem ao sistema sejam justas e, até mesmo, muito
tímidas. De resto, seria de pouca significação que, sem citar as fontes, eu adotasse um
ponto de vista composto, constituido de muitos autores, e criando, assim, um
interlocutor muito cômodo que, indubitavelmente, seria muito mais fácil de contradizer.
Prefiro, por isso, citar extensamente e, então, discutir com um dos mais sérios e
distintos defensores dos pontos de vista a que já fiz menção: E. J. Mishan, Professor de
Economia da London School of Economics, e, particularmente, seu livro The Costs of
Economic Growth (Staples Press, 1967).
Alinharei, primeiramente, os argumentos do Professor Mishan que acredito relevantes
no presente debate (mencionado, obviamente, o texto original com uma exposição mais
completa).
I - A expansão econômica, expressa como aumento do produto nacional bruto, como
elevação do nível de renda pessoal médio, como aumento da disponibilidade média dos
bens duráveis de consumo, ou como aumento da quantidade de energia utilizada per
capita, deve ser mantida em nível desejável somente quando conduza a uma situação
geral otimista. Uma ótima situação é aquela em que não existe nenhuma redistribuição
dos recursos da sociedade (meios de, produção, etc.) e que, leve a uma maior
disponibilidade total dos bens aos seus valores de mercado. Em uma situação ótima, o
valor do mercado de cada bem coincide com seu custo marginal (o custo marginal é
definido, notoriamente, como a adição ao custo total relacionado à produção de uma
posterior unidade do bem em exame).
II - O conceito de otimização acima exposto não pode, porém, ser baseado em
considerações dos preços de mercado, porque à produção de, cada bem estão
inevitavelmente associadas "antieconomias externas", definidas como danos infligidos
aos outros membros da sociedade (eventualmente não implicados no processo de
produção, nem interessados no uso dos bens produzidos) em conseqüência da produção
e do uso dos bens.
III - Conseqüentemente, a definição da situação ótima, dada no ponto I, deve ser
corrigida, impondo-se a identidade do valor de mercado não somente ao custo marginal
de produção, mas também à soma do custo marginal de produção e do valor dos danos
infligidos ao restante da sociedade com a produção ou com o uso do bem considerado.
Esta soma é definida como custo marginal social.
E até este ponto é fácil estar de acordo com o Professor Mishan, o qual observa, muito a
propósito, que a causa mais provável pela qual os economistas convencionais e os
estatísticos governamentais não se dão conta dos fatores "antieconômicos externos" é a
de que os valores relativos não são medidos ou, então, são avaliados com extrema
dificuldade e que, por outro lado, é muito difícil, seja do ponto de vista das técnicas de
medida ou do ponto de vista conceitual, estabelecer relações de causa e efeito entre cada
setor da economia e cada tipo de "antieconomia externa". Estas dificuldades não podem,
porém, ser invocadas para sustentar que a "antieconomia externa" - não sendo
facilmente medida não existe, ou então, que é de importância desprezível.
Prossigamos com a lista das teses de Mishan, que apresenta a série das coisas que
parecem mais perigosas na sociedade opulenta e crescente. Aqui, Mishan se torna
decisivamente polêmico e se compromete com afirmações do tipo desta: "a invenção do
automóvel particular é um dos grandes desastres que atingiram o gênero humano" (the
invention of the private automobile is one of the great disasters to have befallen the
human race). As suas aversões se concentram contra as seguintes situações:
IV - A excessiva difusão da motorização particular: porque produz destruição da riqueza
como conseqüência da congestão do tráfego, porque polui o ar, porque. prejudica a livre
contemplação das belezas naturais e arquitetônicas, porque deteriora o caráter e a mente
dos automobilistas durante os longos e lentos trajetos no tráfego congestionado, e
porque suga uma importante parte da possibilidade de investimento na produção de
outros autoveículos, quando os mesmos recursos poderiam sem empregados na
produção de bens mais recompensadores.
V - A excessiva difusão do tráfego aéreo: porque produz barulhos que incomodam os
habitantes das zonas próximas aos aeroportos e porque reduz as dimensões do nosso
planeta, tornando-o um lugar reduzido, menos interessante e menos misterioso.
VI - O turismo de massa: porque é responsável pela destruição de tantas belezas
naturais, seja através do simples passeio dos turistas, seja por causa da proliferação dos
artefatos para alojamento, alimentação, deslocamento e o divertimento dos turistas.
VII - O culto da eficiência: porque obriga muitas pessoas a desenvolver encargos
despersonalizantes, repetitivos e deprimentes, impedindo-as de desfrutar a sua
criatividade e a sua inventiva em atividades mais produtivas independentes do tipo das
seguidas pelos hábeis mestres artesãos.
VIII - A falta de, reservas territoriais separadas, nas quais pudessem se congregar e
viver todos os que abominassem o automóvel, o rádio transistor e os barulhos do
espaço, onde pudessem levar uma vida mais amena e num ritmo mais lento, gozando as
alegrias da família e as dos contatos humanos válidos e aprofundados, como acontecia
há muito tempo atrás.
IX - A conquista excessiva que a publicidade e a moda fazem de grande número de
pessoas (para as quais criam necessidades artificiais) que são forçadas a consumir,
integrando-se, cada vez mais profundamente no processo econômico do sistema e
piorando o nível de seu gosto.
X - As tentativas e os projetos dos engenheiros para melhorar as situações
congestionadas através de uma profunda modificação das estruturas de base. É típico o
caso do Relatório Buchanan (redigido em 1962 pelo Professor C. Buchanan a pedido do
Ministério dos Transportes da Inglaterra), que sugeriu reestruturar as cidades com uma
urbanística o uma arquitetura orientadas segundo as necessidades do tráfego, a exemplo
de uma rede de estradas e de edifícios articulada com vários níveis, a fim de evitar os
cruzamentos e assegurar um fluxo contínuo de tráfego e livre de obstáculos. A solução
preferida de Mishan seria, por outro lado, a de deixar a cidade como se encontra e abolir
todo o tráfego particular, investindo grandes somas no melhoramento dos transportes
coletivos.
É bastante claro que na formulação das teses, da quarta a décima, segundo a numeração
que usei acima, há uma infiltração ideológica, muito importante - como Mishan, de
resto, admite sem reserva. Procurarei limitar ao mínimo a controvérsia ideológica na
exposição das minhas objeções e apresentar, principalmente, considerações
quantitativas, em lugar de demonstrar que os inconvenientes citados por Mishan são
graves, não tanto em si, mas porque representam sintomas de uma tendência para uma
situação muito mais grave, de intrínseca instabilidade e de congestão total, da qual
poderá bem surgir aquilo que defini como a próxima Idade Média.
No que se refere aos pontos IV e X, é oportuno lembrar a existência de intermináveis
polêmicas entre os técnicos da circulação e do tráfego, muitos dos quais querem ver
eliminado o transporte público (como acontece em muitas partes dos Estados Unidos),
enquanto outros querem favorecer nitidamente os transportes coletivos (com locais
próprios, com desvios de estacionamento para os veículos particulares, etc.). E aqui
temos de observar que, em todas as cidades nas quais as condições de tráfego são piores
e constantemente congestionadas, nota-se também que uma percentagem preponderante
dos locais viários são utilizados para estacionamentos - ou melhor, para conter veículos
parados - e que falta uma moderna e eficiente instrumentação para o controle e
regulamento do tráfego. Nas cidades em que o estacionamento fora das ruas tornou
possível a construção de estacionamentos subterrâneos ou elevados, a situação é muito
melhor, e o sistema existente das vias urbanas mostrou-se suficiente para satisfazer a
demanda do tráfego. Um bom exemplo é a cidade de Madri, onde já existem
estacionamentos fora das ruas para mais de 25 mil veículos, enquanto que
estacionamentos para um igual número de veículos estão em construção. Em Roma e
Nova York não existem iniciativas deste tipo em números relativos e de comparação, e,
por isto mesmo, a situação é muito pior. Os instrumentos eletrônicos utilizados para
regular automaticamente o tempo real do tráfego urbano podem contribuir para
aumentar a capacidade de transporte das vias existentes e a velocidade média dos
veículos nos deslocamentos urbanos até em vinte por cento e, além disso, fazem
desaparecer os mais graves fenômenos de congestionamento e da formação de filas de
espera. É verdade que riem sempre grandes sistemas de regulamentação eletrônica do
tráfego obtiveram sucesso no fluir do tráfego urbano. São muitos também os casos de
clamoroso insucesso nestas tentativas e, é claro, tais casos podem despertar uma grande
desconfiança nas possibilidades das técnicas eletrônicas de resolver os problemas da
circulação das vias de tráfego. Entretanto, é preciso notar também que os maiores
insucessos ocorrem quando se emprega uma engenharia de sistemas de baixo nível
enquanto que, sem justificativa, deixa-se de empregar um calculador eletrônico
numérico de grandes dimensões, que poderia assegurar o sucesso da operação. Como
veremos, porém, as coisas não se passam assim: não se pode, logicamente, concluir que
cada possível solução tecnológica deva revelar-se inadequada pelo simples fato de que
muitas soluções tecnológicas, às quais se recorreu, singularmente demonstram-se
ineficientes ou ainda danosas. Em geral, muitas soluções técnicas e sistemáticas, cujo
sucesso deveria ser esperado naturalmente, logo de início mostram uma forma banal e
mesmo deterioradora, e isto é outro fator que leva ao pessimismo, uma vez que surge a
possibilidade de que os grandes sistemas existentes nas nações mais desenvolvidas
atingem sem abalos um estado de equilíbrio.
No que se refere ao item V, observaremos rapidamente que os barulhos produzidos nos
ares não são um flagelo assim tão grave, já que recentes pesquisas psicológicas parecem
indicar que o trabalho humano não se prejudica de modo apreciável em função do nível
de barulho ao qual G homem está exposto. A circunstância mais grave é, de novo, a do
congestionamento do tráfego de aeronaves, seja no ar, seja em terra, nos aeroportos, e, a
propósito disto, podem-se repetir os argumentos já citados quando nos referimos ao
tráfego urbano de veículos. Além do mais, acresce a circunstância de que a velocidade
dos transportes aéreos tem por conseqüência economias externas (ou melhor,
"antieconomias") conexas com a possibilidade de diminuir as imobilizações dos bens e
encargos relativos, de tal modo que estes fatores deverão ser levados em conta e sua
contribuição deverá ser considerada como um acréscimo positivo ao balanço econômico
dos transportes aéreos.
O item VI contém um paralogismo: toda inibição do turismo de massa, realizada através
de regulamentos ou da imposição de tributos econômicos artificiais e, adicionais,
implica no fato de que as belezas naturais são salvas da deterioração, causada pela
presença das multidões, e conservadas para poucos eleitos. Ora, a seleção destes poucos
eleitos é um trabalho que não pode ser realizado com equidade. O problema poderia ser
focalizado de modo mais premente se se pudesse demonstrar que a presença da
multidão provoca, em cada caso, uma destruição irreversível dos recursos naturais. Mas
esta demonstração não pode ser feita, pois existem exemplos convincentes de
regulamentos de salvaguarda do meio ambiente e de determinados locais que obtiveram
um sucesso indiscutível. Além disso, o problema não é tão grave assim, se atentarmos
para o fato de que existe cerca de um habitante para cinco hectares de terras emersas do
globo. Contudo, tal problema poderia tornar-se grave se a densidade da população
terrestre continuasse a crescer no ritmo atual. Esta última hipótese, porém, pressupõe
um aumento muito maior da densidade populacional dos grandes aglomerados urbanos:
e é esta a situação crítica e temível que poderá levar a um equilíbrio instável e provocar,
então, os graves fenômenos de ruptura aos quais já acenei - muito antes que os efeitos
de segunda ordem, referentes ao turismo, possam provocar alguma sensata preocupação.
Minha objeção ao item VII, que critica o assim dito culto da eficiência, consiste na
negação dos fatos adotados para sustentar a tese. É sabido que os cientistas de hoje são
muito mais numerosos do que todos os existentes desde o início da história da
humanidade e já mortes: em termos de números absolutos, então, não há noticia de
nenhuma outra época em que tantas pessoas tenham obtido tantas maciças retribuições
com o desfruto de suas invenções e de sua criatividade. De passagem, isto é verdade;
embora se tenha de considerar a circunstância de que o nível intelectual e profissional
de muitos dos cientistas de hoje é bem mais baixo do que se pensa. Raciocinando
também em termos percentuais, a conclusão não muda. De fato, não há sentido algum
em comparar as condições de vida dos melhores artesãos de qualquer século passado
com as dos operários menos especializados que trabalham nos grandes estabelecimentos
industriais automatizados de hoje. Se nos referirmos aos Estados Unidos da América,
verificaremos que o percentual da população ativa empregada na agricultura era de 65
por cento, por volta de 1850; de 38 por cento, em torno de 1900; e, hoje, é inferior a 12
por cento. Levando-se em consideração o percentual da população ativa empregada nas
atividades terciárias (serviços, distribuição e deslocamento dos bens), é claro que
também há 120 anos os artesãos de alto nível representavam uma exígua minoria da
população. O deslocamento mais significativo ocorreu da agricultura para a indústria e
também da agricultura para os serviços: já em 1956, nos Estados Unidos da América,
era maior o número de pessoas empregadas em atividades terciárias do que o de pessoas
empregadas em atividades produtivas (agricultura e indústria). Somente quem já viveu
no campo pode compreender bem o quanto a atividade, desenvolvida pelos
trabalhadores da terra em urna economia de subsistência primitiva exige e embrutece
mais do que as tarefas típicas dos operários de uma indústria moderna. A pretensa
amenidade do ritmo mais lento de vida está relacionada, freqüentemente, com a
inatividade forçada e deprimente: o valor dos contatos humanos aprofundados,
edificantes e autênticos se reduz, com efeito, a uma absoluta pobreza cultural, à rudeza
das relações estereotipadas, a uma troca de fórmulas verbais constantes, que codificam,
por decênios, uma forma imutável que se transforma em uma forma de humorismo.
Não me parece que haja dúvidas de que a maior disponibilidade, de informações, a
maior possibilidade de pesquisas eficazes e de progresso a níveis culturais e
profissionais mais elevados, que hoje existem, constituam elementos positivos à luz de
qualquer visão do mundo que afirma o primado dos valores humanos sobre aqueles
expressos exclusivamente em preço.
Vamos examinar, a seguir, as teses expressas nos itens VIII e IX. O desejo de reservas
territoriais separadas, nas quais esteja ausente qualquer forma derivada da mecanização
e também evitada qualquer comodidade que advenha do emprego de, aparelhos
barulhentos, incomodativos e deprimentes, poderia ser estudado mais seriamente num
contexto geral e prescindindo das inclinações excêntricas de poucos e isolados
indivíduos, se a experiência já não tivesse sido levada a cabo há muito tempo. Mas já
existem, por exemplo, no Estado da Pensilvânia, algumas comunidades dos menonitas
que não permitem nem a posse nem o uso de automóveis, rádio, televisão, telefone,
telégrafo, máquina fotográfica, cinema, bebidas alcoólicas e tabaco. Se bem que estas
condições coincidam com as mais desejáveis pelos que abominam o torvelinho da vida
moderna, não há notícias de que tenham ocorrido emigrações dignas de nota para
aquelas comunidades, ainda que se tenha feito em torno de tais comunidades uma certa
publicidade em revistas ou em documentários cinematográficos. Deve-se refletir sobre o
fato de que semelhantes asilos só encontram favores particulares da parte de esporádicos
amadores.
Neste ponto, devemos abordar a questão da definição do bom gosto e de sua influência.
Tenho por certo que toda tentativa de dar curso forçado a um bom gosto oficial leve
necessariamente a imposições e perseguições odiosas, A este respeito existem exemplos
na sociedade soviética: não se levando em conta as polêmicas sobre o realismo
socialista e as interpretações stalinistas da arte, a respeito do que é melhor silenciar, é
interessante notar como as últimas tendências que parecem prevalecer na pátria dos
sentimentos coletivos - onde existem também ideologias que não justificam as
vantagens -, ao que tudo indica, estão nitidamente orientadas para um incremento dos
sentimentos privados e individuais.
É compreensível que certas manifestações de gosto uniforme e de pouca elaboração
possam se tornar odiosas: a reação individual pode ser, de uma maneira razoável,
apenas de exemplo e de testemunho. Cada classificação de bom gosto contém
necessariamente elementos estatísticos e de referência à composição dos grupos que
preferem certas formas mais do que outros. Os conceitos objetivos tomados a priori são
obviamente insensatos. No Paquistão existem certos tipos de música que se tocam
apenas pela manhã e que seriam de péssimo gosto se tocadas à tarde: tachar de ridículo
este costume não tem sentido, sub specie aeternitatis, do mesmo modo que se
ridicularize a paixão pela música ligeira ou pelo futebol.
Como quer que seja a, os incômodos e os transtornos da sociedade contemporânea nas
nações desenvolvidas, se podem ser maiores dos que os que existiam no passado - e
isto, corno já se viu, é muito discutível - são de importância insignificante no que tange
ao desastre final. Quem se preocupa muito com isto parece - para usar uma comparação
apocalíptica que cabe nesta argumentação - um prisioneiro num carro todo fechado, que
lamenta o desconforto da viagem e não tem nenhum pensamento para o destino que o
aguarda ao final da viagem.
III - Os grandes sistemas e a sua engenharia
Antes de ilustrar algumas situações atuais de deterioração dos grandes sistemas e de
antecipar outras futuras e mais graves, é oportuno definir o que se entende por grandes
sistemas e descrever como são projetados.
Sem pretender apresentar uma formulação científica ou definitiva, chamo de grande
sistema qualquer organização cujo funcionamento implique em: participação de um
número bastante relevante de pessoas - como operadores ou como usuários; existência
de um procedimento formal ou formalístico; emprego de, máquinas ou aparelhos, onde
todos os elementos citados contribuem para satisfazer movimentos "específicos" para
obter um certo objetivo unitário.
Existem exemplos de sistemas muito antigos. Certamente, podemos considerar como
um grande sistema a organização do projeto, da mão-de-obra e da utilização dos meios
tecnológicos, que tinha como finalidade a construção das grandes pirâmides do Egito.
Na época moderna, o impulso produzido pelos já citados fenômenos de expansão e
crescimento conduziu à proliferação dos sistemas de grandes dimensões. E podemos
citar:
os sistemas de comunicações telefônicas, telegráficas ou telex através de um país
ou de um continente;
os sistemas ferroviários, compreendendo: estações, estradas de ferro, material
rodante, sistemas de sinalização e de segurança, sistemas de emissão de bilhetes
e de tarifas, pessoal e usuários, serviços auxiliares;
linhas aéreas e sistemas de controle de tráfego aéreo;
sistemas de regulamento, controle e vigilância do tráfego de veículos nas cidades
e nas auto-estradas;
sistemas de geração, transmissão e distribuição de energia elétrica;
sistemas postais;
processos industriais automatizados de produção;
sistemas militares de defesa, compreendendo vigilância e pré-alarme de radar,
meios eletrônicos de interceptação e resposta.
E esta lista está longe de ser completa, já que foi redigida para categorias bastante vastas
e gerais.
Muitos dos sistemas citados foram estruturados sem que os projetistas tivessem feito
planos a longo prazo e depois têm de modificá-los gradualmente para satisfazer as
exigências crescentes determinadas pelo aumento das dimensões dos problemas. Muitas
vezes, o sucesso destes acréscimos é modesto.
Se bem que, é claro, muitas vezes os engenheiros de sistemas sejam chamados a projetar
sistemas inteiramente novos, partindo do zero, muito mais freqüentemente a obra dos
projetistas consiste numa reestruturação dos sistemas existentes e reconhecidos como
inadequados, ou então em uma modernização, decidida com a finalidade de, melhorar o
serviço que prestam, aproveitando a possibilidade de automatização adequada no
momento e a disponibilidade de aparelhos de medida e controle eletrônico e de
calculadores eletrônicos universais, aos quais possam ser confiadas numerosas tarefas
de elaboração, decisão e controle, tradicionalmente entregues a operadores humanos.
A notável complexidade é uma característica comum a quase todos os grandes sistemas.
Conseqüentemente, seu planejamento, ou replanejamento, requer uma análise acurada
das finalidades institucionais do sistema, da sua estrutura e do fluxo de informações que
vai receber. Esta análise impõe que os objetivos do sistema sejam redefinidos de modo
formal e que disso se estude um modelo matemático, ou melhor, um conjunto de
fórmulas e procedimentos matemáticos ou de diagramas que permita prever o
comportamento do sistema sem proceder à sua efetiva criação. O modelo matemático
deverá conter elementos de probabilidade para levar em conta situações reais não
determinadas - como são todas aquelas em que o número dos elementos em jogo é
muito relevante. Por exemplo, quando se projeta uma rede telefônica, não se pode, de
modo algum, saber, a priori, quantos futuros assinantes poderão realizar uma
comunicação ou estarão falando em determinado momento, e a única coisa que se pode
fazer é prever diversas alternativas e, elaborar o projeto de modo que as conseqüências
de cada alternativa prevista sejam aceitáveis.
Como acontece freqüentemente, quando uma realidade complicada é esquematizada por
meio de relações matemáticas formais, a descrição dos fenômenos ou dos processos
reais que é fornecida pelas fórmulas não é completamente fiel. Assim, o que acontece é
que as previsões baseadas unicamente na mecânica do modelo matemático poderão
estar eivadas de erros, tanto maiores quanto menos aproximado é o modelo. É
necessário, portanto, dar eficácia ao modelo a fim de decidir se ele pode ser usado de
modo útil e em quanto importa esta utilidade. Desta maneira, serão projetados
experimentalmente os resultados que poderão ocorrer, antes previstos por meio do
modelo, e depois encontrados na prática, de modo a determinar as diferenças entre as
previsões e as medidas efetivas.
Nesta altura, já se escolheu a tarefa que o sistema deve cumprir, assim como a
linguagem (matemática) com a qual se falará do sistema com precisão.
O passo seguinte é definir a lógica do sistema, ou melhor, decidir o que deve acontecer
a cada um dos seus elementos em cada uma das situações com que se pode deparar
durante sua passagem (espacial ou temporal) através do processo. Este estágio do
projeto, que é indicado com o nome de projeto seqüencial (single thread design), ainda
não tem o objetivo de determinar as soluções tecnológicas, ou os tipos de aparelhos, ou
ainda a organização dos operadores humanos eventuais - mas, apenas, o de definir as
funções que devem ser encontradas em um dado elemento, do instante em que penetra
no sistema ao instante em que sai dele.
Além de estabelecer o que desejamos que aconteça em cada possível circunstância a
cada telefonema, a cada trem, a cada aeroplano ou a cada carta - o histórico das quais
deve ser pré-ordenado e governado pelo sistema - devemos levar em conta o fato de que
o número destes elementos, que se encontram simultaneamente no âmbito do sistema, é,
geralmente, muito alto. Os sistemas dos quais nos ocupamos são aglomerados - de alta
densidade - e, portanto, apenas em casos muito raros, o projeto seqüencial. relativo a
elementos singulares pode resolver completamente os problemas que se apresentem. Por
outro lado, o projeto seqüencial não resolve os problemas de incompatibilidade qUe
surgem quando dois ou mais elementos exigem simultaneamente o cumprimento de
uma função do sistema, assegurada por aparelhagens e serviços de capacidade limitada.
De modo mais geral, pode-se dizer que o sistema deve ser projetado para condições de
tráfego intenso - ou melhor, de modo a poder funcionar também quando ocorra uma
congestão contida entre os limites razoáveis.
A definição do que seja razoável, nestes limites, é uma questão sutilíssima e muito
discutível. É certo, porém, que estes limites devam existir, diferentemente do sistema
que se torna cada vez mais complicado e mais custoso de realizar.
Um bom exemplo pode ser dado pelas redes telefônicas. Por óbvias razões confidenciais
e indesejáveis de interferências, aceita-se o princípio de que nenhum assinante possa
completar uma chamada para outro assinante já ocupado em outra conversação. Não se
levando em consideração este caso limite, porém, será possível evitar qualquer
fenômeno de congestionamento telefônico - definido como uma situação em que o
assinante X não consegue completar a chamada para o assinante Y, que está livre, pelo
fato de que as linhas existentes estão ocupadas por conversações entre outros assinantes
diferentes de X e Y - simplesmente instalando um número tal de linhas de, conexão
entre todos os assinantes, dois a dois entre si, e de todos os modos possíveis. Mas, esta
estrutura das redes telefônicas será inaceitavelmente custosa e, como tal, não pode ser
levada em consideração dentro do complexo telefônico. Basta pensar que o número de
linhas necessárias para conectar cem mil assinantes dois a dois e de todos os modos
possíveis será de cinco bilhões. Por isto, à parte o fato de que existem soluções técnicas
para reduzir o número de linhas telefônicas, normalmente as redes são projetadas de
modo que!, aproximadamente, não mais de vinte por cento dos assinantes possam falar
ao mesmo tempo: malgrado esta limitação, nas redes bem projetadas a espera imposta
àqueles que desejam efetuar uma chamada telefônica é de duração muito breve e os
casos em que a chamada não pode ser feita durante um espaço de tempo relativamente
longo são muito raros. Por outro lado, é verdade que, por exemplo, todo o sistema
telefônico dos Estados Unidos da América ficará bloqueado se 25 milhões de
americanos decidirem simultaneamente falar ao telefone.
Os projetistas de sistemas seguem, em geral, o principio de que não é aconselhável - e
isto leva a soluções muito custosas - estruturar o sistema de modo a satisfazer também
às exigências das situações características de uma baixíssima probabilidade. Deste
modo, um sistema é considerado bastante bom se funciona satisfatoriamente durante
364 dias por ano, ainda que, se por um dia por ano, em média, funcione de modo
completamente inadequado.
(As coisas se complicam, porém, quando a probabilidade de certos eventos de
congestionamento - desprezivelmente baixa na época em que o sistema foi projetado -
começa a crescer - exatamente o que sucede, com a expansão econômica, com a
explosão demográfica e com a melhoria das condições da vida média. Acontece, então,
que os serviços prestados pelo sistema se tornam cronicamente insuficientes porque o
funcionamento se desenvolve em condições de tráfego muito intenso: o
congestionamento se torna quase contínuo e a maioria dos usuários recebe um serviço
deteriorado e insatisfatório.)
Uma vez definidas detalhadamente as funções do sistema, é necessário definir a
estrutura e, particularmente, resolver o problema centralização-descentralização - ou
seja, decidir se os serviços prestados pelo sistema podem ser mais vantajosamente
assegurados por uma grande e única aparelhagem central em lugar de subdividida em
muitas aparelhagens mais simples e especializadas, geralmente instaladas em locais
diversos e distantes entre si. A primeira solução é claramente preferível se o sistema tem
uma extensão topográfica limitada, e, é ainda preferível se o tipo de funções que devam
ser realizadas pelas aparelhagens é bastante complicado (por exemplo: cálculos
matemáticos complexos), porque aí é preciso usar máquinas dotadas de grande poder de
elaboração, sendo conveniente investir maiores capitais em uma única aparelhagem que
preste muito maior número de serviços. Entretanto, se os locais onde os dados são
elaborados estão geograficamente distantes uns dos outros (por exemplo: filiais de
bancos), aumentam os custos das comunicações entre os locais onde são fornecidos os
dados e o elaborador central. Também, neste caso, a centralização é mais fácil, e
preferida, pela disponibilidade dos terminais econômicos através dos quais é possível
comunicar nos dois sentidos com um grande computador e centralizado.
Por outro lado, a solução descentralizada é preferível quando as elaborações são
bastante simples e uma duplicação (ou repetição) de funções em aparelhos periféricos
idênticos uns aos outros se torna mais econômica do que um sistema centralizado que
implique em custosos canais de comunicação.
Nos sistemas se pode reconhecer um fluxo principal, que é aquele dos objetivos para os
quais o sistema é projetado - homens, veículos, mercadorias, unidade de energia,
mensagens, etc. - e um fluxo de controle constituído de sinais (produzidos automática
ou manualmente) que transmitem à unidade ou à organização de governo do sistema
informações sobre o estado do mundo, relevantes àquele problema. Da elaboração
destes sinais de entrada e de saída que, em geral, representam simbolicamente as
decisões tomadas e alimentam de modo oportuno pontos de ação (máquinas ou homens)
dependem as decisões a serem postas em prática. Fazem também parte do fluxo de
controle os sinais representativos de informações, os quais não devem, necessariamente,
ter, por conseqüência, determinadas ações de governo, mas que devem transmitir ao
pessoal encarregado da vigilância do sistema dados que lhes permitam conhecer a
situação em um dado momento, reconhecer a ocorrência de acontecimentos anômalos e
intervir diretamente nestes casos, adotando os procedimentos normais de controle.
Entre as fases realizadas ao fim do processo, está a da dita implementação tecnológica,
ou definição dos serviços prestados, características e típicas dos aparelhos de medida, de
transmissão das informações, da elaboração dos dados, de controle e da atuação prática
das decisões. Em nenhum caso, é necessário projetar e construir instrumentos e
aparelhos especiais, tendo como único objetivo satisfazer a necessidade de
funcionamento do sistema - e a decisões deste tipo se chega, efetivamente, na fase final
do projeto do sistema. Em outros casos, integram-se no sistema instrumentos e
aparelhos existentes e projetados para outras finalidades: desta maneira, ocorre com
bastante freqüência que a disponibilidade de certas máquinas, ou de certas invenções
técnicas, forneça a idéia inicial para a estruturação do sistema ou, pelo menos,
influencie decisivamente no conceito.
Cada sistema deve satisfazer as finalidades para as quais é projetado e construindo. No
sentido de, que esta afirmativa não fique genérica e inútil, para cada sistema deve ser
definida uma cifra de mérito - ou medida de eficiência - que permita saber "quão bem"
funciona o sistema, ou seja, em que medida, alcance efetivamente os objetivos
prefixados. Para ser útil e significativa, uma cifra de mérito deve ser medida
quantitativamente de modo simples e econômico e dotada de significado físico
imediatamente apreciável. O exemplo mais significativo é aquele em que se possa
definir uma cifra de mérito que indique quão longe está o sistema de um funcionamento
ideal e ótimo - correspondente, deste modo, a cem por cento dos serviços requisitados.
Esta situação, que se realiza plenamente quando se procura definir o rendimento de
máquinas que transformam a energia térmica em energia mecânica, é, por outro lado,
muito rara quando se trata de avaliar a prestação dos grandes e complexos sistemas do
tipo dos que nos ocupamos. Malgrado a aparente linearidade e simplicidade dos
requisitos de uma boa cifra de mérito, ocorre freqüentemente que estes requisitos não
podem ser completamente satisfeitos. Entretanto, também ocorre com freqüência que os
avalistas de sistemas cedam à tentação de confiar em estimativas feitas "pelo
sentimento", na base de uma experiência direta, mas medida quantitativamente, de
algum aspecto particular problema.
Por outro lado, é claro, na nossa definição dos grandes sistemas, que muitos destes não
têm o objetivo de obter um único tipo de resultado concernente a uma única classe de
objetos, mas sim objetivos múltiplos, cada um dos quais interessa a diversas categorias
de usuários ou de elementos, os quais se apresentam em números relevantes. E não se
pode resolver com meios simples o problema de decidir qual será a melhor entre duas
únicas soluções diversas e alternativas - quando uma delas oferece soluções melhores do
que a outra pelo cumprimento de uma parte dos objetivos prefixados, ao passo que
apresenta características nitidamente inferiores para a satisfação de outros objetivos
essenciais. Existem técnicas matemáticas para ordenar, segundo certos critérios de
preferência, as diversas soluções de um dado problema de sistema: a aplicação destas
técnicas conduz, entretanto, a conclusões expressas em fórmulas dificilmente
apreciáveis por aqueles que devem fazer a escolha final e que são, com freqüência,
administradores e não matemáticos ou técnicos em pesquisa operativa.
É este um dos pontos mais críticos de toda a engenharia sistemática, já que isto
influencia escolhas vitais que podem definir irreversivelmente a direção do
desenvolvimento, da pesquisa e das realizações em um determinado campo por lapsos
de tempo bastante longos. Além do mais, a disponibilidade de critérios de avaliação a
posteriori é necessária a fim de que seja possível um processo de realimentação
(feedback), que permita, de início, resultados eficazes para melhorar os modelos
matemáticos, as estatísticas, e submeter a uma revisão de segunda aproximação as
mesmas características do sistema, as prescrições lógicas e também as funções
singulares e as características das várias partes do sistema e dos aparelhos empregados.
Não obstante esta grande dificuldade na mesma definição e na utilização das cifras de
mérito de finalidades avaliáveis, é costume, atualmente, dos projetistas, e ainda mais
dos vendedores, afirmar que seus sistemas são excelentes. os procedimentos da
excelência seguidos, porém, são definidos com clareza formal apenas em casos muito
raros, e a afirmação de que uma solução sistemática é excelente tem, freqüentemente,
caráter de propaganda e a finalidade de criar a impressão de que o sistema de que se fala
é o melhor possível.
Ora, não se levando em conta a citada dificuldade epistemológica de comparar
resultados efetivos ou resultados projetados com o funcionamento ideal e ótimo,
correspondente a cem por cento das exigências que o sistema deve satisfazer, quando
este funcionamento ideal não pode ser definido, é preciso lembrar que em cada
problema de sistema o número de variáveis a considerar é muito grande e o número de
suas diversas combinações (ou das decisões acerca do modo de tratar cada uma das
variáveis) é enorme. Uma vez que a muitíssimas combinações de variáveis ou de
decisões, embora não a todas, correspondem outras tantas possíveis soluções
alternativas do problema, para se poder afirmar sensatamente que uma determinada
solução é ótima é preciso ter examinado a constituição técnico-econômica e as
implicações (resultado, balanço custos/benefícios !cios, segurança de funcionamento,
vida provável) de todas as soluções e possuir dados suficientes para afirmar que a
solução escolhida é efetivamente melhor do que as outras, sob todos os pontos de vista.
Este procedimento será de tal maneira longo e custoso que resultará proibitivo: para
vetá-lo se apresentam, de resto, considerações práticas, no sentido de que a efetiva
realização a curto prazo de um sistema apenas satisfatório é muito mais desejável do
que a realização de um sistema melhor depois de muito tempo e com um custo de
projeto muito maior.
A este propósito, Raiffa e Schlaifer, com muita autoridade, sustentam que seria
oportuno renunciar a todos os critérios de excelência (ou otimização) (optimizing) em
favor de critérios de adequação (satisficing) aos objetivos prefixados. E, com efeito, o
que sucede na prática, nos estágios iniciais de projeto de um sistema (e alguns
projetistas parecem envergonhar-se disso), é que algumas decisões basilares são
tomadas de modo principalmente intuitivo, afastando-se radicalmente diversos tipos de
soluções possíveis e renunciando, por isso mesmo, à sua avaliação analítica. Somente
depois que a constituição do sistema, nas suas grandes linhas, já está decidida é que se
procede a uma análise formal das poucas alternativas que restam.
Como veremos a seguir mais detalhadamente, a sistemática está hoje em crise, não
apenas por causa das dificuldades expostas até agora, e que têm caráter conceitual, mas
também por causa de elementos muito mais banais, presentes, porém, numa maioria
quase, preponderante de casos que me e
1. Muitos engenheiros, diretores, ministros, administradores, não suspeitam nem de leve
da existência dos problemas suscitados pelos sistemas e acreditam que cada situação
crítica possa ser resolvida radicalmente por meio de obras, aparelhos ou máquinas
especiais, ou seja, por meio de soluções técnicas ou tecnológicas "de manual"
concebidas individualmente para fornecer um único resultado ou para remediar
determinado inconveniente. É raro que algum deles imagine que as prescrições ditadas
para resolver um problema se oponham àquelas às quais se recorre para resolver um
problema parecido. Por outro lado, este tipo de situação aparece, na realidade, com
muita freqüência.
2. Também quando um dado técnico tirado de um manual poderia resolver um certo
problema isolado, esta solução não é adotada - por inércia, omissão ou desinteresse.
3. As previsões sobre futuros desenvolvimentos das situações criticas, habitualmente,
não são, nem de longe, tentadas, ao passo que, nos casos excepcionais, em que tais
tentativas são feitas, estas se limitam a modestas extrapolações lineares, sem nenhum
esforço de imaginação que possa permitir reconhecer o próximo surgimento de
situações drasticamente novas e de elementos completamente diferentes daqueles até
então notados. A conseqüência disto é que cada realização sistemática já nasce velha e
antiquada.
"Concluo, portanto, que, variando a sorte e permanecendo os homens em suas
obstinações, são felizes enquanto concordam entre si, e infelizes quando discordam."
(Maquiavel, O Príncipe, XXV)
4. Muitos projetistas de sistemas dividem o problema principal em problemas parciais,
cada um dos quais é resolvido com técnicas relativamente simples e baseadas sobre
hipóteses de linearidade (simples proporcionalidade, entre efeitos e causas), enquanto
todas as questões relativas ao funcionamento integrado e simultâneo destas várias partes
são relegadas à responsabilidade de aparelhos que podemos denominar de "versáteis"
(aparelhos de adaptação, intercomunicação e tradução), cujo projeto (talvez por causa
de sua dificuldade) quase sempre recebe muito menos atenção do que a que é dedicada à
solução dos problemas parciais citados.
