UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO WILLIS SANTIAGO GUERRA FILHO O CONHECIMENTO IMAGINÁRIO DO DIREITO 1
UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO
WILLIS SANTIAGO GUERRA FILHO
O CONHECIMENTO IMAGINÁRIO DO DIREITO
1
RIO DE JANEIRO
2011Willis Santiago Guerra Filho
O CONHECIMENTO IMAGINÁRIO DO DIREITO
Tese apresentada ao Programa dePós- Graduação do Instituto de Filosofiae Ciên-cias Sociais da UniversidadeFederal do Rio de Janeiro, comorequisito parcial para obtenção do título deDoutor em
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Filosofia.
Orientador: Professor Doutor Aquiles Côrtes Guimarães
Rio de Janeiro
2011
Willis Santiago Guerra Filho
O CONHECIMENTO IMAGINÁRIO DO DIREITO
Tese apresentada ao Programa dePós- Graduação do Instituto de Filosofiae Ciên-cias Sociais da UniversidadeFederal do Rio de Janeiro, comorequisito parcial para obtenção do título deDoutor em Filosofia.
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________________________________________________________Prof. Dr. Aquiles Côrtes Guimarães – UFRJ (Orientador)
________________________________________________________Profa. Dra. Bethânia Assy – PUC-RJ
________________________________________________________Prof. Dr. André Ricardo Cruz Fontes – UNIRIO
________________________________________________________Prof. Dr. Fernando Rodrigues – UFRJ
________________________________________________________Prof. Dr. Rafael Haddock-Lobo – UFRJ
SUPLENTES
________________________________________________________Profa. Dra. Adriany Ferreira de Mendonça - UFRJ
________________________________________________________Prof. Dr. Antônio Cavalcanti Maia – UERJ
DEDICATÓRIA
4
A primeira tese, em Direito, foi dedicada ao então filho
único, Karel Willis Rêgo Guerra, prestes a completar vinte e
seis anos, concluindo seu bacharelado, também em Direito.
Nesta segunda, em Filosofia, à dedicatória tenho a felicidade
de acrescentar os gêmeos Terso Willis Pinheiro Guerra e
Gabriel Willis Pinheiro Guerra, de quatorze anos, concluindo
o ensino básico, mais o temporão com nome de filósofo, Zeno
Willis Pinheiro Guerra, dois anos de idade. As Mães deles,
Flávia Alcântara de Figueiredo Rêgo e Ana Carla Pinheiro
Freitas merecem igualmente menção nesta dedicatória, por lhes
dever essas que são as maiores criações com que somos
brindados, bem como pela dedicação tanto a elas como a mim,
cada uma em sua época e a seu tempo. Da mesma forma, não
posso deixar de dedicar esse esforço acadêmico de maior
fôlego e realização pessoal de máxima importância à memória
de meus Pais e Mestres, não só desde a mais tenra idade, como
também durante os estudos universitários, enquanto viveram e
convivemos: Maria Magnólia Lima Guerra e Willis Santiago
Guerra.
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AGRADECIMENTOS
Os maiores agradecimentos devo ao meu orientador na
presente tese, Prof. Dr. Aquiles Côrtes Guimarães, amigo de
longa data, a quem conheci através do inolvidável jurista e
filósofo, o maior dentre os que foram ou tentaram ser a
ambos, simultaneamente, entre nós: Miguel Reale. Tendo
iniciado meu doutoramento em filosofia na FFLCH-USP, depois
migrado, por um breve período, para a Universidade de Halle,
Alemanha, e retornado ao País na Universidade Federal de São
Carlos, foi na sala do Seminário de Direito e Política no
IFCS, nas tardes de quarta-feira, em aulas conduzidas
magistralmente por este Aquiles da filosofia brasileira, que
encoontrei o alento e estímulos fundamentais para concluir o
trabalho que se segue. Agradecimentos também são devidos à
Sônia e à Dina, por todo o apoio que me foi prestado na
secretaria do Programa de Pó-Graduação em Filosofia, bem como
ao seu coordenador, Prof. Dr. Fernando Rodrigues, e não só
por suas enormes qualidades de administrador, mas sobretudo
por seus ainda maiores conhecimentos filosóficos, dos quais
me beneficiei bastante, em especial quando da qualificação do
6
presente trabalho. Partes dele foram discutidas com aqueles
que me recepcionaram nas Universidades antes referidas, em
que também estive inscrito no doutoramento em filosofia, aos
quais gostaria de nomear aqui, também em tom de
agradecimento: Prof. Dr. José Carlos Estêvão (USP), Matthias
Kaufmann (Halle) e Bento Prado Jr. (UFScar). Dentre os
interlocutores que tive, em filosofia, um destaque especial é
devido àquele cujas aulas freqüentei desde a época de
graduação, na UFC, e depois também em memorável pós-graduação
lato sensu, quase integralmente ministrada por ele ao longo de
dois anos, aí vão já duas décadas: Prof. Dr. Manfredo Araújo
de Oliveira.
Um outro interlocutor, que me foi muito importante,
especialmente no que tange ao tema aqui desenvolvido, com
quem perdi a possibilidade de manter a interlocução, desde o
dia 12 de dezembro de 2010, em virtude de seu falecimento em
sua cidade natal, Buenos Aires, a quem desejo aqui recordar
com todo carinho, é o Prof. Dr. Dr.h.c. Luis Alberto Warat.
Dentre os amigos, para destacar alguns em cada uma das
7
cidades em que mais passo meus dias, cujo convívio me
estimulam a prática da filosofia na vida, eu lembraria
Alexandre Sampaio e Antônio Maia, no Rio de Janeiro, Max
Rezende e Ricardo Sayeg, em São Paulo, e Carlos Emílio Corrêa
Lima, em Fortaleza. Também meu irmão caçula, José Lúcio Lima
Guerra, PhD, à distância, desde a Holanda, mantém comigo uma
correspondência cujos reflexos são perceptíveis para nós, no
trabalho aqui apresentado, especialmente no que tange à
ciência – ou filosofia, como ele prefere – natural. Nosso
irmão do meio, Prof. Dr. Marcelo Lima Guerra, com quem já não
consigo estabelecer uma tal interlocução, ao que me parece
devido, dentre outros fatores, à sua opção por um cultivo
exclusivo da tradição analítica em filosofia e a vinculação,
tanto acadêmica quanto profissional, à processualística
jurídica, assim também me dá o que pensar, donde merecer
igualmente meus agradecimentos.
8
RESUMO
GUERRA FILHO, Willis Santiago. O Conhecimento Imaginário do
Direito. Rio de Janeiro, 2011. Tese (Doutorado em Filosofia).
Instituto de Filosofia e Ciências Sociais. Universidade
Federal do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro, 2011.
Na presente tese se sustenta o caráter imaginário do
conhecimento em geral, enfocando aquele produzido a respeito
do Direito, tido igualmente como imaginário, já por ser,
primordialmente, uma forma de conhecimento. Postula-se,
assim, a necessidade de superação do formalismo predominante,
na modernidade, tanto no pensamento como na prática do
Direito, ao promover uma crença, ameaçadora, na certeza e
objetividade decorrentes do estabelecimento de condutas de
maneira tida como satisfatória, através de sua formalização
por meio de normas e conceitos jurídicos.
Palavras-chave: Jusfilosofia. Fenomenologia. Epistemologia.
9
ABSTRACT
In the following thesis we sustain the imaginary nature of
knowledge in general, stressing that produced about the Law,
which is also considered imaginary, since it is primarily a
kind of knowledge. Accordingly, we postulate the necessity to
overcome the formalism that prevails in modernity both in the
legal thought and practice, since it promotes the dangerous
belief in certainty and objectivity that would follow from
the establishment of behavior considered sufficient through
its formalization by means of legal norms and concepts.
Keywords: Legal Philosophy. Phenomenology. Epistemology.
Formalism. Imaginary. Poetics.
11
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO...................................................
.....................................................10
1. NATUREZA FICCIONAL DO
DIREITO......................................................
........13
2. O DIREITO COMO PARTE DO MUNDO FICCIONAL CRIADO PELO
DESEJO..................................................
..........................................................19
3. SOBRE A ORIGEM METAPSICOLÓGICA DA ORDEM
JURÍDICA.................28
4. CONTRIBUIÇÃO MEDIEVAL PARA ESTABELECER A ESTRUTURA MODERNA
DO PENSAMENTO FILOSÓFICO E
JURÍDICO ...............................45
5. O DIREITO POSTO (POSITIVO) POETICAMENTE CONCEBIDO COMO
DIREITO
POSSÍVEL.....................................................
.........................................88
6. CRÍTICA FENOMENOLÓGICA DO FORMALISMO
CIENTÍFICO....................97
12
7. PROPOSTA DE REORDENAÇÃO DAS FORMAS DE CONHECIMENTO:
LEGITIMANDO AQUELAS DE NATUREZA POÉTICO-NORMATIVA OU
“ESCATOLÓGICAS”..............................................
.............................................105
8. INTERLÚDIO METAFÍSICO-TEOLÓGICO (COM UMA ALUSÃO À TEORIA
DE SISTEMAS SOCIAIS
AUTOPOIÉTICOS)...............................................
.............114
9. SOBRE A BUSCA DE UM MODO ATEORÉTICO DE PRODUZIR
CONHECIMENTO VÁLIDO (EM
FILOSOFIA)...................................................
..150
10. CONCLUSÕES
PRÉVIAS......................................................
........................178
11. VIDA CONTINGENTE, VIDA SEM TESTEMUNHO, VIDA SEM
SENTIDO..183
12. PADECENDO E TRANSFORMANDO A LEI NA VIDA E NO CORPO (COM
KAFKA).......................................................
.........................................................191
13
CONCLUSÕES RESUMIDAS..............................................................................207
REFERÊNCIAS..................................................
..................................................213
14
Introdução
A expressão “Conhecimento Imaginário do Direito”
apresenta uma postulação epistemológica e uma outra,
ontológica. A primeira, referente à natureza da teoria do
direito e, antes, à de toda teoria, aponta para o seu caráter
imaginário. A segunda, referente à natureza do próprio
direito, objeto de uma tal teoria, também aponta para o seu
caráter imaginário, enquanto forma de saber que também: o
saber sobre como devemos nos conduzir socialmente de maneira
aceitável.
No que tange à postulação epistemológica, ela se põe em
confronto com uma tradição racionalista, que tem na filosofia
cartesiana sua mais conhecida representante, a qual reverbera
até a contemporaneidade, por exemplo na concepção sartreana
sobre o imaginário, quando ele trata o produto da atividade
imaginativa, a imagem,1 como um símbolo deficiente,
1 Cf. J.-P. SARTRE, L’Imaginaire, Paris: Gallimard, 1940, pp. 148 e s.Bem diferente em relação ao tema da imagem e sua importância é apostura de autor anterior a Sartre, que em seu tempo teve a mesmaimportância que ele, no cenário filosófico francês – e, logo,também mundial. Estou a me referir a Henri Bergson, cujopensamento será retomado por aquele que sucederá Sartre, no centro
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ontologicamente esvaziado, a ser superado pelo conceito,
correlato da atividade racional (ou talvez melhor dizer
racionalizadora), o “pensamento retificado”, como bem o
denomina Gilbert Durand.2
Juntamente com este último, na esteira de outros,
anteriores, como Bachelard e Minkowski, vamos entender o
pensamento lógico-racional, do encadeamento linear, como um
caso particular e, enquanto particularização, também uma
limitação, da forma originária e fundamental de pensamento,
que é aquela por imagens, do imaginário. E entendemos que foi
o próprio avanço da investigação teórica, onde ela é mais
reconhecida como científica, ou seja, na matemática e na
ciência natural, sobretudo a física, que trouxe uma tal
compreensão, tornando a geometria euclidiana uma das
possibilidades de elaboração de uma axiomática rigorosa sobre
as propriedades do traçado de figuras em um plano que não
podemos esquecer ser imaginado, logo, imaginário, assim como
das atenções do grand monde filosófico: Gilles Deleuze. E entre osdois, bem como contra Sartre, avulta a obra de Maurice Merleau-Ponty.2 Las Estruturas Antropológicas del Imaginário, México (D.F.): Fondo deCultura Económica, 2004 [1992], p. 35.
16
a lógica formal aristotélica, bivalente (que usa apenas os
valores da falsidade e verdade), também é uma dentre muitas
lógicas possíveis. O avanço da matemática, que é de se
considerar como o avanço da própria imaginação humana
criativa em um de seus setores, terminou impulsionando o
avanço da investigação da matéria e do espaço físicos,
permitindo que se forjasse a cosmologia relativística e a
microfísica quântica. Nesta última, por exemplo, já se sabe
que a idéia de “átomo” é uma abstração, não havendo esta
partícula última indivisível, um “ponto”, tal como concebido
na geometria euclidiana, tornada padrão de racionalidade pelo
cartesianismo da (primeira ou mais recuada) modernidade.
Imaginemos então que esse ponto na verdade é um círculo,
reduzido a proporções infinitesimais, e consideremos que uma
reta é formada por uma série de pontos, assim como em cada
ponto da reta se pode conceber o cruzamento com ela de uma
outra reta, sendo o que estabelece o sistema de coordenadas
cartesianas, mas cada ponto é, na verdade, o lugar de um
corte, que em matemática se denomina “corte de Dedekind”.3 A
3 Devo a referência ao “corte de Dedekind” a diálogo mantido comJosé Dantas (em 21.01.2010), que em manuscrito inédito sobre
17
imagem que agora se tem desse sistema de coordenadas é
totalmente diferente, e ela expressa bem uma outra percepção
da realidade que a partir daí se pode obter, diversa daquela
linear, cartesiana, a qual se mostra como uma abstração
redutora diante dela. Retomaremos adiante estas colocações
(infra, n. 6).
Com relação à postulação ontológica, sobre o caráter
imaginário do próprio direito, enquanto objeto de estudos
teóricos, para entendê-la, basta que se atente para a
circunstância, antes referida, de que o direito é também uma
forma de conhecimento, sendo um modo como numa sociedade se
dá a conhecer aos seus membros o comportamento que é esperado
de cada um, pelos demais. Eis que, como era de se esperar, a
postulação epistemológica e aquela ontológica convergem,
mostrando-se como “os dois lados de uma mesma moeda”, “moeda”
esta que o jurista e filósofo Miguel Reale, por influência
(neo)kantiana, muito bem denominou “ontognosiologia”. O que
aqui se quer então destacar é o caráter fundamentalmente
matemática a ele se refere, em um outro contexto, i.e., para definirnúmero irracional, como “uma fenda existente em uma seqüência deracionais que o cercam sem nunca chegar lá”.
18
“po(i)ético”, criativo, imaginativo de toda obra humana, aí
incluídos tanto o direito como o conhecimento que se produz,
seja a seu respeito, seja também de um modo geral, da
totalidade do que se conhece, enquanto dependente de alguma
forma de decodificação - ou signatura, para utilizar a
expressão alquímica de Paracelso, amplamente empregada por
Jacob Boehme, retomada de há pouco por Giorgio Agamben (na
obra cujo título é idêntico à de uma outra, de Boehme,
“Signatura rerum”, remontando, em grande parte, a Paracelso) -,
para ser por nós percebida significativamente, numa
articulação simbólica.
1. Natureza ficcional do direito
Partindo da consideração do Direito como uma criação
humana, coletiva, é que de último jusfilósofos dentre os mais
acatados, a exemplo de Ronald Dworkin, professor de filosofia
do direito em Oxford e em Nova Iorque, vêm propondo uma
compreensão do universo jurídico em aproximação com aquele da
ficção e, mais especificamente, da literatura. Outro teórico
19
do direito contemporâneo, de expressão, que se pode referir,
em sintonia com uma tal concepção, é o também nova-iorquino
Richard Posner, que assim como a professora de filosofia do
direito em lugares como Harvard e Chicago, Martha Nusbaum,
encontra-se na origem do que veio a se chamar o movimento do
direito e literatura (Law & Literature Movimment). Contudo, não
se faz necessário recorrer ao pensamento anglo-saxão a fim de
encontrar apoio para quanto aqui se pretende sustentar a
respeito da natureza ficcional do Direito, pois em nossa
própria tradição, originária da matriz continental européia,
houve quem fizesse indicação nesse sentido, e com
precedência, sendo autor de obra que se tornou paradigmática,
a saber, Hans Kelsen. É certo que o pensamento kelseniano
oficial não costuma destacar esse aspecto da elaboração
teórica de seu autor referencial, posterior à segunda edição
da Teoria Pura do Direito (Reine Rechtslehre), em 1960, concebida
para se tornar canônica. Insiste-se, portanto, em referir à
norma que seria o próprio fundamento de validade e, logo, de
existência positiva do Direito, por isso mesmo dita norma
fundamental ou básica (Grundnorm), como sendo uma norma
20
hipotética, quando o próprio Kelsen, comprometido ao máximo
como sempre esteve com a coerência do pensamento, percebeu
que não poderia entender como sendo uma hipótese uma norma
jurídica, pois hipóteses são assertivas feitas na forma de um
juízo lógico, que podem ser verdadeiras ou falsas, a depender
da correspondência de quanto ali se assevera com o que se
comprova empiricamente, experimentalmente. Ora, isso
significaria ultrapassar o limite entre o mundo do ser (Sein),
onde se situam os fatos reais (Tatsache), e aquele do dever
ser (Sollen), onde se encontram, como condições de toda
modalização deôntica em termos de proibição, obrigação,
permissão etc., os fatos possíveis (Sachverhalt) que forem
(juridicamente) selecionados para fornecer a base de uma
imputação do Direito, a chamada fattispecie, da doutrina
italiana, que corresponde ao “suporte fático” (Tatbestand), da
doutrina germânica. E tal limite, como é sabido, foi
rigidamente estabelecido como um pressuposto de toda a teoria
do direito kelseneana, a fim de evitar a chamada “falácia
naturalista”, denunciada já por David Hume e, na esteira
dele, por Immanuel Kant, principal referência filosófica para
21
Kelsen. Essa falácia ou falso raciocínio ocorre quando se
pretende fazer uma dedução do que deve ser a partir do que é,
minando assim a autonomia da moral, do Direito, da estética e
de tudo quanto estabelece o ser humano como critério de
avaliação de sua conduta, por em assim procedendo fazer
depender de uma determinação prévia do que seja o bom, o
justo ou o belo a possibilidade de se estabelecer parâmetros
de julgamento do que quer que se venha a fazer com a intenção
de atingir tais ideais.
A qualificação de uma norma jurídica, portanto, não pode
ser a de que é verdadeira ou falsa, ou seja, a de que
corresponda ou não a fatos reais, do mundo do ser, daí
dependendo sua existência, mas sim a de que é válida ou
inválida, em se verificando sua correspondência com os fatos
de ocorrência possível, do mundo do dever ser, instituído
juridicamente. Na origem lógica – e não, propriamente,
histórica – do universo jurídico que temos posto, positivado,
diante de nós, Kelsen “pre(s)su-pôs” uma norma primeira,
esvaziada de conteúdo, uma forma pura, puramente jurídica,
como uma mera indicação da existência de um mundo de normas a
22
ser entendido como Direito, juridicamente vinculante, mas sem
uma vontade que (im)pusesse uma tal norma, a tornasse posta,
positiva, e ela é que seria o fundamento de validade, a
justificativa (lógica) de existência, de todas as normas
efetivamente postas, positivas. Essa norma, na 2ª. ed. da
Teoria Pura do Direito é considerada, kantianamente, uma
condição transcendental de possibilidade do conhecimento
jurídico, ou seja, algo como as categorias de tempo e espaço,
enquanto necessárias para o conhecimento do mundo físico, mas
depois Kelsen se deu conta de que, justamente por ser uma
categoria, ou seja, literalmente, um “modo de falar” (do
grego kat’ gorein) – no caso, sobre o Direito -, não poderia ser
uma norma, jurídica, que na sua própria definição é o que
confere um sentido, jurídico-positivo, a um ato de vontade,
criando Direito a partir de Direito previamente estabelecido.
A norma fundamental cumpriria a função de evitar o regressum ad
infinitum, o círculo vicioso, do Direito que é criado a partir
do Direito, mas atribuindo-se a ela o caráter hipotético e a
natureza de uma categoria, ela restava descaracterizada como
norma, não podendo assim ser a primeira de uma série – é
23
como, mal comparando, se considerasse que o primeiro dos
números da série de números naturais, o zero, não fosse um
número, fosse um “não-número”, por ser zero, o que restou
definitivamente superado pelas investigações de Frege sobre
os fundamentos da aritmética, que demonstraram como a
definição de todos os demais números da série dos cardeais
pressupunha a existência de um primeiro número “n”, diverso
do número 1 e diverso também de si mesmo, para validar a
fórmula definidora de todos os x-números dessa série
numérica. Ocorre que um tal objeto, contraditório (igual e
diverso de si mesmo), não-existente, mas dotado ainda assim
de existência, pois dele depende a existência, racionalmente
justificada, de outros, “normais” (ou, no caso dos números,
“naturais”), em matemática, já adquire o estatuto do que aqui
se entende como “imaginário”, remetendo-nos à transcendência
– só sobre a divindade é que se produziu, em outros
contextos, afirmações como esta, demarcando tão radical
diferença com o que habitualmente nos deparamos.
A solução encontrada por Kelsen, similar à que se
proporia em matemática, diante de um tal impasse, quando se
24
criou os números imaginários – mas esse não é o momento de
adentrar em considerações desse gênero, de resto expendidas
em nossa “Teoria da Ciência Jurídica” e em outras
oportunidades -,4 foi a de considerar sua norma fundamental
como uma norma fictícia, norma em sentido figurado (fingierte),
um “como se”, no sentido da filosofia do “como se” de Hans
Vaihinger.5 O propósito maior da obra,6 como reconhece ao
final seu A. - em sua auto-proclamada teoria “idealístico(-
crítica)-positivista”, de matriz, a um só tempo, kantiana e
nietzscheana -, é diferenciar ficções de hipóteses, enquanto
4 Cf. WILLIS SANTIAGO GUERRA FILHO, Teoria da Ciência Jurídica, 2ª. ed.,São Paulo: Saraiva, 2009, p. 200, sobre os números imaginários, ea nota 348, p. 198, sobre o que se vem de referir a respeito dasinvestigações de Frege. v. tb. id., “Significado filosófico da matemática”,in: Revista Filosofia, n. 43, São Paulo: Escala, 2010.5 Cf. KELSEN, Teoria Geral das Normas, trad. JOSÉ FLORENTINO DUARTE,Porto Alegre: Fabris, 1986, p. 328 e seg.: "Em obras anterioresfalei de normas que não são o conteúdo significativo de um ato devontade. Em minha doutrina, a norma fundamental foi sempreconcebida como uma norma que não era entendida como o conteúdosignificativo de um ato de vontade, mas que estava pressuposta pornosso pensamento. Devo agora confessar que não posso continuarmantendo essa doutrina, que tenho de abandoná-la. Podem crer-me,não foi fácil renunciar a uma doutrina que defendi durantedécadas: a abandonei ao comprovar que uma norma (Sollen) deve ser ocorrelato de uma vontade (Wollen). Minha norma fundamental é umanorma fictícia, baseada em um ato de vontade fictício. Na normafundamental se concebe um ato de vontade fictício, que realmentenão existe".6 Cf. HANS VAIHINGER, Die Philosophie des Als-Ob, 1ª. ed. 1911, ed.popular (Volksausgabe), resumida, Leipzig: Felix Meiner, 1923.
25
recursos heurísticos. No capítulo próprio, a respeito (Parte
I, Cap. XXI, p. 87 ss. da ed. cit.), as primeiras são
apresentadas como conscientemente inventadas, sem pretensão
de serem verdadeiras, no sentido de corresponderem à
realidade, tal como as hipóteses, que devem ser prováveis (e
comprováveis), enquanto as ficções, por seu turno, devem ser
úteis para fazer avançar o conhecimento, dando como
resolvidas questões que se apresentam como obstáculos para
este avanço. Daí que, ao final da obra, o A. apresente como
exemplo típico de ficção os dogmas da teologia – em passagem
que será lembrada por Freud, em sua apreciação psicanalítica
da religião,7 no texto “O Futuro de uma Ilusão” - , assim
como antes apontara o direito e a matemática como as
disciplinas que mais se valem do recurso para resolver seus
problemas, por meio de uma formalização que as tornaria muito
7 Cf. FREUD, Die Zukunft einer Illusion [1927], in: Id., Gesammelte Werke, vol.XIV, Fischer: Frankfurt am Main, 1999, p. 351. Também no textosobre a questão da análise leiga há referência de Freud aVaihinger, para rebater objeções ao uso metafórico que faz daexpressão “aparato”, de conotação mecanicista, maquínica, paratratar dos fenômenos psíquicos. Cf. Die Frage der Laienanalyse, ob. vol.cit., p. 221. A título de curiosidade, vale mencionar que aquestão, quando levada ao judiciário, contou com um decisivoparecer de Kelsen para evitar um desfecho desfavorável ao criadorda psicanálise.
26
similares, estruturalmente - Vaihinger se refere a um
“parentesco fundamental (prinzipielle Verwandschaft)” -, na medida
em que abstraem especificidades dos objetos reais para
subsumi-los a proposições generalizantes (abstrakte
Verallgemeinerunge – id. ib., Cap. XI, p. 56 ss.), a fim de
equipará-los por analogia e realizar cadeias dedutivas (ib.,
Cap. V, p. 32 s.). Tratar uma assertiva como do domínio da
ficção, portanto, é vedar de antemão a sua possibilidade de
corresponder à realidade, enquanto a hipótese implica a
pretensão de, possivelmente, se confirmar.
Penso que essa reviravolta no pensamento de Kelsen a
respeito da Grundnorm requer que se reconsidere as críticas,
justas, que a ele se pode fazer de uma perspectiva
fenomenológica husserliana, a fim de desfazer a confusão que
nela se faz, em versões anteriores, e ainda canônicas, entre
a norma propriamente, enquanto manifestação do sentido de um
ato de vontade, e a proposição normativa, essa sim um juízo
hipotético, sem atentar para a prsença da consciência
normativa, capaz de conhecer valores, teoreticamente, com uma
pretensão de validade que independe daquela estatal. E sendo
27
esta consciência normativa, como bem aponta Pedro M. S.
Alves, “originariamente constitutiva de formas inteiramente
novas de conexão intersubjetiva”, chegando mesmo a criar
“entidades antes inexistentes”, 8 é efetivamente no registro
da ficção que ela e a ordem que funda melhor podem ser
8 “Razão Prática. Reflexões husserlianas sobre o conceito de norma”, in: Fenomenologiae Direito. Cadernos da Escola da Magistratura Regional Federal da2ª. Região EMARF, vol. IV. n. 1, Abr./Set. 2011, p. 44. Em sentidoconvergente, tem-se que, conforme Aquiles Côrtes Guimarães,“jurídica é a norma que reveste os objetos e juridicidade é afonte da sua proveniência. Logo, tudo aquilo que classificamoscomo Direito tem origem na intencionalidade valorativa daconsciência transcendental ou pura, enquanto evidenciadora dosobjetos do mundo. Os objetos nos são dados pelos seus significadose sentidos, traduzidos em essências que constituem os modosuniversais de conhecê-los validamente”. “Para uma Teoria Fenomenológicado Direito – II”, in: Fenomenologia e Direito. Cadernos da Escola daMagistratura Regional Federal da 2ª. Região EMARF, vol. III, n. 2,Out. 2010/ Mar. 2011, pp. 33 – 34. E juridicidade, como bemesclarece o eminente Mestre brasileiro do pensamentojusfenomenológico, em texto ainda inédito, “não define apenas aconformidade com a lei mas, sobretudo, a referência ao justopossível” e, adiante, frisa que “a juridicidade, como valoruniversal e transcendental, é a referência da justiça comopossibilidade (...). “Para uma Teoria Fenomenológica do Direito – IV”, MS,2011, pp. 2 e 8, grifos do A. É a um tal “possibilismo” queassociamos o caráter imaginário do direito, como forma deconhecimento - v., esp., infra, cap. 5 -, postulando a necessidade decompreendê-lo melhor através de uma abordagem estética ou, comopreferimos, poética, no que entendemos ter apoio em Husserl,quando ele refere, por exemplo, o seguinte: “O interesse teoréticonão é o único e exclusivo a determinar valores. Interessespráticos num sentido mais vasto, i.e., éticos ou estéticos, podemligar-se a algo de individual e emprestar o mais alto valor à suadescrição singular”. EDMUND HUSSERL, Logische Untersuchungen, I,Husserliana, vol. XVIII, p. 238 e s.
28
apreendidas.
2. O Direito como parte do mundo ficcional criado pelo desejo
O mundo da ficção é um mundo de possibilidades
reduzidas, onde não se pode saber sobre o que não nos é dado
a conhecer pelos responsáveis por sua criação. Existir como
uma ficção é existir menos do que o que existe realmente,
pois é nesta última forma de existência, e não naquela, em
que logicamente tudo pode acontecer,9 desde que não implique9 Aqui vale chamar a atenção para desenvolvimentos recentes emestudos de lógica, tal como apresentados na alentada (e inovadora)pesquisa de Alexandre Costa-Leite, combinando idéias que remontama Descartes e Hume com propostas em lógicas não-clássicas, comoaquelas da imaginação, de Vassiliev e a paraconsistente, de Newtonda Costa, somadas a contribuições mais recentes, das mais diversasproveniências, com destaque para a do finlandês Niiniluoto,evidenciando a não-trivialidade de se distinguir imaginação deconcepção, pois como bem assinalou o lógico russo apenasmencionado, pode-se conceber, conceitualmente, uma lógica de ndimensões, mas não se pode imaginá-la – a que ele propõe, assimcomo a paraconsistente, possui 3 dimensões. É que, como assumeCosta-Leite, tanto conceber como imaginar nos levam para o campodas possibilidades, sendo que no caso da imaginação mantemos aindao vínculo intuicionista com o realizado e o realizável. Cf.ALEXANDRE COSTA-LEITE, “Logical Properties of Imagination” in: Abstract -Linguagem, Mente & Ação. Revista Internacional Eletrônica deFilosofia, vol. VI, n. 1, 2010 (http://www.abstracta.pro.br). Deinteresse, tb., é a proposta, convergente, de Jean-Yves Beziau, dese distinguir entre dois eixos, o eixo da imaginação e o eixo daconceptualização, ou seja, da concepção conceitual, a fim dedemonstrar como, de um lado, a realidade é inimaginável, podendo
29
em contradição com o que já passou à existência, saindo do
estado de mera possibilidade para aquele de atualidade,
enquanto a coerência narrativa, a consistência entre o
ocorrido antes e depois - que segundo Dworkin é o que se deve
esperar encontrar e, logo, cobrar, no Direito -, seria a um
só tempo, mais vaga e mais constringente, para determinar o
que pode acontecer. Daí se poder falar, com o importante
fenomenólogo polonês Roman Ingarden, de uma “incompletude
ontológica” do universo ficcional, do qual só se pode saber o
que nos informa o seu “demiurgo”, que no caso da literatura
são os autores das obras ficcionais.10 Assim, os juízosser melhor entendida conceptualmente, através de teoria abstratas,enquanto que, de outro lado, o pensamento pode ser melhorarticulado usando um simbolismo imaginário, como nas artes, e nãosomente pelo formalismo cego, científico. Cf. JEAN-YVES BEZIAU, inId. (ed.), La pointure du Symbole, Paris: Petra, 2011, e, de um modogeral, para uma introdução, T.S. GENDLER/J. HAWTHORNE (eds.),Conceivability and Possibility, Oxford: Oxford University Press, 2002.
10 Cf. BARRY SMITH, “Meinong vs. Ingarden on the logic of fiction”, in:Philosophy and Phenomenological Research, 1978, p. 93 ss.,disponível em http://ontology.buffalo.edu/smith; Id. e JOSEFSEIFERT, “The truth about fiction”, in: Kunst und Ontologie. Für Roman Ingardenzum 100. Geburtstag, W. GALEWICZ et al. (Hrsg.), Amsterdam/Atlanta:Rodopi, 1994, p. 97 ss. Nem por isso, no entanto, perdem em valorheurístico as obras de ficção, como já observara com acuidadenosso Farias Brito, ao comentar em meados da segunda década doséculo passado as então recentes tentativas de desenvolver estudosde psicologia em laboratórios, com abordagem naturalista,referindo-se a ela como “uma psicologia morta; o que significa:
30
realizados no âmbito deste universo ficcional diferem
daqueles feitos a respeito da realidade propriamente dita, a
ponto de se poder denominá-los, como o fez Roman Ingarden,
“quasi-juízos”, inaptos a serem considerados “verdadeiros” ou
“falsos”, pois a “realidade” da ficção é uma simulação da
realidade, enquanto ficcional, mas o mesmo não se pode dizer
dos juízos em outros âmbitos, como em Direito, que se referem
a um possível “estado de coisas” (state of affairs, Sachverhalte).
Este não é de se considerar uma simulação da realidade, masuma psicologia que nos não instrui, nem edifica, que nada nos dizsobre a verdadeira significação da energia que reside em nós:dinâmica puramente exterior, inconsciente e fatal, que em vão seesforça por explicar o espírito em função da matéria, deixando-nossempre no vazio e no escuro. (...) Muito mais instrutiva é,decerto, a psicologia dos poetas e dos romancistas, que jogam, éverdade, com personagens fantásticas, mas inspirados na observaçãodos fatos e criados pela imaginação sob a pressão mesma da vida,senão reais, pelo menos possíveis, sendo de notar que é sempre daspróprias paixões, das próprias lutas e sofrimentos, dos própriossonhos e aspirações, que nos dá o artista, em seus personagens, adescrição viva e palpitante. (...) Há criações poéticas que sãoaltamente significativas e pode dizer-se que um Hamleto, um ReiLear, o Tartufo de Molière, o Fausto de Goethe, têm mais vida erealidade que muitas figuras históricas de valor aliás nãosecundário. É que essas criações, de si mesmas, são fenómenospsíquicos, manifestações profundas da alma mesma do homem: o queprova que a arte é, por si própria. um poderoso instrumento deanálise psicológica. E as suas criações se bem que sejam puramenteimaginárias, não se confundem com o nada”. R. de FARIAS BRITO,“Ensaio sobre os dados gerais da filosofia do espírito”, in: Mundo interior. Umaantologia, GINA MAGNAVITA GALEFFI (org.), Brasília: GRD-INL/MEC,1979, pp. 5 – 7.
31
uma outra realidade, de uma outra natureza – deontológica, no
caso do Direito, do âmbito do dever ser, e não puramente
ontológica, do ser (ontos, em grego antigo) -, humanamente
construída, sim, tal como a ficção, mas de modo coletivo,
difuso, e dotada de um caráter vinculante, que a impõe a nós
COMO SE realidade fosse, na qual devemos acreditar – e não
apenas podemos, se quisermos, praticando a “suspenção do
descrédito (suspenction of disbelief)” a que se refere Wordsworth,
como condição de fruição da ficção -, e isso para evitar que,
em razão do descrédito, se venha a sofrer conseqüências, bem
reais, que decorrem da implementação das sanções jurídicas.
O direito, então, disponibiliza aos que a ele se
encontram sujeitos, e que em face dele se tornam sujeitos
passíveis da aquisição de direitos e obrigações correlatas,
meios de produzir uma história,11 vinculante para os que nela
tomarem parte, e vinculando-os a partir da obediência ao que
se encontre previamente estabelecido pelo Direito, enquanto
apto a desempenhar a função no enredo que nele pretendam os
envolvidos adotar, a fim de atingirem suas finalidades e
11 Nesse sentido, cf. JEROME BRUNER, La Fábrica de Historias. Derecho,literatura, vida, México: Fondo de Cultura Económica, 2003.
32
propósitos, com respaldo jurídico. Aqui é elucidativa a
analogia com o jogo, como o xadrez, com suas possibilidades
virtualmente infinitas de jogadas, a partir da estipulação de
como podem se mover no tabuleiro suas peças, sendo a
definição prévia do que pode fazer qual peça absolutamente
essencial para que se possa avaliar, ao longo de um jogo, se
ainda se continua jogando xadrez ou se, por atribuir, ainda
que seja a uma só peça, funções outras, imprevistas, não se
descaracterizaria, com ela, o próprio jogo, restando apenas a
aparência do jogo original, pela permanência de figuras que
não se pode mais considerar como, efetivamente, aquelas de um
verdadeiro jogo de xadrez, de acordo com suas definições
estipulatórias. Essa dependência do jogo em relação às suas
regras constitutivas foi mostrada em uma passagem bem
conhecida de suas “Investigações Filosóficas” por Ludwig
Wittgenstein, sendo transposta para a reflexão jusfilosófica
por um seu discípulo, Herbert Hart, ao considerar a norma
jurídica uma prática social, em tudo e por tudo similar
àquelas dos jogos. Aliás, o jogo pode ser considerado também
uma ficção, enquanto um combate fictício, engendrado para dar
33
vazão aos anseios lúdicos, agônicos, do ser humano, tão bem
estudados por Huizinga em seu clássico “Homo Ludens”. Entende-
se, assim, a proposta feita recentemente por Giorgio
Agamben,12 no sentido de que aos filósofos, como às crianças –
e, de nossa parte, acrescentaríamos os poetas, enquanto
psicanalistas como Winnicott e o próprio Freud aduziriam os
assim chamados e antes deles tão mal-compreendidos “loucos”13
-, caberia a descoberta de novas dimensões para os usos
comuns dos meios que se encontram a disposição para atingir
certos fins - jurídicos, econômicos, políticos etc. -,
tornando-os inúteis para tais finalidades, no mesmo gesto em
que os utilizam para outras finalidades, mais diretamente
prazerosas, como jogar.14
12 Cf. Profanazioni, Roma: Nottetempo, 2005, p. 87.13 No “Prefácio” que escreve para a obra Probleme der Religionspsychologie,de Th. Reik, Freud adverte que “doentes de um modo associal, porseu turno, fazem as mesmas tentativas de solucionar seus conflitose dificuldades com suas necessidades prementes que em outroscampos resultarão em poética, religião e filosofia, quando entãoelas são introduzidas por uns para a aceitação da maioria demaneira vinculante”. No orig.: “Kranke in asozialer Weise dochdieselben Versuche zur Lösung ihrer Konflikte und Beschwichtigungihrer drängenden Bedürfnisse unternehmen, die Dichtung, Religionund Philosophie heißen, wenn sie in einer für eine Mehrzahlverbindlichen Weise ausgeführt werden”. FREUD, Gesammelte Werke,cit., vol. XII (1917 – 1920), p. 325 s.14 O Brincar e a Realidade, trad.: JOSÉ OCTÁVIO DE AGUIAR ABREU et al., Riode Janeiro: Imago, 1975, esp. a “Teoria da Ilusão-Desilusão”, p.
34
O direito é, portanto, parte desse universo lúdico,
criação do desejo humano, um modo de imaginar o real em
descrições que façam sentido, como diria o antropólogo
Cliford Geertz.15 Ora, em um mundo concebido
(nietzscheanamente) como sonho (de deidades que são o aspecto
subjetivo do cosmo, entendido como uma diacosmese, uma
epifania dessas diversas divindades em que cada uma a seu
modo, de múltiplas formas, expressa o cosmo em sua
totalidade, como nos explica em sua “Mitologia” o grande sábio
luso-brasileiro Eudoro de Sousa) pode acontecer muito mais e
com maior facilidade do que na realidade fixada por nossos
hábitos, pois ele não só varia muito mais no tempo e no
espaço reais, como também dispõe de um tempo e espaço
próprios, a ponto de se poder vir a realizar uma cosmologia,
28 s. e a “Teoria da Brincadeira”, p. 70 ss., onde no contexto dadiscussão de sua mais notória contribuição à teoria psicanalítica,a saber, a noção de “objeto transicional”, avança a proposta deuma zona transicional, em que, literalmente, se misturam aimaginação onírica e a percepção da realidade, sendo onde radica acapacidade criativa humana, enquanto capacidade de brincar com oselementos que lhe fornece a realidade para assim fazer um mundo emque possa se sentir à vontade, por ser seu – aí está a fonte dasaúde psíquica, como também da diversas realizações humanas, desdea magia até a psicanálise, passando pelas artes, religiões eciências...15 Citado em WILLIS SANTIAGO GUERRA FILHO, Teoria da Ciência Jurídica, 2ª.ed., São Paulo: Saraiva, 2009, p. 238.
35
filosófica, totalmente diversa daquela astronômica, que é
como se pode conceber, por exemplo, os esforços da
psicanálise.16 É certo que nisso a filosofia, assim como a
ficção e, com anterioridade, o mito, seja na magia, seja na
religião,17 demonstra-se “constituinte de mundo” (weltbildend),
mas se não é propriamente ficcional o modo de existência
originário do mundo, a ser captado pela filosofia, e vazado
nos moldes cunhados pelo Direito, qual seria o seu estatuto?
A proposta que aqui se avança é a de que ele é da ordem do
desejo, considerando-se a expressão como formulada utilizando
o genitivo em sentido subjectivus e também objectivus, ou seja,
como sendo o mundo ao mesmo tempo causa e efeito, ou função,
do desejo, do que é mais propriamente humano, e não da
vontade ou de necessidades, que geram interesses, como
defende o utilitarismo tecnicista hoje predominante.
Ao considerarmos o mundo, tal como o concebemos,16 Disso se mostram perfeitamente conscientes aqueles estudiosos depsicanálise da vertente londrina, kleiniana, na qual se destacamautores como Bion e Winnicott. No Brasil, cf., v.g., PAULO CESARSANDLER, A Apreensão da Realidade Psíquica. Vol. VII, Hegel e Klein: A tolerânciade paradoxos, Rio de Janeiro: Imago, 2003. 17 Esta é a posição de VICENTE FERREIRA DA SILVA, em “Para umaetnogonia filosófica”, in: Revista Brasileira de Filosofia, 1954. V. tb.id., Filosofia da Mitologia e da Religião, in: Obras Completas, vol. I., SãoPaulo: Instituto Brasileiro de Filosofia, 1964, p. 299 ss.
36
representamos, imaginamos, como um produto do desejo,18 lhe
conferimos o mesmo estatuto dos sonhos, isto é, um caráter
onírico, imaginário. Tratar-se-ia, então, de algo como um
sonho coletivo, construído a partir do que já é dado como
sendo o mundo, a realidade, sim, mas sempre in fieri, nunca
devendo ser tido como já pronto e acabado, ou seja, objetivo,
pois além de depender de sujeitos, desejantes, que o tenha
posto, no passado, visando uma previsão e controle do futuro,
contingente, depende também de sujeitos que o “re-ponha”, no
presente, atualizando o que há de ser visto como
potencialidades, realizando possibilidades, a serem
reveladas, postas como verdadeiras, por um saber que seja
adequado.19
18 Vale lembrar que para o budismo o nosso mundo é um mundo dodesejo, sendo, enquanto tal o mais baixo dos três mundospostulados em sua cosmologia. Cf. HENRI MASPERO, Le Taoïsme et lesReligions chinoise, Paris: Gallimard, 1981, p. 52.19 Pode-se entender ter ido nesse sentido o esforço de Nietzsche emtextos justamente célebres como a “Segunda consideraçãointempestiva (da utilidade e da desvantagem da história para avida)”, de 1874, comentado em detalhe na literatura nacional, porMarco Antônio Casanova em O Instante Extraordinário: Vida, História e valor naObra de Friedrich Nietzsche, Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2003,esp. cap. 2, pp. 69 ss. Aqui cabe suscitar também a contribuiçãoque pode ser dada pela “poética dos sonhos (rêverie)” de Bachelard,para quem “Um mundo se forma em nossos sonhos, um mundo que énosso mundo. E esse mundo sonhado nos ensina possibilidades decrescimento de nosso ser nesse universo que é nosso”. La Poética de la
37
Nesse contexto, é de um saber prático que se trata, mas
do tipo po(i)ético, “criador” de mundo, produtivo, ao invés
daquele seu outro tipo, o técnico, reprodutivo, “explorador”
de mundo. Aquele pode ser caracterizado como o que indica
como algo pode ser feito, uma vez que se decidiu fazê-lo,
estabelecendo uma verdade onde se faz uma questão. A
teologia, por exemplo, foi considerada um tal saber prático
já por John Duns Scot (1266 – 1308),20 mesma época em que os
Ensoñación, trad.: IDA VITALE, México: Fondo de Cultura Económica,1997, p. 20. Essa é também a poética modernista proposta para asartes, desde Baudelaire e, mais radicalmente, por Apollinaire -cf., v.g., SILVANA VIEIRA DA SILVA AMORIM, Guillaume Apollinaire: Fábula eLírica, São Paulo: UNESP, 2003 -, que se engaja na produção de ummundo que revele possibilidades desapercebidas do real. Bachelardserá reivindicado pelo “pai” do Surrealismo, André Breton, que seinsere nessa tradição modernista, como ele próprio reconhece – cf.ANDRÉ BRETON, Conversaciones (1913 – 1952), trad.: LETÍCIA PICCONE,México: F.C.E., 1987. E Gilbert Durand irá se colocar nessa linha,junto ao “surrealismo contemporâneo”, bem como dos “grandesromânticos alemães” (Novalis, Hölderlin etc.), pela superação doque Piaget denominou de “adultocentrismo”, para assim recuperar amatriz metafórica, imaginária, de onde emana todo a atividademental humana, inclusive aquela mais redutora, a que aquidenominamos racionalizadora, dita racional - cf. ob. cit., p. 35.Nesse aspecto, vale lembrar a elaboração convergente dapsicanálise kleiniana e de seus herdeiros intelectuais, da chamadaEscola de Londres – cf., a propósito, RONALD BRITTON, Crença eImaginação, trad.: LIANA PINTO CHAVES, Rio de Janeiro: Imago, 2003 –em relação à abordagem junguiana – cf.. MARIA HELENA LISBOA DACUNHA, Espaço real, espaço imaginário, 2ª. ed., Rio de Janeiro: Uapê,1998 -, não por acaso considerada por um dos maiores expoentesdessa Escola, D. W. Winnicot, como injustamente desprezada pelapsicanálise.20 Cf., v.g., o “Prólogo” da Ordinatio, quinta (e última) Parte.
38
Glosadores da escola de Bolonha estarão abordando desta
maneira o Direito.21 Também como ele - e antes dele,
influenciando-o, Avicena ou Ibn Sînâ -,22 pode-se defender
que do Ser de Deus, o criador, ser-em-si, deve-se falar como
do ser dos entes, as criaturas, em um sentido unívoco e não,
por exemplo, como em Tomás de Aquino, em sentido análogo, tal
como demonstrou seu sucessor na cátedra dominicana de Paris,
o místico Mestre Eckhart, que também tanta influência teve em
Heidegger, com sua afirmação da absoluta diferença
(ontológica), estranheza,23 do Ser - logo, também de Deus,21 Nesse contexto, em trabalho de fundamental importância, Ernst H.Kantorowicz referira também aos artista, sobretudo poetas epintores – de resto, comumente equiparados, como em Dante,Purgatório, XI, 79 s. -, que na mesma época terão reconhecida, assimcomo teólogos e juristas, uma sua “soberania”, enquanto criadores,tendo como respaldo inicial a doutrina canonista de que o Papa,enquanto “vice (de) Deus”, tal como este último, dispunha do poderde criar do nada e da prerrogativa de mudar a natureza das coisas– no século XV uma tal soberania, sobretudo graças ao trabalho dodoutrinador francês Guy Pape, será transferida ao poder secular, asaber, ao imperador e aos reis. Cf. KANTOROWICZ, “L souveraineté del’artiste”, in: Id, Mourir pour la patrie, trad. L. MAYALI e A. SCHÜTZ, 2ª.ed., Paris: Fayard, 2004, p. 43 ss., 57, passim.22 Cf. MIGUEL ATTIÊ FILHO, Os Sentidos internos em Ibn Sînâ (Avicena), PortoAlegre: EDIPUCRS, 2000, p. 31.23 Daí não ser nenhuma surpresa a afinidade heideggeriana deestudiosos do gnosticismo, como Henry Courbin, o primeiro tradutorde Heidegger na França, seu aluno Hans Jonas e, mais recentemente,Peter Sloterdejk. Como para Heidegger, também para os gnósticoscristãos dos primeiros séculos, estando o homem “estranhado” desua origem divina em um corpo e um mundo criados pelo demiurgo,divindade inferior e invejosa do Deus verdadeiro e supremo – note-
39
que é enquanto ser, e não enquanto ente, ainda que supremo, e
maximamente superior, donde podermos dizer que Ele, ao
contrário de nós, não ex(ks)iste,24 pois não “está (iste) fora
(ex ou εξ)” e, sim, além, do mundo e de toda conceitualização,
por ser transcendente:25 como já afirmavam os medievais, nase aí um outro traço heideggeriano, na concepção de umapluralidade de deidades -, não procede a definição corrente de quese trata de um animal, ainda que racional. Isso mesmo que emHeidegger, como em um seu coetâneo com tantas afinidades, como oespanhol injustamente menosprezado Ortega y Gasset, não se susciteuma origem divina do humano, nem tampouco meramente natural, dadaa distância do ser formador de mundo em relação ao que dele sãodesprovidos ou pobres – cf. MARTIN HEIDEGGER, Os Conceitos Fundamentaisda Metafísica: mundo, finitude, solidão, trad.: MARCO ANTÔNIO CASANOVA, Riode Janeiro: Forense Universitária, 2003, 2a. Parte, 2o. cap., §§43 ss., p. 204 ss.; ANTONIO REGALADO GARCÍA, El laberinto de la razón:Ortega y Heidegger, Madrid: Alianza, 1990, p. 288 ss. Sobre o papelna elaboração do pensamento heideggeriano da estranheza-familiar,o Unheimlich, o qual Heidegger encontraria antes em Hölderlin que emFreud, v. ainda ERNILDO STEIN, Introdução ao Pensamento de MartinHeidegger, Porto Alegre: Ithaca, 1966, p. 100 s.24 Cf. MARTIN HEIDEGGER, Metafísica de Aristóteles IX, 1-3, trad.: E. P.GIACHINI, São Paulo: Vozes, 2007, p. 52. 25 Para esse duplo sentido da palavra “transcendência” cf. JOSEPHCAMPBELL, Isto és tu. Redimensionando a metáfora religiosa, EUGENE KENNEDY(org.), trad.: EDSON BINI, São Paulo: Landy, 2002, p. 181 s. Enesse passo vale referir a concepção budista de nirvana enquantomodo de existência incondicionada, que nem é existência, nem é nãoexistência, sendo pela compreensão da primeira negação que seobtém conhecimento libertado da impermanência, pois ela é nãoexistência, enquanto a compreensão da segunda negação, negaçãodupla, dissipa a falsa idéia de extinção, uma vez que ela não é anão existência que parece ser, mas não é também. O acesso pelagratuidade da meditação ao estado de Buda, ainda que momentâneo,em que se atinge tal compreensão (ou tais compreensões), foipreconizado muito fortemente pos uma Escola que floresceu na Chinaentre os séculos VII e XII, dita Escola de Dhyâna ou, em chinês,chan, e em japonês, zen. Cf. HENRI MASPERO, ob. cit., p. 52 e s.
40
esteira de Duns Scot, e esse com base em Avicena, n’Ele
coincidem a essência e a existência, ser e realidade,
enquanto nossa essência de entes humanos é a possibilidade -
de ser, e também de não ser.26
Adiante, teremos oportunidade de verificar o quanto
ainda podemos (e precisamos) aprender com as discussões
teológicas e metafísicas. Em seguida, porém, examinaremos
contribuição de disciplina mais recente, a psicanálise, que
pode ser visa como uma forma de dar aplicação a quanto antes
se especulou – e ainda se especula -, no campo imaginativo,
poético, seja nas artes, seja nas filosofia e religiões. E
isto para lidar, de maneira prática, clínica, com os
problemas que essa capacidade mesma de fabular, delirar
mundos – e, dentre eles, o chamado ou considerado,
estabelecido, como real -, cria para os seres humanos:
26 Daqui se origina a idéia de uma renovação da filosofia a partirda investigação do que somos na situação concreta, fática, davida, proposta por Heidegger - no que se pode denominar, antes queuma “fenomenologia da liberdade” (Günter Figal) ou, com maisprecisão, uma “fenomenologia da(s) possibilidade(s existenciais)”,pois para Heidegger, “acima da realidade está a possibilidade”. M.HEIDEGGER, Meu Caminho para a Fenomenologia, in: col. Os Pensadores,trad.: ERNILDO STEIN, São Paulo: Abril Cultural, 1979, p. 302;id. Sein und Zeit, Frankfurt am Main: Vittorio Klostermann, vv. eds.,p. 52.
41
sobretudo quando, na modernidade, desaparece o referencial
significativo, isto é, atribuidor de significado, no espaço
público, que são as religiões, substituídas por ideologias,
simulacros daquela que seria a “portadora da verdade”, e que
não se ocupa de questões relativas ao sentido da vida humana.
