Top Banner

of 22

Significante vazio.pdf

Jul 06, 2018

Download

Documents

Welcome message from author
This document is posted to help you gain knowledge. Please leave a comment to let me know what you think about it! Share it to your friends and learn new things together.
Transcript
  • 8/17/2019 Significante vazio.pdf

    1/22

    A CONDENSAÇÃO DO “IMAGINÁRIO POPULAROPOSICIONISTA” NUM SIGNIFICANTE VAZIO: AS “DIRETAS

    JÁ”(THE CONDENSATION OF THE POPULAR OPPOSITION IMAGINARY IN AN

    EMPTY SIGNIFIER: THE “DIRETAS JÁ” MOVEMENT)

     Author: Daniel de Mendonça

    Universidade Federal do Rio Grande do Sul - Brasil

    Preparado para entrega no Encontro da Associação Latino-americana de Estudos de 2004, Las Vegas, Nevada, de 7 a 9 de outubro de 2004 (Prepared for deli very at the 2004 Meeting of the Latin AmericanStudies Association, Lãs Vegas, Nevada, October 7-9, 2004) .

    A CONDENSAÇÃO DO “IMAGINÁRIO POPULAR OPOSICIONISTA” NUMSIGNIFICANTE VAZIO: AS “DIRETAS JÁ”

    Resumo

    Este artigo tem por objetivo analisar o fenômeno popular que representou a Campanhadas “diretas já”, ocorrida no Brasil entre janeiro e abril de 1985. Dessa forma, o trabalhodivide-se em três partes principais. Na primeira parte, apresenta-se a noção designificante vazio de Ernesto Laclau, que consiste na hipótese geral do artigo. Nasegunda parte, realiza-se uma incursão no processo brasileiro de transição doautoritarismo à democracia para, ao final, caracterizar-se o movimento popular das“diretas já” como um significante vazio.

    Palavras-chave: significante vazio, Ernesto Laclau, diretas já, Teoria do Discurso,autoritarismo, transição democrática brasileira.

    THE CONDENSATION OF THE POPULAR OPPOSITION IMAGINARY IN ANEMPTY SIGNIFIER: THE “DIRETAS JÁ” MOVEMENT

    Abstract

    The aim of this article is to evaluate the strong popular support that “diretas já”Campaign received from January to April, 1984. Therefore, the present work is dividedon three main parts. Firstly, it is focused the Ernesto Laclau’s empty signifier concept asthe general hypothesis of the chapter. Secondly, it is accomplished an incursion on theBrazilian transition process, from the military government to democracy. Finally, it isevaluated the “diretas já” popular movement as an empty signifier.

    Keywords: empty signifier, Ernesto Laclau, diretas já, Discourse Theory,Authoritarianism, brazilian democracy transition.

    A CONDENSAÇÃO DO “IMAGINÁRIO POPULAR OPOSICIONISTA” NUMSIGNIFICANTE VAZIO: AS “DIRETAS JÁ”

  • 8/17/2019 Significante vazio.pdf

    2/22

      2

    Daniel de Mendonça

    O presente trabalho, na intenção de testar o potencial heurístico da Teoria doDiscurso de Ernesto Laclau, pretende utilizar algumas noções desta proposta teórica – primordialmente a de significante vazio – para analisar um acontecimento relevante dahistória política brasileira. Buscaremos, assim, sob o olhar da Teoria do Discurso,

    explicar a emergência e o sucesso popular que representou a Campanha das “diretas já”,ocorrida em 1984. Nossa hipótese geral de trabalho caracteriza as “diretas” como umsignificante vazio – categoria analítica incorporada da tradição psicanalítica de Lacan pela teoria laclauniana – uma vez que esse movimento tornou-se um ponto nodal decondensação de múltiplas demandas sociais democratizantes do período.

    Para a consecução dos objetivos apresentados, o presente trabalho está dividido emquatro seções principais. Na primeira seção, apontaremos alguns elementos explicativosda noção de significante vazio. No segundo momento, apresentaremos sucintamente ascondições de emergência de um discurso democrático no Brasil autoritário, mais precisamente entre 1974 e 1984, período que se caracteriza como o momento deconstituição do que denominamos de “imaginário popular oposicionista”. Nas terceira equarta seções, estabeleceremos a relação entre o mencionado “imaginário popularoposicionista” e a campanha política das “diretas já”, aplicando aí a noção de significantevazio desenvolvida por Ernesto Laclau.

    1. A Noção de Significante Vazio

     No âmbito da Teoria do Discurso, um significante vazio é um significante semsignificado. Contudo, um significante vazio é um significante sem significado, conformeaponta Laclau (1996), não por não fazer parte de um sistema de significações – o queconseqüentemente o impediria de produzir qualquer sentido – mas justamente pelo fatodo significante vazio representar um sistema de significações que, devido ao seu caráter polissêmico, acaba por perder qualquer possibilidade de produzir sentidos específicos.

    Tomemos um exemplo da constituição de uma prática articulatória discursiva para buscar esclarecer o ponto. “A”, “B” e “C” são elementos diferentes que, num primeiromomento (M1), não estão relacionados entre si. Num momento seguinte (M2), surge oelemento “D”, que passa a estabelecer relações com “A”, “B” e “C”. Portanto, em M2,“D” consegue ser o ponto nodal1  entre os elementos “A”, “B” e “C”, criando uma“ordem”, ou uma articulação, entre os três elementos. O resultado desta articulação é odiscurso, cujo sentido principal, mas não necessariamente o único, é o produzido pelo ponto nodal “D”. “D”, portanto, passa a representar um sentido comum em relação aoselementos unificados, alterando suas especificidades e ampliando seus próprios limites designificação. “D” constitui uma cadeia de equivalências, na qual as diferenças entre “A”,

    1  A noção de ponto nodal é oriunda da psicanálise lacaniana, a partir do conceito de“points de capiton”, traduzido para o português como “pontos-de-estofo”. Joël Dor(1989), explicando essa noção afirma que, “para Lacan, o ponto-de-estofo é, antes dequalquer coisa, a operação pela qual o ‘significante detém o deslizamento, de outra formaindeterminado e infinito, da significação’. Em outras palavras, é aquilo por meio do qualo significante se associa ao significado na cadeia discursiva” (1989, p. 39).

  • 8/17/2019 Significante vazio.pdf

    3/22

      3

    “B” e “C”, perante “D”, desaparecem. “D” suporta os três elementos em questão, ou seja,“D” significa mais do que a singularidade de cada um dos elementos articulados.

    De forma simplificada, apresentamos acima a noção de prática articulatória, cujoresultado é o discurso2. “D” pode, ainda, articular mais elementos do que os dessalimitada cadeia de equivalências  formada por “A”, “B”, “C” e “D”. “D” pode ser um

    elemento de convergência de tantas identidades a ponto de perder qualquer possibilidadede significação específica e se tornar um significante sem significado, um significantevazio. Essa perda de significação específica é o resultado do esvaziamento dos sentidosidentitários de “D” e essa é a razão desse elemento conseguir suportar (no sentido derepresentação, ou de  supplément   de Derrida em Gramatologia) a presença dos demaiselementos inseridos na estrutura articulatória. Conforme Laclau (1996), a função dosignificante vazio reside justamente em renunciar sua identidade diferencial pararepresentar o espaço comunitário, ou seja, o sistema de diferenças.

    Céli Pinto (1999), num importante artigo que tem por objetivo apresentar as principais categorias da Teoria do Discurso de Ernesto Laclau e Chantal Mouffe, destacao sentido de significante vazio quando apresenta, no terreno político, o exemplo doesvaziamento dos conteúdos da democracia liberal:

    A democracia liberal se constitui em uma cadeia de equivalênciacom: liberdade de expressão; igualdade perante a lei; eleições dosgovernantes e representantes, na qual a democracia liberal é otermo que permite equivalência. Ora, a partir das lutas da décadade 60, este termo vai ganhando cada vez mais equivalências e perdendo cada vez mais conteúdos particulares. Compõem estacadeia de direitos impensáveis antes da II Guerra, tais como: votouniversal (homens/mulheres/analfabetos), direito das minorias,experiência de democracia participativa, direitos sociais, etc. A

    democracia paulatinamente se torna um significante vazio (Pinto,1999, p. 85).

