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Pitgoras, 500 vol. 1 Outubro 2011
O teatro simbolista de Antnio Patrcio: um
teatro do verbo
Simone NACAGUMA1
Universidade Estadual Paulista UNESP
Embora a maioria das obras crticas sobre o teatro
portugus traga, logo de incio, aquela velha questo acerca da
existncia ou no de um teatro portugus poeticamente
autnomo (PICCHIO, 1969, p. 19), tal questionamento no se
faz to pertinente neste trabalho, visto que essa questo j foi
exaustivamente fundamentada atravs da importncia histrico-
literria de poetas que, dando vazo ao seu gnio dramtico,
produziram tambm as mais importantes obras dramticas: Gil
Vicente, Antnio Ferreira, Garret e Fernando Pessoa.
Desse modo, apesar da produo teatral portuguesa no
acompanhar os nmeros de sua produo potica e de narrativa
de fico, no se pode desconsiderar a importncia e a qualidade
de sua literatura dramtica que veio veementemente contribuindo
de forma positiva em quase todos os movimentos esttico-
literrios em Portugal. Portanto, embora em escala reduzida,
verificamos a existncia de uma produo dramtica simbolista
em Portugal que, agora no menos que na poesia, tambm faz por
merecer alguma notoriedade, em razo do desafio a que alguns
autores se colocaram ao tentar transpor os ideais simbolistas para
o gnero em questo, o que, foroso admitir, no tarefa das
mais simples.
A violenta reao contra o positivismo que caracterizou
toda a Europa nos fins do sculo XIX, afirmando novos
movimentos estticos e concepes espiritualistas, s aps 1890
1 Possui mestrado em Letras (Letras Clssicas), rea de concentrao Literatura Portuguesa, pela Universidade de So Paulo (2002) e doutorado em Teoria e Histria Literria, rea de concentrao Literatura Portuguesa, pela Universidade Estadual de Campinas (2010). Possui experincia como professora de Literatura Brasileira e Portuguesa e Lngua Portuguesa em ensino superior e em cursos de ps-graduao latu sensu. Desenvolve, atualmente, pesquisa de ps-doutoramento em Literatura Comparada, atuando nos seguintes temas: fico contempornea portuguesa e moambicana, ps-colonialismo, identidade. E-mail: [email protected].
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Simone Nacaguma
comea a fazer-se sentir no teatro portugus (Ibid., p. 119). No
entanto, nem sempre possvel determinar com preciso suas
influncias, visto que, alm das novidades culturais chegarem a
Portugal com uns bons anos de atraso, quando aportam,
misturam-se a elementos de vagas anteriores, de modo que se
torna complexa uma classificao da produo literria
portuguesa sob critrios europeus.
Assim sendo, apesar do clebre manifesto Le
Symbolisme, de Jean Moras, datar de 1886, no que concerne ao
teatro portugus do final do sculo XIX, o Simbolismo no
despertou grande interesse, seja na produo de textos
dramticos, seja no pblico. Isto se deveu, em parte, ao contnuo
sucesso em Portugal dos dramas de assunto histrico e das peas
de tendncia naturalista (REBELLO, 1968, p. 87) que,
consequentemente, reprimiram qualquer desdobramento maior
do Simbolismo no teatro, muito diferente do que ocorrera com a
poesia. Da, a constatao de um Simbolismo tardio no gnero
dramtico e uma produo espordica de obras, as quais ainda
guardavam, muitas vezes, caractersticas herdadas do teatro
naturalista e dos dramas histricos.
Desse modo, enquanto, na Frana, Jean Moras lana o
seu manifesto simbolista, em Portugal, nesse mesmo ano, sobe ao
palco do Teatro Nacional O Duque de Viseu, de H. Lopes de
Mendona que, coincidindo com o apogeu da explorao e
ocupao militar ultramarinas, representa uma das vrias peas
de tema histrico que se multiplicavam pelos palcos portugueses.
E esse mesmo quadro permanece ainda em 1890, pois se, por um
lado, h a introduo oficial do Simbolismo em Portugal com a
publicao de Oaristos, de Eugnio de Castro; por outro lado,
persiste o sucesso dos dramas histricos nos palcos portugueses,
lembrando que justamente no ano de 1890 e, depois, em 1891,
estreiam no Teatro Nacional, respectivamente, os dramas
histricos de Joo da Cmara intitulados Afonso IV e Alccer
Quibir. Isso justificaria, tambm, o possvel desinteresse dos
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dramaturgos por uma nova esttica, tendo em vista um iminente
fracasso diante do pblico ao apresentar-lhe novas propostas, o
que o comprova a experincia de Joo da Cmara com a pea Os
velhos que, estreando em 1893, perante o desinteresse de uma
platia habituada s estridncias do teatro ultra e neo-romntico,
revelou-se uma tentativa frustrada de implantao do realismo
nos palcos portugueses (Ibid., pp. 88-9).
Posto isso, no difcil imaginar o insucesso nos palcos
que tambm sofreria, no ano seguinte, a prxima pea de Joo da
Cmara, O pntano, obra largamente tributria da esttica
simbolista e, em especial, da dramaturgia de Maeterlinck, cuja
Princesa Maleine irresistivelmente evocava. Entretanto, apesar do
dilogo balbuciante, pontuado de repeties e silncios, que
apontava para uma tentativa simbolista de Joo da Cmara,
verifica-se ainda demasiada reminiscncia da herana
melodramtica do ultra-romantismo, o que diminuiu
consideravelmente a eficcia desta tentativa renovadora (Ibid., p.
94). Contudo, o dramaturgo consegue um notvel equilbrio no
seu prximo trabalho, um drama simbolista intitulado Meia-noite
(1900), no qual funde o puro simbolismo de provenincia
maeterlinckiana com um realismo potico j esboado pelo autor
em A triste viuvinha (...) (Ibid., pp. 94-5).