3. Sobre a origem metapsicológica da ordem jurídica
Ao comparar manifestações mais tradicionais de ordens
simbólicas e normativas, como a religião, a ética e o direito
– estudadas, respectivamente, pela(s) teologia(s),
filosofia(s) e ciência(s) do direito, outras tantas ordens
simbólicas de “segundo grau”, “metalinguagens”, como diriam
neopositivistas e semiólogos -, com a psicanálise, ressaltam
os contrastes. Por exemplo, entre a miríade de regras que
constituem os primeiros, e aquela uma só regra que constitui
a última: a da associação livre, para revelar-nos os desejos,
sempre pessoais.
À piscanálise deve-se a “descoberta” de uma vinculação
de sentimentos morais e religiosos à figura do pai, como sua
42
raiz mais profunda; as expressões artísticas – literatura,
pintura, etc. - mostram, na verdade, a vinculação delas ao
“inconsciente incompreensível”, permitindo a “construção de
uma ponte” entre o mito e a realidade: o complexo de Édipo. O
complexo de Édipo é o “correlativo psíquico de dois fatos
biológicos fundamentais: o longo período de dependência da
criança humana e a maneira notável pela qual sua vida sexual
atinge um primeiro clímax do terceiro ao quinto ano de vida,
e depois, passado um período de inibição, reinicia-se na
puberdade. E aqui se fez a descoberta de que uma terceira
parte extremamente séria da atividade intelectual humana, a
parte criadora das grandes instituições da religião, do
direito, da ética e de todas as formas de vida cívica, tem
como seu objetivo fundamental capacitar o indivíduo a dominar
seu complexo de Édipo e desviar-lhe a libido de suas ligações
infantis para as ligações sociais que são enfim desejadas.”27
A psicanálise, portanto, não se prestaria a fundamentar
um discurso que tenha por objeto algo da ordem do coletivo.
27 Cf. S. FREUD, Uma Breve descrição da Psicanálise, O. C., vol. XIII, p.258.
43
Vale esclarecer que aqui seguimos a Freud e Lacan,28 quando
insistem em tratar do coletivo não como uma entidade com "id-
entidade" própria, mas sim, como projeção do individual. G.
Pommier ressalta que "embora não exista inconsciente
coletivo, existem ficções coletivas, que retiram sua força do
inconsciente de cada um".29 Por outro lado, é bom lembramos
que, se o inconsciente não é coletivo, tampouco é individual,
mas sim "transindividual", enquanto constituído por um Outro,
efeito sobre o sujeito de uma ordem simbólica, que o antecede
e transcende,30 por estar no começo, tanto da espécie
(filogênese), como de cada indivíduo (ontogênese). Inclusive,
como destaca Enrique Mari,31 Freud enfatizou isso tendo em
vista uma leitura de sua obra "Psicologia das Massas e
Análise do Eu" (v. esp. cap. X),32 naquele primeiro sentido,
28 Escritos, trad. INÊS OSEKI-DEPRÉ, São Paulo: Perspectiva, 1978, p.86, nota 6.29 "Existiria um sentido psicanalítico da 'História'?", in: Palavração. Revista dePsicanálise, n. 2. Curitiba: Biblioteca Freudiana de Curitiba,1992.30 Cf., v.g., J. BIRMAN, Psicanálise, Ciência e Cultura, Rio de Janeiro:Zahar, 1994, p. 63, 166/167.31 "Una lectura freudiana de Hans Kelsen", in: Id. et al., Materiales para unaTeoria Critica del Derecho, Buenos Aires: Abeledo Perrot, 1991, p. 22.32 Massenpsychologie und Ich-Analyse [1921], in: SIG. FREUD, GesammelteWerke, cit., vol. XIII, p. 94, nota 2.
44
feita por Hans Kelsen,33 quando no final de seu longo percurso
teórico irá concluir, como vimos, que o fundamento no qual o
direito se assenta é uma norma fictícia - sendo ele,
portanto, assim como a religião, a moral e, porque não dizer,
a própria psicanálise, grandes ficções que construímos
individual e coletivamente para tornar possível nossas vidas
em comum, o que termina sendo enormemente favorecido se nos
damos conta desse seu caráter fictício, simbólico,
convencional: se não esquecermos que estamos para efeitos
práticos assumindo como verdadeiro o que não é (ou não se
sabe se é). Desenvolver racional e conscientemente uma ilusão
não é melhor do que se iludir com a racionalidade e a
consciência? A falsa segurança da certeza é a maior ameaça
com que nos defrontamos.34
De forma convincente, a partir de uma série de estudo
dedicados ao assunto, Joel Birman sustenta que o intento de
Freud, de fundar em bases científicas a psicanálise, teria
33 Dio e lo Stato, Nápoles: Edizioni Scientifiche Italiani, 1988, p. 139ss.34 Nesse sentido, CLÉMENT ROSSET, O real e seu duplo: ensaio sobre a ilusão,trad. JOSÉ THOMAS BRUM, Porto Alegre: L&PM, 1988.
45
esbarrado em obstáculos epistemológicos intransponíveis,35 os
quais, no entanto, serão superados, por meio daquilo que o
próprio Freud denominará sua "metapsicologia" - a ela, em
estudo célebre de 1937, sobre o fim da análise, se referirá
como a "feitiçaria" que usou, para atravessar aqueles
obstáculos. Já em seu estudo "Uma neurose diabólica do século
XVII", de 1923, Freud demonstrará seu respeito pelo enfoque
demonológico da loucura, superior ao da ciência oficial de
35 Cf. "Indeterminismo e incerteza do sujeito na ética da psicanálise", in: Ética,Psicanálise e sua Transmissão, MARIA INÊS FRANÇA [org.], Petrópolis:Vozes, 1996, p. 53 ss., passim. Estudos recentes, como o de ALFREDI. TAUBER, “Freud’s philosophical path. From a science of mind to a philosophy ofhuman being”, in: The Scandinavian Psychoanalytic Review, n. 32, 2009, p. 32ss., demonstram de maneira convincente que essa vertente dopensamento freudiano, de crítica cultural e investigaçãohumanística, representa uma retomada de suas preocupaçõesfilosóficas, de inspiração brentaniana, pois ao lado do curso demedicina, na Universidade de Viena, acompanhou as aulas deBrentano na década de 1870, na mesma época que E. Husserl,igualmente influenciado por Brentano em sua virada para afilosofia, profundando seus estudos de matemática e física,conforme relato de sua esposa – cf. KARL SCHUHMANN, “Malvine Husserls‘Skizze eines Lebensbildes von E. Husserl’”, in: Husserl Studies vol. V, n. 2, 1988,p. 105 ss., e, sobre a influência de Brentano em ambos, sobretudopelo conceito de intencionalidade, retomado dos medievais, paraque se possa conceber o essencial da realidade psíquica como sendoo sentido, histórica e dinamicamente definido, cf. PAUL RICOEUR,Freud and philosophy, New Haven, CT: Yale University Press, 1970, p.379; ANDRÉ RICARDO CRUZ FONTES, A idéia de objeto em Husserl e Meinongconsiderada a partir da filosofia de Franz Brentano, Tese, IFCS-UFRJ: Rio deJaneiro, 2007, p. 41.
46
então, assim como na segunda série de palestras introdutórias
à psicanálise, de 1933 - que, como é sabido, jamais vieram a
ser pronunciadas, devido à saúde de seu autor -, naquela que
teria sido a 30ª palestra (a segunda da nova série), ele fará
em relação às práticas ocultistas, especialmente a telepatia,
considerando possível que o futuro avanço da ciência a
revelasse plausível, enquanto, por hipótese, um resquício de
quando nossos antepassados se entenderam sem possuírem a
linguagem para se comunicarem. Ao que parece, portanto, Freud
teria chegado a conclusão semelhante àquela de Lévi-Strauss,
quando o antropólogo afirmou não poder diferenciar o estudo
dos mitos feito por ele desses mitos mesmos...
Certa feita disse Jacques Lacan, em um de seus
Seminários,36 "o que vem lá do começo tem um nome: é o mito".
Myeîn, em grego antigo, significava iniciar – e também calar,
sobre o que se transmitia na iniciação. No mito, então,
mascara-se a verdade. Mas ela está lá, só que mascarada,
enfeitada. Talvez isso seja preciso por não ser tão bela e
agradável olhar para ela; por não suportarmos vê-la
36 Cf. O Avesso da Psicanálise, trad. ARI ROITMAN, Rio de Janeiro: Zahar,1992, p. 102.
47
diretamente, sem anteparos, assim como não suportamos olhar
de frente, por muito tempo, o sol - ou a morte. Como
Nietzsche, que em sua obra "O Nascimento da Tragédia no
Espírito da Música" (1872) atribui à extrema sensibilidade do
grego antigo para a dolorosa verdade da existência que pode
se acabar violenta e abruptamente sua capacidade a criação
das Tragédias, podemos ver aí a fonte de sua rica mitologia,
bem como, posteriormente, da transformação de ambas em
filosofia, mãe de toda ciência.
Então, no mito, a verdade é dita, mas não toda a
verdade: uma verdade pela metade, isto é, em símbolos. O mito
é da ordem do simbólico.
Aqui, vale observar que não há uma só explicação para a
origem etimológica da palavra "símbolo" - como, aliás, ocorre
com freqüência, em etimologia -, mas penso que aí, mesmo
quando fantasiosa uma explicação dada, ela não perde seu
valor como expressão do imaginário - e a explicação real, do
real, de qualquer forma, é impossível de ser dada, pois ele
se define - em Lacan -, precisamente, como o que nos escapa.
Para nós, nesse contexto, mito é uma fantasia estruturante do
48
sujeito, uma verdade, que, como toda verdade, "tem uma
estrutura de ficção",37 e "só pode ser concebida se enunciada
em um semi-dizer".38
Lembremos, portanto, nessa perspectiva, do mito
concebido por Freud, para figurar o surgimento da religião e
de tudo o mais que é da ordem da cultura, do propriamente
humano, do simbólico. Na origem disso tudo - onde se inclui,
é claro, o próprio Direito - estaria um crime, o primeiro, o
assassinato de um pai, que só depois de assassinado os
assassinos o perceberiam como pai, e a eles, os assassinos,
como filhos. Esse pai teria sido morto por não partilhar nem
limitar o seu gozo, pois só ele detinha, usava, fruía e ab-
usava das mulheres da chamada "horda primitiva", em que
viviam agrupados. Há, portanto, nesse assassinato, uma
conotação de reivindicação de direitos, de tiranicídio, o que
seria justificável, e de fato o foi, dadas certas37 LACAN, A Ética da Psicanálise, trad. A. QUINET, 2a. ed., Rio deJaneiro: Zahar, 1991, p. 22. Aqui pode-se considerar haver umaalusão ao dito dos juristas-teólogos medievais, "fictio figura veritatis".Cf. Ernst H. Kantorowicz, Os Dois Corpos do Rei. Um Estudo sobre TeologiaPolítica Medieval, trad.: CID KNIPEL MOREIRA, São Paulo: Companhia dasLetras, 1999, pp. 181 ss., passim; tb. PIERRE LEGENDRE, Leçons II:L’Empire de la Véritè. Introduction aux espaces dogmatiques industriels, Paris:Fayard, 1983, p. 109.38 Id., O Avesso da Psicanálise, cit., p. 97.
49
circunstâncias, até por padres da Igreja Católica, teólogos-
juristas medievais, regicidas. Só que o tirano, depois,
revelou-se como pai.
Na situação que podemos imaginar como sendo aquela dos
"filhos" nessa horda primitiva, eles, à medida que cresciam,
eram expulsos pelo "pai", para que conseguissem por seus
próprios meios o sustento e as suas mulheres. Ora, essas
criaturas - de acordo com a explicação dada em teoria recente
sobre o surgimento do humano, devida ao biólogo chileno de
renome internacional, Humberto Maturana -, se eram seres
"proto-humanos", então já conheciam o amor e eram
cooperativos numa escala jamais atingida por seus "primos"
não-humanos, os chimpanzés, que por serem tão agressivos não
evoluíram no sentido de uma hominização. A meu ver, isso
torna ainda mais consistente o mito-fundador da sociabilidade
humana, concebido por Freud, mito em que encontramos, como
veremos em seguida, as características próprias da tragédia,
o seu telos, tal como se acha definido por Aristóteles, nos
capítulos sexto e décimo terceiro de seu tratado sobre a
poética: provocar piedade e temor (diante da divindade).
50
Retomando a narrativa do mito freudiano, tem-se que,
após o assassinato do Pai-Deus seu corpo teria sido
partilhado por todos, havendo neste ato de "comer juntos", de
comunhão, mais do que um sentido de incorporação do poder e
de recolhimento em si do morto, a finalidade de instituição
da comunidade, da "comum-unidade". Daí que os filhos expulsos
ficavam inconformados com a perda do convívio na horda, onde
aprenderam as vantagens da cooperação, para atingir o que
sozinhos não conseguiriam, donde ter-lhes ocorrido a idéia
que os levou a pactuar, tacitamente, o assassinato de quem os
expulsou, e que morto, ausente, se revelará como o pai.39 Eis
39 De se notar, ainda, é a alusão de Freud ao banquete no qual osfilhos comem a carne do pai morto, uma festa de naturezasacrificial, que René Girard, em A Violência e o Sagrado, 3ª. ed., SãoPaulo: Paz e Terra, 2008, irá situar na origem da religião e detoda sociedade - esta pressupondo a primeira -, enquanto excessopermitido e violação ritualizada de proibições, exceções quegarantem a persistência das regras e da ordem social. Para ele, "aprópria violência vai deixá-las de lado, assim que o objetoinicialmente visado sair de seu alcance e continuar a provocá-la.A violência não saciada procura e sempre acaba por encontrar umavítima alternativa" (p. 14) ... "Só é possível ludibriar aviolência fornecendo-lhe uma válvula de escape, algo para devorar(p. 17) ... "A substituição sacrificial pressupõe um certodesconhecimento. Enquanto permanece vivo, o sacrifício não podetornar explícito o deslocamento no qual se baseia. Mas ele tambémnão pode esquecer completamente nem o objeto inicial, nem odeslizamento realizado deste objeto para a vítima realmenteimolada" (p. 18)..."O sacrifício polariza sobre a vítima os germesde desavença espalhados por toda parte, dissipando-os ao propor-
51
que, porém, esse primeiro contrato, um pacto de sangue, o
verdadeiro "contrato social", não resultará muito benéfico
para as partes contratantes, pois eles terminaram ficando, de
qualquer modo, sem aquele que os protegia e alimentava. Além
disso, ao invés da aprovação, devem ter despertado alhes uma saciação parcial" (p.21)... "O princípio da substituiçãosacrificial baseia-se na semelhança entre as vítimas atuais e asvítimas potenciais, e essa condição pode ser perfeitamentepreenchida, quando, nos dois casos, trata-se de seres humanos. Ofato de que algumas sociedades tenham sistematizado a imolação decertas categorias de seres humanos com o objetivo de proteger asoutras categorias não tem nada de supreendente" (p. 25)... "Odesejo de violência é dirigido aos próximos; mas como ele nãopoderia ser saciado às suas custas sem causar inúmeros conflitos,é necessário desviá-lo para a a vítima sacrificial, a única podeser abatida sem perigo, pois ninguém irá desposar sua causa" (...)Os homens obtém tanto mais êxito na eliminação da violência quantomais este processo de eliminação não for reconhecido como seu, massim como um imperativo absoluto, como a ordem de um deus cujasexigências são tão terríveis quanto minuciosas. O pensamentomoderno, ao expulsar completamente o sacríficio para fora do real,continua a ignorar sua violência"( p.27)..."A vingança constituiportanto um processo infinito, interminável. Quando a violênciasurge em um ponto qualquer da comunidade, tende a se alastrar e aganhar a totalidade do corpo social, ameaçando desencadear umaverdadeira reação em cadeia, com consequencias rapidamente fataisem sua sociedade de dimensões reduzidas. A multiplicação dasrepresálias coloca em jogo a própria existência da sociedade. Poreste motivo, onde quer que se encontre, a vingança é estritamenteproibida" (p.28)... "O sacrifício oferece ao apetite deviolência , que a vontade ascética não consegue saciar, um alíviosem dúvida momentâneo, mas indefinidamente renovável, cujaeficácia é tão sobejamente reconhecida que não podemos deixar delevá-la em conta. O sacrifício impede o desenvolvimento dosgermens de violência, auxiliando os homens no controle davingança" (...) A hipótese que levantamos confirma-se: é associedades desprovidas de sistema judiciário, e por isso mesmoameaçadas pela vingança que o sacrifício e rito em geral devem
52
indignação de suas "mães", que aí também ficaram sem essa
proteção e, de resto, sem um "homem de verdade", donde terem
instaurado o matriarcado, em que o gozo do direito às
mulheres e a tudo o mais foi organizado pelas mulheres,
reforçando aquela Lei que Lévi-Strauss considera a lei
fundadora da sociedade, lei ao mesmo tempo natural e social,
a primeira: a lei que proíbe o incesto com a mãe.40
desempenhar um papel essencial. Mas é incorreto afirmar que osacrifício substitui o sistema judiciário. Em primeiro lugar,porque é impossível substituir algo que com certeza nunca existiu,e em seguida porque, na ausência de uma renúncia voluntária eunânime a qualquer violência, o sistema judiciário éinsubstituível em seu domínio" (p.32). Em suma, por essa hipóteseos hominídeos foram primatas que aprenderam a instrumentalizar aviolência mimética, a de um ser desejante sem objeto definido paradirigir esse desejo, que resulta em desejo do desejo de outrem(mimese), inicialmente admirado, depois odiado e, quando morto,novamente lembrado com admiração, aponta para uma origem comum: adescoberta do mecanismo do bode expiatório, mediante o qual aviolência, tornada coletiva, é canalizada contra uma vítimaexpiatória, protótipo dos heróis e divindades, pois na mesmamedida em que será odiada, por concentrar a inveja de todos,também será, depois de assassinada, amada, idolatrada, quandoreconhecida a sua inocência e a correspondente falta de seusalgozes.
40 Cf. Les structures élémentaires de la parenté, Paris: P.U.F., 1949, p. 38ss., passim. A propósito, há o conhecido texto de Lacan sobre afamília, publicado em 1938 na "Encyclopédie française", tomo VIII,onde ao tratar do complexo de édipo, refere o "apoio sociológico"que as teses de Freud sobre as fantasias do inconscientereceberiam dos estudos enfeixados por Frazer em sua célebre obra"The Golden Bough", onde se reconhece no tabu da mãe a "leiprimordial da humanidade". Em sua investigação não menos célebresobre as estruturas elementares do parentesco, Claude Lévi-Strauss
53
Na situação em que se encontraram nossos antepassados
parricidas, é fácil imaginar que tenham experimentado os
sentimentos que, na Grécia Clássica, foram considerados o
instrumento de purgação e apaziguamento, pela catarse
provocada com a encenação das tragédias, de semelhantes
paixões: temor - "prius in terram deus facit terror" - e piedade
(inclusive, auto-piedade). Assim é que, como para
complementar o mito do assassinato do pai primevo, no dizer
de Lacan, "talvez o único mito de que a época moderna tenha
sido capaz (...), mito de um tempo para o qual Deus está
morto",41 a outra grande invenção de Freud, para estabelecer o
estatuto da fantasia inconsciente que nos constitui,
inspirou-se na tragédia de Sófocles, "Édipo-Rei", apontada
sustenta ter a proibição do incesto sua origem na natureza, emboraseja consagrada em uma regra, emanada do ambiente sócio-cultural,e que seria a primeira norma jurídica. Aqui, também, não se podedeixar de recordar o Mutterrecht de Bachofen, que tanta influênciateve em autores como Nietzsche e nosso Oswald de Andrade, sendoum, filosófo literato e o outro, literato filósofo,respectivamente.41 LACAN, A Ética da Psicanálise, cit., 1991, p. 216 e s. O mesmo foi ditopor ele no Seminário "O Desejo e a sua Interpretação", na últimadas sete lições sobre Hamlet, em 29 de abril de 1959,acrescentando: "Este mito indica-nos uma ligação essencial - aordem da lei apenas pode ser concebida na base de algo maisprimordial, um crime. É também o sentido freudiano do mito deÉdipo". J. LACAN, Shakespeare, Duras, Wedekind, Joyce, J. MARTINHO(org.), Lisboa: Assírio & Alvim, 1989, p. 104.
54
por Aristóteles, no capítulo décimo quarto de sua já citada
obra, como exemplar para nos dar o prazer próprio da
tragédia: nos fazer "tremer de temor" e apiedarmo-nos,
temendo aos deuses.42 Ali, também um filho assassina,
inconscientemente, o pai, que o expulsara do convívio
familiar. Só que Édipo, ao contrário dos filhos da horda
primitiva, vai realmente possuir sua mãe, ainda que sem o
saber (inconscientemente), ou seja, da eliminação do pai não
vai decorrer, como para aqueles "filhos primevos", a
abstinência, mas sim, o oposto, a realização do ato sexual
com a mãe, acompanhado de um gozo letal.43 Em ambas as
hipóteses, contudo, o resultado da transgressão, quando dela
se toma consciência, é o reforço da interdição, com a
invocação do pai morto e de sua Lei. A interdição, portanto,
revela-se como condição do desejo e do gozo, ao acenar para a
sua possibilidade, anunciada no além dela, isto é, na sua
42 Para J. Hillman (em Id./K. KERÉNYI, Variazioni su Edipo, Milão:Raffaello Cortina, 1992, p. 113), "a análise é edípica no método:a pesquisa como interrogação, a consciência como olhar, o diálogopara descobrir, a descoberta de si através da rememoração dosprimeiros anos de vida, a leitura oracular dos sonhos...".43 Cf., nesse sentido, RICARDO GOLDENBERG, Ensaio sobre a moral de Freud,Salvador: Ágalma, 1994, p. 30.
55
trans-gressão.
Há, então, para a psicanálise, um pai-morto na origem da
sociedade, da religião, da ética e do direito, assim como na
origem da própria psicanálise, só que aí não é um pai-mítico,
mas um pai real, o pai do pai da psicanálise, o pai de Freud,
cuja morte, segundo atesta ele próprio, o teria levado a
escrever o seu primeiro trabalho puramente psicanalítico, "A
Interpretação dos Sonhos", a partir da interpretação que
elaborou para os sonhos que tinha com seu falecido pai.
Depois, com a postulação do complexo de Édipo e do mito da
horda primitiva, Freud vai pôr um pai-morto na estrutura de
nossa organização psíquica. Por fim, em sua última obra,
"Moisés e o Monoteísmo", Freud pretende descobrir um
patriarca assassinado pelos seus na origem da nação e da
religião monoteísta judaica.44 Então, como dirá Lacan, tudo44 Winnicott, a partir dessa obra de Freud, avança a hipótese deque foi preciso o advento do monoteísmo, seguido pela “criação deum corpo de ciência”, para que os sujeitos passassem a se concebercomo indivíduos ou, em seus próprios termos, “pudessem tornar-seunidades integradas em termo de tempo e espaço, que pudessem vivercriativamente e existir como seres individuais” – cf. O Brincar e aRealidade, cit., p. 101. Que entre os antigos gregos, realmente, talunificação não ocrreu é oq que atesta obras como a de RUTH PADEL,In and Out of The Mind. Greek Images of the Tragic Self, Princeton: PrincetonUniversity Press, 1992. Aqui vale lembrar que no último período deseu longo e fecundo percurso teórico Freud revisou a posição que
56
gira e é amarrado pelos "Nomes-do-pai" - e ele dará vários
nomes ao Pai, pois o conceberá como uma "função", mais
dessubstancializado do que em Freud, por quem era tido como
uma "posição". O significante "Pai" é equivalente ao
significante "Lei", no mesmo encadeamento ao qual pertencem
outros significantes, como "Deus" e "Falo", por entre os
quais o sujeito se constitui, e pelos quais é representado.
Tendo referido à lenda de Édipo para caracterizar,
segundo a psicanálise, a associação da Lei, em suas diversas
modalidades, com a função paterna, vale fazer uma alusão à
filha de Édipo, Antígona, eregida por Lacan e seus (muitos)
seguidores em símbolo da firmeza ética, para todas as éticas
assumira em relação ao fenômeno religioso, nos termos que seseguem, extraídos de passagem do acréscimo de 1935 à sua “auto-apresentação”, de 1925: “Em ‘O Futuro de uma Ilusão’ fiz umaapreciação fundamentalmente negativa da religião; depois encontreia fórmula que lhe faria mais justiça: seu poder repousa de fato emseu conteúdo de verdade, mas essa verdade não é material, e sim,histórica”. Uma fórmula, sem dúvida, lapidar, à qual chegou um dosque está, reconhecidamente, entre os grandes gênios da humanidade,após uma reflexão que se desdobrou ao longo de quase toda uma vidaprovecta. Vale reproduzir a passagem tal como foi escritaoriginalmente: “In der ‘Zukunft einer Illusion’ hatte ich dieReligion hauptsächlich negativ gewürdigt; ich fand später dieFormel, die ihr besser Gerechtigkeit erweist: ihr Macht beruheallerdings auf ihrem Wahrheitsgehalt, aber diese Wahrheit istkeine materielle, sondern eine historische”. FREUD, Nachschrift 1935zur “Selbstdarstellung”, in: Gesammelte Werke, cit., vol. XVI, p. 33.
57
possíveis, inclusive a ética da psicanálise, cujo imperativo
categórico é: "não ceda de seu desejo".45 Disso resulta a
negação de toda ética universalista, tal como aquelas
propugnadas na modernidade, em prol da ética de cada um, a
ética individual e situacional, a ética da amizade e do
cuidado de si, sobre a qual falou e escreveu o último
Foucault.46
Dependendo do ponto de vista, Antígona pode aparecer
como santa ou criminosa. Criminosa, na perspectiva do direito
positivo; santa, para o direito meta-positivo, de origem
religiosa. Para a psicanálise, porém, ela não seria nem
santa, nem criminosa, duas ilusões provocadas por duas
ficções diferentes: a religião e o direito.
45 Cf. J. LACAN, Ética da Psicanálise, cit., p. 382 ss., bem como ocomentário à "Antígona", ib.: 295 ss. É certo que essainterpretação lacaniana é muito controversa e, mesmo, sem apoionas pesquisas filológicas mais acuradas e recentes, mas comoadvoga, com perspicácia, Ruth Padel (ob. cit., p. 10): “Tragedy isthere for whoever wants to read and perform it. It is right andnecessary, I believe, to interpret tragedy for whatever you wantto get out of it”. Por outro lado, de acordo com o penamento anti-edípico de G. Deleuze, Antígona pode ser vista com encarnando aimaginação masoquista no enfrentamento com a racionalidade sádicade Creonte. Cf. G. DELEUZE, Sacher-Masoch, Rio de Janeiro: Zahar,2009, passim, esp. p. 124. 46 Cf., a respeito, por exemplo, FRANCISCO ORTEGA, Intensidade: Parauma história herética da filosofia, Goiânia: Editora UFG, 1998, p. 62 ss.
58
Essa, recordemos, é a peça fundadora do que viria a ser
uma trilogia, a trilogia tebana, com Édipo Rei sendo
cronologicamente a segunda a ter aparecido, mas às duas o seu
Autor, Sófocles, acrescentou, já no final da vida, uma
terceira, a última que nos legou, encenada postumamente,
narrando acontecimentos intermediários: Édipo em Colono. Ora,
podemos ver nessa peça uma chave interpretativa de Antígona
fornecida pelo próprio Sófocles, como que aderindo ao modo de
seu grande rival, Eurípedes, realizar sua obra
tragediográfica, sob a influência da então nascente
racionalidade filosófica, encarnada na figura de seu
mestre, Sócrates. É a tese, celebrizada por Nietzsche, mas da
qual os próprios gregos tiveram consciência, tal como
demonstram comédias de Aristófanes, como As Nuvens e As Rãs,47
de como a invenção da racionalidade filosófica, promovendo a
descrença religiosa e o desencantamento mitopoético levou ao
fim trágico das tragédias, o que explica também a reviravolta
de Eurípedes em sentido contrário ao que defendia, em sua
47 Nesse sentido, ADRIANY FERREIRA DE MENDONÇA O nascimento da filosofia apartir da arte: uma abordagem nietzschiana, Tese, UERJ: Rio de Janeiro,2005.
59
última peça, também encenada postumamente, As Bacantes. As
ações dos protagonistas principais, que na Antígona se
apresentam como pautadas por fortes convicções políticas,
éticas e religiosas, de elevado padrão, podem agora ser
vistas, por um lado, de maneira mais prosaica, revelando-se
as motivações privadas do que irrompe na cena pública, e de
outro lado, uma nova luz se projeta na atuação de Antígona
nesta cena. Isso porque ao final de Édipo em Colono, quando
Édipo não só recusa-se a dar sua benção a Polinices, como o
amaldiçoa, assim como seu irmão, a morrerem um pela mão do
outro, ele apela para as irmãs, Ismene e Antígona, para que
não deixem, em isso ocorrendo, que seu corpo fique insepulto,
ou seja, que cumprissem com o seu papel de irmãs, no que
aquiescem, dando-lhe um abraço emocionado – e aqui não resta
dúvida que apenas um gesto seria suficiente para manifestar
tal aquiescência, pois como Édipo dissera pouco antes a
Teseu, entre amigos (philoi) não se precisava jurar para
sacramentar uma promessa, sendo esta relação “filíaca” que
posteriormente Antígona seguidamente alegará, para justificar
sua ação transgressora, de enterrar o irmão. Vale enfatizar o
60
caráter revolucionário e, por isso, heróico de Antígona, que
além de mulher era jovem, muito jovem (o Coro a chama mesmo
de "a menina", he païs), e apesar dessa dupla condição
inferiorizadora, na sociedade em que vivia, partiu mesmo para
o enfrentamento com o mais velho e mais poderoso dos homens
dentre os que a cercavam, Creonte, a quem inclusive devia
obrigações filiais, pois sendo seu tio materno, é a quem
Édipo encarrega a criação das filhas, no final do Édipo Rei.
Então, a questão dela não é tanto, ou tão-somente, enterrar o
irmão, ao que estava obrigada inclusive pela promessa feita a
ele, conforme referido. Para obter isso, porém, haveriam
diversos meios, que poderia ser mais eficazes, do que
simplesmente fazer ela própria o enterro, o que nem sequer
conseguiria direito (tanto que pede a ajuda da irmã, e
precisa fazer em etapas, o que termina permitindo que seja
presa em flagrante). Basta lembrarmos de como procedeu, em
situação semelhante, o pai de Heitor, Rei de Tróia, quando
Aquiles tomou decisão igual à de Creonte, e o Rei, em cena
que há quem considere a mais comovente de toda a Ilíada, vai ao
encontro de Aquiles suplicar pelo cadáver do filho, chegando
61
a beijar as mãos que mataram Heitor e outros filhos seus. E
como sabemos da peça de Ésquilo, Sete contra Tebas, se Eteocles
só se envolveu pessoalmente na disputa ao saber que seu irmão
tinha feito o mesmo, certamente não iria desonrar o seu
cadáver, caso não tivesse morrido, ao matá-lo. Antígona, com
seu gesto, recusa a transmissão do poder real ao "General"
(strategos), como ela acertadamente qualifica Creonte, não o
considerando digno sequer de reconhecimento como verdadeiro
soberano (basileus), donde seu gesto, que não é para ser
entendido sequer como violação de uma norma, mas como um não-
reconhecimento como tal do decreto de Creonte, o qual seria
um mero ato de força, uma lei marcial, a prolongar, por sua
inépcia ou por uma estratégia de governo, o estado de
beligerância civil (stasis), ao invés de encerrá-la, com o fim
da guerra (polemos). Então, Antígona foi mesmo heróica, com
seu ato extremo, pondo em jogo a própria vida, ao confrontar
Creonte, ao invés de tentar primeiro apelar para os laços de
parentesco que os unia, ao ponto de ser chamada de louca pelo
Coro, pois ele se mostrou absolutamente disposto a matar quem
se opusesse ao seu poder de decidir arbitrariamente quem
62
seriam os “inimigos da pátria”. Ocorre que ela era a própria
encarnação dessa pátria, como a filha epocler, que transmite a
legítima sucessão do poder real - Hölderlin, por exemplo, em
sua tradução interpretativa da peça, a qualifica de rainha,
ao invés de simples princesa, na sua fala final, quando se
dirige ao povo de Tebas, denunciando o modo como está sendo
des-tratada. Agora, do ponto de vista, digamos,
governamental, ela seria o que hoje se costuma qualificar de
“terrorista”, e o tratamento que foi dado a ela, a quem
também não se aplicou a pena prevista, de apedrejamento,
trocada pela condenação à morte por emparedamento, viva, bem
demonstra a presença de um estado de exceção, em que o
detentor do poder decide a seu arbítrio mesmo a quem (e como)
se aplica as leis que arbitrariamente estabelece.
Nota-se, assim, como certas coisas não mudam nesse ser o
mais assombroso dentre todos os assombros, que somos o
humanos, tal como refere a famosa ode no início de Antígona,
que procura impor-se a tudo e a todos, pela associação
política de muitos, só encontrando na morte um limite à sua
ânsia de perdurar a qualquer custo. É ao enfrentamento desse
63
limite que Antígona vai ser levada, por um vínculo de amor
que dá sentido poético à vida, e torna sem sentido a oposição
política entre os aliados e os adversários, a essência mesma
da política segundo Schmitt. Mas era isso o que seu
antagonista, Creonte, queria levar ao ponto extremo de
desonrar o cadáver do inimigo, seu sobrinho, um parente
(philos), que na concepção grega não podia ser considerado
assim, e cuja morte ainda seria insuficiente, para saciar uma
sede tamanha de vingança, movida pelo ódio interminável e,
sobretudo, a vontade de se afirmar como o soberano que
decidia em Tebas sobre os destinos de seus cidadãos, sua
vida, morte e mesmo além. Recentemente tivemos a oportunidade
de presenciar algo semelhante, no caso do suposto assassinato
e funeral de Osama Bin Laden. Bem diversa era a sede de
Antígona, a sede de justiça, movida pelo amor, pois como ela
diz em uma de suas mais belas e últimas falas, ela nasceu só
para amar e ser amada, não para odiar, mas não teve essa sua
destinação realizada, por ter sido pelo ódio que se definiu o
destino dos que amou e que a amaram. A escalada de violência
com a intensidade que só os humanos são capazes de praticar
64
só cessa quando os envolvidos se valem daquilo que desde os
antigos gregos foi considerado como sendo o que nos distingue
de outros “animais”, enquanto “políticos”: o logos, ou melhor,
o diálogo, pelo qual se pode realizar a justiça, que em
situações de intenso conflito, se não for poética, afetiva,
amorosa, termina tragicamente, como fica demonstrado no
desvio de Antígona do que esperava e gostaria que fosse seu
destino.
Para a psicanálise, Antígona apenas agiu conforme o seu
desejo, inconsciente. Desse ponto de vista, só lhe era
permitido escolher a morte que teve, como condição de seu
gozo.48 Sua liberdade é a necessidade de sua morte, dando seu
corpo para ser o túmulo de seu irmão, que assim descansaria
em paz, na paz que não teve um outro seu irmão, seu pai,
Édipo - reza a lenda que ele teria sido muito mal-tratado por
seus filhos-irmãos, após a revelação que o desmoralizou,
tendo lançado sobre eles a maldição de que jamais se
entenderiam, como de fato ocorreu, pois se enfrentaram na
48 Nesse sentido, M. SAFOAN, apud H. YANKELEVICH, A morte de Antígona, ouDo gozo trágico, trad. ARI ROITMAN, in: Letra Freudiana", n. 7/8, Rio deJaneiro: Escola da Letra Freudiana, s/d, p. 47.
65
disputa do trono de Tebas, donde adveio o falecimento daquele
a quem Antígona insistiu até a morte para enterrar
condignamente, perante seu tio e (ex-)futuro sogro.49 Eis aí
representada a origem violenta de toda proibição, tanto
sagrada, como jurídica, que garante nossa vida em sociedade,
sustentada pelo enfrentamento da morte, ou, na fórmula
consagrada por R. Caillois,50 condição da vida e porta para a
morte.
Já na "metáfora paterna" psicanalítica, o pai aparece
como "outro", uma figura estranha ao Um que são mãe e filho,
um estrangeiro, "étranger", "étre-anje" - "ser-anjo", sempre por
perto, que de tanto aparecer e reaparecer se torna familiar,
mas que em dado momento, de anjo da guarda torna-se anjo-
exterminador, e corta a relação "umbilical" entre mãe e
filho, fazendo a castração simbólica do Falo que um
representa para o outro. Com isso, instaura-se a falta, a
falha, que possibilita a fala do filho, para preenchê-la - a
49 Sobre a lenda de Édipo cf. J.-P. VERNANT, O Universo, os Deuses, osHomens, São Paulo: Companhia Das Letras, 2000, p. 162 ss., esp.177 ss., a respeito dos filhos do herói grego.50 El Hombre y el Sagrado [1939], México: Fondo de Cultura Económica, 1996, cap. V, p. 147 ss.
66
fala e tudo o mais que é da ordem do simbólico, do humano e
do sublime, como as leis. A castração simbólica, portanto,
repristina aquela Lei primordial, proibindo o excesso, o
incesto. Mas nem todos a aceitam, donde além dos neuróticos
haverem os que se põem acima dessa Lei ou fora dela: os
psicóticos e os perversos.
Daí ter Freud falado na necessidade de sublimar nossas
pulsões no processo civilizatório, e Lacan, por seu turno,
tenha enfatizado a importância da simbolização dos desejos
produzidos em nosso imaginário, que são espectros, fantasmas,
a atormentarem o sujeito, sempre em busca do objeto causa de
seus desejos, apesar de ser barrado no seu acesso a ele. Por
isso Lacan representa esse sujeito por um "S" cortado, $,
para representá-lo como barrado, castrado simbolicamente,
enquanto aquele objeto, causa de seu desejo, ele o chama
"objeto a minúsculo", reivindicando-o como sua única
descoberta em psicanálise. Esse (a) remete ao conjunto vazio
(ø), pois inexiste onde o sujeito pretende encontrá-lo, o que
se explica naquilo que Lacan propôs como a "fórmula do
67
fantasma": $ ◊ a.51 Decompondo-a, tem-se que, ao mesmo tempo,
$ ‹ a ($ menos que a), $ › a ($ mais que a), $ ^ a ($ inclui
a) e $ v a ($ exclui a).
Na base de toda a ilusão coletiva que é a sociedade,
cimentada por normas da ética, do direito e das religiões,
portanto, está a ilusão individual de que somos, o vazio que
somos, por não sermos propriamente. A primeira tentativa que
fazemos para colmatar esse vazio, essa falta de ser, quando
se ausenta "aquilo" que julgávamos ser - nossa mãe, onde
"éramos" antes de nascer -, nos leva a falar. Adquirindo a
linguagem, nos vem a ilusão fundamental: a do Eu.52 Depois,
por modos diferentes, diante do fracasso repetido de atingir
"algo" que preencha-nos o vazio de ser - o "objeto a" de que
nos falou Lacan, objeto perdido do desejo, inexistente, no
sentido em que Heidegger se refere a "das Ding"53 - terminamos
nos fixando mais em alguma prática, como a religião, a arte
ou a ciência. Com a arte, ornamentamos o vazio, disfarçando o
51 Cf. LACAN, Shakespeare, Duras, Wedekind, Joyce, cit., p. 74 ss.52 Cf., a propósito, FRANCISCO J. VARELA, Sobre a Competência Ética,Lisboa: Edições 70, 1995, p. 66.53 MARTIN HEIDEGGER, "Das Ding", in: Id. Vorträge und Aufsätze, vol. II,Pfullingen: Neske, 1954.
68
horror que nos causa; com a religião, nós o evitamos, ao
venerá-lo; com a ciência, nós o negamos, negando, assim, a
nós mesmos, do que resulta essa espécie tão eficaz de
sociedade em sua capacidade destruidora que é a nossa.
4. Contribuição medieval para estabelecer a estrutura moderna
do pensamento filosófico e jurídico
É de fundamental importância, para uma apreciação do
modo como a ciência e a própria filosofia,
contemporaneamente, se posicionam em face de valores
assumidos de maneira ideológica, que se perceba como no
período constitutivo da modernidade, em que se destacam os
autores ora enfocados, deu-se a transposição de suas
concepções teológicas e metafísicas, pautadas pela mesma
busca de certeza que caracterizará a modernidade, tanto para
o campo gnosiológico como para aquele da ação orientada por
normas. Partimos de uma consideração feita por de Muralt, em
diversos momentos de sua obra,54 que julgamos acertada, no
54 Cf. L´enjeu de la philosophie médiévale. Études thomistes, scotistes occaniennes etgrégoriennes, 2a. ed., Leiden et al.: Brill, 1993; Néoplatonisme et
69
sentido de se poder reenviar a concepção, do que modernamente
veio a se considerar como ciência jurídica, assim como seu
objeto, enquanto o sistema legal positivado, à estrutura aqui
denominada transcendental, tendo como representantes mais
significativos, dentre os medievais, com pioneirismo,
Guilherme de Ockham, e dentre os moderno, com importância
paradigmática, Immanuel Kant.
A proposta, feita por André de Muralt, que aqui vem
assumida, é a de que, basicamente, há duas estruturas a serem
detectadas, se analisadas as diversas doutrinas filosóficas,
e que se fariam presentes, de maneira mais clara, desde a
primeira grande síntese – e, logo, literalmente, a primeira
grande depuração - do pensamento filosófico, aquela
aristotélica, podendo se encontrar formas embrionárias dessas
doutrinas nos pensadores que o antecederam, bem como nos seus
contemporâneos e pósteros. Após a sua explicitação, em
aristotélisme dans la métaphysique médievale, Paris: Vrin, 1995; A metafísica dofenômeno: as origens medievais e a elaboração do pensamento fenomenológico,trad.: Paula Martins, São Paulo: 34, 1998. Já para a filosofiaprática e política, a referência é a obra publicada originalmenteem 2002, La estructura de la filosofia política moderna. Sus Orígenes medievales emEscoto, Ockham y Suárez, trad.: Valentín Fernández Polanco, Madri:Istmo, 2002.
70
Aristóteles, as diversas doutrinas filosóficas que se
sucederam, assim como outras formas de pensamento que
entraram em contato e se mesclaram com a filosofia, de
natureza religiosa ou científica, vão se constituir por sobre
essas estruturas, que são fundamentalmente duas, apoiando-se
ora de maneira quase exclusiva sobre uma delas, ora sobre
ambas, em maior ou menor medida. Como elementos básicos
dessas estruturas tem-se a distinção aristotélica, proposta
para a compreensão racional ou intelecção da realidade
substancial em si mesma indiferenciada, entre o que nela é
forma e o que é matéria. Os entes singulares, todos e
quaisquer, seriam transcendentalmente compostos de matéria e
forma, considerando-se como transcendental, pelo sentido
etimológico mesmo, a relação que as atravessa (de transcendere)
e vincula, embricando-as.55 Para Muralt, a diversidade de
posições adotadas pelas mais variadas doutrinas do
pensamento, filosófico ou não, de corte ocidental, está
fundamentalmente determinado pelo modo diferenciado como cada
uma delas solucionará o problema da articulação de forma e
55 Cf. A. DE MURALT, Néoplatonisme et aristotélisme, cit., p. 55.
71
matéria, enquanto elementos básicos da realidade, ou do modo
de compreendê-la que é próprio da metafísica, seja como
ontologia, estudando as manifestações do ser em ação, em seu
devir, seja como teologia, estudando o ser como origem
imutável de toda ação e transformação. As duas estruturas
fundamentais, consolidadas no período medieval, são as
seguintes:
(A) A estrutura transcendente, que denominamos assim por
ser aquela que se constitui a partir da unidade
transcendental de forma e matéria no ente,
considerando-se essa unidade nos entes
singulares como anterior à própria articulação
desses dois elementos que os compõem, os quais
só se distinguem por meio da análise teórica,
racional e abstrata, feita sobre os entes
concretos. Essa estrutura é a que se vincula
tradicionalmente a Aristóteles, especialmente
após os desenvolvimentos tomistas de seu
pensamento.
72
(B) A estrutura transcendental, que assim denominamos por
sua origem na metafísica escotista, desenvolvida
como comentário à de Aristóteles, mas tendo como
objeto o que o Doctor Subtilis denomina de
“transcendentais”, enquanto tudo aquilo que
transcende o ser finito, no sentido de ir além
dele, participando do ser infinito, sendo comum
a ambos, ou exclusivo deste último.56 A origem
56 Cf. DUNS SCOT, Quaestiones Subtilissimae in Metaphysican Aristotelis, prólogo,n. 5, in: id. Escritos Filosóficos, trad. e notas CARLOS ARTHUR NASCIMENTOe RAIMUNDO VIER, São Paulo: Abril, 1979, p. 339 e, ali, nota 1. Ostranscendentais, tematizados já por Aristóteles, deve suaelaboração medieval mais bem acabada, segundo A. de Muralt,inicialmente, a Santo Tomás, no De veritate, q. 1, a. 1. As“metafísicas dos transcendentais”, no sentido em que a elas serefere de Muralt, na ob. ult. cit., p. 18 ss. – v. esp. p. 22 -,têm em Scot uma elaboração paradigmática, e se caracterizam poratribuírem a algum dos transcendentais o papel de definir o ser, oque não aparece na estrutura aristotélico-tomista. É assim que, nacontinuação desta obra, o precitado A. postulará só haverem doistipos de metafísicas fundamentais (ou estruturas), aquelas do ser,transcendentes, como a aristotélico-tomista, que então seriamsobretudo ontológicas, e as diversas “metafísicas do Um”, dostranscendentais, mais teológicas – no sentido aristotélico, bementendido. Curiosamente, de Muralt vinculará sua proposta deanálise das estruturas de pensamento, à estrutura (maispropriamente) aristotélica, aquela que denominamos transcendente,visto ser ela “um instrumento de caráter autenticamentefilosófico” – cf. id. ib., p. 54 -, uma vez que “permite a compreensãodas obras do pensamento humano na sua unidade e sua ordem própria” –id. ib., p. 53, grifos do A. -, ou seja, numa perspectiva de“catolicidade”. Xavier Zubiri atribui a Aristóteles a primazia naidentificação disto que se pode denominar a “catolicidade” dafilosofia, ao se propor a estudar seu objeto em sua
73
mais remota desta estrutura se encontra em
Platão ou, antes, no pitagorismo, estando também
presente no neoplatonismo de Plotino ou de Santo
Agostinho. É em Scot, contudo, que se revelará
em sua plenitude esta estrutura, culminando um
desenvolvimento que tem sua origem mais próxima
no perspectivismo oxfordiano de Roger Bacon,
recepcionando os trabalhos de ótica de árabes
como Alhazen (965 – 1039) e dali extraindo
conseqüências gnosiológicas que amadurecerão em
Scot, resultando em seu conceito original de
intentio.57 No que tange o problema da forma e
matéria, pela distinção formal a parte rei ou ex
natura rei (pela natureza das coisas), em Scot
universalidade, e universal não apenas em seus conceitos, mastambém no sentido de abarcar a totalidade das coisas, entendendocada uma de acordo com seu lugar na totalidade dela. Cf., desteA., Cinco lecciones de filosofia, Madri: Alianza, 7a. reimpr., 1999, p. 30;id. Sobre el Problema de la Filosofía y otros Escritos (1932 – 1944), Madri:Alianza/Fundación Xavier Zubiri, 2002, pp. 38/39; v. tb., sobre osdiversos sentidos da “catolicidade” em Aristóteles, OswaldoPorchat Pereira, Ciência e Dialética em Aristóteles”, São Paulo: Ed. UNESP,2001, pp. 152 ss.57 Cf. MATTHIAS KAUFMANN, Begriffe, Sätze, Dinge. Referenz und Wahrheit beiWilhelm von Ockham, Leiden et al.: Brill, 1994, pp. 200 ss.; KATHERINETACHAU, Vision and Certitude in the Age of Ockham, Leiden: Brill, 1988, pp.58 ss.
74
ambas são separadas entitativamente, por
considerá-las como dois entes que são em si e
por si mesmos, independentemente um do outro, e
antes mesmo de se articularem para daí resultar
algum outro ente, em relação ao qual são como
partes de um todo.
Examinemos agora, brevemente, o modo diverso como nas
duas estruturas, a partir de suas determinações fundamentais,
se resolvem problemas tipicamente gnosiológicos e
ontológicos, isto é, filosóficos.
Nas disputas medievais sobre as distinções, que se dão
“historialmente”58 na Europa desde o século XII até pelo menos
meados do século XVIII, enquanto ainda houve quem se
dedicasse explicitamente à construção de sistemas
metafísicos, pois não há como imaginá-los sem uma teoria ou,
pelo menos, uma tomada de posição sobre as distinções.
58 Empregamos o neologismo para distinguir o que é da ordemmeramente histórica, do acontecido, registrado e catalogado emépocas pela ciência da história, daquilo que se dá em um “tempológico”, para referir a expressão goldschmidtiana, empregada emconhecido estudo, que fez escola entre nós (precisamente, na FFLH-USP). Cf. Victor Goldschmidt, “Tempo histórico e tempo lógico nainterpretação dos sistemas filosóficos”, in: id., A Religião de Platão, trad.: Iedae Oswaldo Porchat Pereira, São Paulo: DIFEL, 1963.
75
Vejamos como a questão aparece em cada uma das estruturas
fundamentais acima apresentadas.59
A. Na estrutura transcendente o ser é considerado o tertium quid
comum, ao qual se pode remeter qualquer assertiva, donde
poder ser dito de diversas maneira (pollakos), através das
categorias (kategorein), enquanto os diferentes modos de um ser
que só se mostra (dêixis), deste si mesmo (apo), e por si mesmo
(kat´auton), neste dizer-se racionalmente ou “raciocinante”
(analogismos), unificador e “decodificador” (analego). Na
concepção mais propriamente aristotélica, o ser é
simultaneamente uno e múltiplo, fundando sua unidade na
identificação com a existência, que não nem uma realidade em
si nem uma idéia a parte das substâncias concretas
existentes, mas sim o surgir de cada ser que é, o nascer de
cada ente, a physis ou “nascividade”,60 como um todo sem partes,
um composto indivisível de matéria e forma. A unidade do ser59 Cf. A. DE MURALT, L´enjeu de la philosophie médiévale, cit., pp. 47 ss.,bem como o resumo feito por FRANCISCO LEÓN FLORIDO e VALENTINFERNÁNDEZ POLANCO no Estudio introductorio, in: A. DE MURALT, La estructura dela filosofia política moderna, cit., pp. 16 ss.60 É este o termo que Emmanuel Carneiro Leão e Sérgio Wrublevskisugerem que se empregue para traduzir a noção fundamental,originariamente pré-socrática, de physis. Cf. Os Pensadores Originários:Anaximandro, Parmênides, Heráclito, trad. EMMANUEL CARNEIRO LEÃO e SÉRGIOWRUBLEVSKI, Petrópolis: Vozes, 1991.
76
consiste, assim, na continuidade dos processos da existência
aos quais se denominava “natureza” (physis), já entre os pré-
socráticos ou, como Aristóteles mesmo a eles se referia, os
“físicos”. A distinção entre forma e matéria e qualquer
outra, em relação aos seres naturais, será uma “distinção da
razão”, para efeito de análise lógica, lingüística, do que na
realidade é uno e indissociável em sua atividade e
existência. Do mesmo modo, o conhecimento e a vontade, as
duas potências da atividade do ser humano, se encontram
submetidas a estas exigências de unidade, estabelecidas
naturalmente no âmbito de sua atuação, em relação aos objetos
aos quais se dirigem, os quais, no campo do conhecimento,
teorético, com o predomínio das faculdades noéticas, tornam-
se conceitos, e naquele prático ou político, com o predomínio
da vontade, tendem para o bem.
B. A estrutura transcendental, com a proposta de
distinção formal ex natura rei, em contraposição às distinções
reais e de razão – ou “superando dialeticamente” esta
contraposição, enquanto verdadeiro tertium quid -61, a
61 Cf. A. DE MURALT, L´enjeu de la philosophie médiévale, loc. ult. cit.
77
consideração da forma passa a se impor sobre aquela da
matéria, assim como o intelecto sobre a natureza e a vontade
sobre seu objeto. Isso porque aí o intelecto não se dirige
mais naturalmente ao conhecimento das coisas a serem
conhecidas, passando a criar seu próprio objeto de
conhecimento, sem relação necessária com a realidade em si
daquilo a que representa, tal como é no mundo, na natureza,
visto que agora importa mais a consideração do efeito
modificador que sofre o intelecto com sua própria atividade.