     Na situação apresentada por Pinto, temos, num primeiro momento, a “democracialiberal” como um termo que permite equivalências entre “liberdade de expressão”,“igualdade perante a lei” e “eleições dos governantes e representantes”. Nessa situação 1, portanto, a “democracia liberal” possui sentidos bem delimitados e definidos. O exemploavança e apresenta a situação 2. A partir da década de 1960, a “democracia liberal” passaa incorporar mais termos em sua cadeia de equivalências a tal ponto dela não poder maisser significada com um mínimo de exatidão. Isso ocorre porque o termo “democracialiberal” perde seu conteúdo específico, uma vez que passa a ser o ponto nodal de

    2 No clássico Hegemony and Socialist Strategy, Laclau & Mouffe enunciam com precisãoas noções de prática articulatória e de discurso: “chamaremos articulação qualquer práticaque estabeleça uma relação entre elementos tal que suas identidades sejam modificadascomo um resultado da prática articulatória. A totalidade estruturada resultante da práticaarticulatória chamaremos discurso” (Laclau & Mouffe, 1985, p. 105).

  • 8/17/2019 Significante vazio.pdf

    4/22

      4

    articulação de múltiplos elementos. A “democracia liberal” é, assim, um significantevazio, um universal, um lugar vazio3.

    Apesar de um significante vazio ser um significante sem significado em função da polissemia que este articula, é possível percebermos seus limites4. Estes são, paradoxalmente, condição de possibilidade e de impossibilidade à constituição de um

    sistema discursivo5. Dito de outra forma, ao mesmo tempo em que os limites de umdiscurso articulado por um significante vazio impedem sua expansão significativa eameaçam sua existência (condição de impossibilidade), estes servem também paraafirmar a própria existência dessa cadeia discursiva e para unir as diferenças por elaarticuladas (condição de possibilidade), tendo em vista que o limite antagônico6  éidêntico a todas as identidades constituidoras do discurso, gerando, pois, a união dessasdiferenças em torno de uma luta comum: contra algo que, de uma forma ou de outra,impede a constituição de todos os elementos dessa cadeia de equivalências. Pinto,tomando a democracia como um significante vazio, exemplifica os limites desse regime político:

    A noção de democracia como um processo sempre emconstrução, que, por sua natureza, tem potencialidades muitoalargadas de incorporação e inclusão, apenas com um limitefundamental e constituidor: (...) a democracia, para não perder arazão de existir, não pode incorporar a sua negação, isto é,discursos que pretendam legitimar a exclusão (Pinto, 1999, p.97).

    Vista, portanto, a noção de significante vazio, bem como sua condição de possibilidade e seu limite de expansão significativo dado pelo corte antagônico, buscaremos, a partir da próxima seção, estabelecer as condições de emergência sócio-históricas que apoiam nossa hipótese de que o sucesso da campanha popular das “diretas

     já” no Brasil em 1984 pode ser explicado a partir da lógica da constituição de umsignificante vazio.

    3 A expressão “lugar vazio” é utilizada por Laclau (1996), para caracterizar a noção deUniversal e de significante vazio.4 Laclau, em “A morte e a ressurreição da Teoria da Ideologia” (2000) demonstra com precisão os limitesde qualquer formação discursiva: “uma cadeia de equivalências pode, em princípio expandir-seindefinidamente, mas, uma vez que um conjunto de relações centrais está estabelecido, essa expansão élimitada. Certas novas relações seriam simplesmente incompatíveis com as particularidades integrantes dacadeia” (Laclau, 2000, p. 140-141).5 Em outro momento desenvolvemos de forma mais aprofundada a discussão acerca doslimites de um sistema discursivo. Na verdade, introduzimos ao debate da Teoria doDiscurso o que denominamos de a “dupla impossibilidade de objetivação discursiva”,dada, por um lado, pelo corte antagônico e, por outro, pelas próprias características defuncionamento da prática articulatória (Mendonça, 2003).6  Em “Nuevas reflexiones sobre la revolución de nuestro tiempo”, Laclau enfatiza osentido que deve ser entendido a categoria de antagonismo: “O ponto fundamental é queo antagonismo é o limite de toda a objetividade. Isto deve ser entendido em seu sentidomais literal: como afirmação de que o antagonismo não tem um sentido objetivo, de sorteque é aquilo que impede a constituição da objetividade como tal” (1993, p. 34).

  • 8/17/2019 Significante vazio.pdf

    5/22

      5

    2. A Constituição do “Imaginário Popular Oposicionista”

     Nesta seção, apresentaremos as condições de emergência explicativas dosignificante vazio que se constituiu a campanha da “diretas já” nos momentos finais datransição política brasileira do autoritarismo para a democracia. Para tanto, revisitaremos,de forma sucinta, o tortuoso caminho da história da transição política brasileira entre

    1974 e 1984, momento ao qual defendemos ser o da constituição do “imaginário popularoposicionista” ao regime autoritário que passaremos, a partir de agora, a enfocar.

    Em nossa análise, o “imaginário popular oposicionista” constituiu-se numa série dedemonstrações de insatisfação política oriundas da população em relação ao governoautoritário, dispersas durante o período de transição. Este sentimento oposicionistamanifestou-se, sobretudo, de duas formas: I) pela via eleitoral e; II) a partir daemergência dos “novos movimentos sociais” no final da década de 1970. Vejamos cadauma dessas formas de sentimento oposicionista, iniciando pela insatisfação popularmanifestada nos resultados das eleições de 1974, 1976, 1978 e 1982.

    2.1. A insatisfação eleitoral

    Pela via eleitoral, o “imaginário popular oposicionista” ao regime autoritário podecomeçar a ser observado a partir da vitória do MDB nas eleições legislativas de 1974.Para o governo militar e para os líderes da ARENA, vencer as eleições de 1974, demaneira lisa e contundente, representava um importante passo à institucionalização doregime autoritário e a segurança necessária de um avanço mais seguro em direção àabertura política. Nesse sentido, além da campanha publicitária realizada pelo governoressaltando a importância da população em votar, foi liberada a utilização do rádio e datelevisão para a campanha eleitoral, bem como foram realizados debates entre candidatosao Senado com veiculação midiática. Tudo foi realizado para que a vitória da ARENAfosse incontestável, ou seja, para que a legitimidade política do autoritarismo, aindaincerta7, fosse assegurada pelo povo. Nesse sentido, Maria Helena Moreira Alves

    expressa a importância dessa eleição para os próceres do regime:A conjuntura política e econômica indicava que tal políticaobteria êxito. Por um lado, a insistência na busca de legitimação baseada no crescimento econômico apresentava dificuldades cadavez maiores, com o estrangulamento do modelo econômico. Poroutro, a pesada derrota política do MDB nas eleições de 1970 para o Congresso sugeria aos planejadores políticos que aARENA poderia efetivamente obter importantes vitórias naseleições de 1974. Na realidade, poucos observadores duvidavamde que a ARENA conseguiria esmagadora vitória sobre a

    oposição em 1974. Na opinião dos estrategistas governamentais,eleições mais livres, com acesso à televisão e ao rádio e claro

    7 Acerca da busca de legitimidade pelo regime autoritário no pleito de 1974, veja-se a posição de Lamounier: “(...) no Brasil, começando em 1974, o processo eleitoral foi defato um teste de forças e de legitimidade, e não o símbolo e o coroamento de um pacto detransição já acertado noutras bases entre os atores relevantes” (Lamounier, 1985, p. 127).

  • 8/17/2019 Significante vazio.pdf

    6/22

      6

    recuo da coerção, aumentariam a legitimidade do sucessoeleitoral do governo (Alves, 1984, p. 187).

    Contrariamente às previsões de analistas políticos, de membros do governo, daARENA e do próprio MDB, os resultados das eleições de 1974 representaram o primeirogrande plebiscito8  contrário ao regime autoritário. O MDB, além de vencer as eleições

     para o Senado9, aumentou substancialmente sua representação, tanto na Câmara dosDeputados, como nas assembléias legislativas estaduais.

    O MDB teve significativamente aumentada sua representação noCongresso Nacional. Em 1970, o partido obtivera 87 cadeiras naCâmara dos Deputados, contra 233 da ARENA. Em 1974,conquistou 161 cadeiras, e a maioria da ARENA desceu para 203cadeiras. Nas assembléias estaduais, a oposição ganhou 45 das 70cadeiras no Estado de São Paulo, 65 das 94 no Rio de Janeiro ecompleto controle das importantíssimas assembléias do Paraná edo Rio Grande do Sul. Para muitos observadores políticos, como para membros do próprio MDB, a vitória da oposiçãosurpreendia como uma inversão das tendências eleitorais. Aseleições foram em geral consideradas equivalentes a um plebiscito em que os eleitores votaram antes contra o governo doque na oposição (Alves, 1984, p. 189).

