1 INSTITUTO POLITÉCNICO DE COIMBRA ESCOLA SUPERIOR DE EDUCAÇÃO COMPLEMENTO DE FORMAÇÃO EM 1º CEB ESPECIALIZAÇÃO EM EXPRESSÕES A Dimensão Social do Programa do Estudo do Meio e as Novas Concepções Metodológicas na sua Abordagem Os testemunhos orais na aprendizagem do passado Janeiro, 2003 / 04
A história oral aparece com o sentido da valorização do conhecimento popular e das experiências vividas.
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INSTITUTO POLITÉCNICO DE COIMBRA
ESCOLA SUPERIOR DE EDUCAÇÃO
COMPLEMENTO DE FORMAÇÃO EM 1º CEB
ESPECIALIZAÇÃO EM EXPRESSÕES
A Dimensão Social do Programa do Estudo do Meio e
as Novas Concepções Metodológicas na sua Abordagem
Os testemunhos orais
na aprendizagem do passado
Janeiro, 2003 / 04
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A Dimensão Social do Programa do Estudo do Meio e as Novas Concepções Metodológicas na sua Abordagem
Mestre Luís Mota
1PLANIFICAÇÃO DO TRABALHO
- Tema escolhido:
“Os Testemunhos orais na aprendizagem do passado”
- Calendarização:
O trabalho desenvolver-se-á no período compreendido entre
6 a 24 de Maio de 2004
Maio / 2004
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A Dimensão Social do Programa do Estudo do Meio
SUMÀRIO
1. - Introdução
2. Perspectiva Histórica
3. - Em defesa dos Testemunhos Orais
3.1 - Os Testemunhos Orais como mediadores do desenvolvimento do
raciocínio histórico das Crianças
3.2 - A Contribuição do Testemunhos Orais no desenvolvimento das
competências essenciais no 1º CEB
4. - Os Testemunhos Orais na Escola
4.1 - A prática pedagógica , o desenvolvimento curricular
e a fundamentação da planificação docente
4.2 - A escola como centro recriador de cultura
5. - Da tradição oral à multimedia
5.1 – Tipos de Recolha e análise dos Testemunhos Orais
6. - Experiência de aplicação pedagógica –
“ Retalhos da vida de Bruscos”
7. - Considerações Finais
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A Dimensão Social do Programa do Estudo do Meio
1. INTRODUÇÂO
Não devemos pensar a História apenas como uma sucessão de reis, batalhas, santos e
navegadores, com algumas datas e gráficos, sem uma relação aparente com a compreensão do
presente e com uma oralidade muito mais complexa. A história é muito mais. É uma forma de
organizar e guardar a memória colectiva do passado – em todos os seus aspectos, sem excepção –
para compreendermos o nosso percurso, comportando-nos como cidadãos informados e activos.
Para não andarmos por aqui só por vermos andar os outros. É, também, um meio de representar o
mundo e lhe dar sentido.
A história oral aparece com o sentido da valorização do conhecimento popular e das
experiências vividas.
Utilizar a memória e a oralidade possibilita a lembrança e o reencontro com os momentos
vividos, dos tempos bons e ruins que a história de vida nos traz ao pensar o tempo presente e
permitindo-nos obter e desenvolver conhecimentos novos, fundamentando as nossas análises em
novas e inéditas fontes, criando espaço de contacto e influência sobre os nossos passos e
interpretações da vida.
Os depoimentos orais complementam outras fontes documentais, permitem-nos recuperar
experiências e pontos de vista individuais e colectivos daqueles que nem sempre são considerados
ou ouvidos. Diremos mesmo que a memória colectiva é como um mapa mental da história de vida
que completa o sistema dos fenómenos físicos, biológicos, psicológicos, afectivos, sociais e
culturais, em completo estado de inter-relação e interdependência
O novo saber que todos nós vamos adquirindo não suplanta o saber que se propaga
simplesmente pela transmissão directa e oral e uma vez perdido não se pode mais readquiri-lo e
retransmiti-lo: nenhum livro pode ensinar aquilo que só se pode aprender na infância ao se ter
olhos atentos e se prestar ouvidos ao canto e ao vôo dos pássaros quando andávamos pelos
campos lado a lado com o nosso avô e ele nos dizia o nome daquele pássaro que tão bem
assobiava .
O passado fala na medida em que, a partir do presente, lhe fazemos perguntas. Perguntas
que nada excluem e respostas que a todos pertencem. É isso afinal a História.
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A Dimensão Social do Programa do Estudo do Meio
2. PERSPECTIVA HISTÓRICA
A História faz-se com palavras e com pensamentos.
Para apreendermos o passado em toda a sua riqueza e complexidade, o historiador tem de
se servir do máximo número de fontes, combinando, sempre que possível, as fontes materiais,
escritas e orais. Uma fonte ou só um tipo de fontes não bastam para se fazer História.
A primeira história a ser escrita provavelmente foi produzida com base em depoimentos
orais. Heródoto o pai da história ( historiê ) – salienta como fontes o VER ( autopsie - ter
presenciado os acontecimentos ) e o OUVIR ( akoê – informar-se junto de pessoas que sabem ).
Mesmo, já na época medieval e principalmente na narração de milagres, os cronistas se
baseavam nos testemunhos orais.
No fim da Era Moderna, com o crescente número de documentos escritos, da evolução das
civilizações e pelas necessidades legitimadoras dos estados, criou-se a Arquivística que seria
entendida como o “arrumo”da memória escrita das sociedades.
A partir desta altura e, também, por causa da invenção da imprensa, do posterior
desenvolvimento da alfabetização e da extensão crescente da cultura letrada, acabam por
privilegiar os documentos escritos como principal fonte da história e suporte da memória dos
tempos contemporâneos.
Embora não sendo abandonadas as fontes orais perderam importância.
Exigia-se da história “uma verdadeira filiação racional na sequência dos acontecimentos
sociais”. A história devia elevar-se para além do indivídual, formular leis, leis absolutas,
objectivas e universais. A história procurou tornar-se uma ciência de laboratório, a erudição
afirma-se progressivamente, a formação profissional do historiador apura-se, a crítica da
proveniência, da autenticidade, da exatidão das fontes, desenvolve-se exaustivamente, o aparato
das notas infrapaginais que conferem à obra histórica um carácter indiscutível e sério.
