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Revista Mundos do Trabalho, vol. 4, n. 8, julho-dezembro de
2012, p. 102-123.
Sem ilustrao: a incapacidade das populaes rurais na profilaxia
rural do Paran (1916-1921)
Beatriz Anselmo Olinto*
Resumo: No presente trabalho, a anlise da atuao da Comisso de
Profilaxia Rural no Paran (1916-1919),
o ponto de partida para a reflexo sobre diferentes processos de
deteriorao identitrias das populaes
rurais daquele estado no perodo de 1916 a 1921. Em meio a
projetos sanitrios, colonizaes, resistncias,
misria, falta de recursos e parcerias, alm da ecloso da pandemia
de Gripe Espanhola em 1918, a Comisso
elaborou um extenso relatrio sobre suas atividades. Com base
nesses dados e dialogando com outros
documentos do perodo, busca-se perceber como foram articuladas e
constantemente apropriadas concepes
a respeito das populaes do Brasil em horizontes de incapacidade,
tanto civilizatria quanto de gesto
autnoma de suas vidas. Tambm so problematizadas quais
expectativas de futuro, classificaes de grupo e
intervenes, estatais ou no, foram legitimadas por esses
discursos.
Palavras-chave: Historia rural; Identificaes; Doenas.
Abstract: In this study the analysis of the actions of the
Commission of Rural Prophylaxis in Paran (1916-1919),
is the starting point for thinking about different processes of
deterioration of the rural identity in this state in
the period 1916 to 1921. In the midst of health projects,
colonization, resistance, poverty, lack of resources,
partnerships and the outbreak of the Spanish Flu pandemic in
1918, the Comission prepared an extensive
report on their activities. Based on these data and dialogue
with other documents of the period, we seek to
understand how they were constantly articulated and appropriate
conceptions about the population in
horizons of disability for the civilization and autonomous
management of their lives. Which are also
problematized the future expectations, group interventions, for
the state or not, were legitimized by these
discourses.
Keywords: Rural history; Identity; Diseases.
INTRODUO
Toda a gente mais ou menos infensa a submeter-se a um tratamento
mdico srio, sobretudo quando a doena no o fez sofrer muito, e o
povo, a classe baixa, sobretudo o sertanejo sem educao e sem
ilustrao, ainda mais difcil de se deixar convencer da necessidade
de certas medidas teraputicas e higinicas.
1
No presente trabalho, a anlise da atuao da Comisso de Profilaxia
Rural no
Paran (1916-1919), chefiada pelo mdico Herclides de Souza Arajo
e autor da citao
acima, o ponto de partida para a reflexo sobre diferentes
processos de deteriorao
identitria das populaes rurais daquele Estado no perodo de 1916
a 1921. Em meio a
* Professora associada da Universidade Estadual do Centro-Oeste
e professora do programa de ps-graduao em Histria na mesma
instituio. 1 SOUZA ARAUJO, Herclides Cesar de. A Prophylaxia Rural
no Estado do Paran: Esboo de Geografia mdica.
Curitiba: [s.n.], 1919, p. 130.
http://dx.doi.org/10.5007/1984-9222.2012v4n8p102
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Julho-dezembro de 2012
103 BEATRIZ ANSELMO OLINTO
projetos sanitrios, colonizaes, resistncias, misria, falta de
recursos e parcerias, alm da
ecloso da pandemia de Gripe Espanhola em 1918, a Comisso
elaborou um extenso
relatrio sobre suas atividades, bem como construiu quadros de
Geografia Mdica sobre as
doenas, o territrio e as populaes atendidas. Com base nesses
dados e dialogando com
outros relatrios da viagem e mensagens do governador no perodo,
busca-se perceber
como foram articuladas e constantemente apropriadas concepes a
respeito das
populaes do Brasil em horizontes de incapacidade, tanto
civilizatria quanto de gesto
autnoma de suas vidas. Tambm so problematizadas quais
expectativas de futuro,
classificaes de grupo e intervenes, estatais ou no, foram
legitimadas por esses
discursos.
A hiptese aqui levantada que a noo de heteronomia auxilia a
compreenso dos
diagnsticos cientficos elaborados, nas primeiras dcadas do sculo
XX, por diferentes
parcelas da intelectualidade nacional. Neles construram-se
regies e identidades de grupo
como formadores do que era ento compreendido como o rural neste
pas. Os discursos
podiam ser diversos, porm apresentam permanncias de deslegitimao
de pessoas como
sujeitos autnomos e, tambm, deslegitimam seus saberes, hbitos e
posses sobre a terra.
Para prosseguir nesse intento o primeiro passo definir o que se
entende por
heteronomia e autonomia. Aqui, acompanha-se a definio de Kant,
na qual a autonomia
no escolher seno de modo a que as mximas da escolha estejam
includas
simultaneamente, no querer mesmo como lei universal.2 Assim, a
autonomia deriva da
noo de esclarecimento (ilustrao), definida por esse filsofo.
Pois que, para Kant,
esclarecer era sair da minoridade, da tutela de outrem, era o
uso livre da razo por si e a
conseqente responsabilidade por isso, nas palavras do autor: A
menoridade a
incapacidade de fazer uso de seu entendimento sem a direo de
outro indivduo. 3
Em oposio ao uso autnomo da razo e ao seu imperativo categrico,
que se
compem o conceito de heteronomia. Nele encontra-se uma forma de
sujeio a uma lei
exterior ou quaisquer outras determinaes que no pertenam ao
mbito da legislao
estabelecida pela conscincia moral de maneira livre e autnoma,
nas quais no a
vontade que ento da lei a si mesma, mas sim o objeto que d a lei
vontade pela sua
relao com ela4. A heteronomia ento seria uma menoridade diante
da vontade de
outrem, de um interesse pessoal ou passional.
A proposta aqui compreender essa diferenciao como parte
integrante da
resposta a pergunta O que o esclarecimento? em Kant.
Conseqentemente, esclarecer
seria uma sada, uma soluo. Michel Foucault tambm analisou o
mesmo texto e destacou
que o sentido do esclarecimento seria ao mesmo tempo um processo
e uma tarefa, j que
para Kant: o prprio homem responsvel por seu estado de
menoridade. preciso
2 KANT, I. Fundamentao da metafsica dos costumes. Lisboa: Edies
70, 2005 (p. 85, BA 87)
3 KANT, I. O que Esclarecimento? Disponvel em , Acesso em: 12.
dez.2010.
4 KANT, I. Fundamentao da metafsica dos costumes. Op. Cit. (p.
86-87, BA 88-89).
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104 SEM ILUSTRAO
conceber ento que ele no poder sair dele a no ser por uma mudana
que ele prprio
operar em si mesmo. Uma sada autnoma.5
Ento, apesar da autonomia ser a base para o esclarecimento, esse
ltimo,
enquanto paradigma de conhecimento acabou delegando os
imperativos ao seu prprio
fundo social. Assim, a sociedade burguesa que se desenvolveu no
sculo XVIII entendia-se
como um mundo novo: reclamava intelectualmente o mundo inteiro e
negava o mundo
antigo. Cresceu a partir do espao poltico europeu e, na medida
em que se desligava dele,
desenvolveu uma filosofia do progresso que correspondia a esse
processo. O sujeito desta
filosofia era a humanidade inteira que, unificada e pacificada
pelo centro europeu, deveria
ser conduzida em direo a um futuro melhor.6
Esse movimento desenvolveu-se, durante os sculos XIX e XX no
ocidente, por uma
razo Iluminista composta como fora constituidora do novo, como
razo instrumental que
age no presente para superar o passado e construir um futuro
melhor. Essa reflexo
fundamental na crtica contempornea dialtica inerente ao
esclarecimento. Construindo
um paradigma de conhecimento no qual o conhecer dominar e
transformar o outro.
Essas crticas so aqui pertinentes pois que se busca incluir o
projeto de Profilaxia
Rural no Paran em horizontes mais amplos de reflexo, a saber a
formao do
conhecimento e a manipulao da diferena na epistem moderna. Pois
que, se o projeto de
Profilaxia visava criar sujeitos higinicos em corpos dceis, esse
processo de encontro entre
saberes cientficos e os viventes do campo se dava atravs de uma
postura de tutela do
outro pelo conhecimento e conhecedor autorizado pela cincia. As
mudanas propostas por
parte da Profilaxia para as populaes rurais do pas poca deste
estudo no foram
pensadas como mudanas destas pessoas por si mesmo, ou melhor,
mudanas produzidas
por vontades autnomas (e imperativos universais), mas sim como
objetos para os
interesses e determinaes nacionais de ento. A poltica nacional
era biopoltica, em nome
de um projeto de construo da nao sua populao deveria ser salva
de sua pressuposta
ignorncia, suas vidas avaliadas, territorializadas,
classificadas e projetadas para o futuro por
diferentes dispositivos, a Profilaxia Rural no Paran foi um
deles.
