Top Banner
AS CARTAS DE PAULO AOS TESSALONICENSES: A vinda de Jesus é iminente ou não? Francisco Benedito Leite 1 INTRODUÇÃO As Cartas aos Tessalonicenses são os primeiros textos que foram escritos dentre os documentos que formaram o Novo Testamento em sua atual forma. Ainda que pese certa dúvida quanto à II Tessalonicenses, por causa de sua estrutura ser muito semelhante, enquanto que sua argumentação a respeito do tema central – a saber, a parousia – é muito diferente do que está presente em I Tessalonicenses. No entanto, as duas cartas têm em comum o destaque elevado das características da apocalíptica judaica. No que diz respeito diretamente à opinião dos eruditos a respeito da autenticidade e da antiguidade de I Tessalonicenses, é unânime que esta seja a mais antiga carta de Paulo e que, consequentemente, seja reveladora do primeiro estágio teológico de Paulo, no qual se destaca uma concepção da parousia que não 1 Bacharel em Teologia pela Universidade Presbiteriana Mackenzie; graduando em Letras (português-grego) pela Universidade de São Paulo; mestre em Ciências da Religião pela Universidade Metodista de São Paulo; Doutorando em Filologia e Língua Portuguesa pela Universidade de São Paulo. E-mail: [email protected] . 1
23

Tessalinicenses : A parousia

Jan 04, 2016

Download

Documents

Francisco Leite

Artigo sobre as cartas de Paulo aos Tessalonicenses
Welcome message from author
This document is posted to help you gain knowledge. Please leave a comment to let me know what you think about it! Share it to your friends and learn new things together.
Transcript
Page 1: Tessalinicenses : A parousia

AS CARTAS DE PAULO AOS TESSALONICENSES:

A vinda de Jesus é iminente ou não?

Francisco Benedito Leite1

INTRODUÇÃO

As Cartas aos Tessalonicenses são os primeiros textos que foram escritos dentre os

documentos que formaram o Novo Testamento em sua atual forma. Ainda que pese certa

dúvida quanto à II Tessalonicenses, por causa de sua estrutura ser muito semelhante, enquanto

que sua argumentação a respeito do tema central – a saber, a parousia – é muito diferente do

que está presente em I Tessalonicenses. No entanto, as duas cartas têm em comum o destaque

elevado das características da apocalíptica judaica.

No que diz respeito diretamente à opinião dos eruditos a respeito da autenticidade e

da antiguidade de I Tessalonicenses, é unânime que esta seja a mais antiga carta de Paulo e

que, consequentemente, seja reveladora do primeiro estágio teológico de Paulo, no qual se

destaca uma concepção da parousia que não está presente nos demais textos paulinos

autênticos, ao menos não com o mesmo entusiasmo apocalíptico2.

Independentemente dos critérios de autoria, destacam-se nessas cartas: a parousia

(I Ts 1.10; 4.13-18; 5.1-11 cf. II Ts 1.3-12; 2) e o tema do trabalho (I Ts 2.9; II Ts 3.6-15).

Ambos devem fazer reminiscência a uma problemática particular da comunidade de

Tessalônica, o que justificaria a ausência da mesma ênfase em outros textos de Paulo, devido

ao pressuposto de que as outras comunidades cristãs tinham problemas distintos. Esse fato não

diminui a importância da reflexão sobre os referidos temas, pois ainda que esta seja a verdade,

permanece a relevância dos enunciados paulinos privilegiados em vista do tema da

escatologia.

1 Bacharel em Teologia pela Universidade Presbiteriana Mackenzie; graduando em Letras (português-grego) pela Universidade de São Paulo; mestre em Ciências da Religião pela Universidade Metodista de São Paulo; Doutorando em Filologia e Língua Portuguesa pela Universidade de São Paulo. E-mail: [email protected].

2 DUNN, James D. G. A Teologia do apóstolo Paulo – 2ª edição. São Paulo: Paulus, 2008, p.358.

.

1

Page 2: Tessalinicenses : A parousia

A importância desses documentos devido a sua posição particular para a História

da Literatura Cristã em vista da problemática de sua relação sinóptica, introduzem-nos na

importante questão a respeito da compreensão que se pode ter a respeito da Teologia do

Apóstolo Paulo – isto é, caso se possa dizer que ele tem uma teologia. Tendo em vista que por

um lado, pode-se atribuir a sua autoria às duas cartas, confirmando uma proposição a respeito

de sua incoerência; ou, por outro lado, pode-se simplesmente atribuir a segunda carta a um

autor desconhecido, solucionando o problema apenas parcialmente, pois isso pode significar a

simplificação de uma questão mais ampla.

