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Revista Portuguesa de Nefrologia e Hipertensão 179 Rev Port Nefrol Hipert 2004; 18 (3): 179-186 Síndrome Nefrótico Congénito do tipo Finlandês (NPHS1) Ana Rita Araújo, M. Sameiro Faria, Conceição Mota, Teresa Costa, Ana Branco, Mariana Castillo, Elisio Carvalho*, Elói Pereira Serviço de Nefrologia Pediátrica do Hospital Maria Pia. Porto. * Serviço de Nefrologia do Hospital de São João. Porto. Caso Clínico Recebido em: 04/12/2003 Aceite em: 22/03/2004 RESUMO O síndrome nefrótico tipo finlandês (SNF ou NPHS1) é uma doença causada por mutações no gene NPHS1 com hereditariedade autos- sómica recessiva. Caracteriza-se pelo apareci- mento de síndrome nefrótico grave nos pri- meiros dias após o nascimento e é de muito difícil manuseamento. O tratamento médico intensivo em combinação com a nefrectomia e a diálise, seguidas de transplantação renal, levou a uma redução significativa da mortalidade destes doentes. O tratamento óptimo deste tipo de síndrome nefrótico congénito (SNC), ainda não está totalmente definido. É descrito o caso clínico de uma criança do sexo masculino, com 20 meses de idade, com o diagnóstico de SNF, baseado na presença de síndrome nefrótico ao 5º dia de vida, na exclusão de outras causas de SNC, e nas características histológicas da biópsia renal. Houve boa resposta ao tratamento de combinação com o captopril, um inibidor da enzima de conversão da angiotensina (IECA), com o losartan, um antagonista dos receptores da angiotensina II (ARA II) e com a indometacina. A proteinúria foi reduzida consideravelmente com esta associação, permitindo um cresci- mento harmonioso e um desenvolvimento bas- tante aceitável da criança. O doente mantém-se estável nos últimos meses, sem necessidade
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Síndrome Nefrótico Congénito do tipo Finlandês (NPHS1)

May 01, 2023

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Revista Portuguesa de Nefrologia e Hipertensão 179

SÍNDROME NEFRÓTICO CONGÉNITO DO TIPO FINLANDÊS (NPHS1)

Rev Port Nefrol Hipert 2004; 18 (3): 179-186

Síndrome Nefrótico Congénitodo tipo Finlandês (NPHS1)

Ana Rita Araújo, M. Sameiro Faria, Conceição Mota, Teresa Costa,Ana Branco, Mariana Castillo, Elisio Carvalho*, Elói Pereira

Serviço de Nefrologia Pediátrica do Hospital Maria Pia. Porto.* Serviço de Nefrologia do Hospital de São João. Porto.

Caso Clínico

Recebido em: 04/12/2003

Aceite em: 22/03/2004

RESUMO

O síndrome nefrótico tipo finlandês (SNF ouNPHS1) é uma doença causada por mutaçõesno gene NPHS1 com hereditariedade autos-sómica recessiva. Caracteriza-se pelo apareci-mento de síndrome nefrótico grave nos pri-meiros dias após o nascimento e é de muitodifícil manuseamento. O tratamento médicointensivo em combinação com a nefrectomia ea diálise, seguidas de transplantação renal, levoua uma redução significativa da mortalidadedestes doentes. O tratamento óptimo deste tipo

de síndrome nefrótico congénito (SNC), aindanão está totalmente definido.

É descrito o caso clínico de uma criança dosexo masculino, com 20 meses de idade, como diagnóstico de SNF, baseado na presença desíndrome nefrótico ao 5º dia de vida, na exclusãode outras causas de SNC, e nas característicashistológicas da biópsia renal. Houve boaresposta ao tratamento de combinação com ocaptopril, um inibidor da enzima de conversãoda angiotensina (IECA), com o losartan, umantagonista dos receptores da angiotensina II(ARA II) e com a indometacina.

A proteinúria foi reduzida consideravelmentecom esta associação, permitindo um cresci-mento harmonioso e um desenvolvimento bas-tante aceitável da criança. O doente mantém-seestável nos últimos meses, sem necessidade

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de perfusões de albumina regulares ou terapêu-tica substitutiva renal.

Podemos assim concluir que no doente des-crito, o duplo bloqueio do sistema renina-angio-tensina com IECA e ARA II, em combinação comindometacina, foi uma boa alternativa ao trata-mento clássico (o qual inclui a nefrectomia),resultando num efeito sinérgico que permitiureduzir significativamente a proteinúria caracte-rística deste tipo de SNC.

