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O Auto da Compadecida Ariano SuassunaECML | Professor: Marcelo
Costa Carvalho | TEATRO | turma II | 2014 apresentaO Auto da
Compadecida
Autor: Ariano SuassunaAdaptao e Direo Geral | ESPETCULO: Marcelo
Costa CarvalhoCoordenao Pedaggica: Aurimar Corra e Ana Paula
BarattaProduo: MCostaCarvalho.comRealizao: TEATRO Turma IIDireo |
ECML: Alice BurkowskiEscola Cenecista Monteiro LobatoGRUPO
EDUCACIONAL CNECwww.cnec.br
2014
CONSTRUO DE PERSONAGEM
Uma personagem bem construda fundamental para o funcionamento de
uma histria e de sua narrativa. Um escritor deve, atravs do
roteiro, saber criar personagens marcantes que consigam provocar na
audincia as emoes desejadas, sejam elas de atrao ou de repulsa,
amor ou dio, preocupao ou indiferena.
A Necessidade Dramtica
Talvez o passo mais importante para a criao de um personagem
seja o de saber qual a suaNECESSIDADE DRAMTICA. O que esse
personagem quer na histria? Todo personagem precisa de um objetivo,
caso contrrio ser apenas uma carcaa vazia. Esse objetivo dramtico
no deve ser construdo apenas para os personagens principais, mas
tambm para os personagens coadjuvantes.
Alm disso, a motivao do personagem precisa ser convincente. O
roteiro precisa deixar bem claro a importncia do objetivo para o
personagem. uma falha grave fazermos o personagem atravessar toda
uma histria sem que haja uma forte necessidade por trs de suas aes.
A regra tradicional a de que o personagem precisa agir, correr atrs
do seu desejo, e no ficar esttico observando o que acontece ao seu
redor. Tudo deve ser obtido com sacrifcio, para ter maior valor.
Geralmente, o personagem enfrenta no fim o seu maior medo, o
obstculo supremo.
Esse objetivo no precisa sempre ser algo externo. Pode ser um
forte conflito interior, o que geralmente produz obras mais densas
e menos comerciais.
As Escolhas do Personagem
Devemos retratar um personagem pelas suas contradies, escolhas e
relaes.
Cada ao escolhida, cada resposta dada pelo personagem o que o
definir perante a audincia. A vida nos apresenta a todo momento a
oportunidade da escolha. Nossa vida representa nossas escolhas, e
com um personagem fictcio acontece o mesmo.
A roupa de cada dia, a msica a ser tocada em uma ocasio ntima, o
que dizer em um determinado momento, quais amigos escolher, qual
profisso sonhar. A audincia formar sua opinio em relao ao
personagem de acordo com as escolhas que ele fizer. Se a audincia
se identificar e concordar constantemente com as aes do personagem,
a tendncia gostar deste personagem, mesmo que na vida real no
exista para o leitor/espectador a possibilidade de realizar e
imitar essas mesmas aes.
fundamental que o personagem tenha escolhas difceis ao longo da
obra, caso contrrio ele no ter fora dramtica. So nas horas mais
difceis que conhecemos melhor cada pessoa, e assim tambm deve ser
em uma narrativa.
O Arco do Personagem
As escolhas feitas pelo personagem no so aes vazias. Elas devem
tambm provocar mudanas em sua personalidade ao longo da histria. A
narrativa mais eficiente quando o personagem que comeou a histria
seja transformado pelas suas aes. Chamamos as mudanas ocorridas com
o personagem ao longo de uma histria de Arco do Personagem.
H uma forte identificao na audincia com pessoas que mudam ao
longo de suas vidas. Pode ser uma mudana visvel ou uma mudana
sutil, mas ambas proporcionam o enriquecimento e o crescimento de
um personagem.
Dimenses de um personagem
Para construirmos um personagem realista, tambm temos que
entender o princpio das dimenses.
Um personagem com uma dimenso um indivduo que possui apenas um
trao de personalidade. Ele ou s egosta, ou s bom, ou s mal, ou s
rancoroso, etc. Sempre preso dentro de apenas um sentimento. Sua
personalidade sendo a mesma dentro de qualquer situao, com
respostas automticas e previsveis. Os heris e viles dos quadrinhos
eram assim at Stan Lee e Jack Kirby revolucionarem o meio com seus
personagens problemticos e humanos, comeando com oQuarteto
Fantstico.
A evoluo de um personagem de uma dimenso o personagem
bi-dimensional, que por possuir mais uma caracterstica, geralmente
contraditria, um pouco mais complexo. Um personagem pode ser ao
mesmo tempo bondoso e super controlador, ou um vilo maldoso e
excelente pai de famlia, ou bonito mas extremamente tmido. No h um
desenvolvimento muito grande, mas personagens bi-dimensionais do a
iluso de profundidade.
J os personagens de trs dimenses so bem realistas com vrias
contradies. Se voc quer que o seu personagem principal tenha mais
complexidade e seja mais realista, faa-o tri-dimensional.
Logicamente, nem todos os personagens de uma histria precisam ser
tri-dimensionais. Os personagens tercirios raramente possuem mais
do que uma dimenso e inclusive alguns personagens secundrios podem
ter somente uma ou duas dimenses.
Caractersticas Fsicas
As caractersticas fsicas precisam ser bem detalhadas no processo
de criao do personagem. imprescindvel que o caracter principal
tenha uma distino visual destacada, ou seja, um fsico, um rosto, um
jeito de falar, manias e comportamento diferenciado.
Cada indivduo nico e deve-se evitar a qualquer custo basear um
personagem importante de uma histria em um esteretipo. Esteretipos
so para escritores preguiosos e fracos, e sempre diminuem a
credibilidade de uma narrativa.
O Antagonista
Tudo que vlido no processo de criao dos personagens principais,
tambm deve ser utilizado para a criao do antagonista, o comumente
chamado de "vilo". Muitas vezes, o antagonista acaba se tornando o
personagem mais importante da histria, e j clebre o ditado de que o
heri to bom quanto o seu vilo.
Assim como o personagem principal, o antagonista tambm deve ter
uma motivao convincente e deve ser extremamente difcil de ser
derrotado. Um dos principais problemas do heri Superman a falta de
bons antagonistas, pois a excessiva fora do personagem acaba
dificultando processo de criao dos seus inimigos, at para
escritores experientes.
Concluso: Estabelecendo Laos entre o Pblico e o Personagem
O objetivo principal na construo de um personagem deve ser o
estabelecimento de fortes laos entre ele e o pblico da obra. Se o
personagem for um "heri", o pblico deve torcer para ele. Se
construirmos um vilo eficiente, o pblico deve odi-lo, ou como
ocorre muitas vezes, tambm am-lo.
O que queremos que a audincia sinta ao ver o personagem empatia,
e no simpatia. Voc pode achar algum personagem simptico mas no se
importar e nem torcer por ele. A empatia muito mais forte.
Existem vrias formas de fazermos com que o leitor/espectador
sinta empatia por um personagem. Podemos fazer com que ele sinta
medo e dvidas, ou seja, humaniz-lo. Podemos tornar o seu objetivo
algo praticamente impossvel, constituindo uma causa nobre utpica.
Pode-se fazer com que o personagem sofra com a vida, mas nunca
entregue os pontos (o famosounderdog).
Blake Snyder sintetiza muito bem esse princpio, ao defender no
incio de uma obra uma cena de "Salvar o Gato" (Save the Cat scene)
- a cena onde encontramos o heri e ele realiza uma ao "agradvel",
da o exemplo de salvar um gato na rvore, que define um pouco do
personagem e conquista a audincia. Um outro exemplo clssico
fornecido o dilogo de cenas iniciais dePulp Fictionentre John
Travolta e Samuel L. Jackson dentro do carro. O dilogo fala sobre
nomes de sanduches e faz a audincia se identificar com personagens
que so assassinos. Como essa cena mostrada antes dos personagens
praticarem atos de matana, a audincia j foi conquistada e eles no
so vistos como simples bandidos, mas como pessoas reais.
ANLISES DE UM PERSONAGEM (James Scott Bell)
Analise seu Personagem Principal
O seu personagem inesquecvel? Cativante? Forte o suficiente para
carregar o leitor por todo o enredo? Um personagem principal tem
que pular para fora da pgina. O seu faz isso?
O seu personagem evita clichs? Ele capaz de nos surpreender? O
que nico nesse personagem?
O objetivo do personagem forte o suficiente?
Como o personagem evolui ao longo da histria?
Como o personagem demonstra e mostra sua fora interior?
Analise sua Oposio (Antagonista)
A oposio ao seu personagem interessante?
Ela est bem desenvolvida, no sendo apenas algo a ser jogado como
obstculo?
Ela acredita (pelo menos em sua mente) na validade de suas
aes?
Ela realstica?
A oposio to ou mais forte que o personagem principal? (Deve
Ser)
Analise a relao entre a Oposio e o Personagem Principal
O conflito entre a oposio e o personagem principal crucial para
ambos?
Porque eles simplesmente no desistem? No se afastam? O que os
prende? O que os liga?
Analise os Personagens Menores
Quais so os objetivos deles no enredo?
So vibrantes e/ou interessantes?
PERGUNTAS PARA SEU PERSONAGEM (Victoria Lynn Schmidt)
Faa tambm as seguintes perguntas sobre seu personagem:
Ele introvertido ou extrovertido? Ele resolve os problemas
usando instintos, pensamento lgico ou emoo? Ele quer mudar o mundo?
Onde ele vive? Descreva seu quarto. Como ele se sente em relao a
sua aparncia? Como ele se sente em relao sua famlia e filhos? O que
ele pensa sobre o casamento e o sexo oposto? Quais so seus hobbies?
Quais so seus tipos de amigos? O que ele acha engraado e/ou
prazeroso? Como ele se sente em relao a sua sexualidade? Ele
precisa ter sempre o controle sobre o que h em sua volta? O que
outros personagens dizem sobre ele quando ele sai da sala? Ele leva
a vida a srio ou age como uma criana a maior parte do tempo? Onde
ele passa seus tempos vagos? O que importa para o seu personagem? O
que o motiva? Como os outros personagens o vem? Quais as trs coisas
que mais possuem valor? Seu modo de vida? Um objeto? De que ele tem
medo? Como ele agir quando estiver com medo?
Personagens e Elenco
Palhao 1 Patrick Burkowski Palhao 2 Breno Medeiros Palhao 3
Wesley Brugiolo Palhao 4 William Brugiolo Palhao 5 Gabriel
Pereira
Joo Grilo Samuel Jorge Chic Rmulo Valladares
Madre Ana Isadora Dalforne Beata Carmela Jlia Gama Beata
Carmelinha Jlia Barros Madre Superiora Juliana Baratta
Dona Miranda Moraes Marly Assis (atriz convidada) Salete Laiza
Ester
Eurico (Padeiro) Luan Burkowski Dora (Mulher do Padeiro) Mariana
Corra
Severina do Aracaju (Cangaceira) Lara Santana Capanga Maria
Eduarda Serrano Anjo 1 Maria Luiza Anjo 2 Laiza Figueiredo Demnio
Artur Sarchis O Encourado (O Diabo) Ana Beatrix A Compadecida
(Nossa Senhora) Juliane Alice Emanuel (Jesus Cristo)
Alunos e Alunas Atores e Atrizes da Turma II de Teatro da Escola
Cenecista Monteiro Lobato,Iniciaremos o segundo semestre de 2014
com a montagem da Pea de Teatro | Espetculo O AUTO DA COMPADECIDA,
de Ariano Suassuna. Apesar de ter sido escrito em 1955 (no sculo
passado), dezenas de montagens desse texto so realizadas em todo
Brasil e em outros pases (recebendo tradues), a cada ano! Isto,
porqu Ariano Suassuna foi consagrado um dos maiores dramaturgos de
todos os tempos e ele BRASILEIRO! No dia 23/07/2014 morreu nos
deixando obras maravilhosas!O Auto da Compadecida transita nos
gneros: AUTO, COMDIA, TRAGDIA, DRAMA, AVENTURA, POESIA, TRADIES
REGIONAIS. Com muito humor e alegorismos, Ariano Suassuna critica,
cutuca e escancara as mazelas de uma sociedade, ainda, muito
desigual. E esta sociedade no comum apenas no grande Serto do
Brasil, vivemos, todos, tal realidade.Portanto, queridos(as)
alunos(as), depois de um primeiro semestre de exerccio das Artes
Cnicas e depois de observar o potencial dessa turma, percebo que
ser de grande importncia encenarmos e interpretarmos esse
Espetculo! Com essa montagem poderemos absorver inmeras experincias
e tcncias teatrais. Alm de atores e atrizes, os(as) alunos(as)
podero participar de equipes de produo: - Equipe de FIGURINOS e
DISPOSITIVOS CNICOS;- Equipe de MAQUIAGEM;- Equipe de CENRIOS;-
Equipe de TRILHA SONORA | MSICA AO VIVO | SONORIZAO;- Equipe de
ILUMINAO;- Equipe de PATROCNIOS e APOIOS | DIVULGAOTanto para
escalao de Elenco/personagens, quanto para escalao das Equipes,
faremos com a turma: testes, leituras, coordenao de aptides e
votaes.
