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Dec 16, 2015
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Programa de Ps-Graduao em Geografia rea de Concentrao: Produo do Espao Geogrfico
Linha de pesquisa: Desenvolvimento Territorial
TRANSFORMANDO TERRA EM TERRITRIO: construo e
dinmica do sistema local territorial agroecolgico em
Francisco Beltro, Paran
TRANSFORMING LAND INTO TERRITORY: construction and dynamic of agroecological territorial local system in Francisco Beltro, Parana
MRCIO FREITAS EDUARDO
Banca examinadora:
1. Prof. Dr. Marcos Aurelio Saquet - Orientador
Centro de Cincias Humanas, Universidade Estadual do Oeste do Paran (UNIOESTE, Campus de
Francisco Beltro, Paran)
2. Prof.a Dr.a Rosngela Aparecida de M. Hespanhol
Departamento de Geografia, Faculdade de Cincias e Tecnologia Universidade Estadual Paulista
(FCT/UNESP, Campus de Presidente Prudente, So Paulo)
3. Prof. Dr. Carlos Alberto Feliciano
Departamento de Geografia, Faculdade de Cincias e Tecnologia Universidade Estadual Paulista
(FCT/UNESP, Campus de Presidente Prudente, So Paulo)
4. Prof. Dr. Elson Luciano Silva Pires
Departamento de Planejamento Territorial e Geoprocessamento Universidade Estadual Paulista
(UNESP, Campus de Rio Claro, So Paulo)
5. Prof. Dr. Adilson Francelino Alves
Centro de Cincias Sociais Aplicadas, Universidade Estadual do Oeste do Paran (UNIOESTE,
Campus de Francisco Beltro, Paran)
Presidente Prudente, junho de 2014
Tese de doutorado apresentada ao Programa de Ps-
Graduao em Geografia da FCT/UNESP, sob
orientao do Prof. Dr. Marcos Aurelio Saquet e
coorientao do Prof. Dr. Bernardo Manano
Fernandes, como requisito parcial para obteno do
ttulo de Doutor em Geografia.
FICHA CATALOGRFICA
Eduardo, Mrcio Freitas.
E26t Transformando Terra em Territrio: construo e dinmica do sistema local territorial agroecolgico em Francisco Beltro, Paran / Mrcio Freitas Eduardo. - Presidente Prudente: [s.n], 2014
328 f. : il. Orientador: Marcos Aurelio Saquet Coorientador: Bernardo Manano Fernandes Tese (doutorado) - Universidade Estadual Paulista, Faculdade de
Cincias e Tecnologia Inclui bibliografia 1. Geografia. 2. Territrio. 3. Agroecolgico. I. Saquet, Marcos Aurelio.
II. Fernandes, Bernardo Manano. III. Universidade Estadual Paulista. Faculdade de Cincias e Tecnologia. IV. Ttulo.
Ao Pedro: vida que (re)existe cotidianamente.
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AGRADECIMENTOS
Captulo do dirio de um andante
Produzir uma tese como colocar-se a caminhar. Um caminhar solitrio, mas repleto de
encontros e desencontros. Inicialmente, de posse de um mapa, sentamo-nos sombra e
traamos, com linhas fortes, nossas estratgias para vencermos a jornada. No ato de
caminhar, logo vamos percebendo, no somos guiados apenas por aquele senso de
objetividade. Ao caminharmos vamos igualmente pensando, repensando. Passo a passo
sentimos calor, sede, o gosto da poeira na garganta e o carter relativo do tempo que ora
seduz e ora nos castiga. Prestamos, doravante, mais ateno nos pequenos prazeres: quela
nuvem que nos traz um momento de alento do sol forte, quele aroma que apressadamente
jamais sentiramos, imprescindibilidade da gua e o gesto amigo de algum a serviu-nos
beira da estrada. Conforme avanamos distanciamo-nos conscientemente de nosso ponto
de partida e o que nos motiva a continuar, apesar da saudade e da possibilidade de jamais
retornarmos, o desejo de chegar. Mas chegar exatamente onde? Uma indagao
reiteradamente feita por aqueles que encontramos e compartilhamos nossos desejos,
angstias e as j presentes incertezas acumuladas ao longo de um significativo percurso
trilhado. A essa altura j nos convencemos de que um mapa, mesmo importante, apenas
um mapa. A caminhada exige-nos muito mais do que um saber para onde se est indo. Nos
deparamos com incongruncias do mapa, com vias bloqueadas, reas inundadas, somos
obrigados a procurar outras rotas. Mas continuamos. Pelo caminho fica a certeza de que h
muito mais a ser explorado e decifrado do que aquilo que conferimos, mesmo andando
vagarosamente. Depois de muito cho finalmente avistamos nosso alvo. Aceleramos o passo
para alcan-lo. Est em um lugar alto, um mirante. Na chegada, um momento para apreciar
a vista, descortina-se uma imensido, um misto de sensaes se manifesta: de l podemos
observar que, embora cada metro percorrido tenha nos acrescentado, nos tornados
diferentes, mais experientes, trata-se apenas de um ponto de chegada. A satisfao do ato
de caminhar certamente nos instigar a prosseguir.
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Aos encontros: razo do caminhar e o prprio caminho
Por mais solitria que parea a empreitada envolvendo a construo de uma tese, o
produto sempre uma ao de conectividade, a qual jamais poderemos ser justos o
suficiente com todos aqueles que contriburam com esse processo (que no se limita ao ciclo
de doutoramento). Mesmo sendo conscientemente injusto, fao referncias nessa
trajetria:
A meus avs Francisco, Olvia, e os saudosos Osvaldo e Maria: colonos, migrantes,
boias-frias, trabalhadores urbanos corpos e mentes moldados pelas nuances da questo
agrria brasileira.
Elli e ao lio, meus pais, camponeses desterritorializados que desde muito cedo me
ensinaram a amar a terra e a valorizar os que dela cuidam.
Paula e ao Pedro, companheira e filho: responsveis por preencherem com apoio e
acalanto os momentos de insegurana e de inevitvel cansao. So luzes ao sentido Sul que
sinalizam a direo e me instigam com ternura a ir mais alm.
Lu e ao seu Lindo: pelos abraos afetuosos e desvelos nos momentos crticos.
s agricultoras e agricultores ecolgicos de Francisco Beltro, Paran: agradeo pela
forma cordial com que me acolheram, dividindo conhecimentos, anseios, projetos de vida e
saborosas refeies, sempre com a postura serena de quem tem conscincia da importncia
do ato de compartilhar.
Ao Marcos: professor, orientador e amigo que ao longo de quase uma dcada e meia
me instigou a prosseguir e a continuadamente pensar sobre os sentidos do caminhar.
s companheiras e companheiros do GETERR: onde aprendi que mesmo em meio a
um ambiente individualista e competitivo em que se configura a produo do conhecimento
acadmico h espao para a complementaridade e razes para o crescer juntos. Em especial
ao Luciano e Talita por me fornecerem gentilmente materiais de pesquisa que foram
preciosos insumos para a construo desta tese.
Suzana, amiga da ASSESOAR, pelo apoio sempre acrescido de um sorriso.
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Ingrid do CAPA Erechim; ao Edson do CETAP Alto Uruguai; ao Vitor da Rede
Ecovida de Agroecologia; aos sujeitos do Ncleo de Agroecologia do Alto Uruguai; ao Pedro,
Maria e ao Damio da Cooperafloresta; Elenice e ao Seco da ELAA; Salete e ao Kid do
Instituto Educar; ao Rafael e o Gilberto do MAB Erechim; ao Amantino em nome dos
faxinalenses do Meleiro: sou grato por t-los encontrados ao longo do caminho.
Aos professores do programa de Ps-graduao em Geografia da FCT-UNESP,
Presidente Prudente SP: especiais agradecimentos e admiraes ao Bernardo e ao Thomaz
Jnior.
Aos amigos os quais nos conectamos ao dividirmos sonhos e agruras na condio de
ps-graduandos do programa de Geografia da FCT-UNESP: Christian, Anglica, Wagner, Joo,
Rodrigo, Natacha, Adriano, Jos, Karina, Nildo e Osias.
Ao amigo Ronaldo: pelo longo trecho que andamos juntos, ficando hoje a
demonstrao que a distncia no tem que implicar necessariamente em ruptura.
Ao Igor: amigo querido que me acolheu amenizando a exausto da chegada.
Aos amigos docentes do curso de Geografia da UFFS, campus Erechim: Dilermando,
Ana, Fbio, Juara, Ktia, Everton, Robson, Pedro e Paula que souberam entender minhas
ausncias e pela solidariedade imprescindvel.
Aos colegas do GPASE e de luta na UFFS com quem aprendo cotidianamente: Cssio,
Daniel, Naura, Paulo, Ulisses, Naira, Thiago, Anderson, Luiz, Murad, Gerson e Jernimo.
Aos discentes e meus orientandos do curso de Geografia da UFFS, campus Erechim:
pela amizade e por dividirem comigo o desejo de construir uma geografia do (e para o)
homem arteso.
s mulheres e homens, do campo e da cidade, que lutando por espaos de esperana
mantm latente a questo agrria.
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Uma boa estratgia pode ser a de trabalhar com a sabedoria de quem sabe que necessrio combater
os gigantes que nos antecederam, [...] assim, poderemos avanar muito em favor da valorizao
do homem arteso e da proteo do ambiente (QUAINI, 2011).
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PRLOGO Preparando a terra
As bases da presente tese esto firmemente assentadas sobre um cho de esperana.
