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ALTERNATIVA ZERO + ANOS DE RUPTURA VOL. V E X P O S I Ç Ã O 1 9 7 7
60

ULTRAVOX - Multimedia Magazine

Mar 18, 2016

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A L T E R N A T I V A Z E R O + A N O S D E R U P T U R A V O L . V

E X P O S I Ç Ã O 1 9 7 7

Page 2: ULTRAVOX - Multimedia Magazine

8 Contexto

20 Conceito

34 Ernesto de Sousa

52 Críticas Positivas

78 Críticas Negativas

índicen d i c eÍ

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8 Contexto

20 Conceito

34 Ernesto de Sousa

52 Críticas Positivas

78 Críticas Negativas

índicen d i c eÍ

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O e l e v a d o n ú m e r o d e p a r t i c i p a n t e s

“Alternativa Zero” [...] pretende ser uma exposição aberta, com todas as consequências possíveis nesta sociedade, inclusive concorrer (ainda que pouco) para transformá-la. (…) O que se pretende é sobretudo demonstrar a importância menor do objecto de arte, face aos sujeitos envolvidos pela actividade estética, face ao processo estético.”Assim nos é apresentada, pelas mãos de José Ernesto de Sousa, a exposiçãoAlternativa Zero: Tendências Polémicas na Arte Portuguesa Contemporânea.

De facto, e de acordo com a óptica de Ernesto de Sousa, a exposição tinha por objectivo combater o isolamento dos artistas e dos críticos portugueses, promovendo uma perspectiva crítica e uma responsabilidade assumida, que se afastasse dos interesses comerciais. Ernesto de Sousa conseguiu juntar perto de cinquenta participantes — ou “operadores estéticos” —, contando consigo próprio, entre os quais, podemos destacar Alberto Carneiro, Ana Hatherly, André Gomes, António Palolo, António Sena, Clara Menéres, Da Rocha, Ernesto de Melo e Castro, Fernando Calhau, Helena Almeida, Joana Rosa, João Vieira, Jorge Peixinho, José Conduto, Julião Sarmento, Júlio Bragança, Mário Varela, Robin Fior ou Vítor Pomar. Este conjunto mostra claramente que não se procurava um consenso, mas a heterogeneidade, a reflexão e a crítica. Na perspicaz e poética expressão de José Luís Porfírio (1997), tratou-se da vanguarda que vinha, já não isolada, mas “em grupo”, por mão do “único inventor da Alternativa Zero”.E foi por entre uma máquina cinética (de Júlio Bragança), um ostensivo torso feminino (Mulher-Terra-Vida, de Clara Menéres), a pesquisa da representação e do corpo (obras de Helena Almeida), montagens com aguarelas e fotografias (de Fernando Calhau), ou uma floresta para sonhar (de Alberto Carneiro), foi por entre estas e outras obras que o público se movimentou. Afluíram à exposição mais de dez mil visitantes, contrariando uma ideia elitista de obra de arte, a que Ernesto de Sousa resistia.Além destas e de outras intervenções estéticas, também tiveram lugar eventos musicais, oficinas de crianças, performances, intervenções do público, jantares-convívio etc..

Esta variedade poderá ser justificada pela defesa, por parte de Ernesto de Sousa, da “obra de arte aberta” — na esteira de Umberto Eco —, antiacadémica, antielitista, não acabada, participada. As reacções à exposição foram ora laudatórias ora destruidoras. Foi um momento polémico e inquietante na situação artística portuguesa. De um modo geral, todos os comentários confluíram no sentido de admitir a sua invulgaridade, uma vez que foi atípica em Portugal. Uns consideraram que se tratou de um marco e de um desafio no contexto artístico português; outros criticaram-na pela real falta de alternativa que propôs, já que o público não interveio e o evento restringiu-se a uma classe intelectual e elitista. No fundo, a grande questão que se colocou prendeu-se com a legitimidade artística de uma exposição que ao reclamar a vanguarda — e não obstante tenha constituído uma novidade em Portugal —, acabou por mostrar o que lá fora se vinha fazendo há algum tempo. No semanário Expresso, Jorge Alves da Silva chamou-lhe “subdesactualizada Kassel”. Esta questão conduziria inevitavelmente a outras: a situação cultural e artística do nosso país, bem como a uma certa perda de sentido da vanguarda. A vanguarda, segundo alguns críticos, tinha-se transformado numa “fantochada”, fizera-se visitar pelas escolas mais importantes, tivera apoio do Governo, enfim, fora elitista, não trouxera nada de novo.

e as particularidades de cada obra aumentavamas possibilidades artísticas e estéticas da exposição.

Devemos reconhecer — tal como José-Augusto França, João Pinharanda e José Luís Porfírio — que a Alternativa Zero representou a súmula de um período, o período das vanguardas, mais concretamente do movimento geral reportado à neovanguarda internacional. Neste sentido, a exposição acabou por encerrar um ciclo. Contudo, falta acrescentar um pormenor determinante: encerrou este ciclo afirmando uma produção efectiva dos anos setenta portugueses, acompanhando-a de uma reflexão conceptual válida. Por outro lado, sabia-se que o que se podia observar na exposição não era exactamente novo, inédito, mas uma reinvenção da (neo)vanguarda, possivelmente de acordo com os meios e com os tempos portugueses. Devemos acreditar que a Alternativa Zero, do ponto de vista da atitude curatorial e considerando determinando leque de peças exibidas, acabou, de um modo talvez involuntário e imperfeito, por anunciar o pós-modernismo em Portugal. Mas, em simultâneo, deu os anos setenta a Portugal.

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O e l e v a d o n ú m e r o d e p a r t i c i p a n t e s

“Alternativa Zero” [...] pretende ser uma exposição aberta, com todas as consequências possíveis nesta sociedade, inclusive concorrer (ainda que pouco) para transformá-la. (…) O que se pretende é sobretudo demonstrar a importância menor do objecto de arte, face aos sujeitos envolvidos pela actividade estética, face ao processo estético.”Assim nos é apresentada, pelas mãos de José Ernesto de Sousa, a exposiçãoAlternativa Zero: Tendências Polémicas na Arte Portuguesa Contemporânea.

De facto, e de acordo com a óptica de Ernesto de Sousa, a exposição tinha por objectivo combater o isolamento dos artistas e dos críticos portugueses, promovendo uma perspectiva crítica e uma responsabilidade assumida, que se afastasse dos interesses comerciais. Ernesto de Sousa conseguiu juntar perto de cinquenta participantes — ou “operadores estéticos” —, contando consigo próprio, entre os quais, podemos destacar Alberto Carneiro, Ana Hatherly, André Gomes, António Palolo, António Sena, Clara Menéres, Da Rocha, Ernesto de Melo e Castro, Fernando Calhau, Helena Almeida, Joana Rosa, João Vieira, Jorge Peixinho, José Conduto, Julião Sarmento, Júlio Bragança, Mário Varela, Robin Fior ou Vítor Pomar. Este conjunto mostra claramente que não se procurava um consenso, mas a heterogeneidade, a reflexão e a crítica. Na perspicaz e poética expressão de José Luís Porfírio (1997), tratou-se da vanguarda que vinha, já não isolada, mas “em grupo”, por mão do “único inventor da Alternativa Zero”.E foi por entre uma máquina cinética (de Júlio Bragança), um ostensivo torso feminino (Mulher-Terra-Vida, de Clara Menéres), a pesquisa da representação e do corpo (obras de Helena Almeida), montagens com aguarelas e fotografias (de Fernando Calhau), ou uma floresta para sonhar (de Alberto Carneiro), foi por entre estas e outras obras que o público se movimentou. Afluíram à exposição mais de dez mil visitantes, contrariando uma ideia elitista de obra de arte, a que Ernesto de Sousa resistia.Além destas e de outras intervenções estéticas, também tiveram lugar eventos musicais, oficinas de crianças, performances, intervenções do público, jantares-convívio etc..

Esta variedade poderá ser justificada pela defesa, por parte de Ernesto de Sousa, da “obra de arte aberta” — na esteira de Umberto Eco —, antiacadémica, antielitista, não acabada, participada. As reacções à exposição foram ora laudatórias ora destruidoras. Foi um momento polémico e inquietante na situação artística portuguesa. De um modo geral, todos os comentários confluíram no sentido de admitir a sua invulgaridade, uma vez que foi atípica em Portugal. Uns consideraram que se tratou de um marco e de um desafio no contexto artístico português; outros criticaram-na pela real falta de alternativa que propôs, já que o público não interveio e o evento restringiu-se a uma classe intelectual e elitista. No fundo, a grande questão que se colocou prendeu-se com a legitimidade artística de uma exposição que ao reclamar a vanguarda — e não obstante tenha constituído uma novidade em Portugal —, acabou por mostrar o que lá fora se vinha fazendo há algum tempo. No semanário Expresso, Jorge Alves da Silva chamou-lhe “subdesactualizada Kassel”. Esta questão conduziria inevitavelmente a outras: a situação cultural e artística do nosso país, bem como a uma certa perda de sentido da vanguarda. A vanguarda, segundo alguns críticos, tinha-se transformado numa “fantochada”, fizera-se visitar pelas escolas mais importantes, tivera apoio do Governo, enfim, fora elitista, não trouxera nada de novo.

e as particularidades de cada obra aumentavamas possibilidades artísticas e estéticas da exposição.

Devemos reconhecer — tal como José-Augusto França, João Pinharanda e José Luís Porfírio — que a Alternativa Zero representou a súmula de um período, o período das vanguardas, mais concretamente do movimento geral reportado à neovanguarda internacional. Neste sentido, a exposição acabou por encerrar um ciclo. Contudo, falta acrescentar um pormenor determinante: encerrou este ciclo afirmando uma produção efectiva dos anos setenta portugueses, acompanhando-a de uma reflexão conceptual válida. Por outro lado, sabia-se que o que se podia observar na exposição não era exactamente novo, inédito, mas uma reinvenção da (neo)vanguarda, possivelmente de acordo com os meios e com os tempos portugueses. Devemos acreditar que a Alternativa Zero, do ponto de vista da atitude curatorial e considerando determinando leque de peças exibidas, acabou, de um modo talvez involuntário e imperfeito, por anunciar o pós-modernismo em Portugal. Mas, em simultâneo, deu os anos setenta a Portugal.

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CONTEXTO

Ernesto de Sousa, João Melo, Ana Gusmão, Jorge Peixinho, Carlos Gentilhomem

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“O projecto sobre as obras, a intenção sobre o resultado, a atitude sobre o objecto.”

» EXPRESSO/Cartaz, “Questões Alternativas”, 5 Julho de 1997

Inauguração “Alternativa Zero”, 1977

Page 8: ULTRAVOX - Multimedia Magazine

Apesar da década de 60 ter sido marcada por uma vida intensa de exposição de diversos tipos de arte,

» Isabel Albuquerque, “A Polémica da Alternativa Zero”, 2001

não ecoaram, em Portugal,

as revoluções políticas e ideológicas

do ano de 68. Considerou-se,

mesmo, que a situação artística portuguesa tinha piorado e que não havia possibilidade de existência

do crítico de arte profissional.

Contudo, houve transformações na linguagem de alguns artistas

que foram desenvolvidas de forma

individual e que se foram consolidando

ao longo dos anos 70, embora nunca

como expressão dominante.

Sala de descontração com alunos da E.S.B.A.P., Inauguração “Alternativa Zero”, 1977

Viriato Camilo, Ernesto de Sousa, Mário Cortesão Casimiro e Ana Hatherly

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Apesar da década de 60 ter sido marcada por uma vida intensa de exposição de diversos tipos de arte,

» Isabel Albuquerque, “A Polémica da Alternativa Zero”, 2001

não ecoaram, em Portugal,

as revoluções políticas e ideológicas

do ano de 68. Considerou-se,

mesmo, que a situação artística portuguesa tinha piorado e que não havia possibilidade de existência

do crítico de arte profissional.

Contudo, houve transformações na linguagem de alguns artistas

que foram desenvolvidas de forma

individual e que se foram consolidando

ao longo dos anos 70, embora nunca

como expressão dominante.

Sala de descontração com alunos da E.S.B.A.P., Inauguração “Alternativa Zero”, 1977

Viriato Camilo, Ernesto de Sousa, Mário Cortesão Casimiro e Ana Hatherly

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exto

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Mas é durante esta década que se vão dar dois acontecimentos decisivos: o primeiro foi a revolução de 25 de Abril de 1974 que transformou o país não só no plano político, histórico e económico, como também culturalmente, o que no sector das artes se reflectiu através da mobilização feita pelos artistas que mandaram petições e projectos aos órgãos competentes do Estado e colocaram lá representantes, como aconteceu com João Vieira, Fernando Calhau, Julião Sarmento na Direcção Geral de Acção Cultural, ou através de agrupamentos de artistas em associações e movimentos de espírito revolucionário, que pretendiam uma aproximação entre arte esociedade e cujas acções, raramente obtinham adesão por parte dessa mesma sociedade; o segundo foi a “Alternativa Zero”, acontecimento incontornável da cultura portuguesa. A “Alternativa Zero” organizada pelo pintor (operador estético) e crítico Ernesto de Sousa em 1977, na Galeria Nacional de Arte Moderna, foi uma mostra de novas formas de artes que o Governo tornou pública, cujo resultado foi a realização de uma inter-relação de novas formas e o reconhecimento geral da importância da vanguarda, o que foi, ao mesmo tempo uma aposta e um desafio. (...) No discurso de Ernesto de Sousa, aparece a ideia de um estado zero que a que todos os caminhos vão dar. (...) Com a exposição pensava-se criar um tempo e um espaço de reflexão sobre as realizações de arte portuguesa (...) Pretendia-se, reflectir também sobre a (des)continuidade das iniciativas anteriores e a sua importância na constituição de um projecto de arte portuguesa de vanguarda, constando fundamentalmente de três secções: documentação, realizações objectivas e acontecimentos. (...) Da exposição constaria ainda uma homenagem a Almada Negreiros como percursor do modernismo português.«Se a arte dos anos sessenta portugueses, na óptica de António Rodrigues, incorporou a procura e a experimentação como propósitos abertos da criação e da pesquisa, ou, na opinião de Bernardo Pinto de Almeida, foi transformada por uma longa mudança de estatuto, de sentido, de função e de intenção, que se

vinha afastando já da pureza ideológica do modernismo histórico, acompanhada por um processo internacional que questionava o próprio conceito de vanguarda; os anos setenta pautaram-se por uma abertura – inclusivamente do ponto de vista político e social, com a revolução de 25 de Abril de 1974 e a consequente derrocada da ditadura – de todo um rol inédito de possibilidades de criação e perspectivas de renovação. Foi a época de FESTA, de militância e dos eventos artísticos colectivos “ao serviço do Povo”, desde as pinturas murais “da revolução”, até ao incremento de um modo de operar mais ligado à exaltação do artista/criador, na procura de uma identidade artística, estética e mesmo poética. Foi igualmente a altura da expressão longamente contida e dos slogans: “A arte fascista faz mal à vista” (Marcelino Vespeira), “Contra a agressividade, criatividade”, ou “A qualidade estética é progressista; a mediocridade é reaccionária” (Salette Tavares).

Arte Capital, “Anos 70 – Atravessar Fronteiras”, Isabel Nogueira, 26-10-2009

Contudo, a necessária revolução, num país fechado, conservador e pleno de urgências, conheceu

contornos complexos e até contraditórios, inclusivamente do ponto de vista das artes plásticas.

Na verdade, nesta jovem democracia verificou-se alguma dificuldade governamental no âmbito da gestão

cultural, continuando a cumprir-se uma falta de articulação entre os diferentes intervenientes

e projectos, nomeadamente, ao nível da criação de um verdadeiro museu de arte moderna/ contemporânea,

da dinamização do mercado da arte e da reestruturação do ensino superior artístico.

{

Exposição “Alternativa Zero”, 1977

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Mas é durante esta década que se vão dar dois acontecimentos decisivos: o primeiro foi a revolução de 25 de Abril de 1974 que transformou o país não só no plano político, histórico e económico, como também culturalmente, o que no sector das artes se reflectiu através da mobilização feita pelos artistas que mandaram petições e projectos aos órgãos competentes do Estado e colocaram lá representantes, como aconteceu com João Vieira, Fernando Calhau, Julião Sarmento na Direcção Geral de Acção Cultural, ou através de agrupamentos de artistas em associações e movimentos de espírito revolucionário, que pretendiam uma aproximação entre arte esociedade e cujas acções, raramente obtinham adesão por parte dessa mesma sociedade; o segundo foi a “Alternativa Zero”, acontecimento incontornável da cultura portuguesa. A “Alternativa Zero” organizada pelo pintor (operador estético) e crítico Ernesto de Sousa em 1977, na Galeria Nacional de Arte Moderna, foi uma mostra de novas formas de artes que o Governo tornou pública, cujo resultado foi a realização de uma inter-relação de novas formas e o reconhecimento geral da importância da vanguarda, o que foi, ao mesmo tempo uma aposta e um desafio. (...) No discurso de Ernesto de Sousa, aparece a ideia de um estado zero que a que todos os caminhos vão dar. (...) Com a exposição pensava-se criar um tempo e um espaço de reflexão sobre as realizações de arte portuguesa (...) Pretendia-se, reflectir também sobre a (des)continuidade das iniciativas anteriores e a sua importância na constituição de um projecto de arte portuguesa de vanguarda, constando fundamentalmente de três secções: documentação, realizações objectivas e acontecimentos. (...) Da exposição constaria ainda uma homenagem a Almada Negreiros como percursor do modernismo português.«Se a arte dos anos sessenta portugueses, na óptica de António Rodrigues, incorporou a procura e a experimentação como propósitos abertos da criação e da pesquisa, ou, na opinião de Bernardo Pinto de Almeida, foi transformada por uma longa mudança de estatuto, de sentido, de função e de intenção, que se

vinha afastando já da pureza ideológica do modernismo histórico, acompanhada por um processo internacional que questionava o próprio conceito de vanguarda; os anos setenta pautaram-se por uma abertura – inclusivamente do ponto de vista político e social, com a revolução de 25 de Abril de 1974 e a consequente derrocada da ditadura – de todo um rol inédito de possibilidades de criação e perspectivas de renovação. Foi a época de FESTA, de militância e dos eventos artísticos colectivos “ao serviço do Povo”, desde as pinturas murais “da revolução”, até ao incremento de um modo de operar mais ligado à exaltação do artista/criador, na procura de uma identidade artística, estética e mesmo poética. Foi igualmente a altura da expressão longamente contida e dos slogans: “A arte fascista faz mal à vista” (Marcelino Vespeira), “Contra a agressividade, criatividade”, ou “A qualidade estética é progressista; a mediocridade é reaccionária” (Salette Tavares).