Nos parágrafos que se seguem entraremos em contato com cada um dos temas

levantados acima, cada um em seu determinado momento. Primeiramente, no entanto,

realizaremos uma breve apresentação a respeito da cidade para a qual as cartas foram

endereçadas, do mesmo modo, apresentaremos algumas informações a respeito das escassas

informações que temos da passagem de Paulo por esse local.

Tessalônica e a missão de Paulo.

Tessalônica (atual Saloniki) era uma importante cidade do Império Romano, assim

como as demais localidades onde o apóstolo Paulo constituiu suas comunidades. Fora fundada

em 316 a.C. por Cassandro da Macedônia, que nomeara a cidade com o nome de sua esposa,

irmã de Alexandre Magno. Sua posição geográfica privilegiada para relações políticas e

comerciais (situada na Via Egnatiana que ligava Roma a Bizâncio) a levou a se desenvolver

economicamente, e fez com que se tornasse capital da eparquia da Macedônia, sede do

procônsul e obtivesse o título de “cidade livre” – possuía conselho e assembléia popular –

durante o período do Império Romano; além disso, também recebeu o honroso título de

neokoros [guarda do templo].

Uma cidade como Tessalônica era atrativa para pessoas de distintas regiões, o que

foi responsável por sua pluralidade religiosa. Dentre as religiões presentes, também figurava o

judaísmo que possuía uma sinagoga que contava com pagãos convertidos e simpatizantes, os

“tementes a Deus”. Atos 17.1-10 testemunha a obra missionária efetuada por Paulo e seu

companheiro Silas/Silvano nesse local, que em linhas gerais é digno de crédito, embora

saibamos que Lucas erra em alguns detalhes, como quando afirma que Paulo esteve por ali por

apenas três semanas; ensinou na sinagoga especificamente durante “três sábados” (At 17.2),

enquanto em Filipenses 4.16 Paulo se refere a mais de uma ajuda que recebera para seu

2

Page 3: Tessalinicenses : A parousia

sustento, além de que ele afirma com veemência o seu trabalho árduo no período que ali

esteve em I Tessalonicenses 2.9, fatos que indiciam que sua permanência durou alguns meses.

Dentre os que são convencidos pela pregação de Paulo, além de “alguns judeus”,

destacam-se a hiperbólica “multidão de gregos” e “não poucas mulheres principais” (At.

17.4). Desse grupo misto de pessoas que se tornaram cristãos, formou-se a comunidade de

Tessalônica; a segunda a ser fundada por Paulo na Europa – antecedida apenas pela recente

fundação de Filipos.

O alvoroço envolvendo um cristão chamado Jasão, referido em Atos dos Apóstolos

17.4-9 também é plausível, tendo em vista que em I Tessalonicenses 2.14-16 Paulo se refere a

uma suposta perseguição que os crentes recebem dos habitantes da própria cidade, embora não

afirme como em Atos dos Apóstolos que essa perseguição seja efetuada pela inveja dos judeus.

Além disso, em ambos os textos a causa da perseguição parece ser a mesma, embora descrita

de diferentes maneiras. No caso, em Atos dos Apóstolos, afirma-se que os cristãos alegam que

há outro rei além de César, o qual é Jesus (At 17.7); no caso de I Tessalonicenses, há a

entusiástica afirmativa a respeito da parousia que implicitamente intitula Jesus como rei.

De Tessalônica Paulo parte para Beréia, conforme a descrição de Atos dos

Apóstolos 17.10; mas conforme seu próprio testemunho, é a partir de Atenas que ele envia

Timóteo a Tessalônica (I Ts 3.-2), o qual vai até a comunidade cristã da cidade e volta a se

encontrar com Paulo e Silas/Silvano apenas em Corinto (entre 50 e 52) de acordo com a

própria descrição de Atos dos Apóstolos (18.5), daí se estipula que seja esse encontro onde se

realiza a redação da Carta aos Tessalonicenses, já que a autoria da carta é dos três (I Ts 1.1).

Acredita-se unanimemente que esta seja a primeira carta que Paulo escreve.

Quanto ao lugar e a datação de II Tessalonicenses preferimos não levantar dados,

pois discutiremos essa questão no momento específico, quando forem dadas as complicações

específicas desse documento.

Estrutura literária de I Tessalonicenses

Philipp Vielhauer propõe a seguinte estrutura para I Tessalonicenses3:

Pré-escrito, 1.1.

3 VIELHAUER, Phillipp. História da Literatura Cristã primitiva – uma introdução ao Novo Testamento aos Apócrifos e aos Pais Apostólicos. Santo André: Academia Cristã, 2005, p.113.

3

Page 4: Tessalinicenses : A parousia

Proêmio = I parte 1.2-313.