A aplicação de um método seguro, que visava ao “Estabelecimento dos factos”, depressa
esgotou o programa da História Positivista, que se situava ao nível dos acontecimentos
superficiais, pressupondo a existência do dado histórico perfeitamente objectivo, que bastava
apreender e reconstituir “com tesoura e cola”, fazendo do historiador, que é, inevitavelmente, um
observador indirecto do passado, um observador passivo, espécie de fotógrafo, dando a primazia à
tradicional história política, uma vez que os factos mais fáceis de estabelecer eram os “grandes
acontecimentos” secundarizando os aspectos económicos, sociais e culturais, enfim, desprezando
as outras ciências do homem, separadas da história por compartimentos estanques.
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Com Durkheim, a história social ganha um novo impulso. A geografia humana, com Vidal
de la Biache e Albert Demangeon, chama a atenção para a inserção da história no espaço. Lucien
Febvre e Marc Bloch iniciam uma luta contra a história política e diplomática, uma história
passiva perante os factos, uma história factual, que se perdia nos caprichos individuais dos
“grandes”, e que recusava a pesquisa dos motivos reais, profundos e multíplos, ou seja, os
motivos geográficos, económicos, sociais, intelectuais, religiosos e psicológicos.
Estes historiadores, repudiaram uma história simplista, que se mantinha apenas à
superficie dos acontecimentos e apelam a uma história profunda e total que permita compreender
o presente pelo passado, mas, igualmente, compreender o passado pelo presente.
O primeiro explorador sério do, “ quadro social da Memória”, como lhe chamou, foi o
sociólogo francês Maurice Halbwachs, fiel discípulo de Emile Durkheim nos anos 20 . Halbwachs
argumentou que as recordações são construídas por grupos sociais. Os indivíduos recordam, no
sentido literal, físico. Contudo, são os grupos sociais que determinam aquilo que é “memorável” e
também a maneira como será recordado. Os indivíduos identificam-se com acontecimentos
públicos importantes para o seu grupo. “Recordam” muita informação da qual não tiveram
experiência directa. Uma notícia, por exemplo, pode constituir em si um acontecimento, um
acontecimento que se torna parte da vida de cada um.
Mas, foi o historiador francês, Bloch que mais estava preparado para adoptar a frase
mémoire collective e analisar os costumes campesinos nestes termos interdisciplinares, notando,
por exemplo, a importância dos avós na transmissão das tradições .
A partir daqui foi possível redefinir o lugar da História nesta série de ensaios
interdisciplinares.
Os historiadores começaram a interessar-se pela Memória ou, pelo menos, a sentir
necessidade de o fazerem sob dois pontos de vista. Tarefa que tem vindo a ser levada a cabo, desde
os anos 60, quando os historiadores do século XX se aperceberam da importância da “história
oral” .
Por um lado, até mesmo aqueles que trabalham sobre períodos mais recuados têm algo a
aprender com o movimento da história oral, uma vez que necessitam estar atentos aos testemunhos
orais e às tradições subjacentes a muitos documentos escritos. Por outro lado, a Memória, enquanto
fenómeno histórico; com aquilo a que se poderia chamar a história social da recordação. Dado que
a Memória social, tal como a Memória individual, é selectiva, precisamos de identificar os
princípios de selecção e de observar a maneira como variam de lugar para lugar, ou de um grupo
para outro, bem como a forma como se modificam ao longo do tempo.
As recordações são maleáveis e necessitamos compreender a forma como são moldadas e
por quem. Estes são tópicos que suscitam a atenção dos historiadores apenas no final dos anos 70,
mas que são hoje objecto, em toda a parte, de livros, de artigos e conferências. Diz-se muitas vezes
que a história é escrita pelos vencedores. Poderia também dizer-se que a história é esquecida pelos
vencedores. Podem permitir-se esquecer, enquanto os derrotados são incapazes de aceitar os
acontecimentos e estão condenados a meditar sobre eles, a revivê-los e a imaginar quão diferentes
poderiam ter sido. Seria possível encontrar uma outra explicação em termos de raízes culturais.
Quando as temos, podemos permitir-nos esquecê-las, mas quando as perdemos, vamos em busca
delas.
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A Dimensão Social do Programa do Estudo do Meio
É importante perguntar: quem quer que se lembre o quê e porquê? Que versão do passado se
registra e se preserva. Lembrar o passado e escrever sobre ele já não podem ser consideradas actividades inocentes.
Nem as histórias nem as recordações são objectivas. Em ambos os casos temos de aprender a estar
atentos à selecção consciente inconsciente, à interpretação e á distorção. Em ambos os casos esta
selecção, interpretação e distorção são fenómenos socialmente condicionados e não o trabalho de
indivíduos isolados.
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3. EM DEFESA DOS TESTEMUNHOS ORAIS
O espaço que é dado à escola na criação do currículo, se , por um lado, se pode traduzir
num desvirtuar de potencialidades, no caso da falta de condições mínimas de implementação, por
outro constitui um enorme desafio no sentido de uma maior eficácia educativa. Neste caso, os
testemunhos orais têm sido reavaliados, em função, naturalmente, de uma correcta orientação
metodológica e tendo em vista um proveitoso cruzamento crítico de fontes, muito para além da
simples exploração de entrevistas e inquéritos como demonstram algumas das sugestões práticas
no quadro das competências essenciais das diferentes aéreas referenciadas na reorganização
curricular do 1º CEB.
A História oral, permite aliar, às condições da sua própria produção a história das relações
e das emoções pessoais e simultaneamente desenvolver o espirito crítico que nos torna capazes de
suster e enquadrar o que é realmente importante, no depoimento, assim como aperfeiçoar a análise
de conteúdos e contextualização das informações recolhidas, sem nunca pôr de parte as emoções,
mas, pelo contrário, incorporando-as como um inevitável componente da memória e de todas as
fontes, orais e escritas. Na certeza porém, de que para os pesquisadores ( os alunos ) a relação
humana que naturalmente acontece pode ser também extremamente gratificante.
“Os testemunhos orais, obtidos através de entrevistas, podem ser explorados
pedagogicamente e podem ser relevantes para o alcance de objectivos curriculares diversificados
Ao fazê-lo , exploram-se memórias sociais esquecidas e valoriza-se o saber e a vivência dos mais
velhos; nesse processo, pode-se reforçar o sentimento de pertença a uma comunidade , contribuir
para a formação pessoal e social dos alunos e para o esforço das identidades locais e nacional –
o que é tanto mais importante quanto se vive em Portugal um processo de “modernização”
económica decorrente da integração europeia, o qual gera efeitos perversos de
descaracterização da memória e da identidade colectiva. “ ( Vidigal, Luis )
Cada vez mais , e para determinados períodos da História, a recolha de testemunhos orais,
apresenta-se como absolutamente fundamental. E tal assim é, na medida em que nos permite
Complementar / Completar informações existentes em documentos nos suportes tradicionais e em
outros que se nos apresentam à vista, sob a forma de objectos e / ou monumentos.
