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P ERFEIÇÃO HUMANA? UMA ANÁLISE LINGÜÍSTICA DE MATEUS 5:48 RODRIGO P. SILVA, TH.D Professor de Novo Testamento no Salt, Unasp campus Engenheiro Coelho, São Paulo RESUMO: Este artigo apresenta uma análise exegética de Mateus 5:48, buscando compreender o que Jesus Cristo tinha em mente quando dis- se as palavras: “Sede vós perfeitos como perfeito é o vosso Pai celeste.” Em direção oposta à tese de que o versículo indicaria a possibilidade de o ser humano alcançar impecabilida- de absoluta ainda nesta vida, o autor argumenta que o objetivo do Mestre foi o de propor o amor exemplifica- do pelo Pai como padrão do cum- primento da lei, e, portanto, como o ponto central em torno do qual gira a perfeição exaltada por Ele. A base para tal conclusão se encontra na aná- lise do significado básico da palavra grega teleios usada por Mateus, à luz do contexto imediato do versículo e da passagem correlata de Lucas 6:36, bem como da análise da compreensão farisaica legalística dos textos “sede santos porque Eu sou santo” do livro de Levítico, a qual Cristo estaria pro- curando corrigir. Abstract: This article presents an ex- egetic analysis on Mathew 5:48, seek- ing to comprehend what Jesus Christ had in mind when He said: “Be per- fect, therefore, as your heavenly Fa- ther is perfect.” In opposite direction to the theory which the verse would indicate the possibility of the human being reaching absolute impeccability in this life, the author argues that the Master’s objective was to propose the love exemplified by the Father like a standard to the fulfillment of the Law, and in addition, as the central point which the perfection is boasted by him. The base for such a conclusion is in the analysis of the basic mean- ing of the Greek word “teleios” used by Mathew, by the light of the imme- diate context of the verse and of the passage written in Lucas 6:36, as well as of the analysis of the Pharisaic le- galistic understanding of the texts “be holy because I am holy” of the book of Leviticus, to which Christ would be trying to correct. INTRODUÇÃO “Sede vós perfeitos como perfei- to é o vosso Pai celeste” (Mt 5:48). Essa declaração de Jesus nas Escritu- ras pode, a princípio, levar a entender que o Mestre estaria ordenando que fôssemos perfeitos, do mesmo modo como Deus é perfeito. Surgem, então, algumas questões: o que Jesus real-
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Sep 30, 2018

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Perfeição humana? uma análise lingüística de mateus 5:48 / 63

Perfeição humana? uma análise lingüística de mateus 5:48

rodrigo P. silva, th.dProfessor de Novo Testamento no Salt, Unasp campus Engenheiro Coelho, São Paulo

resumo: Este artigo apresenta uma análise exegética de Mateus 5:48, buscando compreender o que Jesus Cristo tinha em mente quando dis-se as palavras: “Sede vós perfeitos como perfeito é o vosso Pai celeste.” Em direção oposta à tese de que o versículo indicaria a possibilidade de o ser humano alcançar impecabilida-de absoluta ainda nesta vida, o autor argumenta que o objetivo do Mestre foi o de propor o amor exemplifica-do pelo Pai como padrão do cum-primento da lei, e, portanto, como o ponto central em torno do qual gira a perfeição exaltada por Ele. A base para tal conclusão se encontra na aná-lise do significado básico da palavra grega teleios usada por Mateus, à luz do contexto imediato do versículo e da passagem correlata de Lucas 6:36, bem como da análise da compreensão farisaica legalística dos textos “sede santos porque Eu sou santo” do livro de Levítico, a qual Cristo estaria pro-curando corrigir.

Abstract: This article presents an ex-egetic analysis on Mathew 5:48, seek-ing to comprehend what Jesus Christ had in mind when He said: “Be per-fect, therefore, as your heavenly Fa-

ther is perfect.” In opposite direction to the theory which the verse would indicate the possibility of the human being reaching absolute impeccability in this life, the author argues that the Master’s objective was to propose the love exemplified by the Father like a standard to the fulfillment of the Law, and in addition, as the central point which the perfection is boasted by him. The base for such a conclusion is in the analysis of the basic mean-ing of the Greek word “teleios” used by Mathew, by the light of the imme-diate context of the verse and of the passage written in Lucas 6:36, as well as of the analysis of the Pharisaic le-galistic understanding of the texts “be holy because I am holy” of the book of Leviticus, to which Christ would be trying to correct.

introdução

“Sede vós perfeitos como perfei-to é o vosso Pai celeste” (Mt 5:48). Essa declaração de Jesus nas Escritu-ras pode, a princípio, levar a entender que o Mestre estaria ordenando que fôssemos perfeitos, do mesmo modo como Deus é perfeito. Surgem, então, algumas questões: o que Jesus real-

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mente quis dizer com tal afirmação? Estaria Ele sugerindo que o ser huma-no, mesmo em condição lapsariana, teria condições de se tornar perfeito?

O texto de Mateus 5:48 tem sido utilizado por teólogos que advogam o perfeccionismo como uma evidên-cia para validar sua tese soteriológi-ca de um estágio de impecabilidade adquirido ainda nesta existência1. As implicações da interpretação a favor dessa proposta soteriológica mos-tram a complexidade da passagem no nível semântico e exegético.