Palavras-chave: NPHS1, síndrome nefróticocongénito, síndrome nefrótico filandês; 

SUMMARY

A case report of Finnish type congenital ne-phrotic syndrome

The Finnish type congenital nephrotic syn-drome (CNF or NPHS1) is a disease caused bya mutation in NPHS1 gene with autossomal re-cessive inheritance. It leads to nephrotic syn-drome soon after birth and is very difficult to dealwith. The intensive medical treatment, nephrec-tomy and dialysis, followed by renal transplan-tation, leads to a remarkable reduction of mor-tality. The best treatment is yet to be defined.

The authors present a case of a 20 monthold white male with Finnish type congenital neph-rotic syndrome. The diagnosis was based on clini-cal evidence of nephrotic syndrome five days af-ter birth, excluding other primary and secondarycauses and renal biopsy. He responded well tothe combination of captopril, a angiotensin con-verting enzyme inhibitor (ACEI), losartan, a angio-tensin type II receptor antagonist, and indometacin.With this drug combination the proteinuria wasconsiderably reduced. The patient has been sta-ble for the last few months, without albumin per-fusions or renal replacement therapy.

We conclude that in this patient the doubleblocking done with the combination of angio-tensin converting enzyme inhibitors and angi-otensin type I receptor in association with indo-metacin was a good alternative to the classictreatment, resulting in a synergic effect that al-lowed a significant reduction in proteinuria.

Key-words: Finnish type congenital nephroticsyndrome.

INTRODUÇÃO

Os síndromes nefróticos congénitos (SNC),constituem um grupo de distúrbios heteró-geneos que se caracterizam pelo aparecimentode proteinúria nos primeiros três meses de vidapodendo ser causados por doenças here-ditárias, esporádicas, adquiridas ou fazer partede um síndrome mais complexo1. O síndromenefrótico congénito do tipo finlandês (SNF ouNPHS1) e a esclerose mesangial difusa são asduas causas mais frequentes2.

O SNF é uma doença rara com heredita-riedade autossómica recessiva envolvendo osdois sexos numa proporção equivalente3. Nãohá manifestação da doença nos indivíduosheterozigotos. O SNF é mais frequente na Fin-lândia com uma incidência de 1,2: 10000 nados-vivos; com o diagnóstico pré-natal esta inci-dência diminuiu para 0,9: 10000 nados-vivos2,4,5.Esta doença não é exclusiva da Finlândia e jáfoi descrita em vários outros países1,6 ondeapresenta, no entanto uma incidência clara-mente inferior.

O gene responsável pelo SNF denomina-seNPHS1. Descrito pela primeira vez em 1994,por Kestila et al7, está localizado no braço longodo cromossoma 19 (19q13.1). Este gene codi-

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fica a nefrina, uma proteína da superfície celulardos podócitos glomerulares pertencente àsuperfamília das moléculas de adesão de tipoimunoglobulina (3). Ruotsalainen et al mostraramatravés de microscopia electrónica que a nefrinase dispõe nas fendas de filtração inter-podócitos,onde desempenha um importante papel nabarreira de filtração glomerular1,8,9.

As duas mutações mais comuns do geneNPHS1 foram designadas Fin-major e Fin-mi-nor e representam cerca de 90% de todos osdoentes finlandeses10,11. A mutação Fin-majorpode ser encontrada em 78% dos doentes comSNF e corresponde a uma delecção de doispares de bases no exão 2 (nt121delCT); a outramutação, Fin-minor, é uma modificação non-sense no exão 26 (R1109X)10. Em 1998 foramdescritas quatro mutações diferentes do geneem famílias finlandesas afectadas12. O estudorealizado por Lenkkeri et al permitiu identificar32 novas mutações no gene da nefrina em 35doentes da Europa e América no Norte. Em setedesses doentes não foi possível identificarnenhuma alteração, provavelmente por apre-sentarem mutações no promotor ou em genesque codificam proteínas que interagem com anefrina como o CD2AP, o ACTN4 ou a podo-cina3,13,14. Estes dados são a favor da hetero-geneidade genética do NPHS1. Actualmente hámais de 50 mutações descritas (em doentesfinlandeses e não finlandeses) incluindo dele-ções, inserções, mutações nonsense e mis-sense e mutações dos promotores13. Apesar detodos os avanços efectuados a nível molecular,existe pouca informação acerca dos factoresestruturais envolvidos na progressão do SNFpara a insuficiência renal.

