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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO WILLIS SANTIAGO GUERRA FILHO O CONHECIMENTO IMAGINÁRIO DO DIREITO 1
343

Tese para IFCS

Jan 27, 2023

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Page 1: Tese para IFCS

UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO

WILLIS SANTIAGO GUERRA FILHO

O CONHECIMENTO IMAGINÁRIO DO DIREITO

1

Page 2: Tese para IFCS

RIO DE JANEIRO

2011Willis Santiago Guerra Filho

O CONHECIMENTO IMAGINÁRIO DO DIREITO

Tese apresentada ao Programa dePós- Graduação do Instituto de Filosofiae Ciên-cias Sociais da UniversidadeFederal do Rio de Janeiro, comorequisito parcial para obtenção do título deDoutor em

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Filosofia.

Orientador: Professor Doutor Aquiles Côrtes Guimarães

Rio de Janeiro

2011

Willis Santiago Guerra Filho

O CONHECIMENTO IMAGINÁRIO DO DIREITO

Tese apresentada ao Programa dePós- Graduação do Instituto de Filosofiae Ciên-cias Sociais da UniversidadeFederal do Rio de Janeiro, comorequisito parcial para obtenção do título deDoutor em Filosofia.

3

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________________________________________________________Prof. Dr. Aquiles Côrtes Guimarães – UFRJ (Orientador)

________________________________________________________Profa. Dra. Bethânia Assy – PUC-RJ

________________________________________________________Prof. Dr. André Ricardo Cruz Fontes – UNIRIO

________________________________________________________Prof. Dr. Fernando Rodrigues – UFRJ

________________________________________________________Prof. Dr. Rafael Haddock-Lobo – UFRJ

SUPLENTES

________________________________________________________Profa. Dra. Adriany Ferreira de Mendonça - UFRJ

________________________________________________________Prof. Dr. Antônio Cavalcanti Maia – UERJ

DEDICATÓRIA

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A primeira tese, em Direito, foi dedicada ao então filho

único, Karel Willis Rêgo Guerra, prestes a completar vinte e

seis anos, concluindo seu bacharelado, também em Direito.

Nesta segunda, em Filosofia, à dedicatória tenho a felicidade

de acrescentar os gêmeos Terso Willis Pinheiro Guerra e

Gabriel Willis Pinheiro Guerra, de quatorze anos, concluindo

o ensino básico, mais o temporão com nome de filósofo, Zeno

Willis Pinheiro Guerra, dois anos de idade. As Mães deles,

Flávia Alcântara de Figueiredo Rêgo e Ana Carla Pinheiro

Freitas merecem igualmente menção nesta dedicatória, por lhes

dever essas que são as maiores criações com que somos

brindados, bem como pela dedicação tanto a elas como a mim,

cada uma em sua época e a seu tempo. Da mesma forma, não

posso deixar de dedicar esse esforço acadêmico de maior

fôlego e realização pessoal de máxima importância à memória

de meus Pais e Mestres, não só desde a mais tenra idade, como

também durante os estudos universitários, enquanto viveram e

convivemos: Maria Magnólia Lima Guerra e Willis Santiago

Guerra.

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AGRADECIMENTOS

Os maiores agradecimentos devo ao meu orientador na

presente tese, Prof. Dr. Aquiles Côrtes Guimarães, amigo de

longa data, a quem conheci através do inolvidável jurista e

filósofo, o maior dentre os que foram ou tentaram ser a

ambos, simultaneamente, entre nós: Miguel Reale. Tendo

iniciado meu doutoramento em filosofia na FFLCH-USP, depois

migrado, por um breve período, para a Universidade de Halle,

Alemanha, e retornado ao País na Universidade Federal de São

Carlos, foi na sala do Seminário de Direito e Política no

IFCS, nas tardes de quarta-feira, em aulas conduzidas

magistralmente por este Aquiles da filosofia brasileira, que

encoontrei o alento e estímulos fundamentais para concluir o

trabalho que se segue. Agradecimentos também são devidos à

Sônia e à Dina, por todo o apoio que me foi prestado na

secretaria do Programa de Pó-Graduação em Filosofia, bem como

ao seu coordenador, Prof. Dr. Fernando Rodrigues, e não só

por suas enormes qualidades de administrador, mas sobretudo

por seus ainda maiores conhecimentos filosóficos, dos quais

me beneficiei bastante, em especial quando da qualificação do

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presente trabalho. Partes dele foram discutidas com aqueles

que me recepcionaram nas Universidades antes referidas, em

que também estive inscrito no doutoramento em filosofia, aos

quais gostaria de nomear aqui, também em tom de

agradecimento: Prof. Dr. José Carlos Estêvão (USP), Matthias

Kaufmann (Halle) e Bento Prado Jr. (UFScar). Dentre os

interlocutores que tive, em filosofia, um destaque especial é

devido àquele cujas aulas freqüentei desde a época de

graduação, na UFC, e depois também em memorável pós-graduação

lato sensu, quase integralmente ministrada por ele ao longo de

dois anos, aí vão já duas décadas: Prof. Dr. Manfredo Araújo

de Oliveira.

Um outro interlocutor, que me foi muito importante,

especialmente no que tange ao tema aqui desenvolvido, com

quem perdi a possibilidade de manter a interlocução, desde o

dia 12 de dezembro de 2010, em virtude de seu falecimento em

sua cidade natal, Buenos Aires, a quem desejo aqui recordar

com todo carinho, é o Prof. Dr. Dr.h.c. Luis Alberto Warat.

Dentre os amigos, para destacar alguns em cada uma das

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cidades em que mais passo meus dias, cujo convívio me

estimulam a prática da filosofia na vida, eu lembraria

Alexandre Sampaio e Antônio Maia, no Rio de Janeiro, Max

Rezende e Ricardo Sayeg, em São Paulo, e Carlos Emílio Corrêa

Lima, em Fortaleza. Também meu irmão caçula, José Lúcio Lima

Guerra, PhD, à distância, desde a Holanda, mantém comigo uma

correspondência cujos reflexos são perceptíveis para nós, no

trabalho aqui apresentado, especialmente no que tange à

ciência – ou filosofia, como ele prefere – natural. Nosso

irmão do meio, Prof. Dr. Marcelo Lima Guerra, com quem já não

consigo estabelecer uma tal interlocução, ao que me parece

devido, dentre outros fatores, à sua opção por um cultivo

exclusivo da tradição analítica em filosofia e a vinculação,

tanto acadêmica quanto profissional, à processualística

jurídica, assim também me dá o que pensar, donde merecer

igualmente meus agradecimentos.

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RESUMO

GUERRA FILHO, Willis Santiago. O Conhecimento Imaginário do

Direito. Rio de Janeiro, 2011. Tese (Doutorado em Filosofia).

Instituto de Filosofia e Ciências Sociais. Universidade

Federal do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro, 2011.

Na presente tese se sustenta o caráter imaginário do

conhecimento em geral, enfocando aquele produzido a respeito

do Direito, tido igualmente como imaginário, já por ser,

primordialmente, uma forma de conhecimento. Postula-se,

assim, a necessidade de superação do formalismo predominante,

na modernidade, tanto no pensamento como na prática do

Direito, ao promover uma crença, ameaçadora, na certeza e

objetividade decorrentes do estabelecimento de condutas de

maneira tida como satisfatória, através de sua formalização

por meio de normas e conceitos jurídicos.

Palavras-chave: Jusfilosofia. Fenomenologia. Epistemologia.

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Formalismo. Imaginário. Poética.

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ABSTRACT

In the following thesis we sustain the imaginary nature of

knowledge in general, stressing that produced about the Law,

which is also considered imaginary, since it is primarily a

kind of knowledge. Accordingly, we postulate the necessity to

overcome the formalism that prevails in modernity both in the

legal thought and practice, since it promotes the dangerous

belief in certainty and objectivity that would follow from

the establishment of behavior considered sufficient through

its formalization by means of legal norms and concepts.

Keywords: Legal Philosophy. Phenomenology. Epistemology.

Formalism. Imaginary. Poetics.

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Page 12: Tese para IFCS

SUMÁRIO

INTRODUÇÃO...................................................

.....................................................10

1. NATUREZA FICCIONAL DO

DIREITO......................................................

........13

2. O DIREITO COMO PARTE DO MUNDO FICCIONAL CRIADO PELO

DESEJO..................................................

..........................................................19

3. SOBRE A ORIGEM METAPSICOLÓGICA DA ORDEM

JURÍDICA.................28

4. CONTRIBUIÇÃO MEDIEVAL PARA ESTABELECER A ESTRUTURA MODERNA

DO PENSAMENTO FILOSÓFICO E

JURÍDICO ...............................45

5. O DIREITO POSTO (POSITIVO) POETICAMENTE CONCEBIDO COMO

DIREITO

POSSÍVEL.....................................................

.........................................88

6. CRÍTICA FENOMENOLÓGICA DO FORMALISMO

CIENTÍFICO....................97

12

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7. PROPOSTA DE REORDENAÇÃO DAS FORMAS DE CONHECIMENTO:

LEGITIMANDO AQUELAS DE NATUREZA POÉTICO-NORMATIVA OU

“ESCATOLÓGICAS”..............................................

.............................................105

8. INTERLÚDIO METAFÍSICO-TEOLÓGICO (COM UMA ALUSÃO À TEORIA

DE SISTEMAS SOCIAIS

AUTOPOIÉTICOS)...............................................

.............114

9. SOBRE A BUSCA DE UM MODO ATEORÉTICO DE PRODUZIR

CONHECIMENTO VÁLIDO (EM

FILOSOFIA)...................................................

..150

10. CONCLUSÕES

PRÉVIAS......................................................

........................178

11. VIDA CONTINGENTE, VIDA SEM TESTEMUNHO, VIDA SEM

SENTIDO..183

12. PADECENDO E TRANSFORMANDO A LEI NA VIDA E NO CORPO (COM

KAFKA).......................................................

.........................................................191

13

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CONCLUSÕES RESUMIDAS..............................................................................207

REFERÊNCIAS..................................................

..................................................213

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Introdução

A expressão “Conhecimento Imaginário do Direito”

apresenta uma postulação epistemológica e uma outra,

ontológica. A primeira, referente à natureza da teoria do

direito e, antes, à de toda teoria, aponta para o seu caráter

imaginário. A segunda, referente à natureza do próprio

direito, objeto de uma tal teoria, também aponta para o seu

caráter imaginário, enquanto forma de saber que também: o

saber sobre como devemos nos conduzir socialmente de maneira

aceitável.

No que tange à postulação epistemológica, ela se põe em

confronto com uma tradição racionalista, que tem na filosofia

cartesiana sua mais conhecida representante, a qual reverbera

até a contemporaneidade, por exemplo na concepção sartreana

sobre o imaginário, quando ele trata o produto da atividade

imaginativa, a imagem,1 como um símbolo deficiente,

1 Cf. J.-P. SARTRE, L’Imaginaire, Paris: Gallimard, 1940, pp. 148 e s.Bem diferente em relação ao tema da imagem e sua importância é apostura de autor anterior a Sartre, que em seu tempo teve a mesmaimportância que ele, no cenário filosófico francês – e, logo,também mundial. Estou a me referir a Henri Bergson, cujopensamento será retomado por aquele que sucederá Sartre, no centro

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Page 16: Tese para IFCS

ontologicamente esvaziado, a ser superado pelo conceito,

correlato da atividade racional (ou talvez melhor dizer

racionalizadora), o “pensamento retificado”, como bem o

denomina Gilbert Durand.2

Juntamente com este último, na esteira de outros,

anteriores, como Bachelard e Minkowski, vamos entender o

pensamento lógico-racional, do encadeamento linear, como um

caso particular e, enquanto particularização, também uma

limitação, da forma originária e fundamental de pensamento,

que é aquela por imagens, do imaginário. E entendemos que foi

o próprio avanço da investigação teórica, onde ela é mais

reconhecida como científica, ou seja, na matemática e na

ciência natural, sobretudo a física, que trouxe uma tal

compreensão, tornando a geometria euclidiana uma das

possibilidades de elaboração de uma axiomática rigorosa sobre

as propriedades do traçado de figuras em um plano que não

podemos esquecer ser imaginado, logo, imaginário, assim como

das atenções do grand monde filosófico: Gilles Deleuze. E entre osdois, bem como contra Sartre, avulta a obra de Maurice Merleau-Ponty.2 Las Estruturas Antropológicas del Imaginário, México (D.F.): Fondo deCultura Económica, 2004 [1992], p. 35.

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a lógica formal aristotélica, bivalente (que usa apenas os

valores da falsidade e verdade), também é uma dentre muitas

lógicas possíveis. O avanço da matemática, que é de se

considerar como o avanço da própria imaginação humana

criativa em um de seus setores, terminou impulsionando o

avanço da investigação da matéria e do espaço físicos,

permitindo que se forjasse a cosmologia relativística e a

microfísica quântica. Nesta última, por exemplo, já se sabe

que a idéia de “átomo” é uma abstração, não havendo esta

partícula última indivisível, um “ponto”, tal como concebido

na geometria euclidiana, tornada padrão de racionalidade pelo

cartesianismo da (primeira ou mais recuada) modernidade.

Imaginemos então que esse ponto na verdade é um círculo,

reduzido a proporções infinitesimais, e consideremos que uma

reta é formada por uma série de pontos, assim como em cada

ponto da reta se pode conceber o cruzamento com ela de uma

outra reta, sendo o que estabelece o sistema de coordenadas

cartesianas, mas cada ponto é, na verdade, o lugar de um

corte, que em matemática se denomina “corte de Dedekind”.3 A

3 Devo a referência ao “corte de Dedekind” a diálogo mantido comJosé Dantas (em 21.01.2010), que em manuscrito inédito sobre

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imagem que agora se tem desse sistema de coordenadas é

totalmente diferente, e ela expressa bem uma outra percepção

da realidade que a partir daí se pode obter, diversa daquela

linear, cartesiana, a qual se mostra como uma abstração

redutora diante dela. Retomaremos adiante estas colocações

(infra, n. 6).

Com relação à postulação ontológica, sobre o caráter

imaginário do próprio direito, enquanto objeto de estudos

teóricos, para entendê-la, basta que se atente para a

circunstância, antes referida, de que o direito é também uma

forma de conhecimento, sendo um modo como numa sociedade se

dá a conhecer aos seus membros o comportamento que é esperado

de cada um, pelos demais. Eis que, como era de se esperar, a

postulação epistemológica e aquela ontológica convergem,

mostrando-se como “os dois lados de uma mesma moeda”, “moeda”

esta que o jurista e filósofo Miguel Reale, por influência

(neo)kantiana, muito bem denominou “ontognosiologia”. O que

aqui se quer então destacar é o caráter fundamentalmente

matemática a ele se refere, em um outro contexto, i.e., para definirnúmero irracional, como “uma fenda existente em uma seqüência deracionais que o cercam sem nunca chegar lá”.

18

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“po(i)ético”, criativo, imaginativo de toda obra humana, aí

incluídos tanto o direito como o conhecimento que se produz,

seja a seu respeito, seja também de um modo geral, da

totalidade do que se conhece, enquanto dependente de alguma

forma de decodificação - ou signatura, para utilizar a

expressão alquímica de Paracelso, amplamente empregada por

Jacob Boehme, retomada de há pouco por Giorgio Agamben (na

obra cujo título é idêntico à de uma outra, de Boehme,

“Signatura rerum”, remontando, em grande parte, a Paracelso) -,

para ser por nós percebida significativamente, numa

articulação simbólica.

1. Natureza ficcional do direito

Partindo da consideração do Direito como uma criação

humana, coletiva, é que de último jusfilósofos dentre os mais

acatados, a exemplo de Ronald Dworkin, professor de filosofia

do direito em Oxford e em Nova Iorque, vêm propondo uma

compreensão do universo jurídico em aproximação com aquele da

ficção e, mais especificamente, da literatura. Outro teórico

19

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do direito contemporâneo, de expressão, que se pode referir,

em sintonia com uma tal concepção, é o também nova-iorquino

Richard Posner, que assim como a professora de filosofia do

direito em lugares como Harvard e Chicago, Martha Nusbaum,

encontra-se na origem do que veio a se chamar o movimento do

direito e literatura (Law & Literature Movimment). Contudo, não

se faz necessário recorrer ao pensamento anglo-saxão a fim de

encontrar apoio para quanto aqui se pretende sustentar a

respeito da natureza ficcional do Direito, pois em nossa

própria tradição, originária da matriz continental européia,

houve quem fizesse indicação nesse sentido, e com

precedência, sendo autor de obra que se tornou paradigmática,

a saber, Hans Kelsen. É certo que o pensamento kelseniano

oficial não costuma destacar esse aspecto da elaboração

teórica de seu autor referencial, posterior à segunda edição

da Teoria Pura do Direito (Reine Rechtslehre), em 1960, concebida

para se tornar canônica. Insiste-se, portanto, em referir à

norma que seria o próprio fundamento de validade e, logo, de

existência positiva do Direito, por isso mesmo dita norma

fundamental ou básica (Grundnorm), como sendo uma norma

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Page 21: Tese para IFCS

hipotética, quando o próprio Kelsen, comprometido ao máximo

como sempre esteve com a coerência do pensamento, percebeu

que não poderia entender como sendo uma hipótese uma norma

jurídica, pois hipóteses são assertivas feitas na forma de um

juízo lógico, que podem ser verdadeiras ou falsas, a depender

da correspondência de quanto ali se assevera com o que se

comprova empiricamente, experimentalmente. Ora, isso

significaria ultrapassar o limite entre o mundo do ser (Sein),

onde se situam os fatos reais (Tatsache), e aquele do dever

ser (Sollen), onde se encontram, como condições de toda

modalização deôntica em termos de proibição, obrigação,

permissão etc., os fatos possíveis (Sachverhalt) que forem

(juridicamente) selecionados para fornecer a base de uma

imputação do Direito, a chamada fattispecie, da doutrina

italiana, que corresponde ao “suporte fático” (Tatbestand), da

doutrina germânica. E tal limite, como é sabido, foi

rigidamente estabelecido como um pressuposto de toda a teoria

do direito kelseneana, a fim de evitar a chamada “falácia

naturalista”, denunciada já por David Hume e, na esteira

dele, por Immanuel Kant, principal referência filosófica para

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Page 22: Tese para IFCS

Kelsen. Essa falácia ou falso raciocínio ocorre quando se

pretende fazer uma dedução do que deve ser a partir do que é,

minando assim a autonomia da moral, do Direito, da estética e

de tudo quanto estabelece o ser humano como critério de

avaliação de sua conduta, por em assim procedendo fazer

depender de uma determinação prévia do que seja o bom, o

justo ou o belo a possibilidade de se estabelecer parâmetros

de julgamento do que quer que se venha a fazer com a intenção

de atingir tais ideais.

A qualificação de uma norma jurídica, portanto, não pode

ser a de que é verdadeira ou falsa, ou seja, a de que

corresponda ou não a fatos reais, do mundo do ser, daí

dependendo sua existência, mas sim a de que é válida ou

inválida, em se verificando sua correspondência com os fatos

de ocorrência possível, do mundo do dever ser, instituído

juridicamente. Na origem lógica – e não, propriamente,

histórica – do universo jurídico que temos posto, positivado,

diante de nós, Kelsen “pre(s)su-pôs” uma norma primeira,

esvaziada de conteúdo, uma forma pura, puramente jurídica,

como uma mera indicação da existência de um mundo de normas a

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Page 23: Tese para IFCS

ser entendido como Direito, juridicamente vinculante, mas sem

uma vontade que (im)pusesse uma tal norma, a tornasse posta,

positiva, e ela é que seria o fundamento de validade, a

justificativa (lógica) de existência, de todas as normas

efetivamente postas, positivas. Essa norma, na 2ª. ed. da

Teoria Pura do Direito é considerada, kantianamente, uma

condição transcendental de possibilidade do conhecimento

jurídico, ou seja, algo como as categorias de tempo e espaço,

enquanto necessárias para o conhecimento do mundo físico, mas

depois Kelsen se deu conta de que, justamente por ser uma

categoria, ou seja, literalmente, um “modo de falar” (do

grego kat’ gorein) – no caso, sobre o Direito -, não poderia ser

uma norma, jurídica, que na sua própria definição é o que

confere um sentido, jurídico-positivo, a um ato de vontade,

criando Direito a partir de Direito previamente estabelecido.

A norma fundamental cumpriria a função de evitar o regressum ad

infinitum, o círculo vicioso, do Direito que é criado a partir

do Direito, mas atribuindo-se a ela o caráter hipotético e a

natureza de uma categoria, ela restava descaracterizada como

norma, não podendo assim ser a primeira de uma série – é

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Page 24: Tese para IFCS

como, mal comparando, se considerasse que o primeiro dos

números da série de números naturais, o zero, não fosse um

número, fosse um “não-número”, por ser zero, o que restou

definitivamente superado pelas investigações de Frege sobre

os fundamentos da aritmética, que demonstraram como a

definição de todos os demais números da série dos cardeais

pressupunha a existência de um primeiro número “n”, diverso

do número 1 e diverso também de si mesmo, para validar a

fórmula definidora de todos os x-números dessa série

numérica. Ocorre que um tal objeto, contraditório (igual e

diverso de si mesmo), não-existente, mas dotado ainda assim

de existência, pois dele depende a existência, racionalmente

justificada, de outros, “normais” (ou, no caso dos números,

“naturais”), em matemática, já adquire o estatuto do que aqui

se entende como “imaginário”, remetendo-nos à transcendência

– só sobre a divindade é que se produziu, em outros

contextos, afirmações como esta, demarcando tão radical

diferença com o que habitualmente nos deparamos.

A solução encontrada por Kelsen, similar à que se

proporia em matemática, diante de um tal impasse, quando se

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Page 25: Tese para IFCS

criou os números imaginários – mas esse não é o momento de

adentrar em considerações desse gênero, de resto expendidas

em nossa “Teoria da Ciência Jurídica” e em outras

oportunidades -,4 foi a de considerar sua norma fundamental

como uma norma fictícia, norma em sentido figurado (fingierte),

um “como se”, no sentido da filosofia do “como se” de Hans

Vaihinger.5 O propósito maior da obra,6 como reconhece ao

final seu A. - em sua auto-proclamada teoria “idealístico(-

crítica)-positivista”, de matriz, a um só tempo, kantiana e

nietzscheana -, é diferenciar ficções de hipóteses, enquanto

4 Cf. WILLIS SANTIAGO GUERRA FILHO, Teoria da Ciência Jurídica, 2ª. ed.,São Paulo: Saraiva, 2009, p. 200, sobre os números imaginários, ea nota 348, p. 198, sobre o que se vem de referir a respeito dasinvestigações de Frege. v. tb. id., “Significado filosófico da matemática”,in: Revista Filosofia, n. 43, São Paulo: Escala, 2010.5 Cf. KELSEN, Teoria Geral das Normas, trad. JOSÉ FLORENTINO DUARTE,Porto Alegre: Fabris, 1986, p. 328 e seg.: "Em obras anterioresfalei de normas que não são o conteúdo significativo de um ato devontade. Em minha doutrina, a norma fundamental foi sempreconcebida como uma norma que não era entendida como o conteúdosignificativo de um ato de vontade, mas que estava pressuposta pornosso pensamento. Devo agora confessar que não posso continuarmantendo essa doutrina, que tenho de abandoná-la. Podem crer-me,não foi fácil renunciar a uma doutrina que defendi durantedécadas: a abandonei ao comprovar que uma norma (Sollen) deve ser ocorrelato de uma vontade (Wollen). Minha norma fundamental é umanorma fictícia, baseada em um ato de vontade fictício. Na normafundamental se concebe um ato de vontade fictício, que realmentenão existe".6 Cf. HANS VAIHINGER, Die Philosophie des Als-Ob, 1ª. ed. 1911, ed.popular (Volksausgabe), resumida, Leipzig: Felix Meiner, 1923.

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recursos heurísticos. No capítulo próprio, a respeito (Parte

I, Cap. XXI, p. 87 ss. da ed. cit.), as primeiras são

apresentadas como conscientemente inventadas, sem pretensão

de serem verdadeiras, no sentido de corresponderem à

realidade, tal como as hipóteses, que devem ser prováveis (e

comprováveis), enquanto as ficções, por seu turno, devem ser

úteis para fazer avançar o conhecimento, dando como

resolvidas questões que se apresentam como obstáculos para

este avanço. Daí que, ao final da obra, o A. apresente como

exemplo típico de ficção os dogmas da teologia – em passagem

que será lembrada por Freud, em sua apreciação psicanalítica

da religião,7 no texto “O Futuro de uma Ilusão” - , assim

como antes apontara o direito e a matemática como as

disciplinas que mais se valem do recurso para resolver seus

problemas, por meio de uma formalização que as tornaria muito

7 Cf. FREUD, Die Zukunft einer Illusion [1927], in: Id., Gesammelte Werke, vol.XIV, Fischer: Frankfurt am Main, 1999, p. 351. Também no textosobre a questão da análise leiga há referência de Freud aVaihinger, para rebater objeções ao uso metafórico que faz daexpressão “aparato”, de conotação mecanicista, maquínica, paratratar dos fenômenos psíquicos. Cf. Die Frage der Laienanalyse, ob. vol.cit., p. 221. A título de curiosidade, vale mencionar que aquestão, quando levada ao judiciário, contou com um decisivoparecer de Kelsen para evitar um desfecho desfavorável ao criadorda psicanálise.

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Page 27: Tese para IFCS

similares, estruturalmente - Vaihinger se refere a um

“parentesco fundamental (prinzipielle Verwandschaft)” -, na medida

em que abstraem especificidades dos objetos reais para

subsumi-los a proposições generalizantes (abstrakte

Verallgemeinerunge – id. ib., Cap. XI, p. 56 ss.), a fim de

equipará-los por analogia e realizar cadeias dedutivas (ib.,

Cap. V, p. 32 s.). Tratar uma assertiva como do domínio da

ficção, portanto, é vedar de antemão a sua possibilidade de

corresponder à realidade, enquanto a hipótese implica a

pretensão de, possivelmente, se confirmar.

Penso que essa reviravolta no pensamento de Kelsen a

respeito da Grundnorm requer que se reconsidere as críticas,

justas, que a ele se pode fazer de uma perspectiva

fenomenológica husserliana, a fim de desfazer a confusão que

nela se faz, em versões anteriores, e ainda canônicas, entre

a norma propriamente, enquanto manifestação do sentido de um

ato de vontade, e a proposição normativa, essa sim um juízo

hipotético, sem atentar para a prsença da consciência

normativa, capaz de conhecer valores, teoreticamente, com uma

pretensão de validade que independe daquela estatal. E sendo

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Page 28: Tese para IFCS

esta consciência normativa, como bem aponta Pedro M. S.

Alves, “originariamente constitutiva de formas inteiramente

novas de conexão intersubjetiva”, chegando mesmo a criar

“entidades antes inexistentes”, 8 é efetivamente no registro

da ficção que ela e a ordem que funda melhor podem ser

8 “Razão Prática. Reflexões husserlianas sobre o conceito de norma”, in: Fenomenologiae Direito. Cadernos da Escola da Magistratura Regional Federal da2ª. Região EMARF, vol. IV. n. 1, Abr./Set. 2011, p. 44. Em sentidoconvergente, tem-se que, conforme Aquiles Côrtes Guimarães,“jurídica é a norma que reveste os objetos e juridicidade é afonte da sua proveniência. Logo, tudo aquilo que classificamoscomo Direito tem origem na intencionalidade valorativa daconsciência transcendental ou pura, enquanto evidenciadora dosobjetos do mundo. Os objetos nos são dados pelos seus significadose sentidos, traduzidos em essências que constituem os modosuniversais de conhecê-los validamente”. “Para uma Teoria Fenomenológicado Direito – II”, in: Fenomenologia e Direito. Cadernos da Escola daMagistratura Regional Federal da 2ª. Região EMARF, vol. III, n. 2,Out. 2010/ Mar. 2011, pp. 33 – 34. E juridicidade, como bemesclarece o eminente Mestre brasileiro do pensamentojusfenomenológico, em texto ainda inédito, “não define apenas aconformidade com a lei mas, sobretudo, a referência ao justopossível” e, adiante, frisa que “a juridicidade, como valoruniversal e transcendental, é a referência da justiça comopossibilidade (...). “Para uma Teoria Fenomenológica do Direito – IV”, MS,2011, pp. 2 e 8, grifos do A. É a um tal “possibilismo” queassociamos o caráter imaginário do direito, como forma deconhecimento - v., esp., infra, cap. 5 -, postulando a necessidade decompreendê-lo melhor através de uma abordagem estética ou, comopreferimos, poética, no que entendemos ter apoio em Husserl,quando ele refere, por exemplo, o seguinte: “O interesse teoréticonão é o único e exclusivo a determinar valores. Interessespráticos num sentido mais vasto, i.e., éticos ou estéticos, podemligar-se a algo de individual e emprestar o mais alto valor à suadescrição singular”. EDMUND HUSSERL, Logische Untersuchungen, I,Husserliana, vol. XVIII, p. 238 e s.

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apreendidas.

2. O Direito como parte do mundo ficcional criado pelo desejo

O mundo da ficção é um mundo de possibilidades

reduzidas, onde não se pode saber sobre o que não nos é dado

a conhecer pelos responsáveis por sua criação. Existir como

uma ficção é existir menos do que o que existe realmente,

pois é nesta última forma de existência, e não naquela, em

que logicamente tudo pode acontecer,9 desde que não implique9 Aqui vale chamar a atenção para desenvolvimentos recentes emestudos de lógica, tal como apresentados na alentada (e inovadora)pesquisa de Alexandre Costa-Leite, combinando idéias que remontama Descartes e Hume com propostas em lógicas não-clássicas, comoaquelas da imaginação, de Vassiliev e a paraconsistente, de Newtonda Costa, somadas a contribuições mais recentes, das mais diversasproveniências, com destaque para a do finlandês Niiniluoto,evidenciando a não-trivialidade de se distinguir imaginação deconcepção, pois como bem assinalou o lógico russo apenasmencionado, pode-se conceber, conceitualmente, uma lógica de ndimensões, mas não se pode imaginá-la – a que ele propõe, assimcomo a paraconsistente, possui 3 dimensões. É que, como assumeCosta-Leite, tanto conceber como imaginar nos levam para o campodas possibilidades, sendo que no caso da imaginação mantemos aindao vínculo intuicionista com o realizado e o realizável. Cf.ALEXANDRE COSTA-LEITE, “Logical Properties of Imagination” in: Abstract -Linguagem, Mente & Ação. Revista Internacional Eletrônica deFilosofia, vol. VI, n. 1, 2010 (http://www.abstracta.pro.br). Deinteresse, tb., é a proposta, convergente, de Jean-Yves Beziau, dese distinguir entre dois eixos, o eixo da imaginação e o eixo daconceptualização, ou seja, da concepção conceitual, a fim dedemonstrar como, de um lado, a realidade é inimaginável, podendo

29

Page 30: Tese para IFCS

em contradição com o que já passou à existência, saindo do

estado de mera possibilidade para aquele de atualidade,

enquanto a coerência narrativa, a consistência entre o

ocorrido antes e depois - que segundo Dworkin é o que se deve

esperar encontrar e, logo, cobrar, no Direito -, seria a um

só tempo, mais vaga e mais constringente, para determinar o

que pode acontecer. Daí se poder falar, com o importante

fenomenólogo polonês Roman Ingarden, de uma “incompletude

ontológica” do universo ficcional, do qual só se pode saber o

que nos informa o seu “demiurgo”, que no caso da literatura

são os autores das obras ficcionais.10 Assim, os juízosser melhor entendida conceptualmente, através de teoria abstratas,enquanto que, de outro lado, o pensamento pode ser melhorarticulado usando um simbolismo imaginário, como nas artes, e nãosomente pelo formalismo cego, científico. Cf. JEAN-YVES BEZIAU, inId. (ed.), La pointure du Symbole, Paris: Petra, 2011, e, de um modogeral, para uma introdução, T.S. GENDLER/J. HAWTHORNE (eds.),Conceivability and Possibility, Oxford: Oxford University Press, 2002.

10 Cf. BARRY SMITH, “Meinong vs. Ingarden on the logic of fiction”, in:Philosophy and Phenomenological Research, 1978, p. 93 ss.,disponível em http://ontology.buffalo.edu/smith; Id. e JOSEFSEIFERT, “The truth about fiction”, in: Kunst und Ontologie. Für Roman Ingardenzum 100. Geburtstag, W. GALEWICZ et al. (Hrsg.), Amsterdam/Atlanta:Rodopi, 1994, p. 97 ss. Nem por isso, no entanto, perdem em valorheurístico as obras de ficção, como já observara com acuidadenosso Farias Brito, ao comentar em meados da segunda década doséculo passado as então recentes tentativas de desenvolver estudosde psicologia em laboratórios, com abordagem naturalista,referindo-se a ela como “uma psicologia morta; o que significa:

30

Page 31: Tese para IFCS

realizados no âmbito deste universo ficcional diferem

daqueles feitos a respeito da realidade propriamente dita, a

ponto de se poder denominá-los, como o fez Roman Ingarden,

“quasi-juízos”, inaptos a serem considerados “verdadeiros” ou

“falsos”, pois a “realidade” da ficção é uma simulação da

realidade, enquanto ficcional, mas o mesmo não se pode dizer

dos juízos em outros âmbitos, como em Direito, que se referem

a um possível “estado de coisas” (state of affairs, Sachverhalte).

Este não é de se considerar uma simulação da realidade, masuma psicologia que nos não instrui, nem edifica, que nada nos dizsobre a verdadeira significação da energia que reside em nós:dinâmica puramente exterior, inconsciente e fatal, que em vão seesforça por explicar o espírito em função da matéria, deixando-nossempre no vazio e no escuro. (...) Muito mais instrutiva é,decerto, a psicologia dos poetas e dos romancistas, que jogam, éverdade, com personagens fantásticas, mas inspirados na observaçãodos fatos e criados pela imaginação sob a pressão mesma da vida,senão reais, pelo menos possíveis, sendo de notar que é sempre daspróprias paixões, das próprias lutas e sofrimentos, dos própriossonhos e aspirações, que nos dá o artista, em seus personagens, adescrição viva e palpitante. (...) Há criações poéticas que sãoaltamente significativas e pode dizer-se que um Hamleto, um ReiLear, o Tartufo de Molière, o Fausto de Goethe, têm mais vida erealidade que muitas figuras históricas de valor aliás nãosecundário. É que essas criações, de si mesmas, são fenómenospsíquicos, manifestações profundas da alma mesma do homem: o queprova que a arte é, por si própria. um poderoso instrumento deanálise psicológica. E as suas criações se bem que sejam puramenteimaginárias, não se confundem com o nada”. R. de FARIAS BRITO,“Ensaio sobre os dados gerais da filosofia do espírito”, in: Mundo interior. Umaantologia, GINA MAGNAVITA GALEFFI (org.), Brasília: GRD-INL/MEC,1979, pp. 5 – 7.

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Page 32: Tese para IFCS

uma outra realidade, de uma outra natureza – deontológica, no

caso do Direito, do âmbito do dever ser, e não puramente

ontológica, do ser (ontos, em grego antigo) -, humanamente

construída, sim, tal como a ficção, mas de modo coletivo,

difuso, e dotada de um caráter vinculante, que a impõe a nós

COMO SE realidade fosse, na qual devemos acreditar – e não

apenas podemos, se quisermos, praticando a “suspenção do

descrédito (suspenction of disbelief)” a que se refere Wordsworth,

como condição de fruição da ficção -, e isso para evitar que,

em razão do descrédito, se venha a sofrer conseqüências, bem

reais, que decorrem da implementação das sanções jurídicas.

O direito, então, disponibiliza aos que a ele se

encontram sujeitos, e que em face dele se tornam sujeitos

passíveis da aquisição de direitos e obrigações correlatas,

meios de produzir uma história,11 vinculante para os que nela

tomarem parte, e vinculando-os a partir da obediência ao que

se encontre previamente estabelecido pelo Direito, enquanto

apto a desempenhar a função no enredo que nele pretendam os

envolvidos adotar, a fim de atingirem suas finalidades e

11 Nesse sentido, cf. JEROME BRUNER, La Fábrica de Historias. Derecho,literatura, vida, México: Fondo de Cultura Económica, 2003.

32

Page 33: Tese para IFCS

propósitos, com respaldo jurídico. Aqui é elucidativa a

analogia com o jogo, como o xadrez, com suas possibilidades

virtualmente infinitas de jogadas, a partir da estipulação de

como podem se mover no tabuleiro suas peças, sendo a

definição prévia do que pode fazer qual peça absolutamente

essencial para que se possa avaliar, ao longo de um jogo, se

ainda se continua jogando xadrez ou se, por atribuir, ainda

que seja a uma só peça, funções outras, imprevistas, não se

descaracterizaria, com ela, o próprio jogo, restando apenas a

aparência do jogo original, pela permanência de figuras que

não se pode mais considerar como, efetivamente, aquelas de um

verdadeiro jogo de xadrez, de acordo com suas definições

estipulatórias. Essa dependência do jogo em relação às suas

regras constitutivas foi mostrada em uma passagem bem

conhecida de suas “Investigações Filosóficas” por Ludwig

Wittgenstein, sendo transposta para a reflexão jusfilosófica

por um seu discípulo, Herbert Hart, ao considerar a norma

jurídica uma prática social, em tudo e por tudo similar

àquelas dos jogos. Aliás, o jogo pode ser considerado também

uma ficção, enquanto um combate fictício, engendrado para dar

33

Page 34: Tese para IFCS

vazão aos anseios lúdicos, agônicos, do ser humano, tão bem

estudados por Huizinga em seu clássico “Homo Ludens”. Entende-

se, assim, a proposta feita recentemente por Giorgio

Agamben,12 no sentido de que aos filósofos, como às crianças –

e, de nossa parte, acrescentaríamos os poetas, enquanto

psicanalistas como Winnicott e o próprio Freud aduziriam os

assim chamados e antes deles tão mal-compreendidos “loucos”13

-, caberia a descoberta de novas dimensões para os usos

comuns dos meios que se encontram a disposição para atingir

certos fins - jurídicos, econômicos, políticos etc. -,

tornando-os inúteis para tais finalidades, no mesmo gesto em

que os utilizam para outras finalidades, mais diretamente

prazerosas, como jogar.14

12 Cf. Profanazioni, Roma: Nottetempo, 2005, p. 87.13 No “Prefácio” que escreve para a obra Probleme der Religionspsychologie,de Th. Reik, Freud adverte que “doentes de um modo associal, porseu turno, fazem as mesmas tentativas de solucionar seus conflitose dificuldades com suas necessidades prementes que em outroscampos resultarão em poética, religião e filosofia, quando entãoelas são introduzidas por uns para a aceitação da maioria demaneira vinculante”. No orig.: “Kranke in asozialer Weise dochdieselben Versuche zur Lösung ihrer Konflikte und Beschwichtigungihrer drängenden Bedürfnisse unternehmen, die Dichtung, Religionund Philosophie heißen, wenn sie in einer für eine Mehrzahlverbindlichen Weise ausgeführt werden”. FREUD, Gesammelte Werke,cit., vol. XII (1917 – 1920), p. 325 s.14 O Brincar e a Realidade, trad.: JOSÉ OCTÁVIO DE AGUIAR ABREU et al., Riode Janeiro: Imago, 1975, esp. a “Teoria da Ilusão-Desilusão”, p.

34

Page 35: Tese para IFCS

O direito é, portanto, parte desse universo lúdico,

criação do desejo humano, um modo de imaginar o real em

descrições que façam sentido, como diria o antropólogo

Cliford Geertz.15 Ora, em um mundo concebido

(nietzscheanamente) como sonho (de deidades que são o aspecto

subjetivo do cosmo, entendido como uma diacosmese, uma

epifania dessas diversas divindades em que cada uma a seu

modo, de múltiplas formas, expressa o cosmo em sua

totalidade, como nos explica em sua “Mitologia” o grande sábio

luso-brasileiro Eudoro de Sousa) pode acontecer muito mais e

com maior facilidade do que na realidade fixada por nossos

hábitos, pois ele não só varia muito mais no tempo e no

espaço reais, como também dispõe de um tempo e espaço

próprios, a ponto de se poder vir a realizar uma cosmologia,

28 s. e a “Teoria da Brincadeira”, p. 70 ss., onde no contexto dadiscussão de sua mais notória contribuição à teoria psicanalítica,a saber, a noção de “objeto transicional”, avança a proposta deuma zona transicional, em que, literalmente, se misturam aimaginação onírica e a percepção da realidade, sendo onde radica acapacidade criativa humana, enquanto capacidade de brincar com oselementos que lhe fornece a realidade para assim fazer um mundo emque possa se sentir à vontade, por ser seu – aí está a fonte dasaúde psíquica, como também da diversas realizações humanas, desdea magia até a psicanálise, passando pelas artes, religiões eciências...15 Citado em WILLIS SANTIAGO GUERRA FILHO, Teoria da Ciência Jurídica, 2ª.ed., São Paulo: Saraiva, 2009, p. 238.

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Page 36: Tese para IFCS

filosófica, totalmente diversa daquela astronômica, que é

como se pode conceber, por exemplo, os esforços da

psicanálise.16 É certo que nisso a filosofia, assim como a

ficção e, com anterioridade, o mito, seja na magia, seja na

religião,17 demonstra-se “constituinte de mundo” (weltbildend),

mas se não é propriamente ficcional o modo de existência

originário do mundo, a ser captado pela filosofia, e vazado

nos moldes cunhados pelo Direito, qual seria o seu estatuto?

A proposta que aqui se avança é a de que ele é da ordem do

desejo, considerando-se a expressão como formulada utilizando

o genitivo em sentido subjectivus e também objectivus, ou seja,

como sendo o mundo ao mesmo tempo causa e efeito, ou função,

do desejo, do que é mais propriamente humano, e não da

vontade ou de necessidades, que geram interesses, como

defende o utilitarismo tecnicista hoje predominante.

Ao considerarmos o mundo, tal como o concebemos,16 Disso se mostram perfeitamente conscientes aqueles estudiosos depsicanálise da vertente londrina, kleiniana, na qual se destacamautores como Bion e Winnicott. No Brasil, cf., v.g., PAULO CESARSANDLER, A Apreensão da Realidade Psíquica. Vol. VII, Hegel e Klein: A tolerânciade paradoxos, Rio de Janeiro: Imago, 2003. 17 Esta é a posição de VICENTE FERREIRA DA SILVA, em “Para umaetnogonia filosófica”, in: Revista Brasileira de Filosofia, 1954. V. tb.id., Filosofia da Mitologia e da Religião, in: Obras Completas, vol. I., SãoPaulo: Instituto Brasileiro de Filosofia, 1964, p. 299 ss.

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Page 37: Tese para IFCS

representamos, imaginamos, como um produto do desejo,18 lhe

conferimos o mesmo estatuto dos sonhos, isto é, um caráter

onírico, imaginário. Tratar-se-ia, então, de algo como um

sonho coletivo, construído a partir do que já é dado como

sendo o mundo, a realidade, sim, mas sempre in fieri, nunca

devendo ser tido como já pronto e acabado, ou seja, objetivo,

pois além de depender de sujeitos, desejantes, que o tenha

posto, no passado, visando uma previsão e controle do futuro,

contingente, depende também de sujeitos que o “re-ponha”, no

presente, atualizando o que há de ser visto como

potencialidades, realizando possibilidades, a serem

reveladas, postas como verdadeiras, por um saber que seja

adequado.19

18 Vale lembrar que para o budismo o nosso mundo é um mundo dodesejo, sendo, enquanto tal o mais baixo dos três mundospostulados em sua cosmologia. Cf. HENRI MASPERO, Le Taoïsme et lesReligions chinoise, Paris: Gallimard, 1981, p. 52.19 Pode-se entender ter ido nesse sentido o esforço de Nietzsche emtextos justamente célebres como a “Segunda consideraçãointempestiva (da utilidade e da desvantagem da história para avida)”, de 1874, comentado em detalhe na literatura nacional, porMarco Antônio Casanova em O Instante Extraordinário: Vida, História e valor naObra de Friedrich Nietzsche, Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2003,esp. cap. 2, pp. 69 ss. Aqui cabe suscitar também a contribuiçãoque pode ser dada pela “poética dos sonhos (rêverie)” de Bachelard,para quem “Um mundo se forma em nossos sonhos, um mundo que énosso mundo. E esse mundo sonhado nos ensina possibilidades decrescimento de nosso ser nesse universo que é nosso”. La Poética de la

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Page 38: Tese para IFCS

Nesse contexto, é de um saber prático que se trata, mas

do tipo po(i)ético, “criador” de mundo, produtivo, ao invés

daquele seu outro tipo, o técnico, reprodutivo, “explorador”

de mundo. Aquele pode ser caracterizado como o que indica

como algo pode ser feito, uma vez que se decidiu fazê-lo,

estabelecendo uma verdade onde se faz uma questão. A

teologia, por exemplo, foi considerada um tal saber prático

já por John Duns Scot (1266 – 1308),20 mesma época em que os

Ensoñación, trad.: IDA VITALE, México: Fondo de Cultura Económica,1997, p. 20. Essa é também a poética modernista proposta para asartes, desde Baudelaire e, mais radicalmente, por Apollinaire -cf., v.g., SILVANA VIEIRA DA SILVA AMORIM, Guillaume Apollinaire: Fábula eLírica, São Paulo: UNESP, 2003 -, que se engaja na produção de ummundo que revele possibilidades desapercebidas do real. Bachelardserá reivindicado pelo “pai” do Surrealismo, André Breton, que seinsere nessa tradição modernista, como ele próprio reconhece – cf.ANDRÉ BRETON, Conversaciones (1913 – 1952), trad.: LETÍCIA PICCONE,México: F.C.E., 1987. E Gilbert Durand irá se colocar nessa linha,junto ao “surrealismo contemporâneo”, bem como dos “grandesromânticos alemães” (Novalis, Hölderlin etc.), pela superação doque Piaget denominou de “adultocentrismo”, para assim recuperar amatriz metafórica, imaginária, de onde emana todo a atividademental humana, inclusive aquela mais redutora, a que aquidenominamos racionalizadora, dita racional - cf. ob. cit., p. 35.Nesse aspecto, vale lembrar a elaboração convergente dapsicanálise kleiniana e de seus herdeiros intelectuais, da chamadaEscola de Londres – cf., a propósito, RONALD BRITTON, Crença eImaginação, trad.: LIANA PINTO CHAVES, Rio de Janeiro: Imago, 2003 –em relação à abordagem junguiana – cf.. MARIA HELENA LISBOA DACUNHA, Espaço real, espaço imaginário, 2ª. ed., Rio de Janeiro: Uapê,1998 -, não por acaso considerada por um dos maiores expoentesdessa Escola, D. W. Winnicot, como injustamente desprezada pelapsicanálise.20 Cf., v.g., o “Prólogo” da Ordinatio, quinta (e última) Parte.

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Glosadores da escola de Bolonha estarão abordando desta

maneira o Direito.21 Também como ele - e antes dele,

influenciando-o, Avicena ou Ibn Sînâ -,22 pode-se defender

que do Ser de Deus, o criador, ser-em-si, deve-se falar como

do ser dos entes, as criaturas, em um sentido unívoco e não,

por exemplo, como em Tomás de Aquino, em sentido análogo, tal

como demonstrou seu sucessor na cátedra dominicana de Paris,

o místico Mestre Eckhart, que também tanta influência teve em

Heidegger, com sua afirmação da absoluta diferença

(ontológica), estranheza,23 do Ser - logo, também de Deus,21 Nesse contexto, em trabalho de fundamental importância, Ernst H.Kantorowicz referira também aos artista, sobretudo poetas epintores – de resto, comumente equiparados, como em Dante,Purgatório, XI, 79 s. -, que na mesma época terão reconhecida, assimcomo teólogos e juristas, uma sua “soberania”, enquanto criadores,tendo como respaldo inicial a doutrina canonista de que o Papa,enquanto “vice (de) Deus”, tal como este último, dispunha do poderde criar do nada e da prerrogativa de mudar a natureza das coisas– no século XV uma tal soberania, sobretudo graças ao trabalho dodoutrinador francês Guy Pape, será transferida ao poder secular, asaber, ao imperador e aos reis. Cf. KANTOROWICZ, “L souveraineté del’artiste”, in: Id, Mourir pour la patrie, trad. L. MAYALI e A. SCHÜTZ, 2ª.ed., Paris: Fayard, 2004, p. 43 ss., 57, passim.22 Cf. MIGUEL ATTIÊ FILHO, Os Sentidos internos em Ibn Sînâ (Avicena), PortoAlegre: EDIPUCRS, 2000, p. 31.23 Daí não ser nenhuma surpresa a afinidade heideggeriana deestudiosos do gnosticismo, como Henry Courbin, o primeiro tradutorde Heidegger na França, seu aluno Hans Jonas e, mais recentemente,Peter Sloterdejk. Como para Heidegger, também para os gnósticoscristãos dos primeiros séculos, estando o homem “estranhado” desua origem divina em um corpo e um mundo criados pelo demiurgo,divindade inferior e invejosa do Deus verdadeiro e supremo – note-

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que é enquanto ser, e não enquanto ente, ainda que supremo, e

maximamente superior, donde podermos dizer que Ele, ao

contrário de nós, não ex(ks)iste,24 pois não “está (iste) fora

(ex ou εξ)” e, sim, além, do mundo e de toda conceitualização,

por ser transcendente:25 como já afirmavam os medievais, nase aí um outro traço heideggeriano, na concepção de umapluralidade de deidades -, não procede a definição corrente de quese trata de um animal, ainda que racional. Isso mesmo que emHeidegger, como em um seu coetâneo com tantas afinidades, como oespanhol injustamente menosprezado Ortega y Gasset, não se susciteuma origem divina do humano, nem tampouco meramente natural, dadaa distância do ser formador de mundo em relação ao que dele sãodesprovidos ou pobres – cf. MARTIN HEIDEGGER, Os Conceitos Fundamentaisda Metafísica: mundo, finitude, solidão, trad.: MARCO ANTÔNIO CASANOVA, Riode Janeiro: Forense Universitária, 2003, 2a. Parte, 2o. cap., §§43 ss., p. 204 ss.; ANTONIO REGALADO GARCÍA, El laberinto de la razón:Ortega y Heidegger, Madrid: Alianza, 1990, p. 288 ss. Sobre o papelna elaboração do pensamento heideggeriano da estranheza-familiar,o Unheimlich, o qual Heidegger encontraria antes em Hölderlin que emFreud, v. ainda ERNILDO STEIN, Introdução ao Pensamento de MartinHeidegger, Porto Alegre: Ithaca, 1966, p. 100 s.24 Cf. MARTIN HEIDEGGER, Metafísica de Aristóteles IX, 1-3, trad.: E. P.GIACHINI, São Paulo: Vozes, 2007, p. 52. 25 Para esse duplo sentido da palavra “transcendência” cf. JOSEPHCAMPBELL, Isto és tu. Redimensionando a metáfora religiosa, EUGENE KENNEDY(org.), trad.: EDSON BINI, São Paulo: Landy, 2002, p. 181 s. Enesse passo vale referir a concepção budista de nirvana enquantomodo de existência incondicionada, que nem é existência, nem é nãoexistência, sendo pela compreensão da primeira negação que seobtém conhecimento libertado da impermanência, pois ela é nãoexistência, enquanto a compreensão da segunda negação, negaçãodupla, dissipa a falsa idéia de extinção, uma vez que ela não é anão existência que parece ser, mas não é também. O acesso pelagratuidade da meditação ao estado de Buda, ainda que momentâneo,em que se atinge tal compreensão (ou tais compreensões), foipreconizado muito fortemente pos uma Escola que floresceu na Chinaentre os séculos VII e XII, dita Escola de Dhyâna ou, em chinês,chan, e em japonês, zen. Cf. HENRI MASPERO, ob. cit., p. 52 e s.

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esteira de Duns Scot, e esse com base em Avicena, n’Ele

coincidem a essência e a existência, ser e realidade,

enquanto nossa essência de entes humanos é a possibilidade -

de ser, e também de não ser.26

Adiante, teremos oportunidade de verificar o quanto

ainda podemos (e precisamos) aprender com as discussões

teológicas e metafísicas. Em seguida, porém, examinaremos

contribuição de disciplina mais recente, a psicanálise, que

pode ser visa como uma forma de dar aplicação a quanto antes

se especulou – e ainda se especula -, no campo imaginativo,

poético, seja nas artes, seja nas filosofia e religiões. E

isto para lidar, de maneira prática, clínica, com os

problemas que essa capacidade mesma de fabular, delirar

mundos – e, dentre eles, o chamado ou considerado,

estabelecido, como real -, cria para os seres humanos:

26 Daqui se origina a idéia de uma renovação da filosofia a partirda investigação do que somos na situação concreta, fática, davida, proposta por Heidegger - no que se pode denominar, antes queuma “fenomenologia da liberdade” (Günter Figal) ou, com maisprecisão, uma “fenomenologia da(s) possibilidade(s existenciais)”,pois para Heidegger, “acima da realidade está a possibilidade”. M.HEIDEGGER, Meu Caminho para a Fenomenologia, in: col. Os Pensadores,trad.: ERNILDO STEIN, São Paulo: Abril Cultural, 1979, p. 302;id. Sein und Zeit, Frankfurt am Main: Vittorio Klostermann, vv. eds.,p. 52.

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Page 42: Tese para IFCS

sobretudo quando, na modernidade, desaparece o referencial

significativo, isto é, atribuidor de significado, no espaço

público, que são as religiões, substituídas por ideologias,

simulacros daquela que seria a “portadora da verdade”, e que

não se ocupa de questões relativas ao sentido da vida humana.

3. Sobre a origem metapsicológica da ordem jurídica

Ao comparar manifestações mais tradicionais de ordens

simbólicas e normativas, como a religião, a ética e o direito

– estudadas, respectivamente, pela(s) teologia(s),

filosofia(s) e ciência(s) do direito, outras tantas ordens

simbólicas de “segundo grau”, “metalinguagens”, como diriam

neopositivistas e semiólogos -, com a psicanálise, ressaltam

os contrastes. Por exemplo, entre a miríade de regras que

constituem os primeiros, e aquela uma só regra que constitui

a última: a da associação livre, para revelar-nos os desejos,

sempre pessoais.

