SERVIÇO SOCIAL ____________________________________________________________ ANA CAROLINA DE PAULA AS MULHERES AGRICULTORAS DA LINHA CERRO DA LOLA DO MUNICÍPIO DE TOLEDO-PR: O PROCESSO DE EDUCAÇÃO PERMANENTE NO CAMPO _____________________________________________________________ TOLEDO – PR 2014
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SERVIÇO SOCIAL ANA CAROLINA DE PAULA - cac …cac-php.unioeste.br/cursos/toledo/servico_social/arquivos/2014/ANA... · À minha avó Dirce Martinelli de Paula e ao meu tio Michel
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A partir do século XX a sociedade atravessou um período de profundas
transformações políticas, econômicas, sociais e culturais não só no Brasil, como também
numa ordem global, tais transformações rebataram diretamente no modo de organização e (re)
produção da sociedade. As transformações ocorreram no âmbito do modo de produção, por
isso, neste estudo se fez necessário abordar a concepção de trabalho desde sua gênese a sua
mais recente configuração para compreender o funcionamento da sociedade capitalista e sua
forma de sociabilidade.
No decorrer desse processo possibilitaram-se avanços e retrocessos no acesso e
garantia dos direitos conquistados por meio dos movimentos de luta e resistência entre as
classes, na qual, legitimou através do processo de redemocratização a consolidação da
Constituição Federal de 1988 constituindo-se como um marco histórico resultado desse
movimento dialético, bem como, os diversos aparatos legais conquistados posteriormente.
É nesse contexto que as mulheres inseriram-se na sociedade por meio das
organizações sociais especificas e da articulação com outros movimentos da classe
trabalhadora ocupando novos espaços sociais e políticos. As mulheres ao longo do tempo
lutaram e lutam em busca de direitos, a igualdade entre os sexos e a construção de uma
identidade social feminina contrária à constituída e perpetuada historicamente na sociedade
capitalista imbricada pelo patriarcado que determina as funções que devem ser executadas
pelo sexo feminino e pelo sexo masculino. Ao mesmo tempo relacionando-as como acontece
na divisão sexual do trabalho em que o capital apropria-se das habilidades especificas de cada
força de trabalho reforçando a subordinação de gênero.
Atualmente, a partir dos esforços dos movimentos feministas e sociais foi possível ser
materializada o I, II e a construção do atual III Plano Nacional de Políticas para as Mulheres
2013-2015 significando um importante passo no conjunto de estratégias voltadas para a
promoção da autonomia, igualdade, saúde produtiva e reprodutiva e o enfrentamento à
violência contra a mulher pressionando a intervenção do Estado às reivindicações das
mulheres.
Para estudar esta temática partiu-se da seguinte problemática: Diante da educação
permanente direcionada as mulheres agricultoras da Linha Cerro da Lola, como esta tem
permitido uma melhoria nas condições de vida das mulheres e refletido na produção agrícola
familiar?. A partir desta questão teve-se como pressuposto que os cursos profissionalizantes
poderiam contribuir para fomentar a produção agrícola da família, além de gerar renda,
14
aumentar a produção e somar aos demais conhecimentos, porém não atendendo a autonomia
financeira das mulheres.
Considerando todo movimento histórico da sociedade, este estudo tem por objetivo
analisar de que forma a educação permanente das mulheres tem se manifestado na dinâmica
cotidiana da agricultura familiar na Linha Cerro da Lola – Toledo/PR. Essa temática se faz
pertinente partindo-se da Lei n. 11.326 de 24 de julho de 2006 que estabelece as diretrizes
para a formulação da Política Nacional da Agricultura Familiar e Empreendimentos
Familiares Rurais estabelece a fomentação a educação, capacitação e profissionalização no
âmbito da agricultura familiar, esse novo olhar para a Agricultura Familiar não pode ser
desvinculada da conjuntura da sociedade, focalizando principalmente nesta pesquisa, como
isto tem se refletido junto às mulheres agricultoras.
Os caminhos delineados para responder ao objetivo geral deste estudo foram: a)
verificar como tem sido a educação permanente das mulheres agricultoras após concluírem a
escolarização formal; b) compreender se o conhecimento adquirido pelas mulheres na
educação permanente está sendo aplicado na propriedade para melhorar as condições de vida;
c) conhecer e elaborar um perfil das mulheres agricultoras e d) verificar quais instituições
oferecem os cursos profissionalizantes na Linha Cerro da Lola - Toledo/PR e quais seus
objetivos.
Definiram-se como referências conceituais que mais fundamentaram esta pesquisa os
seguintes autores: sobre a concepção de trabalho Karl Marx e Ricardo Antunes; para abordar
sobre a divisão social e sexual do trabalho Marisa Camargo e Mirla Cisne; para o
entendimento da categoria gênero Elisabeth Souza-Lobo e Heleieth Iara Bongiovani Saffioti;
para compreensão da agricultura familiar José Graziano Silva e para definição da educação
permanente Pierre Furter entre outros que complementaram a discussão dos três capítulos.
Para o desenvolvimento da investigação adotou-se como procedimento metodológico
um conjunto estruturado para que a metodologia respondesse as exigências de credibilidade e
consistência. Para isso utilizou-se da pesquisa exploratória, documental em livros, artigos
científicos, legislações, arquivos digitais e documento informal, além da pesquisa de campo.
Esta pesquisa recorreu a entrevista, subsidiada por um formulário selecionando uma amostra
constituída de mulheres agricultoras (05) e entidades (04) que trabalham diretamente com o
meio rural, contabilizando em (09) sujeitos da pesquisa selecionadas, obedecendo critérios
estabelecidos.
Para dar conta de interpretar e desvendar os significados das falas dos sujeitos da
pesquisa utilizou-se a análise de conteúdo no intuito de compreender vivências e experiências.
15
O trabalho de Conclusão de Curso está estruturado em 03 capítulos. No primeiro
capítulo trata-se da perspectiva de trabalho e gênero na (re) produção das relações sociais
que aborda os determinantes históricos conceituais sobre trabalho, divisão social e sexual do
trabalho e as especificidades do trabalho da mulher na agricultura.
O segundo capítulo se refere ao processo de formação para além da educação
formal: questão da educação permanente do campo que trata da história da educação formal
estabelecida pelo sistema educacional brasileiro a partir da consolidação como direito de
todos os cidadãos, bem como, uma breve contextualização da educação no campo e da
educação permanente.
