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1 SANTO ANTÔNIO DE JESUS – BAHIA 2007
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SANTO ANTÔNIO DE JESUS – BAHIA

2007

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UNEB – UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA

Departamento de Ciências Humanas – CAMPUS V

Programa de Pós-Graduação em Cultura, Memória e Desenvolvimento Regional

VIDAS NAS FRONTEIRAS:

Práticas Sociais e Experiências de Feirantes no Recôncavo Sul da

Bahia

Santo Antônio de Jesus 1948 – 1971

Santo Antônio de Jesus – Bahia

2007

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HAMILTON RODRIGUES DOS SANTOS

VIDAS NAS FRONTEIRAS:

Práticas Sociais e Experiências de Feirantes no Recôncavo Sul da

Bahia

Santo Antônio de Jesus 1948 – 1971

Dissertação apresentada ao Departamento de Ciências Humanas – Campus V, da Universidade do Estado da Bahia – UNEB, como requisito parcial para obtenção do título de mestre em Cultura, Memória e Desenvolvimento Regional.

ORIENTADOR: Prof. Dr. Daniel Francisco dos Santos

Santo Antônio de Jesus – Bahia 2007

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FICHA CATALOGRÁFICA ELABORAÇÃO: Biblioteca Central da UNEB

BIBLIOTECÁRIA: Neuza Tinôco Melo Nunesmaia – CRB-5/229

Santos, Hamilton Rodrigues dos Vidas nas fronteiras: práticas sociais e experiências de feirantes no Recôncavo Sul da Bahia: Santo Antônio de Jesus 1948-1971 / Hamilton Rodrigues dos Santos. – Santo Antônio de Jesus: [s.n.], 2007. 224 f. : il. Orientador: Daniel Francisco dos Santos Dissertação (Mestrado) – Universidade do Estado da Bahia. Campus V. Departamento de Ciências Humanas. Inclui referências e anexos 1. Feirantes – Santo Antônio de Jesus (BA) – Aspectos sociais. 2. Feiras livres – Santo Antônio de Jesus (BA). 3. Economia urbana. I. Santos, Daniel Francisco dos. II. Universidade do Estado da Bahia. Campus V. Departamento de Ciências Humanas. III. Título. CDD: 381.18098142

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TERMO DE APROVAÇÃO

HAMILTON RODRIGUES DOS SANTOS

VIDAS NAS FRONTEIRAS:

Práticas Sociais e Experiências de Feirantes no Recôncavo Sul da

Bahia

Santo Antônio de Jesus 1948 – 1971

Dissertação aprovada como requisito básico para obtenção do grau de Mestre em Cultura, Memória e Desenvolvimento Regional, do curso de Pós-Graduação em Cultura Memória e Desenvolvimento Regional, da Universidade do Estado da Bahia – UNEB, Campus V.

___________________________________________ Prof. Dr. Daniel Francisco dos Santos

Universidade do Estado da Bahia – UNEB

___________________________________________

Prof. Dr. Charles de D’Almeida Santana Universidade do Estado da Bahia – UNEB

___________________________________________

Profª. Drª. Elizete Silva Universidade Estadual de Feira de Santana – UEFS

Santo Antonio de Jesus – Bahia 2007

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Aos meus pais, Braulina Rodrigues dos Santos e Milton Souza Santos (In memorian), e a todos os feirantes que com seu ofício alimentam nosso corpo e nutrem nosso espírito com sua cultura.

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AGRADECIMENTOS

Não é possível a realização de um trabalho acadêmico sem o toque de várias

pessoas que dispensaram minutos e horas de seus tempos e me auxiliaram nos

vários momentos em que estive nas encruzilhadas da dúvida, do desespero, da

incerteza, e “sofreram” junto comigo.

Muitas pessoas foram importantes para a realização dessa dissertação.

Gostaria de agradecer aqui apenas as contribuições de algumas, aquelas que

estiveram mais presentes no decorrer desse trabalho. Aos depoentes, pessoas

imprescindíveis com quem compartilhei minhas reflexões, agradeço pela

disponibilidade em conceder as entrevistas e pela paciência com que me recebiam

nas seguidas vezes em que eu retornava para tirar algumas dúvidas e travar novos

diálogos.

A Deus, que me iluminou e me concedeu forças para a realização deste

trabalho.

A minha mãe e meus familiares presente de Deus em minha vida, pelo apoio,

paciência e incentivo dado a cada dia no decorrer do curso.

Sou grato ao professor Dr. Daniel Francisco dos Santos, pela sua paciência,

suas intervenções e orientações, as quais foram relevantes desde os primeiros

redimensionamentos da pesquisa até a dissertação desse trabalho. Principalmente

pela confiança que sempre depositou em mim e pela generosidade que sempre

afagou-me a alma. Um eterno abraço.

Aos professores e professoras do Programa de Pós-Graduação em Cultura,

memória e Desenvolvimento Regional, da Universidade do Estado da Bahia,

Campus V.

Ao professor Charles D’Almeida Santana. Foi a partir de suas reflexões que

acabei me encontrando no labirinto da cidade.

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Ao professor Felipe Santos Magalhães pelas suas sugestões quando parte

desse trabalho foi submetido à banca de qualificação.

Ao professor Mrs. e amigo Denílson Lessa dos Santos por dedicar horas do

seu tempo para compartilhar comigo algumas reflexões e ter tido paciência em ler

várias páginas desse trabalho.

À professora e amiga Hildete Leal dos Santos pelas suas sugestões quanto à

escrita e revisão textual dessa dissertação, por me ouvir nos momentos de angústia

e dedicar seu precioso tempo e contribuição para a conclusão desse trabalho.

Sou grato a Júnior, Leno e Calebe, pela amizade e por estarem disponíveis

prestando seus serviços com muita dedicação sempre que necessário.

Aos bibliotecários, especialmente Bartolomeu, pessoas compreensíveis e

prestativas, da biblioteca do Campus V da UNEB, que tanto me ajudaram em

momentos difíceis.

Ao bibliotecário e amigo Antonio Silva pela contribuição de grande valia.

Aos professores, amigos e alunos do Colégio Estadual professor José Aloísio

Dias de Mutuípe-Ba, que sempre me apoiaram e deram força nessa caminhada.

À Secretaria de Educação do Estado da Bahia que me concedeu licença para

realizar essa pesquisa e redação desta dissertação.

Aos colegas de curso, Sinéia, Deije, Tarcísio, Nilo, Júlia, Silene, Wiltércia,

Silvania, Cristiana, Maria Luiza e Elisângela, com os quais compartilhei dúvidas

acerca desse trabalho e dividi angústias ao longo desses dois anos.

Um agradecimento especial à colega do curso de mestrado Andréa Ribeiro,

por suas observações acerca de meus problemas de pesquisa, pelo convívio e pelo

estímulo nessa trajetória.

Ao pessoal do Arquivo Público Municipal, principalmente seu Augusto, do

Arquivo da Câmara Municipal de Santo Antônio de Jesus e do Serviço de Estatística

e Informação da Bahia – SEI, pelo fornecimento de informações.

À professora e amiga Ms. Sueli Santana pela força que me deu nos

momentos difíceis e pela leitura do texto.

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Ao Sr. Amarílio Monteiro Orrico, por fazer-me entrar em contato com o

passado através de sua memória e dos seus documentos preciosos de seu arquivo

particular, como as fotografias.

Aos amigos Amarílio Monteiro Orrico, Tau Tourinho e Carlos Veiga dos

Santos, por disponibilizarem seus preciosos acervos fotográficos para consulta.

Por fim, mas não menos importante, os feirantes, moradores e ex-moradores

da cidade de Santo Antônio de Jesus, que colaboraram direta ou indiretamente com

este trabalho, os meus sinceros agradecimentos. Sem o toque e as vozes de vocês

não se concretizaria essa dissertação.

Muito obrigado.

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“O Passado traz em si um índice misterioso, que o impele à redenção. Pois não somos tocados por um sopro do ar que foi respirado antes? Não existem nas vozes que escutamos, ecos de vozes que emudeceram? Não tem as mulheres que cotejamos irmãs que elas não chegaram a conhecer? Se assim é, existe um encontro secreto, marcado entre as gerações precedentes e a nossa. Alguém na terra está à nossa espera. Nesse caso, como a cada geração, foi nos concedida uma frágil força messiânica para qual o passado dirige um apelo. Esse apelo não pode ser rejeitado impunemente.”

Walter Benjamin

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RESUMO Este trabalho apresenta um estudo do cotidiano de homens e mulheres que se deslocavam de áreas rurais para trabalhar como feirantes na feira-livre de Santo Antônio de Jesus-Bahia, entre os anos de 1948 a 1971. A investigação do cotidiano e das experiências desses sujeitos, no campo e na cidade, possibilitou discutir de que forma os feirantes foram se inserindo e ocupando o espaço na urbe e como eles contribuíram no processo de construção da fisionomia urbana da cidade da Capela. A partir da análise das “artes e maneiras de fazer”, formas de sociabilidades e práticas culturais, nota-se que os feirantes singularizaram e contribuíram na “produção” do espaço com uma forma específica de habitar este território re-elaborando a “geografia” e a dinâmica das relações entre campo e cidade. Enfatiza-se, aqui, os atos de compra e venda de mercadorias, as formas de mercadejar, histórias de vida de homens e mulheres feirantes, os sonhos, os desencantos, as frustrações, as alegrias, as dificuldades no mundo do trabalho, os arranjos e improvisos para a sobrevivência dentro e fora da feira, a estética particular desse ambiente, os evidentes conflitos, o lazer e as múltiplas experiências desses feirantes. O período analisado foi entre 1948 (data que ocorreu a primeira feira a ser realizada num segundo dia da semana – Quarta-feira – na cidade) e 1971 (ano em que foi inaugurado o novo Centro de Abastecimento Municipal). Esse recorte temporal justifica-se pelo fato de que essa foi uma época em que a cidade de Santo Antônio de Jesus, em meio a um forte discurso de progresso e civilidade por parte das elites locais, passou por um período de várias transformações na configuração físico-espacial. O estudo utilizou-se, como fonte privilegiada, dos depoimentos de feirantes, ex-feirantes e outros moradores da cidade. Além das fontes orais, utilizamos fontes escritas como jornais, leis, atas e decretos e fontes imagéticas como fotografias. Palavras-chave: cotidiano; feirantes; campo e cidade; formas de sociabilidades; práticas culturais; espaço urbano; feira-livre; experiência.

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ABSTRACT This work presents a study about the quotidian life of men and women who used to commute from rural areas to Santo Antônio de Jesus-Bahia in order to work at the street fair, from 1948 to 1971. The investigation of those people's everyday life and experiences, in the countryside as well as in the city, led us to the discussion of how the street fair workers gradually became part of the urban space, contributing to the construction of the urban scenery of “the Chapel Town”. By analyzing the “arts and crafts”, forms of social interaction and cultural practices, we perceive that the street fair workers were unique at the “production” of space with a specific way of living in such territory, giving a different shape to the “geography” and the dynamics of the relations between countryside and city. Emphasis is given to the acts of buying and selling goods; forms of trading; life histories of those people, together with their dreams, misfortunes, frustrations, joys, difficulties at laboring, the arrangements and rearrangements for surviving in the fair and out of it; the specific esthetic of that environment; the evident conflicts; leisure; and the multiple experiences of those workers. The period analyzed was the one from 1948 (when the first fair took place in the city for the second day in the week – Wednesday) and 1971 (when it was inaugurated the new Center of Municipal Supplying). The choice of that historical period is justified by the fact that that was a time when the city of Santo Antônio de Jesus had its physical-spatial configuration submitted to intense transformation, because the city was involved by a strong discourse on progress and civility coming from the local elite. These were privileged sources in this study: reports from street fair workers, former workers and other town people. Beside the oral sources, we use written sources such as newspapers, legal documents and photographs.

Key words: quotidian life; street fair workers; countryside and city; social interaction; cultural practices; urban space; street market; experience.

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ÍNDICE DE FOTOS FIGURA 01 – Mapa Divisão Político-Administrativa da Bahia – 2000………. 34

FIGURA 02 – Mapa Região do Recôncavo Sul……………………………….. 35

FIGURA 03 – Feira-Livre de Santo Antônio de Jesus – Década de 40……... 38

FIGURA 04 – Padaria Centenário………………………………………………. 53

FIGURA 05 – Comercial São Luis……………………………………………….. 54

FIGURA 06 – Estação Ferroviária (1880-1971)……………………………….. 56

FIGURA 07 – Clube Palmeirópolis……………………………………………… 58

FIGURA 08 – Fonte Santo Antônio……………………………………………… 66

FIGURA 09 – 1º Trio Elétrico…………………………………………………….. 147

FIGURA 10 – Cordão de Micareta………………………………………………. 151

FIGURA 11 – Cine-Teatro Glória………………………………………………… 155

FIGURA 12 – Circo Vai-Quem-Quer…………………………………………….. 163

FIGURA 13 – Antiga Igreja Matriz……………………………………………….. 190

FIGURA 14 – Igreja Matriz em Construção…………………………………….. 193

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ABREVIATURAS

ACMSAJ – Arquivo da Câmara Municipal de Santo Antônio de Jesus.

APMSAJ – Arquivo Público Municipal de Santo Antônio de Jesus.

AP – Arquivo Particular.

APSAJ – Arquivo da Paróquia de Santo Antônio de Jesus.

SEI – Superintendência de Estudos Econômicos e Sociais da Bahia.

SEPLANTEC – Secretaria do Planejamento, Ciência e Tecnologia do Estado da

Bahia.

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SUMÁRIO

1 INTRODUÇÃO…………………………………………………………………... 15

2 A FEIRA E A CIDADE.…………………………………………………………. 30

2.1 A Capela.……………………………………………………………………….. 31

2.2 Firmes Propósitos.…………………………………………………………….. 41

2.3 Uma Geografia da Feira.……………………………………………………… 52

2.4 Feirantes em Cena.…………………………………………………………… 69

3 A FEIRA E SEUS “OUTROS” PROTAGONISTAS………………………… 83

3.1 Fiscais, Moleques e Mendigos……………………………………………….. 84

3.2 Crianças, Mulheres. Outros Papéis…………………………………………. 92

3.3 O Tabaréu e a Tabaroa na Cidade………………………………………….. 100

3.4 O Preço, o Peso, a Pechincha e o Fiado……………………………….…... 105

3.5 Em Meio ao Trabalho, o Lazer……………………………………………….. 114

4 RELIGIÃO, LAZER, ARTE E PRAZER………………………………………. 121

4.1 Festas Religiosas………………………………………………………….…... 122

4.2 (En)cantos na Cidade……………………………………………………….... 144

4.3 O Tamanco e a Chita…………………………………………………………. 168

5 A FEIRA: UM MUSEU A CÉU ABERTO…………………………………….. 179

5.1 Visitando uma Exposição…………………………………………………….. 180

5.2 Entre Porcos, Galinhas, Perus e Jumentos………………………………… 186

5.3 O Patrono da Feira Muda de Lugar…………………………………………. 190

5.4 A Feira se Descasa……………………………………………………………. 195

6 CONSIDERAÇÕES FINAIS……………………………………………………. 210

FONTES…………………………………………………………………………….. 214

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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS…………………………………………….. 218

ANEXOS…………………………………………………………………………….. 224

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1 INTRODUÇÃO

É importante recuperar o que pudermos sobre o modo como os trabalhadores pobres viviam, agiam e pensavam. (Eric J. Hobsbawm)

Revisitando o meu baú da memória, encontrei várias lembranças até então

adormecidas pelo próprio percurso da história. Ao começar a retirar as peças

daquela velha caixa tão bem guardada, de repente, como flashes de uma antiga

máquina fotográfica, imagens iam surgindo, quase que tomando minha própria

memória de assalto. Entre angústias e alegrias, nostalgia e incertezas, fui

gradativamente me aproximando de um real vivido, de outros pessoas, de outros

espaços, de outros lugares que não imaginava poder mais encontrar. Lembrei da

minha família, de meu pai, de minha mãe e de mim mesmo. Lembrei da vida dura,

da ansiedade de meu pai em querer criar os filhos, em decidir ganhar a vida na

“cidade grande”, ir embora para São Paulo, e chegando lá, tão longe, enfrentar os

infortúnios que a vida cotidiana lhe reservava. Mas ele não desistira de sua vida,

pelo menos nesse momento, retornou com a certeza de que teria que criar novas

possibilidades para continuar sobrevivendo. Fazer carrinhos de madeira, escorredor

de pratos e prateleiras, também de madeira, para dependurar panelas de alumínio,

usando como oficina sua própria casa, fora a saída encontrada por ele naquela

ocasião. Mas, por razões que não pretendo revelar aqui agora, ele não podia estar

lá, na feira-livre de Santo Antônio de Jesus, comercializando seus produtos, a saída

encontrada foi deixar o gerenciamento dos negócios sobre a responsabilidade de

sua mulher e de seu filho mais velho, que começou negociar na feira ainda com seis

anos de idade. Homem de múltiplas funções – padeiro, pedreiro, marceneiro e

carpinteiro – a última profissão do meu pai foi exercer o ofício de feirante.