A histologia renal varia com a severidade eduração da doença. Numa fase inicial osglomérulos mostram hipercelularidade mesan-gial e aumento da matriz mesangial que evoluicom o tempo para glomeruloesclerose. As alte-

rações tubulointersticiais são proeminentes,sendo a lesão mais característica a dilataçãomicroquística dos túbulos proximais. Contudo,esta alteração não é específica e não existe emtodos os doentes. Os estudos de imunofluo-rescência (IF) não evidenciam depósitos deimunoglobulinas nem complemento15,16. Na mi-croscopia electrónica (ME) identifica-se umamembrana basal glomerular fina e fusão dospedicelos11.

Os achados clínicos clássicos no SNF in-cluem prematuridade, baixo peso ao nascer,placenta grande (mais de 25% do peso dorecém-nascido) e proteinúria que começa inútero6,9. Em 82% dos casos, o síndrome nefró-tico surge na primeira semana de vida11. Aproteinúria é selectiva apenas numa fase iniciale raramente se acompanha de hematúria. Coma progressão da doença a proteinúria maciçaacompanha-se, para além de hipoalbuminémiasevera, de hipogamaglobulinemia, dislipidemiae diminuição dos níveis séricos de plasmino-génio e antitrombina III, o que condiciona umatraso estaturoponderal, maior susceptibilidadepara infecções e complicações tromboem-bólicas. A perda urinária da globulina de ligaçãoda tiroxina resulta em redução dos níveis plas-máticos de tiroxina. A ureia e a creatininaapresentam, inicialmente, níveis séricos normaismas a evolução para a insuficiência renal crónicaterminal ocorre geralmente entre os três e oscinco anos de idade. As crianças com SNF nãoapresentam habitualmente defeitos major emoutros órgãos. Contudo problemas neurológicosligeiros relacionados ao estado nefrótico podemser observados nestas crianças. Muitos doentessão hipotónicos e o seu desenvolvimentopsicomotor é lento. Após a nefrectomia e otransplante renal estes aspectos costumammelhorar dramaticamente11.

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CASO CLÍNICO

Criança de 20 meses de idade, sexo mas-culino, raça caucasiana, natural de Braga.Segundo filho de pais não consanguíneos e semantecedentes familiares relevantes. A gravidezfoi vigiada, sem intercorrências e com ecogra-fias pré-natais sem alterações. Parto eutócicoàs 38 semanas de gestação tendo-se cons-tatado a existência de placenta excessivamentegrande. Biometria ao nascimento adequada àidade gestacional.

Ao 5º dia de vida foi efectuado o diagnósticode síndrome nefrótico congénito por apareci-mento de edemas, proteinúria nefrótica - 991mg/m2/h, relação proteinas (gr/l)/ creatinina(mmol/l) urinárias 21.0, hipoalbuminémia (11.4gr/L) e hiperlipidemia (colesterol total 358mg/dl,triglicerídeos 153mg/dl). A função renal era nor-mal e traduzida por creatinina 21 mmol/l e ureia6,5 mmol/l com depuração de creatinina de 123ml/min/1,73m2. Presença de hematúria micros-cópica ligeira. Os estudos analíticos efectuadospermitiram excluir sífilis congénita, hepatite B eC, HIV, citomegalovírus e toxoplasmose; oestudo imunológico não mostrou alterações e a

avaliação da função tiroideia evidenciou hipoti-roidismo (T3 60.5 ng/ml, T4 2.8 mg/dl e TSH4.05 mIU/ml). Ecograficamente os rins apre-sentavam dimensões no limite superior do nor-mal e diferenciação cortico-medular preservada.

Foi instituído tratamento conservador com:perfusões de albumina de 12/12h (2-3 g/kg/dia),dieta hiperproteica (3g/kg/d) e hipercalórica (120kcal/kg/d), suplementos vitamínicos e de L-tiroxina, e aspirina em baixa dose.

Com um mês de idade foi submetido a biópsiarenal que mostrou em microscopia óptica dila-tação dos túbulos proximais (Fig.1, A) emoderada proliferação mesangial; imunofluo-rescência positiva para C3c (+) e fibrinogênio(+); microscopia electrónica mostrou extensafusão dos pedicelos (Fig.1, B).

Por persistência de hipoalbuminemiasignificativa com necessidade de hospitalizaçãocontinuada, dificuldade crescente na obtençãode acessos venosos e episódios sépticos fre-quentes, aos quatro meses de idade iniciouterapêutica com altas doses de indometacina(4 mg/Kg/d) e captopril (5 mg/Kg/d), o quepermitiu alargar o ritmo de perfusão de albuminaFig. 1A - Biópsia renal

Fig. 1B - Biópsia renal

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para três vezes por semana. Associadamenteverificou-se aparecimento de insuficiência renaliatrogénica ligeira e hipertensão arterial. Aosnove meses de idade foi associado losartan 5.8mg/kg/dia. Desde os 12 meses que não apre-senta necessidade de perfusões de albuminaregulares.

