OLIBERAL BELÉM, DOMINGO, 11 DE JANEIRO DE 2015 MAGAZINE 11 sim [email protected] VICENTE CECIM Febres da terra (IV): Os Cantos A s partes anteriores de Breve é a febre da terra mostradas aqui na página Sim foram: I, Os Sinais, II, As Ilusões, III, Os Conflitos. Com a IV de hoje todo livro – editado pelo Iap por ter rece- bido o Prêmio Haroldo Maranhão de Romance, ficará disponível na impren- sa e na internet para quem quiser ler sem comprar, ou não possa comprar. Como esse Gesto reafirmo as minhas convicções de que, primeiro, Arte não é comércio - é o Belo, o Mistério e via de Libertação para os homens. Segundo, a convicção de que - sendo a Literatura tão essencial para nos nutrir como o pão para a saúde do copo & e o vinho para as alegrias da mente/alma - deve ser doada – sem fins lucrativos - e que os escritores realmente solidários com o Humano ao seu redor devem apro- veitar a multiplicação das artes que a internet agora nos permite para se tor- narem populares não por venderem milhões de livro pré-fabricados, e sim como partes desta irreversível Comu- nidade global, que permite converter a venda de livros impressos em fazer doações de seus livros pelo menos em versões virtuais. Não fiz aqui nada de novo: a publicação dos livros em Folhe- tins antes de irem para as livrarias foi uma prática nos antigos jornais, como já disse aqui. A única diferença é que, agora, esse gesto deve ser entendido como um ato simbólico de reafirma- ção de que ler é nutrição ou não será nada – o que se aplica, claro, aos livros não fabricados em massa para serem consumidos como produtos pelo crité- rio mercantil de mais vendidos, os best sellers - uma das versões mais alienan- tes da avidez do Capital, só comparável ao cinema mercantil. Vamos a quarta e final parte do livro, relembrando, antes, o final do fragmento anterior: E ali no chão uma última sombrazi- nha humana via eles passarem, se dando à luz, o que sobrava dela, só uns olhos Via eles chegarem, entrando por aquela rua onde homens dividiam a vida, só por serem ho- mens Breve é a febre da terra (final) Aquele dia foi todo de janelas fecha- das. Nem portas havia. Ninguém saía das casas. As aves. Uma delas às vezes passa- va no céu: um olho olhando a ruazinha vazia, do alto. E só o náufrago ali, sua ave negra, a madeira na sua perna, a Sombra. A ave, em seu ombro, ciscava entre uns pensamentos e umas astúcias vi- vas que ele tinha em sua cabeça. Bem velhos aqueles cabelos, e águas antigas, estagnadas. Ideias faziam redemoinhos neles, mas com limos Como fazer aquelas sombras de homens saírem das casas para a luz do dia? Tendo passado aquele dia Se deu uma outra noite de punhais e sombras E mais pequenas sombras, pela ma- nhã, num outro dia, se deram à luz no chão da ruazinha. Se desfazendo Querendo tudo isso ir assim para um tempo mais longo, através de ou- tros dias, então o náufrago iniciava uns cantos de promessas, de coisas belas, para atrair aquelas sombras para fora de suas casas. E baixinho ele cantava junto às ja- nelas fechadas O canto. Este: Nenhuma cidade é feita para se viver Se dissessem isso os homens e fos- sem embora para serem árvores flores galhos enlaçados uns nos outros De árvores, homens dariam frutos frutas De flores, esses perfumes que se passaria a aspirar principalmente em noites ocas sem sonhos Nas páginas dos livros com pala- vras de florestas não cai raio real: é mais seguro Ninguém pode queimar pela pala- vra raio A palavra árvore não será atingida A palavra lagarto é maravilha para ser homem quando chove: Lagarto não olha para o céu um me- do nem teme as pedras que o céu joga nos homens quando chove Nas palavras palavra lagarto-ho- mem então se meter, bem metidinho: E só se interessar pelas pedras do- entes dos deuses quando elas já esti- verem no chão, como os lagartos para se esconder da água vesga do céu e debaixo da pedra esperar que o limo se forme. O limo bom