    O resultado negativo para a ARENA das eleições parlamentares de 197410 suscitaduas constatações. A primeira é a de que o regime autoritário não detinha a legitimidade política que seus próceres esperavam, apesar do crescimento econômico – ocorrido principalmente durante o período do governo Médici que ficou conhecido por “milagreeconômico” – que, em 1974, já demonstrava sinais evidentes de desgaste11. Uma das possíveis causas dessa carência de legitimidade política foram os altos níveis de repressão

    empreendidos contra a oposição durante o período Médici. É importante lembrar que essarepressão se deu em boa parte contra estudantes, profissionais liberais, líderes políticosdemocráticos, intelectuais e artistas, que são classicamente tidos como agentesimportantes na formação da “opinião pública”. Por mais sucesso econômico que pudesseobter o autoritarismo brasileiro, era muito difícil esconder da população – principalmente

    8 Segundo Lamounier, “o significado imediatamente intuitivo de voto plebiscitário é o devotação polarizada em termos da simples aprovação ou rejeição de uma proposição, ou daconfiança ou desconfiança que os detentores do poder inspiram no povo” (Lamounier,1988, p. 111).9  Na disputa no Senado, o MDB fez 14.579.372 votos contra 10.068.810 da ARENA(Alves, 1984, p. 189).10 Para uma análise mais detalhada da vitória política do MDB nas eleições de 1974 emtrês estados brasileiros (São Paulo, Minas Gerais e Rio Grande do Sul), são importantesos resultados dos surveys analisados respectivamente nos artigos de Bolívar Lamounier,Fábio Wanderley Reis e Hélgio Trindade (Cardoso & Lamounier, 1978).11 Acerca das causas das dificuldades econômicas enfrentadas pelo regime autoritário a partir de 1973, ver a análise de Luiz Carlos Bresser Pereira (1978), principalmente oscapítulos VIII, IX, X, XII, XIV e XVI.

  • 8/17/2019 Significante vazio.pdf

    7/22

  • 8/17/2019 Significante vazio.pdf

    8/22

      8

    Absorvido o impacto da derrota de 1974, a preocupação imediata do governo emrelação à arena eleitoral passou a ser com as eleições municipais de 1976. ConformeAlves (1984), tendo por base estudos realizados pelo Serviço Nacional de Informações(SNI), constatou-se que o acesso ao rádio e à televisão obtido pelos partidos no períodoeleitoral, contribuiu muito para a vitória oposicionista em 1974. Era necessário, portanto,

     para uma vitória eleitoral da ARENA, que o governo autoritário impedisse novamente talacesso, tendo em vista as eleições municipais de 1976 e o pleito para o Congresso Nacional e às assembléias legislativas em 1978. A medida limitativa do acesso ao rádio eà televisão foi o Decreto-Lei n° 6.639/76, que ficou conhecido como a “Lei Falcão”. Oreferido Decreto-Lei limitava que a aparição dos candidatos durante a campanha eleitoralno rádio e na televisão ficasse restrita à divulgação do nome, do número e de um brevecurrículo, além de uma foto, no caso da campanha de televisão. O objetivo dessalimitação era, sobretudo, impedir a apresentação de propostas e críticas ao regimeoriundas dos candidatos do MDB.

    Mesmo com o auxílio casuístico da Lei Falcão, o resultado das eleições de 1976ficou aquém do esperado pelo governo. A ARENA obteve mais ou menos 35% do total

    dos votos contra cerca de 30% do MDB (Alves, 1984, p. 191). Se, por um lado, o partidogovernista venceu facilmente nas cidades situadas nas regiões mais pobres e menosdesenvolvidas do país, por outro lado, a vitória do MDB ocorreu principalmente emlocais com os maiores índices de desenvolvimento econômico. A oposição, portanto,conquistou a maioria das câmaras municipais de Porto Alegre, de São Paulo, do Rio deJaneiro, de Belo Horizonte, de Salvador, de Santos e de Campinas.

    Como a Lei Falcão não conseguiu conter o crescimento eleitoral do MDB, principalmente nos grandes centros urbanos e, tendo em vista que a legislação eleitoral previa para 1978 – além da escolha de novos parlamentares ao Congresso Nacional e àsassembléias legislativas – a eleição direta dos governadores dos estados, o governoautoritário estava na iminência de mais uma vez ser derrotado eleitoralmente. Eramnecessárias, portanto, novas medidas restritivas ao avanço do MDB. Entretanto, osdispositivos legais a serem alterados eram constitucionais e, portanto, requeriam doisterços dos votos do Congresso Nacional, ou seja, uma maioria qualificada que o governonão dispunha, como vimos, desde os resultados das eleições de 1974.

    Assim, utilizando-se o Ato Institucional n° 5, Geisel fechou o Congresso em 1° deabril de 1977, e decretou uma “reforma constitucional”, que ficou conhecida por “pacotede abril”. Tal “reforma” visava principalmente a promover alterações na legislaçãoeleitoral em razão das eleições de 1978 que se avizinhavam. A partir do “pacote de abril”a aprovação de emendas constitucionais dependeria tão somente da votação de maioriasimples no Congresso Nacional; os governadores dos estados e um terço dos senadores

    seriam eleitos indiretamente por colégios eleitorais estaduais, bem como os efeitos da LeiFalcão permaneceriam vigentes. O “pacote de abril” representou claramente a admissãode que o regime autoritário carecia de legitimidade política, tendo em vista que, paramanter maioria no Senado e o controle dos poderes executivos estaduais, era necessáriorecorrer às eleições indiretas que, na prática, representava a escolha de membros doregime para a ocupação dessas cadeiras.

    Apesar dessas medidas casuísticas visando à vitória da ARENA, o MDB obteveainda um excelente desempenho eleitoral. Na disputa pelo Senado, por exemplo, o

  • 8/17/2019 Significante vazio.pdf

    9/22

      9

     partido oposicionista conquistou 4,3 milhões de votos a mais do que a ARENA. Contudo,apesar desta importante diferença pró-oposição, o MDB conquistou apenas nove cadeirasno Senado contra 36 da ARENA. Dessas 36 cadeiras conquistadas pela ARENA, “21foram ganhas nas eleições indiretas dos colégios eleitorais aumentados nos estados”(Alves, 1984, p. 200). Na Câmara dos Deputados, a ARENA elegeu 231 deputados contra

    189 do MDB. O “pacote de abril” conseguiu, assim, conter o avanço da oposiçãoemedebista e garantir a maioria da ARENA no Congresso Nacional.

    Já o processo eleitoral de 1982 – o primeiro desde a volta do pluripartidarismo em1979 – representou um passo decisivo no processo de redemocratização. O governo, prevendo mais uma derrota, editou, em novembro de 1981, outro subterfúgio eleitoralque ficou conhecido por “pacote de novembro”. Esse conjunto de medidas restringia a participação dos partidos de oposição15, que excluindo o PMDB, ainda eramorganizações débeis e sem abrangência nacional.

    A resposta imediata da oposição a mais uma medida legal restritiva foi aincorporação do Partido Popular ao PMDB. Com isso, o PMDB ganhou importantereforço eleitoral para enfrentar o pleito de novembro de 1982. A incorporação do PP peloPMDB reinstituiu, na prática, em quase todas as disputas estaduais, o bipartidarismo presente durante praticamente todo o regime autoritário. Assim, a campanha eleitoral foiextremamente competitiva, com a realização de intensos debates entre partidos ecandidatos, principalmente às vagas ao Senado Federal e aos governos dos estados. Acampanha foi marcante também pelo grande envolvimento da sociedade civil.

    O resultado eleitoral foi novamente positivo para a oposição. Entretanto, o PDS, justamente em função das medidas restritivas do “pacote de novembro”, conseguiu aindamanter sua maioria no Congresso Nacional: 235 deputados federais e 46 senadores,contra 200 deputados e 21 senadores do PMDB16. Para os executivos estaduais, o PDSelegeu 12 governadores, contra 9 do PMDB e 1 do PDT.

    As eleições de 1982 representaram o último grande plebiscito contrário aoautoritarismo antes do movimento das “diretas já”. No sentido da reordenaçãoinstitucional do poder político esse pleito representou, na análise de Lamounier,  “ummarco verdadeiramente significativo”.

    A eleição de 10 governadores oposicionistas e a perda pelogoverno da maioria absoluta da Câmara dos Deputados deu aosistema político um caráter diárquico (como sugere Juan Linz), eelevou substancialmente o nível do confronto no que diz respeitoà própria sucessão presidencial (Lamounier, 1985, p. 134).

    15 Algumas medidas da reforma eleitoral anunciada pelo presidente Figueiredo em 25 denovembro de 1981 foram: 1. proibição de coalizões para escolha de candidatos aosgovernos dos estados; 2. obrigatoriedade de votação num mesmo partido em todos osníveis em disputa (de vereador a governador); 3. impedimento da renúncia decandidaturas, salvo se o partido desistisse de concorrer na eleição.16 Os demais partidos obtiveram os seguintes resultados: PDT, 24 deputados e 1 senador;PTB, 13 deputados e 1 senador e; PT, 8 deputados e não obteve vaga no senado (Alves,1984, p. 286).