A melhor expressão de novo modo de conhecer seria a doutrina
do ser objetivo (esse objectivum), contido no intelecto, o qual
representa mais sua atividade subjetiva do que o ser dos
entes. Assim, cada elemento do todo que a análise lógica
detecta nas coisas termina adquirindo seu próprio ser, o
qual, no entanto, já não pode ser substancial, existindo como
unidade de forma e matéria, mas tão-somente formal, ser
objetivo, recebendo seu ser da atividade intelectiva pela
forma, analítica e dedutivamente, more geometrico.62
62 De Muralt destaca ainda que, na esteira de sua inadvertidaalteração da doutrina propriamente aristotélica das distinções,com a introdução da distinção ex natura rei, Duns Scot dá ensejo,igualmente, a uma concepção nova da definição, que se fará mais
78
Ao mesmo tempo, no campo da “razão prática”, do esse
objectivum prático, do bem a ser feito (bonum faciendum) o objeto
desejado, esse volitum,63 se concebe como já contido na vontade
que o busca, de modo que esta vontade se revela como querendo
a si mesma, como “vontade de vontade”. É assim que, uma vez
operada a distinção formal, não se concebe mais o intelecto
como tendendo naturalmente à verdade, enquanto sua matéria
própria, passando a transformar o objeto em verdadeiro já
pelo simples fato de inteligí-lo, da mesma forma que a
vontade não deseja o bem porque seu ser nela repousa, mas
abstrata do que aquela feita por gênero próximo e diferençaespecífica, própria do procedimento indutivo e empirista empregadonormalmente na metafísica aristotélica. Como na concepçãoescotista o objeto de conhecimento é in esse rei tal como estáconstituído in esse objecti (ou in esse cogniti), não importando – o queficará de todo evidente em Guilherme de Ockham -, para conhecê-lo,que haja vínculo com objetos reais, entende-se que esteja aí oponto de partida para a metafísica especulativa dedutivista queserá elaborada, exemplarmente, por Francisco Suárez, no séculoXVI, que tanto veio a influenciar o racionalismo cartesiano comotambém, via Leibniz e Wolff, a Kant ou até a concepção dialéticahegeliana e os seus adeptos, materialistas ou não, sendo,portanto, a verdadeira matriz de todo o pensamento moderno, já nãomais metafísico em sua intenção, mas construído segundo os mesmoprincípios arquitetônicos concebidos por Scot, desenvolvidos,entre outros, por Ockham e praticados, exemplarmente, por Suárez.Cf. A. DE MURALT, ob. ult. cit., pp. 85 ss. Essa mesma “dialéticadas formas e da matéria” será aplicada ao campo do direito, já emScot, depois de maneira mais extensa em Ockham, culminando com oaporte de Suárez, como demonstra a obra fundamental de MICHELBASTIT, Naissance de la loi moderne, Paris: PUF, 1990.63 Cf. Id. Ib., p. 43.
79
antes é ela que converte em bem o que por ela é desejado e
imposto como lei.
A existência, na física e na metafísica aristotélicas,
além da unidade de matéria e forma, pressupõe também o
movimento e a transformação do que existe, sem que isso
resulte, como entre os eleatas, nas aporias que apontariam a
impossibilidade do movimento e da mudança, por significarem
uma passagem do ser ao não-ser. É nesse contexto que um novo
par de conceitos metafísicos é introduzido, a saber, aquele
de ato e potência, acarretando novas possibilidades e
divergências doutrinárias.
A. O ser concebido em atividade, no âmbito da estrutura
transcendente, pressupõe a unidade no ser dos entes singulares,
substancialmente indissolúvel, entre ato e potência, assim
como entre forma e matéria, conceitos que são irredutíveis
entre si e discerníveis apenas para efeito de análise lógica.
Cada ente, além de ser um composto substancial de forma e
matéria, ao movimentar-se, demonstra também a unidade de ato
e potência, podendo ser conhecido, individualmente, em seu
ser ou substância una, e universalmente, sob o aspecto da
80
unidade de tudo o que é, enquanto natureza, isto é, o que é
comum: a existência. O instrumento privilegiado deste modo de
conhecer, na concepção mais propriamente aristotélica, não é
a lógica, cujas formas se imporiam à natureza, sendo antes,
ao contrário, as exigências desta, dos campos naturais de
objetos suscetíveis de serem conhecidos, que forjam, por
analogia, as formas conceituais adequadas ao conhecimento do
que é comum, da natureza de tudo o que é.
B. Na estrutura transcendental, a essência do que é se define
como um atributo, uma qualidade que o diferencia do não-ser,
de modo que os entes, ao serem, possuem ipso facto a existência,
a unidade, a verdade e o bem, qualidade de tudo o que é pelo
fato de ser. Nessa consideração essencialista, torna-se
viável a distinção dos atributos do ser, concebidos como
existindo independentemente enquanto idéias ou formas puras,
o que patrocina a análise formal e o método dedutivo. Estamos
diante de uma herança platônica, que será recuperada pela
filosofia escolástica, quando Deus passa a ocupar o lugar do
ser supremo, enquanto as idéias contidas em seu intelecto
seriam os atributos transcendentais convertidos ao ser mesmo.
81
Já o poder criador da divindade é que abriria a possibilidade
de uma participação dos entes nessas qualidades, divinas,
especialmente através daquele ente que foi criado à sua
imagem e semelhança. Então, assim como as idéias do intelecto
divino tendem a substancializar-se, “entificando-se”, no
intelecto humano o ser objetivo das idéias tornam-se
independentes de seu ser formal, donde resulta que da
consideração essencial do ser se chega ao estabelecimento de
um princípio que define de antemão, a priori, o que é como o
que deve ser, em obediência a um tal princípio –
inicialmente, divino ou “sobrenatural”, e na modernidade, o
sujeito do cogito cartesiano ou o sujeito transcendental
legislador kantiano ou husserliano, que na contemporaneidade
será ainda o sistema da linguagem como lógica, no “primeiro
Wittgenstein”, ou como forma de vida, no “segundo
Wittgenstein”, o inconsciente do texto em Derrida e assim por
diante.
Para fazer uma última consideração dos elementos
anteriormente referidos, os quais foram definidos em
oposições e posições diversas em cada uma das duas estruturas
82
fundamentais do pensamento, não se pode deixar de verificar o
modo como esses elementos – o sujeito e a realidade por ele
conhecida, o objeto e a coisa por ele representado, a vontade
e o fim por ele almejado, o poder e a lei por ele
estabelecido etc. – operam naquelas estruturas, o que
significa verificar suas conexões de causa e efeito, como são
concebidas em cada uma daquelas duas estruturas.
A. Na estrutura transcendente, da ortodoxia aristotélica,
concebe-se uma causalidade por ordem recíproca de diversas causas, sem
que haja hierarquia entre elas, sendo a divisão entre as que
se privilegiará feita em função do tipo de investigação a ser
levada a cabo. Daí que as causas eficiente, final, material
e formal intercambiarão seus papéis, a depender do ângulo que
se examine a fixação das mesmas, em relação ao seu substrato
comum, o hypokheimenon, que sempre se fará presente e atuará
como unidade homogênea inalterável pelos movimentos
recíprocos das causas que sobre ela incidem. Assim, a alma,
para os antigos, ou Deus, para os medievais, podem ser
consideradas como causas eficientes, quando iniciam,
respectivamente, o movimento da abstração ou da criação, ou
83
então como causas finais, já que as formas anímicas
aperfeiçoam o ser das coisas, assim como Deus é tido como o
objeto a que aspira o intelecto e deseja a vontade. Alma e
Deus podem operar ainda, indistintamente, como causa formal e
material, e isso não porque possuam forma e matéria, mas sim
por haver neles as formas que serão adquiridas na mudança do
ente considerado como potência (causa formal), em sua
passagem ao ato, movido materialmente por uma alma ou por
Deus (causa material).
B. Na estrutura transcendental, introduzida de maneira sub-
reptícia por Duns Scot, julgando-se um aristotélico da mais
estrita observância, ocorre o que Muralt considera “uma
revolução filosófica que se ignora, quando se trata,
certamente, da única revolução doutrinária digna deste nome
que se produziu na história do pensamento ocidental”.64 Esta
revolução, responsável maior, no plano das idéias, pelas
transformações radicais que resultaram no mundo tal como hoje
o temos, com o que nele há de melhor e pior também – e,
assim, tanto em um caso como no outro, o que nele há de
64 L´enjeu de la philosophie médiévale, cit., p. 118.
84
grandioso -, mostra-se em toda evidência na doutrina da
causalidade concorrente não recíproca das causas parciais, a qual minará
os fundamentos da construção do saber antigo e medieval, de
cunho propriamente aristotélico, criando as condições
subjetivas para o aparecimento da ciência e de tudo o que é
mais característico da modernidade, também em termos
políticos, éticos ou jurídicos.65
A inovação na estrutura de pensamento “escotista”, como
a este segundo tipo de estrutura fundamental costuma aludir
de Muralt, em termos de concepção de causalidade,66 decorre da
consideração do ser como diverso de um tertium quid na
composição de todo ente, assim como no transcurso de todo
movimento, e Deus já não possui nenhuma função material,
tornando-se uma hipótese metodológica, não-necessitarista,
por inescrutável e contingente, para nós, a sua vontade
soberana. As causas, então, passam a ser ordenadas
formalmente, quer em uma hierarquia que se considera
estabelecida de potentia absoluta Dei, quer de acordo com uma ordem
estabelecida arbitrariamente pela vontade de conhecer – ou de
65 Cf. id. ib., pp. 39 s.66 Cf. id. ib., pp. 32 ss.; 321ss.; 331 ss.; passim.
85
poder. Se sujeito e mundo já não estão vinculados
naturalmente, só restam para serem conhecidos os objetos, a
forma de ambos. Se a vontade e o fim por ela almejado não
estão mais unidos pelo amor, só resta um desejo arbitrário
que pode se dirigir a objetos quaisquer, seja para conhecê-
los, seja para dominá-los, o que na modernidade, por exemplo,
em um Francis Bacon, logo será considerado como praticamente
o mesmo. Se o poder já não tem constrangimentos impostos pelo
bem como fim que justifica o seu exercício, só resta a lei
que obriga sem limitações ou necessidade de maiores
justificativas, já que sua força arbitrária provém do simples
fato de estar na lei mesma a sua origem. Isso porque objeto
do conhecimento, vontade arbitrária de agir e lei imposta do
agir são, afinal, considerados efeitos do concurso simultâneo
de causas indiferentes ao que causam, nas quais já não é
possível discernir o que é forma e matéria, eficiência e
finalidade, estando todas reduzidas a uma só causa, que é
formal, mas não como aquela que corresponde a uma matéria
determinada, e é eficiente, mas não como aquela que
corresponde a uma certa finalidade, pois é a causalidade
86
mecanicista, dos impulsos, choques e trajetórias que quando
conhecidos enquanto causas explicam que (oti) e como se deu
algo (ti), mas não por que (dioti) se deu.
É assim que o objeto do conhecimento passa a ser
concebido diversamente. Nesse contexto, é preciso que se
destaque o papel de Guilherme de Ockham, cujo pensamento,
como é sobejamente conhecido, descende diretamente daquele de
Scot, mas introduzindo variações que, no entender de Muralt,
darão suporte a posições também da tradição (aristotélico-)
tomista, indo reverberar, por influência de seus professores
parisienses, naqueles que integrarão a escolástica espanhola
do século XVI, com destaque para o Pe. Suárez (1548 – 1617),
com sua “tentativa sincrética de restauração aristotélica” (-
tomista, WSGF), apesar de vinculada à “tradição scotiana”.67
Para Ockham, o conhecimento resulta da ação, simultânea ou
não, do ente extramental ou da vontade divina, absolutos que
co-existem sem qualquer relação necessária, donde permitir
sua epistemologia “a co-existência sistemática de uma lógica
do nome conotativo, efetivamente `nominalista´, de uma
67 Id. ib., p. 41.
87
crítica `psicologista´ do conceito e de uma filosofia
`voluntarista´ da liberdade”.68
Guilherme de Ockham é um dos introdutores da chamada via
moderna,69 que conduz o pensamento filosófico para além da
Escolástica medieval,70 diretamente na ambiência moderna,71
isto é, ensejando, dentre outros desenvolvimentos, a
emergência do “paradigma da subjetividade”. Sua preocupação
com a análise lógica da linguagem, por outro lado, o torna
precursor, igualmente, do que se pode considerar a temática
fundamental de nosso tempo, em filosofia.72
68 Id. ib., p. 42. V. tb., ib., pp. 153 ss. e, esp., 167 ss.69 Já no século XV o epíteto venerabilis inceptor, atribuído a Ockham pornão ter atingido o grau de mestre, por razões políticas, apareceampliado para venerabilis inceptor viae modernae, cometendo-se uma duplaimprecisão: uma terminológica, por confundir “iniciante” com“iniciador”, outra histórica, pois se a via moderna pode serassociada à adoção do nominalismo ou, como em Thomas Bradwardine(+ 1349), à doutrina da predestinação divina, em nenhuma dessashipóteses o pensamento ockhamiano, por mais importante que seja,pode ser considerado pioneiro. Cf. HEIKO A. OBERMAN, “Via antiqua andvia moderna: late medieval prolegomena to early reformationthought”, in: “From Ockham to Wyclif”, ANNE HUDSON & MICHAEL WILKS(eds.) Oxford/New York: Basil Blackwell, 1987, p. 445 ss.70 Segundo Gordon Leff, por seu intermédio, operou-se em verdadeuma “transformação do discurso escolático”. Cf. William of Ockham. TheMetamorphosis of Scholastic Discourse, Manchester: Manchester UniversityPress, 1975.71 Cf., nesse sentido, HANS BLUMENBERG, Säkularisation undSelbstbehauptung, Frankfurt am Main: Suhrkamp, 1974, pp. 173 ss.72 Para uma aproximação - de resto, no mínimo, temerária -, entre opensamento de Ockham e a filosofia contemporânea da linguagem cf.,v.g., F. BOTTIN, La scienza degli occamisti. La scienza tardo-medievale dalle origini
88
Apesar disso, trata-se de um pensador ainda
relativamente pouco estudado, vítima de um “preconceito
elevado à segunda potência”, pois tanto é preterido por ser
um autor medieval, como também por não ser um daqueles que se
costuma considerar característicos do período histórico em
que viveu – o que de fato não foi. É assim, por exemplo, que
suas obras só na última década do século XX foram
completamente editadas.
Não resta dúvida, contudo, quanto à intensificação dos
estudos a respeito de nosso autor, como se pode constatar a
partir da bibliografia abaixo indicada, que de longe sedel paradigma nominalista alla rivoluzione scientifica, Rimini: Maggioli, 1982;id. “La scienza secondo Guglielmo di Ockham”, in: A Ciência e a Organização dosSaberes na Idade Média, LUIZ ALBERTO DE BONI (org.), Porto Alegre:EDIPUCRS, 1998, pp. 315 ss.; TH. DE ANDRÉS, “El nominalismo deOckham como filosofía del lenguaje”, Madrid, 1969; M. KAUFMANN,Begriffe, Sätze, Dinge. Referenz und Wahrheit bei Wilhelm von Ockham, cit.; C.PANACCIO, Le mots, le concepts et les choses. La sémantique de Guillaume d’Occam et lenominalisme d’aujourd’hui, Montréal/Paris: Bellarmin/Vrin, 1991; R.PASNAU, Theories of cognition in the later middle Ages, Cambridge (Mass.):Cambridge University Press, 1997; P. V. SPADE, Thoughts, Words andThings: An introduction to Late Medieval Logic and Semantics, Cambridge (Mass.):Cambridge University Press, 1996. É certo, contudo, queprovavelmente por influência de Bertrand Russell – o qual em umaobra como “The Problems of Philosophy”, de 1928, se ocupou dequestões pertencentes ao campo de investigações ockhamianas -, écomum encontrar entre filósofos analíticos como Wittgenstein, naproposição 5.47321 do “Tractatus Logico-Philosophicus”, ou W. O.QUINE, em Quiddities. An Intermittenly Philosophical Dictionary, Cambridge:Harvard University Press, 1987, p. 12, referência à “navalha deOckham”, numa rara concessão a um filósofo medieval.
89
pretende seja exaustiva, ou então com uma rápida consulta aos
sites de pesquisa da internet.
Há poucas data fixadas com precisão na vida de Ockham.
Data e local de nascimento são apontados, vagamente, como
situando-se na década de 1280, provavelmente no Condado de
Surrey, distante um dia de viagem a sudeste de Londres. Sobre
o ingresso na ordem franciscana e os estudos de teologia em
Oxford pouco se sabe. Uma data que se dá como certa é a da
ordenação com subdiácono em Southwark, por Robert Winchelsey,
arcebispo de Canterbury, em fevereiro de 1306, sendo a idade
normal para esta investidura os dezoito anos de idade. Da
mesma forma, pode-se supor que até 1310 ele cumpriu sua
formação básica em filosofia, ainda em Londres, passando ao
estudo da teologia, provavelmente já em Oxford, e iniciando a
leitura ou interpretação (Reportatio) das “Sentenças” de Pedro
Lombardo, provavelmente entre 1317 e 1319,concluindo, assim,
o bacharelado em teologia, habilitando-se para a obtenção do
grau de mestre.73
73 Cf. WILLIAM J. COURTENAY, “The Academic and Intellectual Worlds of Ockham”,in: The Cambridge Companion to Ockham, P. V. SPADE (ed.), Cambridge:Cambridge University Press, 1999, p. 19 ss.
90
Em torno de 1321, Ockham foi nomeado professor de
filosofia em uma das escolas franciscanas de Londres, quando
então se inicia o período em que produz duas principais obras
de lógica, filosofia natural e teologia. É quando suas idéias
já começam a ganhar notoriedade e também se tornar objeto de
controvérsias, que terminarão ensejando a convocação, em
1324, para comparecer perante o Papa João XXII, refugiado em
Avignon – após a ocupação de Roma por Luís da Baviera,
escolhido imperador pela maioria dos reis-eleitores do Sacro
Império Romano-Germânico, tendo o Papa coroado o candidatos
derrotado, o francês Felipe, o Belo -, sob a acusação de
praticar ensinamentos falsos e heréticos.
A comissão nomeada para examinar a doutrina de Ockham
era integrada por doutores em teologia parisienses, em geral
dominicanos, e apenas um proveniente de Oxford, John
Lutterell, sendo quase todos eles de orientação tomista – o
Papa João XXII vinha de canonizar Tomás de Aquino -, a
exceção apenas do dominicano Durand de Saint Pourçain, um
simpatizante da teologia de Duns Scot.74
74 Cf. id. ib., p. 25.
91
Na noite de 26 de maio de 1328, com o recrudecimento das
disputas teológicas sobre a pobreza franciscana, juntamente
com o superior da ordem, Miguel de Cesena e outros frades,
Ockham foge de Avignon para refugiar-se junto a Luís da
Baviera, inicialmente na Itália, depois em Munique, onde
nosso A. terminaria os seus dias - ao que tudo indica vítima
da peste negra -, em 1347, dedicando-se à elaboração de
escritos políticos e libelos contra o Papa João XXI e seu
sucessor, Benedito XII, a quem acusava de heréticos.
O Papa João XXII, em bula de 1329, Quia vir reprobus - onde o
“vir reprobus” é ninguém menos que o superior da ordem
franciscana, Miguel de Cesena, o qual, com o auxílio de
Ockham, ousara contestar idéias similares expostas em bulas
anteriores -,75 defendera que somos portadores de direitos de
propriedade desde a criação, ao contrário do que entediam os
minoritas, para quem a divisão de bens é posterior à queda,75 As outras bulas foram as seguintes: Ad conditorem canonum (1322),Cum inter nonnullos (1323) e Quia quorundam mentes (1324). João XXI,invocando a autoridade de Tomás de Aquino, que vinha de sercanonizado por ele, afirma o poder do Papa de modificar os cânonesantigos e instituir direito canônico novo. E é ainda em Tomás querecolhe a noção de que a propriedade se constitui em um direitonatural, sendo o regime mais apropriado ao desenvolvimento humanona vida terrena, donde ninguém poder dela abdicar, para o seupróprio bem – nem mesmo as comunidades franciscanas.
92
ao pecado original, e uma conseqüência disto, donde a
possibilidade de se fazer o voto de pobreza, constitutivo de
sua ordem.76 É àquela bula que se reportará diretamente
Guilherme de Ockham, para defender a si e aos seus irmãos de
ordem, em sua “obra escrita em noventa dias” (“Opus nonaginta
dierum”), fazendo uma série de distinções e chegando a
conclusões tão surpreendentes para o ambiente intelectual da
época, e mesmo de hoje, como aquela da heresia do Papa – ao
negar até a pobreza de Jesus e dos Apóstolos -, às quais só
teriam sido possíveis graças à dissolução de hierarquias
categoriais por ele operada no plano lógico e, então,
transposta para o plano político, onde se destaca,
76 Para melhor situar a chamada “querela da pobreza franciscana”,de que aqui se trata, a qual marcará profunda e extensamente aIdade Média em sua fase terminal, vale recordar a fórmula jurídicapela qual a ordem franciscana conciliava seus inúmeros bens com adeterminação básica de seu fundador, de que deveriam ser pobrescomo Jesus o foi: à ordem cabia o uso, a posse, como diríamos emtermos modernos, restando a propriedade com a Igreja católica. É oque se exprime com toda clareza já na Bula Ordinem Vestrum (1245), deInocêncio IV, assim como em diversas outras que a ela se seguiram:os bens que utilizavam os franciscanos pertenciam in jus et proprietatemBeati Petri, sendo o seu dominium, portanto, da Santa Sé. Assim, comuma fórmula ainda mais incisiva, em 1279, a Bula Exiit qui seminat, deNicolau III, adotando a fórmula proposta por S. Boaventura,prescrevia aos franciscanos o simplex usus facti de seus bens, o jusutendi, o ususfructus e a possessio, sendo da Igreja romana a proprietas.
93
literalmente, a singularidade de um pensamento da
singularidade.77
Dentre as obras produzidas por Guilherme de Ockham no
contexto de sua querela com o Papa João XXII a respeito da
pobreza dos monges franciscanos, de onde emergirá seu
conceito pioneiro de “direito subjetivo”, o trabalho
grandioso de G. de Lagarde destaca a “Opus nonaginta dierum”
como a mais significativa,78 enquanto Villey vai ainda mais
longe, afirmando que é nas páginas iniciais desse trabalho
onde “nous pouvont saisir sur le vif le passage du langage
romain au langage moderne”.79
A abordagem de Ockham do problema jurídico-teológico em
questão principia deslocando-o desse campo para aquele outro,
por ele tão cultivado em seus trabalhos de lógica – e que
hoje denominaríamos melhor como “semiótico” ou “semiológico”,
por trabalhar antes a significação de um conceito do que o
77 Cf. P. ALFÉRI, Guillaume D’Occam. Le singulier, Paris: Les Éditons deMinuit, 1989; WIM STAAT, Ockham, singularity and multiculturalismo. AnOckhamist analysis of singularity and its politico-legal implications”, in:International Journal for the Semiotics of Law, vol, IX, n. 26,Liverpool: Deborah Charles Publ., 1996, pp. 139/172.78 Cf. La naissance de l’esprit laïque, vol. IV, Paris, 1962, pp. 159 ss.79 Seize Essais de Philosophie du Droit, Paris: Dalloz, 1969, p. 158.
94
modo como eles se articulam corretamente, distinguindo-se
também da abordagem mais comum em seu tempo, aquela que
também em termos modernos se denominaria “ontológica”, em que
se buscava a definição do que eram os entes representados
pelos signos, ao invés de seu significado. É que Ockham
inicia coletando os diversos sentidos dos termos empregados
na disputa, não deixando de incluir, além daqueles por assim
dizer “técnicos”, como aparecem empregados por juristas e
teólogos, também o sentido comum, “vulgar”. E é precisamente
do uso à época comum, gerado pelo contexto de emergência da
economia de mercado capitalista, que ele vai tomar o sentido
de jus, o qual lhe possibilitará mostrar o grave erro cometido
por João XXII. É este sentido de “direito subjetivo”,
enquanto direito de propriedade, que será o sentido
consagrado modernamente: o de poder, potestas.80
O pensamento de Ockham orienta-se por três princípios
fundamentais:81 o princípio da onipotência divina, o princípio
80 Cf. VILLEY, Seize Essais de Philosophie du Droit, cit., p. 168.81 Para uma exposição da vida e obra de Ockham, v. a “Introdução” deC. R. DE SOUZA e LUIS A. DE BONI em GUILHERME DE OCKHAM, Brevilóquiosobre o Principado Tirânico, trad.: LUIS A. DE BONI, Petrópolis: Vozes,1988, pp. 11 ss.
95
da não-contradição e o princípio da economia. O primeiro
desses princípios, naturalmente, vale apenas para a
divindade: Deus é absolutamente livre para fazer o que bem
entender – exceto o que for contraditório com o que já tenha
feito ou criado anteriormente. Então, o segundo princípio
enunciado vincula a própria divindade e, com mais razão
ainda, haverá de vincular a humanidade. Já o terceiro
princípio, o qual se refere à chamada “navalha de Ockham”,
deve ser obedecido apenas por nós, a fim de evitarmos criar
conceitos desnecessários para conhecermos a realidade: a
Divindade, que é livre para criar tanto os conceitos como a
própria realidade a que se referem, sempre poderá multiplicá-
los e reinventá-la a seu bel-prazer.
Pelo princípio da onipotência divina, tudo provém de
Deus, até o que para nós, por uma deficiência nossa, é mal e
pecado, pois Ele, ao contrário de nós, não é devedor de
ninguém – nullius est debitor.82 Em sendo assim, Ele não peca, por
não estar obrigado em relação a ninguém a fazer o que é bom e
82 A não ser que Ele mesmo se comprometa com alguém, como anotaMARYLIN MACCORD ADAMS, em “Ockham on Will, Nature, and Morality” in: TheCambridge Companion to Ockham, cit., p. 264.
96
não é pecado.83 A rigor, portanto, Deus nem é moralmente bom
nem mal.84
A este princípio vai, então, corresponder um outro, que
podemos denominar “(sub)princípio da contingência”, pelo qual
só Deus é necessário, sendo tudo o mais contingente,
inclusive o mundo como um todo, que seria apenas um dos
infinitos mundos possíveis. Que este mundo exista, depende
absolutamente de Deus: a onipotência de Deus é condição
necessária (conditio sine qua non) da existência do mundo, sendo,
por outro lado, condição suficiente (conditio per quam) de que
ele seja e permaneça como é, que essa potentia absoluta atue
segundo uma determinada concepção, de forma ordenada – como
potentia ordinata, portanto.85
83 Cf. OCKHAM, Opera theologica, G. GÁL/ST. BROWN et al. (eds.), NewYork: St. Bonaventure Institute, 1967 -, vol. VII, p. 45; Id.,Quodlibeta, III, q. III, tb. in Coleção “Os Pensadores”, Vol.: “Tomásde Aquino, Dante, Duns Scot, Ockham”, São Paulo: Abril Cultural, 2ª
ed., 1979, p. 403 e in id. “Philosophical Writings. A Selection”, PH.BOEHNER (trad., int. e notas), STEPHEN F. BROWN (rev.), New York:St. Bonaventure Inst., 1990, p. 131. V. ainda J. BECKMANN, Wilhelmvon Ockham, Munique: Beck, 1995, p. 36. 84 Cf. MARILYN MACCORD ADAMS, ob. ult. cit., p. 272, nota 140.85 A noção de potentia ordinata, assim como aquela de potentia absoluta,como é sabido, não são de maneira alguma originárias de Ockham,pois são mencionadas por diversos de seus predecessores, inclusiveTomás de Aquino, embora em poucos – e um desses seria PetrusJohannis Olivi -, tenha assumido a significação central que lhesconsagra Ockham, com implicações teológicas que estão na base da
97
Um outro (sub)princípio, correlato tanto ao princípio da
onipotência divina, do poder infinito de Deus, como ao
(sub)princípio da contingência, será, então, o (sub)princípio
da finitude da razão humana. As razões de Deus para criar o
mundo tal como o conhecemos, ou para alterá-lo, não nos são
acessíveis, pois nossa capacidade de compreensão das coisas,
tal como elas próprias, é criada e contingente: fora Deus,
que é necessário, tudo o mais pode se tornar diferente, ou
ser diferente do que pensamos.86 Quão distante deixamos,
própria querela sobre a pobreza franciscana. Cf. VOLKER LEPPIN,Geglaubte Wahrheit. Das Theologieverständnis Wilhelm von Ockham, Göttingen:Vandenhoeck & Ruprecht, 1995, p. 123 ss. A distinção entre as duasformas da potência divina é feita em termos jurídicos por DunsScot, considerando aquela ordinata em um sentido literal, como deacordo com regras, estabelecidas pela própria divindade, e que sóela poderia descumprir, estabelecendo outras, de potentia absoluta. Cf.MARILYN MCCORD ADAMS, William Ockham, vol. II, Notre Dame (Ind.):University of Notre Dame Press, 1987, p. 1190 ss. Ockham faráextenso uso da concepção jurídica aí implicada, conforme veremosadiante.86 Já o conhecimento de Deus, ao contrário, é perfeito e completo,abrangendo mesmo os fatos futuros contingentes, posto que cabe aEle determiná-los, e Ele conhece as coisas antes de criá-las –“Deus ipsasmet res praecognoscit quas postea producit...”. Cf. OCKHAM, Operatheologica, cit., vol. IV, p. 504; BECKMANN, cit., p. 41. Logo, sobcerto aspecto, só para nós é que os fatos futuros sãocontingentes, sendo essa contingência um signo da limitação denosso conhecimento, enquanto Deus habeat scientiam determinatam etnecessariam omnium futurorum contingentium. Cf. OCKHAM, Ordinatio, D.XXXVIII, Q. unica; tb. in Coleção “Os Pensadores”, cit., p. 404 e inid., Philosophical Writings. A Selection, cit., p. 133. V. ainda BECKMANN, ob.cit., pp. 38 ss.
98
então, o necessitarismo parmenídeo-platônico-aristotélico, de
acordo com o qual o ser, por existir, necessariamente é, pelo
princípio da não-contradição. E este princípio, no entanto,
também vale para Deus, no sentido específico que lhe atribui
Ockham.
O princípio da não-contradição, em Ockham, não tem
apenas um sentido lógico, como tradicionalmente se atribui a
Aristóteles, para quem, de acordo com a célebre passagem da
“Metafísica”,87 algo não pode ser e deixar de ser, ao mesmo
tempo, dadas as mesmas condições. Para Ockham, esse princípio
remete a um outro, que podemos denominar o “(sub)princípio da
singularidade”, pelo qual o princípio da não-contradição
assume um determinado sentido ontológico, na medida em que se
torna “o meio mais seguro de prova da diferença entre as
87 Cf. liv. IV, 3, 1005 b 24, e tb. ib., 19-23, 32/33.
99
coisas”,88 de sua radical singularidade:89 Tudo o que existe no
mundo exterior, em si mesmo, é singular.90
De acordo com Ockham, não apenas devemos evitar a
contradição quando formulamos juízos lógicos, mas sequer
podemos conhecer objetos contraditórios, que, em verdade, não
88 Cf. OCKHAM, Opera theologica, cit., vol. I, p. 174; BECKMANN, cit.,pp. 40 ss. Para uma defesa consistente do caráter ontológico do“singularismo” de Ockham, i.e., do que no texto denominamos“(sub)princípio da singularidade”, v. B. RYOSUKE INAGAKI, “Res andSignum – On the Fundamental Ontological Presupposition of the Philosophi of WilliamOckham”, in G. WIELAND et al., Philosophie im Mittelalter. W. Kluxen zum 65.Geburtstag, Hamburgo: F. Meiner, 1996, pp. 302 ss.89 Um outro (sub)princípio – ou (sub)subprincípio - relacionado aeste da singularidade, que se pode referir, no contexto daontologia ockhamiana e em conexão com o problema dos universais,enuncia-se como um “princípio de diversidade”. De acordo com ele,apenas entidades reais, as coisas mesmas, são diversas entre si –e sempre o são. Diversidade (diversitas), porém, não deve serconfundida com diferenciação (differentia), pois esta última é operadapelo intelecto em sua atividade cognitiva, donde se justificar quenão se diferencie, sob certos aspectos, coisas que, no entanto,são, de fato, diversas. Cf. Ockham, Opera theologica, cit., vol. II,p.212; Beckmann, cit., pp. 108 ss. É interessante observar quesemelhante colocação permite que se estabeleça relações entre opensamento medieval aqui estudado e aquela epistemologia ditaconstrutivista radical, defendida por autores contemporâneos,identificados pelos estudos feitos no Instituto de Palo Alto(EUA), como Bateson, Heinz von Foerster, Luhmann, Maturana,Varela, Watzlawick etc. Adiante, essa perspectiva será considerada(infra, n. 8).90 “Quaelibet res extra animam seipsa est singularis”. Ordinatio, D. I, Q. II, 6.De passagem, vale notar como o mesmo “singularismo” será defendidopor Locke – “Things themselves, which are all of them particularin their existence...”. “An Essay concerning human Understanding”,III, 3, 11. Cf. B. R. INAGAKI, ob. cit., pp. 303 e seg.
100
podem existir, posto que todos são iguais a si mesmos e
apenas a si mesmo, não podendo ser, ao mesmo tempo, “si-
mesmos” e “não-si-mesmos”. Deus, então, em sua onipotência,
cria livremente, optando entre infinitas possibilidades,
dentre as quais, porém, não há contraditoriedade. É condição
mesmo da vontade livre de Deus que ela não seja arbitrária,
mas sim, que sua potência absoluta se exerça dentro de
determinada ordem, como potentia ordinata, e ordenada
racionalmente, posto que Ele, antes de criar, (pré)conhece o
que cria, operando racionalmente.91 Deus é livre, mas não é91 “Deus ipsasmet res praecognoscit quas postea producit...; ideo dicitur rationabiliteroperans”. Cf. OCKHAM, ib., vol. IV, p. 504; BECKMANN, ib., p. 41. Emoutras passagens, lê-se que Deus pode fazer tudo quanto não incluacontradição – “Deus potest facere quidquid non includit contradictionem” (id. ib.,vol. IV, p. 36) – e não pode fazer nada desordenadamente – “Deus nilpotest facere inordinate” (id. ib., vol. IX, pp. 585 e seg.). Isto não deveser entendido como uma limitação à potência absoluta de Deus, poiso respeito ao princípio da não-contradição, donde decorre ocaráter ordenado e racional de Sua atividade, é antes condição depossibilidade de Sua liberdade. Cf. BECKMANN, ib., p. 149. Estaconcepção da liberdade do próprio Ser criador do Universo comodecorrente da obediência a uma regra, lógica, ontológica e, emprimeiro lugar, deontológica, que veda em termos absolutos a não-contradição, reconhecendo-a como aparência, existência, mas nãocomo essência, na qual se dissolvem todas as contradições, nosremete à retomada da perspectiva hegeliana, denominada por Dilthey“idealista objetiva”, trabalhada em nossos dias por VITTORIOHÖSLE, esp. em “Hegels System”, 2 vols., Hamburgo: Rowohlt, 1987,e entre nós, por CIRNE-LIMA, “Sobre a Contradição”, Porto Alegre:EDIPUCRS, 1993 e MANFREDO ARAÚJO DE OLIVEIRA, “Sobre aFundamentação”, id: ib. Uma investigação da presença de princípiosnormativos na base mesma de toda estrutura conceitual, mesmo
101
desarrazoado, guardando coerência com as premissas que Ele
mesmo estabelece – embora sempre possa optar por outras.
Já a compreensão humana é tão limitada, como é limitada
sua possibilidade de ação. Nota-se como para nosso A.
conhecer é agir, sendo essa ação tão mais eficaz, quanto
menos esforço seja despendido para obter o máximo em
explicação como resultado. Daí que, pelo princípio da
economia, segundo Ockham, deve-se optar pela explicação mais
simples e, ao mesmo tempo, mais abrangente.
A célebre fórmula da “navalha de Ockham”, “entia non sunt
multiplicanda sine necessitate”, não foi enunciada por nosso A., pois
para ele o princípio da economia não se relaciona com os
entes, não são eles que não devem ser multiplicados
inutilmente – o que só Deus poderia fazer: e, de fato, até
onde podemos perceber, o faz -, mas sim o conhecimento deles,
donde não ser esse um princípio ontológico, mas tão-somente
epistemológico. As duas formulações cunhadas por Ockham do
aquela lógico-matemática, encontra-se em WILLIS SANTIAGO GUERRAFILHO, “Para uma Filosofia da Filosofia (Conceitos deFilosofia)”, cit., cap. 3, pp. 39 ss. Para uma concepção docaráter “dialógico” e “mundo-constitutivo” (weltbildend) do princípioda não-contradição cf. FRANCIS WOLFF, “Dizer o Mundo”, São Paulo:Discurso Editorial, 1999.
102
princípio da economia seriam: (a) “frustra fit per plura quod fieri
potest per pauciora”92 (inutilmente se faz com muito o que se pode
fazer com pouco) e (b) “pluralitas non est ponenda sine necessitate”93
(uma pluralidade não deve ser pressuposta sem necessidade).94
Pela utilização desse princípio, afasta-se uma série de
assertivas, por serem supérfluas e, logo, desprovidas de
sentido, ao implicarem a existência de entidades para validá-
las, quando bastaria estabelecer condições de validação.
Nota-se, aí, uma antecipação, em Ockham, da substituição
operada na ciência contemporânea dos conceitos substanciais
em favor daqueles relacionais, evitando o hipostasiamento
metafísico. 95
92 Cf. OCKHAM, ib., vol. III, pp. 430 e 475, id., vol. V, pp. 199,268 e 436, id., vol. VI, pp. 136 e 399; BECKMANN, ib., p. 43.93 Cf. OCKHAM, ib., vol. I, pp. 74 e 415, id., vol. IV, pp. 202, 317e 322, id., vol. V, pp. 256, 404, 414 e 442, id., vol. VI, pp. 17,59, 124 e 408, id., vol. VII, pp. 52 e 213; BECKMANN, id. ib.94 Apesar do uso freqüente por parte de Ockham das duas fórmulasaqui mencionadas, Ph. Boehner entende ser aquela que melhorexpressa o princípio da economia a enunciada no seguinte texto,extraído de Ordinatio, D. I, Q. XXX, 1 (Contra opinionem Scoti): “nihildebet poni sine ratione assignata nisi sit per se notum vel per experientiam scitum vel perauctoritatem Scripturae Sacrae probatum”. Cf. BOEHNER, Collected Articles onOckham, New York: St. Bonaventure Inst., 1958, p. 155. Cf. RYOSUKEINAGAKI, ob. cit., p. 311, nota.95 Não por acaso, certamente, a categoria aristotélica da relaçãovem recorrentemente tratada em quase todas as obras de Ockham,segundo Ghisalberti – cf. A. GHISALBERTI, Guilherme de Ockham, trad.:A. DE BONI, Porto Alegre: EDIPUCRS, 1997, p. 124 -, dentre as
103
Pelo princípio da economia, devemos evitar o quanto
possível supor a existência de entidades - o que, de todo
modo, é sempre incerto, em razão do (sub)princípio da
contingência - para explicar os fenômenos, assim como devemos
evitar a contradição, para com isso nos aproximarmos ao
máximo da compreensão de uma realidade criada por um Deus, a
partir de sua potência a um só tempo absoluta e ordenada.
O conhecimento fornecido por conceitos, que remetem a
entidades, que podem efetivamente existir ou não, é
denominado por Ockham “intuitivo”, enquanto um outro tipo de
conhecimento, dito “abstrativo”, não pressupõe qualquer
afirmação da existência de seu objeto.
O conhecimento intuitivo é o conhecimento próprio do
singular, é causado por ele, mas não vem dele enquanto objeto
de conhecimento, como é sustentado tradicionalmente, desde
Aristóteles a Tomás de Aquino, pois entre ele e o
conhecimento se interpõe o conceito enquanto signo, o qual
não faz propriamente o sujeito cognoscente ter acesso
quais se incluiria, para a maioria dos estudiosos, um Tractatus derelatione, incluído na Opera philosophica, PH. BOEHNER, G. GÁL, ST. BROWN(eds.), New York: St. Bonaventure Institute, 1974 -, vol. VII, pp.348 ss.
104
imediato à natureza das coisas – da qual, de resto, é de se
contestar a existência, na medida em que sua imutabilidade
vai de encontro à soberana liberdade de Deus -, mas antes
as significa para ele, remete-o a elas.96
Ghisalberti atribui ao espanhol Theodoro De Andrés o
mérito de ter evidenciado a dupla acepção do signo em Ockham,
correspondente a dois níveis diferenciados de significação.97
O primeiro nível é dito “significativo-representativo”, onde
o signo é imagem (imago) e marca (vestigium), produzindo o
96 Cf. OCKHAM, ib., vol. IX, p. 74; Id., Quodlibeta, I, Q. iii, tb. inColeção “Os Pensadores”, Vol.: “Tomás de Aquino, Dante, Duns Scot,Ockham”, cit., pp. 358 ss. e in id., “Philosophical Writings. A Selection”,cit., pp. 27 ss. V. ainda J. BIARD, Guilherme d’Ockham. Logique etphilosophie, Paris: P.U.F, 1997, pp. 25 ss.; GHISALBERTI, ib., p. 80,o qual esclarece ainda a relação entre esta postura gnosiológicade nosso A. com, por um lado, o princípio da economia e, de outrolado, o (sub)princípio da singularidade, acrescenta que “tendorejeitado a existência de uma comunidade ou parentela potencialdas coisas entre si, Ockham rejeita igualmente a teoria que faz oconhecimento humano consistir em um ato de reprodução da realidadeexterna mediante uma imagem, a já mencionada espécie inteligível,que reproduz a nível mental as coisas na sua essência”. Nota-se,aí, como Ockham foi o precursor daquela concepção filosófica“anti-representacionista”, defendida contemporaneamente porfilósofos como Gilles Deleuze e Richard Rorty, assim como,anteriormente, pela fenomenologia, na interpretação daintencionalidade, o que é destacado por GHISALBERTI, ob. loc. ult.cit. Sobre a precedência de Ockham na crítica contemporânea àrepresentação de singularidades cf. WIM STAAT, “Ockham, Singularity andMulticulturalism: An Ockhamist Analysis of Singularity and its Politico-LegalImplications”, cit., pp. 139 ss.97 Cf. DE ANDRÉS, ob. ult. cit.; GHISALBERTI, ib.
105
significado ao evocar o que é re-presentado pela imagem ou
marca deixada pela coisa significada, que é re-conhecida no
signo. É no segundo nível, dito significativo-lingüístico,
que se dá uma intelecção primária, uma notitia, antes que uma
cognitio,98 quando para além da relação de efeito-causa – onde
efeito é o signo e causa o conhecimento – o signo mais que
re-presentar está em função suposicional, supponit pro, está no
lugar da coisa significada, a substitui em uma proposição,
seja convencionalmente, enquanto termo oral ou escrito, seja
“naturalmente”, enquanto verdadeiro conceito, que é ato de
conhecimento, reação psicossomática espontânea do
entendimento humano (esse obiectivum) ante a presença ativa do
objeto (esse subiectivum).99
98 A distinção entre notitia e cognitio, na Escolástica tardia, éapresentada por ANTONIO RAIMUNDO DOS SANTOS, em Repensando a Filosofia.Prólogo do Comentário de Guilherme de Ockham às Sentenças, Questão 1ª, PortoAlegre: EDIPUCRS, 1997, pp. 27 ss. Notitia seria uma qualidade deuma potência cognitiva, ao lado de outras como o habitus(disposição cognitiva) e as species, sensíveis ou inteligíveis. Adiferença está em que a notitia enseja uma modificação na potênciacognitiva quando esta se exercita, gerando conhecimento, enquantona cognitio tem-se um conhecimento possuído, mesmo quando nãoexercido.99 Cf. OCKHAM, Opera theologica, cit., vol. II, pp. 544 ss.; id.,Scriptum in I librum Sententiarum, distinctio 3, quaestio 9, in: ib.; id., Summalogicae, I, 1, in: Opera philosophica, cit., vol. I. V. tb. Wilhelm vonOckham. Texte zur Theorie der Erkenntnis und der Wissenschaft, int., trad. enotas: RUEDI IMBACH, Stuttgart: Reclam, 1987, nota 12, pp. 219 e
106
Eis que, ao abordar o signo como termo conceitual, a
presente exposição toca no que se pode considerar o ponto
central do pensamento de Ockham, a respeito da questão básica
do conhecimento, tanto que este pensamento, quando é
identificado com maior precisão, não é qualificado como
“nominalismo”, mas sim, como “terminismo” ou
“conceptualismo”.100 A continuação requer que o domínio de
algumas das categorias lógico-gramaticais básicas, com as
seg.100 Cf. GHISALBERTI, ob. cit., pp. 94 e seg.; CARLOS LOPES DEMATTOS, in Coleção “Os Pensadores”, Vol.: “Tomás de Aquino, Dante,Duns Scot, Ockham”, cit., nota 8, p. 349. Não se pode confundir,portanto, o nominalismo de Ockham – que Philotheus Boehnerconsidera um “realismo conceitual” (cf. “The Realistic Conceptualism ofWilliam Ockham”, in id., “Collected Articles on Ockham”, cit., pp. 156 ss.)– com a versão primeira do nominalismo, oriunda de Roscelin deCompiègne, o professor de Abelardo, pela qual os universais sãoreduzidos a meras palavras, flatus vocis, donde Alain de Liberareferir como sendo a denominação mais precisa da doutrinarosceliana aquela de “vocalismo”. Cf. ALAIN DE LIBERA, Pensar naIdade Média, trad. PAULO NEVES, Rio de Janeiro: 34, 1999, p. 30.Também Leff posiciona-se contra a classificação de Ockham comonominalista – cf. GORDON LEFF, William of Ockham. The Metamorphosis ofScholastic Discourse, Manchester: Manchester University Press, 1975, p.213, passim -, assim como, antes dele, TH. DE ANDRÉS, ob. cit., p.215, opiniões destacadas, em sentido convergente, por RYOSUKEINAGAKI, ob. cit., p. 301, nota 1, e GHISALBERTI, ib., p. 126, nota208, respectivamente. Inagaki refere ainda, dentre os que semanifestaram mais recentemente sobre o assunto, posiçõesintermediárias, como a de Armand Maurer, que restringe onominalismo de Ockham a sua concepção da ciência, bem comoposições que retomam aquela mais tradicional, reafirmando onominalismo ockhamiano, a exemplo daquela defendida por CarlosNorena, em artigo de 1981. Cf. B. R. INAGAKI, ob. loc. ult. cit.
107
quais Ockham trabalha, como, por exemplo, as espécies de
“suposições”, desenvolvidas a partir do conceito de suppositio,
tomado da lógica de Pedro Hispano; a diferença entre a
“notícia” de (objetos) “complexos” e “incomplexos”; ou ainda
as espécies de “termos”. Em seguida, a partir dessas
distinções, pode-se precisar qual seria, em Ockham, o
estatuto epistemológico das diversas ciências ou formas de
conhecimento, especialmente as ciências naturais, a teologia
e a metafísica.
Para Ockham, são três as espécies fundamentais de
“suposições” (de sup + pono, literalmente, “pôr embaixo”, e
mais propriamente, “pôr no lugar”) dos termos que podem
compor uma proposição, constituindo-a na qualidade de sujeito
ou predicado: pessoal, simples e material.101
Na suposição pessoal ou universal o termo está no lugar
do seu significado, natural – v.g., na frase “o homem corre” -
ou convencional – p. ex., na frase “a espécie é um
101 Cf. OCKHAM, in Coleção “Os Pensadores”, Vol.: “Tomás de Aquino,Dante, Duns Scot, Ockham”, cit., pp. 376 ss. e in id., PhilosophicalWritings. A Selection, cit., pp. 63 ss.
108
universal”.102 Na suposição simples o termo empregado designa
um conceito, correspondente a uma intenção do cognoscente
(intentione animae) de referir-se diretamente a alguma coisa –
em “primeira imposição”, portanto, e não, em “segunda
imposição”, quando a referência é a um outro nome ou termo.103
Uma frase que exemplifica este tipo de suposição é: “o homem
é uma espécie”. Finalmente, na suposição material, tem-se o
caso da auto-referência, em que o termo não remete nem a uma
realidade física, nem a um conceito, mas apenas a si mesmo,
estando no lugar de si mesmo, na escrita ou na fala – é o que
102 “Suppositio personalis, universaliter, est illa quando terminus supponit pro suosignificato”. OCKHAM, Summa logicae I, 64, in: Opera philosophica, cit., p.195. V. tb. GHISALBERTI, ob. cit., p. 46. Vale lembrar que umuniversal não é um conceito como “homem” é uma espécie – v. infra,nota 115.103 A impositio é o ato pelo qual as pessoas atribuem significado aossignos convencionais, escritos ou falados, sendo esses signos,segundo Ockham, nomes, que podem ser de primeira ou segundaimposição, uma distinção que se pode perfeitamente relacionar comaquela feita pelos positivistas lógicos, entre uma linguagem-objeto e a metalinguagem. Cf. Ockham, Summa logicae I, 11; tb. id., inColeção “Os Pensadores”, Vol.: “Tomás de Aquino, Dante, Duns Scot,Ockham”, cit., pp. 371 e seg., bem como in id., Philosophical Writings. ASelection, PH. BOEHNER, (trad., int. e notas), STEPHEN F. BROWN(rev.), cit., pp. 56 ss. V. ainda RUEDI IMBACH, ob. cit., pp. 13,47 ss. e 223, nota 37.
109
ocorre com o termo “homem” quando proferimos ou escrevemos a
frase “homem é um nome que se escreve com cinco letras”.104
Dentre os diversos tipos de suposições ou modos dos
termos suporem por (substituírem) outros ou as coisas –
realidades individuais significadas pelos sujeitos -, merece
destaque a suposição pessoal, que corresponde à função
significativa dos termos. Ockham opera uma série de divisões
e subdivisões desta suposição, onde se evidencia como toda a
lógica, especialmente enquanto aparato de inferências,
implicações e predicações – para nosso A., pertence ao
domínio da lógica também o estudo dos argumentos, mesmo
quando fundamentados por autoridade –, constrói-se a
partir das suposições.105
Também a verdade, para nosso A., decorrerá da suposição,
enquanto garantia de que as proposições referem-se à
realidade. Note-se que nesta concepção da verdade se opera
uma inversão daquela tradicional, aristotélico-tomista, em
104 Cf. Ockham, Summa logicae I, 64, in: Opera philosophica, cit., p.196; Ghisalberti, ob. loc. ult. cit.105 Cf. GHISALBERTI, ob. cit., p. 48.
110
que a verdade decorre de uma “adequatio intellectus et rei”.106 Verdade
e falsidade, portanto, não são qualidades dos objetos
conhecidos, que se imprimem no sujeito cognoscente, mas são
antes qualidades das proposições, a elas inerentes, enquanto
termos de segunda imposição, abstratos, que se predicam de
proposições, e não de realidades extra-mentais.107 Em assim
sendo, verdadeiro e falso são termos conotativos, que se
referem diretamente a proposições e só indiretamente ao real
estado de coisas a que tais proposições se referem.108 Uma
proposição será verdadeira, segundo Ockham,109 quando
coincidirem sujeito e predicado na suposição pelo mesmo
objeto, i.e., refiram-se à mesma coisa. Mas como proposições
são composta por termos, signos, e não por objetos, coisas,
tudo quanto for reunido sinteticamente nas proposições
constituirá uma unidade no plano mental, sem garantia nenhuma
de que ela se verifique efetivamente no plano real. Só do
106 Cf. TOMÁS DE AQUINO, “Summa theologiae”, I, 16; id., “De veritate”, I,tb. in Coleção “Os Pensadores”, Vol.: “Tomás de Aquino, Dante, DunsScot, Ockham”, cit., pp. 19 ss., 125 ss.107 Cf. RUEDI IMBACH, ob. cit., pp. 95 ss., GHISALBERTI, ib.108 Cf. OCKHAM, Summa logicae I, 10, tb. in Coleção “Os Pensadores”,Vol.: “Tomás de Aquino, Dante, Duns Scot, Ockham”, cit., pp. 369ss. e in id., Philosophical Writings. A Selection, cit., pp. 52 ss.109 Cf. Summa logicae II, 2, tb. in RUEDI IMBACH, ob. cit., pp. 98 ss.
111
passado, que nem Deus pode alterar, e de termos idênticos, em
que coincidem suppositio (“quod supponit”) e supponate (“pro quo
supponit”) – v.g., “o homem é o homem”-, pode-se fazer
asserções afirmativas necessariamente verdadeiras, pois sendo
o presente e futuro contingentes, as assertivas sobre o que
não existe ou existirá necessariamente só poderão ser
verdadeiras quando negativas – p. ex., “o homem não é um
asno” - ou condicionais – e.g. “se o homem existe, ele é um
animal racional”. Eis que podemos aí perceber os primórdios
da concepção propriamente moderna de conhecimento, que em
Descartes terá sua formulação lapidar, a se consumar em Kant,
o “último ockhamiano”, conforme o título de artigo da lavra
de A. de Murault – havendo quem confira o título de
derradeiro seguidor a Nietzsche.110
Do exposto, pode-se perceber que também a noção
tradicional de ciência será alterada por Ockham, pois quando
se afirma, como então era de costume, com base em
Aristóteles, que não pode haver ciência das coisas
consideradas em sua singularidade, mas tão-somente do que for
110 Cf. MICHAEL ALLEN GILLESPIE, Nihilism before Nietzsche,Chicago/London: The University of Chicago Press, 1995.
112
universal e necessariamente verdadeiro, nesses termos, a
ciência seria impossível para nosso Autor. No “Prólogo” que
escreveu à sua “Exposição dos oito livros da Física”,111
Ockham apresenta sua concepção de ciência, procurando
compatibilizá-la, o quanto possível, com aquela aristotélica.