PROFILAXIA RURAL NO PARAN: IDENTIFICAES, DOENAS E TRAGDIA
Os trabalhos desenvolvidos pela Comisso de Profilaxia Rural no
Paran entre os
anos de 1916 e 1919, passaram por diferentes estratgias e
olhares sobre as populaes
rurais paranaenses. A Comisso foi chefiada pelo mdico Herclides
de Souza Araujo, mdico
paranaense e membro do grupo de cientistas em torno de Oswaldo
Cruz. Souza Arajo
voltara ao Paran em 1916, exatamente para chefiar a Comisso de
Profilaxia Rural no
Estado (C. P. R. Pr.). Souza Arajo, Adolpho Lutz e Olmpio da
Fonseca haviam publicado o
5 FOUCAULT, Michel. O que o esclarecimento? In: FOUCAULT, M.
Arqueologia das Cincias e Histria dos
sistemas de pensamento. (Ditos e Escritos II) 2 ed. Rio de
Janeiro: Forense universitria, 2005 (p. 338). 6 KOSELLECK,
Reinhart. Crtica e crise: uma contribuio para patognese do mundo
burgus. Rio de Janeiro:
EDUERJ/ Contraponto, 1999, p. 9-10.
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105 BEATRIZ ANSELMO OLINTO
relatrio da viagem feita pelo rio Paran, ao incio do ano 1918,
naquele mesmo ano pelo
Instituto Oswaldo Cruz.7 As informaes colidas durante essa
viagem sero utilizadas
tambm no relatrio da C.P.R.Pr.
Inicialmente, a Comisso pretendia desenvolver uma proposta
profiltica para a
lepra. Porm, para o grupo de jovens mdicos que o acompanharam na
Comisso, o desafio
inicial de combate lepra logo seria ampliado para o combate s
diversas verminoses
disseminadas na populao rural do Estado, tanto nos campos, no
litoral, nas cidades e nos
sertes. A Comisso realizou trabalhos de profilaxia da
ancilostomose, da ascaridase, entre
outras verminoses. Alm destas, tambm exerceu profilaxia sobre a
sfilis, o
impaludismo/malria, o bcio, a doena sodoku e, diante da
impossibilidade de lidar com a
lepra, elaborou um grande projeto de isolamento compulsrio para
essa doena. A Comisso
tambm tratou de organizar e propor diversos projetos sanitrios e
da ampliao das
pesquisas sobre as doenas atendidas.
A problemtica aqui desenvolvida busca compreender como a
complexidade e o
carter trgico das vivncias encontradas pelos jovens mdicos da
Comisso expuseram as
contradies entre os planos iniciais traados pelo olhar mdico, os
interesses oligrquicos,
os recursos disponveis e as vivncias das populaes atendidas. O
relatrio apresenta um
mundo sem consolo, compondo um palco trgico no qual: o belo e o
horrvel que compem
a vida humana tornavam-se plasticamente conhecidos, em uma
sabedoria maior que as
palavras. 8 Alm disso, rastreia-se a permanncia de vises sobre
as populaes rurais nas
quais so percebidas como incapazes para a autogesto de suas
vidas impondo-lhes, como
caminho para o progresso, uma vivncia tutelada.
Em 1919, a Comisso entregar aos governos Federal e Estadual,
como tambm
publicar, um amplo relatrio dos trabalhos desenvolvidos at
aquele ano. Nele, encontra-se
o mapeamento do combate realizado s doenas endmicas que, segundo
o prprio decreto
que regulamentava o Servio de Profilaxia no Estado do Paran,
dificultavam o trabalho nos
campos e concorrem para a inferioridade orgnica do Homem 9
Assim, no eram todas as
doenas que seriam alvo da profilaxia , mas sim as que
incapacitavam ao trabalho, como a
lepra, a sfilis, o impaludismo e as verminoses, essas tambm eram
vistas como causas de
uma suposta inferioridade daquele homem.
Com a criao de uma viso de caos sanitrio no universo rural, uma
ao ordenatria
ser iniciada pelo Presidente do Estado Afonso Alves de Camargo
em 1916 e mantida na
dcada de 20, quando o governador Caetano Munhoz da Rocha impor
uma poltica de
sade pblica sistematizada em grandes instituies no Paran. Alm de
manter em
funcionamento os servios de Profilaxia Rural. Se Afonso de
Camargo constituiu um trip de
7 LUTZ, A., SOUZA ARAUJO, H.C, FONSECA, O. Viagem Cientfica pelo
rio Paran e a Asuncion com volta por
Buenos Aires, Montevidu e Rio Grande. Memrias do Instituto
Oswaldo Cruz. Fascculo III, tomo X. Rio de Janeiro: Manguinhos, ano
1918, p. 104-173. 8 OLINTO, B. A . Pontes e Muralhas: diferena,
lepra e tragdia no Paran no incio do sculo XX. Guarapuava:
UNICENTRO, 2007. (p. 20) 9 Decreto 799/1918 In: SOUZA ARAUJO,
Herclides Cesar de. A Prophylaxia Rural no Estado do Paran:
Esboo
de Geografia mdica. Curitiba:[ s.n.], 1919, p. 25.
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106 SEM ILUSTRAO
atendimento baseado na Profilaxia, vacinao e hospitais, ser
Munhoz da Rocha que far
uma poltica de sade pblica monumental, simbolizada pela construo
de trs grandes
instituies hospitalares: uma para a centralizao de todos os
leprosos do estado, o
Leprosrio So Roque; outra para atendimento aos tuberculosos, o
Sanatrio So Sebastio
da Lapa e, finalmente, uma para doenas transmissveis em geral, o
Hospital de Isolamento
Oswaldo Cruz.10
Destaca-se que a Comisso funcionar com a parceria entre o
governo Federal,
Estadual e a Fundao Rockefeller, esse modelo foi implantado
durante a Primeira Repblica
no Brasil, a partir de 1910. Segundo Lina Faria, a partir de
ento que as reas rurais
passaram a fazer parte das polticas de sade executadas pelo
governo federal, at ento
essas eram muito mais centradas nos portos e na capital11.
Os recursos para essa profilaxia rural vinham do governo federal
(variavam entre
e 1/3, conforme decreto federal de 1 de maio de 1918 e as
regulamentaes estaduais
posteriores12) Assim, constitui-se um projeto de nao que
pressupunha a integrao do
rural ao paradigma de civilizao importado da Europa em um
universo no qual as vises
sobre as mazelas do Brasil se davam dentro de um enquadramento
dualista habitado por
pares indissociveis, tais como litoral-serto, sade doena e
moderno-atrasado13
Porm, ainda acompanhando as pesquisas de Faria, as parcerias com
a Fundao
Rockefeller foram firmadas aps o Brasil j ter atravessado os
momento iniciais de sua
reforma sanitria.14 Nesse sentido, a Profilaxia Rural no Paran
foi estabelecida em um
sistema elaborado a partir dos trabalhos desenvolvidos por
Oswaldo Cruz e do grupo em
torno de Manguinhos. Aliana entre o governo federal, o estadual
e a Fundao Rockefeller (
dos recursos) constituda com papis bem especficos: o primeiro
encarregava-se da
direo, das estratgias e grande parte dos recursos, o segundo
tambm com recursos e
pessoal para apoio logstico, e a terceira atuava de forma mais
localizada, no caso do Paran
com postos em Antonina e Paranagu. Porm, a Fundao Rockefeller
fornecia a troca de
experincias e bolsas de estudo para a formao dos profissionais
da rea mdica do pas.15
Cabe apontar mais um fator na instituio da CPRPr, a instncia
municipal de
administrao pblica, pois o relatrio aponta frequentemente para a
diferena de apoio
recebido por parte dos governos municipais para os trabalhos da
Comisso. Esses sero pea
chave para a manuteno dos servios ou no, pois para alm da
escassez de recursos
mapeia-se tambm as tenses que envolviam a realizao do projeto
elaborado no nvel
federal e executado nos domnios das oligarquias locais. Em 1919,
quando Souza Araujo faz
10
Ver: OLINTO, Beatriz. Pontes e Muralhas: Diferena, lepra e
tragdia no Paran. Guarapuava, PR: UNICENTRO, 2007. 11
FARIA, Lina. Sade e Poltica: a fundao Rockefeller e seus
parceiros em So Paulo. Rio de Janeiro: Fio cruz, 2007 (p. 52).
