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8º Encontro da ABCP 01 a 04/08/2012, Gramado, RS
Área Temática 10: Relações Internacionais Uma política externa exótica:
a diplomacia do governo Lula e seus efeitos institucionais Paulo Roberto de Almeida
Ministério das Relações Exteriores; Centro Universitário de Brasília (Uniceub) (www.pralmeida.org)
Resumo: Análise sistemática dos grandes temas da agenda diplomática brasileira
durante o governo Lula, evidenciando como, e sob quais condições, as orientações impressas a cada uma das áreas de trabalho representaram rupturas de fato – tanto substantivas como de procedimento – com as linhas gerais da política externa seguida institucionalmente nas décadas anteriores à assunção do PT ao poder. Discussão de como foram implementadas as novas orientações e seus efeitos tanto no plano objetivo – ou seja, de seu impacto nos temas e agendas do relacionamento bilateral, regional e multilateral – quanto no terreno institucional do próprio corpo diplomático, isto é, o impacto dessas mudanças sobre o staff do Itamaraty. A caracterização de “exótica” para essa diplomacia tem a ver com os aspectos inovadores nos planos temático e institucional, a maior parte de ruptura política com tradições assentadas na política externa precedente.
Palavras-chave: Diplomacia brasileira. Governo Lula. Rupturas. Efeitos Institucionais. Itamaraty. 1. Introdução: definições e pressupostos
O epíteto “exótico”, aplicado à diplomacia do governo Lula, pode parecer indevido,
talvez até exagerado, uma vez que não existem registros de que esse adjetivo tenha sido
usado anteriormente, quando referido a uma diplomacia que pretendeu designar-se a si
mesma como “ativa e altiva”. Essa mesma diplomacia também costuma vir acoplada a
outros adjetivos ainda mais grandiosos (como, por exemplo, ousada, ou soberana),
ademais de outras designações que escapam à mera adjetivação para adentrar em
terrenos mais propositivos: diplomacia da generosidade, da não-indiferença, que “não
pede licença a ninguém”, sem tutela, e várias outras qualidades, obviamente auto-
atribuídas, embora seja enfadonho relacionar todas as qualificações elogiosas numa
simples introdução explicativa.
Cabe, portanto, justificar, primeiramente, o adjetivo, para depois adentrar em sua
substância. Segundo as melhores definições do termo, “exótico” encontra-se
primordialmente associado às ciências da natureza e designa, geralmente, uma espécie
(da flora ou da fauna) introduzida a partir de outro ambiente, de fora de seu habitat
original ou local de “residência” habitual; normalmente essa introdução é feita pela ação
do homem, que interfere, como se sabe, cada vez mais no ambiente natural, correndo
assim o risco de provocar desequilíbrios e impactos em face de espécies existentes no
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local de introdução. Por extensão, e tomando o conceito já no terreno cultural, se aplica o
termo exótico a algo não pertencente ao meio social no qual está sendo introduzido; ele
se aplica, geralmente, a manifestações culturais e artísticas que destoam do padrão usual
da população local, que se vê, assim, confrontada a um novo elemento de expressão
social. Sinônimos de “exótico” podem ser encontrados em termos como: “estranho”,
“diferente”, ou mesmo “aberrante”.
Existiriam, nesse sentido, razões para designar a diplomacia do governo Lula como
sendo “exótica”, em qualquer um dos sentidos expressos acima? Certamente, a começar
pelo fato de que seus próprios propositores, seus condutores e protagonistas, se
esforçaram para enfatizar, realçar, sublinhar e até insistir, à outrance, no caráter inovador,
diferente, dessa diplomacia, talvez para compensar os elementos de continuidade mais
facilmente detectáveis no terreno da ação econômica ou monetária. Os defensores das
roupas novas da diplomacia se empenharam, todas as vezes, em chamar a atenção para
o que havia de diferente em sua ação: portanto, ela é exótica.
De fato, desde o início do governo Lula, o próprio personagem e seus auxiliares
mais chegados proclamaram abertamente que tinham recebido uma “herança maldita” –
afirmação jamais comprovada por evidências empíricas de que tenha sido assim, o que a
coloca no terreno da bazófia –, supostamente expressa em dados da conjuntura
econômica em nítida deterioração no confronto com os mesmos dados de um ano antes
da posse. Lula e seu auxiliares foram desonestos o bastante para descurar o fato, ou
preferiram ignorá-lo voluntariamente, de que a deterioração se deu, justamente, em
função do processo eleitoral e das promessas do Partido dos Trabalhadores e de seu
candidato de mudar tudo o que vinha sendo seguido até então.
Jamais mencionaram, por exemplo, todas as campanhas contra o pagamento da
dívida externa, as tomadas de posição contra o Plano Real (1994) ou a lei de
responsabilidade fiscal (2000), as iniciativas tomadas contra várias medidas de ajuste ou
de estabilização do governo anterior junto à corte suprema, visando decretar sua
inconstitucionalidade, e um sem número de mobilizações militantes e sindicais contra
aspectos diversos dos programas de privatizações ou de reformas necessárias (como a
previdenciária, por exemplo). No plano da política externa, especificamente, foram
inúmeras as ações de propaganda enganosa ou de bloqueio prático, desde a oposição a
acordos de investimento, combate parlamentar contra a utilização comercial da base de
Alcântara ou ainda as negociações comerciais hemisféricas da Alca, quando os mais
grosseiros simplismos e deformações foram utilizados em campanhas.
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Em todo caso, o discurso de reconhecimento da vitória eleitoral, feito
imediatamente após a divulgação dos resultados do segundo turno de 2002, já falava em
ruptura, embora fosse genérico o suficiente para não precisar quais seriam os elementos
de ruptura a serem implementados a partir de janeiro de 2003. Nos discursos de posse na
presidência e no Ministério das Relações Exteriores se continuou a enfatizar os
elementos de mudança, sem qualquer reconhecimento pelo que estava sendo feito até
aquele momento, completando, portanto, a impressão de que grandes rupturas seriam
feitas em várias frentes de ação governamental. Se deixou de lado, de forma conveniente,
a “Carta ao Povo Brasileiro” (junho de 2002), na qual o então candidato prometia respeitar
todos os compromissos externos.
Na verdade, o que se viu na área econômica foi a preservação das linhas básicas
da política econômica anterior – sem qualquer mudança substantiva – e uma insistência
nos aspectos redistributivos e de ação afirmativa das políticas públicas, o que não
constitui exatamente uma ruptura, mas apenas o aprofundamento do que vinha sendo
feito anteriormente. Mas foi na política externa onde as mudanças foram efetivamente as
mais importantes, talvez até como compensação pela preservação da política econômica
“neoliberal” (segundo vários militantes decepcionados com a “traição” de “petistas de
direita”, e segundo registraram vários observadores independentes). De fato, a política
externa, até pelas características de seus principais condutores, tanto da diplomacia
quanto do partido, pendeu para a inovação, e talvez o exotismo, quando a política
econômica inclinou-se até exageradamente para a manutenção do que vinha sendo feito
anteriormente, com o reforço dos compromissos de superávit primário (aumentado em
meio ponto do PIB), bem como a confirmação da validade e continuidade dos acordos
com o FMI.
À diferença do aparente “consenso” de que gozava anteriormente a diplomacia
brasileira, as mudanças visíveis na política externa empreendidas sob o governo Lula
passaram a receber críticas de diferentes setores da sociedade, com destaque para
grandes veículos de comunicação e diversos embaixadores aposentados, inclusive um
ex-chanceler e um secretário-geral. As críticas não incidiram apenas sobre os aspectos
formais dessa diplomacia, ou seja, o seu visível “esquerdismo” e o antiamericanismo
instintivo de seus condutores, mas igualmente sobre decisões de substância, na região e
fora dela, como as alianças buscadas com regimes ditos “anti-hegemônicos”, o que foi,
aliás, amplamente legitimado pelo expressivo apoio que ela recebeu das correntes
identificadas com a esquerda. Todos esses elementos, portanto, justificam plenamente a
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utilização do epíteto de “exótica” para designar essa diplomacia, o que será melhor
percebido por meio da análise de conteúdo que agora se inicia.
Cabe, no entanto, antes de concluir esta seção introdutória de definições e
justificativas, identificar alguns dos pressupostos deste ensaio, que dão apoio à definição
de exótica empregada para identificar a diplomacia do governo Lula. O PT, a despeito de
se ter convertido gradualmente em partido do sistema – estando já, desde muito tempo,
plenamente integrado ao jogo político normal, com suas regras e instituições – sempre se
viu como um partido antissistema, seja pelo seu programa formalmente socialista (em
teoria oposto à democracia “burguesa”, de uma sociedade “capitalista” na qual esse
partido está inserido), seja ainda pelas promessas de ruptura e descontinuidade com a
ordem “injusta” e “desigual”, contra a qual ele sempre declarou lutar e que pretendia,
justamente, mudar radicalmente.
Em outros termos, o próprio partido se via como elemento “exótico”, não
pertencente ao ambiente no qual pretendia atuar. Esse tipo de colocação, e de
pretensões, também alcançam o terreno diplomático, já que o partido tinha propostas
nessa área que representavam, efetivamente, uma ruptura com a situação anterior, como
já explicitado em diversos trabalhos deste autor (ver bibliografia). O pressuposto básico,
nesse sentido, é o de que o partido pretendia efetivamente modificar profundamente as
bases de atuação da política externa, tanto em suas definições de princípio, quanto em
seus modos de ação. O outro pressuposto, complementar, é o de que esse objetivo foi
largamente cumprido, à diferença, mais uma vez, do terreno econômico, onde não se
percebem grandes linhas de ruptura, a não ser certa regressão a posições anteriores –
por exemplo, no caso da intervenção governamental na economia e das políticas
industrial e comercial, com ares de anos 1960 e 70 – o que talvez já não possa mais ser
caracterizado exatamente sob a rubrica do “exotismo”; provavelmente se trate mais de
saudosismo dos anos de stalinismo industrial, como se verá mais adiante.
2. Processo decisório: fragmentando a formulação e a execução O primeiro elemento de ruptura, ou de exotismo, na diplomacia do governo Lula
tem a ver precisamente com o modo como ela foi formulada e implementada, durante
todo o período, numa forte descontinuidade com toda a tradição institucional anterior.
Com efeito, observando-se a história diplomática do Brasil, desde o período português,
em seus aspectos institucionais e propriamente substantivos, não se tem notícia de
diretrizes e atuação em política externa que tenham sido tão marcadas de forma tão clara
por definições, conteúdo, estilo e linhas de ação dotadas de tão forte impregnação
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partidária como foi a diplomacia de Lula e do PT entre 2003 e 2010. Uma simples revisão
pode comprovar este argumento, de resto defendido pelo próprio presidente.