1. Agradecimento pelo estado da comunidade e confirmação de recordação 1.2-10.

2. Recordação da atividade de Paulo (“apologia”) 2.1-12.

3. Agradecimento pela persistência da comunidade em uma perseguição 2.13-16.

4. Saudade de Paulo e envio de Timóteo 2.17-3.5

5. Alegria pelas boas notícias trazidas por Timóteo 3.6-10.

6. Intercessão 3.11-13.

Parênese = II parte 4.1-5.22.

1. Admoestações éticas (palavra-chave “santificação”) 4.1-12.

2. Instruções sobre o destino dos cristãos falecidos 4.13-18.

3. Advertências para estarem prevenidos para a parusia iminente 5.1-11.

4. Advertência para a vida em comunidade 5.12-22.

Conclusão da carta 5.23-28.

Conteúdo

A carta possui um proêmio singular dentre as autênticas. Nas outras cartas além

dos proêmios serem mais breves, também é característico que tratem de assuntos concretos.

Seria mais natural que Paulo fosse direto ao assunto ao invés de fazer tanto “rodeio”, como

realiza na extensão dos três primeiros capítulos dessa carta, porém, nesse caso, Paulo inicia

um discurso elogioso para a comunidade de Tessalônica e faz questão que os membros da

comunidade saibam que ele se recorda deles e que sabe de sua boa reputação (1.2-10). Dentre

a boa conduta da comunidade, consta “Esperar dos céus a seu Filho [de Deus], a quem

ressuscitou dentre os mortos, a saber, Jesus Cristo, que nos livra da ira futura” (1.10). Não é

em vão que Paulo se refira ao fato de que os crentes esperarem Jesus Cristo vir dos céus, pois

esse é um gancho para o tema central da carta, que será tratado na próxima parte – a parousia,

ou seja, a vinda de Jesus. Paulo utiliza esse termo quatro vezes em I Tessalonicenses (2.19;

3.13; 4.15; 5.23) e mais duas em II Tessalonicenses (2.1; 2.8), enquanto que no restante de

suas cartas utiliza apenas uma vez (I Co 15.23), algo sintomático para apontar essa sua fase

religiosa específica.

Mas antes de adentrar no tema central, Paulo trata de outro assunto importante: o

trabalho. Para tanto, ele realiza sua argumentação em forma de apologia, pois, se o problema

em Tessalônica é o trabalho, ele pode afirmar: “Porque bem vós lembrais, irmãos, do nosso

4

Page 5: Tessalinicenses : A parousia

trabalho e fadiga; pois, trabalhando noite e dia, para não sermos pesados a nenhum de vós, vos

pregando o evangelho de Deus” (2.9).

Notemos que na saudação (1.1) ele não se demorou muito ao se apresentar, como

fizera nas comunidades em que é questionado (I Co 1.1-9 e Gl 1.1-5). Contudo, embora ele

não seja questionado em Tessalônica parece que lhe pesa a responsabilidade dos crentes terem

deixado de trabalhar para esperar a vinda de Jesus, fato que justifica sua apologia que insiste

implicitamente na necessidade que os irmãos têm de trabalhar, tomando como base o próprio

exemplo dele, que se desgastava a maior parte de seu tempo – aproximadamente dezesseis

horas de seu dia – trabalhando braçalmente, no serviço de fazer tendas.4, de maneira que seu

trabalho evangelístico certamente ocorria durante sua atividade profissional5.

Ainda no proêmio, Paulo, sucessivamente, exalta a perseverança dos crentes em

meio a uma adversidade particular; afirma sentir saudades e não ter podido ir vê-los; o que

justificou o envio de Timóteo, que trouxera boas notícias.

Paulo muda de assunto e inicia suas admoestações, a primeira delas é à santidade,

como é tradicional, recomenda o domínio das paixões, pureza sexual e honestidade nos

negócios. Ainda admoesta veladamente ao amor fraternal (4.9) e retoma pela última vez

necessidade do trabalho, pois daí em diante muda de assunto.

Inicia uma nova argumentação, tendo em vista que encerrou o tratamento do

primeiro assunto pendente, Paulo agora começa a falar sobre o destino dos cristãos falecidos,

o que parece ser a segunda crise da comunidade, baseado em algo que talvez ele próprio disse

no passado. Então Paulo esclarece o assunto, afirmando que os que “dormem”, também

ressuscitarão, na verdade eles ressuscitarão antes do que “nós que ficarmos vivos” (4.13-18).

Duas coisas a serem notadas nesse versículo: em primeiro lugar notemos que, para

que a comunidade tenha entrado em crise, deve ter morrido uma pessoa ou mais dentre os

crentes. Talvez devido à referida perseguição (2.13-16), ou talvez por morte natural, não

interessa, o fato é que o calor escatológico era tão grande que se imaginava que a vinda de

Jesus era para absolutamente todos os cristãos, de maneira que não se pressupunha o que

poderia acontecer com quem morreria antes da parousia – não é a toa que alguns crentes não

queriam mais trabalhar!