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A Dimensão Social do Programa do Estudo do Meio
Pensamos que podemos mesmo dizer que os testemunhos orais representam a génese da
investigação, esclarecendo os eventos ou processos que às vezes não seriam elucidados de outra
forma. São depoimentos de pessoas, por vezes até analfabetas, que geraram entrevistas
sistematizadas e dissolvidas no corpo geral da pesquisa, resultado de diálogos e aproximação
directa entre os sujeitos envolvidos permitindo a definição dos caminhos alternativos de nossas
interpretações.
A escolha da história oral, com base no diálogo, aparece na perspectiva do tempo
presente, legitimada pelas fontes vivas e conviventes, recuperando-se e recriando-se o objecto da
pesquisa por intermédio da memória dos que se dispuserem a relatar as suas práticas de vida, as
suas impressões do mundo, as suas crenças, recordações, esquecimentos e sonhos. Narrativas
que indicam o caminho a seguir, funcionando como uma espécie de ponte entre a teoria e a
prática, influenciando a imbricação das histórias despertadas pela memória. ( Ferreira, M.
1996:31-3)
Mesmo não sabendo ler e/ou escrever as pessoas mais idosas podem-se expressar, expondo
sentimentos e atitudes frente ao mundo e simultaneamente reavendo dignidade como pessoas
socialmente úteis. Recordando experiências vividas, às vezes em fragmentos de memórias,
recheados de sensibilidade, alegria ou dor, onde tanto os que contam, quanto os que escutam, se
emocionam , criando nesse momento em que um vive e o outro revive e, no reviver está a recriar
a história. É uma experiência cuidadosa e de aproximação, onde a confiança é de extrema
importância. Pois, o partilhar de histórias de vida é revirar os segredos do alheio, mesmo sendo
autorizado a fazê-lo.
Assim sendo, podemos até afirmar que a memória quando activada, é um livro aberto e
história viva.
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3.1 OBJECTOS E OS TESTEMUNHOS ORAIS COMO MEDIADORES DO
DESENVOLVIMENTO DO RACIOCINIO HISTÓRICO DAS CRIANÇAS
A discussão acerca do ensino-aprendizagem da história para crianças coloca algumas
questões de naturezas distintas e complementares, que se entrecruzam no exercício do trabalho
diário. Por um lado, situa-se o problema referente à natureza da história a ser ensinada, os seus
conceitos, operações e habilidades e, por outro lado , coloca-se a problemática metodológica do
como fazer.
O amplo movimento de renovação no campo da ciência histórica, sobretudo aquele
desencadeado pela Nova História, associados aos novos estudos no campo da cognição,
inspirados nas contribuições de Vygotsky, vem lançando novas luzes sobre processo de ensino-
aprendizagem da história para crianças.
A preocupação com a diversificação das fontes na pesquisa histórica vem sendo motivo
de debates entre historiadores, e foi, especialmente, através do movimento de renovação
historiográfica conhecido como Nova História que o uso de novas fontes se tornou recorrente nas
novas investigações empreendidas pelos historiadores. A Nova História Cultural, de uma maneira
particular, tem vindo a mostrar novas possibilidades de construção do conhecimento histórico
através os objectos da cultura, tendo-os em conta nas suas dimensões material e simbólica.
Uma das principais apropriações que o ensino faz das renovações no campo da
historiografia para o âmbito da sala de aula e para a relação ensino e aprendizagem da história,
traduz-se na exploração de possibilidades de uso dessas novas fontes e objectos como mediadores
nos processos de ensino-aprendizagem da história.
Inspirada nas renovações historiográficas, a renovação do ensino de história, datada
internacionalmente nos anos 70 do século passado, apontaram para a necessidade de se ensinar a
História a partir da maneira como ela é produzida. Segundo Donald THOMPSON (1984), “ o foco
de estudo da história na escola não deverá ser o passado tal como aconteceu, mas deverá ser,
sobretudo, a maneira como nós adquirimos nosso conhecimento a respeito do passado”]. A
possibilidade de contacto com o “método do historiador” permitiu o desenvolvimento de uma
nova postura frente ao próprio conhecimento histórico, o qual deixa de ser um saber acabado e
cristalizado, e passa a ser compreendido como fruto de uma construção social.
A História como disciplina escolar passou a valorizar o contacto do aluno com múltiplas
fontes de pesquisa (escritas, orais, iconográficas e objectos da cultura material) num permanente
diálogo e questionamento, a fim de compreender o processo de construção do conhecimento
histórico pelo aluno. Portanto, nessa nova perspectiva, a aprendizagem do método da História
pressupõe o saber usar os documentos, os conceitos e representações como condição para a
compreensão da História e desenvolvimento do pensamento histórico pelos alunos.
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A Dimensão Social do Programa do Estudo do Meio
Os estudos desenvolvidos por HALLAN (1966, 1975 e 1979) baseados nos níveis de
desenvolvimento cognitivo propostos por Piaget, apontavam as dificuldades e obstáculos e até
mesmo a impossibilidade do raciocínio histórico pelos adolescente.
Resultados de suas pesquisas ressaltavam as dificuldades e impossibilidades de
desenvolvimento do raciocínio histórico em crianças e adolescentes decorrentes do nível de
abstração formal exigido na operação de natureza histórica, e ainda não atingido por eles.
As críticas aos pressupostos de HALLAN apontaram, de um lado, para uma extrema
rigidez no emprego da teoria dos estágios de Piaget e para o reducionismo no trato com o
pensamento histórico, restringindo-o ao pensamento formal. Por outro lado, a concepção de
História, para esse autor, era aquela da história narrativa tradicional dos grandes feitos, dos
grandes acontecimentos e grandes homens.1[6]
Além dessas críticas apontadas, acrescentaríamos, inspirados nas contribuições de
Vygotsky, que o processo de desenvolvimento cognitivo alia-se ao processo de ensino-
aprendizagem, sendo esse último de natureza profundamente sociocultural. Para Vygotsky,
“diferente do que para Piaget, a aprendizagem enquanto um processo guiado e situado num
ambiente sociocultural, permite que o processo de desenvolvimento, seja impulsionado. Nesse
sentido, os estágios ou etapas do desenvolvimento propostos por Piaget representariam as
capacidades reais das crianças, e não suas capacidades potenciais, ou seja aquelas que podem ser
desenvolvidas se as crianças forem submetidas a um processo de ensino que as façam avançar em
direções e etapas posteriores. Nesse sentido, as intervenções pedagógicas devem se situar no que
Vigotsky chama Zona de Desenvolvimento Proximal”
A Zona de Desenvolvimento Proximal é definida por Vygotsky, como a distância entre
o nível de desenvolvimento real da criança, determinado a partir da resolução independente do
problema, e o nível mais elevado de desenvolvimento potencial tal e como é determinado pela
resolução de um problemas sob a orientação do adulto ou em colaboração com seus pares.