  • 8/17/2019 Significante vazio.pdf

    10/22

      10

    O tipo de transição operada no Brasil, pela via eleitoral, gerou, apesar dos muitosconstrangimentos à oposição partidária aqui relatados, uma “distribuição de votosfrancamente competitiva” (Lamounier, 1985, p. 128) entre governo e oposição, a pontode, nas eleições de 1982, o partido governista nitidamente ter perdido o controle do processo de transição e a situação política tornar-se instável, permitindo a emergência de

    um movimento popular da dimensão das “diretas já”, como veremos a seguir. Em relaçãoà constituição do “imaginário popular oposicionista” ao regime militar, entendemos ser avia eleitoral um meio eficaz de medição de legitimidade (ou sua da falta) por parte de umgrupo político no exercício de um governo. Se não fossem as medidas eleitoraisrestritivas e casuísticas, não seria demais afirmar que o regime autoritário colecionariaderrotas eleitorais em escala muito mais significativa.

    2.2. A contestação do regime autoritário pelos movimentos sociais

    O sentimento oposicionista demonstrado eleitoralmente pela população não foi oúnico do período autoritário brasileiro. No final da década de 1970, emergiram no paísmovimentos sociais que evidenciaram ainda mais o paulatino decréscimo de legitimidade política da situação autoritária.

    É importante registrarmos que a emergência dos movimentos sociais foi possível a partir da estratégia da distensão, empreendida inicialmente pelo governo Ernesto Geisel.Como mencionamos acima, a disposição do regime de se legitimar politicamente perantea população fez com que, a partir de suas próprias estruturas, iniciasse o projeto deliberalização política, o que, em grande medida, encorajou a emergência de movimentossociais que buscavam a observância de suas demandas específicas por parte do Estado. Nas palavras de Przeworski: “uma vez que a repressão diminui, por quaisquer razões, a primeira reação é a explosão de organizações autônomas da sociedade civil.Organizações estudantis, sindicatos e protopartidos se formam do dia para a noite”(Przeworski, 1989, p. 27).

    É importante ainda salientarmos que se, por um lado, a emergência dessesmovimentos se deu em conseqüência de uma maior liberalização política, por outro,restou claro que o acolhimento de suas demandas específicas por parte do Estado eraextremamente limitado em função da estrutura estatal autoritária que impedia a participação popular 17.

    Desta forma, entendemos que não é necessário que um movimento socialreivindique diretamente o fim do regime autoritário para que este ameace a existência doautoritarismo. Isso porque o que era comum a todos os movimentos sociais do final dadécada de 1970 era que suas demandas específicas entravam em constante choque com

    17  Acerca da problemática entre Estado autoritário e movimentos sociais concordamoscom a interpretação de Przeworski: “Assim, por um lado, as organizações autônomasemergem da sociedade civil enquanto, do outro, não existem instituições às quais possamapresentar suas posições e com as quais possam negociar seus interesses. Por causa dessehiato entre a organização autônoma da sociedade civil e o caráter fechado das instituiçõesestatais, o único lugar onde os grupos recém-organizados podem eventualmente lutar porseus valores e interesses são as ruas” (1989, p. 27-28).

  • 8/17/2019 Significante vazio.pdf

    11/22

      11

    um regime que, conforme de Forget18, via “todos os brasileiros” da mesma forma, ouseja, como membros de uma idêntica nação, não reconhecendo, portanto, movimentosque reivindicassem demandas específicas. O não atendimento das demandas dessesmovimentos sociais favoreceu em muito o desenvolvimento do “imaginário popularoposicionista” em relação ao regime autoritário. Inúmeros movimentos sociais emergiram

    nesse período. Mencionaremos, contudo, somente três deles, partindo das grevesoperárias do ABC paulista, entre os anos de 1978 e 1980, passando pelos movimentos populares e pelo movimento feminista.

    As greves operárias da região do ABC paulista foram lideradas por uma corrente domovimento sindical brasileiro que ficou conhecida por “sindicalismo autêntico” ou “novosindicalismo”. Os “autênticos” formavam um grupo de novos sindicalistas oriundos principalmente de indústrias de setores pesados e de ponta da economia brasileira, comometalúrgicas, siderúrgicas, refinarias de petróleo e petroquímicas. Esse grupo desindicalistas representou uma nova visão na relação existente entre capital e trabalho emcontraposição ao sindicalismo tradicional brasileiro instituído no período populista19. Os“autênticos” demandavam um movimento sindical totalmente desatrelado do Estado.

    Suas reivindicações colidiam frontalmente com a legislação trabalhista da época, que previa uma organização sindical sob a tutela do Ministério do Trabalho e impedia anegociação coletiva direta entre trabalhadores e empresários.

    O “novo sindicalismo”, portanto, em contraposição à legislação trabalhista vigente, propunha, como uma de suas principais bandeiras de luta, o estabelecimento danegociação direta entre patrões e empregados sem a intromissão do Ministério doTrabalho. Um sindicalismo de clara inspiração liberal-democrática, como definiuAlmeida, cujas propostas principais eram:

    1°) substituição da política salarial normativa e autoritariamenteimposta, pela contratação livre e direta entre sindicatos e

    empresas, sem ingerência das autoridades e órgãos públicos; 2°)luta por uma organização sindical livre a autônoma, liberta parasempre da tutela incômoda do Ministério do Trabalho, efirmemente ancorada nos locais de trabalho, por meio de comitês,com direito assegurado à existência; 3°) direito irrestrito à greve,como condição e corolário da liberdade sindical (Almeida, 1982, p. 83).

    18  Nesse ponto, concordamos com a análise de Forget acerca da idéia-força quecaracteriza a maioria dos discursos autoritários: “A grande maioria dos discursosautoritários se baseia em temas de colorações drásticas, e os proferidos no Brasil duranteo regime militar não escapam à regra. (...) A defesa da nação, ou ainda da pátria ou do país, representa o ideal máximo: nesse sentido não se luta por interesses individuais ou declasse, mas por uma causa comum, cujo caráter ufanista e abstrato dispensa maioresdefinições” (1994, p. 35-36).19 Não trataremos aqui das divergências no interior do movimento sindical brasileiro nofinal da década de 1970. Para um balanço crítico das contradições do sindicalismo no período autoritário, ver o artigo "O Sindicalismo Brasileiro entre a Conservação e aMudança", de Maria Hermínia Tavares de Almeida (Almeida, 1983). 

  • 8/17/2019 Significante vazio.pdf

    12/22

      12

    A defesa das propostas dos “autênticos” manifestou-se a partir das paralisações edas greves de 1978, 1979 e 1980. As greves de 1978 foram as primeiras depois da granderepressão aos movimentos grevistas de 1968. No setor metalúrgico, as greves tiveraminício com os trabalhadores de São Bernardo do Campo e logo se espalharam por váriosmunicípios da grande São Paulo. As paralisações foram curtas na maioria das empresas,

    sem maiores incidentes violentos e, muitas vezes, sem a interferência sindical, a partir daorganização dos próprios trabalhadores nos locais de trabalho. Apesar de muitas paralisações terem ocorrido por iniciativa direta dos trabalhadores, os sindicatos foram osque estabeleceram as negociações diretas com o empresariado, como fica ilustrado na passagem de Keck (1988):

    Desta forma, apesar de não ter sido o sindicato quem fez com queos trabalhadores do turno das 7:00 da Scania cruzassem os braços junto às máquinas no dia 12 de maio de 1978, foi ele quem foichamado para fazer a negociação, uma hora depois de iniciada agreve. Em poucos dias, os trabalhadores da Ford e de outrasmontadoras seguiram o exemplo da Scania. As negociações

    através do sindicato conseguiram um aumento de 11%, quase odobro do que a Scania oferecera a princípio (Keck, 1988, p. 398).

    O resultado das reivindicações de 1978 foi considerado positivo pelo “novosindicalismo”, uma vez que as negociações entre patrões e empregados se deram sem ainterveniência dos ministérios da Justiça e do Trabalho. A tolerância, tanto por parte dogoverno autoritário, como por parte do empresariado em relação à negociação direta de1978, parecia apontar, na visão dos sindicalistas da época, para uma expectativa demudança na legislação trabalhista vigente e, com isso, o ingresso das relações de trabalhona pauta da transição política, ponto que até então, tanto governo, como oposição partidária, negligenciavam o debate.