Durante os primeiros 10 meses de vida odoente teve vários episódios sépticos gravesfrequentemente com ponto de partida emcatéteres venosos centrais implantados parafacilitar a realização de perfusão de albuminadiária. Num destes episódios verificou-seinsuficiencia renal aguda oligúrica com neces-sidade de diálise peritoneal por um curto períodode tempo, com posterior recuperação da diuresee regressão parcial da azotemia. Desde estadata que faz infusão periódica de imunoglobu-linas séricas não se tendo verificado desdeentão quadros sépticos relevantes.

A função renal tem permanecido estável, comnecessidade de suplementos de bicarbonato desódio, resina permutadora de catiões e tera-pêutica anti-hipertensora. Actualmente apre-senta uma função renal traduzida por ureia32mmol/l, creatinina 77mmol/l, e depuração decreatinina de 22.3ml/min/1,73m2. Apesar dodoente manter valores de proteinúria nefrótica,observou-se uma redução considerável da pro-teinúria apresentando actualmente uma relaçãoproteinas (gr/l)/ creatinina (mmol/l) urinárias de5.5, a albumina sérica permanece estável comvalores da ordem de 10-14 gr/L. O desenvol-vimento estaturoponderal tem sido razoável,actualmente com peso no percentil 5 e estaturano percentil 25. O doente é discretamentehipotónico e apresenta um atraso ligeiro nodesenvolvimento psicomotor.

DISCUSSÃO

No doente descrito a presença de síndromenefrótico grave diagnosticado nos primeiros diasde vida em associação com aspectos histo-lógicos típicos na biópsia renal permitiu fazer odiagnóstico de SNF apesar da ausência dehistória familiar.

O SNF manifesta-se precocemente noperíodo intra-uterino (15-16 semanas de ges-tação), pelo aparecimento de proteinúria fetalque origina um aumento dos níveis de alfa-fetoproteina (AFP). Na presença de AFP elevadano soro materno ou história familiar positiva, odiagnóstico pré-natal de SNF é efectuado peladetecção de concentrações muito aumentadasde AFP no líquido amniótico em combinaçãocom um estudo ecográfico fetal normal8. Osfetos heterozigotos para as mutações NPHS1(portadores) apesar de não apresentaremdoença renal no período pós-natal podem evi-denciar resultados falsamente positivos nadeterminação de AFP no líquido amniótico esangue materno (2,8) pelo que se torna altamenterecomendável a confirmação por estudo mo-lecular com análise de mutação do geneNPHS18,17.

O tratamento óptimo para os doentes comSNF não está ainda totalmente definido. Adoença é como norma resistente ao tratamentocom corticosteróides ou fármacos imunossu-pressores6,18 e associa-se inevitavelmente àevolução para insuficiência renal crónica ter-minal. Antes da era da transplantação renaltodas as crianças morriam antes dos 3-4 anosde idade18. Actualmente o tratamento médicointensivo em combinação com a nefrectomiae a diálise, seguidas pelo transplante renal,condicionou uma redução da mortalidade para30%, na última década1, com uma qualidadede vida aceitável para as crianças que sobre-vivem18.

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O tratamento de suporte deve ser instituídoprecocemente e tem como objectivos principaisa correcção da hipoproteinemia, a normalizaçãodo estado nutricional e a prevenção eficaz dascomplicações. Este tratamento visa essencial-mente promover o desenvolvimento e cresci-mento da criança até que esta tenha um tama-nho suficiente que permita a realização de umtransplante renal, o qual é a única opçãoterapêutica eficaz para a maioria das criançasafectadas. Habitualmente a criança é submetidaa infusões diárias de albumina, para manterníveis séricos acima de 15 g/l, suporte nutricionalintensivo, suplementos vitamínicos e de L-tiro-xina, e prevenção de complicações infecciosase trombóticas com perfusões de imunoglobu-linas, aspirina em baixa dose ou hipocoagulaçãooral.

Classicamente, a estratégia terapêutica maisutilizada nos doentes com SNF consiste nanefrectomia bilateral precoce quando a criançatem cerca de 7 kg, com instituição posterior deterapêutica dialítica e de transplantação renal dedador vivo ou cadáver quando a criança atingeo peso adequado (pelo menos 9 kg)6,11. Estaabordagem agressiva é justificada pelo estadode deficiência proteica decorrente da proteinúriamaciça persistente que não pode ser corrigidoapenas com as infusões de albumina e que pre-judica o crescimento e o desenvolvimento dacriança. A nefrectomia unilateral é utilizada poralguns centros e tem a vantagem de permitir amanutenção da diurese e reduzir a necessidadede perfusões de albumina19,20.