Excluídas poucas – e curtas – fases de incidência pessoal nas linhas de ação da
diplomacia brasileira – como as iniciativas personalistas de Pedro I, algumas reações
intempestivas de Floriano, o próprio período de Rio Branco, a diplomacia presidencial de
Vargas ou de Geisel, por exemplo – o fato é que o Brasil contou, durante mais de nove
décimos de sua história diplomática com uma ação exterior fortemente institucionalizada,
previsível, formulada e executada de modo profissional, por servidores do Estado,
dedicados e especializados nesse tipo de atividade e segundo linhas de ação também
caracterizadas por fortes doses de continuidade e gozando do consenso de diversas
forças políticas que se sucederam no poder, sem no entanto alterar as linhas básicas
dessa diplomacia. Não se tem notícia, por exemplo, que a diplomacia feita por liberais ou
por conservadores, no Império, ou pelas distintas linhas de afiliação partidária, no período
republicano, tenha apresentado variações ou rupturas muito pronunciadas, quaisquer que
sejam as fases históricas, os desafios externos e as mudanças constitucionais e no
próprio Ministério das Relações Exteriores, ao longo de quase 200 anos de vida
independente.
Tal não é o caso da diplomacia do governo Lula, como reconhecido por aliados e
adversários, a começar pelos seus próprios formuladores e executores, que se
comprazem em sublinhar, destacar, enfatizar as diferenças com a anterior política
externa, sempre tratada com desprezo, como submissa a ditames de potências
estrangeiras ou de órgãos do “neoliberalismo” (com seriam as instituições de Bretton
Woods, ou os EUA). Essas diferenças não se limitam ao alegado ativismo dessa
diplomacia – e ele de fato foi intenso e extenuante, quase no limite do frenesi, segundo
alguns, como a justificar certa regra da dialética engelsiana, que pretendia que a
quantidade se transforma em qualidade, a partir de certo ponto de acumulação de ações
– mas tomam impulso na sua própria maneira de ser e de ser colocada em vigor, com
destaque para o processo decisório envolvido na tomada das principais iniciativas, e
também na fase executiva, quando era implementada.
O que sobretudo marcava a diplomacia anterior – e o qualificativo no singular já é
uma evidência de unidade e continuidade – era o seu modo de concepção e de execução,
ambos fortemente centrados na chancelaria, por meio de burocratas especializados que
são os diplomatas, atuando em estreito contato com os assessores do chefe do Executivo
porventura existentes de forma independente da Secretaria de Estado do exterior.
Poucas, aliás, foram as iniciativas e tomadas de ação que não tenham nascido na própria
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casa diplomática, como podem ter sido certas decisões exclusivamente presidencialistas
(na era Vargas, por exemplo) ou com base em propostas de assessores não diplomáticos
(como talvez foi o caso da Operação Pan-Americano, ainda assim trabalhada por
assessores diplomáticos destacados na presidência JK).
O que sobretudo marcou a diplomacia da era Lula foi sua extrema fragmentação
entre diferentes centros de decisão, a perda de unidade conceitual na sua formulação, e
uma espécie de “divisão do trabalho” entre diferentes executores da política externa, nem
sempre coordenados entre si, ou dotados da mesma visão política (ou diplomática) que
fundamentasse cada uma das iniciativas tomadas pelo governo. Quase todas essas
iniciativas, aliás, estavam impregnadas de forte ativismo presidencial, que, de resto,
dispensava as notas técnicas e os discursos preparados pelo staff diplomático do
Itamaraty, para se lançar em improvisos retóricos e aceitar reuniões de cúpula, sem a
devida (e necessária) preparação técnica e substantiva.
São inúmeros os exemplos e os casos de fracionamento dos processos decisórios
e de decisões tomadas em última instância diretamente pelo chefe do Executivo, sem que
tivesse havido o prévio mapeamento das opções brasileiras, com base num estudo
técnico das questões colocadas na agenda diplomática (várias, por sinal, completamente
fora da agenda normal da burocracia diplomática). O fato, também, de que diversos
personagens se ocupassem da agenda diplomática e se dedicassem a manter – não se
sabe bem com que tipo de coordenação prévia – contatos, reuniões, viagens e
representações ao exterior já conforma uma ruptura total com práticas e procedimentos
seguidos anteriormente em toda a história da diplomacia brasileira.
Observadores precoces do fenômeno – alguns em tom de ironia, outros mais
seriamente – já tinham registrado essa tendência à fragmentação do modo de operação
da diplomacia da era Lula, mencionando a existência de quatro ou cinco chanceleres, um
ou dois deles exclusivamente para a América do Sul, ao passo que o próprio presidente e
seu chanceler oficial eram os “coringas”, atuando em todas as frentes e cenários abertos
ao novo ativismo diplomático. Menos conhecidos são os casos de diplomacia “paralela”,
ou secreta, que poderão ser reveladas no devido tempo, a partir de algum “wikileaks”
brasileiro, ou quando os arquivos se abrirem (se existirem, claro, registros fieis, nesse
capítulo obscuro da “diplomacia partidária”).
Esses casos, aliás inéditos na história diplomática brasileira, contemplaram
geralmente relações com os partidos “aliados” do PT, na região ou fora dela – a começar
pelo PC cubano – e se traduziram em pressões sobre o aparato diplomático, ou sobre
ministérios dotados de interface externa, para aprovar convênios ad hoc que pudessem
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favorecer não interesses nacionais, mas interesses pessoais ou partidários (como, por
exemplo, a aceitação ou o reconhecimento de diplomas cubanos de graduados em
“medicina”, enviados por partidos de esquerda, como se fossem equivalentes aos títulos
do Brasil). De resto, o próprio presidente ressaltou os méritos da “diplomacia partidária”,
ao referir-se, em pleno dia do diplomata, no Itamaraty, à ação do seu assessor direto para
assuntos internacionais (do PT), no sentido explícito de que ela se fazia em direção aos
partidos de esquerda da América Latina. Essas são, portanto, manifestações concretas
do caráter “exótico” da política externa no governo Lula e constituem uma mudança
inédita de padrões na diplomacia brasileira.
3. Soberania: verso e reverso de uma proclamação vazia Soberania foi um conceito usado e abusado durante toda a era Lula,
especialmente na frente diplomática, justamente, como a revelar a existência de alguma
reação de tipo “freudiano” a inquietar o partido e seus principais representantes. A
insistência no termo tem a ver com a mesma reação criada em torno de uma suposta
“herança maldita”, criada para justificar não se sabe bem quais mudanças na área
econômica, que nunca, de fato, foram implementadas. Na área diplomática, se tratava de
apoiar a acusação, totalmente infundada – e por isso mesmo politicamente desonesta –
de submissão do governo anterior a forças e políticas ditadas de fora, das quais se
distanciaria soberanamente o governo Lula (ainda que na prática não o fizesse, como
comprovado na continuidade do acordo com o FMI e até no reforço do superávit primário
prometido junto ao órgão de Washington). Havia uma evidente necessidade psicológica
dos novos dirigentes de se imprimir um curso que se distinguisse da diplomacia anterior, e
a maneira encontrada, entre outros expedientes de discutível legitimidade intrínseca, foi a
de insistir em aspectos retóricos e superficiais, como essa vaga defesa da soberania
brasileira.
Se houve um aspecto em que o governo Lula menos defendeu a soberania
nacional foi exatamente na área externa, como uma pequena revisão de fatos pode
recordar. No primeiro exemplo de ataque frontal à soberania brasileira, que foi a brutal
invasão armada de propriedades brasileiras, pelo governo boliviano, em 1/05/2006 – uma
nacionalização manu militari dos recursos em hidrocarburos, em total desrespeito ao
tratado bilateral de aproveitamento do gás daquele país e aos acordos de empresa a
governo contraídos pela Petrobrás –, a reação do governo brasileiro (não do Itamaraty,
sublinhe-se expressamente) foi a expedição de uma nota, em 2/05/2006, que declarava
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inacreditavelmente apoiar tal decisão, em lugar de protestar contra a flagrante violação
das normas do direito internacional e dos atos diplomáticos e contratuais em vigor.
Nunca se tinha visto antes, nos anais da diplomacia brasileira, tal renúncia de
soberania, como registrado na falta de reação do governo Lula às ações unilaterais do
governo Morales. Quando ocorreu alguma ação presidencial a respeito, em lugar da
afirmação dos direitos brasileiros nesse caso, se decidiu encaminhar a questão numa
reunião quadrilateral em Puerto Iguazu – com a presença dos dois presidentes, mais os
da Venezuela e da Argentina, que não se sabe o que tinham a ver com uma questão
bilateral – na qual o presidente brasileiro praticamente endossou, inerme e inerte, o que
emergiu de uma declaração claramente ditada pelos interesses políticos e econômicos
dos outros três países, não em atenção aos direitos e interesses do Brasil nesse caso
clamoroso.
Um outro exemplo claro de renúncia de soberania pelo governo Lula foi a total
subordinação de uma decisão quanto à construção de uma nova refinaria de petróleo da
Petrobras, que poderia ocorrer em qualquer um dos estados do Nordeste brasileiro, mas
que se decidiu fazer em Pernambuco e designá-la pelo nome de Abreu e Lima apenas
porque o presidente Hugo Chávez, da Venezuela, assim decidiu, no lugar das próprias
autoridades brasileiras ou em função das condições técnicas ou interesse econômico da
companhia brasileira de energia. A renúncia de soberania foi tornada explícita pela então
ministra das Minas e Energia, Dilma Rousseff, em entrevista pública no Palácio do
Planalto, no decorrer de 2005. A despeito dessa subordinação de uma decisão que
deveria ser inteiramente nacional aos interesses de um outro país, e segundo a vontade
de seu presidente, o governo venezuelano jamais cumpriu sua parte nos acordos então
firmados para a construção de uma refinaria que deveria ser, em princípio binacional, mas
que acabou convertendo-se em empreendimento exclusivamente nacional, pelo total
desrespeito, uma vez mais, da outra parte, em relação a compromissos assumidos.
A renúncia de soberania, na verdade, fez parte, desde a origem, da “visão”
internacional do PT e de seus líderes, ao conceberem a ação internacional do Brasil no
quadro de uma aliança entre nações “não-hegemônicas” e países “periféricos” em favor
de teses esdrúxulas de “reordenamento democrático” do mundo – expresso no conceito
de “mudança de forças nas relações internacionais” – e de uma “nova geografia do
comércio internacional” – que seria um dos componentes da diplomacia Sul-Sul – e que
deveria ter como manifestação diplomática concreta as “alianças estratégicas” com alguns
grandes protagonistas fora do G7, como China, Rússia e Índia, particularmente.