Vale ressaltar, ainda, que no teatro simbolista o nome
venerado pelos simbolistas portugueses ser Maeterlinck
(PICCHIO, 1969, p. 291) cuja influncia, embora j fosse notada
em Joo da Cmara atravs da complicada ao de Meia-noite ou
das tenebrosas alucinaes d O pntano, os grandes
representantes do primeiro teatro simbolista portugus sero
Eugnio de Castro, Fernando Pessoa, Antnio Patrcio e Raul
Brando.
Apesar das tentativas inovadoras dos poemas em forma
dramtica de E. de Castro, do drama esttico de Pessoa e do
drama sinttico de Brando, no drama lrico de Antnio
Patrcio que encontramos uma interpenetrao to funda dos
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gneros que praticamente verso e prosa se indistinguem
(REBELLO, Op. cit., p. 96) na obsessiva tematizao do amor e
morte. , pois, sob essa temtica maior que se encontram trs das
suas quatro peas de tendncia simbolista: Pedro, o cru (1918) a
tragdia da saudade, poema dramtico sobre o velho tema
nacional acerca da morte de Ins de Castro, mas centrado na
personagem do rei ; Dinis e Isabel (1919) o conto de
primavera, prope dialeticamente a oposio entre esprito e
carne; D. Joo e a mscara (1924) uma fbula trgica que,
segundo Urbano Tavares Rodrigues, deve ser considerada a obra
que melhor permite avaliar a apetncia lusitana para o tema de D.
Juan (RODRIGUES apud Ibid., p. 96). Faltando mencionar O fim
(1909), justamente a pea de estreia de Patrcio, que consiste
numa anteviso da queda iminente da monarquia portuguesa.
O teatro de Patrcio, seja quanto sua forma, seja quanto
sua temtica, apresenta profunda complexidade, no sendo
possvel submet-lo a uma nica influncia, o que se confirma
atravs de suas prprias palavras: as escolas literrias so
verdadeiras cooperativas de consumo. s matricular-se... e
cozinhar (PATRCIO apud CORREIA, 1959/1960).
A singularidade de seus dramas, entretanto, no o levou
ao reconhecimento de seu valor, fosse pela crtica, fosse pelo
pblico, pois muitos falam do teatro portugus sem ao menos se
lembrarem que elas existem (RGIO apud CAMELO;
PECANTE, 1992, p. 119), o que, provavelmente, deveu-se, em
grande parte, a sua tendncia simbolista. Isso porque recorrente,
em quase toda a crtica teatral, que uma pea de teatro simbolista
no constituiria uma pea por excelncia, dado os propsitos do
vago, do sublime, do sinestsico, do sugestivo e do imaterial que a
norteiam. Agravo ainda exercido pela forma singular com que a
ao concebida na pea simbolista que, em tese, prope a sua
anulao, tal como se verifica, por exemplo, no drama esttico,
O marinheiro, de Fernando Pessoa.
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Em relao ao problema de recepo dos dramas de
Patrcio, outro fator complicador foi a sua expresso hbrida, em
que os seus dilogos so constitudos por versos que, por sua vez,
seguem os anseios da esttica simbolista. Mesmo nas peas Pedro,
o cru e Dinis e Isabel, nas quais o verso nem sempre predomina,
indubitavelmente expressam poesia.
A exemplo da complexidade resultante dessa dicotomia
prosa/poesia expressa na linguagem da pea D. Joo e a mscara,
verifica-se que, enquanto todo o dilogo entre as personagens se
apresenta em prosa, quando D. Joo e a Morte dialogam, as suas
falas se traduzem, inicialmente, em versos de rimas alternadas e,
depois, em versos de rimas paralelas, persistindo desta forma at
o final:
A MORTE Era eu que o teu tdio e a tua alma queria?...
D. JOO Falena da manh: eras Tu... Eu sabia... Tinhas de vir assim, mantilha de manola, Uma manh de Outono, em mscara sombria, Para eu te beijar, tens de ser espanhola! A MORTE H um instante s que tu esqueces: Primeiro beijo eu, e a seguir arrefeces... D. JOO certo... a conquista sou eu. A Morte D. Joo se D. Joo morreu. A MORTE Tens frio?
D. JOO Quero ri... quero rir... quero rir... e no rio. No penses um instante, oh! No, que tenho frio: Estou a arder, estou a arder, e estou a arder por Ti:
Mscara de Outono, meu amor, sorri... (Ibid., pp. 323-4)
Vale notar, ainda, que persiste nesta pea a preocupao
com a sonoridade como em O fim. Encontramos, por exemplo, a
assonncia do i (todos tnicos) marcando, alm da rima, a
cadncia e o ritmo nestes versos:
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(...) Eu sabia... Tinhas de vir assim, mantilha de manola, Uma manh de Outono, em mscara sombria.