    Já os movimentos de 1979 e 1980 caracterizaram-se por uma maior centralizaçãodas greves por parte dos sindicatos. Representou, também um aumento significativo nonúmero de paralisações: 224 em 1979 contra 136 no ano anterior (Almeida, 1982, p. 94).Além do aumento significativo no número de paralisações, essas atingiram tambémoutras categorias laborais, principalmente nas grandes cidades do centro-sul, comorodoviários, bancários, lixeiros, médicos, professores, entre outros. O comportamento,tanto dos empresários, como do governo, também se alterou. Por parte dos empresários,ocorreu um aumento da resistência em negociar com os trabalhadores. Um motivoimportante para o aumento dessa resistência se deu pelo fato de que as greves de 1979 e1980 caracterizaram-se pela paralisação de categorias inteiras, contrastando com as paralisações localizadas de 1978. As negociações, portanto, alteraram suas

    características. Como os sindicatos estavam mais bem preparados e organizados paraenfrentar as greves, eles conseguiram condensar as reivindicações gerais de cadacategoria. Isso representava um aumento substancial do poder e do papel dos sindicalistasna mesa de negociação com o empresariado. Do lado do governo, voltou-se a aplicar alegislação trabalhista vigente, que previa a intervenção do Ministério do Trabalho, e queconsiderava a greve como um instrumento ilegal de manifestação dos trabalhadores. Essaintervenção governamental resultou em medidas autoritárias como a intervenção desindicatos e a destituição e prisão de líderes e de diretores sindicais.

  • 8/17/2019 Significante vazio.pdf

    13/22

      13

    Assim, a expectativa de um novo tempo nas relações de trabalho no Brasilvislumbrada pelo “novo sindicalismo”, principalmente após os resultados positivos domovimento sindical em 1978, foi abandonada com as malogradas experiências grevistasde 1979 e 1980. Além disso, o poder do movimento sindical em mobilizar protestos egreves diminuiu substancialmente no início da década de 1980, tendo em vista o

    crescimento dos níveis de desemprego em função da recessão econômica do período(Almeida, 1982).

    Assim como o movimento sindical, os movimentos populares foram tambémimportantes na contestação do regime autoritário e na constituição do “imaginário popular oposicionista”. Os “movimentos populares”20  que estamos tratando aqui sãoorganizações locais que reivindicam do Estado (em todos os níveis e esferas decompetência) questões pontuais atinentes às comunidades suburbanas das grandescidades, como implantação de redes de água e esgoto, fornecimento de luz elétrica,asfaltamento de ruas, construção de escolas, etc. Subjacentes a essas demandas pontuais eà difícil resposta do Estado a todas elas, estão questões políticas mais gerais, como a própria oposição desses movimentos populares ao regime autoritário.

    É interessante ressaltarmos que, na maioria das vezes, a constituição dosmovimentos populares tem origem externa às próprias comunidades. Igreja Católica,médicos, professores, advogados, arquitetos, militantes de partidos de esquerda, foramatores de extrema importância na mobilização e na formatação técnica das demandas dosmovimentos populares, conforme aponta Ruth Cardoso:

    Além da Igreja, grupos de profissionais oferecem assessoriastécnicas valiosas. O movimento de loteamentos clandestinos, porexemplo, não existiria sem o apoio voluntário de algunsadvogados. Arquitetos, professores e médicos tambémcolaboraram com grupos populares, desejosos de dar sentido

     político ao seu saber profissional (Cardoso, 1983, p. 231).O papel da Igreja Católica merece, nesse contexto, destaque especial. Ralph Della

    Cava (1988) enfoca como o quarto momento21  da relação entre Igreja Católica esociedade brasileira no período autoritário, entre 1978 e 1985, o período em que asComunidades Eclesiais de Base (CEBs) trabalharam efetivamente na organização das populações carentes para que estas exigissem do Estado autoritário medidas objetivas àmelhoria de suas realidades locais. Não obstante, a atuação das CEBs foi além: tendo por

    20 Para um pertinente estudo de caso acerca dos movimentos populares, ver a análise deScott Mainwaring sobre o Movimento de Amigos de Bairro (MAB) de Nova Iguaçu - RJ(Mainwaring, 1988).21 Os três primeiros momentos históricos das relações entre a Igreja Católica e o Estadoautoritário são: o primeiro, entre 1964 e 1968-69, marcado por divisões ideológicas e políticas no clero entre “conservadores” e “progressistas”, com maior influência dos“conservadores”. O segundo momento, iniciado em 1968-69, teve duração até o final de1973 e ficou marcado por um crescente movimento de oposição do clero ao regimeautoritário que estava no auge da repressão política. O terceiro momento, entre 1973/74a1978, ficou conhecido pelas posições e ações da Igreja profundamente críticas aoautoritarismo.

  • 8/17/2019 Significante vazio.pdf

    14/22

      14

     base a reivindicação das demandas locais, o trabalho desenvolvido visava também àformação de uma consciência popular socialista e diametralmente oposta ao regimeautoritário (Cava, 1988).

    Dessa forma, o “processo de abertura”, além das disputas entre membros da elite política, perpassou também pelas reivindicações dos mais pobres. Assim, os movimentos

     populares urbanos surgiram e desafiaram o autoritarismo. Suas demandas poderiam nãoser diretamente o “fim da ditadura”, ou o “restabelecimento da democracia”. Contudo,seguramente pode-se dizer que essas questões mais gerais eram o pano de fundo parauma população que reivindicava o que tem de vir antes de tudo: água tratada, esgoto pluvial, asfalto, moradia, escolas. Exigiram com veemência e radicalismo ações doEstado autoritário para que lhes fossem garantidas condições humanas dignas. Comoopositores do autoritarismo foram os mais ferozes, os menos tolerantes e os maisdesesperados.

    Assim como os movimentos populares, nesse mesmo período, surgiram tambémvários movimentos de mulheres por todo o país. Em meados da década de 1970, portanto,tanto mulheres de classe média e nível superior, como mulheres pobres e com poucainstrução formal, organizaram movimentos para pressionar o governo autoritário comreivindicações políticas específicas de gênero. A luta das mulheres foi difundida emvários setores da sociedade, como na formação de inúmeras entidades civis feministas, noengajamento nos partidos políticos de oposição e na participação ativa no movimentosindical também nascente no período22.

    O surgimento dos movimentos de mulheres desafiava o regime autoritário, poisrestava claro, pelo menos aos grupos feministas mais intelectualizados, que a luta políticaem direção à redemocratização era o primeiro caminho que deveria ser percorrido paraapós, numa sociedade mais democratizada, reivindicarem políticas específicas de gênero.

    Com isso não estamos afirmando que as feministas, durante o período autoritário,

    anularam suas demandas de gênero para apenas se incorporarem na luta mais geral pelaredemocratização. Creches, planejamento familiar, métodos de controle de natalidade,igualdade em relação ao homem no contrato matrimonial, luta contra a violência em casa,salários iguais e redistribuição do trabalho doméstico (Alvarez, 1988), eram algumasdemandas que o movimento feminista no Brasil reivindicava ao Estado brasileiro. Ocorreque o regime autoritário não reconhecia tais demandas de gênero como legítimas.Ademais, quaisquer demandas específicas não tinham o mínimo reconhecimentoinstitucional, como demonstra Céli Pinto:

    O projeto autoritário tratou de anular diferenças e construirsujeitos-políticos únicos, ao mesmo tempo em que, por sua

    natureza conservadora, reforçou a construção de sujeitoshistoricamente retrógrados. Esses sujeitos eram construídos a partir de interpelações conservadoras que pretendiam reforçar ascondições de emergência onde tomavam lugar. (Pinto, 1987, p.169).

    22 Para uma análise das relações de gênero no seio do movimento sindical brasileiro no período do surgimento do "novo sindicalismo", ver Brito (1986).

  • 8/17/2019 Significante vazio.pdf

    15/22

      15

    Buscamos demonstrar até aqui que, tanto pela via eleitoral, como a partir daemergência dos novos movimentos sociais, o governo militar assistiu o crescimento do“imaginário popular oposicionista” e o conseqüente decréscimo de sua legitimidade política. Eleições de 1974, 1976, 1978, movimentos sociais no final da década de 1970,restabelecimento do pluripartidarismo, eleições de 1982. O caldeirão oposicionista estava

    esquentando. Contudo, a grande explosão de participação e ânimo popular contra oregime ainda estava por vir. A Campanha das “diretas já” representou o coroamento e o ponto nodal de múltiplas demandas, constituindo-se num significante vazio comodemonstraremos na próxima seção.

    3. A Condensação do Imaginário Popular Oposicionista nas “Diretas Já”

    A origem da Campanha das “diretas já” remonta março de 1983. Nos primeirosdias da legislatura, o deputado federal Dante de Oliveira (PMDB/MT) protocolou naCâmara dos Deputados um projeto de emenda constitucional que previa alteraçõesimportantes nas regras da eleição para presidente da República. Essa eleição, queconstitucionalmente estava prevista para ser indireta passaria, se aprovado o projeto, a serrealizada a partir de sufrágio universal.