O propósito, portanto, deste arti-go será o de analisar lingüisticamente Mateus 5:48, observando os aspectos semânticos, a estrutura gramatical, o contexto imediato, mediato e amplo da passagem e suas implicações para o debate sobre o perfeccionismo. A par-tir desses elementos, se buscará uma interpretação exegética do mesmo.

o texto

A redação de Mateus 5:48 não é problemática do ponto de vista da crítica textual2, mas apresenta uma divergência de tradução quanto ao verbo que abre as palavras de Cristo. É que algumas versões e comentários optam por traduzir e;sesqe, que na verdade é um futuro indicativo “vós sereis”, como se fosse um imperati-vo “sede vós”3. É fato que a forma da 2ª. pessoa do plural do presente do imperativo é a mesma do indicativo havendo, portanto, duas possibilida-des de tradução. Mas aqui temos um modo futuro e não um presente, logo, a semelhança sintática entre “presen-te e imperativo” não se aplica neste

caso. Assim, as versões que optam por uma forma imperativa seguem uma tradução dinâmica e não uma tradução literal do texto.

A diferença pode parecer peque-na, mas não é. Se Jesus estiver usan-do um imperativo está dando uma ordem de cumprimento imediato – algo a ser realizado nesta vida. Se estiver usando o futuro, está falando de uma promessa, algo que pode se concretizar hoje ou apenas na glori-ficação final4.

Blass e Debrunner nos chamam a atenção para o fato de que neste capítulo de Mateus o futuro nunca é utilizado nas fórmulas exortativas de Jesus5. Logo, caso se entenda o verso 48 de uma forma imperativa, deve-se admitir que essa seria uma exceção sem equivalente gramatical no res-tante do discurso de Cristo.

Não obstante, poucos duvidariam que o verbo Vagaph,seij, que é o fu-turo de “amar”, não teria um sentido de ordem (v. 43). Afinal fica estranho supor que estaríamos diante de uma predição: “Vocês amarão ao seu pró-ximo etc.”, principalmente quando se trata da citação de uma clara or-dem vétero-testamentária.

Foi por isso que Schweizer optou por uma tradução ambivalente, con-cluindo que “a formulação [de Cristo] tanto em grego quanto em hebraico inclui a promessa ‘vocês serão’ bem como a ordem ‘vocês deverão ser’”6. E este, de fato, parece ser o melhor ca-minho do ponto de vista gramatical.

Definido assim o sentido tempo-ral da passagem, levanta-se a questão do que seria uma “perfeição” símile à

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de Deus. A estrutura literária do tex-to poderá fornecer uma explicação.

contexto literário

Mateus 5:48 parece encerrar uma perícope que, pelo contexto imedia-to, começaria no verso 43: “ouvistes o que foi dito: amarás o teu próximo, e odiarás o teu inimigo”. Toda a te-mática desde aqui até ao verso em questão centraliza-se no amor como padrão de comportamento. Não é por menos que avgapa/w é o verbo que mais se repete na perícope.

Os versos 43 e 44a deixam claro que o amor acima de tudo é o padrão em torno do qual gravita a prática da lei. Sem o amor, todos os ritos e obri-gações não passam de ordenanças va-zias. Por isso, Jesus poderia ter dito “sede vós amoráveis, como amorá-vel é vosso Pai que está no Céu” – o que faria eco com os versos 44b e 45, “amai... para que vos torneis filhos do vosso Pai Celeste”. Contudo, no texto mateano Ele preferiu usar a palavra “perfeitos”, talvez para englobar não apenas aquela antítese, mas todas as que compuseram a perícope. Logo, Mateus 5:48 não conclui apenas a úl-tima antítese (v. 43-47), mas a todas as seis desde o verso 21. O te,leioj não se resume apenas ao amor comum, mas ao amor-princípio (avga,ph) com tudo que ele abarca, a saber: reconciliação, pureza, fidelidade, temor e solidarie-dade que foram justamente os temas das antíteses anteriores.

Em seu contexto mediato (que se inicia no verso 17), se verifica que o texto aponta uma problemática em re-lação ao comportamento pseudo-pie-

doso dos escribas e fariseus (cf. 5:20; 6:2, 5, 16; 7:5, 15 [aqui apelidados de falsos profetas], 297).

Perceba como o contexto respon-de aos dois grupos: primeiramente temos a abertura em 5:17-19 onde Cristo estabelece sua própria relação com a lei e os profetas (“não vim para revogar, mas para cumprir”). Então apresenta no verso 20 o propósito de sua argumentação: “Se a vossa justiça não exceder em muito a dos escribas e fariseus, jamais entrareis no Rei-no dos Céus”. Finalmente inicia-se a apresentação em duas grandes seções: no capítulo 5:21-48 há uma discussão legal entre Cristo e os ensinamentos rabínicos, enquanto no capítulo 6:1-18 temos admoestações gerais acerca do devido comportamento religioso. A moldura de todo o cenário são o dito original da lei, as adições ou interpre-tações distorcidas feitas pelos rabinos e o comportamento ideal sugerido por Cristo, que, na verdade, era um retor-no à essência dos mandamentos.

Sendo assim, o capítulo 5:48 per-tence à seção que lida com as interpre-tações rabínicas da lei. Ele conclui as chamadas seis antíteses, que vão de 5:21-47 (“ouvistes o que foi dito aos antigos... Eu porém vos digo”). Mas, como bem observou Glen H. Stassen, não se trata de uma contradição entre Jesus e a Torá, e sim de uma oposição do Mestre a determinada interpreta-ção da Torá8.