Mas não foi só ele da família que exerceu esse ofício, minha mãe e eu, o filho

mais velho e uma prima, também um dia já o exercemos. Ainda me lembro do local

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onde ficava nossa guia, já não tínhamos soldo suficiente para dispor de uma

barraca, apenas colocávamos nossas mercadorias expostas em cima de um pedaço

de pano. Lembro-me da dinâmica da feira, já localizada em suas novas instalações,

dos outros feirantes amigos de minha mãe, do burburinho, da diversidade de sujeitos

e produtos ali existentes. Lembro-me dos homens engraçados que conseguiam

reunir várias pessoas ao seu redor para ver a tal da cobra elétrica numa bacia cheia

d’água. Lembro-me do cansaço de um final de sábado à tarde quando voltávamos

para casa, tristes ou alegres, a depender do ritmo das vendagens naquele sábado.

Lembro-me mais ainda, dos dias que não conseguimos vender nenhum carrinho.

Nos labirintos da vida cotidiana, meu pai optou pelo desencontro, deu adeus para a

vida, no sentido mais literal que a expressão pode ter: cometeu suicídio. Eu, ao

contrário, optei pelo encontro e fui em busca das histórias da vida cotidiana daqueles

que começaram exercer o ofício de feirante antes dele e continuar lutando. Decidi

acrescentar em meu baú novas e velhas histórias que começo a contar agora.

Entrar numa feira-livre é entrar num universo de gente que compra, que

vende, que vê, que fala, que sorri, que chora, que se lamenta, que brinca e joga

conversa fora. Mosaico da vida real, retrato da cultura local e da região, ela

singulariza sua estética com as experiências dos múltiplos atores que a vivenciam,

transformando-se num labirinto a ser desvendado. As feiras existem como centros

de trocas há milênios, e todas as culturas do mundo desenvolveram essa forma de

circulação de mercadorias. Sejam elas fixas ou permanentes, em terra firme ou

flutuantes, constituíam-se não só em territórios especializados no abastecimento de

gêneros essenciais à vida, mas possibilitavam o encontro regular de produtores e

consumidores de mercadorias, convertendo-se em fervilhantes centros de troca de

experiências e vivências.1

Estudos que elegem a feira como palco principal de seus personagens

implicam na busca de conceitos e significados que possam operacionar o

andamento da pesquisa. Tão heterogêneas quanto a própria feira, as várias

abordagens que existem acerca dela constituem-se em um leque de possibilidades

para aqueles que pretendem nela adentrar.

1 PAIM, Márcia Regina da Silva. Do sete São Joaquim: o cotidiano de “mulheres de saia” e homens em feiras soteropolitanas (1964-1973). Dissertação de Mestrado, UFBA. Salvador, 2005. p. 20.

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Afrânio Peixoto, citado por Paim, ressalta que as feiras foram fenômenos tão

importantes a ponto de determinarem em nossa língua a mudança dos nomes

tradicionais dos dias da semana.2 O antropólogo Luiz Roberto de Barros Mott,

fazendo um estudo sobre a dinâmica da Feira da Ladra, no século XVI e na

atualidade, revela que o que chama a atenção de historiadores, arqueólogos e

artistas nessa feira é porque nenhum daqueles mercados estrangeiros (Europa) é

tão antigo e carregado de história como a Feira da Ladra.3 Pierre Verger e Roger

Bastide ao estudarem os mercados nagôs do Baixo Daomé, na África, dizem que as

redes que unem diversos mercados uns aos outros não permitem circular somente

as mercadorias, mas também, com os homens e mulheres que transportavam estas

mercadorias, as crenças, os sentimentos e as atitudes que se difundem do norte ao

sul, do leste ao oeste.4

No Brasil, até a década de 70, a historiografia pouco se importava com

estudos que privilegiassem o cotidiano e as vivências nesse espaço. Segundo Luiz

Mott, existiam algumas poucas monografias sobre poucas feiras famosas, alguns

artigos introdutórios assinados por geógrafos e antropólogos sobre as feiras do

nordeste e apenas um estudo geográfico sobre feiras urbanas. Ele afirma que

tínhamos uma bibliografia nacional bastante reduzida.5 Mundicarmo Ferreti diz que

apesar do crescente interesse da Antropologia Econômica pelas feiras e mercados e

das inúmeras pesquisas que têm sido realizadas sobre os mercados da África, Ásia

e América Latina, pouco se tem escrito a respeito desse assunto no Brasil.6

Nos últimos anos, ainda que de maneira tímida, vem crescendo o interesse de

pesquisadores de várias áreas em estudar os diversos aspectos que configuram as

feira-livres no país, muitas delas ainda envolvidas numa auréola de mistérios e

segredos. Dentre esses novos estudos, podemos destacar a contribuição da

geógrafa Sueli de Castro Gomes, que estudou a Feira da Sulanca, destacando como

2 PEIXOTO, Afrânio. Livro de horas. Rio de Janeiro: Agir, 1947. p. 269. Apud PAIM, Márcia Regina da Silva. Do sete a São Joaquim: Op. Cit. p. 20. 3 MOTT, Luiz Roberto de Barros. A feira da Ladra no séc. XVI e na actualidade. Lisboa – Portugal. Editora Neogravura, Vol. 73. n. 418, fevereiro, 1973, p. 6. 4 VERGER, Pierre. BASTIDE, Roger. Dimensões de uma amizade. Rio de Janeiro: Editora Bertrand Brasil, 2002, p. 185. 5 MOTT, Luiz Roberto de Barros. “Feiras e mercados: pistas para pesquisa de campo”. In: FERRETI, Sérgio (Org.). Reeducando o olhar: estudos sobre feiras e mercados. São Luiz: UFMA, 2000, p. 16-17. 6 FERRETI, Mundicarmo. “Feiras nordestinas: estudos e problemas”. In: FERRETI, Sérgio. Reeducando o Olhar:... Ibid., p. 46-47.

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uma das problemáticas centrais de seu trabalho a análise do processo migratório e

as formas de inserção de migrantes nordestinos em São Paulo, a partir do comércio

de retalhos, tentando identificar as conexões que esse espaço (rua do Brás) mantém

com outros espaços, construindo uma malha de homens e mercadorias.7

Márcia Regina da Silva Paim mergulhou no universo de algumas feira-livres

de Salvador na Bahia, investigando o cotidiano dos feirantes, dando ênfase à

participação ativa das mulheres negras neste ambiente de trabalho. Ela analisa a

feira do Sete, de Água de Meninos e São Joaquim, entre os anos de 1964 – 1973,

ressaltando aspectos da cultura afro-brasileira ali presentes.8

Arinaldo Martins Souza no ensaio intitulado: A Feira-Livre na COHAB:

Contatos Iniciais Com a Realidade da Feira do Produtor Rural em São Luis, destaca

a presença do produtor rural numa feira criada pelo Estado, que teve um projeto

estabelecido visando determinados fins.9 Em Feira de Santana, na Bahia, Izabel

Lorene Borges de Oliveira estende seu olhar sobre a feira-livre da Princesinha do

Nordeste, sobre o caráter festivo, quase que “circense” que aquela feira apresentava

nas décadas de 50 a 70, destacando a presença dos cantadores, cordelistas,

vaqueiros… naquele ambiente.10

Ainda que de maneira incipiente, diversos olhares têm se voltado para as

feiras nos quatro cantos do país. Espaço que traz consigo a especificidade de que

todos podem nela adentrar, este estudo tem como objetivo analisar o cotidiano de

homens e mulheres que se deslocavam de áreas rurais entre os anos de 1948 a

1971, para trabalhar como feirantes na feira-livre da cidade de Santo Antônio de

Jesus, localizada na região do Recôncavo Sul da Bahia.

Analisar o cotidiano desses feirantes na perspectiva de dar relevância às suas

experiências, parte de um entendimento de que a vida cotidiana é a vida de todo

homem. Todos a vivem, sem nenhuma exceção, qualquer que seja seu posto na

divisão do trabalho intelectual ou físico. Ninguém consegue identificar-se com sua

7 GOMES, Sueli de Castro. Do comércio de retalhos à feira da Sulanca: uma inserção de migrantes em São Paulo. Dissertação de Mestrado. São Paulo: USP, 2002. 8 PAIM. Op. Cit. 9 SOUSA, Arinaldo Martins de. A feira na COHAB: contatos iniciais com a realidade da feira do produtor rural em São Luis. In: FERRETI, Sérgio. (Org.). Reeducando o Olhar: Op. Cit. 10 OLIVEIRA, Izabel Lorene Borges de. Apolo e Dionísio na festa da feira: cantadores, cordelistas, vaqueiros… da feira-Livre de Feira de Santana (Bahia). Monografia de Especialização. Feira de Santana, UEFS, 2000.

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atividade humano-genérica a ponto de poder desligar-se inteiramente da

cotidianidade. E, ao contrário, não há nenhum homem, por mais “insubstancial” que

seja, que viva tão somente na cotidianidade, embora essa o absorva

preponderantemente.11

Nesse sentido, o que tentarei discutir, nessa dissertação, são homens e

mulheres “inteiros”, de carne e osso, que participavam da vida ativa do campo e da

urbe, tendo como espaço intersticial a feira-livre da cidade da Capela12. Homens e

mulheres que expressaram e colocaram em “funcionamento” os seus sentimentos,

as suas capacidades intelectuais, suas habilidades, suas paixões, idéias e

ideologias.

Movidos pela vontade de mudar de vida, esses homens e mulheres

começaram a se deslocar de diversas áreas rurais com o propósito de trabalhar

como feirante na cidade. Esses momentos não eram momentos quaisquer, eram

momentos de significativas mudanças em suas vidas. Por isso, eles não pouparam

esforços para saírem em busca de sonhos e utopias na cidade.

Exercer o ofício de feirante era ingressar num novo ramo de trabalho, comprar

mercadorias na própria cidade da Capela, em Salvador ou em qualquer outra urbe

para revendê-la. Era importar mercadorias de outros estados, era transformar a

própria matéria-prima em produto, era desempenhar várias funções ao mesmo

tempo. Ser feirante era enfrentar os importunos de fiscais e as peraltices de

moleques e mendigos, enfrentar as condições adversas do tempo, saber lidar com a

diversidade humana, interagir com outras culturas, construir seu próprio tempo e

tentar conduzir a própria vida.

Feirante, na nossa concepção, é toda e qualquer pessoa, produtor ou

revendedor, adulto ou criança, homem ou mulher, que esteja vendendo algum bem

ou mercadoria na feira.13 Dessa forma, para percorrer o itinerário do mundo do

trabalho desses sujeitos, buscamos fugir de análises que privilegiam enquadrar os

trabalhadores sobre o víeis de uma “classe trabalhadora homogênea” e que sempre

privilegiou apenas as lideranças, não demonstrando interesse por aqueles

11 HELLER, Agnes. O cotidiano e a história. 4.ed. São Paulo: Editora Paz e Terra, 1992, p. 17. 12 Denominação dada à cidade de Santo Antônio de Jesus, até aproximadamente os anos 70. 13 ALVES, Amy Adelino. A mulher da feira do Riachão: modos de vida e experiência. In: ÁLVARES, Maria Luiza Santos & FERREIRA, Eunice. Olhares e diversidades: Os estudos sobre Gênero no Norte-Nordeste. Belém-Pará. GEPEM/CFCH; REDOR, 1999, p. 143.

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considerados trabalhadores “comuns”. Tentando driblar o conceito de classe e as

perspectivas homogeneizantes, tão sedutoras ao historiador, optamos pela noção de

grupos, seguindo as trilhas de autores que discutem essas questões como Éric J.

Hobsbawm e E. P. Thompsom, partindo do pressuposto de que existe uma forte

heterogeneidade entre os diversos tipos de trabalhadores.

O historiador Daniel Francisco dos Santos tem razão quando diz que essa

heterogeneidade se manifesta através de identidades, religiosidade, aspecto étnico,

sistemas de valores, moral, etc.14 Daí a importância de levarmos em consideração

as experiências desses indivíduos porque os valores não são “pensados”, nem

“chamados”; são vividos, e surgem dentro do mesmo vínculo com a vida material e

as relações materiais em que surgem as nossas idéias. São as normas, regras,

expectativas, etc., necessárias e aprendidas (e “aprendidas” no sentimento) no

“habitus” de viver; e aprendidas, em primeiro lugar, na família, no trabalho e na

comunidade imediata. Sem esse aprendizado a vida social não poderia ser mantida

e toda produção cessaria.15

Seguir as experiências desses feirantes foi atender ao chamado de

Hobsbawm quando diz ser importante tentar recuperar o que pudermos sobre o

modo como os trabalhadores pobres viviam, agiam e pensavam, e, na medida em

que agora está se produzindo uma grande quantidade de “história oral” ou mesmo

de memórias, realmente escritas por homens e mulheres da classe trabalhadora, há

uma importante ampliação de nossa perspectiva.16

Essas perspectivas se manifestaram nesse trabalho de várias maneiras. Uma

delas foi superar a visão de tendências a generalizações que ainda insistem em criar

uma imagem fixa de homem rural e de um sujeito que não reúne capacidades e

habilidades para lidar com o “moderno”. Ou seja, uma suposta inabilidade à vida

urbana. Durante todo o trabalho, esforcei-me em superar qualquer análise que

pretendesse seguir os rumos de uma visão dicotômica que polarizasse as relações

entre campo e cidade. Tentei acompanhar os passos desses sujeitos pensando o

14 SANTOS, Daniel Francisco dos; ALMEIDA, Juliana de; ANDRADE, Fabiane da Silva. Trabalho, cultura, identidade: os artesãos da construção naval do baixo sul da bahia. Coleção de Idéias, Santo Antônio de Jesus. v..1, n.1 Jun/Dez. 2003, p. 38. 15 THOMPSON, E. P. A miséria da teoria: ou um planetário de erros: uma critica ao pensamento de Althusser. Rio de Janeiro: Zahar, 1981, p. 194. 16 HOBSBAWM, Eric J. Mundos do trabalho: novos estudos sobre história operária. 2.ed. São Paulo: Paz e Terra, 1988, p. 23.

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campo e a cidade como realidades históricas em transformação tanto em si próprias

quanto em suas inter-relações, buscando responder porque aquelas experiências

estavam ocorrendo naquele momento, preocupado em fugir do risco de cair em

isolacionismos ou congelar os tempos num tempo histórico vazio e homogêneo.17

Durante a narrativa, em alguns momentos, o leitor irá se deparar com as palavras

roça e rua, aqui utilizadas como metáforas de campo e cidade.

A possibilidade de recuperar os modos como esses trabalhadores viviam,

agiam e pensavam, conforme nos lembrou Hobsbawm ainda a pouco, levou-me a

pensar nos procedimentos teórico-metodológicos dessa pesquisa. O diálogo com

autores que desenvolveram estudos acerca do trabalho com a memória e com o uso

de fontes orais deu-me segurança para desenvolver tal análise. Para Rousso “a

memória é uma reconstrução psíquica e intelectual que acarreta de fato uma

representação seletiva do passado, um passado que nunca é aquele do indivíduo

somente, mas de um indivíduo inserido num contexto familiar, social, nacional”.

Portanto toda memória é, por definição “coletiva”. 18

Dessa maneira, pode-se apreender vivências individuais e coletivas de

tempos e espaços que deixaram marcas indeléveis nos corpos, nos sentidos, nas

festas, nas relações sociais, nas artes do fazer. A arte do lembrar emergiu revelando

valores, hábitos, costumes, atitudes inscritas na dinâmica de uma cultura marcada

por ações e contradições, num jogo dialético entre presente/passado/futuro inscritos

no decorrer da vida cotidiana.

Essa investigação traz como foco central de análise os sujeitos sociais. Minha

pretensão foi abordá-los buscando suas expressões culturais, algumas dimensões

de suas vidas, suas aventuras, seus anseios, as frustrações, jeitos de agir e de

pensar perante as vicissitudes da vida cotidiana. Privilegiei enfatizar as possíveis

formas de resistência, as improvisações, as micro-políticas, as formas como os laços

eram atados e desatados, o que era possível ser feito a partir da liberdade que eles

dispunham naquele momento. Daí, pensar a memória como vida, sempre carregada

por grupos vivos, aberta à ambivalência da lembrança e do esquecimento.