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Como essa intenção constava de declarações dos dirigentes do partido desde a
fase de campanha eleitoral, se tratou, no caso, de uma renúncia de soberania prévia e
unilateral, uma vez que feita anteriormente a qualquer exame concreto das agendas
diplomáticas e dos desafios brasileiros na frente externa, consistindo tão somente na
explicitação pelo governo Lula dessa seleção de parceiros, declarados aliados ab initio,
independentemente de posicionamentos específicos em temas de interesse brasileiro,
após o que se tratou de buscar as áreas possíveis de cooperação (em todo caso,
estabelecidos de maneira totalmente artificial, sem qualquer exame técnico das
convergências potencialmente efetivas no terreno econômico).
Como ocorreu em diversos outros casos nos exercícios de diplomacia partidária do
governo Lula, a retórica soberanista disfarçou o confronto com supostos interesses da
potência imperial e escondeu as simpatias ideológicas do partido no poder por seus
aliados políticos, geralmente países de tradição e perfis autoritários no plano mundial. A
renúncia de soberania levou inclusive a mudanças deploráveis de votos nas instâncias
internacionais de direitos humanos, nas quais a antiga tendência a abster-se de votação
nos casos julgados como de politização indevida da agenda transformou-se em apoio
ativo a ditaduras violadoras dos direitos humanos de seus próprios cidadãos.
Trata-se, no caso, de uma renúncia de soberania a cumprir determinações
constitucionais nacionais relativas à defesa dos direitos humanos, orientação também
observada nos múltiplos casos de desrespeito à norma constitucional de não ingerência
nos assuntos internos de outros países (expressa concretamente nos muitos apoios
concedidos pelo presidente Lula a candidatos julgados aliados em pleitos presidenciais
nesses países e, de maneira chocante, no caso da crise política aberta em Honduras com
o afastamento do presidente Zelaya, hóspede sem estatuto definido durante mais de seis
meses na embaixada do Brasil, com o apoio explícito do governo Lula na confrontação ao
governo provisório).
Em demonstrações explícitas de omissão analítica – neste caso, de renúncia a
pensar de maneira independente e de examinar as ações da diplomacia do governo do
Lula à luz das obrigações internacionais do Brasil e de seus preceitos constitucionais –,
nem a oposição política ao governo, nem a comunidade acadêmica jamais levantaram
esses casos de renúncia explícita de soberania em suas manifestações e análises, talvez
por incompreensão do que sejam princípios diplomáticos permanentes e, provavelmente,
no segundo caso, por empatia política em relação a esse governo. Em qualquer hipótese,
a retórica vazia da soberania, quando manipulada de maneira intensiva e propagandista,
pode ter atuado para paralisar análises mais consentâneas com a lógica e o exame
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concreto desses casos. Neste caso, os “exóticos” podem ter sido os representantes da
oposição e os acadêmicos, já que a renúncia de soberania nacional pode fazer parte do
universo mental de partidos que se julgam internacionalistas e solidários com o mundo.
4. No começo era o verbo; no final também, mas em moto perpétuo A diplomacia da era Lula foi, acima de tudo e principalmente, um retrato fiel das
características pessoais de seu condutor máximo, feita de ações instintivas, improvisadas,
baseadas muito mais no seu protagonismo pessoal, envelopado em número incalculável
de discursos e contatos diretos, do que apoiada em uma agenda diplomática preparada e
conduzida de maneira institucional pelo órgão primariamente responsável pela agenda
externa do Brasil. De fato, o exercício da diplomacia presidencial foi exacerbado num
volume impressionante de viagens e visitas, feitas e recebidas pelo presidente e seu
chanceler, em todos os quadrantes do globo, com especial predileção pelos chamados
“aliados estratégicos” e pelas nações periféricas ou “não-hegemônicas” do Sul, o que
chegou a incluir China e Rússia, nações a rigor não alinhadas a qualquer grupo político
explícito. Essa era a parte da “diplomacia ativa”, extremamente vistosa e pomposa, em
termos de viagens, declarações conjuntas e muitos discursos, embora bem menos visível
quanto a resultados concretos do ponto de vista dos interesses do Brasil.
A justificativa explícita era a abertura de novas frentes de trabalho diplomático –
sobretudo em direção de países em desenvolvimento – e a conquista de novos mercados
para o Brasil (ou seja, a “nova geografia do comércio internacional”), o que reverteria,
segundo se alegava, em novos intercâmbios e fluxos não tradicionais de comércio.
Embora seja difícil medir a parte do governo e a parte dos esforços dos exportadores
privados na expansão do comércio internacional do Brasil, o fato é que o país foi
extremamente beneficiado pela elevação do preço das commodities exportadas (efeito
China) e pelo crescimento contínuo do comércio internacional nos anos que precederam
a crise de 2008, mas mesmo depois, dado que alguns grandes emergentes (como a Índia
e sobretudo a própria China) continuaram a crescer de modo satisfatório.
Foram organizadas, por iniciativa direta do presidente, com a habitual publicidade
em torno do “nunca antes neste país” (e enorme esforço e despesas para o Itamaraty),
cúpulas reunindo os chefes de Estado e de governo da América do Sul, por um lado, com
seus contrapartes da África e do mundo árabe, separadamente, de outro. Se tratava de
uma tentativa, como explicitamente justificado, de romper o domínio das potências
hegemônicas sobre as relações exteriores desses dois conjuntos de países. Viagens
preparatórias, bem como do próprio presidente – com perdão de dívidas de exportadores
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de petróleo e abraços solidários aos mais vistosos ditadores das três regiões – serviram
para reforçar o sentido de “construção de uma nova ordem internacional”, menos
unilateral e mais democrática, segundo alardeado, sem que as consequências do grande
investimento tenham sido avaliadas de modo independente.
Outros reuniões e organização de grupos de trabalho sobre os mais diversos
assuntos foram igualmente iniciadas, com destaque para a tentativa de transpor o
programa nacional “Fome Zero” – por sinal abandonado no Brasil – em escala universal.
Contatos preliminares com responsáveis da ONU serviram de canal para alertar o
governo brasileiro que iniciativa desse tipo abundavam em diversas instâncias da
megaestrutura que leva o nome de ONU, oferecendo-se então para associar o Brasil de
modo mais explícito a um desses programas (Programa Mundial de Alimentos, da FAO, e
esquemas emergenciais operados pelo PNUD, entre vários outros). Tais explicações não
serviram, contudo, para demover o presidente Lula, já que a intenção não era exatamente
acabar com a fome, e sim dispor de uma iniciativa exclusiva à qual seu nome estivesse
associado.
Diversos outros projetos, em escala continental, ou de âmbito mundial, foram
empreendidos pela diplomacia do governo Lula, sob suas instruções diretas e empenho
constante, mas uma avaliação independente ainda não foi empreendida para medir o
impacto efetivo dessas iniciativas, que certamente serviram de tribuna de ampliação da
popularidade do chefe de Estado brasileiro ao redor do mundo. Os últimos exemplos do
gênero, talvez mirando o Prêmio Nobel da Paz, foram focados nos conflitos entre Israel,
palestinos e países árabes, no Oriente Médio, e no programa nuclear iraniano, com um
acordo alcançado em cooperação com a diplomacia turca que se encaixava perfeitamente
nos objetivos iranianos para contornar pressões do Conselho de Segurança em torno das
prováveis finalidades militares desse programa.
Em todos esses casos, o mais importante não era tanto o resultado final, mas a
própria iniciativa, que servia de suporte e alavanca para exercícios da costumeira retórica
do presidente Lula sobre a importância do diálogo e das negociações diretas como forma
de solucionar os mais difíceis problemas da agenda internacional. Ao fim e ao cabo, a
mensagem era apenas isso, uma mensagem, servindo, em todo caso, para popularizar a
figura pessoal do grande defensor do entendimento universal e do congraçamento entre
os povos, sempre demonstrando as excelências da convivência pacífica, registrada no
Brasil, entre diversos povos e muitas religiões. Essa foi a grande contribuição de Lula
para os anais da diplomacia universal. A mensagem talvez fosse anódina, mas a figura
era certamente exótica para os padrões dessa diplomacia.
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5. Miragens do reordenamento mundial: custos e benefícios Uma das mais consistentes ofensivas da diplomacia da era Lula se exerceu no
sentido de unir o Brasil a outros emergentes não hegemônicos, com vistas a avançar no
sentido da “democratização das relações internacionais” – na linguagem do Itamaraty – e
da mudança no “eixo das relações internacionais”, num sentido não unilateral e não
imperial, segundo a visão partidária do processo. A ofensiva contra a “dominação
imperial” foi bem mais explícita no próprio continente sul-americano, mas se manifestou
também em outros contextos, como evidenciado na formação de grupos seletos de ação
para concretizar aqueles objetivos.
O primeiro grupo assim criado foi o IBAS – juntando o Brasil com a Índia e a África
do Sul –, em torno do qual foram mobilizados os mais diversos setores de atividades
governamentais e acadêmicas para tentar construir uma agenda comum de atuação
internacional e de cooperação trilateral (em vários campos de políticas setoriais
governamentais). Como para diversas outras iniciativas da diplomacia de Lula, não
existem avaliações independentes – fora dos discursos oficiais e de artigos complacentes
de acadêmicos convidados – sobre os resultados efetivos desse tipo de iniciativa, que, a
exemplo de diversas outras, mobilizou centenas de funcionários, alguns milhões gastos
com diárias, passagens e encontros perfeitamente burocráticos, nos quais se fazia o
mapeamento do que cada país possuía em tais e tais áreas afetas aos grupos de
trabalho, e se prometia “intercambiar experiências” para melhorar a vida de suas
respectivas populações.
O segundo exemplo é constituído pelo BRIC, depois transformado em BRICS, com
a adjunção chinesa da África do Sul ao grupo que já congregava a Rússia e o Brasil, e,
novamente, a Índia. Trata-se, provavelmente, do primeiro grupo diplomático formado a
partir de um simples exercício de consultoria de mercados por parte de um cidadão não
governamental (um economista de investimentos), embora a sugestão tenha servido para
dar partida à iniciativa da Rússia e do Brasil, ambos interessados em conquistar para si –
ou para seus respectivos dirigentes – uma posição no cenário internacional à margem e
independentemente das instâncias habituais de coordenação, do tipo do G7 ou, mais
recentemente, do G20. Este G20 é o financeiro, e não deve ser confundido com um outro
G20 intensamente saudado pelo presidente Lula como mais uma iniciativa da sua
diplomacia para mudar o eixo das relações internacionais, no terreno das negociações
multilaterais de comércio. Ambos, contudo, o BRICs e o G20 comercial liderado pelo
Brasil apresentam as mesmas características, junto com o IBAS, de congregar países
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perfeitamente díspares do ponto de vista de suas características intrínsecas – ou seja,
socioeconômicas e políticas – e no plano de seus interesses externos. É notável o esforço
para encontrar pontos em comum numa interface diplomática que está mais próxima das
telas surrealistas de Magritte ou de Dali, do que propriamente de um quadro de Vermeer.