4 I Co 4.12; II Co 11.9; 12.13-14, II Ts 3.8.5

? MESTERS, Carlos. Paulo Apóstolo: uma trabalhador que anuncia o Evangelho – 8ª edição. São Paulo: Paulus, 2008.

5

Page 6: Tessalinicenses : A parousia

Em segundo lugar está o fato de que o próprio Paulo – que não ameniza as

expectativas escatológicas – ele próprio está envolvido na mesma concepção, a ponto de

incluir-se no grupo dos que estarão vivos quando Jesus vier, é assim que os primeiros textos

do Novo Testamento descrevem a vinda de Jesus6. Isso demonstra que para Paulo a

expectativa da parousia é iminente, a única coisa que ele acrescenta aos crentes é a esperança

quanto aos que morreram, mas não recomenda a ninguém que tenha seu entusiasmo

diminuído, tampouco coloca algum sinal para anteceder a vinda de Jesus, ela é imediata, como

ficará claro desenvolvimento dos assuntos.

Afirmar que os cristãos de Tessalônica devem ter esperança na ressurreição serve

como prelúdio para o ápice da carta, que é tratar da parousia. Mais uma vez Paulo entra nesse

assunto através de uma estratégia retórica que é característica em suas cartas “não precisamos

tratar desse assunto” (5.1). Paulo fala da parousia nas próprias palavras metafóricas de Jesus,

retomando as metáforas do ladrão (Mt 24.43; Lc 12.39), das dores de parto (Mc 13.8), a

dualidade: luz/trevas (Mt 8.12; 25.30). Na verdade estes são temas característicos da

apocalíptica judaica de uma forma geral. O mesmo pode-se dizer a respeito do restante das

imagens, como as nuvens – uma espécie de transporte celestial (Is 19.1; Ez 1.4-28; Dn 7.13;

Mc 13.26; 14.62; At 1.9; Ap 1.7); anjo e trombeta que emitem o sinal determinante da parusia

(Mt 24.31; Ap 8.2; 8.6; passim) e do verbo harpazein tipicamente utilizado nas viagens

celestiais.

A parousia significa estritamente: “presença; actualidade; ocasião favorável;

chegada (sic.)”7, como qualquer dicionário de grego pode nos informar. Com esse termo, na

linguagem cotidiana do Império Romano se falava a respeito da visita de pessoas ilustres à

cidade, sobretudo à visita do Imperador. É notável que Paulo use esse mesmo termo para se

referir à chegada de alguém que ele considera mais ilustre do que o próprio Imperador, cuja

vinda será mais triunfal. No entanto, ele usa o mesmo termo político como provocar às

autoridades que possivelmente seriam as responsáveis pela provação que a comunidade cristã

de Tessalônica sofrera (2.13-16)8. Portanto, o fato de Paulo ter utilizado o termo parousia para

6 Cf. Mc 14. 62

7 PEREIRA, Isidro. Dicionário Grego-Português e Português-Grego - 8ª edição. Braga: Livraria Apostolado da Imprensa, 1998, p.441.

8 Helmut Koester afirma que esse é um termo político e que é introduzido no vocabulário cristão a partir das referencias realizadas por Paulo em I Tessalonicenses. Veja em: Ideologia imperial e a escatologia de Paulo em I Tessalonicenses. In: HORSLEY, Richard. Paulo e o Império: religião e poder na sociedade imperial romana. São Paulo Paulus, 2004, pp. 161-169.

6

Page 7: Tessalinicenses : A parousia

se referir à vinda de Cristo significa, implicitamente chamá-lo de rei e contrapô-lo a César,

conforme consta na confusão descrita em Atos dos Apóstolos 17.5-9, onde os cristãos,

sobretudo Jasão é acusado de confessar a existência de outro rei, que é Jesus.

Paulo também é provocante quando afirma “Pois que, quando disserem: Há paz e

segurança, então lhes sobrevirá repentina destruição (5.3). Tendo em vista que “paz” – no

grego do NT eirene, em latim pax – é o título dado pelos romanos à política de domínio

mediante a força bruta. É paz do ponto de vista do governante, pois todos os súditos estão

subjugados9.

Diante da injustiça opressora do Império Romano, Paulo assegura aos crentes a

“vinda” iminente do Senhor. Parousia não pode ser volta, por que para os cristãos primitivos

o messias ainda não havia vindo como Senhor [Kyrios], havia vindo apenas como “servo

sofredor” na figura de Jesus. A vinda do Senhor, como afirma Daniel 7 insurgiria em breve

como filho do homem glorificado (Mc 14.62), foi o apologista Justino que a reinterpretara

pela primeira vez como “volta”, justificando a demora de Jesus através do desenvolvimento da

ideia de primeira e segunda vinda e nova vinda (Dial 118.2)10.