(WERTSCH, 1985: 84)
O conceito de Zona de Desenvolvimento Proximal (ZDP), desenvolvido por Vygotsky
torna-se precioso, uma vez que ele abre as possibilidades para se examinar aquelas funções que
ainda não amadureceram e que se acham em pleno processo de maturação, e que se encontram
em estado embrionário (WERTSCH, 1988:84). Desse modo, trabalhar na ZDP é procurar
descobrir como é que a criança pode chegar a desenvolver aquilo que ainda não foi
completamente ou inteiramente desenvolvido. Conhecer o nível de desenvolvimento potencial,
como nos salientou Vygotsky, é tão importante quanto medir o nível real de desenvolvimento da
criança.
Ao discutir a utilização do conceito de ZDP na avaliação dos processos de instrução,
Vygotsky mostrou-nos como a instrução na ZDP aviva a actividade da criança, despertando e
pondo em funcionamento uma gama de processos de desenvolvimento que só são possíveis na
esfera da interação com pessoas que a rodeiam e em colaboração com pares (WERTSCH,
1988:87).
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Sob esse ponto de vista, a instrução só é positiva quando vai além do desenvolvimento da
criança, despertando e pondo em funcionamento uma série de funções que, localizadas na ZDP,
se encontram em processo de amadurecimento (WERTSCH, 1988:87). Dessa maneira reconhece-
se como ‘boa’ instrução aquela que se antecipa à capacidade real da criança.
As mudanças na concepção da História, sobretudo aquelas apontadas pela Nova História e
já aqui referenciadas, acrescidas dos avanços em pesquisa na área do ensino-aprendizagem e
desenvolvimento cognitivo das crianças, já mencionado, vêm redimensionar os debates no campo
da aprendizagem infantil em História. Este debate coloca como objecto de investigação o
pensamento das crianças em História. Quais são suas capacidades e dificuldades de pensar em
História? Quais são as dimensões ou categorias centrais do pensamento histórico? Como
introduzi-las no processo ensino-aprendizagem com crianças?
As operações que envolvem o desenvolvimento das dimensões da temporalidade e
causalidade são fundamentais para o pensamento histórico.
Entendemos que pensar historicamente é aprender a retirar os acontecimentos da ordem
do natural e colocá-los na ordem do histórico, reconhecendo, assim, a sua historicidade”.
De acordo com DUTRA (2000:64/65), “quando desejamos que a criança compreenda a
História, estamos ansiosos para que ela olhe para os acontecimentos do presente e coloque
sobre eles questões, interrogações, cujas repostas ultrapassem o imediato e o seu tempo
presente. Essa problematização dos acontecimentos presentes desvelará elos com o passado e
perspectivas para o futuro”.
Assim, se é a partir da relação presente/passado que se desvelará a historicidade dos
acontecimentos evidenciando as mudanças, as permanências, as transformações e rupturas, tal
relação não poderá, no entanto, prescindir do desenvolvimento das noções de
ordenação/sucessão, duração e simultaneidade que possibilite estabelecer relações temporais
como: antes, depois, mais velho, mais novo, durante, ao mesmo tempo, bem como, a localização
cronológica no tempo. Essas noções, por sua vez, constroem-se paralelamente ao processo de
descentração. Nesse aspecto, as contribuições de Piaget nos são valiosas. Como argumenta
SIMAN (1999: 602), “ a descentração é a capacidade de se pensar em relação aos outros, ou
considerar a reciprocidade dos pontos de vistas. A ausência dessa capacidade de se descentrar
compromete o estabelecimento de relações entre a história individual e a história passada ou
aquela que se processa no presente e/ou ainda dificulta a percepção das ligações genealógicas de
identificação, da alteridade das relações sociais” .
É comum às crianças, no processo inicial de escolarização, evidenciarem as suas
dificuldades com a operação da dimensão temporal dos acontecimentos: ... professora, isso
aconteceu mesmo ... Eu acho até que eu nem era nascido. Essa fala, ao mesmo tempo que nos
indica limites, desafia-nos a buscar caminhos que venham a favorecer o desenvolvimento, nas
crianças, dessa e de outras dimensões fundamentais para a compreensão da história.
O ensino de História para crianças nos dois primeiros ciclos do Ensino Bàsico tem,
portanto, no desenvolvimento e construção das noções de temporalidade, um dos seus objectivos
principais. No entanto, embora se reconheça a complexidade dessas noções, deve-se insistir no
desafio de desenvolvê-las juntos às crianças desde o início do processo de escolarização básica.
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A Dimensão Social do Programa do Estudo do Meio
Como já foi salientado, as propostas para o ensino da história têm se fundamentado nos
avanços no campo da investigação histórica que apontam para a importância do emprego do
método de investigação histórica, aliado a uma perspectiva cognitiva, sociocultural no processo
de ensino-aprendizagem. Ensinar e aprender História através do método de investigação
possibilita a compreensão da História como construção, e não como algo dado, a ser lido e
memorizado pelo aluno. Nesse contexto, torna-se premente o contacto dos alunos com múltiplas
fontes de pesquisa histórica (escritas, orais, iconográficas e objetos da cultura material) num
permanente diálogo e questionamento que possibilitem compreender o processo de construção do
saber histórico.
É nesse universo de ampliação dos documentos históricos, para além dos registos escritos
oficiais, que se situa uma nova perspectiva de trabalho e investigação sobre as possibilidades de
desenvolvimento do raciocínio histórico nas crianças. Privilegia-se, nesse estudo, o contacto com
fontes da cultura material, como registos de acontecimentos e práticas sociais. Nesta perspectiva,
essas fontes (os objectos) distinguem-se das demais por se constituírem em evidências mais
concretas das relações sociais e conterem elementos do quotidiano e do vivido dos grupos sociais,
podendo vir a possibilitar um trânsito mais fácil entre a dimensão individual e colectiva da
história Conforme nos aponta BARRETO (1996), o objecto é o ponto de partida, como realidade
básica da qual se pode desprender um universo de informações e colocações.