Esse esforço foi particularmente visível na diplomacia de Lula, com enormes
investimentos diplomáticos para realçar a posição do Brasil no plano internacional.
Comparando-se, no entanto, a agenda propositiva dos organismos multilaterais, ou a de
coordenação política de um grupo relativamente mais coeso como o G7, com as
declarações emitidas por ocasião dos grupos patrocinados ou sustentados pelo Brasil de
Lula, não se tem uma visão muito clara de quais seriam as propostas desses grupos para
fazer avançar a resolução de alguns dos grandes problemas da comunidade
internacional, seja no plano da segurança (ou da não-proliferação, para ser mais
específico), dos direitos humanos, da democracia, do meio ambiente e de diversos outros
itens dessa agenda.
À falta de resultados mais efetivos a partir da atuação desses grupos, a impressão
que se tem é a de uma coordenação bizarra para tentar retirar legitimidade ao grupo de
potências identificadas com o capitalismo ocidental, ou seja, uma agenda mais de tipo
negativo do que positivo. De fato, o que parece unir os diversos atores engajados nessas
iniciativas organizacionais de cunho político-diplomático é uma comum oposição aos
atores ditos hegemônicos, de maneira a se obter o que alguns ideólogos chamaram de
“desconcentração do poder mundial”. Dado o caráter exótico desse tipo de união de
vontades díspares, a questão que fica pendente é a dos benefícios obtidos com essas
iniciativas político-diplomáticas, no confronto com os custos diretos e indiretos que elas
implicam. Existem resultados em termos de visibilidade nos meios de comunicação, já
que os encontros sempre recebem ampla cobertura da imprensa, em se tratando de
potências emergentes, mas uma avaliação mais realista de seus benefícios qualitativos
ainda está por fazer em bases mais substanciais do que o simples ritual das reuniões e o
protocolo dos chefes de Estado. Conhecendo-se, porém, as diferenças reais que separam
cada um dos países congregados nesses grupos alternativos dos demais membros, não
seria de se estranhar que o caráter exótico desse tipo de união temporária e a falta de
praticidade da maior parte de suas propostas permaneça como seu elemento identificador
pelo futuro previsível.
Muitas dessas iniciativas foram tomadas visando um objetivo considerado como
absolutamente prioritário na era Lula: a conquista de uma cadeira permanente no
Conselho de Segurança. Foi em função dessa pretensão – na verdade quase uma
14
obsessão para o presidente e o seu chanceler – que o Brasil aceitou comandar uma
missão de estabilização no Haiti, uma decisão que foi tomada para outros fins que não
propriamente a estabilização; isso parece evidente. A decisão foi, portanto, exótica, uma
vez que não tinha muito a ver com os engajamentos habituais do Brasil no plano
internacional, ou seja: situava-se fora de seu ambiente normal de trabalho diplomático.
Obviamente os militares convocados para a tarefa fizeram sua programação técnica
quanto ao equipamento, aos custos da missão, a logística a ser mobilizada e toda a
intendência requerida para essa missão, tarefas absolutamente burocráticas e rotineiras
que os militares, escolados em matéria de planejamento, sempre fazem. É altamente
duvidoso, porém, que o governo tenha feito um planejamento adequado, tenha conduzido
um exercício de avaliação dos custos e benefícios de se empreender tal missão.
Como várias outras decisões e iniciativas tomadas solitariamente pelo presidente e
um restrito grupo de assessores, a decisão é primeiro tomada, politicamente,
impulsivamente, e depois são examinados os requisitos materiais para sua
implementação, que se tornam tarefas obrigatórias, uma vez que a decisão política já foi
tomada na instância mais alta. Essa característica decisional do governo Lula pode ser
encontrada em dezenas de outros casos do mesmo calibre diplomático: como o
presidente escolhe estar presente em todos os encontros possíveis, e como ele despreza
a leitura de estudos técnicos – e até a leitura dos insossos e burocráticos discursos
preparados pelo Itamaraty – preferindo em seu lugar discursar de improviso, segundo lhe
venham as ideias à cabeça, não existe linha de recuo possível para certas iniciativas de
alto risco e despesas de grande monta. Se adota a linha política de conhecido mote
napoleônico: On s’engage, puis on voit!
6. Apocalípticos e desintegrados: crônicas da irrealidade regional Uma das áreas que mais mobilizou os corações e mentes da diplomacia lulista foi,
sem sombra de dúvida, a América do Sul, terreno de ação privilegiado da maior parte dos
militantes do partido do governo. A região, concebida com essa extensão geográfica mais
limitada desde o governo precedente de FHC, foi, mais para o final do mandato de Lula,
reconvertida novamente em América Latina, depois que o escopo sub-regional mais
restrito já tinha sido objeto de algumas iniciativas concordantes com o espírito geral da
postura internacional do partido no poder. O objetivo mais importante das diversas
iniciativas adotadas, não necessariamente explicitado de maneira clara – já que
significaria assumir que todo o exercício era deliberadamente excludente –, sempre foi o
de afastar a “tutela imperial” do subcontinente. Para tal finalidade foram naturalmente
15
instrumentais as relações amistosas – e várias inclusive secretas – que esse partido
mantinha e continua a manter com partidos considerados “irmãos” na região, que são
todos aqueles que comungam da mesma profissão de fé anti-imperialista e antiamericana
tal como usualmente manifestado no âmbito do Foro de São Paulo, uma organização
teleguiada pelos comunistas cubanos para servir a seus objetivos nacionais e partidários.
No plano propriamente diplomático, esse objetivo partidário passava, sobretudo,
pela implosão da Alca, o projeto dos EUA de criar uma zona hemisférica de livre
comércio, moldada grosso modo no espírito do Nafta, que sempre mereceu restrições de
diversas ordens da diplomacia brasileira (não convencida de que o esquema seria
igualitário e realmente benéfico ao país). No governo Lula, a desconfiança se converteu
em oposição pura e simples, e em ação deliberada voltada para a implosão de todo o
exercício, no que contou com a cooperação ativa dos presidentes Nestor Kirchner, da
Argentina, e Hugo Chávez, da Venezuela. A ação obteve pleno sucesso na reunião de
cúpula dos chefes de Estado e de governo das Américas em Mar del Plata, em novembro
de 2005, após o que se deram por encerradas dez anos de intensas negociações.
A segunda linha de ação, menos destrutiva e mais propositiva – mas de fato
excludente, como já referido –, foi o início da criação de uma série de instituições
tendentes a substituir os foros e espaços frequentados – ou até financiados, como é o
caso da OEA e de algumas outras instâncias hemisféricas – pelo império, por novos
esquemas de coordenação política exclusivamente sul-americanos, equivalentes ou
alternativos aos existentes desde algumas décadas. Esta foi a origem da Comunidade
Sul-Americana de Nações, proposta pelo Brasil em 2005, depois transformada por
iniciativa venezuelana em União das Nações Sul-Americanas (com sede em Quito), logo
em seguida completada por diversas outras iniciativas dependentes da primeira,
tendentes a criar órgãos especializados (para segurança e equipamento militar, por
exemplo, ou para políticas de saúde e questões sociais). Nesses esquemas, o comércio é
uma mercadoria exótica.
Um dos temas absolutamente prioritários na diplomacia regional do governo Lula
era o reforço e a ampliação do Mercosul, com vistas a transformá-lo em base material de
um amplo espaço econômico de integração em todo o subcontinente. Na verdade, devido
a problemas, que tiveram mais a ver com o latente e crescente protecionismo comercial
argentino do que com falhas atribuíveis à diplomacia profissional do Itamaraty, o que se
observou, de fato, foi um retrocesso na forma e no conteúdo do esquema de integração
regido pelo Tratado de Assunção. O governo Lula escolheu ser complacente, leniente e
até cooperativo com todas as ações restritivas empreendidas pelas autoridades
16
argentinas, com nítido prejuízo para os interesses nacionais brasileiros, ou seja, dos
exportadores dos diversos segmentos atingidos pelas medidas arbitrárias, unilaterais e
ilegais do sócio no esquema do Mercosul. Com isso, não se conseguiu, obviamente,
reforçar o bloco; ao contrário, ele recuou, para todos os efeitos práticos, nos fluxos
qualitativos de comércio (que pode até ter aumentado em volume e valor) e, sobretudo,
no plano institucional.
Por outro lado, a adesão política da Venezuela ao Mercosul foi decidida ao preço
de uma descaracterização das disciplinas internas do bloco, representadas pela Tarifa
Externa Comum e por outras regras de política comercial (que o país andino jamais
cumpriu, de conformidade, aliás, com seu exótico estatuto de “membro pleno em
processo de adesão”). A intenção de se ampliar o Mercosul a novos sócios – ademais dos
já associados ao bloco por acordos formais, como Chile, Bolívia e Peru – vem sendo feita
com as mesmas flexibilidades deformadoras dessa união aduaneira em construção; em
outros termos, o que se busca é simplesmente ampliar o Mercosul, não exatamente
preservar sua coerência intrínseca ou suas regras de funcionamento.
O quadro da integração sul-americana, longe de se apresentar coeso e disposto a
enfrentar os desafios de um projeto comum, na verdade caminhou para a desintegração
relativa, já que os compromissos de liberalização comercial e de abertura econômica
foram sendo substituídos por uma retórica integracionista e por práticas de fato
contraditórias com, e até opostas a, tais objetivos. A diplomacia de Lula enveredou por
esse caminho da distorção dos objetivos originais da integração, sob escusa de dar-lhe
conteúdo social ou de suprir supostas lacunas existentes nos projetos em curso.
No período mais recente, observou-se a conformação progressiva de três tipos de
comportamentos político-econômicos na região, segundo o grau de racionalidade
econômica e de integração à economia mundial demonstrados pelos governos dos países
da região: numa ponta, governos claramente comprometidos com a inserção global de
seus países – exemplificados pelo Chile, pelo México, pela Colômbia e pelo Peru; no
meio, aqueles bastante reticentes em relação a essa postura, e até retrocedendo para o
protecionismo e o intervencionismo estatal na economia – como podem ser a Argentina e
o próprio Brasil; finalmente, na outra ponta, países claramente opostos a qualquer tipo de
abertura e de integração global, mas ocupados, de maneira enfática, no reforço do Estado
e dos mecanismos dirigistas e antimercado, como podem ser os países – à falta de
melhor designação – ditos “bolivarianos”.