Mas não se pode deixar de notar que Deus também é ativo nesse fenômeno: é ele

quem tornará a trazer os que dormem em Cristo (4.14); também é ele quem “nos destina a

aquisição da salvação (...)” quando Jesus vier (5.9), pois a já efetuada ressurreição de Jesus é o

sinal de que Deus também ressuscitará aos crentes e os destinará a salvação, portanto, além

desse sinal, não há outro que se anteponha a parousia.

Saindo do assunto da parousia o tom de voz diminui e Paulo retoma as

recomendações éticas (5.12-22). Até que para finalizar Paulo manda saudações para a

comunidade (5.23-28), mas como não tem intimidade com ninguém não cita nomes, nem

recomendações especificas.

Estrutura literária de II Tessalonicenses

Philipp Vielhauer propõe a seguinte estrutura para II Tessalonicenses11:

9 WENGST, Klaus. Pax Romana, pretensão e realidade. São Paulo: Paulus, 1991.

10 BULTMANN, Rudolf. Teologia do Novo Testamento. Santo André: Academia Cristã, 2008, p, 69.

11 VIELHAUER, Phillipp. História da Literatura Cristã primitiva – uma introdução ao Novo Testamento aos Apócrifos e aos Pais Apostólicos, p.119.

7

Page 8: Tessalinicenses : A parousia

Pré-escrito 1.1s.

Proêmio 1.3-12.

1. parte: Instrução apocalíptica sobre os sinais do fim 2.1-12.

2. parte: Agradecimento, intercessão e admoestação 2.13-3.5

3. parte: Admoestações 3.6-15

a) Disciplina eclesiástica contra desordeiros preguiçosos

b) Admoestações para os membros fiéis da comunidade 3.13-15

Votos de paz e conclusão da carta de próprio punho 3.16-18

Conteúdo

Como o leitor já deve ter notado na estrutura acima, o conteúdo da segunda carta é

bem parecido com o da primeira, embora o proêmio não seja tão extenso, (não há a apologia),

novamente aparece o tema da parousia como central e o tema do trabalho em segunda

instância. Tecnicamente temos apenas duas diferenças: Em primeiro lugar está: 2.1-12 quanto

o autor da carta apresenta um elemento totalmente estranho a I Tessalonicenses – embora o

tema seja o mesmo – a saber, dois sinais que antecedem a vinda do Senhor, os quis são: 1) a

“apostasia” e 2) a “vinda do homem do pecado” (2.3). Em segundo lugar está 1.5-10 onde se

manifesta o ardente desejo de vingança, todavia intrínseco na apocalíptica, mas aqui explícito

de mais em comparação com a linguagem de Paulo em qualquer outra parte de seus escritos.

Retomemos II Tessalonicenses do começo e vejamos cada coisa em seu momento e

especificidade.

A identificação dos redatores da segunda carta é exatamente a mesma que está na

primeira: Paulo. Silvano e Timóteo e a saudação também não muda significativamente (1.1-2).

A referência a esses nomes não significa que haja três autores, mas sim, que há mais duas

pessoas confiáveis e conhecidas pela comunidade que concordam com Paulo. A inclusão de

nomes ao lado do nome de Paulo significa que ele não pensava isoladamente, mas que

compartilhava o mesmo pensamento que outros cristãos.

O proêmio começa com o mesmo tom elogioso nos versículos 3 e 4, mas a partir

versículo 5 o tom de voz aumenta, assim como em I Tessalonicenses 5.1-11. Aqui novamente

são evocadas as imagens vívidas e coloridas da apocalíptica, dessa vez, com ainda mais

intensidade. Aparecem as imagens “labareda de fogo”, “céu’, “anjos”, “poder”; mas, além da

presença desses elementos, a vinda do Senhor pagará com tribulação aos que atribularam os

8

Page 9: Tessalinicenses : A parousia

crentes (1.6), essa é a ênfase do referido trecho. Como se pode notar, o desejo de uma

vingança violenta se fundamenta em citações e alusões do Antigo Testamento e sua concepção

de Deus como juiz (Sl 76.6; Is 2.19-21; 11.4; 66.15-16).

James Dunn12 sugere que pensemos em uma pintura de Hieronymus Bosch para

que imaginemos as imagens terríveis da cena do evento da parousia descrito por Paulo em I

Tessalonicenses 1.5-6. Embora ele não tenha designado nenhuma em particular, sugiro que

vejamos The Last Judgement (O julgamento final), onde Jesus aparece no céu ao centro e

abaixo dele e à sua esquerda estão os condenados e acima dele e a sua direita estão os salvos –

note que o número de salvos é significativamente menor.

