-
TRADUÇÃO TÉCNICA, CONDICIONANTES CULTURAISE OS LIMITES DA
RESPONSABILIDADE DO TRADUTOR'
João Azenha JrUSP
EM UM LIVRO DE 1983, The translator's handbook, Catriona
Pickenjustapõe duas ilustrações que retratam o tradutor em seu
ambiente detrabalho: de um lado, vemos um quarto abarrotado de
livros, um cestode papel cheio de páginas amassadas e, no meio de
tudo isso, alguémque olha para o relógio com expressão aflita,
enquanto um gato en-torna o líquido de um copo sobre as poucas
laudas de tradução jáprontas; na outra ilustração, o tradutor está
sentado diante de seucomputador, dispõe de uma pequena estante
organizada de livros etrabalha, ao que tudo indica, sem o stress da
primeira situação retra-tada. As duas ilustrações fazem parte de um
capítulo em que se dis-cutem as ferramentas de trabalho do tradutor
e a sua importânciapara se reduzir a margem de erro da
tradução.
Em se tratando de traduções técnicas, não é pequeno o
anedotáriosobre os "desastres" provocados por erros: os casos
relatados vãodesde acontecimentos mais corriqueiros como
eletrodomésticos quei-mados e motores fundidos, passam por
acidentes de maiores propor-ções como pontes que não se sustentam e
chegam a óbitos decorrentesda ingestão em dosagem indevida de
medicamentos e até a catástrofesecológicas provocadas pelo uso
incorreto de agrotóxicos. Conquistassociais mais recentes como o
Direito Ambiental e os Códigos deDefesa do Consumidor têm
garantido, de um lado, amparo legal àsvítimas de tais eventos; de
outro, considerando a possibilidade de in-terveniência de terceiros
ao longo do processo de produção dos textostécnicos, muitos
tradutores se cansaram de receber sobre os ombrostoda a culpa pelas
conseqüências de tais erros e buscam amparo emcontratos de seguro —
como é o caso de tradutores e intérpretes da
-
138 João Azenha Jr.
União Européia —, a fim de se protegerem das conseqüências
deerros que, apesar de involuntários, nem sempre podem ser
evitados.
Sem pretendermos questionar a veracidade de tais relatos, ou
mi-nimizar a sua gravidade, cremos que uma reflexão mais
sistemáticasobre a natureza e as características da tradução
técnica pode contri-buir, num primeiro momento, para um
esclarecimento acerca dasrelações envolvidas nesse tipo de tradução
e, no médio prazo, parauma transformação no status de que desfruta
esse tipo de trabalho nointerior das discussões sobre tradução.
Para tanto, porém, é condiçãosine qua non o abandono da noção
pré-concebida, amplamente di-fundida e, na maioria das vezes,
equivocada, de que os textos técnicossão qualitativamente
"inferiores" aos textos de base cultural maisevidente, o que
justificaria sua existência à margem de tais discussões.Num plano
mais abstrato, parece que traduzir um manual de operaçãopara uma
máquina de emborrachamento de tecido, por exemplo, con-tinua sendo
uma atividade "menor" do que traduzir um poema. Nodomínio concreto
do uso, porém, se é verdade que o manual dificil-mente seria o
livro de cabeceira de alguém, também é verdade que opoema de nada
serviria ao operário no momento de trabalhar com amáquina. A
aplicabilidade imediata do que se entende (ou não) apartir da
leitura de um texto técnico traduzido sublinha a questão doerro de
tradução, ao mesmo tempo em que chama a atenção para
aresponsabilidade do tradutor e para as possíveis conseqüências
daatividade de traduzir sobre o dia-a-dia das pessoas.