O terceiro capítulo trata-se da análise das mulheres agricultoras no processo de
educação permanente no campo abordando significados e vivências. Após a análise, são
feitas as considerações finais salientando os principais resultados alcançados da investigação.
16
1 A PERSPECTIVA DE TRABALHO E GÊNERO NA (RE)PRODUÇÃO DAS
RELAÇÕES SOCIAIS
Para iniciar o debate que pretende-se realizar neste estudo, objetiva-se abordar,
brevemente, a concepção de trabalho, desde a sua manifestação enquanto mercadoria até o
processo de produção em que ocorreram as modificações de acordo com a necessidade
histórica da sociedade e as diferentes ramificações no âmbito da sociedade capitalista.
Outro aspecto a ser abordado refere-se à divisão social e sexual do trabalho, no
movimento da construção histórica das relações de gênero na dinâmica da produção
capitalista, abrangendo, também, como as mulheres estão presentes na divisão sociotécnica do
trabalho. Além disso, busca-se descrever o processo de expansão do capitalismo no campo e
a relação com a Agricultura Familiar e as especificidades do trabalho da mulher agricultora
de produção familiar.
Neste estudo tratar-se-á especificamente do contexto brasileiro, cuja Constituição
Federal de 1988 significou um marco legitimador da garantia de direitos numa ordem
democrática, reconhecendo toda a população nacional como sujeitos de direitos, sendo dever
do Estado efetivá-los de maneira a promover, fomentar/financiar, regular/fiscalizar e executar
as políticas públicas.
1.1 A CONCEPÇÃO DE TRABALHO EM MARX
Debater sobre a concepção de trabalho envolve remeter ao significado ontológico do
conceito, ou seja, entendê-lo como sendo o elemento mais importante da existência humana,
que se manifesta por meio de desgaste físico e psíquico, e que nos constitui como seres
sociais, possibilitando o desenvolvimento da sociabilidade humana. Assim,
[...] desmistifica o significado „natural‟ do trabalho e mostra que o trabalho é
atividade humana, resultante do dispêndio de energia física e mental direta
ou indiretamente voltada à produção de bens e serviços, contribuindo para a
reprodução da vida humana, individual e social. (BEHRING; BOSCHETTI,
2008, p.50).
Essa atividade humana foi sendo aprimorada ao longo da evolução do homem, com o
desenvolvimento de suas capacidades e habilidades, como o tato, a visão, a audição, a
linguagem (a fala), o paladar (alimentação) e a consciência (dimensão intelectual), que
contribuíram na mediação, regulação e controle do homem sobre a natureza para sua
17
sobrevivência, pois, de acordo com Brito, Neto e Vieira (1997), o trabalho é processo que
media o homem e a natureza; o homem, por sua própria ação, apropria-se dos recursos da
natureza dando-lhe forma útil a vida humana.
Segundo os autores, a partir das ações sobre a natureza, o homem apropria-se de
técnicas e conhecimentos para dominá-la e ao mesmo tempo em que o homem transforma a
natureza também transforma a si mesmo. Utilizando-se da capacidade teleológica, atividade
exclusiva do homem, ele é capaz de projetar/idealizar antes de produzir um determinado
objeto para responder a sua existência.
O conceito de trabalho foi se modificando de acordo com as transformações do modo
de produção e os modelos de sociedade que se constituíram historicamente, no caso da “[...]
sociedade capitalista burguesa, o trabalho perde seu sentido como processo de humanização,
sendo incorporação como atividade natural de produção de troca independente de seu
contexto histórico.” (BEHRING; BOSCHETTI, 2008, p. 50).
Assim, com a organização do modo de produção capitalista, o trabalho se caracteriza
como uma atividade que produz mercadoria1 e gera lucro
2. Para compreender esse modo de
produção capitalista, faz-se necessário entender o processo de produção capitalista3 que se
constitui em duas etapas: o processo de trabalho e o processo de valorização.
No processo de trabalho encontram-se três elementos fundamentais para sua
concretização, sendo eles: a matéria-prima, o instrumento de trabalho e a força de trabalho.
Por meio da natureza, o homem extrai a matéria-prima que necessita para sua sobrevivência e
a partir dela constrói os meios de trabalho para construir outros objetos e assim
sucessivamente, quando geradas outras necessidades4.
A matéria-prima constitui-se em um objeto de trabalho quando já mediada pelo
homem por meio do trabalho, sendo que, cada vez mais, o homem aprimora os conhecimentos
e as técnicas para o domínio da natureza. A partir de então, utiliza-se dos meios de produção
1“A mercadoria é em primeiro lugar um objeto exterior, uma coisa que pelas suas propriedades satisfaz uma
necessidade qualquer do homem.” (MARX, 1979, p. 17). 2 “Visto haver uma taxa de lucro geral e, por conseguinte, o lucro médio, em todos os ramos, corresponder à
grandeza do capital empregue, é uma questão de acaso que a mais-valia produzida realmente numa esfera
particular da produção coincida com o lucro contido no preço de venda da mercadoria.” (MARX, 1979, p. 41). 3“Para a sua própria realização, o processo de produção capitalista reproduz portanto a separação entre a força de
trabalho e as condições de trabalho. Reproduz a eterniza assim as condições de exploração do operário. Força
constantemente este último a vender a sua força de trabalho para viver e põe constantemente o capitalista em
estado de comprar esta força para se enriquecer. Não é já o simples acaso que, no mercado das mercadorias, faz
encontrarem-se o capitalista e o operário como comprador e vendedor. É este próprio duplo processo que lança
sempre o operário no mercado como vendedor da sua força de trabalho e transforma sem cessar o produto do
operário em meio de compra nas mãos do capitalista.” (MARX, 1979, p. 129). 4 A definição do processo de trabalho e do processo de valorização foi compreendida também por meio das
discussões realizadas em sala de aula na disciplina de “Trabalho, Processo de Trabalho e Constituição da
Sociabilidade I” ministrada pelo Professor Dr. Alfredo Aparecido Batista, no ano de 2011.
18
que não englobam somente os instrumentos de trabalho como: matéria-prima, matérias
auxiliares, máquinas, aparelhos, instalações, mas também,
[...] uma coisa ou um complexo de coisas que o trabalhador coloca entre si
mesmo e o objeto de trabalho e que lhe serve como condutor de sua
atividade sobre o objeto. Ele utiliza as propriedades mecânicas, físicas,
químicas das coisas para fazê-las atuar como meios de poder sobre outras
coisas, conforme seu objetivo. (ANTUNES, 2004, p. 38).