5. Muitos administradores de projetos de sistemas supervalorizam o significado do
procedimento da documentação destinada a registrar e controlar as especificações, o
projeto, as variantes e o progresso do sistema que se deseja realizar e acabam por
confundir a realidade com o que está no papel para representar o procedimento com ela
relacionado, ou, melhor: desprezam a existência da realidade, e consideram verdadeiro e
real apenas o que está projetado no papel. Elaboram, assim, sistemas coerentes e que
funcionam no papel, mas divorciados da realidade e, em grande parte, inúteis.
Este último tipo de situação tem caráter mais geral do que foi dito aqui e tem raízes
profundas na tradição de incompetência diretiva (mismanagement) que é uma das
causas remotas da grande crise iminente - e que examinarei mais profundamente a
seguir.
IV - A insubmissão dos sistemas
Em 1958, Philip Bagby escreveu, em seu livro Culture and History: "As únicas
dimensões de uma cultura, ou melhor, o número de pessoas que a praticam não parece
constituir per se uma característica muito significativa - se bem que, naturalmente, a
organização política e econômica das grandes áreas implica problemas um tanto
diferentes dos das pequenas áreas."
Seria surpreendente que um dos mais acurados e profundos cientistas contemporâneos -
entre os que tentaram uma análise lógico-experimental da História e da Civilização - se
tivesse livrado, de modo assim simplista, de uma questão tão grave, quando ainda hoje a
maioria dos planificadores, dos técnicos, dos que lidam com os sistemas e dos políticos
subestimam culposamente as conseqüências que incidem sobre os grandes
conglomerados modernos.
Existe, por outro lado, há anos - e está se agravando continuamente - um trágico
problema de congestionamento dos grandes sistemas nos eixos próximos aos maiores
centros urbanos o tipicamente representados por fluxos de pessoas, veículos,
mercadorias, energia, comunicações e resíduos. O público menos informado lamenta o
congestionamento cotidiano do tráfego nas vias urbanas e interurbanas e do tráfego
aéreo, da impropriedade e instabilidade --- redes de comunicações. Estas situações
causam distúrbios e contratempos a grande número de pessoas e, é claro, provocam
destruição de bens.
As cifras em jogo são enormes, mas, não obstante, não se dispõe de valores precisos e
completos de sua importância: a elaboração de análises sistemáticas neste campo é uma
necessidade urgente. Todavia, citemos alguns dados a título de exemplo.
A Federal Aviation Agency, dos Estados Unidos, calculou, em 1969, que a falta de
aeroportos e de aparelhamentos aeroportuários adequados somente na cidade de Nova
York provocará uma perda para a economia da cidade da ordem de 125 bilhões de liras
no ano de 1975 e de quatrocentos bilhões de liras por ano em torno de 1980.
O Ministério do Trabalho italiano afirma que o congestionamento do tráfego de
veículos representa para a população uma perda atualmente calculada entre um e dois
trilhões de liras por ano.
Os técnicos especializados em vários campos freqüentemente costumam identificar
singulares impropriedades às quais atribuem uma parte respeitável da responsabilidade
destes aspectos de insatisfação da vida urbana. É freqüente o caso de aparelhos já
existentes que, se empregados em larga escala, melhorariam em muito a situação, mas
que, ao invés disso, são usados esporadicamente ou mesmo nunca são empregados.
Por exemplo: a aeronáutica militar americana usa largamente, e com grande vantagem,
o radar tridimensional, mas a Federal Aviation Agency acha que ele não é bastante
preciso para a aviação civil.
No campo do regulamento do tráfego de veículos urbanos, os planificadores, muitas
vezes, estão convencidos (algumas vezes levianamente) de que razões de orçamento
impedem a resolução dos problemas por meio de obras de engenharia civil mais ou
menos importantes - por exemplo, cruzamentos a dois ou três níveis mediante viadutos
ou passagens subterrâneas ou estacionamentos fora das vias de circulação, cuja
finalidade é reservar toda a via para os veículos em lugar de mantê-las com
estacionamento. Parece razoável, então, voltar-se a falar em técnicas mais econômicas
de regularização semafórica, mas, uma vez tomada esta decisão, muitas vezes se
renuncia ao emprego de regularização eletrônica que proporciona seqüências variáveis
em tempo real em função do tráfego, e se dá preferência a aparelhos eletromecânicos de
pouca confiança e que funcionam em tempos determinados. Renuncia-se, deste modo, à
utilização plena de rendimento máximo das estruturas existentes, que poderiam, por
outro lado, proporcionar um aproveitamento satisfatório dos sistemas viários
antiquados.
Uma instrutiva casuística pode ser encontrada em Reger K. Field sob o título
significativo de "Os Problemas da Instrumentação Urbana Põem por Terra os Técnicos
Aeroespaciais" (Electronic Design, vol. 16, nº 26, 4 de janeiro de 1968). O trabalho de
Field apresenta alguns casos clamorosos de necessidades das metrópoles nos campos
das comunicações, do controle do tráfego sobre pneus ou sobre trilhos, da
instrumentação dos sistemas de aprovisionamento de água, dos esgotos e do controle da
poluição atmosférica, que algumas das maiores indústrias, empenhadas nos programas
aeroespaciais, já tentaram resolver sem sucesso.
Cumpre notar, a esta altura, que também as decisões indiscriminadas de utilizar
computadores eletrônicos numéricos para tentar a solução de qualquer problema de
controle ou do uso de sistemas complexos - postulando-se como ilimitada a
"flexibilidade" deste tipo de máquina - constituem, com efeito, sofismas. Antes de
recorrer ao computador, é preciso que o processo de controle ou de uso esteja
completamente definido e formalizado, ou melhor, tenha sido confrontado e resolvido
satisfatoriamente o problema estrutural do funcionamento do sistema a prescindir da
implementação tecnológica correspondente.
O emprego de instrumentação inadequada ou desproporcional contribui, certamente,
para agravar os problemas das megalópoles e já um aumento neste sentido representa
um desafio à capacidade das indústrias eletrônicas mais avançadas. Mas não é aceitando
este desafio e obtendo sucessos marcantes nesta direção que se pode esperar resolver
completamente o problema. Por outro lado, existem dois tipos de deficiências no
sistema, os quais não se pode remediar simplesmente projetando e realizando certos
aparelhos especiais, nem resolvendo simples problemas puramente técnicos.
O primeiro tipo de deficiência é característico dos casos em que são apresentadas teorias
bem fundamentadas e bem elaboradas sobre o funcionamento dos sistemas
considerados, mas estas teorias não são aplicadas com os dados precisos por simples
incompetência ou por um aumento inesperadamente rápido das dimensões e das
complicações do sistema.
Pode-se citar o caso da teoria da estabilidade estática e dinâmica das redes elétricas para
o transporte de energia, codificada classicamente por S. B. Crary, e notar que a
disponibilidade da teoria demonstrou não estar em condições de evitar o black-out de
novembro de 1965 no Nordeste dos Estados Unidos - enquanto os parâmetros relativos
às entradas de funcionamento dos interruptores automáticos e o grau das proteções
diferenciais foi escolhido erradamente. Pode-se citar ainda o caso da teoria do
congestionamento dos sistemas telefônicos, que não serviu para evitar os graves
fenômenos de paralisação na rede telefônica de Nova York ou na de Paris, pois que as
extrapolações preventivas a respeito do aumento da demanda possuíam graves erros e
defeitos
O tipo de deficiência sistêmica citada pode ainda ser evitado, seguindo-se processos
unívocos de racionalização, sem inventar nada de radicalmente novo.
O segundo tipo de deficiência citado consiste na falta de teorias, de conceitos
sistemáticos e de modelos matemáticos adequados para representar a realidade e prever
OS desenvolvimentos. E este o caso das concentrações das megalópoles, como e
oportuno fazer como um sistema único. E este também o caso de alguns subsistemas
que fazem parte cio sistema megalopolitano: por exemplo - se bem que estejam
definidos e também utilizados modelos matemáticos do tráfego de veicules em vastas
áreas urbanas, não existe uma teoria a respeito destes fenômenos que tenha conseguido
um aperfeiçoamento comparável ao sas teorias estatísticas sobre o funcionamento e,
utilização das redes telefônicas. E quando falta a teoria, não se podem fazer previsões
sensatas sobre o tempo necessário para defini-la e verificá-la o que e tanto mais
verdadeiro se se observa que as tentativas de progresso são lerias, multas vezes, em
direções escolhidas ao acaso, o que importa numa velocidade do progresso
extremamente baixa (parece proporcional à raiz quadrada do tempo gasto na pesquisa).
Se todas as vantagens obtidas com as soluções de manual fossem efetivamente
alcançadas, as situações correspondentes melhorariam ou seriam menos trágicas e
poderiam ser, pelo menos, adiadas - mas, provavelmente, não se evitaria a ameaça grave
que muitos sintomas induzem como iminente. A destruição das riquezas, as frustrações
e os aborrecimentos causados Pelos fenômenos dissiPadores não são, entretanto, o pior
dos males. As concentrações urbanas criam uma estreita interdependência entre todos os
grandes sistemas convergentes, cada um dos quais pode assumir funções parcialmente
supletivas das tarefas normalmente desempenhadas pelos outros (uso do telefone no
caso de bloqueamento do sistema postal; recurso aos deslocamentos pessoais no caso de
não funcionamento dos sistemas telefônico e postal). O pior dos males reside, portanto,
no fato de que muitos grandes sistemas na mesma área entrem simultaneamente em
crise. Para tornar mais concretamente apreciáveis as possíveis conseqüências funestas
desta hipótese, consideremos separadamente alguns fenômenos congestivos que
ocorreram nos últimos anos em uma das áreas mais avançadas tecnologicamente, mas
na qual existem também os sistemas maiores e mais concentrados: a costa nordeste dos
Estados Unidos da América.
A 9 de novembro de 1965, a rede de interconexão de transporte de energia elétrica de
New England, no Estado de Nova York, a Ontário (Canadá), apresentou condições de
instabilidade e, conseqüentemente, faltou energia por períodos de tempo de até quatorze
horas em uma área ocupada por trinta milhões de pessoas, anulando-se uma potência
total de cerca de quarenta mil MW, igual a quase o dobro da potência de todas as
centrais italianas de produção de energia elétrica: hidrelétricas, termoelétricas e
nucleares. Somente na cidade de Nova York, seiscentas mil pessoas ficaram bloqueadas
nas ferrovias metropolitanas. A mobilidade dos habitantes foi depois limitada pelo fato
de que permaneceram parados os motores elétricos das bombas de gasolina, tornando,
assim, impossível qualquer fornecimento de combustível.
A 9 de janeiro de 1970, o sistema ferroviário Penn Central, que serve a Nova York e
Filadélfia, sofreu, por acumulo de circunstâncias ocasionais, um tal deterioramento do
próprio nível de serviço que 117 trens, de um total de 413, não partiram, e 290, das 296
viagens efetuadas, sofreram consideráveis atrasos.
No outono de 1969, um aumento inesperado da demanda de serviço na rede telefônica
de Nova York, acompanhada por um agravamento de qualidade da manutenção, teve
por conseqüência um bloqueio praticamente total de uma central automática, em cujas
redes, por dois dias consecutivos, não se conseguiu, virtualmente, obter uma linha livre,
e várias mesas de usuários da área de Nova York foram obrigadas a longas esperas e a
repetidas renúncias às comunicações.
As paralisações do tráfego urbano são tão sentidas na Itália como nos Estados Unidos, e
não vale a pena citar alguns casos mais clamorosos.
Imaginemos, agora, uma situação em que todas as crises sobra as cidades ocorram ao
mesmo tempo e sejam acompanhadas de condições meteorológicas extremas: por
exemplo, durante uma forte nevasca ou em temperaturas muito baixas. Conquanto se
possa argumentar que a probabilidade de uma tal concomitância de eventos críticos seja
extraordinariamente baixa, parece óbvio que, esta hipótese enseje a previsão de uma
catástrofe de dimensões jamais vistas. Por outro lado, os efeitos das crises singulares
não se somarão aritmeticamente, mas se amplificarão reciprocamente. Milhões de
pessoas morreriam de fome e de frio por motivos e de modos que descreverei
detalhadamente.
O congestionamento dos sistemas urbanos ocorre agora a níveis absolutos muito mais
altos e com densidades maiores do que no passado. Estão em curso de elaboração
teorias matemáticas destinadas a definir os níveis críticos do congestionamento e a
determinar os valores-limites inatingíveis das dimensões de um sistema urbano. Estes
limites dependem do número, das dimensões e dos tipos de canais de intercâmbio
disponíveis e, também do número, da qualidade e da eficiência do emprego de meios
técnicos para reduzir a "resistência" ou dificuldade que os canais opõem aos fluxos que
os percorrem.
Os cálculos indicam e a história confirma que as cidades antigas, em que circulavam
pedestres e veículos de tração animal, não podiam ter mais de dois milhões de
habitantes. Os limites atuais de densidade populacional, impostos pela mobilidade dada
pelos meios de transporte modernos e pelo grau de eficiência com que são utilizados,
são discutíveis. Se bem que tenha sido sugerido um limite teórico de quarenta milhões
de habitantes, devemos observar que até agora ainda não existem cidades com mais de
vinte milhões de habitantes, mas - seja ou não possível uma existência estável - os
ritmos atuais de desenvolvimento parecem tender a níveis nitidamente superiores e
instáveis, dos quais se poderá rolar bruscamente para níveis muito baixos. As
conurbações que primeiro superarão os vinte milhões serão a cidade de Nova York, com
as áreas densamente populosas de Nova Jersey, e o conjunto de Tóquio e Iocoama, que
já estão se aproximando dos dezesseis milhões.
Já citei a típica ineficiência operacional do sistema ferroviário Penn Central: a sociedade
proprietária daquele sistema faliu no início do verão de 1970. As causas remotas da
falência podem ser encontradas, sem dúvida, na desorganização do sistema: vagões
inteiros de mercadorias eram simplesmente perdidos, trens não podiam partir por falta
de locomotivas, não se podia constituir comboios com mais de 75 vagões para percursos
continentais, unicamente para evitar colocar no trem um outro operário encarregado dos
freios durante a travessia de Indiana, como prescrevem os regulamentos daquele Estado.
As causas próximas da falência financeira podem ser, por sua vez, identificadas com as
decisões erradas da direção. Nos últimos cinco anos, o Presidente do Conselho de
Administração da sociedade, Stuart T. Saunders, iniciou uma diversificação das
atividades sociais, investindo cerca de noventa bilhões de liras em empreendimentos
imobiliários, na esperança de obter lucros percentuais que fossem pelo menos o dobro
dos conseguidos pela ferrovia e que eram de 2 a 9 por cento. Inicialmente, esta decisão
parecia genial, mas, com a contração da economia americana e os abalos de Wall Street,
as novas atividades imobiliárias levaram a fortes perdas a que se somaram as da gestão
ferroviária (35 bilhões de liras em 1969; quatrocentos milhões de liras por dia em 1970).
A falência tornou-se inevitável. Será interessante ver o que acontecerá com o
funcionamento operativo da Penn Central depois que a nova gestão tiver tempo de fazer
sua prova.
Apresentei tais fatos somente para mostrar como uma degradação de sistema pode ser
acelerada em conseqüência de mismanagement financeiro.
Em geral, as crises ocorridas no passado e, devidas a causas econômicas (como a de
1929) parecem também mais graves do que as devidas à guerra. Os sistemas
econômicos apresentam um comportamento cíclico - com período e amplitude variáveis
- e é sintomático que os que dirigem estes sistemas (governantes, financistas e
banqueiros) tenham idéias muito vagas (como qualquer outro, de resto) sobre as causas
e as maneiras como ocorrem os ciclos econômicos. No século passado, C. Juglar
pretendeu provar que os ciclos econômicos tinham um período de 7 a 9 anos; J. Kitchin
sustentava que os ciclos duravam quarenta meses de um boom a outro e N. D.
Kondratieff dizia ter constatado ciclos de 45 anos de duração. Estas interpretações de
certa regularidade nos fenômenos do passado não permitiram, contudo, prever o futuro
econômico com alguma segurança. Se estas previsões fossem possíveis, os
procedimentos corretivos das situações de inflação ou de recessão seriam perfeitamente
definidos e mais eficazes e o funcionamento das bolsas de ações não seria de tal
maneira que pudesse ser comparado a um jogo de azar.
Com efeito, a ignorância no terreno da economia e a incapacidade de governar os
sistemas econômicos são as manifestações mais notáveis e flagrantes de uma situação
mais geral: enquanto as dimensões e as complicações dos sistemas tendem a crescer
além de qualquer nível anteriormente considerado como um limite superior, a
capacidade de dirigir e governar esses sistemas - em lugar de crescer - deteriora-se e se
manifesta cada vez mais inadequada.
Os grandes sistemas se tornam cada vez mais "ingovernáveis". Ninguém sabe como
estabilizá-los e poucos procuram prever as conseqüências de sua crescente instabilidade.
Um destes poucos é o Professor Jay W. Forrester, do Massachusetts Institute of
Technology, que analisou, por meio de modelos matemáticos em computadores, o
funcionamento e os processos de desenvolvimento e de regressão de empresas, de
cidades e, mais recentemente (J. W. Forrester, World Dynamics, Wright Allen, 1971),
de todo o sistema mundial. A análise de Forrester é interessantíssima, nova e muito
profunda, e por meio dela será possível determinar a quantidade e tornar mais precisas
as previsões de repentina destruição dos grandes sistemas que estou apresentando.
Forrester escreveu que as soluções dos grandes problemas de sistemas são complicadas
e "contra-intuitivas" por causa da não-linearidade dos sistemas e do número muito alto
dos anéis de feedback que eles contêm. Sabemos que as soluções intuitivas válidas no
caso de problemas mais simples muitas vezes não são usadas: devemos acreditar,
portanto, que as novas e não óbvias soluções que permitirão governar os grandes
sistemas ainda são mais remotas e longínquas e não virão em nosso socorro em um
futuro previsível.
V - A impotência elétrica
É bastante raro que as indústrias produtoras de um certo bem invistam durante dois anos
somas enormes em publicidade, com a finalidade de aumentar as vendas, para só então
perceberem, após o sucesso da campanha publicitária, que sua capacidade produtiva é
nitidamente inferior à demanda - tanto que são obrigadas a dirigir acalorados apelos aos
fregueses no sentido de que limitem voluntariamente o consumo de seus produtos.
Entretanto, isto é exatamente o que sucedeu com as sociedades norte-americanas
produtoras de energia elétrica, que até 1968 procuravam fazer aumentar o consumo de
energia, induzindo o público a usar aquecimento elétrico e ar condicionado, mas que, no
verão de 1969, pediam a todos que reduzissem o consumo, advertindo que se a
autodisciplina fosse insuficiente, seria necessário recorrer a um racionamento
obrigatório.
Neste campo, as coisas se tornam mais difíceis, porque o tempo necessário para
construir uma grande central de produção de energia elétrica, ou uma linha de alta
tensão de uns duzentos quilômetros de extensão, é de alguns anos do momento em que,
se toma a decisão até o empreendimento da nova obra, Por esta razão, é impossível aos
produtores americanos satisfazer a tempo a demanda, que eles mesmos tinham
contribuído para criar, e também por esta razão será indispensável planificar as novas
implantações a longo prazo e empregar os esforços adequados nos programas de
pesquisa e desenvolvimento. Isto, às vezes, não ocorre. Em média, as sociedades
produtoras de energia elétrica na América têm gasto nos últimos anos apenas 0,2 por
cento de sua receita, enquanto o Bell System, que é o maior concessionário norte-
americano de redes telefônicas (as quais, por seu turno, estão em situação muito crítica,
como veremos detalhadamente em um dos capítulos seguintes), gastou cerca de 1,9 por
cento de sua receita.
Em 1950, quando eu estava na universidade, ensinava-se que a necessidade de energia
elétrica nos países desenvolvidos, e na Itália em particular, dobrava cada dez anos e,
então, esta informação era bastante exata. Foi muito curioso encontrar novamente o
mesmo dado, vinte anos depois, no Business Week (número de 11 de julho de 1970,
pág. 52), apresentado como estimativa da Federal Power Commission, que avalia a
demanda de energia elétrica para 1990 igual a quatro vezes a atual (o que corresponde
exatamente ao dobro em cada dez anos). Foi ainda mais curioso ler no mesmo artigo
que "alguns técnicos predizem o dobro da demanda de energia a cada oito anos" e,
sempre no mesmo texto, que a demanda está crescendo de doze por cento ao ano - o que
corresponde ao dobro a cada seis anos, mais ou menos. Business Week é uma revista
séria, que documenta apuradamente as suas notícias, tomadas das mais informadas
fontes federais e industriais, e que já em novembro de 1969 começara a publicar
previsões sobre a crise de energia esperada para o verão de 1970. Ora, o fato de que
sejam apresentados num editorial, impassivelmente e sem comentários, dados tão
contraditórios, dá a nítida impressão do que o conhecimento da situação de base neste
campo seja muito confuso nos Estados Unidos. Esta impressão é confirmada se se notar
que a revista indica, entre as causas da crise de energia, uma grave carência de carvão
fóssil, e cita - como dado dramático - a circunstância de que em 1969 a indústria
queimou 7,8 milhões de toneladas de carvão a mais do que foi extraído das minas
durante o mesmo ano, tanto que se teve de recorrer bastante às reservas. Este deficit de
carvão fóssil pode causar certa impressão em quem não saiba qual é a produção total
das minas americanas: se se observar, porém, que nos Estados Unidos são extraídos, em
média, dois milhões de toneladas de carvão por dia, verificar-se-á que o deficit
acumulado em um ano corresponde apenas a quatro dias de produção mineral, ou, em
outras palavras, a pouco mais de um por cento da produção anual - o que não deve ser
particularmente grave.
De resto, este sistema é tão grande e complicado que ninguém sabe exatamente como
funciona, ou melhor, porque está deixando de funcionar. Na realidade, no tocante ao
abastecimento de carvão às centrais térmicas - à parte a situação objetivamente difícil
dos minérios e dos transportes ferroviários (insuficiência do número de vagões
especiais) - parece, que um dos inconvenientes principais está na alocação irracional das
disponibilidades existentes, isto é, o carvão, quando existe, se encontra em lugares
errados. A Tennessee Valley Authority (que afirma ter reservas particularmente baixas
em comparação com as normais), no verão de 1969, teve, de improviso, que decidir a
transferência de duzentas mil toneladas de carvão da sua central de Bull Run para a
central de Kingston, por meio de caminhões, para poder manter em funcionamento a
segunda central.
Os fatos a que me referi dão um exemplo concreto do que afirmei: a crise de um sistema
(neste caso, dos transportes ferroviários) pode contribuir para agravar a crise de um
sistema diverso (neste caso, o sistema de produção de energia elétrica).
As dificuldades dos produtores de energia se somam, amplificando as dos construtores
de máquinas elétricas, os motivos mais comumente citados desta dificuldade são: falta
de pessoal especializado, baixa produtividade, indiferença dos subordinados, greves e -
no que toca a novas obras, lentidão administrativa e controvérsias jurídicas. Em 1969,
os produtores estadunidenses tinham projetado aumentar a potência instalada de 26.384
MW, mas o consumo levou a um aumento de apenas 22.470 MW, ou seja, inferior em
15 por cento ao programa.
Estes atrasos e estas desproporções tornam a situação americana muito semelhante à
italiana: esta última melhorou, enquanto a primeira deteriorou-se nitidamente. Nos anos
cinqüenta, os engenheiros eletrotécnicos italianos acreditavam ser uma fábula o fato de
que há mais de vinte anos jamais faltara força nas redes de distribuição americanas, ao
passo que na Itália os diagramas da tensão das redes apresentavam variações muito
grandes e lamentavam-se as interrupções de fornecimento a cada mês, senão a cada
semana, ou mesmo a cada dia.
Depois de 1967, começaram a registrar-se nos Estados Unidos casos mais importantes
de interrupção do serviço. Em dois anos - da metade de 1967 à metade de 1969 -
ocorreram 179 casos de interrupção que a Federal Power Commission considerou
bastante importantes para analisá-los individualmente, e oitenta deles foram devidos a
desarranjos das máquinas ou a funcionamento defeituoso de sistema.
O estado de coisas descrito acima tem andamento relativamente gradual e contribui
certamente para criar as premissas de crises mais graves e imprevistas; mas é destas que
é mais interessante tratar, pois farão parte integrante da ruinosa avalancha que defini
como o surgimento da próxima Idade Média.
Depois do black-out (já citado no capítulo precedente) de 9 de novembro de 1965 na
zona Nordeste dos Estados Unidos e em Ontário, ocorreu outro em 1967, que durou dez
horas, nos Estados de Pensilvânia, Nova Jersey e Maryland. Em 1966, na zona de Saint
Louis, a demanda de energia para os aparelhos de ar condicionado, durante uma onda de
calor no verão, obrigou a Union Electric Company a racionar a distribuição de energia à
cidade durante alguns dias. Em fevereiro de 1971, Nova York ficou novamente no
escuro durante quatro horas.
Aquilo que interessa mais, do ponto de vista sistêmico, é observar quais as decisões, os
planificações e os remédios sugeridos ou adotados para evitar a repetição dos black-outs
totais citados. Com este objetivo, merecem ser examinados, em detalhes, as conclusões
da Federal Power Commission, que redigiu um relatório em três volumes, dedicado à
planificação coordenada e ao funcionamento das grandes produções de energia, a fim de
assegurar a máxima confiança e para evitar futuras ocorrências de desarranjos em série
e de interrupções do serviço em escala regional ou nacional.
Charles Concordia, da General Electric - que é, talvez, o mais competente especialista
contemporâneo no tocante aos problemas da estabilidade e confiança das grandes redes
elétricas -, escreveu ("Considerations in Planning for Reliable Electric Service", IEEE
Spectrum, agosto de 1968) que, para obter um nível de segurança satisfatório, não há
necessidade de mudanças revolucionárias, mas basta apenas aplicar princípios salutares
de projeto, planificação e exercício. Neste ponto, um pessimista poderia dizer que a
normal aplicação destes princípios salutares já constitui uma mudança revolucionária;
mas, discutir as definições seria menos instrutivo do que um exame das sugestões
concretas apresentadas por Concordia (que ele modestamente define como muito
óbvias) e um confronto entre estas sugestões e os resultados do citado relatório da
Federal Power Commission.
Concordia sublinha corretamente que a maior parte das interrupções de fornecimento de
energia elétrica são causadas pelas redes periféricas de distribuição e não pelos grandes
sistemas de geração e transmissão. Contudo, as interrupções que dependem destes
últimos têm conseqüências muito maiores e, sobretudo, podem causar vastas crises
secundárias de sistemas separados de comunicações, de transporte, de defesa, de higiene
pública, etc., e merecem, por isto, uma atenção especial. Se consideramos aceitável uma
interrupção do serviço uma vez a cada cinco anos, por causas devidas às redes de
distribuição, é razoável aceitar que as interrupções devidas aos sistemas de produção e
transmissão ocorrem dez vezes menos freqüentemente, ou seja, uma vez a cada
cinqüenta anos (com duração média de interrupção igual a uma hora). Para obter isto,
Concordia propõe três ordens de providências:
1. Os sistemas de produção e transmissão de energia devem ser projetados de modo que
para cada futuro encargo previsto, a capacidade de produção e de transmissão esteja
sempre pronta a impedir que qualquer incidente precipite condições para a ocorrência de
um segundo. Por exemplo: se um alternador entra em pane, a energia que ele transmitia
à rede antes do desarranjo é repartida entre as outras centrais, que continuam
funcionando, o que pode contribuir para evitar condições de sobrecarga em outros
alternadores que, por sua vez, podem ser postos fora de funcionamento pela ação de
aparelhos automáticos de segurança. Este tipo de desarranjo "em cascata" pode
propagar-se em tempos brevíssimos e até anular inteiramente a energia gerada por um
grande sistema, sem que os operadores se dêem conta do que está acontecendo, e sem
que possam intervir manualmente para dirigir a situação e melhorá-la. No caso do
black-out do Nordeste da América do Norte, em novembro de 1965, a reação inteira em
cadeia se concluiu em quatro segundos, a partir do instante em que um interruptor em
pane cortou, repentinamente, uma das linhas de 230 kV, que emitia na rede a energia da
Central Sir Adam Beck nº 2, próximo à Catarata de Niágara.
2. Os sistemas de produção e transmissão devem funcionar dentro de limites tais que
assegurem reservas de capacidade suficientes para evitar os desarranjos em cascata. Este
segundo principio permite descontar a margem de erros da capacidade existente
segundo os projetos e se refere ao modo como os sistemas possam ser utilizados.
O aumento das linhas elétricas de interconexão é, genericamente, uma coisa boa, porque
permite distribuir a demanda de vastas áreas de maneira mais equilibrada entre um
número maior de centrais de produção. Porém, a complexidade do sistema que obtém o
aumento das interconexões pode tornar mais difícil - e até mesmo impossível - uma
eficiente vigilância automática do sistema. As margens de segurança não devem, por
isto mesmo, ser aumentadas indiscriminadamente, mas calculadamente balanceadas
com a necessidade de dispor continuamente de informações significativas que permitam
intervenções automáticas, simples e eficazes.
3. Se se prescindir das margens de segurança no projeto e depois na realidade, pode
sempre acontecer que ocorram condições críticas, seja pela concomitância de eventos de
baixa probabilidade, seja, mais simplesmente, por incúria ou por erros humanos. É
preciso, portanto, dispor e prever disposições finais de emergência que possam
minimizar a importância e a duração das interrupções de serviço. Para evitar crises de
dimensões muito relevantes, o melhor jeito é o de isolar parcelas de carga elétrica
predeterminadas geralmente usadas para rebaixamento de freqüência: algumas
subsidiárias serão prejudicadas, mas a integridade do sistema, no seu complexo, será
conservada.
As sugestões de Concordia estão também no relatório da Federal Power Commission e
o próprio autor o cita favoravelmente. O volumoso relatório contém, porém, muito mais
e é interessante examinar a importância relativa atribuída às várias questões.
As conclusões e as recomendações da comissão são subdivididas em 34 subseções ao
longo de nove capítulos.
O primeiro capítulo, com três subseções, se refere à formação de organizações de
coordenação. O segundo capítulo, com onze subseções, trata da planificação dos
sistemas interconexos. O terceiro capítulo, com nove subseções, se ocupa do exercício
dos sistemas interconexos. o quarto capítulo, com três subseções, prescreve normas para
a manutenção dos sistemas interconexos. O quinto capitulo, com uma subseção, indica o
desejo da definição de critérios standard unificados para o projeto, construção, exercício
e manutenção dos sistemas de produção e transmissão de energia. O sexto capítulo, com
três subseções, sugere providências de emergência. no intuito de assegurar a
continuidade de funcionamento dos sistemas de defesa e de outros sistemas críticos. O
sétimo capitulo, com duas subseções, estabelece a responsabilidade dos construtores,
especialmente no que trata das provas e experiências dos aparelhos. O oitavo capitulo,
com uma subseção, invoca uma melhoria da educação profissional necessária para
produzir em maior número técnicos e engenheiros de bom nível. O nono capítulo, com
uma subseção, propõe trocas de informações técnicas com países estrangeiros que estão
enfrentando problemas semelhantes de projeto e de uso.
A estrutura do relatório é claramente racional, mas é inquietante observar que cinco das
subseções citadas têm o objetivo de sugerir a instituição de comissões, ou melhor, de
organizações que se ocupem, na verdade, mais de escrever outros relatórios do que
qualquer outra coisa. E que há familiaridade entre as inspeções e reuniões dos técnicos e
sua inutilidade, na maioria dos casos apenas vacilantes.
Seis das subseções do relatório propõem incrementos das dimensões dos sistemas e, de
novo, dão a antipática impressão de que as questões de racionalização tenham recebido
menos atenção do que as atinentes ao aumento indiscriminado das reservas e da
capacidade instalada. Os desenvolvimentos pouco dirigidos nesta direção são mesmo
aqueles que conduzem a situações críticas de instabilidade e de insubmissão.
Finalmente, oito subseções são concernentes às providências de emergência para
minimizar a gravidade das conseqüências dos black-outs que não podem ser evitados,
malgrado as precauções citadas. Seria, talvez, muito pessimista sustentar que a atenção
dedicada às providências de emergência é excessiva e denota uma desconfiança de base
no sucesso das medidas sistemáticas voltadas para assegurar a continuidade do uso. Que
a preparação para as emergências seja ainda hoje insuficiente está claramente
demonstrado pelo fato de que, durante a grande interrupção de 1965, ocorreram graves
danos aos turboalternadores das centrais térmicas, porque as bombas de lubrificação de
seus grandes tampões ficaram sem alimentação - e isto foi suficiente para produzir
paradas dos êmbolos e tais desgastes que puseram fora de uso os grupos por alguns
meses, simplesmente pela falta de lubrificação durante a transitória parada das contrais.
A Federal Power Commission sublinha a necessidade, que, contudo, deve ser
descontada, de prever alimentações de emergência - além dos serviços auxiliares das
centrais (lubrificação, iluminação e comunicações) - também para: aeroportos,
telecomunicações em geral, defesa militar e civil, repartições governamentais, sistemas
de transporte de massas, comunicações e controles relativos às missões espaciais,
serviços hospitalares e ferrovias metropolitanas.
Uma situação crítica parecida com a americana existe no Japão, onde o consumo de
energia elétrica dobra a cada cinco anos e as linhas de transporte de energia, antiquadas
e inadequadas, são particularmente pouco seguras e caracterizam-se por um rendimento
muito baixo.
É difícil profetizar se as melhorias sistemáticas da produção e da transmissão de
energia, estudadas em muitos paises, terão sucesso ou não. Minha previsão pessoal é
bastante pessimista.
Um fator negativo posterior pode ser o das ações de sabotagem e da não-colaboração ao
autocontrole do consumo por parte de grupos de contestadores. Se os sistemas fossem
mais sólidos, não valeria nem a pena citar estes tipos de fatores marginais. Entretanto,
dentro de pouco anos, também esses poderão produzir efeitos não desprezíveis e talvez
representar a gota d'água que falta para entornar o copo.
VI - Congestionamento urbano e
paralisações dos transportes
Numa quarta-feira de junho de 1953 as ruas do centro de Roma eram percorridas por
automóveis de todos os tipos. Eram pulIman de turistas e velhos caminhões. Eram autos
de antes da guerra e pequenas jardineiras Fiat. Eram aqueles que ostentavam a sua nova
Millecento - finalmente modernizada na carroceria - ou a sua luzidia Appia recém-
comprada. Se bem que, naquele tempo, o número de licenças de automóveis, em Roma,
ainda não tivesse chegado a duzentos mil, a capacidade de transporte das vias do centro
histórico foi superada pelo volume, porque a disciplina do tráfego era, então, mais
casual e caótica do que a atual. E ocorreu um dos primeiros e maiores
congestionamentos de tráfego.
Na Via Nazionale se andava mui lentamente. A Via Quattro Fontane estava
completamente bloqueada. No Corso, a distancia entre os pára-choques era de poucos
centímetros. Os veículos que se achavam na Praça do Tritão ficaram imobilizados mais
de uma hora. Depois de meia hora que a sua poeirenta camioneta estava parada no
mesmo lugar na Via Sistina, os componentes de uma banda municipal provinciana, de
visita, começaram a tocar uma marcha. Subitamente, quase todos os automobilistas que
estavam engarrafados começaram a acompanhar a música com suas buzinas. O ritmo se
difundiu numa área muito grande da cidade, e foi seguido também por aqueles que
estavam muito distantes para ouvir a música da banda. Os pedestres sorriam. Os que
estavam nos carros não diziam palavrões e não estavam irritados pela perda de tempo
inesperada. Havia uma atmosfera de festa injustificada, induzida pela satisfação de que
também a Itália atingira um nível de motorização tal que já permitia esses
engarrafamentos e aquelas "marmeladas de automóveis", das quais até então só se tinha
conhecimento pelos relatos horripilantes e pesarosos elas páginas da Seleções do
Reader's Digest. O bloqueio do tráfego urbano por breve tempo não foi uma maldição,
um aborrecimento, mas um sinal de distinção, um símbolo de status.
Hoje, o tráfego congestionado é reconhecido por todos como lima praga - pelo tempo
que se perde, pelo stress que provoca, pela poluição que gera, pela paisagem que
deturpa - mas, estranhamente, a maioria atribui a este mal características de
inelutabilidade e impersonalidade, como se se tratasse de uma força da natureza
pertencente à mesma categoria do mau tempo. Por outro lado, os eventos ocorridos nos
últimos vinte anos não eram muito difíceis de prever, nem seria muito mais difícil
prescrever remédios apropriados. Isto não foi feito e - por exemplo, em Roma e em
Nova York - tomou-se implícita e cegamente a decisão de se destinar as vias urbanas
muito mais para conter veículos parados do que para fazer com que autos em
movimento circulassem por elas. Não é difícil fixar um rápido cálculo para determinar
qual o custo do emprego de uma parte de rua de cidade considerada como garagem:
somando-se os custos de pavimentação e manutenção, e acrescentando-se a isso o lucro
cessante devido à impossibilidade de fazer fluir por esta parte, ocupada por carros
estacionados, uma corrente de tráfego, temos como resultado que, o custo de um lugar
ocupado por um automóvel no asfalto da rua equivale hoje, em média, à imobilização de
um capital de setenta milhões de liras. Tal investimento é claramente desproporcional às
vantagens que se logrará: além disso, deve-se notar que em tais cálculos não entra quem
utiliza tais vantagens.