Arte Capital, “Anos 70 – Atravessar Fronteiras”, Isabel Nogueira, 26-10-2009

Contudo, a necessária revolução, num país fechado, conservador e pleno de urgências, conheceu

contornos complexos e até contraditórios, inclusivamente do ponto de vista das artes plásticas.

Na verdade, nesta jovem democracia verificou-se alguma dificuldade governamental no âmbito da gestão

cultural, continuando a cumprir-se uma falta de articulação entre os diferentes intervenientes

e projectos, nomeadamente, ao nível da criação de um verdadeiro museu de arte moderna/ contemporânea,

da dinamização do mercado da arte e da reestruturação do ensino superior artístico.

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Exposição “Alternativa Zero”, 1977

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A limitação do título deste capítulo à década de 70 não significa que durante estes anos os pensamentos e práticas artísticas se tenham distinguido tão bruscamente das décadas anteriores e posteriores. Trata-se simplesmente da década em que se situam os casos de estudo desta dissertação e portanto foi neste sentido que foi efectuada uma maior pesquisa sobre este período. Pretende-se, com este capítulo, contextualizar o desenvolvimento do meio artístico em Portugal nos anos 70, focando sobretudo os principais pontos cruciais, com base numa bibliografia seleccionada. Os anos 70 em Portugal, nos campos político, económico e artístico, subdividem-se pelo menos em dois momentos distintos, antes e depois da Revolução de 25 de Abril de 1974. O final dos anos 60 é marcado pela tomada de posse de Marcelo Caetano, em 1968, e pelo regresso de artistas bolseiros que se encontravam a estudar no estrangeiro, na sua maioria apoiados pela Fundação Calouste Gulbenkian, que desde 1956, tornou possível e mais facilitado o contacto com a arte que vigorava internacionalmente. Anteriormente ao referido apoio proporcionado aos artistas era nítido o isolamento do país relativamente aos movimentos artísticos contemporâneos que se desenvolviam no estrangeiro. Apesar da tomada de posse de Marcelo Caetano ter trazido alguma confiança e esperança no que diz respeito à ditadura que se vivia até então, no que toca à arte, não foram muitas as mudanças, pois o apoio estatal no campo da arte contemporânea continuou quase inexistente. Surge nessa altura, contudo, um incentivo para apostas de instituições privadas na arte contemporânea portuguesa com publicidade e divulgação como contrapartida. É o caso, entre outros, dos Prémios Soquil, entre 1968 e 1972, que destacaram e premiaram alguns dos artistas mais marcantes da época. É também nesta altura, final dos anos 60, início dos anos 70, que se desenvolve uma crítica de arte mais activa. Realiza-se o I Encontro de Críticos de Arte Portugueses (1967) sob a responsabilidade da AICA (Associação Internacional de Críticos de Arte) em Portugal, reestruturada em 1968. Este papel mais activo da crítica de arte em Portugal desencadeou o aparecimento de algumas publicações cruciais na compreensão do panorama nacional artístico

da época, nomeadamente o suplemento da revista Arquitectura, com o nome de Pintura e Não (apenas publicado de Abril de 1969 a Agosto de 1970) sob responsabilidade da AICA, e mais tarde a Colóquio Artes, em 1971, com a direcção de José Augusto França. Este, Rui Mário Gonçalves, Fernando Pernes, Egídio Álvaro e Francisco Bronze foram alguns dos críticos activos da época, os mesmos que mais tarde descrevem detalhadamente estas décadas em livros e publicações.

O aparecimento de novas galerias – como por exemplo a Dinastia (1968), São Mamede (1969), Judite Dacruz (1969), Quadrante (1969) e mais tarde a Quadrum (1973), entre outras – permitiu o crescimento da valorizaçãoda arte contemporânea, como alternativa ao gosto do naturalismo oitocentista das encomendas oficiais até então ou do modernismo oficial, desenvolvendo uma inflação do valor das obras apresentadas. (...) O ano de 1973 é também marcado por duas exposições na SNBA (Sociedade Nacional de Belas Artes), a “26 Artistas Hoje” (incluindo alguns trabalhos dos prémios Soquil) e a “Exposição 73” (com obras polémicas como a escultura de Clara Menéres

e a performance de inauguração de João Vieira, que envolve uma mulher nua pintada de dourado), e ainda pela

» Mariana de Campos, Tese “Curadoria como possível estratégia de conservação?”, Estudo de duas obras apresentadas na exposição Alternativa Zero, Lisboa, 2011

“Jaz morto e arrefece o menino de sua mãe”

execução da escultura de D.Sebastião, de João Cutileiro (em Lagos), que “assinala a ruptura com uma penosa tradição de estatuária fascista”. Ainda não tinha sucedido a revolução de Abril e as actividades artísticas, algumas não censuradas, abalavam preconceitos, eram polémicas e criticadas na sociedade.A revolução de 25 de Abril propriamente dita não teve repercussões directas no campo artístico, visto ser permanente a ausência de políticas culturais adequadas. Desencadeou no entanto,uma maior aproximação dos artistas à população, através de manifestações festivas, partidárias, provocatórias e colectivas. O 10 de Junho de 1974 é marcado pela pintura de 48 pintores num painel colectivo, em Belém, dedicado aos capitães de Abril, impulsionado pelo Movimento Democrático dos Artistas Plásticos criado na Sociedade Nacional de Belas Artes e ainda pelo acto performativo, no Porto, do “Funeral” do Museu Nacional Soares dos Reis sob responsabilidade de membros da Cooperativa Árvore, que se indignavam perante o sistema museológico português. Realizaram-se também, com alguma frequência,

A crítica de arte contemporânea, nacional e internacional, juntamente com o aparecimento de novos espaços expositivos comerciais, vêm impulsionar a dinamização do mercado de arte.

Inauguração “Alternativa Zero”, 1977

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A limitação do título deste capítulo à década de 70 não significa que durante estes anos os pensamentos e práticas artísticas se tenham distinguido tão bruscamente das décadas anteriores e posteriores. Trata-se simplesmente da década em que se situam os casos de estudo desta dissertação e portanto foi neste sentido que foi efectuada uma maior pesquisa sobre este período. Pretende-se, com este capítulo, contextualizar o desenvolvimento do meio artístico em Portugal nos anos 70, focando sobretudo os principais pontos cruciais, com base numa bibliografia seleccionada. Os anos 70 em Portugal, nos campos político, económico e artístico, subdividem-se pelo menos em dois momentos distintos, antes e depois da Revolução de 25 de Abril de 1974. O final dos anos 60 é marcado pela tomada de posse de Marcelo Caetano, em 1968, e pelo regresso de artistas bolseiros que se encontravam a estudar no estrangeiro, na sua maioria apoiados pela Fundação Calouste Gulbenkian, que desde 1956, tornou possível e mais facilitado o contacto com a arte que vigorava internacionalmente. Anteriormente ao referido apoio proporcionado aos artistas era nítido o isolamento do país relativamente aos movimentos artísticos contemporâneos que se desenvolviam no estrangeiro. Apesar da tomada de posse de Marcelo Caetano ter trazido alguma confiança e esperança no que diz respeito à ditadura que se vivia até então, no que toca à arte, não foram muitas as mudanças, pois o apoio estatal no campo da arte contemporânea continuou quase inexistente. Surge nessa altura, contudo, um incentivo para apostas de instituições privadas na arte contemporânea portuguesa com publicidade e divulgação como contrapartida. É o caso, entre outros, dos Prémios Soquil, entre 1968 e 1972, que destacaram e premiaram alguns dos artistas mais marcantes da época. É também nesta altura, final dos anos 60, início dos anos 70, que se desenvolve uma crítica de arte mais activa. Realiza-se o I Encontro de Críticos de Arte Portugueses (1967) sob a responsabilidade da AICA (Associação Internacional de Críticos de Arte) em Portugal, reestruturada em 1968. Este papel mais activo da crítica de arte em Portugal desencadeou o aparecimento de algumas publicações cruciais na compreensão do panorama nacional artístico

da época, nomeadamente o suplemento da revista Arquitectura, com o nome de Pintura e Não (apenas publicado de Abril de 1969 a Agosto de 1970) sob responsabilidade da AICA, e mais tarde a Colóquio Artes, em 1971, com a direcção de José Augusto França. Este, Rui Mário Gonçalves, Fernando Pernes, Egídio Álvaro e Francisco Bronze foram alguns dos críticos activos da época, os mesmos que mais tarde descrevem detalhadamente estas décadas em livros e publicações.

O aparecimento de novas galerias – como por exemplo a Dinastia (1968), São Mamede (1969), Judite Dacruz (1969), Quadrante (1969) e mais tarde a Quadrum (1973), entre outras – permitiu o crescimento da valorizaçãoda arte contemporânea, como alternativa ao gosto do naturalismo oitocentista das encomendas oficiais até então ou do modernismo oficial, desenvolvendo uma inflação do valor das obras apresentadas. (...) O ano de 1973 é também marcado por duas exposições na SNBA (Sociedade Nacional de Belas Artes), a “26 Artistas Hoje” (incluindo alguns trabalhos dos prémios Soquil) e a “Exposição 73” (com obras polémicas como a escultura de Clara Menéres

e a performance de inauguração de João Vieira, que envolve uma mulher nua pintada de dourado), e ainda pela

» Mariana de Campos, Tese “Curadoria como possível estratégia de conservação?”, Estudo de duas obras apresentadas na exposição Alternativa Zero, Lisboa, 2011

“Jaz morto e arrefece o menino de sua mãe”

execução da escultura de D.Sebastião, de João Cutileiro (em Lagos), que “assinala a ruptura com uma penosa tradição de estatuária fascista”. Ainda não tinha sucedido a revolução de Abril e as actividades artísticas, algumas não censuradas, abalavam preconceitos, eram polémicas e criticadas na sociedade.A revolução de 25 de Abril propriamente dita não teve repercussões directas no campo artístico, visto ser permanente a ausência de políticas culturais adequadas. Desencadeou no entanto,uma maior aproximação dos artistas à população, através de manifestações festivas, partidárias, provocatórias e colectivas. O 10 de Junho de 1974 é marcado pela pintura de 48 pintores num painel colectivo, em Belém, dedicado aos capitães de Abril, impulsionado pelo Movimento Democrático dos Artistas Plásticos criado na Sociedade Nacional de Belas Artes e ainda pelo acto performativo, no Porto, do “Funeral” do Museu Nacional Soares dos Reis sob responsabilidade de membros da Cooperativa Árvore, que se indignavam perante o sistema museológico português. Realizaram-se também, com alguma frequência,

A crítica de arte contemporânea, nacional e internacional, juntamente com o aparecimento de novos espaços expositivos comerciais, vêm impulsionar a dinamização do mercado de arte.

Inauguração “Alternativa Zero”, 1977

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intervenções sociais performativas, de grupos como o Acre e o Puzzle, com iniciativas particulares, provocatórias e de contacto directo com o “povo”, numa atitude conceptual e crítica, ligada à função social da arte e do artista.

Junto às questões políticas e revolucionárias, foi desenvolvido durante estes anos, e ao longo de toda a década, um “processo” de emancipação da mulher, defendido pela artista Clara Menéres, entre outras, com abordagens críticas no campo do erotismo, do corpo, da identidade e do preconceito social.(...)O alargamento dos meios de expressão permitiu a quase abolição dos limites da tela na grade e moldura e da escultura no plinto. A Quadrum foi, deste modo, uma forte base de sobrevivência nos tempos difíceis que se ultrapassavam, que com a dificuldade acrescida de um mercado agora estagnado, permitiu o desencadear de aventurosos e inovadores caminhos. Uma das performances marcantes desta época foi “Rotura” (1977), de Ana Hatherly, realizada na galeria Quadrum. Esta obra, filmada e fotografada por Jorge Molder, interferiu criticamente com a arte mais tradicional e com o mercado artístico. A fotografia e o filme, novos meios de expressão, aparecem assim também como aliados documentais do momento de performance. A partir de 1976 a Quadrum contava com iniciativas do crítico José Ernesto de Sousa que desde o início da década impulsionava uma arte experimental, a par do contexto internacional das vanguardas conceptualistas. Depois de conhecer a obra de Sol Lewitt em 1971 e de visitar a V Documenta de Kassel, em 1972, em que teve um contacto directo com as ideias de Harald Szeemann e com a obra que Joseph Beuys aí apresentou, de contacto e discussão directa com o público, Ernesto de Sousa tenta cessar o isolamento artístico português, importando e defendendo de forma crítica e incentivadora o papel activo do espectador (abolindo a fronteira entre a obra e o seu público), a essência do lado processual, o artista como “operador estético”, a obra de arte como “obra aberta”, experimental e por vezes efémera. Tendo-se dedicado ao cinema e à estética neorealista (sobretudo nos anos 40 e 50) e só mais tarde interessado na vanguarda, sobretudo na arte conceptual,

o percurso de Ernesto de Sousa pode ser considerado um caminho descontínuo, tema explorado e aprofundado por autores como João Fernandes, Miguel Wandschneider, Miguel Leal e Mariana Pinto dos Santos, em diferentes leituras e opiniões. Ernesto de Sousa intitulava-se um herdeiro das ideias de Almada Negreiros, considerando-o um modelo a seguir, um artista ideal e completo, assumindo, na definição de um projecto de vanguarda, que era necessário regressar a um passado. Ernesto de Sousa defendia as manifestações colectivas, o convívio, a valorização do efémero, a relação da arte com a vida, influenciado profundamente pelo movimento internacional Fluxus (por meio de Filliou, George Brecht e Vostell).É durante uma viagem a Itália, no verão de 1969 que Ernesto de Sousa participa no I Festival de Arte Colectiva “11 Giorni a Pejo” (organizado por Bruno Munari) e contacta diversos artistas e começa a construir alguns projectos críticos e vanguardistas. Nesses projectos, “Encontros no Guincho” (1969), “Nós não estamos algures” (1969), “O meu corpo é o teu corpo” (1971), apresenta propostas de happening e performance, e em encontros da AICA na SNBA, em 1972 com “Do Vazio à Pro-Vocação” e em 1974 com “Projectos-Ideias”, Ernesto de Sousa mostra exposições que vinculam o lado experimental, processual, conceptual e de vanguarda que vinha defendendo. Utilizando as palavras de Miguel Wandschneider,

“O artista passava a ser encarado como um ‘operador estético’, não mais por referência exclusiva ou privilegiada a um ou outro género, podendo utilizar todo e qualquer meio de expressão, no que correspondeu a um movimento de des-hierarquização e subversão de autonomia dos géneros artísticos e de des-especialização da práctica artística. Simultaneamente, a obra passava a ser concebida como ‘aberta’, eminentemente experimental, eventualmente efémera, abandonando a segurança dos códigos estabelecidos para incorporar a indeterminação e imprevisibilidade do processo de realização. Finalmente, o público era chamado a participar activamente na definição da obra, segundo uma concepção que punha em causa e pretendia utopicamente abolir a fronteira que o separava do artista e da obra”. Ernesto de Sousa, apresenta mais tarde, como projecto paradigmático da época, a Alternativa Zero: Tendências Polémicas na Arte Portuguesa Contemporânea, em 1977, na Galeria Nacional de Arte Moderna de Belém, centro expositivo presidido na altura por João Vieira.Entretanto, realiza-se em 1976 o I Congresso Internacional da AICA em Portugal, presidido por Salette Tavares. Esta, como outras iniciativas do mesmo tipo, contribuíram para uma maior aproximação da arte com o público e para reafirmar o que tinha sido sugerido pelas vanguardas experimentais, processuais e por vezes sociais, dos projectos de Ernesto

*

“O artista passava a ser encarado como um

‘operador estético’, (...) podendo utilizar todo e qualquer meio

de expressão.”

Para além destas acções, foram comuns atitudes efémeras de cidadãos, não artistas,

maioritariamente partidárias e políticas, através de cartazes, panfletos,

comunicados e graffitis.