Esperana de que possamos reencontrar no campo sentidos para o trabalho como um fazer
social edificante. Que a ao de produzir seja igualmente ato de criao, de reflexo,
conexo e inovao, calcado em um profundo senso de respeito para com as dinmicas do
mundo vivo. Que o produto do labor seja apropriado pelos sujeitos que trabalham,
instigando-os a avanarem na direo de um fazer que v mais alm. Que possamos
construir leituras sobre o desenvolvimento que o atrelem ao movimento de ampliao da
diversidade e da autonomia, imprescindveis condies para o exerccio da criatividade na
concepo do novo desde o Sul. Que o territrio seja o trunfo para a ampliao das
liberdades e ponto de encontro entre os que caminham juntos. Essa esperana obedece ao
ritmo de uma temporalidade especfica, construda artesanalmente pela prtica cotidiana
dos camponeses que buscam na proximidade com a natureza incrementar suas estratgias
de (re)existncia, isto , de um resistir que forja continuadamente novos nexos para a
existncia. Esperana, por fim, de que essas palavras brotadas dessas paisagens da
confuso causem o necessrio desconforto.
xi
NDICE
RESUMO................................................................................................... ...............................xiv
ABSTRACT................................................................................................ ................................xv
LISTA DE ABREVIATURAS........................................................................................................xvi
INTRODUO.................................................................................................... ......................21
Apontamentos metodolgicos e objetivos da pesquisa..........................................................37
Uma mirada pela composio dos captulos e outras consideraes sobre a inscrio do projeto ecolgico campons....................................................................................................42
CAPTULO I
AGROECOLOGIA: UMA VOLTA NATUREZA?........................................................................56
1.1 Agroecologia: um esforo de periodizao e conceitualizao.........................................57
1.2 E quanto Geografia?........................................................................................................64
1.3 Olhando para a agroecologia desde o cho: territrios e ecologias da vida.....................71
CAPTULO II
DESENVOLVIMENTO, TERRITRIO E AGROECOLOGIA: DISPUTA (I)MATERIAL E LEITURAS DO AGIR CONFLITUAL....................................................................................................................89
2.1 Territrio e desenvolvimento: consenso para o desenvolvimento ou envolvimento conflitual? ................................................................................................. ..............................93
2.2 A dimenso territorial do desenvolvimento: O RIMISP e o enfoque do Desenvolvimento Territorial Rural (DTR)............................................................................................... .............101
2.3 O RIMISP e a consertao do territrio: desenvolvimento para combater pobreza dos sujeitos do campo?................................................................................................................111
2.4 Mas afinal, a qual desenvolvimento nos referimos? Em qual contexto eclode como ideologia e doutrinamento social?........................................................................................113
2.5 Territrio do consenso/territrio da dissidncia.............................................................120
2.6 Pelo territrio! Mas qual territrio? A noo de desenvolvimento territorial e o mpeto insurgente das territorialidades ativadas pela agroecologia: a necessidade de ousadia conceitual...............................................................................................................................126
2.6.1 Para emancipar o territrio: [...] territrios so, no fundo, antes relaes sociais projetadas no espao que espaos concretos (SOUZA, 2011).............................................128
2.6.2 Para emancipar o territrio: o poder como vontade-de-viver ou por uma concepo relacional do poder................................................................................................................132
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2.6.3 Para emancipar o territrio: a poltica como expresso imaterial das articulaes pela vontade-de-viver-comum...................................................................................................139
2.6.4 Para emancipar o territrio: o desenvolvimento territorial e sua natureza conflitual................................................................................................... .............................141
2.6.5 Desenvolvimento territorial e agroecologia: luta pela vida, luta pelo territrio; sobre o desenvolvimento desses territrios de vida..........................................................................142
CAPTULO III
AGROECOLOGIA E O SISTEMA LOCAL TERRITORIAL EM FRANCISCO BELTRO/PR: ORGANIZAES DO CAMPO, REDE DE SUJEITOS E LEITURAS DO AGIR CONFLITUAL.........144
3.1 A formao territorial do Sudoeste paranaense e de Francisco Beltro: colonizao e des-reterritorializao..................................................................................................................145
3.2 Modernizao da agricultura, agronegcio e conflitualidade..........................................149
3.3 Territorialidades insurgentes e ecologismo popular: o contexto de emergncia dos movimentos contestatrios do campo no Sul do Brasil e em Francisco Beltro...................152
3.4 Formao e dinmica do sistema local territorial agroecolgico em Francisco Beltro: instituies, redes e leituras do agir conflitual......................................................................156
3.4.1 ASSESOAR: gnese e movimento..................................................................................156
3.4.1.1 O trabalho da ASSESOAR na territorializao da agroecologia no Sudoeste do Paran....................................................................................................................................161
3.4.2 CRESOL.................................................................................................................. ........167
3.4.3 Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Francisco Beltro............................................174
3.4.4 Instituto Paranaense de Assistncia Tcnica e Extenso Rural (EMATER-PR)..............182
3.4.5 COOPAFI........................................................................................................................187
3.4.6 Rede Ecovida de Agroecologia e Associao das Agricultoras e Agricultores Ecolgicos de Francisco Beltro...............................................................................................................192
3.4.7 Secretaria de Desenvolvimento Rural - Prefeitura de Francisco Beltro......................203
CAPTULO IV
TERRITRIOS DE VIDA E AGROECOLOGIA: DINMICAS PRODUTIVAS E ARRANJOS DA (RE)EXISTNCIA.....................................................................................................................212
4.1 Agroecologia no Sudoeste do Paran e em Francisco Beltro.........................................213
4.2 Famlia A: agroecologia como estratgia de superao da misria no campo.............219
4.3 Famlia B: construindo autonomias com a agroecologia..............................................232
xiii
4.4 Famlia C: estratgia agroecolgica de (re)existncia camponesa em pequenos pedaos de terra..................................................................................................... .............................253
4.5 Famlia D: duas dcadas de (re)existncia como sujeitos construindo sentidos para seu fazer social pela agroecologia................................................................................................266
4.6 Disputa territorial e os sentidos da poltica camponesa de construo da sua existncia pela agroecologia...................................................................................................................288
4.7 Construindo autonomias na dinmica produtiva e no circuito de comercializao por intermdio da solidariedade e da organizao poltica.........................................................292
CONSIDERAES FINAIS........................................................................................................311
REFERNCIAS BIBLIOGRFICAS..............................................................................................316
xiv
RESUMO
Compreendemos o fenmeno agroecolgico como movimento oriundo da construo de
resistncias populares cujo contedo das distintas ecologias est atrelado ao
desenvolvimento de estratgias de ampliao das autonomias relativas ao capital.
Autonomias que se constroem em rede, avanando para alm do modo campons
autonmico guetizado constante em abordagens da velha questo agrria. O avano do
fenmeno agroecolgico no Brasil e na Amrica Latina, a ampliao e politizao do debate
via movimentos sociais e organizaes populares (do campo e da cidade) tem contribudo,
sobremaneira nas duas ltimas dcadas, com a produo de certo
desconforto/desconfiana/negao da perspectiva unilinear do desenvolvimento rural ao
materializarem prticas, concatenarem pautas e proporem projetos que vo ao encontro da
alternativa descolonial. A defesa da agroecologia tem transformado terra em territrio e
redirecionado, poltica e escalarmente, a luta na e pela terra em luta pela territorializao de
projetos dos sujeitos e grupos que revindicam formas ecologicamente equilibradas de
produo e de vida. Argumentamos que h potencialidades nos fazeres agroecolgicos para
promoo de arranjos de desenvolvimento territorial rural que aliem produo de alimentos
saudveis, incluso e sustentabilidade, dadas suas estratgias calcadas na ampliao das
capacidades decisrias, no desenvolvimento de formas ecolgicas de produo e na
construo de outras relaes com o mercado. Estudamos esse fenmeno a partir da ao
dos atores sintagmticos do sistema local territorial agroecolgico de Francisco Beltro,
Paran. Tais atores, agricultores ecolgicos e suas organizaes de apoio, ao passo que
resistem monopolizao do territrio pelo capital e s formas de territorialidades passivas
engendradas pelo modelo de desenvolvimento do agronegcio, tm construdo,
cotidianamente, novas estratgias para a existncia, atravs de processos de ativao de
territorialidades que permitem aos sujeitos, gradativamente, reconhecerem, valorizarem e
apropriarem-se com maior autonomia dos recursos potenciais do territrio para a edificao
dos seus territrios de vida. Do sistema local territorial esses atores tm produzido liames
acessando redes nas variadas escalas, contribuindo com a estruturao e sendo
retroalimentados pelo conjunto de intencionalidades que forjam em sua amplitude e
complexidade o projeto ecolgico campons.
Palavras-chave: agroecologia; territorialidade ativa; desenvolvimento territorial; projeto
ecolgico campons.
EDUARDO, Mrcio F. Transformando Terra em Territrio: construo e dinmica do sistema local territorial agroecolgico em Francisco Beltro, Paran. 328 f. Tese (Doutorado em Geografia) Faculdade de Cincias e Tecnologia, Universidade Estadual Paulista, Presidente Prudente.
xv
ABSTRACT
We understand agroecological phenomenon as movement that has origin in the
constructions of popular residences whose content of different ecologies is linked with
development of strategies for expanding autonomy in relation to capital. These autonomies
that were built up in networks are advancing for beyond the peasant mode autonomic
ghettoized peasant model, constant in approaches of the old agrarian question. The
advancement of agroecological phenomenon in Brazil and Latin America as well as the
expansion and politicization of the debate by social movements and popular organizations
(from both countryside and city) have contributed, extraordinarily in the two last decades,
with the production of a little discomfort, distrust, denial of one-side perspective of rural by
materializing practices relate ideas and proposed projects that agree with the de-colonial
alternative. The agroecological has been changing land into territory and has, politically and
in a scalar way, redirected the struggle for territorial projects of individuals and groups that
claim for ecologically balanced forms of production and life. We argue that there is
potentiality in the agroecological doings in order to promote arrangements for territorial
rural development. So these arrangements can ally production of healthy food, inclusion and
sustainability because of three elements: their strategies of expansion of decision-making
capabilities; the development of ecological forms of production; and the construction of
other relationships with the market. We have studied this phenomenon by analyzing the
action of syntactic actors of the territorial local agroecological system in Francisco Beltro,
in Parana. These actors, ecological farmers and their supporting organizations resist to
monopolization of territory by capital and to forms of passive territorialities engendered by
the development of agribusiness model. They have also built daily new strategies for
existence through processes of territoriality activation that gradually permit to individuals to
recognize, valorize and to appropriate with autonomously the potential territorys resources
in order to build their territories of life. The same actors have produced links from local
territorial system by accessing networks in various scales, contributing to structuring and
being fed back by the set of intentions that forge in their extent and complexity the peasant
ecological project.
Keywords: agroecology; active territoriality; territorial development; peasant ecological
project.