Utilizando da concepção de Marx, Antunes (2004) coloca que “[...] a utilização da
força de trabalho é o próprio trabalho.” (p. 35), pois, quando a força de trabalho é comprada,
ela transforma-se em mercadoria, sendo a única mercadoria que produz outras mercadorias.
Ao se transformar em mercadoria, a força de trabalho é tratada da mesma forma que as
demais, ou seja, quem a compra a detêm como sua propriedade e passa a consumi-la e
controlá-la.
Assim, para Marx,
O valor da força de trabalho, como o de qualquer mercadoria, é determinado
pelo tempo de trabalho necessário à sua produção e por consequência,
também à sua reprodução. (...) O tempo de trabalho necessário à produção da
força de trabalho reduz-se portanto ao tempo de trabalho necessário à
produção desses meios de subsistência; por outras palavras, o valor da força
de trabalho é o valor dos meios de subsistência necessários à
conservação do seu possuidor. (MARX, 1979, p. 23, grifo do autor).
Como descrito acima, o valor da força de trabalho é determinado pelo tempo médio
necessário para produção de uma mercadoria que se expressa em dinheiro5, por meio do
salário6 pago ao trabalhador para suprir suas necessidades físicas e do espírito, que apenas
mantém o trabalhador em condições mínimas para poder despender a sua força de trabalho e,
além disso, faz com que desapareça o trabalho humano e o lucro obtido pelo capitalista por
meio da mais-valia7 relativa e absoluta, ou seja, o trabalho não pago ao trabalhador. Dessa
forma, mesmo que a produção de uma mercadoria seja resultado do trabalho socialmente
5 “Dinheiro como medida de valor, é forma necessária de manifestação da medida imanente do valor das
mercadorias: o tempo de trabalho.” (MARX, 1983, p. 219). 6 “Para a sociedade burguesa, o salário do operário apresenta-se como o preço do trabalho, determinada soma de
dinheiro paga em troca de determinada quantidade de trabalho.” (MARX, 1979, p. 173). 7“A mais-valia é produzida pelo emprego da força de trabalho. O capital compra a força de trabalho e paga, em
troca, o salário. Ao trabalhar, o operário produz um novo valor, que não lhe pertence, mas sim ao capitalista. É
necessário que trabalhe um certo tempo para restituir, unicamente, o valor do salário. Mas, feito isto, não para e
trabalha ainda durante mais algumas horas do dia. O novo valor que então produz, e que ultrapassa portanto o
montante do salário, chama-se mais-valia.” (MARX, 1979, p. 44).
19
necessário8, este é acumulado e centralizado apenas pelo possuidor dos meios de produção e
da força de trabalho.
No processo de produção capitalista, o produto finalizado - a mercadoria -passa pelo
processo de valorização, que ocorre a partir dos três elementos elencados9, que são
constitutivos do processo de trabalho e que determinam o valor de uma mercadoria.
A matéria-prima agrega valor exato em sua medida e conteúdo no sentido quantitativo
em que se utilizou a matéria-prima e no empenho de extraí-la da natureza. Os instrumentos de
trabalho transferem o valor, visto que media a ação do homem com a natureza para
transformá-la em mercadoria. Nenhum desses elementos anteriores poderia ser desenvolvido
sem a força de trabalho humana potencializada como atividade fundante de transformação e
criação, transferindo a mercadoria um valor de uso10
imbuído pela condição objetiva (meios
de produção) e subjetiva (força de trabalho), e um valor de troca11
que possibilita o encontro
de dois valores de uso de forma equivalentes.
Quando a mercadoria encontra-se no âmbito do mercado, esta perpassa pelas fases de
circulação, distribuição e consumo. É nesse momento em que o trabalhador, produtor da
mercadoria, distancia-se dela colocando-se na condição de comprador, pois o capitalista
expropria tanto a mais-valia produzida pelo trabalhador obtida no processo de trabalho,
quanto na venda da mercadoria por meio dos preços12
.
Portanto, há de se considerar esses aspectos, em sua essência, para compreender a uma
ordem atual e globalizada em que se apresenta o processo de produção capitalista, a partir de
suas manifestações e determinações do mundo do trabalho presentes nas precárias condições
de trabalho e nas formas variadas de contratação do trabalhador, que rebatem diretamente na
(re)produção das relações sociais e na agudização das expressões da questão social.
1.2 A DIVISÃO SOCIAL E SEXUAL DO TRABALHO
O século XX é denominado, por alguns autores, como um período que demarca
diversas transformações na sociedade brasileira que rebatem diretamente no processo de
reprodução e produção social e nos modos de vida da sociedade, uma vez que constituiu um
8“É pois unicamente a quantidade de trabalho socialmente necessário, ou seja, o tempo de trabalho socialmente
necessário à produção dum valor de uso qualquer, que determina o seu valor.” (MARX, 1979, p. 19). 9 Matéria-prima, instrumentos de trabalho e força de trabalho.
10“Um valor de uso, ou, por outras palavras, um bem, só tem pois valor porque se acha materializado nele
trabalho humano, considerado sob forma abstracta.” (MARX, 1979, p. 18). 11
“O valor de troca surge primeiro como relação quantitativa segundo a qual valores de uso duma espécie se
trocam por valores de uso duma outra espécie.” (MARX, 1979, p. 17). 12
“O preço é a expressão monetária do valor e pode variar em relação a ele.” (BRAZ; NETTO, 2010, p. 148).
20
cenário de “[...] transformações políticas, econômicas e sociais com significativas
repercussões para o mundo do trabalho e, consequentemente, para a classe trabalhadora.”
(CAMARGO, 1995, p. 176).
Esse processo está associado ao movimento de mundialização13
e globalização14
entre
os mercados internacionais do capital financeiro, como forma de padronizar as relações de
trabalho. A autora considera também, os reflexos da crise estrutural ocorrida nos anos de 1960
e 1970, mas foram nos anos seguintes, de 1980 e 1990, que ficaram evidentes os impactos
dessa crise por meio do reestabelecimento do padrão de acumulação e da reestruturação
produtiva15
, ao mesmo tempo em que interessava aos capitalistas encontrar e aplicar
estratégias para a manutenção da ordem societária capitalista, também buscavam conter as
manifestações da classe trabalhadora no contexto de plena efervescência das manifestações
sociais devido à conjuntura econômica, política, social e cultural que se vivenciava na
sociedade brasileira. (CAMARGO, 1995, p. 176-177).