FIQUEM ATENTOS AO CRONOGRAMA! ENSAIOS: quartas-feiras | de 16 s
17h20min; PRODUO (equipes): segundas-feiras | de 16 s 17h20min.A
Produo do Espetculo ocorrer de AGOSTO a DEZEMBRO, com participao de
todos os(as) alunos(as) de Teatro, da Coordenao e Direo da ECML,
dos Professores e Funcionrios colaboradores da ECML e da Produtora
de Arte McostaCarvalho.com (suporte de produo); O texto estar
disponvel para cpia, no Xerox da ECML, a partir do dia 04/08; No
haver aula dia 06/08 (o Professor Marcelo Costa Carvalho estar em
Fotaleza/CE, se apresentando como ator em uma Contao de Histrias).
Portanto, a semana do dia 04/08 a 08/08 dever ser utilizada para
LEITURA GERAL DE TODO O TEXTO, para observao de: ENREDO e ROTEIRO,
CARACTERSTICAS GERAIS DAS PERSONAGENS, SEQUNCIAS DE ATOS e CENAS,
ENTENDIMENTO GERAL DA HISTRIA; Iniciaremos as aulas no dia 13/08.
13, 20 e 27 de AGOSTO:- Testes para escalao de elenco/personagens;-
Leituras de Mesa (essas leituras so realizadas pelos Alunos(as),
mediadas pelo Professor. As leituras j so interpretadas pelos
atores(atrizes) com suas respectivas personagens j definidas,
anteriormente, pelos testes.- Memorizao de Textos; 03, 10, 17 e 24
de SETEMBRO:- Construo das Personagens;- Memorizao de Textos;-
Marcaes cnicas | direo de cenas 01, 08, 15, 22 e 29 de OUTUBRO:-
Marcaes de Cenas; 05, 12, 19 e 26 de NOVEMBRO- Marcaes de Cenas; 29
de NOVEMBRO (sbado) > ensaio extra (GERAL): de 09 s 12h 03 de
DEZEMBRO (sugesto de data):- Apresentao O Auto da Compadecida |
Turma II | TEATRO | ECML;- Local: Teatro em Juiz de Fora a definir
(sugestes: Teatro Solar, Teatro Pr-Msica ou nas dependncias da
ECML. - Por mais que o Espetculo de encerramento da Oficina de
Teatro 2014 seja apresentado nos espaos da Escola, , tambm, de
grande importncia para a expincia dos alunos vivenciarem uma
interpretao diretamente em um ESPAO CNICO propcio e que possui os
recursos tcnicos representativos iniciao s aulas de Teatro / Artes
Cnicas: PALCO, COXIAS, ROTUNDA, ILUMINAO, CAMARIM, SEPARAO
PLATEIA/PALCO, BOA ACSTICA, dentre outros. 1 Ato
(Ao abrir o pano, entram todos os atores, com exceo do que vai
representar Emanuel, como se se tratasse de uma tropa de
saltimbancos, correndo, com gestos largos, exibindo-se ao pblico.
Se houver algum ator que saiba caminhar sobre as mos, dever entrar
assim. Outro trar uma corneta, na qual dar um alegre toque,
anunciando a entrada do grupo. H de ser uma entrada festiva, na
qual as mulheres do grandes voltas e os atores agradecero os
aplausos, erguendo os braos, como no circo. A atriz que for
desempenhar o papel de Nossa Senhora deve vir sem caracterizao,
para deixar bem claro que, no momento, somente atriz. Imediatamente
aps o toque de clarim, o Palhao anuncia o espetculo.)
Palhaos: Boa noite, Senhoras e Senhores!Artistas: Boa Noite,
Senhoras e Senhores!Palhao 5: (grande voz) Auto da Compadecida! O
julgamento de alguns canalhas, entre os quais duas beatas, uma
madre, e uma madre superiora.. Palhao 2: ...para exerccio da
moralidade. (Toque de clarim.)Palhao1: A interveno de Nossa Senhora
no momento propcio...Palhao 2: ...para triunfo da misericrdia.
Todos: Auto da Compadecida! (Toque de clarim.)A Compadecida: A
mulher que vai desempenhar o papel desta excelsa Senhora,
declara-se indigna de to alto mister. (Toque de clarim.)Palhao 4:
Ao escrever esta pea, onde combate o mundanismo, praga de sua
igreja, o autor quis ser representado por artistas de circo, para
indicar que sabe, mais do que ningum, que sua alma um velho catre,
cheio de insensatez e de solrcia. Ele no tinha o direito de tocar
nesse tema, mas ousou faz-lo, baseado no esprito popular de sua
gente, porque acredita que esse povo sofre, um povo salvo Palhao 2:
...e tem direito a certas intimidades. (Toque de clarim.)Palhao 3:
Auto da Compadecida! O ator que vai representar Manuel, isto ,
Nosso Senhor Jesus Cristo, declara-se tambm indigno de to alto
papel,
Palhao2: ...mas no vem agora, porque sua apario constituir um
grande efeito teatral e o pblico seria privado desse elemento de
surpresa. (Toque de clarim.)Palhao 5: Auto da Compadecida! Uma
histria altamente moral e um apelo misericrdia.Joo Grilo: Ele diz
misericrdia, porque sabe que, se fossemos julgados pela justia,
toda a nao seria condenada.Palhao 4: Auto da compadecida!
(cantando). Tombei, tombei, mandei tombar!Atores (respondendo ao
canto.) Perna fina no meio do mar.Palhao 4: Oi, eu vou ali e volto
jAtores (saindo) Oi, cabea de bode no tem que chupar.Palhao 3: O
destinto pblico imagine sua direita uma igreja, da qual o centro do
palco ser o ptio. A sada para a rua sua esquerda. (Essa fala dar
idia da cena, se se adotar uma encenao mais simplificada e pode ser
conservada mesmo que se monte um cenrio mais rico) Palhaos: O resto
com os atores. (Aqui pode-se tocar uma msica alegre e o palhao sai
danando. Uma pequena pausa e entram Chic e Joo Grilo)Joo Grilo: E
ela vem mesmo? Estou desconfiado, Chic. Voc to sem confiana!Chic:
Eu sem confiana? Que isso, Joo, est me desconhecendo? Juro como ela
vem. Quer benzer a cadela da mulher para ver se o bicho no morre. A
dificuldade no ela vir, a madre benzer. A madre Superiora est a e
tenho certeza de que a madre Ana no vai querer benzer o
cachorro.Joo Grilo: No vai benzer? Por qu? Que que um cachorro tem
de mais?Chic: Bom, eu digo assim porque sei como esse povo cheio de
coisas, mas no nada de mais. Eu mesmo j tive um cavalo bento.Joo
Grilo: Que isso, Chic (passa o dedo na garganta). J estou ficando
por aqui com suas histrias. sempre uma coisa toda esquisita. Quando
se pede uma explicao, vem sempre com no sei, s sei que foi
assim.Chic: Mas se eu tivesse mesmo o cavalo, minha filha, o que
que eu vou fazer? Vou mentir, dizer que no tive?Joo Grilo: Voc vem
com uma histria dessas e depois se queixa que o povo diz que voc
sem confiana.Chic: Eu, sem confiana? Antnio Martinho est a para dar
as provas do eu digo.Joo Grilo: Antnio Martinho? Faz trs anos que
ele morreu.Chic: Mas era vivo quando eu tive o bicho.Joo Grilo:
Quando voc teve o bicho? E foi voc quem pariu o cavalo, Chic?Chic:
Eu no. Mas do jeito que as coisas vo, no me admiro mais de nada. No
ms passado uma mulher teve um, na serra do Araripe, para os lados
do Cear. Joo Grilo: Isso coisa de seca. Acaba nisso, essa fome:
ningum pode ter menino e haja cavalo no mundo. A comida mais barata
e coisa que se pode vender. Mas seu cavalo, como foi?Palhaos: Foi
uma velha que me vendeu barato, porque ia se mudar, mas recomendou
todo cuidado, porque o cavalo era bento. Palhao 5: E s podia ser
mesmo, porque cavalo bom como aquele eu nunca tinha visto. Palhao
3: Uma vez corremos atrs de uma garrota, das seis da manh as seis
da tarde, sem parar nem um momento, eu a cavalo, ele a p. Palhao 4:
Fui Derrubar a novilha j de noitinha, mas quando acabei o servio e
enchocalhei a rs, olhei ao redor, e no conhecia o lugar em que
estvamos. Tomei uma vereda que havia assim e sa tangendo o
boi...Joo Grilo: O boi? No era uma garrota?Chic: Uma garrota e um
boi.Joo Grilo: E voc corria atrs dos dois de uma vez?Chic:
(Irritado) Corria, proibido?Joo Grilo: No, mas eu me admiro eles
correrem tanto tempo juntos, sem se apartarem. Como foi isso?Chic:
No sei, s sei que foi assim. Joo Grilo: Quer dizer que voc acha que
o homem vem?Chic: S pode vir. o nico jeito que ele tem a dar. A
mulher disse que o larga se a cadela morrer. Madre Ana! Madre
Ana!Joo Grilo: Voc disse que hora de chamar madre era a hora da
morte.. T ficando maluco?Chic: (Depois de estender-lhe o punho
fechado) Madre Ana!Joo Grilo: Madre Ana! Madre Ana!Madre:
(aparecendo na igreja.) Que h? Que gritaria essa?(Fala afetadamente
com aquela pronncia e aquele estilo que Leon Bloy chamava
sacerdotais.)Chic: Mandaram avisar para a senhora no sair, porque
vem uma pessoa aqui trazer uma cadela que est se ultimando para a
senhora benzer.Madre: Para eu benzer?Chic: Sim.Madre: (com
desprezo.) Uma cadela?Chic: SimMadre: Que maluquice! Que
besteira!Joo Grilo: Cansei de dizer a ele que a senhora no benzia.
Benze porque benze, vim com ele.Madre: No benzo de jeito
nenhum.Chic: Mas madre, no vejo nada de mal em se benzer o
bicho.Joo Grilo: No dia em que chegou o motor novo da Dona Miranda
Morais a senhora no o benzeu?Madre: Motor diferente, uma coisa que
todo mundo benze. Cachorro que eu nunca ouvi falar.Chic: Eu acho
cachorro uma coisa muito melhor do que motor.Madre.: , mas quem vai
ficar engaada sou eu, benzendo o cachorro. Benzer motor fcil, todo
mundo faz isso, mas benzer cachorro?Joo Grilo.: , Chic, a madre tem
razo. Quem vai ficar engraada ela e uma coisa benzer o motor da
Dona Miranda Morais e outra benzer a cadela da Dona Miranda
Morais.Madre: (mo em concha nos ouvidos.) Como?Joo Grilo: Eu disse
que uma coisa era o motor e outra a cadela da Dona Miranda
Morais.Madre: E a dona da cadela de quem vocs esto falando Miranda
Morais?Joo Grilo: . Eu no queria vir, com medo de que a senhora se
zangasse, mas dona Miranda rica e poderosa e eu trabalho na fazenda
dela. Com medo de perder o meu emprego, fui forada a obedecer, mas
disse a Chic: a madre vai se zangar.Madre: (desfazendo-se em
sorrisos) Zangar nada, Joo! Quem um ministro de Deus para ter
direito de se zangar? Falei por falar, mas tambm vocs no tinham
dito de quem era o cachorro!Joo Grilo: (Cortante) Quer dizer que
benze, no ?Madre: (a Chic) Voc o que que acha?Chic: Eu no acho nada
de mais.Madre: Nem eu. No vejo mal nenhum em se abenoar as
criaturas de Deus.Joo Grilo: Ento fica tudo na paz do Senhor, com o
cachorro benzido e todo mundo satisfeito.Madre: Diga dona Miranda
que venha. Eu estou esperando. (Entra na igreja)Chic: Que inveno
essa de dizer que a cadela era da Dona Miranda Morais?Joo Grilo:
Era o nico jeito de a madre prometer que benzia. Chic: Isto no vai
dar certo. Voc j comea com suas coisas, Joo. E havia necessidade de
inventar que era empregada da Dona Miranda Morais?Joo Grilo: Meu
filho, empregada da Dona Miranda e empregada de um amigo da Dona
Miranda quase a mesma coisa. Alm disso, eu podia perfeitamente ter
sido mandado pela Dona Miranda, porque a filha dela est doente e
pode at precisar da madre.Chic: Joo, deixe de agouro com a menina,
que isso pode se virar por cima de voc.Joo Grilo: E voc deixe de
conversa. Nunca vi homem mais mole do que voc, Chic. O padeiro
mandou voc arranjar a madre para benzer a cadela e eu arranjei sem
ter sido mandada. Que que voc quer mais? Ainda hei de me vingar do
que ele e a mulher me fizeram quando estive doente. Trs dias passei
em cima de uma cama para morrer e nem um copo dgua me mandaram. Mas
fiz esse trabalho com gosto, somente porque se trata de enganar a
madre. No vou com a cara...Chic: Com qual? Com a da madre?Joo
Grilo: Com as duas. Estou acertando as contas com a madre e a
qualquer hora acerto com o patro. Eu conheo o ponto fraco do homem,
Chic.Chic: E qual o ponto fraco do patro?Joo Grilo: Chic, deixe de
ser hipcrita, que voc sabe.Chic: Juro que no sei, Joo.Joo Grilo: a
mulher, Chic, e voc sabe muito bem disso. Voc mesmo sabe que a
mulher dele... Chic: Joo, fale baixo, que a madre pode ouvir. Essas
coisas num instante se espalham.Joo Grilo: Deixe de besteira, Chic,
todo mundo j sabe que a mulher do padeiro engana o marido!Chic:
Joo, danada, ou voc fala baixo ou te esgano j, j.Joo Grilo: Mas
todo mundo no sabe mesmo? Chic: Joo, deixe de ser vingativa que voc
se desgraa. Qualquer dia voc inda se mete numa embrulhada sria.Joo
Grilo: E o que que tem isso? Voc pensa que eu tenho medo? S assim
que posso me divertir. Sou louca por uma embrulhada.Chic: Permita
ento que eu lhe d meus parabns, Joo, porque voc acaba de se meter
numa danada.Joo Grilo: Eu? Que h? Chic: A Dona Miranda Morais vem
subindo a ladeira. Certamente vem procurar a madre.Joo Grilo: Ave
Maria! Que que se faz, Chic? Chic: No sei, no tenho nada a ver com
isso. Voc que inventou a histria e que gosta de embrulhada, que
resolva.Joo Grilo: Cale a boca, besta. No diga uma palavra e deixe
tudo por minha conta. (Explica um plano aos artistas.) (Sai Joo e
entra Dona Miranda Moraes)Palhao 3: Ora viva, Dona Dona Miranda
Moraes...Palhaos: Como vai a dignssima Senhora? Palhao 5: Veio
procurar a madre? Miranda Moares: Vim sim!Palhao 4: que eu queria
avisar para Vossa Senhoria no ficar espantada: a madre est meio
doida. Miranda Moraes: (parando) Est doida? A madre?Salete:
Hiiiiii...Palhao 4: (animando-se) Sim, a madre. Est dum jeito que
no respeita mais ningum e com mania de benzer tudo. Vim dar um
recado a ela, mandando por meu patro e ela me recebeu muito mal,
apesar de meu patro ser quem .Miranda Moraes : E quem seu
patro?Palhao 4: O padeiro. Pois ele chamou o patro de cachorro e
disse que apesar disso ia benz-lo.Salete: Que loucura essa?Miranda
Moraes: ! Que loucura esta?Palhao 3: No sei, mania dela agora.