A lista das coisas que foram deixadas de lado e que aconteceram depois, sem que fosse
tomada qualquer decisão consciente e de peso para prescrever providências ou para que
se alcançasse uma situação aceitável, é muito longa, e todas as escolhas são implícitas e
não evitaram os males contemporâneos. O número dos automóveis em circulação dobra,
na Itália, a cada quatro anos, e nos Estados Unidos da América, que está mais próximo
da saturação, a cerca de cada quinze anos, mas enquanto os parques de veículos se
agigantavam, os planificadores ficavam esperando que, de algum modo, tudo acabaria
bem melhor. Em Roma se falou muito do metropolitano, porém foram ridiculamente
lentas e ineficazes as atividades de projeto e, de construção para recuperar o atraso de
quase meio século em comparação com outras capitais européias. Nos Estados Unidos
da América, durante cerca de sessenta anos, não se projetou nem construiu nenhum
novo sistema de trânsito urbano de massas: o primeiro, após este longuíssimo lapso de
tempo, é o BART (Bay Area Rapid Transit; System), projetado para São Francisco e
para a área da baía circunvizinha, de 1951 a 1967, e que se, espera entrará em serviço,
pelo menos em parte, em 1971.
Nos Estados Unidos, a taxa de crescimento anual do número de veículos em circulação
continua a diminuir e esta será uma circunstância favorável, especialmente, se
comparada com outro fator, o de que nos EUA as auto-estradas interurbanas e urbanas
desenvolveram-se de maneira excepcional. Mas, neste ponto, cabem duas observações.
A primeira e que a relação custo/benefício relativa a uma nova auto-estrada norte-
americana parece sensivelmente mais desfavorável do que a relativa à extensão e
melhoramento dos sistemas de transporte coletivo, onde a decisão de incrementar as
auto-estradas, além de certos limites, não parece a mais razoável. A segunda
consideração é que os sistemas de auto-estradas, muito complexos e ricos de percursos
paralelos, conexões e entroncamentos, tornam-se dificilmente usaveis por quem não os
conheça perfeitamente, malgrado os esforços de tornar a sinalização a mais fácil
possível. Sabemos muito bem, na Itália, que se nos enganarmos numa saída da Auto-
Estrada do Sol, alongaremos nosso percurso total em algumas dezenas de quilômetros.
Entretanto, na auto-estrada do Sol o problema é simples: trata-se de recordar o nome de
uma estação ou a sua distância progressiva e prestar atenção suficiente para identificar
um ponto sobre uma linha reta. Nos Estados Unidos, por sua vez, para seguir
corretamente certo percurso de distância média nas proximidades de uma grande cidade,
exige-se a memorização de posições de uma dúzia de pontos de desvios e um único erro
pode dobrar ou triplicar o percurso projetado.
Para ajudar os automobilistas americanos, o Department of Transportation concebeu um
sistema de instrumentos do futuro: o ERGS (Electronic Route Guidance System ou
sistema eletrônico de guia de escolha de percursos). No sistema ERGS, o veículo leva a
bordo um aparelho transmissor automático, no qual, no início de cada viagem, o
motorista impõe manualmente o código convencional da localidade para a qual se
dirige. O veículo transmite automática e continuamente o código de seu destino e,
quando passa sobre uma espiral colocada em cima da pavimentação da estrada, o código
é transmitido e enviado a um computador central em tempo real, o qual - enquanto o
veículo ainda está transitando sobre a espiral - determina qual deva ser a próxima
manobra do carro e retransmite, através da espiral, para o receptor de bordo, um sinal
que acende um indicador direcional luminoso. O motorista é, assim, informado acerca
da manobra a realizar na próxima bifurcação: seguir em frente, tomar a direita ou a
esquerda, e sendo guiado em cada um dos pontos de escolha que encontra pode atingir
sem problemas seu destino.
O custo do sistema ERGS é muito alto: supondo-se que possa ser produzido em série,
somente o transmissor de bordo custará algumas dezenas de milhares de liras. O
Department of Transportation decidira experimentar um sistema reduzido a algumas
centenas de bifurcações e desvios e para poucas dezenas de veículos, mas,
recentemente, também a realização do sistema reduzido foi adiada indefinidamente por
falta de fundos.
O problema não seria tão grave, se fosse apenas a falta de dinheiro que retardasse ou
bloqueasse as inovações futurísticas. Grave também é a falta de dinheiro para os
trabalhadores e os sistemas mais corriqueiros ("de manual"). E não me refiro aqui a
casos singulares e excepcionais, como o da cidade de Turim (onde há 35 anos não se
constrói nenhuma passagem subterrânea), mas à situação insatisfatória de cada
metrópole.
Já desde a Primeira Guerra Mundial, os congestionamentos do tráfego nos Estados
Unidos da América tinham tomado proporções preocupantes e as esperas nos
cruzamentos já se tornavam muito longas. Para diminuir esta perda de tempo, Harry
Haw inventou, em 1927, os sistemas semafóricos comandados, a tempos variáveis, pelo
próprio tráfego, e começou a instalá-los no Connecticut.
Os semáforos que comandam o tráfego contam automaticamente, por meio do
elementos sensíveis chamados roladores, o número de veículos que surgem num
cruzamento, de cada via do tráfego, e alongam ou diminuem o tempo do sinal verde
destinado a cada fluxo, proporcionalmente à sua importância numérica. Quando, numa
via que leva a um cruzamento, não aparecem veículos, o sinal verde não surge para este
fluxo, o que constitui uma vantagem para as outras correntes do tráfego que não são
paradas inutilmente, como acontecia com os semáforos de tempo fixo. As vantagens
conseguidas com os semáforos que comandam o tráfego são intuitivamente óbvias e
também estão documentadas em estudos teóricos e de relevantes usos comparativos.
Não obstante tudo isso, os semáforos que dirigem o tráfego somente começaram a ser
usados na Itália em 1962, ou seja, com 35 anos de atraso. E a culpa deste retardo, e da
lentidão com que estes sistemas modernos se difundiram na Itália, pode ser atribuída à
divergência tecnológica. Por seu turno, na própria América, onde foram inventados, os
semáforos que comandam o tráfego são empregados, ainda hoje, em pouco mais de
trinta por cento dos casos. Por fidelidade à tradição, e por cálculos errados de economia,
dois terços dos novos semáforos que se instalam todos os anos nos Estados Unidos
ainda são controlados por aparelhos de tempo fixo. E este é apenas um exemplo de
como são tolamente rejeitadas vantagens sensíveis (avaliadas aproximadamente entre 10
e 30 por cento de diminuição dos tempos de percurso médio), que se poderiam obter
com meios simples e seguros e com uma relação custo/beneficio muito favorável.
No campo do tráfego urbano de veículos, quase todos aqueles que vivem na cidade,
particularmente se dirigem automóvel há certo tempo, possuem curiosas e práticas
sugestões e soluções finais gratuitas para todos os problemas que afligem a cidade, e
especialmente para os problemas relativos ao congestionamento. Estas soluções são,
muitas vezes, acatadas somente porque aquele que a propõe tem uma posição
importante e provoca, deste modo, decisões forçosamente adotadas. Já vimos que uma
decisão muito importante a de utilizar as ruas para conter veículos parados, em lugar de
usá-las para veículos que andam - é tomada quase sempre do modo tácito, implícito,
passivo. Outras soluções mais radicais - e, entretanto, pouco divulgadas - são
apresentadas e repetidas tão freqüentemente de modo a conservar o que, em muitos
casos, será aplicado, na prática, com força de lei. Estas soluções possuem em comum
uma redução dos níveis de serviço, ou melhor, um racionamento obrigatório da
capacidade de serviço existente, que deveria atingir o objetivo de tornar aceitáveis as
condições de tráfego - pelo menos para os poucos que ficam em circulação.
A interdição total dos centros urbanos para os veículos individuais e Particulares é
identificada freqüentemente, com a solução final do problema. Com efeito, isto equivale
a uma redução das dimensões do problema, pelo menos em uma ordem de grandeza, na
hipótese de que nenhum outro procedimento sistemático possa servir para dirigir os
sistemas existentes, dada a sua atual situação, e tendo em vista as tendências atuais do
desenvolvimento posterior. Em inglês se diz que esta solução equivale a "Jogar fora a
criança junto com a água do banho". Poder-se-ão esperar resultados semelhantes com a
proibição de construir novas viaturas ou sujeitando a produção automobilística a cotas-
limite. Mas estas soluções alternativas não são apresentadas por ninguém, talvez por seu
absurdo, ou pelo suposto ou real poder dos produtores de automóveis.
Por outro lado, ainda se aplicam com certo sucesso, proibições de estacionamento em
áreas urbanas centrais, durante algumas horas cruciais do dia. Estes procedimentos
confirmam que um dos maiores fatores de congestionamento urbano é a presença de
muitos veículos parados nas ruas. É, entretanto, errada a solução de eliminar
indiscriminadamente estes veículos parados, em lugar de construir estacionamentos fora
das vias de circulação. Em Madri, Paris, Londres e em muitas cidades alemãs e suíças, a
construção de numerosos estacionamentos subterrâneos serviu para dar fluidez ao
tráfego nas vias urbanas sem tolher brutalmente a circulação da maioria dos usuários
particulares. Não é verdadeira a afirmação do que os novos estacionamentos fora das
ruas agravam os problemas existentes por um aumento de demanda, devido à sua
disponibilidade: as vantagens que se obtêm liberando as ruas são maiores do que as
presumidas desvantagens pelo aumento do número de veículos. Em conclusão,
consegue-se, deste modo, oferecer um serviço melhor - um maior número de usuários.
Mas, a finalidade das considerações precedentes é apenas de demonstrar,
incidentalmente, que, para o tráfego de veículos, existem soluções sistemáticas vitais.
Mais relevante é a constatação de que, atualmente, os sistemas de transporte urbano não
são otimistas, mas criados de modo casual e esta sua tendência de desenvolvimento
continua a prevalecer, não havendo nenhum sintoma de uma iminente administração
mais racional das vias de comunicação das cidades. Em quase todos os grandes centros
urbanos, a engenharia de sistemas não tem vez: todas as decisões são tornadas, na
esperança de que seja criado um número mínimo de oposições a curto prazo, e esta não
é a única justificativa.
A ignorância dos termos numéricos do problema é evidente também nas expressões
mais banais da vontade dos legisladores. Por exemplo, a proibição de estacionamento
em fila dupla - contravenção algumas vezes chamada de "obstrução da circulação" -
vale, quase sempre, na Itália, uma multa de três mil liras. Mas este valor de multa não
leva em conta e não compensa o fato de que um veículo que faz fila dupla, obstruindo
uma pista de tráfego, causa prejuízos muito maiores aos outros usuários da via de
circulação que, em média nas grandes metrópoles, gastam de dez a trinta mil liras Por
hora. Esta circunstância, obviamente, não pesa em nada se considerarmos que o
aumento da multa para trinta mil liras seria muito impopular.
Ao nível da estruturação dos sistemas de controle do tráfego, a ignorância não é menor.
Os jornalistas ridicularizam a proliferação indiscriminada dos semáforos nas cidades
italianas e contribuem para manter situações em que, por falta de controle, criam-se
engarrafamentos em cruzamentos a que convergem apenas uma dezena de automóveis
Afirma-se nos Estados Unidos que o número mais apropriado de cruzamentos
sinalizados em uma área urbana seja dado, aproximadamente, dividindo-se por mil o
número de habitantes naquela área. Na Europa, e na Itália em particular, os índices de
sinalização são muito mais baixos e num nível tecnológico muito mais atrasado, que
garante a segurança se o tráfego é escasso mas se torna inadequado para permitir um
fluxo ordenado, veloz e sem perda de tempo, se o tráfego é intenso. Citemos alguns
dados de 1970: Turim: um cruzamento sinalizado para cada 4.500 habitantes Milão: um
cruzamento sinalizado para cada 6.300 habitantes Gênova: um cruzamento sinalizado
para cada 6.950 habitantes Roma: um cruzamento sinalizado para cada 7.000 habitantes
Paris: um cruzamento sinalizado para cada 9.500 habitantes
Acontece, porém, estranhamente, que esta grave falta de racionalização não exerce seu
influxo deletério com a continuidade e com as tristes conseqüências que poderiam ser
esperadas. Todos já lemos algumas dezenas de artigos de jornais que anunciam: "A
Cidade Explode" - "O Fluxo de Aço se Congela nas Ruas da Cidade" - "O Tráfego
Automobilístico na Cidade É Mais Lento do que as Carroças de Cavalos". Na grande
maioria dos dias do ano, atravessar nossas cidades requer, hoje, quase exatamente o
mesmo tempo requerido há dez anos atrás, quando o número de automóveis era muito
inferior (na Itália cerca de um quarto do número atual).
Devido à falta total de regulamentação racional e de predisposição de alternativas, nos
últimos anos, os que se utilizam de uma via de tráfego encontram-se totalmente
abandonados a si mesmos, e reagem do único modo possível, impondo-se uma
autodisciplina limitativa. Um número crescente de pessoas tem-se recusado a empregar
tempos maiores do que um certo limite para o percurso de seus itinerários habituais e
limitam, voluntariamente, o uso do automóvel aos dias de festas. Para diminuir seus
tempos de deslocamento nos dias úteis, mudaram de casa, aproximando-se mais do
local de trabalho, transformaram seus próprios horários habituais, passaram a utilizar-se
dos transportes coletivos ou passaram a deslocar-se a pé: alguns passaram a utilizar-se
de bicicletas ou de motonetas. Por conseguinte, o volume de tráfego efetivo nos centros
urbanos, nos dias úteis, é pouco diferente do de cinco ou dez anos atrás, e em cerca de
35 minutos pode-se percorrer dez ou doze quilômetros ao centro de Roma, Milão,
Turim ou Paris - salvo exceções. O sintoma que causa mais preocupação é, porém, que
as exceções se tornam cada vez mais freqüentes. Há dez anos atrás, poderia ocorrer uma
vez em cada seis meses que se levasse, num determinado percurso, um tempo duas
vezes maior do que o normal. Há cinco anos atrás, o mesmo evento ocorria uma vez por
mês e agora acontece uma vez a cada duas semanas, ao passo que uma vez a cada seis
meses se verifica que se leva mais de três horas para se andar quatro ou cinco
quilômetros na cidade.
Cada vez que algumas dezenas ou algumas centenas de milhares de pessoas sofrem
atrasos superiores a uma hora em seus percursos habituais, suas reações de
aborrecimento ou de medo são muito grandes. Nos dias seguintes ao do engarrafamento
de tráfego, de dimensões muito grandes, vêem-se em tráfego pouquíssimos autos e os
tempos de trânsito diminuem bruscamente a valores trinta ou quarenta por cento
inferiores aos normais. Depois, gradualmente, a lembrança do choque se atenua e, em
cerca de uma semana, o volume de tráfego torna a crescer e com isto se alongam os
tempos de percurso. Sobre o altiplano quase horizontal que representa os tempos de
trânsito normal, encontram-se, cada vez mais freqüentemente, picos correspondentes a
tempos de trânsito anormalmente longos: a altura destes picos torna-se maior com o
passar dos anos. Cada pico é seguido por um vale dos tempos de trajeto menor -
correspondente ao aparecimento em cena dos muitos automobilistas em estado de
choque - que tem a primeira parede de inclinação muito acentuada e que sobe depois, de
modo mais suave, até alcançar de novo o planalto.
Não é difícil entender por que as coisas acontecem deste modo. O efeito da lenta
autolimitação - a longo prazo no emprego dos veículos particulares e o de fazer
aumentar continuamente o número dos automobilistas que devem entrar em circulação
quase ao mesmo tempo, mas que, com efeito, permanecem parados a maior parte do
tempo. Nenhuma lei, nenhuma autoridade dirige a inércia ou o movimento desta loja -
muito grande - de veículos quase sempre inúteis. Seu grande número e a absoluta
arbitrariedade de seus proprietários tornam o fenômeno totalmente casual. Quanto mais
crescem as dimensões deste autoestacionamento potencial, mais cresce a probabilidade
de que, imprevisivelmente, em um dia qualquer, numa via de tráfego haja tantos carros
que provoquem um grande engarrafamento. Este aumento de probabilidade se manifesta
com um aumento da freqüência dos grandes engarrafamentos e com um aumento de sua
gravidade.
Este tipo de fenômeno é fortemente influenciado pela experiência dos homens que
concorrem para que ele surja. Também num país de motorização antiga, como os
Estados Unidos da América, há vinte anos - quando o parque automobilístico norte-
americano não atingira ainda cinqüenta milhões de veículos - ocorreram
congestionamentos que duraram dois ou três dias, tendo os helicópteros da polícia
levado alimentos para as crianças das famílias bloqueadas. Hoje, quando há na América
cerca de cem milhões de autos, congestionamentos tão graves não ocorrem - não tanto
porque há mais auto-estradas, mas porque grande maioria dos usuários aprendeu a evitar
aqueles riscos.
Na Itália, nunca ocorreram bloqueios tão graves, e a unidade de medida do tempo de
congestionamento é ainda a hora e não o dia. Seja na Europa, seja nos Estados Unidos,
porém, está-se criando uma injustificada e implícita confiança de que o
congestionamento urbano e nas estradas não é uma tragédia, mas apenas um
aborrecimento. E esta confiança, aliada ao aumento ininterrupto de número de veículos
em disposição, está preparando engarrafamentos monstruosos, que poderão ocorrer sem
nenhuma razão particular, excetuando-se acontecimentos incidentais de um dia de
chuva ou de greve dos meios de transporte público, quando muitos automobilistas
querem sair todos juntos para a rua. Neste momento, cada quilômetro de via urbana
conterá duzentos automóveis e sua velocidade será rigorosamente nula. os cruzamentos
e as praças ficarão inextricáveis e muitos abandonarão seus inúteis carros parados,
fechando-os à chave para manifestar a própria vã irritação. O bloqueio do tráfego durará
muitos dias; talvez semanas. O terrível emaranhado poderá ser partido nas suas orlas por
poucos guindastes ou pelos esforços de raros voluntários. A volta à normalidade será
lentíssima.
Esta catástrofe poderá ocorrer a qualquer momento e as suas conseqüências secundárias
serão: impossibilidade de locomoção para os bombeiros, para os médicos e para a
polícia e, sobretudo, impossibilidade de transportar e distribuir alimentos a grande
número de pessoas. Devem-se levar em conta também os efeitos das descargas de gás
de centenas de milhares de autos parados com os motores ligados, durante as horas em
que ainda não se perdeu a esperança de voltar para casa pelas próprias rodas.
Os eventos que descrevi bem poderão ser o elemento desencadeador da hecatombe que
assinalará o início das mais graves degradações que conduzirão à Idade Média e à morte
das metrópoles, os fenômenos de congestionamento - do tipo mais usual e menos grave
do que o dos exterminadores acima acenados - podem ser descritos, estudados e
previstos por meio de expressões matemáticas. As mesmas relações matemáticas se
aplicam, por exemplo, ao congestionamento das conversações e das demandas de,
serviço nas linhas telefônicas. Examinei primeiramente o congestionamento do tráfego
de veículos porque é muito mais perigoso do que o telefônico. Por outro lado, quem
inicia a discagem de um número de telefone e não chega a completá-lo, pode facilmente
sair do sistema simplesmente repondo o fone. Quem, entretanto, se encontra num
engarrafamento de trânsito dentro das toneladas de aço de seu auto, o máximo que pode
fazer é abandonar sua viatura e seguir a pé, mas não conseguirá, com meios simples,
sair da confusão em que se encontra. Também a interferência indébita no caso dos
telefones pode ser aborrecida e indiscreta se as duas conversações são transmitidas na
mesma linha. No caso da circulação de veículos, contudo, se dois autos tentarem
ocupar, simultaneamente, a mesma posição no espaço, é claro que sofrerão deformações
permanentes e eventualmente também poderão sofrer deformações permanentes ou
ferimentos os ocupantes dessas viaturas.
As coisas se agravam ainda mais se considerarmos o tráfego aéreo. Os aviões não
somente não podem ser tirados de um espaço congestionado com meios simples e de
modo instantâneo, como também não podem ficar indefinidamente na situação de
congestionamento no ar: se não conseguirem aterrar antes do término de sua autonomia
de vôo, cairão por terra. Esta eventualidade, porém, pode ser obviamente evitada, uma
vez que não há noticia, até agora, de que um avião tenha caído por falta de combustível,
depois de ter retardado a aterragem, em virtude do congestionamento dos corredores
aéreos. Os controladores do tráfego aéreo mantêm sempre amplos coeficientes de,
segurança, e preferem não dar ordem de partida aos aviões que podem superlotar, de
maneira inadmissível, o espaço sobre o aeroporto de chegada. Para manter estas
situações de segurança tem acontecido, contudo, que os aeroplanos mantidos no solo
com os reatores acesos, à espera da partida, consomem todo o combustível e têm de
voltar a reabastecer-se para depois se colocaram de novo na fila a fim de aguardar a
liberação da pista de decolagem.
O congestionamento dos aviões ocorre ou nos espaços aéreos, ou mais propriamente nos
corredores aéreos preparados para os diversos percursos, ou em terra: nas pistas de
decolagem e de aterragem, nas pistas de interconexão e de distribuição e nos
estacionamentos terminais. No entanto, o congestionamento dos aviões em vôo tem
relação direta com os sistemas de controle que funcionam próximos de seus limites
máximos e que, por isso mesmo, tornam mais inseguras as condições de vôo, como é
demonstrado pelo crescente número de near miss, ou colisões em vôo evitadas por um
fio. O congestionamento do espaço aéreo implica também em enormes atrasos nas
aterragens, pois é necessário separar a tempo os aviões que os sistemas de controle só
conseguem separar insuficientemente no espaço.
O congestionamento em terra, nos aeroportos, aumenta os atrasos sofridos antes das
aterragens, também já retardadas por causa da espera nas pistas: por seu turno, cada
aeroplano só lentamente se consegue livrar das intrincadas e desordenadas correntes de
tráfego nas pistas e nos estacionamentos. O problema é tão sério que a Port of New
York Authority, em junho de 1970, destinou quatrocentos mil dólares ao projeto do
sistema STRACS (Surface Traffic Control System, ou sistema de controle do tráfego na
superfície), que será desenvolvido pelo Transportation Systems Center da LFE
Corporation. O sistema STRACS registrará, por meio de reveladores, a presença e a
passagem de aviões pelos aeroportos e poderá segui-los e controlar-lhes o percurso,
parando-os mediante sinais luminosos, antes dos pontos de: intercessão, com a trajetória
de outros aeroplanos em terra, ou de veículos de serviço, ou de emergência, e dirigindo
a prioridade de passagem de modo a minimizar os tempos totais de trânsito. Em outras
palavras: também para os aviões em terra são necessários semáforos.
Não menos necessários são os controles dos aviões em vôo, e já está sendo empregado
em certa escala o sistema ARTS (Automated Radar Terminal System ou Sistema
Automático de Radar de Aeroportos), que permite aos controladores do tráfego
identificar as manchas luminosas de qualquer avião na tela (porque são
automaticamente associadas a indicação luminosa do número de vôo) e calcular também
a que altitude se encontram os aparelhos (também está indicada explicitamente na tela,
em números).
Mas, os sistemas automáticos de controle não podem remediar indefinidamente o
equilíbrio entre o crescimento contínuo do tráfego aéreo e das dimensões dos aviões, e a
falta de aeroportos e de estruturas aeroportuárias. Nos Estados Unidos, calcula-se que,
de 1970 a 1980, será necessário construir mais de oitocentos novos aeroportos com uma
despesa de cerca de um bilhão de dólares. Será necessário também ampliar os
aeroportos existentes - mas não é difícil prever que tanto as novas construções quanto os
melhoramentos das estruturas atuais serão levados a cabo lentamente e já chegam muito
tarde.
J. H. Shaffer, Administrador da Federal Aviation Agency, afirmou brutalmente que de
1970 a 1980 o caos nos aeroportos e nos sistemas de transporte aéreo será inevitável,
porque o tempo técnico necessário para modificar de modo sensível a situação existente
é da ordem de decênio. Neste ponto, deve-se observar que, por mais pessimista que
pareça uma previsão a médio ou longo prazo, feita por um administrador, na maioria
dos casos os fatos se encarregam de demonstrar que a tal previsão era até muito
otimista, no fim de tudo. No caso dos transportes aéreos, uma posterior agravante é
representada pelo fato de que os aviões se tornam cada vez mais barulhentos: os
aparelhos a jato são mais barulhentos do que, os de hélice, e os supersônicos comerciais
serão ainda mais barulhentos do que os atuais a jato. Por conseguinte, os habitantes das
zonas onde serão projetados novos aeroportos, ou aquelas que compreendem
ampliações dos aeroportos existentes, opor-se-ão a estas novas obras para salvaguardar
a relativa quietude de suas casas e conseguirão, senão impedir, pelo menos retardar o
início dos trabalhos.
Como em tantos outros casos, as vantagens a breve prazo das novas invenções técnicas
e das novas máquinas - neste caso, os aeroplanos - não apresentam problemas maiores
no período inicial de disponibilidade; quando, porém, estas inovações são usadas por
um número de pessoas que cresce exponencialmente, a dificuldade congestiva a médio e
longo prazo se faz sentir com todo o seu peso. A gravidade do problema sistêmico, no
que tange aos transportes aéreos, pode ser argüida recordando-se que o número máximo
de aviões que se encontram simultaneamente em vôo sobre os Estados Unidos é hoje de
cerca de quatorze mil, e que a maior parte deles não é controlada de terra nem segue
regras de vôo instrumental, mas voam apenas sob controle visual do piloto.
É interessante examinar as previsões para o período 1968-1993, feitas por William W.
Seifert, Diretor do Project Transport do Massachusetts Institute of Technology, era um
memorial apresentado em maio de 1968 a um seminário do Institute, of Electrical and
Electronics Engineers. Seifert prevê que em 1993 a população dos Estados Unidos será
de trezentos milhões de pessoas (contra os duzentos milhões atuais) e que o número de
automóveis crescerá dos cem milhões atuais para duzentos milhões. Nestas condições,
as previsões do especialista americano são de que os problemas do tráfego urbano serão
resolvidos - mediante a separação em vários níveis do tráfego de pedestres, do
automobilístico e dos estacionamentos - somente nas poucas cidades de construção
inteiramente nova, enquanto nas cidades já existentes, malgrado a construção de
numerosos sistemas de trânsito rápido sobre trilhos, o congestionamento do tráfego se
tornará um estado permanente - com velocidade média de doze quilômetros por hora e
com freqüentíssimos bloqueios totais do tráfego durante horas. A grande e única
inovação, no que tange ao tráfego de autos, será das auto-estradas automatizadas, nas
quais os veículos não serão mais guiados manualmente, mas dirigidos automaticamente
por aparelhos eletrônicos instalados a bordo, através de sinais emitidos por um cabo
subterrâneo ao longo da própria estrada. As linhas aéreas - ainda segundo Seifert -
transportarão setecentos milhões de passageiros por ano (contra os 130 milhões do ano
de 1968). Os numerosos pequenos aeroportos, de nova construção, serão reservados aos
aviões de decolagem vertical (VTOL) e àqueles que possam decolar e aterrar em poucas
dezenas de metros (STOL). As ferrovias convencionais serão totalmente abandonadas e
substituídas por pequenos vagões dirigidos automaticamente, andando sobre colchões
de ar em lugar de trilhos, e movidos por motores elétricos lineares de indução.
Afirmo que estas previsões de Seifert são totalmente irreais e privadas do mais
elementar bom-senso. Assim, não se pode imaginar que o tráfego nas vias de transporte
possa deteriorar-se lentamente até assumir características claramente inaceitáveis. Os
fenômenos de degradação poderãoser apenas repentinos e brutais e conduzir a uma
mudança radical da situação, tendo-se em vista que qualquer tipo de transporte que
reduza a própria eficiência abaixo de um certo nível - por mais baixo que se possa
admiti-lo - será necessariamente abandonado por grande número de usuários até deixar
no sistema um número de pessoas convenientemente exíguo para as quais o serviço será
nitidamente melhor. Os usuários que deixaram o sistema (supondo-se que tal sistema
ainda perdure) terão de aceitar uma diminuição drástica de sua mobilidade e
provavelmente, com isso, um rebaixamento muito sensível de seu padrão de vida.
O próprio fato de que uma voz autoritária, proveniente de um dos mais avançados e
sérios institutos de pesquisa do mundo, proponha uma solução complicada para o
problema relativamente mais simples do regulamento do tráfego nas auto-estradas,
enquanto sustenta que não há solução para o tráfego urbano, mostra o quanto é alta a
probabilidade de que nos próximos anos - ou nos próximos decênios - não sejam
encontradas soluções eficazes. Igualmente insatisfatória é a impressão que se tem ao ler
as visões futurísticas de Seifert, porque se baseiam sobre simples dados técnicos, como
os trens velocíssimos sobre colchões de ar ou como os aviões VTOL ou STOL, e não
em soluções sistêmicas integradas e globais. Como muitos outros, Seifert dá as fórmulas
verbais justas ("... é preciso começar a considerar inteiramente o problema dos
transportes como um sistema, e necessário se torna que comecemos a nos dirigir para o
desenvolvimento de um grupo interconexo de sistemas de transportes, cada um dos
quais satisfaça aquela parte da demanda total para que é planejado, sendo conveniente
interferir nos outros sistemas parciais"), mas não consegue enchê-las com o conteúdo
dos projetos adequados. Enquanto as coisas andarem assim - e não há sinais de mudança
- a instabilidade dos sistemas de transportes continuará a crescer e o perigo representado
por sua paralisação se tornará cada vez mais grave e mortal.
VII - O bloqueio das comunicações
(telefônicas, telegráficas, postais)
Uma das críticas que os dirigentes e os planificadores de tendência coletivista movem
aos regimes capitalistas é a de que a livre concorrência, ou supostamente tal, é danosa
porque provoca o gasto de dinheiro e recursos em publicidade e na duplicação de
esforços tendentes a fabricar produtos que diferem uns dos outros em mínimos detalhes,
e que não dão ao público nenhuma vantagem a mais com sua ilusória variedade, ao
passo que o sistema tem a única finalidade de maximizar os lucros dos grandes
complexos industriais e comerciais. Sustentam, pois, os coletivistas que se poderia obter
uma utilização muito mais eficaz dos recursos e uma melhor qualidade dos produtos e
dos serviços se, concomitantemente com a concorrência, uma autoridade central
definisse o que deve ser fabricado, por quem, quando, em que quantidade e com que
determinadas características: isto e, um regime de monopólio controlado pelos poderes
públicos.
Ora, se há um grupo industrial que tenha podido gozar de todas as vantagens
imagináveis de uma situação de monopólio - e que, entretanto, está sob o controle
bastante eficiente de um poder público como a Federal Communications Commission
norte-americana (pelo menos no que se pode falar de eficiência do poder público) - este
é, indubitavelmente, a American Telephone & Telegraph Co., que há quase cem anos
tem nos Estados Unidos o monopólio da fabricação dos telefones e da construção e do
uso das redes telefônicas. Por isso mesmo, é de se esperar que deva ser ótimo o sucesso
desta gigantesca sociedade, pelo menos do ponto de vista dos lucros obtidos pelos
acionistas, como também da qualidade dos serviços fornecidos.
E, sem dúvida, o Bell System (constituído pela A.T. & T., uma holding que compreende
a Long Lines Division, os Bell Telephone Laboratories, que se ocupam de pesquisas de
base, a Western Electric, que fabrica aparelhos, e 24 companhias regionais) pode se
gabar de um primado impressionante entre todas as sociedades industriais no que diz
respeito as inovações científicas produzidas pelo grupo (basta citar o transistor
inventado em 1948 e a Teoria das Informações de autoria de Claude Sharmon, quando
este trabalhava para os laboratórios Bell). Não obstante tudo isto, os negócios
econômicos e os serviços técnicos da A.T. & T. não estão hoje em condições muito
brilhantes.
O estado das comunicações telefônicas nos Estados Unidos, por outro lado, deteriorou-
se de modo tanto mais flagrante quanto mais se tem em vista que o sistema Bell era
considerado, ainda há pouquíssimos anos atrás, como não apenas o maior mas também
o mais moderno e eficiente do mundo. A degradação começou na segunda metade de
1968, nas áreas de maior concentração urbana, e particularmente na cidade de Nova
York, onde, já em 1969, a situação era verdadeiramente trágica. Os atrasos no serviço, a
impossibilidade de estabelecer comunicações, o número de defeitos não reparados por
dias ou semanas, tudo criou um tal estado de coisas que, por exemplo, a Benton &
Bowles Inc. - uma grande empresa de publicidade - comprou uma pagina inteira do
New York Times unicamente, para publicar os nomes dos seus oitocentos dependentes
junto com um breve comentário que dizia: "Vocês talvez não acreditem que estas
pessoas ainda trabalham conosco, porque não conseguem falar ao telefone: mas aqui
estão todas - venham encontrá-las e vê-Ias."
O quartel-general da A.T. & T. ficou quase inalcançável por telefone durante muitos
meses, porque era ligado à central automática Plaza-8, uma das mais congestionadas. A
New York Telephone Co., do grupo A.T. & T., foi citada em juizo com um pedido de
ressarcimento de 330 milhões de dólares por um grupo de cidadãos do distrito Bedford-
Stuyvesant, que lamentavam os danos causados pelo deterioramento do serviço nos
últimos três anos.
O caso dos telefones americanos é bem típico das degradações sistemáticas em larga
escala: nele se reconhecem todas as causas remotas e próximas da deterioração e seus
habituais modos de desenvolvimento.
O sistema telefônico americano é muito grande (mais de cem milhões de usuários),
cresceu mui rapidamente, dobrando em menos de vinte anos e é muito concentrado.
Somente, na cidade de Nova York - onde o número de usuários é de onze milhões,
superior em mais de vinte por cento ao número total de telefones na Itália - são gerados
mais de dez por cento dos 350 milhões de telefonemas efetuados diariamente, nos
Estados Unidos.
A causa primeira da crise eclodiu em virtude de graves erros de previsão. Em 1967, a
New York Telephone Co. previu uma estagnação no aumento do produto nacional bruto
e não deduziu que a demanda do serviço telefônico cresceria em 1968 em mais de
quatro por cento. Por conseguinte, reduziu em 24 milhões de dólares o orçamento para
novas obras. Por outro lado, a demanda cresceu em 1968 e em 1969 de modo brusco e
maciço, devido a diversas causas: aumento da atividade da Bolsa de Wall Street,
incremento da transmissão de dados numéricos nas linhas telefônicas entre os centros de
elaboração eletrônica, decisão das entidades de assistência de pagar também o telefone
de seus clientes. Além disso, parece que as pessoas começaram a telefonar mais,
simplesmente porque achavam melhor ficar em casa a fim de evitar os engarrafamentos
do trânsito e a violência nas ruas e, quando saiam, deixavam o fone fora do gancho para
fazer crer a eventuais ladrões, que telefonassem antes do golpe para saber se havia
alguém em casa, que havia alguém em casa. Neste, caso, o funcionamento das centrais
de tipo antiquado, ainda em uso, ficava seriamente impedido.
Inicialmente, este salto imprevisto na curva da demanda foi considerado como uma
aberração temporária, mas a curva não se estabilizou como se esperava: subiu mais e
continuou subindo.
Tendo em vista a existência da crise e o fato de que suas dimensões poderiam ser
apreciadas por qualquer observador menos atento, a New York Telephone Co. decidiu
aumentar os seus investimentos anuais em aparelhagens, destinando para isso um bilhão
de dólares. Pode-se ter uma idéia do que isto representa, sabendo-se que o total
destinado pela A.T. & T. para todos os Estados Unidos é de 7,5 bilhões de dólares Mas,
o tempo de que precisava a indústria manufatureira e o tempo técnico impediram que os
eleitos deste remédio fossem sentidos antes de dois ou três anos.
A segunda causa da crise é financeira. A prazo mais longo, calculou-se que em 1979 os
investimentos da A.T. & T. devem alcançar 150 bilhões de dólares somente para manter
os serviços existentes, para estendê-los, dentro em breve, também, aos videotelefones e
para incrementá-los proporcionalmente à demanda. Esta necessidade de capital é
enorme: a A.T. & T. espera - mas não pode estar certa satisfazê-la em parte, oferecendo
aos investidores particulares duzentos milhões de novas ações e uma quantidade
comparável de obrigações, pretendendo, por outro lado, recorrer a um aumento das
tarifas que, já agora, deverão incrementar as entradas anuais em dois bilhões de dólares.
O aumento das tarifas, porém, não será automático, mas tem de ser aprovado pela
Federal Communications Commission, a qual, seguramente, se oporá a alguns dos
pedidos e, enquanto isso, favorecerá a curto prazo os interesses dos usuários, talvez
obrigando-os a prazo mais longo a sofrer os incômodos de um serviço telefônico
deteriorado de modo estável.
Os 150 bilhões de dólares necessários até 1979 não bastarão, contudo, para completar a
modernização do Bell System - se bem que representem 15 por cento aproximadamente
do produto nacional bruto americano em 1971. Além disso, está previsto que a
passagem das centrais telefônicas convencionais para aquelas completamente
eletrônicas não será completada antes do ano 2010.