Nesse contexto, foram constantes as reivindicações da classe trabalhadora em busca de
melhores condições de vida, porém, como dito anteriormente, havia também uma corrente
oposta que visava uma “[...] radical destruição da resistência operária e sindical através do
desmantelamento, da desintegração e da individualização dos trabalhadores.” (CAMARGO,
1995, p. 177), como forma de desmobilizar a classe trabalhadora nas suas lutas.
Isso se fortaleceu com a apropriação da teoria neoliberal combinada aos interesses da
burguesia. Essa teoria,
Delineou um processo de minimização do caráter interventivo do Estado no
que diz respeito à proteção social e a efetivação dos direitos sociais;
crescente privilegiamento da lógica do mercado privado; valorização da
individualidade dos sujeitos associada à desmobilização social e política
(coletiva e sindical); redesenho no sentido mesmo da ordem política e
transformações de ordem societária. (CAMARGO, 1955, p. 177).
13
“A mundialização da economia está ancorada nos grupos industriais transnacionais, resultantes do processo de
fusões e aquisições de empresas em um contexto de desregulamentação e liberação da economia. Esses grupos
assumem formas cada vez mais concentradas e centralizadas do capital industrial e se encontram no centro da
acumulação. As empresas industriais associam-se às instituições financeiras (bancos, companhias de seguros,
fundos de pensão, sociedades financeiras de investimentos coletivos e fundos mútuos), que passam a comandar o
conjunto da acumulação, configurando um modo específico de dominação social e política do capitalismo, com o
suporte dos Estados Nacionais.” (IAMAMOTO, 2010, p. 108). 14
“Em um mercado mundial realmente unificado, impulsiona-se a tendência à homogeneização dos circuitos do
capital – por meio da tecnologia e da multimídia. (...) A transferência de riqueza entre classes e categorias sociais
e entre países está na raiz do aumento do desemprego crônico, da precariedade das relações de trabalho, das
exigências de contenção salarial, da chamada „flexibilidade‟ das condições e relações de trabalho, além do
desmonte dos sistemas de proteção social.” (IAMAMOTO, 2010, p. 111). 15
“Em 1980, década de grande salto tecnológico, a automação, a robótica e a microeletrônica invadiram o
universo fabril, inserindo-se e desenvolvendo-se nas relações de trabalho e de produção do capital.”
(ANTUNES, 1997, p. 15).
21
Em outras palavras, observa-se que,
Com a crise do capital iniciada na década de 1970, vêm se desenvolvendo
movimentos/estratégias/transformações no modo de produção e reprodução
sociais, no campo econômico e político, como forma de garantir interesses,
dos quais se destacam a globalização e a reestruturação produtiva somada ao
neoliberalismo, um novo modelo para o Estado. (CISNE, 2012, p. 119).
Diante desse contexto de transformações, modificam-se as relações entre Estado e
sociedade, uma vez que a globalização possibilita a intervenção dos organismos
internacionais por meio de acordos ou pactos, favorecendo, assim, o capital, que age de
acordo com seus interesses, minimizando, cada vez mais, as ações do Estado no que se refere
às políticas sociais e a garantia de direitos16
.
Outro fator a ser destacado é a divisão do trabalho, que para Gorz (1976) precisa ser
analisada na sua forma capitalista, pois,
[...] não poderia assumir nenhuma outra forma – não é mais do que um
método particular de produzir mais-valia relativa ou de, à custa do
trabalhador, aumentar o rendimento do capital, aquilo a que se chama
riqueza social. À custa do trabalhador, desenvolve a força colectiva do
trabalho para o capitalista. Cria circunstâncias novas que asseguram a
dominação do capital sobre o trabalho. Apresenta-se, portanto, como um
progresso histórico, uma fase necessária na formação econômica da
sociedade, e como meio civilizado e requintado de exploração. (GORZ,
1976, p. 27, grifo do autor).
De acordo com esse processo, faz-se necessário destacar a fundamental atribuição do
avanço tecnológico que veio imbricado com a reorganização do mundo do trabalho,
favorecendo a aceleração da produção e a concentração da riqueza. Desse modo, a tecnologia
faz com que se exija uma mão de obra qualificada do trabalhador, especialmente para que
possa manusear e controlar esse instrumento de trabalho, mas que, em contra partida, faz com
que uma das expressões da questão social se acentue, no caso, o desemprego.
Diante dessas condições, a classe trabalhadora, não tendo oportunidade e possibilidade
de escolha, submete-se as condições precárias de trabalho, muitas vezes perdendo o acesso
aos seus direitos historicamente conquistados. O discurso coercivo utilizado pelo capital é a
existência do Exército Industrial de Reserva (EIR), formado por “[...] um grande contingente
de trabalhadores desempregados, que não encontra compradores para a sua força de trabalho.
16
Para maior aprofundamento ver: IAMAMOTO, Marilda Vilela. Serviço Social em Tempo de Capital
Fetiche: Transformações do capital financeiro, trabalho e questão social. 2. ed. São Paulo: Cortez, 2008.
22
[...] tal exército é um componente necessário e constitutivo da dinâmica histórico-concreta do
capitalismo.” (BRAZ; NETTO, 2010, p. 132).
A divisão do trabalho não é algo que surge com a sociedade capitalista, mas que, nesse
momento, manifesta-se inserida numa nova organização do trabalho. Porque, de acordo com
Cisne (2012), a primeira divisão do trabalho foi entre a mulher e o homem, aparecendo
concomitante ao antagonismo de classe com a opressão do sexo feminino pelo masculino.
A partir da divisão social do trabalho gera-se uma forma de divisão sexual do
trabalho, que “[...] é um fenômeno histórico e social, pois se transforma e se reestrutura de
acordo com a sociedade da qual faz parte em um determinado período.” (NOGUEIRA, 2011,
p. 24). É na dimensão da divisão sexual do trabalho que se apresentam as diferentes formas de
exploração do capital, destacando, principalmente, as múltiplas determinações sofridas pelas
mulheres.