17 WILLIAMS, Raymond. O campo e a cidade: na história e na literatura. São Paulo: Companhia das Letras, 1990. Cap. XXV: Cidades e Campos. 18 ROUSSO, Henry. A memória não é mais o que era. In: FERREIRA, Marieta de Moraes; AMADO, Janaína (Orgs.). Usos e abusos da história oral. 4.ed. Rio de Janeiro: Fundação Getúlio Vargas, 2001, p. 94.

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Cruzando fontes orais, fontes escritas como jornais, atas, leis, decretos e

livros de tombo e ainda fontes imagéticas, pude mergulhar no universo desses

sujeitos e tentar desvendar aspectos identitários, expressões de religiosidade,

maneiras de se divertir e sentir prazer, os variados significados que a vida festiva

lhes proporcionava, suas relações com vários outros grupos sociais. Entretanto, o

suporte fundamental de toda a dissertação são os depoimentos orais, porque essas

vozes da cidade abrem poderosas possibilidades de reflexões acerca de uma

“cidade dos feirantes”. Acredito que muito do que foi apreendido nesse trabalho seria

difícil de ser rastreado sem a potencialidade da narrativa oral. Entrevistas sempre

revelam eventos desconhecidos ou aspectos desconhecidos de eventos conhecidos:

elas sempre lançam nova luz sobre áreas inexploradas da vida diária das camadas

não hegemônicas.19

Porém, assim como toda fonte histórica, sabemos dos limites e aquilo que

seus críticos chamam suas fraquezas, que são as fraquezas da própria memória,

sua formidável capacidade de esquecer, que pode variar em função do tempo

presente, suas “deformações” e “seus equívocos”. Acredito que esses mesmos

limites talvez constituem um de seus principais interesses. Essas “deformações” são

tão úteis para o historiador quanto as informações que se verificam “exatas”, porque

elas nos introduzem no cerne das representações que cada um de nós faz da

realidade e são evidências de que agimos muito mais em função dessas

representações do real do que do próprio real.20

Ao começar dialogar com as fontes, as questões começaram aflorar.

Indagações do tipo: Como os feirantes foram se inserindo no universo da urbe em

meio aos discursos de setores das elites locais, de cunho “modernizador”, que

queriam civilizar os hábitos e costumes das gentes consideradas atrasadas? De que

forma esses trabalhadores contribuíram com o processo de construção da fisionomia

urbana da cidade da Capela? Como era ser feirante na região do Recôncavo Sul

nas décadas de 50 e 60 do século passado? Como essas pessoas oriundas de

áreas rurais ocuparam os espaços da cidade naquele momento? Como esses

homens e mulheres se relacionavam com as diversas linguagens culturais e 19 PORTELLI, Alessandro. O que faz a história oral diferente. Projeto História. São Paulo, n. 14, fev. 1997, p. 31. 20 JOUTARD, Philippe. Desafios à História Oral do Século XXI. In: FERREIRA, Marieta de Moraes. (Org.). História oral: desafios para o século XXI. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz/Casa de Oswaldo Cruz/CPDOC – Fundação Getúlio Vargas. 2000, p. 34.

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artísticas que estavam ao seu alcance? Essas indagações foram dando o tom do

nosso trabalho.

O uso de jornais, atas, leis, decretos, panfletos e livros de tombo nos

possibilitou apreender outras percepções da cidade da Capela. A imprensa escrita,

por exemplo, demonstra o importante lugar dessa linguagem na construção de

percepções a respeito da urbe. Nesses documentos, numa leitura a contrapelo, foi

possível perceber algumas tensões vividas por alguns grupos sociais, as

intervenções em dimensões da vida pública e privada, a conexão de lugares, as

disputas por territórios, as representações da cidade, abrindo brechas a pensar nos

diversos modos de viver e pensar o urbano.

Algumas fontes imagéticas que aparecem nesta pesquisa foram importantes

por nos auxiliarem no processo de reconstituição da cidade, tendo consciência de

que ao historiador a fotografia lança o grande desafio: como chegar àquilo que não

foi revelado pelo olhar fotográfico? Nessa perspectiva, pensamos a fotografia nesse

trabalho como um componente de uma rede complexa de significações, mas que

revela, através da produção da imagem, uma pista.21 Ela ainda contribui para

revolucionar a memória, multiplicando-a e democratizando-a, permitindo guardar a

memória do tempo e da evolução cronológica.22 Algumas fotografias foram

importantes para a nossa reflexão, outras aparecem no trabalho apenas como

ilustração, para, quem sabe, apenas seduzir o leitor.

As fotografias que ilustram este trabalho foram cedidas por Amarílio Monteiro

Orrico, Tau Tourinho, Carlos Veiga dos Santos, moradores da cidade, e algumas

foram encontradas no site da MMA que disponibiliza algumas informações históricas

sobre a cidade de Santo Antônio de Jesus. Embora não se saiba a data exata

quando foram registradas e quem são seus autores, essas fotos foram utilizadas

com o objetivo de se apreender algumas dimensões das vivências e histórias da

cidade. A contextualização histórica dessas imagens foram feitas junto aos seus

respectivos donos e a outros sujeitos sociais da pesquisa.

As fontes escritas encontradas em arquivos públicos e particulares, as fontes

orais e imagéticas permitiram-me montar um quebra-cabeça que tornou possível 21 CARDOSO, Ciro Flamarion; MAUAD, Ana Maria. História e imagem: os exemplos da fotografia e do cinema. In: CARDOSO, Ciro Flamarion; VAINFAS, Ronaldo (orgs). Domínios da história: ensaios de teoria e metodologia. 4. ed. Rio de Janeiro: Campus, 1997, p. 406. 22 LE GOFF, Jacques. História e memória. 2. ed. São Paulo: Editora UNICAMP, 1992, p. 460.

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responder algumas indagações dessa pesquisa. No processo de seleção dos

depoentes, no que diz respeito aos feirantes, levamos em consideração a amplitude

das vivências desses indivíduos, indo em busca dos sujeitos mais idosos e daqueles

que trabalharam na feira-livre da cidade da Capela quando esta se localizava ainda

no centro da urbe. A descoberta dos sujeitos dessa pesquisa se deu de várias

formas: primeiro por força de conhecimento pessoal; segundo através de sugestões

de outros entrevistados; terceiro com a intermediação de familiares e amigos.

Entrevistamos aqueles que ainda continuam exercendo esse ofício e também

aqueles que já deixaram de exercê-lo. Num outro momento, entrevistamos alguns

antigos moradores dos quatro cantos da urbe e de diversas camadas sociais que

ainda residem na cidade, e também outros ex-moradores que moram atualmente em

outros centros urbanos como Salvador e São Paulo e que, para a nossa felicidade,

estavam em Santo Antônio de Jesus a passeio no momento da pesquisa.

As entrevistas foram gravadas e transcritas, para depois serem analisadas,

excetos algumas narrativas de pessoas que não concordaram que seus

depoimentos fossem gravados. Dessa maneira, recorremos ao caderno de campo

que foi utilizado também em outros momentos, principalmente quando eu retornava

para tirar dúvidas com os depoentes sobre algumas questões relacionadas às

entrevistas já realizadas anteriormente. Não vimos nenhum empecilho quanto à

introdução e uso do caderno de campo nos pressupostos metodológicos de nossa

pesquisa, principalmente por entender que muito da análise e a performance dos

depoentes nas entrevistas foram observadas pelo investigador no caderno de

campo. O nosso cuidado foi ter em mente que uma entrevista “é uma troca entre

dois sujeitos: literalmente uma visão mútua. Uma parte não pode realmente ver a

outra a menos que a outra possa vê-lo ou vê-la em troca”.23 Em muitos momentos os

meus investigados inverteram o jogo, queriam saber quem eu era realmente e

investigar minha vida. Nesse processo tentei transformar a entrevista em um

experimento em igualdade, da qual nos fala Alessandro Portelli

A igualdade e diferença são dois conceitos que se relacionam. Somente a igualdade nos prepara para aceitar a diferença em outros termos que hierarquia e subordinação; de outro lado,

23 PORTELLI. Op. Cit. Forma e Significado na história oral: a pesquisa como um experimento em igualdade. Projeto História. São Paulo, n. 14, fev. 1997. p. 9-23.

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sem diferença não há igualdade – apenas semelhança, que é um ideal muito menos proveitoso. Somente a Igualdade faz a entrevista aceitável, mas somente a diferença a faz relevante. O campo de trabalho é significativo como o encontro de dois sujeitos que se reconhecem entre si como sujeitos, e consequentemente isolados, e tentam construir sua igualdade sobre suas diferenças de maneira a trabalharem juntos.24

Antes de começar dialogar com os depoentes, sempre procurei deixá-los

informados do que tratava a pesquisa e quais os meus objetivos. Algumas

entrevistas foram feitas no próprio local de trabalho (atual feira) em dias em que a

feira não apresenta muito movimento, outras foram realizadas em suas residências

em dias de semana ou aos domingos e algumas em estabelecimentos comerciais.

Neste trabalho nos preocupamos também com as relações entre ética e história oral

no sentido de que conversar com os vivos implica, por parte do historiador, uma

parcela muito maior de responsabilidade e compromisso, pois tudo aquilo que

escrever ou disser não apenas lançará luz sobre pessoas e personagens históricos

(como acontece quando o diálogo é com os mortos), mas trará conseqüências

imediatas para as existências dos informantes e seus círculos familiares, sociais e

profissionais.25

Foram entrevistadas 19 pessoas, num total aproximado de 25 horas entre

entrevistas gravadas, entrevistas anotadas e “conversas informais”. Quanto à

transcrição das fitas, optei em transcrever os depoimentos orais na “íntegra” por

entender que já se “perde muito” (gestos, expressões, sinais, performance, etc.) e

que toda transcrição é em sua essência “precária”. Um outro fator relevante por

optarmos transcrever os depoimentos de maneira “tal qual”, é o fato de considerar

que essas formas revelam muito da cultura desses indivíduos. Todavia, algumas

transgressões foram feitas no sentido de tentar pontuar o texto conforme nossas

regras e valores gramaticais, inseridos no universo da cultura escrita. Transgredimos

o texto também, em alguns momentos, com o corte de algumas palavras repetidas

que a meu ver não comprometia a narrativa e seus significados.

A baliza temporal desse estudo se situa entre os anos de 1948 a 1971. A

escolha desse recorte se deu em função de que nesse período a cidade da Capela

24 Ibid., p. 9-23. 25 AMADO, Janaína. A culpa nossa de cada dia: ética e história oral. Projeto História, São Paulo, n. 15, Abr. 1997. p. 146-147.

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vivenciara mudanças e transformações significativas na urbe. Em 1948 foi criado

uma outra feira naquele município, neste ano também iniciou-se a construção da

Nova Igreja Matriz, em 1958 fora instituído o decreto que determinava a

transferência da feira-livre do centro da cidade para áreas mais afastadas,

culminando com a demolição do Mercado Municipal e a mudança da feira em 1971

para o novo Centro de Abastecimento Municipal, localizado na praça Duque de

Caxias. Nesse período a construção de uma “cidade ideal” estava em jogo.

Entretanto, o recorte temporal da pesquisa não deve ser visto como algo “fixo” por

entender que a memória é fluída e esta abre possibilidades de ir e vir além das

fronteiras estabelecidas.

A problemática central da pesquisa é investigar, em meio ao forte discurso

das autoridades municipais e outros segmentos da elite local (jornalistas,

funcionários públicos, poetas, proprietários de casas comerciais, políticos,

proprietários de armazéns, etc.) que pretendiam “civilizar” e levar “definitivamente o

progresso” para aquela cidade, porque para eles, o estatuto de urbe se ratificaria

com a mudança de mentalidade dos indivíduos, como os feirantes se inseriram no

universo da urbe e de que forma eles contribuíram com a construção e ampliação da

fisionomia urbana da cidade de Santo Antônio de Jesus.

Para responder essas questões, lembro-me da historiadora Márcia Mansor

D’Alessio quando diz que o relato de uma situação vivida é mais esclarecedor que

qualquer teoria.26 Evitamos pensar o “real” a partir de modelos explicativos, porque

os pressupostos teóricos são pontos de partida abstratos, desterrados e podem

constituir-se em entraves em vez de facilitadores do estudo do processo histórico.27

Inserido na perspectiva da história social, a concepção de cultura que

permeará esse texto é a de um sistema de significados, atitudes e valores

partilhados e as formas simbólicas (apresentações, objetos artesanais) nas quais

eles são expressos ou encarnados,28 entendo que a cultura não pode ser vista de

forma homogênea e que é preciso levar em consideração as diferenças e

26 D’Alessio, Márcia Mansor. Memória e historiografia: limites e possibilidades de uma aproximação. Revista da Associação Brasileira de História Oral, São Paulo, n.4, Jun. 2001, p. 62. 27 SANTANA, Charles D’Almeida. Fartura e ventura camponesas: trabalho, cotidiano e migrações – Bahia: 1950-1980. São Paulo: Editora Annablume, 1998, p. 16. 28 BURKE, Peter. Cultura popular na Idade Moderna. São Paulo: Companhia das Letras, 1983, p. 25.

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semelhanças, exclusões e inclusões entre os sujeitos sociais analisados,

evidenciando processos e mudanças.29

Pensando dessa forma, as perspectivas de abordagens de autores como E.

P. Thompsom, Carlo Guinzburg, Peter Burke, Stuart Hall, Mikhail Bakhtin30, dentre

outros, foram de grande valia para nossa análise quando em seus estudos “definem”

cultura em um sentido razoavelmente amplo. Neste trabalho tentei driblar análises

que emolduram a cultura na bipolaridade – cultura popular e cultura erudita – por

entender ser mais frutífero e “real” pensar nas interações, nas circularidades, nos

encontros e desencontros, nos conflitos e negociações existentes entre os grupos

sociais, mesmo sabendo que em alguns momentos a muralha da bipolaridade nos

impediu de passar.

Embora os conceitos desses autores estejam inseridos em contextos

históricos distintos (sujeito/tempo/espaço) e sejam relevantes às realidades

européias, quando realizado o devido recorte e adaptação, servem-nos para analisar

a temática em questão nesse trabalho. Os referenciais teóricos dessa pesquisa

foram buscados como possibilidade para se apreender as experiências

culturalmente vivenciadas pelos indivíduos.

A dissertação está dividida em quatro capítulos. No primeiro intitulado: A Feira

e a Cidade, tentei situar um pouco o leitor abordando as raízes históricas da cidade

da Capela, em seguida analisei os motivos que influíram nas tomadas de decisões

de homens e mulheres oriundos de zonas rurais a se deslocarem para trabalhar na

cidade de Santo Antônio de Jesus como feirantes. Seguimos os passos desses

indivíduos objetivando discutir os caminhos pelos quais eles foram criando uma

geografia na urbe e forjando práticas de inserção social através do universo da feira-

livre e também acompanhei a atuação de alguns desses sujeitos em outras feiras da

Bahia.

No segundo capítulo, concentrei mais minha análise na dinâmica da feira,

tentando evidenciar as relações sociais desenvolvidas a partir das experiências de

seus protagonistas. Neste aspecto, analisei os possíveis conflitos enfrentados pelos 29 Ibid.; p. 50-90. 30 THOMPSON, E. P. A formação da classe operária inglesa (3 vols.) 2. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987; GINZBURG, Carlo. O queijo e os vermes: o cotidiano e as idéias de um moleiro perseguido pela inquisição. São Paulo: Companhia da Letras, 1998. HALL, Stuart. A identidade cultural na pós-modernidade. Rio de Janeiro: DP&A, 2003; BAKTIN, Mikail. A cultura popular na Idade Média e no Renascimento: o contexto de François Rabelais. Brasília: ADUNB, 1999.

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feirantes no ambiente de trabalho, as estratégias utilizadas para solucioná-los, como

outros atores protagonizavam aquele universo construindo um território uno e

multifacetado. Analisei também o processo de construção/reconstrução de

identidades de alguns sujeitos e as formas de lazer que ocorriam no meio da feira

em meio ao trabalho.

No terceiro, acompanhei um pouco da vida dos feirantes fora da feira, tendo

como premissa que a vida cotidiana e as experiências desses indivíduos não se

resumiam apenas ao mundo do trabalho. Levando em consideração que em muitos

momentos o tempo do trabalho se imbricava com o tempo da festa, propomos

discutir as maneiras de se divertir, as formas de lazer e seus significados. Pensando

as festas não apenas como momentos de lazer e diversão, mas como espaços

recheados de sentidos culturais, possíveis de revelar modos de viver, de agir, de

pensar e de sentir. Procuramos ainda investigar como os feirantes se relacionavam

com as múltiplas linguagens culturais que estavam ao seu alcance naquele

momento. Analisando as experiências desses homens e mulheres no tempo da

festa, do lazer e da diversão, tentamos demonstrar formas de sentir prazer e outras

formas de se inscrever no campo e na cidade.