12
SOUZA- ARAUJO. Profilaxia... Op. Cit., p. 14 e 21. 13
LINA, Nsia ; HOCHMAN, Gilberto. Pouca sade e muita sava:
sanitarismo , interpretaes do pas e cincias sociais. In:HOCHMAN,
Gilberto; ARNUS, Diego. Cuidar, controlar, curar: ensaios histricos
sobre sade e doenas na America Latina e Cariba. Rio de Janeiro: Fio
cruz, 2004 (p. 496-497) 14
FARIA, Lina. Sade e Poltica..., op. cit., p. 55. 15
Idem (p. 40)
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Julho-dezembro de 2012
107 BEATRIZ ANSELMO OLINTO
uma avaliao dos trabalhos realizados dirigida ao Presidente da
Repblica, a forma
escolhida pelo autor narrar e justificar primeiro as
dificuldades na execuo para, somente
aps, no desenrolar do texto apontar as realizaes, assim:
O servio da profilaxia rural ainda representa para ns uma
tentativa e uma experimentao. Sua execuo se nos apresenta
extremamente cheia de dificuldades em virtude da grande extenso do
nosso territrio, da quase infinita diversidade das condies locais,
onde temos de operar, e, finalmente, em face da exigidade dos
nossos recursos relativamente ao vulto grandioso da empresa.
16
Apesar de fazer parte da smula dos trabalhos realizados17, o
texto compe um
ideia de continuidade desses trabalhos, o que conseguiria em
1920 com a renovao do
convnio entre estado e o governo federal18. Tambm passa a ideia
de uma experimentao,
ou seja, se por um lado traz a noo de conhecimento produzido
pela experincia, por outro
ameniza as expectativas quanto ao seu resultado. Funo tambm
cumprida pelo destaque
dado s dificuldades encontradas, a saber, a extenso do
territrio, as sua diversidade local
e a falta de recursos. Ser a partir desse quadro que o mdico
passar a descrever
minuciosamente a atuao da Comisso no captulo seguinte da obra,
sob o ttulo
Geografia Mdica.19 A modernidade rural apresentada como tarefa
imensa para heris
incompreendidos e solitrios, quase personas trgicas.
Foi no sculo XX que a questo da constituio de polticas de sade
para a rea
rural por parte do governo federal brasileiro foi elaborada. O
debate em torno da
possibilidade civilizatria dessas populaes levou uma
intelectualidade nacionalista a
primeiro diagnosticar quais seriam os entraves para esse
progresso e depois a lutar pela
realizao da reforma sanitria nos sertes. Assim, um novo projeto
de nao foi elaborado
e esse s seria vivel por meio da integrao do sertanejo civilizao
do litoral.20
Atuao da CPRPr pode ser compreendida a partir da publicao do
relatrio de
Artur Neiva e Belisrio Penna sobre a expedio mdico cientfica do
Instituto Oswaldo
Cruz ao interior do Brasil em 1916, nele o quadro composto era
de um pas com uma
populao desconhecida, atrasada, doente, improdutiva e
abandonada, e sem nenhuma
identificao com a ptria.21 Logo em seguida, ao incio de 1918,
criada Liga Pr-
saneamento do Brasil, liderada tambm por Penna. Some-se a isso,
a intensa publicao de
artigos por parte de mdicos e intelectuais tanto na capital do
pas, quanto na capital do
Estado sobre a temtica, constitua-se uma viso de atraso do
Brasil em relao aos pases
europeus e sua nova resposta. Afinal, no era mais a culpa da raa
e sim das doenas, o
suposto atraso civilizatrio do Brasil.
16
SOUZA ARAJO. Profilaxia Rural..., op. cit., p. 30. 17
Idem, capa. 18
PARAN. Mensagem do Presidente do Caetano Munhoz da Rocha
dirigida ao Congresso Legislativo do Estado. 01/02/1920, p. 89.
19
Idem, p. 4. 20
FARIA, Lina. Sade e Poltica..., op. cit., p. 52. 21
LIMA, N.; HOCHMAN, G. Pouca sade e muita sava. Op. Cit., p.
498.
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Revista Mundos do Trabalho, vol. 4, n. 8, julho-dezembro de
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108 SEM ILUSTRAO
Essa mudana de postura bem representada em Jeca Tatu a
ressurreio de
Monteiro Lobato, publicado no mesmo ano de 1918. Pois que a
descrio do personagem
pelo autor passara de funesto parasita da terra em 1914, para: O
Jeca no assim; est
assim em 191822. A representao do caboclo no era mais de um ser
quase morto em
meio a uma natureza exuberante, mas sim, de algum doente a ser
salvo pela ao da
medicina.23 Essa mudana na viso de Monteiro Lobato pode ser
vista como um smbolo da
nova problemtica construda pela intelectualidade brasileira
sobre as populaes rurais. Se
at a primeira da dcada do sculo XX, o povo estava condenado a
uma incapacidade
civilizatria pela raa, agora, ele poderia ser higienizado atravs
do saneamento do serto.
Esse era o novo problema a ser solucionado pelo estado e pela
cincia atuando em conjunto.
Viso essa que ser reencontrada ao final do relatrio da
C.P.R.Pr.:
Combatemos tambm a assero vulgar desprovida de qualquer
fundamento cientifico, to arraigada entre o povo e tambm os
letrados, de que a anemia do nosso povo do litoral e dos campos
corre por conta da m e insuficiente alimentao, a que ele se
sujeita, descrevendo os nosso patrcios do interior como vitimas da
inanio em meio a uma natureza rica e uma terra que d tudo o que se
quer. O que acontece o seguinte; nas zonas de alta endemicidade da
ancilostomose o homem em geral pouco produtor porque pouco
trabalha, e se no trabalha mais no instinto de preguia e sim por
que doente
24
Na passagem acima, no mesmo sentido da ressurreio do Jeca Tatu,
tambm o
homem rural do Paran poderia ser salvo de seu suposto pouco
trabalho. Esse no era por
ndole e sim por anemia. Doena esta, causada por verminoses e no
por subnutrio, na
viso do mdico. Porm, se fosse subnutrio, a sim seria culpa do
trabalhador, pois que a
qualidade da terra nunca questionada nos discursos provenientes
das autoridades ligadas
ao governo do Estado do Paran. Porm, esses discursos no podem em
nada ofuscar a
compreenso da diversidade de posies relacionais dos grupos
envolvidos.25 O convnio do
Governo Federal com o Estado, que possibilitava a existncia da
Profilaxia Rural, necessitava
criar constantemente imagens de consenso para aprovar o seu
oramento26. O convnio
com a Fundao Rockefeller elogiado, entretanto o prprio Souza
Araujo aponta limites do
tratamento ali desenvolvido. As oligarquias locais orbitam entre
apoio aos trabalhos da
Comisso e o aberto boicote a eles.
22
Passagens extradas de Urups e Problema vital de Monteiro Lobato
apud NAXARA, Mrcia. Estrangeiro em sua prpria terra: representaes
do brasileiro - 1870/1920 . So Paulo: FAPESP/Annablume, 1998 (p. 25
e 28). 23
Idem, p. 29. 24
SOUZA ARAUJO. Profilaxia... Op. cit., p. 211. 25
Sobre conflito de interesses entre governos estaduais e federais
para a Profilaxia Rural , ver: LINA, Nsia ; HOCHMAN, Gilberto.
Pouca sade e muita sava: sanitarismo , interpretaes do pas e
cincias sociais. In: HOCHMAN, Gilberto; ARNUS, Diego. Cuidar,
controlar, curar: ensaios histricos sobre sade e doenas na America
Latina e Cariba. Rio de Janeiro: Fio cruz, 2004 (p. 496-497),
artigo demonstra o conflito entre governo federal e seus projetos
de profilaxia e as oligarquias locais a partir da constituio de
1891. 26
Sobre as estratgias para a construo de um apoio no Congresso
Legislativo Estadual do Paran para investimento em sade ver:
OLINTO, Beatriz. Pontes e Muralhas: Diferena, lepra e tragdia no
Paran. Guarapuava: UNICENTRO, 2007. A autora aponta que o oramento
para a construo de um Leprosrio havia sido rejeitado pelo congresso
legislativo do Paran em 1917.
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Julho-dezembro de 2012
109 BEATRIZ ANSELMO OLINTO
Todavia, atravs do Relatrio da C.P.R.Pr., Souza Arajo, como
tambm os demais
mdicos da sua equipe, narram e organizam, avaliam e classificam
as suas atividades como
se essas fossem a nica sada para o futuro nacional. Para isso,
assumem a responsabilidade
por essa tarefa de conduzir o progresso, constituindo-se como
sujeitos modernos. Da
tambm apresentarem as dificuldades encontradas, a populao
atendida, as doenas, os
tratamentos e os resultados.
No incio do Relatrio, o mdico j afirma que a motivao de todo o
trabalho havia
sido a questo da lepra, mas por vrios motivos acabara ficando
relegada a um segundo
plano, pelo menos naquele momento. Segundo ele:
Vrios obstculos foram aparecendo e no se fez at hoje (1919) a
profilaxia da lepra, mas em compensao, a campanha contra as
verminoses em todos os municpios da marinha vai dando os mais
brilhantes resultados, e a campanha anti-paldica por ns iniciada e
dirigida acabou com o grande espantalho e o grande ceifador da vida
dos preciosos trabalhadores do serto.