EDUARDO, Mrcio F. Transforming Land into Territory: construction and dynamic of agroecological territorial local system in Francisco Beltro, Parana. 396 f. Thesis (Doctorate in Geography) - College of Science and Technology, Universidade Estadual Paulista, Presidente Prudente.
xvi
LISTA DE ABREVIATURAS
ABA: Associao Nacional de Agroecologia
ABONG: Associao Brasileira de Organizaes no Governamentais
ACAMSOP: Associao das Cmaras Municipais do Sudoeste do Paran
ACARPA: Associao de Crdito e Assistncia Rural do Paran
ACESI: Associao do Centro de Educao Sindical
AGAPAN: Associao Gacha de Proteo ao Ambiente Natural
AGO: Assembleia Geral
AGRUCO: Agroecologa Universidad Cochabamba
AMSOP: Associao dos Municpios do Sudoeste do Paran
ANA: Articulao Nacional de Agroecologia
AORSA: Associao dos Agricultores Orgnicos de So Jorge DOeste
APAV: Associao de Produtores Agroecolgicos de Ver
APP: rea de Preservao Permanente
APROVIVE: Associao dos Vitivinicultores de Ver
ARCAFAR: Associao das Casas Familiares Rurais
ARIAS: Associao dos Revendedores de Insumos Agrcolas do Sudoeste do Paran
AS-PTA: Assessoria e Servios a Projetos em Agricultura Alternativa
ASSEC: Associao dos Secretrios Municipais de Agricultura regional Pato Branco
ASSEMA: Associao dos Secretrios Municipais de Agricultura e Meio Ambiente regional de Francisco Beltro
ASSESOAR: Associao de Estudos, Orientao e Assistncia Rural.
ATER: Assistncia Tcnica e Extenso Rural
BID: Banco Interamericano de Desenvolvimento
CANGO: Colnia Agrcola Nacional General Osrio
CAPA: Centro de Apoio ao Pequeno Agricultor
CBA: Congresso Brasileiro de Agroecologia
CCFD: Comit Contra a Fome e pelo Desenvolvimento (Frana)
CEPAL: Comisso Econmica para a Amrica Latina e o Caribe
CETAP: Centro de Tecnologias Alternativas Populares
CLADES: Centro Latinoamericano de Desarrollo Sustentable
CMDR: Conselhos Municipais de Desenvolvimento Rural
xvii
CNBB: Conferncia Nacional dos Bispos do Brasil
CNPq: Conselho Nacional de Desenvolvimento Cientfico e Tecnolgico
COAGRE: Coordenao de Agroecologia
COOPAFI: Cooperativa de Comercializao da Agricultura Familiar Integrada
COOPERIGUA: Cooperativa Iguau de Prestao de Servios
COPEL: Companhia Paranaense de Energia
CPT: Comisso Pastoral da Terra
CRESOL: Cooperativa Central de Crdito Rural com Interao Solidria
CUT: Central nica dos Trabalhadores
DESER: Departamento de Estudos Scio-Econmicos Rurais
DTR: Desenvolvimento Territorial Rural
ECAs: Escolas Comunitrias de Agricultores
EED: Servio das Igrejas Evanglicas na Alemanha para o Desenvolvimento
ELAA: Escola Latino-americana de Agroecologia
EMATER PR: Instituto Paranaense de Assistncia Tcnica e Extenso Rural
ENGA: Encontro Nacional de Geografia Agrria
ERNA: Empregos Rurais no Agrcolas
EUA: Estados Unidos da Amrica
FAO: Organizao das Naes Unidas para Alimentao e Agricultura
FEAB: Federao dos Estudantes de Agronomia do Brasil
FETAEP: Federao dos Trabalhadores na Agricultura do Estado do Paran
FETRAF: Federao Nacional dos Trabalhadores e Trabalhadoras na Agricultura Familiar
FiBL: Research Institute of Organic Agriculture
FIDA: Fundo Internacional de Desenvolvimento Agrcola
FMI: Fundo Monetrio Internacional
GABO: Grupo de Agricultores Biolgicos do Oeste (Frana)
GALO: Grupo de Agroecologia de Londrina
GEBANA: Cataratas do Iguau Produtos Orgnicos Ltda.
GGETESPA: Grupo Gestor do Territrio Sudoeste do Paran
GETERR: Grupo de Estudos Territoriais
GETSOP: Grupo Executivo de Terras do Sudoeste do Paran
xviii
GTZ: Sociedade Alem de Cooperao Tcnica
IAPAR: Instituto Agronmico do Paran
IBGE: Instituto Brasileiro de Geografia e Estatstica
IECLB: Igreja Evanglica de Confisso Luterana no Brasil
IES: Instituio de Ensino Superior
IFOAM: International Federation of Organic Agriculture Movements
ILPES: Instituto Latino-americano e do Caribe de Planejamento Econmico e Social
IMO Control: Institute for Marketecology
INCRA: Instituto Nacional de Colonizao e Reforma Agrria
IPARDES: Instituto Paranaense de Desenvolvimento Econmico e Social
ISEC: Instituto de Sociologa y Estudios Campesinos
JAC: Juventude Agrria Catlica
LEADER: Ligaes Entre Aes de Desenvolvimento da Economia Rural
LSPA: Levantamento Sistemtico da Produo Agrcola
MAB: Movimento dos Atingidos por Barragens
MAELA: Movimiento Agroecolgico Latinoamericano
MAPA: Ministrio da Agricultura, Pecuria e Abastecimento
MDA: Ministrio do Desenvolvimento Agrrio
MMC: Movimento das Mulheres Camponesas
MPA: Movimento dos Pequenos Agricultores
MST: Movimento dos Trabalhadores Sem Terra
NERA: Ncleo de Estudos, Pesquisas e Projetos de Reforma Agrria
NRE: Ncleo Regional de Educao
NT: Nota Tcnica
OAC: Organismo de Avaliao da Conformidade
OGM: Organismos Geneticamente Modificados
ONG: Organizao No Governamental
OPAC: Organismo Participativo de Avaliao da Conformidade
PAA: Programa de Aquisio de Alimentos
PAIS: Produo Agroecolgica Integrada e Sustentvel
PCA: Paradigma do Capitalismo Agrrio
xix
PTDRS: Plano Territorial de Desenvolvimento Rural Sustentvel
PNAE: Programa Nacional de Alimentao Escolar
PNAPO: Poltica Nacional de Agroecologia e Produo Orgnica
PPI: Projeto Pedaggico Institucional
PQA: Paradigma da Questo Agrria
PROAGRO: Programa de Garantia da Atividade Agropecuria
PRONAF: Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar
PT: Partido dos Trabalhadores
PRV: Pastoreio Racional Voisin
PVR: Projeto Vida na Roa
Rede TA-Sul: Rede de Tecnologias Alternativas do Sul
RIMISP: Centro Latinoamericano para el Desarrollo Rural
Rio + 20: 3 Conferncia das Naes Unidas sobre Desenvolvimento Sustentvel
RURECO: Fundao para o Desenvolvimento Econmico Rural da Regio Centro-Oeste do Paran
SAF: Sistema Agroflorestal
SDT: Secretaria de Desenvolvimento Territorial
SEAB: Secretaria da Agricultura e do Abastecimento do Paran
SEBRAE: Servio Brasileiro de Apoio s Micro e Pequenas Empresas
SETP: Secretaria de Estado do Trabalho, Emprego e Promoo Social
SIM POA: Sistema de Inspeo Municipal Produtos de Origem Animal
SISCLAF: Sistema de Cooperativas de Leite da Agricultura Familiar
SisOrg: Sistema Brasileiro de Avaliao de Conformidade Orgnica
SLOT: Sistema Local Territorial
SOCLA: Sociedad Cientfica Latinoamericana de Agroecologa
SPG: Sistemas Participativos de Garantia
STR: Sindicato dos Trabalhadores Rurais
TECPAR: Instituto de Tecnologia do Paran
UCO: Universidad de Crdoba
UFFS: Universidade Federal da Fronteira Sul
UFRGS: Universidade Federal do Rio Grande do Sul
UNAM: Universidad Nacional Autnoma de Mxico
xx
UNIA: Universidad Internacional de Andaluca
UNICAFES: Unio Nacional das Cooperativas da Agricultura Familiar e Economia Solidria
UNIOESTE: Universidade Estadual do Oeste do Paran
UNISEP: Unio de Ensino do Sudoeste do Paran
UTFPR: Universidade Tecnolgica Federal do Paran
21
INTRODUO Lanando a semente
Defender o fenmeno agroecolgico no Brasil, a maior nao" consumidora de
agrotxicos no mundo, uma empreitada de contracorrente que exige flego. Praticar
agroecologia um ato revolucionrio! Um atentado contra os pressupostos da modernidade
eurocntrica e o discurso hegemnico do progresso. Enquanto o agronegcio conhece seu
apogeu no Brasil e na Amrica Latina, contraditoriamente, cresce, de maneira geral, o
interesse pela agroecologia: contundente demonstrao da atualidade da questo agrria e
da capacidade de (re)existncia (PORTO-GONALVES, 2004) do campesinato ao colocar na
agenda do dia o debate sobre seus projetos.
O avano do fenmeno agroecolgico no Brasil e na Amrica Latina, a ampliao e
politizao do debate via movimentos sociais e organizaes populares (do campo e da
cidade) tem contribudo, sobremaneira nas duas ltimas dcadas, com a produo de certo
desconforto/desconfiana/negao da perspectiva unilinear do desenvolvimento rural ao
materializarem prticas, concatenarem pautas e proporem projetos que vo ao encontro da
alternativa descolonial. A defesa da agroecologia tem transformado terra em territrio e
redirecionado poltica e escalarmente a luta na e pela terra em luta pela territorializao
de projetos dos sujeitos e grupos que revindicam formas ecologicamente equilibradas de
produo e de vida.
Desde o Sul, compreendemos o fenmeno agroecolgico enquanto processualidade,
como movimento oriundo da construo de resistncias populares cujo contedo das
distintas ecologias est atrelado ao desenvolvimento de projetos fundamentados na
ampliao das autonomias relativas ao capital. Autonomia que no significa autossuficincia,
como adverte-nos Dematteis (2007), pois no implica fechamento com relao ao exterior,
mas a capacidade de autogoverno das relaes de territorialidade (internas e externas) e de
autoprojeo de um desenvolvimento centrado nessas relaes. Autonomia, portanto, que
se constroem em rede, em fazeres-coletivos (HOLLOWAY, 2003), avanando para alm do
modo autonmico guetizado constante na literatura clssica da questo agrria e do
campesinato.
Temos que considerar, como desdobramento, que uma ao coletiva, segundo
Almeida (1999), um conjunto de prticas conflituais intervindo em um sistema social,
22
implicando na luta entre atores, em que cada um caracteriza-se por um tipo de
solidariedade especfica, ao mesmo tempo que se ope ao outro pela apropriao e uso que
faz de valores, recursos sociais e, acrescentemos, territoriais.