É assim que a ciência pode ser das coisas, isto é, “ciência
real”, como as ciências naturais, por resultarem de
proposições compostas por termos que supõem por coisas, numa
suposição pessoal. Além disso, há ainda as ciências
racionais, como a lógica, em cujas proposições os termos
estão em lugar de outros termos - em suposição simples,
portanto.
Já no princípio do texto apenas referido, Ockham
conceituara o conhecimento em termos que nos evoca o modo
como muito posteriormente, com Hume e, por último, Popper, se
vai conceber um dos princípios basilares da ciência, aquele
da causalidade: como um hábito (habitus).112 Isso porque o111 Cf. OCKHAM, in Coleção “Os Pensadores”, Vol.: “Tomás de Aquino,Dante, Duns Scot, Ockham”, cit., pp. 347 ss. e in id., PhilosophicalWritings. A Selection, cit., pp. 2 ss.112 Ockham nega, expressamente, que uma relação causal sejademonstrável e, logo, existente, já que não há vínculo necessárioentre as criaturas, pois sendo elas radicalmente diferentes, Deus
113
conhecimento, dadas as categorias de Aristóteles, seria de se
classificar como uma qualidade, e uma qualidade da mente, não
das coisas, que podem se alterar sem que isso implique em
alteração do conhecimento que temos delas. O sujeito do
conhecimento – “sujeito” aqui entendido no sentido medieval,
de subjectum, correspondente ao que hoje consideramos o objeto
do conhecimento – será a razão, pois ele será uma qualidade
da alma, adquirida com a repetição de atos intelectivos. Aqui
pode-se ter como apenas iniciado o (longo) processo de
transformação conceitual, que resultará na concepção moderna
da subjetividade como suporte do saber.
Também os conceitos e os universais serão tidos por
Ockham como qualidades da mente, ou melhor, de atos da
intelecção abstrativa empregando signos que, seguindo a
tradição lógica árabe, denomina “nomes de segunda intenção”,
responsáveis por uma significação secundária (ou
sempre pode fazer com que exista uma sem precisar de outra, oumesmo, de potentia absoluta, produzir direta e imediatamente uma que,em circunstâncias normais, necessitaria de outra para surgir. Cf.OCKHAM, Quæstiones in librum secundum Sententiarum (Reportatio), q. III - IV, inid., Opera theologica, cit., vol. V, 1981, esp. pp. 72 e seg.; BIARD, ob.cit., pp. 110 e seg.
114
conotação).113 Eles não se encontram “in rebus”, não se
apresentam no modo do ser substancial, nem tampouco naquele
do não-ser, pois são signos de uma pluralidade de coisas que,
enquanto tais, não constituem um saber sobre o que elas são
substancialmente, mas tão-somente declaram algo a esse
respeito.114
Da mesma forma, a unidade de uma ciência, para nosso A.,
não se funda na unidade do que hoje chamamos seu objeto - e
ele chamaria o seu “sujeito”, em sentido lato, enquanto
aquilo do qual se sabe algo. Na verdade, para Ockham, como
anota Ghisalberti,115 “nenhuma ciência possui uma unidade
intrínseca, sendo cada uma delas, antes, um conjunto de
hábitos”. A unidade das ciências, portanto, como a que é
propiciada por toda universalidade, não é uma unidade de
simplicidade, mas de agregação ou composição. Tal concepção
impede que se trace uma linha de demarcação muito rígida
113 Cf. OCKHAM, Summa logicae I, 12, in: Opera philosophica, cit., p. 42;GHISALBERTI, ob. cit, p. 78; RUEDI IMBACH, ob. cit., pp. 52 ss.;BIARD, ob. cit., pp. 42 e seg.114 “Universalia non sunt substantiae, nec de substantia alicuius rei, sed tantumdeclarant substantias rerum sicut signa”. OCKHAM, Opera theologica, cit., vol.II, p. 254; BECKMANN, cit., pp. 114 ss. V. tb. BIARD, ib., p. 41.115 Cf. ob. cit., p. 55.
115
entre os diversos saberes, o que se nos afigura mais uma nota
de grande atualidade do pensamento ora apresentado.116
As ciências, portanto, sempre serão a respeito de
proposições, composta por signos – os complexa.117 O mesmo se
diga com relação à metafísica, ocupada com a validade da
predicação do termo “ente” (ens). Esta validade, como a de
toda ciência, seguindo o padrão aristotélico, depende da
universalidade e necessariedade da predicação. Em Ockham,
como vimos, a universalidade é uma característica aferida
pelo emprego dos signos nas proposições – uma função
semiótica, portanto. Já com a necessariedade, em um mundo
onde tudo, a exceção de Deus, é contingente, não-
necessário,118 não poderia ser diferente: não se busca, nas
ciências, proposições sobre o que é necessariamente
verdadeiro (“propositiones de necessario”), mas sim proposições
116 Mais uma vez vem-nos à lembrança Karl Popper, quando em textoclássico nega que haja critérios para uma demarcação rigorosaentre os domínios da ciência e da metafísica.117 “Semper scientia est respectu alicuius complexi”. Cf. OCKHAM, Opera theologica,cit., vol. I, p. 5; Beckmann, cit., p. 127.118 De acordo com Ockham, “necessário” é tudo aquilo cujo contrárioé impossível; “possível” é o que, sem ser contraditório, admite umcontrário, que igualmente não o é; “contingente”, por fim, é o queé, mas sem contradição, pode também ser diferente. Cf. Operaphilosophica, cit., vol. I, p. 334; BECKMANN, ib., p. 129.
116
verdadeiramente necessárias (“propositiones necessariae”). Uma das
conseqüências dessa concepção, que novamente a coloca em
sintonia com a epistemologia contemporânea, é a de que a
necessariedade de uma proposição não corresponde à pretensão
de que ela seja sempre e em qualquer circunstância
verdadeira, mas sim que o seja, dadas certas condições.119
Assim como a metafísica, também a teologia é considerada
por Ockham uma ciência do discurso – no caso, do discurso
sobre Deus e a salvação. Trata-se, porém, de uma ciência
especial, já por ser uma ciência com duas acepções diversas.
Numa primeira acepção, é diversa das demais ciências por ser
mais que elas, por lhes ser superior, enquanto ciência que
não é humana (“scientia hominis”120), por ser ciência divina,
discurso de Deus, “theologia in se”. Além desta, existe a
“theologia nostra”, a do peregrino (viator),121 que é uma ciência119 Cf. BECKMANN, ib., p. 128.120 Cf. OCKHAM, “Prologus in Expositio super VIII libros physicorum”, in Coleção“Os Pensadores”, Vol.: “Tomás de Aquino, Dante, Duns Scot,Ockham”, cit., p. 348 e in id., Philosophical Writings. A Selection, cit., p.3.121 “Intellectus viatoris est ille, qui non habet notitiam intuitivam Deitatis sibi possibilemde potentia Dei ordinata. Per primum excluditur intellectus beati, qui notitiam intuitivamDeitatis habet; per secundum excluditur intellectus damnati, cui non est illa notitiapossibilis de potentia Dei ordinata, quamvis sit sibi possibilis de potentia Dei absoluta”.Esta passagem da primeira questão do prólogo do comentário deOckham às sentenças de Pedro Lombardo é traduzida do seguinte modo
117
inferior às demais, na medida em que a finitude da razão
humana não nos permite ter acesso, pelo saber natural, a
juízos conclusivos sobre o assuntos pertinentes à divindade –
e se fosse diverso, caso pudéssemos formular tais juízos como
necessariamente verdadeiros, mesmo submetidos a certas
condições, restaria ameaçada a onipotência absoluta de Deus.
Com isso, não se postula, de modo algum, a
irracionalidade de Deus – como vimos anteriormente, Sua
potência absoluta é “ordinata”, exerce-se racionalmente, com
respeito ao princípio da não-contradição. Apenas se
reconhece, do ponto de vista teológico, uma limitação da
razão humana, limitação essa que a filosofia e as demais
ciências são desafiadas a superar, mesmo sabendo que não
atingirão o seu objetivo – essa consciência, no entanto, é
fundamental para nos prevenirmos contra o dogmatismo. A
por A. R. dos Santos: “(...) intelecto do peregrino é aquele quenão tem notícia intuitiva da divindade, que lhe é possível pelopoder ordenado de Deus. Pelo primeiro, exclui-se o intelecto dobem aventurado, que tem notícia intuitiva da divindade; pelosegundo, exclui-se o intelecto do condenado, a quem não é possívelaquela notícia pelo poder ordenado de Deus, embora lhe sejapossível pelo poder ordenado de Deus”. Ob. cit., p. 59. V. tb.ROBERT GUELLUY, “Philosophie et Théologie chez Guillaumed’Ockham”, Louvain: É Nauwelaerts – Paris: J. Vrin, 1947, pp. 79ss.
118
incognoscibilidade de Deus e a conseqüente limitação da
teologia enquanto ciência humana decorre da própria
circunstância de não possuirmos conhecimento intuitivo e
evidente do “sujeito” desta ciência - a saber, Deus -, posto
que este tipo de conhecimento, garantia última de todo
conhecimento científico, como já vimos, é um conhecimento de
objetos existentes, o qual, inclusive, atesta esta existência
– e Deus não existe tal como tudo o mais por nós conhecido.
Deus é associado à criação da existência, como sua origem e
suporte – causa primeira e “causa efficiens per conservationem” -,
donde não poder com ela se identificar, sendo, assim como
tudo o mais, porém, diverso - e ainda diverso em sua
diversidade. Tanto é assim, que não se prova racionalmente a
singularidade de Deus: tal como não há contradição entre a
existência de Deus e a de tudo o mais que conhecemos – e
precisamente daí decorreria a racionalidade da afirmação de
Sua existência -, também não há contradição entre a
existência de vários Deuses, criadores de mundos diversos, ou
119
entre diversos mundos, criados pelo mesmo Deus que criou o
nosso.122
É assim que de Deus, apesar da prova de Sua existência,
não se pode predicar o ser tal como se faz de objetos no
domínio da metafísica, o que projeta o discurso a Seu
respeito em outro domínio, contíguo, o da teologia, onde não
conta apenas a postura (habitus) intelectual da ciência, do
saber, mas também – e, principalmente – uma outra: a da
crença, da fé.123 No campo da teologia, nos vemos às voltas
com uma “lógica da fé”, que não é apofântica, mas persuasiva,
incluindo além dos valores modais aléticos, “verdadeiro” e
“falso”, aquele que melhor a caracteriza: o “possível”,124 já
122 “Selbst der Satz, daß es nur einen Gott gebe, kann nach Ockhamdurch die Vernunft nicht apodiktisch, sondern nur mitPlausibilitätsargumenten bewiesen werden (...); dies gelte ebensofür andere Prädikate Gottes wie Unendlichkeit, Allmacht, Vorsehungusw.”. V. HÖSLE, Wahrheit und Geschichte, Stuttgart/Bad Cannstatt:frommann-holboog, 1984, p. 687 (grifos do A.).123 Cf. BECKMANN, ob. cit., pp. 137 ss. Para maioresdesenvolvimentos, v. BIARD, ob. cit., pp. 86 ss.; GHISALBERTI, id.,pp. 131 ss., e, especialmente, a obra clássica a respeito, deGUELLUY, Philosophie et Théologie chez Guillaume d’Ockham, cit., além dorelativamente recente trabalho de VOLKER LEPPIN, ob. loc. ult.cit.124 Para uma exposição da lógica modal medieval, especialmente emDuns Scot, Ockham e Buridan, v. SIMO KNUUTTILA, “Modal Logic”, in TheCambridge History of Later Medieval Philosophy, N. KRETZMANN et al. (eds.),Irthlingborough: Cambridge University Press, 1996 (5ª reimp.), pp.342 ss., esp. pp. 354 ss.
120
que suas conclusões se sustentam quando não implicarem em
contradição e “non est maior ratio”. É sobre uma tal base,
“falibilista”, que se assentará o pensamento de Ockham, visto
ser o princípio maior em que se baseia, como é próprio da
época em que foi elaborado, um princípio teológico, o da
onipotência divina, e, enquanto tal, igualmente
indemonstrável.125 Não se justifica, portanto, que se lhe
impute o defeito do “teologismo”, pois teológicos são seus
pressupostos e a destinação última de seu pensamento,
desenvolvido, porém, com extremo rigor lógico, compromissado
com o bem, a correção, intelectual e moral.
A obra de Ockham, no campo jurídico, vai então sugerir
que não se considere o jus apenas como a quota de bens que nos
cabe, por determinação do direito positivo ou natural, a qual
podemos reivindicar perante tribunais, já que temos para isso
uma potestas vindicandi, pois esse é o jus fori, nascido ex pactione,
convencionalmente, do direito positivo humano, havendo também
o que já Agostinho denominou jus poli (embora se referindo ao
sentido objetivo do Direito), o qual é a permissão ou
125 Cf. Cf. OCKHAM, Quodlibeta, I, q. I, in Opera theologica, vol. IX, p.11; J. BIARD, ib., p. 96.
121
faculdade que nos vem do céu (polus), da natureza pela razão e
do direito positivo verdadeiramente divino para usarmos os
bens com despojamento, sem ser por eles possuídos, abdicando
mesmo de sua defesa perante tribunais, como preconizou Jesus
Cristo. É essa posse a título precário, permitida pelo
verdadeiro proprietário – no caso, Deus -, que os
franciscanos teriam, individual e coletivamente, enquanto
ordem: um direito em sentido moral, mas não naquele
propriamente jurídico.126
Eis que em Ockham o ser humano, criado à imagem e
semelhança de Deus, que se caracteriza por sua onipotência e
liberdade absoluta, será ele também dotado de potestades
(“dignidades”) e liberdade, que se traduzirão em um complexo
de direitos subjetivos, o novo fundamento do Direito
(objetivo).
Outro aspecto que, indubitavelmente, merece ser
realçado, no pensamento jusfilosófico de Ockham, é o seu
conceito de direito natural. Este, se em sua origem ainda é
tido como divino, tal como era geralmente concebido no
126 Cf. JOHN KILCULLEN, “The Political Writings”, in: The Cambridge Companionto Ockham, cit., p. 308.
122
período, especialmente em seus escritos teológicos, por outro
lado, nos escritos políticos do último período de seu
pensamento, é-lhe atribuída validade quando fundamentado
racionalmente, no que mais uma vez aquele pensamento se
apresenta atual.127
O enfoque de Ockham nos mostra com clareza o que
comumente se tende a negligenciar no âmbito da filosofia do
direito, a saber, que a noção de “direitos (subjetivos)” tem
um significado que transcende aquele técnico-jurídico,
devendo ser considerado igualmente em sua projeção na
filosofia política e moral.128 Todo o discurso de grande
atualidade sobre os “Direitos Humanos” se situa mais
propriamente nos planos da ética e da política do que naquele
estritamente jurídico, onde tais “direitos” se apresentam
127 Cf. OCKHAM, Texte zur politischen Theorie. Exzerpte aus dem Dialogus”, trad.:JÜRGEN MIETHKE, Stuttgart: Reclam, 1995, pp. 207 ss. – III DialogusII i, c. 15 -; BECKMANN, ob. cit., p. 166, MIETHKE, Ockhams Weg zurSozialphilosophie, Berlin: De Gruyter, 1969, pp. 124 e seg.; A. S.McGRADE, “Natural Law and Moral Omnipotence”, in: The Cambridge Companion toOckham, cit. Sobre as semelhanças entre as doutrinasjusnaturalistas de observância ockhamiana e aquelas do século XVIIcf. RICHARD TUCK, Natural Rights Theories, Cambridge: CambridgeUniversity Press, 1979, p. 24.128 Assim, PÁRAMO, “Derecho Subjetivo”, in: ERNESTO GARZÓNVALDÉS/FRANCISCO J. LAPORTA (eds.), El Derecho y la Justicia, Madri:Trotta, 1996, p. 367 ss.
123
como “direitos fundamentais”, que por sua vez não são apenas
“direitos” dos cidadãos a um respeito pelo Estado de sua
esfera de liberdade e também que lhes provenha de um mínimo
de igualdade (ou eqüidade) entre si, pois tanto se afirmam
perante outros particulares, individual ou coletivamente
considerados, como também se apresentam como pautas objetivas
de organização do Estado e parâmetro para balizamento de suas
políticas.
A definição do direito enquanto instituição, como um
corpo de normas emanadas de um poder, sem importar seu
conteúdo, para que as mesmas sejam consideradas válidas,
associadas ao positivismo em sua vertente ideológica, que se
pode fazer remontar a Hobbes - normas estas a serem estudadas
de modo formalista e eventualmente, também, dedutivista, já
numa vertente do positivismo epistemológico, como aparece
afirmada com independência por autores canônicos os mais
diversos, a exemplo de John Austin, no século XIX, no
contexto da tradição anglo-saxônica, bem como Hans Kelsen, na
tradição continental européia, que finca suas raízes ainda
mais profundamente, como se pretende demonstrar, em estratos
124
onde se encontra, no séc. XIX, a chamada “jurisprudência dos
conceitos” (Begriffsjurisprudenz), associada a nomes como G.
Puchta, o direito natural racionalista, de tantos autores,
dos séculos XVIII e XVII, com Puffendorf, Thomasius e
Althusius, até chegar ao século XVI, na Escola de Salamanca,
formada em torno a Francisco Vitória, onde se destaca, como
jurista-teólogo, a Fernando Vázquez de Menchaca e, como
filósofo-teólogo, o já mencionado Francisco Suárez. Aventa-se
ainda, filosoficamente, a hipótese, a ser no momento devido
explorada, de que própria filosofia do direito, enquanto
disciplina e objeto de investigações, para surgir, pressupõe
como condição objetiva principal, o surgimento de um direito
positivo produzido na matriz estatal de corte moderno, assim
como sua condição subjetiva maior, que seria igualmente
condição “estrutural” – no sentido em que aqui se emprega a
doutrina muraltiana das estruturas de pensamento – das
manifestações típicas da modernidade, a exemplo tanto da
forma política estatal, como daquela cientifica, que hoje
(ainda) predominam, estaria na estrutura, de origem mais
próxima na época medieval avançada, que Muralt denomina
125
escotista, e nós optamos por denominar transcendental. Daí
permanecer ainda hoje a filosofia do direito, por exemplo,
atrelada – e, em geral, subserviente mesmo – aos estudos
(majoritariamente positivistas, no sentido normativista e
formalista) do direito enquanto direito positivo.
A uma tal concepção se oporia outra, mais tradicional e
antiga, que remete ao tempo em que o estudo filosófico do
direito não o distinguia como esse objetivum, como objeto formal
de estudo diverso de seu conteúdo ético, político e, mesmo,
teológico, enquanto direito que só o seria enquanto
igualmente justo, seja na relação (comutativa) entre duas
pessoas, seja na relação (distributiva) da pessoa aos bens
que lhe seriam devidos. Para de Muralt, conforme o
compreendemos, a filosofia do direito contemporânea padeceria
de um esvaziamento de interesse e, mesmo, de descrédito,
tanto entre filósofos, como entre cientistas, na medida em
que desconhece a diferença entre esta postura antiga, de
estrutura aristotélico-tomista, e uma outra, que ele denomina
“escotista suareziana”,129 rejeitando a ambas como se tratando
129 Cf. id. ib., p. 13.
126
de um mesmo jusnaturalismo caduco, donde resultam as mais
diversas posturas positivista – por definição, anti-
filosóficas -, abdicando de discussões que são as que mais
importam no campo do direito, como são aquelas atinentes à
sua validade material, e não apenas, formal.
Daí se explica, pelo menos em parte, os esforços vindos
das mais diversas direções, mais recentemente, para
“reabilitar” a razão prática, agora “renascida”,130 e, nesse
contexto, renovar os estudos filosóficos do direito de uma
perspectiva que evite a dicotomia entre o positivismo e o
jusnaturalismo, dentre os quais se pode mencionar aquelas do
inglês John Rawls e sua Teoria da Justiça, ou de Ronald
Dworkin, norte-americano, ativo também na Inglaterra, em
Oxford, e, na Alemanha, Robert Alexy, com a Teoria dos
Direitos Fundamentais, teorias estas que encontram eco nas
propostas sobre teoria do direito e filosofia política em
geral de Jürgen Habermas e sua escola, feitas sob o pano de
fundo da Teoria do Agir Comunicativa. Digna de nota, também,
é a proposta de Michel Bastit, assentada em trabalho
130 Cf., v.g., ENRICO BERTI, Aristóteles no Século XX, trad. DION DAVIMACEDO, São Paulo: Loyola, 1997, pp. 229 ss.
127
monumental de reconstituição das origens escolásticas e
medievais (ou tardo-medievais) da concepção moderna,
positivista, da lei jurídica, a fim de com isso buscar
auxílio, aprendendo com os “erros do passado”, para formular
uma noção de lei “mais conforme à realidade jurídica e mais
isenta de contradições”.131 Bastit procede na esteira de seu
mestre Michel Villey, que, em estudos clássicos,132 já chamara
atenção para a distinção radical entre conceitos jurídicos e
jusfilosóficos, herdados da antiguidade romana, como aquele
de jus e sua reformulação moderna – neste caso, como “direito
subjetivo”-, sob a influência decisiva de autores medievais,
com destaque para Guilherme de Ockham. Além disso,
compartilha Bastit a convicção de Villey, no sentido de que a
solução para os impasses da filosofia jurídica e do próprio
Direito, na contemporaneidade, expressão da crise mais ampla
da sociedade e, mesmo, da civilização ocidentais – que são
também aquelas que se pode considerar verdadeiramente
mundiais, por instaladas em todo o planeta através dos atuais
131 Naissance de la loi moderne, cit., p. 361.132 Cf. VILLEY, Seize Essais de Philosophie du Droit, cit., p. 158, passim;id., Filosofia do Direito, São Paulo: Atlas, 1977, p. 120, passim.
128
meios técnicos de comunicação -, estaria em um retorno a um
jusnaturalismo de corte aristotélico (ou aristotélico-
tomista).133
Ao nosso ver, contudo, não haveria possibilidade – ou,
sequer, conveniência – de um retorno ou re-conversão do
pensamento, em qualquer campo, à estrutura que aqui
denominamos transcendente, descartando, por espúrias, formas
de pensamento derivadas, em maior ou menor grau, daquela
outra estrutura, que denominamos transcendental. Não há
retrocesso possível em uma história que tem características
evolutivas, como são tanto aquela natural, dos seres
naturais, como esta, social, “historial”, das idéias
produzidas por uma espécie desses seres, a nossa. Além
disso, não houveram apenas prejuízos, com a erupção de uma
nova estrutura de pensamento na Baixa Idade Média, que veio a
ser a principal matriz da modernidade. Uma série de ganhos,
de “aquisições evolutivas”,134 também se verificaram, com esta
133 Cf. MICHEL BASTIT, “El método del derecho natural”, in: El Derecho NaturalHispánico. Actas de las II Jornadas Hispánicas de Derecho Natural,Córdoba, 14 a 19 de septiembre de 1998, Cajasur Obra Social yCultural Publicaciones, 2001, pp. 177 ss., esp. pp. 189/196.134 Expressão utilizada na teoria social sistêmica luhmanniana, queremonta a Simmel. Cf., v.g., NIKLAS LUHMANN, Die Gesellschaft der
129
mudança epocal, e os graves problemas que com ela advieram
pensamos que só poderão ser enfrentados e, eventualmente,
superados, empregando recursos forjados com as possibilidades
também nela contidas.
De fato, só modernamente passa-se a enfatizar o aspecto
permissivo da normatividade, a esfera de liberdade que
transcende os limites impostos pelas proibições morais e
religiosas, a licentia laica. Já Hobbes, por exemplo, apontava o
caráter insustentável de uma situação em que todos dispunham
livremente de uma faculdade de tudo fazer, de um jus omnium in
omnia, donde decorreria para ele, como é sabido, a
necessidade de se impor limites, com o respaldo em um poder
com supremacia e reconhecimento social – o Estado civil -, a
fim de garantir e efetivar direitos individuais, os poderes
dos indivíduos, que são seus direitos subjetivos.135 Antes do
“positivismo contratual” hobbesiano, contudo, foi o
nominalismo medieval que tornou possível o aparecimento da
noção propriamente dita de um direito como atributo de um
Gesellschaft, vol. I, Frankfurt am Main: Suhrkamp, 1997, pp. 505 ss.135 Um paralelo entre as concepções de Ockham e Hobbes encontra-seem MATHIAS KAUFMANN, Wilhelm von Ockham und Thomas Hobbes: Varianten despolitischen Individualismus, Erlangen, ms., 2000.
130
sujeito, que o torna direito seu, propriedade exclusiva do
indivíduo, a qual lhe é inerente. Tal noção já se encontra
entre nominalistas “parisienses” como Gerson, no século XV,
bem como em juristas-teólogos espanhóis da “segunda
escolástica”, a exemplo dos “regicidas” domenicanos Francisco
de Vitória, seu discípulo Domingo de Soto, juntamente com seu
amigo, jurista, Fernando Vázquez de Menchaca e de jesuítas
como Luis de Molina, sem deixar de mencionar o grande
Francisco Suárez.136 Sua origem mais remota, contudo, está no
pensamento de Guilherme de Ockham, desenvolvido na esteira
daquele de Duns Scot, como pretendemos aqui ter demonstrado.
Por fim, fica o desafio para desenvolvermos e
aprofundarmos a idéia, central no pensamento ockhamiano, de
que para além da oposição entre a universalidade tanto dos
conceitos como das leis, naturais e jurídicas, e a
particularidade se situações concretas redutíveis ou
136 Cf., v. g., ANNABEL S. BRETT, Liberty, Right and nature: Individual Rights inLater Scholastic Thought, QUENTIN SKINNER (ed.), Cambridge (Mass.):Cambridge University Press, 1997; tb. FRANK VIANA CARVALHO, Asvindiciae contra tyrannos e os monarcômacos, dissertação de mestrado, USP,São Paulo: 2002; ALAIN MOTHU, La beatitude des Chrétiens et son doubleclandestine, in: ANTHONY MCKENNA/id. (eds.), La Philosophie clandestine à l’Ageclassique, Oxford: The University Press, 1997, p. 79 - 117.
131
subsumíveis a tais conceitos e leis, há de se considerar como
diversa a singularidade das mesmas, a fim de mantermos os
sentidos em estado de alerta, para com isso percebermos erros
e/ou injustiças no tratamento igual dado a situações que só
aparentemente são iguais – ou se apresentam como casos
particulares excepcionando regras gerais -, quando na verdade
são singulares, dotadas de intensidades diversas. Há,
perseguindo essas indicações, muito que se fazer, no campo da
filosofia jurídica e em geral, no rastro também daqueles que,
como Ockham, mais recentemente, não perdem de vista a
primazia do acontecimento, dos eventos e sua intensidade,
frente ao que já está estabelecido, formal e objetivamente,
por regras e conhecimentos herdados: Kierkegaard, Nietzsche,
Carl Schmitt, Heidegger, Deleuze.137 Mais recentemente, merece
destaque o trabalho de Giorgio Agamben, especialmente a
partir de Homo Sacer, e dos livros que têm se seguido.
5. O Direito posto (positivo) poeticamente concebido como
Direito possível
137 Cf., para uma primeira aproximação, FRANCISCO ORTEGA, Intensidade.Para uma história herética da filosofia, cit.
132
É a partir de tais colocações que também se abre uma
perspectiva para o desenvolvimento, em teoria da ciência
jurídica, em um sentido próprio e atual, isto é, falibilista,
porque humana e, logo, “possibilista”, imaginária. O direito,
então, ao invés de positivo, positum, dado, objetivamente, há
de ser concebido antes como possível, imaginário, pois a
ficção é a verdade do direito, e o direito é a camuflagem do
poder, apropriado e exercido pelos “autores-intérpretes”
desta grande montagem, que é a sociedade. Isso porque o que é
verdadeiro e falso, em direito, como na política e setores
afins, se determina pela “coerência da narrativa” (Dworkin,
MacCormick),138 tendo toda verdade a estrutura de uma ficção,
de montagem teatral – fictio figura veritatis, conforme a máxima dos
glosadores, lembrada por Ernst H. Kantorowicz.139
Daí ser o tipo de discurso que é desenvolvido no âmbito
138 A idéia de “narrative coherence” é introduzida por Dworkn inspiradopela prática literária dos surrealistas franceses, também adotadapelos “beats” norte-americanos, que a chamavam de “chain-writing”,“escrita em cadeia”: consiste em escrever uma obra coletivamente,em que os continuadores da narrativa têm de levar em conta o quefoi escrito pelos antecessores.139 Cf. ERNST H. KANTOROWICZ, ob. loc. ult cit.
133
da teoria jurídica de se considerar, em um sentido amplo, um
discurso ficcional, poético, ou melhor, “poiético” (do grego
poiésis, “fazer”, “produzir”, “criar”), já por podermos
imaginar várias versões para a história da origem do humano,
permanecendo sempre o mesmo desfecho, a saber, o de sermos um
ser produzido pelas proibições que se nos impõem e, logo,
também, nos impomos.
Na atual concepção epistemológica, em lógica e
matemática, assim como na física e ciências em geral,
“encontra-se o real como um caso particular do possível”.140
É certo que foi o avanço mesmo da pesquisa em microfísica ou
física quântica, como indicado acima, que instaurou a
possibilidade (ou a “indeterminação”) no próprio cerne dos
fenômenos estudados nesse nível, pois uma molécula ativada
por um quantum de luz tanto pode integrá-lo em seu material,
como pode reemitir o seu ganho de energia sob a forma de
radiação, ou ainda entrar em reação química com outras
moléculas, bem como romper o quantum, transformando-o em
140 GASTON BACHELARD, O novo espírito científico, trad.: REMBERTO FRANCISCOKUHNEN, São Paulo: Abril, 1978, p.119 (penúltimo parágrafo do cap.II).
134
energia.141
Com isso, as ciências vão ao encontro daquela
antropologia fundamental, que a partir de poetas-filósofos
como Novalis, para quem o homem é o autor de sua realidade,
ou teólogos-filósofos, como Kiergegaard, para quem o homem é
aquele ser que deve educar-se no possível, podendo se
remontar ainda a Ortega y Gasset e Heidegger, bem como, antes
deles, Nietzsche, para que chegue a nos caracterizar nosso
Vicente Ferreira da Silva - lamentavelmente falecido antes
dos cinqüenta anos, em fins da década de 1960 -, em confronto
com as coisas (ta onta), da seguinte maneira: “Enquanto a coisa
vive cerrada em si mesma numa compressão infinita e
limitante, o homem como subjetividade está envolto num
horizonte de possibilidades, abre-se para o possível e
somente através deste possível pode ser profundamente
compreendido”.142
141 Cf. id., “Luz e Substância”, in: Estudos, trad. ESTELA DOS SANTOSABREU, Rio de Janeiro: Contraponto, 2008, p. 63142 VICENTE FERREIRA DA SILVA, em “Reflexões sobre a ocultação do ser”, in:Ensaios Filosóficos, São Paulo: Instituto Progresso Editorial, 1948, p.45 e s., tb. in: Obras Completas, vol. I., cit., p. 37.
135
Isso não quer de modo algum significar que iremos apelar
para uma espécie de fabulação, para a invencionice. O
discurso, para ser verossímil e persuasivo, para nos agradar,
deve ser construído tomando elementos da realidade, do que
compartilhamos de mais elementar, completando-os e, por assim
dizer, cimentando-os com a argamassa de nossos sonhos, os que
temos dormindo ou acordados, pois são a expressão de nossos
maiores desejos, os desejos de saber. “Tampouco isto foi
descoberto pela razão”, podemos dizer com Kierkegaard,143
“posto que esta fala pela boca do paradoxo se diz a si mesma:
as comédias, as novelas e as mentiras têm de ser
verossímeis....” – caso se queira que elas atinjam seus
objetivos.
Daí podermos postular a produção de um discurso
puramente imaginativo, e bastante revelador. Neste sentido,
me parece que um dos objetivos seria o de realizar, no campo
do pensamento, o que no campo puramente ficcional certos
autores realizam quando fazem o que Deleuze/Guattari chamam
143 Migajas Filosóficas o un poco de filosofía, trad. RAFAEL LARRAÑETA, Trotta,Madri, 1997, p. 64.
136
de “literatura menor”,144 que é a literatura sempre política e
necessariamente revolucionária daqueles que estão à margem,
“desterritorializados”, a ponto de empregarem para fazer
literatura a linguagem do “colonizador”, dos que exercem o
domínio político e lingüístico no território em que habita o
povo dominado – lembremos, aqui, que em sua origem romano, o
territorium é o local onde se demarca o dominium pelo exercício
do terror. Entende-se, assim, porque aquilo de mais destaque
que se tem produzido em nosso País, em termos culturais, é de
se considerar, em sentido amplo, como literatura – e aqui não
estou pensando apenas na literatura em um sentido mais
tradicional, mas também em gêneros como a música popular e as
telenovelas. Aqui pode-se falar em uma “hermenêutica
imaginativa”, tal como é preconizada por Márcia Sá Cavalcante
Schuback,145 a fim de termos melhor acesso a autores marcados
pela uma visão teologia, com são os medievais, dos quais
também nos ocupamos, ao longo do presente estudo, em que se
144 Em Kafka. Por uma literatura menor, Rio de Janeiro: Imago, 1977. Parauma extensão do conceito de “literatura menor” de Deleuze/Guattaripara com ele abranger – e explicar – a teologia, cf. WINQUIST,Desiring Theology, Chicago/Londres: University of Chicago Press, 1995.145 Para ler os medievais. Ensaio de hermenêutica imaginativa, Petrópolis: Vozes,2000.
137
busca recuperar uma unidade perdida na tradição do pensamento
desde suas origens filosóficas até o presente – “tradição”
aqui entendida como propõe Husserl no manuscrito sobre a
origem da geometria escrito em 1936,146 nos seguintes termos:
“A geometria que está pronta, por assim dizer, a partir da
qual o inquérito regressivo começa, é uma tradição. Nossa
existência humana se move dentro de inumeráveis tradições. O
mundo cultural todo, em todas as suas formas, existe por meio
da tradição. Estas formas surgiram como tal não apenas
casualmente; também já sabemos que tradição é precisamente
tradição, tendo surgido dentro do nosso espaço humano através
da atividade humana, isto é, espiritualmente, mesmo embora
geralmente nada saibamos, ou quase nada, da proveniência
particular e da origem espiritual que as trouxeram. E ainda
lá jaz nesta falta de conhecimento, em qualquer lugar e
essencialmente, um conhecimento implícito que pode, assim
146 Editado e publicado (começando com o terceiro parágrafo) porEUGEN FINK na Revue Internationale de Philosophie, vol. 1, n º 2 (1939),sob o título “Der Ursprung der Geometrie als intentional-historisches Problem”,que aparece em Die Krisis der europäischen Wissenschaften und die transzendentalePhänomenologie (abrev.: Krisis) como “Beilage III”, W. BIEMEL (ed.), LaHaya: Martinus Nijhoff, col. Husserliana, vol. 6, 1962, pp. 365-386.
138
também, ser tornado explícito, um conhecimento da evidência
inacessível. Começa com lugares comuns superficiais, tais
como: que tudo tradicional surgiu da atividade humana, que de
acordo com isto homens passados e civilizações humanas
existiram, e entre elas seus primeiros inventores, que
modelaram o novo a partir de materiais à mão, quer fossem
brutos ou já modelados espiritualmente. Da superfície,
contudo, é–se levado às profundezas. A tradição é aberta
deste modo geral a inquérito contínuo; e se se mantiver
consistentemente a direção do inquérito, uma infinidade de
questões que ainda está presente para nós, e ainda está sendo
elaborada num desenvolvimento vivo, se descortinam questões
que levam a respostas definidas de acordo com o seu
sentido”.147
Do que se trata, então, é verdadeiramente de realizar um
trabalho imaginativo, conscientemente ficcional, que se
avalia – e avaliza - por seus efeitos. É assim que, dessa
147 Trad. do inglês para o português por MARIA APARECIDA VIGGIANIBICUDO. Departamento de Matemática e Estatística, Instituto deGeociências e Ciências Exatas, Rio Claro, UNESP, 1980, disponívelna página da SE&PQ – Sociedade de Estudos e Pesquisa Qualitativosem http://www.sepq.org.br/ maria.htm.
139
perspectiva, mitologia, filosofia, direito ou religião e
mesmo as ciências são literatura, ficções, pois o que se
pretende fazer é contar uma história o melhor possível, para
torná-la verossímil, dando um sentido às nossas vidas, mesmo
quando se diz, como o jurista romano do século II, depois
teólogo cristão, o primeiro, além de filósofo, Tertuliano:
creio, ainda que pareça - ou mesmo porque parece - absurdo. Nesse contexto,
vale recordar palavras de Gilles Deleuze, em sua última
publicação:148 “Não se escreve com as próprias neuroses. A
neurose, a psicose não são passagens da vida, mas estados em
que se cai quando o processo é interrompido, impedido,
colmatado.(...) por isso o escritor, enquanto tal, não é
doente, mas antes médico, médico de si próprio e do mundo. O
mundo é o conjunto de sintomas cuja doença se confunde com o
homem. A literatura aparece, então, como um empreendimento de
saúde: (...) A saúde como literatura, como escrita, consiste
em inventar um povo que falta. Compete à função fabuladora
inventar um povo. (...) Embora remeta sempre a agentes
singulares, a literatura é agenciamento coletivo de
148 Crítica e Clínica, São Paulo: 34, 1997, p. 13 ss.
140
enunciação. (...) Fim último da literatura: pôr em evidência
no delírio essa criação de uma saúde, ou essa invenção de um
povo, isto é, uma possibilidade de vida. Escrever por este
povo que falta...(...) ‘Cada escritor é obrigado a fabricar
para si sua língua...’ (...) O escritor como vidente e
ouvidor, finalidade da literatura: é a passagem da vida na
linguagem que constitui as Idéias”.
Cabe agora distinguir as implicações políticas,
epistemológicas e metafísicas do possibilismo inerente à tese
aqui esposada, do conhecimento imaginário do Direito, em
confronto com aquelas do positivismo. O positivismo, como não
se costuma salientar, tem diversos sentidos, conforme se
apresente como uma ideologia de obediência ao que determinam
as normas jurídicas, sem consideração quanto ao seu conteúdo,
pelo simples fato de terem emanado de um poder soberano,
posição que se encontra associada à figura de Thomas
Hobbes,149 assim como em termos epistemológicos a referência é
149 Mas que bem se pode remontar a GUILHERME DE OCKHAM. Cf., v.g.,LOUIS DUMONT, O Individualismo. Uma Perspectiva Antropológica da IdeologiaModerna, trad.: ÁLVARO CABRAL, Rio de Janeiro, Rocco, 1993, p. 76s.; WILLIS SANTIAGO GUERRA FILHO, “Lei, Direito e Poder em Guilherme deOckham”, in: Direito e Poder. Estudos em Homenagem a Nelson Saldanha, HELENOTAVEIRA TORRES (coord.), Barueri (SP): Manole, 2005, p. 188 s. Na
141
o cientificismo mecanicista e anti-metafísico de Augusto
Comte, com suas variantes mais recentes, como aquela do
Círculo de Viena. Tanto em um caso como no outro, porém, a
matriz é metafísica, e pode ser caracterizada como sendo um
formalismo, que teve na filosofia transcendental de Kant a
sua culminância.
O sentido comum do termo “formalismo” é o de importância
desmedida concedida às formalidades, ao que é exterior, em
detrimento do que é substancial e realmente importa. Daí já
se extrai uma indicação valiosa do que seria o sentido
filosófico, que consiste em negar a existência real do
conteúdo, para reconhecer somente a da forma – ou, em uma
versão menos radical, mas próxima daquela defendida, conforme
vimos (supra, cap. 4), pelo patrocinador da chamada “distinção
atualidade se distingue entre um positivismo “exclusivista” e umoutro, também dito “soft” ou “inclusivo”, por incluir apossibilidade de uma validação de normas positivas por meio defontes morais, prescritivas, ou seja, diversas daquelasestritamente sócio-jurídicas, passíveis de serem meramentedescritas – cf., v.g., KENNETH EINAR HIMMA, “Inclusive Legal Positivism”,in: Oxford Handbook of Jurisprudence and Legal Philosophy, JULES L. COLEMAN &SCOTT SHAPIRO, eds.,Oxford: Oxford University Press, 2002. A umateoria inclusiva, porém em sentido diverso, refere-se em WILLISSANTIAGO GUERRA FILHO, "Inclusive Theories and Conjectural Knowledge in LegalEpistemology", in: Archiv für Rechts- und Sozialphilosophie, vol. 75,Stuttgart, 1989.
142
formal”, na Baixa Idade Média, John Duns Scot,150 simplesmente
a possibilidade da existência independente da forma em
relação ao conteúdo de um objeto.
Diferentes serão os sentidos do formalismo, segundo o
contexto de aplicação seja a lógica, a filosofia da
matemática, a gnosiologia, a ética ou a estética, mas sempre
com a idéia de preponderância da forma sobre a matéria.
Bastante impulsionado por Immanuel Kant, o formalismo
lógico atribui um caráter puramente formal aos princípios e
leis da lógica, e portanto tende a tomá-los como meras
convenções. O conjunto das proposições e predicações lógicas
formariam uma totalidade autônoma, radicalmente separada das
conexões reais entre os seres ou as partes do ser, os entes,
marcando uma oposição à lógica metafísica dos escolásticos,
inspirada em Aristóteles, para a qual os princípios lógicos
150 Cf. WILLIS SANTIAGO GUERRA FILHO, “Sobre a estrutura medieval dopensamento filosófico e jurídico” in: Revista Opinião Jurídica, n. 3,Fortaleza: Faculdade Christus, 2004, p. 9 s., e, mais amplamente,ANDRÉ DE MURALT, L´enjeu de la philosophie médiévale. Études thomistes, scotistesoccaniennes et grégoriennes, 2a. ed., Leiden et al.: 1993; Néoplatonisme etaristotélisme dans la métaphysique médievale, Paris: Vrin, 1995; A metafísica dofenômeno: as origens medievais e a elaboração do pensamento fenomenológico,trad.: PAULA MARTINS, São Paulo: 34, 1998; La estructura de la filosofiapolítica moderna. Sus Orígenes medievales em Escoto, Ockham y Suárez, trad.:VALENTÍN FERNÁNDEZ POLANCO, Madri: Istmo, 2002.
143
têm intrinsecamente um alcance ontológico, isto é, não valem
só para as conexões de idéias, mas também para as coisas
reais. É essa mesma ênfase na forma que será aplicada para
estabelecer as leis matemáticas e operações delas derivadas.
Um certo formalismo é inerente a todo pensamento matemático:
uma expressão (tautológica) como a + b = b + a é puramente
formal, pois se aplica a quaisquer números ou objetos e não
tem matéria determinada. O formalismo estende esse caráter
puramente formal a todas as relações matemáticas e toma os
números como formas convencionais. Estabelece-se assim uma
fronteira rigorosa entre as matemáticas e a filosofia da
matemática: a redução dos sistemas matemáticos a meras
construções formais permite evitar questões filosóficas
complicadas, de corte metafísico, como a natureza dos números
e o significado do "verdadeiro" e "falso" em matemática. Por
essa razão, muitos matemáticos adotam o formalismo como mero
expediente prático, sem aderir a ele expressamente. Na
verdade, segundo o formalismo, não existem objetos
matemáticos. A Matemática consiste apenas em axiomas,
definições e teoremas, ou seja, em fórmulas. No limite,
144
existem regras pelas quais se deduz uma fórmula a partir de
uma outra. Mas as fórmulas não são acerca de coisa alguma:
são apenas combinações de símbolos. É claro que os
formalistas sabem que as fórmulas matemáticas se aplicam por
vezes a problemas físicos. Quando se dá a uma fórmula uma
interpretação física, ela ganha um significado, e pode então
ser verdadeira ou falsa. Mas esta veracidade ou falsidade tem
a ver com a própria interpretação física. Enquanto fórmula
puramente matemática ela não tem significado nem valor
lógico. Contra uma tal concepção, pelo que tem de nefasto
para o pensamento, insurgiu-se Husserl em seu último grande
esforço filosófico, consubstanciado na obra “A Crise da
Ciência Européia e a Fenomenologia Transcendental” (abrev.:
“Krisis”).151 É o que examinaremos a seguir.
6. Crítica fenomenológica do formalismo científico
151 Para uma discussão desta obra, em conexão com o direito, cf.WILLIS SANTIAGO GUERRA FILHO, “Subsídios para uma crítica fenomenológica aoformalismo da ciência dogmático-jurídica” in: Fenomenologia e Direito.Cadernos da Escola da Magistratura Regional Federal da 2ª. RegiãoEMARF, vol. I, n. 1, Abr./Set. 2008. , p. 43 ss.
145
Em linhas gerais, pode-se dizer quanto ao pensamento
husserliano que irá partir de uma crítica aos limites
impostos ao conhecimento pela filosofia em que predomina
aquela “estrutura transcendental”, referida no cap. 4, como
iniciada na baixa Idade Média por Duns Scot, Guilherme de
Ockham e seus sucessores, inclusive aqueles da Segunda
Escolástica, em que avulta a figura do Pe. Suarez, mas
associada antes às obras de Descartes, Kant e Hegel. E é
nessa perspectiva que Husserl chega a afirmar que o
pensamento dos filósofos modernos de último citados não era
“rigoroso”, já que não consideravam devidamente em suas
construções a subjetividade humana, focalizando apenas o
objeto. Eles não se atinham ao fato de que as considerações
acerca do objeto eram, elas mesmas, “construções mentais”. A
subjetividade, enquanto consciência intencional, dirigida aos
objetos, para Husserl, seria “a primeira verdade indubitável
para se começar a pensar corretamente.” Daí ter ele defendido
que, no processo de consideração da subjetividade humana, é
necessário assumir uma “atitude fenomenológica”: já que o
146
homem é um “ser no mundo” e, portanto, participante dele,
deve assumir essa postura e se contrapor a uma “atitude
natural”, que é aquela de ser “possuído pelo mundo”, pondo
entre parêntese a tese da existência de um mundo inependente
do eu, logo, de toda e qualquer evidência ou obviedade, sejam
aquelas do senso comum, sejam as das ciências, sendo essa a
tarefa própria da filosofia. Não existe, portanto, para a
fenomenologia, uma relação pura do sujeito com o objeto,
visto que a relação entre o sujeito e o objeto é sempre
intencional: o objeto se torna tal a partir do olhar do
sujeito, um olhar que, para além da existência contingente de
objetos em particular, capta sua essência, o que
necessariamente lhe constitui, donde se falar em Wesenschau –
literalmente, “visão da essência” ou, no sentido
fenomenológico, intuição. Assim, para a Fenomenologia, o ser
é um ser de relação, e não uma substância, como
tradicionalmente vinha sendo pensado, desde os antigos
gregos. Dessa forma, para ele, tanto o ser quanto o mundo só
existem na relação ser-mundo, não fazendo sentido, portanto,
como ressalta aquele que seria o maior dentre os seus muitos
147
discípulos, caso não tivesse estabelecido uma dissidência, a
saber, Martin Heidegger, no § 9 de Prolegomena zur Geschichte des
Zeitbegriff,152 entender-se o fenômeno estudado pela fenomenologia
husserliana como uma aparência que oculta uma essência
ininteligível, pois esse fenômeno é caracterizado pelo
encontro mesmo entre uma consciência com o que para ela se
revela do mundo, enquanto doadora de sentido e, logo, dá
consistência de objeto a essas “revelações”.
O texto da “Krisis”, de 1936, vai apontar a rebeldia de
Galileu frente ao intuicionismo espontâneo como a origem
mesma das modernas ciências da natureza, por ele ter sido
alguém que teve a idéia de aplicar à natureza física o mesmo
método de objetivação aplicado na geometria, cujos traços
fundamentais, segundo Husserl, são (1) a idealização e (2) a
construção.
Husserl (“Krisis”, § 9a), opõe o objeto intuitivamente
dado aos objetos ideais da geometria, sendo que os primeiros
são dados em um mundo circundante intuitivo, inexato, avesso
à objetivação, ao contrário daquele mundo matemático, em que
152 “Prolegômenos à História do Conceito de Tempo”, Seminário doVerão de 1925, Gesamtausgabe, vol. XX.
148
são objetivados, como verdades em si, “irrelativas”, ou seja,
absolutas, por não serem relativas a algo, de que seriam a
representação aproximada. No “mundo real” temos a experiência
de corpos, com forma e conteúdo constituídos pelas qualidades
sensíveis, quer dizer, pensáveis em uma certa gradação, como
mais ou menos planos, retos ou circulares, e assim por diante
– longe, portanto, da exatidão de uma forma geométrica. Essas
coisas, reais, em todas as suas propriedades, estão sujeitas
a uma certa oscilação, donde sua igualdade, postulada em uma
função, tanto a si mesma como a outra coisa, ser puramente
aproximativa, valendo o mesmo para as figuras, relações etc.
O que significa esse caráter meramente aproximativo do mundo
intuitivo? Ser ele subjetivo-relativo: o que parece reto a
Pedro pode não sê-lo para Paulo. Essa subjetividade implica
na inexatidão inscrita nesse mundo, onde nunca haverá verdade
em si, válida para todos, objetivamente válida. Logo, a
geometria lida com um método idealizante, para operar com
idéias, e não com coisas, o que requer a passagem das formas
reais para as ideais, formas-limites, contruídas: no lugar de
qualquer práxis real tem-se uma práxis ideal, do pensamento
149
puro. O movimento de um ponto, por exemplo, produz uma reta,
e o movimento circular da reta produz o círculo e assim por
diante. Desse modo, consegue-se a exatidão que não há na
práxis empírica, determinando aquelas formas em sua
identidade absoluta, com propriedades absolutamente
idênticas, determináveis de modo unívoco. Dadas as formas
elementares, por uma operação sobre elas se constrói novas
formas de maneira metódica, com um método que garante
verdades para todos os que o praticarem. Ora, a estrutura
literalmente circular desta forma de pensamento fica
evidenciada quando propomos que se conceba o ponto como um
círculo diminuto, tal como feito de início, na tentativa de
forjar uma concepção geométrica mais fidedigna em relação às
pesquisas da física quântica sobre a estrutura do real.
Quanto a saber se haveria continuidade entre os dois
mundos, aquele real e o ideal, Husserl entende que de maneira
alguma – são domínios separados por um abismo, visto que o
ideal não é um dos possíveis do real, obtidos pela variação
imaginária das formas sensíveis (cf. “Krisis”, § 9, passim).
Por isso que a reta será melhor representada como uma
150
continuidade imaginária dos pontos em que se tocam a série de
círculos que são os pontos, postos lado a lado, pois assim
fica evidenciada a verdadeira descontinuidade, o “corte de
Dedekind”, que a imagem da reta nos oculta (v. supra,
Introdução, principio).
Com a ciência moderna, surge a idéia de uma natureza
construtivamente determinada em todos os seus aspectos. Agora
não se trata de aplicar a matemática à empiria, como já
Platão – ou, antes dele, Pitágoras - o preconizara, mas sim
idealizar a natureza, transformando-a em si em uma idéia,
onde ela própria é idealizada, sob a direção da norma
matemática, tornado-se ela mesma um múltiplo da matemática. E
com isso, o mundo da vida intuitiva é substituído por um
mundo matemático de idealidades, começando uma história de
sobreposição deste à natureza pré-científica. As ciências
exatas – que em “Idéias para uma Fenomenologia Pura e uma
Filosofia Fenomenológica” (abrev.: “Ideen”), III, § 18,
Husserl qualifica de “dogmáticas” – mascaram a trivialidade
de que na vida cotidiana não encontramos correspondência com
a idealidade, existentes em um espaço geométrico e em um
151
tempo matematizado. Daí decorre a “alienação técnica das
ciências”, a que se refere Husserl no § 9 lets. f, g, do
texto da “Krisis”, com a busca desenfreada por fórmulas que nos
permitam chegar a ver o ser verdadeiro da natureza, já
anteriormente idealizada, fórmulas essa submetidas a uma
algebrização, a qual, inicialmente, amplia as possibilidades
do pensamento, tornando-o livre e purificado de qualquer
referência intuitiva, com o que o desconecta do fundamento de
validade, fonte originária de toda verdade.
Nesse contexto, de fabricação da ciência, o cientista é
mero operário ou, quando muito, um engenheiro, tal como já
consta em “Ideen”, III – já o filósofo é caracterizado em
“Krisis” como um “funcionário da humanidade”. Aos cientistas é
que se referia Husserl, ao dizer que operam segundo regras de
um jogo, enquanto o pensamento originário, o que confere
sentido e verdade, “simbolizante”, imaginativo, fica
excluído, em face do simbolismo formalista. Afastar tal
alienação técnica, saindo dos signos exteriores para os
conceitos, partindo da intuição, como preconiza Husserl, é
acabar o “jogo” das operações meramente computacionais, com
152
seu formalismo estéril.