No último capítulo, me propus a defender a idéia de que a feira-livre é um

museu a céu aberto, demonstrando que uma produção material e simbólica se

apresentava naquele ambiente. Em minha concepção uma exposição temporária e

permanente ali se realizava a partir da produção visual de seus praticantes. Em

seguida Analisamos algumas idéias de progresso e civilidade na urbe, seus

impactos e as principais mudanças e transformações que ocorreram na cidade. Nos

esforçamos também em discutir o processo de resistência dos feirantes em meio à

transferência da feira-livre do centro da cidade para áreas mais afastadas.

Longe de querer determinar um lugar para esses sujeitos, sinto-me seduzido

a entendê-los como homens e mulheres que estavam sempre indo para lá e para cá,

alcançando outras margens. Eram homens e mulheres que viviam entre tempos e

fronteiras. Nesses deslocamentos as fronteiras entre casa e mundo do trabalho se

confundiam, estranhamente o privado e o público tornavam-se parte um do outro,

muitas vezes se desenvolvendo na intimidade intersticial.

Eram homens e mulheres que viviam nas estradas indo e vindo para lá e para

cá, viviam no trem de um lado para outro alcançando outras margens, estavam no

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campo e na cidade, mas não eram mais e apenas homens do campo, nem

tampouco eram só e totalmente da cidade. Estavam nos espaços liminares, nas

fronteiras da vida, eram sujeitos em deslocamento sociais e culturais, estavam nas

fronteiras e nas divisas, estavam dentro e fora. Estavam em meio ao público e o

privado. E talvez a feira fosse por excelência o espaço intersticial em suas

experiências naquele momento.

Os feirantes eram homens e mulheres que estavam entre uma e outra

história, nas fronteiras da existência insurgente e intersticial da vida e da cultura.

Entre uma e outra e outras histórias, eram homens e mulheres que estavam no

“entre lugar”31. Entre o passado e o futuro, estar nas fronteiras era estar num tempo

presente, se enunciando de outro jeito, de outra maneira, com outras vozes. São

sujeitos que carregam consigo memórias de lá e de cá e de outros lugares. Não

tenho certeza se eram pessoas do campo, pessoas da cidade, pessoas do campo e

da cidade. Talvez eles sejam algo além disso. As experiências desses homens e

mulheres possibilitam traduzi-los como homens e mulheres com vidas nas fronteiras

e mulheres e homens nas fronteiras da vida. Cabe ressaltar que fronteiras aqui

aproximam mundos sem negligenciar as diferenças. Agora, convido a todos a

adentrar na “cidade dos feirantes”.

31 BHABHA, Homi K. O local da cultura. Belo Horizonte: Editora UFMG – Humanitas, 2005, p. 19-42.

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2 A Feira e a Cidade.

2.1 A Capela.

2.2 Firmes Propósitos.

2.3 Uma Geografia da Feira.

2.4 Feirantes em Cena.

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2.1 A Capela.

… Pátria é acaso de migrações e do pão-nosso onde Deus der… (Mário de Andrade)

Ele se chama João Nunes dos Santos, mulato, estatura mediana, olhos

grandes com “ar” de desconfiança, andar sereno, sorriso disfarçado, 75 anos de

idade. Elza Froes da Fonseca, magra, cor parda, cabelo crespo, estatura baixa,

“olhar” triste, 61 anos. Josué Pereira dos Santos, mulato, cabelo crespo, estatura

mediana, olhos pequenos com brilho espontâneo, sorriso largo no rosto, chapéu de

feltro na cabeça, 73 anos de idade. Ela é conhecida como D. Lina, negra, forte,

estatura baixa, católica fervorosa, “de bem com a vida”, 70 anos. Negro, 90 anos,

cabelo branco, olhar atento, viúvo, simpatia esfuziante, adora contar suas histórias,

conhecido como Augusto laranjeira na feira, seu nome é Augusto Soares da Silva.

Eles, seu João, dona Elza, seu Josué, dona Lina e seu Augusto, eram pessoas que

viviam a dezenas de quilômetros uma das outras. O primeiro morava no Rio da

Dona, a segunda em Dom Macedo Costa, o terceiro na Pedra Branca, D. Lina na

Jueirana e o último no Casaca de Ferro. “Anônimos da história”, eles têm histórias

de vida que dificilmente poderiam se cruzar, o que os reuniu neste trabalho foi a

decisão de, aproximadamente há 50 anos atrás, tornarem-se feirantes e irem em

busca de sonhos e utopias na cidade da Capela.

O que se pretende aqui é discutir os caminhos pelos quais os feirantes foram

criando uma geografia na cidade da Capela, forjando práticas de inserção social a

partir do universo da feira-livre de Santo Antônio de Jesus, bem como a atuação

desses sujeitos em outras feiras da Bahia.

A cidade de Santo Antônio de Jesus, anteriormente denominada de Capela

do Padre Matheus, Capela de Santo Antônio de Jesus, e depois, apenas, Capela,

tem suas “origens” relacionada ao sítio da Capela construída em terras doadas pelo

Padre Matheus Vieira de Azevedo, em 27 de setembro de 1776, ao redor da qual foi-

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se edificando.32 Até o ano de 1852 essas terras estavam ligadas eclesiasticamente

ao município de Nazaré, quando a Capela foi elevada à categoria de freguesia.

Tornou-se vila em 1880, tendo a sua Câmara instalada em 04 de março de 1883, e

em 1891 foi elevada juridicamente à categoria de cidade. Limita-se ao norte com os

municípios de Conceição do Almeida e Dom Macedo Costa (este se desmembrou de

São Felipe em 1962); ao sul, com Laje, São Miguel das Matas e Aratuípe; a leste

com Muniz Ferreira e São Felipe; e a oeste com Varzedo.33

Localizada na Região do Recôncavo da Bahia, mais especificamente na

Região do Recôncavo Sul, a cidade de Santo Antônio de Jesus teve seu

povoamento estimulado a partir do plantio e cultivo de produtos agrícolas como:

mandioca, café, fumo, laranja, banana, jaca e outros gêneros alimentícios e

atividades agropecuárias desenvolvidas ao longo de sua história que remete aos

séculos XVII e XVIII quando os primeiros arruamentos começaram a se instalar

próximo à Praça Padre Mateus34.

Essas atividades tinham como principal objetivo a produção de alimentos para

abastecer a população local, da região e as cidades canavieiras, atender à demanda

dos homens que se deslocavam para colonizar o Sertão e, também, à população de

Salvador, capital do estado. O Recôncavo Baiano, ao longo de sua história,

configurou-se como uma região singular e plural, composta por vários sistemas de

produção e cultivo e múltiplas formas de relações sociais. Segundo a historiadora

Ana Maria Carvalho,

Se existem elementos que lhe dão unidade, há também aqueles que demonstram a sua diversidade. Difícil perceber a riqueza, a pobreza, os contrastes do Recôncavo sem levar em conta a variedade dos seus aspectos físicos, sócio-econômicos e o seu percurso histórico.35

32 QUEIROZ, Fernando Pinto de. A capela do padre Matheus. Feira de Santana-Ba: Sagra, 1995, p. 223. 33 OLIVEIRA, Ana Maria Carvalho dos Santos. Recôncavo Sul: terra, homens, economia e poder no século XIX. Salvador-Ba: Editora UNEB, 2002, p. 63. 34 SANTOS, Miguel Cerqueira dos. O dinamismo urbano e suas implicações regionais: o exemplo de Santo Antônio de Jesus/Ba. Salvador: Editora UNEB, 2002, p. 29-37. 35 OLIVEIRA, Ana Maria Carvalho. Op. Cit. p. 57.

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33

A autora ainda salienta que é possível identificarmos o Recôncavo como um

grande conjunto composto de porções diferenciadas. Estas porções que podem ser

vistas como pequenos recôncavos são: o Recôncavo canavieiro, o Recôncavo

fumageiro, o Recôncavo mandioqueiro e da subsistência, o Recôncavo da pesca e o

Recôncavo ceramista.36

Essa configuração produziu na região uma diversificação econômica e,

concomitantemente, contribuiu para a intensificação de diferentes processos de

ocupação e povoamento, proporcionando mudanças significativas na estruturação

do espaço regional e das relações sociais.

Alguns estudos abordam o Recôncavo canavieiro como uma região

completamente diferente dentro do Recôncavo Baiano enfatizando que a ocupação

daquele espaço e a construção das relações sociais foram decorrentes da

monocultura canavieira baseada no sistema produtivo do tipo plantation. Todavia,

cabe ressaltar, estudos mais recentes mostram que a faixa de terra que a literatura

consagrou como Recôncavo Clássico ou Tradicional “não era apenas um grande

engenho”, havia ali grande variedade de cultivos e nem todos os escravos estavam

ligados à economia açucareira.37

Dentro desse contexto – Recôncavo e Recôncavos – é que se insere

historicamente a cidade de Santo Antônio de Jesus, cujas terras do Recôncavo

mandioqueiro e da subsistência proporcionaram o surgimento de várias povoações e

possibilitaram a constituição de uma sociedade iminentemente rural com

características e objetivos distintos da sociedade canavieira, por exemplo.38

No decorrer dos séculos XVIII, XIX e XX, diversos fatores provocaram uma

profunda transformação espaço-regional no Recôncavo Sul, resultando no

aparecimento, crescimento ou “declínio” de povoados, vilas, cidades e municípios.

Os principais fatores que contribuíram para as mudanças na configuração e

na dinâmica social dos núcleos urbanos e rurais no Recôncavo Sul da Bahia foram,

inicialmente, os caminhos das vias terrestres marcados por pedestres, carros de boi,

36 Ibid.; p. 57. 37 FRAGA, Walter. Encruzilhadas da liberdade: histórias de escravos e libertos na Bahia (1870-1910). São Paulo: Editora UNICAMP, 2006, p. 23. 38 Ver a interessante obra Recôncavo Sul: terra, homens, economia e poder no século XIX... Op. Cit. onde a autora mostra a configuração social na cidade de Santo Antônio de Jesus no referido século.

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burros, cavalos, carroças e, mais tarde, o transporte flúvio-marítimo e ferroviário,

além das atividades econômicas, sobretudo as feiras-livres.

FIGURA 01 – MAPA DIVISÃO POLÍTICO-ADMINISTRATIVA DA BAHIA – 2000

FONTE: http://www.sei.ba.gov.br/geoambientais/index_geoamb_mapas.php

DIVISÃO POLÍTICO-ADMINISTRATIVA

ESTADO DA BAHIA

2000

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35

FIGURA 02 – MAPA REGIÃO DO RECÔNCAVO SUL

A partir da segunda metade do século XIX, o Brasil e a Bahia começam a se

modernizar em vários aspectos. Dentre eles podemos destacar os meios de

transportes, com a introdução da ferrovia em várias regiões de todo o país.

Inaugurada em 1875, na cidade de Nazaré das Farinhas, a Estrada de Ferro,

batizada de Trans Road Nazaré, com um ramal inicial que percorria os vales dos rios

Jaguaripe, Taitinga e Mutum, estendendo-se até a cidade da Capela em 1880, fora

uma das inovações que trouxera grande desenvolvimento econômico para a região

do Recôncavo e outras cidades da Bahia.

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Além de representar o novo e simbolizar o progresso, a introdução desse

meio de transporte na região implicava em viagens mais rápidas e rentáveis para

comerciantes que tinham como principal objetivo o escoamento dos diversos

produtos agrícolas produzidos nessas localidades, bem como o transporte de

pessoas.

Ao longo de quase um século, a Trans Road Nazaré conseguira atingir seus

objetivos, instalando trilhos de ferro que serviam cidades como: Laje, Mutuipe,

Jiquiriçá, Amargosa, São Miguel das Matas, Santa Inês, Itaquara, Jaguaquara,

Maragojipe, Ubaíra, e Jequié. Essa expansão possibilitou o escoamento de produtos

que muito contribuiu para a riqueza da Bahia: café, fumo, açúcar e farinha de

mandioca, além dos cereais, das madeiras das matas próximas e do minério de

manganês39 e, ainda, charque, bacalhau, aguardente, etc.

A importância da Estrada de Ferro de Nazaré para o crescimento econômico

e expansão da cidade de Santo Antônio de Jesus não passara despercebida por um

dos filhos “ilustre” da terra.

A estrada de Ferro de Nazaré, que se fez aqui, afinal, por vários anos, tornou a Capela de Padre Matheus o ponto de convergência de toda a mata do Sertão de Baixo, (...) O comércio em novo surto, alargou-se e engrandeceu a povoação. A capela do Padre Matheus tornava-se o ponto de convergência das tropas da mata e do Alto Sertão. Viajantes de toda parte descarregavam e recebiam mercadorias.40

Cássia Maria Muniz Carletto, em um estudo sobre a Estrada de Ferro de

Nazaré, aponta as mudanças que esta trouxera para o município e região. Segundo

ela,

Em 1880 inaugurou-se o tráfego da Estrada até Stº Antônio de Jesus, que seria ponta de trilhos durante dez anos. A estrada de ferro traria a prosperidade para o município, que em pouco

39 SIMÕES, Lindinalva. As estradas de ferro do recôncavo. Dissertação de Mestrado. Salvador-Ba. Bahia: UFBA, 1970, p. 101. 40 ALVES, Isaías de Almeida. Matas do Sertão de Baixo. Bahia: Reper, 1967, pp. 171 e 233. Ana Maria Carvalho de Oliveira, também ressalta que na década de 80 do século XX, a Estrada de Ferro de Nazaré favoreceu alguns núcleos do interior, sobressaindo-se Santo Antônio de Jesus, por estar situado entre os tabuleiros fumageiros e a encosta do Planalto. Op. Cit. p. 67.

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tempo se tornou um dos grandes principais centros comerciais da redondeza.41

Além da Estrada de Ferro de Nazaré, a proximidade com Salvador, viabilizada

pelo antigo porto de Nazaré e as diversas estradas que integram Santo Antônio de

Jesus às demais localidades, facilitou o desenvolvimento das relações comerciais.42

O comércio local era animado com a feira-livre que constituiu-se como uma das

primeiras atividades comerciais desenvolvidas na cidade e na região, cuja existência

remonta à história da “origem” da próprio município quando em seus primórdios

localizava-se nos arredores do Oratório de Santo Antônio, onde atualmente está

localizada a Praça Padre Mateus.

Locais públicos privilegiados para a venda de mercadorias, nas feiras baianas

encontravam-se produtos bastante variados como gêneros alimentícios, utilidades

domésticas, remédios, garrafadas, peças do vestuário, acessórios diversos, animais,

dentre outros produtos.43 Entretanto, as feiras representavam muito mais que um

espaço de negócios. Ana Maria Carvalho entende as feiras como lugares,

Onde eram estabelecidos contatos comerciais e sociais, corriam os preços dos produtos e as notícias sobre o cotidiano das pessoas: quem havia casado, nascido, falecido, estava doente, o escravo fugidio, o senhor falido ou enriquecido era notícia. Todos estavam nas conversas que se desenrolavam por entre as bancas ou barracas dos feirantes.44

Essa dinâmica consolidou a feira-livre de Santo Antônio de Jesus como um

espaço que, mais do que para as simples práticas de um comércio varejista de

diversos produtos, constituía-se em múltiplos lugares de criação, de maneiras de

viver e resistir às dificuldades cotidianas enfrentadas quer por trabalhadores do

campo, quer por trabalhadores da cidade.

41 CARLETTO, Cássia Maria Muniz. A Estrada de Ferro de Nazaré: no contexto da política nacional de viação férrea. Dissertação de Mestrado. Salvador, Bahia: UFBA, 1979, p. 59. 42 OLIVEIRA. Op. Cit. p. 64. 43 Ibid.; p. 69. 44 Ibid.; p. 69.

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FIGURA 03 – FEIRA LIVRE DE SANTO ANTÔNIO DE JESUS – Década de 40

FONTE: http://www.mma.com.br/mma3/media/images/saj/feira1.jpg

O uso do testemunho de imagens levanta muitos problemas incômodos.

Imagens são testemunhas mudas, e é difícil traduzir em palavras o seu testemunho.