Palhao 4: Benzer tudo e chama gente de cachorro.Miranda Moraes:
Isso foi porque era com seu patro. Comigo diferente.Salete: ! Com a
gente diferente!Palhao 1: Vossa Senhoria me desculpe, mais eu penso
que no.Miranda Moraes : Voc pensa que no?Paresentadora: Penso, sim.
Palhao 4: E digo isso porque ouvi a madre dizer: Aquele cachorro, s
porque amigo de Miranda Moraes, pensa que alguma coisa.Miranda
Moraes : Que histria essa? Salete: Voc tem certeza?Palhao 5:
Certeza plena. Palhaos: Est doidinha, a pobre da madre.Miranda
Moraes: Pois vamos esclarecer a histria, porque algum vai pagar
essa brincadeira. Quanto. mania de benzer, no faz mal, ela me ser
at til. Minha filha mais moa est doente e vai para o Recife,
tratar-se. Salete: Tem uma verdadeira mania de igreja... Miranda
Moraes: ...e no quer ir sem a bno da madre. Mas fique certo de uma
coisa: hei de esclarecer tudo e se voc est com brincadeiras para o
meu lado, h... se arrepender. Madre Ana, Madre Ana!Salete: Madre
Ana, Madre Ana!(Entra Madre Ana)Miranda Moraes, voltando - Ah,
madre, estava a? Procurei-a por toda parte.Madre, da igreja - Ora
quanta honra! Uma pessoa como Miranda Moraes na igreja! Salete: E
eu???Miranda Moraes: Cale a boca!Madre Ana: H quanto tempo esses ps
no cruzam os umbrais da casa de Deus!Miranda Moraes: Seria melhor
dizer logo que faz muito tempo que no venho missa.Madre: Qual o
que, eu sei de suas ocupaes, de sua sade...Salete: Ocupaes? Ah! O
que isto? Ela nem trabalha e a sade dela perfeita!Madre: Ah, ? Mas
que coisa a trouxe aqui? J sei, no diga, a bichinha est doente, no
?Miranda Moraes: , j sabia?Salete: Hiiii... Aqui tudo se espalha
num instante! Madre: J est fedendo?Miranda Moraes: Fedendo?
Quem?Madre: O bichinho!Miranda Moraes: No. Que que a senhora quer
dizer?Madre: Nada, desculpe, um modo de falar.Miranda Moraes: Pois
a senhora anda com uns modos de falar muito esquisitos.Madre: Peo
que desculpe uma pobre madre sem muita instruo. Qual a doena?
Rabugem?Miranda Moraes: Rabugem?Salete: Rabugem?Madre: Sim, j vi um
morrer disso em poucos dias. Comeou pelo rabo e espalhou-se pelo
resto do corpo.Miranda Moraes: Pelo rabo?Salete: Pelo rabo?Madre:
Desculpe, desculpe, eu devia ter dito pela cauda. Deve-se respeito
aos enfermos, mesmo que sejam os de mais baixa qualidade.Miranda
Moraes: Baixa qualidade?Salete: Baixa qualidade?Miranda Moraes:
Madre Ana, veja com quem est falando. A igreja uma coisa
respeitvel, como garantia da sociedade, mas tudo tem um
limite.Madre: Mas o que foi que eu disse?Miranda Moraes: Baixa
qualidade! Meu nome todo Miranda Noronha de Brito...Salete:
...Morais... Miranda Moraes: ...e esse Noronha de Brito Moraes veio
do Conde Arcos... Salete: ouviu? Miranda Moraes: Gente que veio nas
caravelas... Salete: ouviu?Madre: Ah bem e na certa os antepassados
da bichinha tambm vieram nas galeras, no isso?Salete: Claro!
Miranda Moraes: Se meus antepassados vieram, claro que os dela
vieram tambm. Que que a senhora quer insinuar? Quer dizer por acaso
que a me dela...Madre: Mas, uma cachorra!...Miranda Moraes: O
que?Madre: Uma cachorra.Miranda Moraes: RepitaMadre: No vejo nada
de mal em repetir, no uma cachorra mesmo?Miranda Moraes: Madre, no
a mato agora mesmo porque a senhora madre Salete: E est
louca!Miranda Moraes: Mas vou me queixar Madre Superiora. (ao Joo
Grilo) Voc tinha razo. Aparea nos Angicos, que no se
arrepender.Salete: Mas que essa histria! Dona Miranda, nunca me
contou que era uma cadela!Miranda Moraes: Ah! Cale a boca sua
energmena! (Sai dando chicotadas em sua subordinada!)Madre:
(aflitssima) Mas me digam pelo amor de Deus o que foi que eu
disse.Joo Grilo: Nada, nada, madre. Essa mulher s pode estar louca
com essa mania de ser grande. At cadela ela quer dar carta de
nobreza.Madre: Fao tudo para agrad-la e vai-se queixar Madre
Superiora. Ser que vai me suspender?Joo Grilo: Que nada, madre,
antes disso eu vou aos Angicos e arranjo tudo.Madre: Arranja mesmo,
Joo? Como?Joo Grilo: Deixe comigo. Miranda Moraes comeou a ser
minha amiga de repente. No viu como me convidou para ir aos
Angicos? Agora assim, Joo Grilo pra l, Miranda Moraes pra c... Est
completamente perturbada.Madre: Pois arranje as coisas, Joo, que
voc no se arrepende.Joo Grilo: Chama-se j est arranjado. Agora, eu
queria um favorzinho da senhora madre.Madre: Eu j estava esperando
por uma dessas. Joo Grilo: O que eu vou pedir coisa muito mais fcil
do que cumprir os mandamentos.Madre: Diga ento o que !Joo Grilo: A
cadela do meu patro est muito mal e eu queria que a senhora
benzesse a bichinha.Madre: De novo? Mas possvel?Joo Grilo: mais do
que possvel. A senhora no ia benzer a cadela da Dona Miranda
Moraes?Madre : E de quem que voc est falando?Joo Grilo: De meu
patro.Madre: E seu patro no Miranda Moraes?Joo Grilo: No.Madre: Mas
voc ainda agora disse isso aqui, Joo.Joo Grilo: Eu? Quem disse isso
foi Chic. (Chic d um grande salto de surpresa.)Madre: E quem seu
patro?Joo Grilo: O padeiro.Madre : E a cadela dele tambm est
doente?Joo Grilo: Est.Madre : Tambm, oh terra de cachorro doente s
essa!Joo Grilo: E a mania agora benzer, benzer tudo quanto de
bicho.(Ouvem-se fora grandes gritos de mulher.)Joo Grilo: a velha,
com o cachorro. Como , o senhor benze ou no benze?Madre: Pensando
bem, acho melhor no benzer. A Madre Superiora esta ai e eu s benzo
se ela der licena. ( esquerda aparece a mulher do padeiro e a madre
corre pra ela.) Pare, pare! (aparece o padeiro) Parem, parem! Um
momento. Entre o senhor e entre a senhora: o cachorro fica l!Dora:
Ai, madre, pelo amor de Deus, minha cadela est morrendo. o filho
que eu conheo neste mundo, madre. No deixe a cachorrinha morrer,
madre.Madre: (comovido) Pobre mulher! Pobre cachorro!(Joo Grilo
estende-lhe um leno e ele se assoa ruidosamente.)Padeiro: A senhora
benze o cachorro, Madre Ana? Joo Grilo: No pode ser. A Madre
Superiora esta a e a madre s benzia se fosse a cachorra da Dona
Miranda Moraes, gente mais importante, porque seno a mulher pode
reclamar.Dora: Que histria essa? Ento Vossa Senhoria pode benzer a
cachorra da Dona Miranda Moraes e a minha no? Padeiro: ! E a nossa
no?Madre: (apaziguador) Que isso, que isso?Dora: Eu que pergunto:
que isso? Afinal de contas ele presidente da Irmandade das Almas, e
isso alguma coisa!Padeiro: ! Sou presidente da Irmandade das
Almas!Joo Grilo: , madre, o homem a coisa muita. Presidente da
Irmandade das Almas! Para mim isso um caso claro de cachorro bento.
Benza logo o cachorro e tudo fica em paz.Madre: No benzo, no benzo
e acabou-se! No estou pronta para fazer essas coisas assim de
repente. Sem pensar, no.
Dora: (furiosa) Quer dizer, quando era o cachorro da Dona
Miranda, j estava tudo pensado, para benzer o meu essa complicao!
Olhe que meu marido presidente e scio benfeitor da Irmandade das
Almas! Vou pedir a demisso dele!Padeiro: Vai pedir minha
demisso!Dora: De hoje em diante no me sai l de casa nem um po para
a Irmandade!Padeiro: Nem um po!Dora: E olhe que os pes que vm para
aqui so de graa!Padeiro: So de graa!Dora: E olhe que as obras da
igreja ele quem est custeando!Padeiro: Sou eu que estou
custeando!Madre; (apaziguadora) Que isso, que isso!Dora: O que
isso? a voz da verdade, madre Ana. A senhora agora vai ver quem a
mulher do padeiro!Joo Grilo: Ai, ai, ai, e a senhora, o que que do
padeiro?Dora: A vaca...Chic: A vaca ?!Dora: A vaca que eu mandei
pra c, para fornecer leite ao vigrio, tem que ser devolvida hoje
mesmo.Padeiro: Hoje mesmo!Madre: Mas at a vaca? Carmela,
Carmelinha!Joo Grilo: A vaca tambm demais! (arremedando a madre)
Carmela, Carmelinha!(As beatas aparecem porta. So duas sujeitas
magras, pedantes, pernsticas, de culos que elas ajeitam com as duas
mos de vez em quando, com todo cuidado. Pra no limiar da cena,
vindo da igreja, e examina todo ptio.)Joo Grilo: Beatas, a vaca da
mulher do padeiro tem que sair! Carmelinha: Um momento. Um momento.
Em primeiro lugar, o cuidado da casa de Deus e de seus arredores.