As decisões erradas dos responsáveis pelos telefones dos EUA foram favorecidas pela
confiança excessiva nas inovações técnicas, representadas por estas centrais de
comutação inteiramente eletrônicas e que funcionam, por isso mesmo, com velocidade
muito superior à das tradicionais eletromecânicas. O emprego das novas centrais, que,
no futuro, terá sensíveis vantagens, no momento causa sérios embaraços (de que não se
pode ficar alarmado: trata-se de normais "distúrbios da dentição que é a expressão usada
pelos técnicos para definir os inconvenientes ocorridos nos primeiros tempos do
emprego de cada novo produto complicado e, em particular, no período inicial de cada
grande inovação ligada a uma parte vital de um sistema existente).
Todos esses aborrecimentos somam-se uns aos outros sem que os dirigentes da A.T. &
T. tenham possibilidade de adotar preventivos a tempo. A resposta oficial às críticas que
partiam de todas as partes era de que ninguém poderia prever um aumento tão rápido da
demanda de serviço telefônico. Contudo, em fins de agosto de 1970 mudou o presidente
da New York Telephone Co. O novo presidente, William M. Ellinghaus, não deveria
apenas melhorar os vencimentos dos dirigentes do grupo, mas também melhorar os
vencimentos dos operadores de centrais e dos mantenedores, que tinham piorado
terrivelmente: em 1969, quarenta por cento do pessoal deste tipo tinha menos de, um
ano de experiência nestas atividades. Além do mais, eram necessários verdadeiros
contorcionistas, para instalar e manter os cabos telefônicos em Manhattan, onde - sob as
ruas - não há lugar para mais nada.
Se bem que se justifiquem previsões pessimistas, com base rios elementos examinados,
deve-se considerar que todos os problemas telefônicos vão-se agravar ainda mais,
porque cresce muito rapidamente a transmissão nas linhas telefônicas de dados
numéricos, com a finalidade de ligar entre si vários computadores, ou de fornecer
diretamente ao computador central dados provenientes de locais distantes.
Os atrasos nas comunicações interurbanas no sistema WATS (Wide Area Telephone
System) são maiores nas tardes e inicio de noite dos dias úteis, entre as 17:30 h e 19
horas, que no resto do dia. O período indicado é aquele em que as filiais e sedes
distantes de bancos e organizações comerciais transmitem aos computadores, situados a
centenas de quilômetros, os dados contábeis do dia. Estas comunicações estão sendo
usadas em escala cada vez maior, tanto que o presidente da A.T. & T., Frederick R.
Kappel, afirmou, em 1961 e em 1964, que o volume de comunicações para a
transmissão de dados entre os computadores, dentro de quinze anos, seria maior do que
o das comunicações orais entre os usuários humanos. O que Kappel afirmou não ficou
muito claro, pois ele não precisou se se referia ao número de chamadas ou à quantidade
de informações transmitidas. A este propósito, iniciou-se uma polêmica entre o porta-
voz da A.T. & T. e, entre outros, Reger W. Hough, do Stanford Research Institute.
Hough sustenta que as comunicações vocais, nos próximos vinte anos, ocuparão as
redes telefônicas por tempo superior ao de todas as outras aplicações juntas. Mas, ainda
que se aceite tal afirmativa, deve-se ter em conta que o elenco dos tipos de informações
que já podem ser transmitidos pelas linhas telefônicas é tão grande que a soma deles
contribuirá para sobrecarregar o sistema telefônico e agravar o congestionamento e a
instabilidade. Entre outros, pode-se transmitir pelas linhas telefônicas: imagens de
videotelefones; programas de televisão de circuito fechado; transmissão à distância em
fac-símile de jornais e gravuras; sinais de buscas automáticas de dados contidos em
fichas eletrônicas e centros de informações especializados; dados para a reserva
automática de lugares em meios de transporte; cotações da Bolsa e compra e venda de
títulos e ações, etc.
Não é de se esperar que as futuras e piores crises dos sistemas telefônicos causem
diretamente destruições e mortes, salvo acontecimentos excepcionais, como, por
exemplo, a impossibilidade de telefonar pode causar a morte de poucos indivíduos pelo
atraso ou falta de socorro médico ou de bombeiros. Por outro lado, os danos causados
pela inundação de Florença em 1966 teriam sido talvez reduzidos se as ligações
telefônicas entre as estações de guarda e as autoridades da cidade fossem melhores e
mais rápidas.
Em geral, a crise dos sistemas telefônicos e telegráficos agravará a crise de outros
sistemas chamados a fornecer funções substitutas daquelas inutilizáveis, de
comunicação por fio (como no caso daqueles que, não podendo falar pelo telefone, se
deslocam, ou procuram se deslocar, com um veiculo, contribuindo para agravar um
engarrafamento de tráfego já iniciado), e tornando impossível o fluxo de informações
em qualquer outra situação de emergência, criando obstáculos aos grupos de socorro ou
de manutenção. Deve-se destacar, em seguida, que, assim que chega ao conhecimento
de grande número de pessoas a existência de uma situação nova e anormal, a reação
quase automática - que já vem ocorrendo há muitos anos - dessas pessoas é procurar o
telefone e falar com outras pessoas (talvez procurando demonstrar que são os primeiros
a saber de tal situação). Por exemplo: quando morreu Franklin Delano Roosevelt, a 12
de abril de 1945, enorme número de pessoas decidiu, de repente, chamar alguém ao
telefone e, como conseqüência disto, toda a rede telefônica dos Estados Unidos (que
então compreendia menos de trinta milhões de aparelhos) ficou congestionada e
bloqueada durante algumas horas.
Como nos outros casos, falei, sobretudo, da situação norte-americana, porque na
América as concentrações são maiores do que em outros lugares, e as crises
conseqüentes se manifestam naquele país antes que nos outros. Na França, a situação
não é muito diferente. A espera média para conseguir a instalação de uma nova linha
telefônica é de um ano. Os engenheiros de uma grande sociedade de construção
eletrônica, cujo escritório fica próximo de Monthléry, a cerca de 25 quilômetros de
Paris, para falarem com os laboratórios e a sede da empresa, rio Boulevard Bessières, no
17º Distrito, na parte setentrional da cidade, têm de esperar, todas as manhãs, durante
três ou quatro horas.
A situação italiana, deplorável até alguns anos atrás, melhorou com a recente extensão
da tele-seleção para ligar os nove milhões de telefones no território da república, mas
ainda não é totalmente satisfatória. Os sistemas europeus estão sendo conectados entre
si, cada vez mais estreitamente, e isto agravará os congestionamentos, para os quais
contribuirão também as concentrações sempre crescentes nas capitais e nos grandes
centros.
Um sistema de comunicações, que recentemente tem dado muito que falar, devido à sua
baixíssima eficiência - conseqüência, sobretudo, de greves - é o dos correios, nacional e
internacional.
Os correios e os telefones são sistemas estreitamente ligados entre si e aptos a se
substituírem. Durante a longa greve dos correios em 1969 na Itália, e em 1971 na
Inglaterra, difundiu-se o hábito não somente de transmitir por telefone informações
normalmente transmitidas por carta, mas também o de fechar acordos comerciais
formais pelo telefone, ditando pelo fone os termos de contratos que o serviço postal só
entregaria meses depois.
Os sistemas postais dos Estados Unidos da América e da Itália parecem-se muito,
malgrado as dimensões diferentes: mais de oitenta bilhões de encomendas por ano
distribuídas pelos Correios norte-americanos contra quase seis milhões dos Correios
italianos. (Esta diferença, em termos relativos, ocorre também em outros aspectos do
campo econômico: o produto nacional bruto norte-americano, em 1970, atingiu quase!
um trilhão de dólares, ao passo que o produto nacional bruto italiano, no mesmo ano, foi
de oitenta bilhões de dólares; o número de veículos produzidos nos Estados Unidos foi
de doze milhões e o número correspondente na Itália de 1,3 milhão.)
Entre as características comuns do sistema postal italiano e do americano, podemos
destacar:
deficiência e atrasos nas entregas;
organização sistêmica antiquada;
baixa produtividade e baixos salários do pessoal;
alta freqüência de greves;
forte deficit no balanço orçamentário (para os Estados Unidos, o deficit atingiu,
em fins de 1970, um bilhão e 200 milhões de dólares);
pouco sucesso no emprego de códigos de endereçamento postal.
A parte certas idiossincrasias individuais (como, na Itália, os freqüentes e inesperados
atrasos, de até uma semana, na entrega de telegramas-cartas, e, nos Estados Unidos, a
preocupação de controle para incriminar quem envia, pelos correios, material obsceno),
a principal diferença entre os dois países é de que na América admite-se a concorrência
particular aos correios estatais, enquanto que na Itália esta concorrência é ilegal, exceto
no que tange a modestas agências de entregas. A outra diferença é de que os
administradores e políticos italianos são mais otimistas e exaltam, pelo menos em
público, a alta eficiência e as brilhantes conquistas dos próprios sistemas ou repartições,
não obstante a realidade seja notoriamente triste, enquanto os seus correspondentes
norte-americanos são mais francos nas críticas, mais realistas nas suas previsões. É
conveniente examinar cada uma das afirmações e propostas destes últimos.
O Diretor-Geral dos Correios do governo Johnson, Lawrence F. O'Brien, ao reconhecer
que seu departamento era empregado em uma corrida contra a catástrofe (a race with
catastrophe), a 3 de abril de 1968, propôs que o Departamento dos Correios fosse
transformado em uma agência governamental sem finalidades de lucro. Esta reforma,
retomada no governo Nixon em 1970, deve ensejar certa independência à administração
postal, permitindo-lhe eliminar o deficit do balanço melhorar o serviço e as condições
de trabalho dos empregados e retirar do poder público a faculdade de promoções e
novas admissões. Atualmente, os representantes sindicais dos empregados postais não
se preocupam de modo algum em realizar entendimentos diretos, porque qualquer
melhoria salarial somente pode ser decidida pelo Parlamento. Já que é sempre o
Congresso dos Estados Unidos quem pode decidir a reforma, não se pode esperar que o
sistema melhore em breve. Entretanto, as reformas são indispensáveis: o atual Diretor-
Geral dos Correios, Winton M. Blount, definiu seu departamento como "um
anacronismo de alto custo e de maximização do trabalho" (a high-cost labor-intensive
anachronism). Como sempre, as soluções sistêmicas devem preceder - seja no tempo,
seja na hierarquia - às puramente técnicas. Por outro lado, os grandes problemas
sistêmicos não podem ser resolvidos pelo uso apenas de novas máquinas automáticas.
Parece, entretanto, que nos Estados Unidos se depositam excessivas esperanças nas
vantagens que se poderão obter com o incremento do emprego dos selecionadores
automáticos (já usados com discreto sucesso há mais de um decênio) e na instalação das
leitoras ópticas automáticas. Os selecionadores semi-automáticos, cada um dos quais
trabalha simultaneamente com um máximo de doze operadores, distribuem
automaticamente as cartas entre 277 saídas, após o operador ter carimbado em cada
carta o código convencional de saída, deduzido do endereço e com base numa
correspondência que o empregado tem de memorizar o percentual de erros destas
máquinas, cada uma das quais pode classificar até 36 mil cartas por hora, é de cerca de
cinco por cento. As leitoras ópticas automáticas funcionariam melhor se os endereços
fossem carimbados com caracteres de estampa especial. Está-se fazendo um esforço de
pesquisa no sentido de se construir uma máquina automática que possa ler os endereços
manuscritos.
Não quero dizer com isto que as máquinas semi-automaticas ou automáticas sejam
inúteis. Pelo contrário; a situação postal também na Itália seria melhor se elas fossem
empregadas em maior número. Afirmo, porém, que, ao mesmo tempo em que é possível
melhorar bastante a prestação dos serviços postais sem o emprego de máquinas novas,
deve-se pensar também em uma situação em que as máquinas novas sejam empregadas
e permaneça a deterioração do sistema, já que sua estrutura não se modificou.
Vale a pena citar o sistema postal sueco, considerado o mais eficiente do mundo, não
obstante tenha de manter ligação com localidades perdidas, a grandes distâncias, no
extremo norte. Os correios suecos colocam em atividade cerca de 1,5 por cento de seu
orçamento (que é muito modesto: 170 bilhões de liras) e asseguram a entrega dentro de
24 horas de noventa por cento das cartas postadas. O selo para uma carta normal custa
setenta liras.
Esta indicação positiva, porquanto marginal, pode levar a outra afirmativa: também em
outros aspectos, a situação sueca, no campo dos grandes sistemas, é muito melhor do
que nos outros países. Na Suécia, as concentrações de população são limitadas (em toda
a Escandinávia não há cidade com mais de um milhão de habitantes) e os grandes
sistemas não são tão grandes e congestionados. Estas condições poderão impedir a
degradação dos sistemas suecos e, talvez, salvar a Suécia do advento da próxima Idade
Média.
Mas o caso sueco não justifica uma visão otimista do futuro de toda a Europa, corno, da
mesma maneira, não se deve esperar um futuro otimista para os Estados Unidos
somente porque há informações consoladoras no Nebraska, que, com um milhão e meio
de habitantes, é o trigésimo quinto Estado da União, em população.
Em Nebraska, as autoridades locais e o Departamento de Transportes iniciaram o
Projeto 20/20 que se destina a criar um sistema integrado de todas as comunicações de
emergência da região. O animador do Projeto 20/20, D.G. Penterman, idealizou centros
de desvio de todas as chamadas de emergência para organizações destinadas a cada tipo
de incidente. O número de locais sob continua supervisão pôde ser, por conseguinte,
reduzido, já que os mesmos postos de revezamento se ocupam simultaneamente de
socorro médico, incidentes de tráfego, delitos, tumultos, cataclismos naturais, incêndios.
Ao mesmo tempo, unificaram-se os projetos de todos os sistemas de comunicações do
Estado, onde se tem a certeza de que cada rede, quando não é utilizada, fica disponível
para finalidades diversas das de seu funcionamento normal. Também são empregados
nos serviços diários os canais de emergência das redes militares e da defesa civil. A
economia alcançada - além do aumento dos rendimentos, dificilmente calculado - foi tal
que apenas o orçamento inicialmente previsto para a televisão educativa bastou para
pagar inteiramente o projeto, que, naturalmente, compreende também a difusão, por
cabo coaxial, dos programas educativos de TV.
O exemplo de Nebraska não foi seguido por muitos Estados ou organizações
americanas. Como normalmente acontece, as coisas funcionam quando há um homem
ou um grupo de homens iluminados, informados e ativos que as façam funcionar. São
muito poucos os lugares onde isto ocorre.
VIII Esperanças mal ocultas e temores
infundados em relação aos computadores
eletrônicos
Os calculadores numéricos são cérebros eletrônicos.
Os cérebros eletrônicos funcionam mais velozmente do que os
cérebros humanos e cometem menos erros de cálculo.
É possível definir um modelo matemático de qualquer sério
problema sistêmico.
É, seguramente, conveniente usar computadores eletrônicos para
resolver qualquer problema de elaboração de dados, de controle e
de governo dos grandes sistemas.
Uma vez confiada a computadores eletrônicos a gestão de todos
os grandes sistemas, corre-se o risco de que estas máquinas
substituam completamente o homem e o tornem escravo.
As cinco afirmações precedentes constituem, infelizmente, a única justificação de
muitas decisões, que são tomadas para definir a solução de problemas que interessam a
milhões de homens. Este tipo mesmo de decisão é igualmente considerado como
particularmente brilhante e moderno, apesar de que algumas das cinco afirmações às
quais me referi sejam destituídas de sentido e outras delas possam ser consideradas
verdadeiras apenas em determinados contextos e após acurados exames.
Apraz a quase todos os homens obter o máximo de resultado com o mínimo de esforço
e, pois, não é de espantar se muitos responsáveis por decisões importantes esperam
evitar trabalho pesado e esforços de imaginação e preferem optar pela adoção de um
computador eletrônico, que deverá assegurar a direção otimizada do sistema e garantir,
com a sua flexibilidade, o alcance imediato das soluções e a fácil modificação dos
programas para se dar conta de idéias novas que, no entretempo, possam ser
materializadas. Deveria, pelo contrário, ser óbvio que em loterias desse tipo jamais se
vence,
Se não estão satisfatoriamente definidos o projeto seqüencial, a estrutura e a lógica do
sistema considerado, e não estão resolvidos os problemas relativos ao eventual
congestionamento do sistema, não se poderá obter qualquer vantagem sensível com o
emprego do computador. Quando se instala um computador sem se haver,
primeiramente, procedido à análise sistêmica necessária, termina-se, fatalmente,
transmitindo nos programas dos computadores as estratégias e as estruturas sistêmica
mais simples possíveis - com o objetivo de não se arriscar a um insucesso de grandes
proporções. Assim, existem sistemas em que certo número de processos são governados
por um computador eletrônico numérico e por esta única razão são qualificados como
moderníssimos e eficientíssimos, embora prestem, de fato, serviços muito modestos e
pouco interessantes.
Neste ponto, cabe discutir, brevemente, o conceito próprio de flexibilidade, qualidade
da qual, há vinte anos, os construtores dos computadores eletrônicos se vangloriam em
grande parte de seus escritos publicitários. Quando se diz que um computador eletrônico
numérico é uma máquina muito flexível, o que se pretende, de fato, dizer é que não é
uma maquina construída para uma finalidade específica, mas que pode ser utilizada
indiferentemente para resolver problemas matemáticos e lógicos dos mais diversos tipos
- mas bem entendido: contanto que tenham sido antes redigidos os programas
necessários para fornecer as soluções procuradas. Este trabalho da redação dos
programas do computador ou da produção de completas bibliotecas de programas e de
sistemas de programação capazes de habilitar um computador a absorver dados é,
freqüentemente, subestimado, ao passo que, em muitos casos, o custo relativo
(constituído, sobretudo, de mão-de-obra profissional altamente especializada, além do
tempo necessário ao computador para as provas dos programas) supera o do
equipamento instalado no centro de cálculo. o termo software foi criado para definir,
com precisão, as tarefas dos computadores viáveis pela existência de bibliotecas de
programas e de rotinas auxiliares e pela disponibilidade de linguagem simbólica de
programação. (o termo oposto a software é hardware - literalmente "materiais sólidos",
no sentido de ferramentas, e, por extensão, também equipamentos em geral - empregado
para designar as unidades de efetiva consistência física que compõem o computador
considerado.)
Quando um fabricante de computadores afirma que as suas máquinas são versáteis está
claro pois que destaca uma verdade indiscutível - do mesmo modo como um fabricante
de caminhão poderia dizer que os seus veículos são versáteis, porque podem servir para
transportar carne enlatada, livros, condensadores eletrolíticos ou cucurbitáceas. No caso
do caminhão, porém, basta carregar-se objetos diversos e levá-los ao seu destino -
enquanto que no caso dos computadores é preciso, primeiramente, dispor do software
necessário para resolver efetivamente os problemas dos quais o computador tem
capacidade para tratar, após ter sido programado. A flexibilidade dos computadores, em
conclusão, não garante totalmente que os cálculos confiados ao software possam ser
viáveis, nem que possam ser economicamente exeqüíveis.
Os programas, o software e, em geral, os modos de utilização de um computador
eletrônico não podem ser melhores nem mais eficientes do quanto o sejam o pessoal de
programação que os produziu. Nos últimos vinte anos, a demanda de programadores
cresceu com incrível velocidade e foi necessário treinar, apressadamente, novas levas.
As deficiências no treinamento dos programadores e a inexperiência daqueles que os
dirigiam tiveram por conseqüência que, mesmo em poderosíssimas organizações
industriais, as novas atividades mecanizadas sofreram insucessos clamorosos. Em lugar
de tornar disponíveis dados elaborados mais rapidamente e com maior segurança, os
resultados vêm se verificando com atraso e cheios de erros. Ao invés de prestar um
serviço ao menos equivalente, com custos menores, os custos se elevaram. Nos últimos
anos, portanto, muitas sociedades industriais e comerciais americanas, de grande porte,
decidiram minimizar o risco no empreendimento de novas atividades mecanizadas por
meio de calculadores eletrônicos e confiaram, em empreitada, todo o trabalho de
organização dos centros de cálculo (máquinas e pessoal) e toda a responsabilidade de
elaboração - até à produção dos resultados finais - às sociedades externas especializadas
nesse tipo de trabalho.
Essas circunstâncias foram citadas unicamente para chamar a atenção sobre a gravidade
dos aspectos puramente de aplicação dos sistemas de computação eletrônica.
Não se resolve problema algum simplesmente comprando ou locando um calculador e
contratando alguns engenheiros e alguns matemáticos.
Num certo ponto de vista, é lamentável que as atividades dos laboratórios e as
realizações da indústria eletrônica tenham obtido tanto sucesso público. A conseqüência
desse fato é que os mais atualizados e progressistas profissionais e cientistas nos mais
diversos campos de, atividade concebem e projetam soluções meramente em termos de
aparelhos (hardware) e de processos de aplicação de aparelhos (software) - em vez de
em termos de sistemas.
Quando, por exemplo, um banco mecaniza a enorme massa de trabalho constituída pelas
operações contábeis de seus escritórios, avulta muito o fato de que a parte executiva e
aritmética do trabalho é desenvolvida, precisamente, por um computador eletrônico e se
tende a descurar do importantissimo trabalho de análise de processos que deve preceder
à mecanização e que conduz, freqüentemente, à adoção de profundas modificações no
funcionamento da entidade. A análise dos processos é necessária para controlar se os
mesmos são mecanizáveis e para torná-los tal, em caso negativo.
Se essa análise é bem feita, acarreta justamente vantagens, senão comparáveis, pelo
menos maiores do que as obtidas com os meios de elaboração eletrônica; se é mal feita,
o sistema, no seu complexo, funciona pior após a mecanização do que anteriormente à
mesma.
A aproximação sistêmica deveria consistir propriamente na tentativa de otimizar o
funcionamento do sistema no seu complexo, selecionando os dados a elaborar, evitando
as elaborações que dariam resultados supérfluos, evitando as duplicações e, se
necessário, tornando a definir os objetivos essenciais do trabalho a ser desenvolvido,
É sabido que os maiores sucessos registrados no emprego dos computadores eletrônicos
- à parte aqueles conhecidos nos campos de ciência pura e aplicada - verificaram-se nas
aludidas aplicações contábeis e nas de controle dos processos industriais. As primeiras,
especialmente, se caracterizam por uma enorme massa de dados a serem elaborados. A
consideração desse fato conduziu, em muitos casos, a decidir se é necessário empregar
um computador eletrônico toda vez que se depare com dados apreciáveis, sem
considerar, contrariamente, a outra alternativa - que é a de modificar o sistema de
maneira a prevenir e impedir a produção de tantos dados. Um exemplo típico é a
descoberta das informações jurídicas.
Todo ano, os tribunais continuam a proferir sentenças. Toda sentença pode ter
importância - como "precedente" para a decisão de causas e de processos celebrados
após a sua emissão (nos países anglo-saxões, sobretudo, as sentenças precedentes
constituem quase a única fonte de direito e substituem os códigos). Os juizes e os
advogados têm, portanto, de resolver o problema de descobrir as sentenças precedentes
que possam ter alguma importância para o caso de que se ocupam, e, todo ano, devem,
fatalmente, tentar localizá-las entre um número enorme e sempre crescente de outras
sentenças de nenhum interesse, no momento, para os seus objetivos. Pensa-se, agora,
em codificar as sentenças (no sentido de traduzi-Ias em códigos aceitáveis pelos
computadores eletrônicos) e registrá-las na memória dos computadores, utilizando as
mesmas máquinas para descobrir as sentenças interessantes a determinado fim (em
geral, procurando-se no texto da sentença aparecem, ao menos, certas palavras-chave
capazes de definir o assunto julgado). Uma notável massa de atividade dedica-se a esse
tipo de pesquisa nos Estados Unidos da América do Norte, União Soviética, Bélgica,
França, Itália, Holanda, Luxemburgo, Inglaterra, Tchecoslováquia e nas duas
Alemanhas. Pelo contrário, uma atenção muito menor, de fato quase nula, é dedicada à
reforma dos códigos e dos sistemas jurídicos, a qual, por si só, poderia resolver
basicamente o problema e tornar inútil não apenas o emprego dos computadores, mas a
própria necessidade de conservar uma quantidade, de precedentes crescente ad
infinitum.
Algo de muito semelhante está-se verificando no campo, mais vasto, das publicações
científicas. Publicam-se, atualmente, no mundo, mais de 100 mil periódicos técnicos e
científicos. Mesmo considerando, entre esses, apenas os pertinentes a ramos específicos
de atividades de pesquisa, não se pode esperar que haja tempo de examinar todos para
controlar se algum já não tenha descoberto e publicado os resultados que uma pesquisa
nova pretende obter. Também aqui se sugeriu a utilização de computadores eletrônicos
para memorizar tudo o que se publica no mundo, no campo técnico e científico (como
por exemplo, traduzindo para o inglês todas as publicações que não forem editadas
naquele idioma). Os pesquisadores científicos e técnicos deveriam, posteriormente,
pesquisar nas memórias dos computadores, automaticamente, para tentar descobrir tudo
o que já existe de relevante para as finalidades de sua própria atividade. O problema,
aqui, é, indubitavelmente, mais sério e crítico. Alguém julga que a maior parte do tempo
dos cientistas é ocupada atualmente pela pesquisa bibliográfica: isto não é inverossímil,
se se pensar que já existem, no mundo, 100 mil volumes unicamente de bibliografias
(reunidas em um outro volume denominado World Bibliography of Bibliographies).
Também neste setor seria mais lucrativo analisar a estrutura do processo, que
compreende a elaboração de textos científíco-técnicos e sua subseqüente descoberta,
antes de aceitar sem discutir que se continuem a publicar e a distribuir, todo ano,
milhares de toneladas de páginas e a recorrer, posteriormente, à força bruta - ou seja, a
grandes e velozes computadores eletrônicos - para tornar possível aos eventuais
interessados a leitura das publicações que dizem diretamente respeito à sua atividade. A
alternativa óbvia é constituída pela decisão de, pelo menos, limitar o número de artigos
e de relatórios publicados, ou dos artigos e dos relatórios elaborados. Qualquer cientista
pode fornecer uma extensa lista de publicações cuja impressão poderia ser suprimida
sem que isto fizesse grande diferença. Ninguém deve, sequer, se espantar muito com
esse estado de coisas: os progressos reais e significativos, além de difíceis, são raros.
Existe, certamente, uma providência que, por si só, já contribuiria para reduzir, de modo
essencial, a massa de produções científicas publicadas, entre as quais, posteriormente,
se pesquisariam quais interessam a determinados fins: trata-se de uma radical
modificação das normas e dos processos segundo os quais são decididas as promoções e
é atribuído o mérito no campo acadêmico. Com ou sem razão, julga-se, atualmente, que
o grau merecido por um aspirante a docente seja dado em função do número de páginas
de memórias científicas por ele publicadas. É por este motivo que são mais freqüentes e
numerosas as produções literárias de indivíduos mais jovens, que aspiram atingir graus
superiores justamente em virtude de seus próprios escritos. Normalmente, a produção de
material escrito decresce bruscamente quando se atinge um grau aceitável e superior,
apesar de ocorrer, freqüentemente, que por hábito e por força da inércia, também os
docentes que superaram os limites mais importantes - como o ordinariato, na estrutura
universitária italiana, e o contrato vitalício ou tenure, na estrutura universitária
americana - continuem a escrever ou a fazer escrever e, muitas vezes, a publicar
memórias demasiadamente longas e de conteúdo escasso ou quase nulo.
As vantagens sistêmicas provavelmente oferecidas pelos grandes computadores
eletrônicos, e não materializadas que vínhamos considerando até aqui, não se
concretizaram por razões do tipo organizacional. Há, no entanto, algo pior, no que tange
a erros e falácias conceituais que têm, infelizmente, curso livre no campo dos
computadores, ou da "informática", como alguns gostam de chamar a ciência do cálculo
automático e a teoria das informações e das comunicações. Existem classes inteiras de
aplicações dos computadores que motivaram pesquisas científicas e atraíram
investimentos de capitais também consideráveis em vista da grande exploração
industrial e comercial em alta escala ao passo que aquelas bases do tipo de utilização
projetada são vagas e insubsistentes ou eivadas de impossibilidades intrínsecas ou de
contradições. A característica comum a essas aberrações é que postulam analogias mais
ou menos profundas entre o funcionamento do cérebro humano e o dos sistemas de
computação eletrônica e se propõem redigir programas de computação eletrônica
capazes de substituir o homem na execução de atividades racionais e decisões de alto
nível. Esta substituição do homem pela máquina é, em geral, indicada como desejável
por razões de ordem econômica. E breve dar-se-á conta, porém, de que não apenas não
se realizam as economias esperadas, mas de que o projeto, em sua totalidade, não é
exeqüível: neste ponto, agora, a ênfase se transfere e busca uma justificação para a
atividade desenvolvida, sustentando que a mesma seria para demonstrar cientificamente
a identidade entre o homem e a maquina, que já era, inicialmente, postulada, ou, ao
menos, serviu para emprestar uma importante contribuição a uma provável
demonstração futura dessa identidade.
A dificuldade basilar de toda esta história é, provavelmente, que Norbert Wiener era um
matemático de grande valor e gozava, portanto, de muito prestígio. Conseqüentemente,
quando, em 1948, desenterrou a palavra "cibernética" (inventada, inocentemente, por
Ampère, cento e quatorze anos antes, no contexto de uma classificação geral das
ciências) e sustentou haver fundado a nova ciência do controle e das comunicações nos
animais e nas maquinas, deram-lhe crédito. Ainda hoje, o termo cibernética é uma
palavra polida, seja na Academia de Ciências da URSS, seja no Massachusetts Institute
of Technology e na RAND Corporation - e não deveria sê-lo, como o demonstrou
rigorosa e brilhantemente Mortimer Taube, já em 1961, em seu livro Computers and
Common Sense.
Para explicar o estado das coisas não é necessário retomar as antigas polêmicas, entre
vitalistas e mecanicistas. Ninguém contesta que as atividades do cérebro humano são
possíveis graças a um conjunto de matéria, onde circulam correntes elétricas. Ninguém
nega que também os computadores eletrônicos podem ser definidos como conjuntos de
matérias nas quais circulam correntes elétricas, nem que os computadores eletrônicos
possam executar mais rapidamente do que um homem muitas operações de elaboração
de dados definidos formalmente (no sentido mecânico). O que se nega é que possa
existir, no estágio atual da técnica de computação, um computador capaz de fornecer
respostas equivalentes às de um cérebro humano. Com toda probabilidade, as coisas são
ainda um pouco mais complicadas se é verídico que os computadores são adaptados
apenas a fornecer informações segundo processos formalmente definidos, ao passo que
o funcionamento do cérebro humano é essencialmente do tipo informal.
Sem tentar resolver esta última questão, altamente especializada, basta considerar a
história da cibernética, nos últimos vinte anos. Já no inicio da década de 50, não
somente divulgadores, mas também engenheiros e matemáticos encarregados de
pesquisas avançadas nos institutos de instrução superior prometiam que estariam
disponíveis dentro de poucos anos:
computadores programados de maneira a produzir traduções automáticas, de alta
qualidade, de uma língua para outra ou, pelo menos, do inglês para o russo e do
russo para o inglês.
computadores programados de maneira a demonstrar teoremas novos e
interessantes no campo da matemática, da geometria e da lógica matemática.
computadores programados para jogar tanto xadrez quanto damas, a tal nível,
que o campeão mundial de xadrez não mais seria um homem e sim uma
máquina.
computadores programados a fim de aprender processos e conceitos novos, não
por imposição formal da parte do programador, mas abstraindo as regras com
base em sua experiência do mundo exterior.
Vejamos, por outro lado, como decorreram as coisas.
Diz-se que a Central Intelligence Agency americana traduz todo dia o Pravda inteiro, do
russo para o inglês, utilizando um computador eletrônico: se a história fosse verídica,
não se poderia dizer que o fato seja absurdo, porque mesmo uma tradução de palavra
por palavra (possivelmente feita de maneira a fornecer todos os sinônimos do dicionário
para cada palavra da língua original) pode dar uma vaga idéia do conteúdo do texto
originário. Porém, não se trataria, por certo, de traduções profissionais de bom nível.
Provavelmente, é verdadeiro que esse último tipo de tradução não seja viável
mecanicamente, por razões teóricas e conceituais, o que seria muito longo e complicado
expor aqui, mas, por certo, mais facilmente demonstravel praticamente. Qualquer texto,
escrito em qualquer língua é, com efeito, uma mensagem enviada por uma pessoa a
outra, ou a um grupo de pessoas mais ou menos restrito: para ser compreendido,
pressupõe uma experiência comum acerca da qual cada um dos membros do grupo haja
formado em sua própria mente uma imagem, um modelo do mundo exterior.
É justamente com referência àquela imagem, àquele modelo, que quem recebe a
mensagem poderá dirimir as ambigüidades do texto e compreender, sem esforço, os
eventuais neologismos. Enquanto não se puder fabricar computadores eletrônicos
dotados de memória capaz de poder registrar uma imagem do mundo exterior, a
tradução automática, de bom nível, não será possível e, corno acenei, talvez nem agora
o seja. Até o momento, os computadores eletrônicos têm memórias inadequadas e os
editores, em particular, consideram mais seguro e econômico recorrer a tradutores
humanos,
No que diz respeito à demonstração de teoremas por meio de computadores, existe,
efetivamente, a possibilidade, e é sabido que foram demonstrados pela máquina tanto
teoremas de geometria, quanto de lógica. Lamentavelmente, porém, tratava-se de
teoremas já conhecidos; as máquinas, neste campo, não fizeram avançar um passo no
progresso matemático. E poder-se-ia, aqui, estabelecer um paralelo com o espiritismo:
não tenho razão alguma muito forte para não crer na possibilidade de colóquios com os
espíritos dos mortos; entretanto, enquanto ninguém se comunicar com o espírito de
Piere Fermat e obtiver a demonstração de seu último teorema, recuso firmemente a me
deixar impressionar.
Semelhantemente, emitir um computador as regras para jogar damas ou xadrez é uma
tarefa imediata, mas não se conseguiu, até agora, que alguma máquina tenha jogado
qualquer partida com um nível superior ao de um bom principiante. Estou seguro de
que, em 31 de dezembro de 1971, o campeão mundial de xadrez será, ainda, um homem
e não um computador e, conseqüentemente, ganharei 120 dólares de uma aposta feita há
9 anos com Joe Weizenbaum um dos mais conhecidos especialistas americanos no
campo da inteligência artificial. Estarei pronto a renovar a mesma aposta por alguns
decênios, ainda.
No que concerne à última promessa da cibernética - a disponibilidade de computadores
que aprendem com base em sua própria experiência precedente - as opiniões são
discordantes, porque muitos sustentam havê-los já programado deste modo. Receio
tratar-se, de uma questão de definição. É seguramente possível programar computadores
eletrônicos a fim de que reajam imediatamente a sinais provenientes do mundo exterior
e governem, conseqüentemente, certos processos que esses sinais desenvolvem,
produzindo, com este objetivo, outros sinais. É também possível que, além de fornecer
esses sinais de controle em função daquilo que ocorra no mundo exterior - mas segundo
processos que devem ser previstos e descritos em termos formais e explícitos -, o
computador registre certas estatísticas sobre o comportamento do ambiente externo e,
em função dos resultados, controle de maneira apropriada os sinais ou os aparelhos
postos sob o seu governo. É muito duvidoso, entretanto, que se queira efetivamente
dizer quando se sustenta que um computador pode ser programado de modo a produzir
um tipo ótimo de reação em conseqüência da verificação de eventos ou,
especificamente, de tipos de eventos que o programador não tinha sequer previsto.
Afora o campo do reconhecimento das configurações (na qual o computador poderia ser
tipicamente usado com finalidades postais, isto é, para ler caligrafias correntes jamais
vistas e para distribuir cartas com endereço escrito a mão ou destino certo), parece que
as máquinas dotadas de aprendizagem. são aplicadas (ou que sua aplicação seja
proposta) a objetivos militares.
O caso típico é aquele do ataque de improviso, com mísseis para testes nucleares, feito
por uma superpotência a outra. A superpotência atacada dispõe de um período muito
breve de tempo para organizar a represália: a decisão de fazer partir seus próprios
mísseis, por outro lado, é tão importante que há necessidade de se estar certo de não
incorrer em erro e, pelo menos nos Estados Unidos da América a ordem neste sentido é
pedida ao Presidente. Alguém escreveu, há alguns anos, um artigo aparentemente
científico intitulado: "Um Programa para Simular o Presidente dos Estados Unidos";
não aconteceu, porém, que Johnson ou Nixon tenham delegado sua própria
responsabilidade a uma máquina.
As aplicações do tipo militar constituem, indubitavelmente, uma grande incógnita. Até
que se verifique um conflito mundial, de dimensões muito grandes, não se poderá saber
exatamente quanto êxito será obtido com o emprego dos computadores eletrônicos. É
certo, todavia, que uma das nações que mais fez no emprego dos computadores
eletrônicos foram os Estados Unidos (que sem dúvida mantêm a vanguarda mundial
neste ponto) e, se os Estados Unidos aplicaram computadores para conduzir seu conflito
no Vietnã, pode-se concluir que os êxitos no campo militar não são certamente mais
freqüentes ou prováveis do que os no campo civil, comercial, industrial ou científico.
