Psicologia: questões contemporâneas - Vitória: EDUFES - 1999 1 Subjetividades contemporâneas 1 Leila Domingues Machado 2 Introdução A noção de subjetividade que colocamos em discussão não está referida às concepções de identidade, de estrutura psíquica ou de personalidade, ou seja, não se trata de uma palavra mais atual para dizer a mesma coisa. Trabalharemos a partir de uma idéia de subjetividade que vem questionar a presença de uma interioridade em separado de uma exterioridade, tais como as polarizações clássicas: sujeito e objeto, consciência e mundo, corpo e alma ou individual e social. Pois mesmo que a separação entre o pólo interior e o pólo exterior conceba uma relação entre ambos, ainda há a manutenção de um binarismo que pressupõe a determinação de um pólo sobre o outro. Concepção que utiliza a referência de causa-efeito e atualiza a perspectiva metafísica ao localizar em um dos pólos o lugar da verdade. Atualmente falamos em subjetividades intimistas, ligadas à esfera privada, e temos para com essa forma uma relação de verdade que nos faz acreditar que sempre fomos assim e, por conseguinte, vamos continuar sendo. Há uma crença de que a “natureza” da subjetividade estaria referida à interioridade, à intimidade ou à idiossincrasia e, assim, tratamos uma forma- 1 Artigo revisto e ampliado. Publicação original: MACHADO, Leila Domingues. Subjetividades Contemporâneas. In: BARROS, Mª Elizabeth Barros (org.) Psicologia: questões contemporâneas. Vitória: Edufes, 1999. 2 Professora do Departamento de Psicologia e do Programa de Pós-Graduação Psicologia Institucional da Universidade Federal do Espírito Santo.
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A noção de subjetividade que colocamos em discussão não está
referida às concepções de identidade, de estrutura psíquica ou de
personalidade, ou seja, não se trata de uma palavra mais atual para dizer a
mesma coisa. Trabalharemos a partir de uma idéia de subjetividade que vem
questionar a presença de uma interioridade em separado de uma
exterioridade, tais como as polarizações clássicas: sujeito e objeto,
consciência e mundo, corpo e alma ou individual e social. Pois mesmo que a
separação entre o pólo interior e o pólo exterior conceba uma relação entre
ambos, ainda há a manutenção de um binarismo que pressupõe a
determinação de um pólo sobre o outro. Concepção que utiliza a referência de
causa-efeito e atualiza a perspectiva metafísica ao localizar em um dos pólos o
lugar da verdade.
Atualmente falamos em subjetividades intimistas, ligadas à esfera
privada, e temos para com essa forma uma relação de verdade que nos faz
acreditar que sempre fomos assim e, por conseguinte, vamos continuar sendo.
Há uma crença de que a “natureza” da subjetividade estaria referida à
interioridade, à intimidade ou à idiossincrasia e, assim, tratamos uma forma-
1 Artigo revisto e ampliado. Publicação original: MACHADO, Leila Domingues. Subjetividades Contemporâneas. In: BARROS, Mª Elizabeth Barros (org.) Psicologia: questões contemporâneas . Vitória: Edufes, 1999. 2 Professora do Departamento de Psicologia e do Programa de Pós-Graduação Psicologia Institucional da Universidade Federal do Espírito Santo.
A crise dos espaços fechados - como a escola, a prisão ou os hospitais
psiquiátricos - também pode ser percebida no Brasil, contudo, misturamos de
uma forma específica exercícios de poder que evidenciam soberania, disciplina
e gestão da vida. As formas de controle constroem modelos de espaço-tempo
que da mesma forma que impõe limites e dizem não, produzem desejos e são
afirmativas. Embora não possamos negar a intensidade do biopoder entre nós,
também não podemos esquecer que nos trópicos promovemos coquetéis
bastante diversos e até considerados exóticos para os pensadores do velho
mundo.
Atravessado pela aceleração vive-se os processos de
desterritorialização4 como falta de territórios, contudo, muitas vezes, o que
ocorre é uma dificuldade de criação de sentidos e, com isso, uma dificuldade
na composição de territórios.5 Quando a desterritorialização é por demais
brutal, podem não ocorrer agenciamentos de subjetivação ou a configuração
de suportes expressivos para os materiais existenciais descorporificados.