Carmela: Que isso? Que isso?(Elas dominam toda a cena, inclusive a
Madre, que tem uma confiana enorme na empfia, segurana e hipocrisia
das Beatas.)Dora e Padeiro, ao mesmo tempo, em resposta pergunta
das Beatas o padre. . .Beatas, afastando os dois com a mo e olhando
para a direita Que aquilo? Que aquilo?(Sua afetao de espanto to
grande, que todos se voltam para a direo em que elas
olham.)Carmelinha: Mas um cachorro morto no ptio da casa de
Deus?Padeiro: Morto?Dora, mais alto: Morto?Carmela: Morto, sim. Vou
reclamar Prefeitura.Padeiro correndo e voltando-se do limiar:
verdade, morreu.Dora: Ai, meu Deus, meu cachorrinho morreu.(Correm
todos para a direita, menos Joo Grilo e Chic. Este vai para a
esquerda, olha a cena que se desenrola l fora, e fala com grande
gravidade na voz.)Chic: verdade, o cachorro morreu! Cumpriu sua
sentena e encontrou-se com o nico mal irremedivel, aquilo que a
marca de nosso estranho destino sobre a terra, aquele fato sem
explicao que iguala tudo o que vivo num s rebanho de condenados,
porque tudo o que vivo morre.Joo Grilo: (Suspirando) Tudo o que
vivo morre. Est a uma coisa que eu no sabia! Bonito, Chic, onde foi
que voc ouviu isso? De sua cabea que no saiu, que eu sei.Chic: Saiu
mesmo no, Joo. Isso eu ouvi um padre dizer uma vez. (Esta cena, a
partir daqui, cortvel, a critrio do encenador, at a frase Mas deixe
de agonia, que o povo vem a.) Foi no dia em que meu pirarucu
morreu.Joo Grilo: Seu pirarucu?Chic: Meu, um modo de dizer, porque,
para falar a verdade, acho que eu que era dele. Nunca lhe contei
isso no?Joo Grilo: No, j ouvi falar de homem que tem peixe, mas de
peixe que tem homem, a primeira vez. Mas que jeito se deu
isso?Chic: No sei, s se que foi assim. Mas deixe de agonia, que o
povo vem a.Dora, entrando: Ai, ai, ai, ai, ai! Ai, ai, ai, ai,
ai!Joo Grilo, mesmo tom: Ai, ai, ai , ai, ai! Ai, ai, ai, ai, ai!(D
uma cotovelada em Chic.)Chic, obediente: Ai, ai, ai, ai, ai! Ai,
ai, ai, ai, ai!(Essa lamentao deve ser mal representada de
propsito, ritmada como choro de palhao de circo.)Carmela, entrando,
com a madre e o padeiro: Que isso, que isso? Que barulho esse na
porta da casa de Deus?Madre: Todos devem se resignar.Dora: Se o
senhor tivesse benzido a cadelinha, a essas horas ela ainda estava
viva.Madre: Qual, qual, quem sou eu!Dora: Mas tem uma coisa, agora
a senhora enterra a cachorra.Madre: Enterro a cachorra?Dora:
Enterra e tem que ser em latim. De outro jeito no serve, no
?Padeiro: , em latim no serve.Dora: Em latim que serve!Padeiro: ,
em latim que serve!Madre: Vocs esto loucos! No enterro de jeito
nenhum.Dora: Est cortado o rendimento da irmandade.Madre: No
enterro.Padeiro: Est cortado o rendimento da irmandade!Madre: No
enterro.Dora: Meu marido considera-se demitido da presidncia.Madre:
No enterro.Padeiro: Considero-me demitido da presidncia!Madre: No
enterro.Dora: A vaquinha vai sair daqui imediatamente.Madre: Oh
mulher sem corao!Dora: Sem corao, porque no quero ver minha
cachorrinha comida pelos urubus? A senhora enterra!Madre: Ai meu
dias de convento, minha juventude herica e firme!Dora: Po para a
casa da freira s vem agora dormido e com o dinheiro na frente.
Enterra ou no enterra?Madre: Oh mulher cruel!Dora: Decida-se, Madre
Ana.Madre: No me decido coisa nenhuma. Vou me trancar na igreja e
de l ningum me tira.(Entra na igreja, correndo.)Joo Grilo, chamando
o patro parte: Se me dessem carta branca, eu enterrava a
cachorra.Padeiro: Tem a carta.Joo Grilo: Posso gastar o que
quiser?Padeiro: Pode.Dora: Que que vocs esto combinando a?Joo
Grilo: Estou dizendo que, se desse jeito, vai ser difcil cumprir o
testamento da cachorra, na parte do dinheiro que ela deixou para a
madre e para as beatas.Beatas: Que isso? Que isso? Cachorro com
testamento?Joo Grilo: Essa era uma cachorra inteligente. Antes de
morrer, olhava para a torre da igreja toda vez que o sino batia.
Nesses ltimos tempos, j doente para morrer, botava uns olhos bem
compridos para os lados daqui, latindo na maior tristeza. At que
meu patro entendeu, com a minha patroa, claro, que ela queria ser
abenoada pela madre e morrer como crist. Mas nem assim ela
sossegou. Foi preciso que o patro prometesse que vinha encomendar a
bno e que, no caso de ela morrer, teria um enterro em latim. Que em
troca do enterro acrescentaria no testemunho dele dez contos de ris
para a madre e trs para cada beata.Carmela, enxugando uma lgrima:
Que animal inteligente! Carmelinha: Que animal inteligente!Carmela:
Que sentimento nobre! (Calculista) Carmelinha: E o testamento? Onde
est?Joo Grilo: Foi passado em cartrio, coisa garantida. Isto , era
coisa garantida, porque agora a madre vai deixar os urubus comerem
o cachorrinho e, se o testamento for cumprido nessas condies, nem
meu patro nem minha patroa esto livres de serem perseguidos pela
alma.Chic, escandalizado: Pela alma?Joo Grilo: Alma no digo, porque
acho que no existe alma de cachorro, mas assombrao de cachorro
existe e uma das mais perigosas. E ningum quer se arriscar assim a
desrespeitar a vontade da morta.Dora, duas vezes: Ai, ai, ai, ai,
ai!Joo Grilo e Chic, mesma cena.Carmelinha, cortante: Que isso, que
isso? No h motivo para essas lamentaes. Carmela: Deixem tudo com a
gente!(Entram apressadamente na igreja.)Padeiro: Assombrao de
cachorro? Que histria essa?Joo Grilo: Que histria essa? Que histria
essa que a cachorra vai ser enterrada e em latim.Padeiro: Pode ser
que se enterre, mas em assombrao de cachorro eu nunca ouvi
falar.Chic: Mas existe. Eu mesmo j encontrei uma.Padeiro, temeroso:
Quando? Onde?Chic: Na passagem do riacho de Cosme Pinto.Padeiro:
Tinham me dito que o lugar era assombrado, mas nunca pensei que se
tratasse de assombrao de cachorro.Chic: Se o lugar assombrado, no
sei. S sei que foi assim!(As Beatas e a madre saem da
igreja.)Carmela: Mas eu no j disse que fica tudo por minha conta e
por conta de Carmelinha?Madre: Pelas contas de vocs como, se a
madre sou eu?Carmelinha: A madre a senhora, mas quem sabe quanto
vale o testamento somos ns.Madre: Hein? O testamento?Carmela: Sim,
o testamento.Madre: Mas que testamento esse?Carmelinha: O
testamento da cachorra.Madre: E ela deixou testamento?Padeiro: S
para a madre deixou dez contos.Madre: Que cachorra inteligente! Que
sentimento nobre!Joo Grilo : E uma cachorra dessa ser comido pelos
urubus! a maior das injustias.Madre: Comida, ela? De jeito nenhum.
Uma cachorra dessa no pode ser comida pelos urubus.(Todos aplaudem,
batendo palmas ritmadas e discretas e a Madre agradece, fazendo
mesuras. Mas de repente lembra-se da Madre Superiora.)Madre,
aflita: Mas que jeito pode-se dar nisso? Estou com tanto medo da
madre Superiora! E tenho medo de cometer um sacrilgio!Beatas: Que
isso, que isso? Carmela: No se trata de nenhum sacrilgio.
Carmelinha: Vamos enterrar uma pessoa altamente estimvel, nobre e
generosa, satisfazendo, ao mesmo tempo, duas outras pessoas
altamente estimveis (aqui o padeiro e a mulher fazem uma curvatura
a que as beatas respondem com outras iguais) Carmela: Nobres (nova
curvatura) e, sobretudo, generosas (novas curvaturas). No vejo mal
nenhum nisso.Madre: , voc no v mal nenhum, mas quem me garante que
a Madre Superiora tambm no v?Beatas: Madre Superiora?Madre: Sim,
Madre Superiora. uma grande administradora, uma guia a quem nada
escapa.Joo Grilo: Ah, uma grande administradora? Ento pode deixar
tudo por minha conta, que eu garanto.Madre: Voc garante?Joo Grilo:
Garanto.Carmelinha: E mesmo no ser preciso que Vossa Reverendssima
intervenha. Ns duas fazemos tudo!Madre: Vocs fazem tudo? Carmela:
Fazemos.Dora: Em latim?Beatas: Em latim.Padeiro: E o
acompanhamento?Joo Grilo: Vamos eu e Chic. Com o senhor e sua
mulher, acho que j d um bom enterro.Padeiro: Voc acha que est bem
assim?Dora: Acho.Padeiro: Ento eu tambm acho.Beatas: Se assim,
vamos ao enterro. (Joo Grilo estende a mo a Chic que a aperta
calorosamente). Como se chamava o cachorro?Dora, chorosa:
Xaria.Beatas: (enquanto se encaminham para a direita, em tom de
canto gregoriano) Absolve, Domine, animas omnium fidelium
defunctorum ab omni vinculi delictorum.Todos: Amm.(Saem todos em
procisso, atrs das beatas, com exceo da Madre, que fica um momento
silenciosa, levando depois a mo boca, em atitude angustiada, e sai
correndo para a igreja.)
2 Ato
Palhao: Muito bem...Palhao 2: muito bem...Palhaos: Muito bem.
Palhao 3: Assim se conseguem as coisas neste mundo. E agora,
enquanto Xaria se enterra em latim, imaginemos o que se passa na
cidade. Palhao 4: Dona Miranda Morais saiu furiosa com a Madre Ana
e acaba de ter uma longa conferncia com a Madre Superiora a esse
respeito. Esta, que est inspecionando as igrejas na falta de um
bispo, tem que atender a inmeras convenincias. Palhao 5: Em
primeiro lugar, no pode desprestigiar a Igreja...Palhao 2: ...que a
madre, afinal de contas, representa na parquia. Palhao 4: Mas tem
tambm que pensar em certas conjunturas e transigncias, pois Miranda
Morais dona de todas as minas da regio e uma mulher poderosa, tendo
enriquecido fortemente o patrimnio que herdou, e que j era grande,
de seu marido falecido. Palhao 3: De modo que l vem a Madre
Superiora. Peo todo o silncio e respeito do auditrio...Palhao 5:
...porque a grande figura que se aproxima , alm de Madre Superiora,
uma grande administradora e faz parte da poltica. Palhao 2: Sou o
primeiro a me curvar diante desta grande princesa da Igreja...
Palhao 1: ...prestando-lhe minhas mais carinhosas
homenagens.(Curvam-se profundamente e a Madre Superiora entra pela
direita. A Madre Superiora uma personagem medocre, profundamente
enfatuada. Ante a curvatura dos artistas, a Madre Superiora faz um
gesto soberano, mandando-os erguerem-se.)Palhao 5, animada pelo
acolhimento: Muito bem...Palhaos: ol!Palhao 5: Como est Vossa
Reverendssima?Palhao 1: Como vai essa prospia...Palhao 2: Essa
bizarria?. . .
(Enquanto falam, vo fazendo as graas ingnuas, pendurando o chapu
e o palet, que caem ao cho, num cabide imaginrio. J em mangas de
camisa, dirige-se Madre Superiora com os braos largamente abertos,
como quem vai abra-la, mas a Madre Superiora ergue a mo num gesto
de desprezo e os artistas riem amarelo, parando espera.)Madre
Superiora: Retro. Onde est a Madre Ana? Palhao 4: Deve estar na
igreja.(A Madre Superiora volta-se para os Palhaos, fazendo-lhe um
aceno majestoso e descuidado. Os palhaos correm para a
igreja).Madre Superiora: horrvel ter de viver com dbil-mentais s
costas.(O Palhao concorda, fazendo uma grande curvatura, e vem
falar ao pblico.)Palhaos: E agora afasto-me prudentemente...Palhao
4: ...Porque a vizinhana desses grandes administradores sempre uma
coisa perigosa e a prpria Igreja ensina que o melhor evitar as
ocasies. Palhao 3: Pedimos licena a Vossa Excelncia
Reverendssima...Palhao 5: ...mas temos que nos retirar.(Curvaturas
dos artistas e da Madre Superiora. O Palhao sai e, no mesmo
instante, volta a Madre Ana.)Madre Ana, nervosa: No esperava Vossa
Reverendssima aqui agora, de modo que. . .Madre Superiora: Deixemos
isso, passons, como dizem os franceses. Mas h coisas que no posso
deixar de lado, com essa facilidade.Madre Ana: No estou
entendendo.Madre Superiora, severa: Pois entender j. Quando eu lhe
disser que Miranda Morais falou comigo. . .Madre Ana, sorridente:
Miranda Morais falou com a senhora!Madre Superiora: Falou sim, e
foi para reclamar de seu procedimento para com ela.Madre Ana: No
entendo o que Vossa Reverendssima quer dizer.Madre Superiora: No
vejo dificuldade nenhuma em se entender isso, Madre Ana. Miranda
Morais veio a mim se queixar de sua brutalidade para com ela.Madre
Ana: Como ?Madre Superiora: Vamos deixar de brincadeiras. A senhora
sabe perfeitamente a que estou me referindo. Por que a chamou de
cachorra?Madre Ana: Eu?Madre Superiora: Sim, a senhora. Quer me
levar ao ridculo, , Madre Ana?Madre Ana: No, nunca, Deus me livre.