Esse ‘contacto’ poderá favorecer o desenvolvimento de habilidades tais como: observação,
percepção, relacionamento de informações, questionamentos e estabelecimento de relações de
ordem temporal e espacial e, também, poderá promover uma resignificação dos conhecimentos
prévios das crianças. É de supor ainda que esse contacto possibilitará saltos qualitativos no
desenvolvimento do raciocínio histórico das crianças, considerado como um processo de
desenvolvimento de funções psicológicas superiores, capaz de produzir novas formas de
actividades mentais de um modo activo e interactivo no interior das relações sociais que se
processam em diferentes espaços e práticas sociais.
Esse suposto, apóia-se na perspectiva Vygostskiana apresentada na lei genética geral do
desenvolvimento cultural, que parte da premissa de que “qualquer função presente no
desenvolvimento cultural da criança aparece duas vezes em dois planos: primeiro no plano social
para depois aparecer no plano individual ou seja, inicia-se nas pessoas (nas relações entre
pequenos grupos de indivíduos envolvidos em interações sociais) como uma categoria
interpsicológica para depois aparecer na criança como uma categoria intrapsicológica”.
(WERTSCH, 1988:77) Vygotsky, ao analisar os fenómenos ligados à lei genética geral do desenvolvimento
cultural dá ênfase a dois deles: a internalização e a Zona de Desenvolvimento Proximal.
A internalização é o processo pelo qual, certos aspectos da estrutura da actividade, que se
realizam num plano externo, passam a fazer parte do plano interno. Desse modo, toda função
psicológica superior atravessa uma fase externa em seu desenvolvimento, uma vez que
inicialmente foi uma função social. Portanto, antes de se tornar uma função psicológica interna, já
foi externa por ter sido social.
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A Dimensão Social do Programa do Estudo do Meio
Para Vygotsky, a internalização é um processo implicado na transformação dos
fenômenos sociais em fenômenos psicológicos. No entanto, ele não acreditava que os processos
sociais fossem transmitidos do plano interpsicológico para o intrapsiciológico como mera cópia,
num ‘modelo transferencial de internalização’. Ao contrário, ele afirma, na sua Lei Genética
Geral de desenvolvimento cultural, que a internalização transforma o processo em si, mudando
sua estrutura e função. Desse modo, a internalização é sempre uma reconstrução. Segundo WERTSCH (1988) a internalização é o processo de controle sobre as formas de
signos externos. Assim, adquirir controle voluntário sobre um signo no plano intrapsicológico é,
portanto, o processo de internalização.
Em resumo, a concepção de internalização fundamenta-se em quatro pilares básicos, como
nos mostra WERTSCH (1988):
1 – a internalização não é um processo de cópia da realidade externa para um plano
interior, é mais que isso, é um processo que se desenrola num plano interno da
consciência;
2 – a realidade externa é de natureza social-transacional;
3 – o seu mecanismo específico de funcionamento é o domínio das formas semióticas
externas;
4 – o plano interno da consciência é de natureza quase social.
Essa relação entre o funcionamento interpsicológico e intrapsicológico, embora bastante
complexa, fica mais evidenciada no fenómeno da ZDP, que assim como o fenómeno da
internalização, reforça a premissa Vygotskyana da origem social das funções psicológicas
superiores.
Ao tomarmos os objectos da cultural como fontes para o desenvolvimento do raciocínio
histórico em crianças, estamos a considerá-los como ferramentas mediacionais fundamentais para
o desenvolvimento de funções psicológicas superiores que se dão por meio do processo de
internalização, tal como o descrito.
O uso de ferramentas mediacionais no contexto da experiência escolar toma como base o
conceito mais amplo de acção mediada desenvolvido por Vygotsky, e se constitui como um dos
três pilares básicos da sua construção teórica: a tese de que os processos mentais superiores (ou
funções mentais superiores) podem ser entendidos somente mediante a compreensão dos
instrumentos e signos que atuam como mediadores desses processos. No entendimento de Wertsch, o conceito de mediação é o mais importante e original na
obra de Vygotsky, desempenhando um papel central na sua teoria tornando-se cada vez mais
importante nos últimos anos de sua carreira e de sua vida. Nos trabalhos de Vygotsky, a
construção da mediação - especialmente a mediação semiótica - desempenhou um papel teórico
central. Actualmente as noções de ‘meios mediacionais’ ou ‘ferramentas culturais’ e ‘acção
mediada’ fornecem as bases essenciais para as pesquisas socioculturais.
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A Dimensão Social do Programa do Estudo do Meio
A ideia central da mediação é a de que o homem tem acesso ao mundo fundamentalmente
de forma indirecta ou mediada. Desse modo, nas relações entre o homem e o mundo, existem
mediadores que actuam como ferramentas auxiliares da actividade humana. Para Vygotsky, esses
mediadores podem ser os instrumentos ou signos. Enquanto o instrumento é um objeto criado para
exercer uma certa função de natureza auxiliar ao trabalho humano, o signo exerce uma função
auxiliar nos processos psicológicos, que são orientados para o sujeito, para os mecanismos
psíquicos do indivíduo.
O conceito de ferramentas psicológicas em Vygotsky evoluiu ao longo de suas
investigações e, à medida que ocorreram evoluções, foi dada ênfase à natureza significativa e
comunicativa dos signos, constituindo uma interpretação ‘semioticamente orientada’. Em uma
das suas palestras proferidas em 1930, dá exemplos de algumas ferramentas psicológicas: a
linguagem; vários sistemas para contar; técnicas mnemónicas; sistema de símbolos e
algébricos; trabalhos sobre arte; escritos; esquemas; diagramas; mapas e desenhos mecânicos;
todo tipo de signo convencionais, etc. (WERTSCH,1988:95.