Somado a esse fator, a condição da mulher nesse processo se torna mais grave por
meio da flexibilização, tanto das condições objetivas de trabalho, quanto das formas de
contratações, que intensificam a precarização e a exploração da força de trabalho. Assim,
constituindo como uma das estratégias do capital, expressando,
[...] na flexibilização dos direitos trabalhistas, que hoje configuram as novas
expressões da “questão social”. Essa flexibilização é também facilitada pela
subordinação que historicamente foi imputada às mulheres no mercado de
trabalho devido à forma desprestigiada com que suas atividades são vistas ou
até mesmo não percebidas como trabalho, justificando os baixos salários, o
desprestígio e a falta de necessidade de proteção trabalhista. (CISNE, 2012,
p. 125).
Compreende-se, por exemplo, que as transformações ocorridas no mundo do trabalho
juntamente a flexibilização exigem a polivalência dos trabalhadores. Neves (2000) destaca
que devido ao processo de flexibilização e modernização produtiva, as mulheres se submetem
as condições precárias e inseguras de trabalho “[...] por meio de jornadas parciais, contratos
por tempo determinado, trabalhos em domicílio, utilizando-se, uma vez mais, da qualificação
informal adquiridas pelas mulheres no trabalho doméstico, mas sem nenhuma forma real de
valorização do trabalho feminino.” (CISNE, 2012, p. 124). Tais fatores ocasionam a
intensificação do ritmo de trabalho e perda de direitos legais.
Conforme contribuição de Cisne (2012), a divisão sexual do trabalho constitui numa
das formas de exploração do capital, que segmenta, hierarquiza e subalterniza o trabalho do
homem e da mulher, sendo que este último elemento inferioriza o trabalho das mulheres
23
comparado ao dos homens. A autora (2012, p. 109) afirma, também, que “A divisão sexual do
trabalho resulta de um sistema patriarcal capitalista que por meio da divisão sexual do
trabalho confere às mulheres um baixo prestígio social e as submete aos trabalhos mais
precarizados e desvalorizados.”.
Cisne (2012) explicita, ainda, uma análise crítica da divisão sexual do trabalho, que
reafirma que, tanto na esfera pública quanto na privada, as mulheres são superexploradas, por
meio de suas atividades de trabalho, e aponta que a exploração no setor público se intensifica,
manifestando-se na desvalorização, subordinação, exploração, nos baixos salários e no
desprestígio presentes no mundo produtivo.
O discurso de que as mulheres no mercado de trabalho “[...] atingiram um patamar de
igualdade social com os homens, se libertaram, adquiriram independência, já ocuparam
grande parte do mercado de trabalho [...]” (CISNE, 2012, p. 85) tem sido conciliado à
ideologia burguesa e aos veículos de comunicação.
Tomando por base os dados publicados pelo Instituto Brasileiro de Geografia e
Estatística (IBGE) em 201217
, constata-se a predominância dos homens na maioria dos setores
de atividades, com destaque nos setores de construção e indústria, com um número
significativamente maior em comparação as mulheres no mesmo espaço.
17
“A Pesquisa Mensal de Emprego – PME, implantada em 1980, produz indicadores para o acompanhamento
conjuntural do mercado de trabalho nas regiões metropolitanas de Recife, Salvador, Belo Horizonte, Rio de
Janeiro, São Paulo e Porto Alegre. Trata-se de uma pesquisa domiciliar urbana realizada através de uma amostra
probabilística, planejada de forma a garantir os resultados para os níveis geográficos em que é realizada.” (IBGE,
2012, s/p). Dessa forma, serão utilizados esses dados como amostra para demonstrar a participação e a condição
em que a mulher se encontra no mercado de trabalho, mesmo que esses dados possam não contemplar o contexto
nacional, constituem-se como um instrumento de análise para a problemática abordada no presente estudo.
24
Gráfico 1 – Participação na população ocupada, por agrupamento de atividade, segundo
o sexo (%) – (2003 e 2011).
Fonte: IBGE, Diretoria de Pesquisa, Coordenação de Trabalho e Rendimento, Pesquisa Mensal de Emprego
2003-2011.
O gráfico acima demonstra, também, a prevalência das mulheres (94,8%) nos serviços
domésticos - afirmando como uma atividade inserida na divisão sexual do trabalho, atribuída
ao sexo feminino, continua se perpetuando - seguida pela ocupação no espaço da
administração pública.
Outro aspecto a ser considerado é o rendimento das pessoas ocupadas, que demonstra
que o salário dos homens está sempre superior ao das mulheres, mesmo com o crescimento
gradativo do salário das mulheres durante os anos de 2003 a 2011.
Gráfico 2 – Rendimento médio real do trabalho das pessoas ocupadas, por sexo (em R$ a
preços de dezembro de 2011) 2003 - 2011.
Fonte: IBGE, Diretoria de Pesquisa, Coordenação de Trabalho e Rendimento, Pesquisa Mensal de
Emprego 2003-2011.
25
Esses aspectos também puderam ser observados nas pesquisas expostas por Souza-
Lobo (1991), referente às mulheres nas indústrias, que observaram aspectos de inferioridade
do trabalho feminino em relação ao masculino, pois a subordinação de gênero se manifesta
não só na divisão das tarefas, mas também nas condições de trabalho e no salário, dependendo
das formas conjunturais e históricas construídas.
Inserida numa organização estrutural e social do trabalho, a divisão sexual do trabalho
reforça a subordinação de gênero, exploração da força de trabalhado feminina, desigualdade
de salários, desqualificação das funções femininas e alienação do processo de produção, uma
vez que,
[...] a partir da individualização da força de trabalho se constrói uma força de
trabalho coletiva e sexuada, sem identidade profissional, que produz um
produto final que não conhece. As condições ótimas de produtividade são
socialmente recriadas através da hierarquia de gêneros, que faz das mulheres
trabalhadoras „dóceis‟, „baratas‟ e „disciplinada‟. (SOUZA-LOBO, 1991, p.
166).
A autora acrescenta que,
[...] a divisão sexual, social e internacional do trabalho mostram que as
modalidades de subordinação das mulheres nas suas experiências de trabalho
são múltiplas mas cujo ponto comum é justamente a persistência da
subordinação. As práticas sociais, familiares, culturais e de trabalho das
mulheres são simultaneamente aproveitadas nas relações de trabalho
propriamente capitalistas ou não, formais ou informais. Ao mesmo tempo,
essas práticas são constantemente reformuladas pelas mulheres, como
estratégias de sobrevivência, mas também como estratégias de resistência à
dominação e à subordinação. (SOUZA-LOBO, 1991, p. 170).