À piscanálise deve-se a “descoberta” de uma vinculação

de sentimentos morais e religiosos à figura do pai, como sua

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raiz mais profunda; as expressões artísticas – literatura,

pintura, etc. - mostram, na verdade, a vinculação delas ao

“inconsciente incompreensível”, permitindo a “construção de

uma ponte” entre o mito e a realidade: o complexo de Édipo. O

complexo de Édipo é o “correlativo psíquico de dois fatos

biológicos fundamentais: o longo período de dependência da

criança humana e a maneira notável pela qual sua vida sexual

atinge um primeiro clímax do terceiro ao quinto ano de vida,

e depois, passado um período de inibição, reinicia-se na

puberdade. E aqui se fez a descoberta de que uma terceira

parte extremamente séria da atividade intelectual humana, a

parte criadora das grandes instituições da religião, do

direito, da ética e de todas as formas de vida cívica, tem

como seu objetivo fundamental capacitar o indivíduo a dominar

seu complexo de Édipo e desviar-lhe a libido de suas ligações

infantis para as ligações sociais que são enfim desejadas.”27

A psicanálise, portanto, não se prestaria a fundamentar

um discurso que tenha por objeto algo da ordem do coletivo.

27 Cf. S. FREUD, Uma Breve descrição da Psicanálise, O. C., vol. XIII, p.258.

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Vale esclarecer que aqui seguimos a Freud e Lacan,28 quando

insistem em tratar do coletivo não como uma entidade com "id-

entidade" própria, mas sim, como projeção do individual. G.

Pommier ressalta que "embora não exista inconsciente

coletivo, existem ficções coletivas, que retiram sua força do

inconsciente de cada um".29 Por outro lado, é bom lembramos

que, se o inconsciente não é coletivo, tampouco é individual,

mas sim "transindividual", enquanto constituído por um Outro,

efeito sobre o sujeito de uma ordem simbólica, que o antecede

e transcende,30 por estar no começo, tanto da espécie

(filogênese), como de cada indivíduo (ontogênese). Inclusive,

como destaca Enrique Mari,31 Freud enfatizou isso tendo em

vista uma leitura de sua obra "Psicologia das Massas e

Análise do Eu" (v. esp. cap. X),32 naquele primeiro sentido,

28 Escritos, trad. INÊS OSEKI-DEPRÉ, São Paulo: Perspectiva, 1978, p.86, nota 6.29 "Existiria um sentido psicanalítico da 'História'?", in: Palavração. Revista dePsicanálise, n. 2. Curitiba: Biblioteca Freudiana de Curitiba,1992.30 Cf., v.g., J. BIRMAN, Psicanálise, Ciência e Cultura, Rio de Janeiro:Zahar, 1994, p. 63, 166/167.31 "Una lectura freudiana de Hans Kelsen", in: Id. et al., Materiales para unaTeoria Critica del Derecho, Buenos Aires: Abeledo Perrot, 1991, p. 22.32 Massenpsychologie und Ich-Analyse [1921], in: SIG. FREUD, GesammelteWerke, cit., vol. XIII, p. 94, nota 2.

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Page 45: Tese para IFCS

feita por Hans Kelsen,33 quando no final de seu longo percurso

teórico irá concluir, como vimos, que o fundamento no qual o

direito se assenta é uma norma fictícia - sendo ele,

portanto, assim como a religião, a moral e, porque não dizer,

a própria psicanálise, grandes ficções que construímos

individual e coletivamente para tornar possível nossas vidas

em comum, o que termina sendo enormemente favorecido se nos

damos conta desse seu caráter fictício, simbólico,

convencional: se não esquecermos que estamos para efeitos

práticos assumindo como verdadeiro o que não é (ou não se

sabe se é). Desenvolver racional e conscientemente uma ilusão

não é melhor do que se iludir com a racionalidade e a

consciência? A falsa segurança da certeza é a maior ameaça

com que nos defrontamos.34

De forma convincente, a partir de uma série de estudo

dedicados ao assunto, Joel Birman sustenta que o intento de

Freud, de fundar em bases científicas a psicanálise, teria

33 Dio e lo Stato, Nápoles: Edizioni Scientifiche Italiani, 1988, p. 139ss.34 Nesse sentido, CLÉMENT ROSSET, O real e seu duplo: ensaio sobre a ilusão,trad. JOSÉ THOMAS BRUM, Porto Alegre: L&PM, 1988.

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esbarrado em obstáculos epistemológicos intransponíveis,35 os

quais, no entanto, serão superados, por meio daquilo que o

próprio Freud denominará sua "metapsicologia" - a ela, em

estudo célebre de 1937, sobre o fim da análise, se referirá

como a "feitiçaria" que usou, para atravessar aqueles

obstáculos. Já em seu estudo "Uma neurose diabólica do século

XVII", de 1923, Freud demonstrará seu respeito pelo enfoque

demonológico da loucura, superior ao da ciência oficial de

35 Cf. "Indeterminismo e incerteza do sujeito na ética da psicanálise", in: Ética,Psicanálise e sua Transmissão, MARIA INÊS FRANÇA [org.], Petrópolis:Vozes, 1996, p. 53 ss., passim. Estudos recentes, como o de ALFREDI. TAUBER, “Freud’s philosophical path. From a science of mind to a philosophy ofhuman being”, in: The Scandinavian Psychoanalytic Review, n. 32, 2009, p. 32ss., demonstram de maneira convincente que essa vertente dopensamento freudiano, de crítica cultural e investigaçãohumanística, representa uma retomada de suas preocupaçõesfilosóficas, de inspiração brentaniana, pois ao lado do curso demedicina, na Universidade de Viena, acompanhou as aulas deBrentano na década de 1870, na mesma época que E. Husserl,igualmente influenciado por Brentano em sua virada para afilosofia, profundando seus estudos de matemática e física,conforme relato de sua esposa – cf. KARL SCHUHMANN, “Malvine Husserls‘Skizze eines Lebensbildes von E. Husserl’”, in: Husserl Studies vol. V, n. 2, 1988,p. 105 ss., e, sobre a influência de Brentano em ambos, sobretudopelo conceito de intencionalidade, retomado dos medievais, paraque se possa conceber o essencial da realidade psíquica como sendoo sentido, histórica e dinamicamente definido, cf. PAUL RICOEUR,Freud and philosophy, New Haven, CT: Yale University Press, 1970, p.379; ANDRÉ RICARDO CRUZ FONTES, A idéia de objeto em Husserl e Meinongconsiderada a partir da filosofia de Franz Brentano, Tese, IFCS-UFRJ: Rio deJaneiro, 2007, p. 41.

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Page 47: Tese para IFCS

então, assim como na segunda série de palestras introdutórias

à psicanálise, de 1933 - que, como é sabido, jamais vieram a

ser pronunciadas, devido à saúde de seu autor -, naquela que

teria sido a 30ª palestra (a segunda da nova série), ele fará

em relação às práticas ocultistas, especialmente a telepatia,

considerando possível que o futuro avanço da ciência a

revelasse plausível, enquanto, por hipótese, um resquício de

quando nossos antepassados se entenderam sem possuírem a

linguagem para se comunicarem. Ao que parece, portanto, Freud

teria chegado a conclusão semelhante àquela de Lévi-Strauss,

quando o antropólogo afirmou não poder diferenciar o estudo

dos mitos feito por ele desses mitos mesmos...

Certa feita disse Jacques Lacan, em um de seus

Seminários,36 "o que vem lá do começo tem um nome: é o mito".

Myeîn, em grego antigo, significava iniciar – e também calar,

sobre o que se transmitia na iniciação. No mito, então,

mascara-se a verdade. Mas ela está lá, só que mascarada,

enfeitada. Talvez isso seja preciso por não ser tão bela e

agradável olhar para ela; por não suportarmos vê-la

36 Cf. O Avesso da Psicanálise, trad. ARI ROITMAN, Rio de Janeiro: Zahar,1992, p. 102.

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diretamente, sem anteparos, assim como não suportamos olhar

de frente, por muito tempo, o sol - ou a morte. Como

Nietzsche, que em sua obra "O Nascimento da Tragédia no

Espírito da Música" (1872) atribui à extrema sensibilidade do

grego antigo para a dolorosa verdade da existência que pode

se acabar violenta e abruptamente sua capacidade a criação

das Tragédias, podemos ver aí a fonte de sua rica mitologia,

bem como, posteriormente, da transformação de ambas em

filosofia, mãe de toda ciência.

Então, no mito, a verdade é dita, mas não toda a

verdade: uma verdade pela metade, isto é, em símbolos. O mito

é da ordem do simbólico.

Aqui, vale observar que não há uma só explicação para a

origem etimológica da palavra "símbolo" - como, aliás, ocorre

com freqüência, em etimologia -, mas penso que aí, mesmo

quando fantasiosa uma explicação dada, ela não perde seu

valor como expressão do imaginário - e a explicação real, do

real, de qualquer forma, é impossível de ser dada, pois ele

se define - em Lacan -, precisamente, como o que nos escapa.

Para nós, nesse contexto, mito é uma fantasia estruturante do

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sujeito, uma verdade, que, como toda verdade, "tem uma

estrutura de ficção",37 e "só pode ser concebida se enunciada

em um semi-dizer".38

Lembremos, portanto, nessa perspectiva, do mito

concebido por Freud, para figurar o surgimento da religião e

de tudo o mais que é da ordem da cultura, do propriamente

humano, do simbólico. Na origem disso tudo - onde se inclui,

é claro, o próprio Direito - estaria um crime, o primeiro, o

assassinato de um pai, que só depois de assassinado os

assassinos o perceberiam como pai, e a eles, os assassinos,

como filhos. Esse pai teria sido morto por não partilhar nem

limitar o seu gozo, pois só ele detinha, usava, fruía e ab-

usava das mulheres da chamada "horda primitiva", em que

viviam agrupados. Há, portanto, nesse assassinato, uma

conotação de reivindicação de direitos, de tiranicídio, o que

seria justificável, e de fato o foi, dadas certas37 LACAN, A Ética da Psicanálise, trad. A. QUINET, 2a. ed., Rio deJaneiro: Zahar, 1991, p. 22. Aqui pode-se considerar haver umaalusão ao dito dos juristas-teólogos medievais, "fictio figura veritatis".Cf. Ernst H. Kantorowicz, Os Dois Corpos do Rei. Um Estudo sobre TeologiaPolítica Medieval, trad.: CID KNIPEL MOREIRA, São Paulo: Companhia dasLetras, 1999, pp. 181 ss., passim; tb. PIERRE LEGENDRE, Leçons II:L’Empire de la Véritè. Introduction aux espaces dogmatiques industriels, Paris:Fayard, 1983, p. 109.38 Id., O Avesso da Psicanálise, cit., p. 97.

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Page 50: Tese para IFCS

circunstâncias, até por padres da Igreja Católica, teólogos-

juristas medievais, regicidas. Só que o tirano, depois,

revelou-se como pai.

Na situação que podemos imaginar como sendo aquela dos

"filhos" nessa horda primitiva, eles, à medida que cresciam,

eram expulsos pelo "pai", para que conseguissem por seus

próprios meios o sustento e as suas mulheres. Ora, essas

criaturas - de acordo com a explicação dada em teoria recente

sobre o surgimento do humano, devida ao biólogo chileno de

renome internacional, Humberto Maturana -, se eram seres

"proto-humanos", então já conheciam o amor e eram

cooperativos numa escala jamais atingida por seus "primos"

não-humanos, os chimpanzés, que por serem tão agressivos não

evoluíram no sentido de uma hominização. A meu ver, isso

torna ainda mais consistente o mito-fundador da sociabilidade

humana, concebido por Freud, mito em que encontramos, como

veremos em seguida, as características próprias da tragédia,

o seu telos, tal como se acha definido por Aristóteles, nos

capítulos sexto e décimo terceiro de seu tratado sobre a

poética: provocar piedade e temor (diante da divindade).

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Page 51: Tese para IFCS

Retomando a narrativa do mito freudiano, tem-se que,

após o assassinato do Pai-Deus seu corpo teria sido

partilhado por todos, havendo neste ato de "comer juntos", de

comunhão, mais do que um sentido de incorporação do poder e

de recolhimento em si do morto, a finalidade de instituição

da comunidade, da "comum-unidade". Daí que os filhos expulsos

ficavam inconformados com a perda do convívio na horda, onde

aprenderam as vantagens da cooperação, para atingir o que

sozinhos não conseguiriam, donde ter-lhes ocorrido a idéia

que os levou a pactuar, tacitamente, o assassinato de quem os

expulsou, e que morto, ausente, se revelará como o pai.39 Eis

39 De se notar, ainda, é a alusão de Freud ao banquete no qual osfilhos comem a carne do pai morto, uma festa de naturezasacrificial, que René Girard, em A Violência e o Sagrado, 3ª. ed., SãoPaulo: Paz e Terra, 2008, irá situar na origem da religião e detoda sociedade - esta pressupondo a primeira -, enquanto excessopermitido e violação ritualizada de proibições, exceções quegarantem a persistência das regras e da ordem social. Para ele, "aprópria violência vai deixá-las de lado, assim que o objetoinicialmente visado sair de seu alcance e continuar a provocá-la.A violência não saciada procura e sempre acaba por encontrar umavítima alternativa" (p. 14) ... "Só é possível ludibriar aviolência fornecendo-lhe uma válvula de escape, algo para devorar(p. 17) ... "A substituição sacrificial pressupõe um certodesconhecimento. Enquanto permanece vivo, o sacrifício não podetornar explícito o deslocamento no qual se baseia. Mas ele tambémnão pode esquecer completamente nem o objeto inicial, nem odeslizamento realizado deste objeto para a vítima realmenteimolada" (p. 18)..."O sacrifício polariza sobre a vítima os germesde desavença espalhados por toda parte, dissipando-os ao propor-

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Page 52: Tese para IFCS

que, porém, esse primeiro contrato, um pacto de sangue, o

verdadeiro "contrato social", não resultará muito benéfico

para as partes contratantes, pois eles terminaram ficando, de

qualquer modo, sem aquele que os protegia e alimentava. Além

disso, ao invés da aprovação, devem ter despertado alhes uma saciação parcial" (p.21)... "O princípio da substituiçãosacrificial baseia-se na semelhança entre as vítimas atuais e asvítimas potenciais, e essa condição pode ser perfeitamentepreenchida, quando, nos dois casos, trata-se de seres humanos. Ofato de que algumas sociedades tenham sistematizado a imolação decertas categorias de seres humanos com o objetivo de proteger asoutras categorias não tem nada de supreendente" (p. 25)... "Odesejo de violência é dirigido aos próximos; mas como ele nãopoderia ser saciado às suas custas sem causar inúmeros conflitos,é necessário desviá-lo para a a vítima sacrificial, a única podeser abatida sem perigo, pois ninguém irá desposar sua causa" (...)Os homens obtém tanto mais êxito na eliminação da violência quantomais este processo de eliminação não for reconhecido como seu, massim como um imperativo absoluto, como a ordem de um deus cujasexigências são tão terríveis quanto minuciosas. O pensamentomoderno, ao expulsar completamente o sacríficio para fora do real,continua a ignorar sua violência"( p.27)..."A vingança constituiportanto um processo infinito, interminável. Quando a violênciasurge em um ponto qualquer da comunidade, tende a se alastrar e aganhar a totalidade do corpo social, ameaçando desencadear umaverdadeira reação em cadeia, com consequencias rapidamente fataisem sua sociedade de dimensões reduzidas. A multiplicação dasrepresálias coloca em jogo a própria existência da sociedade. Poreste motivo, onde quer que se encontre, a vingança é estritamenteproibida" (p.28)... "O sacrifício oferece ao apetite deviolência , que a vontade ascética não consegue saciar, um alíviosem dúvida momentâneo, mas indefinidamente renovável, cujaeficácia é tão sobejamente reconhecida que não podemos deixar delevá-la em conta. O sacrifício impede o desenvolvimento dosgermens de violência, auxiliando os homens no controle davingança" (...) A hipótese que levantamos confirma-se: é associedades desprovidas de sistema judiciário, e por isso mesmoameaçadas pela vingança que o sacrifício e rito em geral devem

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Page 53: Tese para IFCS

indignação de suas "mães", que aí também ficaram sem essa

proteção e, de resto, sem um "homem de verdade", donde terem

instaurado o matriarcado, em que o gozo do direito às

mulheres e a tudo o mais foi organizado pelas mulheres,

reforçando aquela Lei que Lévi-Strauss considera a lei

fundadora da sociedade, lei ao mesmo tempo natural e social,

a primeira: a lei que proíbe o incesto com a mãe.40

desempenhar um papel essencial. Mas é incorreto afirmar que osacrifício substitui o sistema judiciário. Em primeiro lugar,porque é impossível substituir algo que com certeza nunca existiu,e em seguida porque, na ausência de uma renúncia voluntária eunânime a qualquer violência, o sistema judiciário éinsubstituível em seu domínio" (p.32). Em suma, por essa hipóteseos hominídeos foram primatas que aprenderam a instrumentalizar aviolência mimética, a de um ser desejante sem objeto definido paradirigir esse desejo, que resulta em desejo do desejo de outrem(mimese), inicialmente admirado, depois odiado e, quando morto,novamente lembrado com admiração, aponta para uma origem comum: adescoberta do mecanismo do bode expiatório, mediante o qual aviolência, tornada coletiva, é canalizada contra uma vítimaexpiatória, protótipo dos heróis e divindades, pois na mesmamedida em que será odiada, por concentrar a inveja de todos,também será, depois de assassinada, amada, idolatrada, quandoreconhecida a sua inocência e a correspondente falta de seusalgozes.

40 Cf. Les structures élémentaires de la parenté, Paris: P.U.F., 1949, p. 38ss., passim. A propósito, há o conhecido texto de Lacan sobre afamília, publicado em 1938 na "Encyclopédie française", tomo VIII,onde ao tratar do complexo de édipo, refere o "apoio sociológico"que as teses de Freud sobre as fantasias do inconscientereceberiam dos estudos enfeixados por Frazer em sua célebre obra"The Golden Bough", onde se reconhece no tabu da mãe a "leiprimordial da humanidade". Em sua investigação não menos célebresobre as estruturas elementares do parentesco, Claude Lévi-Strauss

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Page 54: Tese para IFCS

Na situação em que se encontraram nossos antepassados

parricidas, é fácil imaginar que tenham experimentado os

sentimentos que, na Grécia Clássica, foram considerados o

instrumento de purgação e apaziguamento, pela catarse

provocada com a encenação das tragédias, de semelhantes

paixões: temor - "prius in terram deus facit terror" - e piedade

(inclusive, auto-piedade). Assim é que, como para

complementar o mito do assassinato do pai primevo, no dizer

de Lacan, "talvez o único mito de que a época moderna tenha

sido capaz (...), mito de um tempo para o qual Deus está

morto",41 a outra grande invenção de Freud, para estabelecer o

estatuto da fantasia inconsciente que nos constitui,

inspirou-se na tragédia de Sófocles, "Édipo-Rei", apontada

sustenta ter a proibição do incesto sua origem na natureza, emboraseja consagrada em uma regra, emanada do ambiente sócio-cultural,e que seria a primeira norma jurídica. Aqui, também, não se podedeixar de recordar o Mutterrecht de Bachofen, que tanta influênciateve em autores como Nietzsche e nosso Oswald de Andrade, sendoum, filosófo literato e o outro, literato filósofo,respectivamente.41 LACAN, A Ética da Psicanálise, cit., 1991, p. 216 e s. O mesmo foi ditopor ele no Seminário "O Desejo e a sua Interpretação", na últimadas sete lições sobre Hamlet, em 29 de abril de 1959,acrescentando: "Este mito indica-nos uma ligação essencial - aordem da lei apenas pode ser concebida na base de algo maisprimordial, um crime. É também o sentido freudiano do mito deÉdipo". J. LACAN, Shakespeare, Duras, Wedekind, Joyce, J. MARTINHO(org.), Lisboa: Assírio & Alvim, 1989, p. 104.

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por Aristóteles, no capítulo décimo quarto de sua já citada

obra, como exemplar para nos dar o prazer próprio da

tragédia: nos fazer "tremer de temor" e apiedarmo-nos,

temendo aos deuses.42 Ali, também um filho assassina,

inconscientemente, o pai, que o expulsara do convívio

familiar. Só que Édipo, ao contrário dos filhos da horda

primitiva, vai realmente possuir sua mãe, ainda que sem o

saber (inconscientemente), ou seja, da eliminação do pai não

vai decorrer, como para aqueles "filhos primevos", a

abstinência, mas sim, o oposto, a realização do ato sexual

com a mãe, acompanhado de um gozo letal.43 Em ambas as

hipóteses, contudo, o resultado da transgressão, quando dela

se toma consciência, é o reforço da interdição, com a

invocação do pai morto e de sua Lei. A interdição, portanto,

revela-se como condição do desejo e do gozo, ao acenar para a

sua possibilidade, anunciada no além dela, isto é, na sua

42 Para J. Hillman (em Id./K. KERÉNYI, Variazioni su Edipo, Milão:Raffaello Cortina, 1992, p. 113), "a análise é edípica no método:a pesquisa como interrogação, a consciência como olhar, o diálogopara descobrir, a descoberta de si através da rememoração dosprimeiros anos de vida, a leitura oracular dos sonhos...".43 Cf., nesse sentido, RICARDO GOLDENBERG, Ensaio sobre a moral de Freud,Salvador: Ágalma, 1994, p. 30.

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Page 56: Tese para IFCS

trans-gressão.

Há, então, para a psicanálise, um pai-morto na origem da

sociedade, da religião, da ética e do direito, assim como na

origem da própria psicanálise, só que aí não é um pai-mítico,

mas um pai real, o pai do pai da psicanálise, o pai de Freud,

cuja morte, segundo atesta ele próprio, o teria levado a

escrever o seu primeiro trabalho puramente psicanalítico, "A

Interpretação dos Sonhos", a partir da interpretação que

elaborou para os sonhos que tinha com seu falecido pai.

Depois, com a postulação do complexo de Édipo e do mito da

horda primitiva, Freud vai pôr um pai-morto na estrutura de

nossa organização psíquica. Por fim, em sua última obra,

"Moisés e o Monoteísmo", Freud pretende descobrir um

patriarca assassinado pelos seus na origem da nação e da

religião monoteísta judaica.44 Então, como dirá Lacan, tudo44 Winnicott, a partir dessa obra de Freud, avança a hipótese deque foi preciso o advento do monoteísmo, seguido pela “criação deum corpo de ciência”, para que os sujeitos passassem a se concebercomo indivíduos ou, em seus próprios termos, “pudessem tornar-seunidades integradas em termo de tempo e espaço, que pudessem vivercriativamente e existir como seres individuais” – cf. O Brincar e aRealidade, cit., p. 101. Que entre os antigos gregos, realmente, talunificação não ocrreu é oq que atesta obras como a de RUTH PADEL,In and Out of The Mind. Greek Images of the Tragic Self, Princeton: PrincetonUniversity Press, 1992. Aqui vale lembrar que no último período deseu longo e fecundo percurso teórico Freud revisou a posição que

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gira e é amarrado pelos "Nomes-do-pai" - e ele dará vários

nomes ao Pai, pois o conceberá como uma "função", mais

dessubstancializado do que em Freud, por quem era tido como

uma "posição". O significante "Pai" é equivalente ao

significante "Lei", no mesmo encadeamento ao qual pertencem

outros significantes, como "Deus" e "Falo", por entre os

quais o sujeito se constitui, e pelos quais é representado.

Tendo referido à lenda de Édipo para caracterizar,

segundo a psicanálise, a associação da Lei, em suas diversas

modalidades, com a função paterna, vale fazer uma alusão à

filha de Édipo, Antígona, eregida por Lacan e seus (muitos)

seguidores em símbolo da firmeza ética, para todas as éticas

assumira em relação ao fenômeno religioso, nos termos que seseguem, extraídos de passagem do acréscimo de 1935 à sua “auto-apresentação”, de 1925: “Em ‘O Futuro de uma Ilusão’ fiz umaapreciação fundamentalmente negativa da religião; depois encontreia fórmula que lhe faria mais justiça: seu poder repousa de fato emseu conteúdo de verdade, mas essa verdade não é material, e sim,histórica”. Uma fórmula, sem dúvida, lapidar, à qual chegou um dosque está, reconhecidamente, entre os grandes gênios da humanidade,após uma reflexão que se desdobrou ao longo de quase toda uma vidaprovecta. Vale reproduzir a passagem tal como foi escritaoriginalmente: “In der ‘Zukunft einer Illusion’ hatte ich dieReligion hauptsächlich negativ gewürdigt; ich fand später dieFormel, die ihr besser Gerechtigkeit erweist: ihr Macht beruheallerdings auf ihrem Wahrheitsgehalt, aber diese Wahrheit istkeine materielle, sondern eine historische”. FREUD, Nachschrift 1935zur “Selbstdarstellung”, in: Gesammelte Werke, cit., vol. XVI, p. 33.

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possíveis, inclusive a ética da psicanálise, cujo imperativo

categórico é: "não ceda de seu desejo".45 Disso resulta a

negação de toda ética universalista, tal como aquelas

propugnadas na modernidade, em prol da ética de cada um, a

ética individual e situacional, a ética da amizade e do

cuidado de si, sobre a qual falou e escreveu o último

Foucault.46

Dependendo do ponto de vista, Antígona pode aparecer

como santa ou criminosa. Criminosa, na perspectiva do direito

positivo; santa, para o direito meta-positivo, de origem

religiosa. Para a psicanálise, porém, ela não seria nem

santa, nem criminosa, duas ilusões provocadas por duas

ficções diferentes: a religião e o direito.

45 Cf. J. LACAN, Ética da Psicanálise, cit., p. 382 ss., bem como ocomentário à "Antígona", ib.: 295 ss. É certo que essainterpretação lacaniana é muito controversa e, mesmo, sem apoionas pesquisas filológicas mais acuradas e recentes, mas comoadvoga, com perspicácia, Ruth Padel (ob. cit., p. 10): “Tragedy isthere for whoever wants to read and perform it. It is right andnecessary, I believe, to interpret tragedy for whatever you wantto get out of it”. Por outro lado, de acordo com o penamento anti-edípico de G. Deleuze, Antígona pode ser vista com encarnando aimaginação masoquista no enfrentamento com a racionalidade sádicade Creonte. Cf. G. DELEUZE, Sacher-Masoch, Rio de Janeiro: Zahar,2009, passim, esp. p. 124. 46 Cf., a respeito, por exemplo, FRANCISCO ORTEGA, Intensidade: Parauma história herética da filosofia, Goiânia: Editora UFG, 1998, p. 62 ss.

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Essa, recordemos, é a peça fundadora do que viria a ser

uma trilogia, a trilogia tebana, com Édipo Rei sendo

cronologicamente a segunda a ter aparecido, mas às duas o seu

Autor, Sófocles, acrescentou,  já no final da vida, uma

terceira, a última que nos legou, encenada postumamente,

narrando acontecimentos intermediários: Édipo em Colono. Ora,

podemos ver nessa peça uma chave interpretativa de Antígona

fornecida pelo próprio Sófocles, como que aderindo ao modo de

seu grande rival, Eurípedes, realizar sua obra

tragediográfica, sob a influência da então nascente

racionalidade filosófica, encarnada na figura de seu

mestre, Sócrates. É a tese, celebrizada por Nietzsche, mas da

qual os próprios gregos tiveram consciência, tal como

demonstram comédias de Aristófanes, como As Nuvens e As Rãs,47

de como a invenção da racionalidade filosófica, promovendo a

descrença religiosa e o desencantamento mitopoético levou ao

fim trágico das tragédias, o que explica também a reviravolta

de Eurípedes em sentido contrário ao que defendia, em sua

47 Nesse sentido, ADRIANY FERREIRA DE MENDONÇA O nascimento da filosofia apartir da arte: uma abordagem nietzschiana, Tese, UERJ: Rio de Janeiro,2005.

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última peça, também encenada postumamente, As Bacantes. As

ações dos protagonistas principais, que na Antígona se

apresentam como pautadas por fortes convicções políticas,

éticas e religiosas, de elevado padrão, podem agora ser

vistas, por um lado, de maneira mais prosaica, revelando-se

as motivações privadas do que irrompe na cena pública, e de

outro lado, uma nova luz se projeta na atuação de Antígona

nesta cena. Isso porque ao final de Édipo em Colono, quando

Édipo não só recusa-se a dar sua benção a Polinices, como o

amaldiçoa, assim como seu irmão, a morrerem um pela mão do

outro, ele apela para as irmãs, Ismene e Antígona, para que

não deixem, em isso ocorrendo, que seu corpo fique insepulto,

ou seja, que cumprissem com o seu papel de irmãs, no que

aquiescem, dando-lhe um abraço emocionado – e aqui não resta

dúvida que apenas um gesto seria suficiente para manifestar

tal aquiescência, pois como Édipo dissera pouco antes a

Teseu, entre amigos (philoi) não se precisava jurar para

sacramentar uma promessa, sendo esta relação “filíaca” que

posteriormente Antígona seguidamente alegará, para justificar

sua ação transgressora, de enterrar o irmão. Vale enfatizar o

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Page 61: Tese para IFCS

caráter revolucionário e, por isso, heróico de Antígona, que

além de mulher era jovem, muito jovem (o Coro a chama mesmo

de "a menina", he païs), e apesar dessa dupla condição

inferiorizadora, na sociedade em que vivia, partiu mesmo para

o enfrentamento com o mais velho e mais poderoso dos homens

dentre os que a cercavam, Creonte, a quem inclusive devia

obrigações filiais, pois sendo seu tio materno, é a quem

Édipo encarrega a criação das filhas, no final do Édipo Rei.

Então, a questão dela não é tanto, ou tão-somente, enterrar o

irmão, ao que estava obrigada inclusive pela promessa feita a

ele, conforme referido. Para obter isso, porém, haveriam

diversos meios, que poderia ser mais eficazes, do que

simplesmente fazer ela própria o enterro, o que nem sequer

conseguiria direito (tanto que pede a ajuda da irmã, e

precisa fazer em etapas, o que termina permitindo que seja

presa em flagrante). Basta lembrarmos de como procedeu, em

situação semelhante, o pai de Heitor, Rei de Tróia, quando

Aquiles tomou decisão igual à de Creonte, e o Rei, em cena

que há quem considere a mais comovente de toda a Ilíada, vai ao

encontro de Aquiles suplicar pelo cadáver do filho, chegando

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Page 62: Tese para IFCS

a beijar as mãos que mataram Heitor e outros filhos seus. E

como sabemos da peça de Ésquilo, Sete contra Tebas, se Eteocles

só se envolveu pessoalmente na disputa ao saber que seu irmão

tinha feito o mesmo, certamente não iria desonrar o seu

cadáver, caso não tivesse morrido, ao matá-lo. Antígona, com

seu gesto, recusa a transmissão do poder real ao "General"

(strategos), como ela acertadamente qualifica Creonte, não o

considerando digno sequer de reconhecimento como verdadeiro

soberano (basileus), donde seu gesto, que não é para ser

entendido sequer como violação de uma norma, mas como um não-

reconhecimento como tal do decreto de Creonte, o qual seria

um mero ato de força, uma lei marcial, a prolongar, por sua

inépcia ou por uma estratégia de governo, o estado de

beligerância civil (stasis), ao invés de encerrá-la, com o fim

da guerra (polemos). Então, Antígona foi mesmo heróica, com

seu ato extremo, pondo em jogo a própria vida, ao confrontar

Creonte, ao invés de tentar primeiro apelar para os laços de

parentesco que os unia, ao ponto de ser chamada de louca pelo

Coro, pois ele se mostrou absolutamente disposto a matar quem

se opusesse ao seu poder de decidir arbitrariamente quem

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seriam os “inimigos da pátria”. Ocorre que ela era a própria

encarnação dessa pátria, como a filha epocler, que transmite a

legítima sucessão do poder real - Hölderlin, por exemplo, em

sua tradução interpretativa da peça, a qualifica de rainha,

ao invés de simples princesa, na sua fala final, quando se

dirige ao povo de Tebas, denunciando o modo como está sendo

des-tratada. Agora, do ponto de vista, digamos,

governamental, ela seria o que hoje se costuma qualificar de

“terrorista”, e o tratamento que foi dado a ela, a quem

também não se aplicou a pena prevista, de apedrejamento,

trocada pela condenação à morte por emparedamento, viva, bem

demonstra a presença de um estado de exceção, em que o

detentor do poder decide a seu arbítrio mesmo a quem (e como)

se aplica as leis que arbitrariamente estabelece.

Nota-se, assim, como certas coisas não mudam nesse ser o

mais assombroso dentre todos os assombros, que somos o

humanos, tal como refere a famosa ode no início de Antígona,

que procura impor-se a tudo e a todos, pela associação

política de muitos, só encontrando na morte um limite à sua

ânsia de perdurar a qualquer custo. É ao enfrentamento desse

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limite que Antígona vai ser levada, por um vínculo de amor

que dá sentido poético à vida, e torna sem sentido a oposição

política entre os aliados e os adversários, a essência mesma

da política segundo Schmitt. Mas era isso o que seu

antagonista, Creonte, queria levar ao ponto extremo de

desonrar o cadáver do inimigo, seu sobrinho, um parente

(philos), que na concepção grega não podia ser considerado

assim, e cuja morte ainda seria insuficiente, para saciar uma

sede tamanha de vingança, movida pelo ódio interminável e,

sobretudo, a vontade de se afirmar como o soberano que

decidia em Tebas sobre os destinos de seus cidadãos, sua

vida, morte e mesmo além. Recentemente tivemos a oportunidade

de presenciar algo semelhante, no caso do suposto assassinato

e funeral de Osama Bin Laden. Bem diversa era a sede de

Antígona, a sede de justiça, movida pelo amor, pois como ela

diz em uma de suas mais belas e últimas falas, ela nasceu só

para amar e ser amada, não para odiar, mas não teve essa sua

destinação realizada, por ter sido pelo ódio que se definiu o

destino dos que amou e que a amaram. A escalada de violência

com a intensidade que só os humanos são capazes de praticar

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só cessa quando os envolvidos se valem daquilo que desde os

antigos gregos foi considerado como sendo o que nos distingue

de outros “animais”, enquanto “políticos”: o logos, ou melhor,

o diálogo, pelo qual se pode realizar a justiça, que em

situações de intenso conflito, se não for poética, afetiva,

amorosa, termina tragicamente, como fica demonstrado no

desvio de Antígona do que esperava e gostaria que fosse seu

destino.

Para a psicanálise, Antígona apenas agiu conforme o seu

desejo, inconsciente. Desse ponto de vista, só lhe era

permitido escolher a morte que teve, como condição de seu

gozo.48 Sua liberdade é a necessidade de sua morte, dando seu

corpo para ser o túmulo de seu irmão, que assim descansaria

em paz, na paz que não teve um outro seu irmão, seu pai,

Édipo - reza a lenda que ele teria sido muito mal-tratado por

seus filhos-irmãos, após a revelação que o desmoralizou,

tendo lançado sobre eles a maldição de que jamais se

entenderiam, como de fato ocorreu, pois se enfrentaram na

48 Nesse sentido, M. SAFOAN, apud H. YANKELEVICH, A morte de Antígona, ouDo gozo trágico, trad. ARI ROITMAN, in: Letra Freudiana", n. 7/8, Rio deJaneiro: Escola da Letra Freudiana, s/d, p. 47.

65

Page 66: Tese para IFCS

disputa do trono de Tebas, donde adveio o falecimento daquele

a quem Antígona insistiu até a morte para enterrar

condignamente, perante seu tio e (ex-)futuro sogro.49 Eis aí

representada a origem violenta de toda proibição, tanto

sagrada, como jurídica, que garante nossa vida em sociedade,

sustentada pelo enfrentamento da morte, ou, na fórmula

consagrada por R. Caillois,50 condição da vida e porta para a

morte.

Já na "metáfora paterna" psicanalítica, o pai aparece

como "outro", uma figura estranha ao Um que são mãe e filho,

um estrangeiro, "étranger", "étre-anje" - "ser-anjo", sempre por

perto, que de tanto aparecer e reaparecer se torna familiar,

mas que em dado momento, de anjo da guarda torna-se anjo-

exterminador, e corta a relação "umbilical" entre mãe e

filho, fazendo a castração simbólica do Falo que um

representa para o outro. Com isso, instaura-se a falta, a

falha, que possibilita a fala do filho, para preenchê-la - a

49 Sobre a lenda de Édipo cf. J.-P. VERNANT, O Universo, os Deuses, osHomens, São Paulo: Companhia Das Letras, 2000, p. 162 ss., esp.177 ss., a respeito dos filhos do herói grego.50 El Hombre y el Sagrado [1939], México: Fondo de Cultura Económica, 1996, cap. V, p. 147 ss.

66

Page 67: Tese para IFCS

fala e tudo o mais que é da ordem do simbólico, do humano e

do sublime, como as leis. A castração simbólica, portanto,

repristina aquela Lei primordial, proibindo o excesso, o

incesto. Mas nem todos a aceitam, donde além dos neuróticos

haverem os que se põem acima dessa Lei ou fora dela: os

psicóticos e os perversos.

Daí ter Freud falado na necessidade de sublimar nossas

pulsões no processo civilizatório, e Lacan, por seu turno,

tenha enfatizado a importância da simbolização dos desejos

produzidos em nosso imaginário, que são espectros, fantasmas,

a atormentarem o sujeito, sempre em busca do objeto causa de

seus desejos, apesar de ser barrado no seu acesso a ele. Por

isso Lacan representa esse sujeito por um "S" cortado, $,

para representá-lo como barrado, castrado simbolicamente,

enquanto aquele objeto, causa de seu desejo, ele o chama

"objeto a minúsculo", reivindicando-o como sua única

descoberta em psicanálise. Esse (a) remete ao conjunto vazio

(ø), pois inexiste onde o sujeito pretende encontrá-lo, o que

se explica naquilo que Lacan propôs como a "fórmula do

67

Page 68: Tese para IFCS

fantasma": $ ◊ a.51 Decompondo-a, tem-se que, ao mesmo tempo,

$ ‹ a ($ menos que a), $ › a ($ mais que a), $ ^ a ($ inclui

a) e $ v a ($ exclui a).

Na base de toda a ilusão coletiva que é a sociedade,

cimentada por normas da ética, do direito e das religiões,

portanto, está a ilusão individual de que somos, o vazio que

somos, por não sermos propriamente. A primeira tentativa que

fazemos para colmatar esse vazio, essa falta de ser, quando

se ausenta "aquilo" que julgávamos ser - nossa mãe, onde

"éramos" antes de nascer -, nos leva a falar. Adquirindo a

linguagem, nos vem a ilusão fundamental: a do Eu.52 Depois,

por modos diferentes, diante do fracasso repetido de atingir

"algo" que preencha-nos o vazio de ser - o "objeto a" de que

nos falou Lacan, objeto perdido do desejo, inexistente, no

sentido em que Heidegger se refere a "das Ding"53 - terminamos

nos fixando mais em alguma prática, como a religião, a arte

ou a ciência. Com a arte, ornamentamos o vazio, disfarçando o

51 Cf. LACAN, Shakespeare, Duras, Wedekind, Joyce, cit., p. 74 ss.52 Cf., a propósito, FRANCISCO J. VARELA, Sobre a Competência Ética,Lisboa: Edições 70, 1995, p. 66.53 MARTIN HEIDEGGER, "Das Ding", in: Id. Vorträge und Aufsätze, vol. II,Pfullingen: Neske, 1954.

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Page 69: Tese para IFCS

horror que nos causa; com a religião, nós o evitamos, ao

venerá-lo; com a ciência, nós o negamos, negando, assim, a

nós mesmos, do que resulta essa espécie tão eficaz de

sociedade em sua capacidade destruidora que é a nossa.

4. Contribuição medieval para estabelecer a estrutura moderna

do pensamento filosófico e jurídico

É de fundamental importância, para uma apreciação do

modo como a ciência e a própria filosofia,

contemporaneamente, se posicionam em face de valores

assumidos de maneira ideológica, que se perceba como no

período constitutivo da modernidade, em que se destacam os

autores ora enfocados, deu-se a transposição de suas

concepções teológicas e metafísicas, pautadas pela mesma

busca de certeza que caracterizará a modernidade, tanto para

o campo gnosiológico como para aquele da ação orientada por

normas. Partimos de uma consideração feita por de Muralt, em

diversos momentos de sua obra,54 que julgamos acertada, no

54 Cf. L´enjeu de la philosophie médiévale. Études thomistes, scotistes occaniennes etgrégoriennes, 2a. ed., Leiden et al.: Brill, 1993; Néoplatonisme et

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Page 70: Tese para IFCS

sentido de se poder reenviar a concepção, do que modernamente

veio a se considerar como ciência jurídica, assim como seu

objeto, enquanto o sistema legal positivado, à estrutura aqui

denominada transcendental, tendo como representantes mais

significativos, dentre os medievais, com pioneirismo,

Guilherme de Ockham, e dentre os moderno, com importância

paradigmática, Immanuel Kant.

A proposta, feita por André de Muralt, que aqui vem

assumida, é a de que, basicamente, há duas estruturas a serem

detectadas, se analisadas as diversas doutrinas filosóficas,

e que se fariam presentes, de maneira mais clara, desde a

primeira grande síntese – e, logo, literalmente, a primeira

grande depuração - do pensamento filosófico, aquela

aristotélica, podendo se encontrar formas embrionárias dessas

doutrinas nos pensadores que o antecederam, bem como nos seus

contemporâneos e pósteros. Após a sua explicitação, em

aristotélisme dans la métaphysique médievale, Paris: Vrin, 1995; A metafísica dofenômeno: as origens medievais e a elaboração do pensamento fenomenológico,trad.: Paula Martins, São Paulo: 34, 1998. Já para a filosofiaprática e política, a referência é a obra publicada originalmenteem 2002, La estructura de la filosofia política moderna. Sus Orígenes medievales emEscoto, Ockham y Suárez, trad.: Valentín Fernández Polanco, Madri:Istmo, 2002.

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Page 71: Tese para IFCS

Aristóteles, as diversas doutrinas filosóficas que se

sucederam, assim como outras formas de pensamento que

entraram em contato e se mesclaram com a filosofia, de

natureza religiosa ou científica, vão se constituir por sobre

essas estruturas, que são fundamentalmente duas, apoiando-se

ora de maneira quase exclusiva sobre uma delas, ora sobre

ambas, em maior ou menor medida. Como elementos básicos

dessas estruturas tem-se a distinção aristotélica, proposta

para a compreensão racional ou intelecção da realidade

substancial em si mesma indiferenciada, entre o que nela é

forma e o que é matéria. Os entes singulares, todos e

quaisquer, seriam transcendentalmente compostos de matéria e

forma, considerando-se como transcendental, pelo sentido

etimológico mesmo, a relação que as atravessa (de transcendere)

e vincula, embricando-as.55 Para Muralt, a diversidade de

posições adotadas pelas mais variadas doutrinas do

pensamento, filosófico ou não, de corte ocidental, está

fundamentalmente determinado pelo modo diferenciado como cada

uma delas solucionará o problema da articulação de forma e

55 Cf. A. DE MURALT, Néoplatonisme et aristotélisme, cit., p. 55.

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Page 72: Tese para IFCS

matéria, enquanto elementos básicos da realidade, ou do modo

de compreendê-la que é próprio da metafísica, seja como

ontologia, estudando as manifestações do ser em ação, em seu

devir, seja como teologia, estudando o ser como origem

imutável de toda ação e transformação. As duas estruturas

fundamentais, consolidadas no período medieval, são as

seguintes:

(A) A estrutura transcendente, que denominamos assim por

ser aquela que se constitui a partir da unidade

transcendental de forma e matéria no ente,

considerando-se essa unidade nos entes

singulares como anterior à própria articulação

desses dois elementos que os compõem, os quais

só se distinguem por meio da análise teórica,

racional e abstrata, feita sobre os entes

concretos. Essa estrutura é a que se vincula

tradicionalmente a Aristóteles, especialmente

após os desenvolvimentos tomistas de seu

pensamento.

72

Page 73: Tese para IFCS

(B) A estrutura transcendental, que assim denominamos por

sua origem na metafísica escotista, desenvolvida

como comentário à de Aristóteles, mas tendo como

objeto o que o Doctor Subtilis denomina de

“transcendentais”, enquanto tudo aquilo que

transcende o ser finito, no sentido de ir além

dele, participando do ser infinito, sendo comum

a ambos, ou exclusivo deste último.56 A origem

56 Cf. DUNS SCOT, Quaestiones Subtilissimae in Metaphysican Aristotelis, prólogo,n. 5, in: id. Escritos Filosóficos, trad. e notas CARLOS ARTHUR NASCIMENTOe RAIMUNDO VIER, São Paulo: Abril, 1979, p. 339 e, ali, nota 1. Ostranscendentais, tematizados já por Aristóteles, deve suaelaboração medieval mais bem acabada, segundo A. de Muralt,inicialmente, a Santo Tomás, no De veritate, q. 1, a. 1. As“metafísicas dos transcendentais”, no sentido em que a elas serefere de Muralt, na ob. ult. cit., p. 18 ss. – v. esp. p. 22 -,têm em Scot uma elaboração paradigmática, e se caracterizam poratribuírem a algum dos transcendentais o papel de definir o ser, oque não aparece na estrutura aristotélico-tomista. É assim que, nacontinuação desta obra, o precitado A. postulará só haverem doistipos de metafísicas fundamentais (ou estruturas), aquelas do ser,transcendentes, como a aristotélico-tomista, que então seriamsobretudo ontológicas, e as diversas “metafísicas do Um”, dostranscendentais, mais teológicas – no sentido aristotélico, bementendido. Curiosamente, de Muralt vinculará sua proposta deanálise das estruturas de pensamento, à estrutura (maispropriamente) aristotélica, aquela que denominamos transcendente,visto ser ela “um instrumento de caráter autenticamentefilosófico” – cf. id. ib., p. 54 -, uma vez que “permite a compreensãodas obras do pensamento humano na sua unidade e sua ordem própria” –id. ib., p. 53, grifos do A. -, ou seja, numa perspectiva de“catolicidade”. Xavier Zubiri atribui a Aristóteles a primazia naidentificação disto que se pode denominar a “catolicidade” dafilosofia, ao se propor a estudar seu objeto em sua

73

Page 74: Tese para IFCS

mais remota desta estrutura se encontra em

Platão ou, antes, no pitagorismo, estando também

presente no neoplatonismo de Plotino ou de Santo

Agostinho. É em Scot, contudo, que se revelará

em sua plenitude esta estrutura, culminando um

desenvolvimento que tem sua origem mais próxima

no perspectivismo oxfordiano de Roger Bacon,

recepcionando os trabalhos de ótica de árabes

como Alhazen (965 – 1039) e dali extraindo

conseqüências gnosiológicas que amadurecerão em

Scot, resultando em seu conceito original de

intentio.57 No que tange o problema da forma e

matéria, pela distinção formal a parte rei ou ex

natura rei (pela natureza das coisas), em Scot

universalidade, e universal não apenas em seus conceitos, mastambém no sentido de abarcar a totalidade das coisas, entendendocada uma de acordo com seu lugar na totalidade dela. Cf., desteA., Cinco lecciones de filosofia, Madri: Alianza, 7a. reimpr., 1999, p. 30;id. Sobre el Problema de la Filosofía y otros Escritos (1932 – 1944), Madri:Alianza/Fundación Xavier Zubiri, 2002, pp. 38/39; v. tb., sobre osdiversos sentidos da “catolicidade” em Aristóteles, OswaldoPorchat Pereira, Ciência e Dialética em Aristóteles”, São Paulo: Ed. UNESP,2001, pp. 152 ss.57 Cf. MATTHIAS KAUFMANN, Begriffe, Sätze, Dinge. Referenz und Wahrheit beiWilhelm von Ockham, Leiden et al.: Brill, 1994, pp. 200 ss.; KATHERINETACHAU, Vision and Certitude in the Age of Ockham, Leiden: Brill, 1988, pp.58 ss.

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Page 75: Tese para IFCS

ambas são separadas entitativamente, por

considerá-las como dois entes que são em si e

por si mesmos, independentemente um do outro, e

antes mesmo de se articularem para daí resultar

algum outro ente, em relação ao qual são como

partes de um todo.

Examinemos agora, brevemente, o modo diverso como nas

duas estruturas, a partir de suas determinações fundamentais,

se resolvem problemas tipicamente gnosiológicos e

ontológicos, isto é, filosóficos.

Nas disputas medievais sobre as distinções, que se dão

“historialmente”58 na Europa desde o século XII até pelo menos

meados do século XVIII, enquanto ainda houve quem se

dedicasse explicitamente à construção de sistemas

metafísicos, pois não há como imaginá-los sem uma teoria ou,

pelo menos, uma tomada de posição sobre as distinções.

58 Empregamos o neologismo para distinguir o que é da ordemmeramente histórica, do acontecido, registrado e catalogado emépocas pela ciência da história, daquilo que se dá em um “tempológico”, para referir a expressão goldschmidtiana, empregada emconhecido estudo, que fez escola entre nós (precisamente, na FFLH-USP). Cf. Victor Goldschmidt, “Tempo histórico e tempo lógico nainterpretação dos sistemas filosóficos”, in: id., A Religião de Platão, trad.: Iedae Oswaldo Porchat Pereira, São Paulo: DIFEL, 1963.

75

Page 76: Tese para IFCS

Vejamos como a questão aparece em cada uma das estruturas

fundamentais acima apresentadas.59

A. Na estrutura transcendente o ser é considerado o tertium quid

comum, ao qual se pode remeter qualquer assertiva, donde

poder ser dito de diversas maneira (pollakos), através das

categorias (kategorein), enquanto os diferentes modos de um ser

que só se mostra (dêixis), deste si mesmo (apo), e por si mesmo

(kat´auton), neste dizer-se racionalmente ou “raciocinante”

(analogismos), unificador e “decodificador” (analego). Na

concepção mais propriamente aristotélica, o ser é

simultaneamente uno e múltiplo, fundando sua unidade na

identificação com a existência, que não nem uma realidade em

si nem uma idéia a parte das substâncias concretas

existentes, mas sim o surgir de cada ser que é, o nascer de

cada ente, a physis ou “nascividade”,60 como um todo sem partes,

um composto indivisível de matéria e forma. A unidade do ser59 Cf. A. DE MURALT, L´enjeu de la philosophie médiévale, cit., pp. 47 ss.,bem como o resumo feito por FRANCISCO LEÓN FLORIDO e VALENTINFERNÁNDEZ POLANCO no Estudio introductorio, in: A. DE MURALT, La estructura dela filosofia política moderna, cit., pp. 16 ss.60 É este o termo que Emmanuel Carneiro Leão e Sérgio Wrublevskisugerem que se empregue para traduzir a noção fundamental,originariamente pré-socrática, de physis. Cf. Os Pensadores Originários:Anaximandro, Parmênides, Heráclito, trad. EMMANUEL CARNEIRO LEÃO e SÉRGIOWRUBLEVSKI, Petrópolis: Vozes, 1991.

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Page 77: Tese para IFCS

consiste, assim, na continuidade dos processos da existência

aos quais se denominava “natureza” (physis), já entre os pré-

socráticos ou, como Aristóteles mesmo a eles se referia, os

“físicos”. A distinção entre forma e matéria e qualquer

outra, em relação aos seres naturais, será uma “distinção da

razão”, para efeito de análise lógica, lingüística, do que na

realidade é uno e indissociável em sua atividade e

existência. Do mesmo modo, o conhecimento e a vontade, as

duas potências da atividade do ser humano, se encontram

submetidas a estas exigências de unidade, estabelecidas

naturalmente no âmbito de sua atuação, em relação aos objetos

aos quais se dirigem, os quais, no campo do conhecimento,

teorético, com o predomínio das faculdades noéticas, tornam-

se conceitos, e naquele prático ou político, com o predomínio

da vontade, tendem para o bem.

B. A estrutura transcendental, com a proposta de

distinção formal ex natura rei, em contraposição às distinções

reais e de razão – ou “superando dialeticamente” esta

contraposição, enquanto verdadeiro tertium quid -61, a

61 Cf. A. DE MURALT, L´enjeu de la philosophie médiévale, loc. ult. cit.

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Page 78: Tese para IFCS

consideração da forma passa a se impor sobre aquela da

matéria, assim como o intelecto sobre a natureza e a vontade

sobre seu objeto. Isso porque aí o intelecto não se dirige

mais naturalmente ao conhecimento das coisas a serem

conhecidas, passando a criar seu próprio objeto de

conhecimento, sem relação necessária com a realidade em si

daquilo a que representa, tal como é no mundo, na natureza,

visto que agora importa mais a consideração do efeito

modificador que sofre o intelecto com sua própria atividade.

A melhor expressão de novo modo de conhecer seria a doutrina

do ser objetivo (esse objectivum), contido no intelecto, o qual

representa mais sua atividade subjetiva do que o ser dos

entes. Assim, cada elemento do todo que a análise lógica

detecta nas coisas termina adquirindo seu próprio ser, o

qual, no entanto, já não pode ser substancial, existindo como

unidade de forma e matéria, mas tão-somente formal, ser

objetivo, recebendo seu ser da atividade intelectiva pela

forma, analítica e dedutivamente, more geometrico.62

62 De Muralt destaca ainda que, na esteira de sua inadvertidaalteração da doutrina propriamente aristotélica das distinções,com a introdução da distinção ex natura rei, Duns Scot dá ensejo,igualmente, a uma concepção nova da definição, que se fará mais

78

Page 79: Tese para IFCS

Ao mesmo tempo, no campo da “razão prática”, do esse

objectivum prático, do bem a ser feito (bonum faciendum) o objeto

desejado, esse volitum,63 se concebe como já contido na vontade

que o busca, de modo que esta vontade se revela como querendo

a si mesma, como “vontade de vontade”. É assim que, uma vez

operada a distinção formal, não se concebe mais o intelecto

como tendendo naturalmente à verdade, enquanto sua matéria

própria, passando a transformar o objeto em verdadeiro já

pelo simples fato de inteligí-lo, da mesma forma que a

vontade não deseja o bem porque seu ser nela repousa, mas

abstrata do que aquela feita por gênero próximo e diferençaespecífica, própria do procedimento indutivo e empirista empregadonormalmente na metafísica aristotélica. Como na concepçãoescotista o objeto de conhecimento é in esse rei tal como estáconstituído in esse objecti (ou in esse cogniti), não importando – o queficará de todo evidente em Guilherme de Ockham -, para conhecê-lo,que haja vínculo com objetos reais, entende-se que esteja aí oponto de partida para a metafísica especulativa dedutivista queserá elaborada, exemplarmente, por Francisco Suárez, no séculoXVI, que tanto veio a influenciar o racionalismo cartesiano comotambém, via Leibniz e Wolff, a Kant ou até a concepção dialéticahegeliana e os seus adeptos, materialistas ou não, sendo,portanto, a verdadeira matriz de todo o pensamento moderno, já nãomais metafísico em sua intenção, mas construído segundo os mesmoprincípios arquitetônicos concebidos por Scot, desenvolvidos,entre outros, por Ockham e praticados, exemplarmente, por Suárez.Cf. A. DE MURALT, ob. ult. cit., pp. 85 ss. Essa mesma “dialéticadas formas e da matéria” será aplicada ao campo do direito, já emScot, depois de maneira mais extensa em Ockham, culminando com oaporte de Suárez, como demonstra a obra fundamental de MICHELBASTIT, Naissance de la loi moderne, Paris: PUF, 1990.63 Cf. Id. Ib., p. 43.