Fazendo com que permaneçam passivos ou à deriva e percam a possibilidade
de constituírem uma consistência (ROLNIK, 1989). Assim, prisioneiros da idéia
de limite e de ordem, nós construímos barreiras para impedir a avalanche das
transformações. Fixamos-nos no conhecido e conferimos sentidos
manufaturados ao que nos pareça sem sentido. Movidos pelo consumo,
desejamos ter tudo e não nos afetarmos com nada. Desejamos desejar - nas
formas-desejo capitalistas - porque o verbo é infinito. Seria como fazer sexo
pela internet: sem cheiro, sem cor, sem sabor, sem contato e sem sofrimento?
4 O processo de desterritorialização é um movimento de destruição dos territórios constituídos,
podendo desdobra-se em processos de territorialização, onde novos territórios provisórios seriam inventados, ou em processos de reterritorialização, onde o processo de desterritorialização é capturado e em lugar da invenção de outros territórios teríamos a recomposição de territórios vinculados à ordem de produção capitalística. Os territórios se compõem de materiais existenciais, como comportamentos, valores, relações sociais, etc. Os territórios e as desterritorializações fazem parte e produzem formas de subjetividade. O que não quer dizer que o território seja uma identidade e que cada um tenha o seu. Muitos e variados territórios compõe nossa existência e eles podem ter sido produzidos ou não a partir da perspectiva de personalidade. Os territórios são organizações de materiais de expressão históricos.
nossa comédia da vida privada: se o ultraje é a rigor ou não, eu me amo e não
posso mais viver sem mim. Parte dos rituais que compõe o culto do interior na
atualidade. O problema é que naturalizamos determinadas concepções de
desejo e de subjetividade. Acreditamos que sempre foi, é e será assim.
Quando uma visão crítica é lançada sob tais aspectos produz-se, muitas
vezes, um sentimento de que não tem saída, é tudo grande demais, longe
demais e não podemos alcançar. O que pode se configurar em sentimentos de
descrédito e cansaço promovendo aceitações incondicionais. Diante do “que
não tem remédio, remediado está”, nos restaria cruzar os braços e aderir a
saga da “privatização” desenfreada.
Na atualidade, ser yuppie coincide com os valores massificados, nos faz
estar na moda, nos oferta territórios padronizados e autenticados com o selo
do sucesso, nos coloca na crista da onda do consumo.7 Deixar-se afetar pelo
estranho, pelo inatual, não nos confere certezas. Muitas vezes nos parece
mais confortável a adesão a uma subjetividade serializada. Mas também nos
sentimos desconfortáveis no reino da falta-consumo. “A época contemporânea,
exacerbando a produção de bens materiais e imateriais em detrimento da
consistência de territórios existenciais individuais e de grupo, engendrou um
imenso vazio na subjetividade que tende a se tornar cada vez mais absurda e
sem recursos”. (GUATTARI, 1990, p. 30). Desta forma, seria preciso uma
reinvenção cotidiana da existência, uma luta incansável pela não-captura, uma
curiosidade ilimitada pela vida, por suas cores, por seus cheiros, por seus
sabores, por suas densidades intensivas.
O contemporâneo, neste sentido, não se configuraria como uma via de
mão única, existem as pluralidades, as diferenças, as fragmentações. Contudo,
7 Suely Rolnik utiliza as imagens do yuppie e do antropófago para falar de formas
diferenciadas e que estariam presentes na atualidade para lidar com a dispersão, com o fragmentado, com o pluralismo, com a velocidade, com o consumo, com o descartável, com a mídia, etc. O que tenta mostrar é que o contemporâneo em si não significa um processo de adesão ou de contestação, de transformação ou de submissão, do mal ou do bem. É preciso pensar como cada época oferece todo um repertório de materiais de expressão que podem ser utilizados e recombinados de ilimitadas formas. O importante é efetuarmos movimentos que escapem à captura dos exercícios de poder que visam a dominação ou a massificação.
o plural ou a “diferença” podem estar a serviço da manutenção de territórios-
modelo. As diferenças identitárias podem significar um distanciamento
respeitoso, e uma indiferença para tudo o que não nos diga respeito
diretamente. A pluralidade pode significar máscaras que desfilamos
ecleticamente para nada afirmar. Mas a fragmentação, o pluralismo e a
diferença também podem significar a multiplicidade que nos constitui, as
diferenças que nos produzem, os fragmentos que nos marcam. Não em uma
intensidade vazia mas na construção de densidades repletas de marcas da
história e de sua superação.