E, juntamente com a assonncia do i, verifica-se a
aliterao do m e a assonncia do a:
(...)Eu sabia... Tinhas de vir assim, mantilha de manola, Uma manh de Outono, em mscara sombria, (...) (Ibid., p. 323-4)
Verifica-se, portanto, que o uso de figuras de efeitos
sonoros, como a aliterao e assonncia, marcante em todas as
falas em versos. Entretanto, no ltimo quadro do quarto ato, no
qual D. Joo, quase redimido, torna-se apenas Joo e a Morte,
Sror Morte, identificamos uma mudana na explorao desses
recursos sonoros. A fala de D. Joo se torna mais branda
resignada e isto se expressa sonoramente atravs do
predomnio de vogais semi-fechadas e fechadas em oposio a
uma reduo na frequncia de palavras cuja tonicidade recaia
justamente nas vogais abertas, o que, conjugada ao ritmo
decorrente do conjunto de tnicas dos versos e ao enjambement,
resulta num aceleramento do ritmo e da cadncia e, portanto,
num tom mais desesperado e clamoroso, tal como ilustra o trecho
abaixo:
D. JOO (falando Morte) A tua voz, que tem? ... Parece que desperta uma alameda de vises, entreaberta... E depois, ao calar-se, a quintessncia, a causa como entre acordes de rgo, numa pausa de tudo o que na vida, e sem saber, procuro, e vai enfim abrir como uma flor no escuro. Mscara sem sono, se tu vens, se tu vens nesta manh de Outono, pra me dizer enfim o sentido da vida, numa casa sem luz, h a Manh escondida, Doces, doces as mos, como de folhas mortas, Acordando a matilha e descerrando as portas... (Ibid., p. 326)
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Encontramos, desse modo, alm da presena de rimas
paralelas, proporcionando maior aproximao rtmica entre os
versos, as rimas internas entre versos contribuindo, tambm, para
este propsito. Por exemplo, entre o primeiro e o segundo verso
existe a aliterao do v (voz/vises), a assonncia do
(tem/entreaberta), a assonncia do e ao longo dos dois versos
(que/ parece/ desperta/ alameda/ de/ vises/ entreaberta) e o
enjambement (Parece que desperta / uma alameda de vises,
entreaberta). Desse conjunto de elementos presentes na
elaborao formal emergem, portanto, a sensao de acelerao
do ritmo dos versos e o tom de desespero que, por sua vez,
completa e refora o contedo expresso.
A mudana de tom e de ritmo a que nos referimos
anteriormente pode, ento, ser comprovada atravs da
comparao do trecho anterior com o que segue abaixo. Ou seja,
atravs da fala de D. Joo que, buscando a remisso de seus erros,
torna-se apenas Joo:
JOO (falando Soror Morte)
Tu que tantos difamam, e poucos, como eu, ajoelhados amam. Irm!... Deixa chamar-te. Imortal Bem Amada. Amendoeira de luz no caminho do Nada.
Soror... Por piedade. A noite vem j perto. Nem um boto de mirra em todo o meu deserto. A noite, a noite vem: feita de basalto, e j no ergo as mos, no posso, para o alto. (Ibid., p. 420)
Observa-se, assim, que, embora as rimas paralelas se
mantenham nos versos, agrupando-os dois a dois, as rimas
internas presentes no mais objetivam a conexo sonora entre
versos, mas se concentram ou na singularidade de cada verso, ou
no par de versos determinados pelas suas rimas finais:
Tu que tantos difamam, e poucos, como eu, ajoelhados amam.
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Neste par de versos determinado pelas rimas paralelas
(amam), verifica-se no primeiro a aliterao da consoante t
(tu/ tantos) e a assonncia da vogal nasalizada (tantos/
difamam), proporcionando a sua coeso sonora interna. No
segundo verso, a assonncia da vogal o (poucos/ como/
ajoelhados) garante a rima interna do verso. Percebe-se que,
embora seja identificada a assonncia da vogal nasalizada ,
promovendo a ligao sonora entre os dois versos, todos os
outros elementos sonoros descritos reforam certa independncia
sonora entre os versos. Ou seja, h uma independncia que vem
privilegiar o prolongamento sonoro de cada verso, o que, desse
modo, resulta num ritmo mais pausado em comparao com a
outra fala de D. Joo, anteriormente analisada.
preciso ainda ressaltar a presena de ditongos em
palavras como poucos, Deixa, Amendoeira, noite,
mos, feita e, tambm, aqueles que se formam na ligao de
slabas de diferentes palavras (comoeu, no segundo verso) e a
estratgica posio desses ditongos no interior dos versos,
proporcionando a sensao de alongamento do som, o que, por
sua vez, refora o tom de resignao, de quase orao.
Diferentemente da dicotomia na linguagem que se
constatou em O fim e em D. Joo e a mscara; em Pedro, o cru e Dinis
e Isabel verifica-se o dilogo em prosa, cuja complexidade se
depreende do conflito que se erige fundamentalmente atravs das
palavras. E, inevitavelmente, do qual se expressa a poesia2. Assim,
a tragdia da saudade, tal como o prprio Antnio Patrcio define
Pedro, o cru, constri-se dramaticamente atravs do verbo:
PRO COELHO (narrando a Pedro o momento do assassinato de Ins de Castro)
Foi quando nos olhamos sem falar, e como a pedra cai num poo em noite, a deciso suprema entrou em ns. (...). Era no Outono como agora. Vs lembrai-vos. Sabamos que ireis a montear,