A fim de reduzir a interferência de terceiros e de melhor
controlara margem de erros de tradução e suas conseqüências, o
tradutor técnicodispõe hoje dos meios eletrônicos ultra-rápidos
como as transmissõesde mensagens e textos via computador, o acesso
a banco de dados, oscorretores ortográficos e gramaticais
disponíveis no mercado e atéde programas de tradução
computadorizada desenvolvidos para áreasespecíficas e para um
determinado par de línguas. Assim, por exemplo,o tradutor pode
receber em seu computador o texto a ser traduzido e,enquanto usa o
seu tempo para alguma outra coisa, aplica sobre otexto um programa
de reconhecimento de termos, depois um programade tradução, em
seguida um corretor ortográfico e gramatical, parasó começar a
trabalhar efetivamente com o texto quando já dispuser,no seu
equipamento, de uma minuta da tradução. Tem início, então,um
trabalho de sintonia fina, por assim dizer: a leitura crítica, a
revisão
-
Tradução técnica, condicionantes culturais e... 139
terminológica através do acesso a bancos de dados, a consulta a
espe-cialistas de seu país e do exterior, a marca do seu estilo na
constituiçãodas estruturas sintáticas, o diálogo texto-imagem, a
formatação final.Concluído o trabalho, o texto traduzido é enviado
ao cliente via com-putador.
Esta terceira imagem, diferente das outras duas citadas no
iníciodeste artigo, não é de todo desconhecida da realidade dos
tradutorestécnicos brasileiros, mas sem dúvida ainda não constitui
a regra. Elarevela alterações profundas no perfil e no
comportamento dos tra-dutores e nos sugere uma reflexão, em
ambiente acadêmico, sobre anatureza e as características da
tradução técnica e suas conseqüênciaspara os limites da
responsabilidade do tradutor no mundo empresarial.O surgimento de
um número cada vez maior de cursos de traduçãono Brasil e o avanço
mundial experimentado pelos estudos em tra-dução desde meados da
década de 80 fazem dos cursos de formaçãode tradutores um espaço
privilegiado para a discussão teórica e práticade problemas
relacionados à tradução técnica e para a conscientizaçãodos
profissionais acerca das variáveis que cercam seu trabalho,
dosdireitos e deveres que possuem e da importância de seu papel
social.
Até bem recentemente, as aulas de tradução técnica — e
incluoaqui minha própria formação ao longo da década de 80 —,
quandonão eram vistas como um "mal necessário" na formação de
tradutores,ocupavam uma parte pouco significativa da carga horária
dos cursos.Em geral, tais aulas eram ministradas com base em textos
freqüen-temente desatualizados, que um dia deviam ter dado algum
trabalhode tradução ao professor e que, desde então, serviam de
base para acorreção das traduções dos alunos.
Trabalhando mais tarde como revisor para editoras de São
Paulo,tive a oportunidade de copidescar textos de natureza técnica,
que mechegavam às mãos com a incumbência de "rever a sintaxe", já
que atradução tinha sido feita por um especialista e a terminologia
estava100% correta. Para o meu desapontamento, logo descobri que
"revera sintaxe" significava tornar o texto legível, ou seja,
reescrevê-lo com-pletamente e pela metade do preço pago pela lauda
de tradução. Des-cobri, também, que o domínio do assunto aliado a
conhecimentos dalíngua estrangeira não eram suficientes para se dar
conta desta emprei-tada. Era necessária uma outra compreensão de
texto além de algoque fosse a mera soma de léxico e sintaxe.
-
140 João Azenha Jr.
Em 1989, ano de desemprego para os tradutores que trabalhavamcom
editoras, aceitei algumas traduções técnicas para empresas epude
continuar observando como a questão da tradução técnica era,e em
muitos casos ainda é, tratada. Não foram poucas as vezes emque
alguém da empresa que contratou os meus serviços me
telefonoudizendo que alguns termos que eu havia usado não eram "da
praxeda empresa", apesar de as minhas opções de tradução terem sido
ex-traídas de fontes dicionarizadas e fidedignas. Em outras
palavras,um mesmo referente recebia denominações diferentes em
empresasde um mesmo ramo de atividade. E o que é pior: pouco ou
quase na-da havia que me permitisse encontrar respostas, sem ter de
solicitarajuda à própria empresa e me sujeitar ao constrangimento
de ouvircomentários irônicos quanto aos meus conhecimentos sobre o
assuntoe sobre a língua da qual me propunha a traduzir. Para
completar essequadro desolador, algumas vezes tive de refazer o
trabalho sob penade não receber os honorários combinados para 45
dias após o recebi-mento da tradução pela empresa, sem qualquer
correção monetária,numa época em que a inflação no Brasil ficava em
torno dos 40% aomês!