Defendendo a agroecologia, esses sujeitos tm construdo liames nas mais variadas
direes, ampliado (multidimensionalmente) e complexificado os sentidos da luta pela terra,
incluindo novos temas pretrita questo agrria, tais como: economia popular e solidria,
defesa das sementes crioulas e do patrimnio biofsico, recuperao e desenvolvimento de
tecnologias apropriadas, agroartesanato, bioconstruo, matrizes energticas locais e
renovveis, saber-fazer tradicional, medicina alternativa, descentralizao e participao
democrtica nas decises polticas, educao popular, direitos dos povos tradicionais e
originrios, bien vivir etc.
Ao pautarem a autonomia (embora sempre relativa), o desenvolvimento sustentvel
(proposto com base nas culturas, nos processos de reapropriao social da natureza), a
soberania alimentar e a defesa dos territrios lanam os esteios para a construo de outros
projetos de modernidade popular, ecologizado, calcado na pluralidade: pressupostos
que vo de encontro aos imperativos da acumulao (capitalista) e da dominao (homem-
homem e homem-natureza) pilares do empreendimento moderno-colonial.
Tais experincias, na condio de contracorrentes, situadas no subsuelo poltico
(TAPIA, 2008), como qualquer territorialidade dissidente, obviamente, desenvolvem-se
margem, so descontnuas, incompletas, articulam-se lentamente, com dificuldades e esto
repletas de conflitos e contradies. Tomada enquanto processo, isto , como um
movimento multidimensional dinmico baseado no maior ou menor atrelamento dos fazeres
espao-temporais especficos, a agroecologia coloca-se como fenmeno territorial e poltico,
algo que escapa s categorizaes apressadas, visto que se refaz cotidianamente com as
prprias contradies dos fazeres: aspecto que extrapola as apreenses tcnico-produtivo-
naturalistas as quais restringem a agroecologia dimenso do manejo ecologicamente
equilibrado do agroecossistema. Tais conhecimentos de cunho naturalistas so de suma
importncia, porm, dependendo da nfase e escala de anlise, corre-se o risco de perder-se
de vista a construo desse fenmeno territorial complexo, repleto de inventividade,
propositivo, para, em seu lugar, projetar-se meros gradientes do mais ao menos
23
agroecolgico. Nesse sentido, a transio agroecolgica h que ser mirada na perspectiva
da disputa territorial: a construo do projeto ecolgico campons em disputa com a
racionalidade do desenvolvimento hegemnico, moderno-colonial. No obstante, essa
leitura da disputa territorial no deve deflagrar vises maniquestas e dicotmicas da
realidade, em purismos que pouco auxiliam na compreenso da complexa trama relacional
da vida. Reiteramos: tais projetos vislumbram autonomias que so sempre relativas, em
virtude de o sociometabolismo do capital (THOMAZ JNIOR, 2002; MSZROS, 2002)
instalar-se nas mltiplas dimenses da vida em sociedade, ora aniquilando resistncias, ora
apropriando-se delas e ressignificando-as. Essas vicissitudes esto presentes, por exemplo,
na proposta da agricultura conhecida como orgnica: aposta mercadolgica da economia
verde e faceta da vertente do desenvolvimento sustentvel calcado no esverdeamento do
capital (os sujeitos, os patrimnios culturais e a autonomia continuam margem); e no
escopo das polticas de fomento agroecolgicas e de desenvolvimento territorial baseadas
numa concepo politicamente oca de desenvolvimento local autossustentvel (reduzindo
o mpeto ecolgico insurgente).
O sentido geogrfico dessas prticas se fortalece na medida em que os projetos
desses atores sintagmticos (RAFFESTIN, 1993) realizam-se tendo como fundamento o
territrio, forjando continuidades atravs do estabelecimento de relaes de poder
espacialmente constitudas e apropriando-se dos recursos potenciais (materiais, cognitivos,
culturais etc.) para a edificao das territorialidades insurgentes. Esses projetos vm
progressivamente sendo compartilhados e articulados reticularmente, formando territrios-
rede nas dimenses da economia, da poltica, da cultura e fundindo identidades forjadoras
do ecologismo popular. O projeto ecolgico campons tem sido construdo na dinmica
cotidiana de enfrentamento desses grupos com a racionalidade moderna que oprime e
devasta e tem nas diversas projees locais territoriais de resistncia seu sustentculo.
Trata-se de um projeto de disputa territorial em formao e movimento que conclama a
ecologia e a poltica como facetas para defesa dos territrios de vida (BALDUINO, 2004),
projeto cujo pressuposto a (re)criao camponesa e o aumento de sua autonomia relativa
diante do capital via revindicao do territrio. Aqui a ao de projetar impe-se como
prestimosa metfora!
24
Projetar um momento da ao deliberada que visa produzir efeitos pretendidos. ,
portanto, poder! Contm as intencionalidades e as vises de mundo de seu(s)
proponente(s). Todo projeto est respaldado em um acumulado construdo social, histrica
e espacialmente. , portanto, produto das contradies: do embate de ideias; da tenso
entre desejo, materialidade, interesses e condies. Projetar , no sentido que
evidenciamos, delinear os horizontes para um fazer social coletivo, orientar rumos para o
movimento do vir a ser criativo enquanto projeo de um pensar-desenhar-fazer
combinado. , concomitantemente, passado, presente e futuro em conflito. Quimera e
objetividade. Potncia, concretude e virtualidade. No deixa de tecer limites, pois se
fundamenta em recortes propositivos cujas fontes brotam das mirades de aspiraes
(tcitas e explicitas). Um projeto tanto o que ainda no quanto o que est sendo. Sua
sntese o movimento, o pensamento do fazer, o inconcluso e o parcialmente concludo:
est aberto, em debate, rearranjando-se, adquirindo novos contornos.
O projeto ecolgico campons carrega essas vicissitudes. Os camponeses
implementam suas estratgias ecolgicas no bojo da luta anticapitalista: galgando maior
autonomia relativa perante o capital, (re)criando-se defendem seus territrios de vida e
(re)produzem, atravs de suas prticas e dos conflitos socioambientais subjacentes, as
conscincias ecolgicas e as formas de mobilizao. Corremos o risco de no
compreendermos em sua profundidade, complexidade e dinmica o significado do
fenmeno agroecolgico no Brasil e na Amrica Latina caso no o associemos ao movimento
mais geral de edificao do projeto ecolgico campons. O enfoque agroecolgico tem
contribudo, sobremaneira, para a edificao do projeto ecolgico campons,
instrumentalizando, tcnica e politicamente, os diferentes sistemas locais territoriais e,
doravante, sendo retroalimentado pela territorializao das distintas experincias1 de
(re)existncias agroecolgicas.
O movimento de construo do projeto ecolgico campons est respaldado por um
sentido espacial forte, oriundo das prticas produtivas locais e dos processos de resistncia e
luta nos e pelos territrios de vida. Os camponeses se valem dos conhecimentos
territorializados, reproduzidos intergeracionalmente, os quais se fundamentam no uso
1 Como sustm Almeida (1999): A ao o centro de criao de sentido. No se pode, portanto, encontrar sentido fora da ao (p. 45).
25
produtivo equilibrado das potencialidades agroecossistmicas. A intensificao e articulao
das mobilizaes denunciando os usos insustentveis dos recursos naturais, o avano do
interesse pelo debate sobre as estratgias ecolgicas de produo e desenvolvimento rural,
o processo de concatenao das pautas entre os distintos grupos populares que revindicam
a ecologia como pressuposto para a produo e a vida em comunidade e sociedade, o
surgimento e fortalecimento de articulaes nos circuitos associativos e cooperativos, da
certificao participativa, da produo de conhecimentos cientficos, dos espaos de troca
de conhecimentos (eventos acadmicos e no acadmicos, feiras, festas etc.), especialmente
no Brasil e na Amrica Latina, tm forjado dinmicas inovadoras de disputa territorial,
trazendo tona a diversidade de possibilidades que confluem formando, em toda sua
complexidade, o projeto ecolgico campons. As propostas desse projeto, assentadas na
reproduo da vida, dizem respeito sociedade como um todo, considerando que as
mazelas ecolgicas e sociais do agronegcio repercutem no campo e na cidade. No sejamos
ingnuos, contudo, idealizando tais transformaes partindo de uma definio abstrata de
sociedade: aos sujeitos do campo e da cidade que pertencem a essa comunidade de
interesse a conflitualidade se impe quando o que se est desafiando so os imprios
alimentares (PLOEG, 2008), os governos subservientes e a racionalidade ocidental, cujo
projeto expressa o epistemicdio (SANTOS, MENESES e NUNES, 2005), o domnio da
natureza, a imperiosidade da tcnica sobre os lugares, a homogeneizao dos gostos e a
afirmao da matriz ideolgico-coercitiva do desenvolvimento.
No prefcio do livro de Jalcione Almeida A Construo Social de uma Nova
Agricultura (1999 [1998]), Ricardo Abramovay j observara, h uma dcada e meia, que
Os movimentos sociais de contestao s formas dominantes de progresso tcnico, no Sul do Brasil, querem muito mais do que, simplesmente, reduzir ou, mesmo, eliminar o uso de insumos qumicos: eles se organizam sob o signo da alternativa. A agroecologia, nesse sentido, exprime, antes de tudo, uma tentativa permanente de luta contra o desencantamento do mundo, prprio das sociedades modernas: ela embute, ao mesmo tempo, a solidariedade entre os homens e o respeito natureza; ela pretende corresponder aos interesses e at viso de mundo dos grupos dominados e mais ameaados de excluso (p. 15-16).
Com intento de [...] ver (ou de perceber) quem (e o qu) est em movimento nas
aes coletivas contestadoras na agricultura no Sul do Brasil (ALMEIDA, 1999, p. 19),
Jalcione Almeida, sistematizando dez anos de estudo e apreendendo em cinco principais
26
eixos os sentidos do agir conflitual sob o signo de alternativo dos sujeitos e organizaes
no campo, tomou nota da diversidade e complexidade das proposies que alinhavavam,
desde os anseios e prticas dos atores sintagmticos daqueles contextos espao-temporais
analisados, elementos concatenadores do projeto ecolgico campons:
No entanto, longe de serem homogneos o conjunto de proposies, projetos e aes coletivas voltados para uma agricultura diferente ou alternativa englobam uma enorme diversidade de concepes, experincias e interesses socialmente identificveis de acordo com o lugar que ocupam e com o papel que exercem os atores implicados na produo e reproduo da vida social e material. Esse conjunto de aes explicita uma trama de relaes sociais e de poder atravs da qual se afrontam ou se associam interesses de diferentes grupos e categorias. No interior dessa trama de relaes interagem atores sociais diversos [...]: organizaes no-governamentais (ONGs), associaes e grupos de inspirao comunitria, grupos de cooperao agrcola, sindicatos profissionais, militantes de partidos polticos, algumas correntes de igrejas, segmentos de setores industriais e da distribuio-comercializao, tcnicos, assim como o prprio Estado atravs de seus organismos e agentes de enquadramento tcnico, econmico e social (ALMEIDA, 1999, p. 23).
