Universidade do Minho Escola de Direito Ana Paula Vieira Lopes Pimentel outubro de 2015 Mediação Penal Juvenil: um novo paradigma de resposta à delinquência Ana Paula Vieira Lopes Pimentel Mediação Penal Juvenil: um novo paradigma de resposta à delinquência UMinho|2015
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Universidade do MinhoEscola de Direito
Ana Paula Vieira Lopes Pimentel
outubro de 2015
Mediação Penal Juvenil: um novo paradigma de resposta à delinquência
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015
Ana Paula Vieira Lopes Pimentel
outubro de 2015
Mediação Penal Juvenil: um novo paradigma de resposta à delinquência
Trabalho efetuado sob a orientação do Professor Doutor Professor Doutor Mário Ferreira Monte
Dissertação de MestradoMestrado em Direito Judiciário (Direitos Processuais e Organização Judiciária)
GRAL – Gabinete de Resolução Alternativa de Litígios
IRS – Instituto de Reinserção Social
LM – Lei da Mediação
LMP – Lei da Mediação Penal
LPCJP – Lei de Proteção de Crianças e Jovens em Perigo
LTE - Lei Tutelar Educativa
nº/nºs – número/números
ob. cit. – obra citada
ONU – Organização das Nações Unidas
org. – organizador
OTM – Organização Tutelar de Menores
p./pp. – página/páginas
p. ex. – por exemplo
ss. – seguintes
Vol. – volume
VOM – Victim-Offender Mediation
xii
13
INTRODUÇÃO
A mediação é tema de crescente interesse em diversos países, sendo muitas as
peculiaridades do assunto e as dificuldades práticas encontradas, que em alguns pontos
coincidem e em outros são diametralmente opostos, conforme se verificará no estudo. Por outro
lado, também a administração da justiça tem merecido aguçada atenção, afinal a crise do
Judiciário tem sido frequentemente noticiada e, apesar de todas as iniciativas, o Estado
intervencionista não tem atendido às expectativas comunitárias.
O tema merece cuidada atenção a fim de que se lhe possa extrair ao máximo seu
potencial em prol de uma nova política de resolução de conflitos, que evidentemente não exclui
o Poder Judiciário, mas que a ele se soma como mais uma porta aberta à pacificação social.
Em especial, neste estudo, serão aprofundadas as iniciativas desenvolvidas na área do
direito tutelar de menores, fruto de uma mentalidade jurídica que amadureceu ao longo dos
anos, assim como um adolescente amadurece em seu percurso de vida.
Trata-se de matéria cujo estudo é multidisciplinar1 e que, por isso, tem maior dificuldade
de se estabelecer. Os entraves começam já no meio jurídico, afinal vislumbra-se uma nova
política criminal que se supõe colocar em risco a segurança jurídica e a proteção de bens
indisponíveis, pela maior valorização da vontade das partes sobre os ditames legais. Ou seria
esta uma ideologia antiquada e que já não atende aos anseios dos novos tempos?2
O pensamento moderno dominante aproxima o penal e o civil. O foco está no consenso
e na satisfação dos interesses dos envolvidos e não na demonstração de um poder “surdo” e
repressor do Estado, que impõe um comando judicial sem ao menos perceber nem atender aos
reais interesses das partes. Assim, destacam-se, neste estudo, o princípio da intervenção
mínima, a preferência pelas soluções consensuais, a tomada em consideração dos interesses
quer do infrator, quer da vítima, quer da própria sociedade, o mais possível e de forma
equilibrada.
1 O estudo dos meios consensuais de resolução de conflitos, em geral, desenvolve-se em vários ramos do direito, como o laboral, o comercial,
o consumerista, o familiar, o penal e o de menores. Para além disso, é passível de estudo por diversas ciências não jurídicas, como a psicologia,
a pedagogia, a administração de empresas, a economia, a sociologia etc., cada uma podendo e devendo contribuir para a sedimentação da
matéria e sua aplicação prática adequada.
2 A doutrina tradicional nos países de civil law estabelece que a autocomposição é limitada a direitos patrimoniais disponíveis, pelo que o
Direito Penal sempre foi área proibida. Esta ideia tem progressivamente mudado, conforme desenvolveremos melhor adiante, face à constatação
de outros interesses juridicamente relevantes. Além disso, outro entrave seria a consideração do problema da segurança pública, que se tem
agravado substancialmente nos últimos tempos, pelo que se discute se as medidas que evitam a intervenção judiciária e, em última análise, a
detenção de infratores, são suficientes e adequadas a responder às expectativas comunitárias.
14
Iniciando-se pela abordagem do conflito e das formas possíveis de lidar socialmente
com o mesmo, apresenta-se um breve histórico sobre o desenvolvimento dos meios de solução
dos conflitos ao longo dos tempos, aludindo-se à crise da tutela jurisdicional e à revisitação dos
antigos meios. Passa-se à classificação dos meios de solução dos conflitos, com especial
destaque à distinção entre conciliação e mediação, por serem dentre todos os que mais se
assemelham. Por fim, discorre-se acerca da terminologia e fundamentos dos denominados
meios alternativos, a fim de introduzir o tema da mediação, em seus aspetos gerais, destacando
então suas vantagens em relação ao processo judicial.
Em um segundo capítulo, desenvolve-se uma análise da recente reforma do direito de
menores em Portugal, com uma síntese do modelo de tutela existente até então. Após discorrer
sobre os reflexos das normas jurídicas internacionais pertinentes aos direitos da criança e do
adolescente e suas diretrizes para uma adequada reação social e judiciária à delinquência
juvenil, aduz-se ao novo panorama do direito de menores em vigor no país, destacando-se sua
finalidade jurídica.
A parte conclusiva do trabalho é iniciada com a apresentação dos aspetos gerais da
mediação vítima-agressor e os interesses envolvidos, seguindo-se ao breve estudo da mediação
penal, no âmbito geral, e dos seus princípios consagrados nas normas internacionais. Só então
adentra-se no tema principal do trabalho, nomeadamente a mediação penal juvenil, com o
delineamento dos contornos que a mesma assume em Portugal, Itália e Brasil, nomeadamente
no tocante ao enquadramento jurídico e à sua aplicabilidade nesses países, para então tratar do
problema do consenso entre as partes, detendo-se, por fim, sobre as dificuldades encontradas e
propostas para o futuro.
Não se pretende, no estudo, abordar os diferentes modelos e estruturas do processo de
mediação, tampouco as particularidades da atividade do mediador. Dar-se-á ênfase ao estudo
dos princípios e noções básicas da mediação, aplicáveis também no âmbito da mediação penal
juvenil, e seus reflexos nos próprios envolvidos.
Para cumprir o escopo proposto neste artigo, elegeu-se a pesquisa teórica, feita através
da compilação e revisão do material bibliográfico proposto. Foi feita também uma pesquisa
documental, enfocando as normativas nacionais e internacionais concernentes ao tema.
Tratando-se de matéria relativamente nova, contudo, ainda não há decisões jurisprudenciais que
sirvam de apoio a esta pesquisa.
Partindo dos resultados obtidos, espera-se identificar as más e as boas práticas de cada
país, de modo a contribuir para o desenvolvimento de um sistema de mediação penal juvenil
15
que melhor atenda aos interesses dos envolvidos e que seja conforme às diretivas normativas
gerais estabelecidas no âmbito.
16
17
CAPÍTULO I – Meios Alternativos de Resolução dos Conflitos
1 Conflito
A sociedade tem-se desenvolvido ao longo dos anos essencialmente sob uma perspetiva
de convivência harmónica, que decorre do desejo ínsito que cada um tem de popularmente
“viver em paz”. Entretanto, os interesses são ilimitados enquanto os bens são limitados,
surgindo inevitavelmente os conflitos de interesse que, no clássico conceito de CARNELUTTI,
são o "posicionamento antagônico de duas ou mais pessoas em face de um mesmo bem da
vida"3.
As normas de conduta social são então instituídas para ordenar a sociedade, a fim de
que os conflitos que lhe são inerentes não sejam capazes de conduzi-la ao caos. Baseiam-se em
certo grau de consenso e são reforçadas por sanções sociais, dentre elas a jurídica, que
contribuem para a prevenção ou repressão de comportamentos desviantes, assim definidos de
acordo com os padrões culturais de cada sociedade.
Mas do controle necessário das condutas humanas não decorre logicamente que os
conflitos sejam de todo negativos na realidade social. A perceção do conflito de forma positiva
é a ideia central da moderna teoria do conflito4, segundo a qual ele é um fenómeno natural nas
relações interpessoais e que acompanha o evoluir dos tempos. Para que se transforme toda a
carga negativa que lhe é peculiar em algo positivo, é necessário aplicar-lhe técnicas, intuitivas
ou teoricamente elaboradas, e conceitos direcionados. Ou seja, é resolvendo pacificamente o
conflito que se retiram dele seus aspetos positivos, dentre eles, ser o propulsor de mudanças
pessoais ou interpessoais, entendimentos, aprendizados, crescimentos etc. Nesse sentido,
importante atenção deve ser dada pelo Estado, que necessita obter a melhor política pública de
resolução de conflitos, a fim de permitir um adequado convívio social e, em última análise, sua
própria evolução e fortalecimento.
A relação do direito com o conflito foi bem explicada pelo jurista CALMON, para quem
este “é um fator pessoal, psicológico e social, que desagua no direito apenas por opção política
3 FRANCESCO CARNELUTTI, Sistema di Diritto Processuale Civile, t. I, p. 44, apud PETRONIO CALMON, Fundamentos da Mediação e
da Conciliação, p. 17.
4 Nesse sentido, vide ANDRÉ GOMMA DE AZEVEDO (org.), Manual de Mediação Judicial, p. 29; CHRISTOPHER W. MOORE, O
Processo de Mediação: Estratégias práticas para a resolução de conflitos, p. 5 e ss.; MARIA DE NAZARETH SERPA, Teoria e Prática da
Mediação de Conflitos, p. 13 e ss; e, ROBERT A. BARUCH BUSH and JOSEPH P. FOLGER, Changing People, not just Situations: A
transformative view of conflict and mediation, in MENKEL-MEADOW, Carrie (ed.), Mediation: theory, policy and practice, p. 73 e ss.
18
da organização social, variando essa intervenção do Estado conforme variam todos os demais
fatores históricos, políticos e geográficos”5. Assim, a extensão e a forma de regulamentação
jurídica dos diversos tipos de conflitos e dos meios dispostos à sua solução podem variar
bastante de um ordenamento jurídico a outro.