Segundo Burke,

Elas podem ter sidos criadas para comunicar uma mensagem própria, mas historiadores não raramente ignoram essa mensagem afim de ler as imagens nas “entrelinhas” e aprender algo que os artistas desconheciam estar ensinando. Independente de sua qualidade estética, qualquer imagem podem servir de evidência histórica, pois elas sempre têm alguma coisa a dizer.45

A imagem acima registra dimensões da dinâmica da feira-livre e sua

importância na região. As evidências que ela nos traz, revelam que a feira-livre da

45 BURKE. Op. Cit. Testemunha ocular: história e imagem. São Paulo: EDUSC, 2004, p. 18-21.

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cidade da Capela funcionava como uma espécie de vitrine da produção “local”, da

população, da cidade e da região. A feira-livre de Santo Antônio era um elo de

ligação entre o viver urbano e rural que revelava muito da cultura dos Recôncavos

Baianos.

Em Santo Antônio de Jesus a feira atraía comerciantes, feirantes e fregueses

dos diversos arraiais e cidades vizinhas, tornando-se um grande “empório comercial”

na região. As atividades comerciais na cidade da Capela muito contribuíram para o

seu desenvolvimento e para a busca de um ideal de progresso e civilidade

perseguido pelas elites locais.

É comum nos discursos da imprensa escrita, nos livros de Atas, Leis e

Decretos da Câmara Municipal no final dos anos 40 e nas décadas de 50 e 60 do

século XX, o uso corrente dos termos urbe, zona urbana, perímetro urbano, cidade

urbanizada, zona rural, áreas rurais e campo, por jornalistas, políticos e as camadas

mais abastardas quando se referem à cidade de Santo Antônio de Jesus.

Essas representações sugerem pensar duas possibilidades de interpretação.

A primeira é que eles retratam a cidade numa perspectiva dicotômica, em que

campo e cidade aparecem como lugares opostos, cuja experiência social dos

indivíduos está cristalizada cada qual em “seus mundos”. A segunda, é a

representação de uma cidade urbanizada, talvez pelo fato de que a cidade da

Capela, já nos anos 50 e 60, possuía uma Estação Ferroviária, campo de aviação,

bancos como a Caixa Econômica Federal, Banco do Brasil e Banco Econômico,

escolas, energia elétrica em alguns bairros da cidade, uma “central” telefônica, uma

bomba de gasolina instalada nas 4 Esquinas e depois um posto de gasolina próximo

à estação ferroviária, e ainda partido político como o PTB, lojas que vendiam

produtos domésticos, vestuário, sapatos, dentre outros produtos oriundos do Rio de

janeiro, São Paulo e Salvador; possuía também, tipografia, hotéis e pousadas,

escola de corte e alta costura, curso de Teoria Musical e Piano, noitadas literárias,

cafés, pastelaria, cine-teatros, vários jornais que circulavam em vários lugares da

Bahia e outros estados como O Paládio, duas filarmônicas que faziam várias

apresentações na capital e em muitas cidades do interior da Bahia, além de um

Hospital que já oferecia serviço de Raio-X a moradores da cidade e de regiões

circunvizinhas, evitando o deslocamento de muitos pacientes até a cidade de

Salvador para se tratarem. Santo Antônio de Jesus, foi uma das primeiras cidades

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do interior da Bahia a contar com essa nova invenção tecnológica no universo

médico-hospitalar no início dos anos 50.

Nas décadas de 50 e 60, a cidade de Santo Antônio de Jesus oferecia

serviços até então encontrados em poucas cidades do interior da Bahia. Por esse

motivo, acredito que, de fato, possamos considerá-la uma urbe e também,

sobretudo, pelas representações que muitos de seus praticantes faziam dela.

Todavia, nesse estudo, não pretendo comungar com visões antagônicas ou

hierarquizantes que colocam a cidade, o campo e seus atores sociais em lados

opostos e intransponíveis, social e culturalmente. Acredito ser mais frutífero

investigá-los numa perspectiva em que possamos perceber que a vida no campo

tem muitos significados e a vida na cidade também. Tentar desvendar os

entrecruzamentos desses lugares, bem como o entrelaçamento das práticas sociais

desses indivíduos, nos fornecerá pistas que podem ser de grande valia.

Para o historiador Charles D’Almeida Santana, no Recôncavo Sul da Bahia, a

partir do início do século XX, as cidades passaram a adquirir “centralidade” nas

maneiras de viver das pessoas residentes nos povoados, distritos e localidades

próximas46. Apesar da população na zona urbana de Santo Antônio de Jesus

(39,9%) na década de 50 estar bem inferior à população rural (60,1%), a década de

60 já anunciava um aumento populacional para expressivos (45,5%) na cidade,

enquanto que o campo absorvia (54,5%) da população47. Junto a este aumento

populacional, crescia também a importância da cidade para os trabalhadores rurais

que buscavam na urbe não só mercadorias, como também conversas, bebedeiras,

diversão, arte, alternativas de sobrevivências e, sobretudo, trabalho.

É nesse contexto que homens e mulheres em busca de novos horizontes, à

procura de um futuro melhor para si e suas famílias, decidem enfrentar o ofício de

ser feirante na cidade. Para esses homens e mulheres aquela ocasião não era uma

ocasião qualquer, eram momentos que significavam uma virada na expectativa de

vida, momentos bastante significativos, pois passado, presente e futuro estavam em

jogo. O que iremos ver a seguir são as motivações prováveis que estavam por trás

das opções feitas por essas pessoas.

46 SANTANA. Dimensão histórico-cultural (cidades do Recôncavo). Cadernos CAR – Programa de Desenvolvimento Regional Sustentável. Salvador-Ba, 1999, p. 47. 47 Para saber sobre aspectos demográficos da cidade de Santo Antônio de Jesus nas décadas de 50 e 60, verificar fontes: IBGE/SEI – Anuário Estatístico da Bahia.

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2.2 – Firmes Propósitos.

Acostumados com o trabalho árduo no campo, uma vez que na roça desde

criança já se começava a trabalhar nas lavouras de mandioca, café, fumo e cana-de-

açúcar, aos seis, sete e oito, anos de idade, para muitos homens e mulheres, decidir

ser feirante, ir trabalhar na cidade significava a busca de dias melhores e a

esperança de novas alternativas de sobrevivências em face a uma realidade que já

não mais os contentava. Ao relembrar o motivo pelo qual decidiu ir para a cidade

trabalhar nos anos 50, Josué Pereira nos conta que foi

Porque eu tava cansado de trabaiá e arrastava a enxada e não via nada, né? (muitos risos). Não via nada porque enxada nunca deu nada, porque o povo diz que nunca madurece, nunca madurece e a gente não tinha terreno, trabaiava meia num, né? E quando a gente era comia a banda da roça da gente e a do dono ficava lá, quando maducia dava dois tantos de que a gente comeu. (muitos risos).48

Ainda jovem, Josué Pereira, mais conhecido como Zezéu, resolveu deixar de

“arrastar a enxada” para ir ganhar a vida na cidade da Capela. Para ele, o trabalho

pesado e árduo da roça não traria a certeza de um futuro melhor nem para ele nem

para sua família, pois este trabalho nunca “madurece”. A condição de meeiro em

terras “alheias” significava a exploração de sua mão-de-obra e com grandes

vantagens para o proprietário das terras em que ele trabalhava. Ao diferenciar e

comparar “a banda da roça” dele e de sua família com “a banda da roça” do dono

das referidas terras, o narrador expressa a sua condição de trabalhador rural e a

vontade de transformá-la; para ele aquela já era uma forma intolerável de relação49.

Na região do Recôncavo Sul da Bahia era comum a existência de pequenos

proprietários rurais, rendeiros, meeiros, comerciantes, diaristas e assalariados.

Todavia, a falta de terra própria para trabalhar consistiu-se em um dos motivos que 48 Depoimento de Josué Pereira dos Santos. Feirante. Rua Sóter Barros nº 101, Santo Antônio de Jesus, 73 anos. 49 Uma interessante análise sobre a vida de homens e mulheres no campo em algumas cidades na Região do Recôncavo Sul é feita pelo historiador Charles D’Almeida Santana em: Fartura e Ventura Camponesas… Op. Cit. Cap. I. O autor foge de análises que colocaram estes atores como meros expectadores nas relações de trabalho no campo, colocando-os como sujeitos ativos dentro daquele processo.

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impulsionaram o deslocamento de vários homens e mulheres do campo para a

cidade. Nascido em Sapeaçú, aos oito anos de idade Augusto Soares da Silva

deixou a enxada, foice e o facão e acompanhou a sua família “porque a coisa não

tava ficando boa pra trabaio, meu pai procurava um lugá que pudesse trabaiá e lá

não achava terreno em abundança”50 e passou a perambular pelas cidades do

Recôncavo baiano em busca de novas alternativas de trabalho.

Ao chegar em Nazaré das Farinhas, Augusto lá permanecera por cinco anos

por causa da pescaria de mangue. Entretanto, o ato de pegar caranguejo em Coroa

Grande não fora o suficiente para ele e a busca de um lugar, para ver se encontrava

uma colocação melhor no mundo do trabalho, o conduziu à decisão de tornar-se

feirante na cidade da Capela.

João Nunes dos Santos, vulgo João do Couro, iniciou-se no mundo do

trabalho ainda criança entre os sete e oito anos de idade auxiliando seus pais no

plantio e colheita das roças. Ainda pequeno, tornou-se “fazedor de carvão” e aos 14

anos colocava o fruto de sua produção no lombo do animal e se deslocava para a

cidade de Nazaré das Farinhas para vender carvão na feira-livre daquela cidade nos

dias de Quarta-feira e aos sábados. Em meio às atividades de carvoeiro, ele dividia

o tempo trabalhando em algumas propriedades rurais para ganhar mais alguns

trocados.

Esse feirante se deslocava do Rio da Dona às doze horas da noite para

chegar em Nazaré às seis ou sete horas da manhã. Em sua narrativa ele nos conta

que sofria muito porque a “estrada era distante” e chegava em Nazaré com o corpo

repleto de lama. Ele acostumava lamentar a sua condição de vida e nutria um forte

sentimento de fé e esperança que um dia aquela realidade, à qual estava submetido,

iria se transformar. Durante a longa caminhada que realizava até o local de venda

dos produtos, ele interiorizava em sua mente, “eu tenho fé em Deus que eu não é de

acabá meus dia de vida fazendo carvão”.51

João Nunes dos Santos deixou de vender carvão quando seu irmão, Américo,

inaugurou uma quitanda na roça, cujo gerenciamento ficou sobre sua

responsabilidade e os lucros divididos entre ambos. Logo depois, ele arrendou um 50 Depoimento de Augusto Soares da Silva. Feirante. Rua Marita Amâncio, Santo Antônio de Jesus, 90 anos. 51 Depoimento de João Nunes dos Santos. Feirante. Avenida Juracy Magalhães nº 560, Santo Antônio de Jesus, 75 anos.

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pedaço de terra, onde é a Urbis 452 atualmente, e ali plantava milho, feijão e colhia

essa roça. Com os frutos da colheita e da plantação, João Nunes viajava para a

cidade de Feira de Santana para comprar seus produtos e vendê-los na feira-livre de

Santo Antônio de Jesus.

Vários foram os sonhos que moveram homens e mulheres a irem trabalhar e

desfrutar dos encantos e ilusões da cidade. Filha de uma família de oito filhos, dona

Elza lembra que seu pai tinha um “terrenozinho” onde morava, plantava mandioca e

trabalhava no cultivo de café em Dom Macedo Costa. Apesar de gostar da roça, ele

deixou a terra lá e foi para a cidade da Capela porque já estava com idade avançada

e pretendia ir para a cidade descansar da roça53. Entretanto, mesmo indo para a

cidade com o intuito de descansar, seu pai não vacilou em colocar uma barraquinha

na feira para dona Elza e sua irmã trabalharem.

A busca e a conquista de dias melhores colocavam estes homens e mulheres

diante de vários obstáculos que deviam ser superados até a chegada na cidade. Ao

acompanhar sua mãe, quando ainda tinha 10 anos de idade, para colocar barraca

na feira, Vitalina Santos Souza saía da Jueirana para a Capela a pé. Ao falar das

dificuldades que tinha para levar as mercadorias para serem vendidas na feira,

relembra que ela e sua mãe levavam

Tudo na cabeça, era tabuleiro de bolo, outros trazia assim, como é? naquele tempo não era alumínio, era barro, aquela panela de barro trazia na cabeça.Tinha vez que tirava do fogo naquela hora e jogava na cabeça. As veze quando sentia assim dor de cabeça, minha mãe. Né? Dor de cabeça, aí dizia assim: Ai meu Deus! Isso foi da panela quente. Botava aquela arrudia bem grande viu, mais mesmo assim ela achava que passava. Né? Sabe? A pessoa andando da Jueirana, do fim da Jueirana, porque a Jueirana aqui é muito fácil, mais do fim da Jueirana com a panela de coisa na cabeça, de Miguzá, esse negócio era difíce, viu?54

52 Conjunto habitacional financiado pelo programa de habitação do governo estadual que fica afastado do centro da cidade e consiste em um lugar de moradia das camadas populares. 53 Depoimento de Elza Froes da Fonseca. Ex-feirante. Rua do Calabá nº 629, Santo Antonio de Jesus, 61 anos. 54 Depoimento de Vitalina Santos Souza. Ex-feirante. Rua do Calabá nº 301, Santo Antonio de Jesus, 70 anos.

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A falta de recursos financeiros não permitia a Vitalina Souza e sua mãe

disporem de um animal para transportar suas mercadorias, pois esta tinha oito filhos

para criar. E mesmo com seu esposo trabalhando, não conseguia soldos para tal

empreendimento porque ele destinava boa parte do seu salário aos jogos de azar.

Essa dura realidade, de não possuir um meio de transporte para conduzir

seus produtos até a feira-livre de Santo Antônio de Jesus, não impediu essas

mulheres de usarem sua criatividade e forjarem formas que pudessem amenizar o

peso da labuta. Nas longas caminhadas durante as quais muitas mulheres

transportavam os produtos para serem comercializados na feira, na cabeça, a

rodilha55 tornou-se um artefato fundamental que contribuía para amenizar não só o

peso dos produtos, muitas vezes carregados em tabuleiros e panelas de barros,

como poderia ser algo de suma importância, segundo a crença “popular”, para evitar

doenças, como a dor de cabeça naquele momento.

Assim como Vitalina Souza, que acompanhava sua mãe nas longas jornadas

de trabalho desde os dez anos de idade, Augusto Laranjeira acompanhou seu pai

aos oito anos. Em várias trajetórias e histórias de feirantes, o mundo da criança

imbricava-se com as atividades referentes ao mundo do trabalho dos adultos. Eram

meninos e meninas que seguiam solidários aos seus pais, ajudando-os no

transporte e na venda das mercadorias na cidade. Muitas dessas experiências de

solidariedades já existiam nas roças quando essas crianças ajudavam seus pais

desde a lida na preparação da terra para o plantio até à colheita das roças,

participavam do beneficiamento da mandioca, do milho, do fumo e do trato da

criação miúda56.

Para chegar à feira da cidade cada um se utilizava do recurso que dispunha,

para aqueles que possuíam animal talvez fosse mais tranqüilo o transportar de

mercadorias; porém, para estes homens e mulheres, outros desafios cruzavam seus

caminhos durante tal percurso. Ao descrever os caminhos sinuosos que o

conduziam até a cidade, seu Zezéu nos relata que 55 Rodilha: Rosca formada de pano, sobre a qual se assenta o fardo transportado na cabeça. Era comum no Recôncavo Sul, as mulheres usarem na cabeça quando estavam transportando latas d’água, mercadorias, tabuleiros, etc. A rodilha tem a função de apoiar, equilibrar e amenizar o peso do que está sendo transportado. 56 Ver a interessante análise que o historiador Charles D’Almeida Santana faz sobre a infância no campo e como as crianças conciliam o lúdico com o trabalho na região do Recôncavo Sul. Nos depoimentos dos sujeitos históricos desta pesquisa, aparecem relatos semelhantes ao que o autor abordou em sua pesquisa. Fartura e Ventura Camponesas… Op. Cit. p. 54-56.