Com as considerações precedentes, não pretendo concluir que os computadores
eletrônicos sejam inúteis: tal afirmação seria falsa. Sustento, no entanto, que o emprego
dos computadores eletrônicos não pode, por si só, resolver os problemas de gestão,
administração, organização e estrutura - cuja confusão está provocando a
ingovernabilidade e a instabilidade dos grandes sistemas.
Poder-se-ia arguir, contra as teses precedentes, que os êxitos das missões lunares
americanas demonstram a capacidade de uma das nações mais adiantadas do nosso
planeta: não apenas a de realizar um vasto sistema de funcionamento sem objeção, mas
também de utilizar, no contexto deste sistema, computadores eletrônicos perfeitamente
integrados com as outras máquinas e com os homens no objetivo comum de conseguir
precisões operacionais quase inimagináveis. A contra-objeção é a seguinte: antes de
tudo, as astronaves diretas à Lua partem e voltam uma única vez, razão pela qual - pelo
menos na fase crítica e pelo decurso rápido da missão - não se verifica fenômeno algum
de aglomeração ou de congestionamento. Em segundo lugar, o governo americano, pelo
menos até 1969, despendeu nos programas espaciais mais de cinco milhões de dólares
por ano, ou seja, mais do que o que despendeu, conjuntamente, em transportes aéreos,
abastecimento de água, transportes terrestres, serviços postais, desenvolvimento
regional, controle comercial e pesquisas sobre energia térmica, com finalidades
militares: um investimento deste vulto merece indubitavelmente certo sucesso. Em
terceiro lugar, os recentes cortes nos recursos da NASA e as sensíveis renúncias e
reduções nos programas espaciais americanos parecem indicar que o sistema constituído
pelos americanos, pelos homens, pela organização e pelos financiamentos necessários
ao prosseguimento das missões espaciais, não possui, entre tantas de alta qualidade, a
característica de assegurar a própria sobrevivência e não é, portanto, diferente de todos
os outros sistemas em via de degradação, dos quais aqui nos ocupamos.
E chegamos à. quinta afirmação, referida no início deste capítulo e concernente ao
perigo do controle total dos indivíduos por parte de uma sociedade completamente
dirigida por computadores, numa nação tecnicamente evoluída. Não se pode negar que
os controles financeiro e fiscal podem ser muito eficientes se forem confiados a
fichários obtidos por meio de computadores eletrônicos.
Neste ponto, deve-se observar que se os controles excessivos sobre as atividades
individuais são julgados um mal, então a ineficiência dos sistemas deve ser considerada
positiva. Como de costume, o risco mais grave não está estreitamente relacionado à
simples existência dos meios mecânicos e automáticos modernos, mas ocorre quando
estes meios são utilizados por indivíduos no poder e por organizações de fins
meramente nocivos. Não deveria ser necessário recordar que as degradações e
destruições dos seres humanos, realizadas com técnicas industriais pelos nazistas, não
foram, nem mesmo longinquamente, rivalizadas por algum outro poder estatal. Todavia,
na Alemanha nazista, os planejadores eletrônicos ainda não haviam sido inventados.
IX Falta de água e excesso de lixo
E. R. Poubelle tinha trinta e nove anos quando foi condecorado com uma medalha de
prata, durante o assédio prussiano a Paris, em 1870: mas não deve a isto a sua fama,
nem à meritória atividade que desenvolveu por alguns anos como professor de direito.
Contudo, o seu nome é pronunciado em Paris com mais freqüência do que o de De
Gaulle, em virtude do fato de que, há mais de oitenta anos, são chamadas de poubelles
as latas de lixo que se encontram nos portões de todas as casas parisienses, em
conformidade a uma postura baixada por Poubelle, durante o seu mandato como
Prefeito do Sena, no período de 1883 a 1896. A postura municipal está em vigor ainda
hoje e, toda noite, os moradores devem despejar o lixo nas poubelles (que devem ser de
modelo padronizado, aprovado pela Prefeitura), que são esvaziadas na manhã seguinte
pelo Serviço de Limpeza Urbana,
A rapidez do serviço de coleta de lixo urbano, obtida recorrendo-se gratuitamente à
colaboração obrigatória dos cidadãos para executar uma parte não descurável. é, por
certo, digna de nota: mais notável ainda é o fato de que esta inovação sistemática levara
oitenta anos para atravessar os Alpes e ser adotada em Roma, onde foi imposta pela
Comuna somente em 1970 - o que confirma que também no campo da limpeza urbana
os sistemas não são governados de modos melhores e mais modernos. Esta observação
pode parecer banal a quem tenha visto os montões de lixo nas ruas - como por exemplo,
em Londres e Roma -, acumulados principal, mas não exclusivamente, em ocasiões de
greves do pessoal encarregado e que são sintomas de uma ineficiência bem mais grave.
A este propósito, observe-se incidentalmente que a consideração sistêmica de um
processo ou de um serviço não pode prescindir da análise e da avaliação do rendimento
do pessoal nele empregado e, portanto, também dos aspectos econômicos e da reação
dos usuários a esse respeito, reação que pode conduzir, eventualmente, a ações sindicais
ou greves, que reduzem a eficiência ou anulam a prestação desse serviço.
A pouca eficiência dos serviços de coleta e eliminação do lixo teve como conseqüência
nos Estados Unidos da América, e, recentemente, em proporção apreciável, também na
Europa, o uso, em escala cada vez maior, dos trituradores de lixo incorporados às águas
- que pulverizam os refugos domésticos e os eliminam, em suspensão na água, através
dos despejadores. Para obter-se o bom funcionamento desses trituradores, é necessário
fazer escorrer água em abundância das torneiras, o que redunda num aumento do gasto
hídrico para uso doméstico e no agravamento do estado de abastecimento das grandes
cidades.
A parte este exemplo ulterior de um caso de ineficiência de um sistema (limpeza
urbana), que contribui para fazer com que outro sistema entre em crise - é interessante
observar que o total sistema de armazenamento e distribuição da água é um dos menos
racionalizados e mais desorganizados. O esbanjamento de água no uso doméstico é
combatido muito fracamente - como nos Estados Unidos, com campanhas publicitárias
contra as torneiras que vazam ou melhor, é institucionalmente aceito, como nos
reservatórios de Acqua Pia, em Roma, onde cada um dos quais recebe diariamente um
metro cúbico de água com jato contínuo: quando a alimentação direta não é utilizada, a
água vai encher um tanque e, quando também este está cheio, é despejada fora
ininterruptamente, vindo a terminar nos esgotos. As necessidades crescem, portanto, de
modo despropositado e grandes vales entre os montes Cat;skills são cheios de água para
funcionar como reservatórios para a cidade de Nova York.
De alguns anos para cá, fala-se do lixo com frequência crescente, mas, geralmente,
também se fala dos despejos Industriais e de seu perigo e, particularmente, da poluição
do ar (smog), da água dos rios e dos lagos, que estão tão contaminados que não
permitem mais a reprodução da vida vegetal e animal.
Ora, o problema dos despejos industriais e da poluição conseqüente existe
indubitavelmente: basta lembrar que o volume dos despejos anuais das indústrias, tanto
sólidos quanto líquidos, é, numa nação desenvolvida, da ordem de 10 milhões de metros
cúbicos. A gravidade do problema é avaliada segundo ângulos muito diversos: J. Paul
Austin, presidente do Conselho de Administração da Coca-Cola Co. americana, sustenta
que se os despejos industriais não forem limitados, racionalizados e tornados
inofensivos, os Estados Unidos se transformarão, dentro em breve, num vasto cemitério.
A Coca-Cola começou a contribuir, modestamente, para esta obra de minimização dos
danos pela inundação dos despejos, instalando nas proximidades dos supermercados
máquinas que pulverizam o vidro das garrafas usadas e não recuperáveis, de modo a
produzir areia que pode ser utilizada nos parques para divertimento das crianças.
A Reynolds Metals Co. iniciou um programa para a coleta e a reutilização dos bujões de
alumínio vazios, pagando meio centésimo de dólar por cada um deles. No outro extremo
se encontram, diversamente, aqueles industriais, sobretudo americanos, que sustentam
que qualquer legislação mais severa, tendente a obrigar as indústrias a assumir a
responsabilidade pelas conseqüências danosas dos despejos que produzem, causaria
ônus maiores, insustentáveis para as empresas e justamente num momento em que a
economia atravessa uma fase difícil e é necessário que a indústria nacional se mantenha
competitiva em relação à concorrência estrangeira.
Qualquer que seja a posição que se adote com referência a este dilema, o principal
perigo dos despejos industriais em relação aos domésticos, como produtores de
poluição, continuará a existir, apenas na hipótese de que o desenvolvimento industrial, o
aumento da população e o crescimento das dimensões dos sistemas industriais
continuem imperturbaveis por um período indefinido de tempo.
As poluições industriais representam, por certo, um problema grave, mas os processos
que lhes dizem respeito têm um decurso relativamente lento. Suas conseqüências são a
destruição das riquezas naturais e desequilíbrios ecológicos, e não creio serem estes os
aspectos mais relevantes ao fim das considerações a curto prazo relativas às crises
concomitantes dos sistemas de alta concentração. Poderão tornar-se muito mais
relevantes e prementes se as concentrações continuarem a crescer com uma
interpenetração maior do que a atual, entre áreas industriais e urbanas, e se as situações
de instabilidade continuarem a manter-se, sem conduzir a um estado de crise grave e
estável.
A curto prazo, pelo contrário, a presença de, montões de lixo, nas cidades poderá
acarretar conseqüências mais simples e mortais do que as dos despejos industriais. A
matéria-prima não falta - nas metrópoles, das menores às maiores, os volumes anuais de
lixo coletado vão de alguns milhões a uma ou duas dezenas de milhões de metros
cúbicos. As propostas de seu tratamento industrial remunerativo - como o de comprimir
o lixo a pressão muito alta, transformando-o em pequenos blocos, resistentes e
compactos, utilizáveis como aterro para as futuras pavimentações das vias de
comunicação - estão longe de serem concretizadas. Da mesma forma, as aplicações de
modernas tecnologias não são suficientes, neste campo, para fornecer soluções rápidas e
eficazes. Há alguns anos atrás, uma companhia séria e moderna como a Honeywell teve
um grande insucesso com um sistema de instrumentação eletrônica (compreendendo
medidores de carga, analisadores, registradores, integradores e um grande painel
luminoso, que deveria indicar qualquer dano na aparelhagem) para o controle da rede de
esgotos do Condado de Sacramento, na Califórnia.
É pouco provável que uma crise múltipla dos sistemas urbanos comece por causa de um
deterioração da situação da limpeza urbana. Mas, em lugar disso, o contrário é quase
certo: isto é, na presença de crises de outros sistemas urbanos (eletricidade, transporte,
água) a crise da limpeza urbana torna-se inevitável. Nas metrópoles, o crescimento
rapidíssimo dos montões de lixo agrava as outras crises que se estão verificando (como
por exemplo, prejudicando o fluxo do tráfego, já congestionado), acarreta novas crises
em conseqüência da primeira, como os incêndios produzidos por pessoas inexperientes,
embora bem-intencionadas, que esperam destruir as pilhas malcheirosas pelo fogo -,
facilita a difusão de endemias e doenças - colocando à disposição dos ratos novas fontes
de alimento e favorecendo-lhes, portanto, a mobilidade e agravando qualquer situação
crítica, diminuindo, portanto, a prestação de serviços de todos aqueles que se acham
envolvidos em rápidos fenômenos de degradação dos sistemas.
X - A conjuração dos sistemas urbanos
John Doe vive em Nova York e já está convencido de que os próximos dez anos serão
muito piores do que os dez passados.
Já lhe sucedeu, muitas vezes, ficar bloqueado no tráfego com o seu carro, por algumas
horas e, em um par de ocasiões, ser obrigado a abandonar a viatura e a retornar a casa a
pé, voltando, posteriormente, noite avançada, para recuperar o seu veículo.
Já lhe sucedeu ficar muitas horas sem eletricidade e as conseqüências não foram muito
graves: os legumes que estavam na geladeira se deterioraram e teve de beber uns dois
martinis quentes, teve que fazer muitos percursos a pé e, de manhã, não se barbeou, pois
embora possua três barbeadores, todos são elétricos.
Já lhe sucedeu sofrer um atraso de cinco horas para tomar o avião para Boston (ao passo
que o vôo deveria durar apenas cinqüenta minutos) e perder um dia de trabalho.
Já lhe sucedeu não poder comunicar-se telefonicamente com seus correspondentes
comerciais e permanecer isolado deles por um período em que perdeu boas
oportunidades e certa quantia de dinheiro.
John Doe está preocupado com a possibilidade de que seus filhos se viciem em drogas;
está preocupado com a inflação; está preocupado com os abalos da bolsa; tem medo de
que irrompa a guerra nuclear; receia não conseguir pagar os seus débitos e as suas
hipotecas. Não dispõe, no entanto, de muitas informações sobre a probabilidade de que
todos esses eventos venham a se verificar e não está fazendo muito com vistas a
preparar-se para uma crise.
Ao contrário, a probabilidade de que uma crise se verifique é grande e está crescendo
continuamente, tanto em Nova York, como em qualquer cidade densamente povoada.
Eis um dos modos pelo qual pode se verificar o apocalipse.
Tudo poderá começar com a simples coincidência de uma paralisação do tráfego nas
estradas e nas ferrovias. Como conseqüência, ao final do turno dos controladores em
grandes aeroportos, o pessoal da substituição não chega em sua totalidade. Os
controladores - que já trabalham dez horas diárias durante seis dias da semana - devem
permanecer no serviço, seguindo dois aviões por minuto, na tela do radar, guiando-os na
decolagem e na aterrissagem procurando evitar colisões. Na décima-nona hora de
serviço quase contínuo, a capacidade de atenção de um controlador da torre do
aeroporto O'Hare, em Chicago, diminui sem que o homem, embriagado de cansaço, se
dê conta. O controlador comete um erro grave.
Um quadrimotor, prestes a aterrar, colide com um DC-9, que mal decolara, e os dois
aviões tocam um fio de alta tensão, interrompendo-o.
A carga elétrica do fio interrompido reparte-se, instantaneamente, sobre os outros fios,
já sobrecarregados. As proteções entram automaticamente em funcionamento e a
corrente de toda a rede elétrica de Illinois, Michigan, Ohio, Pennsylvania, Nova York,
Connecticut e de Massachusetts deixa de funcionar. Mas, desta vez, a escuridão é
demorada: dura dias e dias.
O mês é janeiro. A temperatura é de quinze graus abaixo de zero. Recomeça a nevar e
os quebra-neve não podem entrar em funcionamento porque as estradas estão
bloqueadas. Muitos carros consomem toda a gasolina, mantendo o motor inutilmente
ligado enquanto estão bloqueados no tráfego imóvel. O reabastecimento de gasolina
torna-se impossível porque os motores elétricos das bombas não funcionam. Muitos
motoristas abandonam os seus veículos, contribuindo para tornar inextricáveis as
obstruções.
Os trens não funcionam e muitos empregados são obrigados a acampar em seus locais
de trabalho, onde procuram aquecer-se acendendo o fogo. Propagam-se incêndios que
não podem ser extintos porque os carros dos bombeiros encontram as estradas
impedidas e não podem alcançar os locais desses incêndios. Uns poucos milhares de
pessoas começam a morrer onde se produzem cenas de pânico.
A alvorada gélida do dia seguinte encontra a situação inalterada. Cinqüenta milhões de
pessoas são abandonadas à sua própria sorte, sem reabastecimento e sem informações.
Todos tentam telefonar e a rede telefônica, em sua totalidade, fica paralisada. Muitos
procuram alcançar a pé seus familiares, iniciando marchas de algumas dezenas de
quilômetros, que não logram completar: alguns morrem na neve, outros pedem asilo que
não lhes podem conceder e recorrem à violência e por isso mesmo encontram reações
violentas. Começam a entrar em ação muitos milhares das dezenas de milhões de armas
de fogo que estão em poder de particulares nos Estados Unidos.
As providências de emergência e de restauração não podem igualmente ser tomadas,
porque a paralisação dos transportes impede os encarregados de atingir os locais de
trabalho.
Durante o segundo dia é proclamado o estado de emergência e as forças armadas
assumem todos os poderes civis. A paralisação dos aeroportos impede que se recorra a
pontes aéreas para substituir os reabastecimentos através das estradas e ferrovias.
Recorre-se aos helicópteros militares - mas a capacidade destes logo se revela
nitidamente insuficiente para as necessidades.
Ao terceiro dia, começam os saques aos supermercados, os quais os militares tentam
reprimir: algumas centenas de pessoas são mortas nos tumultos.
John Doe se dá conta de estar totalmente despreparado para este tipo de situação. As
duas velas se acabam e todos os aparelhos elétricos dos quais a casa estava repleta estão
parados e inúteis.
José Gutierrez - o porto-riquenho - se encontra muito mais à vontade. Seu nível de
subsistência é mais baixo e as novas condições não lhe são particularmente
esmagadoras: jamais teve telefone e está habituado a ter a luz cortada por falta de
pagamento. A sua casa, portanto, é equipada para funcionar em condições mínimas e
primitivas.
Está acostumado porque sempre viveu em uma situação mais competitiva e mais
violenta. Será José quem matará John Doe para assegurar-se da posse de alguns bujões
de gás liquefeito. Será José quem sobreviverá.
O número de mortos pelo frio e pela fome será, todavia, muito maior e muito mais
significativo do que o das vítimas dos atos de violência. Uma notável contribuição ao
cômputo total será dada pelas mortes nos hospitais.
Durante as duas semanas de duração da crise, morrerão alguns milhões de pessoas.
Depois, as coisas retomarão o seu curso, mas a retomada será lenta e estruturada sob
níveis muito mais baixos do que os precedentes.
A longa paralisação das centrais térmicas, das indústrias e dos motores de combustão
interna tem por efeito a drástica diminuição da poluição atmosférica, mas a
impossibilidade de remover tempestivamente alguns milhões de cadáveres faz com que
recrudesçam as nuvens de smog. As condições deterioradas de higiene favorecem a
propagação de doenças epidêmicas, que causam outras mortes.
O surgimento do último fator letal é decisivo: trata-se da peste bubônica, que mata a
metade da população restante. Estima-se que, no século XIV, a peste destruiu entre a
metade e dois terços da população da Europa. Este flagelo não se apresentou mais de
modo sensível após os primeiros anos dos 800, mas, como escreveu Hans Zinsser em
seu livro Rats, Lice and History: "Não temos qualquer explicação satisfatória para a
aparição das epidemias de peste nos países ocidentais e devemos considerar que,
malgrado ser o bacilo da peste infeccioso, a abundância dos ratos e as circunstâncias de
que estes são ocasionalmente infeccionados pela peste e constantemente infestados de
pulgas, o surgimento de uma epidemia requer um peculiar acréscimo de muitas
condições, que afortunadamente não se verificaram simultaneamente na Europa
ocidental e na América no último século. O indício mais provável é o do aumento da
domesticação dos ratos. As epidemias de peste no homem são precedidas, usualmente,
por vastas epizootias entre os ratos. Em virtude dos tipos de habitação, os modos de
armazenar e de viver, de construir as despensas, etc., que gradativamente se
desenvolveram nos países civilizados, as migrações dos ratos através das cidades e
lugarejos não se verificam mais como anteriormente. Os focos de peste entro os ratos
ficam, portanto, circunscritos a famílias e colônias isoladas."
Escrevia Zinsser, em 1935, que, há agora a novidade constituída pela disponibilidade
dos antibióticos, que, em condições normais de controle higiênico e de funcionamento
dos mecanismos de abastecimentos e das estruturas da sociedade poderiam,
indubitavelmente, abortar uma nova epidemia rio seu nascimento. No entanto, uma crise
urbana como a acima descrita, poderia mesmo ter implicações ecológicas capazes de
desencadear uma epidemia e poderia, posteriormente, manter condições de
desorganização e de escassez de tal monta que permita à epidemia o prosseguir
imperturbada sua ação mortal.
Os ecologistas que hoje lançam gritos de advertência para as perturbações do equilíbrio
do nosso planeta e se colocam em guarda contra a destruição completa de espécies
animais, contra as poluições, contra o aumento de anidrido carbônico na atmosfera - o
qual consegue uma lenta e contínua elevação da temperatura - se encontram agora
enfrentando uma ameaça muito mais grave e direta e de ação muito mais rápida.
Quando esta ameaça for reconhecida, será demasiado tarde para se fazer algo.
Estas crises urbanas não serão exclusividade de Nova York, que serve apenas de
paradigma, mas verificar-se-ão em todas as metrópoles. Esses dramáticos
acontecimentos não poderão, por outro lado, produzir uma Idade Média instantânea.
Constituirão, porém, o primeiro germe e o fator desencadeante de uma profunda
degradação da sociedade e da própria civilização, tal como a conhecemos.
Em quase todas as culturas, os homens jamais se limitaram a sofrer as catástrofes, mas
procuraram sempre atribuir a culpa a alguém, mesmo quando se tratava de secas,
tormentas, dilúvios ou ciclones. Os bodes expiatórios têm sido pessoas isoladas, como
Giona, grupos étnicos, como os hebreus; categorias definidas gratuitamente como
feiticeiros; povos vizinhos; e, às vezes, têm sido até inventados, como totens, deuses e
demônios, antropomórficos ou não, cuja ira era considerada como uma causa das
desgraças que sucederam à humanidade.
Já em 1965, muitos americanos acreditaram que o black-out da eletricidade tivesse sido
causado premeditadamente por agentes comunistas ou anarquistas, mas não foram
empreendidas ações punitivas com bases nessas convicções. Após uma catástrofe
verdadeiramente trágica, a caça às feiticeiras se manifestará de forma tão violenta que,
em comparação a ela, as perguntas, acusações e perseguições do Senador McCarthy
parecerão simples brincadeiras. Inocentes serão mortos - talvez queimados - e crescerá o
número já elevado dos sacrificados. o temor de uma acusação gratuita aterrorizará os
inocentes, a fobia ao propagador de epidemias destorcerá as mentes dos acusadores, não
apenas os estrangeiros mas também os concidadãos serão considerados suspeitos, a
sociedade tornar-se-á mais instável e aprofundar-se-ão as feridas e os danos produzidos
pela crise catastrófica.
As capacidades de organização e de previsão, que governaram até agora, e bastante mal,
a subsistência e o desenvolvimento da sociedade, resultarão inúteis perante as variações
de urna realidade da qual não houve exemplo semelhante na memória humana. Serão
freqüentes as atividades dissipadoras; ou danosas, decididas simplesmente pela
incapacidade de adaptação à nova situação e pelo hábito de encarar a realidade segundo
velhos esquemas.
Ninguém estará apto a sugerir, por muito tempo, um modelo de funcionamento ou de
previsão de algum sistema sobrevivente e, menos ainda, do supersistema constituído
pela total sociedade,
Mas, obviamente, o supersistema - no qual configuramos hoje a sociedade - não terá
lugar entre os sobreviventes, mas só funcionará em muitos pequenos sistemas, com
escassa comunicação entre si, autárquicos e dotados de certa estabilidade. Esta é outra
semelhança das condições futuras com aquelas da Idade Medieval precedente (séculos
IV a XIV) e podemos esperar que, de novo, as drásticas diminuições da população nas
áreas da terra mais densamente povoadas produzam deslocamentos maciços de homens,
primeiramente para fugir das regiões atingidas pela catástrofe - e, no caso de que,
efetivamente, se desenvolvam epidemias de peste, esses e os movimentos se difundirão
rapidamente - e, posteriormente, para voltar a preencher as zonas de pouca densidade
habitacional e tornadas desejáveis pela livre disponibilidade de casas e objetos
abandonados.
É difícil prever quais as vicissitudes que caracterizarão esses deslocamentos de
população. Provavelmente, a maior parte das migrações será em pequena escala e a
distâncias curtas, com um movimento do tipo pendular em torno dos centros
inicialmente ocupados pela metrópoles e megalópoles.
Relevantes deslocamentos populacionais poderiam, inversamente, suceder em longas
distâncias e representar o ingresso dos povos do terceiro mundo na área atualmente
ocupada pelos despojos da civilização moderna.
Disto resultariam colisões e tragédias que, a prazo relativamente longo, teriam
profundos efeitos sobre o desenvolvimento e as características do provável
renascimento sucessivo. É provável, com efeito, que os decréscimos de população sejam
muito menores nos países do terceiro mundo, onde o crescimento menos fenomenal dos
sistemas instáveis pode ser considerado equivalente a um fator de maior estabilidade.
Poderia ocorrer que a China não sofresse degradações no funcionamento dos próprios
sistemas simultaneamente àquelas dos do mundo ocidental. E isto parece, assim, muito
provável, tendo em vista as respectivas e atuais diretrizes de desenvolvimento. Nesse
caso, será de se esperar uma expansão dos chineses além de seus limites, primeiramente
em direção aos territórios da União Soviética e, depois, em todo o resto do mundo.
É de se imaginar que as correntes de pensamento e, as ideologias da revolução chinesa
ou dos movimentos por ela inspirados venham a ter efeitos, fracos e longínquos, sobre o
desenvolvimento do renascimento que sucederá à próxima Idade Média, assim como as
tradições iniciais de eventuais xamanistas, florescentes entre os Hunos, quando ainda
estavam muito afastados da Europa possam ter sido transmitidos através de migrações e
choques de povos e culturas e haver influenciado, talvez, alguns aspectos do
renascimento ou do humanismo.
As hipóteses que descrevi são trágicas e, no capítulo XVII, sugiro alguns modos
improváveis para tentar evitar a confirmação das mesmas.
Poder-se-ia sustentar que tudo está correndo muito bem, que estamos no melhor mundo
possível e que é bom que a nossa civilização caia para dar lugar a uma nova, melhor e
mais florescente, num período relativamente remoto. Segundo este ponto de vista,
teremos muito mais a lamentar do que se chorou pelo declínio e queda do Império
Romano: o que podemos afirmar é que o progresso e o desenvolvimento verificados
entre os séculos XIV e XX trouxeram algo de melhor do que o produzido pelos gregos e
romanos. E se esta é a consideração mais otimista que, podemos fazer, equivale a dizer
que a situação é dramática.
XI - A inutilidade da guerra como meio
de destruição
O mundo, tal como é, agrada somente a uns poucos otimistas, suficientemente
fantasiosos para imaginá-lo melhor. Por outro lado, muitos são os homens que querem
mudá-lo e crêem que, presentemente, a atividade mais importante seja a de abalar o
"sistema", em cuja existência reconhecem o mais grave mal e o principal obstáculo a
qualquer melhoramento. Muitos são, também, os que fazem objeção ao mundo atual e
gostariam, talvez, de destruir, também, a estrutura do poder e da economia, mas julgam
que o perigo mais iminente seja a destruição de todo o planeta em conseqüência de uma
nova guerra mundial e que o primeiro objetivo a se propor seja, portanto, o do
desarmamento.
Antes de examinar as causas remotas da degradação dos grandes sistemas e de
descrever o que sucederá após uma degradação total, é conveniente discutir as teses às
quais, para ser breve, chamarei de tese da contestação e do desarmamento. Dediquei a
esta discussão este capítulo e o seguinte.
Se o temor de uma grande guerra mundial fosse, efetivamente, justificado, seria
razoável a preocupação: antes de tudo, evitar a destruição dos grandes sistemas e,
depois, evitar a deterioração.
Talvez não existam substitutos para a guerra. Há muitos decênios vêm sendo feitas
propostas para abolir os conflitos armados e substitui-los por arbitragens internacionais.
Os organismos mais importantes surgidos dessas propostas foram a Liga das Nações -
que não serviu para evitar a guerra da Abissínia, a guerra da Espanha e a Segunda
Guerra Mundial - e a ONU, que não conseguiu impedir a guerra da Coréia, a guerra do
Vietnã, o conflito árabe-israelense, a guerra entre Biafra e Nigéria, nem outras
intervenções armadas mais breves e eficientes, como as elos russos na Hungria e na
Tchecoslováquia.
Lewis Mumford, em seu livro The Culture of Cities, procurou esboçar uma teoria
genérica que prevê o trágico final, por eventos bélicos, do excessivo desenvolvimento
das cidades. Escreve Mumford que ao estágio dos depoli, isto é, de agregação primitiva,
a cidade passou ao estágio de polis e, depois, aquele de cidade-mãe, metropoli. O
irreversivel processo de desenvolvimento conduz a metrópole a transformar-se em
megalopoli e a desorganização desta produz, fatalmente, a falsa condição da ditadura;
assim, existe a tirannopoli. Para manterem o seu poder os tiranos incitara os cidadãos à
guerra, ou os precipitam, forçosamente, em guerras imperialistas, as quais, juntamente,
com a carestia e as epidemias, destroem as cidades e transformam-nas, ela necropoli, O
último o definitivo estado.
E curioso que Mumford, ao republicar o livro após a Segunda Guerra Mundial,
destacasse que a primeira edição, de 1936, era profética, como o demonstraram as
destruições de Varsóvia, Londres, Stalíngrado, Nuremberg, Berlim, Frankfurt,
Leningrado e Rotterdam, alem de, naturalmente, Hiroshima e Nagasaki. Hoje, 25 anos
depois, todas essas cidades foram reconstruídas e são sede de fenômenos de
congestionamento, demonstrando a inutilidade da guerra corno freio do crescimento dos
sistemas.
Pode-se chegar a conclusões similares, examinando o gráfico da população mundial de
1850 a 1950. De 1850 a 1900, a população do inundo passou de 1.150 milhões a 1.650
(aumento de 43%) e no segundo cinqüentenário o aumento foi de 44%, de 1.650
milhões para 2.350, não obstante a Primeira e a Segunda Guerras Mundiais, cujos
efeitos são visíveis apenas no gráfico.
É instrutivo o exame duma tabela na qual estão discriminadas as populações em 1935 e
1966 e as perdas de homens devidas à guerra, em 10 países envolvidos no conflito:
População
1935 Perdas
1939-45 em milhões População
1966
Iugoslávia 14.0 1.70 20.0
Polônia 32.0 5.60 32.0
França 41.0 0.75 50.0
Itália 41.0 0.35 52.0
Grã-Breta 45.0 0.57 55.0
Alemanha 66.0 9.50 77.0
Japão 84.0 6.50 100.0
U.S.A 137.0 1.04 196.0
U.R.S.S. 162.0 13.50 236.0
Tchecoslo 14.5 0.50 14.2
Total 636.5 40.31 832.2
Malgrado a morte, por causa da guerra, de 6,4% da população dos países acima
considerados, nos anos compreendidos entre 1939 e 1945, no período 1935-1966 a
população total dos mesmos cresceu em 31%, ou seja, a expansão demográfica não
diminuiu em proporção apreciável, nem mesmo em virtude da maior guerra que jamais
se travou. Mas há, também, outra consideração ainda mais importante: Patrick M. S.
Blackett, era seu livro Military and Political Consequences of Atomic Energy,
publicado em 1948, demonstrou como os bombardeios de áreas urbanas, durante, a
Segunda Guerra Mundial, tiveram conseqüências militares quase desprezíveis. Os
bombardeios de Hamburgo, por exemplo, no verão de 1943, mataram mais de 60 mil
pessoas, mas tiveram, também, o efeito de abaixar muitíssimo o padrão de vida da
cidade e a demanda de pessoal afeito aos serviços urbanos; como conseqüência pôde ser
suprida a carência de mão-de-obra de que antes se ressentiam as indústrias da região e,
dentro de cinco meses, a indústria havia recuperado 80% do potencial de produção
precedente. O abalo da produção da indústria alemã deveu-se, por outro lado, aos
bombardeios de precisão efetuados nos sistemas de transportes.
A situação presente difere muito daquela da Segunda Guerra Mundial, em conseqüência
da atual disponibilidade de bombas nucleares. Se supusermos, porém, que, em caso de
uma terceira guerra mundial, venha a ser posta em prática a lição aprendida durante a
segunda a respeito dos efeitos um tanto minguados dos bombardeios indiscriminados,
seremos levados a julgar que, também, numa próxima guerra, as hecatombes,
provavelmente, serão irrelevantes em relação ao fenômeno mais maciço da explosão
demográfica.
Pode-se, certamente, indagar, nesta altura, se os arsenais nucleares preparados pelas
grandes potências - e, já agora, também pelas não tão grandes - são quantitativamente
suficientes para aniquilar essas mesmas nações e, talvez, aniquilar completamente toda
a humanidade. Entretanto, a hipótese do holocausto nuclear - tornada possível pela
capacidade de overkill (isto é, de exterminar todo adversário) já adquirida pelos menos
pelos Estados Unidos e pela União Soviética - não muda, substancialmente, o quadro
das previsões sobre o futuro de nossa civilização. E vejamos por quê.
A primeira eventualidade - isto é, a da destruição da totalidade, ou quase, do gênero
humano - é, seguramente, a pior sob todos os pontos de vista, mas equivale ao
desaparecimento da civilização, tal qual a conhecemos, e, como quer que seja, ao
desaparecimento dos aspectos de congestionamento das concentrações urbanas que
formam o objeto da minha indagação. Esta hipótese letal tem, por isto, conseqüências
horríveis, e tão definitivas que não vale a pena determo-nos sobre ela. Nem por isto,
porém, se deve deixar de procurar evitar a concretização da hipótese - ou seja, o uso
indiscriminado e generalizado de bombas nucleares: todo movimento que propugna
pelo desarmamento ou pela diminuição das armas nucleares deve ser apoiado; no
entanto, as modalidades desse apoio, as esperanças ou as probabilidades de êxito no
intento nada têm a ver com a exposição que vou aqui conduzindo.
A segunda eventualidade é a de que as armas nucleares não venham mais a ser
utilizadas, pelo próprio temor de uma destruição total e de que continuem, portanto -
como acontece atualmente -, as guerras do tipo convencional. Esta segunda hipótese não
é improvável e há o fato precedente da abstenção do emprego de gás asfixiante, durante
a Segunda Guerra Mundial. Como se viu, porém, o número de pessoas eliminadas por
meio de guerras convencionais é irrelevante em relação às crescentes dimensões dos
problemas de que nos ocupamos aqui, e para os quais também esta segunda
eventualidade é destituída de interesse. Em caso de sua verificação, poder-se-ia, quando
muito, remover o problema por alguns anos e, retardar a instabilidade em cuja direção
os grandes sistemas continuariam, igualmente, a marchar.
A única hipótese relevante é a de uma guerra atômica, que reduza em um ou dois
bilhões, em tempo curtíssimo, a população mundial. Não parece provável que isto possa
ocorrer, porque seria necessário com esse objetivo, que o número de bombas nucleares
explodidas e os locais das explosões fossem escolhidos e alvejados com muita precisão.
O objetivo visado pela estratégia de cada uma das partes em conflito seria o de infligir,
classicamente, o máximo dano a uma ou mais das outras nações implicadas e isso
conduziria a amplos morticínios e a todas as outras coisas desse calibre.
A única circunstância que poderia limitar significativamente o número de mortos é que
a ineficiência e a ingovernabilidade dos grandes sistemas não estão, por certo, limitadas
aos sistemas urbanos, mas caracterizam, igualmente, os sistemas militares. Não está
excluído, pois, que os militares procurem matar uma grande porcentagem do gênero
humano, mas consigam, somente, eliminar algumas centenas de milhões de homens, ou,
quando muito, um bilhão. O estado de coisas que se viria, assim, a criar seria, então,
muito semelhante àquele já descrito da metade aproximada da população dos únicos
países desenvolvidos, já que nestes estariam concentrados os objetivos da maior parte
dos mísseis nucleares.
Para todos os fins sistêmicos, portanto, a hipótese de uma nova grande guerra mundial
representa somente uma variante, não particularmente significativa, de outras hipóteses
já levantadas e não configura, certamente, a ação de um fator limitativo capaz de evitar
o alcance da instabilidade dos grandes sistemas e assegurar o não advento da próxima
Idade Média, que se apresenta como a eventualidade ainda mais trágica, cuja
probabilidade cresce independentemente do estado de paz ou de guerra do mundo.
XII - Inutilidade do contestação
A 7 de agosto de 1934, a equipe de futebol da cidade de Dun Dealzan, na República da
Irlanda, jogava fora de casa, no campo de Banbridge, em Ulster. A equipe católica
viajara de trem, e ao chegar sentiu a atmosfera hostil reinante. Depois, durante a partida,
o ânimo do público protestante estava exaltadíssimo e o jogo para os visitantes era, de
fato, difícil. Chovera e o terreno estava pouco firme. Os católicos estavam, também,
enlameados, além de contundidos, quando retornaram ao vestiários, derrotados por 5 a
1. Foram acompanhados à estação por uma pequena multidão que queria gozar até o
último minuto o abatimento dos vencidos.
Quando o trem do retorno se movimentou em direção ao sul, uma voz de dentro da
multidão gritou: "Esta noite, rangerão os dentes no Vaticano."
A idéia contida na base dessa história - de que Pio XI seja posto, continuamente, a par
de qualquer caso mínimo em que se confrontem católicos e protestantes, eficientemente
informado pelas famosas ramificações capilares das organizações jesuíticas e dos
ativistas católicos - não é a menos absurda das suposições de muitos contestadores dos
dias de hoje, a respeito do poderio da grande indústria e da sua infalível eficiência em
planejar a arregimentação dos trabalhadores de todos os níveis e a submissão das
massas a um controle total.