27
Na passagem acima o mdico aponta os vrios caminhos em que os
trabalhos da
Comisso se subdividiram, para alm do projeto inicial. O fracasso
com a lepra naquele
momento inicial era amenizado pela construo de uma viso atuao
diante das outras
doenas. Porm, os trabalhos da Comisso e de Souza Arajo devem ser
analisados dentro
do quadro maior de criao, pelo Governo Federal, do Servio de
Profilaxia Rural com o
objetivo de combater as endemias que assolam o interior do
pais28 . Atravs desse Servio
foram fundados postos sanitrios em vrias cidades do interior do
pas. com esse sentido
que, em 1919, ainda sob o impacto da Gripe Espanhola, os servios
nacionais de sade so
reformulados29.
Souza Arajo continua a obra relatando as campanhas realizadas
contra as
verminoses, o trabalho conjunto com a Comisso Rockefeller30, o
caos dos servios de sade
no Paran quando da Gripe Espanhola. O Relatrio, alm de ser uma
fonte profcua sobre
esses assuntos, apresenta as propostas do mdico para o
atendimento lepra. Nelas
delineia-se a sua viso sobre o isolamento. Esses indcios apontam
que, entre os finais das
dcadas de 10 e 20, ocorreu uma mudana de perspectiva mdica e
poltica sobre a sade
das populaes, demarcando uma maior atuao estatal na sade pblica.
As polticas de
sade pblica nesse perodo demonstram a ampliao do papel do
estado, assumindo a
responsabilidade pelo manejo das populaes.
Por outro lado, percebe-se Souza Arajo como um sujeito da razo
que projeta
sobre o papel um vir a ser futuro para aquelas populaes. Para
isso os trabalhos da
27
SOUZA ARAJO. Profilaxia Rural...., op. cit., p 12. 28
Artigo 1 do decreto 13/ 001 de 1 de maio de 1918 que criou o
servio, In: SOUZA ARAJO. Idem, p. 20. 29
Ver: OLINTO, B. A. Uma cidade em tempo de epidemia: Rio Grande e
a Gripe Espanhola. Dissertao (Mestrado em Histria). Florianpolis:
UFSC, 1995. 30
A Comisso Rockefeller, segundo ROSEN, atuava no sentido de
auxiliar os pases na criao de agncias de sade nacionais e locais,
includos os recursos humanos e materiais sobre os quais, no futuro
se possam sustentar. Ver: ROSEN, George. Uma Histria da Sade
Pblica. So Paulo: UNESP, Rio de Janeiro: HUCITEC, 1995, p. 363.
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Revista Mundos do Trabalho, vol. 4, n. 8, julho-dezembro de
2012, p. 102-123.
110 SEM ILUSTRAO
Comisso eram tambm uma organizao das gentes e das coisas em um
conhecer
elaborado atravs da classificao, do levantamento estatstico e
espacializao das
doenas. O mdico construa em seus escritos um mundo perfectvel,
sua viso era de
superao constante rumo ao progresso e de uma crena, at aquele
momento, inabalvel
na cincia e no futuro.
Espacializar a distribuio de doenas um criar de territrios para
elas,
possibilitando assim, o domnio desse territrio por um saber
estratgico, sendo ento um
suporte para o exerccio de poderes. Acompanhando Foucault, ao
recorrer geografia o
discurso mdico estaria se apropriando dos dois procedimentos de
verdade que ali se
encontram. A saber, o inqurito seria o procedimento de verdade
das cincias naturais; o
exame, o procedimento de vigilncia das cincias humanas31.
Pode-se ento perceber, de
que maneira a medicina ancora a sua cientificidade duplamente,
nas cincias naturais e nas
cincias humanas.
UMA GEOGRAFIA MDICA: O INQURITO, O EXAME E A VIGILNCIA
Para compreender o horizonte conceitual da atuao mdica de Souza
Arajo
necessrio refletir sobre a concepo de Geografia Mdica. O
conceito Geografia Mdica
advindo do sculo XIX, mais especificamente da obra Ensaio de
Geografia Mdica de Boudin
em 1843. Segundo Sandra Caponi, nessa obra o autor procurava por
leis de propagao das
enfermidades que fossem anlogas s da distribuio das espcies
vegetais. Isso ,
percebendo a influncia da latitude, longitude, temperatura,
presso, geologia, relevo, etc.
Assim, a Geografia Mdica tinha como objetivo estudar a
distribuio das doenas e
conhecer as modificaes que imprimem no organismo por influncia
do clima. 32 Desse
conhecimento adviria o projetar das intervenes necessrias no
ambiente com o objetivo
de controle das doenas. Ideias que fundamentavam, por exemplo, a
secagem de pntanos,
pois que esses para Boudin seriam propcios para febre paldicas e
a peste.33
O conhecer geogrfico ento apresentado como um suporte condio
de
possibilidade do exerccio de poderes cientficos e estatais para
o saneamento do ambiente
e a sade das populaes. Nesse caminho o captulo Geografia Mdica
do relatrio da
Comisso de Profilaxia Rural inicia com a descrio e avaliao dos
trabalhos realizados por
esta em Curitiba e no incio do ano de 1917, o ento Presidente do
Estado Affonso de
Camargo faz tambm sua avaliao da necessidade da Profilaxia e de
sua atuao:
Se h servio pblico que mais deva preocupar a ateno dos
governantes sem dvida o da
higiene. Em que pese a salubridade e a amenidade do nosso clima,
devemo-nos acautelar
contra molstias endmicas e epidmicas.34
31
FOUCAULT, M. Microfsica do Poder. 10 ed. Rio de Janeiro: Graal,
1979, p. 162. 32
CAPONI, Sandra. Sobre La aclimatacin: Boudin y La geografia
mdica. Histria,Cincia e Sade- Manguinhos. V.14, n. 1, p. 13- 38,
jan.- mar. 2007, p. 29. 33
Ver: CAPONI. Idem..., p. 29. 34
PARAN. Mensage... 01/01/1917, p. 11.
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Julho-dezembro de 2012
111 BEATRIZ ANSELMO OLINTO
Da a importncia do trabalho da Comisso, pois naquele momento
estava a
percorrer o Litoral do Estado, onde faz a geografia mdica
daquela regio, para que, em
virtude das observaes feitas, possa o governo tomar as
providncias que elas
aconselham.35 Percebe-se ento a viso do conhecimento cientfico
instrumental, na qual
as informaes levantadas pelo trabalho da C.P.R.Pr. seriam a
origem de uma ao eficaz por
parte do governo do estado na gesto da higiene pblica.
Trazer o conceito de Geografia Mdica para o Paran nas primeiras
dcadas do
sculo XX apresentava-se aos envolvidos como um trabalho hercleo.
Foi assim constituda
toda uma hierarquia burocrtica entre guardas sanitrios, tcnicos
laboratoriais e mdicos.
Para cobrir esse espao, a C.P.R.Pr. contava com uma equipe
inicial interdisciplinar com dez
mdicos e composta por microscopistas e guardas sanitrios. O
pequeno nmero de pessoas
envolvidas na Comisso aponta a importncia das parcerias
municipais para a realizao dos
trabalhos e, com a Fundao Rockefeller, para o levantamento de
dados.
Abaixo se pode observar a amplitude do levantamento da Comisso,
atravs do
mapa elaborado a partir dos dados sobre a infeco por
Ancilostomose no estado.
Figura 1: Mapa do Paran na perspectiva mdica da
Ancilostomose
Fonte: SOUZA ARAUJO. Profilaxia. Op. Cit.
importante destacar que essa espacializao era sempre feita a
partir das normativas
do Instituto Oswaldo Cruz no Rio de Janeiro, como tambm eram os
saberes desse Instituto
35
PARAN. Mensagem.... 01/01/1919.
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Revista Mundos do Trabalho, vol. 4, n. 8, julho-dezembro de
2012, p. 102-123.
112 SEM ILUSTRAO
que instruam todo o projeto de Profilaxia Rural no pas. No Paran
as medidas adotadas
pela Comisso Profilaxia Rural iniciaram pela capital do estado.
Essa no escapava a
percepo de rural, pelo menos no olhar projetado do Rio de
Janeiro. Consequentemente,
os trabalhos realizados em Curitiba iniciam, com a abertura do
Posto de Profilaxia. L a
situao apresenta-se um pouco diversa em relao as outras
localidades do Paran, pois o
seu posto ser central, ou seja, o local de centralizao de todos
os trabalhos da Comisso.