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Morava lá na Pedra Branca é, ia daqui pra lá. Tinha tempo que o rio tava chei, eu jogava o animá por dentro d’água, chegava lá largava o animá do lado de cá, passava por cima dos das ponta de pau, pra passá pro lado de lá de minha casa, tinha que passá na corda, tinha que deixá a carona do lado de cá pra podê atravessá. E aí o Mutum a gente passava ali, o Mutum tava de fora a fora, chei e… ia sair, vinha sexta-feira de manhã e vortava sábado de tarde a boquinha da noite lutando pra arrumá o pão de cada dia.57

Ao se deslocar de seu povoado para a cidade e vice e versa, seu Zezéu se

utilizava de um dos meios de transporte mais acessíveis naquele momento. Em

muitas histórias e memórias de feirantes oriundos de áreas rurais, jegues e cavalos

tornaram-se companheiros inseparáveis naquelas longas jornadas e, no vai-e-vem

pela busca da sobrevivência, eles tinham pela frente “cheias de rios” a vencer,

estradas quilométricas a superar e a escuridão da “boquinha” da noite à

“ultrapassar”; pois o retorno para casa se dava quando o “sol caía”, ao final da tarde,

a partir das 4, 5 e 6 horas. O retorno para a casa estava condicionado menos à

rigidez de um horário fixo do que ao ritmo das vendagens dos produtos. O ritmo das

vendagens poderia prolongar ou reduzir o tempo do trabalho.

O lá e cá externado por seu Zezéu elucida a dinâmica do deslocamento

desses feirantes que paulatinamente iam contribuindo no processo de ampliação e

alargamento territorial da cidade definindo/redefinindo-a. Ao passar por cima de

“ponta de pau”, passar na corda e deixar a carona do “lado de cá”, esses homens e

mulheres não se configuravam apenas como “desbravadores” que encurtavam a

“distância” campo-cidade, mas também como verdadeiros acrobatas do “circo da

vida” lutando para arrumar o pão de cada dia.

A narrativa de Josué Pereira ainda nos induz a lembrar uma das nuanças que

a memória possibilita à história. Segundo Júlio Pimentel Pinto,

A memória traz marcas que o presente ou que outros passados não apagam, elas se expressam de forma fugidia, subjetiva, lançada do centro às margens. As margens como lugar de conservação ou produção de referências. Espaço possível de

57 Josué Pereira dos Santos. Depoimento citado.

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culto ao passado como forma possível de não perdê-lo no caos da história acelerada do presente.58

O “caos” da história acelerada levou consigo o Rio Mutum59, cedendo lugar à

estrada de asfalto e construção de casas residenciais. Espaço de referência na

memória de vários feirantes que iam da zona rural vender na feira-livre da cidade, o

Rio Mutum emerge das margens da memória, através da narrativa do feirante Josué

Pereira, como algo imortal, um espaço que no jogo duro da memória, entre a

lembrança e o esquecimento, desafia o passado e o presente, perpetuando-se como

marca indelével que não apaga os vários desafios e elementos que marcaram os

caminhos e trajetórias da vida cotidiana.

Os caminhos que conduziam os feirantes e seus produtos até a feira-livre de

Santo Antônio de Jesus poderiam ser ampliados a depender do tipo de mercadoria

que cada um negociava na feira. Muitas vezes, para chegar ao seu destino, muitas

dessas mercadorias eram conduzidas por vários meios de transportes como era o

caso das peças de cerâmica comercializada por Augusto Laranjeira. Ele comprava

sua cerâmica em Maragojipinho e levava até Nazaré de canoa, de Nazaré até a

cidade da Capela as mercadorias eram conduzidas em um carro, um jipe, no qual

ele e outras pessoas viajavam toda semana de Santo Antônio até Nazaré e vice-

versa.60

A dinâmica de algumas dessas histórias não se resume apenas àquelas

pessoas que iam trabalhar na feira, assemelhavam-se também às histórias dos

freqüentadores e freqüentadoras que chegavam na cidade pois

Quem tinha animal vinha, quem não tinha alugava, quem não tinha vinha de pé. E a gente encontrava aquela fila de gente na estrada, um atrás do outro contando história, até que chegasse na cidade. Aí a cidade foi crescendo, crescendo, crescendo,

58 PINTO, Júlio Pimentel. Os muitos tempos da memória. Projeto História, São Paulo, n.17, nov. 1998, p. 208. 59 Essa minha afirmação é baseada na situação atual, em que esse rio não apresenta mais as dimensões que lhes era peculiar nos anos 50, 60 e 70. Hoje pode-se falar em um riacho, altamente poluído por detritos, cuja as águas não correm mais em determinada áreas. 60 Augusto Soares da Silva. Depoimento citado.

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que hoje tá, é quase uma capital Santo Antônio de Jesus. Né? (muitos risos)61.

A pé, montados em lombo de animal, às vezes em cima de caminhão, de

trem, pilheriando sobre os fatos engraçados do dia-a-dia, contando histórias de

namoro e “causos” do passado, a feira-livre de Santo Antônio de Jesus atraia

pessoas vindas das cidades de São Felipe, Conceição do Almeida, Sapeaçú, Cruz

das Almas, Dom Macedo Costa, Jaguaripe, Castro Alves, Varzedo, Amargosa,

Nazaré, São Miguel das Matas, Aratuípe, São Felipe e muitas outras cidades da

Bahia. Eram pessoas que iam comprar e vender produtos, buscar e levar notícias de

parentes e amigos, fazer negócios. Saíam de madrugada de suas cidades,

enfrentavam as estradas de chão com “destino” traçado até a feira-livre da cidade da

Capela. As estradas de chão redesenhadas por esses homens e mulheres

tornavam-se espaços de socialização potencializados por diversos universos

culturais que no decorrer das “viagens” se articulavam.

Homi K. Bhabha diz que é teoricamente inovador e politicamente crucial na

contemporaneidade, focalizar aqueles momentos ou processos que são produzidos

na articulação de diferenças culturais. Um elemento fundamental para entender

esses processos de articulação é a idéia de espaço liminar e entre-lugar defendida

por este autor. Dentre os vários exemplos que elenca como possibilidades de

espaços liminares, Bhabha dá o exemplo de um arquiteto que fez uma exposição em

um museu e em vez de simplesmente usar o espaço da galeria, usou o sótão, o

compartimento da caldeira e o poço da escada para fazer associações entre certas

divisões binárias como superior e inferior, céu e inferno. Para Bhabha, o poço da

escada era um espaço liminar,

Porque estava situado no meio das designações de identidade, transforma-se no processo de interação simbólica, o tecido de ligação que constrói a diferença entre superior e inferior, negro e branco. O ir e vir do poço da escada, o movimento temporal e a passagem que ele propicia, evita que as identidades a cada extremidade dele se estabeleçam em polaridades primordiais.62

61 Depoimento de João Crizóstomo Sampaio. Ex-guarda da feira, ex-trabalhador da indústria do fumo, atualmente aposentado. Rua do Calabá nº 726, Santo Antônio de Jesus, 84 anos. 62 BHABHA. Op. Cit. p. 22.

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Ao acompanhar os caminhos morosos ou apressados dos homens e

mulheres que para lá e para cá se deslocavam, alcançando outras margens, as

estradas de chão, que amplamente foram lembradas nas narrativas dos sujeitos

sociais desta pesquisa como algo que tornava mais difícil a luta pela sobrevivência,

naquele momento, configuravam-se como “testemunhas oculares” que, ao mesmo

tempo, deslocava e ligava feirantes e freqüentadores.

Assim como uma ponte que permite uma fluidez, movimentos de vai-e-vem na

vida cotidiana, sem aspirar a nenhum modo específico ou essencial de ser, as

estradas de chão eram passagens que possibilitavam a articulação de diferenças

culturais, enquanto passagem que atravessava. Era um espaço liminar construído

no ritmo do ir e vir de cada dia que fazia com que diversos homens e mulheres

alcançassem outras margens. Não eram homens e mulheres que “estavam” apenas

lá no campo nem homens e mulheres que “estavam” totalmente na cidade. Eram

sujeitos vivendo nas fronteiras sociais e culturais que a vida cotidiana demarcava.

Para ir para a feira-livre de Santo Antônio de Jesus, tanto os freqüentadores e

freqüentadoras quanto os feirantes começavam sua jornada já na madrugada em

suas casas. Os freqüentadores muitas vezes iam não só para comprar como

também combinar negócios como arrendamentos de propriedades e outros arranjos

ligados às atividades agrícolas e pastoris, outros iam em busca de notícias de

parentes e amigos que moravam em outras localidades, muitos deles eram agiotas,

amoladores, jogadores, apostadores, cantadores, dentre outros, e cedo tinham que

estar acordados para se arrumar e ir para a cidade.

Quanto aos feirantes, a tarefa de acordar cedo consistia em uma premissa

para estes trabalhadores. Na falta do relógio de pulso, eles tinham que contar com a

ajuda de um “amigo inseparável” nesta empreitada. Ao relembrar a movimentação

que havia em sua casa nas madrugadas que antecediam os dias de sábado, Vitalina

Souza nos conta que

Não tinha relógio em casa, o relógio mesmo era os galo (muitos risos). Aí, quando o galo cantava minha mãe já acordava e ia acordando um e outro e aí botava a carga nas costa e vinha, e agora o tempo de chuva, você não imagina a lama e vendo a hora de cair, tinha lugá na estrada que fazia assim: cavava aqui, juntava terra pra cá, cavava pra lá, eu sei tipo um degrau. Sabe como é? Assim que é pra água escorrer pra dá prá

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pessoa passá, mais de noite, noite de turvo, é porque quatro horas da manhã… hoje não, quatro horas da manhã hoje é de dia quase.63

Em seu sugestivo ensaio, Tempo, Disciplina do Trabalho e Capitalismo

Industrial, E. P. Thompson analisa as mudanças sobre a percepção do tempo no

âmbito da cultura intelectual na Europa ocidental entre os anos 1300 e 1650. O autor

aponta a necessidade do capitalismo industrial em inserir o relógio de ponto no

universo da cultura dos trabalhadores como um novo elemento essencial ao

desenvolvimento, regulamentação e disciplinarização das atividades diárias.

Todavia, as reflexões desse autor tornam-se mais relevantes no momento que

apontam formas e maneiras “irregulares” de sentir, marcar e viver o tempo em

diferentes comunidades e grupos sociais. Muitos desses ritmos e tempos eram

operacionados com os mais variados elementos que a natureza oferecia.64

Charles de Almeida Santana observou, na região do Recôncavo Sul, algo

semelhante ao que Thompson percebeu em algumas comunidades rurais na

Europa. Segundo Charles D’Almeida,

No contexto de toda uma cultura, o meio ambiente fazia-se presente na constituição de hábitos, valores, costumes, representações da vida e da luta criados e recriados pelos trabalhadores da região. Os ritmos da natureza condicionavam o cotidiano, tanto nas suas dimensões tradicionais, quanto naquelas em que o rompimento com o mundo rural mostrava-se eminente: o trabalho, o lazer, a moradia, a alimentação.65

Em sintonia com a natureza e o meio ambiente, para esses homens e

mulheres da roça o cantar do galo significava um marcador de tempo que dava uma

operacionalidade e os orientava para o início de suas atividades diárias que

costumavam começar bem cedo, ainda de madrugada. O uso do cantar do galo

(tempo do galo) como relógio, bem como as artimanhas e habilidades em

reconfigurar as estradas em dias de chuva tornando-as accessíveis à viagem, nos

faz pensar em estratégias cotidianas criadas por estes atores sociais, sabiamente 63 Vitalina Santos Souza. Depoimento citado. 64 THOMPSON, E. P. Costumes em comum: estudos sobre a cultura popular tradicional. São Paulo: Companhia das Letras, 1991. cap. VI. 65 SANTANA. Fartura e Ventura Camponesas. Op. Cit. p. 37

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retiradas da natureza e as várias experiências que o meio ambiente lhes

proporcionava.

Voltando à questão de como esses sujeitos marcavam seu tempo, assim

como o relógio algumas vezes pára por falta de bateria ou por qualquer outro

motivo,o galo também algumas vezes não cantava, e “quando o galo vacilava…”

abria-se a possibilidade de acordar mais tarde e chegar na feira atrasado. Mas,

como lembrou Vitalina Souza, “como tava trabalhando pra si mesmo, né? Não tinha

nada”, pois a condição de serem autônomos e autônomas os isentaria de possíveis

sanções que poderiam sofrer caso estivessem submetidos a outras formas de

relações de trabalho. Porém, chegar atrasado na feira poderia implicar em redução

no ritmo das vendagens.

A situação contrária também poderia acontecer quando alguns feirantes

chegavam cedo demais, sentavam nos passeios das residências, açougues,

padarias, casas de comércios, lojas e outros prédios que compunham o cenário da

praça e formavam o entorno da feira municipal, esperando dar a hora, porque muitos

deles tinham que ainda buscar as barracas que ficavam guardadas em outros

lugares, fora do espaço da feira, sobretudo em casas de parentes e amigos. Nesse

caso, os feirantes dependiam do “tempo do sono” daqueles que guardavam suas

barracas.

Alguns feirantes tinham de acordar ainda mais cedo. Vendedora de cafezinho

e alimentos cozidos como batata-doce, aipim, banana da terra e pães quentinhos

com manteiga, Elza Froes era uma das responsáveis pelo desjejum de muitas

pessoas que saíam de longe. Para cumprir com suas obrigações ela recorda

Que saia daqui duas horas da manhã pra ir fazê café pro povo chegá, o povo que vinha de Castro Arve, o povo de Castro Arve vinha pra qui tudo de animal, trazia carga tudo de animal, aí quando ele chegava, esvaziava a carga, tinha que tá com o café pronto, porque quando ele chegava, chegava lascando tudo de fome, era (muitos risos).66

Assim como o povo de Castro Alves, as pessoas que saíam de outras cidades

para vender na feira-livre de Santo Antônio de Jesus acostumavam chegar entre

66 Elza Froes da Fonseca. Depoimento citado.

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quatro e “quatro e pouco” da manhã. As longas caminhadas, que feirantes e

freqüentadores da feira faziam, contribuíam para o fato de que, uma vez chegando

na cidade, estivessem famintos precisando de algo para “forrá o estômago” e, para

isso, teriam que chegar e encontrar o café pronto. Dona Elza tinha que cumprir

fidedignamente as suas obrigações acordando cedo e se dirigindo ao seu local de

trabalho. Segundo seu testemunho “no dia que ia mais tarde para feira seu pai

azoava”.67

Sair cedo para ir trabalhar na feira tornava-se uma rotina que se repetia

semanalmente nas madrugadas de sábados e não intimidava os homens, muito

menos as mulheres. Na falta de luz elétrica, pois nos anos cinqüenta e sessenta

poucas áreas na cidade eram privilegiadas com tal recurso, a exemplo do centro da

cidade, Avenida Barros e Almeida e do bairro São Benedito, a escuridão da

madrugada não causava uma sensação de medo àqueles que para lá se dirigiam,

porque “naquele tempo não fazia medo não e ninguém andava com maldade”. Ao

relembrar as suas caminhadas até a feira-livre da cidade, a feirante Elza conta que

muitas vezes seu pai não a acompanhava, ela sempre ia com sua irmã, e quando

esta por algum motivo não ia, ela para lá se deslocava sozinha não encontrando

“nem um rato, nem um gato no caminho”. Coisa que, segundo ela, hoje dificilmente

aconteceria.

Para alguns feirantes a ausência do medo, no que diz respeito aos

deslocamentos que eles faziam até chegar à feira, deslocamentos estes que

iniciavam-se ainda na madrugada e muitas vezes variavam ao sabor das

circunstâncias, como no caso acima, era devido a uma “presença mais efetiva” de

Deus na terra, porque naqueles tempos “Deus andava aqui na terra, hoje ele tá mais

pra cima por causa dos bicho que tá aqui em baixo (muitos risos).68

As palavras e as risadas de Vitalina Souza remetem-nos a pensar em

processos de mudanças significativas pelas quais a cidade passara ao longo do

tempo. Aquele era um tempo em que “os bichos” eram outros.

Ao rés do chão, com passos largos ou não, homens, mulheres e crianças iam

paulatinamente moldando espaços, tecendo lugares, inscrevendo e se inscrevendo

na cidade. Porque o espaço só ganha sentido e significado se for compreendido

67 Idem. 68 Vitalina Santos Souza. Depoimento citado.

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como algo que é vivido e experienciado pelos diversos sujeitos sociais. O espaço é

aquele praticado pelas ações humanas.69 Portanto, esses homens e mulheres eram

pessoas que através de suas pisadas e caminhadas iam encontrando formas de

enunciação, pluralizando e singularizando o espaço do vivido.

Charles D’Almeida Santana lembra que o desenho urbano no Recôncavo

emergiu condicionado pelos trabalhadores da farinha e suas feiras em Conceição do

Almeida, Maragojipe e Santo Antônio de Jesus.70 A meu ver, no caso de Santo

Antônio de Jesus, não foram só os trabalhadores da farinha responsáveis por esse

feito. Podemos também atribuir a construção de uma fisionomia urbana no

Recôncavo a trabalhadores e feirantes de diversas modalidades e diferentes

localidades que iam vender diversos produtos, comprar e fazer negócios na feira

livre da cidade. Gradativamente, esses homens e mulheres foram desenhando e

redesenhando um cenário urbano no Recôncavo baiano.