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Page 80: Tese para IFCS

antes é ela que converte em bem o que por ela é desejado e

imposto como lei.

A existência, na física e na metafísica aristotélicas,

além da unidade de matéria e forma, pressupõe também o

movimento e a transformação do que existe, sem que isso

resulte, como entre os eleatas, nas aporias que apontariam a

impossibilidade do movimento e da mudança, por significarem

uma passagem do ser ao não-ser. É nesse contexto que um novo

par de conceitos metafísicos é introduzido, a saber, aquele

de ato e potência, acarretando novas possibilidades e

divergências doutrinárias.

A. O ser concebido em atividade, no âmbito da estrutura

transcendente, pressupõe a unidade no ser dos entes singulares,

substancialmente indissolúvel, entre ato e potência, assim

como entre forma e matéria, conceitos que são irredutíveis

entre si e discerníveis apenas para efeito de análise lógica.

Cada ente, além de ser um composto substancial de forma e

matéria, ao movimentar-se, demonstra também a unidade de ato

e potência, podendo ser conhecido, individualmente, em seu

ser ou substância una, e universalmente, sob o aspecto da

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Page 81: Tese para IFCS

unidade de tudo o que é, enquanto natureza, isto é, o que é

comum: a existência. O instrumento privilegiado deste modo de

conhecer, na concepção mais propriamente aristotélica, não é

a lógica, cujas formas se imporiam à natureza, sendo antes,

ao contrário, as exigências desta, dos campos naturais de

objetos suscetíveis de serem conhecidos, que forjam, por

analogia, as formas conceituais adequadas ao conhecimento do

que é comum, da natureza de tudo o que é.

B. Na estrutura transcendental, a essência do que é se define

como um atributo, uma qualidade que o diferencia do não-ser,

de modo que os entes, ao serem, possuem ipso facto a existência,

a unidade, a verdade e o bem, qualidade de tudo o que é pelo

fato de ser. Nessa consideração essencialista, torna-se

viável a distinção dos atributos do ser, concebidos como

existindo independentemente enquanto idéias ou formas puras,

o que patrocina a análise formal e o método dedutivo. Estamos

diante de uma herança platônica, que será recuperada pela

filosofia escolástica, quando Deus passa a ocupar o lugar do

ser supremo, enquanto as idéias contidas em seu intelecto

seriam os atributos transcendentais convertidos ao ser mesmo.

81

Page 82: Tese para IFCS

Já o poder criador da divindade é que abriria a possibilidade

de uma participação dos entes nessas qualidades, divinas,

especialmente através daquele ente que foi criado à sua

imagem e semelhança. Então, assim como as idéias do intelecto

divino tendem a substancializar-se, “entificando-se”, no

intelecto humano o ser objetivo das idéias tornam-se

independentes de seu ser formal, donde resulta que da

consideração essencial do ser se chega ao estabelecimento de

um princípio que define de antemão, a priori, o que é como o

que deve ser, em obediência a um tal princípio –

inicialmente, divino ou “sobrenatural”, e na modernidade, o

sujeito do cogito cartesiano ou o sujeito transcendental

legislador kantiano ou husserliano, que na contemporaneidade

será ainda o sistema da linguagem como lógica, no “primeiro

Wittgenstein”, ou como forma de vida, no “segundo

Wittgenstein”, o inconsciente do texto em Derrida e assim por

diante.

Para fazer uma última consideração dos elementos

anteriormente referidos, os quais foram definidos em

oposições e posições diversas em cada uma das duas estruturas

82

Page 83: Tese para IFCS

fundamentais do pensamento, não se pode deixar de verificar o

modo como esses elementos – o sujeito e a realidade por ele

conhecida, o objeto e a coisa por ele representado, a vontade

e o fim por ele almejado, o poder e a lei por ele

estabelecido etc. – operam naquelas estruturas, o que

significa verificar suas conexões de causa e efeito, como são

concebidas em cada uma daquelas duas estruturas.

A. Na estrutura transcendente, da ortodoxia aristotélica,

concebe-se uma causalidade por ordem recíproca de diversas causas, sem

que haja hierarquia entre elas, sendo a divisão entre as que

se privilegiará feita em função do tipo de investigação a ser

levada a cabo. Daí que as causas eficiente, final, material

e formal intercambiarão seus papéis, a depender do ângulo que

se examine a fixação das mesmas, em relação ao seu substrato

comum, o hypokheimenon, que sempre se fará presente e atuará

como unidade homogênea inalterável pelos movimentos

recíprocos das causas que sobre ela incidem. Assim, a alma,

para os antigos, ou Deus, para os medievais, podem ser

consideradas como causas eficientes, quando iniciam,

respectivamente, o movimento da abstração ou da criação, ou

83

Page 84: Tese para IFCS

então como causas finais, já que as formas anímicas

aperfeiçoam o ser das coisas, assim como Deus é tido como o

objeto a que aspira o intelecto e deseja a vontade. Alma e

Deus podem operar ainda, indistintamente, como causa formal e

material, e isso não porque possuam forma e matéria, mas sim

por haver neles as formas que serão adquiridas na mudança do

ente considerado como potência (causa formal), em sua

passagem ao ato, movido materialmente por uma alma ou por

Deus (causa material).

B. Na estrutura transcendental, introduzida de maneira sub-

reptícia por Duns Scot, julgando-se um aristotélico da mais

estrita observância, ocorre o que Muralt considera “uma

revolução filosófica que se ignora, quando se trata,

certamente, da única revolução doutrinária digna deste nome

que se produziu na história do pensamento ocidental”.64 Esta

revolução, responsável maior, no plano das idéias, pelas

transformações radicais que resultaram no mundo tal como hoje

o temos, com o que nele há de melhor e pior também – e,

assim, tanto em um caso como no outro, o que nele há de

64 L´enjeu de la philosophie médiévale, cit., p. 118.

84

Page 85: Tese para IFCS

grandioso -, mostra-se em toda evidência na doutrina da

causalidade concorrente não recíproca das causas parciais, a qual minará

os fundamentos da construção do saber antigo e medieval, de

cunho propriamente aristotélico, criando as condições

subjetivas para o aparecimento da ciência e de tudo o que é

mais característico da modernidade, também em termos

políticos, éticos ou jurídicos.65

A inovação na estrutura de pensamento “escotista”, como

a este segundo tipo de estrutura fundamental costuma aludir

de Muralt, em termos de concepção de causalidade,66 decorre da

consideração do ser como diverso de um tertium quid na

composição de todo ente, assim como no transcurso de todo

movimento, e Deus já não possui nenhuma função material,

tornando-se uma hipótese metodológica, não-necessitarista,

por inescrutável e contingente, para nós, a sua vontade

soberana. As causas, então, passam a ser ordenadas

formalmente, quer em uma hierarquia que se considera

estabelecida de potentia absoluta Dei, quer de acordo com uma ordem

estabelecida arbitrariamente pela vontade de conhecer – ou de

65 Cf. id. ib., pp. 39 s.66 Cf. id. ib., pp. 32 ss.; 321ss.; 331 ss.; passim.

85

Page 86: Tese para IFCS

poder. Se sujeito e mundo já não estão vinculados

naturalmente, só restam para serem conhecidos os objetos, a

forma de ambos. Se a vontade e o fim por ela almejado não

estão mais unidos pelo amor, só resta um desejo arbitrário

que pode se dirigir a objetos quaisquer, seja para conhecê-

los, seja para dominá-los, o que na modernidade, por exemplo,

em um Francis Bacon, logo será considerado como praticamente

o mesmo. Se o poder já não tem constrangimentos impostos pelo

bem como fim que justifica o seu exercício, só resta a lei

que obriga sem limitações ou necessidade de maiores

justificativas, já que sua força arbitrária provém do simples

fato de estar na lei mesma a sua origem. Isso porque objeto

do conhecimento, vontade arbitrária de agir e lei imposta do

agir são, afinal, considerados efeitos do concurso simultâneo

de causas indiferentes ao que causam, nas quais já não é

possível discernir o que é forma e matéria, eficiência e

finalidade, estando todas reduzidas a uma só causa, que é

formal, mas não como aquela que corresponde a uma matéria

determinada, e é eficiente, mas não como aquela que

corresponde a uma certa finalidade, pois é a causalidade

86

Page 87: Tese para IFCS

mecanicista, dos impulsos, choques e trajetórias que quando

conhecidos enquanto causas explicam que (oti) e como se deu

algo (ti), mas não por que (dioti) se deu.

É assim que o objeto do conhecimento passa a ser

concebido diversamente. Nesse contexto, é preciso que se

destaque o papel de Guilherme de Ockham, cujo pensamento,

como é sobejamente conhecido, descende diretamente daquele de

Scot, mas introduzindo variações que, no entender de Muralt,

darão suporte a posições também da tradição (aristotélico-)

tomista, indo reverberar, por influência de seus professores

parisienses, naqueles que integrarão a escolástica espanhola

do século XVI, com destaque para o Pe. Suárez (1548 – 1617),

com sua “tentativa sincrética de restauração aristotélica” (-

tomista, WSGF), apesar de vinculada à “tradição scotiana”.67

Para Ockham, o conhecimento resulta da ação, simultânea ou

não, do ente extramental ou da vontade divina, absolutos que

co-existem sem qualquer relação necessária, donde permitir

sua epistemologia “a co-existência sistemática de uma lógica

do nome conotativo, efetivamente `nominalista´, de uma

67 Id. ib., p. 41.

87

Page 88: Tese para IFCS

crítica `psicologista´ do conceito e de uma filosofia

`voluntarista´ da liberdade”.68

Guilherme de Ockham é um dos introdutores da chamada via

moderna,69 que conduz o pensamento filosófico para além da

Escolástica medieval,70 diretamente na ambiência moderna,71

isto é, ensejando, dentre outros desenvolvimentos, a

emergência do “paradigma da subjetividade”. Sua preocupação

com a análise lógica da linguagem, por outro lado, o torna

precursor, igualmente, do que se pode considerar a temática

fundamental de nosso tempo, em filosofia.72

68 Id. ib., p. 42. V. tb., ib., pp. 153 ss. e, esp., 167 ss.69 Já no século XV o epíteto venerabilis inceptor, atribuído a Ockham pornão ter atingido o grau de mestre, por razões políticas, apareceampliado para venerabilis inceptor viae modernae, cometendo-se uma duplaimprecisão: uma terminológica, por confundir “iniciante” com“iniciador”, outra histórica, pois se a via moderna pode serassociada à adoção do nominalismo ou, como em Thomas Bradwardine(+ 1349), à doutrina da predestinação divina, em nenhuma dessashipóteses o pensamento ockhamiano, por mais importante que seja,pode ser considerado pioneiro. Cf. HEIKO A. OBERMAN, “Via antiqua andvia moderna: late medieval prolegomena to early reformationthought”, in: “From Ockham to Wyclif”, ANNE HUDSON & MICHAEL WILKS(eds.) Oxford/New York: Basil Blackwell, 1987, p. 445 ss.70 Segundo Gordon Leff, por seu intermédio, operou-se em verdadeuma “transformação do discurso escolático”. Cf. William of Ockham. TheMetamorphosis of Scholastic Discourse, Manchester: Manchester UniversityPress, 1975.71 Cf., nesse sentido, HANS BLUMENBERG, Säkularisation undSelbstbehauptung, Frankfurt am Main: Suhrkamp, 1974, pp. 173 ss.72 Para uma aproximação - de resto, no mínimo, temerária -, entre opensamento de Ockham e a filosofia contemporânea da linguagem cf.,v.g., F. BOTTIN, La scienza degli occamisti. La scienza tardo-medievale dalle origini

88

Page 89: Tese para IFCS

Apesar disso, trata-se de um pensador ainda

relativamente pouco estudado, vítima de um “preconceito

elevado à segunda potência”, pois tanto é preterido por ser

um autor medieval, como também por não ser um daqueles que se

costuma considerar característicos do período histórico em

que viveu – o que de fato não foi. É assim, por exemplo, que

suas obras só na última década do século XX foram

completamente editadas.

Não resta dúvida, contudo, quanto à intensificação dos

estudos a respeito de nosso autor, como se pode constatar a

partir da bibliografia abaixo indicada, que de longe sedel paradigma nominalista alla rivoluzione scientifica, Rimini: Maggioli, 1982;id. “La scienza secondo Guglielmo di Ockham”, in: A Ciência e a Organização dosSaberes na Idade Média, LUIZ ALBERTO DE BONI (org.), Porto Alegre:EDIPUCRS, 1998, pp. 315 ss.; TH. DE ANDRÉS, “El nominalismo deOckham como filosofía del lenguaje”, Madrid, 1969; M. KAUFMANN,Begriffe, Sätze, Dinge. Referenz und Wahrheit bei Wilhelm von Ockham, cit.; C.PANACCIO, Le mots, le concepts et les choses. La sémantique de Guillaume d’Occam et lenominalisme d’aujourd’hui, Montréal/Paris: Bellarmin/Vrin, 1991; R.PASNAU, Theories of cognition in the later middle Ages, Cambridge (Mass.):Cambridge University Press, 1997; P. V. SPADE, Thoughts, Words andThings: An introduction to Late Medieval Logic and Semantics, Cambridge (Mass.):Cambridge University Press, 1996. É certo, contudo, queprovavelmente por influência de Bertrand Russell – o qual em umaobra como “The Problems of Philosophy”, de 1928, se ocupou dequestões pertencentes ao campo de investigações ockhamianas -, écomum encontrar entre filósofos analíticos como Wittgenstein, naproposição 5.47321 do “Tractatus Logico-Philosophicus”, ou W. O.QUINE, em Quiddities. An Intermittenly Philosophical Dictionary, Cambridge:Harvard University Press, 1987, p. 12, referência à “navalha deOckham”, numa rara concessão a um filósofo medieval.

89

Page 90: Tese para IFCS

pretende seja exaustiva, ou então com uma rápida consulta aos

sites de pesquisa da internet.

Há poucas data fixadas com precisão na vida de Ockham.

Data e local de nascimento são apontados, vagamente, como

situando-se na década de 1280, provavelmente no Condado de

Surrey, distante um dia de viagem a sudeste de Londres. Sobre

o ingresso na ordem franciscana e os estudos de teologia em

Oxford pouco se sabe. Uma data que se dá como certa é a da

ordenação com subdiácono em Southwark, por Robert Winchelsey,

arcebispo de Canterbury, em fevereiro de 1306, sendo a idade

normal para esta investidura os dezoito anos de idade. Da

mesma forma, pode-se supor que até 1310 ele cumpriu sua

formação básica em filosofia, ainda em Londres, passando ao

estudo da teologia, provavelmente já em Oxford, e iniciando a

leitura ou interpretação (Reportatio) das “Sentenças” de Pedro

Lombardo, provavelmente entre 1317 e 1319,concluindo, assim,

o bacharelado em teologia, habilitando-se para a obtenção do

grau de mestre.73

73 Cf. WILLIAM J. COURTENAY, “The Academic and Intellectual Worlds of Ockham”,in: The Cambridge Companion to Ockham, P. V. SPADE (ed.), Cambridge:Cambridge University Press, 1999, p. 19 ss.

90

Page 91: Tese para IFCS

Em torno de 1321, Ockham foi nomeado professor de

filosofia em uma das escolas franciscanas de Londres, quando

então se inicia o período em que produz duas principais obras

de lógica, filosofia natural e teologia. É quando suas idéias

já começam a ganhar notoriedade e também se tornar objeto de

controvérsias, que terminarão ensejando a convocação, em

1324, para comparecer perante o Papa João XXII, refugiado em

Avignon – após a ocupação de Roma por Luís da Baviera,

escolhido imperador pela maioria dos reis-eleitores do Sacro

Império Romano-Germânico, tendo o Papa coroado o candidatos

derrotado, o francês Felipe, o Belo -, sob a acusação de

praticar ensinamentos falsos e heréticos.

A comissão nomeada para examinar a doutrina de Ockham

era integrada por doutores em teologia parisienses, em geral

dominicanos, e apenas um proveniente de Oxford, John

Lutterell, sendo quase todos eles de orientação tomista – o

Papa João XXII vinha de canonizar Tomás de Aquino -, a

exceção apenas do dominicano Durand de Saint Pourçain, um

simpatizante da teologia de Duns Scot.74

74 Cf. id. ib., p. 25.

91

Page 92: Tese para IFCS

Na noite de 26 de maio de 1328, com o recrudecimento das

disputas teológicas sobre a pobreza franciscana, juntamente

com o superior da ordem, Miguel de Cesena e outros frades,

Ockham foge de Avignon para refugiar-se junto a Luís da

Baviera, inicialmente na Itália, depois em Munique, onde

nosso A. terminaria os seus dias - ao que tudo indica vítima

da peste negra -, em 1347, dedicando-se à elaboração de

escritos políticos e libelos contra o Papa João XXI e seu

sucessor, Benedito XII, a quem acusava de heréticos.

O Papa João XXII, em bula de 1329, Quia vir reprobus - onde o

“vir reprobus” é ninguém menos que o superior da ordem

franciscana, Miguel de Cesena, o qual, com o auxílio de

Ockham, ousara contestar idéias similares expostas em bulas

anteriores -,75 defendera que somos portadores de direitos de

propriedade desde a criação, ao contrário do que entediam os

minoritas, para quem a divisão de bens é posterior à queda,75 As outras bulas foram as seguintes: Ad conditorem canonum (1322),Cum inter nonnullos (1323) e Quia quorundam mentes (1324). João XXI,invocando a autoridade de Tomás de Aquino, que vinha de sercanonizado por ele, afirma o poder do Papa de modificar os cânonesantigos e instituir direito canônico novo. E é ainda em Tomás querecolhe a noção de que a propriedade se constitui em um direitonatural, sendo o regime mais apropriado ao desenvolvimento humanona vida terrena, donde ninguém poder dela abdicar, para o seupróprio bem – nem mesmo as comunidades franciscanas.

92

Page 93: Tese para IFCS

ao pecado original, e uma conseqüência disto, donde a

possibilidade de se fazer o voto de pobreza, constitutivo de

sua ordem.76 É àquela bula que se reportará diretamente

Guilherme de Ockham, para defender a si e aos seus irmãos de

ordem, em sua “obra escrita em noventa dias” (“Opus nonaginta

dierum”), fazendo uma série de distinções e chegando a

conclusões tão surpreendentes para o ambiente intelectual da

época, e mesmo de hoje, como aquela da heresia do Papa – ao

negar até a pobreza de Jesus e dos Apóstolos -, às quais só

teriam sido possíveis graças à dissolução de hierarquias

categoriais por ele operada no plano lógico e, então,

transposta para o plano político, onde se destaca,

76 Para melhor situar a chamada “querela da pobreza franciscana”,de que aqui se trata, a qual marcará profunda e extensamente aIdade Média em sua fase terminal, vale recordar a fórmula jurídicapela qual a ordem franciscana conciliava seus inúmeros bens com adeterminação básica de seu fundador, de que deveriam ser pobrescomo Jesus o foi: à ordem cabia o uso, a posse, como diríamos emtermos modernos, restando a propriedade com a Igreja católica. É oque se exprime com toda clareza já na Bula Ordinem Vestrum (1245), deInocêncio IV, assim como em diversas outras que a ela se seguiram:os bens que utilizavam os franciscanos pertenciam in jus et proprietatemBeati Petri, sendo o seu dominium, portanto, da Santa Sé. Assim, comuma fórmula ainda mais incisiva, em 1279, a Bula Exiit qui seminat, deNicolau III, adotando a fórmula proposta por S. Boaventura,prescrevia aos franciscanos o simplex usus facti de seus bens, o jusutendi, o ususfructus e a possessio, sendo da Igreja romana a proprietas.

93

Page 94: Tese para IFCS

literalmente, a singularidade de um pensamento da

singularidade.77

Dentre as obras produzidas por Guilherme de Ockham no

contexto de sua querela com o Papa João XXII a respeito da

pobreza dos monges franciscanos, de onde emergirá seu

conceito pioneiro de “direito subjetivo”, o trabalho

grandioso de G. de Lagarde destaca a “Opus nonaginta dierum”

como a mais significativa,78 enquanto Villey vai ainda mais

longe, afirmando que é nas páginas iniciais desse trabalho

onde “nous pouvont saisir sur le vif le passage du langage

romain au langage moderne”.79

A abordagem de Ockham do problema jurídico-teológico em

questão principia deslocando-o desse campo para aquele outro,

por ele tão cultivado em seus trabalhos de lógica – e que

hoje denominaríamos melhor como “semiótico” ou “semiológico”,

por trabalhar antes a significação de um conceito do que o

77 Cf. P. ALFÉRI, Guillaume D’Occam. Le singulier, Paris: Les Éditons deMinuit, 1989; WIM STAAT, Ockham, singularity and multiculturalismo. AnOckhamist analysis of singularity and its politico-legal implications”, in:International Journal for the Semiotics of Law, vol, IX, n. 26,Liverpool: Deborah Charles Publ., 1996, pp. 139/172.78 Cf. La naissance de l’esprit laïque, vol. IV, Paris, 1962, pp. 159 ss.79 Seize Essais de Philosophie du Droit, Paris: Dalloz, 1969, p. 158.

94

Page 95: Tese para IFCS

modo como eles se articulam corretamente, distinguindo-se

também da abordagem mais comum em seu tempo, aquela que

também em termos modernos se denominaria “ontológica”, em que

se buscava a definição do que eram os entes representados

pelos signos, ao invés de seu significado. É que Ockham

inicia coletando os diversos sentidos dos termos empregados

na disputa, não deixando de incluir, além daqueles por assim

dizer “técnicos”, como aparecem empregados por juristas e

teólogos, também o sentido comum, “vulgar”. E é precisamente

do uso à época comum, gerado pelo contexto de emergência da

economia de mercado capitalista, que ele vai tomar o sentido

de jus, o qual lhe possibilitará mostrar o grave erro cometido

por João XXII. É este sentido de “direito subjetivo”,

enquanto direito de propriedade, que será o sentido

consagrado modernamente: o de poder, potestas.80

O pensamento de Ockham orienta-se por três princípios

fundamentais:81 o princípio da onipotência divina, o princípio

80 Cf. VILLEY, Seize Essais de Philosophie du Droit, cit., p. 168.81 Para uma exposição da vida e obra de Ockham, v. a “Introdução” deC. R. DE SOUZA e LUIS A. DE BONI em GUILHERME DE OCKHAM, Brevilóquiosobre o Principado Tirânico, trad.: LUIS A. DE BONI, Petrópolis: Vozes,1988, pp. 11 ss.

95

Page 96: Tese para IFCS

da não-contradição e o princípio da economia. O primeiro

desses princípios, naturalmente, vale apenas para a

divindade: Deus é absolutamente livre para fazer o que bem

entender – exceto o que for contraditório com o que já tenha

feito ou criado anteriormente. Então, o segundo princípio

enunciado vincula a própria divindade e, com mais razão

ainda, haverá de vincular a humanidade. Já o terceiro

princípio, o qual se refere à chamada “navalha de Ockham”,

deve ser obedecido apenas por nós, a fim de evitarmos criar

conceitos desnecessários para conhecermos a realidade: a

Divindade, que é livre para criar tanto os conceitos como a

própria realidade a que se referem, sempre poderá multiplicá-

los e reinventá-la a seu bel-prazer.

Pelo princípio da onipotência divina, tudo provém de

Deus, até o que para nós, por uma deficiência nossa, é mal e

pecado, pois Ele, ao contrário de nós, não é devedor de

ninguém – nullius est debitor.82 Em sendo assim, Ele não peca, por

não estar obrigado em relação a ninguém a fazer o que é bom e

82 A não ser que Ele mesmo se comprometa com alguém, como anotaMARYLIN MACCORD ADAMS, em “Ockham on Will, Nature, and Morality” in: TheCambridge Companion to Ockham, cit., p. 264.

96

Page 97: Tese para IFCS

não é pecado.83 A rigor, portanto, Deus nem é moralmente bom

nem mal.84

A este princípio vai, então, corresponder um outro, que

podemos denominar “(sub)princípio da contingência”, pelo qual

só Deus é necessário, sendo tudo o mais contingente,

inclusive o mundo como um todo, que seria apenas um dos

infinitos mundos possíveis. Que este mundo exista, depende

absolutamente de Deus: a onipotência de Deus é condição

necessária (conditio sine qua non) da existência do mundo, sendo,

por outro lado, condição suficiente (conditio per quam) de que

ele seja e permaneça como é, que essa potentia absoluta atue

segundo uma determinada concepção, de forma ordenada – como

potentia ordinata, portanto.85

83 Cf. OCKHAM, Opera theologica, G. GÁL/ST. BROWN et al. (eds.), NewYork: St. Bonaventure Institute, 1967 -, vol. VII, p. 45; Id.,Quodlibeta, III, q. III, tb. in Coleção “Os Pensadores”, Vol.: “Tomásde Aquino, Dante, Duns Scot, Ockham”, São Paulo: Abril Cultural, 2ª

ed., 1979, p. 403 e in id. “Philosophical Writings. A Selection”, PH.BOEHNER (trad., int. e notas), STEPHEN F. BROWN (rev.), New York:St. Bonaventure Inst., 1990, p. 131. V. ainda J. BECKMANN, Wilhelmvon Ockham, Munique: Beck, 1995, p. 36. 84 Cf. MARILYN MACCORD ADAMS, ob. ult. cit., p. 272, nota 140.85 A noção de potentia ordinata, assim como aquela de potentia absoluta,como é sabido, não são de maneira alguma originárias de Ockham,pois são mencionadas por diversos de seus predecessores, inclusiveTomás de Aquino, embora em poucos – e um desses seria PetrusJohannis Olivi -, tenha assumido a significação central que lhesconsagra Ockham, com implicações teológicas que estão na base da

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Page 98: Tese para IFCS

Um outro (sub)princípio, correlato tanto ao princípio da

onipotência divina, do poder infinito de Deus, como ao

(sub)princípio da contingência, será, então, o (sub)princípio

da finitude da razão humana. As razões de Deus para criar o

mundo tal como o conhecemos, ou para alterá-lo, não nos são

acessíveis, pois nossa capacidade de compreensão das coisas,

tal como elas próprias, é criada e contingente: fora Deus,

que é necessário, tudo o mais pode se tornar diferente, ou

ser diferente do que pensamos.86 Quão distante deixamos,

própria querela sobre a pobreza franciscana. Cf. VOLKER LEPPIN,Geglaubte Wahrheit. Das Theologieverständnis Wilhelm von Ockham, Göttingen:Vandenhoeck & Ruprecht, 1995, p. 123 ss. A distinção entre as duasformas da potência divina é feita em termos jurídicos por DunsScot, considerando aquela ordinata em um sentido literal, como deacordo com regras, estabelecidas pela própria divindade, e que sóela poderia descumprir, estabelecendo outras, de potentia absoluta. Cf.MARILYN MCCORD ADAMS, William Ockham, vol. II, Notre Dame (Ind.):University of Notre Dame Press, 1987, p. 1190 ss. Ockham faráextenso uso da concepção jurídica aí implicada, conforme veremosadiante.86 Já o conhecimento de Deus, ao contrário, é perfeito e completo,abrangendo mesmo os fatos futuros contingentes, posto que cabe aEle determiná-los, e Ele conhece as coisas antes de criá-las –“Deus ipsasmet res praecognoscit quas postea producit...”. Cf. OCKHAM, Operatheologica, cit., vol. IV, p. 504; BECKMANN, cit., p. 41. Logo, sobcerto aspecto, só para nós é que os fatos futuros sãocontingentes, sendo essa contingência um signo da limitação denosso conhecimento, enquanto Deus habeat scientiam determinatam etnecessariam omnium futurorum contingentium. Cf. OCKHAM, Ordinatio, D.XXXVIII, Q. unica; tb. in Coleção “Os Pensadores”, cit., p. 404 e inid., Philosophical Writings. A Selection, cit., p. 133. V. ainda BECKMANN, ob.cit., pp. 38 ss.

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Page 99: Tese para IFCS

então, o necessitarismo parmenídeo-platônico-aristotélico, de

acordo com o qual o ser, por existir, necessariamente é, pelo

princípio da não-contradição. E este princípio, no entanto,

também vale para Deus, no sentido específico que lhe atribui

Ockham.

O princípio da não-contradição, em Ockham, não tem

apenas um sentido lógico, como tradicionalmente se atribui a

Aristóteles, para quem, de acordo com a célebre passagem da

“Metafísica”,87 algo não pode ser e deixar de ser, ao mesmo

tempo, dadas as mesmas condições. Para Ockham, esse princípio

remete a um outro, que podemos denominar o “(sub)princípio da

singularidade”, pelo qual o princípio da não-contradição

assume um determinado sentido ontológico, na medida em que se

torna “o meio mais seguro de prova da diferença entre as

87 Cf. liv. IV, 3, 1005 b 24, e tb. ib., 19-23, 32/33.

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Page 100: Tese para IFCS

coisas”,88 de sua radical singularidade:89 Tudo o que existe no

mundo exterior, em si mesmo, é singular.90

De acordo com Ockham, não apenas devemos evitar a

contradição quando formulamos juízos lógicos, mas sequer

podemos conhecer objetos contraditórios, que, em verdade, não

88 Cf. OCKHAM, Opera theologica, cit., vol. I, p. 174; BECKMANN, cit.,pp. 40 ss. Para uma defesa consistente do caráter ontológico do“singularismo” de Ockham, i.e., do que no texto denominamos“(sub)princípio da singularidade”, v. B. RYOSUKE INAGAKI, “Res andSignum – On the Fundamental Ontological Presupposition of the Philosophi of WilliamOckham”, in G. WIELAND et al., Philosophie im Mittelalter. W. Kluxen zum 65.Geburtstag, Hamburgo: F. Meiner, 1996, pp. 302 ss.89 Um outro (sub)princípio – ou (sub)subprincípio - relacionado aeste da singularidade, que se pode referir, no contexto daontologia ockhamiana e em conexão com o problema dos universais,enuncia-se como um “princípio de diversidade”. De acordo com ele,apenas entidades reais, as coisas mesmas, são diversas entre si –e sempre o são. Diversidade (diversitas), porém, não deve serconfundida com diferenciação (differentia), pois esta última é operadapelo intelecto em sua atividade cognitiva, donde se justificar quenão se diferencie, sob certos aspectos, coisas que, no entanto,são, de fato, diversas. Cf. Ockham, Opera theologica, cit., vol. II,p.212; Beckmann, cit., pp. 108 ss. É interessante observar quesemelhante colocação permite que se estabeleça relações entre opensamento medieval aqui estudado e aquela epistemologia ditaconstrutivista radical, defendida por autores contemporâneos,identificados pelos estudos feitos no Instituto de Palo Alto(EUA), como Bateson, Heinz von Foerster, Luhmann, Maturana,Varela, Watzlawick etc. Adiante, essa perspectiva será considerada(infra, n. 8).90 “Quaelibet res extra animam seipsa est singularis”. Ordinatio, D. I, Q. II, 6.De passagem, vale notar como o mesmo “singularismo” será defendidopor Locke – “Things themselves, which are all of them particularin their existence...”. “An Essay concerning human Understanding”,III, 3, 11. Cf. B. R. INAGAKI, ob. cit., pp. 303 e seg.

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Page 101: Tese para IFCS

podem existir, posto que todos são iguais a si mesmos e

apenas a si mesmo, não podendo ser, ao mesmo tempo, “si-

mesmos” e “não-si-mesmos”. Deus, então, em sua onipotência,

cria livremente, optando entre infinitas possibilidades,

dentre as quais, porém, não há contraditoriedade. É condição

mesmo da vontade livre de Deus que ela não seja arbitrária,

mas sim, que sua potência absoluta se exerça dentro de

determinada ordem, como potentia ordinata, e ordenada

racionalmente, posto que Ele, antes de criar, (pré)conhece o

que cria, operando racionalmente.91 Deus é livre, mas não é91 “Deus ipsasmet res praecognoscit quas postea producit...; ideo dicitur rationabiliteroperans”. Cf. OCKHAM, ib., vol. IV, p. 504; BECKMANN, ib., p. 41. Emoutras passagens, lê-se que Deus pode fazer tudo quanto não incluacontradição – “Deus potest facere quidquid non includit contradictionem” (id. ib.,vol. IV, p. 36) – e não pode fazer nada desordenadamente – “Deus nilpotest facere inordinate” (id. ib., vol. IX, pp. 585 e seg.). Isto não deveser entendido como uma limitação à potência absoluta de Deus, poiso respeito ao princípio da não-contradição, donde decorre ocaráter ordenado e racional de Sua atividade, é antes condição depossibilidade de Sua liberdade. Cf. BECKMANN, ib., p. 149. Estaconcepção da liberdade do próprio Ser criador do Universo comodecorrente da obediência a uma regra, lógica, ontológica e, emprimeiro lugar, deontológica, que veda em termos absolutos a não-contradição, reconhecendo-a como aparência, existência, mas nãocomo essência, na qual se dissolvem todas as contradições, nosremete à retomada da perspectiva hegeliana, denominada por Dilthey“idealista objetiva”, trabalhada em nossos dias por VITTORIOHÖSLE, esp. em “Hegels System”, 2 vols., Hamburgo: Rowohlt, 1987,e entre nós, por CIRNE-LIMA, “Sobre a Contradição”, Porto Alegre:EDIPUCRS, 1993 e MANFREDO ARAÚJO DE OLIVEIRA, “Sobre aFundamentação”, id: ib. Uma investigação da presença de princípiosnormativos na base mesma de toda estrutura conceitual, mesmo

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Page 102: Tese para IFCS

desarrazoado, guardando coerência com as premissas que Ele

mesmo estabelece – embora sempre possa optar por outras.

Já a compreensão humana é tão limitada, como é limitada

sua possibilidade de ação. Nota-se como para nosso A.

conhecer é agir, sendo essa ação tão mais eficaz, quanto

menos esforço seja despendido para obter o máximo em

explicação como resultado. Daí que, pelo princípio da

economia, segundo Ockham, deve-se optar pela explicação mais

simples e, ao mesmo tempo, mais abrangente.

A célebre fórmula da “navalha de Ockham”, “entia non sunt

multiplicanda sine necessitate”, não foi enunciada por nosso A., pois

para ele o princípio da economia não se relaciona com os

entes, não são eles que não devem ser multiplicados

inutilmente – o que só Deus poderia fazer: e, de fato, até

onde podemos perceber, o faz -, mas sim o conhecimento deles,

donde não ser esse um princípio ontológico, mas tão-somente

epistemológico. As duas formulações cunhadas por Ockham do

aquela lógico-matemática, encontra-se em WILLIS SANTIAGO GUERRAFILHO, “Para uma Filosofia da Filosofia (Conceitos deFilosofia)”, cit., cap. 3, pp. 39 ss. Para uma concepção docaráter “dialógico” e “mundo-constitutivo” (weltbildend) do princípioda não-contradição cf. FRANCIS WOLFF, “Dizer o Mundo”, São Paulo:Discurso Editorial, 1999.

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Page 103: Tese para IFCS

princípio da economia seriam: (a) “frustra fit per plura quod fieri

potest per pauciora”92 (inutilmente se faz com muito o que se pode

fazer com pouco) e (b) “pluralitas non est ponenda sine necessitate”93

(uma pluralidade não deve ser pressuposta sem necessidade).94

Pela utilização desse princípio, afasta-se uma série de

assertivas, por serem supérfluas e, logo, desprovidas de

sentido, ao implicarem a existência de entidades para validá-

las, quando bastaria estabelecer condições de validação.

Nota-se, aí, uma antecipação, em Ockham, da substituição

operada na ciência contemporânea dos conceitos substanciais

em favor daqueles relacionais, evitando o hipostasiamento

metafísico. 95

92 Cf. OCKHAM, ib., vol. III, pp. 430 e 475, id., vol. V, pp. 199,268 e 436, id., vol. VI, pp. 136 e 399; BECKMANN, ib., p. 43.93 Cf. OCKHAM, ib., vol. I, pp. 74 e 415, id., vol. IV, pp. 202, 317e 322, id., vol. V, pp. 256, 404, 414 e 442, id., vol. VI, pp. 17,59, 124 e 408, id., vol. VII, pp. 52 e 213; BECKMANN, id. ib.94 Apesar do uso freqüente por parte de Ockham das duas fórmulasaqui mencionadas, Ph. Boehner entende ser aquela que melhorexpressa o princípio da economia a enunciada no seguinte texto,extraído de Ordinatio, D. I, Q. XXX, 1 (Contra opinionem Scoti): “nihildebet poni sine ratione assignata nisi sit per se notum vel per experientiam scitum vel perauctoritatem Scripturae Sacrae probatum”. Cf. BOEHNER, Collected Articles onOckham, New York: St. Bonaventure Inst., 1958, p. 155. Cf. RYOSUKEINAGAKI, ob. cit., p. 311, nota.95 Não por acaso, certamente, a categoria aristotélica da relaçãovem recorrentemente tratada em quase todas as obras de Ockham,segundo Ghisalberti – cf. A. GHISALBERTI, Guilherme de Ockham, trad.:A. DE BONI, Porto Alegre: EDIPUCRS, 1997, p. 124 -, dentre as

103

Page 104: Tese para IFCS

Pelo princípio da economia, devemos evitar o quanto

possível supor a existência de entidades - o que, de todo

modo, é sempre incerto, em razão do (sub)princípio da

contingência - para explicar os fenômenos, assim como devemos

evitar a contradição, para com isso nos aproximarmos ao

máximo da compreensão de uma realidade criada por um Deus, a

partir de sua potência a um só tempo absoluta e ordenada.

O conhecimento fornecido por conceitos, que remetem a

entidades, que podem efetivamente existir ou não, é

denominado por Ockham “intuitivo”, enquanto um outro tipo de

conhecimento, dito “abstrativo”, não pressupõe qualquer

afirmação da existência de seu objeto.

O conhecimento intuitivo é o conhecimento próprio do

singular, é causado por ele, mas não vem dele enquanto objeto

de conhecimento, como é sustentado tradicionalmente, desde

Aristóteles a Tomás de Aquino, pois entre ele e o

conhecimento se interpõe o conceito enquanto signo, o qual

não faz propriamente o sujeito cognoscente ter acesso

quais se incluiria, para a maioria dos estudiosos, um Tractatus derelatione, incluído na Opera philosophica, PH. BOEHNER, G. GÁL, ST. BROWN(eds.), New York: St. Bonaventure Institute, 1974 -, vol. VII, pp.348 ss.

104

Page 105: Tese para IFCS

imediato à natureza das coisas – da qual, de resto, é de se

contestar a existência, na medida em que sua imutabilidade

vai de encontro à soberana liberdade de Deus -, mas antes

as significa para ele, remete-o a elas.96

Ghisalberti atribui ao espanhol Theodoro De Andrés o

mérito de ter evidenciado a dupla acepção do signo em Ockham,

correspondente a dois níveis diferenciados de significação.97

O primeiro nível é dito “significativo-representativo”, onde

o signo é imagem (imago) e marca (vestigium), produzindo o

96 Cf. OCKHAM, ib., vol. IX, p. 74; Id., Quodlibeta, I, Q. iii, tb. inColeção “Os Pensadores”, Vol.: “Tomás de Aquino, Dante, Duns Scot,Ockham”, cit., pp. 358 ss. e in id., “Philosophical Writings. A Selection”,cit., pp. 27 ss. V. ainda J. BIARD, Guilherme d’Ockham. Logique etphilosophie, Paris: P.U.F, 1997, pp. 25 ss.; GHISALBERTI, ib., p. 80,o qual esclarece ainda a relação entre esta postura gnosiológicade nosso A. com, por um lado, o princípio da economia e, de outrolado, o (sub)princípio da singularidade, acrescenta que “tendorejeitado a existência de uma comunidade ou parentela potencialdas coisas entre si, Ockham rejeita igualmente a teoria que faz oconhecimento humano consistir em um ato de reprodução da realidadeexterna mediante uma imagem, a já mencionada espécie inteligível,que reproduz a nível mental as coisas na sua essência”. Nota-se,aí, como Ockham foi o precursor daquela concepção filosófica“anti-representacionista”, defendida contemporaneamente porfilósofos como Gilles Deleuze e Richard Rorty, assim como,anteriormente, pela fenomenologia, na interpretação daintencionalidade, o que é destacado por GHISALBERTI, ob. loc. ult.cit. Sobre a precedência de Ockham na crítica contemporânea àrepresentação de singularidades cf. WIM STAAT, “Ockham, Singularity andMulticulturalism: An Ockhamist Analysis of Singularity and its Politico-LegalImplications”, cit., pp. 139 ss.97 Cf. DE ANDRÉS, ob. ult. cit.; GHISALBERTI, ib.

105

Page 106: Tese para IFCS

significado ao evocar o que é re-presentado pela imagem ou

marca deixada pela coisa significada, que é re-conhecida no

signo. É no segundo nível, dito significativo-lingüístico,

que se dá uma intelecção primária, uma notitia, antes que uma

cognitio,98 quando para além da relação de efeito-causa – onde

efeito é o signo e causa o conhecimento – o signo mais que

re-presentar está em função suposicional, supponit pro, está no

lugar da coisa significada, a substitui em uma proposição,

seja convencionalmente, enquanto termo oral ou escrito, seja

“naturalmente”, enquanto verdadeiro conceito, que é ato de

conhecimento, reação psicossomática espontânea do

entendimento humano (esse obiectivum) ante a presença ativa do

objeto (esse subiectivum).99

98 A distinção entre notitia e cognitio, na Escolástica tardia, éapresentada por ANTONIO RAIMUNDO DOS SANTOS, em Repensando a Filosofia.Prólogo do Comentário de Guilherme de Ockham às Sentenças, Questão 1ª, PortoAlegre: EDIPUCRS, 1997, pp. 27 ss. Notitia seria uma qualidade deuma potência cognitiva, ao lado de outras como o habitus(disposição cognitiva) e as species, sensíveis ou inteligíveis. Adiferença está em que a notitia enseja uma modificação na potênciacognitiva quando esta se exercita, gerando conhecimento, enquantona cognitio tem-se um conhecimento possuído, mesmo quando nãoexercido.99 Cf. OCKHAM, Opera theologica, cit., vol. II, pp. 544 ss.; id.,Scriptum in I librum Sententiarum, distinctio 3, quaestio 9, in: ib.; id., Summalogicae, I, 1, in: Opera philosophica, cit., vol. I. V. tb. Wilhelm vonOckham. Texte zur Theorie der Erkenntnis und der Wissenschaft, int., trad. enotas: RUEDI IMBACH, Stuttgart: Reclam, 1987, nota 12, pp. 219 e

106

Page 107: Tese para IFCS

Eis que, ao abordar o signo como termo conceitual, a

presente exposição toca no que se pode considerar o ponto

central do pensamento de Ockham, a respeito da questão básica

do conhecimento, tanto que este pensamento, quando é

identificado com maior precisão, não é qualificado como

“nominalismo”, mas sim, como “terminismo” ou

“conceptualismo”.100 A continuação requer que o domínio de

algumas das categorias lógico-gramaticais básicas, com as

seg.100 Cf. GHISALBERTI, ob. cit., pp. 94 e seg.; CARLOS LOPES DEMATTOS, in Coleção “Os Pensadores”, Vol.: “Tomás de Aquino, Dante,Duns Scot, Ockham”, cit., nota 8, p. 349. Não se pode confundir,portanto, o nominalismo de Ockham – que Philotheus Boehnerconsidera um “realismo conceitual” (cf. “The Realistic Conceptualism ofWilliam Ockham”, in id., “Collected Articles on Ockham”, cit., pp. 156 ss.)– com a versão primeira do nominalismo, oriunda de Roscelin deCompiègne, o professor de Abelardo, pela qual os universais sãoreduzidos a meras palavras, flatus vocis, donde Alain de Liberareferir como sendo a denominação mais precisa da doutrinarosceliana aquela de “vocalismo”. Cf. ALAIN DE LIBERA, Pensar naIdade Média, trad. PAULO NEVES, Rio de Janeiro: 34, 1999, p. 30.Também Leff posiciona-se contra a classificação de Ockham comonominalista – cf. GORDON LEFF, William of Ockham. The Metamorphosis ofScholastic Discourse, Manchester: Manchester University Press, 1975, p.213, passim -, assim como, antes dele, TH. DE ANDRÉS, ob. cit., p.215, opiniões destacadas, em sentido convergente, por RYOSUKEINAGAKI, ob. cit., p. 301, nota 1, e GHISALBERTI, ib., p. 126, nota208, respectivamente. Inagaki refere ainda, dentre os que semanifestaram mais recentemente sobre o assunto, posiçõesintermediárias, como a de Armand Maurer, que restringe onominalismo de Ockham a sua concepção da ciência, bem comoposições que retomam aquela mais tradicional, reafirmando onominalismo ockhamiano, a exemplo daquela defendida por CarlosNorena, em artigo de 1981. Cf. B. R. INAGAKI, ob. loc. ult. cit.

107

Page 108: Tese para IFCS

quais Ockham trabalha, como, por exemplo, as espécies de

“suposições”, desenvolvidas a partir do conceito de suppositio,

tomado da lógica de Pedro Hispano; a diferença entre a

“notícia” de (objetos) “complexos” e “incomplexos”; ou ainda

as espécies de “termos”. Em seguida, a partir dessas

distinções, pode-se precisar qual seria, em Ockham, o

estatuto epistemológico das diversas ciências ou formas de

conhecimento, especialmente as ciências naturais, a teologia

e a metafísica.

Para Ockham, são três as espécies fundamentais de

“suposições” (de sup + pono, literalmente, “pôr embaixo”, e

mais propriamente, “pôr no lugar”) dos termos que podem

compor uma proposição, constituindo-a na qualidade de sujeito

ou predicado: pessoal, simples e material.101

Na suposição pessoal ou universal o termo está no lugar

do seu significado, natural – v.g., na frase “o homem corre” -

ou convencional – p. ex., na frase “a espécie é um

101 Cf. OCKHAM, in Coleção “Os Pensadores”, Vol.: “Tomás de Aquino,Dante, Duns Scot, Ockham”, cit., pp. 376 ss. e in id., PhilosophicalWritings. A Selection, cit., pp. 63 ss.

108

Page 109: Tese para IFCS

universal”.102 Na suposição simples o termo empregado designa

um conceito, correspondente a uma intenção do cognoscente

(intentione animae) de referir-se diretamente a alguma coisa –

em “primeira imposição”, portanto, e não, em “segunda

imposição”, quando a referência é a um outro nome ou termo.103

Uma frase que exemplifica este tipo de suposição é: “o homem

é uma espécie”. Finalmente, na suposição material, tem-se o

caso da auto-referência, em que o termo não remete nem a uma

realidade física, nem a um conceito, mas apenas a si mesmo,

estando no lugar de si mesmo, na escrita ou na fala – é o que

102 “Suppositio personalis, universaliter, est illa quando terminus supponit pro suosignificato”. OCKHAM, Summa logicae I, 64, in: Opera philosophica, cit., p.195. V. tb. GHISALBERTI, ob. cit., p. 46. Vale lembrar que umuniversal não é um conceito como “homem” é uma espécie – v. infra,nota 115.103 A impositio é o ato pelo qual as pessoas atribuem significado aossignos convencionais, escritos ou falados, sendo esses signos,segundo Ockham, nomes, que podem ser de primeira ou segundaimposição, uma distinção que se pode perfeitamente relacionar comaquela feita pelos positivistas lógicos, entre uma linguagem-objeto e a metalinguagem. Cf. Ockham, Summa logicae I, 11; tb. id., inColeção “Os Pensadores”, Vol.: “Tomás de Aquino, Dante, Duns Scot,Ockham”, cit., pp. 371 e seg., bem como in id., Philosophical Writings. ASelection, PH. BOEHNER, (trad., int. e notas), STEPHEN F. BROWN(rev.), cit., pp. 56 ss. V. ainda RUEDI IMBACH, ob. cit., pp. 13,47 ss. e 223, nota 37.

109

Page 110: Tese para IFCS

ocorre com o termo “homem” quando proferimos ou escrevemos a

frase “homem é um nome que se escreve com cinco letras”.104

Dentre os diversos tipos de suposições ou modos dos

termos suporem por (substituírem) outros ou as coisas –

realidades individuais significadas pelos sujeitos -, merece

destaque a suposição pessoal, que corresponde à função

significativa dos termos. Ockham opera uma série de divisões

e subdivisões desta suposição, onde se evidencia como toda a

lógica, especialmente enquanto aparato de inferências,

implicações e predicações – para nosso A., pertence ao

domínio da lógica também o estudo dos argumentos, mesmo

quando fundamentados por autoridade –, constrói-se a

partir das suposições.105

Também a verdade, para nosso A., decorrerá da suposição,

enquanto garantia de que as proposições referem-se à

realidade. Note-se que nesta concepção da verdade se opera

uma inversão daquela tradicional, aristotélico-tomista, em

104 Cf. Ockham, Summa logicae I, 64, in: Opera philosophica, cit., p.196; Ghisalberti, ob. loc. ult. cit.105 Cf. GHISALBERTI, ob. cit., p. 48.

110

Page 111: Tese para IFCS

que a verdade decorre de uma “adequatio intellectus et rei”.106 Verdade

e falsidade, portanto, não são qualidades dos objetos

conhecidos, que se imprimem no sujeito cognoscente, mas são

antes qualidades das proposições, a elas inerentes, enquanto

termos de segunda imposição, abstratos, que se predicam de

proposições, e não de realidades extra-mentais.107 Em assim

sendo, verdadeiro e falso são termos conotativos, que se

referem diretamente a proposições e só indiretamente ao real

estado de coisas a que tais proposições se referem.108 Uma

proposição será verdadeira, segundo Ockham,109 quando

coincidirem sujeito e predicado na suposição pelo mesmo

objeto, i.e., refiram-se à mesma coisa. Mas como proposições

são composta por termos, signos, e não por objetos, coisas,

tudo quanto for reunido sinteticamente nas proposições

constituirá uma unidade no plano mental, sem garantia nenhuma

de que ela se verifique efetivamente no plano real. Só do

106 Cf. TOMÁS DE AQUINO, “Summa theologiae”, I, 16; id., “De veritate”, I,tb. in Coleção “Os Pensadores”, Vol.: “Tomás de Aquino, Dante, DunsScot, Ockham”, cit., pp. 19 ss., 125 ss.107 Cf. RUEDI IMBACH, ob. cit., pp. 95 ss., GHISALBERTI, ib.108 Cf. OCKHAM, Summa logicae I, 10, tb. in Coleção “Os Pensadores”,Vol.: “Tomás de Aquino, Dante, Duns Scot, Ockham”, cit., pp. 369ss. e in id., Philosophical Writings. A Selection, cit., pp. 52 ss.109 Cf. Summa logicae II, 2, tb. in RUEDI IMBACH, ob. cit., pp. 98 ss.

111

Page 112: Tese para IFCS

passado, que nem Deus pode alterar, e de termos idênticos, em

que coincidem suppositio (“quod supponit”) e supponate (“pro quo

supponit”) – v.g., “o homem é o homem”-, pode-se fazer

asserções afirmativas necessariamente verdadeiras, pois sendo

o presente e futuro contingentes, as assertivas sobre o que

não existe ou existirá necessariamente só poderão ser

verdadeiras quando negativas – p. ex., “o homem não é um

asno” - ou condicionais – e.g. “se o homem existe, ele é um

animal racional”. Eis que podemos aí perceber os primórdios

da concepção propriamente moderna de conhecimento, que em

Descartes terá sua formulação lapidar, a se consumar em Kant,

o “último ockhamiano”, conforme o título de artigo da lavra

de A. de Murault – havendo quem confira o título de

derradeiro seguidor a Nietzsche.110

Do exposto, pode-se perceber que também a noção

tradicional de ciência será alterada por Ockham, pois quando

se afirma, como então era de costume, com base em

Aristóteles, que não pode haver ciência das coisas

consideradas em sua singularidade, mas tão-somente do que for

110 Cf. MICHAEL ALLEN GILLESPIE, Nihilism before Nietzsche,Chicago/London: The University of Chicago Press, 1995.

112

Page 113: Tese para IFCS

universal e necessariamente verdadeiro, nesses termos, a

ciência seria impossível para nosso Autor. No “Prólogo” que

escreveu à sua “Exposição dos oito livros da Física”,111

Ockham apresenta sua concepção de ciência, procurando

compatibilizá-la, o quanto possível, com aquela aristotélica.

É assim que a ciência pode ser das coisas, isto é, “ciência

real”, como as ciências naturais, por resultarem de

proposições compostas por termos que supõem por coisas, numa

suposição pessoal. Além disso, há ainda as ciências

racionais, como a lógica, em cujas proposições os termos

estão em lugar de outros termos - em suposição simples,

portanto.