Na sequncia, rumando pelas consideraes finais, afirma o autor:
As aes contestadoras e as lutas se desenvolvem em dois planos diferentes mas complementares, e que so a sua marca: o plano local, predominante, e o plano global. No primeiro se desenvolvem as experincias tcnico-produtivas, de auto-organizao com vistas produo e comercializao, as tentativas de sobrevivncia em situaes desfavorveis ou difceis. No segundo encontram-se ensaios ainda experimentais, incipientes, de um movimento poltico suscetvel de propagar os princpios da agroecologia e de dar nascimento a um outro movimento social cuja marca principal seja a autonomia. (ALMEIDA, 1999, p. 195).
Os dois planos diferentes e complementares em que se inscreve o fenmeno
agroecolgico, como bem atentado pelo autor, produz a dialtica interna-externa do projeto
ecolgico campons, isto , do movimento multiescalar e multidimensional de ativao de
territorialidades (DEMATTEIS, 2008) traduzido na esfera dos sistemas locais territoriais em
progressiva articulao poltica das pautas e das formas de mobilizao. O avano da
concatenao de pautas e a crescente politizao desses ecologismos via intensificao dos
processos de articulao entre sujeitos e organizaes populares, correspondem, desigual e
combinadamente, a um panorama de realinhamento da agroecologia, da questo agrria e
das formas de ver e se posicionar no mundo campons no incio do sculo XXI: fenmeno
dotado de dinamismo e inventividade. No Sul do Brasil, por exemplo, instituiu-se, no final
27
dos anos 1990, oriundo da articulao entre ONGs, cooperativas, associaes de produtores
e consumidores orgnicos, movimentos sociais e sindicais do campo, a Rede Ecovida de
Agroecologia: Organizao Participativa de Avaliao da Conformidade dos Produtos
Orgnicos (OPAC). A criao da Rede foi motivada pela necessidade de superar os
empecilhos inerentes s formas convencionais de certificao por auditoria: onerosas,
burocrticas, levadas adiante por empresas transnacionais de certificao, evidentemente,
sem um debate poltico-estratgico de base. Embora relativamente recente a Rede Ecovida
no chegou sequer a entrar no rol de experincias alternativas analisadas por Almeida
(1999) , a organizao j uma referncia na Amrica Latina, devido sua originalidade e
sistemtica poltico-territorial organizativa (como trataremos adiante). Alm das dimenses
tcnico-produtivas, organizativas, de comercializao, certificao e formao, as
articulaes fomentadoras da agroecologia e do projeto ecolgico campons tambm se
efetivam em mbito da academia, da produo de conhecimento, das agncias de
articulao de pesquisa, dos diversos eventos e fruns no acadmicos, potencializando a
disputa territorial nos vrios domnios.
O Brasil e a Amrica Latina testemunharam, nesse exguo espao de tempo de pouco
mais de uma dcada que se sucedeu virada do milnio, o avano das lutas, das articulaes
e das conquistas no campo da agroecologia: os camponeses e os diversos povos tradicionais
do-nos mostra de sua vitalidade em resistir opresso e explorao, desafiando as
transnacionais do agronegcio, as tecnocracias e os intelectuais, e propem alternativas ao
desenvolvimento capitalista calcadas na incluso e na proteo ambiental. Atentemos para
algumas manifestaes recentes:
ANA (Articulao Nacional de Agroecologia2): criada em 2002, aps o
primeiro Encontro Nacional de Agroecologia I ENA, rene
movimentos sociais, redes e organizaes engajadas em experincias
concretas de promoo da agroecologia, de fortalecimento da
produo familiar e de construo de alternativas sustentveis de desenvolvimento rural. A
existncia da ANA se exprime e se justifica pela necessidade de interao e mtua
2 Disponvel em: . Acesso em: 20 de outubro de 2012.
Figura 1: Logotipo ANA
28
fecundao entre essas redes e organizaes para que, juntas, possam construir crescentes
capacidades de influncia nos rumos do desenvolvimento rural no Brasil.
ABA (Associao Brasileira de Agroecologia3): fundada em
2004, durante o II Congresso Brasileiro de agroecologia.
Associao articulada ANA, seus membros atuam nas
principais comisses que discutem polticas pblicas para a agroecologia, representando os
espaos acadmicos e a sociedade como um todo. Promove e apoia reunies, seminrios e
congressos de agroecologia (sendo seu principal espao o Congresso Brasileiro de
Agroecologia) e responsvel pela editorao da Revista Brasileira de Agroecologia.
SOCLA (Sociedade Latino-Americana de Agroecologia4): criada em
2006, seu objetivo principal enquanto sociedade cientfica o de
promover a reflexo, discusso e intercmbio cientfico de
informaes sobre agroecologia entre investigadores e docentes
latino-americanos. Realiza atividades conjuntas com outras
sociedades (como a ABA) e organizaes de promoo
agroecolgicas; promove atividades de capacitao, investigao e difuso da agroecologia
na Amrica Latina.
MAELA (Movimiento Agroecolgico Latinoamericano):
iniciado em 1989, foi constitudo formalmente em 1992,
em um contexto de aprofundamento das crises no
campo provocadas pela intensificao das polticas
neoliberais no subcontinente. Presente em 20 pases e
articulando 210 organizaes, as quais representam
mais de um milho de trabalhadores, trata-se de um movimento que busca construir redes
de solidariedade entre organizaes camponesas, comunidades indgenas, sem terra, de
mulheres e jovens rurais, de consumidores e universidades que defendem a agroecologia
como enfoque orientador para a construo de propostas de desenvolvimento
3 Disponvel em: . Acesso em: 15 de outubro de 2012. 4 Disponvel em: . Acesso em: 15 de outubro de 2012.
Figura 2: Logotipo ABA
Figura 3: Logotipo SOCLA
Figura 4: logotipo MAELA
29
fundamentadas na efetivao da Soberania Alimentar e no respeito natureza (PLAN
ESTRATGICO MAELA 2011 2015, p. 01).
Defendemos a luta das/os camponeses, das/os agricultores familiares como grupos sociais que definem seus caminhos de vida atravs da produo de alimentos promovendo a Agroecologia em termos produtivos, sociais e econmicos atravs do intercmbio justo, e cultural, fundamentalmente na valorizao do conhecimento local, desde onde possvel traar estratgias para enfrentar o agronegcio como modelo de uso e apropriao do territrio (PLAN ESTRATGICO MAELA 2011 2015, p. 055, traduo nossa).
MST (Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra6): a partir do IV Congresso Nacional
do movimento, realizado em 2000, o principal movimento de luta pela terra na atualidade
elege e passa a estimular os princpios agroecolgicos como base produtiva, tcnica e
organizacional dos assentamentos, em consonncia com a reforma agrria e em
contraponto ao modelo do agronegcio.
Deveremos estimular a prtica agrcola sem a utilizao de insumos externos ao lote, sem a utilizao dos agroqumicos. Deveremos ao longo dos anos ir ajustando esta forma de produzir, evitando gastar dinheiro com adubos e venenos, com horas mquina, buscando utilizar mais e melhor a mo de obra disponvel e desenvolvendo tcnicas adaptadas a nossa realidade, evitando de nos intoxicar e de envenenar a natureza. Deveremos abrir para a criatividade da companheirada, produzindo uma nova matriz tecnolgica (MST, 2000 apud VALADO, 2012, p. 21).
Em assentamentos nos diversos estados da federao (MG, PR, SC e RS, por
exemplo), o MST passa a implementar tais diretrizes
discutidas no mencionado congresso, promovendo
espaos de debate, disputando polticas pblicas e
incentivando a transio agroecolgica. O MST tem
contribudo ainda efetivamente com a ampliao do
debate e das experincias em torno da Educao do
Campo, outro eixo fundamental do projeto ecolgico
campons. O MST articula-se ANA.
5 Disponvel em: .
Acesso em: 29 de janeiro de 2014. 6 Disponvel em: . Acesso em: 15 de outubro de 2012.
Figura 5: Arroz orgnico produzido pela Cooperativa de Produo Agropecuria Nova Santa Rita/RS, ligada ao Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (arquivo MST).
30
MPA (Movimento dos Pequenos Agricultores7): o III Encontro Nacional
do MPA, ocorrido em 2010, com o tema Plano Campons - por
soberania alimentar e poder popular!, refora a disposio do
movimento em produzir referenciais multidimensionais para o projeto
ecolgico campons, concebendo a agricultura camponesa enquanto
[...] modelo de produo que liberta, que respeita a vida, a natureza,
com base na agroecologia, na diversificao, e com sustentabilidade econmica (preo justo
para quem produz e quem come) (MPA, 2009, p. 11). O Plano Campons um exemplo
formidvel de instrumento no qual o MPA projeta o desenvolvimento territorial campons
com base em debates de conjuntura, no resgate de sementes crioulas, na implementao da
noo de alimergia (produo de alimentos e de energia associado preservao
ambiental) etc. O MPA est articulado ANA.
Figura 7: Organograma presente no caderno de preparao para o III Encontro Nacional do MPA. Elaborao, MPA (2009).
MMC (Movimento das Mulheres Camponesas8): criado em 2003 e
articulado ANA, o MMC agrega um importante componente de
gnero na luta contra o modelo capitalista e patriarcal, vislumbrando
a construo de uma sociedade com igualdade de direitos. Nesse
sentido, o MMC8 assume como principal bandeira de luta o Projeto de
7 Disponvel em: . Acesso em: 20 de outubro de 2012.
8 Disponvel em: . Acesso em: 15 de outubro de 2012.
Figura 6: Logotipo MPA
Figura 8: Logotipo MMC.