The Last Judgement de Hieronymus Bosch

Apesar da relativa diferença de vocabulário e da ênfase na vingança, esse trecho da

carta parece ter relação com a perseguição sofrida pelos crentes tessalonicenses, conforme já

foi referida na primeira carta. Assim o desejo de vingança é algo natural diante do sentimento

de frustração e impotência diante da injustiça provocada pelos poderes [archontes]13. Mais

grave, no entanto, é o que vem na seqüência, como já adiantamos, “o Paulo”, autor dessa carta

12 DUNN, James D. G. A Teologia do apóstolo Paulo – 2ª edição. São Paulo: Paulus, 2008, p.357.

13

? STEGEMANN, Ekkehard W; STEGEMANN, Wolfgang. História social do protocristianismo: os primórdios no judaísmo e as comunidades de Cristo no mundo mediterrâneo. São Paulo: Paulus / São Leopoldo: Sinodal, 2004, p. 173.

9

Page 10: Tessalinicenses : A parousia

apresenta dois elementos que se antepõe à vinda do Senhor, enquanto que em I

Tessalaonicenses o único sinal que vem antes da parousia é o já ocorrido evento da

ressurreição de Jesus (I Ts 4.14, cf. I Co 15. 22; Rm 1.4). Pois assim está escrito na carta:

“Que não vos movais facilmente do vosso entendimento, nem vos pertubeis, quer por espírito, quer por palavra, quer por epístola como de nós, como se o dia de Cristo estivesse já perto. Ninguém de maneira nenhuma vos engane (...)” (II Ts 2.2-3)14

Curioso que Paulo tenha enviado uma carta anterior afirmando a iminência da

parousia e agora exorta aos crentes para que não sejam enganados por supostas cartas da

autoria dele. Será que com essa afirmativa ele quer dizer que a primeira carta seja falsa? Não

sabemos exatamente, mas parece-nos que a intenção é ajudar os leitores a compreenderem a

primeira carta, pois em II Tessalonicenses a estima que se tem por Paulo é inquestionável, se

alguém a escreveu, este era um de seus admiradores. Contudo, é impossível harmonizar as

duas.

Não que seja impossível harmoniza-las apenas devido a incoerência das duas, pois

Paulo bem poderia ter mudado de pensamento a respeito da parousia no decorrer de sua vida,

isso seria absolutamente admissível de nosso ponto de vista. Embora, mesmo assim, duas de

suas últimas cartas atestam que Paulo ainda acreditava na iminência da parousia (Fp 4.5;

Rm13.11). Contudo, o problema maior é o literário, tendo em vista que a estrutura das duas

cartas é a mesma, inclusive os problemas referidos em seu interior são idênticos. Isso implica

que as duas cartas não devem ter uma larga distância cronológica na data de sua redação, caso

se distanciassem no tempo os problemas específicos também mudariam, ou, ainda que não

mudassem o autor não teria a estrita estrutura da carta em sua memória a ponto reconstruí-la

com tal sucesso.

Isso faz com que seja mais provável que um autor posterior a tenha escrito com a

intenção de se contrapor ou corrigir Paulo, devido aos problemas entusiásticos que ocorriam

no interior da comunidade graças à interpretação que se fazia das palavras da primeira carta.

Pseudepigrafia exercida com sucesso, a não ser no lapso que o autor comete ao substituir Deus

pelo Senhor [Jesus] (I Ts 4.14 e 16; 5.9 cf. II Ts 2.8); como é característico dos cristãos das

gerações posteriores a elevação da exaltação de Jesus15. Ou talvez, a segunda carta tenha sido

14 Grifo nosso.15 Note os atributos de Jesus em Efésios e Colossenses em comparação com Gálatas, I e II Corintíos, Filipenses, Filemon e Romanos. Veja tal discussão em MOURA, Rogério. Lima; LEITE, Francisco Benedito. O misticismo da cristologia cósmica das Dêutero-paulinas. Oracula (UMESP), São Bernardo do Campo, n. 13, 2012.

10

Page 11: Tessalinicenses : A parousia

escrita mediante a crise que os crentes enfrentam com o passar dos anos e a sucessiva morte

de cristãos e o fato da não concretização da parousia. Uma resposta para tal demora seria

atribuir a Paulo a afirmativa de que a parousia apenas seria iminente após o acontecimento

dos dois eventos referidos.

Os dois elementos que o autor de II Tessalonicenses antepõe à parousia não eram

anacronismos de sua parte, pois afirmar que existem sinais a serem cumpridos antes da

parousia, também é característico no Evangelho de Marcos (Mc 13.7-10) que está

cronologicamente próximo de I Tessalonicenses. Enquanto algumas correntes do cristianismo

primitivo demonstram que afirmar que a parousia está prestes a acontecer é uma heresia

perniciosa (Lc 21.8), o autor de II Tessalonicenses afirma que é uma ilusão insensata (2.2-3),

talvez ele mesmo tenha sido vítima dessa frustração e escreva no intento de que o mesmo não

ocorra aos outros crentes.