Melo e Castro, “Não há Sinais Inocentes”

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intervenções sociais performativas, de grupos como o Acre e o Puzzle, com iniciativas particulares, provocatórias e de contacto directo com o “povo”, numa atitude conceptual e crítica, ligada à função social da arte e do artista.

Junto às questões políticas e revolucionárias, foi desenvolvido durante estes anos, e ao longo de toda a década, um “processo” de emancipação da mulher, defendido pela artista Clara Menéres, entre outras, com abordagens críticas no campo do erotismo, do corpo, da identidade e do preconceito social.(...)O alargamento dos meios de expressão permitiu a quase abolição dos limites da tela na grade e moldura e da escultura no plinto. A Quadrum foi, deste modo, uma forte base de sobrevivência nos tempos difíceis que se ultrapassavam, que com a dificuldade acrescida de um mercado agora estagnado, permitiu o desencadear de aventurosos e inovadores caminhos. Uma das performances marcantes desta época foi “Rotura” (1977), de Ana Hatherly, realizada na galeria Quadrum. Esta obra, filmada e fotografada por Jorge Molder, interferiu criticamente com a arte mais tradicional e com o mercado artístico. A fotografia e o filme, novos meios de expressão, aparecem assim também como aliados documentais do momento de performance. A partir de 1976 a Quadrum contava com iniciativas do crítico José Ernesto de Sousa que desde o início da década impulsionava uma arte experimental, a par do contexto internacional das vanguardas conceptualistas. Depois de conhecer a obra de Sol Lewitt em 1971 e de visitar a V Documenta de Kassel, em 1972, em que teve um contacto directo com as ideias de Harald Szeemann e com a obra que Joseph Beuys aí apresentou, de contacto e discussão directa com o público, Ernesto de Sousa tenta cessar o isolamento artístico português, importando e defendendo de forma crítica e incentivadora o papel activo do espectador (abolindo a fronteira entre a obra e o seu público), a essência do lado processual, o artista como “operador estético”, a obra de arte como “obra aberta”, experimental e por vezes efémera. Tendo-se dedicado ao cinema e à estética neorealista (sobretudo nos anos 40 e 50) e só mais tarde interessado na vanguarda, sobretudo na arte conceptual,

o percurso de Ernesto de Sousa pode ser considerado um caminho descontínuo, tema explorado e aprofundado por autores como João Fernandes, Miguel Wandschneider, Miguel Leal e Mariana Pinto dos Santos, em diferentes leituras e opiniões. Ernesto de Sousa intitulava-se um herdeiro das ideias de Almada Negreiros, considerando-o um modelo a seguir, um artista ideal e completo, assumindo, na definição de um projecto de vanguarda, que era necessário regressar a um passado. Ernesto de Sousa defendia as manifestações colectivas, o convívio, a valorização do efémero, a relação da arte com a vida, influenciado profundamente pelo movimento internacional Fluxus (por meio de Filliou, George Brecht e Vostell).É durante uma viagem a Itália, no verão de 1969 que Ernesto de Sousa participa no I Festival de Arte Colectiva “11 Giorni a Pejo” (organizado por Bruno Munari) e contacta diversos artistas e começa a construir alguns projectos críticos e vanguardistas. Nesses projectos, “Encontros no Guincho” (1969), “Nós não estamos algures” (1969), “O meu corpo é o teu corpo” (1971), apresenta propostas de happening e performance, e em encontros da AICA na SNBA, em 1972 com “Do Vazio à Pro-Vocação” e em 1974 com “Projectos-Ideias”, Ernesto de Sousa mostra exposições que vinculam o lado experimental, processual, conceptual e de vanguarda que vinha defendendo. Utilizando as palavras de Miguel Wandschneider,

“O artista passava a ser encarado como um ‘operador estético’, não mais por referência exclusiva ou privilegiada a um ou outro género, podendo utilizar todo e qualquer meio de expressão, no que correspondeu a um movimento de des-hierarquização e subversão de autonomia dos géneros artísticos e de des-especialização da práctica artística. Simultaneamente, a obra passava a ser concebida como ‘aberta’, eminentemente experimental, eventualmente efémera, abandonando a segurança dos códigos estabelecidos para incorporar a indeterminação e imprevisibilidade do processo de realização. Finalmente, o público era chamado a participar activamente na definição da obra, segundo uma concepção que punha em causa e pretendia utopicamente abolir a fronteira que o separava do artista e da obra”. Ernesto de Sousa, apresenta mais tarde, como projecto paradigmático da época, a Alternativa Zero: Tendências Polémicas na Arte Portuguesa Contemporânea, em 1977, na Galeria Nacional de Arte Moderna de Belém, centro expositivo presidido na altura por João Vieira.Entretanto, realiza-se em 1976 o I Congresso Internacional da AICA em Portugal, presidido por Salette Tavares. Esta, como outras iniciativas do mesmo tipo, contribuíram para uma maior aproximação da arte com o público e para reafirmar o que tinha sido sugerido pelas vanguardas experimentais, processuais e por vezes sociais, dos projectos de Ernesto

*

“O artista passava a ser encarado como um

‘operador estético’, (...) podendo utilizar todo e qualquer meio

de expressão.”

Para além destas acções, foram comuns atitudes efémeras de cidadãos, não artistas,

maioritariamente partidárias e políticas, através de cartazes, panfletos,

comunicados e graffitis.

Melo e Castro, “Não há Sinais Inocentes”

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Inauguração Alternativa Zero, Ana Hatherly, Rotura, 1977

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“Anulação dos objectos,

desmaterialização da arte,

corrente cuja definição

mais rigorosa vai da queda

objectiva da obra de arte

ao nível da mercadoria (já

anunciada por Hegel), à negação

da forma-objecto na chamada

arte pobre, à substituição

de objectos criados pelos

próprios actos da criação

(‘quando as atitudes se tornam

formas’) à arte conceptual

(‘art as idea as idea’). Neste

domínio certas experiências

como a body art e o artista-

como-obra-de-arte encontram

uma definição particular.”

Ernesto Sousa

de Sousa, abrindo o campo de expressão artística para novos meios como a fotografia, a imagem em movimento e o corpo. A exposição Alternativa Zero tinha sido pensada para ocorrer na mesma altura do encontro da AICA, para desta forma adquirir uma projecção internacional, mas devido a atrasos financeiros, acabou por apenas se realizar no ano seguinte. Foi o primeiro projecto assumido pela Secretaria de Estado da Cultura, dirigida por Eduardo Prado Coelho, destacando as ideias que Ernesto de Sousa vinha defendendo até então. (...)Regressando ao panorama artístico geral do país, e para terminar esta breve síntese, em 1978 realiza- se a I Bienal Internacional de Artes Plásticas de Vila Nova de Cerveira e em 1979, também organizada pela SEC, a Lis’79, Exposição Internacional de Desenho de Lisboa. A Lis’79 teve lugar igualmente na Galeria de Belém, a qual posteriormente na sua segunda edição em 1981, sofreu um violento incêndio ainda antes da inauguração, que acaba por destruir todas as obras que nela estavam incluídas. Face a estes acontecimentos, e em jeito de conclusão, podemos afirmar que os anos 70 foram anos de um profundo desenvolvimento da crítica de arte que se vinha afirmando desde os anos 60 e de uma consequente dinamização do mercado artístico, o qual apresenta posteriormente a sua maior crise.

É também durante estes anos que são exteriorizados no campo dos meios de expressão artística novos caminhos: valorização do espectador, do aspecto processual, do experimentalismo, do convívio, do colectivo, dos ambientes artísticos sem barreiras e das vanguardas conceptuais tendo como principal dinamizador Ernesto de Sousa, possibilitando a quebra do isolamento que existia em Portugal relativamente ao mundo artístico internacional e ainda devido ao conjunto de artistas que estudaram no estrangeiro com bolsas da Fundação Calouste Gulbenkian. São anos também distinguidos pela motivação artística por parte de empresas privadas e pela contínua inércia por parte do Estado, que apenas no final da década começa a dar algum sinal no campo de apoios na arte contemporânea. »

“valorização do espectador, do aspecto processual, do experimentalismo,

do convívio, do colectivo, dos ambientes artísticos sem barreiras e das vanguardas conceptuais (...)”

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“Anulação dos objectos,

desmaterialização da arte,

corrente cuja definição

mais rigorosa vai da queda

objectiva da obra de arte

ao nível da mercadoria (já

anunciada por Hegel), à negação

da forma-objecto na chamada

arte pobre, à substituição

de objectos criados pelos

próprios actos da criação

(‘quando as atitudes se tornam

formas’) à arte conceptual

(‘art as idea as idea’). Neste

domínio certas experiências

como a body art e o artista-

como-obra-de-arte encontram

uma definição particular.”

Ernesto Sousa

de Sousa, abrindo o campo de expressão artística para novos meios como a fotografia, a imagem em movimento e o corpo. A exposição Alternativa Zero tinha sido pensada para ocorrer na mesma altura do encontro da AICA, para desta forma adquirir uma projecção internacional, mas devido a atrasos financeiros, acabou por apenas se realizar no ano seguinte. Foi o primeiro projecto assumido pela Secretaria de Estado da Cultura, dirigida por Eduardo Prado Coelho, destacando as ideias que Ernesto de Sousa vinha defendendo até então. (...)Regressando ao panorama artístico geral do país, e para terminar esta breve síntese, em 1978 realiza- se a I Bienal Internacional de Artes Plásticas de Vila Nova de Cerveira e em 1979, também organizada pela SEC, a Lis’79, Exposição Internacional de Desenho de Lisboa. A Lis’79 teve lugar igualmente na Galeria de Belém, a qual posteriormente na sua segunda edição em 1981, sofreu um violento incêndio ainda antes da inauguração, que acaba por destruir todas as obras que nela estavam incluídas. Face a estes acontecimentos, e em jeito de conclusão, podemos afirmar que os anos 70 foram anos de um profundo desenvolvimento da crítica de arte que se vinha afirmando desde os anos 60 e de uma consequente dinamização do mercado artístico, o qual apresenta posteriormente a sua maior crise.

É também durante estes anos que são exteriorizados no campo dos meios de expressão artística novos caminhos: valorização do espectador, do aspecto processual, do experimentalismo, do convívio, do colectivo, dos ambientes artísticos sem barreiras e das vanguardas conceptuais tendo como principal dinamizador Ernesto de Sousa, possibilitando a quebra do isolamento que existia em Portugal relativamente ao mundo artístico internacional e ainda devido ao conjunto de artistas que estudaram no estrangeiro com bolsas da Fundação Calouste Gulbenkian. São anos também distinguidos pela motivação artística por parte de empresas privadas e pela contínua inércia por parte do Estado, que apenas no final da década começa a dar algum sinal no campo de apoios na arte contemporânea. »

“valorização do espectador, do aspecto processual, do experimentalismo,

do convívio, do colectivo, dos ambientes artísticos sem barreiras e das vanguardas conceptuais (...)”

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VANGUARDA

Ana Hathely, “Rotura”, 1977

“Esta vanguarda não provoca, porque a provocação é hoje o sono da vanguarda. Esta vanguarda alterna. Esta vanguarda revoga.”

» Ernesto de Sousa, “Uma criação consciente de situações: Alternativa Zero”

Ana Hathely, “Rotura”, 1977

CONCEITO

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VANGUARDA

Ana Hathely, “Rotura”, 1977

“Esta vanguarda não provoca, porque a provocação é hoje o sono da vanguarda. Esta vanguarda alterna. Esta vanguarda revoga.”

» Ernesto de Sousa, “Uma criação consciente de situações: Alternativa Zero”

Ana Hathely, “Rotura”, 1977

CONCEITO

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A política cultural do país era definida pela Secretaria de Estado da Cultura, na qual estiveram representantes dos artistas e dos críticos até 1977. Mas a evolução artística em Portugal não foi fácil nem imediata. As propostas da Escola Superior de Belas-Artes de Lisboa, resultantes de reuniões e de discussões entre docentes e alunos (1974-1975), só em 1978 seriam aceites - propostas, em grande medida , elaboradas por Rocha de Sousa. A cultura estava longe de ser o que mais preocupava os vários Governos. O país pautava-se por uma política cultural ausente ou mal fundamentada. Os Governos revelaram-se incapazes de fomentar programas coerentes. Eram as consequências de uma democracia jovem e agitada. (...)Com o I Governo Constitucional foi, finalmente, viável uma certa descentralização cultural e a realização, com solo português, em Setembro de 1976, de um Congresso Internacional da AICA (Associação Internacional de Críticos de Artes), organizada pelos membros da direcção da Secção Portuguesa, presidida por Salette Tavares. A discussões debruçaram-se sobre o tema Arte Negro-Africana e Arte Moderna, Relações Recíprocas. Este acontecimento chamou a atenção para a necessidade de se incrementar, no nosso país, um estudo teórico e mais aprofundado em torno da crítica e das questões artísticas.A AICA solicitou ainda a realização de mais três exposições na capital e uma na cidade do Porto. Uma das exposições lisboetas – A Alternatiza Zero – seria concretizada, só em 1977, na Galeria Nacional de Artes Moderna de Belém e entregue à direcção de José Ernesto de Sousa (1921-1988), crítico de arte, escritor, jornalista, editor, coleccionador e cineasta – “figura catalisadora” de um modo de ver a arte da década de setenta.

Ernesto de Sousa aderira com entusiasmo às novas expressões artísticas, nomeadamente ao neo-realismo. Em 1969 participara no I Festival de Arte Colectiva, em Itália, em 1972 visitara a Documenta 5, em Kassel – factor de suma importância para a consequente divulgação da obra de Joseph Beuys em Portugal –, ao mesmo tempo que o movimento Fluxus se tornava numa influência marcante para o organizador da Alternativa Zero.(...) Ainda antes de se proceder a uma avaliação crítica da Alternativa Zero, devem-se tecer algumas considerações a respeito da situação artística portuguesa contemporânea a esta exposição particularmente no que se refere à temática desta estudo: o pós-modernismo. Segundo João Lima Pinharanda: «É uma década [1970] contraditória e complexa. No seu aspecto mais publicitado foi um período de consagração, por aprofundamento ou maturidade, de artistas revelados na década anterior; foi ainda a década de maior dinamismo no mercado da arte… e da sua maior crise. No seu lado

Do pós-modernismo à exposição Alternativa ZeroIsabel Nogueira

“É uma década contraditória e complexa.”

{

menos conhecido, (…) a década deus visibilidade às actividades de acompanhamento do pós-conceptualismo internacional. (…) que pouco ou nada têm a ver com os conceitos tradicionais de pintura ou escultura». Sabemos que Portugal não esteve em posição cimeira no que se refere à arte moderna, exceptuando, talvez, a geração de Orpheu. Esta foi a causa das escassas referências à teoria da arte portuguesa nesta caminho para a compreensão do conceito de pós-modernismo.Apesar das dificuldades, a abertura do regime foi determinante também para a arte. No entanto, e como escreve Isabel Carlos: «O fim do regime ditatorial provoca no campo das artes um duplo efeito. Por um lado, desfaz a ilusão nascida em anos anteriores, que fazia supor a existência de um mercado de arte em Portugal (…) Por outro lado, este mesmo factor, aliado à abertura do País ao exterior, possibilita uma real libertação, que no campo artístico passa pela descoberta, tardia em relação à Europa e aos Estados Unidos, da arte conceptual». O gosto da classe dominante ainda estava preso ao naturalismo oitocentista, apensar de ser possível observar uma notável diversidade de tendências, de trabalhos, de temáticas e de técnicas utilizadas – os eventos

Jorge Peixinho e Ernesto de Sousa, Documentação Fotográfica de “Luís Vaz 73”, Alternativa Zero, 1997

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A política cultural do país era definida pela Secretaria de Estado da Cultura, na qual estiveram representantes dos artistas e dos críticos até 1977. Mas a evolução artística em Portugal não foi fácil nem imediata. As propostas da Escola Superior de Belas-Artes de Lisboa, resultantes de reuniões e de discussões entre docentes e alunos (1974-1975), só em 1978 seriam aceites - propostas, em grande medida , elaboradas por Rocha de Sousa. A cultura estava longe de ser o que mais preocupava os vários Governos. O país pautava-se por uma política cultural ausente ou mal fundamentada. Os Governos revelaram-se incapazes de fomentar programas coerentes. Eram as consequências de uma democracia jovem e agitada. (...)Com o I Governo Constitucional foi, finalmente, viável uma certa descentralização cultural e a realização, com solo português, em Setembro de 1976, de um Congresso Internacional da AICA (Associação Internacional de Críticos de Artes), organizada pelos membros da direcção da Secção Portuguesa, presidida por Salette Tavares. A discussões debruçaram-se sobre o tema Arte Negro-Africana e Arte Moderna, Relações Recíprocas. Este acontecimento chamou a atenção para a necessidade de se incrementar, no nosso país, um estudo teórico e mais aprofundado em torno da crítica e das questões artísticas.A AICA solicitou ainda a realização de mais três exposições na capital e uma na cidade do Porto. Uma das exposições lisboetas – A Alternatiza Zero – seria concretizada, só em 1977, na Galeria Nacional de Artes Moderna de Belém e entregue à direcção de José Ernesto de Sousa (1921-1988), crítico de arte, escritor, jornalista, editor, coleccionador e cineasta – “figura catalisadora” de um modo de ver a arte da década de setenta.