E só levantar uns olhinhos melan- colicamente para o céu para ver se já vem sol E avisar o limo que é hora de se des- limar Que essa vida boa vai acabar Até a próxima chuva Quando vai ser preciso novamente humanizar o limo Lagartizar o homem para as pedras doentes dos deuses Isso o náufrago cantou outra vez. Mas elas não saíam, não saíam. Nem abriam as janelas para a luz dos dias, aquelas sombras Mas uma noite de punhais veio. Pas- sou. E mais pequenas sombras huma- nas se deram ao seu destino pequeno, e à luz E eis agora aí num outro dia o náu- frago, já começando a nascer nele tam- bém um rancor. E cantando umas ameaças, pois um homem é impaciências, junto às jane- las das sombras O canto. Ele cantava agora: Tirassem as asas da mosca para fa- zer uma voz suave E depois seria o fim das florestas E à noite a palavra luar já não desce- ria do céu sobre nos Bocas insones viriam na língua dizendo pregos agulhas enferrujadas cravos e ferros, cravos de silêncios e uma mancha de ferrugem crescendo Homens não gostam de ser bicho Mas bicho gosta menos ainda de ser homem, porque homem pensa: pensamento de bicho é rabo abanando quando bicho gosta do alimento Por isso ao menos deixando as cidades se fossem para árvores flores, vegetais Vegetais são bichos do verde, mas homem não sabe, por isso aceitando ao menos talvez dar frutos frutas Cidades desertas serão memórias paredes de esquecimento Cidades abandonadas por homens inversamente serão floresta para bi- chos virem viver nelas, vegetais nasce- rem das gretas das paredes Nessa inversão se dando um encan- tamento de fazer a terra passar a girar ao contrário Depois, séculos e mais séculos se passando, o tempo Até: vegetais se dizendo cidades não são feitas para se ser flor, árvore, fruto fruta E querendo voltar para florestas Passariam então pelos homens eles, que também estariam voltando às ci- dades? Que pena Já foi assim muitas vezes: esses re- fluxos Por isso umas árvores que falam com a gente, quando se passa debaixo delas Falam folhas usando a língua do vento, que se esquecemos Por isso uns homens que falam com troncos de árvores escrevendo coisas desenhando corações nos troncos de- las contando as suas alegrias e triste- zas e sonhos, confidentes Esses se lembrando vagarosamente dos Tempos em que foram o que não eram árvores, homens homens, árvo- res e que destornariam a ser Pode-se pressentir, justamente hoje abrindo as janelas, uns sinais ardentes no céu de que amanhã, exatamente à mesma hora deste instante um novo cio de reversões vai começar: Só que desta vez homens se indo para estrelas, e árvores indo para pei- xes, no fundo do mar Exatamente como quer a vida em toda a Via Láctea dos nossos sonhos Tente-se tente-se não acordar Isso cantou o náufrago naquele dia, junto às janelas fechadas. Mas uma outra noite de sombras e punhais veio e passou. E no instante indicado, no dia se- guinte as janelas não se abriram Nova noite de punhais E novas sombrazinhas fenecendo como flores. E, no dia seguinte, o náufrago can- tou tendo visto nuvens de chuva e tem- pestade, por inspiração para que não temessem, saindo das casas, a punição do céu pelos seus crimes O canto: Quando chove é preciso humanizar o limo Preferência pelo lodo até a raiz dos cabelos deixando de ser homem Mas onde E onde o limo bom, o limo com um se arborizando em ostra? E sem palavras? Se chover, é indo para silenciar que é melhor em cruz devorando lábios, arrependi- damente Se a palavra luar fosse refletida num lago noturna criaria um homem Ponha a palavra luar na frente de um espelho para ser apresentado a ele E depois devolva as asas da mosca E nunca mais tome banho até o fim dos seus dias Os clamores do mundo não se acal- mam com asas de mosca Fique sabendo disso Com lábios silenciosos de voz de espelho mudo Se olhando com olhos de inseto a quem tiraram o zumbido o zumbido, oh Isso cantou o náufrago. Mas aquelas janelas