Um aspecto central acerca da mediação é a sua natureza dinâmica. Enquanto as
ferramentas ou artefactos culturais envolvidos na mediação têm um papel essencial ao modelar a
acção dos sujeitos, eles não determinam ou causam acção de nenhum tipo de modo estático ou
mecânico. As ferramentas culturais não têm o poder de produzirem acções sozinhas. Elas só
podem exercer algum impacto sobre o indivíduo na acção e na interação com eles. Esse aspecto
nos alerta para o fato de que o estudo da mediação e da acção mediada não pode centrar-se apenas
nas ferramentas culturais envolvidas na acção. Como nos adverte WERTSCH (1991:141),
“somente como partes de uma acção, podem os instrumentos mediadores adquirir sua existência
e desempenhar seu papel”. Ainda segundo esse autor, é erróneo qualquer tendência a centrar-se
exclusivamente quer na acção, quer nas pessoas ou nos instrumentos mediadores isoladamente: a
essência de examinar agentes e ferramentas culturais na acção mediada é examinar como eles
interagem (WERTSCH, 1998:25). Desse modo, ao tomarmos os objectos da cultura material
como ferramentas e signos dotados de memórias colectivas e significados históricos, pretendemos
que no contexto da acção mediada, sejam estabelecidas interacções entre as crianças e os objectos
da cultura, mediadas, ainda pelo professor, a fim de identificar, na natureza das interacções
estabelecidas, as possibilidades do raciocínio histórico evidenciadas pelas crianças.
Os objectos da cultura material têm sido estudados de diferentes modos e sob abordagens
diversas. Duas formas de entendimento, tomadas de forma complementar, orientarão uma das
maneiras de os tratar.
Uma que vê os objectos da cultura material como resultantes da experiência da vida
quotidiana e como formadores e identificadores das identidades dos grupos. Os objectos da
cultura material, nesse sentido, são portadores de informações para diversos campos do
conhecimento e, de modo privilegiado, para o campo da História, sobretudo por serem produtos
da História e depositários de memória.
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A Dimensão Social do Programa do Estudo do Meio
Conforme VIDAL e SILVA: “Assim como formas expressivas da cultura] e elementos de
sistemas de comunicação, o sistema de objectos e as artes são produtos de uma história:
remetem-se às tradições identificadas pelo grupo como suas marcas distintivas, específicas de
sua identidade; falam dos modos de viver e de pensar compartilhados no momento da
confecção do produto material ou artístico ou da vivência da dramaturgia dos rituais,
indicando uma situação no presente; com as suas inovações, no esmero de suas produções e no
uso que dela faz, indicam as relações entre o indivíduo e o património cultural do grupo a que
pertence ...”(VIDAL e SILVA, 1995:371)
A essa maneira de ver o papel dos objectos da cultura, estaremos a associar aquela que vê
os objectos não apenas como referências de identidades de um determinado grupo, mas que
procura apreender nesses objectos as interpenetrações de diferentes culturas ou grupos. Nesse
caso, os objectos serão reveladores de trocas, contactos e relações de diferentes grupos, em
tempos e espaços diversos. Poderíamos dizer que esses objectos revelariam a transculturalidade,
ou seja as múltiplas identidades formadoras de um determinada cultura.
Nesta prespectativa a um objecto poderão ser atribuídos significados diversos, em cada
tempo e espaço, usando-os ora como elemento estético e vinculado às práticas mágico-protetoras,
or de devoção, de vinculação religiosa, de guarda de tradições culturais, de autoridades e de
poderes. Em sua análise, historiador francês Serge GRUZINSKI, remete -os à ideia de passadores
culturais ou mediadores culturais. Nessa perspectiva conceitual, alguns objetos são identificados
como mediadores culturais, dotados de memória e capazes de aproximar hábitos, práticas e
apropriações culturais, rompendo barreiras espaciais e temporais.
Nesta proposta de pesquisa, os objectos da cultura material serão tomados, tanto como
instrumentos mediadores de memórias e significados históricos de grupos e suas relações
culturais, quanto como ferramentas psicológicas mediacionais que podem promover
transformações fundamentais na estrutura cognitiva da criança.
Essa troca de conhecimento/informações pela via da memória colectiva, dos quais os
objectos são portadores, poderá permitir o desenvolvimento da consciência de um tempo passado,
propiciando a descentração do seu tempo presente, ampliando o sentido da memória nas
crianças, e, como diz WHITROW (1993), esse sentido “envolve não apenas eventos de sua
própria experiência, mas, no devido tempo, outros da memória de seus pais e, por fim, da
história do seu grupo social”.
A noção da temporalidade histórica requer tanto a passagem de um tempo vivido
para o tempo histórico, quanto a articulação entre as dimensões físico-quantitativa, social
(da memória coletiva) e histórica do tempo. Conforme nos alerta LE GOFF, “desde a memória até a história, o caminho é delicado, a
transformação por vezes errônea e ilusória”.
Para LE GOFF, no seu clássico texto intitulado Memória – um verbete da Enciclopédia
Einaudi - essa complexa relação assim se define: a memória onde cresce a história, que por sua
vez a alimenta, procura salvar o passado para servir o presente e o futuro. (LE GOFF, 1984:47)
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A Dimensão Social do Programa do Estudo do Meio
O processo de descentração da criança do universo da memória individual para a colectiva
e dessa para a história requer, portanto, novas pesquisas e investigações acrescidas das
preocupações no campo da cognição infantil, a fim de contribuir para as discussões nesse campo
do saber escolarizado. Os objectos da cultura material, tomados como instrumentos mediadores no processo de
ensino aprendizagem, são testemunhos da história e portanto, dotados de memória e significados
históricos. Supõe-se que as interacções entre crianças e professores com objectos da cultura
material, dotados de memória e história, podem promover transformações fundamentais na
estrutura cognitiva da criança, possibilitando o desenvolvimento do raciocínio histórico.
É nesse cenário que se pretende entender a maneira de pensar historicamente pelas
crianças a partir de suas interacções com objectos da cultura material - impregnados de memória
individual e colectiva, mediada pelo professor.
Interessa-nos, portanto, conhecer quais as relações de temporalidade e causalidade
histórica as crianças estabelecem a partir de suas questões, análises e interacções em contextos de
acções mediadas por objectos da cultura material. Dito de maneira mais pontual pretende-se
tomar como foco de análise as interacções das crianças na sala (em grupos e com o professor),
mediados por objectos da cultura, a fim de identificar e analisar, em relação às crianças:
- As suas representações acerca da ‘história contida’ nos objectos;
- Quais as noções e operações cognitivas mobilizadas por elas na elaboração de suas
explicações acerca das mudanças e permanências na história;
- Como transitam entre as memórias individual, colectiva e histórica;
- Qual a maneira como realizam operações referentes à explicação histórica.
É certo que tanto as possibilidades como as dificuldades da aprendizagem das crianças em
História, sobretudo no que se refere às dimensões da temporalidade e causalidade histórica são
realidades. Mas, tudo se poderá tornar um pouco mais fácil se durante todo o processo ensino
/aprendizagem lhe for proporcionada a oportunidade de construir os seus conhecimentos, a sua
aprendizagem, com base nas mais diversas experiências vivenciadas, seja com o auxilio de
objectos usados na construção da história seja com os testemunhos orais daqueles que por terem
mais alguns anosde vida vivenciaram a história de uma outra maneira.