Ernesto de Sousa aderira com entusiasmo às novas expressões artísticas, nomeadamente ao neo-realismo. Em 1969 participara no I Festival de Arte Colectiva, em Itália, em 1972 visitara a Documenta 5, em Kassel – factor de suma importância para a consequente divulgação da obra de Joseph Beuys em Portugal –, ao mesmo tempo que o movimento Fluxus se tornava numa influência marcante para o organizador da Alternativa Zero.(...) Ainda antes de se proceder a uma avaliação crítica da Alternativa Zero, devem-se tecer algumas considerações a respeito da situação artística portuguesa contemporânea a esta exposição particularmente no que se refere à temática desta estudo: o pós-modernismo. Segundo João Lima Pinharanda: «É uma década [1970] contraditória e complexa. No seu aspecto mais publicitado foi um período de consagração, por aprofundamento ou maturidade, de artistas revelados na década anterior; foi ainda a década de maior dinamismo no mercado da arte… e da sua maior crise. No seu lado

Do pós-modernismo à exposição Alternativa ZeroIsabel Nogueira

“É uma década contraditória e complexa.”

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menos conhecido, (…) a década deus visibilidade às actividades de acompanhamento do pós-conceptualismo internacional. (…) que pouco ou nada têm a ver com os conceitos tradicionais de pintura ou escultura». Sabemos que Portugal não esteve em posição cimeira no que se refere à arte moderna, exceptuando, talvez, a geração de Orpheu. Esta foi a causa das escassas referências à teoria da arte portuguesa nesta caminho para a compreensão do conceito de pós-modernismo.Apesar das dificuldades, a abertura do regime foi determinante também para a arte. No entanto, e como escreve Isabel Carlos: «O fim do regime ditatorial provoca no campo das artes um duplo efeito. Por um lado, desfaz a ilusão nascida em anos anteriores, que fazia supor a existência de um mercado de arte em Portugal (…) Por outro lado, este mesmo factor, aliado à abertura do País ao exterior, possibilita uma real libertação, que no campo artístico passa pela descoberta, tardia em relação à Europa e aos Estados Unidos, da arte conceptual». O gosto da classe dominante ainda estava preso ao naturalismo oitocentista, apensar de ser possível observar uma notável diversidade de tendências, de trabalhos, de temáticas e de técnicas utilizadas – os eventos

Jorge Peixinho e Ernesto de Sousa, Documentação Fotográfica de “Luís Vaz 73”, Alternativa Zero, 1997

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Aspecto Parcial Vendo-se Contribuições de Noronha da Costa e Melo e Castro

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Consolidemos a visão de vanguarda de Ernesto de Sousa, agora não repostada especificamente à Alternativa Zero, mas numa perspectiva mais geral. O autor dividiu o sentido da vanguarda em negativo e positivo. Negativamente, a vanguarda seria a recusa e destruição de todo o objectivo estético separado da praxis vital, elitista, com funções de prestigio social, de divertimento ou de espectáculo independente da própria vida ; o combate ao consumismo e à distância entre espectador e obra de arte; o combate ao belo (kitsch) e ao acessível. Positivamente, a vanguarda procuraria a obra de arte como processo – a obra aberta seria um caso particular –, no qual se deveria valorizar o efémero, o simultâneo; a vanguarda procuraria a globalização, a descoberta de novas estruturas e o envolvimento; a participação, a acção, a vocação didáctica da actividade estática; utilizaria a provocação (“pró-vocação”) e o humor como técnicas, bem como todos o tipo de materiais, desejaria uma sociedade socialista na qual a utopia serviria o presente.Deste foi de características que Ernesto de Sousa atribuiu à vanguarda, surpreendentemente , apenas duas se encontram declaradamente fora do quadro proposto por Ihab Hassan, reproduzido atrás, quando este caracterizou o pós-modernismo. Vejamos: se o primeiro autor entendeu a vanguarda como continuadora das descobertas dadaístas, como portadora de um conceito de obra de arte aberta, transformável, work in progress; o segundo observou que o pós-modernismo se inspira grandemente no dadaísmo, que pratica a antiforma (disjuntiva, aberta). Se um remeteu para o efémero e o antielitismo; o outro remeteu para o acaso e para a anarquia; mas ambos remeteram para o processo, a performance e o happening, bem como para a obra de arte

participada e para o calor do desejo. Comparativamente, Ernesto de Sousa referiu-se à valorização do simultâneo e Hassan da combinação. Se o primeiro defendeu uma proximidade entre espectador e obra de arte; o segundo falou da imanência pós-moderna.

Se um chamou a atenção para a ligação da arte às leis do mercado,à comunicação de massas, aos especialistas de informação; o outro advertiu para a indeterminação da arte pós-moderna. Finalmente, Ernesto de Sousa referiu-se a um corte epistemológico inseparável de um conjunto importante de mudanças (económicas, políticas, culturais, socais), enquanto Hassan à antinarrativa.De facto, o que verdadeiramente afasta a caracterização de vanguarda (segundo a ideia de Ernesto de Sousa) da de pós-modernismo (proposta por Hassan) é o facto de a primeira pretender, por um lado, identificar o objecto artístico com a praxis vital do homem e, por outro, combater o consumismo, aspirando

Por este motivo, segundo o autor, em Belém não havia – na sua concepção – “objectos”, “negações de liberdade”.

Ernesto de Sousa valorizou o humor e a provocação; Hassan caracterizou o pós-modernismo como irónico.

a uma sociedade socialista – tratando-se também de um investimento político e ideológico. De tudo isto, talvez possamos concluir que a negação da arte autónoma é realmente panágio da vanguarda histórica, mas incompatível com uma sociedade em profunda agitação e mudança como é a sociedade pós-moderna. Ernesto de Sousa, indivíduo atento, parece ter-se apercebido claramente destas mudanças.A ideia de vanguarda que propôs assemelha-se mais a uma ideia romântica, desejável, utópica, que parece já não encontrar lugar na sociedade de consumo, a que tantas vezes se referiu. Ernesto de Sousa traçou as grandes directrizes da vanguarda mas, ao especificá-la, verificamos que – acabou, enfim, por também considerar o pós-modernismo. Nas palavras de José Augusto França: «A vocação antropológica do organizador, dentro da cultura portuguesa, evita-lhe enganos sociais, para cair, fatalmente, em ilusões menos sociais do que ele supõe ou pode supor».(…)Debrucemo-nos agora sobre a polémica desencadeada entre Rocha de Sousa e Ernesto de Sousa, a propósito deste evento. Não obstante reconhecer a importância da exposição, Rocha de Sousa não se escusou de referir que se tratou de um conjunto de obras importadas, embora isso fosse natural pois vivia-se numa época veloz. Neste sentido, a maioria das vanguardas não sobreviveria ao tempo. A grande questão, segundo o teórico, era a de saber se este projecto cultural pretendia transferir a vanguarda internacional ou ajustar-se à nossa realidade, reinventando . Na verdade, as propostas apresentadas em Belém não pareciam coincidir com as necessidades do país real, embora levantassem a necessidade de questionar o nosso projecto para o futuro. Rocha de Sousa, noutro texto, lamentou o facto de esta questão

“(...) a negação da arte

autónoma é realmente

panágio da vanguarda

histórica (...)”

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Consolidemos a visão de vanguarda de Ernesto de Sousa, agora não repostada especificamente à Alternativa Zero, mas numa perspectiva mais geral. O autor dividiu o sentido da vanguarda em negativo e positivo. Negativamente, a vanguarda seria a recusa e destruição de todo o objectivo estético separado da praxis vital, elitista, com funções de prestigio social, de divertimento ou de espectáculo independente da própria vida ; o combate ao consumismo e à distância entre espectador e obra de arte; o combate ao belo (kitsch) e ao acessível. Positivamente, a vanguarda procuraria a obra de arte como processo – a obra aberta seria um caso particular –, no qual se deveria valorizar o efémero, o simultâneo; a vanguarda procuraria a globalização, a descoberta de novas estruturas e o envolvimento; a participação, a acção, a vocação didáctica da actividade estática; utilizaria a provocação (“pró-vocação”) e o humor como técnicas, bem como todos o tipo de materiais, desejaria uma sociedade socialista na qual a utopia serviria o presente.Deste foi de características que Ernesto de Sousa atribuiu à vanguarda, surpreendentemente , apenas duas se encontram declaradamente fora do quadro proposto por Ihab Hassan, reproduzido atrás, quando este caracterizou o pós-modernismo. Vejamos: se o primeiro autor entendeu a vanguarda como continuadora das descobertas dadaístas, como portadora de um conceito de obra de arte aberta, transformável, work in progress; o segundo observou que o pós-modernismo se inspira grandemente no dadaísmo, que pratica a antiforma (disjuntiva, aberta). Se um remeteu para o efémero e o antielitismo; o outro remeteu para o acaso e para a anarquia; mas ambos remeteram para o processo, a performance e o happening, bem como para a obra de arte

participada e para o calor do desejo. Comparativamente, Ernesto de Sousa referiu-se à valorização do simultâneo e Hassan da combinação. Se o primeiro defendeu uma proximidade entre espectador e obra de arte; o segundo falou da imanência pós-moderna.

Se um chamou a atenção para a ligação da arte às leis do mercado,à comunicação de massas, aos especialistas de informação; o outro advertiu para a indeterminação da arte pós-moderna. Finalmente, Ernesto de Sousa referiu-se a um corte epistemológico inseparável de um conjunto importante de mudanças (económicas, políticas, culturais, socais), enquanto Hassan à antinarrativa.De facto, o que verdadeiramente afasta a caracterização de vanguarda (segundo a ideia de Ernesto de Sousa) da de pós-modernismo (proposta por Hassan) é o facto de a primeira pretender, por um lado, identificar o objecto artístico com a praxis vital do homem e, por outro, combater o consumismo, aspirando

Por este motivo, segundo o autor, em Belém não havia – na sua concepção – “objectos”, “negações de liberdade”.

Ernesto de Sousa valorizou o humor e a provocação; Hassan caracterizou o pós-modernismo como irónico.

a uma sociedade socialista – tratando-se também de um investimento político e ideológico. De tudo isto, talvez possamos concluir que a negação da arte autónoma é realmente panágio da vanguarda histórica, mas incompatível com uma sociedade em profunda agitação e mudança como é a sociedade pós-moderna. Ernesto de Sousa, indivíduo atento, parece ter-se apercebido claramente destas mudanças.A ideia de vanguarda que propôs assemelha-se mais a uma ideia romântica, desejável, utópica, que parece já não encontrar lugar na sociedade de consumo, a que tantas vezes se referiu. Ernesto de Sousa traçou as grandes directrizes da vanguarda mas, ao especificá-la, verificamos que – acabou, enfim, por também considerar o pós-modernismo. Nas palavras de José Augusto França: «A vocação antropológica do organizador, dentro da cultura portuguesa, evita-lhe enganos sociais, para cair, fatalmente, em ilusões menos sociais do que ele supõe ou pode supor».(…)Debrucemo-nos agora sobre a polémica desencadeada entre Rocha de Sousa e Ernesto de Sousa, a propósito deste evento. Não obstante reconhecer a importância da exposição, Rocha de Sousa não se escusou de referir que se tratou de um conjunto de obras importadas, embora isso fosse natural pois vivia-se numa época veloz. Neste sentido, a maioria das vanguardas não sobreviveria ao tempo. A grande questão, segundo o teórico, era a de saber se este projecto cultural pretendia transferir a vanguarda internacional ou ajustar-se à nossa realidade, reinventando . Na verdade, as propostas apresentadas em Belém não pareciam coincidir com as necessidades do país real, embora levantassem a necessidade de questionar o nosso projecto para o futuro. Rocha de Sousa, noutro texto, lamentou o facto de esta questão

“(...) a negação da arte

autónoma é realmente

panágio da vanguarda

histórica (...)”

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permanecer sem resposta: «O ciclo sobre Almada Negreiros acabará por revelar (…) que a escolaridade mimética da maior parte das experiências da “Alternativa” se distância irremediavelmente do verdadeiro sentido indagador do artista e porta da “relação 9-10”».A estas observações, Ernesto de Sousa reagiu com alguma violência verbal, acusando Rocha de Sousa de ser precipitado, de se fechar à compreensão do outro, de ser pacato e cumpridor, de dar classificações professorais, de criar falsos problemas, de ter medo da novidade, enfim, de ser um académico. Ernesto de Sousa defendia a versatilidade de leituras e inclusivamente o mimetismo, já que este implicava um verdadeiro conhecimento do que teria sido este implicava um verdadeiro conhecimento do que teria sido mimeticamente imitado, algo que Rocha de Sousa desconheceria. (…)José Luís Porfírio escreve também neste sentido: «Nestes vinte anos “Alternativa Zero” foi-se instituindo como muito mais do que uma memória, como uma presença contínua, uma referência em que o real e o imaginário se misturam, e onde o desejo da memória é a memória do desejo (…) Nestes últimos vinte anos a moda, e a arte sua associada, aceleram ainda mais a produção e a obsolescência dos objectos artísticos e antiartísticos, e, agora, hoje, podemos estar perante um outro Zero sem vanguarda que é coisa que já não se conhece, e, sem mitos, porque já não há crenças, nem narrativas, que os fundamentam. Assim o verdadeiro Zero seria hoje?». Exposta a polémica e as grandes questões que a Alternativa Zero levantou e evidenciada a sua importância em 1977 e vinte anos depois, enfim, como situá-la face à vanguarda e ao pós-modernismo?

Devemos reconhecer – tal como José-Augusto França, João Lima Pinharanda e José Luís Porfírio – que a Alternativa Zero representou, entre nós, o culminar ou a aponteose de um período, o período das vanguardas. Neste sentido, a exposição encerrou um ciclo, em jeito de balanço. Todavia, atendendo ao que ficou exposto, também parece claro que esse fim já se sentia lá fora e, no nosso país, esta situação também seria perceptível, uma espécie de “crónica de uma morte anunciada”. Quer isto dizer que já se pretendia que o que se podia observar na exposição não era exactamente novo, vanguardista, mas uma reapropriação ou reinvenção da vanguarda, se assim se poderá chamar, possivelmente de acordo com os meios portugueses.Devemos ainda considerar a ideia de vanguarda, expressão de uma vivência na qual Ernesto de Sousa fundamentou o evento, este situado num tempo e num espaço em rápida mutação. Por outro lado, e se conferirmos atenção às obras de Joana Rosa, André Gomes, Leonel Moura, Victor Pomar, Ana Vieira, entre

8.3. Alternativa Zero: entre o fim de um ciclo e o começo de um novo

“Assim o verdadeiro Zero seria hoje?”

outros, não estaremos perante fugas à narratividade, paródias, pastiches, reinvenções? Não foi também a Alternativa um espaço privilegiado para a mescla e interacção de linguagens – performance, pintura, escultura, video, música –, de certo modo inéditas em Portugal? Aos poucos, formava-se uma geração de transição e surgiam novas sensibilidades. Em 1983 realizava-se a exposição Depois e Modernismo (SNBA), organizada por Luís Serpa, Cerveira Pinto e Leonel Moura, que juntou dezasseis artistas plásticos e cinquenta arquitectos. A principal plataforma de onde partiram os intervenientes foi justamente a Alternativa Zero. (…)

Em conclusão, devemos considerar

a Alternativa Zero um marco

na arte e cultura portuguesas.

Por um lado, representou um fim,

inclusivamente porque alguns

artistas começaram e terminaram

pouco depois as suas carreiras.

Não terá existido, em várias

situações, uma continuidade. Por

outro lado, o evento terá sido

um começo. (O começo de outra

reflexão crítica artística,

o começo visível da interacção

entre as várias artes, enfim,

o começo da preparação do olhar

para um modo novo de ver

a arte e, porque não, o começo

da experimentação de valores

estáticos pós-modernos. E, na

estreia de Bürger, não podemos

esquecer que, na verdade,

os precursores são sempre

descobertos a posteriori…» Isabel Nogueira 1974, “Do pós-modernismo à exposição

Alternativa Zero”, Lisboa: Vega, 2007

Fernando Calhau, “Espaço-Tempo-Mar” (pormenor)

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permanecer sem resposta: «O ciclo sobre Almada Negreiros acabará por revelar (…) que a escolaridade mimética da maior parte das experiências da “Alternativa” se distância irremediavelmente do verdadeiro sentido indagador do artista e porta da “relação 9-10”».A estas observações, Ernesto de Sousa reagiu com alguma violência verbal, acusando Rocha de Sousa de ser precipitado, de se fechar à compreensão do outro, de ser pacato e cumpridor, de dar classificações professorais, de criar falsos problemas, de ter medo da novidade, enfim, de ser um académico. Ernesto de Sousa defendia a versatilidade de leituras e inclusivamente o mimetismo, já que este implicava um verdadeiro conhecimento do que teria sido este implicava um verdadeiro conhecimento do que teria sido mimeticamente imitado, algo que Rocha de Sousa desconheceria. (…)José Luís Porfírio escreve também neste sentido: «Nestes vinte anos “Alternativa Zero” foi-se instituindo como muito mais do que uma memória, como uma presença contínua, uma referência em que o real e o imaginário se misturam, e onde o desejo da memória é a memória do desejo (…) Nestes últimos vinte anos a moda, e a arte sua associada, aceleram ainda mais a produção e a obsolescência dos objectos artísticos e antiartísticos, e, agora, hoje, podemos estar perante um outro Zero sem vanguarda que é coisa que já não se conhece, e, sem mitos, porque já não há crenças, nem narrativas, que os fundamentam. Assim o verdadeiro Zero seria hoje?». Exposta a polémica e as grandes questões que a Alternativa Zero levantou e evidenciada a sua importância em 1977 e vinte anos depois, enfim, como situá-la face à vanguarda e ao pós-modernismo?