Naturalmente nem todo conflito de interesses necessita da intervenção do Estado, ou
mesmo de uma terceira pessoa, para que se resolva. Há conflitos em que um dos interessados
se conforma com a sua insatisfação, outras em que ele age de modo a obter o bem que lhe
interessa, exercendo, então, a pretensão. Neste caso, ele pode satisfazer seu interesse
pacificamente, sem encontrar resistência; ambos os interessados podem fazer concessões
recíprocas; ou, de outro modo, o conflito de interesses pode ser qualificado por uma pretensão
resistida ou contestada, a lide6, quando finalmente será relevante para o direito7.
Especificamente no âmbito penal, fala-se do conflito do agente com os valores essenciais da
comunidade revelado pelo cometimento do crime, sendo apenas nestes moldes que o conflito
interessará ao direito.8
A doutrina tem utilizado ainda as definições lide processual e lide sociológica para
distinguir aquilo que é levado ao conhecimento do Poder Judiciário daquilo que é
essencialmente o interesse das partes. Resolver a lide sociológica é o propósito ideal, pois se
constitui em resolver integralmente o conflito, evitando que ele se perpetue ou que a
insatisfação se reflita em novos e futuros conflitos.
5 PETRONIO CALMON, ob. cit., p. 16.
6 Conceito de lide na clássica conceção de FRANCESCO CARNELUTTI, Instituciones del Proceso Civil, p. 28. Importante destacar que a
doutrina diverge quanto à existência da lide em processo penal. O próprio autor entendeu que há pretensão penal ou punitiva, pois há o interesse
à liberdade por parte do acusado e o interesse público contrário, que é o interesse à atuação da sanção. Entretanto, ao desenvolver seu
pensamento, concluiu que o conteúdo do processo penal é mais um negócio que uma lide (ob. cit., pp. 55 e ss.), não tendo este pensamento
sido aceito facilmente no meio jurídico. Não se pretende, contudo, conduzir a uma consideração conclusiva do assunto, posto que não interessa
propriamente ao estudo, como se demonstrará a seguir.
7 FRANCESCO CARNELUTTI, ob. cit., p. 25, alerta para o erro da supervalorização do processo contencioso, na medida em que o processo
voluntário ficou à sua sombra. Por outro lado, para além da “formalização” do conflito, gerada pela sua apresentação ao Judiciário com a
expectativa de obter a solução do problema, evidencia-se que o direito representa a “gestão formalizada dos conflitos”, nas palavras de GRAZIA
MANNOZZI, La Giustizia senza Spada: Uno studio comparato su giustizia riparativa e mediazione penale, p. 10; não é entretanto o único
meio.
8 Neste sentido vide CLÁUDIA CRUZ SANTOS, A Justiça Restaurativa: Um modelo de reacção ao crime diferente da Justiça Penal: Porquê,
para quê e como?, pp. 467/469, que dá a esse conflito a denominação de macro-conflito, aduzindo ainda para a existência de outro conflito,
originado pela “violação de interesses legítimos da vítima por força de uma conduta ilícita de um agente que persegue os seus próprios
interesses”, denominando-o micro-conflito. Este conflito não foi totalmente desconsiderado pelo direito penal, que atribui ao ofendido a
qualidade de assistente no processo ou legitima o seu direito ao pedido de indemnização cível. Entretanto, a tutela dos interesses do ofendido
não costuma surgir como finalidade autónoma, sendo este conflito objeto de atenção pela justiça restaurativa, cujos fundamentos serão melhor
delineados no terceiro capítulo. É com estes fundamentos que a autora considera que o Estado não se apropriou dos conflitos entre particulares,
porque o que lhe interessa é o macro-conflito.
19
Especialmente destinados ao diálogo para a busca do consenso, os processos nos quais
as próprias partes buscam o entendimento da solução que lhes parece mais satisfatória, são o
meio de solução de conflitos que oferece o ambiente e as ferramentas adequadas para que
mesmo os conflitos latentes possam vir à tona e encontrem espaço para acolhida e
transformação, contribuindo exemplarmente para a resolução integral dos conflitos e, em última
análise, para a harmonização e bem-estar da sociedade.
A ideia será aprofundada a seguir, quando se discorrerá sobre os meios de solução de
conflitos de forma sistematizada, a fim de melhor compreender suas ferramentas específicas
para solução dos diversos conflitos.
2 Meios de solução dos conflitos
2.1 Breve histórico
As sociedades primitivas, diante dos conflitos de interesses desde sempre existentes,
utilizavam-se notoriamente da força, em razão da natureza humana de fazer prevalecer seu
interesse em prejuízo do mais fraco. Com sua evolução, o diálogo foi ganhando mais espaço, e
os conflitos passam a ser resolvidos também através do consenso. Força e consenso são meios
opostos que coexistiram por milhares de anos.
Dentre os meios consensuais, cujo estudo será melhor aprofundado em momento
posterior, sabe-se que a mediação existia sob múltiplas formas: “A palavra já era inscrita em
placas de argila suméria, cerca de 4000 anos atrás. A função do mediador permitia, naquela
época, reconectar o humano ao divino” (tradução nossa)9. Ainda na Antiguidade encontram-se
registros da arbitrium boni viri e do arbitrium ex compromisso, procedimentos que eram
conduzidos pelos árbitros10 e que se aproximam ligeiramente à arbitragem em sua configuração
actual, ou seja, meio de imposição da solução compositiva por um terceiro imparcial.
Note-se que os meios de solução dos conflitos evoluíram conforme os direitos atribuídos
ao indivíduo e as diferentes formas de conflitos surgidas em cada contexto histórico, político e
cultural. Assim, ainda que se tenham de alguns deles registros antigos, sua formatação não
permaneceu sempre a mesma.
9 JACQUELINE MORINEAU, Il Mediatore dell’Anima, p. 79. Para aprofundar a história da prática da mediação, vide CHRISTOPHER W.
MOORE, ob. cit., p. 32 e ss.
10 Vide CLARA CALHEIROS, Breves Reflexões sobre os Atuais Discursos em torno da Mediação, in MÁRIO FERREIRA MONTE et al.
(comis. org.), Estudos em Comemoração dos 20 Anos da Escola de Direito da Universidade do Minho, pp. 149-150.
20
Com o advento da organização social, corporificada no Estado, a utilização da força foi
banida como forma de resolução dos conflitos entre os homens, permitindo-se raras exceções,
e ele assumiu o poder de dizer o direito em cada caso concreto, de maneira autoritária. Da
justiça privada passou-se então à jurisdição estatal, que surgiu como o meio institucional de
solução das controvérsias, sendo fruto da crescente intervenção do Estado nas atividades
sociais11.
Não se podia falar ainda em uma nova ordem democrática e igualitária, pois àquele
tempo o Estado não assegurava um procedimento em contraditório e fundado em garantias, o
que apenas perpetuava as injustiças, ainda que sob o manto da legalidade e da legitimidade. Foi
apenas com a instituição do Estado de Direito democrático que surgiu a jurisdição estatal nos
moldes atuais, trazendo consigo a segurança jurídica a que a sociedade tanto ansiava e a
esperança de melhores tempos.
Tendo recebido confiança da sociedade, assumiu o Judiciário a responsabilidade por
dirimir a quase totalidade dos conflitos. Entretanto, conforme se demonstrará, ao longo dos
anos os problemas de ordem prática vieram à tona e iniciou-se a revisitação dos antigos meios
alternativos de solução dos conflitos, desta vez com carácter formal e com métodos novos
(conjunto de técnicas) que, além de aplicados intuitivamente conforme as específicas
necessidades do caso concreto, têm sido desenvolvidos por estudiosos especializados para
atender aos diferentes tipos de conflitos da forma adequada e, assim, obter resultados mais
satisfatórios.
É que historicamente os meios consensuais eram aplicados intuitivamente e, quanto à
mediação, em razão dos resultados positivos de algumas iniciativas nos Estados Unidos, a partir
de meados do século XX, pouco a pouco foi sendo substituída por uma “mediação técnica”,
com a utilização de estudos multidisciplinares que a embasaram12. Destaca-se contudo que,
ainda que tenha ressurgido sob essa nova configuração, a mediação continua a ser um processo
menos formal que o processo judicial.
Esse novo panorama surgiu nos Estados Unidos, nas décadas de 60 a 70, com um
movimento abreviadamente classificado por ADR (Alternative Dispute Resolution, ou mais
11 GRAZIA MANNOZZI, ob.cit., p. 14, aduz que o modificar-se das estruturas sociais e económicas conduziu as pessoas a um contato
interpessoal cada vez maior, aumentando em consequência a conflituosidade. A ordem negociada foi então substituída pela ordem imposta, a
fim de manter a paz social.
12 Vide ANDRÉ GOMMA DE AZEVEDO, La Mediación en Brasil, in JUAN ENRIQUE VARGAS VIANCA e FRANCISCO JAVIER
GORJÓN GOMEZ (coord.), Arbitraje y Mediación en las Americas, p. 80.
21
recentemente, Amicable Dispute Resolution), expressão que se refere a todos os processos de
resolução de disputas sem intervenção de autoridade judicial. Sua origem relaciona-se a outro
movimento baseado no livre e amplo acesso à justiça, entendido este como a possibilidade de
aceder a um meio qualquer que seja capaz e adequado à solução de um conflito13.
É que o denominado movimento de amplo acesso à justiça trouxe dois grandes enfoques,
um foi a necessidade de simplificação do processo tradicional, no qual o Estado exercita a
jurisdição, e o outro ligava-se ao reavivamento dos meios alternativos de resolução dos
conflitos, de forma a democratizar a tomada de decisões e incentivar processos mais
participativos.
A ideia dos ADR foi acolhida posteriormente na Europa, tendo a União Europeia
registado em vários textos jurídicos e propostas comunitárias, conforme se demonstrará no
próximo capítulo, a intenção de fomentar esses meios, incentivando os Estados-Membros a
adoptarem-nos em seus ordenamentos jurídicos14. Atualmente são inúmeros os países que
estabelecem regras procedimentais e desenvolvem uma política de apoio e incentivo aos meios
alternativos, cada um com sua configuração particular e maior ou menor desenvolvimento do
tema.
Em Portugal, os meios de resolução alternativa dos conflitos têm sido desenvolvidos e
impulsionados pelo poder público. Já no século XIX os Julgados de Paz desempenhavam
função conciliatória15, mais tarde criaram-se os centros de arbitragem e hoje há um grande
interesse sobre os sistemas de mediação16. Entretanto, muitos ainda são os obstáculos a superar
para sua consolidação e maior aplicação prática, especialmente no específico âmbito do direito
de menores.