Já no princípio do texto apenas referido, Ockham

conceituara o conhecimento em termos que nos evoca o modo

como muito posteriormente, com Hume e, por último, Popper, se

vai conceber um dos princípios basilares da ciência, aquele

da causalidade: como um hábito (habitus).112 Isso porque o111 Cf. OCKHAM, in Coleção “Os Pensadores”, Vol.: “Tomás de Aquino,Dante, Duns Scot, Ockham”, cit., pp. 347 ss. e in id., PhilosophicalWritings. A Selection, cit., pp. 2 ss.112 Ockham nega, expressamente, que uma relação causal sejademonstrável e, logo, existente, já que não há vínculo necessárioentre as criaturas, pois sendo elas radicalmente diferentes, Deus

113

Page 114: Tese para IFCS

conhecimento, dadas as categorias de Aristóteles, seria de se

classificar como uma qualidade, e uma qualidade da mente, não

das coisas, que podem se alterar sem que isso implique em

alteração do conhecimento que temos delas. O sujeito do

conhecimento – “sujeito” aqui entendido no sentido medieval,

de subjectum, correspondente ao que hoje consideramos o objeto

do conhecimento – será a razão, pois ele será uma qualidade

da alma, adquirida com a repetição de atos intelectivos. Aqui

pode-se ter como apenas iniciado o (longo) processo de

transformação conceitual, que resultará na concepção moderna

da subjetividade como suporte do saber.

Também os conceitos e os universais serão tidos por

Ockham como qualidades da mente, ou melhor, de atos da

intelecção abstrativa empregando signos que, seguindo a

tradição lógica árabe, denomina “nomes de segunda intenção”,

responsáveis por uma significação secundária (ou

sempre pode fazer com que exista uma sem precisar de outra, oumesmo, de potentia absoluta, produzir direta e imediatamente uma que,em circunstâncias normais, necessitaria de outra para surgir. Cf.OCKHAM, Quæstiones in librum secundum Sententiarum (Reportatio), q. III - IV, inid., Opera theologica, cit., vol. V, 1981, esp. pp. 72 e seg.; BIARD, ob.cit., pp. 110 e seg.

114

Page 115: Tese para IFCS

conotação).113 Eles não se encontram “in rebus”, não se

apresentam no modo do ser substancial, nem tampouco naquele

do não-ser, pois são signos de uma pluralidade de coisas que,

enquanto tais, não constituem um saber sobre o que elas são

substancialmente, mas tão-somente declaram algo a esse

respeito.114

Da mesma forma, a unidade de uma ciência, para nosso A.,

não se funda na unidade do que hoje chamamos seu objeto - e

ele chamaria o seu “sujeito”, em sentido lato, enquanto

aquilo do qual se sabe algo. Na verdade, para Ockham, como

anota Ghisalberti,115 “nenhuma ciência possui uma unidade

intrínseca, sendo cada uma delas, antes, um conjunto de

hábitos”. A unidade das ciências, portanto, como a que é

propiciada por toda universalidade, não é uma unidade de

simplicidade, mas de agregação ou composição. Tal concepção

impede que se trace uma linha de demarcação muito rígida

113 Cf. OCKHAM, Summa logicae I, 12, in: Opera philosophica, cit., p. 42;GHISALBERTI, ob. cit, p. 78; RUEDI IMBACH, ob. cit., pp. 52 ss.;BIARD, ob. cit., pp. 42 e seg.114 “Universalia non sunt substantiae, nec de substantia alicuius rei, sed tantumdeclarant substantias rerum sicut signa”. OCKHAM, Opera theologica, cit., vol.II, p. 254; BECKMANN, cit., pp. 114 ss. V. tb. BIARD, ib., p. 41.115 Cf. ob. cit., p. 55.

115

Page 116: Tese para IFCS

entre os diversos saberes, o que se nos afigura mais uma nota

de grande atualidade do pensamento ora apresentado.116

As ciências, portanto, sempre serão a respeito de

proposições, composta por signos – os complexa.117 O mesmo se

diga com relação à metafísica, ocupada com a validade da

predicação do termo “ente” (ens). Esta validade, como a de

toda ciência, seguindo o padrão aristotélico, depende da

universalidade e necessariedade da predicação. Em Ockham,

como vimos, a universalidade é uma característica aferida

pelo emprego dos signos nas proposições – uma função

semiótica, portanto. Já com a necessariedade, em um mundo

onde tudo, a exceção de Deus, é contingente, não-

necessário,118 não poderia ser diferente: não se busca, nas

ciências, proposições sobre o que é necessariamente

verdadeiro (“propositiones de necessario”), mas sim proposições

116 Mais uma vez vem-nos à lembrança Karl Popper, quando em textoclássico nega que haja critérios para uma demarcação rigorosaentre os domínios da ciência e da metafísica.117 “Semper scientia est respectu alicuius complexi”. Cf. OCKHAM, Opera theologica,cit., vol. I, p. 5; Beckmann, cit., p. 127.118 De acordo com Ockham, “necessário” é tudo aquilo cujo contrárioé impossível; “possível” é o que, sem ser contraditório, admite umcontrário, que igualmente não o é; “contingente”, por fim, é o queé, mas sem contradição, pode também ser diferente. Cf. Operaphilosophica, cit., vol. I, p. 334; BECKMANN, ib., p. 129.

116

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verdadeiramente necessárias (“propositiones necessariae”). Uma das

conseqüências dessa concepção, que novamente a coloca em

sintonia com a epistemologia contemporânea, é a de que a

necessariedade de uma proposição não corresponde à pretensão

de que ela seja sempre e em qualquer circunstância

verdadeira, mas sim que o seja, dadas certas condições.119

Assim como a metafísica, também a teologia é considerada

por Ockham uma ciência do discurso – no caso, do discurso

sobre Deus e a salvação. Trata-se, porém, de uma ciência

especial, já por ser uma ciência com duas acepções diversas.

Numa primeira acepção, é diversa das demais ciências por ser

mais que elas, por lhes ser superior, enquanto ciência que

não é humana (“scientia hominis”120), por ser ciência divina,

discurso de Deus, “theologia in se”. Além desta, existe a

“theologia nostra”, a do peregrino (viator),121 que é uma ciência119 Cf. BECKMANN, ib., p. 128.120 Cf. OCKHAM, “Prologus in Expositio super VIII libros physicorum”, in Coleção“Os Pensadores”, Vol.: “Tomás de Aquino, Dante, Duns Scot,Ockham”, cit., p. 348 e in id., Philosophical Writings. A Selection, cit., p.3.121 “Intellectus viatoris est ille, qui non habet notitiam intuitivam Deitatis sibi possibilemde potentia Dei ordinata. Per primum excluditur intellectus beati, qui notitiam intuitivamDeitatis habet; per secundum excluditur intellectus damnati, cui non est illa notitiapossibilis de potentia Dei ordinata, quamvis sit sibi possibilis de potentia Dei absoluta”.Esta passagem da primeira questão do prólogo do comentário deOckham às sentenças de Pedro Lombardo é traduzida do seguinte modo

117

Page 118: Tese para IFCS

inferior às demais, na medida em que a finitude da razão

humana não nos permite ter acesso, pelo saber natural, a

juízos conclusivos sobre o assuntos pertinentes à divindade –

e se fosse diverso, caso pudéssemos formular tais juízos como

necessariamente verdadeiros, mesmo submetidos a certas

condições, restaria ameaçada a onipotência absoluta de Deus.

Com isso, não se postula, de modo algum, a

irracionalidade de Deus – como vimos anteriormente, Sua

potência absoluta é “ordinata”, exerce-se racionalmente, com

respeito ao princípio da não-contradição. Apenas se

reconhece, do ponto de vista teológico, uma limitação da

razão humana, limitação essa que a filosofia e as demais

ciências são desafiadas a superar, mesmo sabendo que não

atingirão o seu objetivo – essa consciência, no entanto, é

fundamental para nos prevenirmos contra o dogmatismo. A

por A. R. dos Santos: “(...) intelecto do peregrino é aquele quenão tem notícia intuitiva da divindade, que lhe é possível pelopoder ordenado de Deus. Pelo primeiro, exclui-se o intelecto dobem aventurado, que tem notícia intuitiva da divindade; pelosegundo, exclui-se o intelecto do condenado, a quem não é possívelaquela notícia pelo poder ordenado de Deus, embora lhe sejapossível pelo poder ordenado de Deus”. Ob. cit., p. 59. V. tb.ROBERT GUELLUY, “Philosophie et Théologie chez Guillaumed’Ockham”, Louvain: É Nauwelaerts – Paris: J. Vrin, 1947, pp. 79ss.

118

Page 119: Tese para IFCS

incognoscibilidade de Deus e a conseqüente limitação da

teologia enquanto ciência humana decorre da própria

circunstância de não possuirmos conhecimento intuitivo e

evidente do “sujeito” desta ciência - a saber, Deus -, posto

que este tipo de conhecimento, garantia última de todo

conhecimento científico, como já vimos, é um conhecimento de

objetos existentes, o qual, inclusive, atesta esta existência

– e Deus não existe tal como tudo o mais por nós conhecido.

Deus é associado à criação da existência, como sua origem e

suporte – causa primeira e “causa efficiens per conservationem” -,

donde não poder com ela se identificar, sendo, assim como

tudo o mais, porém, diverso - e ainda diverso em sua

diversidade. Tanto é assim, que não se prova racionalmente a

singularidade de Deus: tal como não há contradição entre a

existência de Deus e a de tudo o mais que conhecemos – e

precisamente daí decorreria a racionalidade da afirmação de

Sua existência -, também não há contradição entre a

existência de vários Deuses, criadores de mundos diversos, ou

119

Page 120: Tese para IFCS

entre diversos mundos, criados pelo mesmo Deus que criou o

nosso.122

É assim que de Deus, apesar da prova de Sua existência,

não se pode predicar o ser tal como se faz de objetos no

domínio da metafísica, o que projeta o discurso a Seu

respeito em outro domínio, contíguo, o da teologia, onde não

conta apenas a postura (habitus) intelectual da ciência, do

saber, mas também – e, principalmente – uma outra: a da

crença, da fé.123 No campo da teologia, nos vemos às voltas

com uma “lógica da fé”, que não é apofântica, mas persuasiva,

incluindo além dos valores modais aléticos, “verdadeiro” e

“falso”, aquele que melhor a caracteriza: o “possível”,124 já

122 “Selbst der Satz, daß es nur einen Gott gebe, kann nach Ockhamdurch die Vernunft nicht apodiktisch, sondern nur mitPlausibilitätsargumenten bewiesen werden (...); dies gelte ebensofür andere Prädikate Gottes wie Unendlichkeit, Allmacht, Vorsehungusw.”. V. HÖSLE, Wahrheit und Geschichte, Stuttgart/Bad Cannstatt:frommann-holboog, 1984, p. 687 (grifos do A.).123 Cf. BECKMANN, ob. cit., pp. 137 ss. Para maioresdesenvolvimentos, v. BIARD, ob. cit., pp. 86 ss.; GHISALBERTI, id.,pp. 131 ss., e, especialmente, a obra clássica a respeito, deGUELLUY, Philosophie et Théologie chez Guillaume d’Ockham, cit., além dorelativamente recente trabalho de VOLKER LEPPIN, ob. loc. ult.cit.124 Para uma exposição da lógica modal medieval, especialmente emDuns Scot, Ockham e Buridan, v. SIMO KNUUTTILA, “Modal Logic”, in TheCambridge History of Later Medieval Philosophy, N. KRETZMANN et al. (eds.),Irthlingborough: Cambridge University Press, 1996 (5ª reimp.), pp.342 ss., esp. pp. 354 ss.

120

Page 121: Tese para IFCS

que suas conclusões se sustentam quando não implicarem em

contradição e “non est maior ratio”. É sobre uma tal base,

“falibilista”, que se assentará o pensamento de Ockham, visto

ser o princípio maior em que se baseia, como é próprio da

época em que foi elaborado, um princípio teológico, o da

onipotência divina, e, enquanto tal, igualmente

indemonstrável.125 Não se justifica, portanto, que se lhe

impute o defeito do “teologismo”, pois teológicos são seus

pressupostos e a destinação última de seu pensamento,

desenvolvido, porém, com extremo rigor lógico, compromissado

com o bem, a correção, intelectual e moral.

A obra de Ockham, no campo jurídico, vai então sugerir

que não se considere o jus apenas como a quota de bens que nos

cabe, por determinação do direito positivo ou natural, a qual

podemos reivindicar perante tribunais, já que temos para isso

uma potestas vindicandi, pois esse é o jus fori, nascido ex pactione,

convencionalmente, do direito positivo humano, havendo também

o que já Agostinho denominou jus poli (embora se referindo ao

sentido objetivo do Direito), o qual é a permissão ou

125 Cf. Cf. OCKHAM, Quodlibeta, I, q. I, in Opera theologica, vol. IX, p.11; J. BIARD, ib., p. 96.

121

Page 122: Tese para IFCS

faculdade que nos vem do céu (polus), da natureza pela razão e

do direito positivo verdadeiramente divino para usarmos os

bens com despojamento, sem ser por eles possuídos, abdicando

mesmo de sua defesa perante tribunais, como preconizou Jesus

Cristo. É essa posse a título precário, permitida pelo

verdadeiro proprietário – no caso, Deus -, que os

franciscanos teriam, individual e coletivamente, enquanto

ordem: um direito em sentido moral, mas não naquele

propriamente jurídico.126

Eis que em Ockham o ser humano, criado à imagem e

semelhança de Deus, que se caracteriza por sua onipotência e

liberdade absoluta, será ele também dotado de potestades

(“dignidades”) e liberdade, que se traduzirão em um complexo

de direitos subjetivos, o novo fundamento do Direito

(objetivo).

Outro aspecto que, indubitavelmente, merece ser

realçado, no pensamento jusfilosófico de Ockham, é o seu

conceito de direito natural. Este, se em sua origem ainda é

tido como divino, tal como era geralmente concebido no

126 Cf. JOHN KILCULLEN, “The Political Writings”, in: The Cambridge Companionto Ockham, cit., p. 308.

122

Page 123: Tese para IFCS

período, especialmente em seus escritos teológicos, por outro

lado, nos escritos políticos do último período de seu

pensamento, é-lhe atribuída validade quando fundamentado

racionalmente, no que mais uma vez aquele pensamento se

apresenta atual.127

O enfoque de Ockham nos mostra com clareza o que

comumente se tende a negligenciar no âmbito da filosofia do

direito, a saber, que a noção de “direitos (subjetivos)” tem

um significado que transcende aquele técnico-jurídico,

devendo ser considerado igualmente em sua projeção na

filosofia política e moral.128 Todo o discurso de grande

atualidade sobre os “Direitos Humanos” se situa mais

propriamente nos planos da ética e da política do que naquele

estritamente jurídico, onde tais “direitos” se apresentam

127 Cf. OCKHAM, Texte zur politischen Theorie. Exzerpte aus dem Dialogus”, trad.:JÜRGEN MIETHKE, Stuttgart: Reclam, 1995, pp. 207 ss. – III DialogusII i, c. 15 -; BECKMANN, ob. cit., p. 166, MIETHKE, Ockhams Weg zurSozialphilosophie, Berlin: De Gruyter, 1969, pp. 124 e seg.; A. S.McGRADE, “Natural Law and Moral Omnipotence”, in: The Cambridge Companion toOckham, cit. Sobre as semelhanças entre as doutrinasjusnaturalistas de observância ockhamiana e aquelas do século XVIIcf. RICHARD TUCK, Natural Rights Theories, Cambridge: CambridgeUniversity Press, 1979, p. 24.128 Assim, PÁRAMO, “Derecho Subjetivo”, in: ERNESTO GARZÓNVALDÉS/FRANCISCO J. LAPORTA (eds.), El Derecho y la Justicia, Madri:Trotta, 1996, p. 367 ss.

123

Page 124: Tese para IFCS

como “direitos fundamentais”, que por sua vez não são apenas

“direitos” dos cidadãos a um respeito pelo Estado de sua

esfera de liberdade e também que lhes provenha de um mínimo

de igualdade (ou eqüidade) entre si, pois tanto se afirmam

perante outros particulares, individual ou coletivamente

considerados, como também se apresentam como pautas objetivas

de organização do Estado e parâmetro para balizamento de suas

políticas.

A definição do direito enquanto instituição, como um

corpo de normas emanadas de um poder, sem importar seu

conteúdo, para que as mesmas sejam consideradas válidas,

associadas ao positivismo em sua vertente ideológica, que se

pode fazer remontar a Hobbes - normas estas a serem estudadas

de modo formalista e eventualmente, também, dedutivista, já

numa vertente do positivismo epistemológico, como aparece

afirmada com independência por autores canônicos os mais

diversos, a exemplo de John Austin, no século XIX, no

contexto da tradição anglo-saxônica, bem como Hans Kelsen, na

tradição continental européia, que finca suas raízes ainda

mais profundamente, como se pretende demonstrar, em estratos

124

Page 125: Tese para IFCS

onde se encontra, no séc. XIX, a chamada “jurisprudência dos

conceitos” (Begriffsjurisprudenz), associada a nomes como G.

Puchta, o direito natural racionalista, de tantos autores,

dos séculos XVIII e XVII, com Puffendorf, Thomasius e

Althusius, até chegar ao século XVI, na Escola de Salamanca,

formada em torno a Francisco Vitória, onde se destaca, como

jurista-teólogo, a Fernando Vázquez de Menchaca e, como

filósofo-teólogo, o já mencionado Francisco Suárez. Aventa-se

ainda, filosoficamente, a hipótese, a ser no momento devido

explorada, de que própria filosofia do direito, enquanto

disciplina e objeto de investigações, para surgir, pressupõe

como condição objetiva principal, o surgimento de um direito

positivo produzido na matriz estatal de corte moderno, assim

como sua condição subjetiva maior, que seria igualmente

condição “estrutural” – no sentido em que aqui se emprega a

doutrina muraltiana das estruturas de pensamento – das

manifestações típicas da modernidade, a exemplo tanto da

forma política estatal, como daquela cientifica, que hoje

(ainda) predominam, estaria na estrutura, de origem mais

próxima na época medieval avançada, que Muralt denomina

125

Page 126: Tese para IFCS

escotista, e nós optamos por denominar transcendental. Daí

permanecer ainda hoje a filosofia do direito, por exemplo,

atrelada – e, em geral, subserviente mesmo – aos estudos

(majoritariamente positivistas, no sentido normativista e

formalista) do direito enquanto direito positivo.

A uma tal concepção se oporia outra, mais tradicional e

antiga, que remete ao tempo em que o estudo filosófico do

direito não o distinguia como esse objetivum, como objeto formal

de estudo diverso de seu conteúdo ético, político e, mesmo,

teológico, enquanto direito que só o seria enquanto

igualmente justo, seja na relação (comutativa) entre duas

pessoas, seja na relação (distributiva) da pessoa aos bens

que lhe seriam devidos. Para de Muralt, conforme o

compreendemos, a filosofia do direito contemporânea padeceria

de um esvaziamento de interesse e, mesmo, de descrédito,

tanto entre filósofos, como entre cientistas, na medida em

que desconhece a diferença entre esta postura antiga, de

estrutura aristotélico-tomista, e uma outra, que ele denomina

“escotista suareziana”,129 rejeitando a ambas como se tratando

129 Cf. id. ib., p. 13.

126

Page 127: Tese para IFCS

de um mesmo jusnaturalismo caduco, donde resultam as mais

diversas posturas positivista – por definição, anti-

filosóficas -, abdicando de discussões que são as que mais

importam no campo do direito, como são aquelas atinentes à

sua validade material, e não apenas, formal.

Daí se explica, pelo menos em parte, os esforços vindos

das mais diversas direções, mais recentemente, para

“reabilitar” a razão prática, agora “renascida”,130 e, nesse

contexto, renovar os estudos filosóficos do direito de uma

perspectiva que evite a dicotomia entre o positivismo e o

jusnaturalismo, dentre os quais se pode mencionar aquelas do

inglês John Rawls e sua Teoria da Justiça, ou de Ronald

Dworkin, norte-americano, ativo também na Inglaterra, em

Oxford, e, na Alemanha, Robert Alexy, com a Teoria dos

Direitos Fundamentais, teorias estas que encontram eco nas

propostas sobre teoria do direito e filosofia política em

geral de Jürgen Habermas e sua escola, feitas sob o pano de

fundo da Teoria do Agir Comunicativa. Digna de nota, também,

é a proposta de Michel Bastit, assentada em trabalho

130 Cf., v.g., ENRICO BERTI, Aristóteles no Século XX, trad. DION DAVIMACEDO, São Paulo: Loyola, 1997, pp. 229 ss.

127

Page 128: Tese para IFCS

monumental de reconstituição das origens escolásticas e

medievais (ou tardo-medievais) da concepção moderna,

positivista, da lei jurídica, a fim de com isso buscar

auxílio, aprendendo com os “erros do passado”, para formular

uma noção de lei “mais conforme à realidade jurídica e mais

isenta de contradições”.131 Bastit procede na esteira de seu

mestre Michel Villey, que, em estudos clássicos,132 já chamara

atenção para a distinção radical entre conceitos jurídicos e

jusfilosóficos, herdados da antiguidade romana, como aquele

de jus e sua reformulação moderna – neste caso, como “direito

subjetivo”-, sob a influência decisiva de autores medievais,

com destaque para Guilherme de Ockham. Além disso,

compartilha Bastit a convicção de Villey, no sentido de que a

solução para os impasses da filosofia jurídica e do próprio

Direito, na contemporaneidade, expressão da crise mais ampla

da sociedade e, mesmo, da civilização ocidentais – que são

também aquelas que se pode considerar verdadeiramente

mundiais, por instaladas em todo o planeta através dos atuais

131 Naissance de la loi moderne, cit., p. 361.132 Cf. VILLEY, Seize Essais de Philosophie du Droit, cit., p. 158, passim;id., Filosofia do Direito, São Paulo: Atlas, 1977, p. 120, passim.

128

Page 129: Tese para IFCS

meios técnicos de comunicação -, estaria em um retorno a um

jusnaturalismo de corte aristotélico (ou aristotélico-

tomista).133

Ao nosso ver, contudo, não haveria possibilidade – ou,

sequer, conveniência – de um retorno ou re-conversão do

pensamento, em qualquer campo, à estrutura que aqui

denominamos transcendente, descartando, por espúrias, formas

de pensamento derivadas, em maior ou menor grau, daquela

outra estrutura, que denominamos transcendental. Não há

retrocesso possível em uma história que tem características

evolutivas, como são tanto aquela natural, dos seres

naturais, como esta, social, “historial”, das idéias

produzidas por uma espécie desses seres, a nossa. Além

disso, não houveram apenas prejuízos, com a erupção de uma

nova estrutura de pensamento na Baixa Idade Média, que veio a

ser a principal matriz da modernidade. Uma série de ganhos,

de “aquisições evolutivas”,134 também se verificaram, com esta

133 Cf. MICHEL BASTIT, “El método del derecho natural”, in: El Derecho NaturalHispánico. Actas de las II Jornadas Hispánicas de Derecho Natural,Córdoba, 14 a 19 de septiembre de 1998, Cajasur Obra Social yCultural Publicaciones, 2001, pp. 177 ss., esp. pp. 189/196.134 Expressão utilizada na teoria social sistêmica luhmanniana, queremonta a Simmel. Cf., v.g., NIKLAS LUHMANN, Die Gesellschaft der

129

Page 130: Tese para IFCS

mudança epocal, e os graves problemas que com ela advieram

pensamos que só poderão ser enfrentados e, eventualmente,

superados, empregando recursos forjados com as possibilidades

também nela contidas.

De fato, só modernamente passa-se a enfatizar o aspecto

permissivo da normatividade, a esfera de liberdade que

transcende os limites impostos pelas proibições morais e

religiosas, a licentia laica. Já Hobbes, por exemplo, apontava o

caráter insustentável de uma situação em que todos dispunham

livremente de uma faculdade de tudo fazer, de um jus omnium in

omnia, donde decorreria para ele, como é sabido, a

necessidade de se impor limites, com o respaldo em um poder

com supremacia e reconhecimento social – o Estado civil -, a

fim de garantir e efetivar direitos individuais, os poderes

dos indivíduos, que são seus direitos subjetivos.135 Antes do

“positivismo contratual” hobbesiano, contudo, foi o

nominalismo medieval que tornou possível o aparecimento da

noção propriamente dita de um direito como atributo de um

Gesellschaft, vol. I, Frankfurt am Main: Suhrkamp, 1997, pp. 505 ss.135 Um paralelo entre as concepções de Ockham e Hobbes encontra-seem MATHIAS KAUFMANN, Wilhelm von Ockham und Thomas Hobbes: Varianten despolitischen Individualismus, Erlangen, ms., 2000.

130

Page 131: Tese para IFCS

sujeito, que o torna direito seu, propriedade exclusiva do

indivíduo, a qual lhe é inerente. Tal noção já se encontra

entre nominalistas “parisienses” como Gerson, no século XV,

bem como em juristas-teólogos espanhóis da “segunda

escolástica”, a exemplo dos “regicidas” domenicanos Francisco

de Vitória, seu discípulo Domingo de Soto, juntamente com seu

amigo, jurista, Fernando Vázquez de Menchaca e de jesuítas

como Luis de Molina, sem deixar de mencionar o grande

Francisco Suárez.136 Sua origem mais remota, contudo, está no

pensamento de Guilherme de Ockham, desenvolvido na esteira

daquele de Duns Scot, como pretendemos aqui ter demonstrado.

Por fim, fica o desafio para desenvolvermos e

aprofundarmos a idéia, central no pensamento ockhamiano, de

que para além da oposição entre a universalidade tanto dos

conceitos como das leis, naturais e jurídicas, e a

particularidade se situações concretas redutíveis ou

136 Cf., v. g., ANNABEL S. BRETT, Liberty, Right and nature: Individual Rights inLater Scholastic Thought, QUENTIN SKINNER (ed.), Cambridge (Mass.):Cambridge University Press, 1997; tb. FRANK VIANA CARVALHO, Asvindiciae contra tyrannos e os monarcômacos, dissertação de mestrado, USP,São Paulo: 2002; ALAIN MOTHU, La beatitude des Chrétiens et son doubleclandestine, in: ANTHONY MCKENNA/id. (eds.), La Philosophie clandestine à l’Ageclassique, Oxford: The University Press, 1997, p. 79 - 117.

131

Page 132: Tese para IFCS

subsumíveis a tais conceitos e leis, há de se considerar como

diversa a singularidade das mesmas, a fim de mantermos os

sentidos em estado de alerta, para com isso percebermos erros

e/ou injustiças no tratamento igual dado a situações que só

aparentemente são iguais – ou se apresentam como casos

particulares excepcionando regras gerais -, quando na verdade

são singulares, dotadas de intensidades diversas. Há,

perseguindo essas indicações, muito que se fazer, no campo da

filosofia jurídica e em geral, no rastro também daqueles que,

como Ockham, mais recentemente, não perdem de vista a

primazia do acontecimento, dos eventos e sua intensidade,

frente ao que já está estabelecido, formal e objetivamente,

por regras e conhecimentos herdados: Kierkegaard, Nietzsche,

Carl Schmitt, Heidegger, Deleuze.137 Mais recentemente, merece

destaque o trabalho de Giorgio Agamben, especialmente a

partir de Homo Sacer, e dos livros que têm se seguido.

5. O Direito posto (positivo) poeticamente concebido como

Direito possível

137 Cf., para uma primeira aproximação, FRANCISCO ORTEGA, Intensidade.Para uma história herética da filosofia, cit.

132

Page 133: Tese para IFCS

É a partir de tais colocações que também se abre uma

perspectiva para o desenvolvimento, em teoria da ciência

jurídica, em um sentido próprio e atual, isto é, falibilista,

porque humana e, logo, “possibilista”, imaginária. O direito,

então, ao invés de positivo, positum, dado, objetivamente, há

de ser concebido antes como possível, imaginário, pois a

ficção é a verdade do direito, e o direito é a camuflagem do

poder, apropriado e exercido pelos “autores-intérpretes”

desta grande montagem, que é a sociedade. Isso porque o que é

verdadeiro e falso, em direito, como na política e setores

afins, se determina pela “coerência da narrativa” (Dworkin,

MacCormick),138 tendo toda verdade a estrutura de uma ficção,

de montagem teatral – fictio figura veritatis, conforme a máxima dos

glosadores, lembrada por Ernst H. Kantorowicz.139

Daí ser o tipo de discurso que é desenvolvido no âmbito

138 A idéia de “narrative coherence” é introduzida por Dworkn inspiradopela prática literária dos surrealistas franceses, também adotadapelos “beats” norte-americanos, que a chamavam de “chain-writing”,“escrita em cadeia”: consiste em escrever uma obra coletivamente,em que os continuadores da narrativa têm de levar em conta o quefoi escrito pelos antecessores.139 Cf. ERNST H. KANTOROWICZ, ob. loc. ult cit.

133

Page 134: Tese para IFCS

da teoria jurídica de se considerar, em um sentido amplo, um

discurso ficcional, poético, ou melhor, “poiético” (do grego

poiésis, “fazer”, “produzir”, “criar”), já por podermos

imaginar várias versões para a história da origem do humano,

permanecendo sempre o mesmo desfecho, a saber, o de sermos um

ser produzido pelas proibições que se nos impõem e, logo,

também, nos impomos.

Na atual concepção epistemológica, em lógica e

matemática, assim como na física e ciências em geral,

“encontra-se o real como um caso particular do possível”.140

É certo que foi o avanço mesmo da pesquisa em microfísica ou

física quântica, como indicado acima, que instaurou a

possibilidade (ou a “indeterminação”) no próprio cerne dos

fenômenos estudados nesse nível, pois uma molécula ativada

por um quantum de luz tanto pode integrá-lo em seu material,

como pode reemitir o seu ganho de energia sob a forma de

radiação, ou ainda entrar em reação química com outras

moléculas, bem como romper o quantum, transformando-o em

140 GASTON BACHELARD, O novo espírito científico, trad.: REMBERTO FRANCISCOKUHNEN, São Paulo: Abril, 1978, p.119 (penúltimo parágrafo do cap.II).

134

Page 135: Tese para IFCS

energia.141

Com isso, as ciências vão ao encontro daquela

antropologia fundamental, que a partir de poetas-filósofos

como Novalis, para quem o homem é o autor de sua realidade,

ou teólogos-filósofos, como Kiergegaard, para quem o homem é

aquele ser que deve educar-se no possível, podendo se

remontar ainda a Ortega y Gasset e Heidegger, bem como, antes

deles, Nietzsche, para que chegue a nos caracterizar nosso

Vicente Ferreira da Silva - lamentavelmente falecido antes

dos cinqüenta anos, em fins da década de 1960 -, em confronto

com as coisas (ta onta), da seguinte maneira: “Enquanto a coisa

vive cerrada em si mesma numa compressão infinita e

limitante, o homem como subjetividade está envolto num

horizonte de possibilidades, abre-se para o possível e

somente através deste possível pode ser profundamente

compreendido”.142

141 Cf. id., “Luz e Substância”, in: Estudos, trad. ESTELA DOS SANTOSABREU, Rio de Janeiro: Contraponto, 2008, p. 63142 VICENTE FERREIRA DA SILVA, em “Reflexões sobre a ocultação do ser”, in:Ensaios Filosóficos, São Paulo: Instituto Progresso Editorial, 1948, p.45 e s., tb. in: Obras Completas, vol. I., cit., p. 37.

135

Page 136: Tese para IFCS

Isso não quer de modo algum significar que iremos apelar

para uma espécie de fabulação, para a invencionice. O

discurso, para ser verossímil e persuasivo, para nos agradar,

deve ser construído tomando elementos da realidade, do que

compartilhamos de mais elementar, completando-os e, por assim

dizer, cimentando-os com a argamassa de nossos sonhos, os que

temos dormindo ou acordados, pois são a expressão de nossos

maiores desejos, os desejos de saber. “Tampouco isto foi

descoberto pela razão”, podemos dizer com Kierkegaard,143

“posto que esta fala pela boca do paradoxo se diz a si mesma:

as comédias, as novelas e as mentiras têm de ser

verossímeis....” – caso se queira que elas atinjam seus

objetivos.

Daí podermos postular a produção de um discurso

puramente imaginativo, e bastante revelador. Neste sentido,

me parece que um dos objetivos seria o de realizar, no campo

do pensamento, o que no campo puramente ficcional certos

autores realizam quando fazem o que Deleuze/Guattari chamam

143 Migajas Filosóficas o un poco de filosofía, trad. RAFAEL LARRAÑETA, Trotta,Madri, 1997, p. 64.

136

Page 137: Tese para IFCS

de “literatura menor”,144 que é a literatura sempre política e

necessariamente revolucionária daqueles que estão à margem,

“desterritorializados”, a ponto de empregarem para fazer

literatura a linguagem do “colonizador”, dos que exercem o

domínio político e lingüístico no território em que habita o

povo dominado – lembremos, aqui, que em sua origem romano, o

territorium é o local onde se demarca o dominium pelo exercício

do terror. Entende-se, assim, porque aquilo de mais destaque

que se tem produzido em nosso País, em termos culturais, é de

se considerar, em sentido amplo, como literatura – e aqui não

estou pensando apenas na literatura em um sentido mais

tradicional, mas também em gêneros como a música popular e as

telenovelas. Aqui pode-se falar em uma “hermenêutica

imaginativa”, tal como é preconizada por Márcia Sá Cavalcante

Schuback,145 a fim de termos melhor acesso a autores marcados

pela uma visão teologia, com são os medievais, dos quais

também nos ocupamos, ao longo do presente estudo, em que se

144 Em Kafka. Por uma literatura menor, Rio de Janeiro: Imago, 1977. Parauma extensão do conceito de “literatura menor” de Deleuze/Guattaripara com ele abranger – e explicar – a teologia, cf. WINQUIST,Desiring Theology, Chicago/Londres: University of Chicago Press, 1995.145 Para ler os medievais. Ensaio de hermenêutica imaginativa, Petrópolis: Vozes,2000.

137

Page 138: Tese para IFCS

busca recuperar uma unidade perdida na tradição do pensamento

desde suas origens filosóficas até o presente – “tradição”

aqui entendida como propõe Husserl no manuscrito sobre a

origem da geometria escrito em 1936,146 nos seguintes termos:

“A geometria que está pronta, por assim dizer, a partir da

qual o inquérito regressivo começa, é uma tradição. Nossa

existência humana se move dentro de inumeráveis tradições. O

mundo cultural todo, em todas as suas formas, existe por meio

da tradição. Estas formas surgiram como tal não apenas

casualmente; também já sabemos que tradição é precisamente

tradição, tendo surgido dentro do nosso espaço humano através

da atividade humana, isto é, espiritualmente, mesmo embora

geralmente nada saibamos, ou quase nada, da proveniência

particular e da origem espiritual que as trouxeram. E ainda

lá jaz nesta falta de conhecimento, em qualquer lugar e

essencialmente, um conhecimento implícito que pode, assim

146 Editado e publicado (começando com o terceiro parágrafo) porEUGEN FINK na Revue Internationale de Philosophie, vol. 1, n º 2 (1939),sob o título “Der Ursprung der Geometrie als intentional-historisches Problem”,que aparece em Die Krisis der europäischen Wissenschaften und die transzendentalePhänomenologie (abrev.: Krisis) como “Beilage III”, W. BIEMEL (ed.), LaHaya: Martinus Nijhoff, col. Husserliana, vol. 6, 1962, pp. 365-386.

138

Page 139: Tese para IFCS

também, ser tornado explícito, um conhecimento da evidência

inacessível. Começa com lugares comuns superficiais, tais

como: que tudo tradicional surgiu da atividade humana, que de

acordo com isto homens passados e civilizações humanas

existiram, e entre elas seus primeiros inventores, que

modelaram o novo a partir de materiais à mão, quer fossem

brutos ou já modelados espiritualmente. Da superfície,

contudo, é–se levado às profundezas. A tradição é aberta

deste modo geral a inquérito contínuo; e se se mantiver

consistentemente a direção do inquérito, uma infinidade de

questões que ainda está presente para nós, e ainda está sendo

elaborada num desenvolvimento vivo, se descortinam questões

que levam a respostas definidas de acordo com o seu

sentido”.147

Do que se trata, então, é verdadeiramente de realizar um

trabalho imaginativo, conscientemente ficcional, que se

avalia – e avaliza - por seus efeitos. É assim que, dessa

147 Trad. do inglês para o português por MARIA APARECIDA VIGGIANIBICUDO. Departamento de Matemática e Estatística, Instituto deGeociências e Ciências Exatas, Rio Claro, UNESP, 1980, disponívelna página da SE&PQ – Sociedade de Estudos e Pesquisa Qualitativosem http://www.sepq.org.br/ maria.htm.

139

Page 140: Tese para IFCS

perspectiva, mitologia, filosofia, direito ou religião e

mesmo as ciências são literatura, ficções, pois o que se

pretende fazer é contar uma história o melhor possível, para

torná-la verossímil, dando um sentido às nossas vidas, mesmo

quando se diz, como o jurista romano do século II, depois

teólogo cristão, o primeiro, além de filósofo, Tertuliano:

creio, ainda que pareça - ou mesmo porque parece - absurdo. Nesse contexto,

vale recordar palavras de Gilles Deleuze, em sua última

publicação:148 “Não se escreve com as próprias neuroses. A

neurose, a psicose não são passagens da vida, mas estados em

que se cai quando o processo é interrompido, impedido,

colmatado.(...) por isso o escritor, enquanto tal, não é

doente, mas antes médico, médico de si próprio e do mundo. O

mundo é o conjunto de sintomas cuja doença se confunde com o

homem. A literatura aparece, então, como um empreendimento de

saúde: (...) A saúde como literatura, como escrita, consiste

em inventar um povo que falta. Compete à função fabuladora

inventar um povo. (...) Embora remeta sempre a agentes

singulares, a literatura é agenciamento coletivo de

148 Crítica e Clínica, São Paulo: 34, 1997, p. 13 ss.

140

Page 141: Tese para IFCS

enunciação. (...) Fim último da literatura: pôr em evidência

no delírio essa criação de uma saúde, ou essa invenção de um

povo, isto é, uma possibilidade de vida. Escrever por este

povo que falta...(...) ‘Cada escritor é obrigado a fabricar

para si sua língua...’ (...) O escritor como vidente e

ouvidor, finalidade da literatura: é a passagem da vida na

linguagem que constitui as Idéias”.

Cabe agora distinguir as implicações políticas,

epistemológicas e metafísicas do possibilismo inerente à tese

aqui esposada, do conhecimento imaginário do Direito, em

confronto com aquelas do positivismo. O positivismo, como não

se costuma salientar, tem diversos sentidos, conforme se

apresente como uma ideologia de obediência ao que determinam

as normas jurídicas, sem consideração quanto ao seu conteúdo,

pelo simples fato de terem emanado de um poder soberano,

posição que se encontra associada à figura de Thomas

Hobbes,149 assim como em termos epistemológicos a referência é

149 Mas que bem se pode remontar a GUILHERME DE OCKHAM. Cf., v.g.,LOUIS DUMONT, O Individualismo. Uma Perspectiva Antropológica da IdeologiaModerna, trad.: ÁLVARO CABRAL, Rio de Janeiro, Rocco, 1993, p. 76s.; WILLIS SANTIAGO GUERRA FILHO, “Lei, Direito e Poder em Guilherme deOckham”, in: Direito e Poder. Estudos em Homenagem a Nelson Saldanha, HELENOTAVEIRA TORRES (coord.), Barueri (SP): Manole, 2005, p. 188 s. Na

141

Page 142: Tese para IFCS

o cientificismo mecanicista e anti-metafísico de Augusto

Comte, com suas variantes mais recentes, como aquela do

Círculo de Viena. Tanto em um caso como no outro, porém, a

matriz é metafísica, e pode ser caracterizada como sendo um

formalismo, que teve na filosofia transcendental de Kant a

sua culminância.

O sentido comum do termo “formalismo” é o de importância

desmedida concedida às formalidades, ao que é exterior, em

detrimento do que é substancial e realmente importa. Daí já

se extrai uma indicação valiosa do que seria o sentido

filosófico, que consiste em negar a existência real do

conteúdo, para reconhecer somente a da forma – ou, em uma

versão menos radical, mas próxima daquela defendida, conforme

vimos (supra, cap. 4), pelo patrocinador da chamada “distinção

atualidade se distingue entre um positivismo “exclusivista” e umoutro, também dito “soft” ou “inclusivo”, por incluir apossibilidade de uma validação de normas positivas por meio defontes morais, prescritivas, ou seja, diversas daquelasestritamente sócio-jurídicas, passíveis de serem meramentedescritas – cf., v.g., KENNETH EINAR HIMMA, “Inclusive Legal Positivism”,in: Oxford Handbook of Jurisprudence and Legal Philosophy, JULES L. COLEMAN &SCOTT SHAPIRO, eds.,Oxford: Oxford University Press, 2002. A umateoria inclusiva, porém em sentido diverso, refere-se em WILLISSANTIAGO GUERRA FILHO, "Inclusive Theories and Conjectural Knowledge in LegalEpistemology", in: Archiv für Rechts- und Sozialphilosophie, vol. 75,Stuttgart, 1989.

142

Page 143: Tese para IFCS

formal”, na Baixa Idade Média, John Duns Scot,150 simplesmente

a possibilidade da existência independente da forma em

relação ao conteúdo de um objeto.

Diferentes serão os sentidos do formalismo, segundo o

contexto de aplicação seja a lógica, a filosofia da

matemática, a gnosiologia, a ética ou a estética, mas sempre

com a idéia de preponderância da forma sobre a matéria.

Bastante impulsionado por Immanuel Kant, o formalismo

lógico atribui um caráter puramente formal aos princípios e

leis da lógica, e portanto tende a tomá-los como meras

convenções. O conjunto das proposições e predicações lógicas

formariam uma totalidade autônoma, radicalmente separada das

conexões reais entre os seres ou as partes do ser, os entes,

marcando uma oposição à lógica metafísica dos escolásticos,

inspirada em Aristóteles, para a qual os princípios lógicos

150 Cf. WILLIS SANTIAGO GUERRA FILHO, “Sobre a estrutura medieval dopensamento filosófico e jurídico” in: Revista Opinião Jurídica, n. 3,Fortaleza: Faculdade Christus, 2004, p. 9 s., e, mais amplamente,ANDRÉ DE MURALT, L´enjeu de la philosophie médiévale. Études thomistes, scotistesoccaniennes et grégoriennes, 2a. ed., Leiden et al.: 1993; Néoplatonisme etaristotélisme dans la métaphysique médievale, Paris: Vrin, 1995; A metafísica dofenômeno: as origens medievais e a elaboração do pensamento fenomenológico,trad.: PAULA MARTINS, São Paulo: 34, 1998; La estructura de la filosofiapolítica moderna. Sus Orígenes medievales em Escoto, Ockham y Suárez, trad.:VALENTÍN FERNÁNDEZ POLANCO, Madri: Istmo, 2002.

143

Page 144: Tese para IFCS

têm intrinsecamente um alcance ontológico, isto é, não valem

só para as conexões de idéias, mas também para as coisas

reais. É essa mesma ênfase na forma que será aplicada para

estabelecer as leis matemáticas e operações delas derivadas.

Um certo formalismo é inerente a todo pensamento matemático:

uma expressão (tautológica) como a + b = b + a é puramente

formal, pois se aplica a quaisquer números ou objetos e não

tem matéria determinada. O formalismo estende esse caráter

puramente formal a todas as relações matemáticas e toma os

números como formas convencionais. Estabelece-se assim uma

fronteira rigorosa entre as matemáticas e a filosofia da

matemática: a redução dos sistemas matemáticos a meras

construções formais permite evitar questões filosóficas

complicadas, de corte metafísico, como a natureza dos números

e o significado do "verdadeiro" e "falso" em matemática. Por

essa razão, muitos matemáticos adotam o formalismo como mero

expediente prático, sem aderir a ele expressamente. Na

verdade, segundo o formalismo, não existem objetos

matemáticos. A Matemática consiste apenas em axiomas,

definições e teoremas, ou seja, em fórmulas. No limite,

144

Page 145: Tese para IFCS

existem regras pelas quais se deduz uma fórmula a partir de

uma outra. Mas as fórmulas não são acerca de coisa alguma:

são apenas combinações de símbolos. É claro que os

formalistas sabem que as fórmulas matemáticas se aplicam por

vezes a problemas físicos. Quando se dá a uma fórmula uma

interpretação física, ela ganha um significado, e pode então

ser verdadeira ou falsa. Mas esta veracidade ou falsidade tem

a ver com a própria interpretação física. Enquanto fórmula

puramente matemática ela não tem significado nem valor

lógico. Contra uma tal concepção, pelo que tem de nefasto

para o pensamento, insurgiu-se Husserl em seu último grande

esforço filosófico, consubstanciado na obra “A Crise da

Ciência Européia e a Fenomenologia Transcendental” (abrev.:

“Krisis”).151 É o que examinaremos a seguir.

6. Crítica fenomenológica do formalismo científico

151 Para uma discussão desta obra, em conexão com o direito, cf.WILLIS SANTIAGO GUERRA FILHO, “Subsídios para uma crítica fenomenológica aoformalismo da ciência dogmático-jurídica” in: Fenomenologia e Direito.Cadernos da Escola da Magistratura Regional Federal da 2ª. RegiãoEMARF, vol. I, n. 1, Abr./Set. 2008. , p. 43 ss.

145

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Em linhas gerais, pode-se dizer quanto ao pensamento

husserliano que irá partir de uma crítica aos limites

impostos ao conhecimento pela filosofia em que predomina

aquela “estrutura transcendental”, referida no cap. 4, como

iniciada na baixa Idade Média por Duns Scot, Guilherme de

Ockham e seus sucessores, inclusive aqueles da Segunda

Escolástica, em que avulta a figura do Pe. Suarez, mas

associada antes às obras de Descartes, Kant e Hegel. E é

nessa perspectiva que Husserl chega a afirmar que o

pensamento dos filósofos modernos de último citados não era

“rigoroso”, já que não consideravam devidamente em suas

construções a subjetividade humana, focalizando apenas o

objeto. Eles não se atinham ao fato de que as considerações

acerca do objeto eram, elas mesmas, “construções mentais”. A

subjetividade, enquanto consciência intencional, dirigida aos

objetos, para Husserl, seria “a primeira verdade indubitável

para se começar a pensar corretamente.” Daí ter ele defendido

que, no processo de consideração da subjetividade humana, é

necessário assumir uma “atitude fenomenológica”: já que o

146

Page 147: Tese para IFCS

homem é um “ser no mundo” e, portanto, participante dele,

deve assumir essa postura e se contrapor a uma “atitude

natural”, que é aquela de ser “possuído pelo mundo”, pondo

entre parêntese a tese da existência de um mundo inependente

do eu, logo, de toda e qualquer evidência ou obviedade, sejam

aquelas do senso comum, sejam as das ciências, sendo essa a

tarefa própria da filosofia. Não existe, portanto, para a

fenomenologia, uma relação pura do sujeito com o objeto,

visto que a relação entre o sujeito e o objeto é sempre

intencional: o objeto se torna tal a partir do olhar do

sujeito, um olhar que, para além da existência contingente de

objetos em particular, capta sua essência, o que

necessariamente lhe constitui, donde se falar em Wesenschau –

literalmente, “visão da essência” ou, no sentido

fenomenológico, intuição. Assim, para a Fenomenologia, o ser

é um ser de relação, e não uma substância, como

tradicionalmente vinha sendo pensado, desde os antigos

gregos. Dessa forma, para ele, tanto o ser quanto o mundo só

existem na relação ser-mundo, não fazendo sentido, portanto,

como ressalta aquele que seria o maior dentre os seus muitos

147

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discípulos, caso não tivesse estabelecido uma dissidência, a

saber, Martin Heidegger, no § 9 de Prolegomena zur Geschichte des

Zeitbegriff,152 entender-se o fenômeno estudado pela fenomenologia

husserliana como uma aparência que oculta uma essência

ininteligível, pois esse fenômeno é caracterizado pelo

encontro mesmo entre uma consciência com o que para ela se

revela do mundo, enquanto doadora de sentido e, logo, dá

consistência de objeto a essas “revelações”.

O texto da “Krisis”, de 1936, vai apontar a rebeldia de

Galileu frente ao intuicionismo espontâneo como a origem

mesma das modernas ciências da natureza, por ele ter sido

alguém que teve a idéia de aplicar à natureza física o mesmo

método de objetivação aplicado na geometria, cujos traços

fundamentais, segundo Husserl, são (1) a idealização e (2) a

construção.

Husserl (“Krisis”, § 9a), opõe o objeto intuitivamente

dado aos objetos ideais da geometria, sendo que os primeiros

são dados em um mundo circundante intuitivo, inexato, avesso

à objetivação, ao contrário daquele mundo matemático, em que

152 “Prolegômenos à História do Conceito de Tempo”, Seminário doVerão de 1925, Gesamtausgabe, vol. XX.

148

Page 149: Tese para IFCS

são objetivados, como verdades em si, “irrelativas”, ou seja,

absolutas, por não serem relativas a algo, de que seriam a

representação aproximada. No “mundo real” temos a experiência

de corpos, com forma e conteúdo constituídos pelas qualidades

sensíveis, quer dizer, pensáveis em uma certa gradação, como

mais ou menos planos, retos ou circulares, e assim por diante

– longe, portanto, da exatidão de uma forma geométrica. Essas

coisas, reais, em todas as suas propriedades, estão sujeitas

a uma certa oscilação, donde sua igualdade, postulada em uma

função, tanto a si mesma como a outra coisa, ser puramente

aproximativa, valendo o mesmo para as figuras, relações etc.

O que significa esse caráter meramente aproximativo do mundo

intuitivo? Ser ele subjetivo-relativo: o que parece reto a

Pedro pode não sê-lo para Paulo. Essa subjetividade implica

na inexatidão inscrita nesse mundo, onde nunca haverá verdade

em si, válida para todos, objetivamente válida. Logo, a

geometria lida com um método idealizante, para operar com

idéias, e não com coisas, o que requer a passagem das formas

reais para as ideais, formas-limites, contruídas: no lugar de

qualquer práxis real tem-se uma práxis ideal, do pensamento

149

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puro. O movimento de um ponto, por exemplo, produz uma reta,

e o movimento circular da reta produz o círculo e assim por

diante. Desse modo, consegue-se a exatidão que não há na

práxis empírica, determinando aquelas formas em sua

identidade absoluta, com propriedades absolutamente

idênticas, determináveis de modo unívoco. Dadas as formas

elementares, por uma operação sobre elas se constrói novas

formas de maneira metódica, com um método que garante

verdades para todos os que o praticarem. Ora, a estrutura

literalmente circular desta forma de pensamento fica

evidenciada quando propomos que se conceba o ponto como um

círculo diminuto, tal como feito de início, na tentativa de

forjar uma concepção geométrica mais fidedigna em relação às

pesquisas da física quântica sobre a estrutura do real.

Quanto a saber se haveria continuidade entre os dois

mundos, aquele real e o ideal, Husserl entende que de maneira

alguma – são domínios separados por um abismo, visto que o

ideal não é um dos possíveis do real, obtidos pela variação

imaginária das formas sensíveis (cf. “Krisis”, § 9, passim).

Por isso que a reta será melhor representada como uma

150

Page 151: Tese para IFCS

continuidade imaginária dos pontos em que se tocam a série de

círculos que são os pontos, postos lado a lado, pois assim

fica evidenciada a verdadeira descontinuidade, o “corte de

Dedekind”, que a imagem da reta nos oculta (v. supra,

Introdução, principio).

Com a ciência moderna, surge a idéia de uma natureza

construtivamente determinada em todos os seus aspectos. Agora

não se trata de aplicar a matemática à empiria, como já

Platão – ou, antes dele, Pitágoras - o preconizara, mas sim

idealizar a natureza, transformando-a em si em uma idéia,

onde ela própria é idealizada, sob a direção da norma

matemática, tornado-se ela mesma um múltiplo da matemática. E

com isso, o mundo da vida intuitiva é substituído por um

mundo matemático de idealidades, começando uma história de

sobreposição deste à natureza pré-científica. As ciências

exatas – que em “Idéias para uma Fenomenologia Pura e uma

Filosofia Fenomenológica” (abrev.: “Ideen”), III, § 18,

Husserl qualifica de “dogmáticas” – mascaram a trivialidade

de que na vida cotidiana não encontramos correspondência com

a idealidade, existentes em um espaço geométrico e em um

151

Page 152: Tese para IFCS

tempo matematizado. Daí decorre a “alienação técnica das

ciências”, a que se refere Husserl no § 9 lets. f, g, do

texto da “Krisis”, com a busca desenfreada por fórmulas que nos

permitam chegar a ver o ser verdadeiro da natureza, já

anteriormente idealizada, fórmulas essa submetidas a uma

algebrização, a qual, inicialmente, amplia as possibilidades

do pensamento, tornando-o livre e purificado de qualquer

referência intuitiva, com o que o desconecta do fundamento de

validade, fonte originária de toda verdade.

Nesse contexto, de fabricação da ciência, o cientista é

mero operário ou, quando muito, um engenheiro, tal como já

consta em “Ideen”, III – já o filósofo é caracterizado em

“Krisis” como um “funcionário da humanidade”. Aos cientistas é

que se referia Husserl, ao dizer que operam segundo regras de

um jogo, enquanto o pensamento originário, o que confere

sentido e verdade, “simbolizante”, imaginativo, fica

excluído, em face do simbolismo formalista. Afastar tal

alienação técnica, saindo dos signos exteriores para os

conceitos, partindo da intuição, como preconiza Husserl, é

acabar o “jogo” das operações meramente computacionais, com

152

Page 153: Tese para IFCS

seu formalismo estéril.

Com Hilbert, deu-se o impulso maior ao formalismo, em

filosofia da aritmética, a qual ele pretendia demonstrar ser

a base de toda a matemática, uma vez encontrada uma técnica

por meio da qual se pudesse clarificar, de uma vez por todas,

que a matemática estava livre de contradições, o que foi

posto por terra pelo célebre teorema da incompletude de

Gödel.153

Segundo Kant, as faculdades de cognição próprias ao ser

humano predeterminam a forma de nossos conhecimentos

possíveis. Estamos presos a elas, com a nossas sensações, e

delas não podemos sair para apreender "as coisas em si". Por

exemplo, esp aço e tempo não são "realidades", mas formas,

internas (e inatas) à mente humana, nas quais enquadramos os

dados que recebemos do real, de modo que nada percebemos fora

do quadro espaço-temporal que nos é próprio. Do mesmo modo,

há formas de pensamento lógico (categorias como "existência"

153 Sobre esse desenvolvimento em filosofia da matemática, cf.WILLIS SANTIAGO GUERRA FILHO, “Por que não é lógica a dialética,se é dialética a matemática?” in: id., Para uma Filosofia da Filosofia,Fortaleza: Casa de José de Alencar, 1999, p. 39 ss.; tb. id., Teoriada Ciência Jurídica, loc. ult. cit.