Com Hilbert, deu-se o impulso maior ao formalismo, em
filosofia da aritmética, a qual ele pretendia demonstrar ser
a base de toda a matemática, uma vez encontrada uma técnica
por meio da qual se pudesse clarificar, de uma vez por todas,
que a matemática estava livre de contradições, o que foi
posto por terra pelo célebre teorema da incompletude de
Gödel.153
Segundo Kant, as faculdades de cognição próprias ao ser
humano predeterminam a forma de nossos conhecimentos
possíveis. Estamos presos a elas, com a nossas sensações, e
delas não podemos sair para apreender "as coisas em si". Por
exemplo, esp aço e tempo não são "realidades", mas formas,
internas (e inatas) à mente humana, nas quais enquadramos os
dados que recebemos do real, de modo que nada percebemos fora
do quadro espaço-temporal que nos é próprio. Do mesmo modo,
há formas de pensamento lógico (categorias como "existência"
153 Sobre esse desenvolvimento em filosofia da matemática, cf.WILLIS SANTIAGO GUERRA FILHO, “Por que não é lógica a dialética,se é dialética a matemática?” in: id., Para uma Filosofia da Filosofia,Fortaleza: Casa de José de Alencar, 1999, p. 39 ss.; tb. id., Teoriada Ciência Jurídica, loc. ult. cit.
153
e "inexistência") que também funcionam como filtros - e
sabemos por antecipação que nada chegará a nosso conhecimento
sem passar por esses filtros.
Ainda segundo Kant, a ética deve limitar-se a emitir
regras formais, sem matéria definida. Por "matéria" de um
juízo ético Kant entende os bens ou males determinados, que
ele recomenda ou proíbe. Uma "ética material" teria de provar
logicamente a superioridade de certos bens sobre outros, o
que para Kant é impossível. Regra ética formal é a que vale
para quaisquer bens indeterminados. E se isso pode ser
contestado em tema de ética, como efetivamente o tem sido,
entre outros, por Max Scheler, com seu enfoque
fenomenológico, assim como, em termos de ciência do direito,
da perspectiva tão difundida de Hans Kelsen, que propõe a
consideração dita científica (positivista) do Direito apenas
como um conjunto de normas já dadas, a ser estudado por um
sistema consistente de objetos puramente formais, sem
discussão de seus conteúdos, é que se atingiria a
possibilidade do conhecimento científico.
Justamente contra essa perspectiva é que nos insurgimos,
154
verberando argumentos como os que defendem, em filosofia da
matemática, os intuicionista, Luitzen Brouwer a frente, tendo
ao lado Henri Poncaré, e também Husserl, como antes dele o
seu mestre, Weierstraß. A prática da matemática, para
Brouwer, como explica Jairo José da Silva,154 “não se
constituía na derivação de teoremas, no interior de uma
lógica determinada a priori, como para os logicistas e
formalistas, mas no exercício criativo de uma consciência
matemática, limitada apenas ao princípio formal a que está
sujeita toda construção, o tempo”. Assim, para o
intuicionismo, enquanto vivência de uma consciência moldada
pelo sentido interno, que é o tempo, a investigação
matemática se dá em um processo temporal finito, mas que não
é aprioristicamente limitado ou universalmente pré-
determinado. Toda construção que extrapole a intuição
fundamental é inexistente, mera forma fantasmagórica,
concebida no espaço imaginário da consciência. Assim ocorre
com os conjuntos infinitos, dos quais a matemática usa e
abusa, sem que deles possa oferecer um verdadeiro
154 Cf. Filosofias da Matemática, São Paulo: UNESP/FAPESP, 2007, p.152.
155
conhecimento, posto que nenhuma totalidade de fato infinita
pode ser efetivamente construída numa seqüência finita de
momentos – e também por vivermos, até onde nos é dado
perceber, em um mundo materialmente finito, oriundo de um
evento singularíssimo, o assim chamado “big bang”. Conforme
distinção feita logo no início do presente trabalho (supra, n.
2), apesar de concebível, o infinito é inimaginável.
A subjetividade transcendental, por seu turno, como bem
coloca, transmitindo as lições husserlianas um adepto
lusitano, Alexandre Fradique Morujão,155 é quem vai pôr o
mundo “entre parênteses”, por meio da redução fenomenológico-
transcendental (a epoché do ceticismo pirrônico, com o
significado que lhe atribuiu Husserl), depurando, assim,
desse mundo (natural) o eu, enquanto pólo ideal, visto que
“(N)o sentido fenomenológico só há mundo para mim e só há eu
na correlação mundana intencional”.156 Isso porque o fenômeno,
para a fenomenologia husserliana, é esse “correlato real ou
possível de determinados modos de doação intencionais” (id.
155 Cf. “Sobre a fenomenologia husserliana”, in: Id., “Subjectividade eHistória”, Coimbra: Universidade de Coimbra, 1969, pp. 105 ss. 156 Cf. ob. loc. ult. cit., p. 115.
156
ib., p. 116), modos esses que são modos de doação do mundo –
o qual, parafraseando a passagem bíblica, se precisa
inicialmente perder para depois recuperá-lo, “ganhando-o”.
Escapando do mundo pela epoché, seguida da redução
fenomenológica, o eu, agora (mais) livre, pode lhe atribuir
sentido, o que já exige que ele saia do solipsismo, de seu
estado de mônada (como diria Leibniz), irredutivelmente
fechada em si, abrindo-se para o “nós” ou pluralidade de
“eus” que há em si, em cada um de nós.157 Por essa via, a
reflexão fenomenológica, tal como atestam trabalhos ainda
inéditos de Husserl,158 chega a uma “totalidade absoluta das
mônadas”, denominada “personalidade total” (na “Krisis”, § 55,
pp. 191/192, linhas 39/01, há referência a “personalidades de
ordens superiores”, com sentido crescentemente transcendental
e, assim, absoluto), fundamento mais íntimo do eu
transcendental, que é também um “eu”, só que de um tipo todo
especial, por ser Deus, “intuível reflexivamente como uma
157 Cf. HUSSERL, Erste Philosophie, 1923/1924”, 2a. parte, Husserliana,vol. VIII, 1959, p. 173, passim. 158 V., p. ex., o “Manuscrito” EIII 4, 1930, p. 62, referido porMORUJÃO, ob. cit., p. 135.
157
ultra-realidade, supra-verdade e ultra em si”.159
Ora, o conjunto de mônadas, que é uma “super-mônada”, a
qual se pode se indicar com a denominação de “Deus”, há de
ser concebido como este círculo, que foi reduzido ao “ponto”
da geometria clássica, formado por uma infinidade de outros
círculos ou “pontos”, as “rei” (plural de res, em latim, a
causa jurídica, o litígio, que se traduz também por coisa) ou
coisas que compõem a assim chamada re(i)alidade, todas
passíveis de serem concebidas abstratamente como círculos que
são abrangidos por um círculo maior, no qual, portanto, são
imanentes, mas que, por este círculo maior a eles não se
reduzir, ele seria, em relação aos círculos menores,
transcendente.160
7. Proposta de reordenação das formas de conhecimento:
legitimando aquelas de natureza poético-normativa ou
159 Husserl, apud MORUJÃO, ob. loc. ult. cit.160 Assim como nos parece os números seriam entendidos, se definidoscomo “conjuntos de conjuntos”, na esteira das colocações deBertrand Russell e Alfred North Whitehead, em Principia Mathematica,quando então o zero, por exemplo, dessa perspectiva, seriadefinido como “o conjunto cujos elementos são todos os conjuntosvazios” – cf. JOSÉ DANTAS, ms., cit., p. 1.
158
“escatológicas”
Eis que assim nos pomos em condição de propor os vetores
de investigação da totalidade do real, como uma parte do
imaginário, dividido por um eixo horizontal atravessado por
um outro, vertical, onde na parte superior está o
transcendente, assim como na parte inferior está o imanente.
Já na parte anterior, do eixo horizontal, tem-se a
investigação causal-explicativa, praticada pelas ciências
naturais, e que também pode ser dita arqueológica, no sentido
em que Michel Foucault propôs uma arqueologia do saber,161 ou
também “arcôntica” (archontisch), como refere Heidegger,162
161 Cf., para uma retomada recente da contribuição de Foucault, comgrande vigor, GIORGIO AGAMBEN, Signatura Rerum. Turim: BollatiBerlinghieri, 2008.162 Cf. Phänomenologische Interpretationen zu Aristoteles. Einführung in diephänomenologische Forschung, Gesamtausgabe, vol. 61, WALTER BRÖCKER eKÄTE BRÖCKER-OLTMANNS (eds.), 2a. ed., Frankfurt am Main: VittorioKlostermann, 1994, p. 26. Também Husserl refere-se a uma“metodologia arqueológica” no Manuscrito C 16 IV, como nos reportaNicoletta Ghigi, da Universidade de Perúgia (Itália), especialistaem fenomenologia husserliana que vem desenvolvendo pesquisas sobreos manuscritos inéditos do Arquivo Husserl (Louvain, Bélgica) -cf. http://www.fafich.ufmg.br/memorandum/artigos04/ghigi01.htm,consultado em 1o./10/2006. V. tb. ANGELA ALES BELLO, Culturas eReligiões. Uma leitura fenomenológica, trad.: Antonio Angonese, Bauru (SP):EDUSC, 1998; Id., Fenomenologia e Ciências Humanas, org. e trad.: MIGUELMAHFOUD e MARINA MASSIMI, Bauru (SP): EDUSC, 2004, cap. 2, p. 187ss.
159
desde que praticada no plano histórico, transcendente (parte
superior esquerda do diagrama proposto), ao invés daquele
natural, imanente (parte inferior esquerda o mesmo).163 E na
parte posterior deste mesmo eixo (portanto, à direita do
diagrama) é que se tem localizada a investigação ou
elaboração mais puramente imaginativa, voltada não para a
busca retrospectiva de causas originárias, as “archai” (do
grego arché, que quer dizer “causa”, sendo termo originário do
vocabulário jurídico-político, pois significa também o poder
de decidir do arc[h]onte), mas sim para a formulação
prospectiva, escatológica,164 do sentido, tal como se faz no163 Aqui pode-se vislumbrar motivos pelos quais Freud, nos últimosanos de sua reflexão teórica, já tendo, no Nachschrift 1935 zur“Selbstdarstellung”, conforme anteriormente mencionado, reconhecidonas religiões um conteúdo de verdade, aduzindo se tratar deverdade que “não é material, mas sim, histórica”, também irárecomendar que o analista, ao invés de fazer interpretações(Deutungen), faça “construções” (Konstruktionen), ou ainda,“reconstruções” (Rekonstruktionen), de maneira análogo ao trabalho dosarqueólogos, segundo suas prórpias palavaras. Cf. FREUD,Konstruktionen in der Analyse [1937], in: Gesammelte Werke, cit., vol. XVI,p. 43 ss.164 No sentido em que Paul Ricouer se refere às duas formas dehermenêutica, em seu texto fundamental sobre a simbólica do mal,contida em sua obra “O Conflito das Interpretações”, a saber,aquelas redutoras, voltadas para uma reconstituição do passado,ditas arqueológicas, em contraposição àquelas amplificadoras daimaginação simbólica (sinnbildende, como se diz em alemão, ou seja,literalmente, “construtora de sentido”), que se relacionam com opassado no registro do que chamamos em língua galego-portuguesa(e/ou luso-brasileira) de maneira singular de “saudade”, um anelo
160
âmbito da poética, seja ela artística, ou (também) teológica,
tal como refere Giambattista Vico, com uma conotação
igualmente jurídica, ou jurídico-política, “civil”,165 sendo
esta última de se considerar como imanente (parte inferior à
direita do diagrama proposto), enquanto aquelas sãode voltar a viver com maior intensidade, no futuro, algo jávivenciado, em geral na in-fância feliz da existência, do queescapa às palavras mas se preserva nas imagens. A essa segundaforma de hermenêutica Ricouer denomina “escatológica”. Cf.,especificamente, P. RICOUER, “Le conflit des herméneutiques,épistémologie des interprétations”, in: Cahiers Internationaux deSymbolisme, Paris, 1963, n. I, pp. 179 ss.; v. tb. GILBERT DURAND, AImaginação Simbólica, São Paulo: CULTRIX/EDUSP, 1988, pp. 93 ss. 165 Para Vico, os primeiros poetas foram teólogos que com a suateologia estabeleceram os fundamentos da organização política,inicialmente republicana, expressando-se através de “imagineshumanae maiorum”, antes que por conceitos, como se faz em teologianatural ou racional. Cf. VICO, “Sinopsi del diritto universale”, in: Id., Il dirittouniversale, a cura di FAUSTO NICOLINI, Bari: Laterza, 1936, pp. 6, 7,10 e 17. Daí ser para ele a poética uma sabedoria (sapientia), a sediferençar tanto das ciências, como a matemática, enquanto umemprego da razão com finalidade demonstrativa, como das “técnicas”(ars), de natureza preceptiva – e também daquelas disciplinas que,segundo ele, são em parte demonstrativas e em parte preceptivas,dando como exemplo a Medicina e o Direito, e preceptivas em umsentido mais amplo do que seria a retórica (oratoria) ou uma outradisciplina, que denomina imperatoria, designação que aponta para algoassim como o que outros chamariam “arte de governar”, pois aquelasprescrevem na forma do aconselhamento (consilia) combinado comdemonstrações, enquanto esta últimas combinam os conselhos (consilia)com os preceitos propriamente ditos (praeceptis). Merece transcriçãointegral as passagens concernentes, nomeadamente, os “capítulos”(capita) XXXVI e XXXVII do Livro primeiro da obra acima referida, “ODireito Universal”, intitulado “De uno universi iuris principio et fine uno”, in:loc ult. cit, p. 50: “CAPUT XXXVI – DE VIRTUTE: Ab hac vi veri,quae est humana ratio, virtus existit et appellatur. CAPUT XXXVII[VIRTUS DIANOETICA ET VIRTUS ETHICA] – Virtus dianoetica:scientia, ars, sapientia.: Vis veri, quae errorem vincit, est
161
transcendentes (parte superior à direita).
Em meados do século XX, a obra de Theodor Viehweg,
“Tópica e Jurisprudência” (melhor traduzindo Topik und
Juriprudenz: Tópica e Ciência do Direito) teve grande impacto
na filosofia jurídica e, mesmo, na filosofia em geral, ao
postular um retorno a Vico para resgatar a racionalidade
argumentativa ínsita a disciplinas, como a tópica e a
retórica, desacreditadas pelo racionalismo cientificista da
(primeira) modernidade, então caído ele próprio em
descrédito, em face dos horrores das duas grandes guerras
mundiais, impulsionadas pelo avanço do conhecimento, que ao
invés de trazer a esperada melhoria das condições da
humanidade a estava, então como ainda agora, ameaçando com a
extinção. É preciso que se retorne mais uma vez a Vico e aos
que, tanto antes, como depois dele, postularam uma defesa da
racionalidade contemplando o solo mesmo de onde ela brota, o
húmus da cultura donde emerge o humano: a capacidade
virtus dianoetica, seu virtus cognitionis. Quae, si totademonstratione constat, est scientia, ut mathesis; si totapraeceptis, est ars, ut grammatica, frenaria; si partimdemonstratione partim consilio, ut medicina, iurisprudentia, velpartim praeceptis partim consilio, ut imperatória,oratória,poética, proprie ‘sapientia’ est appellanada”.
162
simbolizadora presente na linguagem, em suas mais diversas
formas (sendo o direito uma delas), enquanto produtora (e
produto) do esforço de produção de um sentido para a
existência desse ser em aberto, livre, que somos.
Do que faz falta, então, é de promover uma
(re)aproximação da teoria a um modo antes poético, do que
científico e mesmo filosófico (ou religioso), de desenvolver
a reflexão e sua exposição. Com isso não se pretende
invalidar os esforços que em geral fazem os estudiosos de
filosofia, quando se dedicam à exegese do que escreveram os
filósofos, normalmente aqueles do passado e, em raros casos,
alguns poucos contemporâneos, que ousaram, ou ainda ousam,
elaborar um pensamento (mais) próprio. “Próprio”, aqui,
entenda-se no duplo sentido da palavra, em que este
pensamento tanto aparece como original, originário do próprio
sujeito, como apropriado ao que se pode considerar assunto da
filosofia. Ocorre que, no modo de ver aqui proposto, realizar
um trabalho teórico que mais se aproxima de parâmetros
científicos, sejam das ciências humanas, sejam de ciências
naturais ou formais, como se dá, comumente, no âmbito da
163
filosofia de corte analítico, entendemos que significa
desviar-se do que mais direta e imediatamente interessa
tratar em filosofia, desviando-se para um caminho técnico, no
qual se exaure o modo mais originário de questionamento
filosófico, que é metafísico ou, como acima referido,
“archôntico”, enquanto imanente, e escatológico, quando
aberto ao transcendente, à discussão do sentido da existência
de si, ou seja da vida e da morte, bem como dos demais e do
próprio mundo, tal como normalmente é feito pelo simbolismo
“mitopoético” de religiões e artes em geral. De certa
maneira, estaremos assim retomando uma perspectiva suscitada
ainda na passagem do séc. XIX para o seguinte pelo filósofo
cearense Farias Brito, que entendia deveriam filosofia,
ciência e poesia fundirem-se em uma só, enquanto princípio
ativo (e regenerador) do pensamento, dirigindo-o,
respectivamente, para o bem, o verdadeiro e o belo.166
Assim, mesmo sendo da filosofia que resultou a postura
científica de tratar as questões (sua epistéme, para dizer em
166 Cf. FARIAS BRITO, Finalidade do Mundo, vol. I - “A Filosofia comoAtividade Permanente do Espírito Humano”, publicado originalmente naCidade de Fortaleza, em 1895 -, 2a. ed., Instituto Nacional doLivro, Rio de Janeiro, 1957, p. 128.
164
grego, empregando expressão hoje consagrada no jargão
filosófico), aquilo que se pretenda conhecer/saber pela
filosofia sobre este aspecto de último referido, é justamente
o que não interessa às ciências, do que elas não se ocupam,
até porque as põe em questão: elas próprias, seus objetivos,
para além do conhecimento que fornecem e das possibilidades
de ação/interação/alteração do que estudam. Mesmo uma
“ciência da ciência” não levaria a uma tal filosofia, pois
não se voltaria para pensar o que aqui se propõe deva acolher
uma nova teoria, metafilosófica, (mito)poética, aqui
qualificada de “imaginária”, por imaginativa – situada
naquele plano que Henry Courbin denominou de “imaginal” -,
havendo urgência nesse acolhimento, perfeitamente factível,
tendo em vista que a filosofia já esteve voltada para esse
modo de pensar e o levava em conta – aliás, em alta conta,
como atesta, por exemplo, o que nos restou de obras como a
Poética de Aristóteles, a partir da qual Olavo de Carvalho
propõe se deva (re)ler o conjunto desta obra fundadora do
pensamento ocidental,167 ou já na chamada época moderna
167 Aristóteles em nova Perspectiva, Rio de Janeiro: Topbooks, 1996.
165
colocações como aquelas antes referidas de Vico -, antes de
se perder e exaurir nas ciências. Inclusive, a própria
palavra “filosofia, etimologicamente, fora utilizada de
maneira esparsa por “Pré-Socráticos” como Heráclito de Éfeso
e Pitágoras (membros da Escola dita Pitagórica, localizada na
região da atual Sicília), mas só foi efetivamente difundida a
partir de Atenas, graças a Sócrates e seus seguidores,
havendo nela a philia, referência a um anelo, uma aspiração,
por uma forma extra-ordinária de saber, a sophia, que não é da
ordem natural apenas, como aquele dos que, a exemplo de
Thales, Parmênides, Zenão, Leucipo, Demócrito, investigavam
o fundamento (arché) ou fundamentos (archai) da physis, sobre ela
elaborando um discurso logos – em geral, da maneira que então
se entendia ser a mais adequada para a transmissão e fixação
do saber,ou seja,em versos, quer dizer, poeticamente -, donde
serem melhor denominados, como o fez Aristóteles na Metafísica,
“fisiólogos”, physiologoi (de physis + logos, pl. logoi), até
porque dentre eles se tem contemporâneos e pósteros de
Sócrates.
A urgência desse pensamento em nosso tempo se explica
166
justamente em razão do que nele vem-se produzindo, sob a
influência do predomínio do pensamento técnico-científico – e
o pensamento técnico, vale destacar, desde sempre e cada vez
mais remete ao pensamento que a filosofia tornou científico,
e vice-versa. Antes da ciência se tornar o que hoje – e desde
já há algum tempo – ela se tornou, ela existiu
embrionariamente enquanto técnica, faltando apenas o encontro
histórico com a filosofia, primeiro, e, depois, com a
religião monoteísta e personalista, de Deus onipotente feito
homem, o cristianismo, para que se verificassem os
pressupostos mais importantes, no plano ideológico,
imaginário, de seu completo desenvolvimento – eis que se tem
uma origem metafísico- teológica da ciência e de sua(s)
técnica(s).168
168 Aqui estamos diante do que Herman Dooyoweerd, jusfilósofo etambém pensador da totalidade - de uma perspectiva neocalvinista,reformada -, qualifica, em seu opus magnum, De Wijsbegeerte der Wetsidee(disponibliizado para download na rede mundial de computadores pelogoverno holandês), como a priori religioso de todo pensamento,inclusive o científico. Embora na versão para o inglês desta obra,posterior, o A. tenha retirado da noção de a priori, tal comoempregada na expressão, o sentido transcendental kantiano, opróprio cerne “ideonômico” de seu pensamento implica a idéia deordenação de tudo quanto se possa conceber e transmitir a partirde pressuposições sobre o sentido, que em si têm naturezareligiosa ou, como preferimos denominar, “mitopoética”, porabranger todo o campo do simbolismo, no qual se pode situar as
167
Para Platão, por exemplo, a filosofia seria "epistéme
epistemés", "ciência da ciência", enquanto Aristóteles, na
"Metafísica" (Livro VII ou zetha, 1), a define como "epistéme
ton próton arkhôn kaì aítion theoretiké", conhecimento dos primeiros
princípios e causas explicativos de tudo. Comentando essa
passagem, Heidegger, no texto "Que é isto, a filosofia?",
recorda que epistéme deriva de epistámenos, que seria aquela
pessoa vocacionada e competente para uma determinada
atividade - no caso da filosofia, a atividade de teorizar,
sendo a theoria o que os gregos considerariam propriamente a
ciência, saber contemplativo das verdades universais, eternas
e transcendentes, que, no princípio do livro apenas citado de
Aristóteles, é considerado um conhecimento através do qual os
homens se ombreariam com os deuses, devendo, por isso, temer
a inveja deles. Uma outra forma de conhecimento, mais próprio
das contingências da vida, é aquele que os gregos denominavamreligiões, como também as elaborações mitológicas, de naturezaantes mágica do que religiosa, as artes, o próprio direito etc.Remonta a Platão a concepção de uma estrutura ideonômica douniverso dos símbolos coroado, na visão platônica, pela Idéia doBem (Rep., VI) – cf. Henrique de Lima Vaz, Ética e Direito, São Paulo:Landy/Loyola, 2002, p. 328. O termo é o que entendemos deva serutilizado para traduzir a expressão-guia do pensamentodooyeweerdiano: wetsidee (vertido para o inglês como Law-Idea e para oalemão como Gesetzesidee).
168
techné, a técnica, um conhecimento operativo, instrumental e
produtivo, limitado e finito, por voltado ao atendimento de
finalidades específicas, mas sempre revelador de
potencialidades, donde sua tradução para o latim como ars.
Então, a epistéme seria algo intermediário entre essas duas
formas de conhecimento, por referir-se à atividade de
conhecer a partir das necessidades de um certo tipo de
explicação, isto é, não as explicações que se fazem
necessárias e úteis à manutenção da vida, inclusive no
convívio social e político, mas sim aquelas que, a rigor, são
desnecessárias, inúteis, embora sejam elas o que desejamos,
anelamos, quando nos maravilhamos e, no duplo sentido dessas
palavras, negativo e positivo, nos espantamos e assombramos
diante do universo ao nosso redor e em nós mesmos, o cosmos,
sendo desse sentimento (pathos) que, segundo os dois filósofos
gregos citados - mestre e discípulo, de certa forma os
primeiros e até hoje maiores entre todos - nasceria a
filosofia: Platão, no seu diálogo "Teeteto" (155 d), e
Aristóteles, na já citada "Metafísica” (Livro I ou alfa, 2).
Temos que retornar sempre a esse momento espantoso, em que o
169
ser se mostra, o qual nos levou a falar e a nos pormos a
caminho de uma busca de explicações, como que para nos
assegurarmos na vida, tentando aprisionar o que, na verdade,
nos fez prisioneiros, sem percebermos, pois assim entramos em
uma fantasia de permanência, impedindo-nos de aproveitar bem
a oportunidade que temos de, simplesmente, sermos
(experiências do ser).
É certo que antes do saber científico afirmar sua
superioridade, em termos pragmáticos, frente aos demais,
inclusive a filosofia – o saber justamente de onde as
ciências em geral foram colher seu mais forte impulso
inicial, adotando postulados como este apenas mencionado, da
contingência e falibilidade do conhecimento -, foi necessário
superar o predomínio de um tipo de conhecimento que mesmo
tendo se aproveitado bastante da filosofia, até o ponto de
tê-la como sua “serva”, veio a abandoná-la nos momentos
cruciais, indo buscar apoio além da razão, na fé. Este saber
é o da teologia, ou o conhecimento de natureza religiosa
amparado teo-logicamente, que irá por muito tempo cercear o
desenvolvimento da perspectiva relativista e imanentista,
170
própria da ciência. Contudo, a ruptura que a modernidade
trará com a supremacia do pensamento teológico, no Ocidente,
foi preparada no contexto desse mesmo pensamento, por
teólogos mal-compreendidos em seu tempo, como Roger Bacon
(séc. XIII), com sua insistência no valor da experimentação
para desenvolver o conhecimento, e um outro, franciscano e
britânico como ele, de quem já tivemos oportunidade de vai
destacar alguns aspectos mais salientes de seu pensamento,
que foi Guilherme de Ockham (séc. XIV), sendo que entre ambos
avulta a figura do antes referido John Duns Scot, a quem se
pode conceder os maiores créditos pela introdução de uma
perspectiva, mais que transcendente, verdadeiramente
transcendental – e, logo, moderna –,169 a ser desenvolvida
posteriormente, sem os vínculos dogmáticos com a teologia,
por Descartes, Kant e, já na contemporaneidade, Husserl, para
citar apenas três dos maiores responsáveis pelo
aprofundamento do que se pode denominar uma “metafísica do
169 Cf. WILLIS SANTIAGO GUERRA FILHO, “Lei, direito e poder em Guilherme deOckham”,cit.; Id., “Sobre a cisão medieval de estruturas do pensamento filosóficosegundo André de Muralt”, in: Crítica. Revista de Filosofia, vol. 9,números 29/30, Londrina:UEL/CEFIL, 2004, p. 251 ss.
171
possível”, oriunda já de pensadores árabes, com destaque para
Avicena (Ibn-Sina).170
8. Interlúdio Metafísico-Teológico (com uma alusão à Teoria
de Sistemas Sociais Autopoiéticos)
A teologia (judaico-)cristã da onipotência divina, ao
postular um Deus que é pura onipotência para além da razão e
do mundo, o maximamente real passa a ser a soberana potência
divina, superior a toda razão e a toda criação. Em outras
palavras, se Deus é o maximamente real será porque Sua
vontade contém em si toda a realidade possível. Deste modo, a
hipótese ockhamista, enquanto implica em identificar a
onipotência divina com a realidade de Deus, acaba por
identificar o maximamente real com o maximamente possível.
Dito em outros termos, a mencionada hipótese leva a
identificar o real com o possível por via da absorção do
primeiro pelo segundo, e a esvaziar de sentido a noção de
170 Cf. VALENTÍN FERNÁNDEZ POLANCO, “Los precedentes medievales delcriticismo kantiano”, in: Revista de Filosofía, vol. 28, núm. 2,Madrid, 2003.
172
realidade em beneficio da noção de possibilidade, de tal modo
que esta última se faz co-extensível à de ser. A existência
fica, então relegada à condição ou estatuto de um mero caso
fático, isto é, a não ser mais que uma determinação acidental
do ser, quem, por sua parte, se identifica pura e
simplesmente com o ser-possível e se caracteriza por possuir
uma realidade puramente hipotética. E, assim como no caso
grego o ser teria que se dizer de muitas maneiras, para
contemplar seus diferentes modos de exercício, assim também,
no regime definido pela redução teológica do real ao possível
só será concebível um único e exclusivo modo de ser, aquele
que emana da possibilidade, quer dizer, aquele cuja realidade
está já contida de antemão em sua possibilidade. No caso
grego nos achamos, portanto, frente à lógica da analogia:
diversos modos de ser, linguagem essencialmente polissêmica,
sempre inexata, em certo sentido submetida e também superior
ao princípio de não-contradição. Na hipótese teológica da
vontade onipotente, ao contrário, frente à lógica da
univocidade: um único modo de ser, linguagem exata e precisa,
drasticamente submetida ao princípio de não-contradição. A
173
univocidade lógica se converte, deste modo, no reverso da
onipotência absoluta de Deus e expressa a natureza hipotética
de todo ser, enquanto seu principio constitutivo, o de não-
contradição, alcança, coerentemente, o estatuto de paradigma
de toda verdade possível.
A identificação do ser de Deus com seu poder absoluto
conduz, então, à identificação da realidade com a
possibilidade no seio de uma racionalidade unívoca. Daí que
aquela “ciência primeira”, que se ocuparia do ser enquanto
ser, aquela ciência, de estatuto epistemológico tão
contestado, da que dizíamos que não pode estar no mesmo nível
que as demais, mas sim que deve induzir seus conteúdos a
partir das outras ciências, tenha de adotar necessariamente a
forma – se pretende corresponder ao panorama doutrinal
inaugurado e presidido pela hipótese da onipotência absoluta
de Deus – de uma metafísica do possível, que é também uma
teologia,171 mas sem a referência dogmática a um credo
171 A teologia metafísica do possível vai repercutir no pensamentodaquele filósofo que, no século XX, irá patrocinar o enxerto, dahermenêutica no solo da fenomenologia husserliana, que foi MartinHeidegger, enxerto tão fértil, tal como resta uma vez maisdemonstrado no trabalho que aqui se apresenta. Como é sabido, osestudos de filosofia de Heidegger foram antecedidos pelo estudo da
174
religioso qualquer, ambas com um caráter falibilista, tal
como recentemente se reconhece às próprias ciências, o que a
torna possível em um outro sentido, agora epistemológico,
aquele adotado modernamente pelas ciências: essa
possibilidade mostra-se atualmente uma verdadeira
necessidade, pela urgência que temos em estabelecer bases
para um entendimento mútuo entre os humanos, assentado numa
teologia, e sua tese de livre-docência versou sobre Duns Scot – oumelhor, sobre obra que depois se revelou da autoria de Thomas deErfurt, mas que deu margem a que se pensasse ser de Scotjustamente pela estrita observância scotiana nela apresentada. Umaoutra influência, talvez ainda mais decisiva, foi a do pensadorreligioso, cristão, Sǿren Kierkegaard, para que em Heidegger seencontre esse pensamento da abertura para as possibilidades do ser(Sein) que ante si mesmo, aí (Da), pro-jetado, no mundo, tanto semostra, do ponto de vista ôntico, enqunto ente, temporal ematerialmente finito, como também, do ponto de vista ontológico,essencial e espiritualmente infinito, por encarnar a liberdade -uma “fenomenologia da liberdade”, é como Günter Figal se refere àfilosofia heideggeriana, na ob. loc. ult. cit. E como diria opensador dinamarquês, em sua obra clássica sobre o conceito deangústia (Angst), a realidade, antes de tudo, é por nósexperimentada - aperceptivamente, diria Husserl – como umpossível ser, que se toma com real porque nele se crê. A crença nomundo, em um mundo, portanto, é um a priori para o conhecermos, etambém para transformá-lo, o que não se pode obter sem antes -ainda que aperceptivamente -, interpretá-lo (ao contrário do quesugere Marx, em sua conhecida tese contra Feuerbach). Portanto, atransformação almejada, seja qual for, é resultado de uma práticaorientada teoricamente, i. e., de um saber prático, sim, masprodutivo, logo, “poiético” -, e não de uma ação enquanto merapráxis ou de uma “téc(h)n[(ét)ica]”, reprodutiva. Um saber práticopode ser caracterizado como aquele que indica como algo pode serfeito, uma vez que se decidiu (ética, política e/ou juridicamente)fazê-lo, e como fazê-lo.
175
compreensão que seja aceitável como são os resultados
científicos, a respeito de nosso significado cósmico – que se
produza, então, uma teologia esvaziada de qualquer conteúdo
religioso específico, para ser a teologia adequada a nossos
tempos de predomínio tecnocientífico, que seja capaz de
superar esse predomínio, salvando a humanidade de si mesma,
enquanto o saber salvífico, soteriológico, que sempre desde a
origem se propôs a ser a filosofia, como as religiões,172 e
não só teórico mas, sobretudo, prático - logo, eficaz
também.173 busca das estruturas fundamentais de toda realidade172 Neste sentido, LUC FERRY, O que é uma vida bem sucedida?, trad.:KARINA JANNINI, Rio de Janeiro: DIFEL, 2004. 173 Cf. WILLIS SANTIAGO GUERRA FILHO, “(Im)possibilidade e Necessidade daTeologia”, in: Nós e o Absoluto. Festschrift em homenagem a Manfredo Araújo deOliveira, CARLOS CIRNE-LIMA e CUSTÓDIO ALMEIDA (orgs.), São Paulo/Fortaleza: Loyola/UFC, 2001. Também disponível emhttp://serbal.pntic.mec.es/AParteRei/ núm 12:http://serbal.pntic.mec.es/~cmunoz11/willis.pdf. Aqui se apresentauma perspectiva da teologia que se pode qualificar como“narrativa”, à semelhança daquela derivada da filosofiahermenêutico-fenomenológica de Paul Ricouer. Esta é umaperspectiva que se mostra estruturalmente compatível com asciências, ou com o direito, concebido – e concebidas - comoficções de mundos possíveis, a partir dos dados fornecidos pelosobjetos estudados e, no mesmo processo, construídos. Interessadiferenciar tal perspectiva de uma outra, que consideramos foitentada por autores como Alfred North Whitehead, Hedwig Conrad-Martius e, mais recentemente, Richard Swinburne, em que a teologiase aproxima dos conteúdos mesmos das ciências, se fazendo com taiselementos e, eventualmente, mostrando-se compatível com religiões– sintomaticamente, aquelas professadas por tais autores, dederivação judaico-cristã, o que nos parece algo a ser evitado ou,
176
inteligível, que não seriam, entretanto, consideradas como
estruturas transcendentais, enquanto condição mesma da
inteligibilidade, nem tampouco estruturas transcendentes,
tidas como originárias de algum plano meta-físico ou
teológico.
Centrando-nos no entendimento do que seriam tais
estruturas, tem-se que a estruturalidade implica a negação do
simples ou da falta de conexão e, neste sentido intuitivo,
estrutura constitui o conceito originário ou o fator primeiro
de qualquer empreendimento teórico, sua arkhé, para referir a
noção fundamental – e fundante – da filosofia.
No horizonte de uma tal elaboração, verifica-se a
ausência de uma distinção clara entre metafísica e teologia,
até por estarem ambas voltadas para o estudo da realidade
como uma totalidade (de sentido), o que teria contribuído
para obscurecer, na modernidade, os pressupostos dogmático-
teológicos ou “dogmatológicos” nela estruturalmente
operantes, retomados de maneira também indevidamente
explicitada no que se pode considerar tentativas
pelo menos, desnecessário, pois traz o inconveniente de dificultaro diálogo intercultural.
177
contemporâneas de refundação da ontologia enquanto “ciência
primeira” (protê epistéme) na fenomenologia, com Husserl e,
principalmente, em Heidegger, com o sua virada para a
“hermenêutica da facticidade” - objeto de breve apresentação
no estudo feito em apartado, no próximo capítulo -, como
também no modo de desenvolvimento das “ciências derivadas”,
ou ciências propriamente ditas.
Para tanto, faz-se necessário proceder, como o próprio
Heidegger, um retorno às origens gregas da metafísica, tal
como nos foi ela transmitida através da obra de Aristóteles,
o qual concebeu a continuidade entre a razão e a natureza
como reunidas em uma unidade dinâmica, finita e ordenada,
expressa pela linguagem. Neste sentido, pode-se dizer que aí
culmina a visão grega dos problemas filosóficos, na medida em
que inventa um saber racional, capaz de dar uma resposta
unitária aos problemas suscitados pela tradição anterior,
problemas concernentes tanto ao dinamismo da natureza como ao
da própria razão humana. O irredutível de tais problemas,
afirmará Aristóteles, é a realidade do ser, tão imediata de
captar como difícil de definir, algo que parece sempre querer
178
escapar a todo intento de delimitação e que, precisamente
por isso, só podemos designar como o comum a tudo, e,
particularmente, como o comum à realidade do mundo frente ao
homem e à realidade do pensamento no homem, isto é, como o
comum à natureza e à razão. Por causa da impossibilidade de
sua delimitação, a realidade do ser não pode ser objeto de
nenhuma ciência particular, mas sim de uma ciência primeira,
enquanto se ocupa do que é prévio e pressuposto em todas as
demais, que são os fundamentos mesmo de sua realidade como
ciências e da realidade de seus objetos, enquanto as diversas
determinações do ser no que é dado: a realidade irredutível
do ser.
Essa ciência primeira é, então, também “única”, por ser
ciência em um sentido totalmente diverso de qualquer outra,
sendo a ela que Aristóteles e os gregos de sua época chamavam
“teologia” - e por serem os livros que tratavam a respeito
reunidos por Teofrasto, na organização do corpus essencial da
obra aristotélica, o organon, “após (os livros d)a física”
(meta ta physika), fez com que se denominasse metafísica sua
matéria -, definida como a ciência que trata do ser enquanto
179
ser, i. e., que trata de sua realidade mesma - cf.
Aristóteles, Metafísica, 1003 a 20-25.
Daí que, ao tematizar a continuidade grega entre a razão
e a natureza, unidade bifronte de um único dinamismo dado em
sua finitude, Aristóteles funde a ciência da realidade do
ser, inaugurando o que se pode denominar uma metafísica do real.
O pensamento medieval cristão, ao partir da noção de um
Deus infinito, iria ter sérios problemas na hora de
confrontar o racionalismo natural da metafísica aristotélica
com a perspectiva teológica da infinitude, pois um Deus
infinito é tudo menos algo dado, e se esse Deus infinito é
tido como o maximamente real ou o real por antonomásia, o real
em si, é evidente que a realidade do binômio natureza/razão
será seriamente ameaçada. As grandes sínteses teológicas
medievais, especialmente aquela mais característica e
acatada, a de Tomás de Aquino, resolveriam esta dificuldade
recorrendo ao escalonamento dos graus metafísicos da
realidade, onde Deus possuiria um grau máximo, infinito,
absoluto, enquanto a realidade das coisas criadas seria
finita, relativa e Dele dependente. Isto supunha, em
180
contrapartida, a abertura de um certo, ainda que bastante
limitado, acesso do homem ao conhecimento da realidade de
Deus, pelo qual, em princípio, seria possível ter uma noção
aproximada dela mediante o procedimento de elevar ao infinito
as perfeições da natureza (idéias) e os valores da razão
(fins), obtendo assim um vislumbre de quais poderiam ser os
atributos da divindade. Esta solução, que implicava em
atribuir a Deus caracteres próprios do binômio natureza-
razão, particularmente os arquétipos naturais (idéias
divinas) e os valores racionais (fins divinos), permitiu a
Tomás de Aquino salvar o essencial da metafísica aristotélica
e, ao mesmo tempo, conceber um Deus cujos atributos fossem
parcialmente acessíveis para aquela ciência primeira que era
a metafísica do ser real.
Os teólogos críticos da escolástica tardia,
principalmente Duns Scot e, de uma maneira ainda mais
radical, Guilherme de Ockham, como vimos acima (supra, n. 4),
rechaçaram abertamente este procedimento por considerarem
que, tratando de evitar o desprezo que a realidade de Deus
supunha para com o binômio natureza/razão, incorria no
181
defeito oposto, quer dizer, desprezava a infinitude própria
da divindade, atribuindo-lhe idéias (naturais) e fins
(racionais) que só podiam limitar Sua liberdade infinita,
isto é, sua onipotência absoluta. Assim, Duns Scot iria
desvirtuar a doutrina dos graus metafísicos ao interpretá-la
em um sentido formalista, que excluía expressamente sua
aplicação à existência, com o que cortava todo aceso racional
à divindade, já que, por esta consideração, deixava de haver
qualquer coisa em comum entre Deus e criaturas caracterizadas
agora por sua condição de objetos mentais do pensamento
divino, i. e., por sua completa indiferença tanto para com o
ser como o não-ser. Posteriormente, Guilherme de Ockham iria
ainda mais longe, ao pretender para Deus uma transcendência
tão absoluta que O situava mais além de qualquer exigência
racional e O definia como pura onipotência infinita, para
além de toda razão e toda natureza, consolidando desse modo a
fratura escotista entre Deus e o binômio razão/natureza, que
abriria estruturalmente o campo inteiro da filosofia moderna.
Com efeito, o pensamento moderno se ergue sobre o pressuposto
ockhamista, segundo o qual nada há de impossível para a
182
vontade divina, situada para além de todo rasgo de
racionalidade e de toda sabedoria mundana. Isto porque, sendo
a vontade divina absolutamente livre, não há nada na ordem
atual da criação que possa indicar de um modo ou outro a
essência de seu Criador. Ao contrário, a ordem criada, isto
é, a ordem da natureza racional, não é mais que uma ordem
qualquer entre as infinitas ordens possíveis, nem têm nada em
comum com a essência divina do que pudera ter qualquer outra,
imaginável ou não por nós. Por isso, se no presente mundo o
homem foi criado à imagem de Deus, não será na razão humana
onde se pode achar o fundamento dessa semelhança, mas sim no
mais recôndito da alma interior, ali onde habita a vontade
livre do homem, tão livre como a vontade divina frente a
qualquer constrição racional que pudesse empanar ou limitar
sua opção fundamental entre o bem e o mal, entre a aceitação
e a renúncia a Deus. O ato da vontade humana pelo qual
escolhe salvar-se ou condenar-se - o mais transcendente,
portanto, na vida do homem -, se exerce, pois, à margem de
qualquer instância racional ou natural, e já não tem lugar no
processo comum do diálogo entre os homens (Igreja), mas sim
183
no isolamento interior da privacidade de cada um
(consciência). Em outros termos, esta escolha não pode
encontrar apoio na razão, pois Deus é inacessível para a
racionalidade, e só poderá de agora em diante ser questão de
fé, onde a fé – como a graça – já não implicará um reforço
salvífico da natureza criada, mas sim a abdicação expressa
por parte do homem de sua própria razão e de sua essência
humana. Deste modo, tanto Duns Scot como, sobretudo,
Guilherme de Ockham, instauram uma concepção de um Deus
infinitamente transcendente que se situa radicalmente para
além de um mundo criado, com o qual deixa de ter qualquer
coisa em comum, abrindo assim um abismo insalvável entre
ambos, como se fossem conjuntos infinitamente disjuntos.
Impossível, por tanto, qualquer conhecimento racional desse
Deus infinitamente não racional por parte da razão humana. O
único laço entre o mundo e Deus se encontra – fora da
natureza e da razão – na recôndita consciência espiritual do
ser humano, sob a forma de uma vontade absolutamente não
constrangível por qualquer valor racional em seu ato de
aceitação ou renúncia à salvação ofertada, e que se denomina
184
fé. A relação do homem com Deus, daí em diante, deverá se
desenvolver nesse âmbito irracional – e, logo, privado –,
enquanto a razão comum humana deverá renunciar a todo intento
de aproximação da essência ou do desígnio divinos e aplicar-
se a seu objeto imediato, isto é, o mundo criado que se acha
frente a si e que carece de toda relação com seu Criador.
A teologia da onipotência divina implica, como parece
evidente, uma revisão drástica dos pressupostos filosóficos
precedentes, ou seja, da metafísica do real de caráter
aristotélico, que se baseava, como vimos, na continuidade do
binômio razão/natureza (no caso de Aristóteles), ou do
trinômio razão/natureza/Deus (no caso de Tomás de Aquino). A
partir de Ockham, Deus, o ser realíssimo, deixa de fazer
parte desse trinômio e escapa por inteiro do binômio
restante, cujo estatuto ontológico se reduz, então, ao de
mero caso fático entre uma infinitude de mundos possíveis, e
cuja realidade se vê condenada à precariedade irremissível de
não ter outro fundamento para sua existência que não a pura
arbitrariedade divina, a qual escolheu criá-lo sem motivos
evidentes que O impeçam de criar outros quaisquer dentre os
185
infinitamente imagináveis. Assim, ao postular um Deus que é
pura onipotência para além da razão e do mundo, o maximamente
real passa a ser a soberana potência divina, superior a toda
razão e a toda criação. Em outras palavras, se Deus é o
maximamente real será porque Sua vontade contém em si toda a
realidade possível. Deste modo, a hipótese ockhamista, enquanto
implica em identificar a onipotência divina com a realidade
de Deus, acaba por identificar o maximamente real com o
maximamente possível. Dito em outros termos, a mencionada
hipótese leva a identificar o real com o possível por via da
absorção do primeiro pelo segundo, e a esvaziar de sentido a
noção de realidade em beneficio da noção de possibilidade, de
tal modo que esta última se faz co-extensível à de ser. A
existência fica, então relegada à condição ou estatuto de um
mero caso fático, isto é, a não ser mais que uma determinação
acidental do ser, quem, por sua parte, se identifica pura e
simplesmente com o ser-possível e se caracteriza por possuir
uma realidade puramente hipotética. E, assim como no caso
grego o ser teria que se dizer de muitas maneiras, para
contemplar seus diferentes modos de exercício, assim também,
186
no regime definido pela redução teológica do real ao possível
só será concebível um único e exclusivo modo de ser, aquele
que emana da possibilidade, quer dizer, aquele cuja realidade
está já contida de antemão em sua possibilidade. No caso
grego nos achamos, portanto, frente à lógica da analogia:
diversos modos de ser, linguagem essencialmente polissêmica,
sempre inexata, em certo sentido submetida e também superior
ao princípio de não-contradição.
Na hipótese teológica da vontade onipotente, ao
contrário, frente à lógica da univocidade: um único modo de
ser, linguagem exata e precisa, drasticamente submetida ao
princípio de não-contradição. A univocidade lógica se
converte, deste modo, no reverso da onipotência absoluta de
Deus e expressa a natureza hipotética de todo ser, enquanto
seu principio constitutivo, o de não-contradição, alcança,
coerentemente, o estatuto de paradigma de toda verdade
possível.
A identificação do ser de Deus com seu poder
absoluto conduz, então, à identificação da realidade com a
possibilidade no seio de uma racionalidade unívoca. Daí que
187
aquela “ciência primeira”, que se ocuparia do ser enquanto
ser, aquela ciência, de estatuto epistemológico tão
contestado, da que dizíamos que não pode estar no mesmo nível
que as demais, mas sim que deve induzir seus conteúdos a
partir das outras ciências, tenha de adotar necessariamente a
forma – se pretende corresponder ao panorama doutrinal
inaugurado e presidido pela hipótese da onipotência absoluta
de Deus – de uma metafísica do possível, que é (ou contém)
também uma teologia, mas sem a referência dogmática a um
credo religioso qualquer, o que a torna possível em um outro
sentido, agora epistemológico, aquele adotado modernamente
pelas ciências: essa possibilidade mostra-se atualmente uma
verdadeira necessidade, pela urgência que temos em
estabelecer bases para um entendimento mútuo entre os
humanos, assentado numa compreensão que seja aceitável como
são os resultados científicos, a respeito de nosso
significado cósmico.
Pelo exposto se pode compreender porque Guilherme de
Ockham é considerado um dos introdutores do que em sua época
já se chamava via moderna, que conduz o pensamento filosófico
188
para além da Escolástica medieval, diretamente na ambiência
moderna. Dele vamos retomar aqui a noção de unidade do saber,
o que propomos que se denomine "perspectiva integradora",
sendo aquela que vem predominando em epistemologia, à medida
que se vai superando os últimos resquícios metafísicos e
teológicos. Tais resquícios se fariam presentes na
perspectiva que é própria das ciências modernas em seus
primórdios, quando davam margem a que se difundisse, de
maneira triunfalista, a crença na definitividade dos
conhecimentos por meio dela obtidos, por baseados na
observação de regularidades na ocorrência de fatos que
permitiam elaborar leis gerais explicativas. Isso por que
tais fatos eram recortados, do conjunto da realidade, de
maneira a permitir um tratamento analítico, que os tornava
objetos reduzidos à sua localização espaço-temporal, de
acordo com o procedimento preconizado exemplarmente por
Descartes. A derrocada do resultado principal da aplicação
deste modelo epistemológico, a física mecanicista (copérnico-
kepler-galileico-) newtoniana, com a emergência da física
quântica e relativista foi, sem dúvida, um marco. A partir
189
daí as ciências voltam a ter história, a ser um conhecimento
em evolução, melhorando à medida em que se abre para aprender
com os erros, ao invés de, precipitadamente, inferir leis
definitivas de padrões observados em escala limitada. Por
outro lado, pode-se perfeitamente supor que os avanços no
conhecimento da matéria viva, chamaram a atenção para uma
descontinuidade nos níveis de explicação, apontando um limite
para a capacidade de previsão, tomando como referência a
uniformidade de fenômenos observados no âmbito físico e
químico, tal como se fossem partes de um grande mecanismo.
É assim que Versalius, o pai da anatomia, na obra
"Fábrica do Corpo Humano" (De humani corporis fabrica), obra
publicada no mesmo ano daquela, literalmente, revolucionária,
de Copérnico, a saber, 1542, irá - em sentido, de certa
forma, oposto a este, que deslocou o homem e sua habitação do
centro do universo -, postular uma distinção radical do ser
humano em relação a outros seres vivos e à ordem cósmica, tal
como preconizava a medicina, desde Hipócrates e Galeno, donde
a necessidade de se praticar o estudo da anatomia assim como
nos humanos ela se apresenta, ao invés de tentar compreendê-
190
la por analogia com outros seres, nos quais se praticava a
dissecação. Em seguida, com Harvey, a anatomia se torna
"animata", ou seja, fisiologia (ou anátomo-fisiologia), sendo
o próximo passo importante, em termos epistemológicos, aquele
que foi dado por aqueles estudiosos, mais recentes, que
passaram a enfatizar a importância do estudo das patologias,
isto é, dos estados disfuncionais, para entender o
funcionamento e as funções normais dos organismos. Dentre
esses, vale destacar, com o autor de “O Normal e o
Patológico”, Georges Canguilhem, os estudos sobre a diabete,
para entender o funcionamento das glândulas supra-renais.
Com o desenvolvimento da fisiologia, impulsionado pelo
conhecimento das patologias, algo literalmente vital para
nós, como é a saúde, passa a ser tratado de maneira anti-
metafísica, não-ontológica, pois agora a doença não é um ser
(mal) que invade o doente, mas um estado alterado em relação
ao normal, que é uma das possibilidades contidas nesse estado
normal, quando ocorre algum desgaste ou ineficiência em seu
funcionamento - a rigor, não chegaria nem a ser, em sentido
literal, um estado anormal, no sentido de "anômalo", o estado
191
patológico, pois esse estado também segue um "nomos", uma
norma, só que diversa daquela que rege o estado dito
"normal", ou são, sendo mesmo por esse motivo que se
investiga a anomalia, buscando enquadrá-la em regras
explicativas, a um só tempo, da anormalidade e da
normalidade. De todo modo, ao contrário do que ocorre com a
matéria inanimada, há uma oscilação constante na matéria
viva, entre estados de excesso, carência e equilíbrio, ainda
que instável, sendo daí que se extrai a noção de patologia,
de disfunção, por considerarmos, nós os que vivemos e somos
conscientes disso, ao estudarmos-nos, ser funcional o que nos
mantém vivos e sem sofrimento, não havendo estados
patológicos da matéria inanimada, pelo simples fato de que
ela não pode, como nós, morrer.
Só assumindo uma perspectiva externa - e aí fazendo
retornar, sub-repticiamente, à postura metafísica e
teológica, com o seu ponto de vista do absoluto - é que se
pode afirmar a continuidade entre os estados físicos,
químicos, físico-químicos, e aqueles biológicos ou, mesmo,
bioquímicos, moleculares. Dessa perspectiva, a diferença
192
entre a saúde e a doença, e mesmo entre a vida e morte, é
meramente quantitativa, sendo em todos os casos estados da
matéria de que se trata, com maior ou menor complexidade,
abordando sua organização. Esta é uma perspectiva inorgânica
e mecanicista da vida. Pode-se, entretanto, adotar uma
concepção inversa, vitalista, não só do que é vivo como do
próprio universo, ou seja, concebê-lo da perspectiva da vida
que nele se formou e que, em certo momento, gera a
consciência, graças a uma certa maneira de operar um tipo de
células, aquelas nervosas, que nos permitem uma forma de
acoplamento com o meio circundante extremamente favorável à
nossa manutenção nele.