A diplomacia partidária do Brasil, a despeito de se exercer no contexto de um país
capitalista – mas moderadamente antimercado e crescentemente protecionista – sempre
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demonstrou mais simpatias vis-à-vis os países deste último grupo do que em relação aos
do primeiro grupo, considerados “neoliberais”, segundo a ofensa mais em voga entre os
aderentes a seus pressupostos ideológicos e econômicos. O que se teve, portanto, foi o
alinhamento da diplomacia do governo Lula com os “exóticos bolivarianos” – o que foi
demonstrado em diversas iniciativas políticas e diplomáticas – e seu afastamento dos
países que estão perseguindo a integração global de suas economias (como evidenciado,
por exemplo, na Aliança do Pacífico, entre o Chile, o Peru, a Colômbia e o México). Num
mundo crescentemente globalizado, a recusa desse tipo de inserção mundial, e o reforço
e o apelo a doutrinas econômicas velhas de mais de meio século – como os espaços de
“políticas públicas” e as políticas ditas de “substituição de importações” podem ser
caracterizados como objetivamente regressistas e claramente “exóticos”.
7. Stalinismo industrial e protecionismo ordinário: um retorno de meio século Este é o sentido, justamente, da maior parte das orientações governamentais no
terreno da política econômica externa – sobre comércio, investimentos, patentes,
movimentos financeiros e outros tipos de transações internacionais – e que influenciaram
a postura diplomática do governo Lula em diversos encontros internacionais e em
processos negociadores sobre temas específicos. O exotismo, aqui, também guarda
resquícios – ou toneladas – de saudosismo, ou seja, o retorno a posições de política
doméstica e a posturas de política externa que se considerava abandonadas desde a fase
de reformas e modernização da economia; essas novas orientações de fato aparecem
como estranhas, num país que havia caminhado no sentido de sua maior inserção
econômica internacional a partir das reformas iniciadas com o governo Collor de Mello
(1990-92), continuadas de maneira relutante sob Itamar Franco (1992-1994) e assumidas
plenamente nas duas gestões de Fernando Henrique Cardoso (1995-2002), quando
reformas constitucionais e novas ferramentas no plano da legislação infraconstitucional
permitiram corrigir os aspectos mais canhestros do nacionalismo e do estatismo que
marcaram a versão original da Constituição de 1988 (dezenas de vezes emendada,
desde então).
Sem abordar outros aspectos das reformas que permearam o longo e difícil
processo de ajustes e de estabilização macroeconômica, nos planos monetário e fiscal, e
que permitiram, justamente, o surto de crescimento da produtividade nos anos 1990 e a
nova fase de crescimento nos anos 2000, caberia reter aqui apenas os aspectos de
política econômica externa que caracterizam, uma vez mais, a política externa do governo
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Lula como regressista, num Brasil que já tinha dado largos passos em seu duplo processo
de integração regional e internacional.
A mesma postura estatizante e dirigista, que distinguiu o novo governo no plano
interno – e que redundou, por exemplo, na criação de algumas dezenas de novas
empresas estatais e numa duplicação da burocracia, o que é amplamente confirmado
pela deterioração da posição do Brasil nos relatórios de órgãos internacionais relativos a
ambiente de negócios, competitividade ou liberdades econômicas, entre outros – marcou
também a diplomacia econômica nos planos de comércio, investimentos e finanças.
Alguns exemplos podem ilustrar o argumento do retorno ao passado.
A primeira ruptura foi, obviamente, no terreno da política comercial externa, mais
especificamente no que se refere às negociações hemisféricas em torno do projeto
americano da Área de Livre Comércio das Américas (Alca). Embora o Brasil fosse um
participante relutante, desde o início, tendo atuado sobretudo para preservar o Mercosul e
suas indústrias – consideradas não competitivas, por decreto visual – o governo FHC
conduziu esforços no sentido de discutir pormenorizadamente cada um dos capítulos
negociadores inscritos no mandato aprovado em Miami, em dezembro de 1994. Registre-
se, en passant, que o chanceler que aceitou a Declaração de Miami, e fez com o que o
presidente Itamar Franco a assinasse, foi o mesmo que conduziu o processo de
sabotagem das negociações a partir de 2003, e organizou sua implosão, como aliás
orgulhosamente reconhecido pelo presidente e esse chanceler. Não foram invocados
aspectos específicos para a oposição do Brasil – embora houvesse muitos – mas as
negociações foram sendo conduzidas em ritmo lento, com interposição de novas
condicionalidades (como uma Alca a duas velocidades, opções para os participantes mais
ou menos abertos à liberalização hemisférica), até que todo o exercício foi declarado
inviável e interrompido, numa ação conjunta do Brasil, da Argentina e da Venezuela,
durante a Cúpula das Américas de Mar del Plata, em novembro de 2005.
Na verdade, o lado exótico de todo o esforço de sabotagem da Alca tinha
começado bem antes da assunção do governo Lula, quando o candidato do PT tinha
declarado que a proposta americana não era exatamente um projeto de integração das
Américas, e sim um “projeto de anexação” da América Latina pelos Estados Unidos.
Outras alegações, exibidas pelos diplomatas contrários à proposta americana, se
fundavam na baixa competitividade da economia brasileira e a dos demais membros do
Mercosul para afirmar que o bloco seria simplesmente aniquilado pela competição das
empresas dos EUA. Mesmo se alguns setores ou ramos industriais, e sobretudo
agrícolas, do Brasil e do Mercosul, estavam em condições de enfrentar a concorrência
19
setorial com os desafiantes do império americano, se alegava que não haveria abertura
agrícola suficiente, do lado americano, para justificar o desmantelamento da proteção ao
Sul. Ao fim e ao cabo não foram apresentados argumentos técnicos, embasados em
estudos econômicos, para sustentar as alegações de desvantagens absolutas que
estariam situadas numa só direção, e o fato de praticamente todos os sindicatos dos EUA
também serem contrários ao acordo hemisférico retira muito da consistência dos prejuízos
inevitáveis, mas a decisão política já estava tomada, desde antes da posse.
A iniciativa deliberada de implodir a Alca tinha como contrapartida no plano
negocial o avanço de um acordo inter-regional entre o Mercosul e a União Europeia, uma
ilusão que descurava o fato de que a UE só estava negociando com o Mercosul
justamente pelo fato de temer ser excluída do acesso aos mercados latino-americanos
pela perspectiva de uma área de livre comércio dominada pelos EUA: afastado o perigo,
gratuitamente pela ação da diplomacia de Lula, não havia mais necessidade de fazer
concessões aos países do Cone Sul, sobretudo na área agrícola. A mesma ilusão ocorreu
quanto à possibilidade de o Brasil e o Mercosul serem o centro aglutinador de um vasto
espaço econômico integrado na América do Sul, como se os mercados e os
investimentos diretos dos países do Cone Sul fossem tão atrativos para os demais países
da região quanto um acesso garantido ao enorme mercado americano, bem como o fluxo
potencial de investimentos diretos a partir do Norte. Por fim, se depositou também uma
crença exagerada numa finalização bem sucedida da rodada Doha de negociações
comerciais multilaterais, o que manteve o Brasil e o Mercosul alheios a negociações
bilaterais ou plurilaterais mais relevantes: os acordos feitos com países da América do Sul
e com alguns parceiros selecionados em outros continentes (como Índia e África austral)
se revelaram pouco dinâmicos, já que baseados em número limitado de preferências fixas
para produtos e repletos de exceções.
Outra ação negativa, que na verdade continuava a paranoia tradicional do PT e
outros movimentos de esquerda ao longo das décadas precedentes, ocorreu na área dos
investimentos estrangeiros. Os parlamentares dessas correntes bloquearam, durante
anos, a aprovação dos acordos bilaterais de promoção e proteção desses fluxos (APPIs),
e o novo governo reverteu completamente a possibilidade de velhos ou novos acordos
entrarem em vigor, a despeito do fato de que o próprio Brasil teria interesse nesse tipo de
instrumento, em virtude dos investimentos crescentes de empresas brasileiras nos países
vizinhos (o que iria manifestar-se tristemente, logo adiante, nas nacionalizações
unilaterais, e violentas, efetuadas na Bolívia contra os ativos da Petrobras). Mesmo sem
acordos desse tipo, o mercado brasileiro continuou a atrair novos fluxos, em virtude de
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suas dimensões e possibilidades de crescimento, mas o ambiente de negócios continuou
a se deteriorar, em virtude, exclusivamente, de falhas de governo, não de mercado (como
atestado nos referidos relatórios da área).
Os retrocessos saudosistas manifestaram-se também no terreno das patentes e
das normas de acolhimento dos capitais internacionais, como várias vezes observado nos
debates em organizações como a Ompi, sobre propriedade intelectual, na Unctad e na
OMC, sobre os famosos “espaços de políticas econômicas”, supostamente para
impulsionar o desenvolvimento nacional, e nas próprias instituições de Bretton Woods,
onde o Brasil sempre se colocou do lado dos regulacionistas mais enfáticos, ou seja, dos
Estados que consideram seu dever intervir o mais possível nos mercados. Na Ompi e na
Unctad, em especial, foram desenterradas propostas dos anos 1960 e 1970, tendentes a
facilitar o licenciamento compulsório de patentes e as transferências de tecnologia,
sempre insistindo na concessão não recíproca de tratamento diferencial e mais favorável,
escudando-se na alegada condição do Brasil enquanto país em desenvolvimento, um
“guarda-chuva” conveniente, mas esfarrapado.
Os aspectos que finalmente mais caracterizaram a política econômica externa do
PT foram: a insistência nos chamados “policy spaces”, ou seja, a impossibilidade de o
país aceitar regras mais estritas para o investimento direto estrangeiro, em nome de
programas nacionais de desenvolvimento, um conceito pomposo para a tradicional mania
intervencionista do Estado no domínio econômico; e o retorno às formas mais primitivas
de protecionismo comercial, feitas de arbítrio tarifário – o que é permitido pela virtual
inoperância da Tarifa Externa Comum do Mercosul – e de certo número de
condicionalidades (como as de conteúdo local, e compromissos de exportação) que já se
encontravam no rol das práticas restritivas sancionadas pela Rodada Uruguai. Diversos
membros da OMC poderiam acionar o Brasil no órgão de solução de controvérsias da
organização, por infração às normas de não discriminação e de ausência de tratamento
nacional criadas pelas recentes políticas mais abertamente protecionistas se os setores
visados – o automobilístico, especialmente – não fossem também o terreno de lucros por
excelência das montadoras americanas e europeias.