31
Agricultura Camponesa Ecolgico, com uma prtica feminista, fundamentado na defesa da
vida, na mudana das relaes humanas e sociais e na conquista de direitos (sic). Diga-se de
passagem, historicamente as mulheres camponesas tiveram, e continuam tendo papis
fundamentais no desenvolvimento da agroecologia e do projeto ecolgico campons.
FETRAF (Federao Nacional dos Trabalhadores e Trabalhadoras na
Agricultura Familiar9): integrado ANA, um sindicato de base
CUTista (Central nica dos Trabalhadores), fundado em 2004, por
demanda oriunda do I Encontro Nacional da Agricultura Familiar. A
FETRAF e seus sindicatos filiados, em parceria com instituies de
ensino superior (IES), movimentos sociais, ONGs e organizaes governamentais, tem
atuado no fomento agroecologia, oportunizando espaos de formao, cursos de extenso
e de graduao. So os casos do Programa Terra Solidria e do Curso de Extenso em
Agroecologia e Desenvolvimento Rural Sustentvel e Solidrio. Em 2012, um deputado
estadual do Rio Grande do Sul, ligado federao, encaminhou projeto de lei solicitando a
implementao de uma poltica estadual agroecolgica e de produo orgnica semelhante
poltica nacional (PNAPO) recentemente instituda, como veremos adiante. Os eixos
poltica pblica, juventude rural, crdito fundirio e habitacional, so centrais para a
organizao.
MAB (Movimento dos Atingidos por Barragens10): as questes ambiental
e agroecolgica esto presentes desde a constituio do MAB, seja na
crtica ao modelo energtico brasileiro, na luta contra a mercantilizao
da gua ou nos processos de organizao produtiva dos povos nos
espaos de reterritorializao dos reassentamentos, depois de atingidos
por empreendimentos hidroeltricos. Uma das responsabilidades
assumidas pelo MAB a garantia do direito dos atingidos e atingidas por barragens de
produzir alimentos saudveis e energia10. Por isso, o movimento tem alocado esforos mais
recentemente na construo de hortas livre de agrotxicos com produo de pequenos
9 Disponvel em: . Acesso em: 15 de outubro de 2012. 10 Disponvel em: . Acesso em: 15 de outubro de 2012.
Figura 9: Logotipo FETRAF-Brasil.
Figura 10: Logotipo MAB.
32
animais (PAIS - Produo Agroecolgica Integrada e Sustentvel11), cisternas de captao de
gua da chuva, construo e instalao de placas de aquecimento solar de gua e diversas
outras aes que fortaleam a capacidade produtiva das famlias assentadas (sic).
Jornadas de agroecologia12: So eventos realizados no estado do Paran que integram o
processo de articulao das organizaes que promovem a agroecologia e a luta contra o
projeto das empresas transnacionais do agronegcio.
A I Jornada de Agroecologia ocorreu em 2002, na cidade de Ponta Grossa/PR, e em
2012 realizou-se a XI edio da Jornada, sediada em Londrina/PR. As edies da jornada,
consoante a organizao do evento, tem um pblico, em mdia, de 4 mil participantes, de
diversos movimentos sociais, organizaes populares, envolvendo tambm tcnicos,
acadmicos, pesquisadores, profissionais da sade, educao e segue fortalecendo a
unidade poltica entre o campo e a cidade. As jornadas configuram-se como um espao de
estudo, mobilizao e troca de experincias (sic). Promovem as Jornadas: MST - Movimento
dos Trabalhadores Rurais Sem Terra; MPA - Movimento dos Pequenos Agricultores; MAB -
Movimento dos Atingidos por Barragens; MMC - Movimento de Mulheres Camponesas; CPT
Comisso Pastoral da Terra; FEAB Federao dos Estudantes de Agronomia do Brasil;
Terra de Direitos e GALO Grupo de Agroecologia de Londrina.
11 PAIS uma tecnologia social implementada no Brasil via projeto desenvolvido conjuntamente entre SEBRAE, Fundao Banco do Brasil e Ministrio da Integrao Nacional (por meio da Secretaria de Programas Regionais), que visa a incentivar nacionalmente, desde 2008, a produo orgnica e agroecolgica com a construo de hortas mandalas mescladas com a criao de pequenos animais. Consultar: ; . Acesso em: 24 de outubro de 2012. 12 Disponvel em: . Acesso em: 24 de outubro de 2012.
Figura 11: Logotipo da Jornada de Agroecologia.
33
ELAA (Escola Latino-Americana de Agroecologia13): trata-se da
primeira escola de Agroecologia de nvel universitrio do Brasil.
Fundada em 2005, situa-se no municpio da Lapa/PR. A ELAA
fruto de uma iniciativa entre a Via Campesina, apoiada pela
UTFPR (Universidade Tecnolgica Federal do Paran), o
governo estadual do Paran e o governo venezuelano. O
objetivo primordial da escola formar militantes tecnlogos em
Agroecologia da Amrica Latina, com formao crtica e que possam contribuir nas suas
comunidades de origem com a construo de uma agricultura de base ecolgica. A ELAA tem
contribudo com a articulao latino-americana em torno da difuso do conhecimento
agroecolgico e dos fundamentos da educao do campo junto aos movimentos sociais que
integram a Via Campesina no subcontinente.
Cpula dos Povos Por Justia Social e Ambiental em Defesa dos Bens Comuns, Contra a
Mercantilizao da Vida: na declarao final do evento14, ocorrido
na cidade do Rio de Janeiro entre os dias 15 e 23 de junho de 2012,
organizado por movimentos sociais e organizaes contra-
hegemnicas diversas (contando com mais de vinte mil inscritos),
simultneo e em crtica Conferncia das Naes Unidas para o
Desenvolvimento Sustentvel (Rio+20), definiu-se como um dos
eixos de luta a soberania alimentar, a premncia por alimentos sadios e a resistncia
contra agrotxicos e transgnicos.
Encontro Unitrio dos trabalhadores e trabalhadoras do campo e dos povos das guas e
das florestas por terra, territrio e dignidade: realizado em Braslia, entre os dias 20 e 22
de agosto de 2012, contou com mais de sete mil participantes e praticamente todas as
organizaes sociais do campo brasileiro estiveram representadas (militantes de
movimentos sociais, sindicais, populaes tradicionais etc.), as quais sinalizaram, segundo
13Disponvel em: . Acesso em: 24 de outubro de 2012. 14 Disponvel em: . Acesso em: 20 de outubro de 2012.
Figura 12: Placa de identificao da Escola Latino Americana de Agroecologia. Arquivo ELAA.
Figura 13: Logotipo Cpula dos Povos.
34
consta na declarao final do encontro15, a necessidade de articulao visando a
potencializao das lutas pela reforma agrria, pela defesa da agricultura familiar
agroecolgica, contra as mazelas sociais e ambientais do agronegcio etc. um marco
histrico nacional na luta pela terra e por territrio, como tematiza o prprio encontro.
A declarao reafirma [...] a agroecologia como base para a sustentabilidade e organizao
social e produtiva da agricultura familiar e camponesa, em oposio ao modelo do
agronegcio (DECLARAO ENCONTRO UNITRIO, 2012).
A agroecologia um modo de produzir e se relacionar na agricultura, que preserva a biodiversidade, os ecossistemas e o patrimnio gentico, que produz alimentos saudveis, livre de transgnicos e agrotxicos, que valoriza saberes e culturas dos povos do campo, das guas e das florestas e defende a vida (DECLARAO ENCONTRO UNITRIO, 2012).
Poltica Nacional de Agroecologia e Produo Orgnica: produto do avano das discusses e
mobilizaes em prol de agriculturas orgnica e agroecolgica, recentemente, em 20 de
agosto de 2012, instituiu-se no Brasil, via decreto presidencial n 7.794, a Poltica Nacional
de Agroecologia e Produo Orgnica16 (PNAPO). A PNAPO integra vrios ministrios e
coordenada pelo Ministrio do Desenvolvimento Agrrio. Em seu artigo 1 consta:
Fica instituda a Poltica Nacional de Agroecologia e Produo Orgnica - PNAPO, com o objetivo de integrar, articular e adequar polticas, programas e aes indutoras da transio agroecolgica e da produo orgnica e de base agroecolgica, contribuindo para o desenvolvimento sustentvel e a qualidade de vida da populao, por meio do uso sustentvel dos recursos naturais e da oferta e consumo de alimentos saudveis.
15 Disponvel em: . Acesso em: 20 de outubro de 2012. 16 Disponvel em: . Acesso em: 15 de outubro de 2012.
Figura 14: Arte do Encontro Unitrio (Braslia, de 20 a 22 de agosto de 2012).
35
Congresso Brasileiro de Agroecologia: em sua
stima edio, desde 2003 (Porto Alegre) o CBA tem
buscado aproximar a teoria e a prtica
agroecolgicas. Oportuniza o dilogo entre
academia, agricultores, movimentos sociais e ONGs,
atravs do intercmbio de conhecimentos, de
experincias e promove deliberaes e orientaes
para a ao e a construo do conhecimento sob o enfoque agroecolgico.
Rede Ecovida de Agroecologia17: desde 2010 credenciada oficialmente pelo MAPA
(Ministrio da Agricultura Pecuria e Abastecimento) como OPAC
(Organismo Participativo de Avaliao de Conformidade), a Associao
Ecovida ou Rede Ecovida de Agroecologia, formatada e difundida por
agricultores e organizaes populares do Sul do Brasil em resistncia aos
processos de certificao por auditoria suscitada pelas transnacionais dos
orgnicos (IMO-Control, GEBANA etc.), desde a dcada de 1990 articula
em rede ONGs (ASSESOAR, CAPA e CETAP, por exemplo) e Associaes de
Produtores e de Consumidores, em processos pedaggicos, formativos e
organizativos, na efetivao da avaliao participativa da conformidade orgnica dos
produtos de seus associados.
Universidade Federal da Fronteira Sul (UFFS): oficializada com a lei 12.029, de setembro de
2009, a criao da UFFS marcada pela mobilizao dos movimentos sociais
e organizaes populares do Sudoeste do Paran, Oeste de Santa Catarina e
Noroeste do Rio Grande do Sul pela demanda de uma universidade pblica,
federal e popular que atuasse, com o trip ensino, pesquisa e extenso, na
produo de conhecimentos crtico-operativos mirando, consoante consta
no prprio Projeto Poltico Institucional da universidade (PPI18), edificar [...]
dispositivos de combate s desigualdades sociais e regionais, incluindo condies de acesso
e permanncia no ensino superior, especialmente da populao mais excluda do campo e
17
Disponvel em: . Acesso em: 29 de Outubro de 2012. 18 Disponvel em: . Acesso em: 29 de outubro de 2012.