Elementos da minha própria experiência, aqui brevemente
relata-dos, foram a base para uma reflexão mais sistemática sobre a
proble-mática da tradução em geral e da tradução técnica para o par
de línguasalemão-português, em particular. Ao percorrer o caminho
da práticapara a teoria, pude constatar que mais desastrosa para a
tradução téc-nica do que os já citados casos de erros era uma visão
largamentedifundida, inclusive entre professores e teóricos da
tradução, segundoa qual os textos técnicos, diferentemente de
outros tipos de texto,seriam unívocos, "universais". Nesse sentido,
verifiquei que mesmoos teóricos da tradução mais liberais no que
respeita à tradução literá-ria e publicitária, pareciam admitir,
para a tradução técnica, algo que,de resto, condenavam
veementemente para a tradução como um todo:uma noção de tradução
centrada eminentemente numa operação detranscodificação que se
processava à margem de um enquadramentocultural. Como decorrência
disso, os problemas de tradução técnicaestariam fundamentalmente
restritos ao plano lexical-terminológico,e o resultado do trabalho
do tradutor seria tanto melhor, quanto maiorfosse o seu domínio
da(s) terminologia(s) envolvida(s).
Se isso fosse verdade, porém, então também deveria haver um
-
Tradução técnica, condicionantes culturais e... 141
sistema de classificação tipológica de textos capaz de
estabeleceruma divisão estanque entre os textos técnicos e todos os
outros tiposde textos. Da mesma forma, os termos técnicos cunhados
para abrigarconceitos deveriam constituir com estes um amálgama
indissolúvele imune aos efeitos do tempo e do espaço, a fim de
poderem resistira uma série de condicionantes: o uso lingüístico
nas diferentessituações de comunicação técnica, a evolução da
ciência, as defasa-gens tecnológicas entre os países, os diferentes
critérios de medição,de normatização, as diferentes legislações, só
para citar algumas.
A experiência de trabalho com a tradução de textos técnicos,
po-rém, nos mostra que os tipos textuais são instáveis, que os
textos sãoformas híbridas, que todos os textos estão sujeitos a um
númeroelevadíssimo de variáveis e que a terminologia, longe de ser
algo es-tático, é dinâmica e reconhece sua dificuldade em controlar
a subjeti-vidade no tratamento de seu objeto, a linguagem.
Examinando a literatura referente ao tema, pude constatar que
anoção de texto técnico como um todo estrutural e funcional
(Hoff-mann, 1988) traz à luz outras dimensões de análise, nas quais
sepode perceber com maior clareza o comprometimento dos
textostécnicos com uma realidade cultural extralingüística. Tal
enraizamentoé, a meu ver, o ponto de partida para uma mudança de
paradigma emrelação à tradução técnica, pois, ao considerarmos as
linguagenstécnicas como subsistemas da linguagem geral, colocamos
emigualdade de importância todos os níveis da hierarquia
lingüísticapresentes nos textos técnicos. Sob essa perspectiva,
passam a serigualmente importantes para a constituição e, portanto,
para a traduçãodo texto técnico os níveis grafo-fonológico,
morfossintático e semân-tico, além da consideração de aspectos
diretamente ligados à situaçãode recepção dos textos técnicos, ao
contexto de comunicação e aohorizonte de valores culturais. E mais
ainda: tal perspectiva incluitambém os signos icônicos em diálogo
com signos verbais, o que si-gnifica explorar — no caso dos textos
impressos — o caráter funcionaldo tipo gráfico, os recursos de
espacialização e de destaque, o empregode cores, a nitidez e o
nível de detalhamento das ilustrações, a qua-lidade do papel.
Prosseguindo no exame desta problemática, realizei uma
pesquisapara cuja moldura teórica serviram de base as contribuições
da linhafuncional-cultural dos estudos tradutológicos, sobretudo de
orientação
-
142 João Azenha Jr.
alemã — particularmente, os trabalhos de ReiB e Vermeer
(1984),Justa Holz-Mãnttãri (1984), Mary Snell-Hornby (1986/88) —,
com-binados com conceitos e métodos dos estudos das linguagens
técnicas— Mõhn e Pelka (1984), Schmitt (1986/88), Schróder (1987)
eHoffmann (1988). ,
O ponto de partida para a pesquisa foi a hipótese de que,
partindo-se das relações fundamentais entre linguagem e cultura, é
possívelevidenciar a importância da consideração de aspectos
culturais natradução de textos técnicos. Sob esta ótica, o texto
técnico passa aser visto como uma estrutura multidimensional
ancorada histori-camente, isto é, como um todo articulado com um
momento histórico,formado por diferentes planos interrelacionados,
todos eles portadoresde sentido e, portanto, de relevância para o
tradutor.