153

Page 154: Tese para IFCS

e "inexistência") que também funcionam como filtros - e

sabemos por antecipação que nada chegará a nosso conhecimento

sem passar por esses filtros.

Ainda segundo Kant, a ética deve limitar-se a emitir

regras formais, sem matéria definida. Por "matéria" de um

juízo ético Kant entende os bens ou males determinados, que

ele recomenda ou proíbe. Uma "ética material" teria de provar

logicamente a superioridade de certos bens sobre outros, o

que para Kant é impossível. Regra ética formal é a que vale

para quaisquer bens indeterminados. E se isso pode ser

contestado em tema de ética, como efetivamente o tem sido,

entre outros, por Max Scheler, com seu enfoque

fenomenológico, assim como, em termos de ciência do direito,

da perspectiva tão difundida de Hans Kelsen, que propõe a

consideração dita científica (positivista) do Direito apenas

como um conjunto de normas já dadas, a ser estudado por um

sistema consistente de objetos puramente formais, sem

discussão de seus conteúdos, é que se atingiria a

possibilidade do conhecimento científico.

Justamente contra essa perspectiva é que nos insurgimos,

154

Page 155: Tese para IFCS

verberando argumentos como os que defendem, em filosofia da

matemática, os intuicionista, Luitzen Brouwer a frente, tendo

ao lado Henri Poncaré, e também Husserl, como antes dele o

seu mestre, Weierstraß. A prática da matemática, para

Brouwer, como explica Jairo José da Silva,154 “não se

constituía na derivação de teoremas, no interior de uma

lógica determinada a priori, como para os logicistas e

formalistas, mas no exercício criativo de uma consciência

matemática, limitada apenas ao princípio formal a que está

sujeita toda construção, o tempo”. Assim, para o

intuicionismo, enquanto vivência de uma consciência moldada

pelo sentido interno, que é o tempo, a investigação

matemática se dá em um processo temporal finito, mas que não

é aprioristicamente limitado ou universalmente pré-

determinado. Toda construção que extrapole a intuição

fundamental é inexistente, mera forma fantasmagórica,

concebida no espaço imaginário da consciência. Assim ocorre

com os conjuntos infinitos, dos quais a matemática usa e

abusa, sem que deles possa oferecer um verdadeiro

154 Cf. Filosofias da Matemática, São Paulo: UNESP/FAPESP, 2007, p.152.

155

Page 156: Tese para IFCS

conhecimento, posto que nenhuma totalidade de fato infinita

pode ser efetivamente construída numa seqüência finita de

momentos – e também por vivermos, até onde nos é dado

perceber, em um mundo materialmente finito, oriundo de um

evento singularíssimo, o assim chamado “big bang”. Conforme

distinção feita logo no início do presente trabalho (supra, n.

2), apesar de concebível, o infinito é inimaginável.

A subjetividade transcendental, por seu turno, como bem

coloca, transmitindo as lições husserlianas um adepto

lusitano, Alexandre Fradique Morujão,155 é quem vai pôr o

mundo “entre parênteses”, por meio da redução fenomenológico-

transcendental (a epoché do ceticismo pirrônico, com o

significado que lhe atribuiu Husserl), depurando, assim,

desse mundo (natural) o eu, enquanto pólo ideal, visto que

“(N)o sentido fenomenológico só há mundo para mim e só há eu

na correlação mundana intencional”.156 Isso porque o fenômeno,

para a fenomenologia husserliana, é esse “correlato real ou

possível de determinados modos de doação intencionais” (id.

155 Cf. “Sobre a fenomenologia husserliana”, in: Id., “Subjectividade eHistória”, Coimbra: Universidade de Coimbra, 1969, pp. 105 ss. 156 Cf. ob. loc. ult. cit., p. 115.

156

Page 157: Tese para IFCS

ib., p. 116), modos esses que são modos de doação do mundo –

o qual, parafraseando a passagem bíblica, se precisa

inicialmente perder para depois recuperá-lo, “ganhando-o”.

Escapando do mundo pela epoché, seguida da redução

fenomenológica, o eu, agora (mais) livre, pode lhe atribuir

sentido, o que já exige que ele saia do solipsismo, de seu

estado de mônada (como diria Leibniz), irredutivelmente

fechada em si, abrindo-se para o “nós” ou pluralidade de

“eus” que há em si, em cada um de nós.157 Por essa via, a

reflexão fenomenológica, tal como atestam trabalhos ainda

inéditos de Husserl,158 chega a uma “totalidade absoluta das

mônadas”, denominada “personalidade total” (na “Krisis”, § 55,

pp. 191/192, linhas 39/01, há referência a “personalidades de

ordens superiores”, com sentido crescentemente transcendental

e, assim, absoluto), fundamento mais íntimo do eu

transcendental, que é também um “eu”, só que de um tipo todo

especial, por ser Deus, “intuível reflexivamente como uma

157 Cf. HUSSERL, Erste Philosophie, 1923/1924”, 2a. parte, Husserliana,vol. VIII, 1959, p. 173, passim. 158 V., p. ex., o “Manuscrito” EIII 4, 1930, p. 62, referido porMORUJÃO, ob. cit., p. 135.

157

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ultra-realidade, supra-verdade e ultra em si”.159

Ora, o conjunto de mônadas, que é uma “super-mônada”, a

qual se pode se indicar com a denominação de “Deus”, há de

ser concebido como este círculo, que foi reduzido ao “ponto”

da geometria clássica, formado por uma infinidade de outros

círculos ou “pontos”, as “rei” (plural de res, em latim, a

causa jurídica, o litígio, que se traduz também por coisa) ou

coisas que compõem a assim chamada re(i)alidade, todas

passíveis de serem concebidas abstratamente como círculos que

são abrangidos por um círculo maior, no qual, portanto, são

imanentes, mas que, por este círculo maior a eles não se

reduzir, ele seria, em relação aos círculos menores,

transcendente.160

7. Proposta de reordenação das formas de conhecimento:

legitimando aquelas de natureza poético-normativa ou

159 Husserl, apud MORUJÃO, ob. loc. ult. cit.160 Assim como nos parece os números seriam entendidos, se definidoscomo “conjuntos de conjuntos”, na esteira das colocações deBertrand Russell e Alfred North Whitehead, em Principia Mathematica,quando então o zero, por exemplo, dessa perspectiva, seriadefinido como “o conjunto cujos elementos são todos os conjuntosvazios” – cf. JOSÉ DANTAS, ms., cit., p. 1.

158

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“escatológicas”

Eis que assim nos pomos em condição de propor os vetores

de investigação da totalidade do real, como uma parte do

imaginário, dividido por um eixo horizontal atravessado por

um outro, vertical, onde na parte superior está o

transcendente, assim como na parte inferior está o imanente.

Já na parte anterior, do eixo horizontal, tem-se a

investigação causal-explicativa, praticada pelas ciências

naturais, e que também pode ser dita arqueológica, no sentido

em que Michel Foucault propôs uma arqueologia do saber,161 ou

também “arcôntica” (archontisch), como refere Heidegger,162

161 Cf., para uma retomada recente da contribuição de Foucault, comgrande vigor, GIORGIO AGAMBEN, Signatura Rerum. Turim: BollatiBerlinghieri, 2008.162 Cf. Phänomenologische Interpretationen zu Aristoteles. Einführung in diephänomenologische Forschung, Gesamtausgabe, vol. 61, WALTER BRÖCKER eKÄTE BRÖCKER-OLTMANNS (eds.), 2a. ed., Frankfurt am Main: VittorioKlostermann, 1994, p. 26. Também Husserl refere-se a uma“metodologia arqueológica” no Manuscrito C 16 IV, como nos reportaNicoletta Ghigi, da Universidade de Perúgia (Itália), especialistaem fenomenologia husserliana que vem desenvolvendo pesquisas sobreos manuscritos inéditos do Arquivo Husserl (Louvain, Bélgica) -cf. http://www.fafich.ufmg.br/memorandum/artigos04/ghigi01.htm,consultado em 1o./10/2006. V. tb. ANGELA ALES BELLO, Culturas eReligiões. Uma leitura fenomenológica, trad.: Antonio Angonese, Bauru (SP):EDUSC, 1998; Id., Fenomenologia e Ciências Humanas, org. e trad.: MIGUELMAHFOUD e MARINA MASSIMI, Bauru (SP): EDUSC, 2004, cap. 2, p. 187ss.

159

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desde que praticada no plano histórico, transcendente (parte

superior esquerda do diagrama proposto), ao invés daquele

natural, imanente (parte inferior esquerda o mesmo).163 E na

parte posterior deste mesmo eixo (portanto, à direita do

diagrama) é que se tem localizada a investigação ou

elaboração mais puramente imaginativa, voltada não para a

busca retrospectiva de causas originárias, as “archai” (do

grego arché, que quer dizer “causa”, sendo termo originário do

vocabulário jurídico-político, pois significa também o poder

de decidir do arc[h]onte), mas sim para a formulação

prospectiva, escatológica,164 do sentido, tal como se faz no163 Aqui pode-se vislumbrar motivos pelos quais Freud, nos últimosanos de sua reflexão teórica, já tendo, no Nachschrift 1935 zur“Selbstdarstellung”, conforme anteriormente mencionado, reconhecidonas religiões um conteúdo de verdade, aduzindo se tratar deverdade que “não é material, mas sim, histórica”, também irárecomendar que o analista, ao invés de fazer interpretações(Deutungen), faça “construções” (Konstruktionen), ou ainda,“reconstruções” (Rekonstruktionen), de maneira análogo ao trabalho dosarqueólogos, segundo suas prórpias palavaras. Cf. FREUD,Konstruktionen in der Analyse [1937], in: Gesammelte Werke, cit., vol. XVI,p. 43 ss.164 No sentido em que Paul Ricouer se refere às duas formas dehermenêutica, em seu texto fundamental sobre a simbólica do mal,contida em sua obra “O Conflito das Interpretações”, a saber,aquelas redutoras, voltadas para uma reconstituição do passado,ditas arqueológicas, em contraposição àquelas amplificadoras daimaginação simbólica (sinnbildende, como se diz em alemão, ou seja,literalmente, “construtora de sentido”), que se relacionam com opassado no registro do que chamamos em língua galego-portuguesa(e/ou luso-brasileira) de maneira singular de “saudade”, um anelo

160

Page 161: Tese para IFCS

âmbito da poética, seja ela artística, ou (também) teológica,

tal como refere Giambattista Vico, com uma conotação

igualmente jurídica, ou jurídico-política, “civil”,165 sendo

esta última de se considerar como imanente (parte inferior à

direita do diagrama proposto), enquanto aquelas sãode voltar a viver com maior intensidade, no futuro, algo jávivenciado, em geral na in-fância feliz da existência, do queescapa às palavras mas se preserva nas imagens. A essa segundaforma de hermenêutica Ricouer denomina “escatológica”. Cf.,especificamente, P. RICOUER, “Le conflit des herméneutiques,épistémologie des interprétations”, in: Cahiers Internationaux deSymbolisme, Paris, 1963, n. I, pp. 179 ss.; v. tb. GILBERT DURAND, AImaginação Simbólica, São Paulo: CULTRIX/EDUSP, 1988, pp. 93 ss. 165 Para Vico, os primeiros poetas foram teólogos que com a suateologia estabeleceram os fundamentos da organização política,inicialmente republicana, expressando-se através de “imagineshumanae maiorum”, antes que por conceitos, como se faz em teologianatural ou racional. Cf. VICO, “Sinopsi del diritto universale”, in: Id., Il dirittouniversale, a cura di FAUSTO NICOLINI, Bari: Laterza, 1936, pp. 6, 7,10 e 17. Daí ser para ele a poética uma sabedoria (sapientia), a sediferençar tanto das ciências, como a matemática, enquanto umemprego da razão com finalidade demonstrativa, como das “técnicas”(ars), de natureza preceptiva – e também daquelas disciplinas que,segundo ele, são em parte demonstrativas e em parte preceptivas,dando como exemplo a Medicina e o Direito, e preceptivas em umsentido mais amplo do que seria a retórica (oratoria) ou uma outradisciplina, que denomina imperatoria, designação que aponta para algoassim como o que outros chamariam “arte de governar”, pois aquelasprescrevem na forma do aconselhamento (consilia) combinado comdemonstrações, enquanto esta últimas combinam os conselhos (consilia)com os preceitos propriamente ditos (praeceptis). Merece transcriçãointegral as passagens concernentes, nomeadamente, os “capítulos”(capita) XXXVI e XXXVII do Livro primeiro da obra acima referida, “ODireito Universal”, intitulado “De uno universi iuris principio et fine uno”, in:loc ult. cit, p. 50: “CAPUT XXXVI – DE VIRTUTE: Ab hac vi veri,quae est humana ratio, virtus existit et appellatur. CAPUT XXXVII[VIRTUS DIANOETICA ET VIRTUS ETHICA] – Virtus dianoetica:scientia, ars, sapientia.: Vis veri, quae errorem vincit, est

161

Page 162: Tese para IFCS

transcendentes (parte superior à direita).

Em meados do século XX, a obra de Theodor Viehweg,

“Tópica e Jurisprudência” (melhor traduzindo Topik und

Juriprudenz: Tópica e Ciência do Direito) teve grande impacto

na filosofia jurídica e, mesmo, na filosofia em geral, ao

postular um retorno a Vico para resgatar a racionalidade

argumentativa ínsita a disciplinas, como a tópica e a

retórica, desacreditadas pelo racionalismo cientificista da

(primeira) modernidade, então caído ele próprio em

descrédito, em face dos horrores das duas grandes guerras

mundiais, impulsionadas pelo avanço do conhecimento, que ao

invés de trazer a esperada melhoria das condições da

humanidade a estava, então como ainda agora, ameaçando com a

extinção. É preciso que se retorne mais uma vez a Vico e aos

que, tanto antes, como depois dele, postularam uma defesa da

racionalidade contemplando o solo mesmo de onde ela brota, o

húmus da cultura donde emerge o humano: a capacidade

virtus dianoetica, seu virtus cognitionis. Quae, si totademonstratione constat, est scientia, ut mathesis; si totapraeceptis, est ars, ut grammatica, frenaria; si partimdemonstratione partim consilio, ut medicina, iurisprudentia, velpartim praeceptis partim consilio, ut imperatória,oratória,poética, proprie ‘sapientia’ est appellanada”.

162

Page 163: Tese para IFCS

simbolizadora presente na linguagem, em suas mais diversas

formas (sendo o direito uma delas), enquanto produtora (e

produto) do esforço de produção de um sentido para a

existência desse ser em aberto, livre, que somos.

Do que faz falta, então, é de promover uma

(re)aproximação da teoria a um modo antes poético, do que

científico e mesmo filosófico (ou religioso), de desenvolver

a reflexão e sua exposição. Com isso não se pretende

invalidar os esforços que em geral fazem os estudiosos de

filosofia, quando se dedicam à exegese do que escreveram os

filósofos, normalmente aqueles do passado e, em raros casos,

alguns poucos contemporâneos, que ousaram, ou ainda ousam,

elaborar um pensamento (mais) próprio. “Próprio”, aqui,

entenda-se no duplo sentido da palavra, em que este

pensamento tanto aparece como original, originário do próprio

sujeito, como apropriado ao que se pode considerar assunto da

filosofia. Ocorre que, no modo de ver aqui proposto, realizar

um trabalho teórico que mais se aproxima de parâmetros

científicos, sejam das ciências humanas, sejam de ciências

naturais ou formais, como se dá, comumente, no âmbito da

163

Page 164: Tese para IFCS

filosofia de corte analítico, entendemos que significa

desviar-se do que mais direta e imediatamente interessa

tratar em filosofia, desviando-se para um caminho técnico, no

qual se exaure o modo mais originário de questionamento

filosófico, que é metafísico ou, como acima referido,

“archôntico”, enquanto imanente, e escatológico, quando

aberto ao transcendente, à discussão do sentido da existência

de si, ou seja da vida e da morte, bem como dos demais e do

próprio mundo, tal como normalmente é feito pelo simbolismo

“mitopoético” de religiões e artes em geral. De certa

maneira, estaremos assim retomando uma perspectiva suscitada

ainda na passagem do séc. XIX para o seguinte pelo filósofo

cearense Farias Brito, que entendia deveriam filosofia,

ciência e poesia fundirem-se em uma só, enquanto princípio

ativo (e regenerador) do pensamento, dirigindo-o,

respectivamente, para o bem, o verdadeiro e o belo.166

Assim, mesmo sendo da filosofia que resultou a postura

científica de tratar as questões (sua epistéme, para dizer em

166 Cf. FARIAS BRITO, Finalidade do Mundo, vol. I - “A Filosofia comoAtividade Permanente do Espírito Humano”, publicado originalmente naCidade de Fortaleza, em 1895 -, 2a. ed., Instituto Nacional doLivro, Rio de Janeiro, 1957, p. 128.

164

Page 165: Tese para IFCS

grego, empregando expressão hoje consagrada no jargão

filosófico), aquilo que se pretenda conhecer/saber pela

filosofia sobre este aspecto de último referido, é justamente

o que não interessa às ciências, do que elas não se ocupam,

até porque as põe em questão: elas próprias, seus objetivos,

para além do conhecimento que fornecem e das possibilidades

de ação/interação/alteração do que estudam. Mesmo uma

“ciência da ciência” não levaria a uma tal filosofia, pois

não se voltaria para pensar o que aqui se propõe deva acolher

uma nova teoria, metafilosófica, (mito)poética, aqui

qualificada de “imaginária”, por imaginativa – situada

naquele plano que Henry Courbin denominou de “imaginal” -,

havendo urgência nesse acolhimento, perfeitamente factível,

tendo em vista que a filosofia já esteve voltada para esse

modo de pensar e o levava em conta – aliás, em alta conta,

como atesta, por exemplo, o que nos restou de obras como a

Poética de Aristóteles, a partir da qual Olavo de Carvalho

propõe se deva (re)ler o conjunto desta obra fundadora do

pensamento ocidental,167 ou já na chamada época moderna

167 Aristóteles em nova Perspectiva, Rio de Janeiro: Topbooks, 1996.

165

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colocações como aquelas antes referidas de Vico -, antes de

se perder e exaurir nas ciências. Inclusive, a própria

palavra “filosofia, etimologicamente, fora utilizada de

maneira esparsa por “Pré-Socráticos” como Heráclito de Éfeso

e Pitágoras (membros da Escola dita Pitagórica, localizada na

região da atual Sicília), mas só foi efetivamente difundida a

partir de Atenas, graças a Sócrates e seus seguidores,

havendo nela a philia, referência a um anelo, uma aspiração,

por uma forma extra-ordinária de saber, a sophia, que não é da

ordem natural apenas, como aquele dos que, a exemplo de

Thales, Parmênides, Zenão, Leucipo, Demócrito, investigavam

o fundamento (arché) ou fundamentos (archai) da physis, sobre ela

elaborando um discurso logos – em geral, da maneira que então

se entendia ser a mais adequada para a transmissão e fixação

do saber,ou seja,em versos, quer dizer, poeticamente -, donde

serem melhor denominados, como o fez Aristóteles na Metafísica,

“fisiólogos”, physiologoi (de physis + logos, pl. logoi), até

porque dentre eles se tem contemporâneos e pósteros de

Sócrates.

A urgência desse pensamento em nosso tempo se explica

166

Page 167: Tese para IFCS

justamente em razão do que nele vem-se produzindo, sob a

influência do predomínio do pensamento técnico-científico – e

o pensamento técnico, vale destacar, desde sempre e cada vez

mais remete ao pensamento que a filosofia tornou científico,

e vice-versa. Antes da ciência se tornar o que hoje – e desde

já há algum tempo – ela se tornou, ela existiu

embrionariamente enquanto técnica, faltando apenas o encontro

histórico com a filosofia, primeiro, e, depois, com a

religião monoteísta e personalista, de Deus onipotente feito

homem, o cristianismo, para que se verificassem os

pressupostos mais importantes, no plano ideológico,

imaginário, de seu completo desenvolvimento – eis que se tem

uma origem metafísico- teológica da ciência e de sua(s)

técnica(s).168

168 Aqui estamos diante do que Herman Dooyoweerd, jusfilósofo etambém pensador da totalidade - de uma perspectiva neocalvinista,reformada -, qualifica, em seu opus magnum, De Wijsbegeerte der Wetsidee(disponibliizado para download na rede mundial de computadores pelogoverno holandês), como a priori religioso de todo pensamento,inclusive o científico. Embora na versão para o inglês desta obra,posterior, o A. tenha retirado da noção de a priori, tal comoempregada na expressão, o sentido transcendental kantiano, opróprio cerne “ideonômico” de seu pensamento implica a idéia deordenação de tudo quanto se possa conceber e transmitir a partirde pressuposições sobre o sentido, que em si têm naturezareligiosa ou, como preferimos denominar, “mitopoética”, porabranger todo o campo do simbolismo, no qual se pode situar as

167

Page 168: Tese para IFCS

Para Platão, por exemplo, a filosofia seria "epistéme

epistemés", "ciência da ciência", enquanto Aristóteles, na

"Metafísica" (Livro VII ou zetha, 1), a define como "epistéme

ton próton arkhôn kaì aítion theoretiké", conhecimento dos primeiros

princípios e causas explicativos de tudo. Comentando essa

passagem, Heidegger, no texto "Que é isto, a filosofia?",

recorda que epistéme deriva de epistámenos, que seria aquela

pessoa vocacionada e competente para uma determinada

atividade - no caso da filosofia, a atividade de teorizar,

sendo a theoria o que os gregos considerariam propriamente a

ciência, saber contemplativo das verdades universais, eternas

e transcendentes, que, no princípio do livro apenas citado de

Aristóteles, é considerado um conhecimento através do qual os

homens se ombreariam com os deuses, devendo, por isso, temer

a inveja deles. Uma outra forma de conhecimento, mais próprio

das contingências da vida, é aquele que os gregos denominavamreligiões, como também as elaborações mitológicas, de naturezaantes mágica do que religiosa, as artes, o próprio direito etc.Remonta a Platão a concepção de uma estrutura ideonômica douniverso dos símbolos coroado, na visão platônica, pela Idéia doBem (Rep., VI) – cf. Henrique de Lima Vaz, Ética e Direito, São Paulo:Landy/Loyola, 2002, p. 328. O termo é o que entendemos deva serutilizado para traduzir a expressão-guia do pensamentodooyeweerdiano: wetsidee (vertido para o inglês como Law-Idea e para oalemão como Gesetzesidee).

168

Page 169: Tese para IFCS

techné, a técnica, um conhecimento operativo, instrumental e

produtivo, limitado e finito, por voltado ao atendimento de

finalidades específicas, mas sempre revelador de

potencialidades, donde sua tradução para o latim como ars.

Então, a epistéme seria algo intermediário entre essas duas

formas de conhecimento, por referir-se à atividade de

conhecer a partir das necessidades de um certo tipo de

explicação, isto é, não as explicações que se fazem

necessárias e úteis à manutenção da vida, inclusive no

convívio social e político, mas sim aquelas que, a rigor, são

desnecessárias, inúteis, embora sejam elas o que desejamos,

anelamos, quando nos maravilhamos e, no duplo sentido dessas

palavras, negativo e positivo, nos espantamos e assombramos

diante do universo ao nosso redor e em nós mesmos, o cosmos,

sendo desse sentimento (pathos) que, segundo os dois filósofos

gregos citados - mestre e discípulo, de certa forma os

primeiros e até hoje maiores entre todos - nasceria a

filosofia: Platão, no seu diálogo "Teeteto" (155 d), e

Aristóteles, na já citada "Metafísica” (Livro I ou alfa, 2).

Temos que retornar sempre a esse momento espantoso, em que o

169

Page 170: Tese para IFCS

ser se mostra, o qual nos levou a falar e a nos pormos a

caminho de uma busca de explicações, como que para nos

assegurarmos na vida, tentando aprisionar o que, na verdade,

nos fez prisioneiros, sem percebermos, pois assim entramos em

uma fantasia de permanência, impedindo-nos de aproveitar bem

a oportunidade que temos de, simplesmente, sermos

(experiências do ser).

É certo que antes do saber científico afirmar sua

superioridade, em termos pragmáticos, frente aos demais,

inclusive a filosofia – o saber justamente de onde as

ciências em geral foram colher seu mais forte impulso

inicial, adotando postulados como este apenas mencionado, da

contingência e falibilidade do conhecimento -, foi necessário

superar o predomínio de um tipo de conhecimento que mesmo

tendo se aproveitado bastante da filosofia, até o ponto de

tê-la como sua “serva”, veio a abandoná-la nos momentos

cruciais, indo buscar apoio além da razão, na fé. Este saber

é o da teologia, ou o conhecimento de natureza religiosa

amparado teo-logicamente, que irá por muito tempo cercear o

desenvolvimento da perspectiva relativista e imanentista,

170

Page 171: Tese para IFCS

própria da ciência. Contudo, a ruptura que a modernidade

trará com a supremacia do pensamento teológico, no Ocidente,

foi preparada no contexto desse mesmo pensamento, por

teólogos mal-compreendidos em seu tempo, como Roger Bacon

(séc. XIII), com sua insistência no valor da experimentação

para desenvolver o conhecimento, e um outro, franciscano e

britânico como ele, de quem já tivemos oportunidade de vai

destacar alguns aspectos mais salientes de seu pensamento,

que foi Guilherme de Ockham (séc. XIV), sendo que entre ambos

avulta a figura do antes referido John Duns Scot, a quem se

pode conceder os maiores créditos pela introdução de uma

perspectiva, mais que transcendente, verdadeiramente

transcendental – e, logo, moderna –,169 a ser desenvolvida

posteriormente, sem os vínculos dogmáticos com a teologia,

por Descartes, Kant e, já na contemporaneidade, Husserl, para

citar apenas três dos maiores responsáveis pelo

aprofundamento do que se pode denominar uma “metafísica do

169 Cf. WILLIS SANTIAGO GUERRA FILHO, “Lei, direito e poder em Guilherme deOckham”,cit.; Id., “Sobre a cisão medieval de estruturas do pensamento filosóficosegundo André de Muralt”, in: Crítica. Revista de Filosofia, vol. 9,números 29/30, Londrina:UEL/CEFIL, 2004, p. 251 ss.

171

Page 172: Tese para IFCS

possível”, oriunda já de pensadores árabes, com destaque para

Avicena (Ibn-Sina).170

8. Interlúdio Metafísico-Teológico (com uma alusão à Teoria

de Sistemas Sociais Autopoiéticos)

A teologia (judaico-)cristã da onipotência divina, ao

postular um Deus que é pura onipotência para além da razão e

do mundo, o maximamente real passa a ser a soberana potência

divina, superior a toda razão e a toda criação. Em outras

palavras, se Deus é o maximamente real será porque Sua

vontade contém em si toda a realidade possível. Deste modo, a

hipótese ockhamista, enquanto implica em identificar a

onipotência divina com a realidade de Deus, acaba por

identificar o maximamente real com o maximamente possível.

Dito em outros termos, a mencionada hipótese leva a

identificar o real com o possível por via da absorção do

primeiro pelo segundo, e a esvaziar de sentido a noção de

170 Cf. VALENTÍN FERNÁNDEZ POLANCO, “Los precedentes medievales delcriticismo kantiano”, in: Revista de Filosofía, vol. 28, núm. 2,Madrid, 2003.

172

Page 173: Tese para IFCS

realidade em beneficio da noção de possibilidade, de tal modo

que esta última se faz co-extensível à de ser. A existência

fica, então relegada à condição ou estatuto de um mero caso

fático, isto é, a não ser mais que uma determinação acidental

do ser, quem, por sua parte, se identifica pura e

simplesmente com o ser-possível e se caracteriza por possuir

uma realidade puramente hipotética. E, assim como no caso

grego o ser teria que se dizer de muitas maneiras, para

contemplar seus diferentes modos de exercício, assim também,

no regime definido pela redução teológica do real ao possível

só será concebível um único e exclusivo modo de ser, aquele

que emana da possibilidade, quer dizer, aquele cuja realidade

está já contida de antemão em sua possibilidade. No caso

grego nos achamos, portanto, frente à lógica da analogia:

diversos modos de ser, linguagem essencialmente polissêmica,

sempre inexata, em certo sentido submetida e também superior

ao princípio de não-contradição. Na hipótese teológica da

vontade onipotente, ao contrário, frente à lógica da

univocidade: um único modo de ser, linguagem exata e precisa,

drasticamente submetida ao princípio de não-contradição. A

173

Page 174: Tese para IFCS

univocidade lógica se converte, deste modo, no reverso da

onipotência absoluta de Deus e expressa a natureza hipotética

de todo ser, enquanto seu principio constitutivo, o de não-

contradição, alcança, coerentemente, o estatuto de paradigma

de toda verdade possível.

A identificação do ser de Deus com seu poder absoluto

conduz, então, à identificação da realidade com a

possibilidade no seio de uma racionalidade unívoca. Daí que

aquela “ciência primeira”, que se ocuparia do ser enquanto

ser, aquela ciência, de estatuto epistemológico tão

contestado, da que dizíamos que não pode estar no mesmo nível

que as demais, mas sim que deve induzir seus conteúdos a

partir das outras ciências, tenha de adotar necessariamente a

forma – se pretende corresponder ao panorama doutrinal

inaugurado e presidido pela hipótese da onipotência absoluta

de Deus – de uma metafísica do possível, que é também uma

teologia,171 mas sem a referência dogmática a um credo

171 A teologia metafísica do possível vai repercutir no pensamentodaquele filósofo que, no século XX, irá patrocinar o enxerto, dahermenêutica no solo da fenomenologia husserliana, que foi MartinHeidegger, enxerto tão fértil, tal como resta uma vez maisdemonstrado no trabalho que aqui se apresenta. Como é sabido, osestudos de filosofia de Heidegger foram antecedidos pelo estudo da

174

Page 175: Tese para IFCS

religioso qualquer, ambas com um caráter falibilista, tal

como recentemente se reconhece às próprias ciências, o que a

torna possível em um outro sentido, agora epistemológico,

aquele adotado modernamente pelas ciências: essa

possibilidade mostra-se atualmente uma verdadeira

necessidade, pela urgência que temos em estabelecer bases

para um entendimento mútuo entre os humanos, assentado numa

teologia, e sua tese de livre-docência versou sobre Duns Scot – oumelhor, sobre obra que depois se revelou da autoria de Thomas deErfurt, mas que deu margem a que se pensasse ser de Scotjustamente pela estrita observância scotiana nela apresentada. Umaoutra influência, talvez ainda mais decisiva, foi a do pensadorreligioso, cristão, Sǿren Kierkegaard, para que em Heidegger seencontre esse pensamento da abertura para as possibilidades do ser(Sein) que ante si mesmo, aí (Da), pro-jetado, no mundo, tanto semostra, do ponto de vista ôntico, enqunto ente, temporal ematerialmente finito, como também, do ponto de vista ontológico,essencial e espiritualmente infinito, por encarnar a liberdade -uma “fenomenologia da liberdade”, é como Günter Figal se refere àfilosofia heideggeriana, na ob. loc. ult. cit. E como diria opensador dinamarquês, em sua obra clássica sobre o conceito deangústia (Angst), a realidade, antes de tudo, é por nósexperimentada - aperceptivamente, diria Husserl – como umpossível ser, que se toma com real porque nele se crê. A crença nomundo, em um mundo, portanto, é um a priori para o conhecermos, etambém para transformá-lo, o que não se pode obter sem antes -ainda que aperceptivamente -, interpretá-lo (ao contrário do quesugere Marx, em sua conhecida tese contra Feuerbach). Portanto, atransformação almejada, seja qual for, é resultado de uma práticaorientada teoricamente, i. e., de um saber prático, sim, masprodutivo, logo, “poiético” -, e não de uma ação enquanto merapráxis ou de uma “téc(h)n[(ét)ica]”, reprodutiva. Um saber práticopode ser caracterizado como aquele que indica como algo pode serfeito, uma vez que se decidiu (ética, política e/ou juridicamente)fazê-lo, e como fazê-lo.

175

Page 176: Tese para IFCS

compreensão que seja aceitável como são os resultados

científicos, a respeito de nosso significado cósmico – que se

produza, então, uma teologia esvaziada de qualquer conteúdo

religioso específico, para ser a teologia adequada a nossos

tempos de predomínio tecnocientífico, que seja capaz de

superar esse predomínio, salvando a humanidade de si mesma,

enquanto o saber salvífico, soteriológico, que sempre desde a

origem se propôs a ser a filosofia, como as religiões,172 e

não só teórico mas, sobretudo, prático - logo, eficaz

também.173 busca das estruturas fundamentais de toda realidade172 Neste sentido, LUC FERRY, O que é uma vida bem sucedida?, trad.:KARINA JANNINI, Rio de Janeiro: DIFEL, 2004. 173 Cf. WILLIS SANTIAGO GUERRA FILHO, “(Im)possibilidade e Necessidade daTeologia”, in: Nós e o Absoluto. Festschrift em homenagem a Manfredo Araújo deOliveira, CARLOS CIRNE-LIMA e CUSTÓDIO ALMEIDA (orgs.), São Paulo/Fortaleza: Loyola/UFC, 2001. Também disponível emhttp://serbal.pntic.mec.es/AParteRei/ núm 12:http://serbal.pntic.mec.es/~cmunoz11/willis.pdf. Aqui se apresentauma perspectiva da teologia que se pode qualificar como“narrativa”, à semelhança daquela derivada da filosofiahermenêutico-fenomenológica de Paul Ricouer. Esta é umaperspectiva que se mostra estruturalmente compatível com asciências, ou com o direito, concebido – e concebidas - comoficções de mundos possíveis, a partir dos dados fornecidos pelosobjetos estudados e, no mesmo processo, construídos. Interessadiferenciar tal perspectiva de uma outra, que consideramos foitentada por autores como Alfred North Whitehead, Hedwig Conrad-Martius e, mais recentemente, Richard Swinburne, em que a teologiase aproxima dos conteúdos mesmos das ciências, se fazendo com taiselementos e, eventualmente, mostrando-se compatível com religiões– sintomaticamente, aquelas professadas por tais autores, dederivação judaico-cristã, o que nos parece algo a ser evitado ou,

176

Page 177: Tese para IFCS

inteligível, que não seriam, entretanto, consideradas como

estruturas transcendentais, enquanto condição mesma da

inteligibilidade, nem tampouco estruturas transcendentes,

tidas como originárias de algum plano meta-físico ou

teológico.

Centrando-nos no entendimento do que seriam tais

estruturas, tem-se que a estruturalidade implica a negação do

simples ou da falta de conexão e, neste sentido intuitivo,

estrutura constitui o conceito originário ou o fator primeiro

de qualquer empreendimento teórico, sua arkhé, para referir a

noção fundamental – e fundante – da filosofia.

No horizonte de uma tal elaboração, verifica-se a

ausência de uma distinção clara entre metafísica e teologia,

até por estarem ambas voltadas para o estudo da realidade

como uma totalidade (de sentido), o que teria contribuído

para obscurecer, na modernidade, os pressupostos dogmático-

teológicos ou “dogmatológicos” nela estruturalmente

operantes, retomados de maneira também indevidamente

explicitada no que se pode considerar tentativas

pelo menos, desnecessário, pois traz o inconveniente de dificultaro diálogo intercultural.

177

Page 178: Tese para IFCS

contemporâneas de refundação da ontologia enquanto “ciência

primeira” (protê epistéme) na fenomenologia, com Husserl e,

principalmente, em Heidegger, com o sua virada para a

“hermenêutica da facticidade” - objeto de breve apresentação

no estudo feito em apartado, no próximo capítulo -, como

também no modo de desenvolvimento das “ciências derivadas”,

ou ciências propriamente ditas.

Para tanto, faz-se necessário proceder, como o próprio

Heidegger, um retorno às origens gregas da metafísica, tal

como nos foi ela transmitida através da obra de Aristóteles,

o qual concebeu a continuidade entre a razão e a natureza

como reunidas em uma unidade dinâmica, finita e ordenada,

expressa pela linguagem. Neste sentido, pode-se dizer que aí

culmina a visão grega dos problemas filosóficos, na medida em

que inventa um saber racional, capaz de dar uma resposta

unitária aos problemas suscitados pela tradição anterior,

problemas concernentes tanto ao dinamismo da natureza como ao

da própria razão humana. O irredutível de tais problemas,

afirmará Aristóteles, é a realidade do ser, tão imediata de

captar como difícil de definir, algo que parece sempre querer

178

Page 179: Tese para IFCS

escapar a todo intento de delimitação e que, precisamente

por isso, só podemos designar como o comum a tudo, e,

particularmente, como o comum à realidade do mundo frente ao

homem e à realidade do pensamento no homem, isto é, como o

comum à natureza e à razão. Por causa da impossibilidade de

sua delimitação, a realidade do ser não pode ser objeto de

nenhuma ciência particular, mas sim de uma ciência primeira,

enquanto se ocupa do que é prévio e pressuposto em todas as

demais, que são os fundamentos mesmo de sua realidade como

ciências e da realidade de seus objetos, enquanto as diversas

determinações do ser no que é dado: a realidade irredutível

do ser.

Essa ciência primeira é, então, também “única”, por ser

ciência em um sentido totalmente diverso de qualquer outra,

sendo a ela que Aristóteles e os gregos de sua época chamavam

“teologia” - e por serem os livros que tratavam a respeito

reunidos por Teofrasto, na organização do corpus essencial da

obra aristotélica, o organon, “após (os livros d)a física”

(meta ta physika), fez com que se denominasse metafísica sua

matéria -, definida como a ciência que trata do ser enquanto

179

Page 180: Tese para IFCS

ser, i. e., que trata de sua realidade mesma - cf.

Aristóteles, Metafísica, 1003 a 20-25.

Daí que, ao tematizar a continuidade grega entre a razão

e a natureza, unidade bifronte de um único dinamismo dado em

sua finitude, Aristóteles funde a ciência da realidade do

ser, inaugurando o que se pode denominar uma metafísica do real.

O pensamento medieval cristão, ao partir da noção de um

Deus infinito, iria ter sérios problemas na hora de

confrontar o racionalismo natural da metafísica aristotélica

com a perspectiva teológica da infinitude, pois um Deus

infinito é tudo menos algo dado, e se esse Deus infinito é

tido como o maximamente real ou o real por antonomásia, o real

em si, é evidente que a realidade do binômio natureza/razão

será seriamente ameaçada. As grandes sínteses teológicas

medievais, especialmente aquela mais característica e

acatada, a de Tomás de Aquino, resolveriam esta dificuldade

recorrendo ao escalonamento dos graus metafísicos da

realidade, onde Deus possuiria um grau máximo, infinito,

absoluto, enquanto a realidade das coisas criadas seria

finita, relativa e Dele dependente. Isto supunha, em

180

Page 181: Tese para IFCS

contrapartida, a abertura de um certo, ainda que bastante

limitado, acesso do homem ao conhecimento da realidade de

Deus, pelo qual, em princípio, seria possível ter uma noção

aproximada dela mediante o procedimento de elevar ao infinito

as perfeições da natureza (idéias) e os valores da razão

(fins), obtendo assim um vislumbre de quais poderiam ser os

atributos da divindade. Esta solução, que implicava em

atribuir a Deus caracteres próprios do binômio natureza-

razão, particularmente os arquétipos naturais (idéias

divinas) e os valores racionais (fins divinos), permitiu a

Tomás de Aquino salvar o essencial da metafísica aristotélica

e, ao mesmo tempo, conceber um Deus cujos atributos fossem

parcialmente acessíveis para aquela ciência primeira que era

a metafísica do ser real.

Os teólogos críticos da escolástica tardia,

principalmente Duns Scot e, de uma maneira ainda mais

radical, Guilherme de Ockham, como vimos acima (supra, n. 4),

rechaçaram abertamente este procedimento por considerarem

que, tratando de evitar o desprezo que a realidade de Deus

supunha para com o binômio natureza/razão, incorria no

181

Page 182: Tese para IFCS

defeito oposto, quer dizer, desprezava a infinitude própria

da divindade, atribuindo-lhe idéias (naturais) e fins

(racionais) que só podiam limitar Sua liberdade infinita,

isto é, sua onipotência absoluta. Assim, Duns Scot iria

desvirtuar a doutrina dos graus metafísicos ao interpretá-la

em um sentido formalista, que excluía expressamente sua

aplicação à existência, com o que cortava todo aceso racional

à divindade, já que, por esta consideração, deixava de haver

qualquer coisa em comum entre Deus e criaturas caracterizadas

agora por sua condição de objetos mentais do pensamento

divino, i. e., por sua completa indiferença tanto para com o

ser como o não-ser. Posteriormente, Guilherme de Ockham iria

ainda mais longe, ao pretender para Deus uma transcendência

tão absoluta que O situava mais além de qualquer exigência

racional e O definia como pura onipotência infinita, para

além de toda razão e toda natureza, consolidando desse modo a

fratura escotista entre Deus e o binômio razão/natureza, que

abriria estruturalmente o campo inteiro da filosofia moderna.

Com efeito, o pensamento moderno se ergue sobre o pressuposto

ockhamista, segundo o qual nada há de impossível para a

182

Page 183: Tese para IFCS

vontade divina, situada para além de todo rasgo de

racionalidade e de toda sabedoria mundana. Isto porque, sendo

a vontade divina absolutamente livre, não há nada na ordem

atual da criação que possa indicar de um modo ou outro a

essência de seu Criador. Ao contrário, a ordem criada, isto

é, a ordem da natureza racional, não é mais que uma ordem

qualquer entre as infinitas ordens possíveis, nem têm nada em

comum com a essência divina do que pudera ter qualquer outra,

imaginável ou não por nós. Por isso, se no presente mundo o

homem foi criado à imagem de Deus, não será na razão humana

onde se pode achar o fundamento dessa semelhança, mas sim no

mais recôndito da alma interior, ali onde habita a vontade

livre do homem, tão livre como a vontade divina frente a

qualquer constrição racional que pudesse empanar ou limitar

sua opção fundamental entre o bem e o mal, entre a aceitação

e a renúncia a Deus. O ato da vontade humana pelo qual

escolhe salvar-se ou condenar-se - o mais transcendente,

portanto, na vida do homem -, se exerce, pois, à margem de

qualquer instância racional ou natural, e já não tem lugar no

processo comum do diálogo entre os homens (Igreja), mas sim

183

Page 184: Tese para IFCS

no isolamento interior da privacidade de cada um

(consciência). Em outros termos, esta escolha não pode

encontrar apoio na razão, pois Deus é inacessível para a

racionalidade, e só poderá de agora em diante ser questão de

fé, onde a fé – como a graça – já não implicará um reforço

salvífico da natureza criada, mas sim a abdicação expressa

por parte do homem de sua própria razão e de sua essência

humana. Deste modo, tanto Duns Scot como, sobretudo,

Guilherme de Ockham, instauram uma concepção de um Deus

infinitamente transcendente que se situa radicalmente para

além de um mundo criado, com o qual deixa de ter qualquer

coisa em comum, abrindo assim um abismo insalvável entre

ambos, como se fossem conjuntos infinitamente disjuntos.

Impossível, por tanto, qualquer conhecimento racional desse

Deus infinitamente não racional por parte da razão humana. O

único laço entre o mundo e Deus se encontra – fora da

natureza e da razão – na recôndita consciência espiritual do

ser humano, sob a forma de uma vontade absolutamente não

constrangível por qualquer valor racional em seu ato de

aceitação ou renúncia à salvação ofertada, e que se denomina

184

Page 185: Tese para IFCS

fé. A relação do homem com Deus, daí em diante, deverá se

desenvolver nesse âmbito irracional – e, logo, privado –,

enquanto a razão comum humana deverá renunciar a todo intento

de aproximação da essência ou do desígnio divinos e aplicar-

se a seu objeto imediato, isto é, o mundo criado que se acha

frente a si e que carece de toda relação com seu Criador.

A teologia da onipotência divina implica, como parece

evidente, uma revisão drástica dos pressupostos filosóficos

precedentes, ou seja, da metafísica do real de caráter

aristotélico, que se baseava, como vimos, na continuidade do

binômio razão/natureza (no caso de Aristóteles), ou do

trinômio razão/natureza/Deus (no caso de Tomás de Aquino). A

partir de Ockham, Deus, o ser realíssimo, deixa de fazer

parte desse trinômio e escapa por inteiro do binômio

restante, cujo estatuto ontológico se reduz, então, ao de

mero caso fático entre uma infinitude de mundos possíveis, e

cuja realidade se vê condenada à precariedade irremissível de

não ter outro fundamento para sua existência que não a pura

arbitrariedade divina, a qual escolheu criá-lo sem motivos

evidentes que O impeçam de criar outros quaisquer dentre os

185

Page 186: Tese para IFCS

infinitamente imagináveis. Assim, ao postular um Deus que é

pura onipotência para além da razão e do mundo, o maximamente

real passa a ser a soberana potência divina, superior a toda

razão e a toda criação. Em outras palavras, se Deus é o

maximamente real será porque Sua vontade contém em si toda a

realidade possível. Deste modo, a hipótese ockhamista, enquanto

implica em identificar a onipotência divina com a realidade

de Deus, acaba por identificar o maximamente real com o

maximamente possível. Dito em outros termos, a mencionada

hipótese leva a identificar o real com o possível por via da

absorção do primeiro pelo segundo, e a esvaziar de sentido a

noção de realidade em beneficio da noção de possibilidade, de

tal modo que esta última se faz co-extensível à de ser. A

existência fica, então relegada à condição ou estatuto de um

mero caso fático, isto é, a não ser mais que uma determinação

acidental do ser, quem, por sua parte, se identifica pura e

simplesmente com o ser-possível e se caracteriza por possuir

uma realidade puramente hipotética. E, assim como no caso

grego o ser teria que se dizer de muitas maneiras, para

contemplar seus diferentes modos de exercício, assim também,

186

Page 187: Tese para IFCS

no regime definido pela redução teológica do real ao possível

só será concebível um único e exclusivo modo de ser, aquele

que emana da possibilidade, quer dizer, aquele cuja realidade

está já contida de antemão em sua possibilidade. No caso

grego nos achamos, portanto, frente à lógica da analogia:

diversos modos de ser, linguagem essencialmente polissêmica,

sempre inexata, em certo sentido submetida e também superior

ao princípio de não-contradição.

Na hipótese teológica da vontade onipotente, ao

contrário, frente à lógica da univocidade: um único modo de

ser, linguagem exata e precisa, drasticamente submetida ao

princípio de não-contradição. A univocidade lógica se

converte, deste modo, no reverso da onipotência absoluta de

Deus e expressa a natureza hipotética de todo ser, enquanto

seu principio constitutivo, o de não-contradição, alcança,

coerentemente, o estatuto de paradigma de toda verdade

possível.

A identificação do ser de Deus com seu poder

absoluto conduz, então, à identificação da realidade com a

possibilidade no seio de uma racionalidade unívoca. Daí que

187

Page 188: Tese para IFCS

aquela “ciência primeira”, que se ocuparia do ser enquanto

ser, aquela ciência, de estatuto epistemológico tão

contestado, da que dizíamos que não pode estar no mesmo nível

que as demais, mas sim que deve induzir seus conteúdos a

partir das outras ciências, tenha de adotar necessariamente a

forma – se pretende corresponder ao panorama doutrinal

inaugurado e presidido pela hipótese da onipotência absoluta

de Deus – de uma metafísica do possível, que é (ou contém)

também uma teologia, mas sem a referência dogmática a um

credo religioso qualquer, o que a torna possível em um outro

sentido, agora epistemológico, aquele adotado modernamente

pelas ciências: essa possibilidade mostra-se atualmente uma

verdadeira necessidade, pela urgência que temos em

estabelecer bases para um entendimento mútuo entre os

humanos, assentado numa compreensão que seja aceitável como

são os resultados científicos, a respeito de nosso

significado cósmico.

Pelo exposto se pode compreender porque Guilherme de

Ockham é considerado um dos introdutores do que em sua época

já se chamava via moderna, que conduz o pensamento filosófico

188

Page 189: Tese para IFCS

para além da Escolástica medieval, diretamente na ambiência

moderna. Dele vamos retomar aqui a noção de unidade do saber,

o que propomos que se denomine "perspectiva integradora",

sendo aquela que vem predominando em epistemologia, à medida

que se vai superando os últimos resquícios metafísicos e

teológicos. Tais resquícios se fariam presentes na

perspectiva que é própria das ciências modernas em seus

primórdios, quando davam margem a que se difundisse, de

maneira triunfalista, a crença na definitividade dos

conhecimentos por meio dela obtidos, por baseados na

observação de regularidades na ocorrência de fatos que

permitiam elaborar leis gerais explicativas. Isso por que

tais fatos eram recortados, do conjunto da realidade, de

maneira a permitir um tratamento analítico, que os tornava

objetos reduzidos à sua localização espaço-temporal, de

acordo com o procedimento preconizado exemplarmente por

Descartes. A derrocada do resultado principal da aplicação

deste modelo epistemológico, a física mecanicista (copérnico-

kepler-galileico-) newtoniana, com a emergência da física

quântica e relativista foi, sem dúvida, um marco. A partir

189

Page 190: Tese para IFCS

daí as ciências voltam a ter história, a ser um conhecimento

em evolução, melhorando à medida em que se abre para aprender

com os erros, ao invés de, precipitadamente, inferir leis

definitivas de padrões observados em escala limitada. Por

outro lado, pode-se perfeitamente supor que os avanços no

conhecimento da matéria viva, chamaram a atenção para uma

descontinuidade nos níveis de explicação, apontando um limite

para a capacidade de previsão, tomando como referência a

uniformidade de fenômenos observados no âmbito físico e

químico, tal como se fossem partes de um grande mecanismo.

É assim que Versalius, o pai da anatomia, na obra

"Fábrica do Corpo Humano" (De humani corporis fabrica), obra

publicada no mesmo ano daquela, literalmente, revolucionária,

de Copérnico, a saber, 1542, irá - em sentido, de certa

forma, oposto a este, que deslocou o homem e sua habitação do

centro do universo -, postular uma distinção radical do ser

humano em relação a outros seres vivos e à ordem cósmica, tal

como preconizava a medicina, desde Hipócrates e Galeno, donde

a necessidade de se praticar o estudo da anatomia assim como

nos humanos ela se apresenta, ao invés de tentar compreendê-

190

Page 191: Tese para IFCS

la por analogia com outros seres, nos quais se praticava a

dissecação. Em seguida, com Harvey, a anatomia se torna

"animata", ou seja, fisiologia (ou anátomo-fisiologia), sendo

o próximo passo importante, em termos epistemológicos, aquele

que foi dado por aqueles estudiosos, mais recentes, que

passaram a enfatizar a importância do estudo das patologias,

isto é, dos estados disfuncionais, para entender o

funcionamento e as funções normais dos organismos. Dentre

esses, vale destacar, com o autor de “O Normal e o

Patológico”, Georges Canguilhem, os estudos sobre a diabete,

para entender o funcionamento das glândulas supra-renais.

Com o desenvolvimento da fisiologia, impulsionado pelo

conhecimento das patologias, algo literalmente vital para

nós, como é a saúde, passa a ser tratado de maneira anti-

metafísica, não-ontológica, pois agora a doença não é um ser

(mal) que invade o doente, mas um estado alterado em relação

ao normal, que é uma das possibilidades contidas nesse estado

normal, quando ocorre algum desgaste ou ineficiência em seu

funcionamento - a rigor, não chegaria nem a ser, em sentido

literal, um estado anormal, no sentido de "anômalo", o estado

191

Page 192: Tese para IFCS

patológico, pois esse estado também segue um "nomos", uma

norma, só que diversa daquela que rege o estado dito

"normal", ou são, sendo mesmo por esse motivo que se

investiga a anomalia, buscando enquadrá-la em regras

explicativas, a um só tempo, da anormalidade e da

normalidade. De todo modo, ao contrário do que ocorre com a

matéria inanimada, há uma oscilação constante na matéria

viva, entre estados de excesso, carência e equilíbrio, ainda

que instável, sendo daí que se extrai a noção de patologia,

de disfunção, por considerarmos, nós os que vivemos e somos

conscientes disso, ao estudarmos-nos, ser funcional o que nos

mantém vivos e sem sofrimento, não havendo estados

patológicos da matéria inanimada, pelo simples fato de que

ela não pode, como nós, morrer.

Só assumindo uma perspectiva externa - e aí fazendo

retornar, sub-repticiamente, à postura metafísica e

teológica, com o seu ponto de vista do absoluto - é que se

pode afirmar a continuidade entre os estados físicos,

químicos, físico-químicos, e aqueles biológicos ou, mesmo,

bioquímicos, moleculares. Dessa perspectiva, a diferença

192

Page 193: Tese para IFCS

entre a saúde e a doença, e mesmo entre a vida e morte, é

meramente quantitativa, sendo em todos os casos estados da

matéria de que se trata, com maior ou menor complexidade,

abordando sua organização. Esta é uma perspectiva inorgânica

e mecanicista da vida. Pode-se, entretanto, adotar uma

concepção inversa, vitalista, não só do que é vivo como do

próprio universo, ou seja, concebê-lo da perspectiva da vida

que nele se formou e que, em certo momento, gera a

consciência, graças a uma certa maneira de operar um tipo de

células, aquelas nervosas, que nos permitem uma forma de

acoplamento com o meio circundante extremamente favorável à

nossa manutenção nele.

Nesta última perspectiva, há sentido no universo e esse

sentido é a vida, não havendo sentido na vida para além de si

mesma – pelo menos, para os seres vivos. A filosofia, então,

pode ser posta a serviço da vida, nesse ser vivo que somos

nós, conscientes do fim da vida, o que pode nos tornar a vida

sem sentido, cabendo à filosofia velar pela continuidade da

vida nesse ser que a altera e questiona, altera-se

questionando-a, tendo desenvolvido um conhecimento tal e uma

193

Page 194: Tese para IFCS

organização social de tamanha complexidade e poderio que pode

destruí-lo, rápida ou lentamente. E na base desse

conhecimento está uma epistemologia, havendo ainda uma base

biológica, vitalista, para a epistemologia, pois ela, como

todo conhecimento, é uma função vital dos seres humanos.