13 Para aprofundar o assunto, vide MARIA DE NAZARETH SERPA, ob. cit., p. 76 e ss.; ANGELA MENDONÇA, A Mediação e a Arbitragem
no Mundo Contemporâneo, pp. 7/11; LÚCIA DIAS VARGAS, Julgados de Paz e Mediação: Uma Nova Face da Justiça, p. 42; e, ANDRÉ
GOMMA DE AZEVEDO, ob. cit., p. 77. Destaca este autor a proposta inovadora à época do Multidoor Courthouse, de autoria do professor
Frank Sander, que estabelecia a necessidade de uma variedade de processos de resolução de disputas conforme as características específicas
de cada conflito, e assim trazendo ao foco os meios consensuais de resolução de conflitos.
14 LÚCIA DIAS VARGAS, ob. cit., pp. 43-44; e, CLARA CALHEIROS, ob. cit., pp. 147-148, aduzem à crise económica na Europa como um
fator de relevante importância para o desenvolvimento dos meios alternativos de resolução de conflitos.
15 Vide J. O. CARDONA FERREIRA, Justiça de Paz – Julgados de Paz: Abordagem numa perspectiva de justiça/ ética/ paz/ sistemas/
historicidade, p. 47. 16 “O desenvolvimento dos meios de resolução alternativa de litígios em Portugal é um facto incontestável. Os diversos Governos, desde os
anos 90, em particular desde o início do milénio, têm investido na criação de centros de arbitragem institucionalizada (essencialmente na área
do direito do consumo, mas também no direito administrativo, na propriedade industrial e na acção executiva), na instalação de Julgados de
Paz (em 2011 existiam já cerca de 20) e na implementação de serviços de mediação (laboral, familiar e penal)”. In MARIANA FRANÇA
GOUVEIA, Curso de Resolução Alternativa de Litígios, p. 13.
22
2.2 Tutela jurisdicional e crise
A sociedade moderna, caracterizada por sua complexidade crescente, tende a atribuir ao
Estado a resolução de toda uma nova gama de conflitos advindos das suas relações. Em geral,
isso se deve ao fato de se creditar a ele a responsabilidade, imparcialidade e especialidade
necessárias para encontrar a solução adequada. Para além disso, o próprio Estado estabelece
que, não havendo solução pacífica, deve-se buscar a satisfação do direito nos moldes
estabelecidos em lei, prevendo como meio ordinário a tutela jurisdicional.
Em que pese esta tendência, é importante frisar que a tutela jurisdicional não é o único
meio previsto de pôr fim ao conflito e deve ser visto mesmo como ultima ratio17, ou seja,
quando as outras possibilidades legítimas não tenham sido desenvolvidas com êxito.
Sendo o meio adversarial de composição de conflitos que atribui às partes diversas
garantias processuais e um rito bastante predefinido legalmente, o processo judicial acaba por
dar-lhes maior segurança jurídica. Entretanto, para poder atribuir às partes essas garantias,
requer um tempo considerável para desenvolver-se, o que, ao final, pode ser bastante
desvantajoso para uma delas ou para ambas. Essas delongas processuais são alvo de bastantes
estudos que buscam solucionar o problema, afinal "a justiça atrasada não é justiça, senão
injustiça qualificada e manifesta", já dizia o ilustre jurista RUI BARBOSA, no início do século
XX.
A demora no encerramento do processo traz duas outras consequências desvantajosas,
que são o custo crescente e o acúmulo de processos nos gabinetes dos juízes. É um ciclo que
parece não ter fim e os juristas buscam meios de tornar a justiça mais célere e eficiente para que
possa propiciar uma tutela satisfatória aos interesses juridicamente protegidos.
Não só do ponto de vista dos cidadãos percebem-se os inconvenientes, também do ponto
de vista do Estado é notório que o custo despendido para a administração da justiça é excessivo,
considerando-se que não está a desempenhar satisfatoriamente seu papel. Diversas são as
propostas dos estudiosos a fim de mudar esse cenário, desde a modernização do aparelhamento
17 Salvo as hipóteses em que pela natureza da relação material ou por exigência legal o provimento jurisdicional se torne necessário, conforme
alerta ELPÍDIO DONIZETTI, Curso Didático de Direito Processual Civil, p. 27. Oportuno lembrar ainda que, assim como os meios
alternativos, a tutela jurisdicional não é adequada a solucionar todos os tipos de conflito, pois há aqueles que melhor são solucionados através
de um sistema menos formal, com menor publicidade, mais célere e aberto ao diálogo. O tema será aprofundado no tópico 4, Meios
Alternativos: Terminologia e Fundamentos.
23
tecnológico, capacitação dos juízes e servidores, criação de novos cargos e de mecanismos
processuais mais céleres etc.
A intencionalidade última do direito é a realização da justiça, mas o Judiciário está
evidentemente em crise. As diversas iniciativas para combater os obstáculos de acesso à
justiça18, a demanda excessiva, a morosidade, e muitas vezes a decorrente inutilidade das
decisões judiciais, não se mostram suficientes para a prestação de um serviço de qualidade, ou
seja, de um serviço eficaz e eficiente.
O desafio está lançado. A sociedade clama por justiça e o Estado, com razão, já não
permite que se busque através da força o que cada um entende ser seu por direito. Por outro
lado, já não é capaz de responder satisfatoriamente à demanda e às necessidades específicas de
todos os conflitos.
A ideia de acesso à justiça, como visto, já não se confunde com acesso ao Judiciário,
mas compreende a efetiva e justa composição dos conflitos de interesses, seja pelo Judiciário,
seja por forma alternativa, devendo ser incentivada e facilitada a utilização de todos os meios
legítimos de pacificação social, especialmente aqueles que conduzam ao atendimento dos reais
interesses das partes e que estimulem sua participação construtiva no processo. Assim, ainda
que para determinados conflitos o processo judicial seja um caminho adequado, existem outros
que podem ser igualmente ou até mais adequados à solução de determinados conflitos, pelo que
devem ser colocados à disposição da sociedade, para sua livre escolha.
Em meio à descrença no sistema de justiça, surge a necessidade de olhar além do
Judiciário e defender um Estado menos intervencionista (intervenção mínima), mas a ideia
também é carregada de uma desconfiança geral acerca do “novo”, do “desconhecido”, daquilo
que se opõe a um modelo já arraigado, mesmo evidenciando-se seu descompasso com as
realidades atuais. Mas para além dessa proposta, o que se impõe incentivar é que a sociedade
contemporânea, cuja vida está cada vez mais agitada e por isso é menos voltada ao diálogo,
resolva de modo mais consensual e amigável seus próprios conflitos, e assim alcance ela mesma
o que considera ser a solução mais justa para seus conflitos, independentemente das estritas
atribuições legais de direito.
Reportando-se à Antiguidade, viu-se que os meios utilizados para a consecução dos
interesses baseavam-se na força do mais forte ou no consenso, o que com o passar dos tempos
18 Vide ROBERTO PORTUGAL BACELLAR, Juizados Especiais: A nova mediação paraprocessual, pp. 36/39; e, PETRONIO CALMON,
Fundamentos da Mediação e da Conciliação, p. 3, que tratam dos diversos obstáculos de acesso à Justiça dentro do Judiciário, cuja natureza
pode ser económica, cultural, social, política ou jurídica, pelo que é necessário envidar esforços e contributos de diversas áreas para consecução
dos fins almejados.
24
mostrou-se inadequado e insuficiente, afinal, evoluindo a sociedade e a gama de conflitos que
lhe é peculiar, deve evoluir a resposta ao problema. Hodiernamente, a sociedade tem à sua
disposição a jurisdição estatal e os mecanismos denominados alternativos, elaborados com
técnicas aperfeiçoadas e uma regulamentação jurídica de crescente amplitude, para que o acesso
à justiça se torne cada vez mais um direito palpável, não uma mera utopia. Mas para fazer uma
livre escolha é imprescindível que todos sejam aplicados adequadamente e que seja dado à
sociedade amplo conhecimento de suas peculiaridades, a fim de que possa perceber o método
mais adequado aos seus interesses em conflito.
Iniciar-se-á uma breve exposição da classificação dos meios de solução dos conflitos, a
fim de introduzir de forma mais esclarecida o tema da mediação, como meio de acesso à justiça,
ou a uma justa solução, alternativo à justiça tradicional.
2.3 Classificação
Os meios de solução dos conflitos podem ser classificados em: autotutela,
autocomposição e heterocomposição.
Autotutela significa o uso da força ou de subterfúgios por uma das partes para submeter
o interesse do outro ao seu próprio. É também chamada “autodefesa” ou “vingança privada”.
Naturalmente utilizada desde os primórdios da humanidade, e sendo baseada em disparidade
de armas, a mesma foi banida com a organização do Estado, que tomou para si o poder de
decidir a quem cabia o direito. Entretanto, há raras hipóteses legais, previstas nos diversos
ordenamentos jurídicos, em que a mesma pode ser utilizada, a mais conhecida delas é no âmbito
penal, a legítima defesa.
A autocomposição é, entre todos, o único modelo pacífico e consensual, no qual
predomina a vontade consentida quer sobre a força de um dos envolvidos quer sobre a norma
jurídica positiva. Baseia-se na capacidade que as partes têm de por si sós, ou com o auxílio de
um terceiro imparcial, encontrarem soluções consensuais para os conflitos entre elas. Ou seja,
a autocomposição pode ser direta, como na negociação, ou indirecta, também chamada de
assistida, como na conciliação e na mediação19. Outras formas há de autocomposição,
entretanto podem ser consideradas como formas híbridas das acima denominadas.
19 PETRONIO CALMON, ob. cit., p. 26, explica que a classificação exposta é a comumente utilizada pelos autores latino-americanos, sob a
influência do mexicano Niceto Alcalá-Zamora y Castillo. Entretanto, há quem entenda que mediação e conciliação são formas de
heterocomposição por causa da participação do terceiro, ainda que reconheçam que o mesmo não tem o poder de decidir, apenas auxiliando as
25
A negociação é o mais natural e habitual meio de solução dos conflitos, cujas técnicas
servem de base para todos os meios consensuais de resolução de conflitos. Entretanto, algumas
vezes as pessoas não são capazes de por si sós chegarem a um acordo, seja por problemas de
comunicação, por questões emocionais, perceção parcial do problema, dentre tantos outros
motivos. É nesses casos que o auxílio do terceiro tem um contributo essencial, pela utilização
de técnicas apropriadas para facilitar a aproximação das partes para a realização do consenso.