Quanto à figura do “Homem Sem Lei” também não é particular: I Jo 2.18-22; 4.3;

II Jô 7; Mc 13.14; Ap 13 e 17. Este é um elemento da escatologia cristã primitiva e de sua

matriz judaica, fundamentada no mito do inimigo primordial de Deus que se levantará no

tempo final, quando será definitivamente derrotado. Essa figura também chamada de dragão,

diabo, serpente, foi historicizada de diversas formas diferentes, como Antíoco IV Epífanes,

Pompeu, Caligura, Nero (posteriormente na história do cristianismo não cessaria de surgir

novos “anticristos”).

A partir de 2.13 II Tessalonicenses continua declinando o tom de voz, o ápice da

mensagem já passou. Em 2.13-3.5 uma espécie de texto bastante padronizado: “agradecimento

a Deus pelos irmãos” (2.13-14); “exortação a permanecerem firmes” (2.15-17), o que mais

uma vez afirma implicitamente a possível demora da parousia; “pedido de oração” (3. 1-5),

mas este trecho é, mais uma vez, um pretexto para que o autor retome às questões práticas que

virão em seguida.

A começar pela recomendação de como devem ser tratados supostos “desordeiros-

preguiçosos”. Mais uma vez esse é um tema de I Tessalonicenses que se manifesta também

aqui. “Paulo” é bastante rigoroso com o tratamento que deve ser dado a esses crentes que

querem comer a comida dos outros com a desculpa de que Jesus vem em breve e que por isso

não faz sentido trabalhar. Em contraposição a esses, “Paulo” cita seu próprio exemplo, como

fizera na apologia (I Ts 2.1-12). Mas, além disso, cita uma frase que possivelmente seja um

ditado popular conhecido pelos crentes locais “Quem não trabalhar não come” (II Ts 3.10b).

11

Page 12: Tessalinicenses : A parousia

Por fim Paulo saúda a comunidade, deseja-lhes paz, afirma ter escrito a carta e

fecha o texto, desejando que “a graça do nosso Senhor Jesus Cristo seja com todos”. Nada de

incomum, a não ser afirmar que assinou a carta de próprio punho (v.17). Essa estratégia que o

autor utiliza contra sua pseudo-epigrafia, na verdade, volta-se contra ele, porque esse versículo

entra em contradição com 2.2, pois se há um sinal que identifica a autoria paulina, ele não

precisa se referir às supostas cartas que tenham sido escritas em seu nome. Caso ele tenha

realizado tal exortação é sinal que ele vive um momento em que já existem muitas cópias das

cartas que circulam na região.

Essas dúvidas quanto à autoria nos impedem de dizer com segurança quando e

onde este documento foi escrito. Sabemos apenas que é a mais antiga pseudo-paulina, e que a

afirmativa de que o próprio Paulo a tenha assinado, a coloca próxima do ano 80, ou seja antes

da morte de Paulo. Assim como o conhecimento que o autor tem de I Tessalonicenses faz com

que pensemos que esse autor esteja perto da comunidade de Tessalônica ou nas cidades

vizinhas que podem ter recebido uma cópia desta carta para ser lida no culto. Todas essas

afirmativas a respeito de sua datação e do local onde a carta foi escrita são apenas

especulações, no entanto bastante plausíveis.

Se estas afirmativas a respeito de II Tessalonicenses se confirmarem, então

chegamos à conclusão que essa, de fato, não era uma carta em sentido estrito, mas sim uma

epístola. Visto que diferentemente da carta autêntica, o que motiva o autor aqui não são os

problemas práticos da comunidade, mas sim a intervenção teológica; uma afirmação realizada

no passado deve ser esclarecida para que sejam evitados abusos e prejuízos aos cristãos.

Portanto, parece que em II Tessalonicenses não se manifesta uma carta legítima, de um

redator interessado em ajudar na prática a uma comunidade cristã em seus problemas

cotidianos, mas sim um tratado teológico epistolar a fim de solucionar um problema teológico

que pode levar a memória e a identidade do apóstolo Paulo a serem desacreditados e em

conseqüência sua autoridade como apóstolo pode ser negada pelas futuras gerações de

cristãos.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Assim concluímos nossa apresentação das Cartas de Paulo aos Tessalonicenses.

Muito próximas na estrutura e no conteúdo, porém, muito distintas na argumentação a respeito

do tema central: a vinda do Senhor Jesus. Enquanto em I Tessalonicenses o próprio autor se

12

Page 13: Tessalinicenses : A parousia

mostra envolvido pelo entusiasmo dos crentes da comunidade a qual remete a carta; em II

Tessalonicenses o autor afirma que existem dois elementos que acontecerão antes da parousia.