Todas as antíteses referem-se a relações sociais com um irmão ou patrício (5:21-26), com a mulher (27-30), com a esposa (31 e 32)9, com o Senhor – curiosamente a relação com

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Deus é entendida como uma relação social – (33-37), com o inimigo – notadamente o inimigo romano que tinha autoridade para obrigar o ju-deu a andar uma milha – (38-42), e, finalmente, com o judeu considerado traidor – no caso, o cobrador de im-postos que por sua conduta tornava-se um inimigo de estado, injusto e publicano (43-47). Todos os setores sociais da época são aqui representa-dos, o que demonstra uma estrutura de totalidade e completude relacional (a mesma idéia de Hb 12:14: “segui a paz para com todos e a santificação, sem a qual ninguém verá o Senhor”).

Ao primeiro caso reserva-se a re-conciliação, ao segundo a pureza, ao terceiro a fidelidade matrimonial, ao quarto o temor ao Senhor, ao quinto a solidariedade não vingativa e ao sexto o amor que, aliás, está na base de to-das as condutas éticas.

Conforme vemos no verso 43, aqui Jesus está falando de “como se deve e como não se deve” cumprir o mandamento de Levítico 19:18. No final, (verso 47) ele ironiza num estilo rabínico levando os ouvintes a refletir sobre os exemplos dados. No início incentivou-os a exceder em muito a justiça, isto é, o comportamento dos escribas e fariseus. Agora sugere que a atitude comum desses homens, que muitos julgavam ser o padrão de com-portamento, até publicanos realizam.

Sua conclusão, pois, seria: “Vo-cês não querem ser melhores que eles? Logo, por que se contentar com a forma simples de agir deles? Vamos lá, superem a sua conduta! Sejam perfeitos.”

Aqui está a lógica de Cristo ex-pressa em palavras de completude: “sede perfeitos ou completos”, isto é, “não cumpram o mandamento de modo parcial ou apenas exterior. Bus-quem a transformação interna que os tornará de fato ‘filhos de Deus’ em meio aos homens. Assim vocês cum-prirão integralmente a vontade do Pai que está no Céu”.

Toda essa argumentação é par-te do Sermão do Monte, que, por sua vez, pode ser subdividido em várias seções de acordo com a visão de cada autor. Afinal, apesar das notas exegéti-cas acerca da maestria da composição mateana, especialmente no Sermão da montanha10, como assinalou Dale C. Allison Jr., o consenso sobre como se-ria essa estrutura ainda não existe11. O máximo que se pode afirmar é que o contexto imediato de Mateus 5:48, ini-cia no 5:1-2 (pois o cenário muda em relação ao capítulo precedente) e ter-mina no 7:28-8:1(que claramente é a conclusão do dito de Cristo). Ademais, há também a semelhança de vocábulos entre as duas porções textuais:

(5:1-2) “Vendo Jesus as multidões, subiu ao monte, e como se assentasse, aproximaram-se os seus discípulos e ele passou a ensiná-los dizendo...”

(7:28-8:1) “Quando Jesus acabou de proferir essas palavras, estavam as multidões maravilhadas de sua dou-trina; porque ele as ensinava como quem tem autoridade e não como os escribas. Ora, descendo ele do monte, grandes multidões o seguiam.”12

Os principais blocos temáticos que se encontram dentro desse arcabouço homilético de Cristo são: as bem-

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aventuranças (5:3-12), o papel dos discípulos no mundo (13-16), os man-damentos do reino ampliados a partir da lei e dos profetas (17-48), a correta forma de culto (6:1-18), as questões sociais (6:19-7:12) e as advertências finais (7:13-27).

Como se vê, as porções internas do sermão se assemelham bastante a uma cartilha de comportamento éti-co, uma espécie de manual didático dos bons costumes relacionais, e de novo vê-se inserida a problemática do comportamento pró-forma de escribas e fariseus. Aliás, C. H. Dodd fez uma importante observação ao perceber que esse dito de Cristo possui mais ca-racterísticas de ensino (didachê) que de discurso (kerygma)13.

contexto histórico

Os escribas e fariseus constituíam dois grupos distintos e, nalgumas si-tuações, até oponentes. Ambos eram versados na Lei e possuíam membros dotados de grande treinamento teológi-co, por isso os primeiros eram conhe-cidos como hakimim (os sábios) e os segundos como perisayya (separados). Eram os professores e “juristas” da época, embora nem sempre ganhassem dinheiro com isto. Muitos deles eram pobres e até necessitados de um segun-do ofício para sobreviver. Sua influên-cia não estava na sua fortuna, sobreno-me, profissão, mas na sua capacidade

de interpretar a lei e julgar o povo.14 Fariseus e saduceus amavam discutir detalhes de comportamento piedoso e adições rabínicas da Torá e o povo ad-mirava seu comportamento, tomando-os por padrão de moralidade.15

Não obstante, tinham um terrível problema com o relacionamento in-terpessoal. Para eles era o afastamen-to das pessoas comuns (incluindo pa-rentes e vizinhos) que os aproximaria de Deus. Uma certa “teologia secreta” seguida de um ostracismo social era, para eles, a razão decisiva de sua in-fluência sobre o povo16. Ora, este é um dado que interessa de perto ao contex-to histórico da passagem em questão. Fazia parte de sua conduta viverem afastados do povo, desassociados das pessoas e, por estarem distantes, eram vistos como perfeitos e inatingíveis. Mas nem por isso deixavam de ser ad-mirados pela gente mais simples, que só pôde sentir a pobreza de sua dou-trina ao comparar seus ensinos aos de Jesus Cristo (Mt 7:28 e 29). Até então, eles eram a impossibilidade ideal para uns, o modelo legal para outros e, fi-nalmente, um espelho para todos.