Figura 15: Arte do VII CBA (Fortaleza, 2011).
Figura 16: Logotipo selo Ecovida.
Figura 17: Logotipo UFFS.
36
da cidade; ter como vetor [...] a agricultura familiar na estruturao e dinamizao do
processo de desenvolvimento; e que [...] tenha como premissa a valorizao e a superao
da matriz produtiva existente. Com base nesses pressupostos poltico-institucionais a
agroecologia tem se apresentado como uma importante diretriz para essas aes, presente
na formatao de currculos diferenciados, como por exemplo, nos cursos de Agronomia
com nfase em Agroecologia, Engenharia Ambiental e Energias Renovveis e
Licenciatura Interdisciplinar em Educao do Campo.
Campanha Permanente Contra o Uso de Agrotxicos e Pela Vida19: por fim, citamos a
referida campanha, lanada no incio de 2011, como importante espao de denncia,
debate, articulao e proposio, tendo por mote o
modelo agrrio/agrcola brasileiro lder mundial na
utilizao de agrotxicos. Dessa forma, mais de 30
entidades da sociedade civil brasileira, movimentos
sociais, entidades ambientalistas, ONGs, estudantes,
organizaes ligadas rea da sade e grupos de
pesquisadores congregam a Campanha Permanente Contra os Agrotxicos e Pela Vida. A
campanha est assentada sob dois eixos principais: 1) em tom de denncia, publicizar as
crticas ao agronegcio: a falta de fiscalizao no uso, consumo e venda de agrotxicos, e a
contaminao dos solos e das guas e os impactos dos venenos na sade dos trabalhadores,
das comunidades rurais e dos consumidores nas cidades; e 2) em sentido propositivo,
ampliar o debate sobre a construo de outro modelo agrcola, baseado na agricultura
camponesa e agroecolgica.
Cooperafloresta: criada em 1996 a partir da organizao de famlias
agricultoras quilombolas visando superar situaes de pobreza no
Vale do Ribeira, atualmente formada por aproximadamente 110
famlias organizadas em 22 grupos, envolvendo 322 pessoas nos
municpios de Barra do Turvo/SP e Adrianpoli e Bocaiva do Sul/PR.
19 Disponvel em: . Acesso em: 29 de Outubro de 2012.
Figura 18: Logotipo Campanha Permanente Contra os Agrotxicos e Pela Vida.
Figura 19: Logotipo Cooperafloresta
37
Atravs da agrofloresta, resgatamos e reconhecemos o valor de nossos conhecimentos e sentimentos sobre a natureza e seu funcionamento. Passamos a entender melhor o grande valor das pessoas e da natureza de nossa regio, o Vale do Ribeira, aonde caiaras, quilombolas, indgenas e outros povos tradicionais, convivem em uma relao muito ntima, com o maior pedao contnuo de Floresta Atlntica que ainda resta no mundo [...] (COOPERAFLORESTA, 201420).
Passamos tambm, a participar de grandes movimentos onde nos irmanamos com crescente quantidade de pessoas que comungam destes mesmos ideais, como acontece na Rede Ecovida de Agroecologia21, onde estamos unidos com mais de 3 mil famlias agricultoras ecologistas dos estados do Paran, Santa Carina e Rio Grande do Sul (COOPERAFLORESTA, 2014, grifo nosso).
Conforme seu Estatuto, a Cooperafloresta objetiva fortalecer a agricultura familiar e
o desenvolvimento de uma conscincia ambiental, visando construo da agroecologia e
da prtica agroflorestal para o enfrentamento da excluso social mediante alternativas de
produo e renda para os trabalhadores e trabalhadoras rurais. Para tal, a Cooperafloresta
se prope a facilitar os processos de organizao, formao e capacitao das famlias
agrofloresteiras, planejamento dos SAFs, alm do beneficiamento, agroindustrializao e
comercializao da produo (COOPERAFLORESTA, 2004 apud STEENBOCK et al, 2013, p.
17).
Como podemos observar nessas manifestaes mais recentes sobre o estado de arte
do movimento agroecolgico (sobretudo brasileiro), rapidamente ponderados, o projeto
ecolgico campons expande-se em amplitude, concatenao, inventividade e em
complexidade no obstante, as importantes diferenas poltico-ideolgicas e os limites
prticos da ao dessas organizaes, movimentos e articulaes.
Apontamentos metodolgicos e objetivos da pesquisa
Nesse contexto anteriormente descrito, nossa premissa apreender a participao
da agroecologia na estruturao do que denominamos projeto ecolgico campons,
entendendo-a enquanto importante fenmeno no processo de ativao das
territorialidades, dotando homens e mulheres do campo de maior autonomia relativa ao
capital, transformando atores em sujeitos, terra em territrio.
20
Disponvel em: . Acesso em: 25 de fevereiro de 2014. 21 Compem o ncleo Agroflorestal da Rede Ecovida de Agroecologia, conforme mapa 02, captulo 03.
38
O objetivo geral visa compreender a origem e a dinmica atual do movimento
agroecolgico em Francisco Beltro/PR, atravs da organizao produtiva das famlias e da
mediao de diversos sujeitos na constituio de territorialidades-rede, elaborando uma
leitura do desenvolvimento que toma como referncia o sistema territorial. Argumentamos,
doravante, que a abordagem territorial em geografia nos oferece subsdios crtico-reflexivos
e operativos, a visualizao, projeo e potencializao do desenvolvimento territorial com
base nas prticas agroecolgicas.
Para atender ao conjunto de questes suscitadas, os objetivos especficos da
pesquisa foram divididos em cinco eixos: 1) estudar os fatores que contriburam para a
gnese das experincias agroecolgicas em Francisco Beltro; 2) identificar os principais
elementos constituintes da questo agrria em Francisco Beltro e no Sudoeste paranaense,
com vistas territorializao e s caractersticas atuais do agronegcio, assim como, as
facetas da conflitualidade entre agricultura familiar agroecolgica e o modelo hegemnico
de agricultura e desenvolvimento rural local/regional; 3) entender a estruturao do sistema
local territorial agroecolgico e a construo das territorialidades-rede (sujeitos, instituies
pblicas, sindicatos, ONGs etc.); 4) evidenciar aspectos da dinmica produtiva das famlias
agroecolgicas de Francisco Beltro (mapeamento dos produtores, histrico da converso
agroecolgica de famlias selecionadas, tipos de produtos produzidos, caractersticas da
produo, tecnologias ecolgicas utilizadas, relao e usos dos recursos naturais, dinmica
econmica das unidades de produo, comercializao dos produtos etc.); e 5) sistematizar
as distintas leituras do desenvolvimento e da questo agrria pela rede local de sujeitos e
suas propostas para o incremento da agroecologia.
A empiria da presente pesquisa baseia-se, como assinalado, no estudo das
experincias produtivas e da organizao poltica de doze famlias que integram a Associao
das Agricultoras e Agricultores Ecolgicos de Francisco Beltro, Sudoeste do Paran. Esses
sujeitos, ao passo que resistem expropriao e a monopolizao do territrio pelo capital
(OLIVEIRA, 2001), estruturam com inventividade e tenacidade um sistema local territorial
(DEMATTEIS, 2008) prprio (acessando e edificando redes, construindo organizaes,
estimulando a reciprocidade, a proteo ambiental etc.), apropriando-se, com maior grau de
autonomia dos recursos locais e do produto de seus trabalhos.
39
As experincias agroecolgicas locais, com maior ou menor intensidade, articulam-se,
constituindo redes, que acessam outras redes (e assim sucessivamente) e contribuem para
encorpar o projeto ecolgico campons. Nessas circunstncias, pensar o desenvolvimento
local significa entend-lo para alm dos localismos. Para tanto, percorremos elementos
terico-metodolgicos da ideia de desenvolvimento territorial, estudando a agroecologia a
partir de seu arranjo local, enquanto sistema local territorial articulado reticularmente.
Dessa forma, nosso estudo foca-se na apreenso do fenmeno agroecolgico a partir
do sistema local territorial de Francisco Beltro (Mapa 1) em virtude: 1) da trajetria da ONG
ASSESOAR (no municpio e na mesorregio Sudoeste paranaense), construda ao longo de
seus mais de 40 anos de trabalho em defesa de formas inclusivas e estratgias populares de
desenvolvimento rural e sua insero, junto com a ONG CAPA-Ver, na proposta de
certificao participativa via Rede Ecovida de Agroecologia; 2) das importantes experincias
agroecolgicas consolidadas e trajetrias de resistncia de famlias camponesas em direo
transio agroecolgica; e, por fim, 3) da estratgia popular, como surgem e se estruturam
as redes no territrio, entre sujeitos e organizaes para o fortalecimento da agroecologia a
partir da escala local, formando territorialidades-rede e encorpando o projeto ecolgico
campons.
Os procedimentos metodolgicos da pesquisa foram definidos tomando como base:
1. Reviso bibliogrfica sobre os temas geradores: agroecologia, questo agrria,
campesinato e desenvolvimento territorial, em dilogo com a Geografia Agrria, o
Paradigma da Questo Agrria (PQA) e a abordagem territorial crtico-relacional.
2. Sistematizao e anlise de dados secundrios no IBGE, no IPARDES, na EMATER-PR e
nas organizaes que atuam diretamente com agroecologia (ASSESOAR, CAPA, Rede
Ecovida e Associao das Agricultoras e Agricultores Ecolgicos de Francisco
Beltro/PR), percorrendo evidncias das implicaes decorrentes do processo de
modernizao da agricultura, da consolidao do agronegcio e territorializao das
experincias agroecolgicas local e mesorregionalmente. Para tanto, baseamo-nos
em dados e informaes das ltimas trs dcadas sobre: a dinmica da estrutura
fundiria; a evoluo das populaes rurais e urbanas; as principais caractersticas
produtivas da economia rural; e a situao das experincias agroecolgicas
40
(evoluo, caractersticas econmicas e da organizao poltica, dificuldades, projetos
e propostas).