Mas juro que no chamei a mulher a de cachorra.Madre Superiora:
Chamou, Madre Ana.Madre Ana: No chamei, Senhora Madre
Superiora.Madre Superiora: Chamou, Madre Ana.Madre Ana: No chamei,
Senhora Madre Superiora.Madre Superiora, elevando a voz: Chamou,
Madre Ana.Madre Ana, resignado: Chamei, Senhora Madre
Superiora.Madre Superiora: Afinal, chamou ou no chamou?Madre Ana:
No chamei, mas se Vossa Reverendssima diz que eu chamei porque sabe
mais do que eu.Madre Superiora: Ento no verdade que ela veio pedir
que a senhora lhe abenoasse a filha e que voc chamou a chamou de
cachorra?Madre Ana: A filha?Madre Superiora: Sim, a filha dela que
est doente!Madre Ana: E a filha dela que est doente?Madre
Superiora: Claro que , no o que estou dizendo? Madre Ana: Grilo
tinha me dito que era a cachorra!Madre Superiora: Grilo? Madre Ana,
voc quer brincar comigo? Que histria de grilo e cachorro essa?Madre
Ana: Vossa Reverendssima perdoe, agora eu entendo tudo.Madre
Superiora: Mas acontece que agora quem comea a no entender sou
eu.Madre Ana: A culpa da Grilo?Madre Superiora: Da grilo?Madre Ana:
De Joo Grilo.Madre Superiora: Quem Joo Grilo?Madre Ana: Uma
canalhinha amarela que mora aqui e trabalha na padaria. Chegou
dizendo que a cachorra de Miranda Morais estava doente e que ela
queria que eu a benzesse. Quando a mulher chegou, a confuso foi a
maior do mundo. Agora eu entendo tudo. Mas ela me paga.Joo Grilo e
Artistas, cantando longe: Lampio e Maria Bonita. Pensava que nunca
morria: Morreu boca da noite, Maria Bonita ao romper do dia.(Entram
Joo Grilo e Chic)Joo Grilo: Madre Ana, querida madre Ana, est tudo
pronto e ns muito satisfeitos com a senhora.Madre Ana: Joo Grilo,
querida Joo Grilo, ns tambm estamos satisfeitssimas com a
senhora.Joo Grilo: Qual, quem sou eu, uma pobre Grilo que no vale
nada. . . bondade de Vossa Reverendssima.Madre: mesmo, bondade
minha, porque voc no passa de uma safada!Joo Grilo: Est ouvindo,
Chic? Eita, eu, se fosse voc, reagia.Chic: Eu?Joo Grilo: Sim, eu,
se fosse voc, reagia. No admito que ningum diga isso de um amigo
meu na minha frente.Chic: Mas a amiga voc!Joo Grilo: E ento? Reaja,
Chic, seja homem!Chic: Eu, no. Reaja voc!Joo Grilo: Voc no homem
no, Chic?Chic: Eu sou homem mas sou frouxo.Joo Grilo: Muito bem, se
assim, eu falo. Por que Vossa Reverendssima me chamou de
safada?Madre Ana: Porque voc muito safada.Joo Grilo: Pois se
esqueceram de botar isso na minha certido de idade!(A Madre tenta
agredir Joo...)Madre Ana: Como que voc veio me dizer que a cachorra
de Miranda Morais estava doente, fazendo-me cham-la de cachorra?
Joo Grilo: Ah, e a safadeza essa? Isso nada, Madre Ana! Muito pior
enterrar cachorro em latim, como se ele fosse cristo, e nem por
isso eu vou cham-la de safada.Madre Ana, enorme grito: Ai!Madre
Superiora: Que isso?Madre Ana: Uma dor que me deu de repente.
Ai!Joo Grilo: Coitada, no tem que ver o grito que minha patroa dava
enquanto se fazia o enterro da cachorra.Madre Superiora: Uma
cachorra? Enterrada em latim?Madre Ana: Enterrada latindo, Madre
Superiora. Au, au, au, no sabe?Madre Superiora: No sei no senhora,
nunca vi cachorra morta latir. . . Que histria essa?Madre: Ai! Ai!
Ai!Beatas, entrando: Que isso? Que isso?Joo Grilo: a Madre
Superiora que quer saber que histria essa.Carmela, fazendo mesuras:
Senhora Madre Superiora, excelente e reverendssima Senhora Madre
Superiora. . . Carmelinha: Qual histria?Joo Grilo: Essa de madre e
beatas se juntarem para enterrar uma cachorra em latim.Beatas:
Ai!Joo Grilo: Que aperreio esse? A desgraa agora foi que
comeou!Madre Superiora: Ento houve isso? Uma cachorra enterrada em
latim?Joo Grilo: E ento? proibido?Madre Superiora: Se proibido?
Deve ser, porque engraado demais para no ser. proibido! mais do que
proibido! Cdigo Cannico, artigo 1627, pargrafo nico, letra k.
Madre, a senhora vai ser suspensa.Madre Ana: Ai!Joo Grilo: Vossa
Excelncia Reverendssima vai suspender a Madre?Madre Superiora: Vou,
por que no? Acha pouco o que ela fez? Uma vergonha! Uma
desmoralizao!Madre Ana: Ai!Madre Superiora: E as beatas tambm vai
pular fora da Igreja!Beatas: Ai!Madre Superiora: Quanto senhora,
Senhora Joo Grilo, vai ver agora o que administrar. A senhora vai
se arrepender de suas brincadeiras, jogando a Igreja contra Miranda
Morais. Uma vergonha, uma desmoralizao!Joo Grilo: mesmo, uma
vergonha. Uma cachorra safada daquela se atrever a deixar trs
contos para cada beata, quatro para a Madre Ana e seis para a Madre
Superiora, demais.Madre Superiora, mo em concha no ouvido: Como?Joo
Grilo: Ah! E a senhora no sabe da histria do testamento ainda
no?Madre Superiora: Do testamento? Que testamento?Chic: O
testamento da cachorra.Madre Superiora: Testamento da
cachorra?Madre Ana, animando-se: Sim, a cachorra tinha um
testamento. Maluquice de sua dona. Deixou trs contos de ris para as
beatas, quatro para mim e seis para a senhora, que beno!Madre
Superiora: por isso que eu vivo dizendo que os animais tambm so
criaturas de Deus. Que animal interessante! Que sentimento
nobre!Madre, arriscando: Para atender vontade da dona, deixei que
as beatas acompanhasse o. . .Madre Superiora, sorridente: O
enterro!Padre, sorridente: Sim, o enterro.Madre Superiora: Em
latim?Carmela: Nada, eu disse a umas quatro ou cinco coisas que
sabia, coisa pouca.Joo Grilo, gregoriano: No sei que, no sei que,
defunctorum.Chic, mesmo tom: Amm.Chic, mesmo tom: Amm.Madre
Superiora: preciso deliberar. assunto para se discutir com muito
cuidado. Vamos reunir o conclio.(Encaminha-se para a igreja. As
beatas querem ir logo depois dele, mas a Madre Ana as impede e toma
para si o lugar de honra.)Carmela, do limiar, antes de entrar na
igreja: Na verdade, v-se logo que uma grande administradora. Chic:
Voc ainda se desgraa numa embrulhada dessas. Eles viram a
bexiga?Joo Grilo, exibindo-a: Que nada, est aqui.Chic: Se a mulher
do padeiro descobrir que voc tirou a bexiga do cachorro antes do
enterro. . .Joo Grilo: Que que tem isso? Eu estava precisando dela
para um negcio que estou planejando e a necessidade desculpa tudo.
A cachorra j estava morta, no precisava mais dela, eu tirei porque
estava precisando! Ela no tem nada a reclamar.Chic: , a cachorra j
estava morta. Joo Grilo: Voc ainda no viu nada! Eu ter tirado a
bexiga do cachorro no quer dizer coisa nenhuma. Danado o gato que
arranjei para tomar o lugar do morto. Vou vou vender a ela, para
tomar o lugar do cachorro, um gato maravilhoso, que descome
dinheiro. Chic: Descome, Joo?Joo Grilo: Sim, descome, Chic. Come,
ao contrrio.Chic: Est doido, Joo! No existe essa qualidade de
gato.Joo: A mulher vem j para c, cumprir o testamento. Eu deixei o
gato amarrado ali fora. Voc v l e enfie essas pratas de dez tostes
no desgraado do gato, entendeu?Chic: Entendi demais. (Vai sair mas
volta.) O Joo!Joo Grilo: Hein!Chic: E cabe?Joo Grilo: sei l! Se no
couber, bote de cinco tostes, entendeu?Chic: Entendi.Joo Grilo:
Quando eu gritar por voc, venha, me entregue o gato e deixe o resto
por minha conta. A bexiga quem vai nos garantir se o negcio der
errado. Leve-a, encha-a de sangue e bote no peito dentro da camisa.
V, v.(Chic faz uma saudao mulher, que vem entrando, com dois
pacotinhos de dinheiro, e sai.)Joo Grilo: Como vai a senhora? J est
mais consolada?Dora: Consolada? Como, se alm de perder minha
cachorra ainda tive de gastar treze contos para ela se enterrar?Joo
Grilo: Est a, o dinheiro?Dora: Est. Entregue Madre e s beatas.Joo
Grilo: Um momento. O que que tem escrito aqui?Dora: Beatas.Joo
Grilo: E aqui?Dora: Madre Ana.Joo Grilo: Pois por favor escreva
aqui Madre Superiora e Madre Ana.Dora: Madre Superiora e Madre Ana?
Por qu?Joo Grilo: Porque houve aqui um pequeno arranjo e a madre
Superiora tambm teve que entrar no testamento.Dora, escrevendo: Que
complicao! E se ao menos eu lucrasse alguma coisa. . . Mas perdi
foi minha cachorra.Joo Grilo: Quem no tem co caa com gato.Dora:
Hein?Joo Grilo: Quem no tem co caa com gato e eu arranjei um gato
que uma beleza para a senhora.Dora: Um gato?Joo Grilo: Um
gato.Dora: E bonito?Joo Grilo: Uma beleza.Dora: Ai, Joo, traga para
eu ver! Chega a me dar uma agonia. Traga, Joo, j estou gostando do
bichinho. Gente, no, povo que no tolero, mas bicho d gosto.Joo
Grilo: Pois ento vou busc-lo.Dora: Espere. Sabe do que mais, Joo?
No v buscar o gato que isso s me traz aborrecimento e despesa. No
viu o que aconteceu com a cachorra? Terminei tendo que fazer
testamento.Joo Grilo: Ah, mas aquilo porque foi a cachorra. Com meu
gato diferente...Dora: Diferente por qu?Joo Grilo: Porque, em vez
de dar despesa, esse gato d lucro.Dora: Fora vaca, cavalo e criao,
bicho que d lucro no existe.Joo Grilo: No existe se no... Eu fico
meio encabulado de dizer!Dora: Que isso, Joo, voc est em casa!
Diga!Joo Grilo: que o gato que eu lhe trouxe, descome
dinheiro.Dora: Descome dinheiro?Joo Grilo: Descome, sim.Dora: Essa
eu s acredito vendo!Joo Grilo: Pois vai ver. Chic!Dora: Ah, e
histria de Chic ? Logo vi.Joo Grilo: Nada de histria de Chic, mas
foi ele quem guardou o bicho. Chic!Chic entrando com o gato: Tome
seu gato. Eu no tenho nada com isso.(Joo d-lhe uma cotovelada e
apresenta o gato mulher.)Joo Grilo: Est a o gato.Dora: E da?Joo
Grilo: s tirar o dinheiro.Dora: Pois tire.Joo Grilo: vira pra Chic
com o rabo levantado: Tire a, Chic.Chic: Eu no, tire voc.Joo Grilo:
Deixe de luxo, Chic, em cincia tudo natural.Chic: Pois se natural,
tire.Joo Grilo: Ento tiro. (Passa a mo no traseiro do gato e tira
uma prata de cinco tostes.) Est a, cinco tostes que o gato lhe d de
presente.Dora: Muito obrigada, mas se voc no se zanga eu quero ver
de novo.Joo Grilo: De novo?Dora: Vi voc passar a mo e sair com o
dinheiro, mas agora quero ver o parto.Joo Grilo: O parto?Dora: Sim,
quero ver o dinheiro sair do gato.Joo Grilo: Pois ento veja.Dora:
(Depois da nova retirada) Nossa Senhora, mesmo. Joo, me arranje
esse gato pelo amor de Deus!Joo Grilo: Arranjar fcil, agora, pelo
amor de Deus que no pode ser, porque sai muito barato. Amor de Deus
coisa que eu tenho, d ou no lhe d o gato.Dora: Quer dizer que no
tem jeito de eu arranjar esse gato?Joo Grilo: De modo algum, h um
jeito e at fcil.Dora: Pois diga qual , Joo.Joo Grilo: Deixe eu
entrar no testamento do cachorro.Mulher: Pois voc entra. Por quanto
vende o gato?Joo Grilo: Um conto, est bom?Dora: Est no, est
caro.Joo Grilo: Mas por um gato que descome dinheiro! Dora: J fiz a
conta, vou levar dois mil dias s para tirar o preo.Joo Grilo: Mas
ele descome dinheiro mais de uma vez por dia, a senhora no
viu?Dora: Mas ele pode morrer. S dou quinhentos e se voc no aceitar
ser demitido da padaria.Joo Grilo: Est certo, fica pelos
quinhentos.Dora: Tome l. Passe o gato, Chic. Meu Deus, que gatinho
lindo! Agora a coisa outra, tenho um filho de novo e vou tirar o
prejuzo. (Sai contentssima).Chic: Joo, adeus. Eu vou-me embora.Joo
Grilo: Nada disso, tome a metade do dinheiro e deixe de ser
mole.Chic: Mulher, eu no tenho coragem de continuar sempre, melhor
fugir logo, enquanto tudo est em paz.Joo Grilo: No adianta, Chic,
voc j entrou na histria e agora tarde porque a mulher descobre j.
Quantas pratas voc conseguiu meter?Chic: Trs Joo Grilo: Ento o
negcio estoura j.Chic: Meu Deus, se eu sair com vida dessa histria,
subo a serra do Pico de joelhos. Joo Grilo: Deixe de moleza, Chic.