Dentro desse cenário, o desafio de Cristo a que o povo comum supe-rasse a justiça dos escribas e fariseus era uma proposta totalmente nova e radical (5:20). Um caso ilustrativo da força das palavras de Cristo pode ser visto na comparação entre a or-dem dada em Mateus 7:12 e a ordem de Hillel em b. Shab. 31a:

Jesus diz: “Tudo pois que quereis que os homens vos façam, assim fazei-o vós também a eles, porque esta é a lei e os profetas”.

Hillel diz: “não faça a alguém o que é odioso a ti, porque toda a lei está contida nesta sentença. O resto é comentário”.

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Note que o que Hillel apresenta num tom negativo, Jesus coloca num tom positivo, o que supera em muito a disposição apresentada pelo escri-ba. Mais do que evitar fazer o mal ao semelhante, o que pode nos colocar numa condição de inatividade, a or-dem do Mestre é fazer o bem, o que impele a uma atitude.

Ora, Deus não é um inativo agen-te cósmico que se limitou a não des-truir a raça humana, mas acabou se alienando dela. Pelo contrário, Ele agiu na história salvando o gêne-ro humano e servindo de modelo a cada um de nós. Assim, para Cristo, a “atitude de Deus” deveria ser o pa-drão dos discípulos e não a atitude dos escribas comuns (5:48).

comentário exegético

Definidas as bases contextuais li-terárias e históricas de Mateus 5:43-48, permanece ainda em aberto ex-plorar o sentido de perfeito (te,leioj) neste contexto mateano.

Em Mateus o termo aparecerá uma segunda vez em 19:21, onde um jovem rico (que Marcos e Lucas de-finem como um homem) lhe pergunta sobre como herdar a vida eterna. Essa, aliás, é a mesma pergunta feita em Lu-cas 9:25 por um “intérprete da lei”.

Jesus reponde citando os man-damentos, a rigor quase os mesmos mencionados em 5:21-32. Então lhe conclama: “se queres ser perfeito (te,leioj) vai vende teus bens e dá aos pobres, etc.” – uma ordenança clara de amor como desprendimento que sugere a aplicação prática do princí-pio anunciado em 5:21-48.

Na passagem paralela de Lucas 6:32-36, a mesma estrutura de Mateus é repetida, mas no final, em vez de dizer “sede perfeitos como perfeito é vosso pai que está no Céu”, o evange-lista diz: “sede misericordiosos como também é misericordioso vosso Pai”. Uma comparação do original grego entre ambas as versões ilumina ainda mais a comparação sinótica:

Lucas: Gi,nesqe oivkti,rmonej kaqw.j Îkai.Ð o ̀path.r u`mw/n oivkti,rmwn evsti,nÅ

Mateus: :Esesqe ou=n u`mei/j te,leioi w`j o` path.r u`mw/n o` ouvra,nioj te,leio,j evstin.

Note que enquanto Mateus usa o verbo “ser” (eimi) Lucas prefere o verbo “tornar” (gi,nomai). O sentido lucano é, pois: “tornai-vos” – o que aumenta a força comparativa com Deus “tal qual... [é] o vosso Pai”. Veja que ele, diferentemente de Ma-teus, usa kaqw.j e não w`j.

Como Mateus, Lucas também é fiel ao contexto de relações sociais no qual Jesus havia dito essas palavras. Nesse aspecto, a compreensão social de te,leioi/te,leioj em Mateus é refor-çada pela escola lucana de oivkti,rmonej e oivkti,rmwn (misericordioso[s]) para traduzir em grego as palavras origi-nais de Cristo.

Sua construção é muito parecida com o que encontramos no Targum do Pseudo-Jonatan sobre o Levíti-co. Ali diz: “Assim como nosso Pai é misericordioso (!m’x.r;) no Céu, sê tu igualmente misericordioso na Terra”17. Como acentua Matthew Black18, as palavras de Lucas “ocor-rem numa típica expressão targúmi-ca”, logo, qualquer relação entre os

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evangelhos e esse estilo judaico não é uma teoria inviável.

O sentido do termo usado por Lu-cas (oivkti,rmonej) abarca a idéia de ter compaixão para com o necessitado, seja ele quem for (até um inimigo). Ele aparece cerca de 80 vezes na LXX (tanto em forma verbal quanto adjeti-va e substantiva) para corresponder às seguintes raízes: !nx “ser gracioso, generoso” (geralmente com o sentido de “poupar” o que estaria para morrer ou preservar o que está em dificulda-des) e ~xr “ter compaixão”.19

Não se pode olvidar que Jesus inicia a perícope da última antítese citando textualmente Levítico 19:18. O curioso é que Ele acrescenta uma expressão apócrifa, certamen-te oriunda do pensamento rabínico e que contrariava todo o sentido do preceito original: “...e odiarás o teu inimigo”.20 De modo irônico, Jesus contradiz não a lei levítica, mas o acréscimo feito a ela. Isso Ele faz, comentando de maneira midrástica a ordem original dada naquela porção Antigo Testamento (Lv 19:1-37). Lá, o mandamento dizia para os judeus tratarem bem os gentios, para não se contaminarem com seu comporta-mento, mas, ao mesmo tempo, tê-los como objeto de um verdadeiro amor fraternal, principalmente quando fos-sem donos da terra e vissem um pe-regrino estrangeiro vivendo no meio deles (compare com Mateus 15:3).

Jesus de maneira sintética oferece o mesmo princípio e, em sua conclu-são, repete quase as mesmas palavras que no texto mosaico abriam o conte-údo da lei: “sereis perfeitos (santos)

como Deus é perfeito (porque Eu sou santo)” (Lv 19:2).