A heterocomposição, por fim, ocorre quando uma terceira pessoa imparcial é a
responsável por determinar a solução para um determinado conflito, impondo imperativamente
sua decisão, razão pela qual as partes perdem o controlo sobre o resultado. O interventor pode
ser escolhido pelas próprias partes (como ocorre com o árbitro, na arbitragem), ou determinado
conforme critérios legais (exemplo do juiz, na tutela jurisdicional).
A intervenção judicial tem uma característica peculiar, que lhe difere dos demais meios,
pois sendo o juiz uma autoridade institucionalizada e reconhecida socialmente, sua intervenção
no conflito representa o deslocamento do processo de resolução do domínio privado para o
público.
Os meios alternativos de resolução dos conflitos, aqui se incluindo os autocompositivos
e o heterocompositivo na modalidade arbitragem, conforme já exposto anteriormente, são
encontrados informalmente na sociedade, desde datas longínquas, ainda que sob outras
configurações. Todos estes meios privados sempre tiveram o escopo de restauração da paz
social, assim como a intervenção judicial, e sua “retomada” nos tempos atuais vem a colaborar
com esse mister assumido pelo Estado.
Em todo caso, ambas as formas autocompositiva e heterocompositiva de solução de
conflitos são compatíveis entre si, sendo apenas distintas e, nesse sentido, podem colaborar
melhor para a realização dos diferentes interesses em conflito. Nesse sentido, merecem ser
objeto de estudo específico para que deles se extraiam amplas vantagens práticas e sejam
minimizadas as dificuldades que lhes são peculiares.
2.3.1 Distinção entre mediação e conciliação
Dentre os mecanismos de resolução alternativa de conflitos, os que mais se assemelham
e por isso tendem a causar confusão entre si são a mediação e a conciliação, por isso a
partes à chegada do consenso. Há ainda quem entenda que elas ocupem uma posição intermédia entre a autocomposição e a heterocomposição,
como o professor WLADMIR BRITO, que lhes atribui uma natureza mista, in WLADMIR BRITO, Teoria Geral do Processo, pp. 14/38.
26
necessidade de se estabelecerem aqui seus conceitos e uma distinção básica entre os mesmos.
É que, em ambos, as partes chegam a um consenso mediante o auxílio de um terceiro, mas há
aspetos metodológicos que lhes diferenciam e é importante para o estudo ressaltá-los.
Destaca-se, inicialmente, que os conceitos de mediação e conciliação não são uniformes
em todos os países, mesmo os autores conacionais divergem entre si, o que dificulta uma maior
coerência metodológica a nível de estudos comparados e o estabelecimento de critérios claros
de distinção e de diretrizes gerais para sua utilização prática20. De fato, os conceitos que aqui
serão propostos ligam-se a uma ideia mais atual desses mecanismos, ligeiramente distinta
daquela apresentada pelo modelo anglo-saxónico, na origem do movimento dos ADR,
marcadamente negocial.
A começar pelo conceito de conciliação, tem-se, em geral, que é o mecanismo
consensual em que um terceiro imparcial, o conciliador, ajuda, orienta e facilita a composição
de um acordo de vontades entre as partes, podendo inclusive sugerir e formular propostas,
estando as mesmas livres de aceitá-las ou não.
A mediação, por sua vez, é o mecanismo consensual em que um terceiro neutro e
imparcial, chamado mediador, ou mesmo um grupo deles, auxilia as partes a chegarem a um
consenso, desempenhando uma escuta ativa de forma a guiá-las a que descubram por si sós as
raízes do conflito e a que alcancem, através do diálogo, o entendimento da solução que lhes
satisfaça reciprocamente seus interesses ou necessidades.
Quanto à pluralidade de mediadores em um mesmo processo de mediação, a doutrina
elenca algumas vantagens21, como: a) permitir que as habilidades e experiência de dois ou mais
mediadores contribuam mais fortemente para a resolução do conflito; b) oferecer mediadores
com perfis culturais ou géneros distintos, de modo que as partes sintam menor probabilidade
de parcialidade e interpretações tendenciosas por parte dos facilitadores; c) viabilizar o
treinamento supervisionado de mediadores aprendizes. Entretanto, ao menos nas mediações
penais, considera-se que deve haver certa limitação do número de pessoas no processo, a fim
de preservar um ambiente intimista e reservado que permita às partes expor seus interesses mais
profundos e assim libertar-se da carga emotiva negativa para alcançar um novo estado de
espírito.
20 Segundo ROBERTO PORTUGAL BACELLAR, ob. cit., p. 232, na França, na Espanha, na Colômbia, entre outros países, não há qualquer
distinção entre conciliação e mediação. E a recente proposta de mediação dentro do processo judicial, no Brasil, tem aproximado ambos os
conceitos também neste país.
21 Nesse sentido ANDRÉ GOMMA DE AZEVEDO (org.), ob. cit., p. 47.
27
Dentre os pontos de distinção, extraídos já dos seus conceitos, tem-se que os métodos
são diferentes, pois na conciliação a participação do terceiro, chamado conciliador, é mais
interventiva, permitindo-se que emita sua opinião e proponha às partes os termos do acordo,
ainda que naturalmente elas não estejam obrigadas a aceitá-lo, afinal trata-se sempre de um
processo consensual. Na mediação, por outro lado, o mediador dirige a mediação identificando
os pontos controvertidos e facilitando a comunicação entre as partes, mas não aconselha ou
propõe termos do acordo.
Conforme destaca a maior parte dos juristas, distinguem-se ainda os vínculos, pois a
conciliação trata-se de atividade que é praticada diretamente pelo juiz ou por pessoa que faça
parte da estrutura judiciária organizada para este fim. Já na mediação, em que pese divergência
de opiniões quanto à sua relação com o Judiciário, tem-se em geral que este não detém qualquer
controle sobre o procedimento, realizando-se este fora do âmbito da organização judiciária,
ainda que se possam desenvolver estruturas parajudiciais destinadas à mediação. Mesmo nestas,
é pacífica a ideia de que a mediação é atividade privada e livre de qualquer vínculo com
qualquer dos Poderes.
A estruturação da atividade da mediação, por sua vez, pode ser efetuada por diversas
formas, devido à sua peculiar flexibilidade, ou seja, pode ser desenvolvida em uma estrutura
privada ou dentro de um sistema público, pode ser ainda um exercício individual, por
profissionais ou voluntários, ou um exercício institucional, sendo este o modelo que tem tido
grande crescimento atualmente. Seja nas instituições públicas ou privadas, as vantagens são
acrescidas, pois elas oferecem o serviço de mediação dentro de um sistema organizado e
estruturado, sob um padrão de qualidade mínimo e com um quadro de mediadores devidamente
especializados, o que acaba por trazer maior segurança às partes.
Em seu ponto distintivo mais importante, nota-se que o foco da conciliação é o acordo,
enquanto na mediação é o conflito, sendo o acordo uma mera consequência. Na conciliação não
se resolvem problemas de fundo, apenas se procura um acordo satisfatório baseado numa
apresentação breve e superficial do conflito de interesses. É, assim, adequada aos conflitos de
carácter eminentemente material ou decorrentes de situações circunstanciais, em que não há
qualquer vínculo entre as partes, e é considerada um processo mais célere, pois geralmente só
é necessário um encontro entre as partes e o conciliador. Na mediação, por outro lado,
sobressaem-se o incentivo ao diálogo, o reconhecimento mútuo de interesses, a capacitação das
partes de por si sós chegarem a uma solução e, consequentemente, sua maior adesão e
responsabilidade na realização daquilo a que livremente se propuseram, daí seu carácter
28
pedagógico. Enfim, na mediação fortalecem-se a comunicação, ou a viabiliza nos casos em que
era inexistente, e os próprios envolvidos, “restituindo aos protagonistas não só o direito mas
também a capacidade de participar em um processo de transformação”22.
Nesse espírito é mais fácil perceber que a autocomposição, e mais especialmente a
mediação, pode levar a um resultado ganha-ganha, em que ambas as partes sentem atendidos
seus anseios, e podem seguir em frente minimamente transformados, conscientes da sua
participação construtiva na sociedade. Este é o modelo proposto por MORINEAU, que
participou ativamente da introdução da mediação penal juvenil na França e é conhecida por
solucionar cerca de 80% dos conflitos judiciais encaminhados pela Procuradoria da República
de Paris23. Assim, esse modelo consensual por excelência também contribui para a prevenção
de futuros conflitos, já que o carácter pedagógico do encontro ajuda as partes a refletirem sobre
novas e adequadas formas de conformarem seus interesses. É o modelo ideal para resolução
dos conflitos que envolvem relações jurídicas de carácter continuado, como as familiares e as
de vizinhança, ou naquelas em que seu carácter pedagógico é primordial, como nos casos de
delinquência juvenil, a exemplo das experiências exitosas acima citadas24.
2.4 Meios alternativos: terminologia e fundamentos
Sendo os conflitos de interesse inerentes à sociedade, importante se torna encontrar os
meios adequados à solução de cada um deles. A denominação “meios alternativos de resolução
de conflitos” vem à tona como uma nova modalidade de instrumentos colocados à disposição
da sociedade para a resolução de seus conflitos em alternativa ao meio ordinário, a jurisdição
estatal, consagrado desde a formação do Estado e da proibição da autotutela. Diversas críticas
22 JACQUELINE MORINEAU, ob. cit., p. 78. A especialista em mediação explica que a transformação ocorre quando as partes saem da sua
confusão para ter um novo olhar sobre a própria vida, e assim vivem melhor consigo mesmas e com os outros. Outros autores também destacam
essa característica da mediação, cuja finalidade vai além da solução do conflito. ROBERT A. BARUCH BUSH e JOSEPH P. FOLGER, ob.
cit., p. 76, p. ex., aduzem que na mediação transformadora o sucesso é alcançado quando as partes, como pessoas, são mudadas para melhor,
até certo ponto, em razão do que ocorreu no processo de mediação.
23 “Especialmente no âmbito penal percebe-se que os métodos mais conhecidos de resolução alternativa de conflitos, de origem normalmente
anglo-americana e caracterizados por uma abordagem negocial e conciliativa do conflito não conseguem atender adequadamente ao grito do
sofrimento. Serve um novo estilo que deixe pleno espaço à manifestação das emoções […].” (tradução nossa), in JACQUELINE MORINEAU,
ob. cit., p. 13.