Nesta última perspectiva, há sentido no universo e esse
sentido é a vida, não havendo sentido na vida para além de si
mesma – pelo menos, para os seres vivos. A filosofia, então,
pode ser posta a serviço da vida, nesse ser vivo que somos
nós, conscientes do fim da vida, o que pode nos tornar a vida
sem sentido, cabendo à filosofia velar pela continuidade da
vida nesse ser que a altera e questiona, altera-se
questionando-a, tendo desenvolvido um conhecimento tal e uma
193
organização social de tamanha complexidade e poderio que pode
destruí-lo, rápida ou lentamente. E na base desse
conhecimento está uma epistemologia, havendo ainda uma base
biológica, vitalista, para a epistemologia, pois ela, como
todo conhecimento, é uma função vital dos seres humanos.
Para investigar as bases biológicas do conhecimento,
segundo o neurofisiólogo mineiro Nelson Vaz,174 na esteira de
Gregory Bateson, Francisco Varela, Humberto Maturana e
outros, precisa-se incrementar o estudo de uma dimensão
intermediária entre a fisiologia e a filogênese. No caso da
primeira, se tem um estudo em nível celular e molecular, numa
escala temporal extremamente rápida, variando de
milisegundos, na transmissão neuronal a alguns poucos dias,
na cicatrização, passando por algumas horas, na digestão. Já
os fenômenos da filogênese são medidos em milhões ou centenas
de milhões de anos, como a "explosão" de vida do Período
Cambriano, em que surgiram nossos antepassados mais remotos,
metazoários, ou as extinções em massa de seres vivos, entre
os Períodos Permiano e Triássico. Entre esse dois extremos,174 Cf. "Autopoiese: a criação do que vive", in: Um novo paradigma em ciênciashumanas, físicas e biológicas, CÉLIO GARCIA [org.], Belo Horizonte, 1987.
194
muito lentos e muito rápidos, encontra-se o nível que agora
precisaria ser melhor explorado, e que é o nosso nível ou
escala mais próxima, aquela da chamada ontogênese, em que se
tem os fenômenos com duração de semanas, meses e anos, a
começar pela constituição do zigoto, passando pelo
desenvolvimento embrionário com sua organogênese, até a
reprodução, envelhecimento e morte. E o interessante é que o
avanço científico em biologia, especialmente em genética,
vem demonstrando que seres vivos aparentemente tão distantes,
como os mamíferos e os insetos, compartilham muitos
mecanismos morfogênicos na formação do embrião, valendo-se,
muitas vezes, de células muito similares, sem falar na
similitude genética entre seres tão diversos como seres
humanos e ratos: se antes nos espantávamos e maravilhávamos
com a aparente diversidade da vida, hoje é a sua uniformidade
em um nível mais profundo o que nos intriga. E assim, somos
levados novamente à disposição que motivou os primeiros
filósofos, bem como impulsionados a pensar sobre o que já se
encontra desde a origem escondido no interior do código
genético, e se revela em toda sua diversidade no contato com
195
o exterior, alterando-o e alterando-se, continuamente,
enquanto puder.
Há, então, necessidade de que se pratique de forma tão
intensa quanto possível a interdisciplinaridade, o que exige,
então, que tenhamos um paradigma unificador, uma perspectiva
integradora em epistemologia, capaz de articular explicações
de natureza sociológica, econômica, jurídica, biológica,
filosófica e, até, teológica. Um paradigma com essa
característica “uni-totalizante” (Ein- und Allheit, para empregar
expressão que remonta a Schelling, filósofo idealista alemão
do séc. XIX) é o que se vem desenvolvendo por aqueles, como
Edgar Morin, na esteira de Ilya Prigogine, que defendem a
superação do tradicional paradigma simplificador das ciências
clássicas, modernas, em favor de um paradigma da complexidade,
em que se inserem “ciências transclássicas”, pós-modernas,
como são a cibernética e a teoria de sistemas. Tratam-se de teorias
holísticas, de aplicação generalizada no âmbito de ciências
formais e empíricas, tanto naturais como sociais, e que toma
como distinção fundamental não mais aquela entre sujeito-do-
conhecimento-como-observador-objetivo e objeto-do-
196
conhecimento-observado-independentemente, mas sim outras,
como aquela entre “sistema” e seu “meio ambiente”, para
explicar tudo a partir dessa distinção, entre o que pertence
a determinado sistema e o que está fora, no ambiente
circundante, embora circule dentro do sistema – que não é
fechado “para” e sim “com” o ambiente.
A teoria social sistêmica, tal como desenvolvida,
principalmente, por Luhmann, assume, portanto, os seguintes
pressupostos: (1º) substitui a contraposição entre sujeito e
objeto, enquanto princípio heurístico fundamental, pela
“diferenciação sistêmica”, no mundo (Welt), entre o que é
“sistema” e seu meio ambiente (Umwelt). Com isso, não apenas
oferece uma abordagem “desubstancializada”, pois o sistema
não é um hypoukeimenon, como foram as coisas (rei) na
Antigüidade e o sujeito na modernidade, mas também (2º)
“desumanizada”, não-antropocêntrica, já que os seres humanos,
enquanto sistemas biológicos, dotados de uma consciência, não
fazem parte dos sistemas sociais integrantes do sistema
global que é a sociedade, e sim, do seu meio ambiente – e o
“antropocentrismo”, a visão que fundamenta um apartamento dos
197
seres humanos de seu ambiente natural, justificando a
oposição a ele, conhecendo-o para nele intervir e a ele se
impor, pode ser considerado um dos motivos centrais de uma
crise que é “epistemo-ecológica”, a qual tanto e cada vez
mais nos ameaça, como sabe qualquer um minimamente informado,
hoje em dia.
Trata-se de uma teoria holística, de aplicação
generalizada no âmbito de ciências formais e empíricas, tanto
naturais como sociais, e que toma como distinção fundamental,
justamente, aquela entre “sistema” e seu “meio-ambiente”,
para explicar tudo a partir dessa distinção, entre o que
pertence a determinado sistema e o que está fora, no ambiente
circundante, como elemento de outros sistemas - ou não.
A teoria em apreço pretende se desenvolver a partir de
um conceito de sociedade que não é nem “humanista” nem
“regionalista”, adotando assim uma posição que, de partida,
evita dois dos maiores – se não forem mesmo os dois maiores –
pressupostos incitadores da crise “epistemo-ecológica” antes
referida. Isso significa que para a teoria ora em apreço a
sociedade não é formada pelo conjunto de seus integrantes, os
198
seres humanos, assim como não há para ela uma sociedade
delimitada por critérios geo-políticos - a “sociedade
brasileira”, “latino-americana”, “européia” etc. Sociedade
para a teoria de sistemas luhmanniana é a “sociedade mundial”
(Weltgesellschaft), que se forma modernamente. O que a compõe não
são os seres humanos que a ela pertencem, mas sim a
comunicação entre eles, que nela circula de várias formas,
nos diversos subsistemas funcionais (direito, economia,
política, ética, mídia, religião, arte. ciência, educação
etc.).
A diferenciação sistêmica entre "sistema" e "meio
ambiente", então, é o artifício básico empregado pela teoria
para se desenvolver em simetria com aquilo que estuda, como
seu “equivalente funcional”. Essa diferenciação é dita
sistêmica por ser trazida "para dentro" do próprio sistema,
de modo que o sistema total, a sociedade, aparece como meio
ambiente dos próprios sistemas parciais, que dele (e entre
si) se diferenciam por reunirem certos elementos, ligados por
relações, nas operações do sistema, formando uma unidade.
199
Uma "unidade", além de diferenciada no sistema do meio
ambiente, também pode aparecer como meio ambiente para outras
unidades, permitindo, assim, que por ela se aplique,
recorrentemente, um número mais ou menos grande de vezes, a
diferença sistema/meio ambiente, sem com isso perder sua
organização. A "organização" é o que qualifica um sistema como
complexo ou como uma simples unidade, com características
próprias, decorrentes das relações entre seus elementos, mas
que não são características desses elementos. A unidade de
elementos de um sistema é mantida enquanto se mantém sua
organização, o que não significa que não variem os elementos
componentes do sistema e as relações entre eles. Essas
mudanças, porém, se dão na estrutura do sistema, que é formada
por elementos componentes do sistema relacionados entre si.
Os elementos da estrutura podem sempre ser outros; o sistema
se mantém enquanto permanecer invariante a sua organização,
com uma complexidade compatível com aquela do meio
circundante e demais sistemas ali existentes. Note-se que
para a organização o que importa é o tipo peculiar de
relação, circular e recorrente, entre os elementos, enquanto
200
para a estrutura o que conta é que há elementos em interação,
ação e reação mútua, elementos esses que podem ser fornecidos
pelo meio ambiente ao sistema, sem que por isso a ele não se
possa atribuir o atendimento de duas condições gerais, para
que se tenha "sistemas autopoiéticos", como Luhmann propõe
que se considere os sistemas sociais: a autonomia e a clausura
do sistema.
Sistema autopoiético é aquele dotado de organização
autopoiética, onde há a (re)produção dos elementos de que se
compõe o sistema e que geram sua organização, pela relação
reiterativa, circular ("recursiva") entre eles. Esse sistema
é autônomo porque o que nele se passa não é determinado por
nenhum componente do ambiente mas sim por sua própria
organização, formada por seus elementos. Essa autonomia do
sistema tem por condição sua clausura, quer dizer, a
circunstância de o sistema ser "fechado", do ponto de vista
de sua organização, não havendo "entradas" (inputs) e "saídas"
(outputs) para o ambiente, pois os elementos interagem no e
através dele - não se trata, portanto, de uma “autarquia” do
201
sistema, pois ele depende dos elementos fornecidos pelo
ambiente.175
Só a comunicação autoproduz-se, donde se qualificar como
autopoiéticos os sistemas de comunicação da sociedade. O
sentido da comunicação varia de acordo com o sistema no qual
ela está sendo veiculada e as pessoas são meios (media)
dessas comunicações, assim como computadores, faxes,
telefones, etc. Esses componentes , contudo, não pertencem
aos sistemas sociais e, sim ao seu meio ambiente. Os seres
humanos, enquanto seres biológicos, são sistemas biológicos
autopoiéticos e enquanto seres pensantes, são também sistemas
psíquicos autopoiéticos. Sem a consciência decorrente do
aparato psíquico, é claro, não haveria comunicação e logo
também não haveria sistemas sociais. Sem a rede neuronal não
haveriam pensamentos. O que não há é uma relação causal entre
imagens e pensamentos como os que temos, enquanto seres
humanos, como demonstra o fato de que os demais seres
portadores de redes neuronais não dispõem de uma elaboração
175 Cf. WILLIS SANTIAGO GUERRA FILHO, Autopoiese do direito na sociedade pós-moderna: introdução a uma teoria social sistêmica, Porto Alegre: Livraria doAdvogado,1997, p. 69 e seg., p. 82 e seg.
202
simbólica como nós. É a linguagem, então a primeira condição
para que se dê o acoplamento (estrutural) entre sistemas
auto(conscientes) e sistemas sociais (autopoiéticos) de
comunicação.176 Os sistemas sociais, como todo sistema, se
mantém sem dissipar-se no meio-ambiente em que existem
enquanto se mantém sua estrutura e enquanto for apto para
diferenciar-se nesse meio ambiente, com o qual “faz
fronteira”. Sistemas psíquicos (biológicos) e sistemas de
comunicação (sociais), por mais que estejam cognitivamente
abertos para o meio ambiente, para dele se diferenciarem ,
fecham-se em um operar, o que significa reagir ao (e no)
ambiente por auto-referência, sem contato direto com ele.
A estrutura dos sistemas sociais fica no seu centro,
sendo nele onde se determina o tipo de comunicação produzida
pelo sistema. Em volta do centro, protegendo-o, tem-se a
chamada periferia do sistema, através do qual ela entra em
contato com o meio ambiente e demais sistemas ali existentes.
Desde as fronteiras de um dado sistema até o seu centro, - em
uma periferia, portanto, forma-se o que Munch denominou “zona
176 Cf. LUHMANN, Die Gesellschaft der Gesellschaft, vol. II, Frankfurt amMain: Suhrkamp, 1997, p. 101.
203
de interpenetração”,177 onde os sistemas, nos termos de
Luhmann, “irritam-se” em decorrência de seu “acoplamento
estrutural” com outros sistemas.178
Esse acoplamento necessita ser viabilizado por certos
meios (media). O meio principal de acoplamento entre o
sistema do direito e o sistema da política, por exemplo,
segundo Luhmann são as constituições.179 Para entendermos isso
é necessário ter em mente que o judiciário é a organização
que ocupa o centro do sistema jurídico, pois é quem determina
em última instância o que é e o que não é direito. Da mesma
forma os demais poderes do Estado, legislativo e executivo,
ocupam o centro do sistema político, mas assim como o
judiciário, têm na constituição as pautas mais importantes de
balizamento da ação de seus componentes.
Considerando as características da fronteira dos
sistemas, referidas por M. Bunge,180 tem-se que (1º)
177 Cf. “The Dynamics of Societal Communication”, in: The Dynamics of SocialSystems, P. COLOMY (ed.), London: Sage, 1992, p. 65.178 Cf. LUHMANN, Soziale Systeme. Grundriß einer allgemeinen Theorie, 3a. ed.,Frankfurt am Main: Suhrkamp, 1987, p. 291 e seg.179 "Verfassung als evolutionäre Errungenschaft", in: RechtshistorischesJournal, n. 9, Frankfurt am Main, 1990, p. 204 e segs.180 "System Boundary", in: International Journal of General Systems, n.20, London, 1990, p. 219.
204
periférico em um sistema é o que ocorre em suas fronteiras;
(2º) uma função específica das fronteiras dos sistemas é
proceder trocas entre o sistema e o meio; (3º) na fronteira
encontramos os elementos do sistema que estão diretamente
acoplados com componentes do meio-ambiente. Isso nos levou a
concluir que uma Corte Constitucional, por exemplo, situar-
se-ia na fronteira entre os sistemas jurídicos e políticos,
sendo um dos componentes mais importantes no acoplamento
estrutural dos dois sistemas. Com isso, tem-se de admitir que
as Cortes Constitucionais, se estão na fronteira do sistema
jurídico, tendo saído de seu centro, migrou para lá, não
sendo mais, propriamente, parte integrante do judiciário, em
um sistema jurídico autopoiético, onde este ocupa o seu
centro, ao dispor, em última instância (no caso,
literalmente), sobre o código característico (e
caracterizador) do sistema jurídico, pelo qual se define como
jurídica ou não as comunicações.181 Uma conseqüência das mais
relevantes dessa “migração”das cortes constitucionais é que
181 Cf. LUHMANN, "Die Stellung der Gerichte im Rechtssystem", in:RECHTSTHEORIE, n. 21, Berlin, 1990; W. S. GUERRA FILHO, ob. ult.cit., p. 75 e segs.
205
elas, quando passam a integrar o sistema político, devem se
submeter aos mesmos critérios de legitimação que os demais
componentes desse sistema, onde a comunicação se qualifica
pelo código do poder. Aliás, a doutrina é unânime em
reconhecer, na esteira de Kelsen, que tais cortes exercem um
poder de legislação negativa, e também – agora já indo além
da formulação tradicional do positivismo - que podem apreciar
o mérito de decisões administrativas, quando as mesmas
apresentam defeitos do ponto de vista da manutenção da
integridade dos princípios constitucionais e direitos
fundamentais. Ao mesmo tempo, ao pronunciarem a última
palavra sobre o que é e o que não é direito, situam-se no
“centro do centro” do sistema jurídico. Este “centro do
centro”, então, é onde se daria o acoplamento estrutural do
sistema jurídico com outros, e não só com o sistema político.
Também a educação, a ciência, a arte, a religião, a economia,
a mídia e todos os demais sistemas sociais penetram no
direito e são por ele penetrados (ou “irritados”),
principalmente, por via de interpretações a partir do que se
acha disposto na constituição, interpretações essas que são
206
feitas por juristas, juizes e demais operadores jurídicos e,
mesmo, por jornalista, padres, cientistas, enfim, todos os
cidadãos, e essas interpretações todas influenciam
(“irritam”) os membros das Cortes Constitucionais, mas a
interpretação que prevalece, em um sistema jurídico
autopoiético - e, logo, autônomo - é desses últimos. Tais
interpretações, no entanto, são construções
(auto)po(i)éticas,182 pois o direito desenvolve-se reagindo
apenas aos seus próprios impulsos, estimulado por
"irritações", provindas do ambiente social. A propósito, vale
referir a seguinte passagem, da lavra de Gunther Teubner:
"Mesmo as mais poderosas pressões só serão levadas em conta e
elaboradas juridicamente a partir da forma como aparecem nas
'telas' internas, onde se projeta as construções jurídicas da
realidade (rechtlichen Wirklichkeitskonstruktionen). Nesse sentido, as
grandes evoluções sociais 'modulam' a evolução do Direito,
182 Nesse passo, vale recordar a já mencionada proposta de Freud, deque se substitui-se, em psicanálise, a interpretação pela(re)construção “arqueológica”. Cf. FREUD, Konstruktionen in der Analyse[1937], ob. loc. ult. cit.
207
que, não obstante, segue uma lógica própria de
desenvolvimento".183
Por ser o Judiciário a única unidade que opera apenas
com elementos do próprio sistema jurídico - o qual, ao prever
a proibição do non liquet, o força a sempre dar um
enquadramento jurídico a quaisquer fatos e comportamentos que
sejam levados perante ele -, postula-se que essa unidade
ocuparia o centro do sistema jurídico, ficando tudo o mais em
sua periferia, inclusive o Legislativo, em uma região
fronteiriça com o sistema político. Eis o "paradoxo da
transformação da coerção em liberdade", uma vez que o juiz se
acha vinculado às leis, mas não à legislação, que é sempre
objeto de sua interpretação, inclusive a norma que o vincula
à lei, levando em conta textos com autoridade superior como
aquele da Constituição. "Quem se vê coagido à decisão e,
adicionalmente, à fundamentação de decisões, deve reivindicar
para tal fim uma liberdade imprescindível para construção do
183 TEUBNER, "Reflexives Recht: Entwicklungsmodelle des Rechts in vergleichenderPerspektive", in: Archiv für Rechts- und Sozialphilosophie, n. 68,Stuttgart, 1982, p. 21. V. tb., Id. , "Substantive and reflexive elements inmodern Law", in: Law & Society Review, vol. 17, n. 2, Denver, 1983,p. 249.
208
Direito".184 É uma tal unidade que garante a autonomia do
sistema e a sua "auto-reprodutibilidade", para o que recebem
o apoio imprescindível de uma "unidade cognitiva", a chamada
"doutrina", que não apenas é responsável pela sofisticação da
hermenêutica jurídica, como fornece interpretações passíveis
de serem adotadas pelo Judiciário, e assim, introduzidas no
sistema jurídico normativo.185 Daí se poder falar, como
Foucault, em uma "unidade de discurso" entre as práticas
discursivas da academia e do Judiciário.186
Conclui-se, então, que a fronteira do sistema jurídico
e, por simetria, também dos demais sistemas sociais, não
passa apenas por sua periferia, mas também por seu centro. É
184 Cf. LUHMANN, "Die Stellung der Gerichte im Rechtssystem", cit., p.163.185 A doutrina ou dogmática jurídica, como sustenta LUHMANN emtrabalho já clássico, “Sistema Jurídico e Dogmática Jurídica”,caracteriza-se, igualmente, por constituir uma liberdade depensamento sob a aparência de vinculação a conceitos dogmatizados,inquestionáveis, mas que, na verdade, tanto podem oferecerrespostas como tornarem-se instrumento de questionamentos,enquanto formas cujo conteúdo e, logo, também o seu sentido podemsempre ser atualizados, para atender às exigências sociais desegurança ou, ao menos, da “insegurança suportável” de um problemapara o qual se pode oferecer uma solução, encerrando-o com umadecisão. Cf. LUHMANN, Sistema Juridico y Dogmatica Juridica, trad. IGNACIODE OTTO PRADO, Madrid: Centro de Estúdios Constitucionales, 1983,p. 29 e seg., 40 e 102.186 Cf. EDWARD L. RUBIN, "The practice and discourse of legal scholarship", in:Michigan Law Review, vol. 86, nº 6, Lincoln, 1988.
209
por isso que, com H. v. Foerster, podemos dizer, tal como H.
Willke,187 que o Estado de uma sociedade funcionalmente
policêntrica é formada por subsistemas sociais diferenciados
(interdependentes) que se estruturam não de forma
hierárquica, mas sim “heterárquica”, pois nenhum subsistema
goza, a priori, de primazia em relação aos demais - nem o
subsistema de economia, como é ainda hoje bastante divulgado
e como foi dito pelo próprio Luhmann, em uma versão mais
antiga de sua teoria.188 Na última versão dessa teoria não se
fala mais em primazia da função de nenhum subsistema, a não
ser em relação a si mesmo,189 já que “cada sistema funcional
só pode cumprir com a própria função”.190
Postular que a sociedade contemporânea, organizada em
escala mundial, “globalizada”, é o produto da diferenciação
funcional de diversos (sub)sistemas, como os da economia,
ética, direito, mídia, política, ciência, religião, arte,
ensino etc. - sistemas autopoiéticos, que operam com
187 Cf. Ironie des Staates, Frankfurt am Main: Suhrkamp, 1996, p. 65.188 LUHMANN, "Positivität des Rechts als Voraussetzung einer modernen Gesellschaft",in: Id., Ausdifferenzierung des Rechts: Beiträge zur Rechtssoziologie undRechtstheorie, Frankfurt a. M.: Suhrkamp,1981, p. 149.189 LUHMANN, Die Gesellschaft der Gesellschaft, cit., vol. II, p. 747 e seg.190 Id. ib., p. 762.
210
autonomia e fechados uns em relação aos outros, cada um com
sua própria “lógica” -, postular isso não implica negar que
haja influência (ou “perturbações”) desses sistemas uns nos
outros. Entre eles dá-se o que a teoria de sistemas
autopoiéticos denomina “acoplamento estrutural”.191 Assim, o
sistema da política acopla-se estruturalmente ao do direito
através das constituições dos Estados, enquanto o direito se
acopla à economia através dos contratos e títulos de
propriedade, e a economia, através do direito, com a
política, por meio dos impostos e tributos, e todos esses com
a ciência, através de publicações, diplomas e certificados,
cabendo a uma corte constitucional, em última instância,
deliberar sobre a “justeza” desses acoplamentos, em caso de
dúvidas ou contestações, que os ameace, ameaçando, assim, a
autopoiese do sistema global e, logo, sua permanência, sua
“vida”.
É de todo conveniente o emprego de novas categorias em
estudos que levam em conta a complexidade da realidade
estudada, considerando que a mesma não existe para nós
191 cf. LUHMANN, Die Gesellschaft der Gesellschaft, loc. ult. cit., p. 776ss.
211
independentemente de nossa observação dela. Só assim
poderemos, igualmente, enfrentar melhor as questões éticas e
jurídicas com que nos defrontamos em um mundo que a ciência
vem, ao mesmo tempo, revelando e tornando mais complexo. Um
aspecto, porém, que traz certo desconforto, quando propomos a
adoção de um paradigma novo, sistêmico, para melhor estudar o
mundo complexo em que nos encontramos, é a suspeita que esse
tipo de abordagem suscita, da perspectiva normativa de
teorias ditas “críticas”, como é (ou foi) aquela
habermasiana. Uma teoria sistêmica, efetivamente, não se
propõe a avaliar aquilo que estuda, mas fornecer, a partir de
suas observações - e observações não só do que se observa,
mas também dos observadores, que são
“observadores/concebedores” de “objetos/concebidos”, nos
termos expressivos empregados por Morin -,192 descrições mais
acuradas e explicações do mundo e das teorias que
construirmos para observá-lo/”construi-lo”, o que, afinal de
contas, deve anteceder o momento da crítica valorativa, para
192 Cf. Ciência com Consciência, 3a. ed., revista e modificada pelo A.,trad. MARIA D. ALEXANDRE e MARIA ALICE SAMPAIO DÓRIA, Rio deJaneiro: Bertrand Brasil, 1999, cap. 10, n. 8, p. 333.
212
propor alternativas à (re)construção do mundo pelo direito, a
ética, e também a economia, a política e, sobretudo, a
própria ciência. O que buscamos, então, é o que Husserl
denominava “princípio dos princípios”, uma idéia regulativa,
no sentido kantiano, a qual, como esclarece Manfredo Araújo
de Oliveira, com apoio no filósofo frankfurtiano K.-O. Apel,
“quer ser efetivada, o que significa dizer que para isso é
necessário que a razão ética entre em contato com outras
‘formas de racionalidade’. Numa palavra, a dimensão ética, na
medida em que se efetiva historicamente, tem que entrar em
combinação com a racionalidade sistêmico-funcional dos
sistemas sociais e das instituições e com a racionalidade
estratégica”.193
Entretanto, há um problema bastante grave que se pode
apontar, em concepções normativas da racionalidade, como é
aquela hoje tão difundida e apreciada, de Habermas, por mais
que endosse e pratique a recomendação que acabamos de
referir, sem que evite um certo maniqueísmo, quando distingue
uma “boa” e uma “má” razão - a comunicativa e a estratégica:
193 Ética e Economia, São Paulo: Ática, 1996, p. 33.
213
é que elas são formuladas de uma perspectiva transcendental,
ainda que se diga pragmática, de “fora da realidade”, donde
terminarem resvalando numa postura irracional, pois não são
capazes de perceberem a unidade subjacente às diversas formas
de pensar e agir racionalmente. É por isso que,
filosoficamente, a postura dialética do “idealismo objetivo”
(Dilthey), tal como foi adotada na modernidade por Hegel - e,
contemporaneamente, por Vittorio Hösle, Carlos V. Cirne Lima,
Manfredo A. de Oliveira, dentre outros -, apresenta-se como
mais frutífera e conseqüente, apesar de sua “fé”, que não se
assume como tal, na possibilidade de uma fundamentação última
de nosso conhecimento da realidade – e, logo, na
possibilidade de conhecermos verdadeira e definitivamente o
que as coisas são, seu ser, sem garantia de que este seja o
ser, pura e simplesmente.
Habermas adota uma postura que denomina “pós-
metafísica”, de acordo com a qual só as ciências estão aptas
a elaborar assertivas com valor heurístico sobre os diversos
objetos de conhecimento, ficando a filosofia restrita ao
estudo de segunda mão, que tem as ciências - ou, mais
214
precisamente, o seu procedimento cognitivo - como sentido e
objeto. Com tal postura, Habermas não escapa da metafísica,
pois termina ficando preso ao que Heidegger denominou
“metafísica da subjetividade”, a qual dá sustentação ao
projeto de domínio técnico-científico da realidade,
responsável maior pelos problemas éticos, jurídicos,
políticos, sociais, econômicos e ecológicos - em sentido
amplo, para envolver o que Edgar Morin denomina “ecologia da
ação”,194 a qual já se coloca no plano da sociedade, em que
não podemos prever as conseqüências de nossas próprias ações
- com que nos deparamos atualmente.
É preciso, então, para abordar corretamente a
problemática aqui delineada, que se supere tal postura,
tipicamente moderna - e, portanto, ultrapassada -, o que, em
termos epistemológicos, requer a substituição do paradigma
formalista, baseado na distinção entre sujeito e objeto(s) do
conhecimento, e, em termos filosoficamente mais gerais, a
ultrapassagem do humanismo, tal como indicado por Heidegger
em sua célebre carta a Jean Beaufret a esse respeito, a
194 Cf. ob. cit., cap. 6, p. 128 ss.
215
“Carta sobre o Humanismo”. Que as indicações aqui fornecidas
possam servir para a elaboração desse caminho para o
pensamento, tão dificultoso quanto urgente.
Com isso, pretendemos minorar os efeitos
desastrosos do esquecimento metafísico do ser que somos na
operação meramente técnica de uma engrenagem em que somos as
peças, pensando sermos meros operadores, no que se mostra de
fundamental importância a crítica que a perspectiva
fenomenológica de Husserl e também aquela de seu genial
discípulo Martin Heidegger permite que se empreenda ao
formalismo instalado no pensamento moderno, pelo
exarcebamento do modo conceitualista e objetificante de lidar
com o conhecimento, em geral, sendo de se apontar o exemplo
bem característico do que se dá no campo do Direito.195 Fica,
assim, estabelecido o desafio, a ser enfrentado aqui de
maneira decidida, de saber em que medida algo como um retorno
à situação concreta, fática, proposta por Heidegger - no que
195 Neste sentido, v. AQUILES CÔRTES GUIMARÃES, Fenomenologia e Direito,Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2005, bem como nosso verbete“Fenomenologia Jurídica”, in: Dicionário de Filosofia do Direito, VICENTE DEPAULO BARRETTO (coord.), Rio de Janeiro/São Leopoldo (RS):Renovar/UNISINOS, 2006, pp. 316/322.
216
se pode denominar, antes que uma “fenomenologia da liberdade”
(Günter Figal), com mais precisão, uma “fenomenologia da(s)
possibilidade(s existenciais)” -, pode dar ensejo a uma
recuperação de um saber apto a fornecer uma orientação, ou
re-orientação, na busca de sentido para as ações humanas a
serem, então, devidamente reguladas pelo Direito, com uma
pretensão justificada de obediência generalizada, nas
condições adversas da atualidade. Cabe a todos os que nos
preocupamos com o que pode resulta da quadra histórica de
crise que estamos vivendo, já há bastante tempo – sabe-se lá
por quanto tempo ainda -, assumir uma parte de tal tarefa, de
proporções gigantesca, percebendo o quanto é urgente e
necessária e, se é assim, há de ser também possível dela nos
desincumbirmos.
Trata-se, portanto, de questionar a concepção clássica,
típica da metafísica do real, de que o conhecimento é uma
cópia da realidade e será verdadeiro na medida em seja uma
representação fiel dela - a crítica dessa metafísica é feita
por autores do lado de cá e de lá o Oceano Atlântico, como se
pode exemplificar, no primeiro caso, com Richard Rorty, e no
217
segundo caso, com os chamados “filósofos da diferença”, a
começar por Heidegger, e seguindo-se com Deleuze, Derrida
etc.196 É uma tal concepção de metafísica, enquanto metafísica
do real, com sua ontologia substancialista, que vem rejeitada
em posições epistemológicas positivistas e outras, como as
materialistas e fenomenológicas, assim como permanece aceita
naquela outra importante tradição filosófica, mais antiga que
estas outras, mas que ainda hoje tem seus representantes, a
saber, aquela oriunda do tomismo, embora as demais posições
filosóficas, inevitavelmente, tenham de dar alguma respostas
às incontornáveis questões metafísicas, tal como aqui se as
concebe, considerando que evitá-las, adotando uma forma de
suspensão do juízo ceticista, é também uma das respostas
possíveis. E. J. Lowe diz-nos que,197 ao contrário das
ciências, que se ocupam de estabelecer o que é, não o que tem
de ser ou o que pode ser (mas não é), a metafísica lida com
possibilidades. Daí que, é preciso, de alguma maneira, delimitar
196 Cf., no âmbito da teoria do direito, por exemplo, o trabalho doholandês BERT VAN ROERMUND, Derecho, Relato y Realidad, trad. HANSLINDAHL, Madrid: Tecnos, 1997.197 Em The Possibility of Metaphysics, Oxford: Oxford University Press, 2001,logo na introdução.
218
o escopo do possível, para podemos, ao menos, esperar que
consigamos determinar empiricamente o que é efetivamente real,
da maneira tentativa e aproximada que é própria da ciência,
tal como entendida contemporaneamente. A tese do autor apenas
referido é a de que a metafísica será possível na medida em
que se atenha a lidar com possibilidades – seja, portanto,
possibilista, tal como aqui preconizado. Um apanhado didático
dos desenvolvimentos recentes em metafísica encontra-se em
Cynthia Macdonald.198 Sua abordagem se situa no âmbito da
recuperação da metafísica em uma chave analítica, na qual é
bastante representativa a contribuição do oxfordiano
contemporâneo Peter Strawson.199 Já um representante
proeminente da vertente materialista contemporânea é Alain
Badiou.200 Por fim, na perspectiva neotomista, podemos referir
o pensamento do brasileiro Henrique Cláudio de Lima Vaz, o
(justamente) festejado (e pranteado) Pe. Vaz, que deu ensejo198 Varieties of Things, Oxford: Blackwell, 2005.199 Cf. Análise e Metafísica, trad. ARMANDO MORA DE OLIVEIRA, São Paulo:Discurso, 2002.200 Cf., v.g., O Ser e o Evento, trad.: MARIA LUÍZA X. DE A. BORGES, Riode Janeiro, Zahar/UFRJ, 1996. Para um desenvolvimento ulterior daconcepção de Badiou, cf., do próprio A., Lógicas de los mundos, trad.MARÍA DEL CARMEN RODRIGUEZ, Buenos Aires: Manantial, 2008 [2006];v. tb. MEHDI BELHAJ KACEM, L´esprit du nihilisme. Une ontologie de l´Histoire,Paris: Fayard, 2009.
219
à formação de verdadeira Escola, a partir de seu longo
professorado em Belo Horizonte (MG).201
Eis que nos defrontamos aqui com uma questão que,
tradicionalmente, pertence ao campo que se designou, com base
em uma classificação de certas obras de Aristóteles,
metafísica. Como é corrente, o termo “metafísica” é oriundo
de uma classificação de obras de Aristóteles versando sobre
sua temática, posicionadas depois dos livros da física, donde
a denominação metá, isto é, “após”, ta physika, ou seja, “da
física”. Já Kant, porém, questionou se seria uma mera
coincidência que uma tal denominação se adequasse tão bem ao
sentido mesmo da investigação metafísica, voltada para
questões que se situam para além daquelas tratadas no plano
da realidade palpável, física. E, de fato, há trabalhos que
201 Para uma primeira aproximação a este pensamento, bem como quantoàs possibilidades de se estabelecer conexões entre ele econtribuições modernas, como as de Kant e Hegel, bem como aquelascontemporâneas, de Heidegger ou Apel, particularmente recomendávelse nos afigura o livro editado em sua homenagem, Saber filosófico, históriae transcendência, JOÃO A. MAC DOWELL (coord.), São Paulo: Loyola,2002. Uma introdução “biobliográfica” encontra-se em MARCELOPERINE, Ensaio de iniciação ao filosofar, São Paulo: Loyola, 2007, pp. 117ss.
220
demonstram estar presente no pensamento aristotélico, se não
o termo, a idéia a que ele corresponde.202
A metafísica trata de questões das quais não se ocupam
as ciências, enquanto formas de conhecimento que ora se
voltam para a construção de um saber com base em experiências
feitas no contato com a realidade, com o que existe, e que
por isso são ditas “empíricas”; ora elaboram o conhecimento
advindo da consistência de suas proposições entre si mesmas,
sem referência a quaisquer objetos reais, mas apenas àqueles
abstratos, como na(s) lógica(s) e matemática(s), donde
justamente serem qualificadas de “formais”. Na realidade,
estes “tipos puros” de conhecimentos científicos se mesclam
em maior ou menor medida, restando ainda a possibilidade e,
mesmo, necessidade (termos, a rigor, intercambiáveis, pois o
possível é necessariamente possível, assim como o necessário
sempre é possivelmente necessário, já que esta é a condição
do que existe sem ser em si mesmo, o que só é o ser que não
depende de nenhuma causa para existir, o qual se pode
202 Cf. HANS REINER, “O surgimento e o significado original do nome Metafísica”,in: Sobre a Metafísica de Aristóteles (Textos Selecionados), MARCO ZINGANO (org.),São Paulo: Odysseus, 2005, p. 93 ss.
221
denominar de Absoluto, Deus etc.) de outros conhecimentos,
meta-científicos, que seriam a epistemologia, para discutir
as condições de possibilidade de um conhecimento científico
ou de uma outra natureza, e a metafísica, para discutir as
categorias, determinações ou, simplesmente, os conceitos dos
conceitos empregados pelas demais formas de conhecimento,
como são os conceitos de realidade, possibilidade,
necessidade, causalidade, tempo, espaço, existência, número,
contradição, identidade, sujeito, objeto, mundo, experiência,
indivíduo, infinito, nada, Deus, valores como o bem e a
justiça, mas também o mal, etc. Para efeitos mais didático
do que por razões substanciais pode-se dividir em diversas
(sub)áreas do conhecimento a metafísica, conforme privilegie
alguns desses temas, de forma que do estudo de Deus se
ocuparia a teologia (racional, e não aquelas dogmáticas,
vinculadas a alguma religião positiva), assim como dos
valores a axiologia, dos deveres ou obrigações – aí incluído
temas como o das promessas, dádivas ou realidades deônticas
mais habitualmente estudadas, como aquela jurídica -, das
questões pertinentes ao(s) mundo(s) a cosmologia e daquelas
222
sobre o(s) ser(es) a ontologia, enquanto temas relacionados
ao conhecimento em si seriam objetos da gnosiologia. A
estreita conexão entre todas essas matérias, em que cada uma
remete às demais, torna de todo relativas tais divisões, ao
mesmo tempo em que suscita o interesse em promover a
interdisciplinariedade “holística” dos estudos por meio da
metafísica tal com aqui entendida. Quanto às denominações
atribuídas às suas sub-divisões, são oriundas mais da
etimologia, em correspondência com seu objeto, do que de
qualquer outro significado que possam ter, a depender do
contexto em que apareçam empregados os respectivos termos.
Uma tal investigação há de ser feita racionalmente,
empregando até, o quanto possível, um instrumental oriundo de
ciências (formais) lógicas e computacionais.203
Após o surgimento da filosofia – pelo menos, com essa
denominação - na Grécia antiga, ela iria se mesclar com o203 A propósito, v. trabalhos recentes como Steps Toward a ComputationalMetaphysics, de BRANDEN FITELSON (University of California–Berkeley)e EDWARD N. ZALTA (Stanford University), bem como, deste último,Principia Metaphysica, disponíveis emhttp://mally.stanford.edu/publications.html (consultado em08.09.2011); Abstract Objects: An Introduction to Axiomatic Metaphysics,Dordrecht: D. Reidel, 1983; Intensional Logic and the Metaphysics ofIntentionality, Cambridge, MA: The MIT Press/Bradford Books, 1988.
223
senso prático, político-jurídico mais eficiente, do antigos
romanos e, posteriormente, com uma versão (ou versões) muito
particular(es) da religião monoteísta judaica, como é o
cristianismo, resultando na afirmação da capacidade humana de
se impor ao mundo, mais do que apenas contemplá-lo e, por
diversas formas, “imitá-lo”.
A teoria a que se busca aqui uma via de acesso,
introduzindo-a, então, precisa estar, por exemplo, fora do
círculo em que os cultores da filosofia a aprisionaram e ali
a mantém, quando trabalham “tecnicamente”, pondo-se a serviço
do desenvolvimento de um saber cada vez maior, no menor
espaço de tempo, sem parar e se perguntar do por quê, para
quê. E é essa escalada desenfreada para o saber que é um
saber-fazer (know how), característica da (tecno)ciência, que
tantos problemas vem solucionando, ao mesmo tempo em que
muitos outros vai criando e, principalmente, deixando de
enfrentar a brutalidade da existência - o chamado
“absolutismo da realidade” mencionado por Hans Blumenberg (na
obra “Arbeit am Mythos”, ou “Trabalhar o Mito”), insensível
ao sofrimento consciente dos humanos -, por promover mais e
224
mais o afastamento dela, evitando que com ela nos
confrontemos, o que exige um tipo de saber mais próximo da
mitologia, das artes e da religião, em suma, do imaginário,
da imaginação - portanto, mais distanciado daquele
“puramente” científico, formalista, positivista -, e isso sem
que entre essas formas antípodas de saber se estabeleça
propriamente um conflito, pois estão situadas em “quadrantes”
diferentes daquele diagrama acima proposto, com o fito de
auxiliar no mapeamento das formas de conhecimento da
totalidade, nela situando, em posição de igual legitimidade
que a das ciências, saberes como o da poética (mitológica,
religiosa, artística, jurídica etc.): surgem, assim, questões
que colocam em questão a própria ciência e o modo de
organização social (também política, jurídica e, sobretudo,
econômica, utilitário-capitalista) que a criou, sustenta e
nela se sustenta, sem que dela possa obter a devida
sustentação. Não é de estranhar, portanto, que tais questões
não sejam tratadas e sejam mesmo, de certa forma,
descartadas, pelo pensamento classicamente tido por
científico, causando grande instabilidade, de ordem
225
psicológica, ética e também política, jurídica, econômica, em
suma, social, neste ser em aberto, carente de orientação e
fixação de um sentido para sua existência, que somos os
humanos. De tais questões, tradicionalmente, se ocupam as
religiões, com sua forma (mito)poética de explicar o mundo,
dando-lhe (e dando-nos) também algum sentido, e não há lugar
para elas, tanto as religiões e os mitos - com sua força
simbólica, que sempre deu sustentação à ordem social, através
do direito e outros meios, os quais sem esta força não têm
como bem desempenhar este papel crucial -, como para tais
questões, na sociedade mundial tecnocientífica contemporânea,
que tem na secularização um dos pressupostos de seu
aparecimento e manutenção, tratando como falso o que não é
para ser avaliado por este registro, pois uma metáfora não é
mesmo para ser levada ao pé da letra. É para elas, então, que
se volta a teoria aqui proposta, a partir do estudo do
direito, sim, mas situando-o na totalidade das formas de
conhecer e ordenar a realidade,204 sejam aquelas mais
204 No sentido referido por WERNER HEISENBERG em A Ordenação daRealidade, trad.: MARCO ANTÔNIO CASANOVA, Rio de Janeiro: ForenseUniversitária, 2009 [1942], em que vemos uma convergência, ao queparece ainda inexplorada, com o pensamento de Herman Dooyoweerd,
226
propriamente normativas, acima qualificadas de
“escatológicas”, como é o direito enquanto ordenamento da
conduta humana, sejam aquelas “nomológicas”, como são as
teorias, inclusive do direito. E ao assim proceder, pode-se
esperar a obtenção de esclarecimentos também sobre essa
totalidade mesma e sobre nós, que dela fazemos parte, como um
seu “subconjunto próprio”, sendo ela um conjunto infinito -
logo, um subconjunto que pode não ser menor que ela.205
Ora, de uma tal teoria já não se pode dizer que possua
exatamente as características reconhecidas como próprias de
toda teoria, pois se amplia para abranger o que normalmente a
abordagem teórica exclui, no recorte que propõe, para
conhecer de maneira mais eficiente o que toma como objeto a
conhecer. Em seguida, vamos reconstruir uma tentativa de
enfrentar esse impasse ou “aporia”, da qual resultou
importante renovação filosófica, com repercussão também em
outras áreas do conhecimento, como a psicologia, e também na
elaboração de perspectivas teóricas como a teoria de
antes referido.205 Aqui, novamente, beneficiei-me do ms. já referido de JoséDantas, na parte sobre teoria dos conjuntos, bem como de contatopessoal com o A., na data registrada acima.
227
sistemas, que se vem de referir, enquanto situadas para além
da diferença gnosiológica clássica entre sujeito e objeto .
9. Sobre a busca de um modo ateorético de produzir
conhecimento válido (em filosofia)
O estudo aqui desenvolvido busca apresentar os esforços
feitos por Martin Heidegger, ainda no período inicial de sua
docência e pesquisa,206 a partir da consideração de que um tal206 Este período do pensamento de Heidegger, à medida que se foipublicando, em suas “obras completas” (Gesammte Ausgabe, abrev.: GA,Frankfurt am Main: Vittorio Klostermann ed.), o conteúdo dosprimeiros cursos dados como livre docente, no primeiro pós-guerra,a partir dos manuscritos, do próprio A. e/ou de participantes emtais cursos, tem chamado a atenção de diversos pesquisadores, aoponto de um deles ter detectado aí um novo campo de investigação –cf. JOHN VAN BUREN, “The Earlieste Heidegger: A New Field of Research”. In: ACompanion to Heidegger, HUBERT L. DREYFUS & MARK A. WRATHALL (eds.),Londres: Blackwell, 2005, p. 19 ss. O primeiro volume do Heidegger-Jahrbuch (Munique: Karl Alber, 2004) foi dedicado ao assunto,constando ao final uma longa lista de publicações a respeitofeitas até então. Um bom apanhado do status questionis, com apeculiaridade de enfatizar o que de fato publicou Heidegger nesseperíodo, encontra-se em THEODORE KISIEL & THOMAS SHEEHAN (eds.),Becomming Heidegger. On the Trail of His Early Occasional Writings, 1910 – 1927,Evanston (Ill.): Northwestern University Press, 2007. Entre nós, ointeresse e a atualidade do assunto ficou evidenciado no IIIColóquio de Filosofia Hermenêutica e Fenomenológica, ocorrido naPUCRS, em meados de julho de 2011, sob a coordenação de ERNILDO J.STEIN, contando com participação de convidados do exterior, etendo como tema-geral “A Racionalidade Hermenêutica e oSignificado Indicativo-Formal dos Conceitos Filosóficos”. É de sedestacar, dentre os que se debruçaram sobre a temática, autores
228
esforço conduz a um modo de entendimento da filosofia que se
pretende defender como legítimo e profícuo, por mais que dele
tenha se afastado inclusive o próprio Heidegger, bem como os
que, de um modo geral, fazem trabalhos sob a rubrica da
filosofia, sobretudo quando a qualificam de analítica. Ao
contrário do que soe ocorrer, não se pretende com uma tal
defesa fazer um ataque a quem possui concepção antagônica do
que seja ou deva ser a filosofia, mas tão somente expor um
modo de fazer filosofia dentre outros, também possíveis e
desejáveis. A filosofia tal como aqui será concebida pode ser
caracterizada, em uma palavra, como “ateorética”. Isso porque
tem por tema o desiderato de evitar o que Heidegger, na
esteira de Husserl, de maneira tão decidida denunciou como
sendo a tendência “objetificação”, à transformação do que se
como RÓBSON RAMOS DOS REIS e LUIZ HABECHE, por seus artigos Verdadee Indicação formal: a hermenêutica dialógica do primeiro Heidegger (inédito) eHeidegger e os “indícios formais” (agora in: Id., O Escândalo de Cristo. Ensaio sobreHeidegger e São Paulo, Ijuí (RS): EDUNIJUÍ, 2005), respectivamente,ambos de 2001, o livro de JORGE ANTÔNIO TORRES MACHADO, Os Indícios deDeus no Homem - Uma Abordagem a Partir do Método Fenomenológico de MartinHeidgger, Porto Alegre: EDIPUCRS, 2006, e as dissertações defendidasna PUC-SP por PAULO EDUARDO RODRIGUES ALVES EVANGELISTA, Heidegger ea fenomenologia como explicitação da vida fática, MS: PUC-SP, 2008, e JOSÉRESENDE JR., A teoria do objeto de Emil Lask, MS: PUC-SP, 2005, onde nocapítulo 1, item 6, refere a influência de Lask em Heidegger, deum modo geral, e, especificamente, quanto à noção de formale Anzeige,no cap. 4, item 3.2.
229
busca conhecer, pela filosofia, em objetos de conhecimento,
passíveis de uma análise teorética acurada, o que
inegavelmente é capaz de trazer um grande ganho em termo de
aprendizado a respeito do que for assim tratado, inclusive o
próprio sujeito do conhecimento, que lhe é correlato, ao ser
transformado também em objeto, de si mesmo. Ocorre que
procedendo dessa maneira em filosofia o que se faz é preparar
o desenvolvimento de uma abordagem científica, capaz de nos
fornecer muitas informações sobre o que quer que seja assim
estudado, mas não serão de informações que necessitaremos
quando confrontados com a insatisfação que pode nos
impulsionar para a filosofia – tal como para a religião, ou
alguma forma de arte, que genericamente se pode colocar sob a
denominação de “poesia”, para assim referir as três
principais formas de “concepção de mundo” (Weltanschauung),
segundo a conhecida formulação de Dilthey.207
207 Autor que, de resto, como em seguida se verá, é uma dasreferências principais de Heidegger, no período aqui enfocado.Cf., v.g., as chamadas “conferências de Kassel”, dadas porHeidegger em 1925, tendo como tema o pensamento de Dilthey, natranscrição de WALTER BRÖCKEL, em Heidegger, Les conférences de Cassel,Frithjof Rodi (ed.), ed. bilíngüe, Paris: Vrin, 2003.
230
Entendemos, porém, que para dar conta dessa insatisfação
na vida, a qual rapidamente pode se tornar em insatisfação
com a vida, do que se necessita seria antes de formação do
que de informação. Já por isso pode-se compreender a proposta
de Heidegger de revitalização da filosofia, nos anos 1920, a
partir de uma releitura fenomenológico-hermenêutica da ética
aristotélica, tal como se encontra no relatório escrito a
Natorp, visando obter uma cátedra em Marburg, do qual adiante
nos ocuparemos.
A filosofia, portanto, no confronto com a perspectiva
teorético-científica, sem deixar de ser teórica, seria, por
assim dizer, inobjetiva, ao recusar, como o fez exemplarmente
Heidegger, o esquema de conhecimento obtido pela
representação de objetos por uma subjetividade, ainda que
seja aquela, digamos, auto-consciente, dita transcendental,
por Kant, culminando um desenvolvimento que se pode
demonstrar ter início na baixa Idade Média, com Duns Scot,
sob a influência da recepção européia da metafísica grega
acolhida em ambiente muçulmano – com destaque para Avicena
(Ibn Sînâ) -, tendo em Descartes o marco mais difundido, e
231
em Husserl a realização mais radical. Indo além de Heidegger,
pretende-se postular para a filosofia que, sendo ateorética e
inobjetiva, mais do que abandonar o esquema sujeito – objeto,
também procure tomar distância em relação ao que foi,
reconhecida e assumidamente, o fio condutor da investigação
de toda a vida deste importante filósofo contemporâneo, a
saber, a “questão do ser” (Seinsfrage), seja como questão do
sentido do ser (Sinn des Seins), em sua primeira fase, antes da
“virada” (Kehre) de 1930, seja como questão sobre a verdade do
ser, a partir de então tematizada, sendo que os estudos
conduzidos na primeira foram apresentados no livro que o
revelou propriamente ao mundo, com grande impacto: Sein und Zeit.
Neste tratado culmina uma trajetória que aqui se propõe
revisitar, em busca do que lá se encontra em termos de
indicações metodológicas para uma certa forma de realizar a
investigação em filosofia, que seria, já por se pautar por
uma metodologia, teórica, sim, mas não teorética, por trazer,
justamente, uma denúncia dos desvios que os métodos,
enquanto, literalmente (em grego), “caminhos”, podem ensejar,
para quem busca filosoficamente a verdade ou o que for, tal
232
como se encontra desenvolvido por aquele que, pelo menos
nesse aspecto, é talvez o principal sucessor de Heidegger, a
saber, Hans-Georg Gadamer, em seu clássico “Verdade e Método”.
Isso significa que a filosofia tal como aqui concebida será
ateorética por inobjetiva também ao não ter um objetivo
determinado, como esse pela busca do sentido do ser ou o que
quer que seja, se externo à própria filosofia, a uma
determinação de seu objeto por si mesma. Daí que a
denominação geral para esse projeto permanece aquela dada à
tese apresentada para obtenção da titularidade em filosofia
na Universidade Estadual do Ceará, em 1998, que depois se
revelou título da primeira obra do baiano Machado Neto e
também do que buscou realizar de próprio o espanhol
naturalizado mexicano José Gaos: Filosofia da Filosofia.
Antes de todos nós, porém, está Dilthey, que se vale da
expressão, Philosophie der Philosophie, para tratar da filosofia
como uma das mundividências (Weltanschauungen) fundamentais, ao
lado da religião e da arte, enquanto “po(i)ética” (Dichtung).
O que em Heidegger vamos colher e procurar desenvolver,
no presente estudo, vale enfatizar, não é o tema de seus
233
próprios estudos, ontológicos, mas sim o método que propõe
para realizá-los, nos seus primórdios, sendo a presença de
uma metodologia de investigação algo de se considerar como
uma característica compartilhada pela filosofia com as
ciências, de um modo geral, enquanto empreendimentos
teóricos. O que as diferenciará, umas das outras e, entre si,
ciência e filosofia, será justamente o tipo de método
adotado. Em filosofia, a questão do método não costuma,
ultimamente, ser tematizada, tanto quanto em relação às
ciências, sendo este um momento que se considera próprio de
uma reflexão – às vezes mais, às vezes menos - filosófica
sobre a ciência, no âmbito da chamada epistemologia. Eis uma
vez mais justificada a inserção do que aqui se busca realizar
no campo de uma filosofia da filosofia.