Para investigar as bases biológicas do conhecimento,

segundo o neurofisiólogo mineiro Nelson Vaz,174 na esteira de

Gregory Bateson, Francisco Varela, Humberto Maturana e

outros, precisa-se incrementar o estudo de uma dimensão

intermediária entre a fisiologia e a filogênese. No caso da

primeira, se tem um estudo em nível celular e molecular, numa

escala temporal extremamente rápida, variando de

milisegundos, na transmissão neuronal a alguns poucos dias,

na cicatrização, passando por algumas horas, na digestão. Já

os fenômenos da filogênese são medidos em milhões ou centenas

de milhões de anos, como a "explosão" de vida do Período

Cambriano, em que surgiram nossos antepassados mais remotos,

metazoários, ou as extinções em massa de seres vivos, entre

os Períodos Permiano e Triássico. Entre esse dois extremos,174 Cf. "Autopoiese: a criação do que vive", in: Um novo paradigma em ciênciashumanas, físicas e biológicas, CÉLIO GARCIA [org.], Belo Horizonte, 1987.

194

Page 195: Tese para IFCS

muito lentos e muito rápidos, encontra-se o nível que agora

precisaria ser melhor explorado, e que é o nosso nível ou

escala mais próxima, aquela da chamada ontogênese, em que se

tem os fenômenos com duração de semanas, meses e anos, a

começar pela constituição do zigoto, passando pelo

desenvolvimento embrionário com sua organogênese, até a

reprodução, envelhecimento e morte. E o interessante é que o

avanço científico em biologia, especialmente em genética,

vem demonstrando que seres vivos aparentemente tão distantes,

como os mamíferos e os insetos, compartilham muitos

mecanismos morfogênicos na formação do embrião, valendo-se,

muitas vezes, de células muito similares, sem falar na

similitude genética entre seres tão diversos como seres

humanos e ratos: se antes nos espantávamos e maravilhávamos

com a aparente diversidade da vida, hoje é a sua uniformidade

em um nível mais profundo o que nos intriga. E assim, somos

levados novamente à disposição que motivou os primeiros

filósofos, bem como impulsionados a pensar sobre o que já se

encontra desde a origem escondido no interior do código

genético, e se revela em toda sua diversidade no contato com

195

Page 196: Tese para IFCS

o exterior, alterando-o e alterando-se, continuamente,

enquanto puder.

Há, então, necessidade de que se pratique de forma tão

intensa quanto possível a interdisciplinaridade, o que exige,

então, que tenhamos um paradigma unificador, uma perspectiva

integradora em epistemologia, capaz de articular explicações

de natureza sociológica, econômica, jurídica, biológica,

filosófica e, até, teológica. Um paradigma com essa

característica “uni-totalizante” (Ein- und Allheit, para empregar

expressão que remonta a Schelling, filósofo idealista alemão

do séc. XIX) é o que se vem desenvolvendo por aqueles, como

Edgar Morin, na esteira de Ilya Prigogine, que defendem a

superação do tradicional paradigma simplificador das ciências

clássicas, modernas, em favor de um paradigma da complexidade,

em que se inserem “ciências transclássicas”, pós-modernas,

como são a cibernética e a teoria de sistemas. Tratam-se de teorias

holísticas, de aplicação generalizada no âmbito de ciências

formais e empíricas, tanto naturais como sociais, e que toma

como distinção fundamental não mais aquela entre sujeito-do-

conhecimento-como-observador-objetivo e objeto-do-

196

Page 197: Tese para IFCS

conhecimento-observado-independentemente, mas sim outras,

como aquela entre “sistema” e seu “meio ambiente”, para

explicar tudo a partir dessa distinção, entre o que pertence

a determinado sistema e o que está fora, no ambiente

circundante, embora circule dentro do sistema – que não é

fechado “para” e sim “com” o ambiente.

A teoria social sistêmica, tal como desenvolvida,

principalmente, por Luhmann, assume, portanto, os seguintes

pressupostos: (1º) substitui a contraposição entre sujeito e

objeto, enquanto princípio heurístico fundamental, pela

“diferenciação sistêmica”, no mundo (Welt), entre o que é

“sistema” e seu meio ambiente (Umwelt). Com isso, não apenas

oferece uma abordagem “desubstancializada”, pois o sistema

não é um hypoukeimenon, como foram as coisas (rei) na

Antigüidade e o sujeito na modernidade, mas também (2º)

“desumanizada”, não-antropocêntrica, já que os seres humanos,

enquanto sistemas biológicos, dotados de uma consciência, não

fazem parte dos sistemas sociais integrantes do sistema

global que é a sociedade, e sim, do seu meio ambiente – e o

“antropocentrismo”, a visão que fundamenta um apartamento dos

197

Page 198: Tese para IFCS

seres humanos de seu ambiente natural, justificando a

oposição a ele, conhecendo-o para nele intervir e a ele se

impor, pode ser considerado um dos motivos centrais de uma

crise que é “epistemo-ecológica”, a qual tanto e cada vez

mais nos ameaça, como sabe qualquer um minimamente informado,

hoje em dia.

Trata-se de uma teoria holística, de aplicação

generalizada no âmbito de ciências formais e empíricas, tanto

naturais como sociais, e que toma como distinção fundamental,

justamente, aquela entre “sistema” e seu “meio-ambiente”,

para explicar tudo a partir dessa distinção, entre o que

pertence a determinado sistema e o que está fora, no ambiente

circundante, como elemento de outros sistemas - ou não.

A teoria em apreço pretende se desenvolver a partir de

um conceito de sociedade que não é nem “humanista” nem

“regionalista”, adotando assim uma posição que, de partida,

evita dois dos maiores – se não forem mesmo os dois maiores –

pressupostos incitadores da crise “epistemo-ecológica” antes

referida. Isso significa que para a teoria ora em apreço a

sociedade não é formada pelo conjunto de seus integrantes, os

198

Page 199: Tese para IFCS

seres humanos, assim como não há para ela uma sociedade

delimitada por critérios geo-políticos - a “sociedade

brasileira”, “latino-americana”, “européia” etc. Sociedade

para a teoria de sistemas luhmanniana é a “sociedade mundial”

(Weltgesellschaft), que se forma modernamente. O que a compõe não

são os seres humanos que a ela pertencem, mas sim a

comunicação entre eles, que nela circula de várias formas,

nos diversos subsistemas funcionais (direito, economia,

política, ética, mídia, religião, arte. ciência, educação

etc.).

A diferenciação sistêmica entre "sistema" e "meio

ambiente", então, é o artifício básico empregado pela teoria

para se desenvolver em simetria com aquilo que estuda, como

seu “equivalente funcional”. Essa diferenciação é dita

sistêmica por ser trazida "para dentro" do próprio sistema,

de modo que o sistema total, a sociedade, aparece como meio

ambiente dos próprios sistemas parciais, que dele (e entre

si) se diferenciam por reunirem certos elementos, ligados por

relações, nas operações do sistema, formando uma unidade.

199

Page 200: Tese para IFCS

Uma "unidade", além de diferenciada no sistema do meio

ambiente, também pode aparecer como meio ambiente para outras

unidades, permitindo, assim, que por ela se aplique,

recorrentemente, um número mais ou menos grande de vezes, a

diferença sistema/meio ambiente, sem com isso perder sua

organização. A "organização" é o que qualifica um sistema como

complexo ou como uma simples unidade, com características

próprias, decorrentes das relações entre seus elementos, mas

que não são características desses elementos. A unidade de

elementos de um sistema é mantida enquanto se mantém sua

organização, o que não significa que não variem os elementos

componentes do sistema e as relações entre eles. Essas

mudanças, porém, se dão na estrutura do sistema, que é formada

por elementos componentes do sistema relacionados entre si.

Os elementos da estrutura podem sempre ser outros; o sistema

se mantém enquanto permanecer invariante a sua organização,

com uma complexidade compatível com aquela do meio

circundante e demais sistemas ali existentes. Note-se que

para a organização o que importa é o tipo peculiar de

relação, circular e recorrente, entre os elementos, enquanto

200

Page 201: Tese para IFCS

para a estrutura o que conta é que há elementos em interação,

ação e reação mútua, elementos esses que podem ser fornecidos

pelo meio ambiente ao sistema, sem que por isso a ele não se

possa atribuir o atendimento de duas condições gerais, para

que se tenha "sistemas autopoiéticos", como Luhmann propõe

que se considere os sistemas sociais: a autonomia e a clausura

do sistema.

Sistema autopoiético é aquele dotado de organização

autopoiética, onde há a (re)produção dos elementos de que se

compõe o sistema e que geram sua organização, pela relação

reiterativa, circular ("recursiva") entre eles. Esse sistema

é autônomo porque o que nele se passa não é determinado por

nenhum componente do ambiente mas sim por sua própria

organização, formada por seus elementos. Essa autonomia do

sistema tem por condição sua clausura, quer dizer, a

circunstância de o sistema ser "fechado", do ponto de vista

de sua organização, não havendo "entradas" (inputs) e "saídas"

(outputs) para o ambiente, pois os elementos interagem no e

através dele - não se trata, portanto, de uma “autarquia” do

201

Page 202: Tese para IFCS

sistema, pois ele depende dos elementos fornecidos pelo

ambiente.175

Só a comunicação autoproduz-se, donde se qualificar como

autopoiéticos os sistemas de comunicação da sociedade. O

sentido da comunicação varia de acordo com o sistema no qual

ela está sendo veiculada e as pessoas são meios (media)

dessas comunicações, assim como computadores, faxes,

telefones, etc. Esses componentes , contudo, não pertencem

aos sistemas sociais e, sim ao seu meio ambiente. Os seres

humanos, enquanto seres biológicos, são sistemas biológicos

autopoiéticos e enquanto seres pensantes, são também sistemas

psíquicos autopoiéticos. Sem a consciência decorrente do

aparato psíquico, é claro, não haveria comunicação e logo

também não haveria sistemas sociais. Sem a rede neuronal não

haveriam pensamentos. O que não há é uma relação causal entre

imagens e pensamentos como os que temos, enquanto seres

humanos, como demonstra o fato de que os demais seres

portadores de redes neuronais não dispõem de uma elaboração

175 Cf. WILLIS SANTIAGO GUERRA FILHO, Autopoiese do direito na sociedade pós-moderna: introdução a uma teoria social sistêmica, Porto Alegre: Livraria doAdvogado,1997, p. 69 e seg., p. 82 e seg.

202

Page 203: Tese para IFCS

simbólica como nós. É a linguagem, então a primeira condição

para que se dê o acoplamento (estrutural) entre sistemas

auto(conscientes) e sistemas sociais (autopoiéticos) de

comunicação.176 Os sistemas sociais, como todo sistema, se

mantém sem dissipar-se no meio-ambiente em que existem

enquanto se mantém sua estrutura e enquanto for apto para

diferenciar-se nesse meio ambiente, com o qual “faz

fronteira”. Sistemas psíquicos (biológicos) e sistemas de

comunicação (sociais), por mais que estejam cognitivamente

abertos para o meio ambiente, para dele se diferenciarem ,

fecham-se em um operar, o que significa reagir ao (e no)

ambiente por auto-referência, sem contato direto com ele.

A estrutura dos sistemas sociais fica no seu centro,

sendo nele onde se determina o tipo de comunicação produzida

pelo sistema. Em volta do centro, protegendo-o, tem-se a

chamada periferia do sistema, através do qual ela entra em

contato com o meio ambiente e demais sistemas ali existentes.

Desde as fronteiras de um dado sistema até o seu centro, - em

uma periferia, portanto, forma-se o que Munch denominou “zona

176 Cf. LUHMANN, Die Gesellschaft der Gesellschaft, vol. II, Frankfurt amMain: Suhrkamp, 1997, p. 101.

203

Page 204: Tese para IFCS

de interpenetração”,177 onde os sistemas, nos termos de

Luhmann, “irritam-se” em decorrência de seu “acoplamento

estrutural” com outros sistemas.178

Esse acoplamento necessita ser viabilizado por certos

meios (media). O meio principal de acoplamento entre o

sistema do direito e o sistema da política, por exemplo,

segundo Luhmann são as constituições.179 Para entendermos isso

é necessário ter em mente que o judiciário é a organização

que ocupa o centro do sistema jurídico, pois é quem determina

em última instância o que é e o que não é direito. Da mesma

forma os demais poderes do Estado, legislativo e executivo,

ocupam o centro do sistema político, mas assim como o

judiciário, têm na constituição as pautas mais importantes de

balizamento da ação de seus componentes.

Considerando as características da fronteira dos

sistemas, referidas por M. Bunge,180 tem-se que (1º)

177 Cf. “The Dynamics of Societal Communication”, in: The Dynamics of SocialSystems, P. COLOMY (ed.), London: Sage, 1992, p. 65.178 Cf. LUHMANN, Soziale Systeme. Grundriß einer allgemeinen Theorie, 3a. ed.,Frankfurt am Main: Suhrkamp, 1987, p. 291 e seg.179 "Verfassung als evolutionäre Errungenschaft", in: RechtshistorischesJournal, n. 9, Frankfurt am Main, 1990, p. 204 e segs.180 "System Boundary", in: International Journal of General Systems, n.20, London, 1990, p. 219.

204

Page 205: Tese para IFCS

periférico em um sistema é o que ocorre em suas fronteiras;

(2º) uma função específica das fronteiras dos sistemas é

proceder trocas entre o sistema e o meio; (3º) na fronteira

encontramos os elementos do sistema que estão diretamente

acoplados com componentes do meio-ambiente. Isso nos levou a

concluir que uma Corte Constitucional, por exemplo, situar-

se-ia na fronteira entre os sistemas jurídicos e políticos,

sendo um dos componentes mais importantes no acoplamento

estrutural dos dois sistemas. Com isso, tem-se de admitir que

as Cortes Constitucionais, se estão na fronteira do sistema

jurídico, tendo saído de seu centro, migrou para lá, não

sendo mais, propriamente, parte integrante do judiciário, em

um sistema jurídico autopoiético, onde este ocupa o seu

centro, ao dispor, em última instância (no caso,

literalmente), sobre o código característico (e

caracterizador) do sistema jurídico, pelo qual se define como

jurídica ou não as comunicações.181 Uma conseqüência das mais

relevantes dessa “migração”das cortes constitucionais é que

181 Cf. LUHMANN, "Die Stellung der Gerichte im Rechtssystem", in:RECHTSTHEORIE, n. 21, Berlin, 1990; W. S. GUERRA FILHO, ob. ult.cit., p. 75 e segs.

205

Page 206: Tese para IFCS

elas, quando passam a integrar o sistema político, devem se

submeter aos mesmos critérios de legitimação que os demais

componentes desse sistema, onde a comunicação se qualifica

pelo código do poder. Aliás, a doutrina é unânime em

reconhecer, na esteira de Kelsen, que tais cortes exercem um

poder de legislação negativa, e também – agora já indo além

da formulação tradicional do positivismo - que podem apreciar

o mérito de decisões administrativas, quando as mesmas

apresentam defeitos do ponto de vista da manutenção da

integridade dos princípios constitucionais e direitos

fundamentais. Ao mesmo tempo, ao pronunciarem a última

palavra sobre o que é e o que não é direito, situam-se no

“centro do centro” do sistema jurídico. Este “centro do

centro”, então, é onde se daria o acoplamento estrutural do

sistema jurídico com outros, e não só com o sistema político.

Também a educação, a ciência, a arte, a religião, a economia,

a mídia e todos os demais sistemas sociais penetram no

direito e são por ele penetrados (ou “irritados”),

principalmente, por via de interpretações a partir do que se

acha disposto na constituição, interpretações essas que são

206

Page 207: Tese para IFCS

feitas por juristas, juizes e demais operadores jurídicos e,

mesmo, por jornalista, padres, cientistas, enfim, todos os

cidadãos, e essas interpretações todas influenciam

(“irritam”) os membros das Cortes Constitucionais, mas a

interpretação que prevalece, em um sistema jurídico

autopoiético - e, logo, autônomo - é desses últimos. Tais

interpretações, no entanto, são construções

(auto)po(i)éticas,182 pois o direito desenvolve-se reagindo

apenas aos seus próprios impulsos, estimulado por

"irritações", provindas do ambiente social. A propósito, vale

referir a seguinte passagem, da lavra de Gunther Teubner:

"Mesmo as mais poderosas pressões só serão levadas em conta e

elaboradas juridicamente a partir da forma como aparecem nas

'telas' internas, onde se projeta as construções jurídicas da

realidade (rechtlichen Wirklichkeitskonstruktionen). Nesse sentido, as

grandes evoluções sociais 'modulam' a evolução do Direito,

182 Nesse passo, vale recordar a já mencionada proposta de Freud, deque se substitui-se, em psicanálise, a interpretação pela(re)construção “arqueológica”. Cf. FREUD, Konstruktionen in der Analyse[1937], ob. loc. ult. cit.

207

Page 208: Tese para IFCS

que, não obstante, segue uma lógica própria de

desenvolvimento".183

Por ser o Judiciário a única unidade que opera apenas

com elementos do próprio sistema jurídico - o qual, ao prever

a proibição do non liquet, o força a sempre dar um

enquadramento jurídico a quaisquer fatos e comportamentos que

sejam levados perante ele -, postula-se que essa unidade

ocuparia o centro do sistema jurídico, ficando tudo o mais em

sua periferia, inclusive o Legislativo, em uma região

fronteiriça com o sistema político. Eis o "paradoxo da

transformação da coerção em liberdade", uma vez que o juiz se

acha vinculado às leis, mas não à legislação, que é sempre

objeto de sua interpretação, inclusive a norma que o vincula

à lei, levando em conta textos com autoridade superior como

aquele da Constituição. "Quem se vê coagido à decisão e,

adicionalmente, à fundamentação de decisões, deve reivindicar

para tal fim uma liberdade imprescindível para construção do

183 TEUBNER, "Reflexives Recht: Entwicklungsmodelle des Rechts in vergleichenderPerspektive", in: Archiv für Rechts- und Sozialphilosophie, n. 68,Stuttgart, 1982, p. 21. V. tb., Id. , "Substantive and reflexive elements inmodern Law", in: Law & Society Review, vol. 17, n. 2, Denver, 1983,p. 249.

208

Page 209: Tese para IFCS

Direito".184 É uma tal unidade que garante a autonomia do

sistema e a sua "auto-reprodutibilidade", para o que recebem

o apoio imprescindível de uma "unidade cognitiva", a chamada

"doutrina", que não apenas é responsável pela sofisticação da

hermenêutica jurídica, como fornece interpretações passíveis

de serem adotadas pelo Judiciário, e assim, introduzidas no

sistema jurídico normativo.185 Daí se poder falar, como

Foucault, em uma "unidade de discurso" entre as práticas

discursivas da academia e do Judiciário.186

Conclui-se, então, que a fronteira do sistema jurídico

e, por simetria, também dos demais sistemas sociais, não

passa apenas por sua periferia, mas também por seu centro. É

184 Cf. LUHMANN, "Die Stellung der Gerichte im Rechtssystem", cit., p.163.185 A doutrina ou dogmática jurídica, como sustenta LUHMANN emtrabalho já clássico, “Sistema Jurídico e Dogmática Jurídica”,caracteriza-se, igualmente, por constituir uma liberdade depensamento sob a aparência de vinculação a conceitos dogmatizados,inquestionáveis, mas que, na verdade, tanto podem oferecerrespostas como tornarem-se instrumento de questionamentos,enquanto formas cujo conteúdo e, logo, também o seu sentido podemsempre ser atualizados, para atender às exigências sociais desegurança ou, ao menos, da “insegurança suportável” de um problemapara o qual se pode oferecer uma solução, encerrando-o com umadecisão. Cf. LUHMANN, Sistema Juridico y Dogmatica Juridica, trad. IGNACIODE OTTO PRADO, Madrid: Centro de Estúdios Constitucionales, 1983,p. 29 e seg., 40 e 102.186 Cf. EDWARD L. RUBIN, "The practice and discourse of legal scholarship", in:Michigan Law Review, vol. 86, nº 6, Lincoln, 1988.

209

Page 210: Tese para IFCS

por isso que, com H. v. Foerster, podemos dizer, tal como H.

Willke,187 que o Estado de uma sociedade funcionalmente

policêntrica é formada por subsistemas sociais diferenciados

(interdependentes) que se estruturam não de forma

hierárquica, mas sim “heterárquica”, pois nenhum subsistema

goza, a priori, de primazia em relação aos demais - nem o

subsistema de economia, como é ainda hoje bastante divulgado

e como foi dito pelo próprio Luhmann, em uma versão mais

antiga de sua teoria.188 Na última versão dessa teoria não se

fala mais em primazia da função de nenhum subsistema, a não

ser em relação a si mesmo,189 já que “cada sistema funcional

só pode cumprir com a própria função”.190

Postular que a sociedade contemporânea, organizada em

escala mundial, “globalizada”, é o produto da diferenciação

funcional de diversos (sub)sistemas, como os da economia,

ética, direito, mídia, política, ciência, religião, arte,

ensino etc. - sistemas autopoiéticos, que operam com

187 Cf. Ironie des Staates, Frankfurt am Main: Suhrkamp, 1996, p. 65.188 LUHMANN, "Positivität des Rechts als Voraussetzung einer modernen Gesellschaft",in: Id., Ausdifferenzierung des Rechts: Beiträge zur Rechtssoziologie undRechtstheorie, Frankfurt a. M.: Suhrkamp,1981, p. 149.189 LUHMANN, Die Gesellschaft der Gesellschaft, cit., vol. II, p. 747 e seg.190 Id. ib., p. 762.

210

Page 211: Tese para IFCS

autonomia e fechados uns em relação aos outros, cada um com

sua própria “lógica” -, postular isso não implica negar que

haja influência (ou “perturbações”) desses sistemas uns nos

outros. Entre eles dá-se o que a teoria de sistemas

autopoiéticos denomina “acoplamento estrutural”.191 Assim, o

sistema da política acopla-se estruturalmente ao do direito

através das constituições dos Estados, enquanto o direito se

acopla à economia através dos contratos e títulos de

propriedade, e a economia, através do direito, com a

política, por meio dos impostos e tributos, e todos esses com

a ciência, através de publicações, diplomas e certificados,

cabendo a uma corte constitucional, em última instância,

deliberar sobre a “justeza” desses acoplamentos, em caso de

dúvidas ou contestações, que os ameace, ameaçando, assim, a

autopoiese do sistema global e, logo, sua permanência, sua

“vida”.

É de todo conveniente o emprego de novas categorias em

estudos que levam em conta a complexidade da realidade

estudada, considerando que a mesma não existe para nós

191 cf. LUHMANN, Die Gesellschaft der Gesellschaft, loc. ult. cit., p. 776ss.

211

Page 212: Tese para IFCS

independentemente de nossa observação dela. Só assim

poderemos, igualmente, enfrentar melhor as questões éticas e

jurídicas com que nos defrontamos em um mundo que a ciência

vem, ao mesmo tempo, revelando e tornando mais complexo. Um

aspecto, porém, que traz certo desconforto, quando propomos a

adoção de um paradigma novo, sistêmico, para melhor estudar o

mundo complexo em que nos encontramos, é a suspeita que esse

tipo de abordagem suscita, da perspectiva normativa de

teorias ditas “críticas”, como é (ou foi) aquela

habermasiana. Uma teoria sistêmica, efetivamente, não se

propõe a avaliar aquilo que estuda, mas fornecer, a partir de

suas observações - e observações não só do que se observa,

mas também dos observadores, que são

“observadores/concebedores” de “objetos/concebidos”, nos

termos expressivos empregados por Morin -,192 descrições mais

acuradas e explicações do mundo e das teorias que

construirmos para observá-lo/”construi-lo”, o que, afinal de

contas, deve anteceder o momento da crítica valorativa, para

192 Cf. Ciência com Consciência, 3a. ed., revista e modificada pelo A.,trad. MARIA D. ALEXANDRE e MARIA ALICE SAMPAIO DÓRIA, Rio deJaneiro: Bertrand Brasil, 1999, cap. 10, n. 8, p. 333.

212

Page 213: Tese para IFCS

propor alternativas à (re)construção do mundo pelo direito, a

ética, e também a economia, a política e, sobretudo, a

própria ciência. O que buscamos, então, é o que Husserl

denominava “princípio dos princípios”, uma idéia regulativa,

no sentido kantiano, a qual, como esclarece Manfredo Araújo

de Oliveira, com apoio no filósofo frankfurtiano K.-O. Apel,

“quer ser efetivada, o que significa dizer que para isso é

necessário que a razão ética entre em contato com outras

‘formas de racionalidade’. Numa palavra, a dimensão ética, na

medida em que se efetiva historicamente, tem que entrar em

combinação com a racionalidade sistêmico-funcional dos

sistemas sociais e das instituições e com a racionalidade

estratégica”.193

Entretanto, há um problema bastante grave que se pode

apontar, em concepções normativas da racionalidade, como é

aquela hoje tão difundida e apreciada, de Habermas, por mais

que endosse e pratique a recomendação que acabamos de

referir, sem que evite um certo maniqueísmo, quando distingue

uma “boa” e uma “má” razão - a comunicativa e a estratégica:

193 Ética e Economia, São Paulo: Ática, 1996, p. 33.

213

Page 214: Tese para IFCS

é que elas são formuladas de uma perspectiva transcendental,

ainda que se diga pragmática, de “fora da realidade”, donde

terminarem resvalando numa postura irracional, pois não são

capazes de perceberem a unidade subjacente às diversas formas

de pensar e agir racionalmente. É por isso que,

filosoficamente, a postura dialética do “idealismo objetivo”

(Dilthey), tal como foi adotada na modernidade por Hegel - e,

contemporaneamente, por Vittorio Hösle, Carlos V. Cirne Lima,

Manfredo A. de Oliveira, dentre outros -, apresenta-se como

mais frutífera e conseqüente, apesar de sua “fé”, que não se

assume como tal, na possibilidade de uma fundamentação última

de nosso conhecimento da realidade – e, logo, na

possibilidade de conhecermos verdadeira e definitivamente o

que as coisas são, seu ser, sem garantia de que este seja o

ser, pura e simplesmente.

Habermas adota uma postura que denomina “pós-

metafísica”, de acordo com a qual só as ciências estão aptas

a elaborar assertivas com valor heurístico sobre os diversos

objetos de conhecimento, ficando a filosofia restrita ao

estudo de segunda mão, que tem as ciências - ou, mais

214

Page 215: Tese para IFCS

precisamente, o seu procedimento cognitivo - como sentido e

objeto. Com tal postura, Habermas não escapa da metafísica,

pois termina ficando preso ao que Heidegger denominou

“metafísica da subjetividade”, a qual dá sustentação ao

projeto de domínio técnico-científico da realidade,

responsável maior pelos problemas éticos, jurídicos,

políticos, sociais, econômicos e ecológicos - em sentido

amplo, para envolver o que Edgar Morin denomina “ecologia da

ação”,194 a qual já se coloca no plano da sociedade, em que

não podemos prever as conseqüências de nossas próprias ações

- com que nos deparamos atualmente.

É preciso, então, para abordar corretamente a

problemática aqui delineada, que se supere tal postura,

tipicamente moderna - e, portanto, ultrapassada -, o que, em

termos epistemológicos, requer a substituição do paradigma

formalista, baseado na distinção entre sujeito e objeto(s) do

conhecimento, e, em termos filosoficamente mais gerais, a

ultrapassagem do humanismo, tal como indicado por Heidegger

em sua célebre carta a Jean Beaufret a esse respeito, a

194 Cf. ob. cit., cap. 6, p. 128 ss.

215

Page 216: Tese para IFCS

“Carta sobre o Humanismo”. Que as indicações aqui fornecidas

possam servir para a elaboração desse caminho para o

pensamento, tão dificultoso quanto urgente.

Com isso, pretendemos minorar os efeitos

desastrosos do esquecimento metafísico do ser que somos na

operação meramente técnica de uma engrenagem em que somos as

peças, pensando sermos meros operadores, no que se mostra de

fundamental importância a crítica que a perspectiva

fenomenológica de Husserl e também aquela de seu genial

discípulo Martin Heidegger permite que se empreenda ao

formalismo instalado no pensamento moderno, pelo

exarcebamento do modo conceitualista e objetificante de lidar

com o conhecimento, em geral, sendo de se apontar o exemplo

bem característico do que se dá no campo do Direito.195 Fica,

assim, estabelecido o desafio, a ser enfrentado aqui de

maneira decidida, de saber em que medida algo como um retorno

à situação concreta, fática, proposta por Heidegger - no que

195 Neste sentido, v. AQUILES CÔRTES GUIMARÃES, Fenomenologia e Direito,Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2005, bem como nosso verbete“Fenomenologia Jurídica”, in: Dicionário de Filosofia do Direito, VICENTE DEPAULO BARRETTO (coord.), Rio de Janeiro/São Leopoldo (RS):Renovar/UNISINOS, 2006, pp. 316/322.

216

Page 217: Tese para IFCS

se pode denominar, antes que uma “fenomenologia da liberdade”

(Günter Figal), com mais precisão, uma “fenomenologia da(s)

possibilidade(s existenciais)” -, pode dar ensejo a uma

recuperação de um saber apto a fornecer uma orientação, ou

re-orientação, na busca de sentido para as ações humanas a

serem, então, devidamente reguladas pelo Direito, com uma

pretensão justificada de obediência generalizada, nas

condições adversas da atualidade. Cabe a todos os que nos

preocupamos com o que pode resulta da quadra histórica de

crise que estamos vivendo, já há bastante tempo – sabe-se lá

por quanto tempo ainda -, assumir uma parte de tal tarefa, de

proporções gigantesca, percebendo o quanto é urgente e

necessária e, se é assim, há de ser também possível dela nos

desincumbirmos.

Trata-se, portanto, de questionar a concepção clássica,

típica da metafísica do real, de que o conhecimento é uma

cópia da realidade e será verdadeiro na medida em seja uma

representação fiel dela - a crítica dessa metafísica é feita

por autores do lado de cá e de lá o Oceano Atlântico, como se

pode exemplificar, no primeiro caso, com Richard Rorty, e no

217

Page 218: Tese para IFCS

segundo caso, com os chamados “filósofos da diferença”, a

começar por Heidegger, e seguindo-se com Deleuze, Derrida

etc.196 É uma tal concepção de metafísica, enquanto metafísica

do real, com sua ontologia substancialista, que vem rejeitada

em posições epistemológicas positivistas e outras, como as

materialistas e fenomenológicas, assim como permanece aceita

naquela outra importante tradição filosófica, mais antiga que

estas outras, mas que ainda hoje tem seus representantes, a

saber, aquela oriunda do tomismo, embora as demais posições

filosóficas, inevitavelmente, tenham de dar alguma respostas

às incontornáveis questões metafísicas, tal como aqui se as

concebe, considerando que evitá-las, adotando uma forma de

suspensão do juízo ceticista, é também uma das respostas

possíveis. E. J. Lowe diz-nos que,197 ao contrário das

ciências, que se ocupam de estabelecer o que é, não o que tem

de ser ou o que pode ser (mas não é), a metafísica lida com

possibilidades. Daí que, é preciso, de alguma maneira, delimitar

196 Cf., no âmbito da teoria do direito, por exemplo, o trabalho doholandês BERT VAN ROERMUND, Derecho, Relato y Realidad, trad. HANSLINDAHL, Madrid: Tecnos, 1997.197 Em The Possibility of Metaphysics, Oxford: Oxford University Press, 2001,logo na introdução.

218

Page 219: Tese para IFCS

o escopo do possível, para podemos, ao menos, esperar que

consigamos determinar empiricamente o que é efetivamente real,

da maneira tentativa e aproximada que é própria da ciência,

tal como entendida contemporaneamente. A tese do autor apenas

referido é a de que a metafísica será possível na medida em

que se atenha a lidar com possibilidades – seja, portanto,

possibilista, tal como aqui preconizado. Um apanhado didático

dos desenvolvimentos recentes em metafísica encontra-se em

Cynthia Macdonald.198 Sua abordagem se situa no âmbito da

recuperação da metafísica em uma chave analítica, na qual é

bastante representativa a contribuição do oxfordiano

contemporâneo Peter Strawson.199 Já um representante

proeminente da vertente materialista contemporânea é Alain

Badiou.200 Por fim, na perspectiva neotomista, podemos referir

o pensamento do brasileiro Henrique Cláudio de Lima Vaz, o

(justamente) festejado (e pranteado) Pe. Vaz, que deu ensejo198 Varieties of Things, Oxford: Blackwell, 2005.199 Cf. Análise e Metafísica, trad. ARMANDO MORA DE OLIVEIRA, São Paulo:Discurso, 2002.200 Cf., v.g., O Ser e o Evento, trad.: MARIA LUÍZA X. DE A. BORGES, Riode Janeiro, Zahar/UFRJ, 1996. Para um desenvolvimento ulterior daconcepção de Badiou, cf., do próprio A., Lógicas de los mundos, trad.MARÍA DEL CARMEN RODRIGUEZ, Buenos Aires: Manantial, 2008 [2006];v. tb. MEHDI BELHAJ KACEM, L´esprit du nihilisme. Une ontologie de l´Histoire,Paris: Fayard, 2009.

219

Page 220: Tese para IFCS

à formação de verdadeira Escola, a partir de seu longo

professorado em Belo Horizonte (MG).201

Eis que nos defrontamos aqui com uma questão que,

tradicionalmente, pertence ao campo que se designou, com base

em uma classificação de certas obras de Aristóteles,

metafísica. Como é corrente, o termo “metafísica” é oriundo

de uma classificação de obras de Aristóteles versando sobre

sua temática, posicionadas depois dos livros da física, donde

a denominação metá, isto é, “após”, ta physika, ou seja, “da

física”. Já Kant, porém, questionou se seria uma mera

coincidência que uma tal denominação se adequasse tão bem ao

sentido mesmo da investigação metafísica, voltada para

questões que se situam para além daquelas tratadas no plano

da realidade palpável, física. E, de fato, há trabalhos que

201 Para uma primeira aproximação a este pensamento, bem como quantoàs possibilidades de se estabelecer conexões entre ele econtribuições modernas, como as de Kant e Hegel, bem como aquelascontemporâneas, de Heidegger ou Apel, particularmente recomendávelse nos afigura o livro editado em sua homenagem, Saber filosófico, históriae transcendência, JOÃO A. MAC DOWELL (coord.), São Paulo: Loyola,2002. Uma introdução “biobliográfica” encontra-se em MARCELOPERINE, Ensaio de iniciação ao filosofar, São Paulo: Loyola, 2007, pp. 117ss.

220

Page 221: Tese para IFCS

demonstram estar presente no pensamento aristotélico, se não

o termo, a idéia a que ele corresponde.202

A metafísica trata de questões das quais não se ocupam

as ciências, enquanto formas de conhecimento que ora se

voltam para a construção de um saber com base em experiências

feitas no contato com a realidade, com o que existe, e que

por isso são ditas “empíricas”; ora elaboram o conhecimento

advindo da consistência de suas proposições entre si mesmas,

sem referência a quaisquer objetos reais, mas apenas àqueles

abstratos, como na(s) lógica(s) e matemática(s), donde

justamente serem qualificadas de “formais”. Na realidade,

estes “tipos puros” de conhecimentos científicos se mesclam

em maior ou menor medida, restando ainda a possibilidade e,

mesmo, necessidade (termos, a rigor, intercambiáveis, pois o

possível é necessariamente possível, assim como o necessário

sempre é possivelmente necessário, já que esta é a condição

do que existe sem ser em si mesmo, o que só é o ser que não

depende de nenhuma causa para existir, o qual se pode

202 Cf. HANS REINER, “O surgimento e o significado original do nome Metafísica”,in: Sobre a Metafísica de Aristóteles (Textos Selecionados), MARCO ZINGANO (org.),São Paulo: Odysseus, 2005, p. 93 ss.

221

Page 222: Tese para IFCS

denominar de Absoluto, Deus etc.) de outros conhecimentos,

meta-científicos, que seriam a epistemologia, para discutir

as condições de possibilidade de um conhecimento científico

ou de uma outra natureza, e a metafísica, para discutir as

categorias, determinações ou, simplesmente, os conceitos dos

conceitos empregados pelas demais formas de conhecimento,

como são os conceitos de realidade, possibilidade,

necessidade, causalidade, tempo, espaço, existência, número,

contradição, identidade, sujeito, objeto, mundo, experiência,

indivíduo, infinito, nada, Deus, valores como o bem e a

justiça, mas também o mal, etc. Para efeitos mais didático

do que por razões substanciais pode-se dividir em diversas

(sub)áreas do conhecimento a metafísica, conforme privilegie

alguns desses temas, de forma que do estudo de Deus se

ocuparia a teologia (racional, e não aquelas dogmáticas,

vinculadas a alguma religião positiva), assim como dos

valores a axiologia, dos deveres ou obrigações – aí incluído

temas como o das promessas, dádivas ou realidades deônticas

mais habitualmente estudadas, como aquela jurídica -, das

questões pertinentes ao(s) mundo(s) a cosmologia e daquelas

222

Page 223: Tese para IFCS

sobre o(s) ser(es) a ontologia, enquanto temas relacionados

ao conhecimento em si seriam objetos da gnosiologia. A

estreita conexão entre todas essas matérias, em que cada uma

remete às demais, torna de todo relativas tais divisões, ao

mesmo tempo em que suscita o interesse em promover a

interdisciplinariedade “holística” dos estudos por meio da

metafísica tal com aqui entendida. Quanto às denominações

atribuídas às suas sub-divisões, são oriundas mais da

etimologia, em correspondência com seu objeto, do que de

qualquer outro significado que possam ter, a depender do

contexto em que apareçam empregados os respectivos termos.

Uma tal investigação há de ser feita racionalmente,

empregando até, o quanto possível, um instrumental oriundo de

ciências (formais) lógicas e computacionais.203

Após o surgimento da filosofia – pelo menos, com essa

denominação - na Grécia antiga, ela iria se mesclar com o203 A propósito, v. trabalhos recentes como Steps Toward a ComputationalMetaphysics, de BRANDEN FITELSON (University of California–Berkeley)e EDWARD N. ZALTA (Stanford University), bem como, deste último,Principia Metaphysica, disponíveis emhttp://mally.stanford.edu/publications.html (consultado em08.09.2011); Abstract Objects: An Introduction to Axiomatic Metaphysics,Dordrecht: D. Reidel, 1983; Intensional Logic and the Metaphysics ofIntentionality, Cambridge, MA: The MIT Press/Bradford Books, 1988.

223

Page 224: Tese para IFCS

senso prático, político-jurídico mais eficiente, do antigos

romanos e, posteriormente, com uma versão (ou versões) muito

particular(es) da religião monoteísta judaica, como é o

cristianismo, resultando na afirmação da capacidade humana de

se impor ao mundo, mais do que apenas contemplá-lo e, por

diversas formas, “imitá-lo”.

A teoria a que se busca aqui uma via de acesso,

introduzindo-a, então, precisa estar, por exemplo, fora do

círculo em que os cultores da filosofia a aprisionaram e ali

a mantém, quando trabalham “tecnicamente”, pondo-se a serviço

do desenvolvimento de um saber cada vez maior, no menor

espaço de tempo, sem parar e se perguntar do por quê, para

quê. E é essa escalada desenfreada para o saber que é um

saber-fazer (know how), característica da (tecno)ciência, que

tantos problemas vem solucionando, ao mesmo tempo em que

muitos outros vai criando e, principalmente, deixando de

enfrentar a brutalidade da existência - o chamado

“absolutismo da realidade” mencionado por Hans Blumenberg (na

obra “Arbeit am Mythos”, ou “Trabalhar o Mito”), insensível

ao sofrimento consciente dos humanos -, por promover mais e

224

Page 225: Tese para IFCS

mais o afastamento dela, evitando que com ela nos

confrontemos, o que exige um tipo de saber mais próximo da

mitologia, das artes e da religião, em suma, do imaginário,

da imaginação - portanto, mais distanciado daquele

“puramente” científico, formalista, positivista -, e isso sem

que entre essas formas antípodas de saber se estabeleça

propriamente um conflito, pois estão situadas em “quadrantes”

diferentes daquele diagrama acima proposto, com o fito de

auxiliar no mapeamento das formas de conhecimento da

totalidade, nela situando, em posição de igual legitimidade

que a das ciências, saberes como o da poética (mitológica,

religiosa, artística, jurídica etc.): surgem, assim, questões

que colocam em questão a própria ciência e o modo de

organização social (também política, jurídica e, sobretudo,

econômica, utilitário-capitalista) que a criou, sustenta e

nela se sustenta, sem que dela possa obter a devida

sustentação. Não é de estranhar, portanto, que tais questões

não sejam tratadas e sejam mesmo, de certa forma,

descartadas, pelo pensamento classicamente tido por

científico, causando grande instabilidade, de ordem

225

Page 226: Tese para IFCS

psicológica, ética e também política, jurídica, econômica, em

suma, social, neste ser em aberto, carente de orientação e

fixação de um sentido para sua existência, que somos os

humanos. De tais questões, tradicionalmente, se ocupam as

religiões, com sua forma (mito)poética de explicar o mundo,

dando-lhe (e dando-nos) também algum sentido, e não há lugar

para elas, tanto as religiões e os mitos - com sua força

simbólica, que sempre deu sustentação à ordem social, através

do direito e outros meios, os quais sem esta força não têm

como bem desempenhar este papel crucial -, como para tais

questões, na sociedade mundial tecnocientífica contemporânea,

que tem na secularização um dos pressupostos de seu

aparecimento e manutenção, tratando como falso o que não é

para ser avaliado por este registro, pois uma metáfora não é

mesmo para ser levada ao pé da letra. É para elas, então, que

se volta a teoria aqui proposta, a partir do estudo do

direito, sim, mas situando-o na totalidade das formas de

conhecer e ordenar a realidade,204 sejam aquelas mais

204 No sentido referido por WERNER HEISENBERG em A Ordenação daRealidade, trad.: MARCO ANTÔNIO CASANOVA, Rio de Janeiro: ForenseUniversitária, 2009 [1942], em que vemos uma convergência, ao queparece ainda inexplorada, com o pensamento de Herman Dooyoweerd,

226

Page 227: Tese para IFCS

propriamente normativas, acima qualificadas de

“escatológicas”, como é o direito enquanto ordenamento da

conduta humana, sejam aquelas “nomológicas”, como são as

teorias, inclusive do direito. E ao assim proceder, pode-se

esperar a obtenção de esclarecimentos também sobre essa

totalidade mesma e sobre nós, que dela fazemos parte, como um

seu “subconjunto próprio”, sendo ela um conjunto infinito -

logo, um subconjunto que pode não ser menor que ela.205

Ora, de uma tal teoria já não se pode dizer que possua

exatamente as características reconhecidas como próprias de

toda teoria, pois se amplia para abranger o que normalmente a

abordagem teórica exclui, no recorte que propõe, para

conhecer de maneira mais eficiente o que toma como objeto a

conhecer. Em seguida, vamos reconstruir uma tentativa de

enfrentar esse impasse ou “aporia”, da qual resultou

importante renovação filosófica, com repercussão também em

outras áreas do conhecimento, como a psicologia, e também na

elaboração de perspectivas teóricas como a teoria de

antes referido.205 Aqui, novamente, beneficiei-me do ms. já referido de JoséDantas, na parte sobre teoria dos conjuntos, bem como de contatopessoal com o A., na data registrada acima.

227

Page 228: Tese para IFCS

sistemas, que se vem de referir, enquanto situadas para além

da diferença gnosiológica clássica entre sujeito e objeto .

9. Sobre a busca de um modo ateorético de produzir

conhecimento válido (em filosofia)

O estudo aqui desenvolvido busca apresentar os esforços

feitos por Martin Heidegger, ainda no período inicial de sua

docência e pesquisa,206 a partir da consideração de que um tal206 Este período do pensamento de Heidegger, à medida que se foipublicando, em suas “obras completas” (Gesammte Ausgabe, abrev.: GA,Frankfurt am Main: Vittorio Klostermann ed.), o conteúdo dosprimeiros cursos dados como livre docente, no primeiro pós-guerra,a partir dos manuscritos, do próprio A. e/ou de participantes emtais cursos, tem chamado a atenção de diversos pesquisadores, aoponto de um deles ter detectado aí um novo campo de investigação –cf. JOHN VAN BUREN, “The Earlieste Heidegger: A New Field of Research”. In: ACompanion to Heidegger, HUBERT L. DREYFUS & MARK A. WRATHALL (eds.),Londres: Blackwell, 2005, p. 19 ss. O primeiro volume do Heidegger-Jahrbuch (Munique: Karl Alber, 2004) foi dedicado ao assunto,constando ao final uma longa lista de publicações a respeitofeitas até então. Um bom apanhado do status questionis, com apeculiaridade de enfatizar o que de fato publicou Heidegger nesseperíodo, encontra-se em THEODORE KISIEL & THOMAS SHEEHAN (eds.),Becomming Heidegger. On the Trail of His Early Occasional Writings, 1910 – 1927,Evanston (Ill.): Northwestern University Press, 2007. Entre nós, ointeresse e a atualidade do assunto ficou evidenciado no IIIColóquio de Filosofia Hermenêutica e Fenomenológica, ocorrido naPUCRS, em meados de julho de 2011, sob a coordenação de ERNILDO J.STEIN, contando com participação de convidados do exterior, etendo como tema-geral “A Racionalidade Hermenêutica e oSignificado Indicativo-Formal dos Conceitos Filosóficos”. É de sedestacar, dentre os que se debruçaram sobre a temática, autores

228

Page 229: Tese para IFCS

esforço conduz a um modo de entendimento da filosofia que se

pretende defender como legítimo e profícuo, por mais que dele

tenha se afastado inclusive o próprio Heidegger, bem como os

que, de um modo geral, fazem trabalhos sob a rubrica da

filosofia, sobretudo quando a qualificam de analítica. Ao

contrário do que soe ocorrer, não se pretende com uma tal

defesa fazer um ataque a quem possui concepção antagônica do

que seja ou deva ser a filosofia, mas tão somente expor um

modo de fazer filosofia dentre outros, também possíveis e

desejáveis. A filosofia tal como aqui será concebida pode ser

caracterizada, em uma palavra, como “ateorética”. Isso porque

tem por tema o desiderato de evitar o que Heidegger, na

esteira de Husserl, de maneira tão decidida denunciou como

sendo a tendência “objetificação”, à transformação do que se

como RÓBSON RAMOS DOS REIS e LUIZ HABECHE, por seus artigos Verdadee Indicação formal: a hermenêutica dialógica do primeiro Heidegger (inédito) eHeidegger e os “indícios formais” (agora in: Id., O Escândalo de Cristo. Ensaio sobreHeidegger e São Paulo, Ijuí (RS): EDUNIJUÍ, 2005), respectivamente,ambos de 2001, o livro de JORGE ANTÔNIO TORRES MACHADO, Os Indícios deDeus no Homem - Uma Abordagem a Partir do Método Fenomenológico de MartinHeidgger, Porto Alegre: EDIPUCRS, 2006, e as dissertações defendidasna PUC-SP por PAULO EDUARDO RODRIGUES ALVES EVANGELISTA, Heidegger ea fenomenologia como explicitação da vida fática, MS: PUC-SP, 2008, e JOSÉRESENDE JR., A teoria do objeto de Emil Lask, MS: PUC-SP, 2005, onde nocapítulo 1, item 6, refere a influência de Lask em Heidegger, deum modo geral, e, especificamente, quanto à noção de formale Anzeige,no cap. 4, item 3.2.

229

Page 230: Tese para IFCS

busca conhecer, pela filosofia, em objetos de conhecimento,

passíveis de uma análise teorética acurada, o que

inegavelmente é capaz de trazer um grande ganho em termo de

aprendizado a respeito do que for assim tratado, inclusive o

próprio sujeito do conhecimento, que lhe é correlato, ao ser

transformado também em objeto, de si mesmo. Ocorre que

procedendo dessa maneira em filosofia o que se faz é preparar

o desenvolvimento de uma abordagem científica, capaz de nos

fornecer muitas informações sobre o que quer que seja assim

estudado, mas não serão de informações que necessitaremos

quando confrontados com a insatisfação que pode nos

impulsionar para a filosofia – tal como para a religião, ou

alguma forma de arte, que genericamente se pode colocar sob a

denominação de “poesia”, para assim referir as três

principais formas de “concepção de mundo” (Weltanschauung),

segundo a conhecida formulação de Dilthey.207

207 Autor que, de resto, como em seguida se verá, é uma dasreferências principais de Heidegger, no período aqui enfocado.Cf., v.g., as chamadas “conferências de Kassel”, dadas porHeidegger em 1925, tendo como tema o pensamento de Dilthey, natranscrição de WALTER BRÖCKEL, em Heidegger, Les conférences de Cassel,Frithjof Rodi (ed.), ed. bilíngüe, Paris: Vrin, 2003.

230

Page 231: Tese para IFCS

Entendemos, porém, que para dar conta dessa insatisfação

na vida, a qual rapidamente pode se tornar em insatisfação

com a vida, do que se necessita seria antes de formação do

que de informação. Já por isso pode-se compreender a proposta

de Heidegger de revitalização da filosofia, nos anos 1920, a

partir de uma releitura fenomenológico-hermenêutica da ética

aristotélica, tal como se encontra no relatório escrito a

Natorp, visando obter uma cátedra em Marburg, do qual adiante

nos ocuparemos.

A filosofia, portanto, no confronto com a perspectiva

teorético-científica, sem deixar de ser teórica, seria, por

assim dizer, inobjetiva, ao recusar, como o fez exemplarmente

Heidegger, o esquema de conhecimento obtido pela

representação de objetos por uma subjetividade, ainda que

seja aquela, digamos, auto-consciente, dita transcendental,

por Kant, culminando um desenvolvimento que se pode

demonstrar ter início na baixa Idade Média, com Duns Scot,

sob a influência da recepção européia da metafísica grega

acolhida em ambiente muçulmano – com destaque para Avicena

(Ibn Sînâ) -, tendo em Descartes o marco mais difundido, e

231

Page 232: Tese para IFCS

em Husserl a realização mais radical. Indo além de Heidegger,

pretende-se postular para a filosofia que, sendo ateorética e

inobjetiva, mais do que abandonar o esquema sujeito – objeto,

também procure tomar distância em relação ao que foi,

reconhecida e assumidamente, o fio condutor da investigação

de toda a vida deste importante filósofo contemporâneo, a

saber, a “questão do ser” (Seinsfrage), seja como questão do

sentido do ser (Sinn des Seins), em sua primeira fase, antes da

“virada” (Kehre) de 1930, seja como questão sobre a verdade do

ser, a partir de então tematizada, sendo que os estudos

conduzidos na primeira foram apresentados no livro que o

revelou propriamente ao mundo, com grande impacto: Sein und Zeit.

Neste tratado culmina uma trajetória que aqui se propõe

revisitar, em busca do que lá se encontra em termos de

indicações metodológicas para uma certa forma de realizar a

investigação em filosofia, que seria, já por se pautar por

uma metodologia, teórica, sim, mas não teorética, por trazer,

justamente, uma denúncia dos desvios que os métodos,

enquanto, literalmente (em grego), “caminhos”, podem ensejar,

para quem busca filosoficamente a verdade ou o que for, tal

232

Page 233: Tese para IFCS

como se encontra desenvolvido por aquele que, pelo menos

nesse aspecto, é talvez o principal sucessor de Heidegger, a

saber, Hans-Georg Gadamer, em seu clássico “Verdade e Método”.

Isso significa que a filosofia tal como aqui concebida será

ateorética por inobjetiva também ao não ter um objetivo

determinado, como esse pela busca do sentido do ser ou o que

quer que seja, se externo à própria filosofia, a uma

determinação de seu objeto por si mesma. Daí que a

denominação geral para esse projeto permanece aquela dada à

tese apresentada para obtenção da titularidade em filosofia

na Universidade Estadual do Ceará, em 1998, que depois se

revelou título da primeira obra do baiano Machado Neto e

também do que buscou realizar de próprio o espanhol

naturalizado mexicano José Gaos: Filosofia da Filosofia.

Antes de todos nós, porém, está Dilthey, que se vale da

expressão, Philosophie der Philosophie, para tratar da filosofia

como uma das mundividências (Weltanschauungen) fundamentais, ao

lado da religião e da arte, enquanto “po(i)ética” (Dichtung).

O que em Heidegger vamos colher e procurar desenvolver,

no presente estudo, vale enfatizar, não é o tema de seus

233

Page 234: Tese para IFCS

próprios estudos, ontológicos, mas sim o método que propõe

para realizá-los, nos seus primórdios, sendo a presença de

uma metodologia de investigação algo de se considerar como

uma característica compartilhada pela filosofia com as

ciências, de um modo geral, enquanto empreendimentos

teóricos. O que as diferenciará, umas das outras e, entre si,

ciência e filosofia, será justamente o tipo de método

adotado. Em filosofia, a questão do método não costuma,

ultimamente, ser tematizada, tanto quanto em relação às

ciências, sendo este um momento que se considera próprio de

uma reflexão – às vezes mais, às vezes menos - filosófica

sobre a ciência, no âmbito da chamada epistemologia. Eis uma

vez mais justificada a inserção do que aqui se busca realizar

no campo de uma filosofia da filosofia.