Voc encheu a bexiga de sangue?Chic apontando a barriga: Enchi, est
aqui.Joo Grilo: Ento est tudo garantido.(Entram a Madre Superiora,
a Madre Ana e as Beatas.) Madre Superiora: No resta nenhuma dvida,
foi tudo legal, certo e permitido. Cdigo Cannico, artigo 368,
pargrafo terceiro, letra b.Carmelinha: Quer dizer que no agimos
mal?Madre Superiora: Muito pelo contrrio, vocs agiram muito bem.Joo
Grilo: E aqui est a prova de que vocs agiram muito bem. (Entregando
os pacotes.) Madre Superiora e Madre Ana e Beatas.Beatas:
(Falsamente admiradas) Que isso? Que isso?Joo Grilo: O testamento
da cachorra, a prova de que voc agiu bem, de acordo com o Cdigo
Cannico, artigo no sei quanto, pargrafo sete, letra b. Madre Ana:
Ah, voc sabe ler, Joo?Joo Grilo: No, conheci pelo peso.Madre Ana
(divide o pacote com a Madre Superiora): Senhora Madre
Superiora...Madre Superiora: No h pressa, no h pressa... (Mesmo
assim, recebe o dinheiro, conta-o e embolsa-o,
rapidamente.)Padeiro: Ah, voc est a? (Pega Joo pela camisa.) O gato
no descome dinheiro coisa nenhuma, descome o que todo gato descome.
Mas voc me paga!Joo Grilo: Que isso? Que isso? O senhor no tem
vergonha de dizer essas coisas diante da Madre Superiora? Descome,
no descome! Que conversa mais imoral! Que chamego esse?Padeiro:
(Furioso) Imoral voc, vendendo aquele gato!Joo Grilo: E eu tenho
culpa de sua mulher s gostar de bicho?Padeiro: S gostar de bicho
no, que ela casou comigo.Joo Grilo: Sua diferena para bicho muito
pouca, padeiro.Padeiro: O qu? assim que voc me trata agora? Olhe
que eu boto voc para fora da padaria!Joo Grilo: Voc no bota coisa
nenhuma, porque eu j estou fora dela. Faz exatamente dez minutos
que eu me considero demitido daquela porcaria. Um sujeito como eu
no trabalha para uma mulher que compra gato.Padeiro: Ladra!
Ladra!Joo Grilo: Ladro Voc, presidente da irmandade. Trs dias
passei em cima de uma cama, tremendo de febre. Mandava pedir
socorro a ela e a voc e nada. At o padre que mandei pedir para me
confessar no mandaram. E isso depois de passar seis anos
trabalhando naquela desgraa!Padeiro: Ingrata, eu que nunca a
despedi, apesar de todas as suas trapaas!Joo Grilo: Nunca me
despediu porque eu trabalhava barato e bem. Est ai a Madre Ana que
o diga: qual era o melhor po da rua, Madre Ana?Madre: O po de Joo
Grilo.Joo Grilo: Est vendo? Ladro voc, ladro de farinha. Eu o que
fao me defender como posso.Madre Superiora: Afinal que barulhada
essa?Padeiro: Foi essa ladra que vendeu um gato minha mulher,
dizendo que ele botava dinheiro, Senhora Madre Superiora.Carmela:
Ra, ra! Essa foi boa!Padeiro: Boa? E uma beata que vem dizer isso?
o fim do mundo!Madre Superiora: No se incomode, trata-se de uma
dbil mental.(Entram Miranda Moraes e Salete.)Miranda Moraes: Ns
vamos esclarecer essa histria de cachorro agora!Salete: Isto! bom
que esto todos aqui!Padeiro: Ah! Nada disto! Quem vai esclarecer
alguma coisa sou eu!... Fao minha queixa ao Senhora Madre
Superiora, na qualidade de presidente da Irmandade das Almas. Madre
Superiora: Est recebida a queixa e vai ser apurado o fato, para
denncia autoridade secular.Joo Grilo: No vai ser apurada coisa
nenhuma, porque agora eu vou-me embora daqui. E sabem do que mais?
Vo-se danar todos, beatas, padeiro, Madre, Madre Superiora, porque
eu j estou cheia, sabem?Beatas: Joo Grilo!Madre Ana: Joo
Grilo!Madre Superiora: Senhora Joo Grilo!Joo Grilo: isso mesmo e
faam o favor de no me irritar se no eu dou um tiro na cabea de
Chic.Chic: Na minha? D na da sua me, que por menos nasceu voc.(Som
de tiros e gritos de socorro.)Madre Ana: Meu Deus, que ter sido
isso?Madre Superiora: O barulho era de tiro.Dora entrando
assombrada: Valha-me Deus! Ai, meu marido de minha alma, vai morrer
todo mundo agora. Socorro, Senhora Madre Superiora.Madre Superiora:
Que h? Que isso? Que barulho!Dora: Severina de Aracaju, que entrou
na cidade com uma capanga e vem para c roubar a igreja.Madre Ana:
Ave-Maria! Valha-me Nossa Senhora!Madre Superiora: Quem Severina de
Aracaju?Carmelinha: Uma cangaceira, uma mulher terrvel.Madre
Superiora: ( Dora) Chame a polcia.Dora: A polcia correu.Madre
Superiora: Correu?Dora: E ento? Informaram-se por onde ele vinha e
saram exatamente pelo outro lado.Madre Superiora: Ave-Maria!
Valha-me Nossa Senhora!Dora: Ai! meu Deus!Padeiro: Ai! meu
Deus!Madre Ana: E ser verdade mesmo? Onde est Severina?Severina:
(aparecendo, a Capanga vem lgo em seguida) Aqui.Madre Superiora:
(desmaiando) Ai!Joo Grilo: Que grande administradora!Severina: Um
momento, ningum corra. O primeiro que tentar fugir, morre. O que
isso que est a deitado?Madre Superiora: (abrindo os olhos, ciosa do
posto) Madre Superiora.Severina: timo. Nunca tinha matado uma madre
superiora... Capanga: A senhora vai ser a primeira.Madre Superiora:
(desmaiando) Ai!Severina: dando-lhe um pontap: Levante-se e deixe
de chamego. Xilique comigo no pega. (a Madre Superiora levanta-se
vagarosamente.) Vossa Reverendssima vai-me desculpar, mas deixe ver
os bolsos.Madre Superiora: No tenho nada, a capit
compreende...Severina: (cortante) Mesmo assim eu quero ver.
Capanga: E deixe de chamar de capit, que ela no gosto.Madre
Superiora: E como hei de cham-la ento?Severina: Severina, que meu
nome de Batismo.Madre Ana: que ns no temos coragem de chamar uma
pessoa to importante de Severina.Severina: Isso tudo porque quem
est com o rifle sou eu. Se fosse qualquer um de vocs, eu era
chamada era de Biu. Deixem de conversa, que isso comigo no vai.
Mostre os bolsos. (Tirando o dinheiro) Seis contos! Mas possvel? J
vi que o negcio de reza est prosperando por aqui.Joo Grilo: Depois
que se comeou a enterrar cachorro ento, faz gosto!Capanga: E isto
tudo foi para se enterrar um cachorro?Joo Grilo: Foi.Severina:
Nesse caso a Madre deve ter tambm alguma coisa para sua amiga
Severina.Madre Ana: Tenho, no vou negar. Aqui esto dois contos,
Senhora Severina. o que posso lhe dar, no momento.Severina:
(Irnico) mesmo, padre? No possvel! Numa terra em que a Madre
Superiora tem seis contos, a Madre deve ter no mnimo uns trs.
(Severa) Deixe ver os bolsos. Olhe l, eu no disse? Fazendo jogo
sujo, hein, Madre? Quem diria, um ministro de Deus! Enfim, isso um
fim de mundo. Capanga: E as beatas, que que nos diz disso
tudo?Carmela: S temos a lamentar nossa pobreza...Carmelinha: ...que
no nos permite ajudar os amigos.Severina: Mais pobre do que Vossas
Senhorias Severina de Aracaju, que no tem ningum por ela, a no ser
seu velho e pobre papo-amarelo. Mesmo assim eu quero ajuda-las,
porque Vossa Senhorias so nossas amigas. (Tirando o dinheiro.) Trs
contos! Estou quase pensando em deixar o cangao. Eu deixava vocs
viverem, a Madre Superiora manda embora as beatas e me nomeava no
lugar delas. Capanga: Com mais uns cinqenta cachorros que se
enterrassem, voc se aposentava. (Sonhador.) Podia comprar uma
terrinha e ia criar uns bodes. Umas quatro ou cinco cabeas de gado
e podia-se viver em paz, sem nunca mais ouvir falar no velo
papo-amarelo... e ainda me levava junto!Severina: Mas uma grande
idia!Madre Superiora: Mas uma grade idia, Severina.Severina: uma
grande idia agora, porque a polcia fugiu. Mas ela volta com mais
gente e eu no dava trs dias para a senhora fazer o enterro da nova
beata.Dora (esperta): Ento venha trabalhar comigo na padaria.
Garanto que no se arrependeria.Severina (severo): Mostre a mo
esquerda.Dora: Pois no, com muito gosto.Severina: uma aliana?Dora:
, sou casada com essa desgraa a, mas estou to arrependida! (para
Chic) S gosto de homens valentes (para Eurico) e esse uma
vergonha.Severina: Vergonha uma mulher casada na igreja se oferecer
desse jeito. Alis j tinha ouvido falar que a senhora enganava seu
marido com todo mundo.Padeiro: O qu? possvel?Joo Grilo: Est a Chic
que o diga.Chic: Eu?Severina: A coisa de que eu tenho mais raiva de
mulher assim. Sabe o que eu fao com as que encontro com esse
costume?Dora: No.Capanga: Ferra na tbua do queixo.Dora: Ai!Padeiro:
No ligue ao que ela diz, mas a senhora podia vir mesmo trabalhar
comigo na padaria. No se ganha muito, mas d para viver.Severina:
Ento ganha-se pouco na padaria?Padeiro: Muito pouco, eu mesmo no
tenho nada aqui, veja.Severina: No precisa, eu acredito. O que voc
tinha, deixou no cofre e eu tirei tudo, de passagem por l.Padeiro:
Ai!Severina: No vejo motivo para essas agonias. Estou no meu
direito, porque a polcia fugiu e eu tomei a cidade.Joo Grilo: Dou
toda a razo a voc, Severina, mas est ficando tarde e eu tenho o que
fazer. Vamos embora, Chic. Vocs, at logo e muito boa viagem para
todos.Capanga: Um momento, Severina quer falar com voc (A Chic).
Voc tambm no se apresse.Joo Grilo: Eu j sei qual a conversa que voc
quer ter comigo. Tome logo meus duzentos e cinqenta mil-ris e deixe
eu ir-me embora. D os seus tambm, Chic, e vamos sair daqui que o
calor est aumentando.Severina: Nada disso. Voc agora fica e vai
morrer com os outros. Est me chamando de ladra? Severina do Aracaju
pode ser assassina, mas no mata ningum sem motivo. At hoje s matei
para roubar. assim que garanto meu sustento. Mas voc me chamou de
ladra e vai se arrepender.Madre Superiora: Quer dizer que o senhora
vai nos matar a todos?Severina: Vou, por que no?Madre Superiora:
Mas voc no disse que s mata para garantir seu sustento?Capanga: E
no o que estamos fazendo?Madre Superiora: uma louca. So duas
loucas! Socorro! Socorro!Severina: Pode gritar vontade, garanto que
no vem ningum. Mas somente por causa desse grito, Vossa Excelncia
vai ser a primeira. Tenha a bondade de passar para ali, porque
Severina do Aracaju no mata ningum defronte da Igreja.Capanga:
(fazendo uma vnia) Senhora Madre Superiora... No adianta olhar para
os lados, porque, se no sair, morre aqui mesmo. Seja mulher, d um
exemplo a suas secretrias que esto em tempo de se acabar de medo.(A
Madre Ana e as Beatas comeam a rezar. A Madre Superiora ergue a
cabea e quer sair com dignidade, mas as pernas no lhe tremem de tal
modo que ele vai tropeando.)Severina: Sustente as pernas, Senhora
Madre Superiora! Que vergonha, chega d desgosto se matar uma mulher
dessa! V, v logo!!(A Madre Superiora sai pela esquerda. Severina
faz um aceno para a Capanga. Este sai, atrs da Madre Superiora. Um
tiro. Severina baixa a cabea afirmativamente, sorrindo com
eficincia da execuo. A Capanga reaparece, fazendo um gesto
horizontal e cortante com a mo.)Severina: Senhora Madre Ana, pela
ordem, a sua vez.Madre Ana: (descobrindo o rosto.) Pode cuidar logo
das Beatas.Beatas: Nada disso, a vez e da Senhora.Severina: Para no
haver discusso, vo as trs de uma vez.Madre Ana: ( Joo Grilo) Tudo
isso por sua culpa, com suas histrias de cachorra benta e cachorra
enterrada! (Com raiva, Madre Ana se esquece do medo e sai
rapidamente, mas as Beatas ficam.)Severina: Que isso, quer deixar a
Madre sem poder rezar o ofcio? Carmelinha: O ofcio? Que ofcio, o
dos mortos?Severina: Nada, o do casamento. Capanga: Ra, ra, essa
foi boa!Beatas: (Sem gosto) Foi tima!Capanga: Vo atrs da madre e
nunca mais se esqueam aqui da madre que as casou. E nem da
beata.(As beatas saem. trs tiros, mesma cena entre Severina e a
Capanga.)Capanga: Pronto! Agora chega a vez de quem tem mais
dinheiro! A Fazendeira!Miranda Moraes: Ah! Eu no tenho mais
dinheiro! Eu dei tudo em caridade para obras sociais!Salete: ! T na
moda!Miranda Moraes e Salete: Acredita?Severina: Acredito no!