Para isso o Governo Federal definiu em junho de 1919 que somente
funcionariam junto ao
Posto Central os servios de vacinao e o dispensrio anti-siflico,
devendo ser fechada a
Policlnica dos Pobres que funcionava, at ento, no mesmo
prdio.36
Entretanto, pode-se compreender melhor essa instruo acompanhando
o
Relatrio. Nele Souza Arajo informa que, aps a epidemia de gripe
de 1918, [...] a
populao pobre desta capital continuou a procurar, para consulta
de todas as doenas, o
nosso posto central, acostumada que estava a ser aqui
prontamente socorrida por ocasio
da grande epidemia. Em consequncia disso, o Ministro da Justia e
Negcios Interiores, a
quem estava subordinada a Comisso, havia decidido pela extino da
tal Policlnica dos
Pobres, pois [...] a maioria destes doentes no interessava muito
a questo da higiene
pblica, e devendo os mdicos internos se preocupar mais com as
pesquisas de laboratrio e
o dispensrio anti-siflico [...].37
Nessa passagem, a constituio da doena como problema a ser
solucionado,
quase nada tem a ver com a sua existncia natural e sim com as
questes histricas que
transformam em um dado momento, uma determinada doena, em um
problema. Segundo
o Relatrio em questo, a populao de Curitiba padecia de muitas
outras molstias e as
percebiam como passiveis de tratamento mdico e a ele recorriam.
Mas, apesar dessa
demanda, o Ministrio havia decido fechar esse servio em favor da
higiene, da pesquisa e
do tratamento da sfilis. Indicando que o atendimento disponvel
por parte de uma medicina
social definido pelos cnones da cincia e da administrao pblica e
no por demanda.
Esse evento narrado por Souza Araujo corrobora com as
interpretaes
recorrentes na historiografia sobre esse momento histrico, como
um perodo no qual a
interveno buscava prioritariamente salvar o futuro nacional, em
nome de um modelo de
civilizao ocidental moderna. As populaes pobres eram percebidas
como potencialmente
perigosas e entraves a esse modelo. A higienizao dos seus corpos
e o saneamento do seu
habitat seria, supostamente, o caminho para transform-las e
sujeit-las produtividade
capitalista. A Comisso de Profilaxia apresenta-se nesse quadro
como uma operao
estratgica de produo de conhecimento, da tambm a importncia das
pesquisas
realizadas por seus membros, pois delas deveria decorrer a
verdade cientfica sobre o
presente que instrumentaria a interveno estatal e possibilitaria
prever e controlar o
futuro.
Logo a seguir, na narrativa do prprio mdico, ele informa que,
aps o fim da
Policlnica dos Pobres no ms de junho de 1919, [...] pudemos nos
escusar da obrigao de
36
SOUZA ARAUJO. Profilaxia... Op. Cit., p. 40. 37
Idem (p. 50).
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113 BEATRIZ ANSELMO OLINTO
examinar e tratar todos os doentes que procuravam o nosso
servio, mas, pelo habito de
humanidade que adquire todo o mdico que lida com o povo, fomos
afrouxando e hoje a
consulta gratuita diria no nosso servio voltou a ser um fato.38
A vida mais complexa que
os projetos e se infiltra nas fissuras dos dispositivos.
O Dispensrio Antissifiltico de Curitiba era apresentado como o
arqutipo
civilizacional da Comisso, l era a central de comando da
estratgia profiltica, o local que
abrigaria os principais laboratrios. Um espao disciplinar
privilegiado para estudar os
comportamentos desviantes. Porm, as pessoas atendidas pela
Policlnica dos Pobres
tambm estavam l. Elas eram sujeitos que sabiam resistir e
manipular regras e situaes
que se apresentavam. Tal fato expe os mdicos a uma dimenso
trgica do viver, pois a
populao recorria aos seus saberes, entretanto os parcos recursos
dispensados sade no
haviam sido projetados para esse tipo de atendimento. No projeto
profiltico rural, a
populao que deveria ser salva e as doenas que deveriam ser
combatidas tornavam-se
apenas uma projeo sobre os viventes. As mximas a serem
conhecidas e atendidas eram
exteriores vontade dos envolvidos, eram mscaras, fantasmagorias
cientficas, apartadas
da vontade e necessidade cotidiana.
Retomando a anlise da opo da Comisso de Profilaxia Rural do
Paran por uma
geografia mdica, destaca-se que essa opo j indicava o carter de
seus procedimentos. O
conhecer geogrfico reunia em si os procedimentos do inqurito
(cincia naturais) e do
exame (cincias humanas). Nele a verdade constitua-se tanto por
ajustamento de partes
(testemunhos, provas), quanto pela vigilncia (um olhar
minucioso).39 Da deter-se um pouco
mais no funcionamento deste dispositivo.
O funcionamento dos servios profilticos iniciava com a abertura
do Posto
Sanitrio. Esse era organizado em um prdio cedido pela prefeitura
local e tinha a sua
direo geral entregue a um mdico diplomado. Esse ltimo deveria
residir no local e
realizar os tratamentos gratuitamente. Tambm cabia ao mdico
visitar em casa os doentes
que resistissem ao tratamento e convenc-los a participar, bem
como proferir as
conferncias educativas para a populao.40 Os resultados esperados
dessas medidas podem
ser resumidos na passagem abaixo:
Vereis que aos poucos estes indivduos plidos, edemaciados,
barrigudos, e de olhos sem brilho, de pele cor de terra, de
fisionomia sem expresso, de artrias sem sangue, de crebros sem
inteligncia e de crescimento retardado, iro cada dia rareando mais
e a sade voltar aos vossos lares e com ela a alegria e a
felicidade. Ento levantareis as mos para o cu e agradecereis ao
Deus de vossa religio os benefcios que a cincia vos trouxe. Chegar
ento o dia, feliz para a nossa ptria, em que no mais sero chamados
os nossos irmos do litoral e dos campos, de indivduos, indolentes e
preguiosos e sem inteligncia.
41
38
SOUZA ARAUJO. Profilaxia... Op. cit., p. 50. 39
Ver: FOUCAULT, M. A verdade e as formas jurdicas. 3 ed. Rio de
Janeiro: NAU, 2003 e FOUCAULT, M. Sobre a Geografia In:FOUCALUT, M.
Microfsica do Poder. 10 ed. Rio de Janeiro: Graal, 1979. 40
SOUZA ARAUJO. Profilaxia... Op. Cit., p. 66. 41
Idem, p. 64.
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114 SEM ILUSTRAO
A citao acima foi retirada do discurso proferido pelo mdico
Herclides de Souza
Arajo em 12 de dezembro de 1918, quando da inaugurao do Posto
Sanitrio do municpio
de Morretes. Esse discurso foi reproduzido pelo seu autor tanto
no Relatrio da Profilaxia
Rural do Paran, quando na Revista Paran Mdico.
O Posto Sanitrio de Morretes foi o primeiro inaugurado pela
Comisso Sanitria
Federal para o Estado do Paran fora da capital. O posto de
Morretes j estava em pleno
trabalho desde o dia 1 de outubro de 1918, porm, s foi
inaugurado oficialmente, segundo
as palavras do prprio mdico aproveitando a presena do Sr. Dr.
Lewis Wendell Hackett ,
diretor no Brasil do Conselho Sanitrio Internacional da
Rockefeller Fundation42, o qual
estava no Paran para firmar a parceria para a instalao de dois
postos de campanha contra
a ancilostomose, verminose mais abundante no litoral segundo os
levantamentos da prpria
Comisso de Profilaxia.
A inaugurao do Posto de Morretes foi adiada quando da ecloso da
Gripe
Espanhola, qual se seguiu a paralisao dos trabalhos da Comisso
no dia 20 de outubro de
1918, pois todos os seus membros foram desviados para o
atendimento populao doente.
Nas palavras de Souza Arajo: ficou o pessoal da nossa comisso a
disposio do Governo
do estado para auxilio no combate a gripe.43 Mas, tambm a Gripe,
transformou-se em
dados e porcentagens de letalidade populacional ao encontrar a
Comisso, como pode ser
verificado abaixo:
O sistema projetado era to eficaz que mesmo doenas no previstas
acabavam
por fortalec-lo, pois que forneciam mais informaes para a
totalizao geogrfica e
podiam ser alardeadas como servios prestados, como no caso da
Gripe Espanhola e da
Policlnica dos Pobres.
Sobre a ordenao do Posto da profilaxia pode ser percebida a
preocupao de
detalhar todas as funes e hierarquiz-las no Relatrio. Assim,
cada Posto deveria contar
com um microscopista, ressaltando uma vez mais a importncia da
pesquisa emprica (no
caso e exame de fezes) para a construo da verdade na geografia
mdica. Sobre a
hierarquia, essa era estruturada e projetada com mincia, assim:
Os guardas s podero
administrar o tratamento por determinao do mdico, no podendo
nunca alterar a dose
prescrita. Ou ainda: qualquer sintoma diferente [...] o guarda
dever sem demora correr e
dar conta do que se passa para o mdico.44
Assim, o relatrio sempre reitera a autoridade do mdico sobre o
guarda, essa
necessidade de reforar frequentemente o papel de cada categoria
envolvida no projeto e
deixar claros os limites da atuao dos guardas sanitrios, indicia
um receio do mdico em
relao a estes ltimos. Talvez uma falta de confiana na sua
subservincia hierarquia e
autoridade cientfica. Talvez por serem pessoas escolhidas entre
os moradores locais, mais
prximos dos pacientes, proximidade reforada por visitarem as
residncias e ministrarem
42
SOUZA-ARAUJO. Profilaxia... Op. cit., p. 61. 43
Idem, p. 121. 44
Idem, p. 71-72.