Não é fácil referir-se brevemente, e de modo significativo, aos pontos de vista dos
contestadores e dos que protestam, porque faltam em seus escritos as definições dos
termos usados; as passagens e as concatenações entre os argumentos são gratuitas; as
informações sobre os fatos são cronicamente deficientes, de tal forma que qualquer
interpretação das idéias expostas pode ser, apenas, hipotética.
Os contestadores não são citados unicamente por se exprimirem mal, mas, sobretudo,
porque suas idéias mudam muito rapidamente e se desviam de seu curso. Pouco tempo
depois de que Herbert Marcuse colocou junto em seus estudos Hegel, Marx e Freud,
Charles Reich tentou superá-lo inventando a etiqueta da Consciência III, aplicável
àqueles que se liberaram e seguem todo o instinto, fumando maconha e não aceitando
responsabilidades. Falar-se-a, agora, por alguns meses, do revigoramento da América
imaginado por Reich. Contudo, provavelmente, enquanto escrevo, qualquer outro está
preparando uma nova fórmula, que porá de lado Charles Reich e proporá novas
liberações e verdades mais intuitivas e vastas, mas, igualmente arbitrárias.
De qualquer maneira, as teses dos que protestam são bastante conhecidas e divulgadas.
Segundo elas, a industrialização estabelece o terror na sociedade e força a maior parte
da população a executar trabalhos alienantes. Mesmo quando os poderosos não
empreendem ações violentas e diretas, sua propaganda abole toda a possibilidade de
escolha, já que as alternativas apresentadas são ilusórias, em sua totalidade,
correspondentes à finalidade de manter o sistema em funcionamento. A cibernética e os
computadores podem contribuir para o controle total da existência humana.
Este modo de encarar as coisas é característico, propriamente, dos drop-out, isto é,
daqueles que escaparam do sistema e deixaram de freqüentar a escola ou de trabalhar.
Não existem, no meio deles, verdadeiros maoístas. Com efeito, mesmo entre aqueles
que assim se designam, não se encontram senão alguns vestígios dos princípios
fundamentais da revolução chinesa: o uso da razão; o recurso da argumentação;
prioridade da instrução - particularmente da técnica e científica -; conservação e
desenvolvimento da indústria; aumento da produtividade; melhoramento da organização
não somente política e, ideológica, mas também contábil, hierárquica, produtiva -;
disciplina militar, não apenas com os objetivos táticos, mas baseada na figura do
soldado, que é igualmente cidadão, técnico e estudante.
Os verdadeiros maoístas propor-se-iam objetivos concretos, a curto prazo, e entre eles
estaria, seguramente, o de manter a integridade e a eficiência não somente dos
equipamentos industriais, mas da totalidade dos mecanismos de produção. os drop-out,
pelo contrário, afirmam serem irrelevantes quaisquer questões de organização,
quaisquer problemas concretos e quaisquer planos propostos para satisfazer as
necessidades de grandes massas de homens. Não consideram importante o fato de que a
liberação da coerção industrial faça diminuir a produtividade e que, conseqüentemente,
milhões de homens ficam reduzidos à miséria. Negam a concatenação lógica entre a
falta de! técnicos que estudam de modo coercitivamente eficiente -, a conseqüente
incompetência técnica do pessoal e os desastres e as hecatombes devidos a essa
incompetência. Consideram importante unicamente a destruição do sistema.
Essa destruição deveria começar com a negação de certas necessidades, como a luta
pela sobrevivência, a necessidade de se ganhar a vida, os princípios da eficiência, da
competição, a necessidade de produtividade e a de reprimir os instintos. A essa negação
das necessidades podem acompanhar ações destrutivas para minar a autoridade e
estabelecer a paz.
O objetivo final é o de atingir o reino da liberdade: para tal é preciso que se
desenvolvam novas necessidades, no sentido biológico, e uma teoria do homem que
gere nova moral, herdeira e negativa da moral judaico-cristã, que libere as atividades
sexuais da repressão que sempre sofreram e assegure a todos solidão, calma, beleza e
felicidade "não merecida". Para todos, o trabalho deveria tornar-se, um jogo.
Ora, é uma boa norma de higiene mental escolher-se um trabalho que agrade, divirta e
apaixone. Mas essa simples consideração, puramente importante para a orientação das
escolhas pessoais, não é suficiente para resolver, de modo geral, os dilemas da
população inteira. Ter-se-ia atingido na República Popular Chinesa e no Japão o
objetivo de tornar o trabalho, em si, desejável além dos limites do horário e
prescindindo da remuneração: nos países do Extremo-Oriente, entretanto, esse
resultado, seria corretamente obtido por meio de fortes estímulos de motivação, e mais
facilmente assim do que por meio de vagas declarações de inexorabilidade do fim.
Essas aspirações poderiam ser consideradas como religiosas, por sua gratuidade e
também porque indicam que muitos daqueles que as exprimem esperam a libertação por
um profeta armado, que destrua os poderosos e proteja os oprimidos; por um ditador
bondoso, que guie os confusos. E, fatalmente, o messias aguardado pelos contestadores
se assemelharia muito ao homem forte desejado pelos reacionarios.
As semelhanças entre certos movimentos de protesto e os reacionários não são casuais.
De fato, os dois tipos de movimentos têm uma base comum anti-intelectual, ambos
afirmam a primazia de ação sobre a teoria e sobre o pensamento em geral, ambos
recorrem prazerosamente mais à violência do que à persuasão e veneram
romanticamente a juventude. As instituições de alguns drop-out assemelham-se mais às
de Adolf Hitler do que às de Henri Bergson. Com o mesmo nome, os movimentos de
anti-cultura recordam a famosa frase de Goebbels: "Quando ouço a palavra cultura, levo
a mão à pistola."
A culpa mais grave dos contestadores é, no entanto, a sua ingenuidade. É falsa a sua
crença em um vasto esquema pré-ordenado, danoso e desprezível, atribuído ao
complexo comercial-industrial-militar.
Esses esquemas, quando existem, podem ser considerados, seguramente, execráveis -
mas, não certamente, pré- ordenados com eficiência. A ingovernabilidade dos grandes
sistemas, que venho descrevendo, é um fato muito concreto e demonstra que as reais
involuções das sociedades desenvolvidas não são premeditadamente desejadas por
quem quer que seja.
Assim, vamos sendo introduzidos nesses sistemas de modo casual e desordenado e este
mesmo modo implica em que o sistema se degradaria e findaria por si só, mesmo que
não sofresse ataques externos.
É estranho que aqueles que dedicam a maior parte de sua atividade à enumeração e à
crítica dos defeitos da sociedade contemporânea tenham deixado de considerar o maior
defeito: a deficiência e a fragilidade sistêmica.
Quando novas estruturas eventuais da sociedade têm certa esperança de se
desenvolverem e de durarem, ocorre, novamente, que estão sendo considerados os seus
aspectos sistêmicos e que estão sendo resolvidos, de modo racional, problemas que
envolvem grandes números. Essa necessidade se impõe, com idêntica força, tanto em
relação às estruturas antigas, que não podem sobreviver se não forem racionalizadas,
quanto às novas, que não podem, sequer, começar a existir se as mesmas condições não
se verificarem.
Aqui se encontra, ao contrário, o mais completo vácuo, Ninguém desenvolveu planos ou
projetos para obter, contemporaneamente, a elevação do padrão de vida de grandes
massas de pessoas, a disponibilidade de tempo - seja dos mestres, seja dos alunos - para
dedicar-se à instrução da massa que atinge níveis cada vez maiores, renunciando,
porém, a manter alta a eficiência e a aumentar a produtividade. As preocupações
ideológicas impedem até de se suspeitar da existência dos problemas sistêmicos. Parece
que as noções técnico-científicas dos contestadores derivam de mentes com, pelo
menos, um século de idade. Nos últimos cem anos, pelo contrário, sucederam muitas
coisas tanto no campo da ciência pura, quanto no da técnica e da organização industrial
e interpretar o mundo atual como se fosse o de Thomas Alva Edison, com o acréscimo
de alguns milhões de televisores, de automóveis e de estabelecimentos industriais um
pouco maiores, não conduz, por certo, à compreensão da realidade contemporânea.
A ninguém valeria a pena ocupar-se das afirmações e teorias dos contestadores se a
consideração única de seu grande número não levasse a julgar que, as suas ações podem
acelerar, sensivelmente, a degradação dos grandes sistemas.
Já se sentem as conseqüências indiretas de seus atos. A porcentagem crescente de drop-
out entre os jovens depaupera as novas levas de técnicos e de profissionais, criando uma
situação à qual muitos industriais atribuem a responsabilidade pela decrescente
produtividade de suas organizações.
As ações diretas - como as agitações, as greves gerais, as ocupações de universidades,
fábricas, edifícios públicos e os bloqueios das estradas - podem paralisar a vida de uma
nação inteira, como ocorreu na França, em meados de 1968. Estimou-se que a economia
francesa necessitaria de um ano inteiro para recuperar as perdas sofridas naquele Inês de
paralisação.
Entretanto, essas atividades subversivas são, de modo geral, episódicas, e não parecem
capazes de conduzir a revoluções propriamente ditas, por causa da falta de planos
preestabelecidos: os bons revolucionários devem ser, também, planejadores decentes.
Odon Pohr - que foi, por breve período, ministro do governo revolucionário de Bela
Kun, em Budapeste - sustentava que todo golpe de estado tem lugar no momento em
que o sucesso ou o insucesso são decisivos apenas pela disponibilidade ou pela falta de
uma série apropriada de selos postais.
Não é necessário crer-se numa vasta conspiração internacional que coordene, as revoltas
estudantis de Berkeley e da Sorbone, de Berlim e de Roma, para atribuir, também, aos
fenômenos das contestações as características de um grande sistema. No entanto, não se
pode nem mesmo falar em uma degradação desse sistema, porque nunca atingiu, nem
parece que vá atingir, um grau apreciável de eficiência. Os contestadores, portanto, não
conseguiram criar uma nova sociedade, mas poderiam ser bem sucedidos, em qualquer
caso, ao darem golpes fatais em sistemas já degradados. Todavia, ainda nisso, suas
probabilidades de sucesso são mínimas. Em julho de 1970, o jornal clandestino East
Village Other publicava o seguinte manifesto:
"Seja o primeiro, em seu isolamento, a fazer ir pelos ares a rede de energia elétrica do Nordeste."
"O East Village Other tem o orgulho de anunciar o primeiro black-out anual dos bichos-papões,
marcado para as 15 horas de quarta-feira, 19 de agosto de 1970. Coloquemos, uma vez mais, o
sistema em prova. Liguem todos os eletrodomésticos sobre os quais consigam pôr as mãos. Ajudem
as companhias produtoras e distribuidoras de energia elétrica a recolocar em ordem os seus
balanços, consumindo o máximo que possam de energia e, oxalá, esforcem-se para consumir ainda
um pouco mais. Sirvam-se, particularmente, dos aquecedores elétricos, das torradeiras, dos
condicionadores de ar e qualquer outro aparelho de alta absorção de energia. Os refrigeradores
regulados ao máximo e deixados com a porta aberta podem refrescar um grande apartamento, de
modo divertido (1). Após uma tarde de alegria de consumo nos encontraremos no Central Park,
para uivar à lua.
"Sintonizem-se! Ataquem as tomadas elétricas! Façam tudo ir pelos ares!
"Os hospitais e outros serviços de emergência estão advertidos e convidados a tomar as precauções
devidas."
----------------- (1) Não é verdadeiro: se se deixa uma geladeira ligada e com a porta aberta, a temperatura do ambiente se
eleva, em vez de baixar.
----------------
Na realidade, a 19 de agosto de 1970 nada foi pelos ares e aquele grupo particular de
contestadores somente demonstrou a sua ineficiência e o seu reduzido número de
seguidores. Um black-out de quatro horas verificou-se, por outro lado, em Nova York,
em fevereiro de 1971, sem que ninguém o houvesse planejado ou premeditado.
O efeito do consumo excessivo de energia elétrica, realizado como um ato de rebeldia,
não poderia ser decisivo sequer no futuro, se os sistemas possuíssem a solidez, bem
maior do que a atual, sem a qual não podem ser conservados e muito menos
continuarem a expandir-se. Mas essa solidez não existe e os contestadores poderiam
poupar esforços se se dessem conta de que o odiado sistema está se abalando por si só.
É necessário esforçar-se duramente para entender como funciona um processo muito
complicado, quer natural, quer governado pelo homem, mas a compreensão é facilitada
pela lógica inerente ao próprio fato de que o processo funciona e que nisso são
reconhecíveis as numerosas concatenações entre causas e efeitos. Muito mais difícil é
compreender por que um processo complicado pára de funcionar: para diagnosticar um
fenômeno patológico, precisa-se, de fato, primeiro conhecer bem a fisiologia. Essas
considerações manifestam o erro no qual incorrem certos revolucionários improvisados.
Por isso, nos países desenvolvidos do Ocidente, a sabedoria convencional honra
formalmente a lógica, a racionalização, a economia (seja no sentido de frugalidade, seja
no de otimização dos esforços capazes de atingir fins preestabelecidos) e o senso de
responsabilidade. Percebe-se, porém, que os resultados não são satisfatórios e se atribui
a culpa pelas instabilidades, degradações, ineficiências, esbanjamentos, injustiças,
opressões, desigualdades e decadência, aos aspectos formais da sabedoria convencional.
Conclui-se, portanto, que se poderiam obter melhores resultados, invertendo-se,
simplesmente, aqueles princípios e cultivando a irresponsabilidade, o ilogismo, a
improvisação e não se percebe que, contrariamente, são esses os próprios inimigos a
serem combatidos, que já contêm, na realidade, as ações e omissões dos conservadores.
Em tal erro não incorreram os comunistas chineses: se forem os únicos a ficarem
alienados disto, merecerão bem herdar o primado dos impérios caídos.
XIII - Uma causa remota da degradação
dos sistemas: a crise da administração
James Burnham era um mau profeta: as suas previsões das vitórias nazistas e das
expansões soviéticas foram desmentidas em pouquíssimos anos, logo depois de ele as
ter formulado.
Mesmo o seu livro The Managerial Revolution, que há trinta anos fez muito barulho,
parece hoje enganado até no título que teria soado melhor: The Managerial Involution.
Que o mismanagement, ou o desgoverno das empresas de todas as dimensões, seja uma
realidade dura e geral, vem negado nas declarações oficiais das organizações de classe
dos dirigentes - mas deveria, no entanto, resultar claro desde quando o expus até o
momento.
Uma confirmação indireta da realidade desta triste situação encontra-se nos numerosos
livros jocosos publicados sobre o assunto nos últimos anos: a lei de Parkinson, o
princípio de Peter sobre o alcance do nível de incompetência e muito mais seriamente,
L'organizzazione, de Robert Townsend. É banal observar que estes livros contêm
imprecisões e exageros, porque se não os contivessem não seriam divertidos. Nem
seriam divertidos se não existissem, de fato, as atitudes e as incompetências expostas ao
ridículo. Townsend, por exemplo, afirma brutalmente que nos Estados Unidos da
América existem 6.001 corporações e que 6.000 destas são dirigidas deficientemente (a
exceção segundo ele seria os Nader's Raiders, a organização de defesa dos
consumidores e do público, cujo fundador, Ralph Nader, tornou-se famoso pelos seus
ataques à General Motors). No entanto, se não fosse verdade que, digamos, ao menos a
metade desta corporação é verdadeiramente mal governada, a afirmação de Townsend
não faria nem mesmo rir e, soaria simplesmente como tirada de um paranóico. Uma das
organizações que passam por ser programadas de um modo férreo, eficientíssimo -
alguns diriam: premeditado - é certamente o Pentágono. É instrutivo ler os resultados de
um relatório redigido em 1970 por um comitê de 14 dirigentes industriais (entre os
quais estavam o presidente da Metropolitan Life Insurance Co., da Thompson-Ramo-
Wooldridge, da Teledyne Rian Aeronautical e da Caterpillar Tractor Co.) que
trabalharam um ano, por encargo do presidente Nixon, para analisar e criticar os
mecanismos do supremo órgão militar americano. O relatório sustenta:
que no Pentágono existem 35.000 empregados a mais, ocupados principalmente
em tarefas secundárias.
que todo ano são despendidos milhares de dólares na tentativa infrutífera de
fazer funcionar armas fundamentalmente estragadas,
que os contratos assinados pelo Departamento de Defesa são muito grandes e
que todo o processo de compras militares deveria ser revisto e modificado
completamente.
que a organização excessivamente centralizada do Pentágono impede
freqüentemente a obtenção de qualquer decisão.
O presidente do comitê, G. W. Fitzhugh, disse numa entrevista: "Não encontramos
problemas de pessoas, mas problemas de organização. É de se admirar que alguma coisa
funcione! "
E esse estado de coisas poderia, certamente, explicar muitos insucessos americanos no
Vietnã.
Nos últimos decênios a capacidade empresarial média tornou-se provavelmente
constante, mas deixou de adequar- se às acrescidas dimensões dos problemas.
Se tivermos presentes os níveis do produto nacional bruto de várias nações no inicio do
século e hoje, se confrontarmos os esforços, as realizações de há setenta anos (sistemas
ferroviários, metrôs de Paris, Londres, Nova York, etc.) com os atuais, os dirigentes
contemporâneos não farão uma bela figura. Como já disse, é incrível que nos Estados
Unidos da América o Bay Area Rapid Transit System, que deverá servir São Francisco,
Oakland e as cidades adjacentes à baía, seja o primeiro sistema de transporte rápido
urbano cuja realização foi decidida depois de 1908.
Existem exceções notáveis, como algumas realizações IRI na Itália (o sistema de auto-
estradas, as novas usinas de aço, etc.), mas na grande maioria dos casos a insatisfação é
também muito justificada.
Com estas poucas páginas sobre o mau governo das empresas, não pretendo ditar regras
definitivas sobre a teoria da direção, mas apenas justificar o meu pessimismo no que
tange à possibilidade de os processos degenerativos dos sistemas serem interrompidos e
transformados em regeneradores.
Se os dirigentes de hoje não sabem adotar as soluções convencionais - que chamei de
manuais - não se pode esperar que saibam inventar as soluções novas e excepcionais
agora imprescindíveis.
A incompetência do administrador freqüentemente é escondida pelos sucessos a
pequeno prazo das organizações que ele governa e que são devidos a contingências
favoráveis ocasionais. As suas causas principais são: a falta de informações (seja no
sentido de incapacidade de recolher e interpretar dados correntes, ou input, seja no
sentido de ignorância de técnicas e procedimentos profissionais), a falta de imaginação,
a falta de coragem, a firme adesão a um manual de regulamentos por incapacidade de
adaptação às mudanças do mundo real e de reconhecimento de que nenhum conjunto de
regras prevê todo evento possível.
A estas causas juntam-se os vícios de caráter, que muito freqüentemente são justificados
ou racionalizados pelo stress, ou pela alienação, ou sobrecarga ou mesmo - nos
ambientes menos sofisticados - pelo esgotamento nervoso. Este não é um manual de
psicoterapia e assim deixo rapidamente o assunto: mas desejo, em primeiro lugar, lançar
uma sugestão pessoal a todos aqueles que sustentam que o seu caráter é sempre formado
definitivamente e não é mais modificável. Aconselho a estes a leitura do livro de
Bernard Russell A Conquista da Felicidade, escrito em 1930, mas atual ainda hoje, e
dos comentários de Santo Inácio de Loiola - um dos maiores administradores que
existiram até hoje - acerca de seus exercícios espirituais e da constituição da Companhia
Jesus. Há um livro que espera ser escrito sobre a ciência da administração interpretada à
luz das teorias e dos procedimentos de Santo Inácio. Minha opinião é de que a releitura
de Santo Inácio, feita com a mente nos problemas da organização industrial e do
trabalho, sugeriria princípios e soluções novos mais significativos que aqueles de
Maquiavel (testados de maneira pouco feliz por Burnham e pelo menos de modo
bastante divertido por Antony Jay no seu livro Management and Machiavelli, além de
tantos outros).
Confrontado com os não especialistas Maquiavel, Santo Inácio e Russell, os
testemunhos contemporâneos de ciência da administração não dão boa impressão e os
artigos das revistas especializadas, no máximo, se limitam a exposições genéricas e
óbvias, a classificações de escasso interesse ou à aplicação de processos matemáticos
extremamente simples em casos de problemas decisivos.
Uma exceção merecedora de destaque é o artigo de Robert A. Frosch, Assistente
Secretário da Marinha, intitulado "A new look at systems engineering", aparecido no
número de setembro de 1969 do IEEE Spectrum. Frosch invoca simplesmente a
aplicação da engenharia de sistemas à engenharia de sistemas, das análises de sistemas
às análises dos sistemas e das técnicas de administração à própria administração. Sua
apresentação dos lados negativos da atual engenharia de sistemas sublinha que a maior
parte da responsabilidade deve ser atribuída aos administradores, que os projetam ou os
fazem funcionar. As suas críticas merecem ser referidas uma por uma.
1 . Muitos project manager fazem confusão entre o mundo de papel - constituído pela
documentação relativa a um sistema e pelo prosseguimento de follow-up do seu estado
de adiantamento - e o mundo real - constituído pelas pessoas que executam
efetivamente o trabalho e pelos resultados concretos daquele trabalho. Todo
administrador que passa seu tempo no próprio centro de informações, em vez de nos
lugares onde o trabalho é feito, está sempre destinado ao desastre, os centros de
informações podem somente fornecer informações sobre fatos depois que acontecem - a
pessoas não envolvidas no projeto.
2. As técnicas de controle (tipo PERT ou diagramas de adiantamento) não devem ser
tomadas literalmente (como é feito): elas podem refletir somente uma esquematização
da realidade. Mas aqueles que querem aceitar isso muito estritamente renunciam às
indispensáveis características não seqüenciais dos procedimentos reais de
desenvolvimento e projeção, que permitem modificar e melhorar os primeiros estágios
de um projeto em função de elementos saídos de estágios sucessivos.
3. As técnicas previsíveis impõem uma definição a priori de resultados do sistema,
custos e tempo. É preciso evitar o erro de confrontar os resultados, os custos e os
tempos efetivos somente com as previsões feitas inicialmente e de emitir um juizo
positivo se, sobretudo, os dados efetivos coincidem com os previstos. O critério justo é
o de determinar se os resultados e os custos satisfazem às exigências do sistema, não
aquele de controlar se estão de acordo com as previsões.
4. Os sistemas não devem ser considerados como existentes somente no espaço, isto é,
numa situação fixa e imutável no tempo, mas são concebidos como existentes no
espaço-tempo, ou melhor, aptos a exigir modificações e a ser facilmente modificáveis
de modo que possam continuar a fornecer resultados úteis e significativos até mesmo no
mundo real que se apresenta depois de um tempo suficientemente grande de sua entrada
em função, diferindo em geral, principalmente, de como era quando os sistemas foram
projetados.
5. É necessário que existam as especificações do sistema, mas não é preciso esquecer
que podem somente formar um conjunto abstrato, que, necessariamente, constitui
apenas uma parte de uma descrição total do objetivo prefixado. É possível, ainda,
realizar um sistema, ou em geral um objeto, que responda ao subconjunto das
específicas - mas que esteja muito longe de representar uma solução sensata do
problema.
Quem tem prática de problemas sistêmicos - ou talvez, mais simplesmente, quem é
dotado de certo bom-senso - poderia pensar que estas críticas de Frosch sejam muito
óbvias e se justifiquem somente quando dirigidas à má engenharia de sistemas. Frosch
prevê a objeção e escreve: "As coisas são definidas pelo que é feito, não pelo que é dito,
e se aquilo que eu descrevo é má engenharia de sistemas, posso dizer somente que
raramente vejo outro tipo."
A mesma objeção poderia ser feita às propostas de Frosch com o objetivo de melhorar a
situação futura. Empregamos nossos melhores homens para redigir documentações
dirigidas aos seus superiores, enquanto ninguém se ocupa de dirigir os negócios; para
cada grande problema é necessário procurar-se um homem competente com bons
colaboradores e assegurar-se que compreendam o verdadeiro problema: não somente
uma determinada cena que alguém escreveu, mas verdadeiramente aquilo que está na
mente daqueles que a redigiram.
Um dos sintomas mais claros da gravidade da situação é o de que as críticas e sugestões
são óbvias, mas nem por isso devem deixar de ser feitas o sublinhadas dramaticamente.
Um outro administrador típico é Aurelio Peccei, que no seu recente livro Verso l'abisso
(editado pela Etas Kompass em 1970) escreveu:
" ... a minha opinião de dirigente é que, frente àquele caso-límite de má direção, que é o governo
atual das coisas humanas, precisar-se-á recorrer a um apurado estudo de aceitos e de orientação... e
depois, na fase de decisão e aplicação a uma boa dose de técnicas refinadas e de pragmatismo."
As intervenções concretas, para dar seguimento ao estudo, deveriam ser representadas
segundo Peccei por procedimentos de emergência em escala mundial, decididas com a
concordância de todas as nações avançadas, compreendidos os Estados Unidos e União
Soviética - e são indispensáveis se se quer realizar "uma grande, mudança de direção"
nos anos setenta. Os procedimentos indispensáveis, porém, não garantem um bom
resultado e é necessário também dizer que os encargos do estudo dado a comissões de
técnicos mascaram freqüentemente a escolha de não fazer nada, retardando cada decisão
concreta.
É interessante, notar, além disso, que o livro de Peccei foi escrito em 1968 e que mesmo
permanecendo válida a sua análise de base segundo a qual a sociedade inteira se dirige
para uma era de desordem e de crise, o período de menos de dois anos transcorrido,
desde então, foi suficiente para produzir fatos novos nitidamente mais preocupantes que
aqueles que podiam induzir a lançar um grito de alarma em 1968. De fato, Peccei
preocupava-se particularmente com a diferença tecnológica entre os Estados Unidos da
América e a Europa e das suas conseqüências: evasão de cérebros da Europa para a
América, dificuldade crescente das empresas européias devido às suas dimensões
insuficientes, gastos e dissipações de recursos europeus em empresas fadadas ao
insucesso e falta de disponibilidade daqueles recursos para a solução de problemas
urgentes; crescente passivo da balança tecnológica da Europa em comparação com os
Estados Unidos, devido às insuficientes atividades européias de pesquisa e
desenvolvimento. Por conseguinte, a previsão era de que a distância entre os Estados
Unidos - onde o progresso seria confirmado em um ritmo uniformemente acelerado - e a
Europa - estagnada ou em vias de regressão teria continuado a crescer. A
inatingibilidade dos sucessos americanos teria terminado por criar um complexo de
inferioridade tecnológico dos europeus em relação aos americanos, que contribuiria para
limitar posteriormente as novas empresas e as novas iniciativas.
Sabemos, contudo, que a maioria dos exemplos de incipiente degradação dos sistemas,
que já citei, vem justamente dos Estados Unidos da América e se manifestaram em 1969
e em 1970. Isto depende do fato de que o nível tecnológico e dirigente americano, ainda
que indiscutivelmente mais alto, é, todavia, inadequado para compensar a maior
gravidade dos problemas dimensionais e de instabilidade, uma vez que são maiores as
dimensões dos sistemas existentes nos Estados Unidos. Quanto à Europa, devemos
certamente atentar para o fato de que fenômenos dissipativos, congestivos e de crises se
verificam em correspondência de densidade e de massas críticas mais baixas do que nos
Estados Unidos.
Sobre estes eventos futuros incidirão notadamente as ações ou omissões dos governos: e
é notório que as organizações governantes e públicas em muitos países foram reduzidas
à impotência, se não à paralisação, justamente pela sua ineficiência organizadora e pela
inadequação dos seus quadros dirigentes. Na verdade, mesmo quando os políticos
tomam decisões, não chegam a obter alguma ação que as coloque em prática.
Sem tentar uma casuística exemplificadora, além da ineficiência do Pentágono, já
citada, recordo a proposta do Presidente Nixon, de abril de 1969, para que a OTAN
dedicasse ao menos uma parte da sua atividade à solução dos problemas civis
(transportes urbanos e extra-urbanos, ecologia, aproveitamento hidrico, etc.) : hoje, a 2
anos de distância, vemos que aquela proposta autorizada não conduziu a nenhuma ação
concreta. Os exemplos de origem italiana poderiam ser numerosissimos: limitar-me-ei,
somente, a citar as intermináveis (e por vezes, obscuras) discussões, acusações e
declarações programáticas concernentes ao imobilismo governante e para sublinhar o
quanto seja sintomático o fato de ter sido criado um termo relativamente novo para
referir-se a este tipo de situação.
Indiquei os problemas de mismanagement como uma causa remota da próxima Idade
Média, mas é preciso não esquecer que esta é uma causa sempre presente no ato que
continua a acompanhar o desenvolvimento dos fenômenos de degradação e para aguçá-
los. O mismanagement está presente em toda parte: no terceiro mundo onde se registram
níveis de vida extremamente baixos na União Soviética - onde provavelmente
representa uma herança (das administrações czaristas) que induziu Andrei Amolrik a
perguntar-se se a União Soviética resistirá até 1984 -, das nações ocidentais
desenvolvidas - onde protege a ineficiência e constitui o germe mortal das futuras crises
congestivas e dissipativas. Quem propõe e quer fazer grandes planos de saneamento e
de melhoramento da sociedade moderna não deve subvalorizar a virulência desta
podridão (para usar as enérgicas expressões com as quais Luigi Einaudi designava o
instituto da prefeitura) e não pode eximir-se de projetar procedimentos depurativos não
diferentes daqueles que um bom dirigente encarregado de sanear uma sociedade
industrial em situação ruinosa inseriria no seu programa.
XIV - Diferenças nos período iniciais e na
duração da próxima Idade Média em
vários paises
"I am a scientist."
O significado dessa frase em inglês é nitidamente diverso daquele de sua tradução
literal: "Sou um cientista."
Não quero, com isto, apresentar um exemplo das ciladas nas quais pode cair aquele que
traduz literalmente, ao argumento da impossibilidade de se produzir maquinalmente
traduções profissionais de bom nível. Quero demonstrar, em lugar disso, como estão
refletidas nessas expressões verbais algumas diferenças fundamentais na maneira de
considerar a ciência e a técnica, em diversos países: neste caso, a Itália e os países
anglo-saxões.
Um inglês, ou um americano, que diga: "I am a scientist", não faz, em geral, uma
afirmação capaz de ser posta em ridículo, mas fornece a informação de que o seu
trabalho desenvolve-se numa instituição científica - eventualmente universitária - e que
consiste numa atividade de pesquisa teórica ou experimental. A afirmação é,
tendenciosamente, fátua, ainda que possa ser feita com objetivo polêmico, para indicar
que quem a pronuncia tem opiniões do tipo lógico - experimental e não baseadas em
preconceitos, impressões vagas ou informações de segunda mão, descontroladas e
incontrolaveis. Naturalmente, sucede também que o anglo-saxão que afirme ser um
cientista seja, de fato, um impostor, procurando encobrir a sua impostura com um manto
científico - mas, nesse caso, as críticas que lhe venham a ser feitas tendem a negar a sua
qualidade de cientista, já que se aceita a convenção de que os cientistas são honestos e
competentes.
Na Itália, a frase "Sou um cientista" quase não é mais ouvida. É urna frase que soa
enfatuada e vazia e que nenhum cientista sério sente, em geral, vontade de pronunciar.
O italiano que quer acrescentar autoridade gratuita aos seus argumentos antes o faz,
formalmente, citando a sua posição ou os seus títulos acadêmicos, mas nunca invocando
a ciência. É muito provável que isto dependa de uma difundida (e por vezes
injustificada) crença dos italianos na incompetência básica de quem quer que seja, e,
portanto, também dos cientistas. Esta desconfiança na ciência e nos homens se estende,
na Itália, igualmente à tecnologia e aos sistemas de qualquer dimensão.
A desconfiança na tecnologia é uma atitude que deveria ser considerada séria, positiva e
capaz de evitar graves desastres. Verificaram-se, de 1946 a 1967, em todo o mundo, 45
incêndios de vultosas dimensões: exatamente um terço dos mesmos ocorreu nos Estados
Unidos, ao passo que nenhum teve lugar na Itália, nem na Rússia, ou na Polônia. A
explicação desse fato poderia ser encontrada, simplesmente, na circunstância de que nos
Estados Unidos as construções de madeira são mais comuns do que outros lugares,
sendo, por isso, mais fácil que um incêndio lá, uma vez irrompido numa cidade, assuma
grandes proporções. Creio, no entanto, que esta seja uma explicação simplista, não
sendo, por outro lado, mais sólida e convincente. É sabido que as normas para execução
das instalações elétricas internas são, nos Estados Unidos, mais rígidas e prudentes do
que na Itália, e, sobretudo, que, na América, tais normas são efetivamente observadas
com escrúpulo, enquanto que os dispositivos italianos correspondentes são,
freqüentemente, ignorados. Não é raro, por exemplo, que, na Itália, um lustre seja
suspenso por meio dos mesmos fios elétricos que conduzem a corrente às lâmpadas, ou
que uma plaqueta de fiação dupla seja fixada por intermédio de preguinhos que
atravessam o plástico de isolamento, ao passo que, na América, as soluções
improvisadas desse tipo são, praticamente, desconhecidas.
Os usuários americanos confiam, conseqüentemente, na boa execução de suas
instalações elétricas e exigem, aliás, a disponibilidade de uma potência elétrica,
superabundante, que possa fazer frente, também, às necessidades futuras: em vista
disso, os níveis de, intervenção das proteções eletromagnéticas (das ,válvulas") são
dispostos com valores muito altos, freqüências muito altas, de modo que, quando se
verifica um curto-circuito por razões acidentais, as proteções não entram em
funcionamento e o curto-circuito tem excelentes probabilidades de produzir um
incêndio. O eletricista italiano, ao contrário, leva em conta que a instalação elétrica é de
pouca confiança e, conseqüentemente, dispõe as proteções eletromagnéticas de maneira
que entrem em funcionamento não apenas quando a potência excede o estritamente
necessário e, então, quando ocorre um curto-circuito, ao invés de produzir um incêndio,
a corrente é imediatamente interrompida.
O exemplo citado pode ser considerado banal, mas não o é: situações análogas
verificam-se em outros setores. O dirigente italiano que decide implantar um sistema
administrativo através de computadores, em seu íntimo, não crê inteiramente que o
novo sistema funcione e, portanto, o mantém, paralelamente, em coexistência com o
sistema precedente, antiquado e manual, havendo apenas a conseqüência de que se o
novo sistema eletrônico apresentar defeitos, é fácil voltar, naturalmente, ao antigo e
assegurar a continuidade do serviço.
O dirigente americano, que se inclina a depositar maior confiança - às vezes ilimitada -
nos novos sistemas, indubitavelmente avançados, que se decide a empregá-lo, mantém-
no desguarnecido de reservas e pode encontrar-se sem qualquer sistema eficiente numa
situação de grave emergência.
As concentrações das megalópoles das costas do Atlântico e do Pacífico dos Estados
Unidos e da área dos grandes lagos em torno de Chicago devem sua densidade e sua
própria existência à disponibilidade de um nível tecnológico muito evoluído. As
considerações precedentes indicam que esse estado de coisas implica em riscos
acentuados. Isto é, parece provável que quando se verificar a próxima Idade Média, as
suas manifestações iniciais tenham lugar nos Estados Unidos da América.
As situações involutivas do tipo medieval difundir-se-ão, sucessivamente, nos países
europeus antes que nas outras nações do continente americano não somente por causa
das concentrações européias serem maiores em relação às canadenses e latino-
americanas, mas também pelo efeito do brain drain - ou êxodo dos cientistas, às avessas.
Este é um fenômeno que começou, já, a manifestar-se por volta do fim da década de 60,
em virtude da retração econômica americana e dos conseqüentes e significativos cortes
nas verbas destinadas à pesquisa avançada - tanto por parte das empresas privadas,
quanto das organizações governamentais e, particularmente, da NASA. os tecnólogos,
cientistas, engenheiros, pesquisadores e empresários de origem européia, emigrados
para os Estados Unidos, tornando aos seus próprios países, na Europa, tentaram
desfrutar novamente de sua capacidade realizadora, dedicando-se a atividades similares
às que desenvolviam na América. Ainda que em condições econômicas difíceis,
encontrariam grandes organizações dispostas a lhes dar crédito, ao menos porque se
deduziria que certas atividades tecnológicas produtivas - e destinadas a tornar mais
complexos os sistemas existentes e a criar novos - poderiam constituir uma solução
adequada às difíceis condições de mercado de trabalho e de economia. Essas atividades
contribuíram, pois, para o aumento das concentrações sistêmicas e para o incremento da
probabilidade de que os grandes sistemas atinjam as condições de instabilidade
presentemente responsáveis pelo surgimento da Idade Média americana.
Na fase seguinte, que poderia ocorrer poucos anos talvez um lustro - após o início da
primeira fase americana, a Idade Média começará nesta ordem: Alemanha, Holanda,
Bélgica, Franca, Áustria, Itália, Inglaterra, Espanha, União Soviética, Portugal,
Tchecoslováquia, Hungria, Polônia, Romjnia, Iugoslávia, Grécia e Turquia.