24 Há outros modelos de mediação que podem ser adequados a outros conflitos, como o Modelo Tradicional de Harvard, que se centra no
acordo, não se preocupando com as relações existentes entre as partes nem com a transformação das mesmas. Assim, poderia ser mais adequado
a conflitos na área empresarial. Sobre o assunto vide JUAN CARLOS VEZZULLA, Qué mediador soy yo? Disponível on line em:
http://imap.pt/artigo/mediacaodeconflitos/que-mediador-soy-yo/3/. Acesso em 07/08/2015.
Em termos gerais, a mediação penal em Portugal pode ter lugar quando exista um
processo em que estejam em causa crimes que dependam de acusação particular ou crimes
contra as pessoas ou o património cujo procedimento penal dependa de queixa, e desde que a
pena prevista não exceda a 5 anos, ou seja pena de multa. Entre os crimes suscetíveis de
mediação tem-se: as ofensas à integridade física simples ou por negligência, a ameaça, a
difamação, a injúria, a violação de domicílio ou perturbação da vida privada, o furto, o dano,
dentre outros. Não é cabível em crimes contra a liberdade ou contra a autodeterminação sexual,
e em crimes de peculato, corrupção ou tráfico de influência. Também não se aplica quando se
tratar de processos sumários ou sumaríssimos. O ofendido, por sua vez, não pode ter idade
inferior a 16 anos.
A solução encontrada pelas partes não pode implicar penas privativas de liberdade ou
deveres de conduta que ofendam a dignidade do arguido, ou se prolonguem por mais do que
seis meses. E o procedimento, em si, não pode durar mais do que três meses, salvo requerimento
justificado de prorrogação, feito pelo mediador, por prazo de até dois meses.
Destaca-se ainda a nível nacional a recente implementação de um importante diploma
normativo disciplinador da mediação, a Lei nº 29/2013, de 19 de Abril, que veio consagrar pela
primeira vez os princípios gerais aplicáveis à mediação em Portugal, assim como prevê os
regimes jurídicos da mediação civil e comercial, dos mediadores e da mediação pública114. Este
diploma é fonte principal de normas de mediação penal, pois estabelece que “Em tudo aquilo
que não for regulado pela presente lei, aplica-se aos sistemas públicos de mediação o disposto
nos respectivos actos constitutivos ou regulatórios” (art. 47º).
A utilização do serviço de mediação pública é gratuita, e o início do processo pode ser
solicitado pelas partes, pelo tribunal e pelo Ministério Público, sem prejuízo do
encaminhamento por outras entidades públicas ou privadas. A participação das partes, contudo,
depende de seu consentimento livre e esclarecido.115
A mediação penal é instrumento de crescente aplicação nos diversos continentes, sendo
inclusive o processo de justiça restaurativa mais popular na Europa Continental, por isso
também a Organização das Nações Unidas reconhece seu mérito e promove-lhe iniciativas de
114 Os sistemas públicos de mediação, assim definidos por serem os serviços de mediação criados e geridos por entidades públicas, são: o
sistema de mediação dos Julgados de Paz e os sistemas de mediação especializada (familiar, laboral e penal). Antes da Lei nº 29/2013, suas
normas disciplinadoras estavam dispersas em vários diplomas legais, enquanto a mediação privada ainda não tinha sido disciplinada.
Atualmente os sistemas públicos de mediação são vinculados ao Gabinete para a Resolução Alternativa de Conflitos (GRAL), integrado na
Direção Geral da Política de Justiça, do Ministério da Justiça (cfr. DL 163/2012, de 31 de Julho), à exceção da mediação penal juvenil, que se
vincula à Direcção-Geral de Reinserção Social, também do Ministério da Justiça.
115 Conforme se infere do artigo 3º, da Lei nº 21/2007, c/c o artigo 34º, da Lei nº 29/2013.
69
apoio. Nesse sentido, importante documento foi editado em 24 de Julho de 2012, pelo Conselho
Económico e Social da ONU, a Resolução nº 12/2002, relativa aos Princípios Fundamentais da
Utilização de Programas de Justiça Restaurativa em Matéria Criminal. Em termos gerais, o
diploma reassume os princípios e noções básicos já emanados nas normas internacionais sobre
a matéria. Entretanto destacamos o item referente ao desenvolvimento contínuo de programas
de justiça restaurativa, o qual estabelece que os Estados Membros devem promover uma cultura
favorável ao uso da justiça restaurativa pelos aplicadores da lei, autoridades judiciais e sociais,
bem como comunidades locais. Portanto, além de reconhecer a justiça restaurativa como uma
política de Estado, reconhece-a como uma prática desejável dentro das comunidades locais, a
qual deve ser potencializada pelos Estados.
Tendo discorrido sobre as linhas gerais da legislação sobre mediação penal em Portugal
e tendo elencado os últimos diplomas internacionais na matéria, passa-se a apresentar seus
principais princípios extraídos desse panorama, e que são aplicáveis também no âmbito da
mediação penal juvenil.
2.1 Princípios
2.1.1Voluntariedade
Prevista no artigo 1º da Recomendação nº R (99) 19 e no artigo 4º da LMP, é condição
essencial da mediação, que a distingue dos outros processos tradicionais da justiça penal. As
partes a ela se podem socorrer em qualquer momento do procedimento, não apenas quando
decidem iniciá-lo, portanto, podem abandonar uma mediação em curso quando assim
entenderem conveniente. É que as circunstâncias advindas no decorrer do procedimento podem
alterar ou extinguir o interesse das partes. Só assim o acordo se transmuta na satisfação do real
interesse envolvido, o que não ocorreria caso fossem obrigadas a participar da mediação. Além
disso, a voluntariedade se expressa na conformação do acordo, que não é imposto, tampouco
sugerido por qualquer terceiro116.
116 Há ainda autores que se referem a uma quarta dimensão do princípio da voluntariedade, qual seja a de liberdade de escolha do mediador, já
que sua imposição poderia implicar uma desconfiança dos mediados. Neste sentido vide DULCE LOPES e AFONSO PATRÃO, Lei da
Mediação Comentada, p. 29. A nível nacional, a Lei da Mediação Penal conferia ao Ministério Público a legitimidade para designação do
mediador, através de sistema informático que garantisse a designação sequencial dos mediadores penais (artigo 3º, c/c artigo 6º, nº 2, do
Regulamento do Sistema de Mediação Penal). A Lei da Mediação, por sua vez, inovou ao determinar para todos os sistemas públicos de
mediação que a designação é feita pelas partes (dentre os nomes indicados na lista de mediadores de cada sistema público) ou, se assim não
atuarem, a indicação é realizada por modo sequencial (artigo 38º).
70
Há ainda certo debate sobre a possibilidade de se instituir a mediação de forma
obrigatória. Ainda que tenha fundamentação discutível, a posição doutrinária que defende a
obrigatoriedade da mediação refere-se simplesmente à obrigatoriedade de participação em um
processo de mediação, não de aceitação a um acordo.
Há países que consagram a participação obrigatória numa primeira sessão de mediação,
que seria destinada a esclarecimentos acerca do procedimento117. Os defensores deste
procedimento entendem que a voluntariedade não está a ser prejudicada, sendo ao invés um
meio vantajoso de informar as partes sobre as ferramentas disponíveis para a solução do
problema e consequente diminuição da litigância judiciária. Entretanto, diversas críticas são
feitas a essa opção, pois muitos autores entendem que seria uma contradição relativamente à
natureza da mediação, que requer uma predisposição das partes ao diálogo e ao consenso, e lhes
retiraria o característico domínio sobre a condução da solução do conflito. Por isso, entendem
os autores que a voluntariedade deve existir em todo o procedimento, na senda das normas
internacionais. Além disso, a mediação obrigatória consistiria em uma limitação ao direito de
acesso aos tribunais, consagrado no artigo 6º da Convenção Europeia dos Direitos do Homem
e no artigo 20º da Constituição da República Portuguesa, pela obrigatoriedade de submissão de
litígios a mecanismos privados de solução dos conflitos.
A mediação não é adequada a todos os conflitos, portanto, sua imposição obrigatória se
converteria em apenas mais uma etapa que as partes devem percorrer para finalmente chegarem
à resolução do conflito. A mesma deve ser utilizada apenas nos casos possíveis e naqueles em
que tem o potencial de ser útil. Portanto, caso a obrigatoriedade seja a opção legislativa do país,
devem ser estabelecidos critérios adequados para sua utilização, de forma a não ser imposta
indiscriminadamente e, assim, tornar ainda mais lento e fastidioso o processo de acesso à
justiça.
Somos da opinião de que a difusão do conhecimento sobre o procedimento da mediação
é essencial para sua consagração como meio eficaz de solução de controvérsias, entretanto, os
meios utilizados podem desvirtuar seus fins, não se considerando de todo adequada a instituição
da mediação obrigatória.
Entendem ainda os autores que a voluntariedade está prejudicada diante de outra medida
imposta com o fim de incentivar a mediação, qual seja o agravamento das custas processuais às
partes que, podendo recorrer a mecanismos alternativos, não o façam. Essa medida apenas faria
com que as partes participassem desses procedimentos por questões económicas, não
117 Vide a respeito DULCE LOPES e AFONSO PATRÃO, ob. cit., p. 34 e ss.
71
necessariamente por sua livre vontade, e assim prejudicaria a essência da mediação. O incentivo
público ao recurso à mediação é medida importante e desejável, desde que as partes não sejam
prejudicadas por recusarem-se a utilizar esse procedimento118.
Por fim, a Recomendação nº R (99) 19 estabelece que a vontade de participação na
mediação deve ser consciente, livre e esclarecida, devendo as partes serem informadas
completamente sobre os seus direitos, a natureza do processo de mediação e as possíveis
consequências que dele podem derivar (art. 10), além disso não devem estar convencidas a
participar por meios desleais (unfair means, art. 11). Exatamente por este motivo que não se
pode participar na mediação se uma das partes não entendeu bem o significado do procedimento
(art. 13).
2.1.2 Confidencialidade
Trata-se de uma característica importante da mediação, pois visa potenciar a confiança
de todos nos procedimento que se iniciará, de forma que o diálogo seja o mais aberto possível,
sem o temor de que a publicidade das discussões venha a prejudicar-lhes em futuro processo
judicial, no caso de a mediação não ter êxito positivo. Por outro lado, há reflexos dentro do
próprio procedimento, pois a simples divulgação de um fato pode acabar inviabilizando a
realização do acordo.