Adaptado de um trabalho de investigação de
Soraia Freitas Dutra
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A Dimensão Social do Programa do Estudo do Meio
3.2 - A CONTRIBUIÇÃO DO TESTEMUNHOS ORAIS NO
DESENVOLVIMENTODAS COMTETÊNCIAS ESSENCIAS DO 1º CEB
A - Estudo do Meio
O Meio pode ser entendido como um conjunto de elementos, fenómenos, acontecimentos,
factores e ou processos de diversa índole que ocorrem no meio envolvente e no qual a vida e a
acção das pessoas têm lugar e adquirem significado. O Meio desempenha um papel condicionante
e determinante na vida,
experiência e actividade humanas, ao mesmo tempo que sofre transformações contínuas como
resultado dessa mesma actividade.
Nesta perspectiva, o conhecimento do Meio deverá partir da observação e análise dos
fenómenos, dos factos e das situações que permitam uma melhor compreensão dos mesmos e que
conduzam à intervenção crítica no Meio. Intervir criticamente significa ser capaz de analisar e
conhecer as condições e as
situações em que somos afectados pelo que acontece no Meio e significa também intervir no
sentido de o modificar, o que implica processos de participação, defesa, respeito, etc.
Estudar o Meio pressupõe, então, a emergência de componentes emocionais, afectivas e
práticas de relação com ele, proporcionadas pela vivência de experiências de aprendizagem que
promovam o desenvolvimento de competências específicas no âmbito da área disciplinar de
Estudo do Meio que a escola, enquanto espaço para a formalização do conhecimento, deve
promover.
A partir das suas percepções, vivências e representações, o aluno é levado à compreensão,
à reelaboração, à tomada de decisões e à adopção de uma linguagem progressivamente mais
rigorosa e científica. Isto significa que os alunos trazem para a escola um conjunto de ideias,
preconceitos, representações, disposições emocionais e afectivas e modos de acção próprios. São
esquemas de conhecimento rudimentares, subjectivos, incoerentes, pouco maduros e incapazes de
captar a complexidade do Meio tal como este se apresenta à experiência humana. Estes esquemas,
quando confrontados com outros mais objectivos, socialmente partilhados e decorrentes do
processo de ensino, vão sofrendo rupturas que abalam a visão sincrética da realidade, a
perspectiva egocêntrica e as explicações mágicas e finalísticas que são próprias do pensamento
infantil, dando origem a um conhecimento cada vez mais rigoroso e científico.
O conhecimento do Meio abarca todos os níveis do conhecimento humano: desde a experiência
sensorial directa até aos conceitos mais abstractos; desde a comprovação pessoal até ao conhecido
através do testemunho, da informação e do ensino de outros; desde a apreensão
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A Dimensão Social do Programa do Estudo do Meio
global do Meio até à captação analítica dos diversos elementos que o integram. A articulação dos
vários, mas inter-relacionados, modos de conhecimento constitui os eixos temático e pedagógico,
e até um recurso metodológico, desta área do conhecimento, que é, por natureza, interdisciplinar.
De natureza integradora, atendendo, apesar disso, a aspectos distintos da realidade e do sujeito
que aprende, esta área é muito representativa do que, em geral, deve ser o conteúdo curricular e a
experiência a proporcionar no1.º ciclo no Estudo do Meio , tendo em vista o sentido da progressão
educativa dos alunos. Esta progressão tem origem no subjectivo (o experiencialmente vivido) e
visa o objectivo (o socialmente partilhado) e parte do mais global e indiferenciado para o
particular e específico atendendo às múltiplas componentes que integram o Meio, não para
desfazer a sua unidade, mas para melhor a compreender e explicar.
Assim, e no 1º ciclo, o professor deve proporcionar aos alunos oportunidades de se
envolverem em aprendizagens significativas – isto é, que partam do experiencialmente vivido e
do conhecimento pessoalmente estruturado – que lhes permitam desenvolver capacidades
instrumentais cada vez mais poderosas para compreender, explicar e actuar sobre o Meio de modo
consciente e criativo.
Neste sentido, o currículo de Estudo do Meio deve ser gerido de forma aberta e flexível.
Não se trata de pôr de lado o programa de, mas de o olhar na perspectiva do desenvolvimento de
competências a adquirir pelos alunos. Embora se apresente por blocos de conteúdos segundo uma
ordem, ele próprio sugere que "os professores deverão recriar o programa, de modo a atender aos
diversificados pontos de partida e ritmos de aprendizagem dos alunos, aos seus interesses e
necessidades e às características do meio " (DEB, 1998:108), podendo "alterar a ordem dos
conteúdos, associá-los a diferentes formas , variar o seu grau de aprofundamento ou mesmo
acrescentar outros" (ibid.).
Estas considerações remetem para abordagens centradas na definição de problemas de
interesse pessoal, social e local.
Contributos para o desenvolvimento das competências gerais
O carácter globalizador desta área não pode prescindir dos contributos específicos das
várias ciências que a integram (História, Geografia e Ciências Físicas e Naturais, entre outras),
tornando-se fulcral, por isso, a acção do professor na gestão do processo de ensino-aprendizagem,
nomeadamente na organização dos conteúdos a abordar. A partir de temas e ou questões
geradoras decorrentes da observação da realidade que lhes é próxima, os alunos problematizam e
investigam, isto é, colocam hipóteses, pesquisam, recolhem e tratam informação, analisam dados
usando os meios e instrumentos adequados para o efeito e encontram soluções que levam ou não à
resposta adequada ao problema. Neste tipo de experiência estão implicados saberes de carácter
disciplinar e não disciplinar que convém identificar previamente, de preferência em conjunto com
os alunos, formando, deste modo, uma teia onde, para além dos conteúdos cognitivos, estão
também identificados os conteúdos procedimentais e atitudinais que se tem intenção de trabalhar.
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A Dimensão Social do Programa do Estudo do Meio
Neste sentido, o desenvolvimento das competências essenciais do Estudo do Meio passa
pela inter-relação destas com as competências das outras áreas disciplinares e não disciplinares e
ainda com competências gerais, isto é, implica:
Mobilização e utilização dos saberes específicos das áreas que o integram (conceitos e
vocabulário específicos; instrumentos materiais e tecnológicos;...)