2 A poesia a expresso natural dos mais violentos modos de emoo pessoal (MURRY apud MOISS, 1997, p. 77).
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e partimos, noite cerrada, para perto. El-Rei vosso pai, meu senhor, fazia d. (...) por duas ou trs vezes quis voltar. (...). Era o dever, o seu dever de rei, que o levava arrastos pela noite... (...) Por fim, chegamos. (...). A manh tinha de vir: e veio!... Da a pouco, os vossos ces latiram. Soou ento uma trompa de monteiro, mas baixo, como quem chamasse a medo. Houve um rumor de porta sob o alpendre... reis vs, meu senhor, que eis montear... (...). Vi ento claramente o vosso vulto. (...). Depois Ela... Foi para vs: beijou-vos: no sei o que vos disse...e ouvi-vos rir... Oh! O vosso rir, o vosso rir na inocncia da manh! (...). Descestes. Ela seguia-vos com os olhos, debruada. (...). Ela tinha a mo por sobre os olhos, acenou-vos um adeus lento, (...). Chamei por vosso pai. Disse-lhe baixo: a hora, meu senhor. Ele hesitava, branco, cor-de-cera, encostado a um tronco de oliveira, que era mesmo da cor de suas cs... (...). Demos a volta ao muro do pomar, e eu empurrei a porta a porta que vs meu senhor, tnheis deixado entreaberta (...). Ela estava ainda sob o alpendre, e olhava do lado do Mondego. Voltou-se ento: decerto ouvira os passos... e toda a face lhe embranqueceu de tal maneira, que para que eu no quedasse de piedade, foi meu senhor, lembrar-me de que amava a minha terra (...). Vi que queria gritar, mas no pode. Ainda olhou num instinto de defesa, para o lado por onde vs sumistes... Quando subi a escada, vi-a abalar com gestos de agonia, para a alcova de vossos filhos. (...). Parecia que um vento de terror a enovelava, assim, movendo os braos como asas, com trs vidas pequeninas a cerc-la, (...). E cravara em vosso pai os olhos! (...). Ele tapara os olhos com a mo para no ver os dela, nem os netos; e com uma voz to branca como o rosto, ela disse ao Infante D. Dinis: Olha o av!... (...). Eu desnudei ento a minha espada. Avancei para ela. Nem fugiu. Estava sem alma j. (...) Lembro-me que a vi cair ensangentada, e que ouvi, gelado de estupor, vossa trompa em caa muito ao longe, num halali que em soou em dobre... PEDRO, como um possesso, em gritos de delrio O ucho!... Ide chamar-me o ucho!... Vinagre e azeite para este coelho! (O carrasco, vestido de escarlate, surge porta. Pedro aponta-lho) (PATRCIO, 1982, p. 90-3)
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Atravs desse trecho do dilogo entre Pro Coelho e Pedro,
por exemplo, percebe-se que a poesia no necessita do verso para
se expressar. E, embora ainda constatemos a presena menos
frequente de versos inseridos no dilogo da pea, eles j no
revelam o mesmo labor formal que se verificou nas peas
anteriormente analisadas. H, pois, apenas dois pequenos
momentos nos quais ocorre essa insero de versos. No primeiro,
Afonso trova a pedido de Pedro:
Sou teu, tu s minha. Quem morre no parte; Nem Deus nem a Morte Puderam levar-te.
No segundo momento, a Primeira Freira cantarola, em
versos, referindo-se forma como outra Irm costumava faz-lo
quando viva:
Sabedoria, sabedoria, sabedoria de rouxinol: cantar noite, dormir de dia, fugir ao sol. (Ibid., p. 101)
Verifica-se, todavia, que, nesses dois momentos, esses
versos no apresentam desdobramento significativo para o
desenvolvimento do drama. Na verdade, acham-se praticamente
soltos, o que poderia revelar, por sua vez, uma inexpresso da
forma exterior em detrimento de uma interior que se constri
tragicamente ao longo de toda a pea, tal como vimos no trecho
do dilogo entre Pero Coelho e Pedro. Essa supremacia da forma
interior sobre a exterior parece transparecer certo abandono do
autor (Patrcio) por uma exclusiva expresso potica atravs de
versos, revelando nesta pea a preferncia pela frma da prosa
no lugar do verso para expressar poesia, o que, sem dvida,
resultou em maior complexidade da linguagem: o dilogo
dramtico da pea constitui prosa ou poesia? Prosa potica?
Drama lrico?
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Certamente que uma tentativa de classificao do dilogo
em Pedro, o cru, tendo em vista critrios estritamente formais,
revelar-se-ia ineficaz. Isso porque, apesar da ausncia do verso,
verifica-se, principalmente nas falas de Pedro, a expresso de
emoes das mais profundas, revelando grande tenso e angstia
momentos de puro devaneio:
PEDRO (em Alcobaa, falando com o cadver, madrugada que antecede coroao e ao beija-mo de Ins de Castro) a nOssa hOra, InS... EStamOS sozinhOS. EstS bem aSSIM!? Tu ouve-me dormINdo. Eu fico aqui tUa cabeceira. No bUlas, meu amor, dorme assim queda como a Tua esTTua ali, sobre o Teu Tmulo... Esta a casa De Deus. Deus est connosco. OuveS OS SinOS repicar!? Toca AnoivAdo. AS nOSSAS bodAS AgOrA So eternAS. Sinto nA minha Alma A tua Alma como a gua de uma fonte noutra fonte, como a luz na luz, e Deus em Deus... SinTo-Te TanTo, quE TE pErco em mim. Aqui me tENS, InS: sou o teu Pedro. O que ele tem, o que ele TEm para TE conTar!... Eu bEm sEi quE TU sabEs... sabEs TUdo. Os teus OUVidos, na Morte, OUVEm mElhor. OUViram o dEsEspeErO dO tEu PEdrO uma noitE dE pEdra sobrE Esta AlmA OUViram AS suAS lgrimAS cAlAdAS: OUViram toda, toda a sua dor. (...) Oh! Os meus dias... os meus longos dias longos dIas de hIena trIste, a Sonhar Sangue... O teu Pedro quer mostrar-tos para que os beije: e sero puros na Saudade, como tu. MIl vezes, MInha Ins, MIl vezes sofrI na mInha caRne a tua moRte. Via-o sempre o espao era para ele o teu corpo de amor, to grande e belo. Deixei de ver o sol: via-o a ele. Vivia com teu cOrpO na memria cOmO um lObO nO fOjO cOm a presa. (...). VIvI um ano assIm, do teu martrIo. O teu sangue, aMor, era o Meu vinho. A tua Morte, Ins, foi o Meu po. Fugia ao sol: a luz envenenava-me. Queria estar s, bem s, Murado em Mim: cavava no silncio um fojo escuro para me podeR cevaR na minha doR. O Meu crnio era uMa cMara de TorTura: viviam l um carrASco e oS aSSaSSinoS.(...). (Ibid., p. 166-7)3
Percebe-se atravs das marcaes, apesar da ausncia do
verso, um exaustivo trabalho sonoro resultante das aliteraes,
assonncias e repeties que ocorrem ao longo de todo o trecho.
3 As marcaes em maisculas indicam os sons expressivos dos recursos sonoros utilizados: aliterao, assonncia, repeties, rimas.