3. Coleta, tratamento, organizao e anlise de dados e informaes primrias:
conforme relatrio da ASSESOAR, existiam, em 2010, um total de doze famlias
agroecolgicas organizadas pela Associao das Agricultoras e Agricultores Ecolgicos
de Francisco Beltro, das quais onze possuam certificao pela Rede Ecovida de
Agroecologia. Contemplamos no universo de anlise a totalidade das experincias
dos sujeitos que integram a referida associao, utilizando-se, como metodologia, de
entrevistas (gravadas) subsidiadas por roteiros semidiretivos. Realizamos trs etapas
de trabalhos de campo (dez e jan/2010; jul/2011 e jan/2012). Valemos-nos, tambm,
da metodologia dos mapas mentais para melhor detalhar aspectos da paisagem e da
dinmica produtiva das unidades de produo de quatro famlias agroecologistas,
como consta no captulo 04.
4. Levantamento de informaes sobre o estado de arte da agroecologia com
tcnicos e gestores de organizaes governamentais do municpio; tcnicos e
lideranas de organizaes no governamentais, do sindicato, da cooperativa e da
associao de agricultores e que atuam em Francisco Beltro. Nessa sesso, buscou-
se alm do mapeamento da rede local de sujeitos, identificar suas leituras sobre a
perspectiva do conflito e o lugar do agir conflitual (disputa territorial) na esfera das
diversas organizaes que estabelecem (ou deveriam minimamente estabelecer)
conexes com as prticas agroecolgicas e as formas de interao interna-externa
desses coletivos na formao de territorialidades-rede. Sendo assim, entrevistamos
(e transcrevemos as entrevistas) de 01 (um) servidor da EMATER-PR; um (01)
dirigente da Cooperativa de Comercializao da Agricultura Familiar Integrada
(COOPAFI); um (01) dirigente da Cooperativa de Crdito Rural com Interao
Solidria (CRESOL). Na figura de gestor, entrevistamos a Secretria de
Desenvolvimento Rural de Francisco Beltro; na condio de lideranas de entidades,
um (01) dirigente do Sindicato dos Trabalhadores Rurais (STR); dois (02) tcnicos da
ASSESOAR; o coordenador do ncleo regional Sudoeste paranaense da Rede Ecovida
de Agroecologia; e as doze (12) famlias da Associao das Agricultoras e Agricultores
Ecolgicos de Francisco Beltro.
41
Mapa 1 Localizao do municpio de Francisco Beltro, Sudoeste paranaense
42
Uma mirada pela composio dos captulos e outras consideraes sobre a inscrio do projeto ecolgico campons
No meu entendimento, precisamos pensar uma geografia capaz de se mover em duas direes convergentes e complementares entre si, uma crtico-reflexiva e uma operativa. A primeira consiste em desconstruir as representaes do mundo que podemos denominar de no sustentveis, mostrando a partir dos mesmos usos distorcidos do conceito de sustentabilidade como essas so o fundamento e a justificativa de prticas injustas e destrutivas. A segunda, deve contribuir para o nascimento e difuso de novas representaes baseadas no reconhecimento e valorizao das potencialidades desprezadas em cada territrio e em cada sociedade local (DEMATTEIS, 2007, p. 10).
A virada do milnio demarcou o aumento da visibilidade e a ampliao,
diversificao, articulao e intensificao das lutas sociais no campo brasileiro e latino-
americano: luta pela terra, pela gua, pelas florestas, pela democracia, pelos direitos
humanos, pelos direitos dos povos originrios, pelo reconhecimento e superao da
opresso de gnero, pela educao do campo, pelas identidades territoriais, pela
alimentao saudvel, por uma tcnica com fisionomia humana, contra situaes anlogas
ao trabalho escravo, o desemprego e a precarizao do trabalho, pela economia popular e
solidria, contra a mundializao do american way of life. Em uma frase, o descortinar do
novo milnio projetou com fora as reaes dos sujeitos sociais em mltiplas dimenses e
escalas do agir humano contra a matriz de racionalidade moderno-colonial assentada no
globalocentrismo econmico, na opresso e na espoliao dos recursos naturais. Os
camponeses tiveram uma grande contribuio nesse processo, reafirmando a atualidade da
questo agrria e desnudando a incoerncia histrica das teses fatalsticas anticamponesas,
liberais ou marxistas. Consoante sustenta Massimo Quaini, em Geografia: pensamento
impensado,
[...] um dos maiores limites da anlise marxista foi, no tanto aquele de no ter considerado os problemas do territrio ou o que mais tarde chamamos de questo ambiental, mas o de ter considerado muito cedo a superao pela histria e pela modernidade capitalista dos saberes e prticas camponesas, o de ter negado a complexidade social, cultural e tambm geogrfico-territorial de um mundo e de paisagens geogrficas e sociais que a concepo urbanocntrica do progresso civil e econmico havia facilmente condenado (QUAINI, 2011, p. 14).
O sculo XXI aponta para um contexto de agregao de novos contedos e
complexificao da pretrita questo agrria e o territrio tem se colocado como central
43
nesse movimento de renovao dos movimentos autonomistas, emancipatrios,
socioterritoriais (FERNANDES, 2008) e da teoria social engajada.
Do ponto de vista dos camponeses que praticam agroecologia, a referncia ao
territrio, ou seja, s aes de territorializao e aos cdigos de territorialidades que
(re)animam as distintas realidades espao-temporais, baseia-se na conscincia e valorizao
da geograficidade do mundo como trunfo e potncia para a construo de outros
desenvolvimentos, baseados na reconexo (sociedade-natureza; indivduo-sociedade;
campo-cidade; produo-circulao-comercializao etc.), no estmulo s horizontalidades e
na preservao e incremento ecolgicos. O conceito de territrio aproxima-se da prxis
desses sujeitos por dialogar com seus referenciais cotidianos e pensar o desenvolvimento
tomando como base o lugar e suas prticas edificadoras do que chamamos,
metaforicamente, de territrios de vida, entendido, grosso modo, como sistemas de poder
que projetam relaes espacialmente fundadas e estimulam a ampliao da vida social e da
vida imanente natureza exterior ao homem.
Do ponto de vista poltico e terico-conceitual, h uma disputa em curso pelo
territrio. As concepes tradicionais que o apreendem, unilateralmente, enquanto
sinnimo de rea, ou seja, atrelado irrevogavelmente ideia de espao de governana, de
limite poltico-administrativo de hegemonia do Estado territorial, uma concepo
extensionista, assentada no paradigma cartogrfico, da grande interao (QUAINI, 2011) e
no menos fetichizada do territrio, tm cedido lugar a diversas e criativas formas de
compreend-lo e pens-lo terica e politicamente, desde as organizaes sociais at a
academia.
Referindo-se ao paradigma essencialmente cartogrfico (viso panormica, imensa
correlao da realidade social etc.) dos pressupostos da referida geografia cientfica,
enquanto conhecimento normatizado til ao planejamento e a interveno (no nvel escalar
da ao soberana do Estado-nao, por exemplo), Quaini (2011) destaca as perdas dessa
transio (no decurso da sistematizao cientfica dos saberes geogrficos precedentes): o
retrocesso de um patrimnio cognitivo geogrfico antes fundamentado os lugares, aos
quinhes de natureza, a servio das vivncias escalares do homem arteso. Esse prazer de
ver o conjunto inibe a individualizao necessria interpondo uma distncia entre os saberes
44
produzidos pela territorialidade dos sujeitos comuns e um pensar geogrfico ancorado na
ideologia da modernidade. Nesse sentido, o autor reitera o elogio de uma cincia do
passado diante o desafio de uma imprescindvel renovao cientfica colocada ao
entendimento e valorizao dos lugares que habitamos: no por sua centralidade na rede
global, sustenta, mas por seu patrimnio territorial que os caracterizam como nicos e
locais.
Esse territrio, como nos lembra Raffestin (1993), no poderia ser nada mais do que
o produto dos sujeitos sociais: so eles que o produzem e efetivam os processos
territoriais quando se manifestam todas as espcies de relaes de poder. Por outro lado,
como bem assegura Haesbaert (2005, p. 87): todo conceito, como toda teoria, s tem
validade quando referido a uma determinada problemtica, a uma questo. Assim, o
territrio um dos principais conceitos que tenta responder problemtica da relao entre
a sociedade e seu espao.
Dessa forma, a materialidade do territrio no est na sua percepo e descrio mais banal e superficial, efetivada no sculo passado atravs de uma geografia no reflexiva de derivao positivista. Ao contrrio, a materialidade do territrio exprime-se nas relaes intersubjetivas derivadas, em ltima instncia, da necessidade de produzir e de viver que, ligando os sujeitos humanos materialidade do ambiente, provoca interaes entre si, como membros de uma sociedade. O territrio, assim, resulta como contedo, meio e processo de relaes sociais. Essas relaes sociais que so, ao mesmo tempo, materiais, substantivam o territrio (DEMATTEIS, 2007, p. 08).
Os eventos cada vez mais intensos irradiados desde as prticas dos sujeitos do
subsuelo poltico, reivindicando seus territrios ao mesmo tempo em que dirigem
intencionalidades na construo de resistncias e autonomias monopolizao do territrio
pelo capital, desafiam aquela geografia do inventariado espacial, da quantificao simplista e
da representao abstrata; esta submetida a contundentes crticas, desconstruda
discursivamente e desnaturalizada enquanto conhecimento eminentemente objetivo e
conclusivo, resultando no acirramento de uma importante crise epistemolgica.
Mas desses escombros, quais conhecimentos conteriam potencialidades para a
construo de uma abordagem geogrfica ancorada na afirmao e valorizao dos projetos
oriundos da sociabilidade do homem simples (MARTINS, 2008) e na projeo de modelos
plurais de desenvolvimento centrado nessas relaes? Muitas, surpreendentemente:
45
(neo)marxistas, (neo)anarquistas e fenomenolgicas; abordagens dialgicas com enfoques
multidimensionais e multiescalares, apreendendo as grafias feministas, dos povos
tradicionais, as expresses geogrficas da intersubjetividade etc.
Nesta tese, analisando os processos de ativao de territorialidades por meio das
prticas agroecolgicas, fenmenos constituintes do que denominamos por projeto
ecolgico campons, enveredamos por uma geografia histrico-crtica-relacional (SAQUET,
2012), com base na abordagem territorial e no Paradigma da Questo Agrria. Nossas
referncias substanciais nesse campo so M. Saquet (2003, 2007 e 2011), G. Dematteis
(2007 e 2008), C. Raffestin (1993), M. Souza (1996 e 2009), Porto-Gonalves (1992, 2004 e
2006), Montenegro Gmez (2006 e 2010), A. Oliveira (2001) e B. Fernandes (2005, 2008 e
2009).
Por meio da agroecologia, homens e mulheres organizam-se e pem-se a lutar,
territorializam experincias