A primeira coisa que se observa aqui é que o contexto original de Le-vítico 19, de onde Jesus extrai seu co-mentário, não alude a questões direta-mente soteriológicas, mas a questões de relacionamento político-social em relação a estrangeiros. É claro que num determinado ponto todas essas temáticas se encontram, pois o com-portamento social espelha a relação espiritual para com o plano salvífico de Deus. Contudo, em termos de ob-jetividade textual, essa passagem le-vítica não trata de “como ser salvo”, nem menciona uma lista de “frutos da salvação”, ali não há referência ao sacrifício expiatório, nem ao santuá-rio, mas apenas às questões sociais. O tema diz respeito ao trato que o judeu deveria dispensar ao estrangeiro que habitasse o mesmo território que ele. A suma é: ajudar fraternalmente o es-trangeiro sem se contaminar com seu comportamento. O contexto de santi-dade, portanto (“sede santos, porque eu sou santo”), não significa impe-cabilidade , mas antes ser separado do mundo gentílico, sem contudo ser alienado dele.

significado de te,leiojEm seu sentido adjetival, o ter-

mo te,leioj aparece 19 vezes no Novo Testamento. Em várias dessas ocor-rências, ele aparece não apenas como “perfeito”, “perfeição” e cognatos, mas também como experimentados (1Co 2:6), homens amadurecidos (1Co 14:20), adultos (Hb 5:14), ma-

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turidade (Hb 6:3), ação completa (Tg 1:4), etc. Aqui as opções parecem estar de acordo com o dicionário de Strong, que oferece os vários signi-ficados para te,leioj21. Como se vê, há várias formas de verter o termo grego; perfeito é apenas uma delas e não a única ou a naturalmente melhor. Como sugere Gerhard Delling, falan-do especificamente desse ponto, “será o contexto de cada caso que determi-nará a melhor tradução”22.

É claro no contexto mateano que te,leioj em 5:48 e 19:21 significa a qualidade de “perfeito”, “completo”, “maduro”, “adulto”, “crescido”. Essa qualidade, contudo, gravita em torno de um determinado padrão dado pelo contexto (como é o caso em Colos-senses 1:28, 4:12; Tiago 1:4, 17, 25; 3:2; cf. 1 Coríntios 2:6, 13:10; 14:20; Efésios 4:13; Filipenses 3:12, 15; He-breus 5:14; 1 João 4:18). Determinar esse padrão é a chave hermenêutica para determinar o sentido de perfei-ção no texto mateano, e esse padrão, conforme já foi visto pelo contexto imediato, é o amor.

O amor é o que torna possível superar a justiça dos escribas e fari-seus, por isso todas as antíteses do contexto mediato e as bem-aventu-ranças do contexto amplo apontam para elementos de amor: misericór-dia (5:7); reconciliação (5:24); cari-dade (5:42). É em torno deste amor plurifuncional que gravita o te,leioj divino que devemos imitar. Mas se-ria esse te,leioj em torno do amor uma situação de impecabilidade?

Todo o contexto mateano visto até aqui responde negativamente a

essa questão. Não há ali qualquer in-dício direto ou indireto para a suges-tão de que os filhos de Deus (verso 45) jamais pecariam depois de deter-minado estágio de santificação. Agir diferente dos escribas e fariseus era cumprir a lei com base no amor e não na impecabilidade.

Na LXX, te,leioj também corres-ponde a “completo”, “todo”, “imacu-lado”, “indivisível”, “pacífico” etc.23. Não obstante é um termo raro, apare-cendo apenas cerca de 20 vezes.

Há, contudo, ali um adicional ele-mento que também ilumina a questão. Pelo que se percebe do texto septu-agentário, existem duas importantes raízes hebraicas que poderiam ser os correspondentes vétero-testamentá-rios de te,leioj: a primeira e mais co-nhecida seria a ~mT, que significaria em termos gerais “ser completo, estar terminado”. Esta raiz aceita perfeita-mente termos derivados com o sentido de integridade, perfeito e inteireza.24

A segunda, menos mencionada, é ~lv, da qual derivam as idéias de paz, completude e perfeição.25 Ela é verti-da por te,leioj em 5 ocasiões (1 Rs 8:61; 11:4; 15:3; 14:1; 1Cr 28:9).26

Embora não sejam sinônimos per-feitos ~lv e ~mT são corresponden-tes naturais no Antigo Testamento e cada contexto determina o padrão ao redor do qual se exercerá essas vir-tudes. A pergunta final é: qual destes seria o melhor correspondente para te,leioj em Mateus 5:48?

Bem, de acordo com Carr, o “sig-nificado básico por detrás da raíz shlm [sic] é terminar ou completar algo – de entrar num estado de in-

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tegridade e unidade, de participar de um relacionamento restaurado”27, daí a idéia de paz ou pacificação comple-ta. Talvez mais do que ~mT, ~Alv é uma definição excelente e harmônica ao contexto imediato de Mateus 5:43-48, que fala do trato que se deve ter para com os inimigos, isto é, para com aqueles cuja relação esteja cortada, mas que Cristo insta à restauração. É bem provável que aqui esteja a chave interpretativa para o significado das palavras de Cristo acerca da imitação do amor de Deus.

Compare-se Mateus 5:7 com 5:48:“Bem aventurados os pacificado-

res (Shelim) porque serão chamados filhos de Deus.”

“Amai ... para que vos torneis fi-lhos do vosso Pai Celeste.”

“sede vós perfeitos (Shelim?), como perfeito é o vosso Pai que está nos céus.”