Uma das inovações metodológicas que Heidegger
introduzirá na filosofia, provavelmente sob a influência de
seus intensos estudos da obra de Dilthey, ele a foi buscar na
teologia, campo por assim dizer científico em que havia
trabalhado antes de se voltar mais decididamente para aquele
234
propriamente filosófico. Trata-se da hermenêutica.208 E é
inegável ser a filosofia uma certa forma de interpretar, de
hermenêutica, portanto. A etimologia da palavra
“interpretação”, de origem latina, remeteria a uma prática
adivinhatória romana, muita antiga, baseada na “leitura” do
que se via ao abrir ritualmente animais sacrificados, em suas
entranhas (inter pres), para prognosticar o futuro. No mesmo
ambiente cultural, outras formas divinatórias, menos
cruentas, eram utilizadas, como a leitura do vôo sincopado de
pássaros, como as andorinhas, e se pode mesmo afirmar que em
toda sociedade se produzem tais práticas, mágicas, de
atribuição (ou “desentranhamento”) de um sentido ao que
208 No primeiro curso de que se tem registro, no primeiro semestredo entreguerras, de 1919, quando Heidegger se ocupou exatamente daquestão da determinação da filosofia, debatendo a idéia dafilosofia em face do que chamou de “problema da visão de mundo”(Weltanchauungsproblem), ou seja, confrontando as concepções deDilthey e Husserl, já ali, após a fenomenologia ser apresentadacomo uma “ciência originária pré-teorética” (vortheoretischeUrwissenschaft), ao final, é referida uma “intuição hermenêutica”(hermeneutische Intuition). Ela vem descrita como uma avassaladoravivência da vivência que se colhe a si mesma (das bemächtigende, sichselbst mitnehmende Erleben des Erlebens), vivência esta ocorrida em umavida caracterizada como “histórica” (historisch) e originariamentemundana (welthaftige), donde surge o sentido comum das palavras, comotambém todo posicionamento transcendente, teorético-objetivante(theoretisch-objektivierend), sendo de onde deve partir a re- e pré-construção fenomenológica (Rück- und Vorgriffs-bildung). GA 56/57, BERNDHEIMBÜCHEL (ed.), 1987, p. 116.
235
ocorreu, ocorre e ocorrerá, a partir de algum dispositivo
considerado apto a estabelecer vínculos entre esta realidade,
mundana, com aquela outra, superior, invisível, em que
habitam as forças ou deidades que geram e detêm o controle
dessa realidade em que vivemos (e morremos). Daí que a outra
palavra, mais erudita, que guarda sinonímia com aquela que
ora nos ocupa, a saber, “hermenêutica”, em sua origem grega,
seja associada ao deus Hermes, filho de Zeus com a Ninfa
Maya, que se tornou o mensageiro de pés alados, mediador e
responsável pela comunicação entre seu pai e os mortais,
sendo por isso atribuída a ele, na narrativa mitológica
helênica, a invenção da linguagem e da escrita.
Apesar de questionada e duvidosa, segundo Jean
Grondin,209 como geralmente ocorre com a etimologia dos
vocábulos, especialmente aqueles mais significativos, esta
aproximação com a mitologia, além de esclarecedora, enquanto
alegoria, nos coloca, justamente, diante de situação que
requer o emprego da interpretação, seja como interpretatio, seja
209 Deste A., especificamente sobre o tema que ora nos ocupa, v. suacontribuição na obra coletiva Heidegger 1919 – 1920. De l’hermenéutique de lafacticité à la méthaphysique du Dasein, JEAN-FRANÇOIS COURTINE (ed.), Paris:J. Vrin, 1996.
236
como hermèneutiké. Isso para transitarmos de um sentido que
esteja “escondido”, na interioridade de animais sacrificados
ou do pensamento de quem se dedica a entender o sentido do
mundo, podendo ainda este sentido se perder por estar muito à
vista, na literalidade de uma narrativa mítica, sendo ho
mythos, em grego, justamente este relato de uma vivência,
como nos explica Emmanuel Carneiro Leão, em texto a respeito
contido em “Aprendendo a Pensar”, donde a necessidade de se
trazê-lo à compreensão, expressando-o por meio de uma espécie
de tradução ou deciframento do que se interpreta, em
linguagem corrente. É dessa expressão e compreensão,
decorrente do ajuste entre o que está em dada sentença e a
intenção a ela subjacente, para assim aferir de sua
veracidade, que se vai tratar, quando Aristóteles - tal como
em geral ocorreu, precedido por seu mestre Platão -, faz uma
elaboração filosófica do problema, no âmbito de sua obra Peri
hermèneias, traduzida em latim por De interpretatione. Assim,
apesar dessa aproximação semântica, entre o que teria sido,
originalmente, a designação de uma prática divinatória, no
caso da interpretação, enquanto forma de saber, e a
237
hermenêutica, ao ponto de se ter uma sinonímia entre ambas,
na Grécia antiga se diferenciava perfeitamente a ambas, ao
mesmo tempo em que se considerava guardarem entre si uma
espécie de parentesco, tal como se nota no pequeno diálogo de
Platão denominado Epínomis -, ou seja, “apêndice”, aposto a
outro mais extenso, que é “As Leis”, sendo aquele denominado
também “O Filósofo” -, quando já em sua segunda manifestação
o personagem designado como “O ateniense” considera como duas
espécies de um mesmo gênero de saber a quiromancia (mantiké) e
a hermenêutica, ambas incapazes de conduzir ao saber
verdadeiro, a Sophia. Isto porque a hermenêutica, enquanto
arte ou “capacidade” (na trad. bras.) geral de interpretar
oráculos, conduziria à compreensão do que é dito por estes
que, em seu estado de êxtase, de mania, sequer sabem o que
dizem, mas ainda não permite estabelecer se é verdadeiro
(alethes) o que foi dito.
Em texto clássico e de grande importância histórica,
denominado “A Origem da Hermenêutica”, de 1900, Wilhelm
Dilthey, logo no princípio, assevera o A. que a “arte de
interpretar (hermeneía) nasceu na Grécia, fruto da necessidade
238
de ensinar”. Concretamente, este ensino baseava-se em textos
poéticos como os de Homero e Hesíodo, para citar apenas dois
dos mais conhecidos dentre os “pais-fundadores” da
Civilização que é um dos pilares daquela dita Ocidental. Daí
porque um outro filósofo contemporâneo, identificado com a
elaboração filosófica da hermenêutica, Paul Ricouer, na
abertura mesmo de sua obra, igualmente clássica, “O Conflito
das Interpretações. Ensaios de Hermenêutica”, vai afirmar que
o problema da interpretação é colocado, primeiramente,
enquanto um problema de exegese, ao aparecer “no contexto de
uma disciplina que se propõe a compreender um texto, a
compreendê-lo a partir de sua intenção, baseando-se no
fundamento daquilo que ele pretende dizer”. Eis que
terminamos por introduzir uma terceira palavra, “exegese”,
também considerada um sinônimo de interpretação, mas que se
restringiria a uma dimensão mais filológica, por vincular a
interpretação a objeto de certo tipo, que são os textos. Ao
mesmo tempo, percebe-se aí a grande amplitude em que, já
nesse nível exegético, o problema da interpretação se situa,
com implicações para além – ou aquém -, inclusive, da própria
239
filosofia, especialmente no campo de religiões como aquelas
baseadas em textos, a exemplo dos Vedas, da Bíblia e do
Corão, assim como da literatura em geral e, também, de
maneira igualmente paradigmática, desde épocas bastante
recuadas, no campo do Direito, na forma da interpretação
jurídica. É tendo esta última forma de hermenêutica, a
jurídica, que o italiano Emilio Betti irá propor sua teoria
geral da interpretação, a qual o discípulo de Heidegger,
Gadamer, tomará como principal contraponto no desenvolvimento
de sua notória filosofia hermenêutica, na qual se refere,
aliás, a exemplariedade da hermenêutica jurídica.
Em filosofia, contudo, entendemos que se há de
ultrapassar o estudo meramente textual, tal como se dá, por
exemplo, no âmbito da psicanálise, para assim podermos
envolvê-la no enfrentamento das questões de vital importância
para nós humanos, que motivaram o seu surgimento e permanecem
como a fonte perene de sua necessidade e renovação,
referentes ao sentido mesmo da existência desse ser em aberto
que somos. Essa característica, como muito bem percebeu
Heidegger, nos revela como um ser que interpreta, um ser
240
hermenêutico, pois a todo momento estamos avaliando,
ponderando o que fizemos, o que fazemos e o que faremos,
seres temporais (ou, para dizer com Heidegger, talvez melhor
falar em “temporalizados”), que somos também.
Um tal redirecionamento da filosofia para a vida
efetivamente vivida, que inicialmente denominou “vida
fática”, e depois, simplesmente, “Dasein” (ou seja, algo como
“ser aí humanamente existindo”), foi o que propôs Heidegger
quando do princípio de sua docência, que culmina com a
publicação de sua obra mais famosa, em 1927: “Ser e Tempo”.
Aqui se retoma a questão do Ser (de tudo o que é e também do
que não é, o nada, por serem equivalentes, na medida em que
se procure pensar o ser desvinculado dos entes), que teria
sido abandonada, quando se impõe o modo conceitual de
investigação, já sob a influência de Sócrates e seu discípulo
mais influente, Platão, bem como do mais célebre discípulo
deste, Aristóteles, ainda mais influente, a partir de certo
momento, crucial para o desenvolvimento da démarche
heideggeriana, que é aquele medieval. O saber que então se
desenvolve, no sentido de formação das ciências, é um saber
241
que qualifica e divide o mundo, assim como, nele, os próprios
sujeitos que o investiga, em uns tantos objetos, definíveis e
definidos conceitualmente, o que se mostra muito eficaz para
revelar mecanismos de organização de tudo o que nos cerca e
em que nos encontramos, inclusive o próprio corpo, sem com
isso revelar igualmente o que mais importa, a um ser
interpretante como somos, que é o sentido disso tudo.
A hermenêutica, portanto, em teologia, assim como, de
maneira ainda mais evidente, em direito, insere-se no
contexto da elaboração de um conhecimento prático, ligada a
uma práxis. E assim é que, a nosso modo de ver, a partir de
Heidegger, se pode propor que ela se integre à filosofia,
ainda que um tal desiderato, neste A., apareça escamoteado em
sua obstinação pela “questão do ser”, ou seja, pela
ontologia.
Tomando aqueles que se pode ter como autores
paradigmáticos em filosofia, tem-se que para Platão, por
exemplo, a filosofia seria "epistéme epistemés", "ciência da
ciência", enquanto Aristóteles, na "Metafísica" (Livro VII ou
zetha, 1), a define como "epistéme ton próton arkhôn kaì aítion
242
theoretiké", conhecimento dos primeiros princípios e causas
explicativos de tudo. Comentando essa passagem, Heidegger, no
texto "Que é isto, a filosofia?", recorda que epistéme deriva
de epistámenos, que seria aquela pessoa vocacionada e
competente para uma determinada atividade - no caso da
filosofia, a atividade de teorizar, sendo a theoria o que os
gregos considerariam propriamente a ciência, saber
contemplativo das verdades universais, eternas e
transcendentes, que, no princípio do livro apenas citado de
Aristóteles, é considerado um conhecimento através do qual os
homens se ombreariam com os deuses, devendo, por isso, temer
a inveja deles.210 Uma outra forma de conhecimento, mais
próprio das contingências da vida, é aquele que os gregos
denominavam techné, a técnica, um conhecimento operativo,
instrumental e produtivo, limitado e finito, por voltado ao
atendimento de finalidades específicas, mas sempre revelador210 A certa altura do relatório escrito para Natorp, antes referido,Heidegger duvida que Aristóteles efetivamente acreditou napossibilidade de que a divindade pudesse ter inveja, e não porconcebê-la como absolutamente boa ou amorosa, tal como nos quadrosdo cristianismo, mas sim por considerá-la pura atividadecognitiva, um stado de ser incompatível com as emoções. Cf.Heidegger, Interpretaciones fenomenológicas sobre Aristóteles. Indicación de lasituación hermenéutica [Informe Natorp], trad. JESÚS ADRIÁN ESCUDERO,Madrid: Trotta, 2002, p. 76.
243
de potencialidades, donde sua tradução para o latim como ars,
sendo que os gregos distinguiam a poiésis como um subtipo dessa
forma de conhecimento, que corresponderia ao momento
produtivo, e não meramente reprodutivo, como seria o
puramente técnico. Então, a epistéme seria algo intermediário
entre essas duas formas de conhecimento, o teórico e o
prático, por referir-se à atividade de conhecer a partir das
necessidades de um certo tipo de explicação, isto é, não as
explicações que se fazem necessárias e úteis à manutenção da
vida, inclusive no convívio social e político, mas sim
aquelas que, a rigor, são desnecessárias, inúteis, embora
sejam elas o que desejamos, anelamos, quando nos maravilhamos
e, no duplo sentido dessas palavras, negativo e positivo, nos
espantamos e assombramos diante do universo ao nosso redor e
em nós mesmos, o cosmos, sendo desse sentimento (pathos) que,
segundo os dois filósofos gregos citados - mestre e
discípulo, de certa forma os primeiros e até hoje maiores
entre todos - nasceria a filosofia: Platão, no seu diálogo
"Teeteto" (155 d), e Aristóteles, na já citada "Metafísica” (Livro
I ou alfa, 2). Temos que retornar sempre a esse momento
244
espantoso, em que o ser se mostra, o qual nos levou a falar e
a nos pormos a caminho de uma busca de explicações, como que
para nos assegurarmos na vida, tentando aprisionar o que, na
verdade, nos fez prisioneiros, sem percebermos, pois assim
entramos em uma fantasia de permanência, impedindo-nos de
aproveitar bem a oportunidade que temos de, simplesmente,
sermos (experiências do ser).
Retomando a proposta de Heidegger, tem-se que, no curso
que deu sobre fenomenologia da religião no semestre de
inverno de 1920/1921, ao iniciá-lo com considerações
metodológicas, é apresentada uma colocação, provisória, na
forma de uma tese – mas que entre parêntese se alerta para a
circunstância de só ter em comum com uma tese a inevitável
forma lingüística – quanto à diferença “de princípio”
(prinzipiell) entre a filosofia e a ciência, que se pode resumir
referindo a fragilidade e incerteza que acomete a primeira e
seus conceitos, se comparados com aqueles científicos, e é
justamente essa carência (Not) que Heidegger propõe que se
veja como uma virtude, pois o enrijecimento conceitual é
confundido com rigor – quando rigor há de ser entendido antes
245
como vigor (Strenge), o que a filosofia não perde por estar
sempre em busca de si mesma, muito antes pelo contrário.
A busca do acesso que pela filosofia se pode ter às
questões que, justamente, não comportam um tratamento
científico e também não nos contentamos com as respostas que
a elas tradicionalmente são oferecidas, se daria através da
interpretação. Isso pressupõe que se tenha operadores
interpretativos, que em teologia como em direito são os seus
respectivos dogmas, consagrados textualmente, assim como um
contexto de interpretação, onde se situam as questões a serem
enfrentadas propriamente. Necessita-se, portanto, do que
Heidegger denominou, no subtítulo do já mencionado relatório
para Natorp, “indicação da situação hermenêutica” (Anzeige der
hermeneutischen Situation).
246
“Indicação formal” (formale Anzeige211) é como Heidegger
denomina o operador interpretativo que empregará, fazendo as
vezes de conceito filosófico – em substituição, portanto, do
conceito definidor, objetificante, da tradição -, para obter
orientação em sua investigação de sentido fundamental, o que211 O tradutor espanhol opta por termo equivalente ao nosso“anúncio” e o italiano, tal como o fizemos, por “indicação”,enquanto na literatura nacional se encontra também a tradução deAnzeige por “indício”, não havendo propriamente um erro nessasopções, pois na palavra original estão contidas essas outras, enão só: notificação, inclusive no sentido mesmo jurídico,policial, é também uma tradução possível. E se “anúncio” é maisliteral, em termos semânticos, e nisso se encontra a um só tempouma vantagem e uma desvantagem, “indício” preserva, como“indicação”, a mesma etimologia do original, com a desvantagem de,na primeira palavra aludida, se ter uma alusão ao indiciário, emmatéria probatória, sendo nossa opção, também por isso, pelasegunda. Com apoio em FRIEDRICH-WILHELM VON HERRMANN, em “A idéia defenomenologia em Heidegger e Husserl”, in Phainomenon. Revista deFenomenologia, Lisboa: Curso de Filosofia da Universidade deLisboa, n. 7, 2003 (cap. III de Id., Hermeneutik und Reflexion, 2000),pode-se identificar no emprego da indicação formal, ainda que anoção seja oriunda de Husserl, o que caracterizaria a diferença daabordagem fenomenológica de cunho reflexivo, transcendental,propugnada por este último, e aquela de seu discípulo, de cunhohermenêutico, que permaneceria fenomenológica ao compartilhar o“princípio dos princípios”, de “voltar às coisas mesmas”, livresdos modos como elas são conceitual ou preconceituosamentecapturadas, seja por teorias, científicas ou filosóficas, sejapelo senso comum, respectivamente. Em Husserl, ter-se-ia grossomodo, um constante “voltar-se para dentro”, para a consciência,transcendental, a fim de fazer essa experiência de como seriam, ouse dariam, as “coisas mesmas”, enquanto em Heidegger ter-se-ia umaabertura para captá-las na experiência existencial, fora (eks), acaminho (unterwegs), servindo-se para isso das referidas indicações,“marcas no caminho” (Wegmarken), que vai se fazendo, muitas vezesdesobstruindo, pela desconstrução (Abbau) dos que já se instalaram,evitando nosso acesso à “coisa”, mesma.
247
para ele equivale a dizer existencial, operador a ser
empregado para explicitar a compreensão que o vivente humano
tem de seu próprio ser enquanto existente, “ser para fora”,
“ser aí”, “ex-sistente”, da-sein interpretante da faticidade
“nua e crua” da vida, que é a sua situação hermenêutica: o
que Heidegger denomina, nesse momento de seu percurso, “vida
(ou vivência, Lebenserfahrung) fática”, ocupada e pré-ocupada
em tomar providências para se assegurar, diante da percepção
de sua fragilidade, finitude e incerteza no mundo que o
cerca, circundante (Umwelt).
É nesse mundo circundante, ao qual Heidegger também se
refere com a expressão de origem francesa milieu 212 - e que
guarda correlações a serem examinadas oportunamente com o que
designam os conceitos-chaves de circunstantia tal como empregado
com anterioridade por Ortega y Gasset e também o de Lebenswelt,
na reflexão posterior de Husserl -,213 que apenas formalmente212 Gesamtausgabe, vol. 60, Phänomenologie des religiösen Lebens: 1.Einleitung in die Phänomenologie der Religion (Wintersemester 1920/21) Jung,Matthias/Regehly, Thomas (eds.). 2. Augustinus und der Neuplatonismus(Sommersemester 1921). 3. Die philosophischen Grundlagen der mittelalterlichenMystik (Ausarbeitung und Einleitung zu einer nicht gehaltenen Vorlesung 1918/19),Strube, Claudius (ed.), 2a. ed., Frankfurt am Main: VittorioKlostermann, 2011 [1995], p. 11.213 Heidegger, no loc. ult. cit., curiosamente, emprega a expressãono plural, Lebenswelten, referindo-se à arte e à ciência, de modo
248
se distingue do mundo propriamente dito, enquanto tudo quanto
vem ao nosso encontro na vida, sendo mesmo onde vivemos, mas
que comporta também um mundo compartilhado, dito Mitwelt, que
na experiência fática – e, porque não dizer logo, prática –
da vida se soma ao nosso si-mesmo com seu mundo próprio,
Selbstwelt. Heidegger faz questão de destacar a diferença do que
aqui se apresenta como mundo para ser estudado,
filosoficamente, do que seria um objeto, a ser estudado
cientificamente, na medida em que mundo é onde se vive – e
não se pode viver em um objeto.214 Esses seriam então os três
irônico, como passíveis de fornecerem tais mundos, desde que seconsiga viver completa e genuinamente neles absortos. Em geral,contudo, arte e ciência fazem parte apenas do mundo da vida maisgeral em que se vive, o Umwelt. Postulando a necessária reinserçãodelas, assim como de outros media (nos seus termos), estaria N.LUHMANN, “Die Lebenswelt – nach Rücksprachen mit Phänomenologen”, in: Archivfür Rechts- und Sozialphilosophie, vol. 72, Stuttgart, 1986, pp.176-194. Dentre os fenomenólgos com quem ele estaria dialogando,embora sem fazer menção, vale referir HANS BLUMENBERG, Lebenszeit undWeltzeit, Frankfurt a. M.: Suhrkamp, 1986. Compreende-se então oalerta dado por LUHMANN a todos aqueles que pensam o universal,como os atuais “Frankfurtianos” ainda fazem, ao dizer a eles, empalestyra proferida na sua célebre Universidade, algo que eles nãovêem, ou seja, que eles não percebem, na medida em que assumem“que vivem em um e mesmo mundo e que isto é uma questão de sereferir coerentemente a este mundo”. Cf. N. LUHMANN, “I See SomethingYou Dont´t See”, in: Theories of Distinction, Rasch, W. (ed.), London: Sage,2002.214 Embora possamos acrescentar, e com base mesmo em reflexõesposteriores do próprio Heidegger, consubstanciada em textos comoDie Frage nach der Technik e Die Kehre – onde se pode ver, portanto, antesa continuidade do que uma ruptura com o pensamento mais antigo
249
mundos em que vivemos faticamente, praticamente, ou seja, o
fundamento mesmo de nossa existência, sendo deles que se
trata de fazer uma experiência cognitiva (erkennende Erfahren)
ao fazer filosofia, enquanto comportamento cognitivo
(erkennende Verhalten) que ela deve ser.
Antes, porém, de que se estabeleça por decreto que a
filosofia seja cognitiva (Erkenntnis), a fim de manter o seu
vínculo com a experiência fática da vida, que é, afinal de
contas, o que mais importa, é preciso constatar que essa
experiência, de um modo geral, se dá irrefletidamente,
demonstrando uma indiferença em relação ao modo como ela é
vivenciada, ou seja, eine Indifferenz in Bezug auf die Weise des
Erfahrens.215 Como conseqüência dessa indiferença teorética
resulta uma auto-satisfação (Selbstgenügsamkeit – o tradutor
aqui apresentado deste A., tal como defendido em seminário porAQUILES CÔRTES GUIMARÃES - , ser justamente de uma transformação dovivido em objeto, enquanto representação e imagem, a tendência quese verifica no desenvolvimento do atual modo predominantementeplanetário e planificado de viver, no qual poderíamos recuperar acapacidade de experimentar a verdade (do ser) pela arte, apoética, co-originária da técnica hoje imperante absoluta, sendoassim que também se poderia ter a experiência da presença (vida)ou ausência (morte) de Deus. Cf. MARTIN HEIDEGGER, Die Technik und dieKehre, 9ª. ed., Stuttgart: Günther Neske, 1996, pp. 35 e 46 – ouseja, ao final dos textos referidos.215 Id. ib., p. 12, grifo do A.
250
espanhol optou por “autosuficiência”) bem característica da
vida de fato vivida, de modo que tudo o que se experiência
nessa vida possui um caráter de significatividade
(Bedeutsamkeit), por mais banal que seja – quando então o
significado será este, de banalidade, do que pode muito bem
resultar uma satisfatividade, como de fato, em geral, resulta
mesmo, pois apesar de tanto motivo para descontentamento, não
nos parece que seja essa a modulação de humor predominante.
Importante é a constatação de que nos experienciamos a
nós mesmos, ao nosso si-mesmo (Selbst), de fato, em um tal
contexto, mundano, e não de um modo que o isola do mundo
circundante, tornando-o objeto de conhecimento, mesmo
enquanto “consciência transcendental” ou “mente”, seja no,
seja fora do corpo etc. Isso pode ser feito, e se ao fazê-lo
quisermos produzir algo como um conhecimento psicológico,
para Heidegger não se pode dizer que seja por motivos
filosóficos e que assim se venha a realizar uma psicologia
filosófica, pois a única possibilidade de se atingir algo
assim estaria nesse dar-se conta (Kenntnisnahme) do ser que
somos no mundo fático, onde fazemos algo com o que nos vem ao
251
encontro, lançados que fomos no(s) mundo(s); sofremos, nos
alegramos, deprimimos etc.
Ocorre que essa vida que levamos, sendo de onde se
origina o impulso para uma reflexão que se possa chamar
filosófica, quando dá margem a que isso aconteça, logo é
tratada como um obstáculo, a ser removido, ou invés de
propriamente entendido, um problema a ser resolvido, e assim
é que seu conteúdo significativo vai se tornando ob-jeto
(isto é, lançado contra), Gegen-stand (isto é, o que se ergue
contra) de uma teoria, seja enquanto doutrina, ideologia ou
“cosmovisão” (Weltanschauung), seja enquanto ciência, quando a
filosofia propriamente dita, nos molde daquela propugnada por
Heidegger e que aqui se pretende retomar, deveria reconhecer
a vida em sua faticidade como ponto de partida e meta de
chegada, tratando de contribuir para, digamos, resolver seus
problemas nos seus próprios termos, ao invés de traduzi-los
nos termos técnicos, o que termina por produzir aquela
espécie de alienação de que tratará o mestre de Heidegger,
Husserl, em sua reflexão final, sobre a crise da humanidade
às voltas com a “ciência européia”, antes referida.
252
Para fazer uma primeira aproximação com a metodologia
filosófica proposta dessa dimensão que vinha de ser assumida
como fundamental, a experiência fática da vida (faktische
Lebenserfahrung), Heidegger vai propor uma definição enquanto
indicação formal. Antes, porém, já anuncia – fazendo, por
assim dizer, uma indicação sobre o que seja a indicação
formal – ou prenuncia que não será entendido, ou muito pouco,
mas que nisso não haveria nenhum prejuízo, pois o importante
é que se avance, buscando a caminho a compreensão, e não do
anúncio, do indicador da indicação, mas sim do anunciado, do
indicado, um assim determinado contexto fenomênico
(Phänomenzusammenhang). A indicação é como os andaimes de uma
construção, que a possibilita, mas que se dispensa depois que
ela é concluída – ou como a escada a que se refere
Wittgenstein ao final de seu Tractatus, para caracterizá-lo,
concitando a quem o entendeu a dispensá-lo, depois de ter
subido até onde ele (o livro, ou ela, a escada) permitiu.
A experiência fática da vida é então formalmente
indicada como sendo uma ocupação com a significatividade
(Bedeutsamkeitsbekümmerung), quadruplamente caracterizada
253
enquanto 1) atitudinal (einstellungsmäßige), 2) desviante
(abfallende), 3) relacionalmente indiferente (bezugsmäßige-
indifferente) e 4) autosatisfativa (selbstgenügsame).216 Como isso
se estaria dando conta do que é possível, em relação ao
fenômeno inidicado, ao caracterizar como ele experienciado,
ou, para dizer com Heidegger, o como (Wie) da experiência,
sua relação de sentido (Bezugssinn), que não é de se confundir
com o seu conteúdo, o seu que (Was), sendo que na vivência
propriamente é este conteúdo o que importa, donde sua
indiferença em relação ao que a filosofia assim tematizaria,
que é o modo 217 de experienciar, deixando em aberto a questão
do conteúdo experienciado,218 embora seja por aí, ou melhor,
por ele, que se diferencia o que é experienciado.219 Expostos
a uma enorme variedade de conteúdos a serem experienciados,
nossa atitude espontânea é a de ir-lhes experienciando e a
isso reagindo impensadamente, fazendo o que sabemos que temos
216 Id. ib., p. 16.217 Isto é, a Weise, que se poderia também denominar “wie-sein”, o “ser-como”, em contraste com o “ser-que”, was-sein, tradicionalmentebuscado pela filosofia teorética ou “teoretizante” e, enquantotal, “desviante”, abfallend. 218 Cf. id. ib., p. 12.219 Id., p. 16.
254
de fazer, sem vacilação, “relacionalmente indiferente” e
“autosatisfativamente”, donde decorre uma tendência ao
“desvio na significatividade” (Abfall in die Bedeutsamkeit), no
sentido da “objetificação”, cujo ápice se encontra na
ciência, a que se chegou por intermédio da filosofia
teoreticizante (a wissenchaftliche Philosophie a que aí se refere
Heidegger), tomando para si o máximo em significatividade,
sem prestar contas quanto ao sentido dessa nossa entrega de
si a uma determinação enquanto objeto (einstellungshafte
Objektsbetimmung) e a uma regulação como objeto
(Objektsregulierung) da nossa vida de fato vivida (faktisch gelebten
Leben).220
Eis que o deixar-se ir levado pela corrente da vida
demonstra-se ameaçador, dando ocasião a que se busque motivos
para uma inversão (Umwendung) do desvio que nela se pratica,
inclusive com auxílio da filosofia tal como tradicionalmente
praticada, reconduzindo a experiência da vida de volta a e
sobre si mesma, agora tomando cuidado com o modo como nela
220 Id., p. 18.
255
nos ocupamos, ou seja, nos ocupando com a vida, e não apenas
na vida. Em assim fazendo, estaríamos retomando o impulso
original para a filosofia, que terminou se perdendo ao longo
de sua história, tanto que é melhor nem dizer que se trata de
fazer filosofia, até porque os que a cultivam ao modo
tradicional também não reconheceriam como tal este esforço de
voltar a pensar no sentido (Sinn) da experiência fática da
vida, de maneira vívida e vigorosa (lebendig und streng), tal
como ele própria se mostra. Daí que a atitude metodológica
proposta seja a de uma simples anotação fática do que se
observa (faktisches Kenntnisnehme), meramente preparatória de uma
compreensão, a ser obtida graças à explicitação do modo em
que se vive a vida, para assim possibilitar uma avaliação e,
em sendo o caso, redirecionamento, dando-se como pressuposto
que sempre haverá um ganho, uma revigoração, mesmo se nenhuma
mudança vier a ocorrer, pois então se estará vivendo a vida
com maior consciência do que está se passando e se está
passando. E considerando que vida fática é o que está se
passando, não importa como, é esse “estar se passando” que
Heidegger propõe que se tome como via de acesso para a
256
compreensão da vida fática e, nisso, também para a
autocompreensão da filosofia enquanto comprometida
primordialmente com essa tarefa, denominando-lhe pela
seguinte “palavra problematizadora” (Problemwort), que
substantiva um adjetivo: o histórico (das Historische).221
Ao optar por essa denominação e dela pretender extrair o
estímulo para desenvolver uma reflexão filosófica sobre a
vida fática, nos moldes aqui buscados, é preciso evitar
desvios propostos no âmbito da filosofia tal como
tradicionalmente praticada, quando então, por exemplo, já se
poderia enquadrar a investigação em algum compartimento, como
o da filosofia da história, sendo que essa
compartimentalização é justamente o tipo de realização
objetificadora que se precisa evitar. Justamente não se está
a propor que algo, um objeto, que será estudado, tem a
propriedade de ser histórico, mas o histórico mesmo, como
221 Cf. ib., p. 34. Nas “Conferências de Kassel”, anteriormentereferidas, mais precisamente na 6ª. conferência, Heidegger entende“a pergunta fenomenológica pelo sentido da história (o que aquiaparece como das Historische – WSGF) como pergunta pelo ser da pessoa(o que será depois dado a conhecer por ele como Dasein)”. A 10ª. eúltima dessas conferências terá por tema, justamente, “a essênciado ser histórico” – v. ob. cit., p. 200 ss.
257
fenômeno característico – e caracterizador – da vida fática,
do que de fato se vivencia, é que fornecerá acesso ao sentido
disso, que se quer compreender, entendendo assim se estar
praticando filosofia, mesmo que este seja um modo bem
diferente de como a filosofia historicamente se realizou – e
realiza ainda. É que não se trata de estabelecer categorias
e, a partir delas, um sistema, para assim poder enquadrar o
fenômeno estudado, já transformado em objeto de estudo.
Considerando o histórico como característica de objetos,
tomando a palavra em um sentido menos rigoroso,
correspondente ao termo alemão Gegenstand, ou seja, o que está
diante de nós, mesmo se não nos pomos na postura de um
sujeito cognoscente - quando então se teria propriamente a
constituição desse algo em objeto -, mas sim naquela do
entendimento humano normal (gesundes Menschverstand), é válido
dizer que se algo é histórico é porque está sujeito ao passar
do tempo, mas com isso não foi dito nada de essencial sobre o
fenômeno indicado com o termo “histórico”, e quando algo
assim for dito, é de se esperar que se choque contra o
entendimento normal que se tem a respeito, pois afinal a
258
filosofia pode ser entendida como uma luta contra isso que na
Grécia antiga se denominava doxa.222
Ocorre que, com o passar do tempo, o conhecimento que
vem se acumulando, historicamente, vai proporcionando uma
transformação imensa das opiniões, assim como uma enorme
variedade delas, do que resulta uma inibição para a
“ingenuidade criativa” (Naivität des Schaffens) prejudicial ao
“entusiasmo pelo absoluto” (Enthusiasmus für das Absolute), a
exigir uma luta da vida contra o histórico para que possa
florescer uma nova cultura espiritual (einer neuen geistigen
Kultur).223 A “cultura espiritual” de então sequer percebia um
tal confronto com a história, em que estaria envolvida, e
três seriam as posturas mais comumente adotadas, a saber, 1)
aquela transcendente, platônica, do neokantismo de Baden
(Cohen, Windelbrand, Rickert e outros), onde se nega o
222 “(…) Philosophie ist nichts als ein Kampf gegen den gesundenMenschenverstand!” Id., p. 36. À doxa, Platão opunha a epistémeprópria da filosofia, sem deixar de reconhecer o domínio restritodesta última aos assuntos especulativos, excluindo, portanto,aqueles práticos, da téchne, onde se situa a moral, o direito e areligião (v. República, 538; Leis, 644). Heidegger, em suas liçõesintrodutórias à metafísica, caracteriza o filosofar como umquestionar extra-ordinário (außer-ordentliches), para além do modocomo normalmente se concebe o tema do questionamento.223 GA, Bd. 60, p. 38.
259
histórico em favor do reino das idéias eternas, sobrehumanas
e sobrenaturais; 2) a imanentista, (nietzsche-)splengleriana,
em que, ao contrário, se adere ao histórico em uma entrega
radical (radikales Sich-Auslieferns) e 3) a opção conciliatória,
dilthey-simmeliana, para a qual o histórico é um processo, no
qual se vai revelando pari passu a essência humana. Em todas as
três tendências Heidegger identifica a mesma preocupação com
uma tipificação, como se tem em Max Weber e seus tipos
ideais, um exemplo da primeira tendência, assim como na
morfologia de Sprengler e na doutrina das diferentes
concepções de mundo (Weltanschauungen) em Dilthey, ou de vida
(Lebensanschauungen), em Simmel. Isso leva a que Heidegger
refira a uma tendência comum ao asseguramento
(Sicherungstendenz),224 como justificativa dessa construção
cognitiva recorrendo a tipificação, que sempre resulta em
objetificação, inclusive do ser atemporal, no caso da via
platônica – no caso da segunda via, não se reconhece outra
possibilidade além de tomar conhecimento da própria realidade
histórica, contrastando com a de outros povos e culturas, sem
224 Cf. id. ib., p. 45.
260
ter como mudá-la, já que não se reconhece um padrão supra-
histórico para servir de orientação; a terceira via, por seu
turno, ao optar por uma dialética que supere o antagonismo
entre as duas outras, quando então o atemporal se realizaria
na história através de uma progressiva revelação das
potencialidades humanas, o que é passível de ser observado e
explicado cientificamente, fazendo do histórico objeto de
estudo, portanto.
O histórico, então, nas três tendências, seria
hipostasiado, reificado, ao ser tomado como um ser objetivo
(objektives Sein), o que é denunciado no caráter atitudinal
(einstellungsmäßige) da referência (Bezug) à história.225 É que
assim procedendo, com uma tal atitude ou postura refere-se ao
referido – no caso, o histórico – como sendo uma coisa ou
questão (Sache), deixando de fora a quem refere e, em assim
procedendo, perde-se a referência viva (der lebendige Bezug) ao
objeto de conhecimento, a fim de obter uma compreensão dita
225 Cf. id. ib., p. 48.
261
atitudinal (einstellungsmäßige), que não teria nada a ver com
aquela propriamente fenomenológica.226
Eis que a partir de uma tal alienação reificadora,
constatável nas três posturas teóricas referidas, frente à
história, e também ao histórico, perde-se de vista exatamente
a quem busca o asseguramento, por estar inquieto (beunruhigt),
tido como uma evidência (Selbstverständigkeit). O que inquieta é a
realidade da vida, a existência humana, preocupada com o seu
próprio asseguramento, preocupação esta que não é atendida,
quando tratada como um objeto e assim colocada na realidade
histórica objetiva.227 A vida preocupada é situada em um
contexto histórico que lhe é alheio, que não é o da sua
história, sem consideração para com a própria tendência a se
preocupar, agora reinterpretada atitudinalmente
(einstellungsmäßig umgedeutet), o que vem ao encontro da já
mencionada tendência da vida fática a adotar essa atitude de
se desviar (einstellungsmäßig abzufallen), tornando a preocupação
em objeto, objetificando-a e, assim, objetificando-se, pois a
226 Id., p. 49.227 Ib., p. 51.
262
preocupação é o modo de ser mesmo do vivente humano. É aqui
que reside, segundo Heidegger, o ponto de ruptura (Bruchstelle)
do problema envolvendo o histórico – e, logo, a nossa vida
fática. O sentido da história, que na preocupação se
prenuncia, não pode mais ser entendido, encoberta que se
torna assim a inquietação verdadeira, quando o fenômeno do
histórico é compreendido a partir de uma consideração
teorética, proveniente do que quer que se pretenda uma
ciência da história, em que o sentido atitudinal
(einstellungsmäßige Sinn) da história é derivado (abgeleitet), de
maneira falseadora. Do que se trata, então, é de tentar
captar o fenômeno da preocupação na vida fática a descoberto
(unverdeckt).228
A relação entre a preocupação e a vida fática, tal como
entendida nas três posturas teóricas antes referidas, é
caracterizada por Heidegger como uma “relação de ordenação”
(Ordnungsbeziehung). Isso porque a existência preocupada (das
bekümmerte Dasein) é por elas situada em um contexto objetivo,
sem a devida consideração para com ela em si mesma, que é
228 Id., p. 52.
263
assim tratada como um objeto recortado de um objeto maior, a
saber, o acontecer histórico como um todo. A existência em
desassossego (das beunruhigte Dasein) vai então procurar se
proteger contra as mudanças da existência atribulada por
acontecimentos (das geschehnishafte Dasein), o que em termos da
filosofia transcendental se expressaria na postulação de que
a consciência é constituída por um fluxo de atos que tem um
sentido. Ocorre que a existência própria e atual (das eigene,
gegenwärtige Dasein) demanda para si mais do que um sentido
qualquer, pois requer um sentido concreto, um outro sentido,
um sentido novo, diverso daqueles já fornecidos pelas
culturas do passado, que supere, portanto, o sentido dado à
vida de anteriormente. Isso porque essa forma de existir
atual quer ser uma nova criação (Neuschöpfung), com uma
originalidade que a diferencie, nem que seja fazendo uma
grande síntese de tudo quanto tome conhecimento, ou
distinguindo-se do que em contraposição seria a barbárie. É
assim que o modo de existir preocupado se mostra na própria
experiência de vida desse que se propôs a entendê-la sem
considerar seu conteúdo na perspectiva de lhe fornecer uma
264
justificação. E se uma tal tentativa de acessar a própria
existência vívida (das eigene lebendige Dasein) enquanto preocupada
através da história, para tanto, a situa em relação à própria
história, o que se pode constatar foi que as teorias da
história só atrapalham, assim como a simples opinião de que a
realidade histórica é aquela que se verifica no tempo que
passa. A tentativa é a de captar o sentido da história
através da experiência fática pura e simplesmente, e como fio
condutor do que se dispõe é do conceito de histórico que se
principiou a trabalhar, recorrendo a inovações metodológicas
em filosofia fornecidas pela fenomenologia, sendo ao que se
precisa novamente voltar a atenção, a fim de aumentar as
chances de vencer o que se apresenta como uma verdadeira luta
a ser travada a cada passo que se avance.229
Nos três modos de lidar com a história que foram
referidos a existência desasossegada (das beunruhigte Dasein) é
tratada como um objeto na história, o que termina ocultando a
própria fonte originária do desassossego, facilitando assim
solucioná-lo. Se nos perguntamos sobre o que se quer
229 Cf. id., p. 53.
265
realmente assegurar contra a história percebe-se que é a vida
enquanto realidade histórica humana. É essa esfera que
Heidegger reivindica para ser levada em conta, considerando
que ela não é problematizada na filosofia de então – como
hoje nos parece que ainda não também -, ou quando o é, de uma
maneira indevida, que a enquadra conceitualmente no esquema
previamente desenvolvida em uma dada filosofia, sem que se
coloque a questão de saber se não seria simplesmente
impossível captar o sentido da existência fática com os meios
filosóficos disponíveis. E essa captação, que há de ser
originária, requer, portanto, uma explicitação de natureza
filosófica. Heidegger destaca, contudo, que não se trata de
preencher uma lacuna em algum sistema de categorias já
existente na filosofia, pois como pretende demonstrar, a
intencionada explicitação de novas categorias da vida fática
ao invés disso o que fará é explodir o sistema tradicional de
categorias.230
A existência factual, atual, não pode ser tratada como
algo que acontece de maneira objetiva e às cegas, pois como
230 Id., p. 54.
266
tal requer um sentido que a guie, e há toda uma pressão para
que o sentido buscado se volte e forneça uma direção para o
futuro, e que seja um futuro em que uma nova forma de vida e
de cultural, mais própria (e apropriada) seja criada. É isso
que se pode encontrar, exemplar e, também, pioneiramente no
modo como após sua conversão ao cristianismo São Paulo passa
a experiência a vida, o que deve ter motivado Heidegger a
abordar o assunto no seminário para o que desenvolveu,
previamente, as reflexões ora reportadas. Sua tentativa é,
aí, conforme anuncia, a de colher o que denomina de histórico
numa tal forma de vida, religiosa, fazendo a fenomenologia da
vida religiosa tal como proposto pelo título do seminário, e
tomando todo o cuidado para não se deixar levar pelo que
caracteriza como a tendência a uma formalização precipitada,
donde resulta uma grande dificuldade para a própria
fenomenologia. O emprego da indicação formal é a solução
vislumbrada.
A definição que é dada para indicação formal, que bem
poderíamos qualificar como sendo, ela própria, uma indicação
formal, é a de “uso metódico de um sentido para direcionar a
267
explicitação fenomenológica” (den methodischen Gebrauch eines Sinnes,
der leitend wird für die phänomenologische Explikation),231 e aqui
“fenomenológico” há de ser entendido como sinônimo de
“filosófico”, pois “fenomenologia” antes foi dito que “deve
significar para nós o mesmo que >>filosofia<<”.232 Trata-se de
um tema da teoria do método fenomenológico, onde “teoria” é
posto entre aspas, pois justamente o que se pretende com o
emprego desse recurso é evitar a forma de consideração dita
“atitudinal”, a postura própria da elaboração teorética
objetificadora, que procura tudo enquadrar de maneira
absoluta, e é justamente uma fenomenologia desse problema do
teorético, do ato teorético, que é buscada, enquanto um
fenômeno da diferenciação (Phänomen des Unterscheidens). E o
problema será estudado com referência ao caso concreto do
sentido do histórico, na experiência de vida fática, pois
seria mesmo um tanto absurdo buscar compreender o teorético
teoricamente, evitando as deficiências objetificadoras de um
modo de conhecer que já parte da distinção entre sujeito e
objeto. Ora, o que é isso se não a tentativa que fazem
231 Ib., p. 55.232 Id., p. 5.
268
poetas e místicos de expressar a presença em si do que lhes
transcende? Vê-se, assim, como já nos primórdios de seu longo
percurso pode-se vislumbrar em Heidegger o que irá se tornar
a marca distintiva da sua tão instigante quanto enigmática
obra tardia.233
10. Conclusões prévias
233 E também se torna compreensível, além da “passagem para opoético”, de um dos mais notórios estudiosos de Heidegger noBrasil, o paraense Benedito Nunes, a “passagem para apsicanálise”, especialmente na versão de Donald W. Winnicott, quepropõe outro estudioso da mesma estirpe, o sérvio radicado noBrasil, em São Paulo, Zelyko Loparic, bastando referir o quantoescreveu aquele integrante da Escola de Londres, de derivaçãokleiniana – mas aberto como poucos a contribuições oriundas dasdiversas proveniências teóricas -, no capítulo sobre criatividadede seu livro mais consagrado, O Brincar e a Realidade, cit., p. 114 s.,ao referir ao primeiro objeto que formamos (imaginariamente), oseio (ou o que nos amamente). Este seria um “objeto subjetivo”,onde encontramos originariamente o sentimento e a experiência deser(mos) – que é um elemento feminino -, abrindo caminho para o“sujeito objetivo” – elemento masculino -, o qual, já sendo, ou emse sentindo como tal, passa a sentir-se fazendo suas ações,atribuindo-se um ser próprio, seu, um self, que possui. É assim quena obra de Donald Winnicott podemos encontrar um desenvolvimentoabsolutamente convergente com aquele que aqui se buscaimpulsionar, considerando que para ele, em síntese, como bemexplica um dos que o estuda e divulgam em nosso País, “qualquerconhecimento autêntico da cultura e da vida, depende de umprocesso de recriação do mundo por meio da nossa própriaimaginação”. ROBERTO B. GRAÑA, Origens de Winnicott. Ascendentes Psicanalíticose Filosóficos de um Pensamento Original, São Paulo: Casa do Psicólogo,2007, p. 16.
269
Eis que chegamos à conclusão de que a filosofia, já
tendo servido à teologia, durante o período medieval, depois
à ciência, e também à política, na modernidade, deveria
ainda, em seus estertores, ser posta a serviço da arte, ou
melhor, da poética, em uma última tentativa de salvar um
mundo que ela, mais do que o expansionismo político-jurídico
romano e o monoteísmo personalista cristão, serviu para
criar, quando deixou de ser dialética, inconclusiva,
sofística, para tornar-se exigência da verdade, filosofia
propriamente. Aqui, a descrição da filosofia a aproxima da
situação trágica em que se viu envolvido o famoso personagem
da tragédia de Sófocles, Édipo. E tal como Édipo, a
insistência da filosofia em perseguir a verdade, uma única
verdade, em ser “alética”, portanto, e não mais, di-alética –
ou “pluri-alética”, e, positivamente, “lética”, lembrando que
lethein, em grego antigo, remete também ao esquecimento, sendo
a-lethein o desvelamento, mas também, o “desesquecimento”, o
rememoramento – é que a teria levado (ou estaria levando) ao
encontro de seu fim, trágico. Filosofia, então, estaria bem
se não servisse para nada, como postulava já Aristóteles, no
270
início de sua “Metafísica”, mas ela terminou sendo empregada
para os mais diversos fins, e agora parece estar a serviço do
nada que nos assola, individual e coletivamente. A pulsão
auto-destruidora que se manifesta na filosofia também se
mostra, por todo lado, nessa Civilização Ocidental, que se
tornou mundial - e, logo, não apenas ocidental -, e traz já
em seu próprio nome o occido, étimo latino da queda, da ruína,
da morte, do assassínio, da chacina. A “Civilização da Razão”
é a “Civilização da Destruição”, destruição que pode atingir
todas as outras civilizações e, até, o próprio mundo, físico.
As coisas inorgânicas, por exemplo, como destaca
Türcke,234 “não sentem a contradição, mas fazem parte dela”.
Sim, claro, não sentem por não terem sensibilidade, mas são a
própria contradição, com a sua simples existência, já que sua
densidade ontológica faz-se positividade, contrastando com a
negatividade do nada. Já os seres orgânicos, animados, estes
sentem, sim, a contradição, a que damos o nome de “dor”. E
será contra o sofrimento que se mobilizará o “ser de
234 Cf. Pronto-Socorro para Adorno: Fragmentos Introdutórios à Dialética Negativa,Mimeo., Departamento de Filosofia: UNICAMP, 2001, in:www.filosofia.pro.br, “Escola de Frankfurt”.
271
pensamento”, o ser humano, linguajeiro, constantemente
aterrorizado, perseguido pelo saber de que pode sofrer e,
até, morrer. Se a dor é o mal e o bem ausência de dor, então
temos que estes seres que nós somos percebemos como
negatividade o bem, e positividade o mal. Para afastar essa
idéia se desenvolverão religiões, sendo as mais eficazes
aquelas monoteístas, que deslocam o bem supremo, todo o bem,
para a divindade, supra-terrena, espírito puro, deixando o
mal no mundo, na terra, na matéria impura, enquanto nós,
humanos, “húmus da terra”, ficamos presos nessa contradição,
oscilando entre os dois extremos. Tal contradição se desdobra
em uma série de outras, inclusive naquelas conceituais,
próprias da filosofia.
E então, internalizamos as contradições, existentes na
realidade e, sobretudo, no contraste da realidade com seu
duplo, que fabricamos para melhor enfrentá-la, a linguagem,
sendo o modo como as resolvemos que fará de nós o que somos –
embora pareça contraditório, e é mesmo, o melhor para nós,
individualmente, e para os que convivem conosco, é que
adotemos a estratégia da dialética negativa com essas
272
contradições, evitando tanto resolvê-las, superá-las
definitivamente, de forma absoluta, como também desconsiderá-
las, pretender cancelá-las, por uma cisão analítica entre o
certo, positivo, e o errado, negativo, pois a negatividade é
positiva e a positividade é negativa, a verdade é parcial e,
conforme a famosa afirmação adorniana, contante da obra
“Minima Moralia”, “o todo é o falso”, contrapondo-se
frontalmente à máxima hegeliana, de que o todo é a verdade,
assim como o real é racional e vice-versa.
Pode-se, então, falar em uma “negatividade dúplice”,
sendo uma positiva e outra negativa, o que se expressa
exemplarmente na arte, como bem explica um teórico
contemporâneo que se costuma catalogar bem distante de
Adorno, em um espectro ideológico das teorias sociais, mas
que muito provavelmente com o assentimento dele o substituiu
em Frankfurt, nas aulas interrompidas durante as
manifestações estudantis de fins da década de 1960: Niklas
Luhmann, autor de uma vigorosa teoria social sistêmica.235 Em
ambos, na verdade, para utilizar uma distinção do
235 Para uma introdução a esta teoria v. WILLIS SANTIAGO GUERRAFILHO, Teoria da Ciência Jurídica, cit., pp. 193 ss.
273
enciclopedista d’Alembert, resgatada por Adorno, está
presente um “esprit systematique”, antes que o “esprit de
système”, de um Hegel. Em “Die Kunst der Gesellschaft” (p.
473), Luhmann refere que na teoria estética de Adorno a arte
aparece como uma negatividade a um só tempo positiva e,
propriamente, negativa, ao se contrapor à falta de liberdade
na realidade social com seu exercício de liberdade na
sociedade, que, por isso, dela se beneficia, tornando-a
positiva, valorizada socialmente, por expandir os limites
dessa sociedade, ao alterar a subjetividade dos que a
possibilitam, sem com ela se confundirem: os indivíduos.
É assim que a estética se põe no lugar da ética, ou,
pelo menos, do lugar tradicionalmente ocupado por ela. Ocorre
que em ética, ou nas éticas em geral, já se dá por resolvida
a questão de saber se apenas viver é bom, buscando o bom
viver, o viver bem ou o viver para o bem, associando-se a
vida ao bem e a morte ao mal, pois ser é que é bom e não ser,
ruim. A tais éticas, afirmativas, porém, podemos contrapor um
outro tipo de ética, negativa,236 que ao evitar uma valoração
236 Nesse sentido, JULIO CABRERA et al., Ética Negativa: Discussões eProblemas, Goiânia: EdUFG, 2008. V. tb.
274
positiva prévia do que é, em detrimento do que não é, pode
tornar melhor vivida a vida de um ser, como nós, que a rigor
não somos – no sentido em que, conforme defendemos em outro
local, só Deus pode ser -, mas apenas existimos – enquanto
Deus, porque é, não existe -, ocasionalmente. Facilmente se
percebe que a ética, ou seja, o saber sobre o que devemos
fazer, do qual depende toda filosofia jurídica que não se
reduza à esterilidade do formalismo positivista – negando-se,
portanto, como filosofia para se tornar, na melhor das
hipóteses, uma teoria do direito -, por seu turno depende
fundamentalmente de respostas a outras questões, quer sejam
de natureza metafísica, sobre o que é o ser, quer sejam de
natureza teológica, ou melhor, religiosa, sobre o que podemos
esperar do desfecho da vida. Dito de outra forma, e
sinteticamente: a definição do modo como devemos nos
comportar nessa vida depende da concepção que temos de seus
limites – da morte, portanto.
Os pressupostos de que necessitamos para desenvolver a
filosofia, de um modo geral e também sobre aspectos
http://e-groups.unb.br/ih/fil/cabrera/portugues/etica.html.
275
particulares – como, por exemplo, aqueles referentes ao
direito -, deve possibilitar um entendimento de como nos
situarmos em face de nossa finitude, individual, abrindo um
horizonte, metafísico, de compreensão e superação de certos
modos de relacionamento com tal questão que incita a ações e
reações violentas. O melhor modo de enfrentar tais questões,
transcendentais, é mobilizando os resultados obtidos no campo
aqui qualificado de poético, onde encontramos as diversas
formas de lidar com a imaginação, desde aquelas mais antigas,
como a mitologia e as religiões, até outras, mais recentes,
como a psicanálise, passando pelas diversas artes, a teologia
e a própria filosofia, sem esquecer o direito, enquanto forma
de responder aos reclamos de convivência entre os humanos que
dispõe de um vasto repertório de soluções, necessitando de
uma melhor apresentação, para assim recuperar seu poder de
convencimento e vinculação intersubjetiva. Para desenvolver
melhor o que se acaba de mencionar é que apresentamos o
próximo capítulo, tendo por escopo o seguinte, e último, uma
exemplificação dessa potência heurística da poética na obra
de Franz Kafka.