O exame da literatura deixou claro, num primeiro momento, queum
tal estudo impõe a necessidade de se desenvolver um método
detrabalho capaz de dar conta da diversidade de variáveis
envolvidas ede assegurar o trânsito por disciplinas afins. Numa
segunda fase darevisão da literatura, procedeu-se à avaliação
crítica de dois modelosde tipologia textual desenvolvidos
especificamente para a tradução— ReiB (1976) e Mary Snell-Hornby
(1988) —, cujos resultadosmostraram que o tipo de texto não é algo
rígido e perene, a partir doque se podem tecer considerações
generalizadoras, válidas paraqualquer época e lugar, mas algo
instável e de contornos esmaecidos.Nesse sentido, tornou-se patente
a necessidade de se estabeleceremparâmetros objetivos para a
realização de uma tarefa específica declassificação tipológica.
Numa terceira etapa da constituição do marcoteórico, o estudo de
conceitos fundamentais das linguagens técnicasmostrou que as
diferenças entre a linguagem comum e as linguagenstécnicas são
diferenças de grau, mas não de essência, e que, portanto,o processo
de produção dos textos técnicos está sujeito a variáveisque são
diferentes em grau, mas não em essência, das que influenciama
produção e a recepção de qualquer tipo de texto.
O corpus da pesquisa foi formado por exemplares de textos
deinstrução de um mesmo produto ou serviço, comercializado ou
ofe-recido por uma mesma empresa na Alemanha e no Brasil. Foram
dosseguintes tipos os exemplares de textos selecionados, em alemão
eem português:
-
Tradução técnica, condicionantes culturais e... 143
prospecto informativo sobre fitas para gravador;folheto
informativo e proposta de adesão a cartão de crédito;manual
informativo para aplicação de fungicida;bula de remédio;instruções
para preparação e aplicação de tintura para cabelo; emanual do
proprietário de automóvel.
O trabalho com o corpus de textos apontou diferenças
signi-ficativas entre os pares de textos estudados em cada caso.
Tais di-ferenças confirmaram de maneira evidente o envolvimento dos
textoscom uma realidade cultural não apenas no nível do léxico e da
sintaxe,como já era de se esperar, mas também em outros níveis
daorganização textual.
Nesse sentido, as estratégias de vulgarização dos
conhecimentostécnicos apresentados nos textos se concretizaram de
forma dife-renciada numa e noutra língua/cultura. Nos textos
alemães, foi pos-sível enxergar com maior clareza uma estratégia de
produção capazde garantir unidade ao processo de decisão nos
diferentes planos deorganização textual. Assim, o estudo dos
exemplares de textos alemãesdeixou claro que, para privilegiar a
economia e a clareza, os textosalemães conjugavam coerentemente
esforços integrados que iam doplano das escolhas lexicais até o
diálogo texto-imagem. A guisa deexemplo, o estilo dos textos
estudados tendia, em alemão, à nomi-nalização — um recurso
amplamente citado como caracterizador doestilo das linguagens
técnicas — e isto se traduzia não apenas nopredomínio de
substantivos, inclusive com a nominalização de verbose adjetivos e
com todas as suas possibilidades de combinação, mastambém em
estruturas sintáticas que facilitavam a acomodação
dessasnominalizações, como as estruturas de verbos funcionais, por
exem-plo, ou o emprego da voz passiva com todas as suas
alternativas,além da adoção de uma programação visual que
sustentava e orga-nizava os sintagmas nominais, facilitando a
ordenação das infor-mações sem o uso do verbo.
Esta "espinha dorsal" da estratégia de produção do texto
técnicode instrução foi mais evidente nos textos alemães do que nos
bra-sileiros, talvez pelo fato de as linguagens técnicas já virem
sendodescritas e discutidas na Alemanha há algumas décadas. Isso
significaque, paralelamente à sujeição a normas técnicas que
regulam oformato e conteúdo informativo de tais textos, o produtor
alemão do
-
144 João Azenha Jr.
texto técnico de instrução conta também com um parâmetro de
lin-guagem, do qual pode se aproximar ou se afastar, dependendo
dosobjetivos de sua estratégia de trabalho.