O sentido de “pacificar” também é contemplado pelo ato de “amar” e vice-versa. Ademais, textos como 2 Coríntios 13:11, Tito 1:4, 2 João 3; Judas 2 mostram a correlação íntima entre os dois vocábulos. Em Romanos 5:1-11 Paulo descreve em detalhes o papel do Pai que Cristo apenas men-ciona em Mateus 5:48. No texto Pau-lino, a paz, a reconciliação e o amor são de maneira sinônima o leitmotiv de toda a argumentação.

Já é ponto pacífico entre os he-braistas que a simples tradução de “paz” para o hebraico ~Alv’, está longe de abarcar todo o seu significa-do. O termo carrega uma conotação muito mais ampla que inclui o bem estar, a prosperidade, a segurança, in-

tegridade e completude. “Em Shalôm se acha implícita a idéia de relaciona-mentos não abalados com outras pes-soas e de sucesso da pessoa nas suas empreitadas”28. Um significado muito próprio para o contexto mateano.

Comentando especificamente Mateus 5:47 e 48, Matthew Bla-ck também defende a ligação entre te,leioj e ~lv e acrescenta um dado curioso, ele diz: “uma das mais in-teressantes exemplificações de pa-ronomásia29 ocorre em Mt. V. 47, 48 [sic]: a expressão regular semí-tica para ‘bendizer’ é ‘pedir pela paz ou bem-estar (Shelam) de’ e telei,oj nesta passagem é Shelim; pois este último pode ser comparado à pará-frase de Levítico. Xxii.27encontrada no Targum de Jerusalém I, com sua referência à ‘virtude do homem per-feito (Shelima)’.”30

O sentido, pois, de Mateus 5:48 parece ser “vocês serão pois comple-tamente pacificadores [isto é, recon-ciliadores, amoráveis, abençoadores, misericordiosos] como completo pa-cificador [nestes mesmos aspectos] é o seu Pai que está nos Céus.”

conclusão

A despeito das muitas sugestões dadas acerca do motivo central do Sermão do Monte31, podemos resumir em três as principais posições32:

A concepção perfeccionista – Cristo estaria falando de um ideal perfeitamente alcançável durante a santificação e que se traduz na literalidade de tudo o que foi dito (principalmente no texto de 5:48). Essa leitura é proposta inclusive

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por alguns autores adventistas na atualidade.33

Teoria da impossibilidade ideal – visão luterana de que Jesus estaria apenas apresentando um ideal jamais alcançável nesta vida, o que torna suas palavras – na melhor das hipó-teses – uma utopia, pois não servem para esta vida, nem para a vida porvir, quando já não haverá inimigos, adul-térios, tentações ou demandas.

Ética interina – uma proposta suge-rida inicialmente por Johannes Weiss e popularizada por Albert Schweitzer, segundo o qual Jesus, pensando equi-vocadamente que o fim se aproximava incentivou as pessoas a viverem uma ética provisória em virtude do clima escatológico especial. Um comporta-mento, portanto, que não teria sentido noutra parte da história.34

Todas essas sugestões trazem implicações soteriológicas muito complexas que tendem tanto para a legalismo, quanto para o libera-lismo e o racionalismo. Contudo, a partir do próprio texto e do quadro histórico que o ilumina, é possível propor uma quarta sugestão distinta das três apresentadas. O sermão de Jesus, como vimos, trata de corrigir o comportamento ético-legalista e pró-forma de alguns segmentos ju-daicos de seu tempo, notadamente os escribas e fariseus.

Mediante os dados levantados nesta pesquisa, conclui-se em pri-meiro lugar que embora não se pos-sa excluir a possibilidade de um im-perativo nas palavras de Cristo em Mateus 5:48, reduz-se a idéia de se tratar de apenas de uma ordem dire-

ta. Uma promessa também jaz en-volvida no texto.

Pelo contexto imediato, perce-bemos que se trata de uma crítica de Cristo à interpretação rabínica da Lei – legalista e destituída de relaciona-mento humano – seguida de um apelo a que busquemos no exemplo do Pai a meta de comportamento que é supe-rior à dos líderes do judaísmo ou de qualquer outro seguimento humano. O amor é o padrão de cumprimento da Lei, sendo em torno do amor (e não da suposta impecabilidade farisaica) que gira a perfeição ensinada por Cristo. Afinal eram justamente os fariseus e escribas e fariseus – alvos da crítica de Cristo – que passavam uma imagem de impecáveis perante o povo.

Com relação ao significado bási-co de te,leioj na versão mateana, vi-mos que mais do que impecabilida-de, o sentido do termo grego envolve a idéia de maturidade, completeza e integralidade. Ademais, a raiz ~lv com seus conceitos de “paz” , “re-conciliador”, “pacificador” esclarece bem o sentido do termo nessa pas-sagem e preenche sua equivalência véterotestamentária, especialmente à luz do contexto imediato e da versão paralela de Lucas 6:36.

A citação de Jesus do texto leví-tico mostra o modo descontextuali-zado com que os escribas e fariseus aplicavam a passagem em seus dias. O mesmo se faz hoje caso aplique ao texto uma idéia de impecabilidade ou perfeccionismo soteriológico.