Devemos reconhecer – tal como José-Augusto França, João Lima Pinharanda e José Luís Porfírio – que a Alternativa Zero representou, entre nós, o culminar ou a aponteose de um período, o período das vanguardas. Neste sentido, a exposição encerrou um ciclo, em jeito de balanço. Todavia, atendendo ao que ficou exposto, também parece claro que esse fim já se sentia lá fora e, no nosso país, esta situação também seria perceptível, uma espécie de “crónica de uma morte anunciada”. Quer isto dizer que já se pretendia que o que se podia observar na exposição não era exactamente novo, vanguardista, mas uma reapropriação ou reinvenção da vanguarda, se assim se poderá chamar, possivelmente de acordo com os meios portugueses.Devemos ainda considerar a ideia de vanguarda, expressão de uma vivência na qual Ernesto de Sousa fundamentou o evento, este situado num tempo e num espaço em rápida mutação. Por outro lado, e se conferirmos atenção às obras de Joana Rosa, André Gomes, Leonel Moura, Victor Pomar, Ana Vieira, entre

8.3. Alternativa Zero: entre o fim de um ciclo e o começo de um novo

“Assim o verdadeiro Zero seria hoje?”

outros, não estaremos perante fugas à narratividade, paródias, pastiches, reinvenções? Não foi também a Alternativa um espaço privilegiado para a mescla e interacção de linguagens – performance, pintura, escultura, video, música –, de certo modo inéditas em Portugal? Aos poucos, formava-se uma geração de transição e surgiam novas sensibilidades. Em 1983 realizava-se a exposição Depois e Modernismo (SNBA), organizada por Luís Serpa, Cerveira Pinto e Leonel Moura, que juntou dezasseis artistas plásticos e cinquenta arquitectos. A principal plataforma de onde partiram os intervenientes foi justamente a Alternativa Zero. (…)

Em conclusão, devemos considerar

a Alternativa Zero um marco

na arte e cultura portuguesas.

Por um lado, representou um fim,

inclusivamente porque alguns

artistas começaram e terminaram

pouco depois as suas carreiras.

Não terá existido, em várias

situações, uma continuidade. Por

outro lado, o evento terá sido

um começo. (O começo de outra

reflexão crítica artística,

o começo visível da interacção

entre as várias artes, enfim,

o começo da preparação do olhar

para um modo novo de ver

a arte e, porque não, o começo

da experimentação de valores

estáticos pós-modernos. E, na

estreia de Bürger, não podemos

esquecer que, na verdade,

os precursores são sempre

descobertos a posteriori…» Isabel Nogueira 1974, “Do pós-modernismo à exposição

Alternativa Zero”, Lisboa: Vega, 2007

Fernando Calhau, “Espaço-Tempo-Mar” (pormenor)

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“A verdadeira criatividade é sempre também geradora de instabilidade”

» Ernesto de Sousa, “Ser Moderno... em Portugal”

Ernesto de Sousa (1921-1988), Lisboa

ERNESTO DE SOUSA

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“A verdadeira criatividade é sempre também geradora de instabilidade”

» Ernesto de Sousa, “Ser Moderno... em Portugal”

Ernesto de Sousa (1921-1988), Lisboa

ERNESTO DE SOUSA

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«Eis o nosso tempo: subitamente reconheceu-se o poder das palavras. Fazer gato sapato, claro, todos o podem. Utilizar mesmo indignamente a palavra amor socialismo liberdade irmãos camarada ou revolução. Ou ingenuamente ó revolução meu amor. Dizer: eu te amo ou independência libertação poder povo. Dizer povo. Desculpar se com o povo em nome do povo arte para o povo bonecos para o povo. Bailarinas em tutu palácios para o povo o metropolitano de Moscovo. Um palácio para o povo que ainda ontem hoje vivia em isbas de madeira. E porque não? Um discurso para o povo. Esse discurso é sempre uma vitória do povo. Um respeito. Obrigado a negociar, o patrão diz Vossa Excelência ou Camarada ao delegado sindical. Dobra a língua. Reverencia. E o mundo é outro apesar de o poder estar longe de deixar de o ser. Deitar fora ou esquecer todos as antigas excelências falar arraia miúda social democracia. Absolutamente novo absolutamente começar rotura. E até as palavras aparentemente gastas arte cultura. Ou a sua contestação semântica anti-cultura anti- arte. E a palavra alternativa. Sim, um parêntesis, a palavra alternativa. Depois falaremos do zero. Da estrutura (Eternal Network querido Filliou). Depois falaremos do rigor. Rigor sim meu amor como a honestidade de quem nunca foi órfão do pai. Porque o Pai era bom. Como um guru, como Almada Negreiros, como um bom conselheiro: aquele que dá tudo, porque só lhe interessa começar.

Os campus americanos dos anos sessenta. A luta contra a guerra iníqua e mais a tecnologia e os futuros watergates para esquecer tudo. A luta pela informação a contra cultura a lembrança de Fourier

o falanstério a Comuna e as comunas a vida colectiva e apaixonada. A consciência (no fundo marxista, leia se todo o Marcuse, até o W. Reich) de que o verdadeiro começar é uma distância e o paradise now uma utopia para já. E de que é no entanto, na distância, na América que se fará a revolução. Que o mundo novo será no Mundo Novo. E que isso é longe como a queda de todos os ídolos falsos, de dos os sistemas de empobrecimento

e contenção como esperar e o que vier virá; como: mundus senescit. Entretanto nascer, começar, absolutamente de novo, ser moderno, tanto faz a palavra de Rimbaud. Porque na verdade quando eu nasci isso tinha acontecido. E tinha morrido. Entretanto tinham me também ensinado as palavras, as quase situações, tinham cientificamente (fenomenologia, Husserl, topologia) preparado os novos instrumentos, as ferramentas da verdadeira liberdade (Marx, Husserl, Saussure, Freud, Duchamp... e mais Marcel Mauss, todos os outros, e mesmo

O COMEÇAR. Alternativa. Alternativa.

Un mot un point: c’est tout. Un mot un point. As palavras vanguarda começar.

» Ernesto de Sousa, Uma criação consciente de situações: Alternativa Zero, in Colóquio Artes, nr. 34, Out. 1977

as contradições). Entretanto tinham me ensinado a semântica e maisa semiologia as palavras. Foi nesse quadro que surgiu a ideia a palavra alternativa. Não esperar. Lutar (como um militante do futuro, engagé dizia se quando se dizia les lendemains qui chantent) sim engagé militante e o que for da táctica e dos ensinamentos de Maquiavel se necessário. Mas entretanto alternativamente viver a plenos pulmões ó alegria ó alegria ó alegria. Lutar e porque alternativamente viver. Viver a plena alegria e porque alternativamente lutar. Mas claro, como todo o tempo isto foi um tempo. As palavras ainda não estavam assim tão defendidas. Ainda delas um mau uso é de esperar. Ainda a qualquer hora o diabo vem. Diabos diabinhos domésticos mas de trazer por casa pode ser a nossa casa e a nossa casa um mundo o mundo. Aqui ó jardim da europa à beira mar plantado dar novos mundos ao mundo. Aqui apesar de tudo os teus seios e os teus também. Porque uns e outros convergem para mim meu orgasmo. Como as tuas imensas coxas se me sabes ler nas entrelinhas e até julgam eles-elas que machista a virilidade.As encobertas pedras do megalítico, os menhirs, os cromeleques. Almendros Monsaraz a reforma agrária o querido Henrique de Barros e claro o Álvaro Cunhal também o culto fálico todas essas contradições eu digo sem

Ernesto de Sousa, capa “Revolution My Body”

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«Eis o nosso tempo: subitamente reconheceu-se o poder das palavras. Fazer gato sapato, claro, todos o podem. Utilizar mesmo indignamente a palavra amor socialismo liberdade irmãos camarada ou revolução. Ou ingenuamente ó revolução meu amor. Dizer: eu te amo ou independência libertação poder povo. Dizer povo. Desculpar se com o povo em nome do povo arte para o povo bonecos para o povo. Bailarinas em tutu palácios para o povo o metropolitano de Moscovo. Um palácio para o povo que ainda ontem hoje vivia em isbas de madeira. E porque não? Um discurso para o povo. Esse discurso é sempre uma vitória do povo. Um respeito. Obrigado a negociar, o patrão diz Vossa Excelência ou Camarada ao delegado sindical. Dobra a língua. Reverencia. E o mundo é outro apesar de o poder estar longe de deixar de o ser. Deitar fora ou esquecer todos as antigas excelências falar arraia miúda social democracia. Absolutamente novo absolutamente começar rotura. E até as palavras aparentemente gastas arte cultura. Ou a sua contestação semântica anti-cultura anti- arte. E a palavra alternativa. Sim, um parêntesis, a palavra alternativa. Depois falaremos do zero. Da estrutura (Eternal Network querido Filliou). Depois falaremos do rigor. Rigor sim meu amor como a honestidade de quem nunca foi órfão do pai. Porque o Pai era bom. Como um guru, como Almada Negreiros, como um bom conselheiro: aquele que dá tudo, porque só lhe interessa começar.

Os campus americanos dos anos sessenta. A luta contra a guerra iníqua e mais a tecnologia e os futuros watergates para esquecer tudo. A luta pela informação a contra cultura a lembrança de Fourier

o falanstério a Comuna e as comunas a vida colectiva e apaixonada. A consciência (no fundo marxista, leia se todo o Marcuse, até o W. Reich) de que o verdadeiro começar é uma distância e o paradise now uma utopia para já. E de que é no entanto, na distância, na América que se fará a revolução. Que o mundo novo será no Mundo Novo. E que isso é longe como a queda de todos os ídolos falsos, de dos os sistemas de empobrecimento

e contenção como esperar e o que vier virá; como: mundus senescit. Entretanto nascer, começar, absolutamente de novo, ser moderno, tanto faz a palavra de Rimbaud. Porque na verdade quando eu nasci isso tinha acontecido. E tinha morrido. Entretanto tinham me também ensinado as palavras, as quase situações, tinham cientificamente (fenomenologia, Husserl, topologia) preparado os novos instrumentos, as ferramentas da verdadeira liberdade (Marx, Husserl, Saussure, Freud, Duchamp... e mais Marcel Mauss, todos os outros, e mesmo

O COMEÇAR. Alternativa. Alternativa.

Un mot un point: c’est tout. Un mot un point. As palavras vanguarda começar.

» Ernesto de Sousa, Uma criação consciente de situações: Alternativa Zero, in Colóquio Artes, nr. 34, Out. 1977

as contradições). Entretanto tinham me ensinado a semântica e maisa semiologia as palavras. Foi nesse quadro que surgiu a ideia a palavra alternativa. Não esperar. Lutar (como um militante do futuro, engagé dizia se quando se dizia les lendemains qui chantent) sim engagé militante e o que for da táctica e dos ensinamentos de Maquiavel se necessário. Mas entretanto alternativamente viver a plenos pulmões ó alegria ó alegria ó alegria. Lutar e porque alternativamente viver. Viver a plena alegria e porque alternativamente lutar. Mas claro, como todo o tempo isto foi um tempo. As palavras ainda não estavam assim tão defendidas. Ainda delas um mau uso é de esperar. Ainda a qualquer hora o diabo vem. Diabos diabinhos domésticos mas de trazer por casa pode ser a nossa casa e a nossa casa um mundo o mundo. Aqui ó jardim da europa à beira mar plantado dar novos mundos ao mundo. Aqui apesar de tudo os teus seios e os teus também. Porque uns e outros convergem para mim meu orgasmo. Como as tuas imensas coxas se me sabes ler nas entrelinhas e até julgam eles-elas que machista a virilidade.As encobertas pedras do megalítico, os menhirs, os cromeleques. Almendros Monsaraz a reforma agrária o querido Henrique de Barros e claro o Álvaro Cunhal também o culto fálico todas essas contradições eu digo sem

Ernesto de Sousa, capa “Revolution My Body”

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vergonha e só enrubescendo um pouco como um adolescente a minha pátria. Uma história a respeitar.

Palavras, conceitos, mitos, rios maiores. Palavras como vanguarda, o novo, rotura, subversão e alternativa embora de história mais recente, ou liberdade e as outras que sabeis. Que sabeis dizeis ou não porque no «fundo de um leito antigo» podeis ter perdido toda a razão mas não nem uma migalha do saber. E é de sabedoria que eu falo.Portanto alternativa, agora justiça lhe seja feita, para o future e a família das palavras que ao futuro se referem. Justiça que exigia rigor. Rigor obstinado, radical, implacável. Tu podes-me falar de não-obra.Eu bem te entendo, não há obra-de-arte senão integralmente vivida eternal network ou se quiseres é rigorosamente o mesmo a poesia deve ser feita por todos o poder a quem trabalha, etc. Entretanto volta contra o diabo as armas do diabo (isto é as nossas que o diabo nos roubou). Se me queres falar de uma arte pobre, Germain Celant, de uma expressão minimal ou mesmo do silêncio, Guy Debord, Cage, é sempre uma atitude que tem que tomar forma, discurso, e em última análise, palavra. Que nunca será palavra, isto é liberdade, sem um discurso, e em última análise, palavra. Que nunca será palavra, isto é liberdade, sem um discurso...contra o qual a palavra e começar se conjugam.

Aqui também a luta é de palavras. Palavras que valem não sei quantos mas muitos quilos de trotil, e mais ainda muitas motas, picaretas.

Daí o rigor, daí a importância das

nossas camaradas as «mulheres

da limpeza» a obra bem feita,

os competentes carpinteiros,

pintores (de parede), electricistas.

Daí a importância de reconhecer

humildemente as nossas

responsabilidades didácticas. Daí o zero o rigor. Começar. Paraíso Perdido? Paraíso

Reencontrado. A árvore da vida.

A leste do paraíso deus colocou um

anjo com uma espada de fogo para

guardar o caminho que conduz ao pé

de. Desejo de. Atravessaremos estes

desertos enfrentaremos as espadas

de fogo? não sei, não sabemos.

mas há outro caminho? (...)

Mentir, ou partir do zero. Talvez

seja sempre esta a verdade

e o reconheceremos facilmente

quando dispusermos dessa ciência

das situações que tanto nos falta.

Mas para já agora que se deslaçaram

as malhas que o império tece,

porque esperamos?»

Ernesto de sousa ou a difícil responsabilidade da desordem

«A difícil responsabilidade da desordem» é o sub-título de um artigo que Ernesto de Sousa escreveu acerca da minha obra, e em particular acerca da minha participação na Alternativa Zero em 1977, publicado no n.º 36 da Revista COLÓQUIO/ARTES em Março de 1978. Decorridos 24 anos sobre a publicação dessa frase, a meus olhos ela surge agora como uma emblemática definição não só de todo o meu trabalho mas também de toda a actividade criativamente subvertora do próprio Ernesto de Sousa, que pode ainda ser aplicada com notável rigor a toda a acção de vanguarda, do século XX ou de qualquer época, já que a responsabilidade da desordem é o que todos os inovadores basicamente assumem como seu projecto, como seu programa de acção. Quanto a mim, a Alternatiza Zero foi, em Portugal, um exemplo, talvez o exemplo mais exacto da materialização desse conceito.No volume Perspectiva: Alternatiza Zero que funcionou como catálogo da exposição que ocorreu no Porto, na Fundação de Serralves em 1997, pela qual se tentou reconstituir o que tinha sido a Alternativa Zero 20 anos antes, no texto inicial, da autoria de João Fernandes, encontraremos significativas citações de escritos de Ernesto de Sousa através das quais se descobre uma espécie de auto-retrato do teorizador-crítico-de-arte que ele foi, mas que nunca deixou de ser também um criador, ou melhor, na minha própria terminologia, um verdadeiro calculador de improbabilidades, um explorador de universos a descobrir ou a reinventar, a reler ou a des-ler para de novo calcular, determinar, avaliar, conjecturando desconhecidas possibilidades.Assim, o criador deixa de ser um fingidor para se tornar um investigador que persegue vestígios procurando novas pistas, novos contextos, novos materiais, novas maneiras de fazer, ver, pensar

Ana Hatherly

“(...) nunca deixou de ser também um criador,

ou melhor, (...), um verdadeiro calculador de improbabilidades”

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vergonha e só enrubescendo um pouco como um adolescente a minha pátria. Uma história a respeitar.

Palavras, conceitos, mitos, rios maiores. Palavras como vanguarda, o novo, rotura, subversão e alternativa embora de história mais recente, ou liberdade e as outras que sabeis. Que sabeis dizeis ou não porque no «fundo de um leito antigo» podeis ter perdido toda a razão mas não nem uma migalha do saber. E é de sabedoria que eu falo.Portanto alternativa, agora justiça lhe seja feita, para o future e a família das palavras que ao futuro se referem. Justiça que exigia rigor. Rigor obstinado, radical, implacável. Tu podes-me falar de não-obra.Eu bem te entendo, não há obra-de-arte senão integralmente vivida eternal network ou se quiseres é rigorosamente o mesmo a poesia deve ser feita por todos o poder a quem trabalha, etc. Entretanto volta contra o diabo as armas do diabo (isto é as nossas que o diabo nos roubou). Se me queres falar de uma arte pobre, Germain Celant, de uma expressão minimal ou mesmo do silêncio, Guy Debord, Cage, é sempre uma atitude que tem que tomar forma, discurso, e em última análise, palavra. Que nunca será palavra, isto é liberdade, sem um discurso, e em última análise, palavra. Que nunca será palavra, isto é liberdade, sem um discurso...contra o qual a palavra e começar se conjugam.