Esse princípio é ainda mais importante nos conflitos que envolvem relações familiares
e nos casos de infrações cometidas por jovens, cujo sigilo deve ser mantido também por outras
razões, como a preservação da intimidade naqueles, e do regular desenvolvimento da
personalidade dos jovens neste, evitando-se sua estigmatização.
O mediador não pode tornar públicas as declarações proferidas no procedimento, bem
como informações acerca do conflito. Da mesma forma, não pode atuar como testemunha em
posterior processo judicial que envolva as partes, exceto sob sua concordância. Não apenas o
mediador, como também as partes e os demais intervenientes estão obrigados ao dever de sigilo,
pelo que não podem usar nas vias judiciais as confissões, documentos trocados ou propostas de
solução formuladas na mediação.
118 Muitos são os exemplos de incentivo legal à utilização da mediação, como a suspensão dos prazos de prescrição e caducidade durante o
procedimento (artigo 13, da LM) e a determinação de cooperação de serviços públicos ou privados de mediação nos processos tutelares
educativos (artigo 42º, da LTE), dentre outros.
72
Na sua dimensão interna, a confidencialidade impõe que o mediador não transmita a
uma das partes as informações que lhe tiverem sido prestadas a título confidencial pela outra.
De acordo com CRUZ, este princípio além de básico é também o mais importante para os
mediados, por lhes proporcionar confiança no mediador e no procedimento, ao sentirem sua
intimidade salvaguardada, só assim podendo comunicar-se com sinceridade e concentrar sua
atenção no estabelecimento de um diálogo construtivo119.
A doutrina tem admitido duas exceções ao princípio. A primeira seria quando há
permissivo legal, nomeadamente por razões de interesse público, interesse do menor120, para
assegurar a execução do acordo, bem como por autorização expressa das partes. Alguns autores
incluem aqui a necessidade de autorização expressa também do mediador, que atua como uma
das partes do contrato de mediação, e cuja atuação deve se submeter a um código deontológico,
pelo que a divulgação das informações da mediação também lhe diz respeito. A segunda
hipótese configura-se em um verdadeiro dever do mediador, quando confrontar-se com
situações que justifiquem a quebra da confidencialidade, a exemplo de atividades criminosas
ou quando necessário para proteção da integridade física da parte.
Do ponto de vista do juiz, o princípio impõe que o mesmo só tenha conhecimento do
resultado final da mediação e dos termos do acordo eventualmente existente. É que, sendo a
mediação um procedimento privado, seus termos relacionam-se apenas às partes. Além disso,
evita um juízo pejorativo sobre qualquer dos envolvidos, em eventual ação penal ulterior.
O carácter confidencial da mediação deve ser comunicado às partes desde o início da
sessão. Nos procedimentos em que há a chamada pré-mediação, tanto as partes como o
mediador assinam o contrato de mediação, no qual consta o dever de sigilo e confidencialidade
sobre o conteúdo das sessões.
2.1.3 Imparcialidade
É essencial que o procedimento da mediação seja conduzido por um mediador imparcial,
ou seja, equidistante das partes, e, assim, trate-os da mesma maneira e lhes dê igual
oportunidade de participação. Nesse sentido, entende a maior parte dos autores que deve mesmo
atuar para que as desigualdades existentes sejam dissipadas durante o procedimento, o que,
119 ROSSANA MARTINGO CRUZ, Mediação Familiar: Limites materiais dos acordos e o seu controlo pelas autoridades, p. 82.
120 Aqui não se deve prescindir da ideia de reprovação social, na medida em que ela pode contribuir para a adesão do menor ao processo
educativo e para a sua responsabilização como elemento ativo da comunidade, conforme considera o ponto 17 da Exposição de Motivos da
Proposta de Lei nº 266/VII, que veio dar origem à LTE.
73
entretanto, não configuraria desobediência a este princípio. Se considerar que o desequilíbrio
de poder entre as partes é insuperável, deve finalizar a mediação, atribuindo-lhe êxito negativo.
Por outro lado, não pode defender ou representar qualquer das partes, e deve abster-se de
continuar sua participação no procedimento caso perceba que sua imparcialidade está a ser
prejudicada por circunstâncias ou atos de uma das partes no procedimento, suspendendo o
processo e desligando-se espontaneamente do caso121. A lei, por sua vez, deve estabelecer um
sistema de impedimentos legais, a fim de garantir o respeito à imparcialidade, nos moldes do
que já ocorre no processo judicial.
O interesse do mediador no resultado da mediação deve ser, portanto, no sentido da
realização da aproximação dos envolvidos para a chegada do consenso, não podendo
evidentemente direcionar o procedimento em favor de um ou de outro.
Há autores que tratam também do princípio da neutralidade, que entretanto está
intimamente ligado ao da imparcialidade. A neutralidade reflete-se no desinteresse que o
mediador deve ter no acordo final. Seu interesse, ao invés, é que o resultado do processo
permaneça dentro da livre vontade das próprias partes. O mediador não deve inclusive ter
nenhuma influência no desfecho final122, cabendo-lhe apenas garantir alguns requisitos
mínimos para que seja viabilizada a aproximação das partes, de cujo entendimento consensual
é que resultará o acordo. “Contrapondo neutralidade e imparcialidade chega-se à conclusão que
o mediador é neutro quanto ao resultado, quanto ao acordo. Já será imparcial em relação às
partes, na sua conduta ao longo do processo.”123
2.1.4 Flexibilidade
Sendo um mecanismo alternativo de resolução de litígios, a mediação é pensada para
distanciar-se do formalismo dos tribunais judiciais, moldando-se às necessidades de cada caso
e o “tempo” de cada envolvido. MORINEAU recorda-nos que no processo de mediação
121 No sistema público de mediação penal estabelece-se que “O mediador penal que, por razões legais, éticas ou deontológicas, não tenha ou
deixe de ter assegurado a sua independência, imparcialidade e isenção deve recusar ou interromper o procedimento de mediação e informar
disso o Ministério Público e o GRAL, através do sistema informático referido no nº 1 do artigo 6º, para efeitos de designação de novo mediador”
(nº 3 do artigo 15º do Regulamento do sistema de mediação penal, aprovado pela Portaria nº 68-C/2008, de 22 de Janeiro, alterado pela Portaria
nº 723/2009, de 8 de Julho, e pela Lei nº 29/2013).
122 Há várias críticas sobre a inevitabilidade de influência do mediador no resultado final, para melhor aprofundar o assunto vide ROBERT A.
BARUCH BUSH e JOSEPH P. FOLGER, ob. cit., pp. 97-100.
123 ROSSANA MARTINGO CRUZ, ob. cit., pp. 86-87.
74
ninguém é julgado e o mediador não representa uma autoridade, os envolvidos são deixados de
frente a si mesmos124. Tudo de forma a oferecer um ambiente propício a uma maior
comunicação entre eles e transformação do conflito, de forma que seja alcançada a solução que
lhes satisfaça seus interesses.
Portanto, o processo de mediação “não exige formalidades especiais, não está sujeito a
fases processuais determinadas e o mediador pode tomar as medidas que entender, no momento,
mais adequadas ao sucesso da mediação”125. Esse é o procedimento ideal, que o contrapõe
diametralmente ao processo judicial, no sentido de que neste a formalidade é necessária à
manutenção da segurança jurídica.
Além disso, o processo da mediação adapta-se a diversos tipos de litígios, tendo o
mediador a liberdade de atuar conforme lhe pareça mais conveniente, em que pese dever
respeitar a essência do procedimento, de forma a não comprometer sua eficácia e finalidades.
É que a mediação tem uma estrutura básica, composta por um conjunto de atos coordenados
lógica e cronologicamente. A partir destas referências técnicas cada mediador desenvolve seu
próprio estilo, conforme o modelo adotado e segundo sua sensibilidade às necessidades que se
apresentem no caso.
Para assegurar a flexibilidade do processo de mediação, e a celeridade que dela decorre,
a Recomendação nº R (99) 19 também estabelece que a mediação deve ter certa autonomia em
relação ao sistema de justiça penal (art. 5º), só assim ela poderá tornar-se uma nova modalidade
de resposta aos conflitos, caso contrário seria apenas mais um procedimento criado pelo sistema
de justiça tradicional.
3 Mediação Penal Juvenil
O movimento da Justiça Restaurativa não se limitou ao sistema de justiça penal, ao
invés, a justiça de menores tem-se mostrado campo ainda mais fértil para a adoção de
mecanismos típicos desse novo modelo de justiça. Para além da evidente incapacidade do
sistema ordinário de justiça em responder satisfatoriamente às necessidades típicas do processo
que envolve os menores, face à sua lentidão e ausência de uma intervenção que evidencie o
carácter responsabilizador da medida aplicada, a mediação penal juvenil oferece vantagens
valiosas a todos os envolvidos.
124 JACQUELINE MORINEAU, Il Mediatore dell’Anima, p. 159.
125 DULCE LOPES e AFONSO PATRÃO, ob. cit., p. 24.
75
A mediação considera os interesses do infrator, por evitar sua estigmatização ao desviá-
lo do procedimento ordinário de justiça, e, primordialmente, pelo seu caráter pedagógico126,
entretanto propõe também o atendimento às necessidades da vítima e favorece o fortalecimento
da comunidade, sendo uma ferramenta eficaz de redução da reincidência.
Além disso, a nível legislativo, a legislação de menores faz uma abordagem mais
flexível do ato infracional, de forma a atender a necessidade de educação do menor para o
direito e a sua reintegração social, o que favorece a inserção de novas medidas tendentes a
atingir estes fins.
As medidas que consubstanciam a justiça restaurativa têm o carácter pedagógico de
conduzir o menor a reparar, efetiva ou simbolicamente, os danos causados. Segundo GUERRA,
a fim de favorecer a responsabilização do jovem infrator, deve dar-se prioridade, sob a ótica de
uma justiça reparadora, às ideias de restituição, compensação, redução dos conflitos, mediação,
participação, reconciliação e prestações comunitárias127.
O caráter pedagógico da mediação, entretanto, pode ser reconhecido quer sob o ponto
de vista do ofensor, quer sob o ponto de vista da vítima. É o que nos ensina MORINEAU,
segundo a qual a mediação oferece uma verdadeira educação para nos sensibilizarmos aos
outros e para acolhermos os seus sofrimentos128.
O estudo não visa tratar da prática da atividade dos mediadores, tampouco das técnicas
utilizadas para consecução dos seus fins. Pretende traçar o enquadramento jurídico da mediação
penal juvenil nos ordenamentos de Portugal, Itália e Brasil e, ao fim, faz-se uma breve avaliação
de cada modelo, evidenciando possíveis falhas e méritos na prática desses países.