O sentido, portanto, de Mateus 5:48 não é apresentar um padrão ide-alístico para a salvação, muito menos

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Perfeição humana? uma análise lingüística de mateus 5:48 / 73

endossar qualquer entendimento per-feccionista da santificação. O intuito é mostrar como os discípulos do rei-no devem tratar os demais que, de um modo ou de outro, não fazem parte do seu círculo de relacionamento. Esse tratamento deve buscar a paz de Cristo

para com aqueles que ainda são espi-ritualmente forasteiros no Reino dos Céus, não para ajuntarem-se a eles, mas para levá-los a juntarem-se a nós. Um trabalho digno, que imita de ma-neira legítima os mesmos passos re-conciliadores do nosso Pai celestial.

referências

1 Herbert E. Douglass, Should We Ever Say ‘I am Saved’? What it Means to be Assu-red of Salvation (Nampa, Idaho: Pacific Press Publishing, 2003), 101 e 115.

2 As únicas variantes relevantes são aque-las apontadas pelo texto de Nestlé-Aland, a saber: os mss D K W D Q 565. 579 e a maioria absoluta de todos os mss (incluindo o texto koiné bizantino) trazem wsper ao in-vés de wj mas o sentido adverbial parece ser o mesmo de acordo com os léxicos. A outra variante vem por conta da expressão “vosso Pai celestial” (o` path.r u`mw/n o` ouvra,nioj) que nalguns textos ([D*] K L D Q 565. 579. 700 pm it; Tertuliano) aparece como “vosso Pai que está nos céus” (path.r u`mw/n o` en toij ouvra,noij).

3 Compare por exemplo a Versão Almei-da Revista e Atualizada que traduz no im-perativo com a versão da TEB que traduz no futuro.

4 Alexander B. Bruce opta pela forma futura (“vós sereis”), que para ele estabelece um contraste entre o aquilo que os publica-nos e gentios são (por estarem acomodados aos padrões normais de moralidade) e aquilo que os discípulos haverão de ser (se optarem pelo padrão de Cristo). Mas ele não entra no aspecto soteriológico da questão, nem define sua opinião sobre se tal promessa se cumpre na santificação ou na glorificação do crente (Alexander B. Bruce, “The Synoptic Gos-pels” in W. Robertson Nicoll, Expositor’s Greek Testament [Grand Rapids, MI: Eerd-mans, 1988], 1:115). John Nolland, por sua vez, prefere interpretar e;sesqe como sendo um futuro de características imperativas (“vo-cês deverão ser”). Para ele o vínculo natural

do verbo no verso 48 estaria com as antíteses que aparecem anteriormente na perícope (v. 43-48): “amarás ao teu próximo”, “odiarás o teu inimigo”. Embora elas estejam no futuro, são interpretadas como tendo força de impe-rativo. Mas isso não se dá por questões de sintaxe e sim por fluência textual, além, é cla-ro, de uma possível influência do hebraico, pois se trata de uma citação parcial do Anti-go Testamento (John Nolland, The Gospel of Matthew: A Commentary on the Greek Text [Grand Rapids, MI: Wm. B. Eerdmans Pu-blishing, 2005], 270, 27). Leon Morris segue o mesmo caminho, justificando a interpreta-ção imperativa do futuro e;sesqe nesse texto com base na construção do verso 21, onde o futuro negativo ouv foneu,seij (“não matarás”) tem claramente um sentido de ordem. Mas, conquanto o futuro do indicativo possa equi-valer às características de mandado e proibi-ções na linguagem legal do Antigo Testamen-to, esta não é uma prática relacional comum aos evangelhos (Leon Morris, The Gospel According to Matthew [Grand Rapids, MI: Wm. B. Eerdmans Publishing, 1992], 133).

5 F. Blass e A. Debrunner, A Greek Gram-mar of the New Testament (Chicago, Chicago University Press, 1961), 362. Veja também Daniel B. Wallace, Greek Grammar Beyond the Basics: An Exegetical Syntax of the New Testament (Grand Rapids, MI: Zondervan, 1995), 569.

6 Eduard Schweizer, Good News Accor-ding to Matthew, (London: SPCK, 1976), 135.

7 É interessante que Mateus 7:29 traz um detalhe nem sempre percebido pelas moder-nas traduções e que mostra a ruptura entre Jesus e o ensino dos escribas e fariseus. O

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grego traz um pronome possessivo que lite-ralmente chama os escribas de “escribas de-les” (kai. ouvc w`j oi` grammatei/j auvtw/n).

8 Glen H. Stassen, “The Fourteen Triads of the Sermon on the Mount (Matthew 5:21-7:12)” in Journal of Biblical Literature, 122/2 (2003), 267.

9 No tempo de Jesus a maioria das pesso-as tinham uma visão de Deuteronômio 24:1 baseada na interpretação da escola de Hillel, o Velho, segundo a qual um homem poderia se divorciar de uma mulher por qualquer ra-zão tola, até mesmo uma acidental queima do alimento. Apenas uma minoria seguia a opinião de Shammai, que só admitia o divór-cio em caso de adultério (Cf. Mishna Gittin, 9.10. Veja: T. Hieros. Gittin, fol. 49.4; Sota, fol. 16.2; Bemidbar Rabba, 9, fol. 195.2).

10 J. Schreiner; G. Dautzengerg, Forma e exigências do Novo Testamento, Nova Cole-ção Bíblica (São Paulo: Ed. Paulinas, 1977), 275; G. Börnkamm “Der Aufbau der Berg-predigt” New Testament Studies 24 (1978), 419-432.

11 Dale C. Allison Jr., “The Structure of the Sermon on the Mount” in Journal of Bi-blical Literature, 3 (setembro de 1987), 422 e 423. J. Smit Sibinga, “Exploring the Compo-sition of Matth. 5-7”, Filologia Neotestamen-taria 7(1994), 175-196.