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Ou seja, mais uma vez, a forma conjugada ao contedo expresso
vem expressar poesia.
importante ressaltar, ainda, que ao longo do extenso
devaneio que constitui a fala de Pedro, quando se dirige Ins
morta, verifica-se um dualismo quanto pessoa do discurso. Na
realidade, expressa-se na forma a prpria ciso da psique de Pedro
que, mergulhado no seu sofrimento, desdobra-se em dois: o
Pedro sem Ins a hiena que o cio ensandeceu, o rei coveiro de
chicote e coroa (Ibid., p. 158) ; e o Pedro de Ins Aqui me
tens Ins: sou o teu Pedro (Ibid., p. 165). No trecho abaixo,
podemos verificar, assim, o dualismo que se expressa no seu
discurso, o qual oscila ora concordando em primeira pessoa, ora
em terceira pessoa:
Aqui me tens Ins: sou o teu Pedro. O que ele tem, o que ele tem para te contar! (...). Os teus ouvidos, na Morte, ouvem melhor. Ouviram o desespero do teu Pedro. (...). Ouviram toda a sua dor. (...). Os meus dias... os meus longos dias dias de hiena triste, a sonhar sangue... O teu Pedro quer mostrar-tos para que os beijes (...). Mil vezes, mil vezes sofri na minha carne a tua morte. (...) E o carrasco era eu, era o teu Pedro. (...) E s vezes nas palmas destas mos, quase sentia a polpa dos seus seios!... Era um lobo o teu Pedro. (Ibid., p. 165-7)
Em seguida, o seu desvario encontra o desfecho na fuso
de Pedro e Ins que ocorre na Saudade.
PEDRO, dirigindo-se ao cadver de Ins: E eu vi a Saudade ao p de mim. Nunca mais me deixou: vivo com ela. Fez-se em mim carne e sangue. Fez-se Ins. (...). Por isso eu sei a morte como tu. Sou o homem que viveu a vida e a morte: sou o homem-Saudade, o rei-Saudade. (Ibid., p. 167)
Assim, atravs desse encontro simblico de Ins e Pedro,
ocorre a reconstituio de sua psique, desfazendo-se a ciso
Pedro sem Ins / Pedro de Ins:
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(...). Onde estou eu?... No sei. Estou s contigo. Respiro o teu olhar: luz de luz.. o ar da minha alma o teu olhar. E Alcobaa!?... A minha coroa de oiro!?... Alcobaa onde est!?... as altas naves!? E os sinos?... a corte!? Os sinos a baliar no ar as minhas bodas!?... Ainda os oio... ainda... mas to longe... o princpio e o fim de tudo o nosso amor. Os teus seios uniram-se: ei-lo o mundo!... Oio no teu silncio cotovias... O som e a luz casaram-se, fundiram-se: so o ar que eu respiro... o nosso ar... Oh! Asas... asas... dem-me asas//1... um abismo de estrelas este amor... faz-me medo. um turbilho de estrelas... Ins!... Ins!... Eu tenho medo... Sinto o vento de luz da eternidade... (Ibid.: p. 169)
Se em Pedro, o cru, em D. Joo e a mscara e em O fim
encontramos o dualismo poesia/prosa, que se expressava
explicitamente na linguagem atravs da ausncia/presena do
verso e de uma prosa predominantemente potica, em Dinis e
Isabel j no se verifica a presena do verso. Todo o dilogo se
elabora em prosa, entretanto, expressa poesia como nas demais
peas.
Consistindo, pois, o teatro em uma frma literria
pertencente prosa e diante do carter singularmente hbrido que
apresenta a linguagem dos textos teatrais de Patrcio, certamente,
todos os seus dramas poderiam levar o rtulo de prosa potica4.
Entretanto, Dinis e Isabel, por tratar-se, segundo definio do
prprio Patrcio, de um conto de vitral em cinco atos, um
Conto de Primavera, por que a necessidade da roupagem
teatral? a questo que de imediato poderamos nos colocar. O
prprio Patrcio responde ao que, de incio, poderia consistir num
hibridismo inconcilivel de gneros. Segundo ele, trata-se de
uma pequena tragdia, toda ntima, sem as indicaes de
costumes ou cenrios mais que as estritamente indispensveis
4 To profundamente se operou a simbiose dos dois gneros (poesia e prosa) ao longo da hegemonia simbolista que nenhuma obra em prosa escapou do seu fascnio(...) (MOISS, 1997, p. 22).
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para situar um drama de conscincias. (...) Chamei-lhe (...) Conto de
Primavera, porque me pareceu resumir assim a inteno toda lrica
do conto: dar, dramatizada, uma viso de Livro de Horas
(PATRCIO, 1982, p. 180. Grifo meu).
Da a sua linguagem poder ser classificada, sem dvida,
como prosa potica. Trata-se de um dilogo dramtico em prosa,
mas que, pela musicalidade e pelo contedo expresso, veicula
poesia, como se pode comprovar no trecho abaixo:
PRIMEIRO LEPROSO, tocando as folhas da figueira Olha a figueira. Como est to tenra!... E no tem nojo v posso beij-la. D-se a um gafo como a um so: boa, boa. H poucos dias toda encarquilhada; agora apetece mord-la de to fresca... (Ibid., p. 183)
Assim, embora no identifiquemos explicitamente o
dualismo verso/prosa no dilogo dramtico de Dinis e Isabel,
continua pertinente a sua classificao em prosa potica, visto
permanecer o dualismo poesia/prosa, tal como expressa o trecho
acima destacado. Ou seja, se no drama D. Joo e a mscara
verificamos que a mudana na linguagem (verso/prosa) marcava,
entre outras coisas, uma distino de personagem, uma vez que
apenas quando D. Joo se dirigia Morte que o dilogo se
estruturava em versos; em Dinis e Isabel verifica-se um dualismo
no apenas formal, mas tambm semntico. Depreendendo-se,
deste modo, a tenso que se constri entre um homem, um rei
plantador de pinheiros, e uma mulher que se elevou dimenso
de uma Santa. Trata-se, pois, da histria de um homem que amou
uma Santa e que, portanto, perdeu-a para Deus:
DINIS, com amargura baixo Mesmo com os teus seios nestas mos, no h asa mais longe no cu alto. ISABEL No sou eu, Dinis amigo, vossa?... DINIS Sois mais da erva que pisais a medo. Sois de Deus, de todos. No sois minha.