A inserção da Inglaterra no sétimo lugar entre as nações européias se deve à paralisação
no desenvolvimento inglês: de 1960 a 1970, o produto nacional bruto britânico cresceu
muito lentamente, aumentando em apenas 28% no decênio. Isto é considerado um
indício perigoso, mas, ao mesmo tempo, esta sustação do desenvolvimento afasta o
alcance da instabilidade. Em comparação, na mesma década 1960-1970, o produto
nacional bruto da Alemanha, que, em 1960 era quase igual ao da Grã-Bretanha, sofreu
um aumente de aproximadamente 70%.
A relação não compreende a Suécia, porque, como observei a propósito dos sistemas
postais, nesse país a ciência, a tecnologia e a indústria são muito desenvolvidas, ao
passo que as concentrações são limitadas e a densidade demográfica é de 18 habitantes
por quilômetro quadrado (cerca de 10% menor do que a dos Estados Unidos e 11 vezes
menor do que a da Itália). A Suécia, com 8 milhões de habitantes (menos do que
Londres) está na vanguarda, por exemplo, da geração e da transmissão de energia
elétrica (com linhas de altíssima tensão mesmo em corrente contínua). A Suécia, em
virtude disso, não estará sujeita a graves crises sistêmicas e se constituirá numa ilha de
eficiência e, talvez, de progresso contínuo, dentro do contexto geral que, apresenta um
mar mundial de retrocesso e morte. O clima ajuda-la-á a não ser invadida pelos povos
em fuga das ruínas de suas civilizações. Um irreversivel progresso da nação
escandinava, simultâneo à degradação e à paralisação das nações mais desenvolvidas,
reconduzirá a Suécia à condição que já desfrutou no século X, quando a sua influência
alcançava o Mar Negro e no século XVII, quando era a maior potência protestante do
continente europeu. No ano 2000, funcionários suecos governarão Nova York, Moscou,
Berlim e Paris.
No outro hemisfério, a Idade Média começará no Japão, talvez mesmo antes que nos
Estados Unidos. No Japão, de fato, a produção, a exportação e a concentração
cresceram, no último qüinqüênio, à razão de 10% ao ano, ao passo que a inflação foi da
ordem de 17% ao ano. Essa nação dirige-se, célere, para a instabilidade.
Outra questão interessante é a duração da próxima Idade Média. Já defini (no capítulo I)
a Idade Média: "o período de tempo decorrido entre o momento em que for atingido o
máximo do overshoot e o momento em que ultrapassado o mínimo - se iniciará um novo
período de expansão". Claro está, porém, que desses fenômenos de involução e
sucessiva expansão, em larga escala, não se pode, sensatamente, fazer muitas previsões
a respeito do desenvolvimento qualitativo mais provável.
Poder-se-ia deduzir que as eventuais migrações dos povos serão mais rápidas do que o
foram há dezesseis séculos; que as informações históricas, científicas e técnicas
permanecerão acessíveis a um número bastante grande de pessoas e que,
conseqüentemente, qualquer abalo dos níveis culturais prevalecentes será um fenômeno
facilmente, ou, pelo menos, rapidamente, reversível. Com base nessas considerações, a
próxima Idade Média deveria durar cerca de um século A duração deveria ser
ligeiramente maior nos Estados Unidos, onde a nova era se iniciará antes do que outros
lugares, O renascimento seguinte poder-se-ia iniciar quase que em qualquer lugar - no
Brasil, no México, na Argentina, na China, no Japão, na Suécia - mas parece mais
provável que se verifique uma convergência de fenômenos similares em lugares muito
distantes uns dos outros, já que, verossimilmente, um dos frutos da presente civilização
que não se desperdiçará será o das comunicações rápidas, pelo menos, por via do rádio
(ainda que não por meio do satélite, porque riso mais existirá uma organização capaz de
assegurar a periódica substituição dos satélites "estáveis" para telecomunicações). E se
as idéias poderão ser comunicadas rapidamente, a nova civilização poderá surgir com
aspectos uniformes em países diversos e longínquos, visto que o único renascimento
que poderemos imaginar deve implicar necessariamente na existência de um movimento
de idéias novas.
Nos primeiros meses de 1971, algum indício econômico sugeriu que a retração
experimentada em grande parte do Ocidente poderia encaminhar-se para o seu final: se,
em lugar disso, o slump continuar, a crise final poderá ser retardada por alguns anos.
Após a retração, ver-se-á um novo boom e isto (o que se verificará a seguir) poderá
levar à instabilidade e ao abalo,
Entre 1985 e 1995, a Idade Média já estará se iniciando.
XV - Benefícios a curto prazo e danos secundários a
longo prazo das situações involutivas do tipo medieval
Em 1870, o marechal Karl Bernhardt von Moltke obteve uma estrepitosa e definitiva
vitória sobre o exército francês. Da parte francesa, aquela vitória não correspondeu a
uma simples derrota militar, mas a uma seqüência de abalos e transtornos muito mais
profundos. Aquele colapso geral deu-se o nome de débâcle, retomado setenta anos
depois para indicar acontecimentos muito semelhantes.
A derrota militar italiana de setembro de 1943 - acompanhada igualmente de
instantâneo aniquilamento de toda forma de organização pública e de vida associada
independente - foi coloquialmente indicada, durante muitos anos, por uma expressão
onomatopaica; o patatràc.
Na terminologia inglesa, na falta de eventos calamitosos atinentes aos povos anglo-
saxões, os abalos dos impérios são indicados, tradicionalmente, por "decadência e
queda" (decline and fall) tanto referindo-se ao Império Romano (Gibbon), quanto ao
Terceiro Reich (Shirer).
Na hipótese, já sugerida como bastante provável, de a próxima Idade Média ter início
nos Estados Unidos da América, e Ser acompanhada da morte de dezenas de milhões de
pessoas, o termo adotado para indicar essa grave degradação instantânea se difundirá,
verossimilmente, nos outros países, nos quais fenômenos análogos se verificariam em
curto intervalo de tempo. É extremamente improvável que se venha a adotar um termo
clássico como hecatombe, porque raríssimos anglo-saxões, embora cultos, conhecem
sua existência. Parece mais razoável que se venha a adotar uma expressão já usada em
outro sentido, como, por exemplo, knock-out - abreviado para K.O. - termo pugilístico,
o qual recorda black-out, que é a palavra usada para indicar a grande falta de energia
elétrica de novembro de 1965 e que, por seu turno, coincide com a palavra usada na
época da guerra para a escuridão. A escuridão bélica, porém, decorria da proibição de
existir, na cidade, luzes visíveis, quer nas vias públicas quer nas residências ou
estabelecimentos diversos, e, mesmo, nos veículos. O black-out de 1965, pelo contrário,
era conseqüência da total falta de energia elétrica e, semelhantemente, o K.O. futuro
será uma eventualidade muito mais trágica do que aquela em que o pugilista que cai por
terra, desmaiado, por ter recebido um golpe no queixo. Adotarei, na seqüência deste
livro, a abreviatura K.O. e, neste capítulo, enumerarei os benefícios que deverão
materializar-se logo após o K.O. e os danos, cada vez em maior número, que afligirão
os sobreviventes à notável distância do tempo do K.O.
É claro que não faz sentido falar-se das vantagens e desvantagens de qualquer situação
futura, como se, a esse respeito, as opiniões fossem, constantemente, unânimes. O
professor Mishan, por exemplo, considera, provavelmente, uma vantagem, para si
próprio e para os outros, uma eventual paralisação na produção em série do avião
supersônico anglo-francês Concorde, unicamente porque sem os aeroplanos
supersônicos se ouvirão menos "bang-bang", e se ficará, portanto, mais tranqüilo.
Por outro lado, os administradores da Rolls-Royce, que produzem os reatores para o
Concorde, considerariam a mesma decisão como urna definitiva ratificação da recente
falência de sua sociedade e, igualmente, danosa ao progresso e · mais longo prazo - ao
bem-estar do povo inglês e de toda espécie humana. Entretanto, se os dirigentes da
Rolls-Royce se convencessem da impossibilidade de vender mais de vinte Concorde (ao
invés de duzentos necessários, para assegurar o lucro), também eles, em conformidade
com o Professor Mishan, julgariam que sem o Concorde estariam mais tranqüilos -
apesar de que sua tranqüilidade não decorreria do baixo nível de ruído, mas da
resignação a impossibilidade de recuperar e fazer ressurgir a RollsRoyce.
Quando me referir, adiante, às vantagens do K.O., não quererei com isto dizer que estas
serão, igualmente, acessíveis e desejáveis a todas as pessoas que sobrevivam ao K.O.,
mas somente que uma apreciável porcentagem dos sobreviventes delas se beneficiará.
Muitos dentre os sobreviventes experimentarão logo um extraordinário alívio pelo
simples fato de que os graves problemas com os quais se defrontarão serão, ao menos,
completamente diversos daqueles que os atormentaram por decênios. Os problemas da
civilização avançada serão substituídos por aqueles próprios da civilização primitiva e é
provável que a maioria dos sobreviventes seja mesmo constituida por pessoas
particularmente aptas a passar, rapidamente, duma vida de civilização avançada para
outra de condições primitivas. Os sobreviventes, portanto, não terão muita saudade
daquilo que será destruido (de início, a destruição atingirá, principalmente, as estruturas,
as funções e as organizações, e não os edifícios ou lugares), nem portarão um luto muito
rigoroso por seus próprios amigos e parentes falecidos durante o K.O. É uma
experiência normal que os infortúnios isolados sejam considerados como uma tragédia
muito maior do que as catástrofes que golpeiam um número elevadíssimo de pessoas. E
isto é válido não apenas para as catástrofes que atingem lugares longínquos. Não são
somente os 500 mil mortos no Paquistão, ou os 200 mil em Biafra, a deixar-nos um
tanto indiferentes; também a morte de um familiar em um acidente ocorrido em avião de
carreira é considerada menos trágica do que aquela do mesmo parente num avião de
turismo.
O primeiro benefício desfrutado pelos sobreviventes será o do fim do
congestionamento: não existirão aqui, pessoas suficientes para congestionar alguma
coisa. Neste ponto, muitos daqueles que agora lamentam a opressão, a angústia e a
intrínseca brutalidade da vida numa sociedade tecnicamente evoluída e congestionada,
concluirão que se estava melhor quando se estava pior e dar-se-ão conta de que deixar
de utilizar as funções admitidas pelos grandes sistemas - nada de telefone, nada de luz
elétrica, nada de automóvel, nada de cartas, nada de telegramas - pode ser muito
interessante numas férias de uma ou duas semanas, mas não é absolutamente divertido
como um estado permanente de vida.
Alguns desses sobreviventes poderão considerar benéfica a disponibilidade de muitos
bens duráveis, verificando-se, a esse respeito um nítido excesso, por falta de demanda.
A morte da maior parte da população de uma grande cidade - uma vez eliminados os
cadáveres - torna disponíveis habitações, de todos os tipos, em superabundância em
relação à sua procura.
Se os habitantes duma cidade que sofreu um K.O., possuíam, anteriormente, um
automóvel para cada duas pessoas, após o K.O., esta relação pode estar invertida e, por
um certo tempo, as pessoas poderão satisfazer sua própria necessidade de meios de
transporte servindo-se simplesmente de um dos numerosos veículos abandonados: a
indústria automobilística desaparecerá. Mais tarde, pela falta de veículos novos e com o
desgaste dos antigos, os veículos abandonados serão utilizados como fontes de
abastecimento em relação à troca até quando não for necessário recorrer-se a uma nova
produção industrial, que funcionará, principalmente, sob a ordem de simples operários,
ou artesanalmente, produzindo peças isoladas.
Verificar-se-á para os fabricantes uma situação semelhante à degradação progressiva,
em relação a uma superabundância inicial e ao conseqüente desaparecimento da grande
indústria da construção.
Um reduzido número (forçado à autarquia) de pessoas não poderá manter
adequadamente nem mesmo as construções de que se utiliza e não se ocupará em fazê-
lo quanto àquelas de que não se serve. Os móveis desocupados serão cercados por
armações de madeira e qualquer elemento estrutural, o que - aliado aos danos causados
pelas intempéries - causará abalos que atingirão também qualquer construção habitada.
Daí, a longo prazo, as casas serão muito mais raras do que o eram anteriormente ao
K.O., e novos escombros tornar-se-ão um típico componente da paisagem urbana. As
ruínas antigas e nobres serão cobertas e obstruidas pelas recentes, segundo um processo
semelhante ao que teve, lugar no período medieval precedente. Uma forte contribuição a
abalos e destruições posteriores será devida ao vandalismo gratuito, o qual não será
punido quando não for diretamente prejudicial e constituirá um dos poucos
divertimentos disponíveis que restarão aos jovens.
Após o K.O., como durante a antiga Idade Midia, a distinção entre os objetos novos e
usados perderá a grande importância que tem atualmente, distinguindo-se, únicamente,
os objetos utilizáveis e eficientes dos que estiverem em más condições, não reparáveis.
Inicialmente, isto acontecerá, como foi dito acima, pela disponibilidade gratuita de
numerosíssimos objetos de segunda mão, mas em boas condições. ocorrerá,
posteriormente, que os objetos novos serão extremamente raros - o que afastará toda
conotação derrogatória do conceito de: "usado" - e, por outro lado, serão, em muitos
casos, de qualidade bem mais baixa que, aqueles objetos usados produzidos com
materiais de melhor qualidade e segundo a técnica mais refinada de produção. Antes do
K.O., o nível de riqueza de um grande número de pessoas, nas nações desenvolvidas,
levava a considerar respeitável quase que exclusivamente a aquisição de livros usados
(desprezados somente por uns poucos novos-ricos, semicultos) e os objetos dos
antiquários: a compra de um vestido usado não estava, praticamente, em cogitações. Os
vestidos usados, posteriormente ao K.O., tornar-se-ão hereditários, além de adquiríveis
e comutáveis. É de se esperar que ao menos este novo estado de coisas satisfaça aos
atuais detratores da sociedade do consumo e a todos aqueles que se irritam, talvez com
razão, com a existência da moda no campo dos bens duráveis, pela qual, por exemplo,
muitos compram um carro novo somente para possuir um modelo mais elegante e
recente e não porque o carro antigo funcionasse mal.
Uma limitação muito severa à inconstância e ao emprego dos veículos dever-se-á à
escassa e irregular disponibilidade dos produtos petrolíferos e, mais tarde, dos
combustíveis. Conseqüentemente, as viagens turísticas se tornarão muito raras e serão
reservadas aos potentados ou, também, aos vagabundos, que serão forçados a fazer
longos trajetos a pé. Aumentará muito a porcentagem das pessoas que jamais se
deslocaram de seu lugar de nascimento, nem por trabalho, nem por prazer, ou por
qualquer outra razão. A escassa freqüência de viajantes ocasionará o ressurgimento do
banditismo endêmico. Viagens relativamente longas serão empreendidas em
peregrinação. É de se esperar, de fato, que a nova e obscura época favorecerá o
ressurgimento de uma religiosidade grosseira e difundida, expressa de forma que, hoje,
não se poderia prever. Isto, incidentalmente, poderia ser classificado como uma das
vantagens do K.O., por quem crê que a religião - como quer que seja, em qualquer lugar
e não importando o nível - seja uma coisa benéfica.
Aquele que, contrariamente, julga ser a religião falsa e prejudicial, incluirá toda a
ressurreição do espírito religioso e, paralelamente, das tendências mágicas e
supersticiosas no cômputo, já bastante extenso, das desvantagens. Para algum etnólogo
sobrevivente, uma nova florescência da cultura primitiva, diretamente observável em
sua própria cidade, seria um milagre. Para os historiadores e sociólogos, igualmente, um
retrocesso, em grande escala, da civilização moderna seria um fenômeno único e
interessantíssimo, que, apesar dos riscos e incômodos, poderia ser classificado com a
anotação "vaut le voyage".
No próximo capítulo, tratarei mais pormenorizadamente das novas formas de vida em
sociedade, que se verificarão após o K.O. e das que constituirão uma evolução
degenerativa das novas formas de rebeldia, em antecipação ao K.O., com o intento de
corrigir a degradação dos grandes sistemas, já visivelmente iniciada.
No tocante aos aspectos econômicos, um importante componente da estrutura moderna
de consumo deixará subitamente de existir: o crédito. Com efeito, em condições
extremamente instáveis, ninguém poderia fornecer a um credor garantias efetivas do
reembolso futuro.
Inicialmente, é verossímil que toda espécie de moeda perca o valor e as permutas sejam
feitas unicamente por mercadorias in natura.
A intrínseca raridade poderá manter em uso as moedas de ouro e as de prata:
convencionar-se-ia considerar-se o peso das moedas ou dos lingotes como a única
determinante do valor e todo comerciante teria entre a sua aparelhagem profissional
uma balança para pesar ouro e prata. Seria, por certo, interessante, sobretudo para os
especialistas, tentar prever a evolução das estruturas bancárias após o K.O., como
também a política monetária (se esta existir) e as características dos ciclos econômicos.
Uma tentativa de previsão deste tipo, no entanto, não poderia ser encarada como algo
além de um exercício sem muita seriedade - se refletirmos quanto é, atualmente, difícil
(ou impossível?) fazer previsões, a prazo muito mais curto e sem levar em conta
acontecimentos excepcionais como o K.O. As exatas estrutura e situação econômicas
serão, por outro lado, gravemente influenciadas pelas novas estruturas legais e jurídicas,
sobre as quais também, como veremos, não há muito a dizer, que não esteja num nível
de imaginosa antecipação.
Outras vantagens a curto prazo poderão ser as relativas aos países denominados em
processo de desenvolvimento que estão, atualmente, subjugados, colonizados,
sujeitados pelos países mais adiantados, em via de retrocesso. Quando o retrocesso das
nações mais evoluídas for, efetivamente, sensível, então essas opressões terminarão e
isto será um alívio para as nações subdesenvolvidas.
O alívio, no entanto, será, provavelmente, breve, porque, a longo prazo, problemas
muito mais graves surgirão em decorrência não apenas da falta de produtos extintos dos
países em via de retrocesso, mas, igualmente, pela situação generalizada de conflito
armado, tanto entre as nações involuídas, quanto naquelas que jamais haviam
progredido, ou, ainda - a nível mais microscópico - entre cidades, vilas, famílias ou
clientelas e entre indivíduos.
XVI - Evolução das formas de vida
associativa anteriormente ao knock-out e
na próxima Idade Média
Quando a Organization for Economic Cooperation and Development; (OECD)
recomenda a todos, ou a alguns, dos governos-membros a adoção de medidas enérgicas
e concretas para remediar a situação insatisfatória, no campo da economia, da
tecnologia ou da educação, raramente as sugestões são muito prontamente acolhidas: em
alguns casos, em que se teme que as medidas sugeridas possam ser particularmente
impopulares, a OECD vê-se quase forçada a usar de muita diplomacia e a expurgar os
seus documentos, censurando as palavras perigosas ou ofensivas, ou melhor, reduzindo
as principais idéias a uma forma muito genérica. Verificou-se uma situação dessas em
1970, quando a OECD sugeria aos governos europeus - com prudentíssimos
circunlóquios - que a única solução para as tristes condições econômicas de seus países
era o aumento do desemprego.
A eficácia da solução da OECD) ficou por demonstrar e, talvez, não possa ser
demonstrada como autorizadamente o afirmara Lord Beveridge - mas a circunstância
que me interessa destacar é a de que o relatório da CECI) não foi Publicado antes de que
os trechos relativos ao desemprego fossem censurados com muito tato, sem que sequer
uma discussão a respeito fosse tentada.
A UNESCO patrocina muitas iniciativas anódinas, numerosas delas definidas de modo
bastante vago, em textos que nos trazem à mente o palavrório do Reader's Digest.
A Organização das Nações Unidas, em caso de dificuldades graves, retira as suas tropas
- como sucedeu pouco antes da guerra dos seis dias - e deixa que os conflitos armados,
prestes a começar ou já começados, prossigam sem impedimentos.
Os homens têm necessidade de ajudar-se mutuamente e de cooperar: não parece que
possam ser essas organizações internacionais - definidas por meio de uma sequência,
mais ou menos longa, de letras minúsculas - que venham a satisfazer tal necessidade.
Os poderes públicos - os governos, as administrações locais, as entidades - há tempo
que, só excepcionalmente, não mais cumprem suas próprias finalidades institucionais.
Obviamente, não posso negar que ainda existem, presentemente, muitas organizações e
sistemas funcionando bastante bem, mas é sempre maior a lista de graves problemas,
cuja solução ao invés de avizinhar-se, parece cada dia mais longínqua.
A situação financeira e econômica da maior parte dos países ocidentais - balanço dos
pagamentos, inflação, desemprego, produtividade - piora, sem que os organismos
responsáveis pelo seu controle possam fazer algo para inverter a tendência. Na América,
os graves problemas da violência individual e de grupo não encontram solução e há a
constante ameaça dos problemas de poluição e eliminação dos refugos urbanos. Em
quase todos os países europeus, a carência de serviços municipais é muito mais
acentuada do que na América (falta de médicos, de hotéis, de escolas, de estradas, de
equipamento eletrônico, de manutenção).
As tendências de desenvolvimento da situação parecem indicar que, dentro em breve,
existirá uma clara e indiscutível conveniência econômica de a iniciativa privada
empreender, às suas expensas, as obras públicas. os recursos que os particulares pagam,
através de taxas e impostos, não são suficientes, ou bem empregados, para fornecer as
obras e os serviços desejáveis pelos que pagam tais tributos. Isto é o que sucede na
Europa, onde não foi ainda introduzido o sistema norte-americano de votar bonds - ou
destinação de recursos municipais, baseados na aprovação de futuros impostos
municipais autorizados pelo resultado positivo da mesma votação pública. Será, pois,
inevitável o surgimento de novas organizações comunitárias que substituam os poderes
públicos deficientes e proporcionem os serviços dos quais ninguém se ocupa em
assegurar.
Os vigilantes são grupos de cidadãos armados que mantém a ordem pública nas cidades
do interior dos Estados Unidos, especialmente com o patrulhamento noturno e um
serviço de emergência para os casos de tumultos e agitações e que têm, por vezes,
tendências extremistas de direita. Não interessa, aqui, um juizo político ou moral sobre
os vigilantes; merece, antes, ser assinalado que as pessoas pertencentes a esses grupos
não estarão, por certo, dispostas a pagar elevadas taxas ou impostos, destinados a
financiar corporações de policia ineficientes, ou supostamente tidas como tal - cujos
serviços eles próprios substituem com esforço e ônus pessoais.
Analogamente, os grupos de cidadãos europeus que restauram, às suas próprias
expensas, a pavimentação da rua em que habitam, que se organizam para despejar o lixo
no rio mais próximo, com uma camioneta, que tornam a si os encargos de executar uma
obra pública qualquer, encontrando um proveito compensador na utilidade que
oferecem aos membros do grupo e ofertando seu uso a pessoas - muito mais numerosas
- não pertencentes ao grupo, recusarão, cedo ou tarde, pagar taxas teoricamente
destinadas a comprar quaisquer desses mesmos serviços. A recusa à tributação é o
primeiro passo em direção a independência política dos governos centrais e das antigas
autoridades locais para não falar da independência das organizações internacionais, que
não parecem destinadas a ter uma autoridade sensível. Inicialmente, essas novas
entidades comunitárias terão, somente, balanças especiais destinadas à execução de
determinadas obras una tantum: posteriormente, sua constituição se tornará estável e,
por certo tempo, sua eficiência se manterá em nível elevado, por causa de suas origens,
muito realisticamente orientadas em direção à conquista, a curto prazo, de objetivos
concretos.
Pode-se presumir que, nos próximos anos as "novas comunidades" - ou como quer que
venham a ser chamados as novos esforços cooperativos privadas - começarão a surgir,
com características semelhantes, em diversos países. A semelhança dessas formas de
vida associativa será devida, principalmente, à convergência, mais do que à difusão. As
novas cooperativas surgirão espontaneamente - provocada a sua existência pela situação
uniformemente insatisfatória dos poderes deficientes, decadentes e degradados.
As novas comunidades poderiam conseguir restaurar, de muitas maneiras, a eficiência
funcional, administrativa e de planejamento. Poderiam pressionar psicologicamente ou,
também, usar de violência para induzir os organismos existentes a um melhor
funcionamento. Poderiam organizar, em grande escala, um movimento de time-sharing -
ou utilização dos recursos disponíveis, de forma mínima, pelos diversos usuários,
sucessiva e racionalmente.
Voltemos a examinar, ligeiramente, alguns significados da atual explosão demográfica e
considerando algumas cifras relativas aos Estados Unidos. De acordo com os dados
fornecidos pelo Departamento de Censo, tendo em vista uma corrente migratória anual,
para os Estados Unidos, de 400 mil pessoas, a população norte-americana, no ano 2000,
poderá, no máximo, ser de 320 milhões de habitantes - o que, em média, implicaria 3,1
filhos para cada mulher e, no minimo, de 240 milhões, o que implicaria a abolição da
imigração em 2,11 crianças para cada mulher, ou seja, um número de nascimentos
apenas suficiente para compensar as mortes. Suponhamos que se verifique algo, nesse
ínterim, e que em 30 anos a população dos USA cresça dos 200 milhões atuais para 300
milhões: nesse caso, analogamente ao modo de vida, todas as estruturas civis
americanas (habitação, transportes, sistemas de produção de energia, infra-estruturas,
comunicações, administração, assistência médica, sistemas de distribuição, escolas, etc.)
deverão, igualmente, aumentar em 50%.
Isto significa construir, a cada 30 dias, nos próximos 30 anos, o equivalente a nova e
completa cidade de 280 mil habitantes. Essa atribuição parece titânica. Resolver-se-ia
boa parte do problema se se recorresse ao time-sharing, como por exemplo,
estabelecendo-se os horários de trabalhos no decorrer do dia, os dias de repouso no
decorrer da semana e os períodos de férias no decorrer do ano. Com tais providências
racionais, o congestionamento poderia diminuir nos transportes, nas comunicações, no
uso da energia - drasticamente: de 20 ou 30%. Outros sistemas de time-sharing foram
sugeridos e - apesar de poderem parecer ainda menos atraentes e mais impopulares do
que os já citados teriam, também, possibilidade de proporcionar notáveis vantagens. A
mesma habitação poderia ser usada, em diferentes períodos, por pessoas diversas, umas
ocupadas no trabalho diurno e as outras nos turnos da noite.
Não se faz necessário continuar a descrever este elenco de medidas para se convencer
de que o incômodo acarretado por tais providências racionais e coletivas é tão
acentuado que os poderes públicos não se disporão, por muito tempo, a tentar a sua
adoção obrigatória e que mesmo os esforços comunitários a esse respeito poderão obter
sucessos apenas marginais. (A única forma de time-sharing que parece popular é o
adultério, o qual, no entanto, não é apto para resolver os grandes problemas sistêmicos.)
O eventual surgimento das novas comunidades poderá, pois, apenas retardar o alcance
das graves condições de instabilidade generalizada e a verificação do K.O., mas não
alterará muito a tendência geral. Se as novas comunidades começarem a existir
anteriormente ao K.O., terão suficiente vitalidade para continuar existindo no futuro
medieval próximo, e é de se pensar que poderão, também, conservar informações,
tradições e motivações, sobre as quais, decorrido um tempo mais ou menos longo, se
articularia o renascimento seguinte.
Certamente, numa época medieval futura, as livres associações não terão vida fácil. O
rápido retorno a uma penúria generalizada será acompanhado de violência e crueldade
de formas no momento esquecidas. A força das leis será restrita ou nula, quer pela
degradação, quer pelas dificuldades dos meios de comunicações e transportes. A
autoridade somente poderá ser delegada aos poderes locais, que a manterão
exclusivamente pela força - e que, através dessa mesma força, poderão opor resistência
às opiniões daqueles que lhes deleguem a autoridade. Nessa situação o arbítrio se
tornará a regra.
O direito de propriedade sofrerá modificações profundas e rápidas. Os cadastros - já,
agora, cronicamente errôneos e desatualizados - perderão todo significado, inicialmente
em virtude do fato de que a maioria dos proprietários morrerá sem herdeiros e, portanto,
por causa de um acentuado desequilíbrio entre o escassíssimo valor dos bens
cadastrados e o elevado custo em que implicaria a continuação de um sistema de
registro trabalhoso e antiquado. O usucapião virá a ser o modo mais freqüente de
aquisição da propriedade, que não mais requererá dez ou vinte anos para se tornar
operante, mas, somente, poucos meses ou semanas.
A predominância da posse, sobre todas as outras considerações nas questões relativas à
propriedade dos imóveis, tornará mais desejáveis aqueles que se prestam facilmente a
serem defendidos contra os que tentem conquistá-los à força. Serão particularmente
aptos os edifícios ou os terrenos cercados com muros de imensa espessura, uma vez que
as armas empregadas serão convencionais, e, provavelmente, leves. As moradias
tomarão o aspecto de castelos ou fortalezas, habitadas por cortes armadas e hóspedes
dependentes (agregados), clientes e associados. O assédio poderá voltar a ser uma tática
significativa.
A disponibilidade das modernas armas de fogo não tornará inútil a força física,
necessária nos combates corpo a corpo, quer para resolver as freqüentes situações de
banal emergência, causadas pela falta dos meios mecânicos e pela necessidade de
remover obstáculos naturais ou colocados por antagonistas e inimigos.
Pode-se imaginar que permaneçam por longo tempo as unidades militares que, ao
momento do K.O., funcionavam disciplinadamente e eram bem munidas e defendidas -
mas a probabilidade dessa permanência é mínima. Se, de fato, a tropa se encontrar
próxima de lugares habitados e civilizados, o surgimento do KO. induzirá todos os
militares a abandonar os quartéis e retornar a casa. Se, ao contrário, a unidade se
encontrar em locais inacessíveis e remotos, dos quais não se volta facilmente,
permanecerá compacta e talvez mesmo disciplinada, mas, certamente, assim
descentralizada não poderá ter contato algum com a maioria dos sobreviventes e sua
própria permanência será um fenômeno pouco importante.
Mais importantes do que a forma da arquitetura imposta às estruturas precedentes serão
as novas soluções que responderão às necessidades de alojamento, defesa e comércio
das cortes armadas ou das raras comunidades livres enclausuradas na férrea realidade
duma época violenta como no século XVI foi projetado e difusamente empregado o
bastão de ângulo agudo, bem defendido dos tiros da artilharia e capaz de colocar em
posição favorável as próprias bocas de fogo. Não serão particularmente significativos os
uniformes e as roupas escolhidas pelos homens que assumirão o comando: é sabido que
a familiaridade com as armas favorece a ostentação dos sinais característicos -
distintivos, penachos, peles, cinturões, túnicas, objetos de ouro e capas. Emergirão
estruturas feudais - isto é, do tipo em que a autoridade deriva de delegação superior e
pouco após a afirmação do poder delegado por força própria e independente do ato
formal com que a sua autoridade fora, inicialmente, estabelecida.
O equilíbrio da autoridade entre os centros afastados e os potentados locais basear-se-á
em intrincados e fugazes compromissos. Essas estruturas, só aparentemente novas,
reconhecerão abertamente estados de coisas já existentes antes do K.O. e disfarçados
superficialmente por vãos formalismos. Exemplos disso não se encontram unicamente
nos países orientais, onde os poderes tribais são ocultos por parlamentos formalmente
idênticos ao britânico: igualmente, nas melhores democracias o poder real não é sempre
detido por aqueles que podem impô-lo com armas, mas, após o K.O., muitas simulações
não mais serão necessárias.
Seria fácil tentar um confronto, ou talvez uma identificação, entre as estruturas
oligárquicas e feudais que descrevi e as brutais organizações do tipo da Cosa Nostra, da
Máfia, da Fibbia calabresa e da Camorra. Essas organizações secretas despertam, hoje,
anteriormente ao K.O., a atenção, pela violência que empregam em época não muito
violenta, pelo poder indevido que administram segundo particularíssimas regras, não
escritas, e não faladas, e pelas relações ocultas e vergonhosas que parecem manter com
homens que representam o poder legal e, talvez, façam parte do governo.
Posteriormente ao K.O., tudo será uma máfia: o poder dos governos raramente derivará
de eleições livres - fraudulentas ou não - e quase todo centro de poder se originará de
compromissos e contatos pessoais.
As relações individuais, as amizades e os conhecimentos, tornar-se-ão ainda mais
importantes do que o eram antes do K.O. É uma experiência comum que, durante a
carestia, as catástrofes, as desordens, as simples dificuldades de transporte e as guerras,
muitos homens se comportam como lobos contra outros seres humanos, prejudicando-os
para tirar vantagem, mas têm o hábito de oferecer a prestação de serviços gratuitamente,
mesmo a desconhecidos. Algo semelhante sucede, nos dias de hoje, em certos países
orientais, nos quais os serviços públicos não existem ou não oferecem a mínima
segurança: ninguém confia nos Correios e, por isso, cartas e encomendas são trazidas
pelas mãos de conhecidos e viajantes; os hotéis são insuficientes e, deste modo, os
viajantes encontram hospitalidade em casas de pessoas de seu conhecimento ou,
mesmo, completamente estranhas. De modo similar, durante a blitz, os londrinos
cediam suas próprias casas àqueles que haviam ficado sem teto e, pelo menos há poucos
anos, na Sardenha, quem se encontrava em um lugar sem casas de pasto e restaurantes
não tinha outra escolha além de se fazer convidar para jantar - bem entendido, sem
pagar - por uma família importante.
Costumes indiscutíveis de solidariedade e hospitalidade eram muito difundidos na Idade
Média de mil anos atrás e foram transmitidos em muitas canções populares que têm por
protagonista um peregrino - e são, hoje, difundidos nas comunidades hippies - que
vivem permanentemente, por sua própria escolha, em condições muito rudimentares.
É de se prever que as dificuldades materiais, a inesperada dureza das condições de vida
e as contrariedades práticas ocuparão tão intensamente o tempo da maioria dos homens
que os níveis culturais prevalentes serão necessariamente baixos, e de tal forma que
seriam considerados depreciáveis pelos exemplares mais evoluídos da humanidade, que
se desenvolveram na época precedente ao K.O. Surge, por isso, espontaneamente, o
desejo de se, procurarem eventuais possibilidades de evitar que o futuro medieval
próximo venha, efetivamente, a se verificar.
Os índices inadequados da capacidade dirigencial e organizacional disponíveis fazem
julgar-se impossível que as atuais tendências de desenvolvimento mudem de modo que
condições estáveis venham a, gradualmente, ser alcançadas, sem agitações e.
catástrofes. Malgrado esta consideração, e tão grande o desejo de se evitar o retrocesso a
uma época férrea, que se impõe a indagação de quais poderiam ser as providências e as
iniciativas necessárias à consecução de uma situação final mais aceitável - mesmo que
descubramos, depois, não haver ninguém que possa tomar essas iniciativas e
procedimentos.
XVII - Fundamentos de uma nova
tradição
Este não é um capitulo de um livro futurológico. Este é um manifesto, um apelo, uma
prédica - uma triste, prédica, ao estilo de Luigi Eínaudi que classificava como inúteis os
seus últimos escritos, antes mesmo de haver registrado sua inevitável ineficácia sobre o
público. E é bem de se esperar que seja nulo o efeito de uma exortação que se funde em
uma nova tradição de competência, indo contra o aborrecimento da antiga tradição e
sempre mais vigorosa, que inspira a maioria dos homens a buscar o caminho da
resistência mínima, a aceitar compromissos, a substituir os procedimentos demorados e
necessários pela improvisação, a não criticar os erros cometidos pelas pessoas famosas e
a não combater a autoridade.
Esta tradição é considerada na Itália como típica do nosso país, mas não se faz menos
presente e viva nos demais países: do mesmo modo, os membros de todas as profissões
julgam que a qualidade de incompetentes seja máxima em seu próprio grupo de
atividade, o que depende, claramente, da disponibilidade de maiores informações sobre
as imperfeições do grupo ao qual se pertence.
A propósito da dificuldade de criar novas tradições, pode-se citar o caso daquele norte-
americano que indagava a um don de Oxford o que deveria fazer para fundar nos
Estados Unidos uma universidade a nível oxfordiano e recebeu a seguinte resposta: "O
que se requer são recursos, um corpo docente de alto nível, uma boa constituição e cerca
de oitocentos anos."
Mas é duvidoso que, mesmo com alguns séculos à disposição, se venha a conseguir
inverter os hábitos atualmente correntes e a bloquear aquilo que, parafraseando J. K.
Gaibraith, poderemos chamar de ignorância convencional. Todavia, esta é uma das
poucas esperanças que se poderiam tomar por base para evitar a degradação dos grandes
sistemas, e vale, pois, a pena explicitar a relação das medidas que permitam restabelecer
esse meritório objetivo. São elas:
1 - Os casos de incompetência flagrante devem ser denunciados pelos que tomem
conhecimento dos mesmos, com julgamentos que comprometam aos que os emitiram e
que são muito mais incompletos do que o estritamente necessário. As reformas (ou as
contra-reformas) somente podem ser bem sucedidas se visam mais intensamente ao que
querem alcançar, somente se são violentas, somente se inspiram terror aos reformistas.
2 - Deve ser proclamada uma trégua nas maneiras brandas e tolerantes com as quais
cientistas e profissionais avaliam, apreciam e apóiam os trabalhos de seus próprios
colegas. Deve ser superada a objeção de que este comportamento - ora pouco congenial
nos ambientes acadêmicos e profissionais, espécies congregadas nos famigerados
álbuns profissionais - conduziria a polêmicas estéreis. Melhor é que algumas polêmicas
sejam estéreis, mas que existam polêmicas. os cães devem comer alimentos para cães. A
situação que daí se derivaria seria, por certo, antipática e desagradável, mas fora disso
não há salvação.