Capanga, mate as duas e esfole o couro!(As duas vo saindo
empurradas pela Capanga.)Miranda Moraes: Ai, Salete! Eu t com
medo!Salete: Cala a boca sua energmena!(saem. Ouve-se dois
tiros.)Capanga: E chega agora a vez do excelentssimo senhor padeiro
desta cidade de Tapero, que ter a sbida satisfao da morrer ao lado
de sua excelentssima mulher safada.Padeiro: Antes de morrer, tenho
um pedido a fazer.Severina: Ai, ai, ai! O que ?Padeiro: Quero que
ela morra primeiro, para eu ver.Severina: Concedido. Mate a mulher
primeiro.Dora: Ah desgraado!Padeiro: Desgraada voc que me desgraava
a testa sem eu saber. E se ao menos fosse com uma pessoa de
respeito! Mas at Chic!Chic: At Chic, o qu? Eu fui que corri o
perigo de ficar falado, andando com essa mulher pra cima e pra
baixo.Padeiro: Eu no digo! Voc me desgraou. Caminhe na frente! Fao
questo de ver essa desgraa morrer!Dora: E ento? Pensa que vou fazer
cara feia? Est muito enganado, tenho mais coragem do que muito
homem safado. Voc, sim, est a em tempo de se acabar. Pensa que no
vi as pernas de sua cala tremendo, desde que elas entraram? Frouxo
safado, no lhe dou o gosto de me queixar de jeito nenhum. (
Capanga) Est pronta?Capanga: Estou.Dora: Pois vamos. (Sai
firmemente, acompanhada pelo marido, que cambaleia.) Eu no disse?
Segure aqui, que eu ajudo.(O padeiro se apia na mulher e eles saem
abraados.)Joo Grilo: E assim que sero dois numa s carne. Chic: No
mangue no, Joo. Mulher valente! Safada mas valente.Joo Grilo: Voc
que diz isso porque sabe.(Um s tiro. Ficam todos em expectativa e a
Capanga volta.)Severina: Que foi isso? S matou um?Capanga: No, os
dois.Severina: S ouvi um tiro.Capanga: Ia matar a mulher primeiro,
como a senhora mandou, mas no momento em que ia puxar o gatilho, o
homem correu, abraou-se com a mulher e morreram juntos.Severina:
Muito bem. Como o nome de Vossa Senhoria?Joo Grilo: Minha Senhoria
no tem nome nenhum, porque no existe. Pobre tem l senhoria, s tem
desgraa.Severina: Diga ento o nome de Vossa Desgracncia.Joo Grilo:
Jana Grilo.Severina: Chega ento agora a vez de Sua Desgracncia, a
Senhora Joo Grilo, a desgracncia mais desgracncia que j tive a
honra de matar. Pode ir, a casa sua.Joo Grilo: Um momento. Antes de
morrer, quero lhe fazer um grande favor.Severina: Qual ?Joo Grilo:
Dar-lhe esta gaita de presente.Capanga: Uma gaita? Pra que ela quer
uma gaita?Joo Grilo: Pra nunca mais morrer dos ferimentos que a
polcia lhe fizer.Severina: Que conversa essa? J ouvi falar de
chocalho bento que cura mordida de cobra, mas gaita que cura
ferimento de rifle, a primeira vez.Joo Grilo: Mas cura. Essa gaita
foi benzida por padre Ccero, pouco antes de morrer.Severina: Eu s
acredito vendo.Joo Grilo: Pois no. Queira Vossa Excelncia me ceder
o seu punhal.Severina: Olhe l.Joo Grilo: No tenha cuidado. Pode
apontar o rifle e se eu tentar alguma coisa para seu lado,
queime.Severina: ( Capanga) Aponte o rifle para essa desgracncia,
que desse povo que eu tenho medo. (Entrega o punhal Joo sob a mira
da Capanga.) E agora?Joo Grilo: Agora vou dar uma punhalada na
barriga de Chic.Chic: Na minha, no.Joo Grilo: Deixe de moleza,
Chic. Depois eu toco na gaita e voc fica vivo de novo! (Murmurando
a Chic) A bexiga, a bexiga!(Acena para Chic, mostrando a barriga e
lembrando a bexiga, mas Chic no entende.)Chic: Muito obrigado, mas
eu no quero no, Joo.Joo Grilo: (novos acenos) Mas eu no j disse que
toco na gaita?Chic: Ento vamos fazer o seguinte: voc leva a
punhalada e quem toca na gaita sou eu.Joo Grilo: Homem, sabe do que
mais? Vamos deixar de conversa. Tome l! Morra, desgraado!(D uma
punhalada na bexiga. Com a sugesto, Chic cai no solo, apalpa-se, v
a bexiga e s ento entende. Ele fecha os olhos e finge que
morreu.)Joo Grilo: Est vendo o sangue?Severina: Estou. Vi voc dar a
facada, disso nunca duvidei. Capanga: Agora, quero ver voc curar o
homem.Joo Grilo: j.(Comea a tocar a gaita e Chic comea se mover no
ritmo da msica, primeiro uma mo, depois as duas, os braos, at que
se levanta como se estivesse com dana de So Guido.)Severina: Nossa
Senhora! S tenho sido abenoada por Meu Padrinho Padre Ccero. Voc no
est sentindo nada?Chic: Nadinha.Severina: E antes?Chic: Antes
como?Severina: Antes de Joo tocar na gaita.Chic: Ah, eu estava
morto.Severina: Morto?Chic: Completamente morto. Vi Nossa Senhora e
Padre Ccero no cu.Capanga: Mas em to pouco tempo? Como foi
isso?Chic: No sei, s sei que foi assim.Severina: E que foi que
Padre Ccero lhe disse?Chic: Disse: Essa a gaitinha que eu abenoei
antes de morrer. Vocs devem d-la a Severina, que precisa dela mais
do que vocs.Severina: Ah meu Deus, s podia ser Meu Padrinho Padre
Ccero mesmo. Capanga: Joo, d essa gaitinha.Joo Grilo: Ento me solte
e solte Chic.Severina: No pode ser, Joo. Eu matei a Madre
Superiora, a Madre Ana, as Beatas, o padeiro e a mulher e eles
morreram esperando por voc. Se eu no te matar, vm-me perseguir de
noite, porque ser uma injustia com eles.Joo Grilo: Mas mesmo eu lhe
dando essa gaita? Voc repare que eu podia ter morrido sem nada lhe
dizer e voc nunca saberia de nada, porque ningum ia dar importncia
a uma gaita.Severina e Capanga: verdade.Joo Grilo: Eu lhe dei uma
oportunidade de conhecer Meu Padrinho Padre Ccero e voc me paga
desse modo!Severina: De conhecer Meu Padrinho? Nunca tive essa
sorte. Fui uma vez ao Juazeiro s para conhec-lo, mas pensaram que
eu ia atacar a cidade e fui recebido a bala.Joo Grilo: Mas pode
conhec-lo agora.Severina e Capanga: Como?Joo Grilo: Sua capanga lhe
d um tiro de rifle, voc vai visit-lo. Ento eu toco na gaita e voc
volta.Severina: E se voc no tocar?Joo Grilo: No est vendo que eu no
fao uma misria dessa? Garanto que toco.Severina: Sua idia boa, mas
por segurana entregue a gaita minha Capanga. (Joo entrega a gaita)
Agora eu levo um tiro e vejo Meu Padrinho?Joo Grilo: V, no v,
Chic?Chic: V demais. Est l, vestido de azul, com uma poro de
anjinhos em redor. Ele at estava dizendo: Diga Severina que eu
quero v-la.Severina: Ai, eu vou. Atire, atire!Capanga:
Capit!Severina: Atira, cabra frouxa, eu no estou mandando?Capanga:
Capit!Severina: Atire!Joo Grilo: Mulher, atire logo pelo amor de
Deus!(A Capanga ergue o rifle.)Severina: Espere. (Joo extremamente
nervosao, ergue os braos para o cu.) No se esquea de tocar na
gaita.Capanga: No tenha cuidado, Capit.Severina: Ento atire.(A
Capanga ergue o rifle de novo e atira. Severina cai e a Capanga
pega a gaita.)Joo Grilo (Impedindo-a): No, deixe para tocar depois!
Deixe pobre de Severina conversar mais um pedao com o Padre Ccero!
Essas ocasies so poucas, preciso aproveitar.Capanga: No, j deu
tempo de ele ver o padre. (toca na gaita e nada) Capit! (toca na
gaita) Capit! Capit! (empurra Severina com o p) Est morta!Joo
Grilo: Toque na gaita!Capanga: (Depois de tocar.) Capit! Ah, Grilo
amaldioada, voc matou a capita.Joo Grilo: Em cima dela, Chic.
(Atacam a Capanga. Sem que ningum veja a facada, Joo Grilo d uns
meneios e saltos de gato na frente da Capanga, que puxa um revlver:
Chic imobiliza os braos da Capanga segurando-a por trs. Com uma das
mos fora-o a apontar o revlver para o cho.) (A Capanga reergue
dificilmente a cabea, pega o rifle, atira em Joo e morre. Joo entra
em cena segurando o espinhao e senta-se no cho. Chic volta
correndo.)Chic: Que foi isso, Joo?Joo Grilo: A cabra estava viva
ainda e atirou em mim.Chic: Ai, minha Nossa Senhora, ser que voc
vai morrer, Joo?Joo Grilo: Acho que vou, Chic, estou ficando com a
vista escura.Chic: Ai, meu Deus, pobre de Joo Grilo vai morrer!Joo
Grilo: Deixe de latomia, Chic, parece que nunca viu uma mulher
morrer! Nisso tudo eu s lamento perder o testamento da
cachorra.(Morre.)Chic: Joo! Joo! Morreu! Ai meu deus, morreu pobre
de Joo Grilo! To desgraada, to safada e morrer assim! Que que eu
fao no mundo sem Joo? Joo! Joo! No tem mais jeito, Joo Grilo
morreu. Acabou-se a Grilo mais inteligente do mundo. Cumpriu sua
sentena e encontrou-se com o nico mal irremedivel, aquilo que a
marca de nosso estranho destino sobre a terra, aquele fato sem
explicao que iguala tudo o que vivo num s rebanho de condenados,
porque tudo o que vivo morre. Que posso fazer agora? Somente seu
enterro e rezar por sua alma. (Entra na Igreja, limpando as
lgrimas. Se se montar a pea com dois cenrios, organiza-se a cena
para o julgamento que se segue.)
3 Ato
(Entram os artistas de circo)
Palhao 4: Peo desculpas ao distinto pblico que teve de assistir
a essa pequena carnificina, Palhaos: Eca!!!Palhao 4: Mas ela era
necessria ao desenrolar da histria. Agora a cena vai mudar um
pouco. Joo, levante-se e ajude a mudar o cenrio! (Aos outros
artistas) Chamem os outros.Palhaos: Os defuntos tambm?Palhao 4:
Tambm.Palhaos: Senhora Madre Superiora... Palhao5: Senhora Madre
Ana... Palhao 3: Senhor Padeiro...Palhao 4: Dora...Palhaos:
Beatas...Palhao 5: Capanga...Palhao 1: Miranda Moraes...Palhao 2:
Salete...Artistas: Severina!(Aparecem todos)Palhao 4: preciso mudar
o cenrio, para a cena do julgamento de vocs. Tragam o trono de
Nosso Senhor! Agora a igreja vai servir de entrada para o cu e para
o purgatrio. Palhao 3: O distinto pblico no se espante ao ver, nas
cenas seguintes, dois demnios.Palhao 5: Isso decorre de uma
crena.Palhaos: Agora os mortos. Palhao 5: Quem estava morto?Madre
Superiora: Eu.Madre Ana: Eu tambm.Palhao 4: Quem mais?Palhao 3: Joo
Grilo, o padeiro, a mulher, as beatas, Severina e a capanga.Joo
Grilo: Um momento.Palhao 4: Mulher, morra, que o espetculo precisa
continuar!Joo Grilo: Espere, querem mandar no meu morredor?Palhao
3: O que que voc quer?Palhao 4: Muito bem, com toda essa gente
morta, o espetculo continua e tero oportunidade de assistir seu
julgamento. Espero que todos os presentes aproveitem os
ensinamentos desta pea e reformem suas vidas, se bem que eu tenha
certeza de que todos os que esto aqui so uns verdadeiros santos..
Palhao 2: ...praticantes da virtude...Palhao 4: ...do amor a Deus e
ao prximo...Palhao 1: ...sem maldade...Palhaos: Sem
mesquinhez...Palhao 3: Incapazes de julgar e de falar mal dos
outros... Palhao 5: Generosos, sem avareza...Palhao 4: timos
patres, excelentes empregados, sbrios, castos e pacientes. E basta,
se bem que seja pouco. Artistas: Msica!(Msica de circo.)Joo Grilo
(para a Capanga): Mas me diga uma coisa, havia necessidade de voc
me matar?Capanga: E voc no me matou?Joo Grilo: Pois por isso mesmo
que eu reclamei. Voc j estava desgraada, podia ter-me deixado em
paz.Severina: Eu, por mim, agora que j morri, estou achando at bom.