Nos textos em português, o exame dos pares de textos
reveloupontos em que a estratégia de produção de um texto de
vulgarizaçãoapresentava falhas que comprometiam, às vezes
seriamente, a com-preensão. Novamente, o problema estava em se
combinar adequa-damente a simplificação técnica almejada com os
objetivos da clarezae da concisão.
No plano do léxico, por exemplo, contribuíram para a
imprecisãoda informação, entre outros, o emprego de atributos e
advérbios quemodificavam de forma apenas indefinida o substantivo a
que sereferiam. Nesses casos, a pressuposição, por parte do
produtor, era ade que o receptor do texto seria capaz de preencher
inequivocamenteessas lacunas, podendo determinar, por exemplo, o
que seria "umadistância apropriada" para a colocação do triângulo
de advertência(manual do usuário de automóvel), ou o que
significava a indicação"bem cedo" para a aplicação de um fungicida.
Ainda quanto ao léxico,foram detectadas ao longo da análise algumas
discrepâncias na aco-modação de estrangeirismos — por exemplo, a
questão da palavra"cassete" no folheto em português sobre fitas
para gravador — e oemprego de adjetivos com função conotativa, que
privilegiavam aopinião pessoal do produtor textual em detrimento da
informaçãoobjetiva sobre o produto ou o serviço.
No plano da sintaxe, contribuíram para a pouca especificidadedas
informações o largo emprego de gerúndio, a omissão dos sujeitos,a
falta de sistematicidade na formulação das instruções e o
tratamentoassistemático dispensado às modalizações. Ao que tudo
indica, a faltade elementos coesivos pareceu estar ligada a uma
noção de "bom es-tilo" — segundo a qual não se deve repetir um
mesmo elemento —transplantada de outras tipologias de texto para os
textos técnicos deinstrução, com prejuízo para a acuidade das
informações e instruçõesveiculadas.
Somam-se a estes problemas os erros de ortografia, acentuação
eregência, que apontaram para um processo de revisão deficitário
ereforçaram a hipótese de que o texto final não passou pelo crivo
deleituras críticas mais apuradas.
Outros dois aspectos dos folhetos em português merecem ainda
-
Tradução técnica, condicionantes culturais e... 145
um comentário. Em primeiro lugar, o exame da estruturação do
textorevelou pontos em que a relação entre o título (ou subtítulo)
e o con-teúdo da passagem não ficou suficientemente marcada. Em
segundo,o uso de signos icônicos ora deu sustentação ao texto
verbal — comona identificação de peças e componentes do automóvel
—, orafuncionou contrariamente à clareza, como no caso da redução
do ti-po gráfico na "Posologia" da bula de medicamento.
A análise de tais aspectos permitiu identificar que, nos
textosalemães, a conjugação de esforços articulados em todos os
planos daorganização textual teve por objetivo enfatizar a
especificidade técnicados produtos e serviços oferecidos, ao passo
que, nos folhetos bra-sileiros, essa ênfase se deslocou da
especificidade técnica para sím-bolos e clichês que, em nossa
cultura, parecem distinguir o consu-midor de tais produtos e
serviços.
Assim, a ampliação dos limites de tratamento de textos
técnicosem sua relação com a tradução sugeriu uma reflexão mais
criteriosaem pelo menos três grandes domínios:
Na orientação de pesquisas em tradução. Para o estudiosoque
busca apoio teórico-metodológico para descrever o
processotradutório de forma mais próxima de sua complexidade, tal
pers-pectiva requer uma predisposição para um trânsito contínuo de
umadisciplina a outra, na busca de princípios, critérios e modelos
com-binados, a serem testados quanto à sua aplicabilidade e quanto
à suaflexibilidade. Um tal trânsito, porém, exige uma sólida
infra-estruturade trabalho, um tempo mais prolongado para sua
realização e ofereceo risco — graças justamente ao número elevado
de variáveis queenvolve — de uma desorientação, para o que
contribui a falta de cri-térios e de procedimentos previamente
estabelecidos. Nesse quadro,assume importância vital a reflexão
sobre os objetivos do estudo, e omodo como o tradutor-pesquisador
justifica os recortes metodológicose conceptuais adotados em função
do objetivo traçado, pois só a trans-parência dessa relação pode
garantir a coerência e a unidade do tra-balho e fornecer os
parâmetros a partir dos quais possa ser feita suaavaliação.