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Julho-dezembro de 2012
115 BEATRIZ ANSELMO OLINTO
os medicamentos, o que poderia acarretar um reconhecimento como
uma autoridade
saneadora por parte da populao local. Mas so apenas
hipteses.
Figura 2: Quantificao da Gripe Espanhola
Fonte: SOUZA ARAUJO. Profilaxia.Op. cit.
Logo ao incio do servio o municpio em questo era dividido em
zonas e cada
uma delas era entregue a um guarda sanitrio. O servio do guarda
baseava-se na coleta de
material e tratamento. O diagnstico e a prescrio do tratamento
eram exclusividade dos
mdicos, porm a coleta e o ministrar dos remdios indicados para a
populao eram feitos
pelos guardas sanitrios.
Para isso toda uma srie de dispositivos burocrticos instaurada,
os guardas
sanitrios deviam fazer a numerao, identificao de todas as casas
na zona de sua
responsabilidade e anotar em suas cadernetas os dados de cada
morador e as doses
ministradas a eles. Alm disso, o guarda sanitrio era encarregado
de distribuir os folhetos
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Revista Mundos do Trabalho, vol. 4, n. 8, julho-dezembro de
2012, p. 102-123.
116 SEM ILUSTRAO
informativos. E mais, ele poderia a qualquer momento perder o
seu emprego: O guarda ou
qualquer outro funcionrio que se apresentar freqentemente
doente, prova a sua
incapacidade para os servios da comisso e ser obrigado a deixar
o emprego.45 O guarda
e outros cargos inferiores na hierarquia profiltica, aparecem
como seres limtrofes entre o
saber cientfico e o povo. Podendo cruzar uma tnue linha que
parece separar os dois grupos
por se apresentar doente, estigma incapacitante para a funo na
viso da Profilaxia.
Ao final se organiza com os dados um boletim mensal com cpias
enviadas ao
Ministro da Justia, ao secretario do Interior do Estado, ao
Diretor da Higiene e a imprensa.46
O essencial era produzir informaes, disciplinar corpos e
hierarquizar saberes; o prdio, o
censo, os medicamentos e a propaganda so seus instrumentos.
Essa atuao que constri o esboo de Geografia Mdica no Paran
apresentado
no Relatrio da Comisso, mas nele tambm so territorializadas
regies a partir de uma
diviso nosolgica. Apesar das doenas apresentarem-se em todos os
locais analisados pela
Comisso, a sua atuao deveria escolher quais seriam combatidas em
cada lugar.
nesse sentido que Curitiba descrita sempre a partir do
Dispensrio
Antissifiltico. Cabe destacar que o atendimento ali prestado era
gratuito para meretrizes
(devidamente recenseadas e identificadas) e indigentes. Tambm
oferecia leitos para que as
mulheres que no tivessem onde ficar durante o tratamento e
fossem internadas. Para,
assim, segundo o mdico, no continuassem a disseminar ao doena
por falta de opo
para sobrevivncia. Todas as meretrizes eram obrigadas a
comparecer decentemente
vestidas e portar-se respeitosamente, sob pena de censura.[...]
47 A profilaxia da sfilis era
baseada tambm no recenseamento e na expedio de carteiras de
identificao das
prostitutas. 48
Bem diferente a regio denominada Litoral. Essa compreendia as
localidades de
fato litorneas e as que ficavam entre essas e o incio da Serra
do Mar. L seria o lugar de
maiores resistncias do mandonismo local, segundo Souza
Araujo:
preciso confessar que a nossa ao no foi recebida com a boa
vontade que era de se esperar. Diversos indivduos de cidade e entre
eles o homem de mais responsabilidade na administrao municipal,
procuraram impedir a execuo das mais comezinhas medidas de higiene
pblica, tais como a construo de latrinas, etc. Uma verdadeira
luta.
49
O Litoral o espao para os chamados refratrios profilaxia. O
mdico
descreve a regio em situao de penria e ausncia de gua potvel, de
esgotos e latrinas.
Em Morretes, a prescrio persuadir refratrios, a Comisso
intensifica a estratgia de
visitas domiciliares para o convencimento da populao bem como as
propagandas em
panfletos e filmes. Souza Araujo organiza todo um esquadrinhar
da municipalidade, exige
45
Idem, p. 70. 46
Idem, p. 153. 47
Idem, p. 298. 48
Idem, p. 285 e 308. 49
Idem, p. 65.
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Julho-dezembro de 2012
117 BEATRIZ ANSELMO OLINTO
exatido e mincia nos relatrios, cria prmios e penalidades. O
resultado dos exames e
trabalhos por fim quantificado: 100% infectados, 50% com anemia,
149 latrinas
construdas. Nas vizinhas Antonina e Porto de Cima, a malria e as
verminoses so
identificadas. Os mdicos da Comisso trabalham ali com apoio da
Fundao Rockefeller e
diagnosticam tambm 100% da populao infectada por verminoses.
Destaca-se a
inexistncia de fossas em Porto de Cima e, principalmente, a alta
letalidade de Gripe (57%)
em Antonina, mas essa no recebe nenhuma explicao ou formulao de
hipteses por
parte da Comisso, mesmo diante da mdia geral de mortalidade no
Paran, apenas 1,8%,
os dados da prpria Comisso. No Litoral , apesar de existirem
dois portos, Antonina e
Paranagu, o relatrio no problematiza a existncia de sfilis.
Ainda no Litoral, agora em Paranagu, a preocupao a malria e
tambm as
verminoses, 100% da populao diagnosticada com vermes. Nessa
localidade, a parceria
com a Fundao Rockefeller ser descrita pelo mdico: Comprometeu-se
esta (Fundao
Rockefeller) a instalar um posto de campanha contra as
verminoses no municpio de
Paranagu.50 A diferena de projetos profilticos e os conflitos
internos do campo cientfico
na rea mdica so apontados pelo mdico:
Nota Em Paranagu a comisso Rockefeller limitou-se a tratar os
opilados, sem cogitar do servio de latrinas o que nos obriga a
fazer este servio com mxima urgncia, porque do contrrio, terminado
o tratamento, poucos meses depois de curados se reinfestaro outra
vez.
51
A distino apontada central na estratgia de Souza Araujo, no a
toa que
existem punies previstas para a no construo de fossas e intimaes
para a construo
foram distribudas por todo o litoral52, se alguma consequncia da
decorreu no se tem
indcios at o momento. Porm, Souza Araujo conhecia bem os
insucessos da Fundao
Rockefeller e os aponta em diferentes momentos do texto53. Para
o mdico as falhas
estavam exatamente na vigilncia constante dos doentes, pois que,
a Fundao Rockefeller
distribua os remdios e no fiscalizava a sua ingesto. Ao
contrrio, na Profilaxia Rural, um
guarda sanitrio passava de casa em casa ministrando a dose
prescrita pelo mdico, esse
mtodo era denominado de intensivo e justificado pela gravidade
da situao do Litoral, pois
que esse logo tornar-se-ia inabitvel por causa das verminoses.
Nas palavras do nosso
narrador:
O mtodo intensivo ou sistemtico o mais prprio para as grandes
campanhas contra as verminoses intestinais e aquele que
apresenta
54todos os requisitos de
xito completo. A base do mtodo o tratamento a domicilio de toda
uma
50
Idem, p. 84. 51
Idem, p. 87. 52
Idem, p. 93. 53
Idem, p. 87 e 192. 54
Idem, p. 100.
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Revista Mundos do Trabalho, vol. 4, n. 8, julho-dezembro de
2012, p. 102-123.
118 SEM ILUSTRAO
populao opilada, dirigido pessoalmente pelo mdico, e
freqentemente fiscalizado pelos seus auxiliares.
55
A Profilaxia Rural construiu muitos planos de interveno, mas
tinha poucos
recursos a ela destinados pelos governos Federal e Estadual. A
insistncia de Afonso
Camargo e Munhoz da Rocha em elogiarem a pessoa de Souza Araujo
como ilustre, digno e
perseverante56 inversamente proporcional ao apoio financeiro aos
seus projetos. Mdicos
e populaes abandonados pois em um palco trgico ningum ter
consolo.
Entretanto a agricultura no Paran durante o perodo de 1916 a
1921
apresentada como um sucesso pelos presidentes do estado. Afonso
Alves de Camargo, em
sua Mensagem ao Congresso Legislativa ano incio de 1918, se
refere ao ano de 1917 como:
ano decorrido foi de verdadeiros triunfos para o nosso estado no
que diz respeito a sua
produo agrcola.57
O referido presidente tambm prev um grande futuro para o Paran
atravs da
agricultura: Nesse dia seremos um dos expoentes mximos da
riqueza econmica do Brasil.