O exotismo dessas políticas regressivas pode receber o nome de “stalinismo
industrial”, já que se encaixa perfeitamente no planejamento introvertido desse novo
“capitalismo num só país”, como se qualquer ramo industrial, atualmente, pudesse se
desenvolver no isolamento da concorrência e da interdependência internacional. As
mesmas deformações de políticas com sabor de anos 1960 são partilhadas com o
principal sócio no Mercosul, a Argentina, que demonstra o mesmo entusiasmo pelo
21
“desarrollo hacia adentro” em sua versão rediviva. Assim, enquanto os países da bacia do
Pacífico negociam progressivamente novos acordos de integração produtiva, de
intercâmbio tecnológico, de investimentos recíprocos e de liberalização comercial,
inclusive atraindo países latino-americanos dessa orla (como os quatro da Aliança do
Pacífico), grande parte dos latino-americanos celebra a criação de instituições próprias ao
continente, que se consolida “sem a tutela” (e sem os capitais) das “potências imperiais”
(com a exceção da China), numa repetição de antemão fadada ao fracasso da introversão
econômica de décadas passadas.
No plano financeiro, finalmente, embora o assunto tenha pouco a ver com o
Itamaraty e mais com a Fazenda, as iniciativas foram erráticas e improvisadas, revelando,
na verdade, a total falta de estratégia do governo Lula nessa vertente. Ele próprio
começou propondo moeda única no Mercosul – um empreendimento apenas quimérico,
em vista da completa descoordenação de políticas macroeconômicas entre os membros –
e terminou propondo afastar o dólar das relações comerciais com a China, substituindo-o
por moedas nacionais, medida aliás proposta formalmente por seu último ministro da
Fazenda: ademais de representar um inacreditável retrocesso nas relações de
pagamento internacional do Brasil para a fase do bilateralismo financeiro pré-Bretton
Woods, o projeto converteria os saldos superavitários obtidos pelo Brasil com o gigante
asiático em compras obrigatórias naquele mercado, aprofundando ainda mais o
intercâmbio já altamente desequilibrado no plano qualitativo, que aliás repete a velha
relação comercial Norte-Sul que os novos dirigentes queriam superar em nome de uma
ilusória “nova geografia do comércio internacional”.
A relação com a China – seja bilateralmente, seja no contexto dos Brics – também
evidenciou, mais uma vez, a falta de uma estratégia própria do governo Lula para a
inserção internacional do Brasil, ademais do vago projeto de união com países
considerados “anti-hegemônicos” para construir uma “nova relação de forças no mundo”.
Alimentada por grandes esperanças de Lula sobre sua solidez e seu enorme significado
geopolítico, ela começou pela manifestação do reconhecimento da China como uma
“economia de mercado”, postura não convertida na prática por oposição protecionista dos
empresários brasileiros; ela continuou na ilusão de que os chineses fariam grandes
investimentos produtivos no Brasil, quando eles sempre adotaram o mais estrito
pragmatismo: o que se viu foi o aprofundamento das especializações respectivas;
chegou-se a cogitar de um acordo de livre comércio Mercosul-China; as expectativas de
uma relação especial nunca chegaram a ser confirmadas na prática, a despeito da
assinatura de memorandos sobre a “parceria estratégica”, mas a China, junto com a
22
Rússia, continuaram relutando a aceitar seus parceiros dos Brics como candidatos
efetivos ao Conselho de Segurança. Ao final do período, a diplomacia de Lula continuava
a fazer contorcionismos verbais em torno de uma “guerra cambial”, mas
responsabilizando inteiramente os EUA pela inundação de dólares nos mercados,
deixando de lado as manipulações cambiais da China nos mesmos mercados.
8. Exotismo assumido: do conformismo como linha de ação (e de omissão) O subtítulo deste ensaio menciona os efeitos institucionais da diplomacia exótica
do governo Lula, ou seja, o impacto que a mesma exerceu sobre o Itamaraty, enquanto
órgão especializado para a execução da política externa, e sobre os próprios diplomatas,
enquanto formuladores, parciais, dessa política, e condutores das principais decisões no
terreno das relações internacionais do Brasil, o que pode agora ser descrito com base nas
seções precedentes. O próprio conceito de exótico indica o caráter estranho dessa
diplomacia em relação às tradições, práticas e até concepções do jogo diplomático, tal
como exercidas pelo Itamaraty ao longo de sua história mais do que centenária, talvez até
bicentenária (se considerarmos que desde 1808 as relações externas do país, então
colônia portuguesa, são conduzidas a partir do próprio Brasil, com seu manancial de
arquivos e o capital humano acumulado na memória de todos os diplomatas engajados no
serviço exterior desde então).
De fato, a diplomacia brasileira é herdeira das boas tradições da diplomacia
lusitana, e manteve uma excepcional continuidade, mesmo com as frequentes trocas de
ministros nos gabinetes parlamentaristas do Império e com toda a instabilidade política da
era republicana; ela foi, de certa forma, insulada da volatilidade governamental por ter
sabido se manter à margem, e acima, do jogo partidário, preservando seu staff
profissional, comprometido unicamente com o exercício da política externa enquanto tal e
protegido da incorporação de neófitos ou arrivistas por um processo de seleção próprio,
controlado pela própria burocracia do órgão. No último terço do Império, a Casa funcionou
bem mais sob a conduta do visconde de Cabo Frio do que sob a direção de ministros
muitas vezes passageiros; a década de Rio Branco terminou por construir um ethos e um
ritual próprio ao Itamaraty que foram mantidos nas décadas seguintes, a despeito da
natural sinuosidade da política externa como resultado das mudanças políticas havidas ao
longo do século republicano. Paradoxalmente, os governos autoritários – tanto na era
Vargas, quanto sob o regime militar de 1964 – souberam preservar as peculiaridades do
Itamaraty, enquanto instituição ciosa de seu mandato e missão política, mesmo com as
mudanças de orientações em alguns temas da agenda externa do Brasil.
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Essa cultura própria à Casa, infensa em grande medida à contaminação partidária,
foi sendo consolidada – notadamente após a criação do Instituto Rio Branco, em 1945 –
por processos rigorosos de seleção, treinamento, socialização e incorporação de valores
típicos da instituição, conformando um corpo de elite convencido de suas
responsabilidades especiais de representação e de negociação no exterior, e de
informação e de participação em processos decisórios no plano interno.
Sintomaticamente, a maior parte dos assessores internacionais dos presidentes, e de
vários ministérios importantes, foram recrutados entre os próprios diplomatas do
Itamaraty, que passou a dispor, ademais, de um monopólio parcial sobre certos temas da
agenda externa (que em outros países podiam ser atribuídos a outros ministérios que não
a chancelaria). Todos esses fatores foram extraordinariamente relevantes, historicamente,
para preservar a continuidade, a coerência e o rigor operacional da política externa,
tornando o Itamaraty um órgão respeitado dentro e fora do país, e bastante admirado pelo
seu profissionalismo.
Tudo isso foi, de certa forma, alterado pela inauguração do governo Lula, com suas
peculiaridades políticas e corporativas, ou melhor, partidárias. Ainda que o arcabouço
legal de que se cercou a instituição ao longo de sua história tenha evitado
“contaminações” de maior impacto sobre sua organização interna, é evidente que o
Itamaraty não poderia passar incólume por um governo que transformou de maneira
significativa – e muitas vezes para pior – toda a institucionalidade brasileira, a começar
pelas próprias agências do Executivo. Mas o próprio Parlamento e também órgãos do
Judiciário não deixaram de sofrer o impacto de um partido de estilo neobolchevique, que
coloca seus interesses acima de outras considerações de natureza democrática,
monopolizando e deformando o máximo possível de instâncias de decisão para dar
continuidade à sua permanência no poder. No caso do Itamaraty, os efeitos mais
importantes ocorreram mesmo no plano das orientações conceituais da política externa e
das preferências e alianças políticas que já estavam determinadas em nível partidário, e
que foram implementadas com seu apoio compulsório.
Algumas dessas novas orientações, nos planos multilateral, regional e bilateral já
foram evidenciadas nas seções precedentes, e o que cabe enfatizar aqui é o impacto do
nouveau régime sobre a própria instituição e seus servidores. De maneira geral, como
ocorre nas forças armadas, o staff diplomático compõe um corpo disciplinado, respeitador
dos princípios de hierarquia e do acatamento de ordens superiores e consciente dos
deveres que lhe incumbe na estrutura do Estado. Como ocorre também com o corpo
militar, eventuais diferenças ideológicas e de orientação política em relação a orientações
24
“heterodoxas” do poder político costumam ser veiculadas pelos diplomatas aposentados,
antes que pelos funcionários do serviço ativo, como acontece no caso dos “generais de
pijama”, que se manifestam através dos clubes militares.
Foi o que aconteceu, também, no Itamaraty, sobretudo em face do ativismo
militante do chanceler em prol das novas causas partidárias e do zelo doutrinário do
secretário-geral, empenhado em converter jovens e velhos diplomatas à nova visão do
mundo, aliás uma Weltanschauung que retomava antigas crenças nacionalistas dos anos
1950 e 60. Obviamente que as grandes linhas da política externa correspondiam bem
mais às preferências partidárias do PT – com sua orientação antiamericana e pró-cubana
– do que ao universo conceitual e operacional do Itamaraty, enquanto instância
formuladora das principais orientações da diplomacia brasileira em quase toda a história
independente; a instituição não foi exatamente capturada pela máquina partidária, mas
serviu de correia de transmissão para suas aventuras diplomáticas.
Ocorreu, nos dizeres de certa esquerda antiglobalizadora, a imposição do
pensamento único aos novos responsáveis setoriais do ministério – e sobretudo aos
jovens formandos do Instituto Rio Branco – e o próprio chanceler convidava os
funcionários diplomáticos, desde meados de 2003, a “vestir a camisa” da nova política
externa, num clima de críticas acerbas ao que teria sido o ancien régime de submissão
aos interesses do centro dominante. Como o mundo era dominado, nas palavras do
secretário-geral, por “uma extraordinária concentração de poder econômico, político,
tecnológico, militar e ideológico pelas potências dominantes”, cabia à “nova política
externa” empenhar esforços para romper esse quadro de arrogância imperial mediante
uma aliança com outros países periféricos e emergentes não-hegemônicos.