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ISABEL, em eco, a voz velada No sou vossa, meu Dinis?... no sou?... DINIS Nem que quissseis, Isabel. Era impossvel. No sois, no sois e nunca fostes minha. Vs no vos pertenceis, sois toda dEle. (...) O teu desejo tem raiz no cu. No tem raiz na terra como o meu. irmo das rosas brancas5 que me matam... em tudo assim, amiga minha, em tudo. Pra ti as rvores so braos que te apontam as estrelas. Pra mim so criaturas verdes. O meu sangue irmo da sua seiva. Pra mim no h cheiro melhor do que o da terra. Gosto de a esfarelar entre os meus dedos. Tu, numa fossa de leprosos, aspiras um aroma de aucenas que nos cristais do ar abrem sem caule... Como hs de beijar a minha carne? S podendo sentir em cada poro a essncia de dor que te fascina. No, no; no a mim que beijas.... (Ibid., p. 237-8)
Percebe-se, no trecho, novamente, a dicotomia expressa
na linguagem, atravs da oposio Dinis versus Isabel que, por sua
vez, revela a oposio matria versus esprito, imanncia versus
transcendncia, respectivamente. Da as rvores serem para Dinis
apenas criaturas verdes com o caule cravado na terra e para
Isabel, braos que apontam as estrelas, simbolizando a sua
ligao com o Divino e, portanto, expressando a idia de
transcendncia.
Vale ressaltar, entretanto, que nesse trecho a poesia
revelada decorre no apenas de um expediente semntico, mas
tambm da sua forma. Embora os recursos sonoros se encontrem
trabalhados de modo mais sutil, no se pode desprezar a presena
da musicalidade no texto.
Uma certa homogeneidade da linguagem a que
presenciamos , pois, apenas aparente, uma vez que a prosa to
somente epidrmica. Isso porque, se decompusermos as falas que,
aparentemente, estruturam-se em prosa, verificaremos que na
5 Dinis se refere s rosas brancas como expresso de um mal, porque h um momento no qual Isabel saa com pes escondidos para entreg-los aos mendigos e Dinis a questiona na tentativa de impedi-la, ento, quando ordena Isabel que mostre o que trazia escondido, ela abre os braos e caem rosas brancas, no pes: eis o milagre das rosas.
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verdade elas se constituem de versos justapostos, compreendendo
inclusive estruturas rtmicas, das quais, alis, resulta a
musicalidade dos dilogos, tal como se comprova nesta mesma
fala de Dinis:
O teu desejo tem raiz no cu. No tem raiz na terra como o meu. irmo das rosas brancas que me matam. em tudo assim, amiga minha, em tudo. Pra ti as rvores so braos que te apontam as estrelas. Pra mim so criaturas verdes. O meu sangue irmo da sua seiva. Pra mim no h cheiro melhor do que o da terra. Gosto de a esfarelar entre os meus dedos. Tu, numa fossa de leprosos, aspiras um aroma de aucenas que nos cristais do ar abrem sem caule... Como hs de beijar a minha carne? S podendo sentir em cada poro a essncia de dor que te fascina. No, no; no a mim que beijas.
Decompondo-a, ento, temos:
O/ TEU/ de/se/jo/ TEM/ ra/iz/ no/ Cu/ - decasslabo herico 1 2 3 4 5 6 7 8 9 10
No/ TEM/ ra/IZ / na/ TER/ra/ co/mo o/ MEu/ (decasslabo herico) 1 2 3 4 5 6 7 8 9 10
ir/MO/ das/ RO/sas/ BRAN/cas/ que/ me/ MA/tam (decasslabo herico) 1 2 3 4 5 6 7 8 9 10
/ em/ tu/do as/SIM,/ a/mi/ga/ mi/nha/, em/ TU/do (alexandrino) 1 2 3 4 5 6 7 8 9 10 11 12
Pra/ ti/ as/ R/vo/res/ so/ BRA/os/ QUE (decasslabo sfico) 1 2 3 4 5 6 7 8 9 10
te a/pon/tam/ as/ es/TRE/las 1 2 3 4 5 6
Pra/ mim/ so/ cri/a/TU/ras/ ver/des. 1 2 3 4 5 6 7 8
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O/ meu/ san/gue / ir/MO/ da/ su/a/ SEI/va (decasslabo herico) 1 2 3 4 5 6 7 8 9 10 Pra/ mim/ no/ H/ chei/ro/ me/LHOR/ do/ que o/ da/ TEr/ra (alexandrino) 1 2 3 4 5 6 7 8 9 10 11 12 Gos/to/ de a es/fa/re/LAR/ en/tre os/ meus/ DE/dos. (decasslabo herico) 1 2 3 4 5 6 7 8 9 10 Tu,/ nu/ma/ FOs/sa/ de/ le/PRO/sos, as/PI/ras (decasslabo sfico) 1 2 3 4 5 6 7 8 9 10
Verifica-se que, para uma anlise satisfatria da linguagem
dos dramas de Antnio Patrcio, necessrio levar em conta uma
distino entre verso e poesia, no tomando o verso
simplesmente como sinnimo de poesia. Este equvoco tem sido
recorrente porque, h milnios, tem-se buscado a distino entre
prosa e poesia como algo exterior, isto , formal, tal como
propunha o linguista Karl Vossler (apud MOISS, 1997, p. 76).
Para ele, a poesia coincidiria com uma aparncia simtrica e a
prosa, com uma aparncia assimtrica.