Em busca de outros modos de viver que pudessem assegurar novos projetos

de vida, os feirantes nutriram sonhos e expectativas, traçaram metas e projetos,

desafiaram limites, forjaram maneiras de driblar as dificuldades cotidianas, tomaram

e mudaram de atitudes, com o objetivo de seguirem o firme propósito de melhorar de

vida.

2.3 – Uma Geografia da Feira.

Em Santo Antônio de Jesus, a feira-livre até os anos finais da década de 60

localizava-se na principal praça no centro da cidade. Não apresentando uma

“organização espacial” baseada em concepções mais rígidas de disciplinamento ou

dos ideais urbanísticos, não existia uma divisão por quadras, ruas ou boxes, pois era

“tudo misturado”. Nesta perspectiva, a geografia da feira fora organizada e

racionalizada pelos próprios feirantes que iam chegando e dinamizando aquele

espaço ao sabor das circunstâncias. Todavia, cabe lembrar, que a organização

69 CERTEAU, Michel de. A invenção do cotidiano: artes do fazer. Vol. I. Cap. VII e IX. Petrópolis: Vozes, 1994. 70 SANTANA. Dimensão histórico cultural – CAR. Op. Cit. p. 56.

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desse espaço, estava condicionada à presença de vários outros prédios, alguns

seculares, que estiveram presentes na praça Padre Mateus.

Instalada no meio da praça, a feira-livre disputava seu espaço com a antiga

Igreja Matriz de Santo Antônio e o tradicional Barracão da farinha71, dois elementos

simbólicos de grande importância na memória popular não só dos feirantes, como

também de todos aqueles que lá aportavam. No entorno da feira se encontrava

carne fresca nos açougues de Silírio Nini, Laudilino, conhecido como Lauzinho, no

açougue de seu Antônio Galvão, vulgo seu Totônio, e no de Américo Reis (todos

localizados nas imediações onde hoje estão as sapatarias Calce K e Santo Antônio)

e também algumas padarias.

FIGURA 04 – PADARIA CENTENÁRIO

FONTE: http://www.mma.com.br/mma3/media/images/saj/santo_antonio19.jpg

O pão “gostoso” que a feirante Elza Froes comprava para alimentar aqueles

que na feira cedo chegavam, e que muitos feirantes ao retornarem para as suas

71 Barracão da Farinha – Construção reservada ao comércio de derivados da mandioca, principalmente a farinha, mas, comercializava-se ali dentro outros produtos como feijão, açúcar e rapadura.

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localidades levavam para complementar a dieta alimentar da família, era facilmente

encontrado na padaria Centenário, primeira padaria da cidade, de propriedade de

Edvaldo Oliveira Souza e que na década de 50 passou para as mãos de Juventino

de Almeida com o nome de Panificadora Vitória, atualmente Panificadora Elimar.

Podia-se ainda comprar o pão de cada dia na Padaria Ideal do senhor Teobaldo

Moreira, na Padaria São Luiz e na conhecida padaria de seu João Duque.

O comércio de secos e molhados era encontrado em abundância na cidade,

nas casas e armazéns dos senhores Lúcio Oliveira, Assilino Amaral, Sr. Roque e

seu Guilhermino. Comercializava-se carne de sertão, bacalhau, “figo doído”72, farelo,

fumo de corda, arroz, feijão, querozene enlatado, dentre outros produtos. Essas

casas de comércio estavam localizadas nas imediações onde atualmente está

situada a casa comercial Multibel. Próximo àquele lugar estava ainda a

cinqüentenária casa comercial São Luis que comercializava ferragens e produtos

diversos.

FIGURA 05 – COMERCIAL SÃO LUIS

FONTE: http://www.mma.com.br/mma3/media/images/saj/saoluis2.jpg

(da esquerda para a direita: Mário Sampaio, Fernando Ferreira [proprietários] e Gilson de Almeida Leal, vulgo Topogigio, o 1º funcionário da empresa)

72 Denominação dada ao fígado de boi quando é colocado no processo de conserva com grandes quantidades de sal e, geralmente, é comido assado no fogo de carvão com pirão de farinha.

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Essas casas comerciais eram importantes porque muitas das mercadorias

que elas vendiam faziam parte do universo social e cultural de homens e mulheres

de áreas rurais e urbanas. O querozene, por exemplo, era um produto essencial

para acender os candeeiros que iluminavam os lares, sobretudo de homens e

mulheres da roça e também de pessoas que moravam em áreas periféricas da

cidade. O fumo de corda era outro produto que nos anos 50 e 60 era mascado por

várias pessoas. Muitos feirantes e freqüentadores da feira compravam nessas casas

comerciais farelo, alimento principal para a criação suína. Já a comercial São Luis

vendia fechaduras, enxadas, foices, facão e diversas ferragens indispensáveis para

o trabalho do homem no campo.

Vários serviços eram oferecidos na Praça Padre Mateus, no entorno da feira,

como é o caso dos serviços de mecânica da oficina do Sr. Manoel Lírio, O tradicional

Bar Íris Café de propriedade de Zelito, que ficava próximo ao prédio da Filarmônica

Amantes da Lyra, a Coletoria73, a agência dos correios (instalada na região onde

hoje se localiza os Bancos do Brasil e Bradesco), a tradicional Farmácia Confiança,

lojas de roupas e sapatos, lojas de tecidos, como a loja Brasil do Sr. Florisvaldo

Santiago e as de propriedade de Laudilino Oliveira e Raimundo Nunes.

Nas imediações da feira-livre de Santo Antônio de Jesus, as pessoas não

tinham acesso apenas ao comércio de várias mercadorias, mas também arte e lazer.

Pois ali também se localizavam os seculares prédios das Sociedades Filarmônicas

Amantes da Lyra, fundada em 16/12/1904 e Sociedade Philarmônica Carlos Gomes,

criada em 05/08/1919, ambas fundadas por Samuel Canoa. Ali também ficavam o

Cine-Teatro Glória, (localizado na área onde está atualmente o Restaurante Lua

Cheia e o Hotel Pirâmide) e o Cine Rex de propriedade de Raimundo Nunes na rua

Monsenhor Francisco Manoel. Ainda próximo à feira-livre, na praça Félix Gaspar,

estava a Estação Ferroviária, para onde muitas pessoas traziam e levavam diversos

produtos e iam em busca de notícias de parentes e amigos que chegavam com o

ranger dos trilhos do trem.

73 Coletoria era o nome dado ao que é hoje Secretaria da Fazenda. Na cidade de Santo Antônio de Jesus existiam duas coletorias: a 1ª nas 4 Esquinas e a 2ª na travessa 15 de Novembro.

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FIGURA 06 – ESTAÇÃO FERROVIÁRIA (1880-1971)

FONTE: http://www.mma.com.br/mma3/media/images/saj/estacao4.jpg

Apesar do sagrado está presente na praça simbolizado pela Igreja Matriz, que

abrigava o glorioso Santo Antônio, padroeiro da cidade, vida e morte se imbricavam

naquele espaço a partir do momento que ali também se fazia presente a centenária

Casa Adornativa74. Essa casa funerária, inicialmente propriedade do Sr. Quitiniano

Andrade, existe há mais de cem anos e consiste em um patrimônio familiar que vem

passando de pai para filho ao longo de várias gerações e prestando serviços a

várias pessoas na cidade e localidades próximas.

Na Praça Padre Mateus, no entorno da feira, setores da elite local dividiam

espaço em meio à feira-livre, casas de comércio e armazéns com suas residências.

A área onde hoje estão localizados alguns hotéis, consistia em moradia do médico

Idelfonso Guedes, de um fazendeiro e de um coletor chamado de Salazá. Moravam

também na praça o médico Gorgônio José de Araújo e um fiscal da prefeitura

municipal chamado Imídio Sírio, dentre outros.

74 Casa Adornativa era a denominação dada às casas que comercializavam produtos para funerais. Inclusive, ainda hoje, várias pessoas, oriundas de áreas rurais, chegam nestas localidades não se referem a casa funerária, mas sim, Casa Adornativa.

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Outros serviços estavam disponíveis aos feirantes e ao público que

freqüentava a feira e a cidade em geral. Muito próximo dali, perto da Casa

Adornativa, mais especificamente na rua 7 de setembro, estava o açougue de Cilírio

Diniz, a barbearia de Liquinha, o Armarinho Bahia de Climério Queiroz, a barbearia

do Sr. Silvestre e o Clube Palmeirópolis, clube muito famoso na cidade e na região.

Ao relembrar os dias que passava neste clube, seu José de Souza Brito diz que

Lá só entrava burguês, só os grandão. Peru só entrava quando era convidado. Era um lugá que vinha os ingleses e alemães Vinha os estrangeiros jogá tênis e vinha comprá fumo. Golf era num terreno de um inglês onde hoje é a Quitandinhá. Os ingleses vinha jogá golf aqui e eu ia pegá bola pra dá ao inglês e ganhava um trocado, era uma merda em dólar (muitos risos) me desculpe a expressão. Depois da estação do trem tinha a casa do inglês onde hoje é a Insinuante e a casa onde vende flores, era Geraldo Jay, conhecido por Geraldo Jay, ele comprava fumo, enfardava e distribuía.75

Conforme o depoimento acima, a cidade de Santo Antônio de Jesus possuía

uma dinâmica que atraía não só pessoas da região do Recôncavo Sul, como

também de outros estados e até estrangeiros da Inglaterra, Portugal, Alemanha e

França que iam para aquela cidade comercializar, sobretudo, o fumo, produto

produzido em larga escala na região e considerado de excelente qualidade, e

também se divertir no famoso clube Palmeirópolis.

O Clube Palmeirópolis era um espaço na cidade reservado às pessoas mais

abastadas sobretudo os visitantes e investidores estrangeiros. Todavia, em meio às

atividades esportivas desses estrangeiros, José Brito aproveitava para ganhar uns

trocados em dólar, embora ele demonstrasse ter consciência de sua posição

naquele momento e do grau de exploração sofrido perante estes viajantes

estrangeiros que na cidade aportavam.

75 Depoimento de José de Souza Brito, aposentado da empresa de energia Coelba, nascido em 25/08/1925. Praça Silvestre Evangelista nº 247, Santo Antônio de Jesus. 82 anos.

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FIGURA 07 – CLUBE PALMEIRÓPOLIS

FONTE: Arquivo Particular de Amarílio Monteiro Orrico.

Ainda nas imediações da feira, encontravam-se vários armazéns de café e,

principalmente, de fumo, espalhados pelas ruas do centro da cidade de propriedade

de brasileiros e estrangeiros que faziam grandes negócios na região e também

exportavam para outros países. Dentre eles podemos destacar os armazéns de

fumo do Inglês Geraldo Jay, de um português denominado Correia e do

santantoniense Antônio Fraga.

Apesar de tantos serviços serem oferecidos, na praça Padre Mateus àqueles

que para lá se dirigiam, a feira-livre de Santo Antônio de Jesus era a grande

“vedete”, na principal praça da cidade. Localizada a céu aberto, o processo de

instalação na feira não dependia de inscrição, nem matrícula, era obrigatório apenas

o pagamento dos impostos – solo ocupado – à Prefeitura Municipal. Porém, a partir

dos anos 60, o poder público instituiu o chamado “fazer exame”. Esse exame

consistia em convocar os trabalhadores da feira para saber se eles desenvolviam

suas atividades diárias de acordo com noções básicas de higiene consideradas

necessárias naquele ambiente. Uma vez estando “em condições de trabalhar na

feira”, esses trabalhadores passavam a receber uma carteira da prefeitura que os

habilitava a exercerem o ofício.

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Essa medida tomada pelo poder público, além de representar uma

intervenção nas relações econômicas, expressava também já uma preocupação

com as práticas de higiene e disciplinarização na cidade. Talvez, a medida tomada

pela prefeitura municipal de Santo Antônio de Jesus já estivesse dentro do bojo das

mudanças e transformações pelas quais a cidade iria passar, iniciadas já no final da

década de 40. Essas questões iremos discutir e aprofundá-las no quarto capítulo.

Não era a ausência de inscrição ou matrícula que facilitava a vida dos

feirantes para colocar seu negócio na cidade. Augusto Laranjeira relembra, “lá era

muito apertado”, e na busca pela sobrevivência, a ocupação do espaço era

arquitetado aos arremendos financeiros de cada um. Havia muitas barracas de

verduras e de carnes, a maioria delas eram propriedades das mulheres que vendiam

verduras; já os homens, em sua maioria, eram donos de barracas que

comercializavam carne de sol, carne de sertão, “carne de boi”, fato76, etc. A feira de

Santo Antônio de Jesus era também conhecida por vender uma das melhores

carnes da região. Lá se encontrava uma boa carne de sertão vinda do Rio Grande

do Sul e uma boa carne do sol oriunda do povoado de Santo Antônio do Argüim,

município de Castro Alves, comercializada pelo feirante Bilau e considerada a

melhor carne de sol da cidade.

Falando sobre os aspectos a serem destacados num estudo sobre feira-livre,

o Antropólogo Luiz Mott ressalta que compete ao pesquisador investigar e descobrir

se existe uma lógica que está por traz e orienta a morfologia da feira, ou seja, a

distribuição dos vendedores pelo espaço urbano. Segundo Mott,

A lógica pode ser, por exemplo, deslocando mais para a periferia do espaço comercial aqueles produtos maiores e que exijam mais espaço, ou os que têm odor mais forte ou possam sujar os transeuntes no caso que estivessem nos locais de maior concentração demográfica (o coração da feira). Em muitos países da África do Norte, por exemplo, os vendedores de tintas (para tingir tapetes e tecidos), assim como os vendedores de couro, geralmente ficam nas periferias do mercado, exatamente devido à natureza poluente destas mercadorias.77

76 Fato – Vísceras de animais. O fato de boi e de porco era bastante consumido na região do Recôncavo Sul, sobretudo pelas camadas populares. 77 MOTT. Feiras e mercados… In: FERRETI, Sérgio. (Org.). Reeducando o Olhar… Op. Cit. p. 27.

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Na feira-livre de Santo Antônio de Jesus, as mercadorias que exalavam um

odor mais forte eram encontradas no meio da feira. No coração da feira-livre tanto se

encontrava vísceras (fato) de animais expostas aos fregueses, como os produtos de

couro comercializados por João Nunes dos Santos. No que diz respeito aos

produtos maiores, como a madeira, por exemplo, parece que existia uma lógica em

expor esse produto à venda em uma área mais “afastada” do centro da feira. Esse

produto geralmente era comercializado na Barganha que começava no final da rua

Monsenhor Francisco Manoel e se estendia pela rua Celestino Pimenta, ou nas suas

imediações. Tudo leva a crê que a morfologia da feira-livre de Santo Antônio de

Jesus obedecia a uma dinâmica específica, construída pelos próprios feirantes ao

sabor das circunstâncias.

João Nunes dos Santos relembra que trabalhava em frente ao Barracão e que

naquela época o povo vendia tudo ali dentro: feijão, farinha, rapadura, açúcar

preto… E havia as “barracas de fora” que eram feitas de restos de madeira e

cobertas com zinco, lona ou plásticos. Essas simples barracas disputavam “seu

lugar” na feira frente à forte imponência do Mercado Municipal, tradicionalmente

conhecido por todos como o Barracão da Farinha.

Para quem não tinha o privilégio de dispor de um “lugar que não fosse ao sol”,

ou seja, no barracão, considerado um espaço nobre pela administração pública,

pelos feirantes, freqüentadores e freqüentadoras da feira,78 a tarefa tornava-se

árdua. Com “ar” de quem vivenciava uma realidade dura naqueles dias quentes de

verão, Elza Froes lembra

Que cansava muito, chegava em casa cansada, a gente trabaiava ali Mirtinho, naquele tempo que a gente trabaiava, a barraca era coberta de zinco. A gente cozinhava batata e cozinhava banana o dia todinho, aí a gente tomava o dia todinho quentura de zinco do sol e quentura do fogo em baixo. Ave Maria! Era uma coisa triste, eu chegava em casa já chegava exasta. É brincadeira? É por isso que o povo diz:” Ah! Fulana, anda doente”. Não é não, a gente planta, planta, depois quando a gente fica mais velho é que a gente colhe.79

78 Mott, sobre essa questão, ressalta que numa pesquisa sobre feiras é fundamental perceber como os diferentes espaços são valorizados pela administração pública, pelos feirantes e compradores. Para ele o mercado é o espaço mais nobre porque sua cobertura protege compradores, vendedores e as mercadorias das intempéries. Ibid., p. 25. 79 Elza Froes da Fonseca. Depoimento citado.