Além da parousia, o tema da necessidade de trabalhar pelo próprio sustento está

presente nas duas cartas, mas, enquanto na primeira os dois elementos referidos acima são

problemas práticos enfrentados pela comunidade, na segunda, a parousia é um problema

teológico, as motivações práticas estão em uma segunda instância, que é o tipo de

comportamento que esse tipo de teologia pode acarretar.

O autor de II Tessalonicenses, sem dúvida, foi bem sucedido em seu intento, pois

mesmo hoje, entre os avançados estudos da academia há quem defenda que as duas cartas são

autênticas, apesar de todos problemas teológicos e literários que apresentamos. Fato que

demonstra que ele também era um admirador do apóstolo Paulo. Seu intento provavelmente

era justificar sua teologia mediante problemas graves que estavam ocorrendo devido às suas

próprias palavras.

Apresentar a pseudoepígrafa como falsificação não se enquadra nos critérios de

autoria da antiguidade. Enquanto no nosso mundo contemporâneo tal ato se aproximaria da

falsidade ideologia, no mundo antigo essa estratégia enaltecia o nome do referido autor ainda

que já houvesse morrido há muito tempo atrás, como em outros casos mais explícitos.

Importa ainda destacar a relevância que essas cartas tiveram para a cultura

ocidental, ao apresentarem a importância do trabalho braçal e do esforço pelo próprio

sustento16 em contraposição à visão pejorativa que a elite greco-romana tinha do mesmo17. No

que diz respeito à contradição que as duas cartas entram sobre a parousia, é de se destacar a

pluralidade e a riqueza do cânon cristão, que aceita duas ideias tão diferentes a respeito do

mesmo evento. Algo sintomático do cânon e nos cristianismo primitivos18, mas ausente nas

teologias eclesiásticas contemporâneas. Por isso, ironicamente não respondemos a pergunta

inicial que fizemos no título desse texto, pois as duas respostas dadas a respeito da vinda de

Jesus em cada uma das duas Cartas aos Tessalonicenses bem podem ser verdadeiras ao

mesmo tempo.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS16 MESTERS, Carlos. Paulo Apóstolo: uma trabalhador que anuncia o Evangelho – 8ª edição. São Paulo: Paulus, 2008.

17 Paul Veyne destaca que a Antiguidade foi a época da ociosidade como mérito. História da vida privada – VOL. I: Do Império Romano até o ano mil. São Paulo: Companhia de Bolso, 2010, p. 112.

18 Essa é a teoria que James D. G. Dunn desenvolve em seu livro: Unidade e diversidade no Novo Testamento: um estudo das características dos primórdios do cristianismo.

13

Page 14: Tessalinicenses : A parousia

BULTMANN, Rudolf. Teologia do Novo Testamento. Santo André: Academia Cristã, 2008.

DUNN, James D. G. A Teologia do apóstolo Paulo – 2ª edição. São Paulo: Paulus, 2008.

_____. Unidade e diversidade no Novo Testamento: um estudo das características dos

primórdios do cristianismo. Santo André: Academia Cristã, 2009.

KOESTER, Helmut. Ideologia imperial e a escatologia de Paulo em I Tessalonicenses. In:

HORSLEY, Richard. Paulo e o Império: religião e poder na sociedade imperial romana.

São Paulo Paulus, 2004, pp. 161-169.

MESTERS, Carlos. Paulo Apóstolo: uma trabalhador que anuncia o Evangelho – 8ª edição.

São Paulo: Paulus, 2008.

MOURA, Rogério. Lima; LEITE, Francisco Benedito. O misticismo da cristologia cósmica

das Dêutero-paulinas. Oracula (UMESP), São Bernardo do Campo, n. 13, 2012.

PELEKANIDOU, E; NARDI, C. Verbete: Tessalônica. In: BERARDINO, Ângelo Di [org.].

Dicionário Patrístico e de antigüidades cristãs. Petrópolis / São Paulo: Vozes / Paulus,

2002, p. 1353s.

PEREIRA, Isidro. Dicionário Grego-Português e Português-Grego - 8ª edição. Braga: Livraria

Apostolado da Imprensa, 1998.

STEGEMANN, Ekkehard W; STEGEMANN, Wolfgang. História social do

protocristianismo: os primórdios no judaísmo e as comunidades de Cristo no mundo

mediterrâneo. São Paulo: Paulus / São Leopoldo: Sinodal, 2004.

WENGST, Klaus. Pax Romana, pretensão e realidade. São Paulo: Paulus, 1991.

VEYNE, Paul. História da vida privada – VOL. I: Do Império Romano até o ano mil. São

Paulo: Companhia de Bolso, 2010.

VIELHAUER, Phillipp. História da Literatura Cristã primitiva – uma introdução ao Novo

Testamento aos Apócrifos e aos Pais Apostólicos. Santo André: Academia Cristã, 2005.

14