Mesmo sem dispor de qualquer quadro partidário nas engrenagens da política
externa – a não ser o próprio assessor presidencial para assuntos internacionais –, o
novo poder pode encontrar perfeita acomodação de suas principais orientações para a
agenda diplomática na instrumentalização corrente da atividade do Itamaraty, contando
para isso com a colaboração disciplinada da maior parte do staff permanente; aqueles
percebidos como potenciais “dissidentes” ou contrários às novas orientações ideológicas,
foram relegados a postos e funções secundários, quando não discriminados
administrativamente. Não houve, obviamente, “caça às bruxas”, mas simples substituição
de gerações, uma vez que os jovens, desejosos de ascender nos escalões da carreira, ou
sequiosos por postos e funções relevantes, eram mais suscetíveis de se acomodarem
perfeitamente ao Zeitgeist partidário. Pode-se dizer que o Itamaraty conformou-se aos
25
novos cursos de ação, mesmo quando, manifestamente, eles destoavam radicalmente do
estilo e da substância anteriormente seguidos pela diplomacia da própria Casa.
O exotismo institucional da nova política externa partidária não é difícil de ser
determinado, inclusive porque um número relevante de iniciativas diplomáticas ou a
condução de certos processos da agenda externa nunca teriam sido sequer lançados ou
operacionalizados de acordo com os padrões de trabalho e as orientações políticas da
própria Casa, e só o foram pelo “ativismo altivo e soberano” dos novos responsáveis e
decisores diplomáticos do governo Lula. Desde o início de sua gestão, o presidente se
empenhou em afirmar a liderança do Brasil no continente, uma palavra tabu para os
diplomatas profissionais e uma postura incontáveis vezes rechaçada pela instituição,
sabedora das reações, contrariedades e até animosidade que tal intenção despertaria
entre os vizinhos, especialmente os maiores, a começar pela própria Argentina. O
desastre foi contornado pelo chanceler, hábil diplomata, que soube transformar a
pretensão megalomaníaca do presidente em projetos de novas instâncias de consulta e
coordenação em nível sub-regional, como a iniciativa da Comunidade Sul-Americana de
Nações (2004).
Tampouco o Itamaraty aconselharia o presidente a se imiscuir nos assuntos
internos, eleitorais, dos vizinhos regionais (e até de alguns distantes), como o fez,
inúmeras vezes o presidente Lula, ao apoiar candidatos de seu perfil esquerdista em
diversos pleitos da região, com destaque para o apoio mais do que enfático em prol de
certos caudilhos considerados “progressistas” na região. O Itamaraty também não se
disporia, provavelmente, a mudar o seu voto nas instâncias multilaterais tratando de
direitos humanos – geralmente de abstenção, sob pretexto de evitar a politização indevida
dos projetos de resolução sobre determinados países – no sentido de apoiar,
concretamente, regimes notoriamente violadores dos direitos humanos, nos mais diversos
cantos do planeta, a começar pela própria América Latina.
O Itamaraty certamente manteria uma defesa intransigente do primado da lei e do
direito internacional, no caso dos conflitos surgidos em torno de projetos binacionais ou
bilaterais com países vizinhos, em especial na área energética, jamais aceitando a
violação unilateral de um tratado firmado solenemente e de contratos oficiais de governo
a empresa, comprometendo interesses concretos do Brasil. Jamais o Itamaraty começaria
uma nota diplomática enfatizando em primeiro lugar o direito de um outro país a exercer
controle sobre seus recursos naturais – o que é, como diria Nelson Rodrigues, de uma
obviedade ululante – mas começaria por lembrar ao parceiro o respeito necessário aos
acordos diplomáticos, segundo o velho princípio do pacta sunt servanda.
26
O Itamaraty jamais se envolveria em crises políticas internas de outros países,
respeitador absoluto não apenas de preceitos constitucionais – o que também é de uma
evidência eloquente – como também dos tratados e costumes diplomáticos, sem
mencionar acordos de que o Brasil é parte sobre normas de asilo diplomático, por
exemplo. Provavelmente o Itamaraty tampouco teria a pretensão de resolver complexos
problemas de paz e segurança internacionais, em regiões distantes, em dossiês sobre os
quais sua competência técnica e, sobretudo, seu poder efetivo de alavancagem política
ou econômica são extremamente limitados, ousando envolver-se em questões sensíveis
com a ajuda da pura retórica política, ou da boa vontade diplomática, numa
personalização indevida de problemas que chegam inclusive a ultrapassar as ferramentas
mais poderosas de potências tradicionais.
Em especial, o Itamaraty jamais recomendaria ao chefe de Estado negociar
questões técnicas – seja no âmbito regional, ou no multilateral – sem uma adequada
preparação especializada, ou permitiria que se improvisassem soluções do tipo second ou
third best, sem um estudo prévio da questão, sabedor de que decisões diplomáticas
nunca devem ser tomadas, em primeira mão, pela última e mais alta instância de decisão,
já que depois existiriam poucas chances de se avaliar melhores caminhos para a
conclusão de acordos políticos entre países, ainda que informais, como procedia
geralmente o presidente Lula. A exposição exagerada do chefe de Estado – na verdade
buscada intensamente por Lula e seus assessores – pode prejudicar, em lugar de
contribuir a uma situação de “ótimo paretiano” no âmbito da política externa, pela razão
óbvia de que chefes de Estado, políticos em geral, não dominam todos os detalhes
técnicos de um dossiê internacional, normalmente complexo e envolvendo opções últimas
que necessitam correta e prévia avaliação de seus custos e benefícios.
Desse ponto de vista, a diplomacia presidencial conduzida durante os anos Lula foi
extremamente arriscada para os interesses internacionais do Brasil, e não seria difícil
apontar questões que ficaram sem follow-up adequado ou que tiveram de se acomodar
sob o epíteto da “diplomacia da generosidade”, em vista dos evidentes desequilíbrios
alcançados de maneira improvisada. Não se conhecem precedentes, por exemplo, em
qualquer programa governamental de promoção comercial, a ações que visem “substituir
importações” em favor de associados comerciais menos competitivos, tendo o próprio
presidente Lula recomendado a importadores brasileiros que fizessem compras dos
vizinhos regionais, mesmo que seus produtos ofertados fossem um pouco mais caros, ou
de menor qualidade, do que os equivalente nacionais ou de outros países, apenas para
demonstrar o comprometimento do Brasil com os objetivos de desenvolvimento desses
27
países; não se tem notícia de que importadores generosos tenham jamais aceito esse tipo
de barganha obviamente prejudicial a seus interesses estritamente comerciais.
Um outro exemplo de exotismo, que seria dificilmente aceito pela diplomacia
profissional, foi a tolerância demonstrada com os arroubos protecionistas do segundo
grande membro do Mercosul, extravasando para medidas claramente ilegais, tanto do
ponto de vista das normas do Mercosul, como dos regulamentos em matéria de
salvaguardas, existentes no sistema multilateral de comércio. Paradoxalmente, e
contrariamente aos objetivos expressos do presidente de “reforçar o Mercosul”, esse tipo
de conivência com medidas arbitrárias terminou por enfraquecer o bloco, não o contrário,
como aliás comprovado pela escalada de obstáculos protecionistas que surgiram na
sequência. O Itamaraty, até conhecido pelo seu legalismo bacharelesco, provavelmente
exigiria o cumprimento estrito dos compromissos firmados dentro e fora do bloco (ou seja,
a nível bilateral), ou preferiria renegociar novos termos da liberalização comercial, em
lugar de condescender com arbitrariedades unilaterais.
Uma nota pitoresca, a confirmar, talvez, o exotismo diplomático no qual o Brasil foi
instalado a partir de 2003, poderia ser registrada a propósito da composição de inúmeras
delegações governamentais em reuniões internacionais que pudessem apresentar
qualquer aspecto de “inclusão social” ou de “redução das desigualdades”. Assim, ao lado
dos delegados diplomáticos e dos representantes ministeriais, muitas dessas missões
passaram a contar igualmente com um número variado de militantes de ONGs ou
diretamente de partidos e movimentos políticos, obviamente da linha privilegiada pelo
poder, participantes que a despeito de seu estatuto de observadores não se eximiam de
imprimir a sua marca nos documentos em debate, ou de buscar impor a sua posição a
órgãos de governo. Segundo testemunho pessoal de alguns enviados, as delegações
brasileiras a essas reuniões não apenas sofreram significativo aumento de tamanho,
como passaram a apresentar certo ar de assembleias estudantis debatendo intermináveis
resoluções políticas.
Finalmente, um último aspecto do exotismo institucional no qual passou a viver o
Itamaraty sob o governo Lula foi justamente a personalização exagerada da política
externa, tanto no plano puramente formal – ou seja, de cerimonial e das demais normas
protocolares – quanto no plano substantivo, já que as tarefas de prospecção de terreno,
de preparação dos encontros e, sobretudo, da redação cuidadosa de pronunciamentos
presidenciais – que carregam todo um simbolismo político, inclusive por engajar a palavra
do país no plano internacional – foram substituídas pelas missões presidenciais e pelos
improvisos discursivos, talvez com novo sabor gramatical e novos coloridos estilísticos,
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mas certamente dotados de bem menos rigor formal do que as práticas tradicionais da
diplomacia profissional. Pode parecer preocupação abstrata, mas as ações dos Estados
costumam exigir certo respeito aos rituais e à letra fria dos tratados, o que pouco foi visto
desde 2003.
Essa personalização da agenda diplomática tem a capacidade, inclusive, de trazer
sérios problemas de credibilidade internacional ao Brasil, como exemplificado,
justamente, pelo último ato diplomático do governo Lula, covardemente tomado no último
dia de seu mandato: a recusa irregular da extradição de um terrorista italiano, condenado
por crimes comuns pela justiça de seu país, mas que recebeu a “graça presidencial”, por
uma inacreditável sucessão de equívocos, tanto do STF, quanto do próprio presidente.
Nos termos de um tratado bilateral de extradição, em vigor entre o Brasil e a Itália, o
referido criminoso, ao esgotarem-se todos os recursos jurídicos para sua permanência no
país – no qual, entretanto, permanecia mediante medidas políticas (mas claramente
ilegais) tomadas por um anterior ministro da Justiça do partido no poder –, deveria ter sido
simplesmente extraditado ao seu país de origem, tal como estabelecido na decisão do
Supremo; este, erroneamente, atribuiu ao presidente da República a decisão final quanto
à extradição, quando deveria unicamente instruir ao chefe do Executivo os procedimentos
práticos da extradição. O presidente Lula, ao se julgar autorizado a tomar uma decisão
pessoal, não decorrente de uma obrigação de cunho institucional, decidiu interpretar à
sua maneira a decisão do Tribunal: ignorou, simplesmente, o tratado bilateral e a
autorização para extradição tomada por outro poder soberano, alegando que a decisão
lhe incumbia soberanamente.