3 - Deve ser instaurada uma religião (por mais odiosa que essa palavra possa ser) com
um elevado padrão de julgamento e inflexivelmente ministrada nas escolas, nas
universidades, na camada dos dirigentes. Os padrões elevados devem ser preferidos por
si próprios e, não por suas boas conseqüências sociais; de outra maneira, sempre se
encontrará nos fins uma justificativa para qualquer alteração e diminuição dos padrões
para pressupostos casos especiais. O reconhecimento de erros de julgamento, cometidos
por excessivo otimismo, deverá, pois, ser considerado como um mérito e deverá,
igualmente, levar à inversão do julgamento e à degradação daqueles que foram
superestimados.
4 - O objetivo que indico é, claramente, o de produzir consciências profissionais de
mais alto nível e exigente (ou um fortalecimento do superego, como se diria na
terminologia da psicologia dinâmica). Como o demonstrou, muito plausivelmente, H. J.
Eysenck, a consciência que define o mal e nos impede de praticá-lo não deriva de um
processo de aprendizagem, mas de um processo de condicionamento. Parece,
conseqüentemente, necessário começar a condicionar os homens, desde a mais tenra
idade, a padrões de consciência mais estreitos, tanto nas escolas primárias quanto nas
secundárias.
Parece-me indiscutível a necessidade desse procedimento: se, nos primeiros anos de
vida, a educação é dispensada de modo casual e não preordenado, os resultados dessa
educação serão, igualmente, casuais e, em sua maior parte, deteriorados.
É necessário aumentar, mais genericamente, o número e o valor das instituições
educacionais, escolares e universitárias, porque não só o nível de civilização, como
também o sucesso industrial e econômico e, a longo prazo, a sobrevivência das nações,
estão intimamente ligados à qualidade e à quantidade da instrução que consigam
inculcar. Os Estados Unidos, com relação ao primeiro e ao segundo desses critérios,
estão na vanguarda. Existem nos Estados Unidos da América mais de 1.200
universidades que concedem diplomas após cursos de duração mínima de quatro anos:
há, no país, uma universidade para cada 170 mil habitantes. O mais importante, porém,
é a elevadíssima porcentagem dos que freqüentam as universidades norte-americanas:
cerca de 43% dos jovens entre 20 e 24 anos cursam a universidade na América, ao passo
que o percentual correspondente, para a mesma faixa de idade, é de apenas 24% na
União Soviética, 13,5% no Japão, 16% na França, 7,5% na Alemanha e 6,9 % na Itália.
É verdade que as universidades americanas têm sido agitadas, nos últimos anos, por
severas criticas, mesmo por parte dos que estão dentro delas: estudantes e professores.
É, igualmente, verdade, que se difundiu na Europa hábito autoconsolador de se destacar
o baixíssimo nível de algumas delas. A esse respeito, não convém, porém, esquecer, que
se podem aplicar às universidades americanas as considerações válidas nos casos dos
grandes números e, em particular, as relativas à distribuição estatística, o que não é
possível com referência aos outros países. Isto significa que, se é realmente verídico que
existem numerosas universidades americanas muito decadentes, existem, em número
quase idêntico, excelentes e extraordinárias - enquanto que, entre nós há uma multidão
de nível intermediário e discreto.
A importância das universidades americanas não é expressa apenas em cifras, em
estatísticas. O fato de que são as melhores do mundo pode ser demonstrado
enumerando-se, simplesmente, vinte entre as mais famosas: Harvard, Yale,
Massachusetts Institute of Technology, California Institute of Technology, Carnegie
Institute of Technology, Illinois, Columbia, Michigan, California ern Berkeley,
California, de Los Angeles, Stanford, Cornell, Princeton, Chicago, Texas de Austin,
Duke, Ohio State, Northwestern, New York, John Hopkins.
Não obstante os números, sintomas que já citamos e discutimos, afirmo que o próximo
período medieval começará, de fato, nos Estados Unidos, e sou forçado, por isso
mesmo, a concluir que o sistema educacional mais adiantado, ambicioso e intensamente
utilizado no mundo não é suficiente para lançar uma advertência a essa fatalidade
regressiva e fundar a nova tradição que indiquei como necessária. Os melhoramentos no
campo da educação - capazes de elevar, no mais alto grau, os serviços humanos e
profissionais das populações dos países desenvolvidos e de inverter a tendência atual
dos grandes sistemas em direção à degradação - deveriam, pois, ser o fruto de um
esforço tão intenso que nem pode ser concebível. Esse esforço educacional deveria
superar, em muitas ordens de grandeza, os planos mais ambiciosos atualmente
concebidos. Mas não temos qualquer indicação de que algo semelhante esteja por
acontecer; é por causa disso que, a situação parece, irreversivelmente desesperada.
As organizações internacionais e as comissões dos chamados peritos não vêem, sequer,
o verdadeiro problema, que está na crise dos recursos humanos nos países
desenvolvidos e em via de retrocesso, e concentram seus esforços sobre falsos
problemas dos níveis deficientes de instrução nos países subdesenvolvidos ou em
processo de desenvolvimento, A impossibilidade de a maioria atrasada da população
mundial acompanhar a minoria desenvolvida e o ulterior aumento da diferença, tanto
tecnológica quanto educacional e de alimentação, são, contrariamente, aspectos
secundários da atual crise que se está agravando continuamente, o drama se coloca em
termos contrários àqueles comumente aceitos: a disparidade diminui e as nações mais
desenvolvidas, nos dias de hoje, poderão, cada vez menos, cumprir as funções de líder e
poderão fornecer ajuda econômica, produtos industrializados e know-how, em medida
decrescente.
Os projetos sérios, e relativamente modestos, de reformas e inovações educacionais -
que deveriam ser exeqüíveis - já encontram tantas dificuldades que parece ser uma
realização árdua e improvável. Como havíamos visto, em outra parte, todo projeto que
poderia, realmente, criar uma nova tradição e opor-se à regressão contemporânea
deveria ser, por definição, um projeto maximalístico e, em razão dessa sua mesma
característica, seria impossível torná-lo aceitável e colocá-lo em prática. Por outro lado,
reconhecer, brutamente, a insolubilidade do dilema, não responde à simples pergunta:
que fazer? De fato, por mais que seja deteriorada a situação, não podemos simplesmente
abandonar toda a tentativa de prever o futuro e de, influenciá-lo de modo a que se
juntem soluções mais razoáveis. Nossas tentativas, pelo contrário, têm, talvez, tanto
maior esperança de sucesso quanto mais é realisticamente pessimista o ponto de partida.
Mas, procuraremos inutilmente ouvir entre os administradores melhor orientados ou
entre os tecnocratas, que têm os maiores recursos à sua disposição, e aos quais são
propostos problemas semelhantes aos que estamos analisando, uma voz suficientemente
pessimista, e autorizada, que faça sugestões merecedoras de atenção ou capazes de
despertar esperanças plausíveis. Os administradores e os tecnocratas estão, talvez,
viciados pelos próprios sucessos setoriais e habituados a um otimismo inexplicável, que
os torna superficiais.
O esforço mundial de cooperação, por exemplo, indicado como essencial por Aurelio
Peccei, requereria não apenas o acordo dos governos, mas, também, suas iniciativas
determinantes. E quem haja experimentado a lentidão burocrática dos poderes públicos
e haja examinado os insucessos dos planejamentos governamentais (planos qüinqüenais
na Rússia, saneamento das áreas menos favorecidas na Itália, planejamento das new
cities e projetos de integração nos Estados Unidos, a barreira dos dez milhões em Cuba)
tem razão de duvidar seriamente da viabilidade de algum empreendimento com
implicações, em grande escala, não de um único, mas de muitos governos. receei
destaca oportunamente o caráter sistêmico dos problemas mais críticos que atualmente a
sociedade deve enfrentar e escreve que "a humanidade e seu ambiente constituem um
macrossistema integrado, ou seja, o sistema mundial". Havíamos visto, porém, que
muitos sistemas parciais, e mais modestos, se desenvolveram de forma a não mais
serem governáveis. Devemos concluir, pois, que faltam não somente os meios
econômicos e a vontade, mas, também, os instrumentos e os esquemas mentais capazes
de gerir o sistema mundial.
Alvin M. Weinberg, diretor dos laboratórios nucleares de Oak Ridge, nos Estados
Unidos, denominou de "primeiro dilema malthusiano" o crescimento populacional mais
rápido do que o dos meios de subsistência e indicou como o "segundo dilema
malthusiano" a proliferação da complexidade que acompanha a expansão demografica
nos países tecnologicamente adiantados. Malthus havia sugerido a hipótese de que os
meios de subsistência crescem somente em progressão aritmética, ao passo que a
população, se não for controlada, aumenta em progressão geométrica. Escreve
Weinsberg que, em primeira aproximação, o número dos contatos semânticos (meios de
comunicação, transportes, transmissões de energia, conflitos) cresce ao quadrado do
número dos homens. Tanto para o primeiro, quanto para o segundo dilema malthusiano,
Weinberg aconselha soluções tecnológicas simples e pouco dispendiosas, para as quais
criou a expressão "fix tecnológico". (Um fix é um auxílio, um antídoto, uma adaptação,
uma solução rápida, pragmática, pré-fabricado.)
A doutrina de Weinberg, exposta em seu livro Reflections on Big Science, publicado
em 1967, propõe desígnios mais amplos do que simples soluções de manuais e pode
parecer convincente aos técnicos ou, genericamente, àqueles que tendem a confiar nas
soluções puramente técnicas.
Afirma Weinberg que a superpopulação pode ser contida com a distribuição em grande
quantidade do anel anticoncepcional intra-uterino de Gräffenberg; mas uma versão
rudimentar deste simplíssimo fix era empregada pelas cortesãs ao fim do século XV, e
não surtiu, até agora, resultados apreciáveis.
A disponibilidade de energia nuclear, a preço muito baixo, poderia, segundo Weinberg,
permitir a dessalinização da água do mar e, portanto, a irrigação de vastíssimas terras
incultas, que poderiam produzir alimentos em quantidades muito superiores a qualquer
necessidade.
O fix tecnológico da guerra já foi encontrado; trata-se da bomba-H, o último explosivo
que dissuade os governos a tentarem aventuras militares - mas que não serviu para
evitar a guerra do Vietnã, na qual os Estados Unidos perderam mais aviões do que na
Segunda Guerra Mundial.
Weinberg sustenta, finalmente, que a explosão das informações pode ser contida pelo
fix de um emprego oportuno dos possantes computadores, que as acaloradas agitações
dos negros, nas cidades norte-americanas, podem ser evitadas, acalmando-se os ânimos
por meio de temperaturas mais baixas, obtidas com o emprego maciço dos aparelhos de
ar condicionado. Esta última idéia, em particular, é ridiculamente ingênua. No entanto,
o mais grave é que Weinberg não tenha sequer procurado propor fix tecnológicos para o
congestionamento e instabilidade. A disponibilidade, a baixíssimo preço, de energia
produzida pelas grandes centrais nucleares não resolve o problema da estabilidade das
redes elétricas.
O congestionamento do trânsito poderia ser sensivelmente aliviado proibindo-se a
fabricação de carros com mais de dois metros de comprimento, mas ninguém perde
sequer tempo avaliando as vantagens obtidas com um procedimento tão impopular e
controvertido.
Não parecem encaminhadas a melhor destino as tentativas de resolver os problemas
sociais mediante a aplicação de técnicas empresariais e de análise de sistemas "próprias
da era espacial".
Em 1965, o Governador democrata da Califórnia investiu centenas de milhares de
dólares em contratos de estudos destinados às sociedades industriais, que haviam
alcançado um grande sucesso no campo aeroespacial. A Lockheed projetou um sistema,
cujo custo foi de 100 milhões de dólares, para a coleta e elaboração centralizada de
todas as informações (econômicas, organizacionais, burocráticas, técnicas, legais e
ambientais) geradas no Estado da Califórnia. A North American Rockwell Corporation
estudou os sistemas de transporte do Estado e sugeriu que fossem desenvolvidos certos
modelos matemáticos de simulação. A Aerojet-General Corporation ocupou-se da
eliminação dos refugos e da prevenção dos delitos, vindo a definir uma programação
trienal para o planejamento executivo dos sistemas necessários.
Todos esses estudos não conduziram a qualquer ação concreta e foram ignorados pelo
sucessor republicano do Governador democrata que os havia encomendado.
Em 1969, após dois anos infrutíferos, fracassou o plano concebido pelas Litton
Industries, por encargo do governo dos coronéis gregos, que deveria atrair
investimentos estrangeiros no valor de 420 milhões de dólares e desenvolver
economicamente as regiões mais atrasadas da Grécia.
As propostas e tentativas de Peccei, de Weinberg, das indústrias aeroespaciais não
devem ser desprezadas: é necessário, antes, esperar que sejam rivalizadas e superadas,
porque não há alternativa - a menos que não se decida seriamente planejar comunidades
de monges, que, durante toda a duração supostamente limitada do próximo período
medieval, conservem os elementos considerados essenciais da nossa atual civilização.
XVIII - Projeto de comunidades
monásticas capazes de conservar a
cultura e favorecer um renascimento
Júlio César, Cícero, Deodoro Sículo, Pappo e Marziano Capella não se preocuparam em
redigir projetos para a instituição das universidades de Oxford e de Cambridge, nem das
de Bolonha e Roma - que deveriam ser fundadas muitos séculos após a sua morte. Essas
universidades exerceram uma notável influência sobre o desenvolvimento da história
cultural do século XII ao XX - ou seja, com períodos alternados - e sua fundação deve,
seguramente, ser considerada um fato positivo. Seria absurdo censurar os artistas, os
acadêmicos e os homens cultos da antiguidade por não haverem previsto e preparado a
fundação das universidades.
Para usar uma metáfora escatológica, poderíamos dizer que Júlio César, Cícero e os
outros salvaram a alma porque não podiam prever que "a Idade Média viria" e não
podiam, sequer, imaginar as condições em que a instituição das universidades seria
espontânea e significativa.
Se, em nossos tempos, prevemos, pelo contrário, que uma nova época medieval se está
avizinhando, não poderíamos salvar a alma sem prever, empregando o máximo de nossa
capacidade, quais procedimentos poderiam ser adotados e quais estruturas poderiam ser
criadas para salvar aquilo que reputamos de maior importância em nossa civilização e
para tornar mais fácil o reflorescimento de uma cultura certamente diversa da atual, mas
que preserve, ao menos, alguns traços característicos desta - possivelmente, os
melhores. Deveríamos sentir tanto mais esta responsabilidade quanto mais firmemente
acreditamos na fatalidade do processo que parece conduzir as congestionadas condições
atuais dos grupos humanos mais adiantados a condições instáveis e, portanto, a um
abalo, a um knock-out. Alias, as nossas previsões - e as demais que vêm sendo feitas,
sem exceção - são, sempre, inclinadas à incerteza e se deve, pois, levar também em
consideração a hipótese de que os países mais adiantados não se desenvolveram
inteiramente, até aqui, em virtude das condições instáveis e não sofrem, por isto,
qualquer crise grave que leve a um próximo período medieval. Essa hipótese otimista é
pouco provável, porque requereria uma nítida inversão de muitas tendências já comuns
e imperantes no modo como são administrados o comércio, as indústrias, as escolas, as
cidades, as nações e todo e qualquer grupo de homens, como quer que seja definido.
Parece, portanto, pouco provável que as coisas caminhem bem. Se, porém, malgrado
essa probabilidade mínima, as condições que havíamos chamado de medievais não se
verificarem, toda a organização projetada para entrar em funcionamento durante a futura
Idade Média assumiria, por muito tempo, um aspecto ridículo. O ridículo não deveria
ser maior do que aquele de que se revestem muitas forças armadas em tempos de paz
prolongada e, lamentavelmente, às vezes também em tempo de guerra. Parece,
entretanto, que os militares são treinados para não se preocuparem se aparentam ser
ridículos ou são selecionados entre os indivíduos privados do senso do ridículo.
Seria oportuno, contudo, planejar grupos encarregados de conservar certos dados e
certas formas de cultura e de favorecer, no justo momento, um novo renascimento, de
modo que possam cumprir funções úteis, mesmo afastada a crise apocaliptica.
Poder-se-ia sustentar que as organizações que satisfazem esses requisitos - ou seja, que
desenvolvem uma útil função cultural e estão preparadas para resistir a qualquer
catástrofe e conservar o melhor da cultura contemporânea - já existem: tratar-se-ia das
atuais universidades, dos centros acadêmicos, dos institutos de pesquisas. E aquele que
sustentasse isso, encontraria justificativas tranqüilizadoras para tudo: se as diretrizes, as
tendências e as organizações culturais atuais são as melhores possíveis - e é claro que o
são, apesar de já as havermos modificado -, é bom que todos continuem fazendo o que
fazem agora e obterão resultados positivos, quer prossiga uma situação geral,
considerada de modo superficial como normal, quer surjam situações involutivas do
tipo medieval. Deveria ser claro quão ilusório é esse ponto de vista a todo aquele que,
nota a generalidade da crise da academia e da escola e a quem reflita que mesmo as
impropriedades dessas são uma das causas remotas da crise futura do sistema que
podemos, desde agora, antecipar.
Os grupos em projeto - conservadores da cultura e catalisadores de um renascimento
futuro - deveriam ter algumas características em comum com as fraternidades
monásticas, pela única razão de que deveriam diferenciar-se profundamente em sua
constituição, em seu funcionamento e nas suas finalidades, dos modos, das tarefas e da
desordem uniforme da sociedade que os cerca; e essa diferenciação seria, naturalmente,
melhor garantida por um isolamento monástico. Não vale a pena, porém, estabelecer um
paralelo mais preciso entre esses novos grupos e as comunidades monásticas da passada
Idade Média. É comum a noção de que eram conservados nos monastérios medievais os
clássicos, a cultura greco-romana e a língua latina não vulgarizada. De certa forma, isto
é, seguramente, real; pode-se, no entanto, objetar que muitos textos clássicos
interessantes estiveram perdidos por terem sido raspados dos pergaminhos e
substituídos por salmos e hinos sacros de interesse muito menor. Poder-se-ia, ainda,
sustentar que Tomás d'Aquino não prestou um bom serviço a Aristóteles: mas isto é o
ponto essencial. Do monacato medieval tomarei por empréstimo, pois, apenas o nome,
mas não sustentarei que os nomes são conseqüência das coisas.
Os novos monges deveriam conservar informações e recordar a maneira como se fazem
certas coisas, se aceitamos - como uma crença justa - que o conceito de cultura implica
tanto no conhecimento quanto no saber fazer.
O objetivo primordial da conservação dos dados pode ser o de transmitir informações
sobre certas situações e certos eventos aos historiadores futuros. Parece que estão sendo
preparadas, nos Estados Unidos, cápsulas de tempo (time capsules) totalmente
impermeáveis à ação do calor e dos agentes externos, contendo textos, ilustrações e
amostras de artefatos e manufaturados, destinados a serem descobertos daqui a alguns
milhares de anos.
A preparação dessas cápsulas de tempo é, no entanto, supérflua e redundante, uma vez
que a conservação de dados destinados aos historiadores futuros já está preparada, com
um alto coeficiente de segurança nas crônicas e nas enciclopédias que estão sendo
elaboradas em todas as nações adiantadas, imprimindo-se um número muito elevado de
cópias. Somente o fato de as tiragens dessas obras superarem a dezenas de milhares de
cópias, atingindo, por vezes, a centenas de milhares, assegura que ao menos algumas
permanecerão íntegras. Seria, pois, injustificada a preocupação de selecionar as
melhores obras e conservá-las em local mais seguro e protegido. Poderia, unicamente,
valer a pena redigir, ad hoc, relatórios especiais, contendo informações que caíram, de
tal forma, no domínio comum que a ninguém ocorreria registrá-las na enciclopédia
normal, tendo em vista que, dentro de algumas dezenas de anos, tais dados poderão ser
perdidos, sendo impossível reconstituí-los numa situação ambiental totalmente mudada.
Não é fácil, porém, imaginar que dados seriam efetivamente negligenciados pelos
periódicos e livros contemporâneos, que, certamente, não excluem fatos irrelevantes.
Seria nitidamente mais interessante o outro objetivo da conservação de informações,
qual seja o de manter disponíveis noções, teorias e processos de modo que possam ser
utilizados para reconstituir formas de civilização e de vida gregária, destruídas ou
deterioradas, para iniciar o renascimento. É oportuno, neste ponto, que eu dê uma
definição explícita de renascimento - como já dei, anteriormente, de Idade Média.
Defino, então, renascimento como uma situação de bem-estar renascido, ou novo
aumento de produtividade, a tal nível que permita a muitas pessoas dedicar seu tempo,
inteiramente ou em grande parte, a estudar, a aprender, a procurar a verdade, não mais
sendo forçadas a uma contínua atividade utilitária visando a assegurar-lhes sustento,
refúgio e sobrevivência.
O renascimento poderá ser constituído, simplesmente, por urna elevada porcentagem de
pessoas cultas de um determinado tipo e teria sentido procurar definir suas
características: a antecipação do futuro medieval próximo é, - já, impregnada de
incertezas e imprecisões, como o é, com maior razão, qualquer outra antecipação de fato
que se verifique após o período medieval. Não se pode, sequer, demonstrar formalmente
que o renascimento seja preferível ao período medieval, nem que esse seja em absoluto
desejável. A situação de renascimento é um fim que deve ser perseguido por quem o
julga desejável e isto é quase tudo o que se pode dizer a propósito, como, de resto, com
referência a qualquer fim ao qual se possa um homem propor. Não há defesa, por
exemplo, contra o argumento banal daqueles que sustentam não nos devermos
preocupar em tornar o futuro melhor para os posteriores, já que estes, certamente, nada
farão por nós.
Na futura Idade Média, os homens viverão duramente e trabalharão a maior parte de seu
tempo, para executar as tarefas primordiais. Alguns - pouquíssimos, talvez um entre dez
mil - ocuparão posições privilegiadas e seu trabalho não consistirá em combater
pessoalmente os adversários, ou em cultivar a terra, nem em construir abrigos com as
próprias mãos, mas consistirá em intrigas e tramas ainda mais violentas e duras do que
aquelas que hoje conhecemos para manter os próprios privilégios e aumentar o próprio
poder sobre os demais. Quase ninguém estará livre de encargos imediatos e poderá
pensar melhor em problemas abstratos e genéricos.
Os grupos conservadores da cultura e preparadores; do renascimento deverão gozar de
uma notável liberdade em relação às tarefas imediatas, que, contrariamente, não
exaurirão a atividade, e isso somente se pode obter com uma dotação inicial feita em
tempo hábil - ou seja, antes do começo da futura Idade Média - aos projetistas dos
grupos de sobrevivência. A dotação inicial não poderá ser em dinheiro, uma vez que,
dentre os vários abalos, o da moeda será, presumivelmente, um dos primeiros. Dever-
se-á tratar, pelo contrário, duma dotação de meios de trabalho, utensilios, aparelhagem,
conjuntos eletrogêneos, bens materiais não perecíveis e, sobretudo, desenvolvidos pela
comunidade monástica, e mercadorias, passíveis de serem trocadas para adquirir
gêneros alimentícios e outros objetos de primeira necessidade tais como sal, açúcar,
álcool, brocas, chapas, parafusos de aço inoxidável, cabos de cobre, munições para
armas ligeiras.
Os grupos de sobrevivência encontrar-se-ão competindo duramente com toda espécie de
outras pessoas sobreviventes, casualmente agrupadas, e, por serem nitidamente
favorecidos, deverão dispor de uma dotação inicial muito grande: talvez de tão
significativa importância que somente certos governos poderão levá-la a cabo. A
intervenção governamental poderia resolver, pelo menos, o problema da disponibilidade
financeira, mas, poderia originar numerosos tipos de problemas, em virtude de sua
lentidão, de seu baixo rendimento da influência por parte dos interesses preestabelecidos
das instituições atuais e da inevitável - e presentemente também auspiciosa -
publicidade, à qual estaria sujeito. Um exemplo significativo disto foi fornecido, há
alguns anos, pela tentativa dos círculos governamentais britânicos de projetar uma rede
de refúgios antiatômicos e uma completa organização apta a garantir a sobrevivência do
mecanismo estatal e, pois, a incolumidade, a segurança e o sustento de algumas
pessoas-chave, em caso de ataque às Ilhas Britânicas, com explosivos nucleares, por
parte de algum inimigo. O plano previa que poderiam ser colocados rapidamente, a
salvo, a Família Real, o Governo, alguns altos funcionários e tecnocratas, certos oficiais
de alta patente das forças armadas e uma corte de arquivistas, técnicos, executivos e
guarda-costas. Parece, ainda, que para assegurar a eficiência de muitas dessas pessoas
durante o estado de emergência tivesse, também, sido previsto colocar-se a salvo seus
familiares, de modo que o chefe da família pudesse dedicar-se ao seu trabalho sem
sofrer tensões e preocupações adicionais. A preparação desse procedimento de
emergência teve, no entanto, de ser interrompida - ou, talvez, conduzida com maior
discrição - em virtude, do fato de que o movimento em prol do desarmamento nuclear
tomou conhecimento do plano e começou a debater publicamente a moralidade, da
seleção daqueles que seriam destinados a sobreviver e os critérios pelos quais a seleção
seria efetuada.
Não sei se os critérios utilizados pelos planejadores da sobrevivência do Governo
seriam particularmente criticáveis. Não resta dúvida, no entanto, de que seria impossível
encontrar critérios contra os quais não se pudessem levantar objeções. Pondo de parte o
julgamento do mérito sobre a composição e a estrutura dos grupos de sobrevivência que
deveria ser emitido por um especialista -, e pondo de parte o fato de que não existem
especialistas nesse campo, é evidente que o imediato vested interest de todo indivíduo
em sobreviver e, conseqüentemente, de vir a participar de um dos grupos, é tão intenso
que qualquer decisão sobre as pessoas seria, automaticamente, encarada com legitima
suspeita.
O problema do tipo de cultura a ser conservada, dos meios como conservá-la e das
pessoas incumbidas de mantê-la é, por certo, irresolvível em base democrática e
representativa. Poder-se-ia adotar, nesse caso, a solução de se confiar na livre
competição, esperando que essa produza a conservação de tipos de informações e a
sobrevivência dos grupos conservadores com características diversas e, eventualmente,
opostas.
As comunidades monásticas de sobrevivência ficarão aquarteladas em lugares altos, já
que, numa época insegura, são mais facilmente defendidos, permitindo ver-se, de longe,
antecipadamente, a aproximação de forças hostis e possibilitando tradicionais contra-
ataques efetuados com a ajuda da força da gravidade, fazendo, simplesmente, rolar, do
alto, pedras e rochas contra os agressores. Por outro lado, os cumes das colinas estão,
automaticamente, protegidos contra as inundações e, muito provavelmente, deixarão
para trás as grandes massas de homens em deslocamento ou em migração, que se
dirigem, espontaneamente, rumo a presas mais fáceis, em lugar de tentar uma conquista
penosa e de êxito duvidoso.
A dotação inicial e a predisposição de enfrentar as rápidas revoluções do ambiente
constituirão uma grande vantagem, que poderia ser desfrutada pelas comunidades de
sobrevivência com objetivos diversos dos institucionais. Os chefes das comunidades,
com efeito, serão submetidos a uma tentação contínua de mergulhar ativamente na luta e
de atingir unia posição de primazia, ainda que, eventualmente, numa área geográfica
restrita e isolada do resto do mundo. Semelhante atividade deveria, por certo, ser
evitada, visto que seria muito diferente da institucional - de, primeiramente, conservar e
depois, atuar como catalisador ou fator desencadeador de um muito vasto movimento de
renascimento. Todavia, nenhum projetista saberia predeterminar todas as possíveis
mutações e variações que sofrerão as comunidades de sobrevivência no decurso de sua
vida, provavelmente longa. Será oportuno, conseqüentemente, confiar na estatística - ou
melhor, nas leis que governam os grandes números - e começar a fundar o maior
número possível de comunidades de sobrevivência, aceitando que algumas se
desagreguem e desapareçam, que outras esqueçam a finalidade para a qual foram
fundadas e se transformem em baronatos ou centros de banditismo e que, enfim, ao
menos, poucos, correspondam efetivamente às expectativas - ou seja, conservem as
estruturas e informações merecedoras de serem preservadas e ajam positivamente para o
renascimento futuro.
As comunidades pertencentes a essa última categoria poderiam ser forçadas a viver, por
um tempo bastante longo, na clandestinidade, sem deixar vir à superfície manifestação
alguma de sua verdadeira essência. Isto poderia verificar-se, por exemplo, de modo
particularmente dramático se afluíssem em torno da comunidade populações nômades
ou invasores provenientes de terras longínquas. As informações e a cultura conservadas
correriam, então, o risco de cristalizar-se e de perder toda a vitalidade, transformando-
se, gradativamente, em fórmulas vazias, de significado continuamente desacreditado.
Muito mais tarde, poderiam surgir homens mais enérgicos e mais bem dotados do que
seus antecessores, os quais procurariam reconstruir os verdadeiros significados e as
funções reais das informações registradas nos textos e dos processos transmitidos oral e
operacionalmente.
Quanto a este ponto, existirá o risco de que a reconstrução seja, com efeito, uma
adulteração da cultura originaria e sirva somente para fazer nascer uma cópia infiel e
artificial da civilização evoluída de nossos dias. As reconstruções, fiéis ou não, parecem
destinadas a ter vida breve: assim o foi a restauração da religião romana feita pelo
Imperador Juliano, assim o foi com a do Segundo Império francês. Seria, portanto, de
escasso interesse fazer elucubrações a respeito da maneira pela qual os homens do
futuro poderiam inventar um modelo mental ou construir um modelo operacional de um
mundo antigo em tudo diverso daquele real.
O verdadeiro problema dos homens do futuro será o de extrair de um acúmulo de dados
irrelevantes as informações úteis a cada um de seus objetivos. A descoberta de
informações acumuladas no passado não apresenta dificuldades muito menos graves do
que a descoberta das informações que vêm sendo continuamente geradas e impressas
em publicações por demais numerosas para serem seguidas. Após o knock-out, muitas
verdades e muitas descobertas serão inventadas pela segunda vez, por causa da
impossibilidade de encontrar, no justo momento, a documentação das invenções
precedentes. Este fenômeno, de resto, está se verificando hodiernamente, antes do
knock-out, de modo mais maciço do que se possa imaginar. Numerosos jovens
cientistas e técnicos limitam a própria documentação aos livros e às revistas publicadas
nos últimos dez anos, por julgarem ultrapassadas as obras anteriores. O início de uma
atividade de crivo de textos antigos e antiquados poderia ser um tirocínio útil, que certos
grupos de sobrevivência poderiam escolher como uma de suas finalidades a curto prazo
a ser executada antes do knock-out.
Os novos monastérios não poderiam funcionar do modo projetado, caso se limitassem a
conservar fórmulas fixas ou a assegurar a integridade física dos textos registrados. Um
sacerdócio que considerasse puramente como utensílios sacros os livros, os microfilmes
ou as fitas magnéticas que têm em consignação poderia cumprir função útil apenas aos
arqueólogos futuros. Uma eficiente continuidade cultural poderá ser assegurada somente
se - numa seqüência ininterrupta de indivíduos - se reproduzirem costumes, capacidade,
domínio de noções, interesses e tradições construtivas, dificilmente definíveis, por outro
lado, de modo formal.
A vitalidade e eficiência dos grupos de sobrevivência poderão ser confiadas,
simplesmente, aos seus próprios estatutos, ou seja, a uma série de regras estabelecidas,
inicialmente, para definir as atribuições e as metas da organização, os meios de seleção
de novos adeptos e o processo para a delegação e a transmissão da autoridade, a
estrutura do grupo, os deveres e os direitos de seus membros.
Poder-se-á, alternativamente, incluir uma seqüência de controles automáticos na
estrutura dos grupos, confiando-se aos monastérios não o encargo explícito de preservar
a cultura e o know-how, mas outros fins, que sejam impossíveis de atingir se não se
dispõe de cultura e know-how. O modo mais severo e mais paternalista de implantar
uma estrutura desse tipo seria o de dividir a dotação de meios, destinada a cada um dos
grupos, em diversas porções ocultas e inacessíveis a quem não disponha de certos
instrumentos técnicos em bom estado de conservação ou a quem não saiba decifrar
certas chaves criptográficas baseadas em teorias matemáticas, físicas e químicas.
O escalonamento, no tempo, das porções de dotação a serem descobertas poderia ser
obtido liberando-se, por meios automáticos, em determinados intervalos de tempos
sucessivas informações em código, que forneçam o ponto de partida para a
determinação de cada esconderijo. Este modo de incentivar os grupos de sobrevivência
com prêmios in natura - semelhantemente a uma caça ao tesouro - seria, entretanto,
muito artificial e dependeria de um preparo de confiança não absoluta; tal preparação,
além disso, deveria ser notoriamente velada, de forma a dissuadir os pesquisadores
futuros de qualquer tentativa de violação com o intuito de se apossar, antecipadamente,
das dotações programadas para épocas mais distantes, apressando o andamento do
sistema e tornando inútil as providências previstas no projeto para prolongar a duração
do tempo em que certos conhecimentos venham a ser transmitidos, para assegurarem a
obtenção de benefícios futuros.
Seria preciso concluir, então, que é preferível motivar de modo mais desinteressado os
grupos de sobrevivência e deixar livre o arbítrio de como utilizar as dotações iniciais
espontâneas. O surgimento de fatos novos e imprevisíveis deveria ser enfrentado por
cada um dos grupos com liberdade de escolha, permitindo-lhes combater ou favorecer
qualquer nova tendência e qualquer nova força que se apresente em cena.
A antecipação de, eventos futuros que expus pode ser considerada simplesmente um
esforço cognoscitivo, com intenção de mostrar aquilo que podemos esperar para as
próximas décadas. Claro está, entretanto, que tendo tentado indicar, também, quais
ações poderiam ser empreendidas para evitar o knock-out ou para facilitar um novo
renascimento após a futura Idade Média, meu intento não é apenas especulativo, mas,
igualmente, construtivo.
Qualquer tentativa de realização se deve mais à individualidade dos homens que dela
participam do que aos trechos de documentos que especificam objetivos e metas. E
deverão ser selecionadas, através da utilização de critérios novos e irreverentes, as
pessoas às quais se confiará a responsabilidade de imaginar as providências
antimedievais de planejar monastérios underground, grupos clandestinos e maquis,
incumbidos de continuar a existir e de influir sobre o renascimento seguinte, caso se
decida que qualquer providência seja ineficaz. Serão excluídos, por exemplo, os donos
da verdade absoluta, os falsos inovadores, os políticos progressistas e ineficientes, os
profetas falsos e vagos, os cibernéticos. Serão incluídos certos desenvoltos
administradores da pesquisa científica, certos empresários industriais, alguns raros
economistas e, psicólogos, críticos profissionais da ciência e da sociedade, agricultores,
pecuaristas, mineiros, químicos.
A previsão do período medieval iminente pode ter profundas implicações no futuro de
cada um de nós. É natural indagar-se, daqui em diante, como as nossas atividades, os
nossos princípios e os nossos projetos pessoais deveriam ser modificados, levando-se
em conta essa antecipação. Quando deveremos começar a preocupar-nos com a
construção de um bunker unifamiliar, em lugar de com o lugar onde passar as férias?
As páginas precedentes não pretenderam dar a esta pergunta, ou a outras semelhantes,
uma melhor resposta do que aquela que os livros sobre a economia contemporânea e
suas presumíveis tendências possam oferecer a quem deseja especular na bolsa.
Ninguém pode dizer ao especulador calouro quanto poderá lucrar. Contudo, muitos são
os que discorrem a respeito dos fins e pretendem demonstrar a existência de objetivos
supremos que deverão ser almejados por todos. São, também, muitos os que se
desiludem e perdem a fé que antes depositavam na eficácia de certos fins genéricos,
quer quando os buscam e os vêem distantes, quer após tê-los atingido. E para essas
pessoas não há solução.
Somente quem houver seguido, com êxito, um tirocínio de higiene mental conseguirá
definir um objetivo estavelmente desejável e poderá atingi-lo unicamente quem souber
governar os meios necessários e adaptar suas próprias ações às mutações imprevisíveis
da realidade. Apesar de ser insensato descuidar da preponderância do acaso na decisão
da sorte dos homens e dos destinos dos impérios; para chegar à sobrevivência senão à
superioridade, não saberíamos indicar outro caminho que não seja o da preparação:
observar o funcionamento do mundo físico e da sociedade, melhorar e diferenciar os
próprios serviços.
Os agregados humanos degradam-se, as decisões dos potentados impelem-nos em
direção à instabilidade e não faria sentido a tentativa de inverter esta tendência com uma
simples notificação de revolta à sociedade e aos governos. Somente as exortações dos
indivíduos podem acarretar conseqüências diretas e definidas. A inegável existência dos
processos de aprendizagem dos indivíduos é suficiente para demonstrar que o aumento
da quantidade de informações disponíveis pode - pelo menos em certos casos - garantir
a salvação.