Uma das inovações metodológicas que Heidegger

introduzirá na filosofia, provavelmente sob a influência de

seus intensos estudos da obra de Dilthey, ele a foi buscar na

teologia, campo por assim dizer científico em que havia

trabalhado antes de se voltar mais decididamente para aquele

234

Page 235: Tese para IFCS

propriamente filosófico. Trata-se da hermenêutica.208 E é

inegável ser a filosofia uma certa forma de interpretar, de

hermenêutica, portanto. A etimologia da palavra

“interpretação”, de origem latina, remeteria a uma prática

adivinhatória romana, muita antiga, baseada na “leitura” do

que se via ao abrir ritualmente animais sacrificados, em suas

entranhas (inter pres), para prognosticar o futuro. No mesmo

ambiente cultural, outras formas divinatórias, menos

cruentas, eram utilizadas, como a leitura do vôo sincopado de

pássaros, como as andorinhas, e se pode mesmo afirmar que em

toda sociedade se produzem tais práticas, mágicas, de

atribuição (ou “desentranhamento”) de um sentido ao que

208 No primeiro curso de que se tem registro, no primeiro semestredo entreguerras, de 1919, quando Heidegger se ocupou exatamente daquestão da determinação da filosofia, debatendo a idéia dafilosofia em face do que chamou de “problema da visão de mundo”(Weltanchauungsproblem), ou seja, confrontando as concepções deDilthey e Husserl, já ali, após a fenomenologia ser apresentadacomo uma “ciência originária pré-teorética” (vortheoretischeUrwissenschaft), ao final, é referida uma “intuição hermenêutica”(hermeneutische Intuition). Ela vem descrita como uma avassaladoravivência da vivência que se colhe a si mesma (das bemächtigende, sichselbst mitnehmende Erleben des Erlebens), vivência esta ocorrida em umavida caracterizada como “histórica” (historisch) e originariamentemundana (welthaftige), donde surge o sentido comum das palavras, comotambém todo posicionamento transcendente, teorético-objetivante(theoretisch-objektivierend), sendo de onde deve partir a re- e pré-construção fenomenológica (Rück- und Vorgriffs-bildung). GA 56/57, BERNDHEIMBÜCHEL (ed.), 1987, p. 116.

235

Page 236: Tese para IFCS

ocorreu, ocorre e ocorrerá, a partir de algum dispositivo

considerado apto a estabelecer vínculos entre esta realidade,

mundana, com aquela outra, superior, invisível, em que

habitam as forças ou deidades que geram e detêm o controle

dessa realidade em que vivemos (e morremos). Daí que a outra

palavra, mais erudita, que guarda sinonímia com aquela que

ora nos ocupa, a saber, “hermenêutica”, em sua origem grega,

seja associada ao deus Hermes, filho de Zeus com a Ninfa

Maya, que se tornou o mensageiro de pés alados, mediador e

responsável pela comunicação entre seu pai e os mortais,

sendo por isso atribuída a ele, na narrativa mitológica

helênica, a invenção da linguagem e da escrita.

Apesar de questionada e duvidosa, segundo Jean

Grondin,209 como geralmente ocorre com a etimologia dos

vocábulos, especialmente aqueles mais significativos, esta

aproximação com a mitologia, além de esclarecedora, enquanto

alegoria, nos coloca, justamente, diante de situação que

requer o emprego da interpretação, seja como interpretatio, seja

209 Deste A., especificamente sobre o tema que ora nos ocupa, v. suacontribuição na obra coletiva Heidegger 1919 – 1920. De l’hermenéutique de lafacticité à la méthaphysique du Dasein, JEAN-FRANÇOIS COURTINE (ed.), Paris:J. Vrin, 1996.

236

Page 237: Tese para IFCS

como hermèneutiké. Isso para transitarmos de um sentido que

esteja “escondido”, na interioridade de animais sacrificados

ou do pensamento de quem se dedica a entender o sentido do

mundo, podendo ainda este sentido se perder por estar muito à

vista, na literalidade de uma narrativa mítica, sendo ho

mythos, em grego, justamente este relato de uma vivência,

como nos explica Emmanuel Carneiro Leão, em texto a respeito

contido em “Aprendendo a Pensar”, donde a necessidade de se

trazê-lo à compreensão, expressando-o por meio de uma espécie

de tradução ou deciframento do que se interpreta, em

linguagem corrente. É dessa expressão e compreensão,

decorrente do ajuste entre o que está em dada sentença e a

intenção a ela subjacente, para assim aferir de sua

veracidade, que se vai tratar, quando Aristóteles - tal como

em geral ocorreu, precedido por seu mestre Platão -, faz uma

elaboração filosófica do problema, no âmbito de sua obra Peri

hermèneias, traduzida em latim por De interpretatione. Assim,

apesar dessa aproximação semântica, entre o que teria sido,

originalmente, a designação de uma prática divinatória, no

caso da interpretação, enquanto forma de saber, e a

237

Page 238: Tese para IFCS

hermenêutica, ao ponto de se ter uma sinonímia entre ambas,

na Grécia antiga se diferenciava perfeitamente a ambas, ao

mesmo tempo em que se considerava guardarem entre si uma

espécie de parentesco, tal como se nota no pequeno diálogo de

Platão denominado Epínomis -, ou seja, “apêndice”, aposto a

outro mais extenso, que é “As Leis”, sendo aquele denominado

também “O Filósofo” -, quando já em sua segunda manifestação

o personagem designado como “O ateniense” considera como duas

espécies de um mesmo gênero de saber a quiromancia (mantiké) e

a hermenêutica, ambas incapazes de conduzir ao saber

verdadeiro, a Sophia. Isto porque a hermenêutica, enquanto

arte ou “capacidade” (na trad. bras.) geral de interpretar

oráculos, conduziria à compreensão do que é dito por estes

que, em seu estado de êxtase, de mania, sequer sabem o que

dizem, mas ainda não permite estabelecer se é verdadeiro

(alethes) o que foi dito.

Em texto clássico e de grande importância histórica,

denominado “A Origem da Hermenêutica”, de 1900, Wilhelm

Dilthey, logo no princípio, assevera o A. que a “arte de

interpretar (hermeneía) nasceu na Grécia, fruto da necessidade

238

Page 239: Tese para IFCS

de ensinar”. Concretamente, este ensino baseava-se em textos

poéticos como os de Homero e Hesíodo, para citar apenas dois

dos mais conhecidos dentre os “pais-fundadores” da

Civilização que é um dos pilares daquela dita Ocidental. Daí

porque um outro filósofo contemporâneo, identificado com a

elaboração filosófica da hermenêutica, Paul Ricouer, na

abertura mesmo de sua obra, igualmente clássica, “O Conflito

das Interpretações. Ensaios de Hermenêutica”, vai afirmar que

o problema da interpretação é colocado, primeiramente,

enquanto um problema de exegese, ao aparecer “no contexto de

uma disciplina que se propõe a compreender um texto, a

compreendê-lo a partir de sua intenção, baseando-se no

fundamento daquilo que ele pretende dizer”. Eis que

terminamos por introduzir uma terceira palavra, “exegese”,

também considerada um sinônimo de interpretação, mas que se

restringiria a uma dimensão mais filológica, por vincular a

interpretação a objeto de certo tipo, que são os textos. Ao

mesmo tempo, percebe-se aí a grande amplitude em que, já

nesse nível exegético, o problema da interpretação se situa,

com implicações para além – ou aquém -, inclusive, da própria

239

Page 240: Tese para IFCS

filosofia, especialmente no campo de religiões como aquelas

baseadas em textos, a exemplo dos Vedas, da Bíblia e do

Corão, assim como da literatura em geral e, também, de

maneira igualmente paradigmática, desde épocas bastante

recuadas, no campo do Direito, na forma da interpretação

jurídica. É tendo esta última forma de hermenêutica, a

jurídica, que o italiano Emilio Betti irá propor sua teoria

geral da interpretação, a qual o discípulo de Heidegger,

Gadamer, tomará como principal contraponto no desenvolvimento

de sua notória filosofia hermenêutica, na qual se refere,

aliás, a exemplariedade da hermenêutica jurídica.

Em filosofia, contudo, entendemos que se há de

ultrapassar o estudo meramente textual, tal como se dá, por

exemplo, no âmbito da psicanálise, para assim podermos

envolvê-la no enfrentamento das questões de vital importância

para nós humanos, que motivaram o seu surgimento e permanecem

como a fonte perene de sua necessidade e renovação,

referentes ao sentido mesmo da existência desse ser em aberto

que somos. Essa característica, como muito bem percebeu

Heidegger, nos revela como um ser que interpreta, um ser

240

Page 241: Tese para IFCS

hermenêutico, pois a todo momento estamos avaliando,

ponderando o que fizemos, o que fazemos e o que faremos,

seres temporais (ou, para dizer com Heidegger, talvez melhor

falar em “temporalizados”), que somos também.

Um tal redirecionamento da filosofia para a vida

efetivamente vivida, que inicialmente denominou “vida

fática”, e depois, simplesmente, “Dasein” (ou seja, algo como

“ser aí humanamente existindo”), foi o que propôs Heidegger

quando do princípio de sua docência, que culmina com a

publicação de sua obra mais famosa, em 1927: “Ser e Tempo”.

Aqui se retoma a questão do Ser (de tudo o que é e também do

que não é, o nada, por serem equivalentes, na medida em que

se procure pensar o ser desvinculado dos entes), que teria

sido abandonada, quando se impõe o modo conceitual de

investigação, já sob a influência de Sócrates e seu discípulo

mais influente, Platão, bem como do mais célebre discípulo

deste, Aristóteles, ainda mais influente, a partir de certo

momento, crucial para o desenvolvimento da démarche

heideggeriana, que é aquele medieval. O saber que então se

desenvolve, no sentido de formação das ciências, é um saber

241

Page 242: Tese para IFCS

que qualifica e divide o mundo, assim como, nele, os próprios

sujeitos que o investiga, em uns tantos objetos, definíveis e

definidos conceitualmente, o que se mostra muito eficaz para

revelar mecanismos de organização de tudo o que nos cerca e

em que nos encontramos, inclusive o próprio corpo, sem com

isso revelar igualmente o que mais importa, a um ser

interpretante como somos, que é o sentido disso tudo.

A hermenêutica, portanto, em teologia, assim como, de

maneira ainda mais evidente, em direito, insere-se no

contexto da elaboração de um conhecimento prático, ligada a

uma práxis. E assim é que, a nosso modo de ver, a partir de

Heidegger, se pode propor que ela se integre à filosofia,

ainda que um tal desiderato, neste A., apareça escamoteado em

sua obstinação pela “questão do ser”, ou seja, pela

ontologia.

Tomando aqueles que se pode ter como autores

paradigmáticos em filosofia, tem-se que para Platão, por

exemplo, a filosofia seria "epistéme epistemés", "ciência da

ciência", enquanto Aristóteles, na "Metafísica" (Livro VII ou

zetha, 1), a define como "epistéme ton próton arkhôn kaì aítion

242

Page 243: Tese para IFCS

theoretiké", conhecimento dos primeiros princípios e causas

explicativos de tudo. Comentando essa passagem, Heidegger, no

texto "Que é isto, a filosofia?", recorda que epistéme deriva

de epistámenos, que seria aquela pessoa vocacionada e

competente para uma determinada atividade - no caso da

filosofia, a atividade de teorizar, sendo a theoria o que os

gregos considerariam propriamente a ciência, saber

contemplativo das verdades universais, eternas e

transcendentes, que, no princípio do livro apenas citado de

Aristóteles, é considerado um conhecimento através do qual os

homens se ombreariam com os deuses, devendo, por isso, temer

a inveja deles.210 Uma outra forma de conhecimento, mais

próprio das contingências da vida, é aquele que os gregos

denominavam techné, a técnica, um conhecimento operativo,

instrumental e produtivo, limitado e finito, por voltado ao

atendimento de finalidades específicas, mas sempre revelador210 A certa altura do relatório escrito para Natorp, antes referido,Heidegger duvida que Aristóteles efetivamente acreditou napossibilidade de que a divindade pudesse ter inveja, e não porconcebê-la como absolutamente boa ou amorosa, tal como nos quadrosdo cristianismo, mas sim por considerá-la pura atividadecognitiva, um stado de ser incompatível com as emoções. Cf.Heidegger, Interpretaciones fenomenológicas sobre Aristóteles. Indicación de lasituación hermenéutica [Informe Natorp], trad. JESÚS ADRIÁN ESCUDERO,Madrid: Trotta, 2002, p. 76.

243

Page 244: Tese para IFCS

de potencialidades, donde sua tradução para o latim como ars,

sendo que os gregos distinguiam a poiésis como um subtipo dessa

forma de conhecimento, que corresponderia ao momento

produtivo, e não meramente reprodutivo, como seria o

puramente técnico. Então, a epistéme seria algo intermediário

entre essas duas formas de conhecimento, o teórico e o

prático, por referir-se à atividade de conhecer a partir das

necessidades de um certo tipo de explicação, isto é, não as

explicações que se fazem necessárias e úteis à manutenção da

vida, inclusive no convívio social e político, mas sim

aquelas que, a rigor, são desnecessárias, inúteis, embora

sejam elas o que desejamos, anelamos, quando nos maravilhamos

e, no duplo sentido dessas palavras, negativo e positivo, nos

espantamos e assombramos diante do universo ao nosso redor e

em nós mesmos, o cosmos, sendo desse sentimento (pathos) que,

segundo os dois filósofos gregos citados - mestre e

discípulo, de certa forma os primeiros e até hoje maiores

entre todos - nasceria a filosofia: Platão, no seu diálogo

"Teeteto" (155 d), e Aristóteles, na já citada "Metafísica” (Livro

I ou alfa, 2). Temos que retornar sempre a esse momento

244

Page 245: Tese para IFCS

espantoso, em que o ser se mostra, o qual nos levou a falar e

a nos pormos a caminho de uma busca de explicações, como que

para nos assegurarmos na vida, tentando aprisionar o que, na

verdade, nos fez prisioneiros, sem percebermos, pois assim

entramos em uma fantasia de permanência, impedindo-nos de

aproveitar bem a oportunidade que temos de, simplesmente,

sermos (experiências do ser).

Retomando a proposta de Heidegger, tem-se que, no curso

que deu sobre fenomenologia da religião no semestre de

inverno de 1920/1921, ao iniciá-lo com considerações

metodológicas, é apresentada uma colocação, provisória, na

forma de uma tese – mas que entre parêntese se alerta para a

circunstância de só ter em comum com uma tese a inevitável

forma lingüística – quanto à diferença “de princípio”

(prinzipiell) entre a filosofia e a ciência, que se pode resumir

referindo a fragilidade e incerteza que acomete a primeira e

seus conceitos, se comparados com aqueles científicos, e é

justamente essa carência (Not) que Heidegger propõe que se

veja como uma virtude, pois o enrijecimento conceitual é

confundido com rigor – quando rigor há de ser entendido antes

245

Page 246: Tese para IFCS

como vigor (Strenge), o que a filosofia não perde por estar

sempre em busca de si mesma, muito antes pelo contrário.

A busca do acesso que pela filosofia se pode ter às

questões que, justamente, não comportam um tratamento

científico e também não nos contentamos com as respostas que

a elas tradicionalmente são oferecidas, se daria através da

interpretação. Isso pressupõe que se tenha operadores

interpretativos, que em teologia como em direito são os seus

respectivos dogmas, consagrados textualmente, assim como um

contexto de interpretação, onde se situam as questões a serem

enfrentadas propriamente. Necessita-se, portanto, do que

Heidegger denominou, no subtítulo do já mencionado relatório

para Natorp, “indicação da situação hermenêutica” (Anzeige der

hermeneutischen Situation).

246

Page 247: Tese para IFCS

“Indicação formal” (formale Anzeige211) é como Heidegger

denomina o operador interpretativo que empregará, fazendo as

vezes de conceito filosófico – em substituição, portanto, do

conceito definidor, objetificante, da tradição -, para obter

orientação em sua investigação de sentido fundamental, o que211 O tradutor espanhol opta por termo equivalente ao nosso“anúncio” e o italiano, tal como o fizemos, por “indicação”,enquanto na literatura nacional se encontra também a tradução deAnzeige por “indício”, não havendo propriamente um erro nessasopções, pois na palavra original estão contidas essas outras, enão só: notificação, inclusive no sentido mesmo jurídico,policial, é também uma tradução possível. E se “anúncio” é maisliteral, em termos semânticos, e nisso se encontra a um só tempouma vantagem e uma desvantagem, “indício” preserva, como“indicação”, a mesma etimologia do original, com a desvantagem de,na primeira palavra aludida, se ter uma alusão ao indiciário, emmatéria probatória, sendo nossa opção, também por isso, pelasegunda. Com apoio em FRIEDRICH-WILHELM VON HERRMANN, em “A idéia defenomenologia em Heidegger e Husserl”, in Phainomenon. Revista deFenomenologia, Lisboa: Curso de Filosofia da Universidade deLisboa, n. 7, 2003 (cap. III de Id., Hermeneutik und Reflexion, 2000),pode-se identificar no emprego da indicação formal, ainda que anoção seja oriunda de Husserl, o que caracterizaria a diferença daabordagem fenomenológica de cunho reflexivo, transcendental,propugnada por este último, e aquela de seu discípulo, de cunhohermenêutico, que permaneceria fenomenológica ao compartilhar o“princípio dos princípios”, de “voltar às coisas mesmas”, livresdos modos como elas são conceitual ou preconceituosamentecapturadas, seja por teorias, científicas ou filosóficas, sejapelo senso comum, respectivamente. Em Husserl, ter-se-ia grossomodo, um constante “voltar-se para dentro”, para a consciência,transcendental, a fim de fazer essa experiência de como seriam, ouse dariam, as “coisas mesmas”, enquanto em Heidegger ter-se-ia umaabertura para captá-las na experiência existencial, fora (eks), acaminho (unterwegs), servindo-se para isso das referidas indicações,“marcas no caminho” (Wegmarken), que vai se fazendo, muitas vezesdesobstruindo, pela desconstrução (Abbau) dos que já se instalaram,evitando nosso acesso à “coisa”, mesma.

247

Page 248: Tese para IFCS

para ele equivale a dizer existencial, operador a ser

empregado para explicitar a compreensão que o vivente humano

tem de seu próprio ser enquanto existente, “ser para fora”,

“ser aí”, “ex-sistente”, da-sein interpretante da faticidade

“nua e crua” da vida, que é a sua situação hermenêutica: o

que Heidegger denomina, nesse momento de seu percurso, “vida

(ou vivência, Lebenserfahrung) fática”, ocupada e pré-ocupada

em tomar providências para se assegurar, diante da percepção

de sua fragilidade, finitude e incerteza no mundo que o

cerca, circundante (Umwelt).

É nesse mundo circundante, ao qual Heidegger também se

refere com a expressão de origem francesa milieu 212 - e que

guarda correlações a serem examinadas oportunamente com o que

designam os conceitos-chaves de circunstantia tal como empregado

com anterioridade por Ortega y Gasset e também o de Lebenswelt,

na reflexão posterior de Husserl -,213 que apenas formalmente212 Gesamtausgabe, vol. 60, Phänomenologie des religiösen Lebens: 1.Einleitung in die Phänomenologie der Religion (Wintersemester 1920/21) Jung,Matthias/Regehly, Thomas (eds.). 2. Augustinus und der Neuplatonismus(Sommersemester 1921). 3. Die philosophischen Grundlagen der mittelalterlichenMystik (Ausarbeitung und Einleitung zu einer nicht gehaltenen Vorlesung 1918/19),Strube, Claudius (ed.), 2a. ed., Frankfurt am Main: VittorioKlostermann, 2011 [1995], p. 11.213 Heidegger, no loc. ult. cit., curiosamente, emprega a expressãono plural, Lebenswelten, referindo-se à arte e à ciência, de modo

248

Page 249: Tese para IFCS

se distingue do mundo propriamente dito, enquanto tudo quanto

vem ao nosso encontro na vida, sendo mesmo onde vivemos, mas

que comporta também um mundo compartilhado, dito Mitwelt, que

na experiência fática – e, porque não dizer logo, prática –

da vida se soma ao nosso si-mesmo com seu mundo próprio,

Selbstwelt. Heidegger faz questão de destacar a diferença do que

aqui se apresenta como mundo para ser estudado,

filosoficamente, do que seria um objeto, a ser estudado

cientificamente, na medida em que mundo é onde se vive – e

não se pode viver em um objeto.214 Esses seriam então os três

irônico, como passíveis de fornecerem tais mundos, desde que seconsiga viver completa e genuinamente neles absortos. Em geral,contudo, arte e ciência fazem parte apenas do mundo da vida maisgeral em que se vive, o Umwelt. Postulando a necessária reinserçãodelas, assim como de outros media (nos seus termos), estaria N.LUHMANN, “Die Lebenswelt – nach Rücksprachen mit Phänomenologen”, in: Archivfür Rechts- und Sozialphilosophie, vol. 72, Stuttgart, 1986, pp.176-194. Dentre os fenomenólgos com quem ele estaria dialogando,embora sem fazer menção, vale referir HANS BLUMENBERG, Lebenszeit undWeltzeit, Frankfurt a. M.: Suhrkamp, 1986. Compreende-se então oalerta dado por LUHMANN a todos aqueles que pensam o universal,como os atuais “Frankfurtianos” ainda fazem, ao dizer a eles, empalestyra proferida na sua célebre Universidade, algo que eles nãovêem, ou seja, que eles não percebem, na medida em que assumem“que vivem em um e mesmo mundo e que isto é uma questão de sereferir coerentemente a este mundo”. Cf. N. LUHMANN, “I See SomethingYou Dont´t See”, in: Theories of Distinction, Rasch, W. (ed.), London: Sage,2002.214 Embora possamos acrescentar, e com base mesmo em reflexõesposteriores do próprio Heidegger, consubstanciada em textos comoDie Frage nach der Technik e Die Kehre – onde se pode ver, portanto, antesa continuidade do que uma ruptura com o pensamento mais antigo

249

Page 250: Tese para IFCS

mundos em que vivemos faticamente, praticamente, ou seja, o

fundamento mesmo de nossa existência, sendo deles que se

trata de fazer uma experiência cognitiva (erkennende Erfahren)

ao fazer filosofia, enquanto comportamento cognitivo

(erkennende Verhalten) que ela deve ser.

Antes, porém, de que se estabeleça por decreto que a

filosofia seja cognitiva (Erkenntnis), a fim de manter o seu

vínculo com a experiência fática da vida, que é, afinal de

contas, o que mais importa, é preciso constatar que essa

experiência, de um modo geral, se dá irrefletidamente,

demonstrando uma indiferença em relação ao modo como ela é

vivenciada, ou seja, eine Indifferenz in Bezug auf die Weise des

Erfahrens.215 Como conseqüência dessa indiferença teorética

resulta uma auto-satisfação (Selbstgenügsamkeit – o tradutor

aqui apresentado deste A., tal como defendido em seminário porAQUILES CÔRTES GUIMARÃES - , ser justamente de uma transformação dovivido em objeto, enquanto representação e imagem, a tendência quese verifica no desenvolvimento do atual modo predominantementeplanetário e planificado de viver, no qual poderíamos recuperar acapacidade de experimentar a verdade (do ser) pela arte, apoética, co-originária da técnica hoje imperante absoluta, sendoassim que também se poderia ter a experiência da presença (vida)ou ausência (morte) de Deus. Cf. MARTIN HEIDEGGER, Die Technik und dieKehre, 9ª. ed., Stuttgart: Günther Neske, 1996, pp. 35 e 46 – ouseja, ao final dos textos referidos.215 Id. ib., p. 12, grifo do A.

250

Page 251: Tese para IFCS

espanhol optou por “autosuficiência”) bem característica da

vida de fato vivida, de modo que tudo o que se experiência

nessa vida possui um caráter de significatividade

(Bedeutsamkeit), por mais banal que seja – quando então o

significado será este, de banalidade, do que pode muito bem

resultar uma satisfatividade, como de fato, em geral, resulta

mesmo, pois apesar de tanto motivo para descontentamento, não

nos parece que seja essa a modulação de humor predominante.

Importante é a constatação de que nos experienciamos a

nós mesmos, ao nosso si-mesmo (Selbst), de fato, em um tal

contexto, mundano, e não de um modo que o isola do mundo

circundante, tornando-o objeto de conhecimento, mesmo

enquanto “consciência transcendental” ou “mente”, seja no,

seja fora do corpo etc. Isso pode ser feito, e se ao fazê-lo

quisermos produzir algo como um conhecimento psicológico,

para Heidegger não se pode dizer que seja por motivos

filosóficos e que assim se venha a realizar uma psicologia

filosófica, pois a única possibilidade de se atingir algo

assim estaria nesse dar-se conta (Kenntnisnahme) do ser que

somos no mundo fático, onde fazemos algo com o que nos vem ao

251

Page 252: Tese para IFCS

encontro, lançados que fomos no(s) mundo(s); sofremos, nos

alegramos, deprimimos etc.

Ocorre que essa vida que levamos, sendo de onde se

origina o impulso para uma reflexão que se possa chamar

filosófica, quando dá margem a que isso aconteça, logo é

tratada como um obstáculo, a ser removido, ou invés de

propriamente entendido, um problema a ser resolvido, e assim

é que seu conteúdo significativo vai se tornando ob-jeto

(isto é, lançado contra), Gegen-stand (isto é, o que se ergue

contra) de uma teoria, seja enquanto doutrina, ideologia ou

“cosmovisão” (Weltanschauung), seja enquanto ciência, quando a

filosofia propriamente dita, nos molde daquela propugnada por

Heidegger e que aqui se pretende retomar, deveria reconhecer

a vida em sua faticidade como ponto de partida e meta de

chegada, tratando de contribuir para, digamos, resolver seus

problemas nos seus próprios termos, ao invés de traduzi-los

nos termos técnicos, o que termina por produzir aquela

espécie de alienação de que tratará o mestre de Heidegger,

Husserl, em sua reflexão final, sobre a crise da humanidade

às voltas com a “ciência européia”, antes referida.

252

Page 253: Tese para IFCS

Para fazer uma primeira aproximação com a metodologia

filosófica proposta dessa dimensão que vinha de ser assumida

como fundamental, a experiência fática da vida (faktische

Lebenserfahrung), Heidegger vai propor uma definição enquanto

indicação formal. Antes, porém, já anuncia – fazendo, por

assim dizer, uma indicação sobre o que seja a indicação

formal – ou prenuncia que não será entendido, ou muito pouco,

mas que nisso não haveria nenhum prejuízo, pois o importante

é que se avance, buscando a caminho a compreensão, e não do

anúncio, do indicador da indicação, mas sim do anunciado, do

indicado, um assim determinado contexto fenomênico

(Phänomenzusammenhang). A indicação é como os andaimes de uma

construção, que a possibilita, mas que se dispensa depois que

ela é concluída – ou como a escada a que se refere

Wittgenstein ao final de seu Tractatus, para caracterizá-lo,

concitando a quem o entendeu a dispensá-lo, depois de ter

subido até onde ele (o livro, ou ela, a escada) permitiu.

A experiência fática da vida é então formalmente

indicada como sendo uma ocupação com a significatividade

(Bedeutsamkeitsbekümmerung), quadruplamente caracterizada

253

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enquanto 1) atitudinal (einstellungsmäßige), 2) desviante

(abfallende), 3) relacionalmente indiferente (bezugsmäßige-

indifferente) e 4) autosatisfativa (selbstgenügsame).216 Como isso

se estaria dando conta do que é possível, em relação ao

fenômeno inidicado, ao caracterizar como ele experienciado,

ou, para dizer com Heidegger, o como (Wie) da experiência,

sua relação de sentido (Bezugssinn), que não é de se confundir

com o seu conteúdo, o seu que (Was), sendo que na vivência

propriamente é este conteúdo o que importa, donde sua

indiferença em relação ao que a filosofia assim tematizaria,

que é o modo 217 de experienciar, deixando em aberto a questão

do conteúdo experienciado,218 embora seja por aí, ou melhor,

por ele, que se diferencia o que é experienciado.219 Expostos

a uma enorme variedade de conteúdos a serem experienciados,

nossa atitude espontânea é a de ir-lhes experienciando e a

isso reagindo impensadamente, fazendo o que sabemos que temos

216 Id. ib., p. 16.217 Isto é, a Weise, que se poderia também denominar “wie-sein”, o “ser-como”, em contraste com o “ser-que”, was-sein, tradicionalmentebuscado pela filosofia teorética ou “teoretizante” e, enquantotal, “desviante”, abfallend. 218 Cf. id. ib., p. 12.219 Id., p. 16.

254

Page 255: Tese para IFCS

de fazer, sem vacilação, “relacionalmente indiferente” e

“autosatisfativamente”, donde decorre uma tendência ao

“desvio na significatividade” (Abfall in die Bedeutsamkeit), no

sentido da “objetificação”, cujo ápice se encontra na

ciência, a que se chegou por intermédio da filosofia

teoreticizante (a wissenchaftliche Philosophie a que aí se refere

Heidegger), tomando para si o máximo em significatividade,

sem prestar contas quanto ao sentido dessa nossa entrega de

si a uma determinação enquanto objeto (einstellungshafte

Objektsbetimmung) e a uma regulação como objeto

(Objektsregulierung) da nossa vida de fato vivida (faktisch gelebten

Leben).220

Eis que o deixar-se ir levado pela corrente da vida

demonstra-se ameaçador, dando ocasião a que se busque motivos

para uma inversão (Umwendung) do desvio que nela se pratica,

inclusive com auxílio da filosofia tal como tradicionalmente

praticada, reconduzindo a experiência da vida de volta a e

sobre si mesma, agora tomando cuidado com o modo como nela

220 Id., p. 18.

255

Page 256: Tese para IFCS

nos ocupamos, ou seja, nos ocupando com a vida, e não apenas

na vida. Em assim fazendo, estaríamos retomando o impulso

original para a filosofia, que terminou se perdendo ao longo

de sua história, tanto que é melhor nem dizer que se trata de

fazer filosofia, até porque os que a cultivam ao modo

tradicional também não reconheceriam como tal este esforço de

voltar a pensar no sentido (Sinn) da experiência fática da

vida, de maneira vívida e vigorosa (lebendig und streng), tal

como ele própria se mostra. Daí que a atitude metodológica

proposta seja a de uma simples anotação fática do que se

observa (faktisches Kenntnisnehme), meramente preparatória de uma

compreensão, a ser obtida graças à explicitação do modo em

que se vive a vida, para assim possibilitar uma avaliação e,

em sendo o caso, redirecionamento, dando-se como pressuposto

que sempre haverá um ganho, uma revigoração, mesmo se nenhuma

mudança vier a ocorrer, pois então se estará vivendo a vida

com maior consciência do que está se passando e se está

passando. E considerando que vida fática é o que está se

passando, não importa como, é esse “estar se passando” que

Heidegger propõe que se tome como via de acesso para a

256

Page 257: Tese para IFCS

compreensão da vida fática e, nisso, também para a

autocompreensão da filosofia enquanto comprometida

primordialmente com essa tarefa, denominando-lhe pela

seguinte “palavra problematizadora” (Problemwort), que

substantiva um adjetivo: o histórico (das Historische).221

Ao optar por essa denominação e dela pretender extrair o

estímulo para desenvolver uma reflexão filosófica sobre a

vida fática, nos moldes aqui buscados, é preciso evitar

desvios propostos no âmbito da filosofia tal como

tradicionalmente praticada, quando então, por exemplo, já se

poderia enquadrar a investigação em algum compartimento, como

o da filosofia da história, sendo que essa

compartimentalização é justamente o tipo de realização

objetificadora que se precisa evitar. Justamente não se está

a propor que algo, um objeto, que será estudado, tem a

propriedade de ser histórico, mas o histórico mesmo, como

221 Cf. ib., p. 34. Nas “Conferências de Kassel”, anteriormentereferidas, mais precisamente na 6ª. conferência, Heidegger entende“a pergunta fenomenológica pelo sentido da história (o que aquiaparece como das Historische – WSGF) como pergunta pelo ser da pessoa(o que será depois dado a conhecer por ele como Dasein)”. A 10ª. eúltima dessas conferências terá por tema, justamente, “a essênciado ser histórico” – v. ob. cit., p. 200 ss.

257

Page 258: Tese para IFCS

fenômeno característico – e caracterizador – da vida fática,

do que de fato se vivencia, é que fornecerá acesso ao sentido

disso, que se quer compreender, entendendo assim se estar

praticando filosofia, mesmo que este seja um modo bem

diferente de como a filosofia historicamente se realizou – e

realiza ainda. É que não se trata de estabelecer categorias

e, a partir delas, um sistema, para assim poder enquadrar o

fenômeno estudado, já transformado em objeto de estudo.

Considerando o histórico como característica de objetos,

tomando a palavra em um sentido menos rigoroso,

correspondente ao termo alemão Gegenstand, ou seja, o que está

diante de nós, mesmo se não nos pomos na postura de um

sujeito cognoscente - quando então se teria propriamente a

constituição desse algo em objeto -, mas sim naquela do

entendimento humano normal (gesundes Menschverstand), é válido

dizer que se algo é histórico é porque está sujeito ao passar

do tempo, mas com isso não foi dito nada de essencial sobre o

fenômeno indicado com o termo “histórico”, e quando algo

assim for dito, é de se esperar que se choque contra o

entendimento normal que se tem a respeito, pois afinal a

258

Page 259: Tese para IFCS

filosofia pode ser entendida como uma luta contra isso que na

Grécia antiga se denominava doxa.222

Ocorre que, com o passar do tempo, o conhecimento que

vem se acumulando, historicamente, vai proporcionando uma

transformação imensa das opiniões, assim como uma enorme

variedade delas, do que resulta uma inibição para a

“ingenuidade criativa” (Naivität des Schaffens) prejudicial ao

“entusiasmo pelo absoluto” (Enthusiasmus für das Absolute), a

exigir uma luta da vida contra o histórico para que possa

florescer uma nova cultura espiritual (einer neuen geistigen

Kultur).223 A “cultura espiritual” de então sequer percebia um

tal confronto com a história, em que estaria envolvida, e

três seriam as posturas mais comumente adotadas, a saber, 1)

aquela transcendente, platônica, do neokantismo de Baden

(Cohen, Windelbrand, Rickert e outros), onde se nega o

222 “(…) Philosophie ist nichts als ein Kampf gegen den gesundenMenschenverstand!” Id., p. 36. À doxa, Platão opunha a epistémeprópria da filosofia, sem deixar de reconhecer o domínio restritodesta última aos assuntos especulativos, excluindo, portanto,aqueles práticos, da téchne, onde se situa a moral, o direito e areligião (v. República, 538; Leis, 644). Heidegger, em suas liçõesintrodutórias à metafísica, caracteriza o filosofar como umquestionar extra-ordinário (außer-ordentliches), para além do modocomo normalmente se concebe o tema do questionamento.223 GA, Bd. 60, p. 38.

259

Page 260: Tese para IFCS

histórico em favor do reino das idéias eternas, sobrehumanas

e sobrenaturais; 2) a imanentista, (nietzsche-)splengleriana,

em que, ao contrário, se adere ao histórico em uma entrega

radical (radikales Sich-Auslieferns) e 3) a opção conciliatória,

dilthey-simmeliana, para a qual o histórico é um processo, no

qual se vai revelando pari passu a essência humana. Em todas as

três tendências Heidegger identifica a mesma preocupação com

uma tipificação, como se tem em Max Weber e seus tipos

ideais, um exemplo da primeira tendência, assim como na

morfologia de Sprengler e na doutrina das diferentes

concepções de mundo (Weltanschauungen) em Dilthey, ou de vida

(Lebensanschauungen), em Simmel. Isso leva a que Heidegger

refira a uma tendência comum ao asseguramento

(Sicherungstendenz),224 como justificativa dessa construção

cognitiva recorrendo a tipificação, que sempre resulta em

objetificação, inclusive do ser atemporal, no caso da via

platônica – no caso da segunda via, não se reconhece outra

possibilidade além de tomar conhecimento da própria realidade

histórica, contrastando com a de outros povos e culturas, sem

224 Cf. id. ib., p. 45.

260

Page 261: Tese para IFCS

ter como mudá-la, já que não se reconhece um padrão supra-

histórico para servir de orientação; a terceira via, por seu

turno, ao optar por uma dialética que supere o antagonismo

entre as duas outras, quando então o atemporal se realizaria

na história através de uma progressiva revelação das

potencialidades humanas, o que é passível de ser observado e

explicado cientificamente, fazendo do histórico objeto de

estudo, portanto.

O histórico, então, nas três tendências, seria

hipostasiado, reificado, ao ser tomado como um ser objetivo

(objektives Sein), o que é denunciado no caráter atitudinal

(einstellungsmäßige) da referência (Bezug) à história.225 É que

assim procedendo, com uma tal atitude ou postura refere-se ao

referido – no caso, o histórico – como sendo uma coisa ou

questão (Sache), deixando de fora a quem refere e, em assim

procedendo, perde-se a referência viva (der lebendige Bezug) ao

objeto de conhecimento, a fim de obter uma compreensão dita

225 Cf. id. ib., p. 48.

261

Page 262: Tese para IFCS

atitudinal (einstellungsmäßige), que não teria nada a ver com

aquela propriamente fenomenológica.226

Eis que a partir de uma tal alienação reificadora,

constatável nas três posturas teóricas referidas, frente à

história, e também ao histórico, perde-se de vista exatamente

a quem busca o asseguramento, por estar inquieto (beunruhigt),

tido como uma evidência (Selbstverständigkeit). O que inquieta é a

realidade da vida, a existência humana, preocupada com o seu

próprio asseguramento, preocupação esta que não é atendida,

quando tratada como um objeto e assim colocada na realidade

histórica objetiva.227 A vida preocupada é situada em um

contexto histórico que lhe é alheio, que não é o da sua

história, sem consideração para com a própria tendência a se

preocupar, agora reinterpretada atitudinalmente

(einstellungsmäßig umgedeutet), o que vem ao encontro da já

mencionada tendência da vida fática a adotar essa atitude de

se desviar (einstellungsmäßig abzufallen), tornando a preocupação

em objeto, objetificando-a e, assim, objetificando-se, pois a

226 Id., p. 49.227 Ib., p. 51.

262

Page 263: Tese para IFCS

preocupação é o modo de ser mesmo do vivente humano. É aqui

que reside, segundo Heidegger, o ponto de ruptura (Bruchstelle)

do problema envolvendo o histórico – e, logo, a nossa vida

fática. O sentido da história, que na preocupação se

prenuncia, não pode mais ser entendido, encoberta que se

torna assim a inquietação verdadeira, quando o fenômeno do

histórico é compreendido a partir de uma consideração

teorética, proveniente do que quer que se pretenda uma

ciência da história, em que o sentido atitudinal

(einstellungsmäßige Sinn) da história é derivado (abgeleitet), de

maneira falseadora. Do que se trata, então, é de tentar

captar o fenômeno da preocupação na vida fática a descoberto

(unverdeckt).228

A relação entre a preocupação e a vida fática, tal como

entendida nas três posturas teóricas antes referidas, é

caracterizada por Heidegger como uma “relação de ordenação”

(Ordnungsbeziehung). Isso porque a existência preocupada (das

bekümmerte Dasein) é por elas situada em um contexto objetivo,

sem a devida consideração para com ela em si mesma, que é

228 Id., p. 52.

263

Page 264: Tese para IFCS

assim tratada como um objeto recortado de um objeto maior, a

saber, o acontecer histórico como um todo. A existência em

desassossego (das beunruhigte Dasein) vai então procurar se

proteger contra as mudanças da existência atribulada por

acontecimentos (das geschehnishafte Dasein), o que em termos da

filosofia transcendental se expressaria na postulação de que

a consciência é constituída por um fluxo de atos que tem um

sentido. Ocorre que a existência própria e atual (das eigene,

gegenwärtige Dasein) demanda para si mais do que um sentido

qualquer, pois requer um sentido concreto, um outro sentido,

um sentido novo, diverso daqueles já fornecidos pelas

culturas do passado, que supere, portanto, o sentido dado à

vida de anteriormente. Isso porque essa forma de existir

atual quer ser uma nova criação (Neuschöpfung), com uma

originalidade que a diferencie, nem que seja fazendo uma

grande síntese de tudo quanto tome conhecimento, ou

distinguindo-se do que em contraposição seria a barbárie. É

assim que o modo de existir preocupado se mostra na própria

experiência de vida desse que se propôs a entendê-la sem

considerar seu conteúdo na perspectiva de lhe fornecer uma

264

Page 265: Tese para IFCS

justificação. E se uma tal tentativa de acessar a própria

existência vívida (das eigene lebendige Dasein) enquanto preocupada

através da história, para tanto, a situa em relação à própria

história, o que se pode constatar foi que as teorias da

história só atrapalham, assim como a simples opinião de que a

realidade histórica é aquela que se verifica no tempo que

passa. A tentativa é a de captar o sentido da história

através da experiência fática pura e simplesmente, e como fio

condutor do que se dispõe é do conceito de histórico que se

principiou a trabalhar, recorrendo a inovações metodológicas

em filosofia fornecidas pela fenomenologia, sendo ao que se

precisa novamente voltar a atenção, a fim de aumentar as

chances de vencer o que se apresenta como uma verdadeira luta

a ser travada a cada passo que se avance.229

Nos três modos de lidar com a história que foram

referidos a existência desasossegada (das beunruhigte Dasein) é

tratada como um objeto na história, o que termina ocultando a

própria fonte originária do desassossego, facilitando assim

solucioná-lo. Se nos perguntamos sobre o que se quer

229 Cf. id., p. 53.

265

Page 266: Tese para IFCS

realmente assegurar contra a história percebe-se que é a vida

enquanto realidade histórica humana. É essa esfera que

Heidegger reivindica para ser levada em conta, considerando

que ela não é problematizada na filosofia de então – como

hoje nos parece que ainda não também -, ou quando o é, de uma

maneira indevida, que a enquadra conceitualmente no esquema

previamente desenvolvida em uma dada filosofia, sem que se

coloque a questão de saber se não seria simplesmente

impossível captar o sentido da existência fática com os meios

filosóficos disponíveis. E essa captação, que há de ser

originária, requer, portanto, uma explicitação de natureza

filosófica. Heidegger destaca, contudo, que não se trata de

preencher uma lacuna em algum sistema de categorias já

existente na filosofia, pois como pretende demonstrar, a

intencionada explicitação de novas categorias da vida fática

ao invés disso o que fará é explodir o sistema tradicional de

categorias.230

A existência factual, atual, não pode ser tratada como

algo que acontece de maneira objetiva e às cegas, pois como

230 Id., p. 54.

266

Page 267: Tese para IFCS

tal requer um sentido que a guie, e há toda uma pressão para

que o sentido buscado se volte e forneça uma direção para o

futuro, e que seja um futuro em que uma nova forma de vida e

de cultural, mais própria (e apropriada) seja criada. É isso

que se pode encontrar, exemplar e, também, pioneiramente no

modo como após sua conversão ao cristianismo São Paulo passa

a experiência a vida, o que deve ter motivado Heidegger a

abordar o assunto no seminário para o que desenvolveu,

previamente, as reflexões ora reportadas. Sua tentativa é,

aí, conforme anuncia, a de colher o que denomina de histórico

numa tal forma de vida, religiosa, fazendo a fenomenologia da

vida religiosa tal como proposto pelo título do seminário, e

tomando todo o cuidado para não se deixar levar pelo que

caracteriza como a tendência a uma formalização precipitada,

donde resulta uma grande dificuldade para a própria

fenomenologia. O emprego da indicação formal é a solução

vislumbrada.

A definição que é dada para indicação formal, que bem

poderíamos qualificar como sendo, ela própria, uma indicação

formal, é a de “uso metódico de um sentido para direcionar a

267

Page 268: Tese para IFCS

explicitação fenomenológica” (den methodischen Gebrauch eines Sinnes,

der leitend wird für die phänomenologische Explikation),231 e aqui

“fenomenológico” há de ser entendido como sinônimo de

“filosófico”, pois “fenomenologia” antes foi dito que “deve

significar para nós o mesmo que >>filosofia<<”.232 Trata-se de

um tema da teoria do método fenomenológico, onde “teoria” é

posto entre aspas, pois justamente o que se pretende com o

emprego desse recurso é evitar a forma de consideração dita

“atitudinal”, a postura própria da elaboração teorética

objetificadora, que procura tudo enquadrar de maneira

absoluta, e é justamente uma fenomenologia desse problema do

teorético, do ato teorético, que é buscada, enquanto um

fenômeno da diferenciação (Phänomen des Unterscheidens). E o

problema será estudado com referência ao caso concreto do

sentido do histórico, na experiência de vida fática, pois

seria mesmo um tanto absurdo buscar compreender o teorético

teoricamente, evitando as deficiências objetificadoras de um

modo de conhecer que já parte da distinção entre sujeito e

objeto. Ora, o que é isso se não a tentativa que fazem

231 Ib., p. 55.232 Id., p. 5.

268

Page 269: Tese para IFCS

poetas e místicos de expressar a presença em si do que lhes

transcende? Vê-se, assim, como já nos primórdios de seu longo

percurso pode-se vislumbrar em Heidegger o que irá se tornar

a marca distintiva da sua tão instigante quanto enigmática

obra tardia.233

10. Conclusões prévias

233 E também se torna compreensível, além da “passagem para opoético”, de um dos mais notórios estudiosos de Heidegger noBrasil, o paraense Benedito Nunes, a “passagem para apsicanálise”, especialmente na versão de Donald W. Winnicott, quepropõe outro estudioso da mesma estirpe, o sérvio radicado noBrasil, em São Paulo, Zelyko Loparic, bastando referir o quantoescreveu aquele integrante da Escola de Londres, de derivaçãokleiniana – mas aberto como poucos a contribuições oriundas dasdiversas proveniências teóricas -, no capítulo sobre criatividadede seu livro mais consagrado, O Brincar e a Realidade, cit., p. 114 s.,ao referir ao primeiro objeto que formamos (imaginariamente), oseio (ou o que nos amamente). Este seria um “objeto subjetivo”,onde encontramos originariamente o sentimento e a experiência deser(mos) – que é um elemento feminino -, abrindo caminho para o“sujeito objetivo” – elemento masculino -, o qual, já sendo, ou emse sentindo como tal, passa a sentir-se fazendo suas ações,atribuindo-se um ser próprio, seu, um self, que possui. É assim quena obra de Donald Winnicott podemos encontrar um desenvolvimentoabsolutamente convergente com aquele que aqui se buscaimpulsionar, considerando que para ele, em síntese, como bemexplica um dos que o estuda e divulgam em nosso País, “qualquerconhecimento autêntico da cultura e da vida, depende de umprocesso de recriação do mundo por meio da nossa própriaimaginação”. ROBERTO B. GRAÑA, Origens de Winnicott. Ascendentes Psicanalíticose Filosóficos de um Pensamento Original, São Paulo: Casa do Psicólogo,2007, p. 16.

269

Page 270: Tese para IFCS

Eis que chegamos à conclusão de que a filosofia, já

tendo servido à teologia, durante o período medieval, depois

à ciência, e também à política, na modernidade, deveria

ainda, em seus estertores, ser posta a serviço da arte, ou

melhor, da poética, em uma última tentativa de salvar um

mundo que ela, mais do que o expansionismo político-jurídico

romano e o monoteísmo personalista cristão, serviu para

criar, quando deixou de ser dialética, inconclusiva,

sofística, para tornar-se exigência da verdade, filosofia

propriamente. Aqui, a descrição da filosofia a aproxima da

situação trágica em que se viu envolvido o famoso personagem

da tragédia de Sófocles, Édipo. E tal como Édipo, a

insistência da filosofia em perseguir a verdade, uma única

verdade, em ser “alética”, portanto, e não mais, di-alética –

ou “pluri-alética”, e, positivamente, “lética”, lembrando que

lethein, em grego antigo, remete também ao esquecimento, sendo

a-lethein o desvelamento, mas também, o “desesquecimento”, o

rememoramento – é que a teria levado (ou estaria levando) ao

encontro de seu fim, trágico. Filosofia, então, estaria bem

se não servisse para nada, como postulava já Aristóteles, no

270

Page 271: Tese para IFCS

início de sua “Metafísica”, mas ela terminou sendo empregada

para os mais diversos fins, e agora parece estar a serviço do

nada que nos assola, individual e coletivamente. A pulsão

auto-destruidora que se manifesta na filosofia também se

mostra, por todo lado, nessa Civilização Ocidental, que se

tornou mundial - e, logo, não apenas ocidental -, e traz já

em seu próprio nome o occido, étimo latino da queda, da ruína,

da morte, do assassínio, da chacina. A “Civilização da Razão”

é a “Civilização da Destruição”, destruição que pode atingir

todas as outras civilizações e, até, o próprio mundo, físico.

As coisas inorgânicas, por exemplo, como destaca

Türcke,234 “não sentem a contradição, mas fazem parte dela”.

Sim, claro, não sentem por não terem sensibilidade, mas são a

própria contradição, com a sua simples existência, já que sua

densidade ontológica faz-se positividade, contrastando com a

negatividade do nada. Já os seres orgânicos, animados, estes

sentem, sim, a contradição, a que damos o nome de “dor”. E

será contra o sofrimento que se mobilizará o “ser de

234 Cf. Pronto-Socorro para Adorno: Fragmentos Introdutórios à Dialética Negativa,Mimeo., Departamento de Filosofia: UNICAMP, 2001, in:www.filosofia.pro.br, “Escola de Frankfurt”.

271

Page 272: Tese para IFCS

pensamento”, o ser humano, linguajeiro, constantemente

aterrorizado, perseguido pelo saber de que pode sofrer e,

até, morrer. Se a dor é o mal e o bem ausência de dor, então

temos que estes seres que nós somos percebemos como

negatividade o bem, e positividade o mal. Para afastar essa

idéia se desenvolverão religiões, sendo as mais eficazes

aquelas monoteístas, que deslocam o bem supremo, todo o bem,

para a divindade, supra-terrena, espírito puro, deixando o

mal no mundo, na terra, na matéria impura, enquanto nós,

humanos, “húmus da terra”, ficamos presos nessa contradição,

oscilando entre os dois extremos. Tal contradição se desdobra

em uma série de outras, inclusive naquelas conceituais,

próprias da filosofia.

E então, internalizamos as contradições, existentes na

realidade e, sobretudo, no contraste da realidade com seu

duplo, que fabricamos para melhor enfrentá-la, a linguagem,

sendo o modo como as resolvemos que fará de nós o que somos –

embora pareça contraditório, e é mesmo, o melhor para nós,

individualmente, e para os que convivem conosco, é que

adotemos a estratégia da dialética negativa com essas

272

Page 273: Tese para IFCS

contradições, evitando tanto resolvê-las, superá-las

definitivamente, de forma absoluta, como também desconsiderá-

las, pretender cancelá-las, por uma cisão analítica entre o

certo, positivo, e o errado, negativo, pois a negatividade é

positiva e a positividade é negativa, a verdade é parcial e,

conforme a famosa afirmação adorniana, contante da obra

“Minima Moralia”, “o todo é o falso”, contrapondo-se

frontalmente à máxima hegeliana, de que o todo é a verdade,

assim como o real é racional e vice-versa.

Pode-se, então, falar em uma “negatividade dúplice”,

sendo uma positiva e outra negativa, o que se expressa

exemplarmente na arte, como bem explica um teórico

contemporâneo que se costuma catalogar bem distante de

Adorno, em um espectro ideológico das teorias sociais, mas

que muito provavelmente com o assentimento dele o substituiu

em Frankfurt, nas aulas interrompidas durante as

manifestações estudantis de fins da década de 1960: Niklas

Luhmann, autor de uma vigorosa teoria social sistêmica.235 Em

ambos, na verdade, para utilizar uma distinção do

235 Para uma introdução a esta teoria v. WILLIS SANTIAGO GUERRAFILHO, Teoria da Ciência Jurídica, cit., pp. 193 ss.

273

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enciclopedista d’Alembert, resgatada por Adorno, está

presente um “esprit systematique”, antes que o “esprit de

système”, de um Hegel. Em “Die Kunst der Gesellschaft” (p.

473), Luhmann refere que na teoria estética de Adorno a arte

aparece como uma negatividade a um só tempo positiva e,

propriamente, negativa, ao se contrapor à falta de liberdade

na realidade social com seu exercício de liberdade na

sociedade, que, por isso, dela se beneficia, tornando-a

positiva, valorizada socialmente, por expandir os limites

dessa sociedade, ao alterar a subjetividade dos que a

possibilitam, sem com ela se confundirem: os indivíduos.

É assim que a estética se põe no lugar da ética, ou,

pelo menos, do lugar tradicionalmente ocupado por ela. Ocorre

que em ética, ou nas éticas em geral, já se dá por resolvida

a questão de saber se apenas viver é bom, buscando o bom

viver, o viver bem ou o viver para o bem, associando-se a

vida ao bem e a morte ao mal, pois ser é que é bom e não ser,

ruim. A tais éticas, afirmativas, porém, podemos contrapor um

outro tipo de ética, negativa,236 que ao evitar uma valoração

236 Nesse sentido, JULIO CABRERA et al., Ética Negativa: Discussões eProblemas, Goiânia: EdUFG, 2008. V. tb.

274

Page 275: Tese para IFCS

positiva prévia do que é, em detrimento do que não é, pode

tornar melhor vivida a vida de um ser, como nós, que a rigor

não somos – no sentido em que, conforme defendemos em outro

local, só Deus pode ser -, mas apenas existimos – enquanto

Deus, porque é, não existe -, ocasionalmente. Facilmente se

percebe que a ética, ou seja, o saber sobre o que devemos

fazer, do qual depende toda filosofia jurídica que não se

reduza à esterilidade do formalismo positivista – negando-se,

portanto, como filosofia para se tornar, na melhor das

hipóteses, uma teoria do direito -, por seu turno depende

fundamentalmente de respostas a outras questões, quer sejam

de natureza metafísica, sobre o que é o ser, quer sejam de

natureza teológica, ou melhor, religiosa, sobre o que podemos

esperar do desfecho da vida. Dito de outra forma, e

sinteticamente: a definição do modo como devemos nos

comportar nessa vida depende da concepção que temos de seus

limites – da morte, portanto.

Os pressupostos de que necessitamos para desenvolver a

filosofia, de um modo geral e também sobre aspectos

http://e-groups.unb.br/ih/fil/cabrera/portugues/etica.html.

275

Page 276: Tese para IFCS

particulares – como, por exemplo, aqueles referentes ao

direito -, deve possibilitar um entendimento de como nos

situarmos em face de nossa finitude, individual, abrindo um

horizonte, metafísico, de compreensão e superação de certos

modos de relacionamento com tal questão que incita a ações e

reações violentas. O melhor modo de enfrentar tais questões,

transcendentais, é mobilizando os resultados obtidos no campo

aqui qualificado de poético, onde encontramos as diversas

formas de lidar com a imaginação, desde aquelas mais antigas,

como a mitologia e as religiões, até outras, mais recentes,

como a psicanálise, passando pelas diversas artes, a teologia

e a própria filosofia, sem esquecer o direito, enquanto forma

de responder aos reclamos de convivência entre os humanos que

dispõe de um vasto repertório de soluções, necessitando de

uma melhor apresentação, para assim recuperar seu poder de

convencimento e vinculação intersubjetiva. Para desenvolver

melhor o que se acaba de mencionar é que apresentamos o

próximo capítulo, tendo por escopo o seguinte, e último, uma

exemplificação dessa potência heurística da poética na obra

de Franz Kafka.