Junto com a bizarra operação conduzida em Teerã, em torno do programa nuclear
iraniano, esta foi, sem dúvida, uma das mais exóticas decisões da diplomacia de Lula,
quando, mais uma vez, ele decidiu em função de suas inclinações pessoais e políticas,
mas em total desrespeito aos tratados bilaterais que obrigavam o Brasil
internacionalmente, sob risco de questionamento dessa decisão na corte da Haia. A
personalização das relações internacionais do Brasil, quando levada a esse extremo,
compromete seriamente a credibilidade diplomática do país no exterior, sendo
absolutamente estranha às tradições diplomáticas e jurídicas nacionais.
9. Uma diplomacia nunca antes vista no Brasil: o exotismo megalomaníaco Não haveria muito a acrescentar sobre o caráter verdadeiramente exótico da
diplomacia do governo Lula depois de todas as considerações e demonstrações
efetuadas nas seções precedentes. Talvez o único elemento que merece ser enfatizado e
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ressaltado é o próprio personagem em torno do qual se criou e se desenvolveu essa
diplomacia de ruptura com os padrões conhecidos da diplomacia profissional do Brasil.
Embora o conjunto da obra não possa ser imputado apenas ao personagem em questão
– uma vez que o chanceler, seu secretário-geral, o assessor do partido para assuntos
internacionais e diversos outros líderes partidários também participaram ativamente da
construção e da manutenção do mais formidável empreendimento político conhecido nos
anais da diplomacia brasileira – é evidente, a qualquer observador que tenha
acompanhado os passos dessa diplomacia, que a maior parte das iniciativas contou com
a aprovação pessoal do presidente, quando não com sua presença e envolvimento nos
episódios mais relevantes. De fato, pode-se dizer que nunca antes na história do Brasil
um presidente de origem política – já que o sindicalista há muito deixou de existir, a não
ser como legitimação alimentada para fins de publicidade – participou de forma tão
intensa dos mais diferentes episódios relativos à agenda externa do país. Ou seja, o
próprio envolvimento intenso do presidente com a diplomacia já constitui, por si só, um
elemento exótico na história republicana brasileira.
O que pode ter motivado o personagem a dedicar tanto tempo, tantas viagens,
tantas conversas e encontros com os mais diferentes líderes mundiais (e também com
representantes de dezenas de movimentos ditos “populares”, na verdade militantes) a
uma área que sempre passou por relativamente secundária na agenda dos estadistas e
líderes políticos brasileiros? Provavelmente se trata de uma motivação maior do que o
simples gosto pela diplomacia, ou pelos contatos externos; ela deve radicar num impulso
interno, talvez consciente, mas em todo caso, muito forte e psicologicamente compulsivo,
quase obsessivo: talvez a necessidade de provar a si mesmo, a seu antecessor, a todos
os brasileiros e ao mundo inteiro, que um “simples operário” – como cansativamente
martelado por uma das mais gigantescas operações de publicidade dirigida jamais vista
no Brasil – também pode se destacar entre os “grandes do mundo”, mesmo sem saber
falar línguas, sem ter educação formal, sequer diplomas de qualquer tipo.
Com efeito, se formos examinar a agenda diplomática da era Lula será fácil
constatar que todas as iniciativas, todos os grandes encontros, todas as viagens
preparatórias do chanceler e dos escalões avançados, toda a movimentação burocrática
do Itamaraty, tudo isso girou em torno do personagem Lula, das suas viagens e visitas,
dos seus encontros, dos seus discursos, enfim, da sua exibição dentro de um cenário de
atuação diplomática. A observação do personagem, suas falas em torno de assuntos
externos, seu entusiasmo pelos contatos internacionais, mas também sua total falta de
gosto pelos discursos enfadonhos preparados pelo staff diplomático revelam uma
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personalidade intensamente focada na fruição da sua própria ação, disposta a se entreter
sobre o assunto com todos os interlocutores e demandando a atenção e a admiração de
todos os parceiros, assessores e do público em geral, com relação à sua própria
genialidade diplomática.
O Itamaraty, obviamente, foi colocado a serviço dessa necessidade compulsiva
das luzes das aparições mundiais e dos aplausos que seguiam junto, alguns deles
laboriosamente impulsionados por uma enorme máquina de publicidade pessoal,
tampouco vista anteriormente nos anais da agência de comunicação do governo federal.
O presidente, que obviamente já possuía algumas características das personalidades
carismáticas, alçou-se, depois de oito anos de intensa exibição pessoal, em todos os
teatros abertos à simpatia transbordante, à condição de verdadeiro mito da história
política nacional (e de certa forma regional e mundial, igualmente, já que transformado em
referência obrigatória de políticos e políticas, nos mais diversos aspectos das atividades
públicas).
Sem dúvida, tratou-se de um fenômeno diferente de tudo o que tinha sido visto na
história política nacional: e essa diferença justifica o uso do conceito de exótico para
caracterizá-la adequadamente. Como todo o edifício, porém, foi cuidadosamente
construído para servir à causa pessoal do personagem central, justifica-se igualmente que
ao epíteto de exotismo se acrescente a condição de megalomaníaco. São episódios e
momentos raros na vida de um povo, uma tal concentração de atenção em torno de um
único personagem, na vida interna e na vida externa do país.
A história certamente decantará, mais adiante, quando as paixões, empatias e
animosidades se retraírem, a contribuição do personagem para a construção do Brasil
contemporâneo. Embora a maior parte dos julgamentos seja, desde já, extremamente
positiva, a avaliação deste ensaio, tanto no que se refere ao impacto da figura sobre as
instituições, quanto aos resultados efetivos de sua ação para a diplomacia brasileira, é
bastante crítica, seja no que se refere à forma, seja no tocante à substância. O peso dos
mitos é, no entanto, um fator muito relevante na elaboração de uma memória coletiva
para uma sociedade determinada. Para todos os efeitos, o personagem Lula encarnou o
melhor e o pior das características e das idiossincrasias brasileiras ao longo das duas
últimas décadas. Talvez continue a impregnar igualmente o futuro da nação. A história
dirá...
Paulo Roberto de Almeida
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Trabalhos do autor sobre a diplomacia do governo Lula (lista seletiva, em ordem
cronológica inversa)
“Une prospective du Brésil: vers 2022”, Diplomatie: Affaires Stratégiques et Relations Internationales, Paris: Les Grands Dossiers de Diplomatie n. 8, abril-maio 2012, ISSN: 2115-256X; p. 90-95; link: http://www.diplomatie-presse.com/?p=4675.
Relações internacionais e política externa do Brasil: a diplomacia brasileira no contexto da globalização. Rio de Janeiro: LTC, 2012, 330 p.; ISBN 978-85-216-2001-3; link: http://www.pralmeida.org/01Livros/2FramesBooks/RelaIntPExt2011.html.
“Os Brics na nova conjuntura de crise econômica mundial”, Espaço da Sophia, vol. 45, n. 1, janeiro-junho 2012, ISSN: 1981-318X; p. 111-123; link: http://www.espacodasophia.com.br/revista/edicoes-anteriores/edicao-45.html.
“A diplomacia da era Lula: balanço e avaliação”, Política Externa, vol. 20, n. 3, dez. 2011; jan.-fev. 2012, p, 95-114; ISSN: 1518-6660; link: http://www.pralmeida.org/05DocsPRA/2344DiplomEraLulaBalRevPolitcaExterna.pdf.
“Never Before Seen in Brazil: Luis Inácio Lula da Silva’s grand diplomacy”, Revista Brasileira de Política Internacional, vol. 53, n. 2, 2010, p. 160-177; link: http://www.scielo.br/pdf/rbpi/v53n2/09.pdf.
“La diplomatie de Lula (2003-2010): une analyse des résultats”, In: Denis Rolland, Antonio Carlos Lessa (coords.), Relations Internationales du Brésil: les Chemins de la Puissance. Paris: L’Harmattan, 2010, vol. 1, p. 249-259; link: http://diplomatizzando.blogspot.com/2010/10/relations-internationales-du-bresil.html.
“Pensamento e ação da diplomacia de Lula: uma visão crítica”, Política Externa, vol. 19, n. 2, set.-out.-nov. 2010; ISSN: 1518-6660; link: http://diplomatizzando.blogspot.com/2010/09/pensamento-e-acao-da-diplomacia-de-lula.html.
“Uma Avaliação do Governo Lula: o que foi feito, o que faltou”, Espaço da Sophia, ano 4, n. 40; outubro-dezembro 2010; ISSN: 1981-318X; link: http://www.revistaespacodasophia.com.br/no-40-outnov-2010/item/395-uma-avalia%C3%A7%C3%A3o-do-governo-lula-o-que-foi-feito-o-que-faltou.html;
“O Bric e a substituição de hegemonias: um exercício analítico (perspectiva histórico-diplomática sobre a emergência de um novo cenário global)”, In: BAUMANN, Renato (org.): O Brasil e os demais BRICs: Comércio e Política. Brasília: CEPAL-Escritório no Brasil/IPEA, 2010, p. 131-154; link: http://www.pralmeida.org/05DocsPRA/2077BricsHegemoniaBook.pdf.
“Lula’s Foreign Policy: Regional and Global Strategies”. In: LOVE, Joseph L.; BAER, Werner (eds.), Brazil under Lula: Economy, Politics, and Society under the Worker-President. New York: Palgrave-Macmillan, 2009, p. 167-183; link: http://www.pralmeida.org/05DocsPRA/1811BrForPolicyPalgrave2009.pdf.
“Brazil in the International Context at the First Decade of the 21st Century: Regional Leadership and Strategies for Integration”. In: EVANS, Joam (org.), Brazilian Defence Policies: Current Trends and Regional Implications. London: Dunkling Books, 2009, p. 11-26; link: http://www.pralmeida.org/05DocsPRA/1902BrForPolicyStrategies.pdf.
“Bases conceituais de uma política externa nacional”, In: MARTINS, Estevão C. de Rezende; SARAIVA, Miriam G. (orgs.) Brasil-União Europeia-América do Sul: Anos 2010-2020. Rio de Janeiro: Fundação Konrad Adenauer, 2009, p. 228-243; link: http://www.pralmeida.org/05DocsPRA/1929BasesConceitPExtNacBook.pdf.
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32
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“A política internacional do Partido dos Trabalhadores: da fundação do partido à diplomacia do governo Lula”, Sociologia e Política. Curitiba: UFPR; n. 20 junho 2003, pp. 87-102; ISSN: 0104-4478; link: www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0104-44782003000100008.