3.1 Aplicabilidade
A intervenção do Estado face à delinquência juvenil tem-se justificado, por um lado,
pelo direito à segurança dos demais cidadãos, mas sobretudo em nome do próprio interesse do
menor, que pela sua condição especial merece um tratamento diferenciado.
Esse tratamento especial conforme o nível de desenvolvimento da criança é medida
necessária para salvaguarda da dignidade da pessoa humana, grupo em que também ela está
126 “O recurso à mediação resulta, notoriamente, apropriado no âmbito juvenil pelo seu caráter pedagógico: o empenho de remediar os danos
causados pela prática do delito faz (ou deveria fazer) o menor tomar consciência da existência de uma vítima real que sofreu ou ainda está
sofrendo as consequências da sua atuação” in SILVIA LARIZZA, ob. cit., pp. 275-276.
127 PAULO GUERRA, ob. cit., pp. 101-102.
128 JACQUELINE MORINEAU, ob. cit., p. 118.
76
inserida. Outros princípios constitucionais comuns a Portugal, Itália e Brasil dirigem o modelo
de intervenção estatal na delinquência juvenil, como o reconhecimento e a garantia dos direitos
invioláveis do homem, que reconhece o menor como pessoa, e o princípio da igualdade, que
requer tratar-se igualmente os iguais e desigualmente os desiguais, na medida de sua
desigualdade, impondo diferenciar a posição do menor em relação ao adulto.
Para além das tutelas genéricas, ditos ordenamentos jurídicos têm consagrado o dever
de proteção especial para a infância e juventude a cargo do Estado e de respeito à condição
peculiar de pessoa em desenvolvimento. Nesse sentido, e como decorrência lógica do que já foi
abordado, cabe ao Estado promover o tratamento adequado às crianças e jovens e apoiar as
iniciativas não-governamentais que também se dediquem a esse mister, como é o caso da
mediação penal juvenil.
Sendo proposta como alternativa à justiça de menores, importante destacar a qual faixa
etária aplicar-se-ia. Algumas considerações devem ser feitas a este respeito, pois os marcos
etários variam conforme os estudos científicos de cada país acerca da maturidade intelectual e
da capacidade de autodeterminação dos seus jovens e, ainda, da política criminal que adotam.
Em todos os casos, assume-se a ideia de dar o tratamento adequado às crianças e jovens,
conforme o estágio de formação da sua personalidade. Sendo evidentemente mais vulneráveis,
merecem maior atenção do Estado.
A prática geral da mediação penal juvenil demonstra que o sistema juvenil funciona
como um laboratório de experiências que podem ser transferidas para o sistema penal de
adultos. Essa lógica, entretanto, não é a encontrada em Portugal, conforme se observará.
3.1.1 No sistema jurídico português
As referências à mediação na legislação portuguesa têm-se multiplicado nos últimos
anos, embora ainda se possa dizer que se trata de um fenómeno relativamente recente. A
primeira previsão expressa deu-se em 4 de Maio de 1999, com o Decreto-Lei n º 146, que criou
o sistema de registo voluntário de procedimentos de resolução extrajudicial de conflitos de
consumo, incluindo entre estes os serviços de mediação129. No mesmo ano, a Lei Tutelar
Educativa, alterada recentemente pela Lei nº 4/2015, de 15 de Janeiro, previu expressamente a
129 Sobre a mediação na legislação portuguesa vide JORGE MORAIS CARVALHO, A Consagração Legal da Mediação em Portugal, Julgar,
nº 15, p. 272.
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mediação, cuja repercussão foi maior, ainda que lhe falte regulamentação e sua aplicação
prática seja de pouca expressão.
Foi, posteriormente, com a criação dos Julgados de Paz, pela Lei nº 78/2001, de 13 de
Julho, e dos sistemas públicos de mediação (laboral, familiar e penal), que a mediação tornou-
se uma realidade cada vez mais presente na vida dos portugueses.
Em que pese haver alguns relatos antigos de mediação informal em Portugal, esta prática
foi retomada recentemente em estreita relação com o Judiciário, como tendência europeia-
continental, tendo sido denominada por alguns autores como mediação penal judiciária130.
Diferentemente da mediação penal de adultos, entretanto, a mediação penal juvenil ainda carece
de regulamentação própria, apesar de sua previsão no processo tutelar educativo preceder em 8
anos àquela do processo penal.
É tendência geral entre os países que a mediação tenha-se iniciado como
experimentação no âmbito juvenil, e só em seguida tenha vindo a ser aplicada para infratores
adultos. Também em Portugal assim se verificou a nível legislativo. Entretanto, a mediação
penal de adultos avançou rapidamente a nível de regulamentação, estando a mediação penal
juvenil ainda a conduzir-se pelos mesmos dispositivos legais da LTE, em que pese pequenas
alterações no texto feitas recentemente. Nesse sentido, e a fim de suprir suas lacunas legais, são
aplicáveis à mediação penal juvenil a Lei da Mediação Penal e a Lei da Mediação, naquilo que
lhe for compatível, tendo-se como princípio que, somente naquilo que não for regulado por esta
lei, aplica-se aos sistemas públicos de mediação o disposto nos respetivos atos constitutivos ou
regulatórios.
De início é importante delinear duas opções do legislador português que, a nosso ver,
meritam aplausos. A primeira é que repudiou a mediação obrigatória, em sintonia com as
normas internacionais (artigo 2º, alínea a), da LM). Em segundo lugar, resistiu ao clima
internacional de endurecimento das reações à delinquência juvenil, especialmente quando
dispôs, na LTE que a intervenção do Estado depende, sobretudo, da verificação de que o
adolescente precisa ser educado para o direito. Portanto, não basta o cometimento do ato
infracional. No dizer de DUARTE-FONSECA, “[…] a Lei pretende que se encare o adolescente
infractor em função do que ele É e das concretas carências de socialização que revela, em vez
de em função do que ele FEZ, por mais grave que seja a ofensa aos valores eminentemente
130 Vide neste sentido ANDRÉ LAMAS LEITE, ob. cit., pp. 45-46.
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sociais”131. Na análise de LARIZZA, é exatamente este o traço característico da Lei Tutelar
Educativa, que a diferencia do sistema penal: prevalece sobre o fim repressivo-punitivo a
necessidade de educação do menor132.
Quanto aos limites etários estipulados pelo legislador português, tem-se que até aos 16
anos nenhum menor responde perante um tribunal penal pela prática de ato qualificado na lei
como crime, é a chamada inimputabilidade absoluta para efeitos criminais, que decorre do
artigo 19º do Código Penal. Dentre estes, entretanto, só os menores de 12 anos não se submetem
a qualquer processo judicial, deles se encarregando a Comissão de Proteção de Menores (artigo
28º, nº 1, alínea b), da Lei nº 166/99 e artigo 8º, alínea a), do DL nº 189/91, de 17 de Maio, que
regula as Comissões de Proteção).
Destaca-se que Portugal é um dos poucos países europeus em que a idade da maioridade
penal não corresponde à idade da maioridade civil, que é de 18 anos, o que demonstra um aspeto
no qual a CDC ainda está por ser aplicada, por manifestar a ambiguidade com que os menores
são tratados na consideração da sua maturidade em atos da vida civil em confronto com os atos
da vida penal133. A introdução pela LTE do internamento em regime fechado para os
adolescentes com idade superior a 14 anos tornaria mais razoável a medida de aumento da
maioridade penal, a fim de igualá-la à maioridade civil, afinal o recrudescimento das medidas
tutelares já estava previsto. Entretanto esta medida não foi aceita.
Ao menor com idade entre os 12 e os 16 anos, estabelece a LTE que compete às seções
de família e menores da instância central do tribunal de comarca todo o procedimento com
vistas à aplicação e execução de medida tutelar. É ainda previsto como procedimento de
intervenção a mediação vítima-ofensor, nos moldes dos já estudados princípios e normas
internacionais relativos à administração da justiça de menores, em que pese haver merecidas
críticas ao modelo utilizado no país.
É em sede de princípios gerais do processo tutelar que a LTE consagra a mediação penal
juvenil (artigo 42º), quando deixa uma grande margem de discricionariedade quanto à sua
aplicabilidade, não determinando sequer o momento em que a mediação pode ser proposta.
Assim, a autoridade judiciária competente, Ministério Público ou juiz - por iniciativa própria
ou do menor, seus pais, representante legal, pessoa que tenha a sua guarda de fato ou defensor
131 ANTÓNIO CARLOS DUARTE-FONSECA, Medidas Tutelares Educativas não Institucionais, in DUARTE-FONSECA, António Carlos
(coord.) et al, Direito das Crianças e Jovens: Actas do Colóquio, p. 374
132 SILVIA LARIZZA, ob. cit., p. 410.
133 Nesse sentido vide ANTÓNIO CARLOS DUARTE-FONSECA, Responsabilização dos Menores pela Práticas de Factos qualificados
como Crimes: Políticas atuais, p. 375.
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-, é quem pode determinar a cooperação de entidades públicas ou privadas de mediação, em
qualquer altura do processo e para a realização das suas finalidades. Apesar dessa ampla
liberdade, sua aplicação ainda tem sido de pouca expressão.
Em determinadas fases do processo, como na suspensão provisória e na audiência
preliminar, porém, a mediação autonomiza-se expressamente como forma de obtenção do
consenso ou de realização de outras finalidades do processo134. É que a LTE prevê a utilização
da mediação como diversão, ou seja, como meio de alcançar a suspensão do processo, conforme
artigo 84º, nº 3, ou como forma de obter consenso quanto à medida tutelar a aplicar na audiência
preliminar, nos termos do artigo 104º, nº 3, alínea b).
No primeiro caso, a mediação está prevista para efeitos de elaboração do plano de
conduta, ainda na fase de inquérito, que fundamentará a suspensão do processo. Pretende-se
com esta medida evitar a estigmatização do menor decorrente do processo e da decisão judicial.
Importante princípio adotado por esta política criminal é o da oportunidade135, reflexo da
primazia da socialização do menor sobre a atuação do Judiciário nos conflitos. Rompe-se, em
certo sentido, com o princípio da obrigatoriedade da ação penal.