Mobilização e utilização dos saberes das outras áreas disciplinares, nomeadamente da Língua
Portuguesa (registo de uma observação; resumo de um texto recolhido; escrita e ou reescrita
de um texto temático individual ou colectivamente; discussão dos caminhos a seguir;
organização da informação e decisão sobre a melhor forma de a apresentar...) e da Matemática
(organização de dados por categorias em quadros, tabelas e ou gráficos de barras; leitura e
elaboração de plantas e mapas...)
Mobilização e utilização dos saberes das áreas curriculares não disciplinares:
- Estudo Acompanhado (pesquisa e selecção da informação; utilização e consulta em
dicionários, enciclopédias, manuais e Internet; elaboração de regras para organização
individual e colectiva; recurso a várias formas de apresentação do trabalho individual e
utilização adequada de instrumentos e materiais; registo de do percurso escolar
individual – presença, pontualidade, dúvidas, saberes adquiridos; elaboração de pequenos
resumos, sínteses, legendas e índices simples ...)
- Área de Projecto (negociação e tomada de decisão acerca dos aspectos relacionados com a
vida da turma; organização da turma e dos grupos; selecção de temas; levantamento de
questões; definição de estratégias e actividades a desenvolver; inventariação dos recursos,
fontes e meios a envolver; elaboração de regras; confronto de ideias, partilha, aferição e
avaliação do desenvolvimento do trabalho; atribuição e assunção de responsabilidades em
tarefas individuais e de grupo; concepção de instrumentos adequados para a avaliação
individual e do grupo ao longo do processo, mas também do produto final...)
-
- Formação Cívica (uso do sentido crítico para análise e emissão de juízos acerca do trabalho e
comportamento próprios e dos outros; argumentação adequada na defesa dos pontos de vista
próprios; educação e respeito pelos pontos de vista e trabalho dos outros; pedido de
esclarecimentos e ou apresentação de sugestões e críticas acerca dos diferentes trabalhos no
sentido de os melhorar; treino do autocontrole para aceitar os resultados, quer em actividades
da sala de aula, quer do recreio, quando realizadas em grupo e equipa...)
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A Dimensão Social do Programa do Estudo do Meio
Experiências de aprendizagem
A noção de competência, tal como tem vindo a ser utilizada neste documento, é aquisição,
aprendizagem construída e, por isso, remete para o sujeito, neste caso o aluno, o papel de
construir o seu próprio conhecimento e gerir o processo de construção desse mesmo
conhecimento. O professor enquanto responsável por todo o processo de ensino deixa de
desempenhar o papel de transmissor, passando a assumir o de facilitador e organizador de
ambientes ricos, estimulantes, diversificados e propícios à vivência de experiências de
aprendizagem integradoras, significativas, diversificadas e globalizadoras.
Na vida do dia-a-dia confrontamo-nos, habitualmente, com situações mais ou menos complexas,
quase sempre diferentes umas das outras. São obstáculos a vencer, problemas a resolver, que
exigem uma série de recursos e estratégias para encontrar uma solução adequada que pode admitir
várias respostas, o que não acontece nos enunciados fechados, em que a resposta é do tipo certo
ou errado. Ora, uma situação aberta não implica só os conhecimentos de uma disciplina ou área
disciplinar e, nesta perspectiva, o conhecimento do Meio pode ter origem em inquietações de
carácter pessoal ou social e constrói-se a partir da vivência, pelos alunos, de experiências de
aprendizagem que envolvam a resolução de problemas, a concepção e o desenvolvimento de
projectos e a realização de actividades investigativas. Experiências essas que implicam e ao
mesmo tempo potenciam situações e vivências variadas de observação e análise, de comunicação
e expressão, de intervenção e trabalho de campo. Estas situações potenciam aprendizagens
diversas nos domínios cognitivo (aquisição de conhecimentos, de métodos de estudo , de
estratégias cognitivas...) e afectivo-social (trabalho cooperativo, atitudes, hábitos...). Dos
conhecimentos, capacidades e atitudes resultarão competências: de saber (conhecimentos
cognitivos), de saber-fazer (observações, consulta de mapas, localização, interpretação de
códigos, métodos de estudo...) e saber-ser (respeito pelo património, defesa do ambiente,
manifestações de solidariedade ...).
Resolução de problemas
É importante que os alunos na sua aprendizagem se confrontem com problemas abertos,
do seu interesse, face aos quais saibam desenvolver um percurso investigativo. Os alunos têm de
apelar aos seus conhecimentos prévios, usar competências práticas e processos científicos que
integrem uma estratégia coerente.
Ao contrário de um exercício – em que o aluno é sujeito passivo da aprendizagem, os
saberes implicados se referem exclusivamente à utilização e ou reprodução de algo que se
memorizou, os dados são os estritamente necessários e encontram-se explícitos no enunciado,
admite uma única forma de resolução e uma solução, também, única –, um problema implica
activamente o aluno por constituir um desafio sem resposta imediata e sem estratégias
preestabelecidas. Assim, ele tem de definir as etapas de resolução, que passam pela compreensão
do problema, pela concepção de um plano de acção, pela execução, que pode implicar a recolha,
tratamento e análise de dados, e pela reflexão sobre os resultados obtidos, que podem levar ou não
à solução do problema. Se a solução encontrada satisfaz as exigências do problema, o professor
pode ainda questionar os alunos acerca das possibilidades de outras soluções plausíveis ou, ainda,
lançar novas questões que poderão levar a novos problemas e investigações.
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A Dimensão Social do Programa do Estudo do Meio
Projectos
"Num projecto tem-se como objectivo criar qualquer coisa que tem uma função precisa.
Neste sentido, o projecto dá-nos mais liberdade que a resolução de um problema, porque desde
que o objectivo seja atingido somos livres para adoptar caminhos diferentes, estilos diferentes."
(De Bono, citado por Castro et. al., 1992.)
Num projecto, o problema assume-se como a diferença entre uma situação que existe e
uma outra situação desejada. É uma metodologia investigativa centrada na resolução de
problemas que deverão ser pertinentes para quem procura resolvê-los, deverão constituir ocasião
para novas aprendizagens e a sua resolução deverá implicar
modificações na realidade física ou social. O seu desenvolvimento, que assenta numa abordagem
de investigação-acção cujo processo é tão importante como os produtos, deverá ter em conta o
tempo, as pessoas e os recursos disponíveis.
A realização de um projecto implica uma planificação prévia que deverá resultar na
elaboração de um plano orientador do trabalho de grupo e ou individual. Desse plano deverão
constar:
Objectivos do trabalho;
Sequência das tarefas e sua distribuição pelos elementos do grupo;