Pelo menos estou descansando daquelas correrias. Quem deve estar
achando ruim a Madre Superiora.Madre Superiora: Eu? Por qu? Estou
at me dando bem!Joo Grilo: , esto todos muito calmos porque ainda
no repararam naquele fregus que est ali, na sombra, esperando que
ns acordemos.Madre Ana: Quem ?Joo Grilo: Voc ainda pergunta? Desde
que cheguei que comecei a sentir um cheiro ruim danado. Essa peste
deve ser...Demnio (saindo da sombra, severo): Calem-se todos.
Chegou a hora da verdade.Severina: Da verdade?Madre Superiora: Da
verdade?Madre Ana: Da verdade?Demnio: Da verdade, sim.Palhao 4:
Ento j sei que voc, Joo, est desgraada, porque contigo era na
mentira.Demnio: Vocs agora vo pagar tudo o que fizeram.Madre Ana:
Mas o que foi que eu...Demnio: Silncio! Chegou a hora do silncio
para vocs e do comando para mim. E calem-se todos. Vem chagando
agora quem pode mais do que eu e do que vocs. Deitem-se! Deitem-se!
Ouam o que estou dizendo, seno ser pior!(Desde que ele comeou a
falar, soam ritmadamente duas pancadas, fortes e secas, de tambor e
uma de prato, com uma pausa mais ou menos longa entre elas, rudo
que deve repetir at a apario do Encourado. Este o diabo, que,
segundo uma crena do serto do Nordeste, um homem muito moreno, que
se veste com acessrios de vaqueiro. Esta cena deve se revestir de
um carter meio grotesco, pois a ordem que o Demnio d, mandando que
os personagens se deitem, j insinua o fato de que o maior desejo do
diabo imitar Deus, resultado de seu orgulho grotesco. E tanto
assim, que ele tenta conseguir a pela intimidao o tributo que Jesus
ter depois, espontaneamente, quando de sua entrada. A Madre
Superiora a nica a esboar um movimento de obedincia, mas, antes que
ela se deite, o Encourado entra, dando pancadas de rebenque na
perna e ajustando suas luvas de couro. Os mortos comeam a tremer
exageradamente e o Demnio acorre para junto dele, servil e
pressuroso.)Demnio: Desculpe, fiz tudo para que eles se deitassem,
mas no houve jeito.O Encourado: Cale-se. Voc nunca passar de um
imbecil. Como se eu vivesse fazendo questo de ser recebido dessa ou
daquela maneira!Demnio: Peo-lhe desculpas, no foi isso que eu quis
dizer.O Encourado: Foi exatamente isso que voc quis dizer. terrvel
ter-se um sonho como o que eu tive e ver que ele vai ancorar nesse
embrutecimento da inteligncia e da dignidade!Demnio: Isso pode
acontecer comigo. Eu posso me sentir assim, mas o senhor...O
Encourado: Cale-se, j disse! Que me importa o que voc faz ou sente?
O que me desgosta ver minha imagem refletida em voc, uma imagem
profundamente repugnante. Mas vamos aos fatos. Que vergonha! Todos
tremendo! To corajosos antes, to covardes agora! A Senhora Madre
Superiora, to cheia de dignidade, a Madre Ana, a valente Severina
... E voc, a Grilo que enganava todo o mundo, tremendo como
qualquer safada!Joo Grilo: Que que posso fazer? J disse mais de cem
vezes a mim que no tremesse e tremo. Desde que ouvi aquelas
pancadas que comecei a sentir um calafrio danado.Demnio: Em tem
razo, porque o que vai lhe acontecer coisa muito vai lhe acontecer
coisa muito sria (sorrindo). O Encourado: engraado como vocs
empregam s vezes a palavra exata, sem terem conscincia perfeita do
fato. O que voc sentiu foi exatamente um arrepio de danado.
(Severo, ao Demnio) Leve a todos para dentro.Severina: Ai meu Deus,
vou pagar minhas mortes no inferno!Madre Superiora: Senhor demnio,
tenha compaixo de uma pobre Madre Superiora!O Encourado: Ah,
compaixo,... Demnio: Com pilhria boa! O Encourado: Vamos, todos
para dentro. Para dentro, j disse. Todos para o fogo eterno, para
padecer comigo.(O Demnio comea a perseguir os mortos e o alarido
deles terrvel. Ele vai agarrando um por um e os mortos vo se
desvencilhando, aos gritos) Madre Superiora: Ai! Leve a madre
Ana!Madre Ana: Ai! leve as Beatas!Beatas: Ai! Leve a
SeverinaSeverina: Ai! Leve a Capanga!Palhao 3: Parem, parem! Palhao
5: Acabem com essa molecagem!(Seu grito to grande que todos param e
o silncio se faz.) Joo Grilo: Acabem com essa molecagem. Diabo dum
barulho danado! assim, ? assim, ?Demnio: Assim como?Joo Grilo:
assim de vez? s dizer pra dentro e vai tudo? Palhao 3: Que diabo de
tribunal esse que no tem apelao?O Encourado: assim mesmo e no tem
para onde fugir!Joo Grilo: Sai da, pai da mentira! Palhao 5: Sempre
ouvi dizer que para se condenar uma pessoa ela tem de ser
ouvida!Madre Superiora: Eu tambm. Madre Ana: Boa!Dora: Boa!Padeiro:
Voc achou boa?Dora: Achei.Padeiro: Ento eu tambm achei. Boa, Joo
Grilo!Severina: isso mesmo e eu vou apelar para Nosso Senhor Jesus
cristo, que quem pode saber.O Encourado e Demnio: Besteira,
maluquice!Madre Ana: Besteira ou maluquice, eu tambm apelo. Senhor
Jesus Cristo, certo ou errado, eu sou uma madre e tenho meus
direitos. Quero ser julgada antes de ser entregue ao diabo.(Aqui
comeam a soar pancadas de sino no mesmo ritmo das de tambor
anteriores. O Encourado e o Demnio comeam a ficar agitados.)Joo
Grilo: Ah! Pancadinhas benditas! Oi, esto tremendo? Que vergonha,
to corajosos antes, to covardes agora! Que agitao essa? O
Encourado: Quem est agitado? somente uma questo de inimizade. Tenho
direito de me sentir mal com aquilo que me desagrada.Joo Grilo: Eu,
pelo contrrio, estou me sentindo muito bem. Sinto-me como se minha
alma quisesse cantar.Madre Superiora: (estranhamente emocionado) Eu
tambm. estranho, nunca tinha experimentado um sentimento como esse.
Mas uma vontade esquisita, pois no sei bem se ela de cantar ou de
chorar.(Esconde o rosto entre as mos. As pancadas do sino continuam
a tocar uma msica de aleluia. De repente, Joo ajoelha-se como se
levada por uma fora irresistvel e fica com os olhos fixos fora.
Todos vo-se ajoelhando vagarosamente. O Encourado volta rapidamente
as costas, para no ver o Cristo que vem entrando. um negro retinto,
com uma bondade simples e digna nos gestos e nos modos. A cena
ganha uma intensidade suavizada de iluminura. Todos esto de
joelhos, com o rosto entre as mos.)O Encourado: (de costas, grande
grito com o brao ocultando os olhos) Quem ? Emanuel? Emanuel: Sim,
Emanuel, o Leo de Jud, o Filho de Davi. Levantem-se todos, pois
sero julgados.Joo Grilo: Apesar de ser uma sertaneja pobre, sinto
perfeitamente que estou diante de uma grande figura. No quero
faltar com o respeito, mas se no me engano aquele sujeito acaba de
chamar o senhor de Emanuel.Emanuel: Foi isso mesmo, Joo. Esse um de
meus nomes, mas voc pode me chamar tambm de Jesus, de Senhor, de
Deus... Ele gosta de me chamar de Emanuel ou Manuel, porque pensa
que assim pode se persuadir de que sou somente homem. Anjo 1: Mas
voc, se quiser pode me cham-lo de Jesus.Joo Grilo: Jesus?Emanuel:
SimJoo Grilo: Mas, espere, o senhor que Jesus?Emanuel: Sou.Joo
Grilo: Aquele Jesus a quem chamavam Cristo?Jesus: A quem chamavam,
no, que era Cristo. Sou, por qu?Joo Grilo: Porque... no lhe
faltando com o respeito no, mas eu pensava que o senhor era muito
menos queimado... menos queimadinho...Madre Superiora: Cale-se
atrevido.Emanuel: Cale-se voc. Com que autoridade est repreendendo
os outros? Voc foi uma Madre indigno de minha igreja, mundana,
autoritria, soberba. Seu tempo j passou. Muita oportunidade teve de
exercer sua autoridade, santificando-se atravs dela. Sua obrigao
era ser humilde, porque quanto mais alta a funo, mais generosidade
e virtude requer. Que direito voc tem de repreender Joo porque
falou comigo com certa intimidade? Joo foi uma pobre em vida provou
sua sinceridade exibindo seu pensamento. Voc estava mais espantada
do que ela e escondeu essa admirao por prudncia mundana. O tempo da
mentira j passou.Joo Grilo: Muito bem. Falou pouco mas falou
bonito. A cor pode no ser das melhores, mas a senhora fala bem que
faz gosto.Emanuel: Muito obrigado, Joo, mas agora sua vez. Voc
cheia de preconceitos de raa. E voc negra! Vim hoje assim de
propsito, porque sabia que isso ia despertar comentrios. Que
vergonha! Eu Jesus nasci branco e quis nascer judeu, como podia ter
nascido negro. Para mim, tanto faz um branco como um negro. Voc
pensa que sou americano para ter preconceito de raa.Madre Ana: Eu,
por mim, nunca soube o que era preconceito de raa.O Encourado:
(sempre de costas para Emanuel) mentira. S batizava os meninos
pretos depois dos brancos.Madre Ana: Mentira! Eu muitas vezes
batizei os negros na frente.Demnio: Muitas vezes, no, poucas vezes,
e mesmo essas poucas quando os pretos eram ricos.Madre Ana: Prova
de que eu no me importava com a cor, de que o que me
interessava...Emanuel: Era a posio social e o dinheiro, no , Madre
Ana? Mas deixemos isso, sua vez h de chegar. Pela ordem, cabe a vez
Madre Superiora. (ao Encourado) Deixe de preconceitos e fique de
frente.O Encourado: (Sombrio) Aqui estou bem.Emanuel: Como queira.
Faa seu relatrio.Joo Grilo: Foi gente que eu nunca suportei:
promotor, sacristo, beatas, cachorro e soldado de polcia. Esse a
uma mistura disso tudo.Anjo 2: Silncio, Joo, no perturbe. Emanuel:
(Ao Encourado) Faa a acusao da Madre Superiora (O Demnio traz um
grande livro que o Encourado vai lendo.)O Encourado: Simonia:
negociou com o cargo, aprovando o enterro de uma cachorra em latim,
porque o dono lhe deu seis contos.Madre Superiora: E proibido?O
Encourado: Mulher, se proibido no sei. O que eu sei que voc achava
que era e depois, de repente, passou a achar que no era. E o trecho
que foi cantado no enterro uma orao da missa de defuntos.Madre
Superiora: Isso a com minhas amigas Beatas. Demnio: Quem escolheu o
pedao foi ela.O Encourado: Falso testemunho: citou levianamente o
Cdigo Cannico, primeiro para condenar os atos da Madre Ana e
contentar a milhionria Miranda Morais, depois para justificar o
enterro. Velhacaria: essa Madre Superiora tinha fama de grande
administradora...Demnio: ...mas no passava de uma poltica,
apodrecida de sabedoria mundana. Madre Superiora: Quem fala! Dois
desgraados que se perderam por causa disso...Emanuel: No
interrompa, no esse o momento de discutir isso. Pode continuar.O
Encourado: Arrogncia e falta de humildade no desempenho de suas
funes: essa Madre Superiora, falando com um pequeno, tinha uma
soberba s comparvel subservincia que usava para tratar com os
grandes. Demnio: Isto sem se falar no fato de que vivia tratando as
pessoas sempre com o maior desprezo.O Encourado: Para Manuel voc
est-se desgraando.Emanuel: Mais alguma coisa?O Encourado: No, estou
satisfeito.Emanuel: Ento, acuse a Madre Ana.Madre Ana: De mim ele
no tem nada o que dizer.O Encourado: o que voc pensa, minha safra
hoje est garantida. Tudo o que eu disse da Madre Superiora pode se
aplicar Madre Ana. Simonia, no enterro do cachorro, velhacaria,
poltica mundana, arrogncia com os pequenos, subservincia com os
grandes.Madre Ana: Mais no citei o Cdigo Cannico em falso.Demnio:
Em compensao, acaba de incorrer em falta de coleguismo com a Madre
Superiora.Madre Ana: E o que eu fizer aqui ainda voga?Anjo1: No,
isso confuso do demnio.O Encourado: E ela tinha ainda outro defeito
que a Madre Superiora nunca teve...Madre Ana: Qual era?Demnio: A
preguia. O Encourado: Deixava tudo nas costas das Beatas e a
parquia, na falta de um padre que no tinha, ficava completamente
entregue a essas patifes, por sua culpa. Anjos e Beatas: Patife
voc.Joo Grilo: (s Beatas) Esse sujeito a deve ser pior do que vocs,
deve, mas vocs no tinha uma ruindade bem apurada!Emanuel: Silncio,
Joo, j lhe disse que no interrompesse.Joo Grilo: O senhor me
desculpe, mas a lngua fica balanando na boca que chega a me dar uma
agonia. Eu posso ouvir umas pessoas dessas dizendo que prestavam e
ficar