Assim, partindo desse critrio, comeou-se a identificar a
poesia com o verso, o que se afigurou, todavia, uma viso
superficial do problema. Entretanto, percebendo a precariedade
do critrio, o prprio linguista se antecipou completando que
atrs da relao externa sem dvida h de esconder-se outra
interna. Sob essa nova perspectiva, seria possvel, ento,
estabelecer uma distino atravs da forma interior e a forma
passaria a ser encarada de modo adequado, como estrutura, no
como mera aparncia grfica, ou seja, a discriminao
epidrmica cede lugar a uma distino profunda, embora de
cunho formalista (Ibid., 76).
Focalizando-se, portanto, uma forma interior, a esta
corresponderia uma certa temperatura ou tnus, decorrente
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Simone Nacaguma
justamente da presena de uma emoo humana nesse tipo de
texto e que o distinguiria, assim, enquanto poesia. Ora, sob essa
perspectiva, no h do que se duvidar quanto marcante presena
potica que se verifica em todas as peas de Antnio Patrcio, cuja
dramaticidade se exprime justamente em conflitos interiores s
personagens.
Vale ressaltar, ainda, que, se o objeto da poesia o reino
infinito do esprito (Bonnet apud Moiss, 1997, p. 84), reino este
que a expresso do eu, temos ento que a poesia a
expresso do eu pela palavra. De acordo com essa distino
entre prosa e poesia, no se pode contestar a sua evidncia nos
versos que compem a obra dramtica de Patrcio, tal como
pudemos entrever nos trechos anteriormente destacados e
analisados.
Verifica-se, assim, que todo o dilogo que se elabora nas
peas de Patrcio seja em prosa, seja em verso apresenta um
forte tom potico, o que j descaracterizaria, deste modo, qualquer
tentativa de justificar a presena potica levando-se em conta
apenas o uso do verso. Ou seja, trata-se de textos teatrais, os quais
se caracterizam como narrativa dialogada6 e se apresentam ora em
forma de poema, ora em forma de prosa, mas indubitavelmente
identifica-se forte presena potica tanto no seu aspecto formal
quanto semntico.
Em decorrncia, portanto, desse hibridismo (teatro/prosa
e verso/poesia), encontramos na crtica diferentes abordagens da
obra dramtica de Patrcio, ora classificando-as como poesia
dramtica, ora como drama potico7, comprovando a
complexidade de sua estrutura tanto exterior como interior. Ou
seja, a complexidade que se constata na linguagem, decorrente
6 Massaud Moiss (Op. cit., pp. 124-130) caracteriza todo texto teatral como narrativa dialogada. 7 Consta do acervo da Biblioteca Nacional de Lisboa teses acadmicas buscando uma classificao satisfatria acerca do gnero no qual se enquadraria a produo dramtica de Patrcio, como o trabalho de Alexandra Maria Fernandes Silva, intitulado Poesia e Teatralidade, Universidade de Coimbra, 1996; alm do conhecido texto de Manuel Tanger Correia, Antnio Patrcio, poeta trgico, Lisboa, 1960.
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desse hibridismo de gneros, faz com que todos os outros
elementos (ao, espao, tempo e personagens) se encontrem a
ela submetidos, o que, por sua vez, faz com que na anlise de
cada um desses elementos sejam os demais naturalmente
evocados.
Vale dizer, portanto, que abordar a linguagem no texto
teatral, em especial, traduz-se numa complexa equao, uma vez
que nela que se espelham as suas intrnsecas dicotomias. A
primeira dicotomia inerente ao texto teatral e que se revela na
linguagem diz respeito prpria natureza do texto teatral (teatro
versus literatura), visto que, embora em tese ele se destine
representao, a linguagem nele empregada segue padres
literrios. Ou seja, o texto dramtico se alimenta da linguagem
literria para se erigir como espetculo (MOISS, Op. cit., p. 124-
5): enquanto as rubricas indicaes de cenrio ou de fala
pertencem ao espetculo, visto interessarem apenas ao encenador;
ao leitor e ao crtico literrio restam exatamente aquilo que, em
teoria, deveria lhes interessar, ou seja, a sequncia de dilogos.
Assim, como arte do dilogo, o teatro distingue-se como uma
narrativa dialogada, uma vez que por meio do dilogo que um
conflito se constri e se manifesta numa trama ou enredo, com
incio, meio e fim (Ibid., p. 125). Chegamos, desse modo,
segunda dicotomia do texto teatral revelada pela linguagem:
como pode ser narrativa, portanto, exibir os componentes
adequados, e ser to-somente dialogada? (Ibid., p. 126)
Verifica-se, portanto, que da primeira dicotomia surge a
segunda. Entretanto, preciso pontuar corretamente as diferentes
naturezas que o dilogo do texto dramtico abriga: como dilogo
literrio deve bastar-se em si mesmo, na medida em que remete
para a personagem que o enuncia, por sua vez existente como ser
fictcio; entretanto, o dilogo dramtico s se realiza quando
ganha a voz e a interpretao do ator, uma vez que o dramaturgo
visa encenao do texto, supondo no apenas a leitura dos
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dilogos, mas a sua verbalizao em voz alta e dirigida a um
pblico. (Ibid., p. 127)
Colocadas essas duas dicotomias inerentes a todo texto
teatral, resta-nos ainda apontar uma terceira que se configura
exclusivamente no texto teatral simbolista e que, como ocorre
com as anteriores arroladas, expressa-se pela linguagem. Isso
porque, como se sabe, o teatro simbolista vem explicitamente
ditar a supremacia do texto, afirmando-se, sobretudo, atravs das
palavras, como ressalta Mallarm: a pea simbolista deve ser lida
sob a luz de uma lmpada solitria (apud BARATA, 1991, p.