ainda, fecha- damente E após mais uma noite - Os punhais, os punhais as noites passadas escondidamente no alto das árvores, o náufrago estava cantando sob a lua branca das vertigens em um novo dia No que querendo ele dizer àquelas sombras lá, que noites poderiam servir para outras coisas ao menos para exis- tirmos homensmusgos os Brevemen- tes nesta terra O canto: Humanidade nunca dançou com a lua Dança de sombra tem memórias de ave Homem que dança com a sua pró- pria sombra tem sentimentos de lua Na dança de três: um homem, sua sombra e a lua, há sentimentos de água Dançar dentro da água é bom por- que se lava a espécie humana de toda espécie de crimes do presente e ainda sobra água para lavar as vergonhas do passado, lua para ilumi- nar os futuros, se há, sombra para se esconder o rosto Humanidade nunca dançou com a lua Só dançou com sua própria sombra Por isso uns sentimentos de ruína e ossos Não funciona Li Pó dançou com a lua e sua som- bra uma vez e a Humanidade ficou li- geiramente mais apresentável: para anjos, insetos e pedras de es- perança plantadas como pés de alface Alfaces são mais frescas que a água orvalho destes meus olhos Que choram toda vez que estou dançando com sombras de crianças e bois e silêncios de abismos de estrelas de cavalos longos de viagens, e en- tão faz sol de repente Li Pó só dançava à noite para não correr esse risco A manhã vem com ruídos de treva- se acaba a festa E não mais não cantou aquele ho- mem, o naufrago, junto às janelas fe- chadas. Pois as sombras não abriam, não abriam E à noite, voltavam, finos, os pu- nhaizinhos Para que serve então a vida-escrita? - É um instrumento, para ver, tentar abrir, dobra a dobra, insistindo, a vida real Ó SERDESPANTO Eis: agora uma nova manhã. E mais algumas sombrazinhas ali se desfazendo naquela rua. E depois nem fiapos de carnes de sombra para os bicos das aves. Aqueles voos inúteis. E uns ninhos, onde deses- peros, e gritos Aqueles cantos do náufrago tam- bém se revelando inúteis, agora ele ia embora, desistia. Ia dali, onde a vida infernalmente só por serem homens, e aquelas som- bras, seus punhais antro por sapos, mágoas cavavam o chão para comer com raiva a terra naquela ruazinha na floresta. Talvez um dia volte a ela. O nau fra- go Se isso conta o livro achado na areia, mas essas são páginas apagadas Não se sabe. O que se sabe é que ele agora vai embora. E leva, por companhia, a madeira da sua perna, no ombro a sua ave negra, e atrás dele aquele Outro escuro, a sua Sombra. O triste E no entanto não deixemos esse ho- mem ir embora assim. Tristemente. O tristemente Olhemos uma outra vez o mar Olhemos? onde tudo isso começou, vocês lembram? As luzes e sombras do Atlântico, e suas altas ondas E imaginemos Contra a Areia das palavras feche- mos os olhos essas Fendas na carne e imaginemos, imaginemos se nos jor- rasse a Úmida: a Fonte ah imaginemos O olho Único em nossa Fronte imaginemos, imaginem os que vin- do do mar, enquanto esse homem vai embora, desistindo, esse nau frago, uma outra nau branca bran- quíssima está chegando. Ela. Também vindo através das mais altas ondas dos nossos sonhos. E nessa nau, vejam, é o náufrago quem está voltando, é ele quem está no- vamente chegando, pela primeira vez, para tentar novamente pela primeira vez unir o Sim e o não humanos A fábula recomece. Agora, então, da direita para a es- querda, toda a areia desta fábula outra vez voltando pela seiva das águas vol- tando, também para vocês, que pelo tempo de uma espreita foram esse ho- mem, lendo isso Se essa segunda primeira nau bran- ca a branquíssima um dia tocasse a nossa Areia Escura, ah Então, Caim e Abel, essas Sombras em nossas memórias, esses nomes que chamamos com Náuseas longas con- vertidos em estátuas de Gritos talvez enfim possudessem, soluçando em nós, sorrir Fim de Breve e a febre da terra A viagem a Andara não tem fim Viagem a Andara oO livro invisível