    Tão logo foi protocolada, a emenda conquistou a simpatia e o apoio de entidadesimportantes da sociedade civil, conforme constatou Forget:

    A Igreja assume um papel importante após endossar a emendaem abril de 83; o mesmo ocorre com os sindicatos, que,encabeçados por Lula, realizam uma verdadeira campanha demanifestações públicas ao lado de alguns membros do patronato.Os advogados, sempre atentos aos debates jurídicos dos últimosanos, exercem pressões sobre os grupos juntando-se a profissionais liberais, intelectuais e mesmo artistas (Forget, 1994, p. 164).

    É importante destacarmos que o apoio dado por diversas entidades da sociedadecivil à emenda Dante de Oliveira retirou do âmbito meramente legislativo o monopóliodessa discussão política, tornando a disputa pró ou contra eleições diretas paraPresidência da República um tema debatido pelos mais amplos setores da sociedade brasileira. Este é um elemento extremamente importante, tendo em vista que os atoslegislativos concernentes à emenda passaram a ter relevância, não meramente aos profissionais da política, mas também aos grupos e indivíduos que, geralmente, estão forada disputa política e que, nesse momento pontual, buscaram influir no processo político,na direção do que afirma Gaxie:

     Negócio de profissionais, a política interessa (em todos os seus

    sentidos) primeiramente, aos profissionais e seus partidários (...). Não que os outros sejam desprovidos de meios de influenciar os processos políticos. Através da ação dentro das organizações profissionais, as greves, as manifestações, as petições, levantes populares, as rebeliões, as insurreições ou as revoluções, osagentes habitualmente excluídos da luta pelo poder podem serlevados à influenciá-los (Gaxie, 1978, p. 41).

  • 8/17/2019 Significante vazio.pdf

    16/22

      16

    Conforme Gaxie, ordinariamente a prática política interessa primeiramente aos seus profissionais, conhecedores de sua lógica de funcionamento e de seus limites. Nessesentido, independente do regime, a dimensão da política é comumente administrada poresses profissionais. Entretanto, existem momentos em que outros grupos sociais –ordinariamente estranhos à disputa política cotidiana – conseguem influenciar a arena

     política. Isso porque, o espaço político, principalmente o parlamentar, mostra-secomumente sensível às pressões externas. Dessa forma, é interessante notar que o apoioao projeto das diretas por parte de entidades da sociedade civil organizada como a IgrejaCatólica, os sindicatos e as entidades de profissionais liberais passou objetivamente a pressionar os parlamentares a aprovarem tal emenda em pleno autoritarismo, ou seja,durante um regime político que, apesar de claros sinais de liberalização, representavainequivocamente uma ideologia política que vedava a participação popular nas decisões públicas.

    Assim, como afirmamos acima, as primeiras pressões populares pró-diretasremontam a abril de 1983, através das manifestações de entidades da sociedade civilorganizada. O início oficial da Campanha ocorreu, contudo, somente em janeiro de 1984.

     Nesse período – entre o protocolo do projeto de emenda constitucional e o comíciorealizado em Curitiba23 – registrou-se o recebimento de várias adesões da sociedade civilao movimento que ainda estava por acontecer 24.

    Em novembro de 1983, por exemplo, a revista “Veja” registrou que o projeto doDeputado Dante de Oliveira havia recebido o apoio de todos os dez governadoresoposicionistas. Positivamente sintomático à campanha foi o anúncio da revista do apoio àemenda de nove dos trezes governadores do então partido governista, o PDS (Veja n°794, 23/11/83, “Uma Direta no PDS”, p. 37). Na mesma matéria, a revista destaca aindaque Joaquim dos Santos Andrade, o Joaquinzão, presidente do Sindicato dosMetalúrgicos de São Paulo, reuniu sindicalistas “para levar a campanha pela direta para a porta das fábricas” (p. 37). Outras manifestações pró-diretas ocorreram no mês denovembro, como o ato público e o abaixo-assinado de artistas, realizado nas escadariasdo Teatro Municipal de São Paulo (Veja n° 795, 30/11/83, “Diretas já ou em 1986”, p.36).

    Tanto a revista “Veja”, como a “Isto É”, divulgaram dados de pesquisas de opiniãofavoráveis à realização de eleições diretas. A “Veja” divulgou a enquete realizada peloInstituto Gallup que apontou, em junho de 1983, que 79% dos paulistas e cariocas preferiam a realização de eleição direta à Presidência da República (Veja n° 796,

    23 O comício realizado em 12 de janeiro de 1984 na cidade de Curitiba/PR é tido pelosorganizadores do movimento, os partidos políticos de oposição, como o evento oficial de

    abertura da campanha das “diretas já”.24 Algumas dessas adesões são registradas pela revista “Veja”: “Existem poucos sinais visíveis da evidentesimpatia popular pela eleição direta, como os adesivos plásticos colados às janelas dos veículos quecirculam no Rio de Janeiro. “Brasil Urgente – Diretas para Presidente”, pregam esses adesivos,encomendados por um grupo de arquitetos cariocas que decidiu levar a campanha às ruas. Cerca de 6.000 jáforam vendidos no mês passado, boa parte dos quais por um Comitê do Rio de Janeiro por Eleições Livrese Diretas, que reúne cerca de oitenta sindicatos e associações de bairro. O comitê pretende lançar ummanifesto no próximo dia 21 e prepara um abaixo-assinado, a ser enviado ao Congresso, solicitandomudanças na Constituição que permitam o povo escolher o presidente” (Veja n° 792, 09/11/83, “As diretasno páreo”, p. 40).

  • 8/17/2019 Significante vazio.pdf

    17/22

      17

    07/12/83, “A direta pára no PDS”, p. 42). Essa mesma pesquisa foi também publicada pela “Isto É”, que adicionou ainda os dados relativos as enquetes realizadasanteriormente. Portanto, além dos 79% registrados em junho de 1983, as enquetes doInstituto Gallup, realizadas em 1981, 1982 e em fevereiro de 1983, respectivamente,registraram o crescimento da preferência do eleitorado paulista e carioca em relação à

    eleição direta para presidente na ordem de 63%, 68% e 74% (Isto É n° 361, 23/11/83,“Foi dada a partida”).

    As manifestações de apoio à emenda Dante de Oliveira cresceram ainda mais entre janeiro e abril de 1984. Vários são os exemplos que podem ser apontados. Na edição de“Veja” n° 805, de 08 de fevereiro, a Confederação Nacional dos Professores do Brasil,em apoio à emenda, distribuiu material as suas entidades filiadas, “orientando os professores sobre como abordar o tema da direta com os alunos” (p. 28). Nessa mesmamatéria, noticiou a revista que “em Belo Horizonte, os funcionários de sindicatos dostrabalhadores já atendem telefonemas substituindo o tradicional alô pela frase “sindicato pela direta” (p. 28). Faixas, cartazes e outros materiais com inscrições como legalizaçãodos partidos comunistas, “democracia nas universidades” (Veja n° 808, 29/02/84, “O

    grito dos mineiros”, p. 20), “direitos da mulher, diretas já” (Veja n° 814, 11/04/84, “Bolade Neve”, p.24), dentre outros, podiam facilmente ser vistos nas dezenas de comícios daCampanha. A própria organização do comício realizado em São Paulo, em 25 de janeirode 1984, contou com uma heterogênea organização:

    Preocupante, para Brasília, era o fato de que, durante mais de ummês, a preparação do comício juntou em uma inédita maratona dereuniões, em dias e dias de trabalho minucioso e interminável,representantes de todos os partidos de oposição, das variadasentidades representativas da sociedade civil, dirigentes sindicaisfiliados à CUT e à CONCLAT, católicos e protestantes –subitamente unidos em torno de uma palavra de ordem que outravez, como nos tempos mais difíceis, reuniu todos sob o mesmoteto amplo (Isto É, n° 371, 02/02/84, “O gigante que desperta”, p.17-18).

    O grande número de entidades da sociedade civil que participaram da campanhadas “diretas já” – sindicatos, organizações de estudantes, grupos feministas, entidadesreligiosas, associações de moradores – demonstram a importância dessa campanha na lutacontra o regime autoritário, o único elo que insistia na manutenção de eleições indiretas para presidente. Não se tratava somente de reivindicar “diretas já”. A idéia inicial daemenda Dante de Oliveira, que gerou a campanha popular, esvaziou seu conteúdoespecífico. Quanto mais avançavam os dias – entre janeiro e abril – mais pessoas se

    engajavam nesse movimento, mais demandas específicas eram incorporadas: maiselementos ingressavam nessa cadeia de equivalências discursiva que tinha como pontonodal a campanha pela volta do direito de votar no presidente.