12 Steve Carpenter, “The Structure and Message of the Sermon of the Mount” dis-ponível em http://wsminternational.com/pdf/Sermon%20on%20the%20Mount.pdf. Dale C. Allinson, propõe que o texto deveria começar no capítulo 4:23 devido à menção que o texto faz às numerosas multidões que seguiam a Cristo (comp. com 8:1). Cf. Dale C. Allison Jr., 429.

13 C. H. Dodd, Gospel and Law (Cambrid-ge: Cambridge University Press,1951), 42.

14 E. Morin, Jesus e as estruturas de seu tempo (São Paulo: Ed. Paulinas, 1981), 134-136.

15 E. Morin, 137. Os escribas tinham mais importância que os anciãos e que os próprios pais. Quando passavam pela rua eram ge-ralmente saudados de pé. No final do dia da expiação, a multidão que acompanhara o mo-vimento do sacerdote até entrar no santuário, voltava-se para seguir cerimoniosamente a

dois escribas que, na época de Jesus, repre-sentavam aqueles conheciam a “vontade de Deus”. O povo comum que não tinha aces-so ao escrito e conteúdo da lei, se limitava a estudar o seu comportamento e tê-los por padrão de conduta.

Além da função de modelos morais, aos escribas estava a incumbência de fazer não somente comentários como adições à lei, que serviam para atualizá-la e proteger o seu conteúdo. Por isso é perfeitamente pertinente aplicar a este grupo as palavras de Cristo em 5:21-48.

16 E. Morin, 136 e 137.17 Veja a versão inglesa do texto targú-

mico feita em 1862 por J. W. Etheridge em The Targums of Onkelos and Jonathan Ben Uzziel – On the Pentateuch With The Frag-ments of the Jerusalem Targum From the Chaldee. Disponível online em http://targum.info/?page_id=7.

18 Matthew Black, An Aramaic Approach to the Gospels and Acts (Oxford: Clarendon Press, 1946), 138.

19 H. H. Esser, “oivktirmo,j” in Lothar Co-enen, Colin Brown, O Novo Dicionário In-ternacional de Teologia do Novo Testamento (São Paulo: Ed. Vida Nova, 1989), 3:181.

20 Para exemplos de expressões rabíni-cas tardias que parecem incentivar o ódio aos gentios e israelitas dissidentes veja John Lightfoot, A Commentary on the New Testa-ment from the Talmud and Hebraica –Mat-thew – Mark (Grand Rapids, MI: Baker Book Houase, 1979), 2:133, 134. Alguns autores mais recentes pensam que se trata de uma adição encontradiça também nos Manuscri-tos do Mar Morto, mais especificamente na Regra da Comunidade 1 QS 1.9-11, 4. “To love all the sons of light, each according to his lot in God’s counsel, but to hate all the sons of darkness, each according to his guilt in provoking God’s vengeance! ... To hate all that He (God) has despised.”

21 Disponível em http://strongsnumbers.com/greek/5046.htm.

22 Gerhard Delling, “te,leioj” in Theo-logical Dictionary of the New Testament, Ed. G. Kittel, G. Friedrich (Grand Rapids, MI: Eerdmans, 1983), vol. 8, 74.

23 Delling, 72.

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Perfeição humana? uma análise lingüística de mateus 5:48 / 75

24 John B. Payne, “Tâman” in R. Laird Harris, Gleanson L. Archer Jr. e Bruce K. Waltke, Dicionário Internacional de Teolo-gia do Antigo Testamento ( São Paulo: Ed. Vida Nova, 1999), 1647.

25 G. Lloyd Carr, “~lv” in R. Laird Harris, Dicionário..., 1572-1575. Com exce-ção do Salmo 138(139):22 que traz o termo tyliäk.T; como correspondente de te,leioj, to-das as demais ocorrências usam o termo para corresponder às raízes ~lv e ~mT a proporção está em aproximadamente 50% das ocorrên-cias para cada caso. Edwin Hatch, Henry A. Redpath, A Concordance to The Septuagint (Grand Rapids, MI: Baker, 1987), 2:1342.

26 H. Hübner, 343.27 Idem.28 G. Loyd Carr, 1573.29 A paronomásia é uma figura de retórica

que consiste no emprego de vocábulos seme-lhantes quanto à sonoridade, mas que se dife-renciam no que diz respeito ao sentido, não vindo ao caso saber se há ou não parentesco etimológico entre as palavras. O termo ori-gina-se do grego paranomasía, em que para tem o sentido de “próximo de” e onomasía,

“denominação”. A paronomásia também é chamada de trocadilho, de calembur, de pa-rênquese ou de jogo de palavras. Demetrio Estébanez Calderón, Diccionario de términos literarios (Madrid: Alianza, 1996), 809-810.

30 Matthew Black, 138.31 Veja um resumo delas em Greg Her-

rick, “A Summary of Understanding the Sermon on the Mount” disponível em http://www.bible.org/page.php?page_id=2050.

32 Joachim Jeremias, The Sermon On The Mount. The Ethel M. Wood Lecture delivered before the University of London on 7 March 1961. London: The Athlone Press, 1961.dis-ponível em http://www.biblicalstudies.org.uk/pdf/sermon_jeremias.pdf.

33 Herbert E. Douglass, 101 e 115; de modo mais moderado temos também Doug Batchelor, Amazing Facts Insight Report (julho/agosto 2007), 14 disponível em http://www.amazingfacts.org/portals/0/PDFs/NukeNews/File2/July2007.pdf.

34 Albert Schweitzer, The Quest of the Historical Jesus: A Critical Study of Its Pro-gress, from Reimarus to Wrede, (Londres: A & C Black, 1954), 335 e 399.