Intrínseca à divisão sexual do trabalho, Toledo (2001) levanta uma importante questão
sobre gênero em torno da posição em que as mulheres ocupam no interior de sua determinada
classe dentro da sociedade capitalista, constatando-se que as condições das mulheres
trabalhadoras (a mulher pobre da periferia, das favelas e do campo) estão, cada vez mais,
distanciando-se das condições objetivas das mulheres burguesas, ou seja, a cada dia se
aprofunda o abismo entre elas e suas condições materiais de vida ficam mais diferenciadas. A
autora coloca que por mais que a mulher burguesa seja oprimida, ela não possui dupla
jornada, não precisa trabalhar o dia todo, pelo contrário, explora outros homens e mulheres e
não necessita lutar por sua sobrevivência, entre outras situações exemplificadas pela autora.
(CISNE, 2012).
26
Diante do exposto acima, Cisne (2012, p. 104) ressalta que compreender “[...] o
antagonismo de classe é indispensável para perceber a importância em não se poder
generalizar, para todas as mulheres, a mesma forma de opressão a que estão submetidas.”. As
mulheres trabalhadoras são as mais atingidas pelo modelo econômico e cultural da sociedade,
pois além de serem exploradas, oprimidas e discriminadas pelo sexo e pela classe, vivem no
limite e na busca de sua sobrevivência.
Concomitante ao contexto das múltiplas expressões de opressão e discriminação
contra a mulher, no âmbito do mercado de trabalho, como visto acima, resultam diversos
movimentos sociais e feministas que levantam a bandeira em defesa de seus direitos. Para
compreender como a mulher se insere e intervém na sociedade atual, é necessário recorrer a
construção histórica de gênero na dimensão das relações sociais, não excluindo, obviamente, a
dimensão da produção capitalista.
1.3 A CONSTRUÇÃO HISTÓRICA DAS RELAÇÕES DE GÊNERO NA DINÂMICA DA
PRODUÇÃO CAPITALISTA
A emergência dos movimentos de mulheres surgiu a partir da segunda metade da
década de 1970, inserido no cenário dos movimentos sociais, ocupando os espaços políticos e
sociais, evidenciando as questões dos direitos das mulheres e da igualdade entre os sexos.
(SOUZA-LOBO, 1991, p. 176-179).
Esse movimento se intensificou nas décadas de 1980 e 1990, em que se abriu um
espaço importante na sociedade brasileira, revelando a importância da mulher como sujeitos
de mudanças sociais, conforme Faria (2009), as mulheres começaram a buscar não apenas os
seus direitos, mas também serem reconhecidas como diferentes, reivindicando o espeço social
e quebrando com a figura tradicional construída de subordinada ao homem e exclusiva aos
trabalhos domésticos.
Para compreender a mulher, nesse contexto sócio-histórico, faz-se necessário
conceituar a categoria gênero18
que, de acordo com Cisne (2012), deve ser entendida como
social e histórica, constitutiva das relações sociais.
Nessa perspectiva, a autora considera que as questões de gênero passam
necessariamente pela contradição da “questão social”, ou seja, pelo interesse econômico do
18
O primeiro estudioso a mencionar e conceituar gênero foi Robert Stoller, em 1968, e sete anos depois, em
1975, Gayle Rubin frutificava os estudos de gênero. O conceito de gênero, no Brasil, alastrou-se na década de
1990, mas já no fim dos anos 1980 circulava o artigo de Joan Scott (1983-1988) que ressaltava o caráter analítico
da categoria gênero (SAFFIOTI, 2004, p. 107-109).
27
capitalismo, expresso por meio da relação entre capital e trabalho, sendo que a construção
social sexual é constituída por todas as dimensões da vida, desde a infância e nos diversos
espaços onde são qualificados e capacitados de forma diferente para serem inseridos no
mercado de trabalho, assim, o capital se apropria desigualmente da divisão sexual do trabalho.
A construção social está relacionada com a identidade social da mulher, assim como a
dos homens, essa identidade é construída por meio da atribuição de distintos papéis a serem
cumpridos na sociedade pelas diferentes categorias de sexo, sendo que a sociedade delimita os
campos em que a mulher e o homem podem atuar (SAFFIOTI, 1987).
Na mesma linha de compreensão, Gonçalvez (2006, p. 75-76) reafirma que “A noção
de que os papéis sexuais são construídos socialmente e não se constituem como
desdobramento da anatomia de homens e mulheres pode ser melhor compreendida através da
contextualização dessas relações em um mesmo momento histórico.”.
A partir disso, a opressão sobre as mulheres perpassa pela disciplina do corpo, pela
difusão de métodos de contracepção, pela impossibilidade de ascensão profissional para as
mulheres e pela imposição de chefias masculinas. Para Castro e Lavinas (1992, p. 221) “[...]
podemos reconhecer nessa formulação a prática combinada do capitalismo com o patriarcado
na construção social da submissão feminina, necessária à reprodução da sociedade de
classes.”.
Partindo desse contexto, não é possível analisar gênero isoladamente das
determinações econômicas e sociais, faz-se necessário compreender
[...] que a subordinação da mulher no mundo do trabalho está vinculada à
naturalização de papéis e ao desenvolvimento de habilidades ditas femininas,
voltados a atender os interesses do capital. Assim, é que qualidades exigidas
das mulheres, como destreza, minúcia, rapidez, são consideradas inatas e não
adquiridas, como fatos de natureza, não sociais. (CISNE, 2012, p. 117).
Para Cisne (2012), é necessário analisar gênero no bojo das contradições e das forças
sociais, tendo como foco as desigualdades sociais e a luta entre as classes sociais - o que
determina o movimento da sociedade, ou, como diria Marx: o motor da história. É
imprescindível relacionar a luta das mulheres com um movimento legítimo contra as
desigualdades, “na” e “com” a luta da classe trabalhadora.
Destarte, a categoria gênero deve ser percebida além de uma construção cultural, uma
vez que a cultura não é natural. Não só o gênero deve ser historiado, mas também a cultura e a
sociedade, não de forma isolada, mas inter-relacionadas com as demais relações sociais.
Afinal, a cultura é determinada “nas” e “pelas” relações sociais, não de forma linear,
28
homogênea ou fragmentada em exacerbações de diferenças, mas dentro das contradições que
determinam a produção e a reprodução desta sociedade.