276

Page 277: Tese para IFCS

11. Vida contingente, vida sem testemunho, vida sem sentido

A polêmica tese sustentada por Giorgio Agamben, em “Chi

resta d’Auschwietz”, é a de que a justificação para a

irracionalidade dos campos de concentração nazistas

repousaria em uma busca de comprovação da inumanidade dos que

para lá foram encaminhados, pelo modo como eram destratados

os que não foram de pronto exterminados, contrário a qualquer

racionalidade, como a de que se prestariam a atender uma

finalidade econômica, ao serem sujeitados a trabalhar para o

esforço de guerra ou para empresas. E, de fato, o tratamento

desumano atingiria seu objetivo quando suas vítimas, não mais

podendo suportá-lo, psiquicamente, ingressavam em um estado

catatônico, sem buscar contato com os demais detentos,

falando apenas, quando o faziam, sobre como satisfazer a

necessidade de comida, ficando, enfim, indiferentes a tudo e

a todos, ao mesmo tempo em que definhavam organicamente até a

morte. O desejo constitutivo do viver humano, afinal, havia

sido extinto. Essa era a condição do chamado Musellmann, o

277

Page 278: Tese para IFCS

“muçulmano”, palavra oriunda talvez dos movimentos

repetitivos que faziam, tal como os muçulmanos em suas

preces.

Jean Cayrol, em Les rêves lazaréens,237 ao se referir aos

“sonhos concentracionais” (rêves concentrationnaires), ou seja,

aqueles que se tinha nos campos de concentração, os qualifica

como o único refúgio disponível para os internos, diante do

absurdo da realidade, que subtraia daqueles que a vivenciavam

as características habituais do que em geral consideramos ser

isso, a realidade, revelando-se também como onírica, sim,

porém enquanto pesadelo. Daí que a manutenção da humanidade

dos detentos, na experiência dessa testemunha, mostra-se

extremamente devedora do que segundo seu relato fazia com

seus companheiros, toda manhã, compartilhando os sonhos que

tiveram a noite, de paisagens, fugas ou banquetes. Enquanto

houvessem os sonhos, estaria presente o desejo, e relatá-los

era uma forma de reatualizá-lo, mantendo-o. E sobretudo, no

sono, o prisioneiro dispunha de algumas horas em que saia da

condição de total assujeitamento para se tornar “senhor de

237 In: L’oeuvre lazaréenne, Paris: Opus Seuil, 2007.

278

Page 279: Tese para IFCS

si”: “Le prisionnier était maître de son sommeil”. Até que soasse o

Wstawac, a palavra de ordem polonesa para que se levantassem,

“deslanchando a tempestade cotidiana”. E também mostrando o

quão tênue é o limite entre a experiência da vida acordada e

dormindo, assim como é o limite entre a vida e o seu fim,

como entre o sonho e o pesadelo.

É assim que, liberto do pesadelo do campo, levando uma

vida como a que lá sonhava, comumente o ex-detento passa a

ser assolado, quando dormindo, por pesadelos, em que estariam

de volta ao campo ou, como no pesadelo recorrente relatado

Primo Levi em La Trêve, a vida normal, com a família e os

amigos, terminava se revelando como uma vivida em um campo,

sendo ele a realidade propriamente: “rien n’était vrai que le

camp”.238 Sendo o campo um lugar de absoluta insegurança, onde

a qualquer momento o detento poderia ser vítima da violência

dos SS, dando-lhes ordens absurdas ou, simplesmente,

massacrando-os, ali se constituía um cenário, de desproteção

social radical, que fazia do detento o homo sacer, a figura do

banido da ordem social e jurídica na Roma antiga, sem no

238 Citado em CAROLINA KORETZKY, “La mémoire du cauchemar”, in: Le Diableprobablement, ANAËLLE LEBOVITS (ed.), Paris: Verdier, 2007, p. 36.

279

Page 280: Tese para IFCS

entanto ser expulso da cidade, a quem se podia matar sem

cometer o delito de homicídio.239

E essa condição perecível, contingentemente vivo, é

mesmo a do vivente, se ele for considerado como meramente

vivente, dotado do que Agamben - na esteira de Hannah Arendt

e, ambos, em conexão com a “vida fática” tematizada por

Heidegger - chama de “vida nua”. Vida humana, propriamente, é

vida revestida de sentido, capaz de tornar suportável a

consciência que temos os humanos de podermos não ter sido e a

qualquer momento podermos não mais ser ou sermos acometido

por uma ameaça ao nosso ser, finito, contingente. E esse

sentido da vida nós adquirimos ao termos nossa história

pessoal inserida em uma história comum a outros, que nos

antecede e irá, também, nos suceder. Relatos, narrativas,

rememorações – assim como também as comemorações – se prestam

para manter esses vetores de sentido comum, de comum-unidade.

A desumanização, portanto, é o que ocorre quando não se

dispõe mais desses vínculos, e eles foram dissolvidos com a

substituição da vida em comunidade por aquela em sociedade,

239 Giorgio Agamben, Homo sacer, I. O Poder Soberano e a Vida Nua, trad.HENRIQUE BURIGO, 2ª. ed., Belo Horizonte: EDUFMG, 2010.

280

Page 281: Tese para IFCS

atomizada, composta de sujeitos individualizados, tidos como

autônomos e independentes, que não têm mais nada a dizer um

ao outro que não seja pautado pela realização de interesses,

pessoais.

Daí que hoje chegamos a essa situação em que a

preocupação maior é com a manutenção da vida biológica de

cada um, donde a importância de que haja riscos a serem

combatidos, como o de contrair doenças, ser vítimas de

catástrofes naturais, ou também daquelas sociais, como a

criminalidade, a fim de assim se justificar o poder político

governamental, nos quadros do que Foucault tão bem qualificou

de “biopolítica”. A vida em sociedade é tida como

permanentemente ameaçada e do que se trata é de defendê-la,

sendo o sentido que nos oferecido para vivê-la aquele de

mantê-la e só, sabendo que em algum momento, e a qualquer

momento, se vai perdê-la. Ora, por melhores que sejam as

condições materiais que se tenha para viver assim a vida, ela

não deixa de ser mesmo, como no pesadelo de Primo Levi, uma

vida sujeita às condições, sociais, do campo. Eis como o

campo se revela, tal como postula Agamben, o paradigma atual

281

Page 282: Tese para IFCS

da política, e política aqui entendida mesmo no sentido

antigo, de vida social: a vida do campo, de concentração, em

lugar da vida no campo, bucólica, comunitária.

A literatura testemunhal, como a designação está a

indicar, tem uma função como que jurídica a cumprir, no

sentido de apresentar um testemunho em um processo, um

processo em que humanos são acusados de praticarem contra

outros o crime de não reconhecê-los como tais, humanos,

apesar de desiguais, como ao fim e ao cabo somos todos

mesmos, uns dos outros, seres singulares que somos. E o

testemunho evoca mais precisamente essa singularidade da

experiência de uma situação radicalmente singular, donde a

posição do sonho se mostrar de maneira tão destacada, como

aqui referido, pois é sonhando que, mais do que acordados,

temos essa experiência, de viver em um mundo todo próprio,

imprevisível, e que a qualquer momento acaba, inexorável e

definitivamente. Relatar o sonho de viver em liberdade, fora

do campo de concentração, quando lá se está; relatar o

pesadelo de viver em um campo de concentração, mesmo quando

se está vivendo em liberdade; relatar o pesadelo de ter

282

Page 283: Tese para IFCS

vivido em um campo de concentração; relatar o sonho de não

mais viver como se estivesse em um grande campo desses: eis

as funções propriamente literárias do testemunho, sendo a

literatura, a narrativa, de serem entendidas, assim, como

meios empregados para fazermos uma costura, um texto, da vida

de que dispomos, pessoalmente, com a de outros que da mesma

forma a possuem, em condições que assim vão se revelando

similares, afins.

Ela é, desde sempre, como defende Derrida em sua

“Gramatologia”, escritura e, antes disso, inscrição,

"inscritura", marcas como as que nossos antepassados mais

remotos deixaram em paredes de cavernas onde co-habitaram, as

quais lhes permite fixar acontecimentos do passado, comemorá-

los, projetando-se para além da dimensão natural, na dimensão

temporal; marcas que lhes re-(a)presentavam uns para os

outros, às quais associaram certos sons, fixando-os, e

atribuindo, os sons e suas marcas, aos sujeitos falantes,

dando-lhes nomes, como às coisas. E esses nomes, se muitas

vezes identificavam os sujeitos com as coisas, os

diferenciava entre si, ao mesmo tempo em que estabelecia

283

Page 284: Tese para IFCS

ligações entre eles, a filiação, por sua "nomeação", com o

caráter vinculante da lei, do direito.

Ao mesmo tempo, a natureza em si mesma repressiva da

escritura, especialmente aquela fonética, com alfabeto, é

discutido por Derrida na referida obra, contestando os “Tristes

Trópicos” de Lévi-Strauss: "Mais racional, mais exata, mais

precisa, mais clara, a escritura da voz corresponde a uma

melhor polícia. Mas, na medida em que ela se apaga melhor do

que qualquer outra diante da presença possível da voz, ela se

representa melhor e lhe permite ausentar-se com o mínimo de

danos.(...) Pois a sua racionalidade a afasta da paixão e do

canto, isto é, da origem viva da linguagem.(...)

Correspondendo a uma melhor organização das instituições

sociais, também dá o meio de dispensar mais facilmente a

presença soberana do povo reunido".240 A representação

abstrata através da escrita é empregada na elaboração de

normas jurídicas na forma de decretos redigidos por

representantes políticos que "falam", i.e., escrevem,

enquanto os representados "emudecem", i.e., lêem. Nessas

240 Gramatologia, trad. RENATO JANINE RIBEIRO e MÍRIAM SCHNEIDERMAN,São Paulo: Perspectiva, 1973, pp. 368/369.

284

Page 285: Tese para IFCS

condições, "o corpo político, como o corpo do homem, começa a

morrer desde o nascimento, e traz, em si mesmo, as causas de

sua destruição" (Rousseau, "Du contrat social", Livro II, cap.

XI, apud Derrida, ob. cit., p. 363). É assim que podemos

partir também de uma idéia, colhida em Derrida, que a foi

recolher em Rousseau, no “Ensaio sobre a Origem das Línguas etc.”, a

qual iremos em seguida desenvolver, apresentando uma outra

forma de situar a origem do que é mais propriamente humano,

isto é, o social, o político, moral, jurídico etc. – em uma

palavra o cultural ou simbólico – nas paixões, nos afetos, no

corpo, enquanto corpo marcado pela diferença entre desejo

(humano) e necessidade (animal), diferença instituída pela

“letra da lei (não-escrita)”.

O corpo sempre foi um lugar privilegiado na demonstração

e revelação do poder social vigente, de “inscritura” daquela

letra e da marca de que estamos aqui a tratar. São clássicas

já as teses expostas pelo etnólogo Pierre Clastres em "La

société contre l'État", quando considera os rituais de passagem e

iniciação das sociedades pré-estatais, ditas "primitivas"

(melhor: primevas) - que normalmente envolvem alguma forma de

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Page 286: Tese para IFCS

mutilação ou "investida" dolorosa sobre o corpo do seu

paciente, tatuando-o, queimando-o, cortando-o -, como uma

forma de inscrição no corpo de cada um das leis da

comunidade. "La letra con sangre entra", costumavam dizer os

pedagogos inquisitoriais na Espanha. As cicatrizes deixadas

pela ação disciplinar são sinais exteriores da dor uma vez

sofrida interiormente, marcas indeléveis também na memória,

constitutivas mesmas dessa memória, tão diversa daquela dos

computadores, meramente armazenadora de informações. Essas

marcas se prestam à identificação mútua dos que a possuem

como membros de um mesmo grupo social e fundamentalmente

iguais entre si, sem que um seja melhor ou pior do que o

outro, donde não poder nenhum pretender dominar o(s) outro(s)

– mas tão somente a outros que sejam efetivamente isso,

outros.

Bem diferente, então, seriam as coisas em

sociedades já mais "evoluídas", letradas, não mais

igualitárias, e sim com predomínio de um pequeno grupo

sobre os demais membros, onde já se tem a escritura das

leis em rochas, tábuas, moedas e, finalmente, papel. Seja

286

Page 287: Tese para IFCS

como for, fica mais uma vez registrada a origem violenta de

toda proibição, tanto sagrada, como jurídica, que garante

nossa vida em sociedade, sustentada pelo enfrentamento da

morte, ou, na fórmula consagrada por Roger Caillois,241

condição da vida e porta para a morte.

Há de se recordar, assim, a origem violenta de toda

proibição, tanto sagrada, como jurídica, que garante a vida

em sociedade, sustentada pelo enfrentamento da morte. O

incremento da violência na sociedade “pós-moderna” não

poderá ser contida pelo reforço da proibição jurídica, mas

antes por uma consideração das conseqüências psicológicas e

sociais da secularização defendida pela ideologia oficial,

donde se verificar uma re-sacralização crescente das

relações fora das instituições religiosas, ou seja, em

seitas ou “tribos” (Maffesoli).242

241 Cf. El Hombre y lo Sagrado, 2ª ed., México: Fondo de CulturaEconómica, 1996 [1939]: cap. V, p. 147 ss.242 Cf., deste A., a respeito, de último, A República dos Bons sentimentos,trad. ANA GOLDBERGER, São Paulo: Iluminuras/Itaú Cultural, 2009,esp. p. 99 e seg.; v. tb. G. Balandier, “Antropologia e crítica damodernidade”, in: id., Antropo-lógicas, São Paulo: Cultrix/EDUSP, 1976, p.258 s.; G. Marramao, Poder e Secularização, São Paulo: EDUNESP, 1995.

287

Page 288: Tese para IFCS

Em épocas passadas, a comunidade se

mantinha íntegra pela referência a uma origem comum,

sacramentada por mitologias, religiões ou mesmo, mais

recentemente, por mundividências filosóficas. No presente,

o predomínio do pensamento científico e o correlato

processo de “desencantamento” do mundo, ao qual se refere

Max Weber, minam as bases sobre as quais tradicionalmente

se ergueram as diversas ordens normativas. A construção de

novas bases pressupõe uma recuperação de nossa capacidade

criativa de ficções justificadoras da existência e da co-

existência, ao mesmo tempo em que estejamos cientes do

caráter ficcional desse empreendimento, cujo resultado é a

afirmação de valores. Para isso, vamos precisar de uma

aproximação entre as mais diversas formas de criações

desenvolvidas pelo engenho humano, entendidas assim como

diferentes formas poéticas, a saber, para além da

literatura propriamente dita, as artes, mitologias,

religiões, filosofias e mesmo as ciências, bem como aquela

dentre elas que nos sanciona mais severamente, do ponto de

vista social, a conduta, a saber, o direito. Caberá ao

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direito solidificar essa invenção ou ficção coletiva,

criando e estabelecendo valores, impondo-os mesmo, em busca

de garantir as condições de manutenção da vida em comum, a

vida humana.

12. Padecendo e Transformando a Lei na Vida e no Corpo (com

Kafka)

Em uma das anotações em seu Diário, Kafka deixou

indicado que escrever para ele seria como praticar um jogo

com o leitor e consigo mesmo, a fim de se salvar da morte por

este “recurso à arte” (Kunstaufwand), o qual permite ao autor

vivenciar mais, em seu mundo artístico, do que na vida

concreta, ao criar situações de possibilidades abertas,

criando assim a sensação de poder realizar a constante

transmutação (Verwandlung) que é inerente à vida. Contudo,

para Kafka, no ato de escrever o autor transmutar-se-ia em

alguém “ morto em vida” - assim como Gregório Samsa, no

espaço literário -, já que ele não vive em um mundo real,

289

Page 290: Tese para IFCS

maas sim em unm outro, mais agradável, por ser de pura

fantasia. 243

Só nesse sentido é que caberia aquiescer com o dito

saramaguiano, de que tudo o que não é vida é literatura, pois

de outro modo maior razão teria a indígena Sarah Pataxó, para

quem, em seu texto “A literatura vem da raiz”, “literatura é

entender o amanhecer, acompanhar o entardecer e adormecer com

o anoitecer; literatura é a vida com seus acontecimentos”,

(pois) “já acordamos com a literatura: o dia, o sol, o vento,

o canto de um pássaro, a história que minha mãe conta, o

acordar do corpo, o olhar de uma criança, de um parente”. 244

Em um dos “Aforismos” de Kafka, o de número 13, dentre

os escritos entre 19 de outubro de 1917 e 26 de fevereiro de

1918, em Zürau, na casa de sua irmã Otla, lê-se o seguinte:

“Um primeiro sinal de início do conhecimento é o desejo de

243 Cf. FRANZ KAFKA, Tagebücher 1910 - 1923, MAX BROD (ed.), in:Gesammelte Werke in Einzelausgaben, Frankfurt a.M./Hamburg: Fischer,1954, p. 448 s. Para um maior desenvolvimento deste aspecto, v.WILLIS SANTIAGO GUERRA FILHO, “Poder, Impotência e Morte na obra de Canetti eKafka” in: O Saco. Revista Lítero-musical, n. 8/1, Fortaleza, 1988, p.34 s.244 In: Revista Tabebuia: Índios Pensamento Educação, BeloHorizonte: Curso de Formação Intercultural de Educadores Indígenasdo Núcleo Transdisciplinar de Pesquisas Literaterra - FIEI/UFMG,2009, p. 166 s.

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Page 291: Tese para IFCS

morrer. Ein erstes Zeichen beginnender Erkenntnis ist der Wunsch zu sterben.

Esta vida se mostra insuportável, uma outra, inatingível.

Dieses Leben scheint unerträglich, ein anderes unerreichbar. Não se sente

mais vergonha de querer morrer; pede-se para ser levado da

velha cela, que se odeia, para uma nova, que se vai ainda

aprender a odiar. Man schämt sich nicht mehr, sterben zu wollen; man

bittet, aus de alten Zelle, die man hat, in eine neue gebracht zu werden, die man

erst hassen lernen wird. Um resquício de fé exerce aí sua

influência, quando durante o transporte o Senhor por acaso

passa pelo corredor, vê o prisioneiro e diz: ‘Este vocês não

devem trancafiar de novo. Ele vem para mim’. Ein Rest von Glauben

wirkt dabei mit, während des Transportes werde zufällig der Herr durch den Gang

kommen, den Gefangenen ansehen und sagen: ‘Diesen sollt ihr nicht wieder

einsperren. Er kommt zu mir’”.

Um dos principais especialistas em Kafka, Walter H.

Sokel, em Simpósio comemorativo do centenário de nascimento

do Autor, em 1983, realizado em Mainz, valeu-se desse

aforismo para defender a tese, já sustentada anteriormente

por Erich Heller e Harold Bloom, dentre outros, de ser o

gnosticismo de onde Kafka obteve a inspiração para escrevê-

291

Page 292: Tese para IFCS

lo, e especificamente aquele de Marcion, onde se encontra a

metáfora da prisão cósmica em que o Deus (mal) criador deste

mundo (mal) nos deteria, e o outro Deus, o bom, poderia nos

libertar.

Que espécie de conhecimento é este que começa quando se

deseja a morte, e o que é isso, desejar morrer? Começando

pela segunda indagação, há que se diferenciar o querer morrer

do querer se matar, ou seja, a postura passiva de anelar a

morte, por ter se tornado insuportável a vida, a “cela” em

que se vive, mas sabendo que assim como não foi por decisão

nossa que viemos à vida, também não nos é dado escolher sair

dela - no máximo, podemos buscar ser transportado a uma outra

mantendo no fundo a fé de, pelo caminho, por acaso, encontrar

a salvação, a redenção -, em contraste com aquela ânsia de

poder acabar com a prisão, praticando um último ato na vida,

o de acabar com ela, como se ao invés de sermos dela, ela

fosse nossa (eis uma noção de propriedade que está no cerne

mesmo de nossa subjetividade, aquela em que ser proprietário

é ter o poder de destruir o que se possui ou, como diziam os

antigos romanos, disso poder “usar, dispor e abusar”).

292

Page 293: Tese para IFCS

Já o conhecimento que dá sinal de começar quando se

sente esse desejo de morrer ou, o que seria o mesmo, desejo

de mudar de vida, de “cela”, que é também desejo de se pôr a

caminho, de ser transportado, aventurar-se – o qual tantas

vezes aparece nos escritos de Kafka representado pela

cavalgada, como nas narrativas breves (Erzählungen) “Desejo de

virar Índio”, “A Partida”, “A Próxima Vila” (aliás, em uma

anotação dos seus Diários, de 18.01.1915, Kafka refere-se a

histórias suas, inacabadas, como cavalos, mas de circo, e o

personagem de seu primeiro romance, o primeiro K, Karl, tem o

sobrenome de Roßmann, que se pode traduzir como “homem

cavalo”) -, esse conhecimento é o que, a um só tempo, faz com

que se possa escrever, bem, de verdade, e igualmente, pela

escritura (como pelas Escrituras?), conhecer, bem, de

verdade, a si e ao mundo em que estamos presos, ainda que, às

vezes, em regime de sursis – mais uma vez, nota-se como estamos

impregnados, ontologicamente, de concepções jurídicas, tal

como se fossem categorias transcendentais que delimitam nossa

possibilidade de sermos, o que também é um dos fios

condutores (Leitmotiven) da obra de Kafka, presente de maneira

293

Page 294: Tese para IFCS

exemplar nos dois romances da maturidade, O Processo, com o

protagonista Joseph K. que não sabe do que é acusado, e O

Castelo, cujo protagonista, K., é um agrimensor que não

consegue fazer valer a sua contratação (de resto,

inexplicável mesmo, em uma sociedade que se organiza de

maneira feudal em torno de um modo de apropriação do trabalho

e da terra que não se coaduna com contratos de trabalho e

divisão da propriedade). Também na novela mais famosa, A

Metamorfose, se tem uma situação de alguém repentinamente

incapacitado para o trabalho que é sumariamente demitido (o

que também se pode entender como sumariamente condenado, tal

como em A Sentença), trabalho que lhe era insuportável, mas que

fazia para sustentar a família, e sem que seus membros

trabalhassem, ou seja, sem que tivessem obrigações com o

mundo exterior. Ora, em todos os textos até agora referidos o

desfecho, já desde o início prenunciado, configurado, é a

morte do personagem principal – ou é a morte o personagem

principal -, e que, a um só tempo, é e não é a do seu criador

mesmo - ou, a um só tempo, é e não é o seu criador mesmo -,

o escritor, transfigurado em personagem e em personificação

294

Page 295: Tese para IFCS

da morte, tendo aprendido a falar de si deixando de dizer

“Eu”, para escrever “Ele” – Er, o título das “Anotações”

(Aufzeichnungen), escritos imediatamente após os “Aforismos”,

em 1920, após o diagnóstico condenatório, e que tanta

correlação guardam entre si. “Ele”, o “je” (eu) que “est un

autre” (é um outro), segundo Rimbaud, na literatura de Kafka

será “K.”, “Joseph K.”, “Gregor Samsa”, o inseto d’A

Metamorfose, um outro K, por ser um Käfig, que aparece por

diversas vezes nos esboços de Kafka, como naquele que refere

ao inseto que sai a passeio em busca de um passarinho...para

devorá-lo, como o gato que devora o rato, na Pequena Fábula,

sendo que agora o K é o gato (Katze).

Eis que a literatura fornece essa possibilidade de

experimentar o próprio desaparecimento, a própria morte,

ainda em vida, fornecendo um poder que é de todo diverso

daquele poder que, segundo Canetti (provavelmente inspirado

em suas leituras e estudos de Kafka, de quem se reconhece ser

um descendente espiritual e a quem considerava dentre todos e

de tudo o que melhor conhecia a natureza do poder), é o poder

do opressor, do “detentor de poder” (Machthaber), pois se a

295

Page 296: Tese para IFCS

fonte deste poder seria a sobrevivência à morte dos outros, a

do poder da literatura seria a sobrevivência à própria morte.

Assim, enquanto uns se iludem com o poder que imaginam ter,

por ter a vida de outros em suas mãos, ou mesmo por vê-la se

acabar enquanto permanecem vivos, o escritor, ao produzir um

mundo ilusório, assumidamente ficcional, tendo reconhecido

sua impotência diante da vida e da morte, desejando a morte

como parte da vida e, portanto, sem desejar acabar com a

própria vida, adquire frente à morte uma posição de

superioridade - de soberania, diriam Bataille e Blanchot,

conscientes da relação de origem, genealógica, que guarda uma

tal noção com a instância suprema onde se situa a própria

divindade, o “Senhor” (der Herr) do Universo (e Her/r/mann, vale

lembrar, era como se chamava o pai de Kafka, o

“senhor/homem”, que personificava para ele essa instância de

poder opressor, contra quem e contra o que escrevia).

Viver contente, para um mortal, só será verdadeiro se

estiver(mos) pronto(s) também para morrer(mos) contente(s),

sem se considerar injustiçado por ter de morrer, pois também

não tinha – e nem tem - de viver. Mas para quem, como Kafka,

296

Page 297: Tese para IFCS

conforme diversas vezes declarou ou escreveu em seu Diário, a

sensação era de ainda não ter propriamente nascido, vindo à

vida, para então poder, também, morrer, a literatura dava

essa possibilidade, de encenar a morte injustificada dos que

não estão propriamente vivendo, dos que, como ele, não chegam

a viver de verdade, mas que, à diferença dele, não sabem

disso, e se revoltam – isso, em geral, na sua ficção, pois,

na realidade, a tendência é a se conformarem, como se

encontrava conformado Gregório Samsa, antes de sua

“transformação”, n’A Metamorfose (Die Verwandlung, isto é, “A

Transformação” ou “Transmigração”, considerando que Wandlung

é “migração”).

Em se tratando da produção literária de Kafka, estamos

diante de obra que como poucas vem se prestando a tantas

interpretações, e das mais diversas conotações, além daquela

estritamente literária: religiosa, política, psicanalítica,

jurídica, filosófica etc. Isso pode ser explicado, como o faz

Gershom Scholem,245 pelo enraizamento profundo de Kafka na

tradição do misticismo judaico, o qual, sem negar o

245 A Cabala e seu Simbolismo, São Paulo: Perspectiva, 1978, p. 20,passim.

297

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significado transmitido pelas autoridades, procura revelar

novas e infindáveis camadas de significação da palavra

escrita em nome do Infinito.

Dentre esses textos, merecem destaque os textos-curtos,

as Erzählungen, como aquelas antes referidas, muitas com apenas

um pequeno parágrafo (como é o caso da maravilhosa “Desejo de

virar Índio”), mas de grande densidade cognitiva e, também,

teatralidade, tanto que o consagrado filósofo e crítico

literário, Walter Benjamim - um dos primeiros a reconhecer o

valor dessa obra, juntamente com seu amigo há pouco referido,

Gershom Scholem -, os denominou de “contos de fada” (Märchen)

para cabeças dialéticas. E nesse mesmo texto, publicado por

ocasião da primeira década de falecimento de Kafka, Benjamin

anota que toda sua obra “representa um código de gestos, cuja

significação não é de modo algum evidente, desde o início,

para o próprio autor; eles só recebem essa significação

depois de inúmeras tentativas e experiências, em contextos

múltiplos. O teatro é o lugar dessas experiências”. De fato,

a fortuna crítica posterior identificou no teatro iídiche,

que Kafka tanto admirava, a origem dos gestos e posturas que

298

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retrata em sua obra: gestos curtos, enfáticos e reiterativos,

o canto monótono, os ruídos súbitos, a situação do ator em

relação à platéia, esforçando-se para ser aceito e

prestigiado, por exemplo. No texto da palestra que proferiu

sobre o teatro iídiche, Kafka deixou registrado o que tanto o

atraia nele, além do simples fato de ser como um templo da

arte judaica, ao qual ele queria se devotar: lá havia “tudo

reunido, drama, tragédia, canto, comédia, dança tudo junto,

(em suma) a vida!” (no original: “alles beisammen, Drama, Tragödie,

Gesang, Komödie, Tanz alles beisammen, das Leben!”). Em uma anotação

de 25 de dezembro de 1911, referida tanto por Deleuze e

Guattari no livro que escreveram sobre Kafka, como, entre

nós, por Enrique Mandelbaum,246 nosso A. detalha as vantagens

que o contato com o teatro iídiche e a literatura judaica o

teriam mostrado no trabalho literário, incluindo a

possibilidade de debater a oposição entre pais e filhos, como

fará de maneira explícita na “Carta ao Pai”, que o

especialista por último referido considera “um dos documentos

mais importantes do século XX” (ib., p. 151), destacando

246 Cf. Franz Kafka: um judaísmo na ponte do impossível, São Paulo:Perspectiva, 2003, p. 144.

299

Page 300: Tese para IFCS

passagens em que a queixa contra o pai se centra em sua falha

na transmissão de orientações seguras, com base na tradição

cultural em que se inserem – no caso, aquela judaica.

Daí ser o sentido um dos temas centrais de sua obra, ou

melhor, a perda dele, do sentido de nossas vidas, na vida

moderna, com a perda das crenças tradicionalmente

estabelecidas, e a nossa inútil busca de encontrá-lo,

recuperando essa crença. Donde decorre o aspecto religioso

que se encontra nos escritos de Kafka, e que seu primeiro

editor, o melhor amigo, Max Brod, tanto enfatizava, por ser

ele próprio um crente, enquanto Kafka, ao que supomos, até

gostaria de ser, mas não conseguia, e quando escrevia deixava

transparecer essa sua impotência fundamental, tentando

transformá-la, pela escrita, em uma (nova) forma de poder.

E eis que mencionamos uma palavra-chave, a palavra-

título do texto mais conhecido de nosso autor: Transformação

(“Metamorfose” – Verwandlung). Na verdade, na palavra

original, não há referência à “forma”, como há em

“metamorfose”, que deriva de “morphé”, “forma”, em grego,

significando, portanto, justamente, “trans (metá) – formação

300

Page 301: Tese para IFCS

(morphoseon)”. A tradução mais próxima da palavra original,

“Verwandlung”, seria “transmigração”, pois “wandeln” é

“migrar”. E esse é um tema recorrente em Kafka, o da

emigração, abordado da maneira mais explícita em seu primeiro

romance (?), “América”, mas também em textos centrais, como o

“Diante da Lei” (Vor dem Gesetz), publicado autonomamente, mas

que é colocado como uma explicação para “O Processo”, dentro

deste que é talvez o mais conhecido dos romances de Kafka. E

é nesse último texto que entendemos encontrar uma chave de

explicação para a própria literatura de Kafka como um todo.

Lá, um homem do campo emigra em busca de “entrar na Lei” - em

busca de sentido, portanto – e esbarra diante da porta de

entrada, inibido pela presença lá do que entende ser um

guardião, a quem deveria solicitar a entrada “na Lei”, na luz

(que brota da porta entreaberta). Trata-se de uma parábola e

é essa a forma privilegiada de expressão de Kafka, ainda que

empregada em sentido oposto ao que costuma ser empregada, que

é o de transmitir uma “mensagem”, pois em Kafka a parábola

expressa a impossibilidade de captarmos o sentido da

mensagem, como fica bem evidenciado em textos seus em que

301

Page 302: Tese para IFCS

fala de parábolas que misturam a ficção com a realidade (Von

den Gleichnissen) e de mensagens que nunca chegam a seu

destinatário (Eine kaiserliche Botschaft). Ora, ao final da

“parábola” que foi contada a Joseph K., por um capelão, para

explicar porque estava sendo processado sem saber a acusação,

ficamos sabendo que aquela era a porta de entrada exclusiva

do emigrante na Lei, o que nos permite supor ter ele se

equivocado ao solicitar, formal e burocraticamente, sua

entrada no lugar para onde pretendia emigrar, transmigrar,

ficando, por assim dizer, a meio-caminho...

Essa é a condição em que nos encontramos, de estranhos

na própria casa, exilados na própria terra, expropriados da

própria vida, alienados do próprio corpo, representada com

toda clareza em “A Metamorfose”. Esse caráter

“desterritorializado” da literatura de Kafka foi destacado

pelo filósofo Gilles Deleuze, no livro que sobre ele

escreveu, em parceria com o psicólogo Felix Guattari, no qual

a classifica como uma literatura “minoritária”, enquanto

produzida por alguém que pertence a um grupo minoritário, o

qual não pertence, propriamente, ao corpo social maior no

302

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qual se encontra instalado. Daí o recurso quase judicial a

uma escrita que postule uma admissão, pelo emprego da

linguagem na forma escrita, o que a torna sempre,

necessariamente, politizada, mesmo quando expressa, como é o

caso do texto de Kafka, uma nostalgia por uma época mítica,

pré-histórica, em que todos sabiam como se portar, sem que

precisassem ser a isso constrangidos, por determinações

legais, expressas em disposições escritas, que também se as

houvessem não seriam mesmo sequer entendidas...

Tanto o escritor Vladmir Nabokov como o mitólogo Roberto

Calasso,247 ao se referirem a esse texto, destacam a presença

ali de portas, uma para cada membro da família, que se fecham

dentro da própria casa, e que entreaberta deixa ver por entre

a fresta uma luz redentora, que vem da sala de estar, onde

soa também uma música que em um estado transformado,

transfigurado se pode apreciar como antes não se podia e nem

se pode, no estado normal.

Quanto à classificação do texto como uma novela, se deve

mais à suas proporções, pois se trata de uma narrativa como

247 K., São Paulo: Cia. Das Letras, 2006, p. 146 ss.

303

Page 304: Tese para IFCS

outras tantas daquelas curtas que nosso A. escreveu, mas que

“cresceu”, “transformou-se”, não chegando ao ponto de se

tornar tão grande como um romance, sendo que mesmo aqueles

que se diz teria Kafka escrito não têm a natureza

propriamente romanesca, se considerarmos que em obras assim

somos informados de maneira mais acurada e completa sobre as

circunstâncias envolvendo a narrativa e seus personagens, de

molde a fornecer um quadro explicativo que, nas obras de

Kafka, justamente, é que nos falta, como na própria vida,

especialmente aquela desenraizada que levamos, ali onde a

vida moderna é mais intensa, ou seja, nas grandes cidades.

É essa proximidade com a vida em seu fluxo normal

descontínuo e enigmático, mesmo se banal, que aproxima o

texto de Kafka daqueles que se produz contemporaneamente para

o teatro. Daí em um seu famoso texto, publicado por ocasião

da primeira década de falecimento de Kafka, Walter Benjamin

anotar que toda sua obra “representa um código de gestos,

cuja significação não é de modo algum evidente, desde o

início, para o próprio autor; eles só recebem essa

significação depois de inúmeras tentativas e experiências, em

304

Page 305: Tese para IFCS

contextos múltiplos. O teatro é o lugar dessas experiências”.

É que Kafka percebeu o quanto padecíamos da alienação do

próprio corpo, por força das idéias, em que tendemos cada vez

mais a nos tornarmos, deixando de ser reais, animais. O

retrocesso à animalidade, apresentado no texto ora em exame,

na verdade mostra-se como uma estratégia de recuperação da

sensibilidade, diante das condições de vida brutais,

brutalizantes, tal como são aquelas da vida em sociedade,

especialmente ali onde ela se torna mais social, no sentido

originário, jurídico, do termo, que remete a uma vinculação

contratual, a qual se escolhe fazer e se faz sem maiores

considerações do que aquelas resultantes de um cálculo de

vantagens, sobretudo da expressão econômica, financeira, do

negócio. É a negação dessa negação do ócio contra o que

reage, corporalmente, a personagem da “metamorfose”.

Outro aspecto fundamental a ser destacado está

relacionado ao que se pode denominar de “consciência

corporal”. Kafka percebeu muito bem nosso descolamento do

próprio corpo. Daí haver tanto em sua obra animais em

integração com os humanos, ou humanos transformando-se em

305

Page 306: Tese para IFCS

animais – e vice-versa. Isso implica uma recuperação daquela

dimensão que foi esquecida, por influência da dominação

política que se abateu sobre a Grécia e todo o mundo então

conhecido - ou melhor, já em contato -, oriunda de Roma,

reforçada posteriormente pela religião monoteísta, ainda mais

repressiva, que se aliou ao império romano sob o qual

padecera o seu fundador. Trata-se da dimensão corpórea da

vida, que á a dimensão originária, pois é no corpo que se

enraíza a consciência produtora dos pensamentos que formam a

filosofia, assim como o que chamamos de “eu”.

O corpo, portanto, é hoje referente privilegiado da

subjetividade, enquanto condição imprescindível para a vida e

sua compreensão, posto que ele é a face aparente da essência

do ser encarnado e vivo, donde conhecê-lo ser visto como

fundamental para se ter uma experiência existencial

significativa, mas ele não pode ser visto como única condição

para tanto, até porque o corpo que temos nós não o temos

propriamente, pois melhor seria dizer que nele estamos, uma

vez que (1) não temos disponibilidade sobre ele, de onde nos

advém necessidades como o sono e a fome, e também desejos ou

306

Page 307: Tese para IFCS

mal-estar, tanto físico como psíquico; e (2) ele é formado e

conformado na convivência com outros sujeitos e seus corpos,

sendo dessa convivência que extraímos nossa concepção do que

pode o corpo, para dizer com Spinoza. Daí a importância de se

propiciar uma aproximação entre corpos para constituir a

experiência do sujeito coletivo que se forma em um corpo

coletivo, a que se referia Lygia Clark, quando propunha

experimentos artístico-terapêuticas em que os participantes

poderiam se dissolver, dissolver o seu si-mesmo (self) em uma

tal configuração.

Para muitos o corpo é uma representação provisória, um

lugar ideal para testar coisas diversas sobre e para si, e já

que não é possível modificar as condições existenciais,

altera-se o corpo por meio de operações cirúrgicas,

exercícios extenuantes e muitas outras maneiras. Como afirma

Le Breton,248 o corpo é apenas o suporte para compor uma

(bio)identidade que é momentânea. Nesses termos, produz a

ilusão de que mudar o corpo significa mudar a vida.

248 Conduites à Risque.Paris: Presses Universitaires de France, 2002.

307

Page 308: Tese para IFCS

O que se pretende, ao aproximar a filosofia e o teatro,

por meio da literatura de Kafka, é justamente uma inversão

desse processo, trabalhando no sentido da mudança das

condições existenciais por meio de sua melhor compreensão,

graças a uma experiência coletiva de encenação.

O modelo do homem metamorfoseado, antevisto por Kafka,

oferece uma alternativa de identidade para o sujeito que pode

ser avaliada positivamente. As transformações corporais nesse

caso não visam a uma forma única e ideal. É uma espécie de

exercício de si, encaixe e desencaixe de peças diversas que

possam trazer satisfação em dado momento. O problema desse

modelo é se ele for levado ao extremo. Acreditar que é

possível aparelhar o corpo de forma a não adoecer, não

envelhecer ou não morrer é uma quimera, pelo menos para um

futuro próximo. Por outro lado, as possibilidades de invenção

de sujeito em relação ao corpo são restritas, pois esse é um

referente concreto que tem alternativas limitadas de ação.

Portanto, há contornos que não podem ser ultrapassados em

relação ao corpo, e eles não devem ser ignorados.

308

Page 309: Tese para IFCS

Tudo o que se faz, pelo simples motivo de em assim

agindo ter-se prazer – desde as coisas tidas como mais

simples, desde comer e fazer amor, conversar e fazer

amigos, até as mais sofisticadas, como a arte e a ciência,

passando por aquelas em geral condenáveis moralmente, como

a busca da glória, do poder, de dinheiro, drogar-se,

cometer crimes – não passa de tentativas vãs de ocultarmos

de nós mesmos nossa falta de ser, preencher ou ornamentar o

vazio fundamental que somos nós: negar isso, eis o mal

radical.

O sofrimento de existir é considerado melhor do que o

nada de não existir. Mas se constatamos que existindo já

somos esse nada? Eis o fato aterrador que a todo custo se

tenta escamotear, por não assumi-lo com todas as suas

conseqüências: o de que nós não existimos sempre nem existiremos para

sempre. Por que este que nos parece o estado normal, o de

não-existência, que é o estado de ser, assim, definitiva e

eternamente, é o estado considerado excepcional e associado

ao mal? Em ética, o bem não é a regra e o mal, a exceção?

Estar vivo não é uma exceção? Então por que esta consideração

309

Page 310: Tese para IFCS

a priori de que estar vivo é que é bom e não estar vivo, mau?

Sofremos nessa vida e, em grande parte por isso mesmo, também

fazemos outros sofrerem, quando poderíamos muito bem usufruí-

la, sofrer menos, pois ela será tanto melhor se não lhe

adicionarmos o sofrimento extra de buscar um modo de ser, de

obediência rígida a regras universal e eternamente válidas,

que pressupõe um estado de ser que nunca alcançaremos em

vida, mas apenas após a morte: o de ser (ainda que seja nada)

para sempre. Daí ter A. Badiou afirmado que a ética é

niilista, por se basear na convicção de que “a única coisa

que pode verdadeiramente acontecer ao homem é a morte”,249 o

que a remete à inefabilidade do que é totalmente diverso,

denominação ética de Deus, instância decisória da morte, onde

se gera o mal: ética, “nome último do religioso como tal.”250

Eis a verdade fenomenal que temos diante de nós, sobre a qual

silenciamos, e em razão desse silêncio, de não se falar

nisso, não nos conscientizamos, propriamente, de nossa

situação existencial em toda a sua precariedade – e beleza. A

ética hoje requerida, portanto, não se refere a uma moral já

249 L´éthique. Essai sur la conscience du Mal, Paris: Hatier, 1993, p. 33.250 Id., ib., p. 23.

310

Page 311: Tese para IFCS

pronta, mas àquela que efetivamente já temos e que

confrontamos com a verdade fundamental de que toda moral é

invenção coletiva, geral, e também, em certa medida,

particular, individual, singular, feita para justificar nosso

desejo de preservar-nos a vida, a nossa e a dos outros, mesmo

sem que saibamos o porquê. Uma das reações a essa falta de

sentido da vida é escrever a respeito, fazer literatura,

sobretudo, modernamente, na forma do romance, reação de um

ser humano individualizado, voltado para seu interior. Uma

outra reação é aquela exteriorizada em comportamento de – e

em - grupos, cujos membros se identificam entre si por

seguirem os mesmos imperativos, indicando o sentido de como

devem agir para tornar a vida significativa, que então pode

ser a de justificá-la pela negação de grupos constituídos

diferentemente, em obediência a outros imperativos. Um

confronto típico entre tais grupos é aquele que se dá entre

os que continuam seguindo imperativos tradicionais,

imemoriais – e que, em verdade, são mantidos pela preservação

de uma memória coletiva –, com grupos que, justamente,

perderam este sentido comunitário de vida, como são aqueles

311

Page 312: Tese para IFCS

que se modernizam. A literatura como praticada por Kafka pode

então ser vista como uma forma de reatar o sentido da vida

coletivamente definido com base na transmissão de um legado

de experiências do passado, quando uma tal coletividade sofre

o ataque por parte de quem define o seu sentido da vida por

uma promessa de melhoria, no futuro. Pode-se, nesse contexto,

falar do conflito entre esses que fariam parte do que Paul

Virilio chama de “povos esperançosos” com os que, desse ponto

de vista, seriam “desesperançosos”: “O homem ocidental

pareceu superior e dominante apesar de uma demografia pouco

numerosa porque pareceu mais rápido”. Daí que a humanidade

“tenderá a se cindir exclusivamente em povos esperançosos (a

quem é permitido esperar pelo amanhã, pelo futuro: a

velocidade que eles capitalizam dando-lhes acesso ao

possível, isto é ao projeto, à decisão, ao infinito...) e

povos desesperançosos, imobilizados pela inferioridade de

seus veículos técnicos, vivendo e subsistindo num mundo

finito”.251 Ora, sendo o mundo, como o é, finito, assim como

nós mesmos, a esperança maior de sua continuidade e de nossa

251 Velocidade e Política, São Paulo: 34, 1996, p. 57, grifos do A.

312

Page 313: Tese para IFCS

continuidade nele, enquanto espécie, estaria justamente na

possibilidade de resistência contra o avanço de uma tal

cisão: justamente em auxílio a essa resistência é que viria o

testemunho dos que vão sendo excluídos, abandonados, por

superados, em sua forma lenta de viver, mas consentânea com o

ritmo de uma vida propriamente orgânica, pelos que se vivem

de acordo com um ideal técnico de superação de todo limite

posto a esta forma de vida, tal como se realiza nas máquinas

que produzem, mais duráveis – ou com durabilidade previsível

-, com maior capacidade de armazenar informações etc. Uma

literatura digamos, “impactante”, como a de Kafla, então, é

como um alarme que soa no momento em que seres humanos

voltam-se contra outros que insistem em permanecer humanos,

integralmente, - em “corpo e alma”, confrontados com a sua

finitude -, negando-os e, com isso, denegando-se.

Do que se trata, finalmente, na presente proposta de

estudo do direito, é de que se procure fazer uma

experimentação exploratória desses limites, a qual possa

reverter em benefício para os participantes do curso, pelo

avanço do conhecimento sobre o mundo em que vive e sobre si

313

Page 314: Tese para IFCS

mesmo, de um modo que integre (ou reintegre) os aspectos

intelectuais com aquele mais material, corpóreo, tendo como

fio condutor a obra literária de Franz Kafka, lida

devidamente, ou seja, como se lê peças teatrais, oral e

coletivamente, e de preferência com uma direção dramatúrgica,

“orfeônica”,tal como propôs e implantou entre nós Heitor

Villa-Lobos, de modo que e fez visível até o eclipse cultural

que se abateu sobre nós em princípios da década de 1960,

justo quando se colhia os melhores frutos dessa cultura. É

tempo de refazê-la.

Conclusões resumidas

O direito é visto, geralmente, como um mero instrumento

técnico, de controle do comportamento, da conduta humana, sem

concebê-lo também como tendo o ônus de se justificar, de

fundamentar o que apresenta como válido, para além da simples

referência a normas postas, porque é uma visão tecnicista do

direito a que predomina É preciso, então, implicar mais o

sujeito encarregado da interpretação e aplicação das normas

nesse processo, com sua vivência do drama que tem diante de

314

Page 315: Tese para IFCS

si. A orientação que hoje, pelo direito, se fornece, para a

conduta, em sociedades como a nossa, fundamenta-se no simples

fato de se fazer normas supostamente obedecendo a outras

normas, que já existem. Isso na medida em que nós numa

sociedade como a nossa, de uma maneira digamos assim,

bastante extraordinária na história da humanidade, não temos

mais um vínculo estabelecido entre nós a partir de algo como

a religião, tal como em geral tem se observado ao longo da

história, no passado, e ainda hoje no presente, em sociedades

ainda existentes e que se organizam de um determinado modo,

que justamente não é o modo das sociedades como aquelas

marcadas pela civilização ocidental do atual momento de sua

história, em que se verificou a ruptura do vínculo

tradicional entre o direito e uma esfera transcendente que o

justifique. Esta esfera justificadora, por definição, há de

ser transcendente, estar além (ou aquém) do que por ela se

justifica, e neste sentido, logo pensamos, ser também de uma

natureza religiosa, mas que pode não sê-lo.

Tanto é assim que, por exemplo, no nosso passado, ou no

passado desta civilização dita ocidental, o mais recuado, no

315

Page 316: Tese para IFCS

seu passado greco-romano, esta instância transcendente foi a

política, propriamente dita, enquanto a crença na

superioridade da cidade, de cidades inicialmente gregas e,

depois, Roma; e na outra vertente, formadora desta

civilização, na vertente judaico-cristã, a justificativa

estava na transcendência, aí sim, da própria divindade:

monoteísta, única, do Deus único, criador do universo, do

homem e, portanto, das suas leis fundamentais também

expressas muito bem no decálogo, nas dez normas dos dez

mandamentos, dos decalogoi (δεκάλογοι), dos dez ditos

transmitidos na tradição judaica através de Moisés e

supostamente enviados por Deus. Então é curioso que nós

terminamos produzindo na Modernidade a ruptura destes

vínculos do direito com qualquer forma de transcendência,

seja em termos estritamente religiosos ou em termos

teológico-políticos. O direito está, digamos assim, tendo que

se impor pelas suas próprias razões e a gente não pode

considerar satisfatório que a estas razões não se acrescente

alguma forma de convicção emanada daquilo que nós entendemos

se precisa prestar mais atenção atualmente, que é o próprio

316

Page 317: Tese para IFCS

sentimento ou a sensibilidade dos que estarão sujeitos a

estas ordenações, para que estas ordenações não sejam

percebida e, de fato, implementadas de uma maneira que

desconsidera a dignidade própria destes sujeitos. E é aí que

entendo tenhamos que desenvolver uma abordagem poética do

direito.

A Poética é uma disciplina filosófica que remonta a

Aristóteles, em seu Tratado da Poética, portanto deste que é

um dos autores do cânone filosófico padrão do pensamento

ocidental, sendo que desta obra o que restou foi sobretudo a

teorização sobre a tragédia. Penso que aí nós temos realmente

uma chave para ser utilizada também para reavaliar o

pensamento teórico, como um todo e, claro, igualmente do

campo do direito, considerando aquela faculdade um tanto

quanto desprezada tradicionalmente, que é a faculdade da

imaginação. E em sendo, portanto, o direito tido como uma

criação, tal como é próprio da nossa tradição, ou desta

tradição que se tornou mundial, a tradição ocidental, naquilo

que ela remonta também a sua outra vertente, além da grega ou

greco-romana, que é a vertente judaico-cristã, aí nós temos a

317

Page 318: Tese para IFCS

possibilidade justamente de uma “juspoética”, isto é, de uma

concepção “creacional” do direito, do direito como um produto

de uma criação que, se num primeiro momento, é tido como de

origem divina, atualmente, ou, ao longo de um processo

histórico, cortou ou perdeu este vínculo com esta origem,

assentando-se no próprio homem a fonte criadora, produtora do

direito. Ora, então o direito é “poiético” (em grego, poiesis,

produção inovadora, por oposição complementar a techné, a

técnica, pela qual no máximo se aperfeiçoa o que já está

dado) e, com o aumento da complexidade, tanto sua como

também, correlativa e mutuamente, do meio social em que se

insere, diria meu saudoso mestre dos estudos de doutorado em

direito na Alemanha, em Bielefeld, Niklas Luhmann, torna-se

“autopoiético”. Ele se nos aparece, assim, como o resultado

do emprego de um saber e de um poder de criação do homem e,

não apenas de mera reprodução, como seria o saber da mera

práxis, da técnica e da prática. Então é uma técnica-poética,

diríamos, em termos gregos (téchné poietiké). Porque nós sabemos

que, infelizmente, em Roma a técnica e a arte se confundiram

e se misturaram, inclusive numa palavra única que é ars,

318

Page 319: Tese para IFCS

“arte”, e o direito terminou sendo associado mais ao aspecto

técnico como ainda hoje o é, e menos a este aspecto, que eu

diria ser o aspecto original, e aqui podemos reivindicar

Vico, Giambatista Vico como um dos pensadores que são

tutelares, que são afiançadores desta idéia, quando remete à

obra de legisladores, inspirados como artistas, a produção do

direito em suas origens mitológicas. Ora, o que é um mito

senão uma criação artística com este conteúdo, com esta

conotação também religiosa, sobretudo a partir de um certo

momento, com a influência maior da escrita – eu sou dos que

privilegia a etimologia da palavra religio proposta por

Cícero, de relegere, ou seja, reler, observando

criteriosamente, doutrina previamente estabelecida por

escrito. Então, considera-se que é preciso pensar o direito,

novamente, de uma maneira em que ele se associa a estes

elementos essencialmente humanos, que são os elementos de

ordem poética, ficcional, mítico, religioso, todos eles

presentes na encenação teatral.

Em épocas passadas, a comunidade se mantinha íntegra

pela referência a uma origem comum, sacramentada por

319

Page 320: Tese para IFCS

mitologias, religiões ou mesmo, mais recentemente, por

mundividências filosóficas. Há de se recordar, contudo, a

origem violenta de toda proibição, tanto sagrada, como

jurídica, que garante a vida em sociedade, sustentada pelo

enfrentamento da morte. O incremento da violência na

sociedade “pós-moderna” não poderá ser contida pelo reforço

da proibição jurídica, mas antes por uma consideração das

conseqüências psicológicas e sociais da secularização

defendida pela ideologia oficial, donde se verificar uma

re-sacralização crescente das relações fora das

instituições religiosas, ou seja, em seitas ou “tribos”

(Maffesoli). Seja como for, fica registrada a origem

violenta de toda proibição, tanto sagrada, como jurídica,

que garante nossa vida em sociedade, sustentada pelo

enfrentamento da morte, ou, na fórmula consagrada por Roger

Caillois, condição da vida e porta para a morte.

Afinal, somos uma ilusão de ser, pois apenas

estamos, existimos, não somos realmente, já que ser é ser

para sempre. Se somos, somos nada. É esse nada, esse vazio

interior, que nos horroriza, por mais que o evitemos,

320

Page 321: Tese para IFCS

quando com ele nos deparamos, ao pensarmos com radicalidade

nossa existência e verificamos o que somos: não-ser, mera

existência. No presente, o predomínio do pensamento

científico e o correlato processo de “desencantamento” do

mundo, ao qual se refere Max Weber, minam as bases sobre as

quais tradicionalmente se ergueram as diversas ordens

normativas. A construção de novas bases pressupõe uma

recuperação de nossa capacidade criativa de ficções

justificadoras da existência e da co-existência, ao mesmo

tempo em que estejamos cientes do caráter ficcional desse

empreendimento, cujo resultado é a afirmação de valores.

Para isso, vamos precisar de uma aproximação entre as mais

diversas formas de criações desenvolvidas pelo engenho

humano, entendidas assim como diferentes formas poéticas, a

saber, para além da literatura propriamente dita, as artes,

mitologias, religiões, filosofias e mesmo as ciências, bem

como aquela dentre elas que nos sanciona mais severamente,

do ponto de vista social, a conduta, a saber, o direito.

Caberá ao direito, num tal contexto, solidificar essa

invenção ou ficção coletiva, criando e estabelecendo

321

Page 322: Tese para IFCS

valores, impondo-os mesmo, em busca de garantir as

condições de manutenção da vida em comum, a vida humana.

322

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