[...] E estou seguro que esse dia no tardar desde que
continuemos, sem esmorecimentos,
a nossa propaganda rural, pois o abandono do campo a nica
hiptese de fracasso do
nosso engrandecimento futuro.58 E o incremento agrcola do
estado, a lisonjeira situao
financeira decorrente e o elogio aos trabalhos da Profilaxia
Rural se repetem ano a ano.
POPULAO RURAL TUTELADA: PERMANNCIAS E VISAGENS
Pode-se indicar que o trabalho da Comisso ajudou na diminuio das
resistncias
existentes, durante a primeira dcada do sculo passado, ao
investimento pblico vultoso na
rea da sade. Tais resistncias parecem ter sido dissipadas atravs
da constituio de uma
verdade mdica calamitosa sobre a situao do interior do Estado,
viso essa instituda a
partir dos trabalhos da Comisso de Profilaxia.
Souza Araujo defendia a ao direta do mdico sobre a populao, o
que
aproximaria a autoridade do povo com a entrega dos remdios no
prprio habitat. Um
mtodo intensivo segundo o autor, atravs do recenseamento,
visitao do mdico e seu
uso assistido dos medicamentos, ou seja, a sua administrao pelo
guarda sanitrio. S
assim, com essa proximidade com essa populao refratria, o mdico
passaria [...]a ter
sobre eles verdadeira e direta ascendncia. A ao do povo passa a
ser apenas obedecer,
cumprir ordens em seu benefcio e deixar-se medicar.59 Como j
dissera Trajano dos Reis e
no se pode cuidar da salvao pblica sem ser um ditador60.
55
Idem, p. 163. 56
Ver. PARAN. Mensagem do Presidente..., op. cit., p. 1916-1921.
57
PARAN. Mensagem do Presidente Afonso Alves de Camargo ao
Congresso legislativo do Estado 01/02/1918 (p. 33) 58
Idem, ibidem. 59
SOUZA ARAUJO. Profilaxia..op. cit.., p. 130. 60
Idem, p. 112.
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Julho-dezembro de 2012
119 BEATRIZ ANSELMO OLINTO
Para justificar o autoritarismo evidente das afirmaes da
profilaxia, so
compostas vises depreciativas arquetpicas sobre as populaes
rurais. Nesse sentido, o
Relatrio apresenta, alm das resistncias das oligarquias locais,
tambm formas de
resistncias das prprias populaes rurais, apesar de lidas
depreciativamente dentro de
modelos arqutipos de teimoso e ignorante, respectivamente:
Cuidando carinhosamente, fazendo-se respeitar pela nobreza do
seu gesto, vai o mdico, pouco a pouco, se apoderando da confiana da
gente dos campos, levando-a, com habilidade, ao exame e tratamento
das outras doenas, que, raramente, suspeita causar-lhe dano. Porque
essa gente naturalmente impressionvel, o mdico no esquece os meios
de que a cincia pode dispor para convencer os mais teimosos.
61(...) No dia em que se conseguir pela educao do
sertanejo convenc-lo de que o maior mal que ele pode fazer a si
mesmo, aos parentes e vizinhos permitir que em redor da sua
habitao, na horta e no seu pomar, continuem a espalhar fezes
humanas ou defecar na superfcie do solo ora aqui, ora ali,
poderemos precisar o tempo necessrio para a extino da ancilostomose
entre ns
62
O teimoso e o ignorante so quase ingnuos, seres abandonados em
sua eterna
minoridade. Uma nova ordenao s poderia vir como uma salvao
externa a essas
criaturas sem nenhum trao de civilizao. Convencidos das benesses
da cincia porque so
impressionveis e, se um dia forem educados, cessaro apenas de
adoecer por sua prpria
culpa. A Profilaxia apresenta-se como uma positividade
biopoltica, nica forma de inclu-los
no projeto nacional seria manipul-los e salv-los de si
mesmo.
Figura 4: Um dos modelos de construo de fossas
Fonte: SOUZA ARAUJO. Profilaxia...op. cit.
61
Idem, p. 158. 62
Idem, p. 211.
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Revista Mundos do Trabalho, vol. 4, n. 8, julho-dezembro de
2012, p. 102-123.
120 SEM ILUSTRAO
Com isso suas vidas sero expostas como vidas nuas, no sentido
definido por
Giorgio Agamben63, ou seja, sua hexis corporal ser
minuciosamente examinada e seus
costumes tero valorao moral ao tornarem-se maus hbitos, pois: No
h nenhuma zona
do Estado que a gente visite, seja no litoral, seja nos campos,
nos sertes ou no Baixo
Paran, em que se no encontre o povo dominado pelo mal habito de
no fazer usos de
latrinas. 64
O que enfim est aqui sendo gerido por essa profilaxia? Vidas
olhadas por um
projeto poltico, ou melhor, vidas nuas objetos de biopoltica.
Uma vida exposta a luz de
saberes a fim de transform-la em operaes reconhecveis e
previsveis. A Profilaxia lidava
com a vida compondo duplos como: civilizao e barbrie, progresso
e atraso, higiene e
perigo, sujeito da ao e objeto de pesquisa. Duplicao integrante
da ordenao das coisas
e das gentes pela epistem moderna. O ser - humano duplicado e
seu ser e estar no mundo
analisado e modificado. Acompanhando Naxara: O povo brasileiro,
visto por suas elites,
aproximava-se do atraso e da barbrie, enquanto que o que se
tinha em vista era alcanar o
progresso e a civilizao. Tal questionamento acabou levando a uma
identificao do
brasileiro pela ausncia do que se esperava ele pudesse ser, ou
seja, por aquilo que lhe
faltava.65
Para isso, a C.P.R.Pr., faz tabula rasa sobre as medidas
profilticas desenvolvidas
pela cultura indgena, do trabalho desde a infncia, da existncia
de uma medicina popular e
do crescimento agrcola. A vida dos trabalhadores no campo vista
como o negativo, o
avesso da civilizao desejada, seus conhecimentos e seu trabalho
desprezado. So
representados como ignorantes e embrutecidos, s vezes por
ignorncia e sempre pela
doena. Vistos como seres incapazes de autogesto, necessitando
serem retirados de uma
situao de falta, de ausncia, por uma nomos planificada por um
sujeito do conhecimento
externo a eles.
A modernidade fiel a herana metafsica ocidental e com isso ao
politizar a vida
nua e inclu-la na polis, o faz construindo a poltica como
biopoltica.66 Assim, a zo, a vida
nua, entra na polis e o viver transformado em bem viver,
entendido como o viver de um
corpo disciplinado, mas ainda excludo. Pois que a incluso ocorre
apenas diante do
abandono de sua vontade autnoma em nome de uma submisso aos
objetivos pragmticos
de um outro.
O projeto de construo de um povo para o Brasil estado-nao
pretendeu incluir
trabalhadores rurais tutelados, vistos como sem ilustrao em
permanente minoridade.
Lembrando Kant:
O esclarecimento a sada do homem de sua menoridade, da qual ele
prprio culpado. A menoridade a incapacidade de fazer uso de seu
entendimento sem a direo de outro indivduo. [...] A preguia e a
covardia so as causas pelas quais
63
Ver: AGAMBEN, Giorgio. Homo sacer: O poder soberano e a vida
nua. 2ed. Belo Horizonte: UFMG, 2010. 64
SOUZA ARAUJO. Profilaxia..., op. cit, p. 211. 65
NAXARA, M. Estrangeiro em sua prpria terra..., op. cit., p. 18.
66
AGAMBEM, G. Homo Sacer..., p. 15.
-
Julho-dezembro de 2012
121 BEATRIZ ANSELMO OLINTO
uma to grande parte dos homens, depois que a natureza de h muito
os libertou de uma direo estranha, continuem no entanto de bom
grado menores por toda a vida. So tambm as causas que explicam por
que to fcil que os outros se constituam em tutores deles. to cmodo
ser menor
67.
O vivente rural era transformado em sinnimo de atraso, sozinho
no teria futuro,
s os mdicos a esse conheciam, mas ser o orculo tambm um papel na
tragdia. A
comisso de Profilaxia sustentava ento uma minoridade de longa
durao para essas
populaes, tuteladas por seus senhores, sejam eles senhores de
terras, de saberes ou
soberanos.