1.4 A EXPANSÃO DO CAPITALISMO NO CAMPO E A RELAÇÃO COM A
AGRICULTURA FAMILIAR
Antes de abordar sobre o trabalho da mulher rural, é necessário abordar o meio em que
ela vive e as dimensões que integram o seu contexto. Ao descrever sobre a mulher rural, neste
estudo, refere-se as que se encontram na produção agrícola familiar.
A Lei n. 11.326/2006, que estabelece as diretrizes para a formulação da Política
Nacional de Agricultura Familiar e Empreendimentos Familiares Rurais, em seu Art. 3º,
considera agricultor familiar e empreendedor familiar rural aquele que,
I - não detenha, a qualquer título, área maior do que 4 (quatro) módulos
fiscais;
II - utilize predominantemente mão-de-obra da própria família nas atividades
econômicas do seu estabelecimento ou empreendimento;
III - tenha renda familiar predominantemente originada de atividades
econômicas vinculadas ao próprio estabelecimento ou empreendimento; e
IV - dirija seu estabelecimento ou empreendimento com sua família.
(BRASIL, 2014, s.p).
Conforme apresenta Silva (1990), o desenvolvimento das pequenas propriedades no
processo de transformação econômica da sociedade brasileira19
visava incentivar as iniciativas
de mercado, como, por exemplo, as indústrias, para fortalecer os centros urbanos. Com isso,
os pequenos agricultores tinham que expandir a produção de alimentos para abastecer as
cidades; esse momento oportunizou a produção de alimentos e os pequenos agricultores
iniciam uma produção de matérias-primas para as indústrias nascentes.
Com a industrialização das cidades, nos anos 1960 começam, no Brasil, as instalações
das fábricas de máquinas e insumos agrícolas, o que gerou a necessidade de criar um mercado
consumidor para esses produtos20
, assim, “Para garantir a ampliação desse mercado, o Estado
19
Transformação determinada a partir do movimento histórico ocorrido desde o “[...] período do tráfico e da Lei
de Terras até abolição (1850/1888) marca a decadência do sistema latifundiário-escravista. [...] Posteriormente,
começa a se consolidar no país [...] uma nova fase de transição da economia brasileira. Nesse período o setor
industrial vai-se consolidando paulatinamente e o centro das atividades econômicas começa vagarosamente a se
deslocar do setor cafeeiro [...]. A indústria gradativamente vai assumindo o comando do processo de acumulação
de capital [...]” (SILVA, 1990, p. 26-27). 20
Como consequência da modernização tecnológica e a industrialização do campo, a agricultura passa a ser cada
vez mais determinada pela dinâmica do capital, influindo “[...] de um lado, na determinação dos preços das
máquinas, equipamentos, fertilizantes, corretivos, rações e defensivos animais e vegetais e, consequentemente,
29
implementou um conjunto de políticas agrícolas destinadas a incentivar a aquisição dos
produtos desses novos ramos da indústria, acelerando o processo de incorporação de
modernas tecnologias pelos produtores rurais (SILVA, 1990, p. 27-28).
Continuando esse processo, na década de 1970 ampliam-se as estratégias de
modernização da agricultura brasileira,
[...] com a introdução de máquinas, adubos químicos, crédito rural abundante
e de baixo custo, criação de sistema de armazenamento, comercialização e
transporte. Essas mudanças transformam a agricultura artesanal em
agricultura estilo empresarial, sem considerar as diferenças existentes entre
os agricultores, como o tamanho da propriedade, sistema de relações de
trabalho, tipo de produção e outros. (BERTOLINI; BRANDALISE;
NAZZARI, 2010, p. 27).
Nesse contexto, “[...] grande parte dos agricultores familiares não se encaixou nos
padrões exigidos pela modernização, e assim não tiveram acesso ao crédito rural. Esses foram
então excluídos, migrando para as cidades ou permanecendo no campo em condições sub-
humanas.” (BERTOLINI; BRANDALISE; NAZZARI, 2010, p. 27). Isto tem sido reflexo do
capitalismo no campo, que introduziu mudanças significativas na agricultura brasileira.
Destacam-se três fatos cruciais na transformação da agricultura:
a) o „fechamento‟ de nossas fronteiras agrárias, envolvendo as questões de
colonização da Amazônia da participação da grande empresa pecuária
deslocando a pequena produção agrícola;
b) o processo de modernização da agricultura no Centro-Sul do país; e
c) a crescente presença do capitalismo monopolista no campo, ou seja, de
grandes empresas indústrias que passaram a atuar tanto diretamente na
produção agropecuária propriamente dita, como fortaleceram sua presença
no setor de comercialização e de fornecimento de insumos para a agricultura.
(SILVA, 1990, p. 44).
Segundo o autor, essas mudanças interferiram diretamente no papel que a agricultura
desempenhava no cenário brasileiro, uma vez que exigiu dos pequenos produtores que
produzissem em maior quantidade, pois, além de sua subsistência tinham que satisfizer as
necessidades advindas do mercado. Com isso, estreitava-se cada vez mais a articulação entre
o grande capital industrial e/ou comercial e a pequena produção, oportunizando a imposição
do grande capitalista em tecnificar e padronizar o processo de produção dos pequenos
agricultores.
nos custos materiais da produção agrícola e, de outro lado, na determinação dos preços dos produtos agrícolas,
matérias-primas para a agroindústria, influindo decisivamente no excedente em valor capaz captado pelos
produtores agrícolas.” (MOREIRA, 1999, p. 119).
30
Moreira (1999) complementa apresentando três efeitos que incidiram na pequena
propriedade e produção familiar devido ao processo de concentração e centralização do
capital, sendo eles:
1) a perda da propriedade familiar pela impossibilidade de reproduzirem-se
enquanto proprietários;
2) a tecnificação da pequena produção subordinada à agroindústria, com
liberação de força de trabalho familiar que emigra; e
3) a queda do excedente de valor retido pelo agricultor familiar (...) que
inviabiliza a reprodução familiar, forçando a redução do tamanho da família
pela migração rural-urbana e rural-rural [...]. (MOREIRA, 1999, p. 122).
Dentre as diversas mudanças ocorridas na sociedade brasileira, a adoção da tecnologia
se tornou um instrumento de fundamental importância para acelerar a produção e,
consequentemente, permitir uma maior geração de lucro.