Aqui também a luta é de palavras. Palavras que valem não sei quantos mas muitos quilos de trotil, e mais ainda muitas motas, picaretas.

Daí o rigor, daí a importância das

nossas camaradas as «mulheres

da limpeza» a obra bem feita,

os competentes carpinteiros,

pintores (de parede), electricistas.

Daí a importância de reconhecer

humildemente as nossas

responsabilidades didácticas. Daí o zero o rigor. Começar. Paraíso Perdido? Paraíso

Reencontrado. A árvore da vida.

A leste do paraíso deus colocou um

anjo com uma espada de fogo para

guardar o caminho que conduz ao pé

de. Desejo de. Atravessaremos estes

desertos enfrentaremos as espadas

de fogo? não sei, não sabemos.

mas há outro caminho? (...)

Mentir, ou partir do zero. Talvez

seja sempre esta a verdade

e o reconheceremos facilmente

quando dispusermos dessa ciência

das situações que tanto nos falta.

Mas para já agora que se deslaçaram

as malhas que o império tece,

porque esperamos?»

Ernesto de sousa ou a difícil responsabilidade da desordem

«A difícil responsabilidade da desordem» é o sub-título de um artigo que Ernesto de Sousa escreveu acerca da minha obra, e em particular acerca da minha participação na Alternativa Zero em 1977, publicado no n.º 36 da Revista COLÓQUIO/ARTES em Março de 1978. Decorridos 24 anos sobre a publicação dessa frase, a meus olhos ela surge agora como uma emblemática definição não só de todo o meu trabalho mas também de toda a actividade criativamente subvertora do próprio Ernesto de Sousa, que pode ainda ser aplicada com notável rigor a toda a acção de vanguarda, do século XX ou de qualquer época, já que a responsabilidade da desordem é o que todos os inovadores basicamente assumem como seu projecto, como seu programa de acção. Quanto a mim, a Alternatiza Zero foi, em Portugal, um exemplo, talvez o exemplo mais exacto da materialização desse conceito.No volume Perspectiva: Alternatiza Zero que funcionou como catálogo da exposição que ocorreu no Porto, na Fundação de Serralves em 1997, pela qual se tentou reconstituir o que tinha sido a Alternativa Zero 20 anos antes, no texto inicial, da autoria de João Fernandes, encontraremos significativas citações de escritos de Ernesto de Sousa através das quais se descobre uma espécie de auto-retrato do teorizador-crítico-de-arte que ele foi, mas que nunca deixou de ser também um criador, ou melhor, na minha própria terminologia, um verdadeiro calculador de improbabilidades, um explorador de universos a descobrir ou a reinventar, a reler ou a des-ler para de novo calcular, determinar, avaliar, conjecturando desconhecidas possibilidades.Assim, o criador deixa de ser um fingidor para se tornar um investigador que persegue vestígios procurando novas pistas, novos contextos, novos materiais, novas maneiras de fazer, ver, pensar

Ana Hatherly

“(...) nunca deixou de ser também um criador,

ou melhor, (...), um verdadeiro calculador de improbabilidades”

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Frame do filme “Almada, um Nome de Guerra”, Ernesto de Sousa, 1969

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«ALMADA é um nome da minha

guerra. Há muito que

estou extraordinariamente

interessado pelo paradoxo

e pela paradoxologia. Quanto

à minha guerra, ela consiste

no meu interesse em combater

uma ideia que é a morte»,

diz Ernesto de Sousa que

apresenta nos dias 10

e 11, à noite, no Centro

de Arte Moderna, a primeira

apresentação pública de

«Almada, Um Nome de Guerra».

Trata-se de um multimédia.

Na sala polivalente daquele

Centro, seis projectores

vão evocar a figura de Almada

Negreiros: «As imagens

sobrepõem-se, vêm abruptamente

ou em infusão. Há uma

projecção de cinema ao fundo

da sala, outra projecção

rasante na parede direita

e duas, também rasantes,

na parede esquerda.»

Obcessivamente, o retrato de Almada Negreiros (para as pessoas o descobrirem) encherá a sala. Na sala, Ernesto de Sousa vai «comandar» a mistura de duas bandas sonoras, uma gravação com música repetitiva de pescadores algarvios e outra de textos musicais de artistas que colaboram neste projecto desde Jorge Peixinho e Lopes da Silva e Helena Cáudio.Ligado ao cinema («Dom Roberto»), ao teatro e às artes plásticas, Ernesto de Sousa, hoje com 63 anos, foi uma vez definido por Eduardo de Prado Coelho como um «militante cultural ». A pesquisa de formas de expressão vanguardista tem feito parte do seu itinerário.Fala do anticinema, do cinema em expansão e do cinema psicadélico. O seu multi-média pretende pôr as pessoas a conviverem com Almada Negreiros, no espaço de uma sala. Frases do autor da «Invenção do Dia Claro», ditas por ele próprio, serão ouvidas durante os 45 minutos desta apresentação. As últimas, a fechar as diversas projecções de imagem e mistura de som, são as seguintes: «No fundo, as coisas estão certíssimas.»

“Almada É um Nome da Minha Guerra”, in A Capital, 6 de Setembro de 1984

Frame do filme “Almada, um Nome de Guerra”, Ernesto de Sousa, 1969

Almada É um Nome da Minha Guerra

«Podia ser esta a melhor das definições de uma arte multimedia, mas Ernesto de Sousa falava com as palavras a seguir citadas, na verdade, da vida tal como a via o olhar abrangente de Almada Negreiros: «Sentir tudo de todas as maneiras viver tudo de todos os lados/ser a mesma coisa de todos os modos possíveis/ ao mesmo tempo/Realizar em si toda a realidade de todos/ os momentos/ num só momento difuso profuso completo e/ longinquo. Eu quero ser sempre aquilo com que simpatizo.»0 pioneiro do multimedia português nunca filmou ou fotografou Almada considerando-o um objecto passivo. Compreendendo a dupla caracterização do Mestre enquanto interprete da realidade ou enquanto visionário, entregou-lhe o papel, teatral necessariamente, do ancião que tudo absorve, com a sua lente perspectiva. Numa conversa registada em fita com o autor do mural «Começar», de que poderemos acompanhar, algumas passagens nas presentes sessões, Ernesto de Sousa afirma claramente: «0 Almada é que tem a resposta.» Explicou-o, aliás, todas as vezes que teve ocasião de dissertar sobre os objectivos últimos de Almada, Nome de Guerra, dizendo do filme, o do complexo multimedia que à sua volta foi estruturando, tratar-se de «uma revisão crítica da cultura e da arte portuguesas, com base numa das mais extraordinárias das suas personalidades primeiras», e quem senão o romancista, poeta, pintor e ensaísta que o ano passado celebrámos no centenário do seu nascimento.Ernesto salientou que o filme Almada, Nome de Guerra, em si, não interessa, ou que pelo menos interessa pouco, não constituindo um fim, mas um principio, ou um “processo” de estudo e intervenção. Daí a sua preocupação

Voltar ao Princípio

em apresentá-lo como um não-filme ou até um antifilme, obra aberta que a si mesma sobrevive, sempre diversa e renovada, multiplicando sentidos e ilacções consoante os vários componentes do multimedia se associam, as leituras que dela queiramos fazer ou ainda a variação temporal dos contextos em que a vimos, lemos e ouvimos.Almada, Nome de Guerra já existia em embrião no multimedia Nós Não Estamos Algures, de 1969 (ano em que foram realizadas as suas filmagens), baseado na estrutura da Invenção do Dia Claro), de Almada Negreiros, A sua primeira apresentação pública com esse título foi em 1979, com a música daquela obra inicial, assinada pelo compositor Jorge Peixinho. «Luiz Vaz 73», de 1977 e estreado em Gand, Bélgica, no qual a figura de Almada é associada à de Luís de Camões, recicla imagens de «Almada, Nome de Guerra», Em «Ultimatum», de 1983, mostrado na Experimental Intermedia Foundation, em Nova lorque, foi novamente utilizada uma sequência do filme.De uma obsessão, portanto, se trata. 47

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«ALMADA é um nome da minha

guerra. Há muito que

estou extraordinariamente

interessado pelo paradoxo

e pela paradoxologia. Quanto

à minha guerra, ela consiste

no meu interesse em combater

uma ideia que é a morte»,

diz Ernesto de Sousa que

apresenta nos dias 10

e 11, à noite, no Centro

de Arte Moderna, a primeira

apresentação pública de

«Almada, Um Nome de Guerra».

Trata-se de um multimédia.

Na sala polivalente daquele

Centro, seis projectores

vão evocar a figura de Almada

Negreiros: «As imagens

sobrepõem-se, vêm abruptamente

ou em infusão. Há uma

projecção de cinema ao fundo

da sala, outra projecção

rasante na parede direita

e duas, também rasantes,

na parede esquerda.»

Obcessivamente, o retrato de Almada Negreiros (para as pessoas o descobrirem) encherá a sala. Na sala, Ernesto de Sousa vai «comandar» a mistura de duas bandas sonoras, uma gravação com música repetitiva de pescadores algarvios e outra de textos musicais de artistas que colaboram neste projecto desde Jorge Peixinho e Lopes da Silva e Helena Cáudio.Ligado ao cinema («Dom Roberto»), ao teatro e às artes plásticas, Ernesto de Sousa, hoje com 63 anos, foi uma vez definido por Eduardo de Prado Coelho como um «militante cultural ». A pesquisa de formas de expressão vanguardista tem feito parte do seu itinerário.Fala do anticinema, do cinema em expansão e do cinema psicadélico. O seu multi-média pretende pôr as pessoas a conviverem com Almada Negreiros, no espaço de uma sala. Frases do autor da «Invenção do Dia Claro», ditas por ele próprio, serão ouvidas durante os 45 minutos desta apresentação. As últimas, a fechar as diversas projecções de imagem e mistura de som, são as seguintes: «No fundo, as coisas estão certíssimas.»

“Almada É um Nome da Minha Guerra”, in A Capital, 6 de Setembro de 1984

Frame do filme “Almada, um Nome de Guerra”, Ernesto de Sousa, 1969

Almada É um Nome da Minha Guerra

«Podia ser esta a melhor das definições de uma arte multimedia, mas Ernesto de Sousa falava com as palavras a seguir citadas, na verdade, da vida tal como a via o olhar abrangente de Almada Negreiros: «Sentir tudo de todas as maneiras viver tudo de todos os lados/ser a mesma coisa de todos os modos possíveis/ ao mesmo tempo/Realizar em si toda a realidade de todos/ os momentos/ num só momento difuso profuso completo e/ longinquo. Eu quero ser sempre aquilo com que simpatizo.»0 pioneiro do multimedia português nunca filmou ou fotografou Almada considerando-o um objecto passivo. Compreendendo a dupla caracterização do Mestre enquanto interprete da realidade ou enquanto visionário, entregou-lhe o papel, teatral necessariamente, do ancião que tudo absorve, com a sua lente perspectiva. Numa conversa registada em fita com o autor do mural «Começar», de que poderemos acompanhar, algumas passagens nas presentes sessões, Ernesto de Sousa afirma claramente: «0 Almada é que tem a resposta.» Explicou-o, aliás, todas as vezes que teve ocasião de dissertar sobre os objectivos últimos de Almada, Nome de Guerra, dizendo do filme, o do complexo multimedia que à sua volta foi estruturando, tratar-se de «uma revisão crítica da cultura e da arte portuguesas, com base numa das mais extraordinárias das suas personalidades primeiras», e quem senão o romancista, poeta, pintor e ensaísta que o ano passado celebrámos no centenário do seu nascimento.Ernesto salientou que o filme Almada, Nome de Guerra, em si, não interessa, ou que pelo menos interessa pouco, não constituindo um fim, mas um principio, ou um “processo” de estudo e intervenção. Daí a sua preocupação

Voltar ao Princípio

em apresentá-lo como um não-filme ou até um antifilme, obra aberta que a si mesma sobrevive, sempre diversa e renovada, multiplicando sentidos e ilacções consoante os vários componentes do multimedia se associam, as leituras que dela queiramos fazer ou ainda a variação temporal dos contextos em que a vimos, lemos e ouvimos.Almada, Nome de Guerra já existia em embrião no multimedia Nós Não Estamos Algures, de 1969 (ano em que foram realizadas as suas filmagens), baseado na estrutura da Invenção do Dia Claro), de Almada Negreiros, A sua primeira apresentação pública com esse título foi em 1979, com a música daquela obra inicial, assinada pelo compositor Jorge Peixinho. «Luiz Vaz 73», de 1977 e estreado em Gand, Bélgica, no qual a figura de Almada é associada à de Luís de Camões, recicla imagens de «Almada, Nome de Guerra», Em «Ultimatum», de 1983, mostrado na Experimental Intermedia Foundation, em Nova lorque, foi novamente utilizada uma sequência do filme.De uma obsessão, portanto, se trata. 47

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«Não há dúvida que a Alternativa Zero foi um

acontecimento artístico que levou Portugal além

fronteiras. Depois de um passado ancilosado, esta

exposição tem o mérito de lançar a polémica, de ser

um projecto de integração europeia passando por

cima de preconceitos e de pré-conceitos, que ajudou

a transformar a nossa sociedade fazendo-a entrar

na vanguarda, sem impor correntes estéticas

e, duma forma didáctica, introduzir a modernidade,

ou a pós-modernidade, em Portugal.

Constituiu um momento de inter-relação de todos

os artistas, não só através das suas obras, como de

todas as manifestações paralelas. Pode-se dizer que

a Alternativa Zero foi o preâmbulo do acertar o passo

com o resto da Europa e o deixar de ser a periferia.

Ernesto de Sousa pensa a arte como algo que está

em rotura, logo em mudança, como uma alternativa

do quotidiano e uma festa da vida. O movimento

de descontextualização e desterritorialização

das imagens que tinha começado nos anos 60

prolonga-se e acentua-se nos anos 80, tendo sido

o movimento Fluxus e a Documenta 5, referências

incontornáveis para a vanguarda portuguesa,

através da divulgação feita por Ernesto de Sousa

e da exposição Alternativa Zero.

» Isabel Albuquerque, “A Polémica da Alternativa Zero”, 2001

Neste contexto e numa sequência lógica do que

foi feito em 77, muitos artistas têm vinda

a desenvolver um trabalho com uma crítica

renovada pensando, sobretudo, no estatuto

da arte, no seu carácter institucional,

na sua legitimação e identidade.

Segundo José Augusto França, escreveu

no Colóquio Artes, este exposição deveu-se

à tendência antropológica de Ernesto de Sousa

em relação à alma portuguesa e à influência

da ingenuidade de Almada Negreiros ...»

Postal de Manuel Casimiro a Ernesto de Sousa, 04/03/1977

Page 45: ULTRAVOX - Multimedia Magazine

«Não há dúvida que a Alternativa Zero foi um

acontecimento artístico que levou Portugal além

fronteiras. Depois de um passado ancilosado, esta

exposição tem o mérito de lançar a polémica, de ser

um projecto de integração europeia passando por

cima de preconceitos e de pré-conceitos, que ajudou

a transformar a nossa sociedade fazendo-a entrar

na vanguarda, sem impor correntes estéticas

e, duma forma didáctica, introduzir a modernidade,

ou a pós-modernidade, em Portugal.

Constituiu um momento de inter-relação de todos

os artistas, não só através das suas obras, como de

todas as manifestações paralelas. Pode-se dizer que

a Alternativa Zero foi o preâmbulo do acertar o passo

com o resto da Europa e o deixar de ser a periferia.

Ernesto de Sousa pensa a arte como algo que está

em rotura, logo em mudança, como uma alternativa

do quotidiano e uma festa da vida. O movimento

de descontextualização e desterritorialização

das imagens que tinha começado nos anos 60

prolonga-se e acentua-se nos anos 80, tendo sido

o movimento Fluxus e a Documenta 5, referências

incontornáveis para a vanguarda portuguesa,

através da divulgação feita por Ernesto de Sousa

e da exposição Alternativa Zero.

» Isabel Albuquerque, “A Polémica da Alternativa Zero”, 2001

Neste contexto e numa sequência lógica do que

foi feito em 77, muitos artistas têm vinda

a desenvolver um trabalho com uma crítica

renovada pensando, sobretudo, no estatuto

da arte, no seu carácter institucional,

na sua legitimação e identidade.

Segundo José Augusto França, escreveu

no Colóquio Artes, este exposição deveu-se

à tendência antropológica de Ernesto de Sousa

em relação à alma portuguesa e à influência

da ingenuidade de Almada Negreiros ...»