Importante aqui destacar a alteração feita pela Lei nº 4/2015, de 15 de Janeiro, por meio
da qual o menor, seus pais, representante legal ou quem tiver a sua guarda de facto já não devem
mais subscrever o plano de conduta, ainda que na redação anterior a LTE previsse a obtenção
da cooperação de serviços de mediação para sua elaboração. Atualmente, compete ao Ministério
Público propor o plano de conduta ou solicitar aos serviços a elaboração do mesmo (artigo 84º,
nºs 1 e 3); ao menor cabe concordar ou não com o plano proposto pelo Ministério Público136
(artigo 84º, nº 1, alínea a)); os pais, representante legal ou quem tiver a guarda de facto do
menor são ouvidos sobre o plano de conduta (artigo 84º, nº 2), o que entretanto não condiciona
os termos do plano.
Essa alteração foi um importante avanço para viabilizar o maior acesso ao procedimento
da mediação, tendo em vista que na maior parte das vezes o menor, ou seus representantes
legais, não tem a iniciativa ou instrução necessária para propor por si só um plano de conduta,
sendo necessário o apoio e iniciativa da autoridade competente. Por outro lado, sendo o plano
134 Vide Exposição de Motivos, nº 14.
135 Para aprofundamento do tema, veja-se ANABELA MIRANDA RODRIGUES e ANTÓNIO CARLOS DUARTE-FONSECA, ob. cit., pp.
197 a 199.
136 No caso de o plano ter sido obtido em mediação, presume-se que o menor já tenha dado seu consenso aos termos do plano. Por isso, tendo
em vista que a LTE não dispôs expressamente sobre esta situação, entendemos ser desnecessária a apresentação de concordância do menor, já
que os termos do acordo de mediação já terão sido por ele assinados, juntamente com o mediador e a vítima; e seus pais, representantes legais
ou quem tenha sua guarda de fato, já terão sido ouvidos sobre o acordo.
80
de conduta obtido em processo de mediação, entendemos que aí se consagra plenamente o
interesse do menor e da vítima, posto que serão eles que consensualmente, com o auxílio do
mediador, devem encontrar a solução que lhes pareça mais favorável a ambos, como
verdadeiros possuidores da solução do conflito, ao invés de o menor apenas concordar com o
plano ou a vítima simplesmente aceitá-lo.
No segundo caso, em audiência preliminar, o juiz pode determinar a intervenção de
serviços de mediação e suspender a audiência por prazo não superior a 30 dias, no caso de o
menor não aceitar a proposta do Ministério Público. Esta determinação sujeita-se
exclusivamente ao poder discricionário do juiz que pode, de outro modo, procurar consenso
para outra medida que ele mesmo proponha. O consenso a que se refere o artigo 104º é aquele
entre Ministério Público, ofensor e juiz137, não se considerando, p. ex., necessária a anuência
da vítima. Importante ressalva é feita por SILVA, para quem o consentimento da vítima é
exigido no caso de ser proposta medida de reparação ao ofendido, prevista no artigo 11º da
LTE, nas modalidades de compensação económica pelo dano patrimonial e exercício de
atividade que se conexione com o dano138.
A reduzida participação dos interessados na decisão sobre a realização da mediação
pode ser vista de modo positivo, no sentido de evitar a utilização de uma medida com finalidade
meramente protelatória, caso não se evidencie que as partes estejam interessadas em chegar a
um consenso ou quando não seja razoável aferir o desejo no jovem de restaurar o dano
ocasionado, devido p. ex. ao longo percurso delinquencial. Por outro lado, o reduzido
envolvimento dos interessados pode prejudicar sua maior adesão à efetiva participação no
procedimento ou a um eventual acordo de vontades. Por isso, e tendo em vista que Portugal
aderiu a um modelo de mediação voluntária, entendemos que o juiz pode encaminhar o processo
aos serviços de mediação, entretanto a participação dos envolvidos dependerá sempre de seus
consentimentos livres e esclarecidos.
Entendemos ainda que, ao decidir-se pelo encaminhamento do caso aos serviços de
mediação, o juiz dá plena liberdade às partes de encontrarem a solução que desejarem, como
protagonistas da resolução do seu próprio conflito. Portanto, não deve a mediação limitar-se à
obtenção de consenso quanto à proposta do Ministério Público, tampouco quanto àquela do
juiz139, afinal, não podendo o mediador fazer propostas, sendo apenas um mero facilitador da
137 Neste sentido ANABELA MIRANDA RODRIGUES e ANTÓNIO CARLOS DUARTE-FONSECA, ob. cit., p. 219.
138 JÚLIO BARBOSA E SILVA, ob. cit., p. 351. 139 Conforme se extrai do artigo 104º, nºs 3 e 4, da LTE e interpretação da doutrina, p. ex., ANABELA MIRANDA RODRIGUES e ANTÓNIO
CARLOS DUARTE-FONSECA, ob. cit., pp. 219-220, e JÚLIO BARBOSA E SILVA, ob. cit., p. 350.
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comunicação, não deveria ser possível discutir-se em ambiente neutro e informal, como é o do
procedimento da mediação, a aceitação de propostas advindas de autoridades públicas, o que
pode causar certo temor aos envolvidos, induzindo-os a aceitá-las, ainda que não estejam
plenamente ouvidos e satisfeitos quanto ao resultado, prejudicando sua maior adesão.
Ainda que o resultado da mediação seja a aceitação de uma ou outra proposta das
autoridades judiciárias, não deve ser este o seu propósito. Às partes deve ser dada total liberdade
e empoderamento para encontrarem por si sós a solução que lhes pareça mais adequada. Do
ponto de vista da prevenção, apenas a proposta que seja originária da íntima convicção do
menor será capaz de gerar sua maior adesão e maior responsabilização, guiando-o assim a
participar de forma mais positiva na sociedade.
Entender de modo contrário seria tolher à mediação suas características essenciais, e de
certa forma manter a resolução do conflito sob o controle do Judiciário. Se, entretanto, o juiz
considera ser importante a aplicação de determinada medida, a LTE permite que ele mesmo a
imponha mediante decisão, após a produção contraditória de prova, não havendo necessidade
de recorrer aos serviços de mediação se não pretender conferir liberdade de escolha aos
envolvidos.
Para além desses dois momentos processuais, entende-se que o recurso à mediação
possa ocorrer em outras etapas, com base no artigo 42º da LTE, dependendo sempre de prévia
determinação da autoridade judiciária. Esse entendimento é inclusive conforme à
Recomendação nº R (99) 19 relativa à Mediação em Matéria Penal, que incentiva o recurso à
mediação em todas as fases do processo.
Encontram-se ainda previstas algumas práticas restaurativas, nomeadamente as medidas
tutelares de reparação ao ofendido e de prestações econômicas ou de realização de tarefas a
favor da comunidade (alíneas c) e d) do nº 1 do artigo 4º e artigos 11º e 12º) que, entretanto,
não se configuram em meio de diversão, posto que aplicadas pelo próprio juiz durante o
processo.
A mediação penal juvenil em Portugal pode ser desenvolvida por entidades públicas ou
privadas. A organização pública que desenvolve o processo de mediação é o Instituto de
Reinserção Social (IRS), tutelado pelo Ministério da Justiça, cujo objetivo é a reinserção social
de delinquentes e o apoio à jurisdição de menores. Com base na Recomendação nº R (99) 19,
dentre outros instrumentos, o IRS criou em 2002 o Programa de Mediação e Reparação, para
criar e fomentar melhores condições técnicas e logísticas necessárias ao recurso à mediação,
viabilizando assim uma maior conciliação e reparação da vítima.
82
A formação inicial dos mediadores deu-se por mediadores do Departamento de Justiça
do Governo Autónomo da Catalunha, cujo modelo de mediação veio a inspirar o de Portugal, e
por membros da Associação Portuguesa de Apoio à Vítima140.
Propõe-se o programa proporcionar apoio ao jovem para que este encontre soluções,
reparadoras ou outras, incrementando o seu sentido de responsabilidade, o seu envolvimento
genuíno nos compromissos que com o apoio dos serviços de reinserção social venha a assumir,
e a sua disposição a não praticar no futuro factos qualificados como crime pela lei penal.
As intervenções do programa podem se dar tanto na fase de inquérito quanto na fase
jurisdicional141, havendo entretanto divergentes entendimentos nos diversos tribunais. Na fase
de inquérito, pode realizar mediação vítima-jovem infrator, sempre que o Ministério Público o
determine e encaminhe o caso aos serviços, o que pode resultar no arquivamento do processo
por desnecessidade de aplicação de medida tutelar (artigo 87º, nº 1, alínea c) da LTE). Pode
ainda apoiar na elaboração do plano de conduta (artigo 84º, nºs 3 e 4, da LTE), que conterá os
compromissos assumidos pelo menor, tais como: a apresentação de desculpas ao ofendido; o
ressarcimento, efetivo ou simbólico, total ou parcial, do dano (seja economicamente ou através
de exercício de uma atividade em favor da vítima que se conexione com o dano, nos termos das
alíneas b) e c) do nº 1 do art. 11,); a execução de prestações económicas ou tarefas a favor da
comunidade, dentre outros. Destaque-se que, esgotado o prazo de suspensão e cumprido o plano
de conduta, o Ministério Público arquiva o inquérito; caso contrário, o inquérito prossegue com
as diligências a que houver lugar (art. 85º, nº 2). Portanto, a LTE não conferiu
discricionariedade ao Ministério Público quanto ao prosseguimento do processo.
Importantes considerações na matéria são feitas por CASTELA, que adverte que essa
solução da LTE pode gerar efeitos indesejáveis, pois a certeza do arquivamento do processo
pelo Ministério Público após cumprido o acordo efetuado em mediação pode levar à adesão do
infrator ao processo não por motivos legítimos ou altruísticos, mas apenas para ver-se
beneficiado, o que não lhe induz a um sentimento de responsabilização142.
Em relação à vítima, esta pode ser levada a participar da mediação pela pressão de sentir-
se responsável pelo futuro do jovem, procedimento que lhe ocasiona uma vitimização
secundária. Do nosso ponto de vista, ideal seria a avaliação da mediação de um modo geral,
140 Vide JOÃO LÁZARO e FREDERICO MOYANO MARQUES, Justiça Restaurativa e Mediação, Sub Judice, nº 37, p. 73; e SUSANA
CASTELA, Abordagem a Aspectos Teórico-Práticos da Mediação em Processo Tutelar Educativo, Sub Judice, nº 37, p. 96.
141 Vide informações disponíveis on line: http://www.dgrs.mj.pt/c/portal/layout?p_l_id=PUB.1001.37, acesso em 24/09/2015; e, JÚLIO
BARBOSA E SILVA, Lei Tutelar Educativa Comentada, p. 143.