307). Deve assim ser lida, porque os elementos de que lanam
mos os simbolistas no pretendem uma representao concreta,
embora no signifique, todavia, que no visem a uma forma de
representao. Ou ainda, como ressalta L. F. Rebello (1968), h um
teatro do verbo e um teatro do gesto.
Assim, a preferncia simbolista por um teatro esttico,
no qual se tem mais a ilustrao de uma idia que uma ao
efetiva, no resulta na impossibilidade de consenso entre o
Simbolismo e o teatro. H, pois, no teatro simbolista um conflito
que se expressa na palavra, resultando numa espetacularidade verbal
(Ibid., p. 80).
E como espetculo verbal, a que visaria o dilogo no
teatro simbolista? Ora, como texto eminentemente literrio que ,
visa leitura (lembrando as palavras de Mallarm) e to-somente
leitura! Se isto verdade, ento, qual seria a razo para as
indicaes cnicas? A sua razo reside, talvez, na existncia de
uma proposta de encenao, mas no uma encenao de fato.
Pretende, isto sim, como simbolista que , uma encenao mental,
singular, nica em cada leitor, o qual ainda se converte, ao mesmo
tempo, em encenador e espectador de sua projeo mental. Sob
essa perspectiva, o teatro simbolista prope, ento, uma inverso
naquela mxima de todo texto teatral ser o mximo fora (no
palco) e o mnimo quando em si (o texto) (MOISS, 1997, p.
128) impondo, assim, o contrrio: o texto teatral simbolista
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busca o mximo quando em si e quase a sua nulidade fora (no
palco).
Dessa forma, nessa proposta de encenao internalizada, o
leitor/espectador deve lanar mo dos seus recursos imagticos,
tal como o faz o leitor da poesia simbolista, buscando nas
camadas mais profundas da conscincia (e do inconsciente) os
elementos necessrios leitura/encenao do drama simbolista.
Dessa busca, emergem, portanto, imagens e elementos
arquetpicos que, por sua vez, poderiam explicar, por exemplo, a
preferncia de Patrcio por personagens mticas. Na verdade, o
dramaturgo simbolista parece brincar de demiurgo, mas no na
esfera do mundo material. Sua pretenso est alm, remontando
todo o mundo interior do Homem, sua conscincia e,
principalmente, seu inconsciente.
Assim sendo, poder-se-ia questionar que, se o autor
simbolista, entregando-se a um desregramento, vai buscar nas
camadas mais recnditas do ser a conscincia primitiva, ocultada
pela civilizao, a conscincia anterior ao logos8, como ento
conceber a presena de uma narrativa dialogada expressa pela
linguagem? Sendo a narrativa, pois, elemento intrinsecamente
organizado segundo uma ordem da conscincia?
Na realidade, a narrativa que se verifica nas peas de
Patrcio serve apenas de instrumento para que o mito seja
recuperado. Trata-se da narrativa mtica: verifica-se a existncia
de uma estrutura mtica introjetada na linguagem. Estrutura esta
que seria responsvel pelo estabelecimento de um movimento
na linguagem, do que se depreende, por sua vez, a ao expressa
pela palavra, pelo mito, pelos arqutipos.
Temos, desse modo, que da anlise da linguagem,
inevitavelmente, emergem a ao, as personagens, o tempo e o
espao, na medida em que todos esses elementos se constroem
8 lvaro Cardoso Gomes (1985, p. 18) explica: O desregramento a que se entrega o poeta uma tentativa de recuperar a conscincia primitiva, que a civilizao ocultou, no instante em que instituiu a fatal e definitiva separao entre o homem e a Natureza. Ora, esta conscincia anterior ao logos que possibilitou ao homem decifrar os smbolos do Universo.
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atravs da linguagem. E, ainda, devido proposta da esttica
simbolista, que tem como ncleo a inovao da linguagem e da
expresso, a linguagem ganha maior complexidade, visto amarrar
em sua prpria constituio todos esses elementos. Decorrendo
justamente disso a grande dificuldade em se tentar analisar cada
elemento em separado e, por fim, resultando numa anlise que,
necessariamente, evoca em cada item a presena de todos os
outros elementos.
BIBLIOGRAFIA CITADA:
CAMELO, Jos Antnio; PECANTE, Maria Helena. Dom Joo e a mscara: textos e notas de leitura. Porto, Porto Editora, 1992. CORREIA, Manuel Tnger. Antnio Patricio (poeta trgico). Separata da Revista Occidente, vols. LVII e LVIII, Lisboa, 1959/60. BARATA, Jos Oliveira. Histria do teatro portugus. Lisboa, Universidade Aberta, 1991. GOMES, lvaro Cardoso. A esttica simbolista. So Paulo, Cultrix, 1985. MOISS, Massaud. A criao literria: prosa II. 19. ed. So Paulo, 1997. PATRCIO, Antnio. Teatro completo. Edio 147, Lisboa, Assrio e Alvim, 1982. PICCHIO, Luciana Stegagno. Histria do teatro portugus. Lisboa, Portuglia, 1969. REBELLO, Luiz Francisco. Histria do teatro portugus. Coleo Saber. Lisboa, Europa-Amrica, 1968. RGIO, Jos. Sobre o Teatro de Antnio patrcio. In: Estrada larga, vol. II. Porto, s/d. RODRIGUES, Urbano Tavares. O mito de D. Juan e do donjuanismo em Portugal. Lisboa, 1960. MURRY, J. Middletton. El estilo literrio. Tr. Mexiana. Mxico-Buenos Aires, Fondo de Cultura Econmica, 1951.
Abstract: By an analysis of Antonio Patricios dramas and their language, this article intends to discuss the existence or not of symbolist drama in his playwriting. The uniqueness of his dramas is based in the tension between prose and poesy; this feature, instead of invalidating the existence of a symbolist drama, consists in one of the fundamental elements in which symbolism finds a sustenance possibility, by it's verbal spetacularity.
Keywords: portuguese drama; symbolism; decadent art; Antonio Patrcio.