Postal de Manuel Casimiro a Ernesto de Sousa, 04/03/1977

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A ALTERNATIVA E O ZERO

José-Augusto França

Com este é o terceiro texto que escrevo sobre “Alternativa Zero” que alguns leitores terão visto na Galeria de Belém: um por dever de ofício editorial, outro a pedido, e este porque me apetece, pois folhetim tem de bom não ser obrigação. Quer isto dizer, sem dúvida, que a exposição é importante, ou é a mais importante exposição que há muitos anos se realiza em Portugal.Importante porque actualiza uma situação artística nos palcos nacionais, provocando assim uma informação insólita, na medida em que contraria o estatuto costumeiro das exposições ditas de arte. Esta não se diz assim ou antes se interroga, em papelinhos autocolantes “Arte?”, para as pessoas colarem em casa ou noutro lado, e irem procurando responder.A resposta difícil, e não só em Lisboa. As aflições de 1949, experimentadas na primeira exposição Surrealista, ou em 1954, no primeiro salão de arte abstracta, vinte e tantos anos depois e depois de muita coisa já ou nunca vista, assomam de novo na sala de Belém. Mas de maneira bem diferente, porque Lisboa não é a mesma cidade ainda “lepidóptera” (Sá Carneiro) dos anos do pós-guerra pelo decénio de 50 dentro, e a população daquelas e desta exposição de hoje não é a mesma, ou, pelo menos, não parece sê-lo. Um diálogo novo ter-se-á estabelecido, com nova gente que ainda não existia naquelas datas, enquanto que a que então existia terá, felizmente, falecido – Deus me perdoe!Mas esta própria novidade da gente causa problema, porque a vejo algo desamparada – e mais uma vez obrigada a começar tudo, e a começar-se pelo princípio. Essa a sua única alternativa, no zero do ponto de partida. Que não seja de chegada...Eis uma das pontas de reflexão possível e necessária sobre “Alternativa Zero”. A exposição de Ernesto de Sousa (que a ele foi devida, à sua coragem, à sua teima, ao seu

dinamismo, e à sua ingenuidade, no sentido almadino do termo, entende- -se – como ele me entende, há muitos anos discordantes e concordantes...) é uma prospectiva feita na vida nacional, por via da sua prática artística, embora vise, teoricamente, outra e mais total situação ética. A vocação antropológica do organizador, dentro da cultura portuguesa, evita-lhe enganos sociais, para cair, fatalmente, em ilusões menos sociais do que ele supõe ou pode supor. Daí que a sua prospecção ande mais depressa que a realidade – ou obrigue a realidade a correr num ritmo que não é o dela, em corrida de poucos corredores. Perceba-se bem que não se trata de “qualidade” das obras expostas, ou das acções conduzidas: esta é o que é, e muitas vezes nada fica a dever ao que por esse mundo fora se faz, de “Dokumenta” em “Dokumenta”.O problema não se põe a esse nível que seria fácil de resolver, mesmo pela negativa – mas a um outro nível que eu diria metafísico, lá onde o mito não se encarna. Por outras palavras do referido Almada: “há Portugal, não há Portugueses”, citando propositadamente ao contrário.

Inauguração, Alternativa Zero, 1997

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A ALTERNATIVA E O ZERO

José-Augusto França

Com este é o terceiro texto que escrevo sobre “Alternativa Zero” que alguns leitores terão visto na Galeria de Belém: um por dever de ofício editorial, outro a pedido, e este porque me apetece, pois folhetim tem de bom não ser obrigação. Quer isto dizer, sem dúvida, que a exposição é importante, ou é a mais importante exposição que há muitos anos se realiza em Portugal.Importante porque actualiza uma situação artística nos palcos nacionais, provocando assim uma informação insólita, na medida em que contraria o estatuto costumeiro das exposições ditas de arte. Esta não se diz assim ou antes se interroga, em papelinhos autocolantes “Arte?”, para as pessoas colarem em casa ou noutro lado, e irem procurando responder.A resposta difícil, e não só em Lisboa. As aflições de 1949, experimentadas na primeira exposição Surrealista, ou em 1954, no primeiro salão de arte abstracta, vinte e tantos anos depois e depois de muita coisa já ou nunca vista, assomam de novo na sala de Belém. Mas de maneira bem diferente, porque Lisboa não é a mesma cidade ainda “lepidóptera” (Sá Carneiro) dos anos do pós-guerra pelo decénio de 50 dentro, e a população daquelas e desta exposição de hoje não é a mesma, ou, pelo menos, não parece sê-lo. Um diálogo novo ter-se-á estabelecido, com nova gente que ainda não existia naquelas datas, enquanto que a que então existia terá, felizmente, falecido – Deus me perdoe!Mas esta própria novidade da gente causa problema, porque a vejo algo desamparada – e mais uma vez obrigada a começar tudo, e a começar-se pelo princípio. Essa a sua única alternativa, no zero do ponto de partida. Que não seja de chegada...Eis uma das pontas de reflexão possível e necessária sobre “Alternativa Zero”. A exposição de Ernesto de Sousa (que a ele foi devida, à sua coragem, à sua teima, ao seu

dinamismo, e à sua ingenuidade, no sentido almadino do termo, entende- -se – como ele me entende, há muitos anos discordantes e concordantes...) é uma prospectiva feita na vida nacional, por via da sua prática artística, embora vise, teoricamente, outra e mais total situação ética. A vocação antropológica do organizador, dentro da cultura portuguesa, evita-lhe enganos sociais, para cair, fatalmente, em ilusões menos sociais do que ele supõe ou pode supor. Daí que a sua prospecção ande mais depressa que a realidade – ou obrigue a realidade a correr num ritmo que não é o dela, em corrida de poucos corredores. Perceba-se bem que não se trata de “qualidade” das obras expostas, ou das acções conduzidas: esta é o que é, e muitas vezes nada fica a dever ao que por esse mundo fora se faz, de “Dokumenta” em “Dokumenta”.O problema não se põe a esse nível que seria fácil de resolver, mesmo pela negativa – mas a um outro nível que eu diria metafísico, lá onde o mito não se encarna. Por outras palavras do referido Almada: “há Portugal, não há Portugueses”, citando propositadamente ao contrário.

Inauguração, Alternativa Zero, 1997

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Num outro artigo citei também falsamente

Almada, para terminar por dizer que aos

Portugueses “só faltam as perspectivas”.

E isso seria a lição de “Alternativa

Zero”, no panorama já não digo artístico

mas cultural nacional. Daí resulta que

os actores e os espectadores da

exposição se vejam obrigados (então só

polemicamente) a partir do Zero que

no título dela inevitavelmente se perfila.

Será aí o princípio pretendido – enfim?

Várias vezes, de geração em geração,

assim aconteceu, não acontecendo. Diz

um amigo meu, dado ao calembourg, que

isto “dá capo de nós”...

Na verdade, “Alternativa Zero” é coerente

consigo própria, recusando qualquer

número que lhe seria a opção tomada,

relacionando-a com outra que lhe seja

anterior – e por isso ignora uma situação

perspectiva. A arte-outra que pretende

não tem que ver com aquela que uma longa

e ingrata série cultural tem produzido

e isso não pode deixar de parecer lógico

como situação polémica, se bem que

discutível como situação lógica, porque

a si própria se reduz ao absurdo.

Em si próprio está certo o que se passa no pavilhão de Belém, na cota Zero escolhida e assumida; mas em volta dela que montes e vales de outras alturas e profundidades se alinham, de modo a dar-lhe sentido cartográfico? O zero é um número (se é que é número) absoluto, e por isso absoluto de mais...E sobretudo existe do princípio da existência de outros números – o que resta a provar, no caso presente. Que lhe traria, com efeito, uma retrospectiva da arte portuguesa – que nunca foi tentada? E como julgar a perspectiva de que a própria alternativa sairia para um futuro só assim assegurado? Não, é claro, uma destas perspectivas ao acaso dos júris e dos concorrentes, mais salão menos salão ( e cada vez menos, por irresponsabilização política de quem os deveria, hoje em dia, promover) – mas uma serena reflexão sobre o que se passa, tanto quanto uma serena meditação sobre o que se passou, na arte nacional, desde que, há sessenta anos exactos, Amadeo expôs em Lisboa. Talvez um museu de arte moderna enfim possibilitado...

Começar a partir do Zero é dificílimo e perigosíssimo, e logo porque é perigoso e difícil de atingir o Zero de que se supõe partir, e que muitas vezes, senão sempre, não é tão zero como isso.

...Mas a verdade é que o meu amigo Ernesto de Sousa não tem outra alternativa.

» In Diário de Lisboa, Lisboa, 21 de Março de 1977

Joana Rosa, “Quando vejo os desenhos da minha mãe, 1976

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Num outro artigo citei também falsamente

Almada, para terminar por dizer que aos

Portugueses “só faltam as perspectivas”.

E isso seria a lição de “Alternativa

Zero”, no panorama já não digo artístico

mas cultural nacional. Daí resulta que

os actores e os espectadores da

exposição se vejam obrigados (então só

polemicamente) a partir do Zero que

no título dela inevitavelmente se perfila.

Será aí o princípio pretendido – enfim?

Várias vezes, de geração em geração,

assim aconteceu, não acontecendo. Diz

um amigo meu, dado ao calembourg, que

isto “dá capo de nós”...

Na verdade, “Alternativa Zero” é coerente

consigo própria, recusando qualquer

número que lhe seria a opção tomada,

relacionando-a com outra que lhe seja

anterior – e por isso ignora uma situação

perspectiva. A arte-outra que pretende

não tem que ver com aquela que uma longa

e ingrata série cultural tem produzido

e isso não pode deixar de parecer lógico

como situação polémica, se bem que

discutível como situação lógica, porque

a si própria se reduz ao absurdo.

Em si próprio está certo o que se passa no pavilhão de Belém, na cota Zero escolhida e assumida; mas em volta dela que montes e vales de outras alturas e profundidades se alinham, de modo a dar-lhe sentido cartográfico? O zero é um número (se é que é número) absoluto, e por isso absoluto de mais...E sobretudo existe do princípio da existência de outros números – o que resta a provar, no caso presente. Que lhe traria, com efeito, uma retrospectiva da arte portuguesa – que nunca foi tentada? E como julgar a perspectiva de que a própria alternativa sairia para um futuro só assim assegurado? Não, é claro, uma destas perspectivas ao acaso dos júris e dos concorrentes, mais salão menos salão ( e cada vez menos, por irresponsabilização política de quem os deveria, hoje em dia, promover) – mas uma serena reflexão sobre o que se passa, tanto quanto uma serena meditação sobre o que se passou, na arte nacional, desde que, há sessenta anos exactos, Amadeo expôs em Lisboa. Talvez um museu de arte moderna enfim possibilitado...

Começar a partir do Zero é dificílimo e perigosíssimo, e logo porque é perigoso e difícil de atingir o Zero de que se supõe partir, e que muitas vezes, senão sempre, não é tão zero como isso.

...Mas a verdade é que o meu amigo Ernesto de Sousa não tem outra alternativa.

» In Diário de Lisboa, Lisboa, 21 de Março de 1977

Joana Rosa, “Quando vejo os desenhos da minha mãe, 1976

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Expresso escolhe esta semana aprofundar Alternativa Zero procurando

descobrir que sentido tem uma iniciativa assim no contexto cultural

português do momento?

Repositório de frustrações? Macaquear do que se vê lá fora?

Paranoia provinciana? De tudo isso AZ pode ser acusada mas ninguém

lhe tira o mérito de ser uma corajosa pedrada no charco. Se a esta

alternativa zero, se seguissem a um, a dois e a três, daríamos

por bem empregadas as desilusões, as irritações, que várias vezes

nos atravessaram durante o tempo em que AZ funcionou.

AZ interessa na medida em que é uma aposta e um desafio. A ele todos

nós teremos de responder mais tarde ou mais cedo.

In Expresso, coluna “Expresso escolhe”, Lisboa, 25 de Março de 1977

Alternativa Zero

Helena Vaz da Silva

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ALTERNATIVA/PROSPECTIVA

José-Augusto França

A “Alternativa Zero” chama-se assim porque não há outra. Ernesto de Sousa é o campião de uma arte que o não seja, numa terra que talvez... Uma coisa e outra ele quis demonstrar numa Galeria de Arte Moderna que nunca o foi, e ganhou a aposta feita, ao mesmo tempo com ele próprio e com os outros.Aposta tão muito difícil quanto muito fácil: por um lado uma exposição depois de tantas outras assim, por esse mundo fora; por outro uma primeira da sua espécie, onde outras não tem havido. Nos dois lados, a ingenuidade que o seu mestre Almada lhe ensinou, e que será a única maneira de ser Português, fora dos livros para ler inteiros e de Paris para imitar aos bocados. Escrevo, embora se não veja, ingenuidade entre aspas. (...)Anos atrás, propus extra-oficialmente, como então era necessário, mas quase, como era indispensável, uma série de três exposições: uma “retrospectiva”, uma “perspectiva” e uma “prospectiva”. Não tive sorte nenhuma, em nenhuma delas. Perspectivas fizeram-se muitas, apenas por força de o serem, retrospectiva não. A prospectiva fê-la agora Ernesto de Sousa como já na altura eu achava que devia ser ele a fazê-la. Competir-lhe-á, porém, o prefixo?As artes que cabem no hangar de Belém representam, ou não, um filão a haver? Denso, explorável, o filão? Significativo?

A cultura ocidental procura novas fontes de energia, agora que o preço do óleo subiu desmedidamente e que há muitos anos já um italiano empreendedor expôs, em boiões, “Merda di Artista”. Na própria inteligência conceptual, no próprio corpo agredido, e, antes, na agressão das imagens ou dos olhos enganados, e, depois, na pobreza dos meios sem comunicação, ou na comunicação, ou na comunicação postal – de vez em vez a arte foi sendo, ou foi-se. Do “espanta-me” de outrora, ao sem espanto possível de hoje em dia, o processo das ideias periclitantes acentuou-se e satisfez-se – e não há “Dokumenta” que lhe chegue nem museu que o não acolha. A arte entrou em artacção para morrer por si própria, depois de ter padecido de si própria. Mas há sempre um rei posto depois de outro morto, na corrente dos mitos de que não podemos passar-nos.Como não se passa Ernesto de Sousa, antropologicamente falando.Na sua “Alternativa”, o mito é o Zero. Não interessa saber, por ele, se todos o acompanham bem na aventura perseguida, ou só interessa, por nós, para sabermos se a temos, a aventura, agora e aqui, como se diz – para não dizer, como também se diz ou disse (e não foi): já. Daí perguntar se é significativa e prospectiva (e alternativa) exposição, neste mesmo sítio e neste mesmo e urgente tempo.

“Coragem, portugueses, só vos faltam as perspectivas”.

In Expresso, Lisboa, 25 de Março de 1977

Page 52: ULTRAVOX - Multimedia Magazine

Eduardo Prado CoelhoALTERNATIVA ZERO

Julião Sarmento, “Peça variável, 5 intervenientes” (pormenor), 1976

Havia-se criado bastante para se temer a pior desilusão. O que não aconteceu. Ao cabo de alguns meses de existir e não existir, Alternativa Zero, manifestação cultural da vanguarda portuguesa, surge em Belém, na Galeria de Arte Moderna, integrada no Mercado do Povo. Convém que disto se dê alvoraçada notícia.Em primeiro lugar, de que se trata? Muito simplesmente, de uma exposição. Isto é, estamos naquele domínio que se convencionou chamar de “artes plásticas”. Mas já aqui surgem dificuldades. Porque esta exposição de “artes plásticas” é ela mesma uma interrogação sobre todos os domínios, um deslocar de fronteiras, um vacilar de campos definidos, uma indefinição da arte. Eles, os organizadores, eles dizem que é uma exposição aberta. Mas isto não chega. Porque é de uma abertura que a cada instante se abre ao acontecimento incessante da própria exposição em tudo o que nela arriscadamente se expõe. E esta palavra só a entendermos por inteiro se incluirmos na exposição o risco imenso de algo se expor, de alguém seu expor nisto.

Digo: nisto. Reparem que o não digo por este isto ser um atirar à cara seja do que for contra o academismo burguês e suas faces balofas. Esta vanguarda não provoca, porque a provocação é hoje é hoje o sono da vanguarda. Esta vanguarda alterna. Esta vanguarda revoga. Alternativa zero: e o zero é isto.Isto quer dizer: menos que um quadro. Ou ainda: que uma visão do mundo. Ou mesmo: menos que uma alma. Antes algo de infinitamente mais pequeno, de desaforadamente menor.

Digamos sem medo: um zero à esquerda. Isto é qualquer coisa que constitui, um ponto de vista que não é ideologicamente de esquerda, mas que, por ser disto, e apenas disto, só pode ser uma práxis de esquerda, a afirmação irradiante de um zero, de um vazio pleno, capaz de promover o infinito fio dos sucessivos números. O que se inaugura aqui é uma outra forma de contar. Frege e Russell poderão dizer alguma coisa.

ARTES PLÁSTICAS, QUE IDEIA! DIGAMOS DE OUTRO MODO: A PLASTICI DADE DO DESEJO MODULANDO-SE SOB TODAS AS FOR MAS DO IMPREVISTO.