     Nesse sentido, para muitos grupos – e esta é a questão fundamental – lutar poreleições diretas para presidente da República, um expediente que muitos paísesdemocráticos dispensam e nem por isso deixam de ser considerados democráticos,representava muitas vezes um pretexto para demandarem suas questões pontuais, as quaisnão vinham tendo espaço de emergência naquela situação autoritária. Como vimos acima,

  • 8/17/2019 Significante vazio.pdf

    18/22

      18

    havia manifestantes que, além das diretas, reivindicavam, dentre muitas outras questõesespecíficas, a democratização nas universidades, mais direitos civis às mulheres, ou seja,questões que não possuíam nenhuma ligação direta com a regra formal de votar para presidente.

    O que deve ser percebido nestas manifestações para além das “diretas já” é que

    somente derrotando o regime autoritário – o corte antagônico e ameaçador dasidentidades constituidoras do sistema discursivo “diretas já” – e reinstituindo ademocracia, esses movimentos viam a possibilidade de demandar suas políticasespecíficas que só poderiam ser reconhecidas por um regime político que admitisse aexistência de diferenças, contrariamente a um regime autoritário que, por definição, tendea igualar todos os “cidadãos” do Estado sob os preceitos e bases de sua “revolução”.

    O grupo político contrário às “diretas já” restringia-se ao governo federal e àmaioria do PDS. O interesse imediato desse grupo era o de eleger o sucessor do presidente João Figueiredo. Acreditavam que, para isso, era necessário que a eleição presidencial se mantivesse indireta.

    Já o grupo pró-diretas não pode ser dimensionado com clareza, nem no que tange onúmero de identidades envolvidas, nem em relação aos seus múltiplos objetivoscondensados em torno da idéia que a todos abrigava: o direito de votar para presidente.Podemos exemplificar, mais uma vez o sentido hegemônico da campanha das diretasatravés da seguinte constatação registrada num editorial da revista “Veja”:

    Hoje o desejo de escolher o próximo presidente da República é amaior unanimidade popular já registrada na História do Brasil,algo que se afere não apenas pelo tamanho dos comícios, mas portoda e qualquer investigação de opinião pública que se possafazer. Nunca tantos quiseram a mesma coisa no mesmo tempo(Veja n° 815, 18/04/1984, Carta ao Leitor, p. 21).

    É importante, nesse ponto, estabelecermos uma diferenciação necessária entre a“emenda Dante de Oliveira” e a “campanha das diretas já”. A primeira propunha algocom sentido direto e restrito, ou seja, o restabelecimento da eleição direta para presidente.A segunda, tendo por origem o sentido estrito da primeira, refletiu-se, na verdade, numaverdadeira polissemia de sentidos absolutamente impossíveis de serem precisados: acampanha popular pelas eleições diretas transformou-se num significante vazio, umdiscurso hegemônico na sociedade brasileira daquele período. Desenvolveremos melhoresse ponto que é crucial em nosso argumento.

    Em sentido estrito, ou seja, o mesmo da emenda Dante de Oliveira, a campanha pelas “diretas já”, significou um movimento popular – liderado pelos partidos de

    oposição ao regime autoritário (PMDB, PDT, PTB e PT) – pelo restabelecimento deeleições diretas à Presidência da República. Entretanto, esse objetivo primeiro éinsuficiente para explicar o movimento como um todo.

    A campanha condensou muito mais sentidos do que simplesmente a demanda devotar para presidente. As “diretas já” foi o maior movimento político de oposição ao

  • 8/17/2019 Significante vazio.pdf

    19/22

      19

    regime autoritário25. Foi um discurso capaz de ampliar ad infinitum seus conteúdos esignificar o estabelecimento de um sentido hegemônico, um significante vazio, que, nolimite, deixava absolutamente claro que não era mais possível o Brasil viver sob a égideautoritária.

    A campanha das “diretas já” teve ainda o incontestável mérito de reunir em praça

     pública26, sob o eco de apenas um grito, milhões de manifestantes que, quando gritavam“diretas já”, bradavam também em prol de suas demandas identitárias: “direitos dasmulheres já”, “direitos dos trabalhadores já”, “liberdade irrestrita de expressão eassociação já”, “legalização dos partidos comunistas já”, “mais verbas para a educação já”, “reforma agrária já” enfim, múltiplas demandas e grupos sociais que, sob um grito possível de ser bradado, o grito das diretas, queriam, na verdade, muito mais do quesimplesmente votar num presidente. “Diretas já” era uma “senha” para reivindicar algomuito mais profundo e, talvez por isso, imperceptível para muitos manifestantes:significava lutar por democracia e romper, de uma vez por todas com um regime, queapesar de dez anos de abertura política, insistia ainda em manter o povo completamentemarginalizado do processo político.

    4. Considerações Finais

    Como vimos, a noção de significante vazio consiste na confluência de múltiploselementos em um discurso, a ponto de esse discurso perder seu sentido específico justamente pelo excesso de sentidos articulados.

    Um significante vazio é, ainda, um discurso capaz de se impor no campo dadiscursividade a ponto de poder representar uma idéia hegemônica. A força de umsignificante vazio está na própria possibilidade que essa categoria tem de explicar umdeterminado imaginário social, como o imaginário das “diretas já”. Nas palavras deErnesto Laclau:

    Se as cadeias equivalenciais estendem uma larga variedade dedemandas concretas, então a base das equivalências não pode serencontrada na especificidade de qualquer uma dessas demandas, pois está claro que o resultado do desejo coletivo encontrará seu ponto ancorador no nível do imaginário social e o centro do

    25  Na análise de Brasilio Sallum Jr.: “Antes de mais nada, a Campanha das Diretas,ligando a palavra à ação, consolidou e ampliou a posição da grande maioria da população, contrária ao regime militar e a seus mecanismos de dominação. Nesse sentido,cumpriu de forma mais intensa função similar à desempenhada pelos processos eleitoraisno processo político” (1996, p. 99).26  Das mais de cinco dezenas de comícios pelas diretas realizados em todo Brasil, onúmero de manifestantes de três deles merece especial destaque. Em 25 de janeiro de1984, em São Paulo, reuniram-se mais de 200 mil pessoas para reivindicarem eleiçõesdiretas. Em Belo Horizonte, em 24 de fevereiro, 250 mil manifestantes aglomeram-se para defender a aprovação da emenda Dante de Oliveira. Impressionante mesmo,contudo, foi a monstruosa cifra de mais de um milhão de pessoas reunidas na Praça daSé, no Rio de Janeiro em 10 de abril de 1984, momento que se constituiu na maiormanifestação pública da história do Brasil.

  • 8/17/2019 Significante vazio.pdf

    20/22

      20

    imaginário social é o que nós chamamos de significantes vazios(Laclau, 2000, p. 210).

     Nesse sentido de “imaginário social”, a campanha das “diretas já” constituiu-senum discurso com características de significante vazio. Criou inúmeras expectativas paraos brasileiros que, segundo as dimensões dos maiores comícios realizados em São Paulo,

    Belo Horizonte e Rio de Janeiro, conseguiu modificar completamente o cenário políticodo país, no sentido de que, pela primeira vez durante os vinte anos de regime militar, os próceres do autoritarismo viram seu poder político se esvaziar frente a uma até entãoinimaginável força oposicionista realmente de caráter popular. Se antes a oposição aoregime autoritário partia da institucionalidade dos partidos de oposição e dos movimentosidentitários isolados, com a campanha das “diretas já”, demandas por democraciasubstantiva ecoaram das vozes de milhões de brasileiros que organizados emmovimentos, identitários ou não, queriam definitivamente dar um basta a um regime político excludente. Demandar eleições diretas foi dizer não ao regime militar em geral enão ao governo Figueiredo em particular. Demandar eleições diretas também foi dizersim à democracia, um significante vazio por excelência.

    Enfatizamos, portanto, que o grande mérito da Campanha das “diretas já” foi o deter conseguido condensar o “imaginário popular oposicionista” ao regime autoritário queaté então estava disperso. Desta forma, pela primeira vez em vinte anos de ditadura, os brasileiros tiveram a oportunidade de se manifestar como cidadãos desejosos decidadania. Cidadania entendida de múltiplas formas – direitos sociais, equilíbrioeconômico, emprego, respeito às diferenças, dentre outras significações – que somenteencontram espaços de emergência num regime democrático.

    Como se sabe, a campanha popular por eleições diretas não conseguiu forçarsuficientemente o Congresso Nacional a aprovar a emenda Dante de Oliveira. Por apenas22 votos, os deputados oposicionistas não conseguiram aprovar o projeto de emenda

    constitucional. Entretanto, o que os próceres do regime autoritário não esperavam é quenem com eleições indiretas eles conseguiriam se manter mais tempo no poder político doEstado. Mas esse é um outro capítulo desta mesma história.

    REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

    A DIRETA pára no PDS. Veja. São Paulo, n° 796, p. 42, 07/12/1983.ALMEIDA, Maria Hermínia Tavares de. Novas tendências do movimento sindical. In:TRINDADE, Hélgio (org.) Brasil em perspectiva: dilemas da abertura política. PortoAlegre: Sulina, 1982. p. 81-104.

     ______. O sindicalismo brasileiro entre a conservação e a mudança. In: SORJ, Bernardo,ALMEIDA, Maria Hermínia Tavares de (orgs.). Sociedade e política no Brasil pós-64.São Paulo: Brasiliense, 1983. p. 191-214.ALVAREZ, Sonia E. Politizando as relações de gênero e engendrando a democracia. In:STEPAN, Alfred (Org.) Democratizando o Brasil. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1988. p.315-380.ALVES, Maria Helena Moreira. Estado e oposição no Brasil (1964-1984).  Petrópolis:Vozes, 1984. 366p.

  • 8/17/2019 Significante vazio.pdf

    21/22

      21

    AS DIRETAS no páreo. Veja. São Paulo, n° 792, p. 40, 09/11/1983.BOLA de Neve. Veja. São Paulo, n° 814, p. 24, 11/04/1984.BRASIL. Constituição (1967). Constituição do Brasil. Senado Federal, Brasília, 2001.Disponível em: http://www.senado.gov.br. Acesso em: 02 maio, 2001BRESSER PEREIRA, Luiz Carlos. Pactos políticos: do populismo à redemocratização.

    São Paulo: Editora Brasiliense, 1985. 226p. ______. O colapso de uma aliança de classes. São Paulo: Editora Brasiliense, 1978.BRITO, Maria Noemi Castilhos. Participação sindical feminina no processo deredemocratização no Brasil. In: Revista de ciências sociais - IFCH/UFRGS.  PortoAlegre, v. 1, n. 1, p. 39-52, 1986.CARDOSO, Ruth Correa Leite. Movimentos sociais urbanos: balanço crítico. In: SORJ,Bernardo, ALMEIDA, Maria Hermínia Tavares de (orgs.) Sociedade e política no Brasilpós-64. São Paulo: Brasiliense, 1983. p. 215-239.CARTA ao Leitor. Veja. São Paulo, n° 815, p. 21, 18/04/1984. Editorial.CAVA, Ralph Della. A igreja e a abertura, 1974-1985. In: STEPAN, Alfred (Org.)Democratizando o Brasil. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1988. p. 231-274.

    CRUZ, Sebastião C. Velasco, MARTINS, Carlos Estevam. De Castello a Figueiredo:Uma incursão na pré-história da abertura. In: SORJ, Bernardo, ALMEIDA, MariaHermínia Tavares de (orgs.) Sociedade e política no Brasil pós-64.  São Paulo:Brasiliense, 1983. p. 13-61.DINIZ, Eli. O empresariado e a nova conjuntura. In: TRINDADE, Hélgio (org.). Brasilem perspectiva: dilemas da abertura política. Porto Alegre: Sulina, 1982. p. 105-120.DIRETAS já ou em 1986. Veja. São Paulo, n° 795, p. 36, 30/11/1983.DOR, Joël. O valor do signo lingüístico e o ponto-de-estofo em Lacan. In: ______.Introdução à leitura de Lacan:  o inconsciente estruturado como linguagem. PortoAlegre: Artes Médicas, 1989. p. 36-40.FOI dada a partida. Isto É. São Paulo, n° 361, p. 18, 23/11/1983.FORGET, Danielle. Conquistas e resistências do poder (1964-1984): a emergência deum discurso democrático no Brasil. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo,1994. 216p.GAXIE, Daniel. Politique et politisation. In: _______. Le cens caché: inégalitésculturelles et ségrégation politique. 3. ed. Paris: Éditions du Seuil, 1993. Cap. 1, p. 37-64.KECK, Margaret. O "novo sindicalismo" na transição brasileira. In: STEPAN, Alfred(Org.). Democratizando o Brasil. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1988. p. 381-440.LACLAU, Ernesto. Structure, history and the political. In: BUTLER, Judith; ______;ZIZEK, Slavoj. Contingency, hegemony, universality: contemporary dialogues on theleft. London: Verso, 2000. p. 182-214. ______; MOUFFE, Chantal. Hegemony & socialist strategy: towards a radicaldemocratic politics. London: Verso, 1985. 200p. ______. Nuevas reflexiones sobre la revolución de nuestro tiempo. Buenos Aires,1993. 268p. ______. Emancipación y diferencia. Buenos Aires: Ariel, 1996. 216p. ______. Mort et résurrection de la théorie de l’idéologie. In: _____. La guerre desidentités: grammaire de l’emancipation. Paris: La Découverte/M.A.U.S.S., 2000. Cap. 5,109-141.

  • 8/17/2019 Significante vazio.pdf

    22/22

      22

    LAMOUNIER, Bolívar. Apontamentos sobre a questão democrática brasileira. In:ROUQUIÉ, Alain, _______, SCHVARZER, Jorge (orgs.). Como renascem asdemocracias. São Paulo: Editora Brasiliense, 1985. p. 104-140. ______. Comportamento eleitoral em São Paulo: passado e presente. In: CARDOSO,Fernando Henrique, LAMOUNIER, Bolívar (coords.) Os partidos e as eleições no

    Brasil. 2ª ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1978. p. 15-44. ______. O "Brasil autoritário" revisitado: o impacto das eleições sobre a abertura. In:STEPAN, Alfred (Org.). Democratizando o Brasil. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1988. p.83-134.MAINWARING, Scott. Os movimentos populares de base e a luta pela democracia. In:STEPAN, Alfred (Org.). Democratizando o Brasil. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1988. p.275-314.MARTINS, Carlos Estevam. O Balanço da campanha. In: CARDOSO, FernandoHenrique, LAMOUNIER, Bolívar (coords.) Os partidos e as eleições no Brasil. 2ª ed.Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1978. p. 75-126.MENDONÇA, Daniel de. Tancredo Neves: O senhor “Nova República”. Programa de

    Pós-Graduação em Ciência Política da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. PortoAlegre: Dissertação de Mestrado, 2001. ______. A noção de antagonismo na ciência política contemporânea: uma análise a partirda perspectiva da teoria do discurso. In: Sociologia e Política. Curitiba: UFPR, n° 20, p.135-145, jun. 2003.O GIGANTE que desperta. Isto É. São Paulo, n° 371, p. 17-18, 02/02/1984.O GRITO dos mineiros. Veja. São Paulo, n° 808, p. 20, 29/02/1984.PINTO, Céli Regina Jardim. Democracia como significante vazio: a propósito das tesesde Ernesto Laclau e Chantal Mouffe. In: Sociologias, Porto Alegre, ano 1, n. 2, p. 68-99, jul/dez. 1999. ______. A Mulher como sujeito político: o caso latino americano. In: Revista deCiências Sociais - IFCH/UFRGS. Porto Alegre, v. 1 n. 2, 1987. p. 163-170.PRZEWORSKI, Adam. Como e onde se bloqueiam as transições para a democracia? In:MOISÉS, José Álvaro, ALBUQUERQUE, J. A. Guilhon (Orgs.). Dilemas daconsolidação da democracia. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1989. p. 19-48.REIS, Fábio Wanderley. As eleições em Minas Gerais. In: CARDOSO, FernandoHenrique, LAMOUNIER, Bolívar (coords.) Os partidos e as eleições no Brasil. 2ª ed.Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1978. p. 127-152RUMO à capital. Veja. São Paulo, n° 805, p. 28, 08/02/1983.SALLUM Jr., Brasilio. Labirintos: dos generais à Nova República. São Paulo: EditoraHucitec, 1996. 204p.SKIDMORE, Thomas. Brasil: de Castelo a Tancredo (1964-1985). Rio de Janeiro: Paz eTerra, 1988.STEPAN, Alfred. Os militares: da abertura à nova república. Rio de Janeiro: Paz eTerra, 1986.TRINDADE, Hélgio. Padrões e tendências do comportamento eleitoral no Rio Grande doSul. In: CARDOSO, Fernando Henrique, LAMOUNIER, Bolívar (coords.) Os partidos eas eleições no Brasil. 2ª ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1978. p. 153-204UMA DIRETA no PDS. Veja, São Paulo, n° 794, p. 37, 23/11/1983.VIANNA, Luiz Werneck. A classe operária e a abertura. São Paulo: Cerifa, 1983.