Na determinação de critérios de avaliação de traduçõestécnicas.
Ao se estender o plano de ação do tradutor dos limites do
-
146 João Azenha Jr.
léxico e da sintaxe para questões estilísticas, formais,
convencionais,e até para o emprego consciente de recursos gráficos
e tipográficos,amplia-se consideravelmente a margem de atuação do
tradutor emodificam-se os critérios de avaliação de seu trabalho. A
chave parauma atuação mais ou menos eficaz do tradutor parece estar
no seugrau de consciência das variáveis que entram em jogo em cada
casoe na sua habilidade em controlar tais variáveis com a
determinaçãode objetivos e estratégias claros, realizáveis através
do uso otimizadodos instrumentos de apoio disponíveis. Para o
profissional de tradução,que freqüentemente se vê diante da
necessidade de desenvolver umatécnica para a rápida aquisição de
conhecimentos específicos, a noçãodo comprometimento dos textos com
uma situação de comunicaçãoe com uma realidade cultural impõe
também a necessidade de re-flexões prévias, de estratégias de
trabalho, de escolha de caminhos,que serão tão mais eficazes e
positivamente avaliados quanto maiorfor a capacidade e a
predisposição do profissional em estabelecer oslimites, objetivos e
estratégias de cada trabalho que realiza; quantomaior for, em suma,
sua habilidade em mostrar à instância que lheencomenda o trabalho
seu papel de co-responsável no resultado final.
3. Na didática da tradução. Para o professor de tradução,
enfim,a ampliação dos limites de atuação do tradutor técnico sugere
umtrabalho voltado para a conscientização de variáveis envolvidas
numprocesso tão complexo, para a formação de um espírito crítico,
nosentido do reconhecimento de potencialidades e do emprego
cons-ciente de recursos expressivos, e para a instrumentalização
dos futurostradutores, entendida esta última como a habilidade em
usar de formaotimizada os meios de apoio disponíveis em cada caso.
Ao reveremseus conceitos e reconhecerem a relatividade das
considerações sobretradução, os alunos precisam ser orientados no
delicado trabalho dedesestruturação paulatina de noções herdadas e
na reestruturação deuma visão que lhes garanta a familiaridade com
conceitos como, porexemplo, o da instabilidade de procedimentos e
resultados. Nestecontexto, o desafio está em se cuidar para que a
motivação que leva oaluno a buscar um curso de tradução não seja
prejudicada peloprocesso de conscientização e pelo acúmulo de
responsabilidades,dela decorrente. Nesse sentido, o processo de
conscientização deveser acompanhado de uma ampla
instrumentalização, a fim de que o
-
Tradução técnica, condicionantes culturais e... 147
estudante de tradução desenvolva paulatinamente a confiança
nassuas próprias decisões e não se veja de uma hora para
outraabandonado à própria sorte. Também aqui a coerência e a
unidade daintegração professor-aluno de tradução só serão
garantidas se houveruma reflexão prévia quanto aos objetivos do
curso e desde que asrelações entre o referencial teórico-conceptual
e os procedimentosdidático-metodológicos forem mostradas com
clareza.
Para concluir, as reflexões desenvolvidas ao longo desta
pesquisasugerem um redimensionamento do perfil do tradutor técnico,
deseus diferentes papéis como centro do processo decisório
envolvidona tradução e, conseqüentemente, do seu grau de
responsabilidadeno momento da avaliação de seu trabalho. Trata-se
aqui, em outraspalavras, de um processo de constante entendimento
entre quem pedee quem realiza a tradução. E a iniciativa de tal
entendimento deve, ameu ver, partir do próprio tradutor. É ele que
precisa convencer quemencomenda a tradução acerca da necessidade de
se integrarem es-forços, de se discutirem alternativas, de o
processo de produção dotexto técnico se caracterizar como um
trabalho de equipe. É a ele quecabe elucidar clientes e
consumidores de traduções técnicas sobre asmúltiplas relações de
interdependência entre as escolhas que se fazemno plano do texto e
suas possíveis interpretações por parte dacomunidade de leitores,
já que o texto técnico, como qualquer outrotipo de texto, é um todo
integrado numa realidade tecnológicaculturalmente condicionada, que
ele reflete e condiciona. É ele quedeve abandonar a posição de quem
se lamenta por não ser compre-endido e partir para o contra-ataque.