A problematização da idéia de identidade não deveria ser entendida
como uma recusa frente à existência de sujeitos concretos ou como a negação
da história de vida de alguém. Mas, também, não consideramos que se trate
de substituir a idéia de sujeito pela idéia de estrutura ou de funções.
Pensamos a subjetividade como podendo assumir diferentes formas. O que
significa podermos perceber o contemporâneo como um jogo de forças que
fala de desejos e de medos que se fazem presentes em nosso cotidiano.
Contudo, significa também pensarmos que as formas assumidas pela
subjetividade na atualidade não são as últimas e nem são as únicas. Nesse
campo de forças, outras formas podem ser criadas quando permitimos o
acesso ao intempestivo, ao estranho, ao desconhecido, ao inatual, ao devir
sempre-outro.8
A unidade, a identidade, a coerência podem ser sacudidas em seu
curso natural. Um nome não expressa a nossa essência, fala de nossa história.
Dessa forma, em lugar do “ponto final” poderíamos fazer afirmações-
problematizantes. A processualidade transforma a vida em um constante fluxo-
8 O devir-outro seria a corporificação, na dimensão visível, das diferenças que iriam se
engendrando na dimensão invisível, que estariam aquém e além do eu. Cf. ROLNIK, Suely. Cidadania e alteridade: o psicólogo, o homem da ética e a reinvenção da democracia. In: Spink, M. (org.). A cidadania em construção. São Paulo: Cortez, 1994.
questão, faz as certezas serem provisórias, nos torna permeável ao devir.
“Esquecer-se de si mesmo e no entanto viver tão intensamente”.9
Dentro de mim sou anônimo. Viver exige tal audácia 10
Em lugar da permanência em campos mapeados, onde podemos dizer
“eu sou assim”, “mãe é sempre igual só muda de endereço”, “o povo não sabe
votar” ou “toda mulher tem medo de barata”, criar novas cartografias. Em lugar
do Bem e do Mal, como valores morais absolutos e homogeneizadores do
campo social, apostar em bons encontros, em relações que venham aumentar
nossa potência.11 Não destruir a si sob a força da culpabilidade e não destruir
o outro sob a força do ressentimento. A potência em lugar da impotência.
Possibilidade de afetar e permitir-se ser afetado, onde o encontro produza
ações que venham instaurar a vida e não simplesmente evitar a morte.
Para pensarmos em uma ética da existência seria preciso não tratar o
desejo ou a subjetividade como idéias vinculadas a um plano do absoluto. A
ética não estaria no plano do transcendente mas no plano do imanente. Os
valores estariam abertos sempre para novas produções. Vinculados à
expansão da vida, são questionadores de tudo que se mostre paralisado,
cristalizado, mumificado. Dão acesso à diferença como possibilidade de outra
coisa, de estranhamento de si, do outro e do mundo. Não um olhar que vaga
9 LISPECTOR, Clarice, 1978, p. 13. 10 LISPECTOR, Clarice, 1978, p. 37. 11 Os bons encontros ocorreriam quando um corpo compõe com o nosso e toda a sua força
ou parte dela vem aumentar a nossa. Um mais de força não no sentido de um acúmulo de força, mas no sentido de uma maior intensidade das forças ativas, que venha produzir uma outra qualidade de força, uma potência de agir. Os maus encontros ocorreriam quando os corpos em suas relações produzem decomposição de forças - forças reativas- que se expressariam no se contentar ou se acomodar em sofrer os efeitos, em reclamar, em se lamentar, em acusar. Estas seriam as paixões tristes , a potência de padecer .