[...] a tecnologia cumpre duas funções básicas na sociedade capitalista. A
primeira, de natureza essencialmente econômica, é a de, aumentando a
produtividade do trabalho, propiciar a formação de um lucro extraordinário
para capitais individuais. A outra, atuando como forma de dominação social,
tem por finalidade a reprodução da divisão social do trabalho – portanto, a
reprodução das classes sociais – para a manutenção do modo capitalista de
produção. (SILVA, 2003, p. 16).
Outro fator a ser considerado, quando pensa-se no trabalho da mulher rural, são os
reflexos do agronegócio21
. Como considera Campos (2011), esse processo intensificado na
década de 1990, com a implantação das políticas neoliberais no país, fez com que a força de
trabalho feminina fosse excluída ou incluída de forma precária no mundo do agronegócio,
destacando que, “[...] evidentemente, a desigualdade de gênero no mercado de trabalho não é
uma criação do agronegócio, nem do neoliberalismo, mas é intensificada com esses
fenômenos.” (CAMPOS, 2011, p. 132).
Dessa forma, ressalta-se que a agricultura familiar brasileira se diferencia pela “[...]
própria formação ao longo da história, a heranças culturais variadas, à experiência
profissional e de vida particulares, ao acesso e disponibilidade diferenciada de um conjunto de
21
“Do ponto de vista da divisão de classes sociais, o agronegócio é atrelado às classes dominantes nas diferentes
escalas. O caráter elitista do agronegócio brasileiro ganhou visibilidade no processo da Constituinte. [...] o
agronegócio deve ser compreendido com uma complexa articulação de capitais direta e indiretamente vinculados
com os processos produtivos agropecuários, que se consolida no contexto neoliberal sob a hegemonia de grupos
multinacionais e que, em aliança com o latifúndio e o Estado, tem transformado o interior do Brasil em um locus
privilegiado de acumulação capitalista, produzindo, simultaneamente, riqueza para poucos e pobreza para muitos
e, por conseguinte, intensificando as múltiplas desigualdades socioespaciais”. (CAMPOS, 2011, p. 107-109,
grifo do autor).
31
fatores, entres os quais, os recursos naturais, o capital humano e o capital social[...]”.
(BATALHA; SOUZA FILHO, 2005, p. 14).
Além disso, Brandenburg (1999) enfatiza que a agricultura familiar tem de enfrentar
um grande desafio construindo e perpetuado historicamente: “[...] superar o sentimento de
inferioridade cultural, sair do isolamento que compromete a sua identidade e demonstrar à
sociedade que desenvolve uma profissão que não é superior e nem inferior às demais, mas
igual a qualquer profissão na sociedade moderna.” (BRANDENBURG, 1999, p. 272).
O cenário da Agricultura Familiar atualmente no Brasil avançou criando identidades e
saindo do anonimato e isolamento, como apresenta o Censo Agropecuário de 2006, realizado
pelo IBGE. Contudo, por mais que o estabelecimento da Agricultura Familiar possua um
número significativamente maior comparado aos da não familiar22
, na relação da extensão de
área por hectares a situação inverte-se consideravelmente, conforme a tabela abaixo.
Tabela 1 – Utilização das terras nos estabelecimentos, por tipo de utilização, segundo a
agricultura familiar - Brasil (2006).
Agricultura Total de estabelecimentos Área total
(ha)
Agricultura familiar 4 367 902 80 250 453
Não familiar 807 587 249 690 940
Total 5 175 489 329 941 393
Fonte: IBGE, Censo Agropecuário, 2006.
Segundo os dados da Tabela 1, os estabelecimentos da agricultura familiar
representam 84,36% dos estabelecimentos e estão presentes em 24% da área ocupada pelos
estabelecimentos agropecuários brasileiros. Esses resultados mostram uma estrutura agrária
ainda concentrada no país; os estabelecimentos não familiares, apesar de representarem 15,6%
do total dos estabelecimentos, ocupam 75,9% da área ocupada. (IBGE, 2006, s.p).
No município de Toledo, segundo o Censo Demográfico do IBGE de 2010, a
população censitária, segundo o tipo de domicílio e sexo na área urbana, corresponde ao total
de 108.259, destes, 52.625 são do sexo masculino e 55.634 do sexo feminino; enquanto que a
área rural possui um total de 11.054, sendo 5.712 do sexo masculino e 5.342 do sexo feminino
(IPARDES, 2013, p. 10). Isto demonstra o grande número da população localizada na cidade,
22
A definição dada ao não familiar pela pesquisa é de que “Entre os estabelecimentos que não se enquadram na
Lei 11.326 estão também pequenos e médios agricultores, que não se enquadraram na agricultura familiar quer
pelo limite de área quer pelo limite de renda, e também as terras públicas. A melhor identificação destes grupos
será um dos temas da agenda futura de trabalho.” (IBGE, 2006, s.p).
32
com um número relativamente parecido em relação ao sexo; no espaço urbano o maior
número é do sexo feminino e no rural do sexo masculino.
A partir desses dados, faz-se necessário evidenciar a importância das pequenas
propriedades no Brasil, por suas constantes lutas para o fortalecimento da produção agrícola
familiar, bem como para a permanência no campo.
1.5 AS ESPECIFICIDADES DO TRABALHO DA MULHER AGRICULTORA DE
PRODUÇÃO FAMILIAR
A mulher agricultora nesse espaço, enquanto sujeito que participa na recriação e
resistência no campo, ainda encontra-se atualmente numa posição subalternizada e
inferiorizada dentro de sua propriedade. Essa afirmação provém da invisibilidade dada ao
trabalho exercido por elas, tanto no espaço privado como no público.
Conforme os dados do IBGE (2006), identifica-se que o número de mulheres, no que
diz respeito a direção dos trabalhos em seus estabelecimentos, tanto na agricultura familiar
quanto na não familiar, é extremamente baixo em relação aos homens, evidenciando, assim, a
prevalência dos homens na „administração‟ ou „comando‟ das atividades dentro da
propriedade.
33
Tabela 2 - Produtores na direção dos trabalhos do estabelecimento, agrupados por sexo e
anos de direção, segundo a agricultura familiar - Brasil (2006).
BRASIL. Presidência da República. Casa Civil. Subchefia para assusntos jurídicos.
Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Brasília, 1988. Disponível em:
<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm>. Acesso em 25 ago.
2014.
BRASIL. Presidência da República. Casa Civil. Subchefia para assuntos jurídicos. Lei n. 9.394 de 20 de dezembro de 1996. Estabelece as diretrizes e bases da educação nacional.