A pesquisadora Carmem Kummer tambm apontou, com muita
propriedade, ao
final de sua dissertao dedicada a Profilaxia Rural no Paran, uma
permanncia do
problema da sade nas zonas rurais do estado, assim:
Conforme o IPARDES, apenas 35,8% de 199 municpios considerados
rurais apresentavam (em 2001) algum tipo efetivo de prestao de
servios na rea da sade. No podemos negar que nenhuma ao foi tomada
desde a dcada de 1910, uma vez que o saneamento no meio rural nessa
poca deu incio a muitos projetos realizados dcadas depois. Por
outro lado, possivelmente podemos afirmar que as justificativas
apresentadas para definir este ndice alarmante se inserem nas
mesmas queixas apresentadas por Souza Arajo, Joo de Barros Barreto
e Eduardo Leal Ferreira, quais sejam, o infindvel descaso poltico
das elites locais com aqueles que julgam ser irrelevantes e
desnecessrios para o pas.
68
Uma continuidade de problemas que poderiam ser trazidos para a
ordem do dia sob
as mesmas justificativas utilizada pelos mdicos do incio do
sculo XX. Ou seja, uma
permanncia de uma viso de mundo em torno do rural e sobre as
pessoas que l vivem.
Essas permanncias se caracterizam como um conjunto de estigmas,
metforas,
estratgias, imagens, polticas, etc; dispostas para o rural e que
partem do pressuposto de
uma eterna minoridade daquela populao. Consequentemente, o apelo
recorrente por
formas de tutela e conseguinte sujeio, como uma inferioridade
diante do urbano, do
moderno, do cientfico e do erudito. No seria a toa que os
discursos sobre a modernidade
no campo hoje, incio do sculo XXI, sejam ligados ao agronegcio,
um empreendimento
extremamente mecanizado e de alta tecnologia, que necessita de
poucos viventes no
campo. Sem os viventes, s restaria a terra boa? Por outro lado,
a agricultura familiar
objeto de inmeras tentativas de resgate, de conservao, ou ainda
de criao de opes
econmicas sustentveis, as quais permitam a sua sobrevivncia.
Propostas cientificamente
embasadas por bem intencionados saberes acadmicos.
Aqui, novamente a heteronomia, as solues encontradas para os
problemas
criados, so elaborados por outrem com interesses e disposies de
fora da vontade
autnoma. As pessoas envolvidas e as necessidades por elas mesmas
percebidas, no
67
KANT, I. O que esclarecimento? Op. cit. 68
KUMMER, Carmem Slvia da F. No esmorecer para no desmerecer: As
prticas mdicas sobre sade da populao rural paranaense na primeira
repblica. Dissertao (Mestrado em Histria) Curitiba: UFPR, 2007, p.
136.
-
Revista Mundos do Trabalho, vol. 4, n. 8, julho-dezembro de
2012, p. 102-123.
122 SEM ILUSTRAO
participam do projeto, esvaziando a ao como um processo autnomo
de
responsabilizao. Em ambos os casos, a verdade cientfica incorre,
mais uma vez, no perigo
de subsumir o outro. Lembrando mais uma vez Foucault vocs no tem
direito de
menosprezar o presente.69 Pois cada um responsvel pelo processo
histrico do conjunto.
Afinal a modernidade uma atitude, uma maneira de pensar e agir
que se apresenta como
tarefa.
CONSIDERAES
Em 1919 a Profilaxia Rural no Paran propunha questes mais amplas
do que o
saneamento do serto paranaense, pois que era a vida das pessoas
o objeto de interveno.
O rural era visto pela Profilaxia como um espao de falta, o
olhar que se lanava no via o
que l existia, pois o quanto prostrado pela doena e indolente
pelos vermes podia ser um
trabalhador que sustentavam a economia do estado?
No Relatrio da C.P.R.Pr. no faltam exemplos disso, porm sempre
citados de
forma indireta. Como quando o mdico analisa a Doena de Soduku,
decorrente da mordida
de rato e narra as condies de vida da menina que fora mordida.
Ela tinha 11 anos e
trabalhava de empregada domstica na casa de um advogado em
Curitiba a onde fora
mordida. Sua famlia era de origem polaca e continuava morando em
Ponta Grossa, onde
eram agricultores.70 Tambm a vida dos homens moradores do Alto e
Baixo Paran descritos
como ausentes por estarem trabalhando na coleta e transporte do
mate. Eram homens,
mulheres e crianas, todos sujeitos de sua prpria sobrevivncia
cotidiana, porm narrados
como objetos de interveno.
E os outros saberes? Souza Araujo transcreveu o relatrio de
lvaro Lobo sobre
Tomazina: No s a gripe vitimou enormemente a populao sertaneja,
tambm os
curandeiros e raizeiros, bem como prticas de farmcia audaciosos
e incompetentes
aumentaram extraordinariamente o coeficiente de mortalidade,
chegando a tal imbecilidade
muita vez s raias do assassnio puro e frio.71 Os saberes
saneadores populares so assim
ou culpabilizados pela piora do caos higinico j existente, como
no caso da Gripe, ou
silenciados. Contra esse silncio pode-se recordar a fala sobre
Foz do Iguau como um local
de total caos na viso do mdico, mas que por outros documentos
pode-se saber que ali
residia a senhora Joana Rosa, descrita como algum de grande
conhecimentos sanadores,
inclusive salvando a vida de militares alocados na Colnia
Militar de Foz.72 Tambm as
formas indgenas de profilaxia das doenas, descritas no relatrio,
mas no consideradas
como tal. Nesses pequenos fragmentos da vida dos outros, a
heteronomia das populaes
rurais se dissolve, transforma-se em uma iluso de tica, talvez
uma farsa. De longa
69
FOUCAULT, M. O que so as luzes? In:______. Arqueologia das
Cincias e Histria dos sistemas de pensamento. (Ditos e Escritos II)
2 ed. Rio de Janeiro: Forense universitria, 2005, p. 341- 349.
70
SOUZA ARAUJO. Profilaxia..., p. 314. 71
Idem, p. 125-126. 72
Ver novamente: MYSKIW, Antonio Marcos. A Fronteira como Destino
de Viagem: A Colnia Militar de Foz do Iguassu. Tese (Doutorado em
Histria). Niteri: UFF, 2009.
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Julho-dezembro de 2012
123 BEATRIZ ANSELMO OLINTO
permanncia, mas ainda uma farsa.
para encontrar caminhos para essa proposta que se reflete mais
uma vez sobre a
Profilaxia Rural. Essa, como um dispositivo de conhecimento,
constituiu bem intencionados
procedimentos produtores de novos sujeitos, mas foi tambm um
projeto de heteronomia.
Eis a sua tragdia, querer dessujeitar o outro em nome de uma
nova sujeio, mas produzir
apenas sujeitos espectrais. Retornando a Giorgio Agamben, os
viventes encontram os
dispositivos entendendo-se esses como: Qualquer coisa que tenha
de algum modo a
capacidade de capturar, orientar, determinar, interceptar,
modelar, controlar e assegurar os
gestos, as condutas, as opinies e os discursos dos seres
viventes.73
Se a vida e as pessoas envolvidas no projeto profiltico so
compostas como
sujeitos espectrais e os prprios processos de subjetivao eram
essenciais para a
construo de possibilidades de integrao poltica, a prpria motivao
primeira da
interveno profiltica, a saber, a inveno de um estado-nao, teria
como resultado
apenas sujeitos fantasmas e, assim, o palco poltico composto
permanecer vazio.
Seguindo as reflexes de Foucault e Agamben, por uma ltima vez, o
dispositivo
atende a uma urgncia, apresenta-se como estratgia concreta de
saberes e poderes74. A
Profilaxia Rural ser um dispositivo no s pela sua urgncia (aps a
construo do rural
como um problema nacional pelos prprios mdicos), mas tambm pelos
seus
procedimentos para a gesto prtica dos viventes. Pois ela, atravs
de sua geografia mdica,
disps, ao organizar as normas de conduta do viver; situou, ao
construir as regies
endmicas e, tambm, positivou, isto , coagiu, comandou
sentimentos e comportamentos.
nesse sentido que a Profilaxia dessujeitava os viventes ao
reproduzir a
heteronomia e constitu-los como incapazes de autonomia. Assim, o
agricultor higinico, ou
o Paran saneado, bem como, o mdico ilustrado e o guarda sanitrio
obediente, so
visagens de um olhar iludido, capturado por promessas de
felicidade e de possibilidades de
evitar a dor atravs da interveno da razo, de sua tcnica e
cincia.
Nem a ao da Profilaxia Rural atingiu os seus objetivos, nem a zo
foi incorporada
definitivamente a polis. O bem viver continuou o viver. Projetos
grandiloquentes no Brasil do
sculo XX tendiam a ser aplicados apenas de maneira fragmentria e
particularista, quando
no clientelista. O trgico subjacente em todo conhecer se
mantinha. O indizvel, o
imprevisvel, o inclassificvel permanece na complexidade da vida
cotidiana.
____________________ Recebido em 05/08/2012
Aceito para publicao em 01/10/2012
73
AGAMBEM. O que o contemporneo? Op. cit., p. 40. 74
AGAMBEM, op. cit., p. 29.