"Arrumar a casa" da traduçãotécnica, como na passagem de uma das
ilustrações mencionadas noinício para a outra, requer o exame
cuidadoso do que deve ser des-cartado, do que precisa ser
substituído.
Este trabalho de reconhecimento de problemas e de busca
cons-ciente de soluções tem ressonâncias profundas no indivíduo e
não sedesenrola de maneira uniforme de tradutor para tradutor, mas
depende,em última análise, do grau de resistência de cada um em
ceder emsuas noções pré-concebidas sobre linguagem e tradução. O
desen-volvimento da confiança em seu próprio trabalho, desatrelada
danoção de que melhor traduz aquele que melhor conhece a língua
es-trangeira e o assunto em questão na tradução, pode revelar
dimensões
-
148 João Azenha Jr.
de atuação até então inexploradas para muitos, e abrir portas
parauma melhor compreensão de si mesmo e de sua relação com a
lin-guagem e com as diferentes visões de mundo.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
AZENHA Jr., J.- Aspectos culturais na produção e na tradução de
textos técnicosde instrução alemão-português: teoria e prática.
Tese de Doutoramento. São Paulo,USP/FFLCH/DLM, 1994.
HOFFMANN, L. (ed.) Fachsprachen. Instrument und Objekt. Leipzig,
VEBEnzyklopãdie, 1987.
HOFFMANN, L. - "Ein textlinguistischer Ansatz in der
Fachsprachenforschung".In: HOFFMANN, L. - Vom Fachwort zum
Fachtext. Beitrãge zur AngewandtenLinguistik. Tübingen, Narr,
1988.
HOLZ-MÃNTTÁRI, J. - Translatorisches Handeln. Theorie und
Methode.Helsinki, Suomalai nen Tiedeakatemia, 1984.
MÕHN, D. e PELKA, R. - Fachsprachen. Eine Einführung. Tübingen,
Niemeyer,1984.
PICKEN, C. (ed.) - The translator's handbook. Londres, Aslib,
1983.
REIB, K. - Texttyp und Übersetzungsmethode. Der operativa Text.
Kronberg/Ts,Scriptor Verlag, 1976.
REIB, K.NERMEER, H.J. - Grundlegung einer allgemeinen
Translationstheorie.Tübingen, Niemeyer, 1984 (Linguistische
Arbeiten 147).
SCHMITT, P.A. - Die `Eindeutigkeie von Fachtexten: Bemerkungen
zu einerFiktion. In; Snell-Hornby, M. - Übersetzungswissenschaft -
eine Neuorientierung!Zur Integrierung von Theorie und Praxis.
Tübingen, Francke Verlag, 1986, p. 252-282.
SCHMITT, P.A. - Kulturspezifik von Technik-Texten: Ein
translatorisches undterminographisches Problem. In: VERMEER, H.J.
(ed.) - Kulturspezifilc destranslatorischen Handelns. Heidelberg,
Universitãtsdruckerei, 1989, p.
SCHRÕDER, H. - Aspekte sozialwissenschaftlicher Fachtexte. Ein
Beitrag zurFachtextlinguistik. Hamburg, Helmut Buske, 1987.
-
Tradução técnica, condicionantes culturais e... 149
SNELL-HORNBY, M. (ed.) - Übersetzungswissenschaft - eine
Neuorientierung.Zur Integrierung von Theorie und Praxis. Tübingen,
Francke, 1986.
SNELL-HORNBY, M. - Translation Studies. An integrated approach.
Amsterdã/Filadélfia, John Benjamins Publishing Company, 1988.
1. Este trabalho, em versão reduzida, foi apresentado no IV
Congresso Brasileirode Lingüística Aplicada, realizado na UNICAMP
de 4 a 6 de setembro de 1995. Osexemplos que sustentam as
considerações aqui tecidas, e outras, fazem parte de umapublicação
de maior vulto, ainda em fase de elaboração.
Gt.
Page 1Page 2Page 3Page 4Page 5Page 6Page 7Page 8Page 9Page
10Page 11Page 12Page 13