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Eduardo Prado CoelhoALTERNATIVA ZERO

Julião Sarmento, “Peça variável, 5 intervenientes” (pormenor), 1976

Havia-se criado bastante para se temer a pior desilusão. O que não aconteceu. Ao cabo de alguns meses de existir e não existir, Alternativa Zero, manifestação cultural da vanguarda portuguesa, surge em Belém, na Galeria de Arte Moderna, integrada no Mercado do Povo. Convém que disto se dê alvoraçada notícia.Em primeiro lugar, de que se trata? Muito simplesmente, de uma exposição. Isto é, estamos naquele domínio que se convencionou chamar de “artes plásticas”. Mas já aqui surgem dificuldades. Porque esta exposição de “artes plásticas” é ela mesma uma interrogação sobre todos os domínios, um deslocar de fronteiras, um vacilar de campos definidos, uma indefinição da arte. Eles, os organizadores, eles dizem que é uma exposição aberta. Mas isto não chega. Porque é de uma abertura que a cada instante se abre ao acontecimento incessante da própria exposição em tudo o que nela arriscadamente se expõe. E esta palavra só a entendermos por inteiro se incluirmos na exposição o risco imenso de algo se expor, de alguém seu expor nisto.

Digo: nisto. Reparem que o não digo por este isto ser um atirar à cara seja do que for contra o academismo burguês e suas faces balofas. Esta vanguarda não provoca, porque a provocação é hoje é hoje o sono da vanguarda. Esta vanguarda alterna. Esta vanguarda revoga. Alternativa zero: e o zero é isto.Isto quer dizer: menos que um quadro. Ou ainda: que uma visão do mundo. Ou mesmo: menos que uma alma. Antes algo de infinitamente mais pequeno, de desaforadamente menor.

Digamos sem medo: um zero à esquerda. Isto é qualquer coisa que constitui, um ponto de vista que não é ideologicamente de esquerda, mas que, por ser disto, e apenas disto, só pode ser uma práxis de esquerda, a afirmação irradiante de um zero, de um vazio pleno, capaz de promover o infinito fio dos sucessivos números. O que se inaugura aqui é uma outra forma de contar. Frege e Russell poderão dizer alguma coisa.

ARTES PLÁSTICAS, QUE IDEIA! DIGAMOS DE OUTRO MODO: A PLASTICI DADE DO DESEJO MODULANDO-SE SOB TODAS AS FOR MAS DO IMPREVISTO.

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Quer dizer que esta exposição se fundamenta em algumas

regras: por um lado, subordina o objecto, o resultado

estético pronto-a-consumir, ao processo estético. O que

se expõe não é o imaculado produto, mas a persistente

produção. E por isso mesmo aquele que se propõe visitar

(direi ”habitar”?) esta exposição, é implicado no produzir

da produção. Esta manifestação cultural não se vê de fora,

vê-se de dentro: operatoriamente. Percorrê-la é aceitar cada

um como um elo vivo deste trabalho inacabável. É fazer do

espaço a casa. Fazer do olhar o encontro. Do encontro o jogo.

E deste a cidade – por dentro iluminada como transparente.

Alternativa para uma cidade – em última instância cívica

também. Se o quiserem.

Donde conheço Ernesto de Sousa, não

me lembro. E se falo dele agora,

é porque Ernesto de Sousa é quem

imaginou isto. Não me lembro,

repito, nem interessa. Sei que nos

vamos cruzando ao sabor de acasos

e colóquios, e doutras coisas que

têm menos nome e que às vezes nos

surpreendemos em cumplicidade. Eu

digo que a arte morreu, e há uma

indignação que varre a sala.

Na outra ponta Ernesto de Sousa apanha

a jogada e entra nela. Sei ainda que

neste militante cultural a lucidez

política é sempre desdramatizada,

duma firmeza imensamente serena.

Quem leu nas páginas da Vida Mundial (nos tempos em que esta revista existia sob a direcção inteligente de Augusto Abelaira), sabe como Ernesto de Sousa pensa a arte de hoje, na sua formulação mais radical: como qualquer coisa que a cada instante se desequilibra não para a vida, mas para o outro lado da vida. Como imagem imprecisa de uma alternativa do quotidiano. Como utopia prática, humilde, trabalhada. Como desejo disto.Arte Plásticas, que ideia!. Digamos de outro modo: a plasticidade do desejo modulando-se sob todas as formas do imprevisto: o desejo que se premedita, o que se esconde, o que se maquina, o que se despe, o que se esfarrapa, o que se poupa, o que se gasta, o que se esquece, o que se enamora e multiplica. E por isso os poetas, os músicos, os cineastas, os desempregados e os distraídos se encontram neste espaço transformado para falar, ver, comer, discutir, cantar, adormecer.É claro que Belém não é Beaubourg. Fica num extremo da cidade, e é escasso em transportes adequados. Chega-se de carro, e é longe. É claro que o povo de Lisboa já aprendeu este caminho nas tardes de Sábado e Domingo, quando o sol ajuda e o rio apetece. Mas isto não chega para dar vida a uma espaço que a tradição polui e entorpeceu.Alternativa Zero abre para Belém uma resposta fundamental: a de aproveitarmos este espaço que é o que temos e à mão no possível e fazermos dele lugar de intervenção, cultura outra, festa sempre.

In Opção, Lisboa, 18 de Março de 1977

Eduardo Prado Coelho

Se isto não é irrealizável, trata-se agora de o começar a provar.

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Quer dizer que esta exposição se fundamenta em algumas

regras: por um lado, subordina o objecto, o resultado

estético pronto-a-consumir, ao processo estético. O que

se expõe não é o imaculado produto, mas a persistente

produção. E por isso mesmo aquele que se propõe visitar

(direi ”habitar”?) esta exposição, é implicado no produzir

da produção. Esta manifestação cultural não se vê de fora,

vê-se de dentro: operatoriamente. Percorrê-la é aceitar cada

um como um elo vivo deste trabalho inacabável. É fazer do

espaço a casa. Fazer do olhar o encontro. Do encontro o jogo.

E deste a cidade – por dentro iluminada como transparente.

Alternativa para uma cidade – em última instância cívica

também. Se o quiserem.

Donde conheço Ernesto de Sousa, não

me lembro. E se falo dele agora,

é porque Ernesto de Sousa é quem

imaginou isto. Não me lembro,

repito, nem interessa. Sei que nos

vamos cruzando ao sabor de acasos

e colóquios, e doutras coisas que

têm menos nome e que às vezes nos

surpreendemos em cumplicidade. Eu

digo que a arte morreu, e há uma

indignação que varre a sala.

Na outra ponta Ernesto de Sousa apanha

a jogada e entra nela. Sei ainda que

neste militante cultural a lucidez

política é sempre desdramatizada,

duma firmeza imensamente serena.

Quem leu nas páginas da Vida Mundial (nos tempos em que esta revista existia sob a direcção inteligente de Augusto Abelaira), sabe como Ernesto de Sousa pensa a arte de hoje, na sua formulação mais radical: como qualquer coisa que a cada instante se desequilibra não para a vida, mas para o outro lado da vida. Como imagem imprecisa de uma alternativa do quotidiano. Como utopia prática, humilde, trabalhada. Como desejo disto.Arte Plásticas, que ideia!. Digamos de outro modo: a plasticidade do desejo modulando-se sob todas as formas do imprevisto: o desejo que se premedita, o que se esconde, o que se maquina, o que se despe, o que se esfarrapa, o que se poupa, o que se gasta, o que se esquece, o que se enamora e multiplica. E por isso os poetas, os músicos, os cineastas, os desempregados e os distraídos se encontram neste espaço transformado para falar, ver, comer, discutir, cantar, adormecer.É claro que Belém não é Beaubourg. Fica num extremo da cidade, e é escasso em transportes adequados. Chega-se de carro, e é longe. É claro que o povo de Lisboa já aprendeu este caminho nas tardes de Sábado e Domingo, quando o sol ajuda e o rio apetece. Mas isto não chega para dar vida a uma espaço que a tradição polui e entorpeceu.Alternativa Zero abre para Belém uma resposta fundamental: a de aproveitarmos este espaço que é o que temos e à mão no possível e fazermos dele lugar de intervenção, cultura outra, festa sempre.

In Opção, Lisboa, 18 de Março de 1977

Eduardo Prado Coelho

Se isto não é irrealizável, trata-se agora de o começar a provar.

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José Luís PorfírioAlternativa Zero

“ Todos os caminhos vão dar a um Zero. Por enquanto...”(José Ernesto de Sousa in Alternativa Zero – Tendências Polémicas na Arte Portuguesa Contemporânea, cat.)

“Esta Vanguarda não provoca, porque a provocação é hoje o sono da vanguarda. Esta vanguarda alterna. Esta vanguarda revoga. Alternativa zero: e o zero é isto.”(Eduardo Prado Coelho, in Opção)

“Más acertados parecen los artistas

que cuestionando el hacer desmantelan

el aparato de la creatividad, pero

aciertan aún menos que los otros,

non sólo porque la destruyen sin

recuperarla... Renovado bizantinismo

en momentos que la masa requiere

soluciones concretas para su elevación,

en lugar de las cuales se le presentan

formas sutiles pero sin espírito

o teoremas; sin advertir que con

el pretexto de salvarla la hunden

en la mayor indigência espiritual.”

(Jorge Romero Brest, “La Conciencia frenta al Arte y la Tecnologia”, in Colóquio/Artes, nº 26, Fev. 1976)

Lista de Participantes, exposição Alternativa Zero, 1977

A vanguarda e os mitosDurante o passado mês de Março (de 1 a 31 do mesmo) ocorreu nas instalações anexas ao “Mercado do Povo” que ainda respondem pelo nome pomposo e algo ridículo de “Galeria Nacional de Arte Moderna”, uma experiência-exposição que se intitulou: “Alternativa Zero – Tendências Polémicas na Arte Portuguesa Contemporânea”. Mais experiência que exposição, era impossível tentar avaliação ou balanço de muito perto, uma vez que se desenrolava não só no espaço atrás referido, como no escasso tempo de um mês, criando cumplicidades, atraindo públicos, repelindo outros, aproveitando também a sua localização – a Belém dos passeios lisboetas à beira Tejo – para canalizar muito outro público, popular e pequeno-burguês, em princípio não mobilizável para exposições deste tipo.Se um subsídio, lento em vir da Secretaria de Estado da Cultura, bem como a cedência das instalações do Estado oficializaram essa actividade, esta deve-se inteiramente À iniciativa, responsabilidade e proposta de José Ernesto de Sousa, constituindo, por assim dizer, como que uma antologia ampliada da sua actividade crítica e interventiva destes últimos anos, pelo menos desde o seu trabalho “Do Vazio à Pro-Vocação” apresentado na Sociedade Nacional de belas Artes em 1972. Ao longo destes anos, um número crescente de camaradas, de amigos, de “cúmplices” no melhor sentido da palavra, foram aparecendo em exposições, escritos, em atitudes, ensaiando uma vez mais o processo típico do nosso séc. XX: dar a Modernidade (ou pós-modernidade, como, não sem razão, alguns lhe chamam) a Portugal!Agora, não mais dispersos, mas reunidos num espaço, propõem juntos, juntos pretendem “ser algo mais” que uma exposição; ou, encarando as coisas por outro prisma, pretende(m) “ser uma exposição aberta, com todas as consequências possíveis nesta sociedade, inclusive concorrer (ainda que pouco) para transformá-la” – diz-nos o próprio responsável na introdução a um “Catálogo Descritivo” que é, também, “apenas um elemento para o catálogo conceptual...

elaborado pelo próprio visitante”. Descreve as obras expostas até ao momento da respectiva elaboração”, já que depois disso, elas lá estiveram entregues ao ver, ao interrogar, ao intervir e ao manipular (por vezes) de tanta e tão diferente gente, vivendo de resto a sua verdadeira história que é a da sua (possível) utilização. Assim, o inventário de diferentes e até contraditórias propostas pôde (durante um mês?) tornar-se numa proposta única dirigida aos sentidos, aos corpos e fundamentalmente, quanto a mim, à consciência de quem, depois da visita, da interrogação, do aborrecimento perante certas atitudes ou divertimento noutros casos, medite sobre os objectos, as pessoas, o público e a proposta; esta, para já, tem um nome carregado de intencionalidade, chama-se zero!

» José Luís Porfírio, “Alternativa Zero“ in Opção,Lisboa, 18 de Março de 1977

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José Luís PorfírioAlternativa Zero

“ Todos os caminhos vão dar a um Zero. Por enquanto...”(José Ernesto de Sousa in Alternativa Zero – Tendências Polémicas na Arte Portuguesa Contemporânea, cat.)

“Esta Vanguarda não provoca, porque a provocação é hoje o sono da vanguarda. Esta vanguarda alterna. Esta vanguarda revoga. Alternativa zero: e o zero é isto.”(Eduardo Prado Coelho, in Opção)

“Más acertados parecen los artistas

que cuestionando el hacer desmantelan

el aparato de la creatividad, pero

aciertan aún menos que los otros,

non sólo porque la destruyen sin

recuperarla... Renovado bizantinismo

en momentos que la masa requiere

soluciones concretas para su elevación,

en lugar de las cuales se le presentan

formas sutiles pero sin espírito

o teoremas; sin advertir que con

el pretexto de salvarla la hunden

en la mayor indigência espiritual.”

(Jorge Romero Brest, “La Conciencia frenta al Arte y la Tecnologia”, in Colóquio/Artes, nº 26, Fev. 1976)

Lista de Participantes, exposição Alternativa Zero, 1977

A vanguarda e os mitosDurante o passado mês de Março (de 1 a 31 do mesmo) ocorreu nas instalações anexas ao “Mercado do Povo” que ainda respondem pelo nome pomposo e algo ridículo de “Galeria Nacional de Arte Moderna”, uma experiência-exposição que se intitulou: “Alternativa Zero – Tendências Polémicas na Arte Portuguesa Contemporânea”. Mais experiência que exposição, era impossível tentar avaliação ou balanço de muito perto, uma vez que se desenrolava não só no espaço atrás referido, como no escasso tempo de um mês, criando cumplicidades, atraindo públicos, repelindo outros, aproveitando também a sua localização – a Belém dos passeios lisboetas à beira Tejo – para canalizar muito outro público, popular e pequeno-burguês, em princípio não mobilizável para exposições deste tipo.Se um subsídio, lento em vir da Secretaria de Estado da Cultura, bem como a cedência das instalações do Estado oficializaram essa actividade, esta deve-se inteiramente À iniciativa, responsabilidade e proposta de José Ernesto de Sousa, constituindo, por assim dizer, como que uma antologia ampliada da sua actividade crítica e interventiva destes últimos anos, pelo menos desde o seu trabalho “Do Vazio à Pro-Vocação” apresentado na Sociedade Nacional de belas Artes em 1972. Ao longo destes anos, um número crescente de camaradas, de amigos, de “cúmplices” no melhor sentido da palavra, foram aparecendo em exposições, escritos, em atitudes, ensaiando uma vez mais o processo típico do nosso séc. XX: dar a Modernidade (ou pós-modernidade, como, não sem razão, alguns lhe chamam) a Portugal!Agora, não mais dispersos, mas reunidos num espaço, propõem juntos, juntos pretendem “ser algo mais” que uma exposição; ou, encarando as coisas por outro prisma, pretende(m) “ser uma exposição aberta, com todas as consequências possíveis nesta sociedade, inclusive concorrer (ainda que pouco) para transformá-la” – diz-nos o próprio responsável na introdução a um “Catálogo Descritivo” que é, também, “apenas um elemento para o catálogo conceptual...

elaborado pelo próprio visitante”. Descreve as obras expostas até ao momento da respectiva elaboração”, já que depois disso, elas lá estiveram entregues ao ver, ao interrogar, ao intervir e ao manipular (por vezes) de tanta e tão diferente gente, vivendo de resto a sua verdadeira história que é a da sua (possível) utilização. Assim, o inventário de diferentes e até contraditórias propostas pôde (durante um mês?) tornar-se numa proposta única dirigida aos sentidos, aos corpos e fundamentalmente, quanto a mim, à consciência de quem, depois da visita, da interrogação, do aborrecimento perante certas atitudes ou divertimento noutros casos, medite sobre os objectos, as pessoas, o público e a proposta; esta, para já, tem um nome carregado de intencionalidade, chama-se zero!

» José Luís Porfírio, “Alternativa Zero“ in Opção,Lisboa, 18 de Março de 1977

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Crít

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Magazine Multimédia

Faculdade de Belas-ArtesUniversidade de Lisboa

DC4/ Ano lectivo 2012/13Docentes_António Nicolas + Isabel Castro

Edi to res: Carolina Ferreira e Tânia RodriguesGra fis mo: Carolina Ferreira e Tânia Rodrigues Co la bo ra do res: Cinemateca, Fundação Calouste Gulbenkian e Centro para os Assuntos da Arte e Arquitectura

Impressão: Arco-Íris, Cópias/Impressão/Imagem - Rua da Misericórdia, 20, Loja 121249-038 LISBOA Tiragem: 1 exemplar

Lisboa, 05 de Fevereiro de 2013

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Magazine Multimédia

Faculdade de Belas-ArtesUniversidade de Lisboa

DC4/ Ano lectivo 2012/13Docentes_António Nicolas + Isabel Castro

Edi to res: Carolina Ferreira e Tânia RodriguesGra fis mo: Carolina Ferreira e Tânia Rodrigues Co la bo ra do res: Cinemateca, Fundação Calouste Gulbenkian e Centro para os Assuntos da Arte e Arquitectura

Impressão: Arco-Íris, Cópias/Impressão/Imagem - Rua da Misericórdia, 20, Loja 121249-038 LISBOA Tiragem: 1 exemplar

Lisboa, 05 de Fevereiro de 2013

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