Uma alternativa possível à nefrectomia cirúr-gica é a introdução de um esquema “nefrotóxico”que consiste na combinação de altas dose deum fármaco inibidor da enzima de conversãoda angiotensina (IECA) em associação com aindometacina, procurando obter, entre outrosefeitos, uma diminuição da pressão intraglo-merular e a consequente redução da excreção

de proteínas e a melhoria do estado nutri-cional21,22,23. Pomeranz et al descreveram autilização de terapêutica de combinação emaltas doses de captopril (1-5 mg/kg/dia) eindometacina (1-4 mg/kg/dia) no SNF, comredução marcada da proteinúria, permitindo asuspensão das infusões de albumina e umdesenvolvimento estaturoponderal e psicomotorsatisfatório. Num dos doentes, a função renaldeteriorou-se, tornando necessária a hemo-diálise23. S. Guez et al, posteriormente, descre-veram outro doente com SNC cujo haplótipo eracompatível com SNF, em que a terapêutica comenalapril isoladamente permitiu a redução daproteinúria para níveis não nefróticos, commanutenção de albumina sérica normal semnecessidade de infusões de albumina24.

Não é totalmente claro quando é possívelesperar uma resposta à terapêutica nefrotóxicanos doentes com SNF. No estudo efectuado porPattrakka et al em 46 doentes com SNF decor-rente de diferentes mutações no gene NPHS1,verificou-se que as mutações mais comuns(Fin-major e Fin-minor) estavam relacionadascom as formas clínicas mais graves de nefrosecongénita. Nestes doentes, a nefrina não eradetectável nos estudos de imunofluorescênciarenais, e verificava-se resistência ao tratamentocom IECA e indometacina. Por outro lado, do-entes com mutações do gene NPHS1 causandoapenas deficiência parcial de nefrina apresen-tavam na biópsia renal reacção positiva para anefrina e clinicamente poderiam responder aotratamento com IECA em associação comindometacina11. Além da doença renal subja-cente, também os polimorfismos do gene daenzima de conversão da angiotensina podeminfluenciar a resposta individual ao IECA21.

O duplo bloqueio do sistema renina-angio-tensina, com IECA em combinação com antago-nistas dos receptores tipo 1 da angiotensina II(ARA II), resulta num efeito sinérgico que permite

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reduzir mais eficazmente a proteinúria do quequalquer destes agentes em monoterapia25,26,sendo este efeito independente de alteraçõesna pressão arterial27. No doente que descre-vemos, foi utilizada esta terapêutica de combi-nação, previamente não descrita na literatura,no que respeita ao SNF. Apesar do doentemanter valores de proteinúria nefrótica, obser-vou-se uma redução considerável da proteinúria,o que permitiu a suspensão das perfusões dealbumina, com óbvia melhoria da qualidade devida desta criança. Actualmente com 20 mesesde idade, apesar da insuficiência renal que apre-senta, é possível perspectivar-se a realizaçãode transplante renal sem necessidade de diáliseprévia ou apenas com um curto período destetipo de tratamento.

O tratamento sistemático da dislipidemia nacriança com doença renal crónica é controverso(28). Nos casos de hiperlipidemia marcada resis-tente às manipulações diéteticas pode usar-seum inibidor da reductase da HMG-CoA29. Nocaso em análise, foi iniciado o tratamento comsimvastatina, com redução dos níveis decolesterol LDL.

O transplante renal é o tratamento de eleiçãopara a maioria das crianças com SNF. A taxa derecidiva do SNF no órgão transplantado é decerca de 25%6,30,31 e geralmente atinge osgenótipos Fin major/Fin-major. Anticorpos anti-nefrina circulantes parecem estar implicadosneste processo. Em alguns destes doentes foipossível a remissão completa do quadronefrótico após tratamento com ciclofosfa-mida6,30.

Em conclusão, apesar da experiência limi-tada nos doentes com SNF, o duplo bloqueio dosistema renina-angiotensina com IECA e ARAII, em combinação com indometacina, pode serconsiderado como uma alternativa ao trata-mento clássico, resultando numa redução eficazda proteinúria.

Correspondência:Dr.ª Ana Rita AraújoServiço de Pediatria. Centro Hospitalar do Alto Minho.Viana do CasteloEstrada de Santa Luzia

4901-858 Viana do Castelo

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