276
11. Vida contingente, vida sem testemunho, vida sem sentido
A polêmica tese sustentada por Giorgio Agamben, em “Chi
resta d’Auschwietz”, é a de que a justificação para a
irracionalidade dos campos de concentração nazistas
repousaria em uma busca de comprovação da inumanidade dos que
para lá foram encaminhados, pelo modo como eram destratados
os que não foram de pronto exterminados, contrário a qualquer
racionalidade, como a de que se prestariam a atender uma
finalidade econômica, ao serem sujeitados a trabalhar para o
esforço de guerra ou para empresas. E, de fato, o tratamento
desumano atingiria seu objetivo quando suas vítimas, não mais
podendo suportá-lo, psiquicamente, ingressavam em um estado
catatônico, sem buscar contato com os demais detentos,
falando apenas, quando o faziam, sobre como satisfazer a
necessidade de comida, ficando, enfim, indiferentes a tudo e
a todos, ao mesmo tempo em que definhavam organicamente até a
morte. O desejo constitutivo do viver humano, afinal, havia
sido extinto. Essa era a condição do chamado Musellmann, o
277
“muçulmano”, palavra oriunda talvez dos movimentos
repetitivos que faziam, tal como os muçulmanos em suas
preces.
Jean Cayrol, em Les rêves lazaréens,237 ao se referir aos
“sonhos concentracionais” (rêves concentrationnaires), ou seja,
aqueles que se tinha nos campos de concentração, os qualifica
como o único refúgio disponível para os internos, diante do
absurdo da realidade, que subtraia daqueles que a vivenciavam
as características habituais do que em geral consideramos ser
isso, a realidade, revelando-se também como onírica, sim,
porém enquanto pesadelo. Daí que a manutenção da humanidade
dos detentos, na experiência dessa testemunha, mostra-se
extremamente devedora do que segundo seu relato fazia com
seus companheiros, toda manhã, compartilhando os sonhos que
tiveram a noite, de paisagens, fugas ou banquetes. Enquanto
houvessem os sonhos, estaria presente o desejo, e relatá-los
era uma forma de reatualizá-lo, mantendo-o. E sobretudo, no
sono, o prisioneiro dispunha de algumas horas em que saia da
condição de total assujeitamento para se tornar “senhor de
237 In: L’oeuvre lazaréenne, Paris: Opus Seuil, 2007.
278
si”: “Le prisionnier était maître de son sommeil”. Até que soasse o
Wstawac, a palavra de ordem polonesa para que se levantassem,
“deslanchando a tempestade cotidiana”. E também mostrando o
quão tênue é o limite entre a experiência da vida acordada e
dormindo, assim como é o limite entre a vida e o seu fim,
como entre o sonho e o pesadelo.
É assim que, liberto do pesadelo do campo, levando uma
vida como a que lá sonhava, comumente o ex-detento passa a
ser assolado, quando dormindo, por pesadelos, em que estariam
de volta ao campo ou, como no pesadelo recorrente relatado
Primo Levi em La Trêve, a vida normal, com a família e os
amigos, terminava se revelando como uma vivida em um campo,
sendo ele a realidade propriamente: “rien n’était vrai que le
camp”.238 Sendo o campo um lugar de absoluta insegurança, onde
a qualquer momento o detento poderia ser vítima da violência
dos SS, dando-lhes ordens absurdas ou, simplesmente,
massacrando-os, ali se constituía um cenário, de desproteção
social radical, que fazia do detento o homo sacer, a figura do
banido da ordem social e jurídica na Roma antiga, sem no
238 Citado em CAROLINA KORETZKY, “La mémoire du cauchemar”, in: Le Diableprobablement, ANAËLLE LEBOVITS (ed.), Paris: Verdier, 2007, p. 36.
279
entanto ser expulso da cidade, a quem se podia matar sem
cometer o delito de homicídio.239
E essa condição perecível, contingentemente vivo, é
mesmo a do vivente, se ele for considerado como meramente
vivente, dotado do que Agamben - na esteira de Hannah Arendt
e, ambos, em conexão com a “vida fática” tematizada por
Heidegger - chama de “vida nua”. Vida humana, propriamente, é
vida revestida de sentido, capaz de tornar suportável a
consciência que temos os humanos de podermos não ter sido e a
qualquer momento podermos não mais ser ou sermos acometido
por uma ameaça ao nosso ser, finito, contingente. E esse
sentido da vida nós adquirimos ao termos nossa história
pessoal inserida em uma história comum a outros, que nos
antecede e irá, também, nos suceder. Relatos, narrativas,
rememorações – assim como também as comemorações – se prestam
para manter esses vetores de sentido comum, de comum-unidade.
A desumanização, portanto, é o que ocorre quando não se
dispõe mais desses vínculos, e eles foram dissolvidos com a
substituição da vida em comunidade por aquela em sociedade,
239 Giorgio Agamben, Homo sacer, I. O Poder Soberano e a Vida Nua, trad.HENRIQUE BURIGO, 2ª. ed., Belo Horizonte: EDUFMG, 2010.
280
atomizada, composta de sujeitos individualizados, tidos como
autônomos e independentes, que não têm mais nada a dizer um
ao outro que não seja pautado pela realização de interesses,
pessoais.
Daí que hoje chegamos a essa situação em que a
preocupação maior é com a manutenção da vida biológica de
cada um, donde a importância de que haja riscos a serem
combatidos, como o de contrair doenças, ser vítimas de
catástrofes naturais, ou também daquelas sociais, como a
criminalidade, a fim de assim se justificar o poder político
governamental, nos quadros do que Foucault tão bem qualificou
de “biopolítica”. A vida em sociedade é tida como
permanentemente ameaçada e do que se trata é de defendê-la,
sendo o sentido que nos oferecido para vivê-la aquele de
mantê-la e só, sabendo que em algum momento, e a qualquer
momento, se vai perdê-la. Ora, por melhores que sejam as
condições materiais que se tenha para viver assim a vida, ela
não deixa de ser mesmo, como no pesadelo de Primo Levi, uma
vida sujeita às condições, sociais, do campo. Eis como o
campo se revela, tal como postula Agamben, o paradigma atual
281
da política, e política aqui entendida mesmo no sentido
antigo, de vida social: a vida do campo, de concentração, em
lugar da vida no campo, bucólica, comunitária.
A literatura testemunhal, como a designação está a
indicar, tem uma função como que jurídica a cumprir, no
sentido de apresentar um testemunho em um processo, um
processo em que humanos são acusados de praticarem contra
outros o crime de não reconhecê-los como tais, humanos,
apesar de desiguais, como ao fim e ao cabo somos todos
mesmos, uns dos outros, seres singulares que somos. E o
testemunho evoca mais precisamente essa singularidade da
experiência de uma situação radicalmente singular, donde a
posição do sonho se mostrar de maneira tão destacada, como
aqui referido, pois é sonhando que, mais do que acordados,
temos essa experiência, de viver em um mundo todo próprio,
imprevisível, e que a qualquer momento acaba, inexorável e
definitivamente. Relatar o sonho de viver em liberdade, fora
do campo de concentração, quando lá se está; relatar o
pesadelo de viver em um campo de concentração, mesmo quando
se está vivendo em liberdade; relatar o pesadelo de ter
282
vivido em um campo de concentração; relatar o sonho de não
mais viver como se estivesse em um grande campo desses: eis
as funções propriamente literárias do testemunho, sendo a
literatura, a narrativa, de serem entendidas, assim, como
meios empregados para fazermos uma costura, um texto, da vida
de que dispomos, pessoalmente, com a de outros que da mesma
forma a possuem, em condições que assim vão se revelando
similares, afins.
Ela é, desde sempre, como defende Derrida em sua
“Gramatologia”, escritura e, antes disso, inscrição,
"inscritura", marcas como as que nossos antepassados mais
remotos deixaram em paredes de cavernas onde co-habitaram, as
quais lhes permite fixar acontecimentos do passado, comemorá-
los, projetando-se para além da dimensão natural, na dimensão
temporal; marcas que lhes re-(a)presentavam uns para os
outros, às quais associaram certos sons, fixando-os, e
atribuindo, os sons e suas marcas, aos sujeitos falantes,
dando-lhes nomes, como às coisas. E esses nomes, se muitas
vezes identificavam os sujeitos com as coisas, os
diferenciava entre si, ao mesmo tempo em que estabelecia
283
ligações entre eles, a filiação, por sua "nomeação", com o
caráter vinculante da lei, do direito.
Ao mesmo tempo, a natureza em si mesma repressiva da
escritura, especialmente aquela fonética, com alfabeto, é
discutido por Derrida na referida obra, contestando os “Tristes
Trópicos” de Lévi-Strauss: "Mais racional, mais exata, mais
precisa, mais clara, a escritura da voz corresponde a uma
melhor polícia. Mas, na medida em que ela se apaga melhor do
que qualquer outra diante da presença possível da voz, ela se
representa melhor e lhe permite ausentar-se com o mínimo de
danos.(...) Pois a sua racionalidade a afasta da paixão e do
canto, isto é, da origem viva da linguagem.(...)
Correspondendo a uma melhor organização das instituições
sociais, também dá o meio de dispensar mais facilmente a
presença soberana do povo reunido".240 A representação
abstrata através da escrita é empregada na elaboração de
normas jurídicas na forma de decretos redigidos por
representantes políticos que "falam", i.e., escrevem,
enquanto os representados "emudecem", i.e., lêem. Nessas
240 Gramatologia, trad. RENATO JANINE RIBEIRO e MÍRIAM SCHNEIDERMAN,São Paulo: Perspectiva, 1973, pp. 368/369.
284
condições, "o corpo político, como o corpo do homem, começa a
morrer desde o nascimento, e traz, em si mesmo, as causas de
sua destruição" (Rousseau, "Du contrat social", Livro II, cap.
XI, apud Derrida, ob. cit., p. 363). É assim que podemos
partir também de uma idéia, colhida em Derrida, que a foi
recolher em Rousseau, no “Ensaio sobre a Origem das Línguas etc.”, a
qual iremos em seguida desenvolver, apresentando uma outra
forma de situar a origem do que é mais propriamente humano,
isto é, o social, o político, moral, jurídico etc. – em uma
palavra o cultural ou simbólico – nas paixões, nos afetos, no
corpo, enquanto corpo marcado pela diferença entre desejo
(humano) e necessidade (animal), diferença instituída pela
“letra da lei (não-escrita)”.
O corpo sempre foi um lugar privilegiado na demonstração
e revelação do poder social vigente, de “inscritura” daquela
letra e da marca de que estamos aqui a tratar. São clássicas
já as teses expostas pelo etnólogo Pierre Clastres em "La
société contre l'État", quando considera os rituais de passagem e
iniciação das sociedades pré-estatais, ditas "primitivas"
(melhor: primevas) - que normalmente envolvem alguma forma de
285
mutilação ou "investida" dolorosa sobre o corpo do seu
paciente, tatuando-o, queimando-o, cortando-o -, como uma
forma de inscrição no corpo de cada um das leis da
comunidade. "La letra con sangre entra", costumavam dizer os
pedagogos inquisitoriais na Espanha. As cicatrizes deixadas
pela ação disciplinar são sinais exteriores da dor uma vez
sofrida interiormente, marcas indeléveis também na memória,
constitutivas mesmas dessa memória, tão diversa daquela dos
computadores, meramente armazenadora de informações. Essas
marcas se prestam à identificação mútua dos que a possuem
como membros de um mesmo grupo social e fundamentalmente
iguais entre si, sem que um seja melhor ou pior do que o
outro, donde não poder nenhum pretender dominar o(s) outro(s)
– mas tão somente a outros que sejam efetivamente isso,
outros.
Bem diferente, então, seriam as coisas em
sociedades já mais "evoluídas", letradas, não mais
igualitárias, e sim com predomínio de um pequeno grupo
sobre os demais membros, onde já se tem a escritura das
leis em rochas, tábuas, moedas e, finalmente, papel. Seja
286
como for, fica mais uma vez registrada a origem violenta de
toda proibição, tanto sagrada, como jurídica, que garante
nossa vida em sociedade, sustentada pelo enfrentamento da
morte, ou, na fórmula consagrada por Roger Caillois,241
condição da vida e porta para a morte.
Há de se recordar, assim, a origem violenta de toda
proibição, tanto sagrada, como jurídica, que garante a vida
em sociedade, sustentada pelo enfrentamento da morte. O
incremento da violência na sociedade “pós-moderna” não
poderá ser contida pelo reforço da proibição jurídica, mas
antes por uma consideração das conseqüências psicológicas e
sociais da secularização defendida pela ideologia oficial,
donde se verificar uma re-sacralização crescente das
relações fora das instituições religiosas, ou seja, em
seitas ou “tribos” (Maffesoli).242
241 Cf. El Hombre y lo Sagrado, 2ª ed., México: Fondo de CulturaEconómica, 1996 [1939]: cap. V, p. 147 ss.242 Cf., deste A., a respeito, de último, A República dos Bons sentimentos,trad. ANA GOLDBERGER, São Paulo: Iluminuras/Itaú Cultural, 2009,esp. p. 99 e seg.; v. tb. G. Balandier, “Antropologia e crítica damodernidade”, in: id., Antropo-lógicas, São Paulo: Cultrix/EDUSP, 1976, p.258 s.; G. Marramao, Poder e Secularização, São Paulo: EDUNESP, 1995.
287
Em épocas passadas, a comunidade se
mantinha íntegra pela referência a uma origem comum,
sacramentada por mitologias, religiões ou mesmo, mais
recentemente, por mundividências filosóficas. No presente,
o predomínio do pensamento científico e o correlato
processo de “desencantamento” do mundo, ao qual se refere
Max Weber, minam as bases sobre as quais tradicionalmente
se ergueram as diversas ordens normativas. A construção de
novas bases pressupõe uma recuperação de nossa capacidade
criativa de ficções justificadoras da existência e da co-
existência, ao mesmo tempo em que estejamos cientes do
caráter ficcional desse empreendimento, cujo resultado é a
afirmação de valores. Para isso, vamos precisar de uma
aproximação entre as mais diversas formas de criações
desenvolvidas pelo engenho humano, entendidas assim como
diferentes formas poéticas, a saber, para além da
literatura propriamente dita, as artes, mitologias,
religiões, filosofias e mesmo as ciências, bem como aquela
dentre elas que nos sanciona mais severamente, do ponto de
vista social, a conduta, a saber, o direito. Caberá ao
288
direito solidificar essa invenção ou ficção coletiva,
criando e estabelecendo valores, impondo-os mesmo, em busca
de garantir as condições de manutenção da vida em comum, a
vida humana.
12. Padecendo e Transformando a Lei na Vida e no Corpo (com
Kafka)
Em uma das anotações em seu Diário, Kafka deixou
indicado que escrever para ele seria como praticar um jogo
com o leitor e consigo mesmo, a fim de se salvar da morte por
este “recurso à arte” (Kunstaufwand), o qual permite ao autor
vivenciar mais, em seu mundo artístico, do que na vida
concreta, ao criar situações de possibilidades abertas,
criando assim a sensação de poder realizar a constante
transmutação (Verwandlung) que é inerente à vida. Contudo,
para Kafka, no ato de escrever o autor transmutar-se-ia em
alguém “ morto em vida” - assim como Gregório Samsa, no
espaço literário -, já que ele não vive em um mundo real,
289
maas sim em unm outro, mais agradável, por ser de pura
fantasia. 243
Só nesse sentido é que caberia aquiescer com o dito
saramaguiano, de que tudo o que não é vida é literatura, pois
de outro modo maior razão teria a indígena Sarah Pataxó, para
quem, em seu texto “A literatura vem da raiz”, “literatura é
entender o amanhecer, acompanhar o entardecer e adormecer com
o anoitecer; literatura é a vida com seus acontecimentos”,
(pois) “já acordamos com a literatura: o dia, o sol, o vento,
o canto de um pássaro, a história que minha mãe conta, o
acordar do corpo, o olhar de uma criança, de um parente”. 244
Em um dos “Aforismos” de Kafka, o de número 13, dentre
os escritos entre 19 de outubro de 1917 e 26 de fevereiro de
1918, em Zürau, na casa de sua irmã Otla, lê-se o seguinte:
“Um primeiro sinal de início do conhecimento é o desejo de
243 Cf. FRANZ KAFKA, Tagebücher 1910 - 1923, MAX BROD (ed.), in:Gesammelte Werke in Einzelausgaben, Frankfurt a.M./Hamburg: Fischer,1954, p. 448 s. Para um maior desenvolvimento deste aspecto, v.WILLIS SANTIAGO GUERRA FILHO, “Poder, Impotência e Morte na obra de Canetti eKafka” in: O Saco. Revista Lítero-musical, n. 8/1, Fortaleza, 1988, p.34 s.244 In: Revista Tabebuia: Índios Pensamento Educação, BeloHorizonte: Curso de Formação Intercultural de Educadores Indígenasdo Núcleo Transdisciplinar de Pesquisas Literaterra - FIEI/UFMG,2009, p. 166 s.
290
morrer. Ein erstes Zeichen beginnender Erkenntnis ist der Wunsch zu sterben.
Esta vida se mostra insuportável, uma outra, inatingível.
Dieses Leben scheint unerträglich, ein anderes unerreichbar. Não se sente
mais vergonha de querer morrer; pede-se para ser levado da
velha cela, que se odeia, para uma nova, que se vai ainda
aprender a odiar. Man schämt sich nicht mehr, sterben zu wollen; man
bittet, aus de alten Zelle, die man hat, in eine neue gebracht zu werden, die man
erst hassen lernen wird. Um resquício de fé exerce aí sua
influência, quando durante o transporte o Senhor por acaso
passa pelo corredor, vê o prisioneiro e diz: ‘Este vocês não
devem trancafiar de novo. Ele vem para mim’. Ein Rest von Glauben
wirkt dabei mit, während des Transportes werde zufällig der Herr durch den Gang
kommen, den Gefangenen ansehen und sagen: ‘Diesen sollt ihr nicht wieder
einsperren. Er kommt zu mir’”.
Um dos principais especialistas em Kafka, Walter H.
Sokel, em Simpósio comemorativo do centenário de nascimento
do Autor, em 1983, realizado em Mainz, valeu-se desse
aforismo para defender a tese, já sustentada anteriormente
por Erich Heller e Harold Bloom, dentre outros, de ser o
gnosticismo de onde Kafka obteve a inspiração para escrevê-
291
lo, e especificamente aquele de Marcion, onde se encontra a
metáfora da prisão cósmica em que o Deus (mal) criador deste
mundo (mal) nos deteria, e o outro Deus, o bom, poderia nos
libertar.
Que espécie de conhecimento é este que começa quando se
deseja a morte, e o que é isso, desejar morrer? Começando
pela segunda indagação, há que se diferenciar o querer morrer
do querer se matar, ou seja, a postura passiva de anelar a
morte, por ter se tornado insuportável a vida, a “cela” em
que se vive, mas sabendo que assim como não foi por decisão
nossa que viemos à vida, também não nos é dado escolher sair
dela - no máximo, podemos buscar ser transportado a uma outra
mantendo no fundo a fé de, pelo caminho, por acaso, encontrar
a salvação, a redenção -, em contraste com aquela ânsia de
poder acabar com a prisão, praticando um último ato na vida,
o de acabar com ela, como se ao invés de sermos dela, ela
fosse nossa (eis uma noção de propriedade que está no cerne
mesmo de nossa subjetividade, aquela em que ser proprietário
é ter o poder de destruir o que se possui ou, como diziam os
antigos romanos, disso poder “usar, dispor e abusar”).
292
Já o conhecimento que dá sinal de começar quando se
sente esse desejo de morrer ou, o que seria o mesmo, desejo
de mudar de vida, de “cela”, que é também desejo de se pôr a
caminho, de ser transportado, aventurar-se – o qual tantas
vezes aparece nos escritos de Kafka representado pela
cavalgada, como nas narrativas breves (Erzählungen) “Desejo de
virar Índio”, “A Partida”, “A Próxima Vila” (aliás, em uma
anotação dos seus Diários, de 18.01.1915, Kafka refere-se a
histórias suas, inacabadas, como cavalos, mas de circo, e o
personagem de seu primeiro romance, o primeiro K, Karl, tem o
sobrenome de Roßmann, que se pode traduzir como “homem
cavalo”) -, esse conhecimento é o que, a um só tempo, faz com
que se possa escrever, bem, de verdade, e igualmente, pela
escritura (como pelas Escrituras?), conhecer, bem, de
verdade, a si e ao mundo em que estamos presos, ainda que, às
vezes, em regime de sursis – mais uma vez, nota-se como estamos
impregnados, ontologicamente, de concepções jurídicas, tal
como se fossem categorias transcendentais que delimitam nossa
possibilidade de sermos, o que também é um dos fios
condutores (Leitmotiven) da obra de Kafka, presente de maneira
293
exemplar nos dois romances da maturidade, O Processo, com o
protagonista Joseph K. que não sabe do que é acusado, e O
Castelo, cujo protagonista, K., é um agrimensor que não
consegue fazer valer a sua contratação (de resto,
inexplicável mesmo, em uma sociedade que se organiza de
maneira feudal em torno de um modo de apropriação do trabalho
e da terra que não se coaduna com contratos de trabalho e
divisão da propriedade). Também na novela mais famosa, A
Metamorfose, se tem uma situação de alguém repentinamente
incapacitado para o trabalho que é sumariamente demitido (o
que também se pode entender como sumariamente condenado, tal
como em A Sentença), trabalho que lhe era insuportável, mas que
fazia para sustentar a família, e sem que seus membros
trabalhassem, ou seja, sem que tivessem obrigações com o
mundo exterior. Ora, em todos os textos até agora referidos o
desfecho, já desde o início prenunciado, configurado, é a
morte do personagem principal – ou é a morte o personagem
principal -, e que, a um só tempo, é e não é a do seu criador
mesmo - ou, a um só tempo, é e não é o seu criador mesmo -,
o escritor, transfigurado em personagem e em personificação
294
da morte, tendo aprendido a falar de si deixando de dizer
“Eu”, para escrever “Ele” – Er, o título das “Anotações”
(Aufzeichnungen), escritos imediatamente após os “Aforismos”,
em 1920, após o diagnóstico condenatório, e que tanta
correlação guardam entre si. “Ele”, o “je” (eu) que “est un
autre” (é um outro), segundo Rimbaud, na literatura de Kafka
será “K.”, “Joseph K.”, “Gregor Samsa”, o inseto d’A
Metamorfose, um outro K, por ser um Käfig, que aparece por
diversas vezes nos esboços de Kafka, como naquele que refere
ao inseto que sai a passeio em busca de um passarinho...para
devorá-lo, como o gato que devora o rato, na Pequena Fábula,
sendo que agora o K é o gato (Katze).
Eis que a literatura fornece essa possibilidade de
experimentar o próprio desaparecimento, a própria morte,
ainda em vida, fornecendo um poder que é de todo diverso
daquele poder que, segundo Canetti (provavelmente inspirado
em suas leituras e estudos de Kafka, de quem se reconhece ser
um descendente espiritual e a quem considerava dentre todos e
de tudo o que melhor conhecia a natureza do poder), é o poder
do opressor, do “detentor de poder” (Machthaber), pois se a
295
fonte deste poder seria a sobrevivência à morte dos outros, a
do poder da literatura seria a sobrevivência à própria morte.
Assim, enquanto uns se iludem com o poder que imaginam ter,
por ter a vida de outros em suas mãos, ou mesmo por vê-la se
acabar enquanto permanecem vivos, o escritor, ao produzir um
mundo ilusório, assumidamente ficcional, tendo reconhecido
sua impotência diante da vida e da morte, desejando a morte
como parte da vida e, portanto, sem desejar acabar com a
própria vida, adquire frente à morte uma posição de
superioridade - de soberania, diriam Bataille e Blanchot,
conscientes da relação de origem, genealógica, que guarda uma
tal noção com a instância suprema onde se situa a própria
divindade, o “Senhor” (der Herr) do Universo (e Her/r/mann, vale
lembrar, era como se chamava o pai de Kafka, o
“senhor/homem”, que personificava para ele essa instância de
poder opressor, contra quem e contra o que escrevia).
Viver contente, para um mortal, só será verdadeiro se
estiver(mos) pronto(s) também para morrer(mos) contente(s),
sem se considerar injustiçado por ter de morrer, pois também
não tinha – e nem tem - de viver. Mas para quem, como Kafka,
296
conforme diversas vezes declarou ou escreveu em seu Diário, a
sensação era de ainda não ter propriamente nascido, vindo à
vida, para então poder, também, morrer, a literatura dava
essa possibilidade, de encenar a morte injustificada dos que
não estão propriamente vivendo, dos que, como ele, não chegam
a viver de verdade, mas que, à diferença dele, não sabem
disso, e se revoltam – isso, em geral, na sua ficção, pois,
na realidade, a tendência é a se conformarem, como se
encontrava conformado Gregório Samsa, antes de sua
“transformação”, n’A Metamorfose (Die Verwandlung, isto é, “A
Transformação” ou “Transmigração”, considerando que Wandlung
é “migração”).
Em se tratando da produção literária de Kafka, estamos
diante de obra que como poucas vem se prestando a tantas
interpretações, e das mais diversas conotações, além daquela
estritamente literária: religiosa, política, psicanalítica,
jurídica, filosófica etc. Isso pode ser explicado, como o faz
Gershom Scholem,245 pelo enraizamento profundo de Kafka na
tradição do misticismo judaico, o qual, sem negar o
245 A Cabala e seu Simbolismo, São Paulo: Perspectiva, 1978, p. 20,passim.
297
significado transmitido pelas autoridades, procura revelar
novas e infindáveis camadas de significação da palavra
escrita em nome do Infinito.
Dentre esses textos, merecem destaque os textos-curtos,
as Erzählungen, como aquelas antes referidas, muitas com apenas
um pequeno parágrafo (como é o caso da maravilhosa “Desejo de
virar Índio”), mas de grande densidade cognitiva e, também,
teatralidade, tanto que o consagrado filósofo e crítico
literário, Walter Benjamim - um dos primeiros a reconhecer o
valor dessa obra, juntamente com seu amigo há pouco referido,
Gershom Scholem -, os denominou de “contos de fada” (Märchen)
para cabeças dialéticas. E nesse mesmo texto, publicado por
ocasião da primeira década de falecimento de Kafka, Benjamin
anota que toda sua obra “representa um código de gestos, cuja
significação não é de modo algum evidente, desde o início,
para o próprio autor; eles só recebem essa significação
depois de inúmeras tentativas e experiências, em contextos
múltiplos. O teatro é o lugar dessas experiências”. De fato,
a fortuna crítica posterior identificou no teatro iídiche,
que Kafka tanto admirava, a origem dos gestos e posturas que
298
retrata em sua obra: gestos curtos, enfáticos e reiterativos,
o canto monótono, os ruídos súbitos, a situação do ator em
relação à platéia, esforçando-se para ser aceito e
prestigiado, por exemplo. No texto da palestra que proferiu
sobre o teatro iídiche, Kafka deixou registrado o que tanto o
atraia nele, além do simples fato de ser como um templo da
arte judaica, ao qual ele queria se devotar: lá havia “tudo
reunido, drama, tragédia, canto, comédia, dança tudo junto,
(em suma) a vida!” (no original: “alles beisammen, Drama, Tragödie,
Gesang, Komödie, Tanz alles beisammen, das Leben!”). Em uma anotação
de 25 de dezembro de 1911, referida tanto por Deleuze e
Guattari no livro que escreveram sobre Kafka, como, entre
nós, por Enrique Mandelbaum,246 nosso A. detalha as vantagens
que o contato com o teatro iídiche e a literatura judaica o
teriam mostrado no trabalho literário, incluindo a
possibilidade de debater a oposição entre pais e filhos, como
fará de maneira explícita na “Carta ao Pai”, que o
especialista por último referido considera “um dos documentos
mais importantes do século XX” (ib., p. 151), destacando
246 Cf. Franz Kafka: um judaísmo na ponte do impossível, São Paulo:Perspectiva, 2003, p. 144.
299
passagens em que a queixa contra o pai se centra em sua falha
na transmissão de orientações seguras, com base na tradição
cultural em que se inserem – no caso, aquela judaica.
Daí ser o sentido um dos temas centrais de sua obra, ou
melhor, a perda dele, do sentido de nossas vidas, na vida
moderna, com a perda das crenças tradicionalmente
estabelecidas, e a nossa inútil busca de encontrá-lo,
recuperando essa crença. Donde decorre o aspecto religioso
que se encontra nos escritos de Kafka, e que seu primeiro
editor, o melhor amigo, Max Brod, tanto enfatizava, por ser
ele próprio um crente, enquanto Kafka, ao que supomos, até
gostaria de ser, mas não conseguia, e quando escrevia deixava
transparecer essa sua impotência fundamental, tentando
transformá-la, pela escrita, em uma (nova) forma de poder.
E eis que mencionamos uma palavra-chave, a palavra-
título do texto mais conhecido de nosso autor: Transformação
(“Metamorfose” – Verwandlung). Na verdade, na palavra
original, não há referência à “forma”, como há em
“metamorfose”, que deriva de “morphé”, “forma”, em grego,
significando, portanto, justamente, “trans (metá) – formação
300
(morphoseon)”. A tradução mais próxima da palavra original,
“Verwandlung”, seria “transmigração”, pois “wandeln” é
“migrar”. E esse é um tema recorrente em Kafka, o da
emigração, abordado da maneira mais explícita em seu primeiro
romance (?), “América”, mas também em textos centrais, como o
“Diante da Lei” (Vor dem Gesetz), publicado autonomamente, mas
que é colocado como uma explicação para “O Processo”, dentro
deste que é talvez o mais conhecido dos romances de Kafka. E
é nesse último texto que entendemos encontrar uma chave de
explicação para a própria literatura de Kafka como um todo.
Lá, um homem do campo emigra em busca de “entrar na Lei” - em
busca de sentido, portanto – e esbarra diante da porta de
entrada, inibido pela presença lá do que entende ser um
guardião, a quem deveria solicitar a entrada “na Lei”, na luz
(que brota da porta entreaberta). Trata-se de uma parábola e
é essa a forma privilegiada de expressão de Kafka, ainda que
empregada em sentido oposto ao que costuma ser empregada, que
é o de transmitir uma “mensagem”, pois em Kafka a parábola
expressa a impossibilidade de captarmos o sentido da
mensagem, como fica bem evidenciado em textos seus em que
301
fala de parábolas que misturam a ficção com a realidade (Von
den Gleichnissen) e de mensagens que nunca chegam a seu
destinatário (Eine kaiserliche Botschaft). Ora, ao final da
“parábola” que foi contada a Joseph K., por um capelão, para
explicar porque estava sendo processado sem saber a acusação,
ficamos sabendo que aquela era a porta de entrada exclusiva
do emigrante na Lei, o que nos permite supor ter ele se
equivocado ao solicitar, formal e burocraticamente, sua
entrada no lugar para onde pretendia emigrar, transmigrar,
ficando, por assim dizer, a meio-caminho...
Essa é a condição em que nos encontramos, de estranhos
na própria casa, exilados na própria terra, expropriados da
própria vida, alienados do próprio corpo, representada com
toda clareza em “A Metamorfose”. Esse caráter
“desterritorializado” da literatura de Kafka foi destacado
pelo filósofo Gilles Deleuze, no livro que sobre ele
escreveu, em parceria com o psicólogo Felix Guattari, no qual
a classifica como uma literatura “minoritária”, enquanto
produzida por alguém que pertence a um grupo minoritário, o
qual não pertence, propriamente, ao corpo social maior no
302
qual se encontra instalado. Daí o recurso quase judicial a
uma escrita que postule uma admissão, pelo emprego da
linguagem na forma escrita, o que a torna sempre,
necessariamente, politizada, mesmo quando expressa, como é o
caso do texto de Kafka, uma nostalgia por uma época mítica,
pré-histórica, em que todos sabiam como se portar, sem que
precisassem ser a isso constrangidos, por determinações
legais, expressas em disposições escritas, que também se as
houvessem não seriam mesmo sequer entendidas...
Tanto o escritor Vladmir Nabokov como o mitólogo Roberto
Calasso,247 ao se referirem a esse texto, destacam a presença
ali de portas, uma para cada membro da família, que se fecham
dentro da própria casa, e que entreaberta deixa ver por entre
a fresta uma luz redentora, que vem da sala de estar, onde
soa também uma música que em um estado transformado,
transfigurado se pode apreciar como antes não se podia e nem
se pode, no estado normal.
Quanto à classificação do texto como uma novela, se deve
mais à suas proporções, pois se trata de uma narrativa como
247 K., São Paulo: Cia. Das Letras, 2006, p. 146 ss.
303
outras tantas daquelas curtas que nosso A. escreveu, mas que
“cresceu”, “transformou-se”, não chegando ao ponto de se
tornar tão grande como um romance, sendo que mesmo aqueles
que se diz teria Kafka escrito não têm a natureza
propriamente romanesca, se considerarmos que em obras assim
somos informados de maneira mais acurada e completa sobre as
circunstâncias envolvendo a narrativa e seus personagens, de
molde a fornecer um quadro explicativo que, nas obras de
Kafka, justamente, é que nos falta, como na própria vida,
especialmente aquela desenraizada que levamos, ali onde a
vida moderna é mais intensa, ou seja, nas grandes cidades.
É essa proximidade com a vida em seu fluxo normal
descontínuo e enigmático, mesmo se banal, que aproxima o
texto de Kafka daqueles que se produz contemporaneamente para
o teatro. Daí em um seu famoso texto, publicado por ocasião
da primeira década de falecimento de Kafka, Walter Benjamin
anotar que toda sua obra “representa um código de gestos,
cuja significação não é de modo algum evidente, desde o
início, para o próprio autor; eles só recebem essa
significação depois de inúmeras tentativas e experiências, em
304
contextos múltiplos. O teatro é o lugar dessas experiências”.
É que Kafka percebeu o quanto padecíamos da alienação do
próprio corpo, por força das idéias, em que tendemos cada vez
mais a nos tornarmos, deixando de ser reais, animais. O
retrocesso à animalidade, apresentado no texto ora em exame,
na verdade mostra-se como uma estratégia de recuperação da
sensibilidade, diante das condições de vida brutais,
brutalizantes, tal como são aquelas da vida em sociedade,
especialmente ali onde ela se torna mais social, no sentido
originário, jurídico, do termo, que remete a uma vinculação
contratual, a qual se escolhe fazer e se faz sem maiores
considerações do que aquelas resultantes de um cálculo de
vantagens, sobretudo da expressão econômica, financeira, do
negócio. É a negação dessa negação do ócio contra o que
reage, corporalmente, a personagem da “metamorfose”.
Outro aspecto fundamental a ser destacado está
relacionado ao que se pode denominar de “consciência
corporal”. Kafka percebeu muito bem nosso descolamento do
próprio corpo. Daí haver tanto em sua obra animais em
integração com os humanos, ou humanos transformando-se em
305
animais – e vice-versa. Isso implica uma recuperação daquela
dimensão que foi esquecida, por influência da dominação
política que se abateu sobre a Grécia e todo o mundo então
conhecido - ou melhor, já em contato -, oriunda de Roma,
reforçada posteriormente pela religião monoteísta, ainda mais
repressiva, que se aliou ao império romano sob o qual
padecera o seu fundador. Trata-se da dimensão corpórea da
vida, que á a dimensão originária, pois é no corpo que se
enraíza a consciência produtora dos pensamentos que formam a
filosofia, assim como o que chamamos de “eu”.
O corpo, portanto, é hoje referente privilegiado da
subjetividade, enquanto condição imprescindível para a vida e
sua compreensão, posto que ele é a face aparente da essência
do ser encarnado e vivo, donde conhecê-lo ser visto como
fundamental para se ter uma experiência existencial
significativa, mas ele não pode ser visto como única condição
para tanto, até porque o corpo que temos nós não o temos
propriamente, pois melhor seria dizer que nele estamos, uma
vez que (1) não temos disponibilidade sobre ele, de onde nos
advém necessidades como o sono e a fome, e também desejos ou
306
mal-estar, tanto físico como psíquico; e (2) ele é formado e
conformado na convivência com outros sujeitos e seus corpos,
sendo dessa convivência que extraímos nossa concepção do que
pode o corpo, para dizer com Spinoza. Daí a importância de se
propiciar uma aproximação entre corpos para constituir a
experiência do sujeito coletivo que se forma em um corpo
coletivo, a que se referia Lygia Clark, quando propunha
experimentos artístico-terapêuticas em que os participantes
poderiam se dissolver, dissolver o seu si-mesmo (self) em uma
tal configuração.
Para muitos o corpo é uma representação provisória, um
lugar ideal para testar coisas diversas sobre e para si, e já
que não é possível modificar as condições existenciais,
altera-se o corpo por meio de operações cirúrgicas,
exercícios extenuantes e muitas outras maneiras. Como afirma
Le Breton,248 o corpo é apenas o suporte para compor uma
(bio)identidade que é momentânea. Nesses termos, produz a
ilusão de que mudar o corpo significa mudar a vida.
248 Conduites à Risque.Paris: Presses Universitaires de France, 2002.
307
O que se pretende, ao aproximar a filosofia e o teatro,
por meio da literatura de Kafka, é justamente uma inversão
desse processo, trabalhando no sentido da mudança das
condições existenciais por meio de sua melhor compreensão,
graças a uma experiência coletiva de encenação.
O modelo do homem metamorfoseado, antevisto por Kafka,
oferece uma alternativa de identidade para o sujeito que pode
ser avaliada positivamente. As transformações corporais nesse
caso não visam a uma forma única e ideal. É uma espécie de
exercício de si, encaixe e desencaixe de peças diversas que
possam trazer satisfação em dado momento. O problema desse
modelo é se ele for levado ao extremo. Acreditar que é
possível aparelhar o corpo de forma a não adoecer, não
envelhecer ou não morrer é uma quimera, pelo menos para um
futuro próximo. Por outro lado, as possibilidades de invenção
de sujeito em relação ao corpo são restritas, pois esse é um
referente concreto que tem alternativas limitadas de ação.
Portanto, há contornos que não podem ser ultrapassados em
relação ao corpo, e eles não devem ser ignorados.
308
Tudo o que se faz, pelo simples motivo de em assim
agindo ter-se prazer – desde as coisas tidas como mais
simples, desde comer e fazer amor, conversar e fazer
amigos, até as mais sofisticadas, como a arte e a ciência,
passando por aquelas em geral condenáveis moralmente, como
a busca da glória, do poder, de dinheiro, drogar-se,
cometer crimes – não passa de tentativas vãs de ocultarmos
de nós mesmos nossa falta de ser, preencher ou ornamentar o
vazio fundamental que somos nós: negar isso, eis o mal
radical.
O sofrimento de existir é considerado melhor do que o
nada de não existir. Mas se constatamos que existindo já
somos esse nada? Eis o fato aterrador que a todo custo se
tenta escamotear, por não assumi-lo com todas as suas
conseqüências: o de que nós não existimos sempre nem existiremos para
sempre. Por que este que nos parece o estado normal, o de
não-existência, que é o estado de ser, assim, definitiva e
eternamente, é o estado considerado excepcional e associado
ao mal? Em ética, o bem não é a regra e o mal, a exceção?
Estar vivo não é uma exceção? Então por que esta consideração
309
a priori de que estar vivo é que é bom e não estar vivo, mau?
Sofremos nessa vida e, em grande parte por isso mesmo, também
fazemos outros sofrerem, quando poderíamos muito bem usufruí-
la, sofrer menos, pois ela será tanto melhor se não lhe
adicionarmos o sofrimento extra de buscar um modo de ser, de
obediência rígida a regras universal e eternamente válidas,
que pressupõe um estado de ser que nunca alcançaremos em
vida, mas apenas após a morte: o de ser (ainda que seja nada)
para sempre. Daí ter A. Badiou afirmado que a ética é
niilista, por se basear na convicção de que “a única coisa
que pode verdadeiramente acontecer ao homem é a morte”,249 o
que a remete à inefabilidade do que é totalmente diverso,
denominação ética de Deus, instância decisória da morte, onde
se gera o mal: ética, “nome último do religioso como tal.”250
Eis a verdade fenomenal que temos diante de nós, sobre a qual
silenciamos, e em razão desse silêncio, de não se falar
nisso, não nos conscientizamos, propriamente, de nossa
situação existencial em toda a sua precariedade – e beleza. A
ética hoje requerida, portanto, não se refere a uma moral já
249 L´éthique. Essai sur la conscience du Mal, Paris: Hatier, 1993, p. 33.250 Id., ib., p. 23.
310
pronta, mas àquela que efetivamente já temos e que
confrontamos com a verdade fundamental de que toda moral é
invenção coletiva, geral, e também, em certa medida,
particular, individual, singular, feita para justificar nosso
desejo de preservar-nos a vida, a nossa e a dos outros, mesmo
sem que saibamos o porquê. Uma das reações a essa falta de
sentido da vida é escrever a respeito, fazer literatura,
sobretudo, modernamente, na forma do romance, reação de um
ser humano individualizado, voltado para seu interior. Uma
outra reação é aquela exteriorizada em comportamento de – e
em - grupos, cujos membros se identificam entre si por
seguirem os mesmos imperativos, indicando o sentido de como
devem agir para tornar a vida significativa, que então pode
ser a de justificá-la pela negação de grupos constituídos
diferentemente, em obediência a outros imperativos. Um
confronto típico entre tais grupos é aquele que se dá entre
os que continuam seguindo imperativos tradicionais,
imemoriais – e que, em verdade, são mantidos pela preservação
de uma memória coletiva –, com grupos que, justamente,
perderam este sentido comunitário de vida, como são aqueles
311
que se modernizam. A literatura como praticada por Kafka pode
então ser vista como uma forma de reatar o sentido da vida
coletivamente definido com base na transmissão de um legado
de experiências do passado, quando uma tal coletividade sofre
o ataque por parte de quem define o seu sentido da vida por
uma promessa de melhoria, no futuro. Pode-se, nesse contexto,
falar do conflito entre esses que fariam parte do que Paul
Virilio chama de “povos esperançosos” com os que, desse ponto
de vista, seriam “desesperançosos”: “O homem ocidental
pareceu superior e dominante apesar de uma demografia pouco
numerosa porque pareceu mais rápido”. Daí que a humanidade
“tenderá a se cindir exclusivamente em povos esperançosos (a
quem é permitido esperar pelo amanhã, pelo futuro: a
velocidade que eles capitalizam dando-lhes acesso ao
possível, isto é ao projeto, à decisão, ao infinito...) e
povos desesperançosos, imobilizados pela inferioridade de
seus veículos técnicos, vivendo e subsistindo num mundo
finito”.251 Ora, sendo o mundo, como o é, finito, assim como
nós mesmos, a esperança maior de sua continuidade e de nossa
251 Velocidade e Política, São Paulo: 34, 1996, p. 57, grifos do A.
312
continuidade nele, enquanto espécie, estaria justamente na
possibilidade de resistência contra o avanço de uma tal
cisão: justamente em auxílio a essa resistência é que viria o
testemunho dos que vão sendo excluídos, abandonados, por
superados, em sua forma lenta de viver, mas consentânea com o
ritmo de uma vida propriamente orgânica, pelos que se vivem
de acordo com um ideal técnico de superação de todo limite
posto a esta forma de vida, tal como se realiza nas máquinas
que produzem, mais duráveis – ou com durabilidade previsível
-, com maior capacidade de armazenar informações etc. Uma
literatura digamos, “impactante”, como a de Kafla, então, é
como um alarme que soa no momento em que seres humanos
voltam-se contra outros que insistem em permanecer humanos,
integralmente, - em “corpo e alma”, confrontados com a sua
finitude -, negando-os e, com isso, denegando-se.
Do que se trata, finalmente, na presente proposta de
estudo do direito, é de que se procure fazer uma
experimentação exploratória desses limites, a qual possa
reverter em benefício para os participantes do curso, pelo
avanço do conhecimento sobre o mundo em que vive e sobre si
313
mesmo, de um modo que integre (ou reintegre) os aspectos
intelectuais com aquele mais material, corpóreo, tendo como
fio condutor a obra literária de Franz Kafka, lida
devidamente, ou seja, como se lê peças teatrais, oral e
coletivamente, e de preferência com uma direção dramatúrgica,
“orfeônica”,tal como propôs e implantou entre nós Heitor
Villa-Lobos, de modo que e fez visível até o eclipse cultural
que se abateu sobre nós em princípios da década de 1960,
justo quando se colhia os melhores frutos dessa cultura. É
tempo de refazê-la.
Conclusões resumidas
O direito é visto, geralmente, como um mero instrumento
técnico, de controle do comportamento, da conduta humana, sem
concebê-lo também como tendo o ônus de se justificar, de
fundamentar o que apresenta como válido, para além da simples
referência a normas postas, porque é uma visão tecnicista do
direito a que predomina É preciso, então, implicar mais o
sujeito encarregado da interpretação e aplicação das normas
nesse processo, com sua vivência do drama que tem diante de
314
si. A orientação que hoje, pelo direito, se fornece, para a
conduta, em sociedades como a nossa, fundamenta-se no simples
fato de se fazer normas supostamente obedecendo a outras
normas, que já existem. Isso na medida em que nós numa
sociedade como a nossa, de uma maneira digamos assim,
bastante extraordinária na história da humanidade, não temos
mais um vínculo estabelecido entre nós a partir de algo como
a religião, tal como em geral tem se observado ao longo da
história, no passado, e ainda hoje no presente, em sociedades
ainda existentes e que se organizam de um determinado modo,
que justamente não é o modo das sociedades como aquelas
marcadas pela civilização ocidental do atual momento de sua
história, em que se verificou a ruptura do vínculo
tradicional entre o direito e uma esfera transcendente que o
justifique. Esta esfera justificadora, por definição, há de
ser transcendente, estar além (ou aquém) do que por ela se
justifica, e neste sentido, logo pensamos, ser também de uma
natureza religiosa, mas que pode não sê-lo.
Tanto é assim que, por exemplo, no nosso passado, ou no
passado desta civilização dita ocidental, o mais recuado, no
315
seu passado greco-romano, esta instância transcendente foi a
política, propriamente dita, enquanto a crença na
superioridade da cidade, de cidades inicialmente gregas e,
depois, Roma; e na outra vertente, formadora desta
civilização, na vertente judaico-cristã, a justificativa
estava na transcendência, aí sim, da própria divindade:
monoteísta, única, do Deus único, criador do universo, do
homem e, portanto, das suas leis fundamentais também
expressas muito bem no decálogo, nas dez normas dos dez
mandamentos, dos decalogoi (δεκάλογοι), dos dez ditos
transmitidos na tradição judaica através de Moisés e
supostamente enviados por Deus. Então é curioso que nós
terminamos produzindo na Modernidade a ruptura destes
vínculos do direito com qualquer forma de transcendência,
seja em termos estritamente religiosos ou em termos
teológico-políticos. O direito está, digamos assim, tendo que
se impor pelas suas próprias razões e a gente não pode
considerar satisfatório que a estas razões não se acrescente
alguma forma de convicção emanada daquilo que nós entendemos
se precisa prestar mais atenção atualmente, que é o próprio
316
sentimento ou a sensibilidade dos que estarão sujeitos a
estas ordenações, para que estas ordenações não sejam
percebida e, de fato, implementadas de uma maneira que
desconsidera a dignidade própria destes sujeitos. E é aí que
entendo tenhamos que desenvolver uma abordagem poética do
direito.
A Poética é uma disciplina filosófica que remonta a
Aristóteles, em seu Tratado da Poética, portanto deste que é
um dos autores do cânone filosófico padrão do pensamento
ocidental, sendo que desta obra o que restou foi sobretudo a
teorização sobre a tragédia. Penso que aí nós temos realmente
uma chave para ser utilizada também para reavaliar o
pensamento teórico, como um todo e, claro, igualmente do
campo do direito, considerando aquela faculdade um tanto
quanto desprezada tradicionalmente, que é a faculdade da
imaginação. E em sendo, portanto, o direito tido como uma
criação, tal como é próprio da nossa tradição, ou desta
tradição que se tornou mundial, a tradição ocidental, naquilo
que ela remonta também a sua outra vertente, além da grega ou
greco-romana, que é a vertente judaico-cristã, aí nós temos a
317
possibilidade justamente de uma “juspoética”, isto é, de uma
concepção “creacional” do direito, do direito como um produto
de uma criação que, se num primeiro momento, é tido como de
origem divina, atualmente, ou, ao longo de um processo
histórico, cortou ou perdeu este vínculo com esta origem,
assentando-se no próprio homem a fonte criadora, produtora do
direito. Ora, então o direito é “poiético” (em grego, poiesis,
produção inovadora, por oposição complementar a techné, a
técnica, pela qual no máximo se aperfeiçoa o que já está
dado) e, com o aumento da complexidade, tanto sua como
também, correlativa e mutuamente, do meio social em que se
insere, diria meu saudoso mestre dos estudos de doutorado em
direito na Alemanha, em Bielefeld, Niklas Luhmann, torna-se
“autopoiético”. Ele se nos aparece, assim, como o resultado
do emprego de um saber e de um poder de criação do homem e,
não apenas de mera reprodução, como seria o saber da mera
práxis, da técnica e da prática. Então é uma técnica-poética,
diríamos, em termos gregos (téchné poietiké). Porque nós sabemos
que, infelizmente, em Roma a técnica e a arte se confundiram
e se misturaram, inclusive numa palavra única que é ars,
318
“arte”, e o direito terminou sendo associado mais ao aspecto
técnico como ainda hoje o é, e menos a este aspecto, que eu
diria ser o aspecto original, e aqui podemos reivindicar
Vico, Giambatista Vico como um dos pensadores que são
tutelares, que são afiançadores desta idéia, quando remete à
obra de legisladores, inspirados como artistas, a produção do
direito em suas origens mitológicas. Ora, o que é um mito
senão uma criação artística com este conteúdo, com esta
conotação também religiosa, sobretudo a partir de um certo
momento, com a influência maior da escrita – eu sou dos que
privilegia a etimologia da palavra religio proposta por
Cícero, de relegere, ou seja, reler, observando
criteriosamente, doutrina previamente estabelecida por
escrito. Então, considera-se que é preciso pensar o direito,
novamente, de uma maneira em que ele se associa a estes
elementos essencialmente humanos, que são os elementos de
ordem poética, ficcional, mítico, religioso, todos eles
presentes na encenação teatral.
Em épocas passadas, a comunidade se mantinha íntegra
pela referência a uma origem comum, sacramentada por
319
mitologias, religiões ou mesmo, mais recentemente, por
mundividências filosóficas. Há de se recordar, contudo, a
origem violenta de toda proibição, tanto sagrada, como
jurídica, que garante a vida em sociedade, sustentada pelo
enfrentamento da morte. O incremento da violência na
sociedade “pós-moderna” não poderá ser contida pelo reforço
da proibição jurídica, mas antes por uma consideração das
conseqüências psicológicas e sociais da secularização
defendida pela ideologia oficial, donde se verificar uma
re-sacralização crescente das relações fora das
instituições religiosas, ou seja, em seitas ou “tribos”
(Maffesoli). Seja como for, fica registrada a origem
violenta de toda proibição, tanto sagrada, como jurídica,
que garante nossa vida em sociedade, sustentada pelo
enfrentamento da morte, ou, na fórmula consagrada por Roger
Caillois, condição da vida e porta para a morte.
Afinal, somos uma ilusão de ser, pois apenas
estamos, existimos, não somos realmente, já que ser é ser
para sempre. Se somos, somos nada. É esse nada, esse vazio
interior, que nos horroriza, por mais que o evitemos,
320
quando com ele nos deparamos, ao pensarmos com radicalidade
nossa existência e verificamos o que somos: não-ser, mera
existência. No presente, o predomínio do pensamento
científico e o correlato processo de “desencantamento” do
mundo, ao qual se refere Max Weber, minam as bases sobre as
quais tradicionalmente se ergueram as diversas ordens
normativas. A construção de novas bases pressupõe uma
recuperação de nossa capacidade criativa de ficções
justificadoras da existência e da co-existência, ao mesmo
tempo em que estejamos cientes do caráter ficcional desse
empreendimento, cujo resultado é a afirmação de valores.
Para isso, vamos precisar de uma aproximação entre as mais
diversas formas de criações desenvolvidas pelo engenho
humano, entendidas assim como diferentes formas poéticas, a
saber, para além da literatura propriamente dita, as artes,
mitologias, religiões, filosofias e mesmo as ciências, bem
como aquela dentre elas que nos sanciona mais severamente,
do ponto de vista social, a conduta, a saber, o direito.
Caberá ao direito, num tal contexto, solidificar essa
invenção ou ficção coletiva, criando e estabelecendo
321
valores, impondo-os mesmo, em busca de garantir as
condições de manutenção da vida em comum, a vida humana.
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