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Tomar “quenturão nas pernas” de inverno a verão, segundo a depoente, com

excesso de exposição ao sol e ao fogo em dias de trabalho, contribuiu para as

doenças que tem hoje já na “melhor idade”. A maioria das barracas eram cobertas

com zinco para facilitar a sobrevivência, porque se usassem telhas de amianto, por

exemplo, tornaria impossível o deslocamento dessas barracas que, ao final do

expediente na feira-livre, teriam que ser novamente retiradas da praça e guardadas

até o dia da próxima feira. O processo de condução que consistia no arrastamento

dessas barracas, caso fossem cobertas com telha, poderia implicar em prejuízos

materiais para os feirantes.

As barracas cobertas de zinco eram transportadas em cima de rodas e seus

proprietários geralmente vendiam café, leite e produtos cozidos para a refeição

matinal e almoço de muita gente que para a cidade da Capela se deslocava. Já as

barracas de lona e de plásticos eram mais fáceis de serem locomovidas porque

eram armadas e desarmadas. Geralmente seus donos eram responsáveis pela

venda de carnes de porco e carnes em geral.

As barracas exerciam uma função social muito importante na feira, na cidade

e na vida, pois a venda de alimentos e refeições não era apenas uma alternativa de

almoço, por exemplo, para aqueles transeuntes e feirantes oriundos de várias

regiões que não levavam suas marmitas; como também, era fonte de renda e

sobrevivência para seus proprietários. Eram práticas que reproduziam a vida social.

Não era só o verão que, às vezes, dificultava a vida dos trabalhadores da

feira, o inverno também proporcionava condições adversas ao trabalho. Quando a

chuva começava a cair ainda cedo, antes desses trabalhadores iniciarem suas

caminhadas até a cidade, tinham de enfrentar muita lama e Chegavam na urbe já

“igiados”80, “mais tinha que vim, né?”. Vitalina Souza rememora que,

Quando a chuva começava na feira mesmo, tinha dia que não podia vendê nada porque a barraca era coberta com lona mais do lado, a chuva vinha de vultão assim, e aí molhava e não se fazia nada, vortava com tudo. É, um dia se saia pra ganhá outro dia pra perdê”.81

80 Termo amplamente utilizado pelas pessoas mais idosas desta região, empregado quando alguém toma muita chuva e fica trêmulo de frio. É comum ouvir a expressão: “fulano você está todo igiado”. 81 Vitalina Santos Souza. Depoimento citado.

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Vender na feira, muitas vezes, significava estar sujeito aos acasos que a vida

cotidiana podia lhes trazer. As condições climáticas, metaforizadas pelos feirantes

com as expressões “mau tempo” ou “bom tempo”, poderiam influenciar

decisivamente nas vendagens dos produtos, transformando os dias de feira, por

exemplo, num bom sábado ou num sábado ruim. Mais uma vez, o tempo da

natureza influía no andamento dos negócios dos feirantes na cidade.

Muitas dificuldades cruzavam os caminhos dos feirantes que iam trabalhar na

cidade da Capela. Para saná-las, eles forjavam maneiras de viver que facilitassem a

sobrevivência. Um desses problemas era onde deixar as barracas nos dias que não

havia feira, porque tornava-se difícil guardá-las em lugares que não fossem

próximos ao local de trabalho. Para solucionar este problema, arranjos eram feitos e

muitas vezes estes implicavam na construção de laços de amizades e

solidariedades entre os feirantes e aqueles que residiam na urbe.

Muitas dessas barracas ficavam alojadas, esperando chegar o dia de sábado,

ao lado da Igreja Matriz, na rua Monsenhor Francisco Manoel, porque era um lugar

vago, onde não havia residência. Vitalina Souza, ao falar das dificuldades para

guardar a barraca de sua mãe, relembra que

Tinha de buscá a barraca lá em baixo, onde hoje é o Alambique,82 desde quando a gente tinha barraca já tinha Alambique, agora a gente não botava no Alambique, botava assim de frente ao Alambique, numa casa de uma senhora.83

O depoimento de Vitalina leva a crer que certamente sua mãe estabeleceu

firmes laços de amizade com a senhora que guardava sua barraca todas as

semanas. O processo de deslocamento, impulsionado pela necessidade e pela

liberdade, trazia consigo valores e práticas culturais, de homens e mulheres do

campo, que eram reconstruídos na cidade e se manifestavam em diversas

dimensões da vida cotidiana quer seja dos habitantes da urbe, quer seja na vida

daqueles oriundos das zonas rurais. João do Couro nos coloca diante daquela

realidade ao relembrar que 82 O Alambique, de propriedade de Clomar Orrico, foi um dos primeiros lugares de grande porte a vender cachaça destilada na cidade, sobretudo para abastecer as vendas e butecos da zona rural e bares da cidade e de toda região. 83 Vitalina Santos Souza. Depoimento citado.

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Ah! Eu arrumava a barraca, guardava alguma coisa e o resto da feira que eu não vendia, eu guardava no fundo do açougue do finado Totonhe, né? E aí arrumava a barraca e guardava em argum lugá por ali e ia me embora pra roça.84

As relações sociais dos feirantes com seus pares ou dos feirantes com outros

indivíduos, no universo da feira e da cidade, só podem ser entendidas a partir dos

múltiplos aspectos que os envolviam. O grau de intimidade, a amizade ou a

indiferença, as relações familiares e de compadrio e a vizinhança, sentimentos

difíceis de serem contabilizados ou apreendidos, desdobravam-se em um conjunto

de relações pessoais e ações estratégicas que podem ser traduzidas como micro-

políticas desenvolvidas por esses sujeitos a fim de solucionar os problemas e as

dificuldades enfrentadas em seu dia-a-dia.

Muitas vezes, aquilo que para algumas pessoas hoje poderia não representar

problema algum ou não implicar em empecilhos maiores à vida cotidiana, como por

exemplo, guardar um caldeirão que servia para fazer o cafezinho ou uma amizade

que pudesse oferecer uma dormida em sua residência na cidade, tornava-se uma

tarefa que dependia das solidariedades e arranjos, desses homens e mulheres,

construídos na roça e reconstruídos na urbe. É emblemático o depoimento de Josué

Pereira sobre quando começou a trabalhar na feira:

Ah! Eu vendia, eu tinha uma barraquinha de café. Aí tinha uns caldeirão aí não levava não, deixava aqui, porque tinha uns conhecido aqui, parentes. Deixava aqui e só vinha mesmo sozinho. Trazia arguma coisa que tivesse de trazê, mas ficava aqui, tinha meu cunhado, tinha o parente dela (sua esposa dona Massú) que era chamado Badinho, casado com a tia dela. Morava aqui perto também, a gente vinha praqui, dormia por aqui, quando não tinha lugá assim, não queria dormir na barraca, a gente ia pra casa de Agapito, pra casa de Tonha, a tia dela (sua esposa), a gente ficava por aqui levando, levando a vida divagarinho até, até, ainda tá, até o dia que Deus quisé ainda.85

84 João Nunes dos Santos. Depoimento citado. 85 Josué Pereira dos Santos. Depoimento citado.

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A comunicação e a rede estabelecidas entre Josué Pereira e seu cunhado,

chamado Badinho, seu Agapito e Tonha, a tia de sua esposa, expressam com

exatidão a conjugação entre laços familiares e sentimentos profundos que se

mantinham entre aqueles que moravam em áreas rurais e aqueles que moravam em

áreas urbanas. Relações estas sustentadas por laços familiares e de amizades,

mas, talvez, também por afinidades de “status social”. Dessa forma, a feira era

constituída por relações de amizades que construíam e davam significados aos

lugares. E essas relações influíam no processo de inserção dos feirantes no

universo da urbe. Entre arranjos e solidariedades, cada um ia construindo seu

“lugar” na feira. Como bem lembrou o feirante Esmeraldo Nunes dos Santos, “na

feira cada um tinha seu lugá, era aqueles espaçozinho pequeno, era tudo apertado,

mais tinha, cada um tinha seu espaço”.86

Para Augusto Laranjeira, “a feira era aberta, ampla, geral, só tinha um

barracão pra todo mundo”. Conseguir um lugar para vender dentro do barracão da

Farinha era difícil, só poucos tinham esse privilégio, porque vender dentro do

Barracão era uma possibilidade de evitar se expor ao sol e à chuva. Para os menos

aquinhoados, expor suas mercadorias na pedra esparramadas pelo chão em panos

ou em folhas de bananeiras configuravam formas criativas de forjar alternativas de

sobrevivências no concorrido espaço da feira-livre na cidade da Capela. Alguns

ainda se utilizavam de caixotes, esteiras da costa, tábuas e tabuleiros para por suas

mercadorias à venda.

Muitas eram as dificuldades que os feirantes encontravam ao chegar na

cidade e, para superá-las, acertos e arranjos eram feitos em busca da

sobrevivência. Para aqueles que chegavam transportando suas mercadorias em

lombos de animais, uma outra preocupação era onde deixá-los durante o dia, até

chegar o final da tarde quando estariam de volta para casa. Alguns deixavam seus

jumentos e cavalos amarrados no meio da própria feira, outros os deixavam em

outras localidades próximas a este local, a exemplo das Ruas Monsenhor Francisco

Manoel e Rui Barbosa. Porém, para atender à grande demanda de animais, era

necessário um espaço maior que servisse de pasto para os animais daquelas

pessoas que iam para feira e ficariam de um dia para o outro. Logo, esses homens e

86 Depoimento de Esmeraldo Nunes dos Santos. Feirante, Avenida Juracy Magalhães nº 430 Santo Antônio de Jesus-Ba, 67 anos.

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mulheres não pouparam esforços em construir relações sociais que pudessem

assegurar um espaço apropriado e seguro que servisse de “abrigo” para seus

animais.

Ali não tinha asfalto, nem tinha casa. Ali era um sítio que era de Ernesto, né? Hoje justamente é ali onde é, (como é que diz?) onde está o Ginásio de Esportes. Aquilo ali era um sítio, era um terreno ali, era um matagal aquilo ali, aquilo ali era pasto. O pessoá vinha da feira, vinha pra feira, vinha da roça pra feira, ficá de um dia pro outro, chegava ali sortava o animal ali. Bom ali era uma pastaria, aquilo ali qué dizê, era cercado, tinha uma cancela ali, o pessoal entrava ali e sortava o animal ali, e pagava justamente uma “mensagenzinha” para deixá o animal ali de um dia pro outro.87

Parece que o senhor Ernesto, dono desse sítio, era mais complacente com os

feirantes e outros freqüentadores da feira-livre de Santo Antônio de Jesus, cobrando

preços mais baixos pelo “aluguel do pasto”. Diferentemente do senhor Marcelino, pai

de oito filhos e dono de grandes propriedades rurais, que criava galinha, porco,

carneiro, gados e cavalos num amplo terreno que tinha próximo à feira-livre (toda a

área da praça Duque de Caxias), e era conhecido na cidade como Marcelino

Miséria, por manter o hábito de controlar a alimentação de sua família se dirigindo

até à cozinha de sua casa todas as manhãs para cortar os dez pedaços de carne

que comporia o cardápio do casal e mais seus oito filhos e também por cobrar

preços altos às pessoas que deixavam seus animais em suas terras nos dias de

feira.

Marcelino Miséria cobrava preços mais altos e diferenciados pelas pastagens,

a depender do animal. Várias vezes animais de feirantes ficaram penhorados por

causa da falta de dinheiro para pagar o aluguel. Uma alternativa viável para os

feirantes, porém arriscada, era deixar seus animais no curral público que funcionava

num beco localizado nas imediações do Clube Palmeirópolis.

A ausência de água encanada na cidade constituía-se em outro problema

para os trabalhadores da feira. Para preparar as refeições, lavar copos, pratos e

panelas, matar a sede ou para o próprio asseio, pois as longas caminhadas faziam

com que chegassem à cidade com as pernas sujas, cinzentas e cheias de poeira, 87 Idem.

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para não falar repletas de lama em dias de chuva, a água da secular Fonte Santo

Antônio88 tornava-se um recurso natural essencial.

Localizada no centro da cidade, em áreas próximas da feira-livre, a Fonte

Santo Antônio assumia uma função muito importante porque dinamizava o viver,

fornecendo algo fundamental à sobrevivência humana. Feirantes, freqüentadores e

freqüentadoras da feira e a “gente boa” da cidade, através de seus empregados que

eram vistos carregando água para abastecer as residências, beneficiavam-se com a

água da fonte que fora batizada com o nome do padroeiro da cidade.

FIGURA 08 – FONTE SANTO ANTÔNIO

FONTE: Livro A Capela do Padre Mateus. (1942)

88 Fonte secular que se localiza na Rua Aurelino Sales.

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A Fonte Santo Antônio não era apenas lugar para se pegar água para

satisfazer as necessidades cotidianas. Ela era também lugar de congraçamento, de

troca de informação, canal de comunicação e sociabilidade, de troca de boatos e

fofocas, um significativo lugar de encontro das camadas mais populares.89

Quem podia, recorria a outros recursos para obter água de maneira mais fácil,

A gente pegava água numa cisterna de meu padrinho lá na feira pertinho da barraca da gente, as barata, Ave Maria! Tudo demolida dentro e a gente sabia que tinha de tomá daquela água, os velho e tudo.90

O relato de Vitalina Souza traduz bem a importância das relações de

compadrio entre os feirantes, porque eram também formas de relações sociais que

poderiam garantir benefícios para eles em momentos difíceis. Mas, na feira, as

relações de compadrio não eram firmadas apenas pela oficialidade da Igreja

Católica através do batizado de um filho ou outras formas tradicionais de firmar tal

relação na região.

Era comum, nesse ambiente de trabalho, mulheres e homens tratarem como

compadres e comadres as pessoas que eles gostavam e os tratavam bem. Na feira,

o compadrio era firmado a partir de laços de amizade e conhecimento, muitas vezes,

laços já construídos na roça. Dessa maneira, a ajuda mútua entre feirantes e não

feirantes penetrava o cotidiano da feira em várias esferas.91

Pequenos atos, como o empréstimo de uma faca mais amolada ou dar uma

“olhadinha” na barraca do vizinho quando este precisasse ir até o sanitário ou

resolver alguma coisa em outro espaço da feira, configuravam-se em atos de

generosidade que podiam desdobrar-se na construção de poderosos laços de

amizades e solidariedades, e até em futuras relações de compadrio entre feirantes e

os diversos sujeitos sociais que faziam parte daquele universo.

89 Aqui, inspiro-me nas idéias de Mary Del Priore quando afirma que a Igreja, a Praça, o cais e as Fontes de água eram lugares de congraçamento. In: Festa e Utopias no Brasil Colonial. São Paulo: Editora Brasiliense, 1994. p. 96. 90 Vitalina Souza Santos. Depoimento citado. 91 Na Região do Recôncavo Sul é Comum a construção de uma rede de sociabilidades estabelecida a partir de compadres de parto, de batismo, de casamento, de fogueira, etc.

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Para os feirantes, freqüentadores e freqüentadoras da feira satisfazerem suas

necessidades físico/biológicas era outro problema que tinham que enfrentar, porque

não existia na cidade um sistema público sanitário que viesse atender à população.

Dessa forma, era necessário improvisar lugares que pudessem servir para tal

objetivo e de preferência que estivessem localizados nas imediações da própria

feira. Ao relembrar as manhãs quando tinha que descer para pegar sua barraca na

casa da amiga de sua mãe, de frente o Alambique, dona Lina nos conta que

As pessoa fazia as necessidades ali, encostava do lado da berganha, oi quando a gente ia pra levá a barraca lá em baixo no Alambique a gente ia virando a cara pro lado e pro outro, porque cada um ta lá seu apertado tá lá abaixado. Quem quer ficá olhando? Ia passando.92

A improvisação de “lugares” na feira pode ser vista como uma grande

capacidade dos feirantes e freqüentadores de criar espaços “adequados” para cada

coisa e situação que se lhes apresentavam. A “Berganha” citada no relato de dona

Lina não servia apenas como lugar de depósito de algumas barracas e como

“sanitário público”, era também o nome do espaço onde aos sábados se vendia e

trocava várias coisas. Localizada entre o final da rua Monsenhor Francisco Manoel e

a rua Celestino Pimenta, na Barganha se vendia animais vivos como: galinhas,

perus, patos, cavalos, bois, dentre outros. Mas, para aqueles que no momento não

dispunham de soldo suficiente para comprar, a saída era barganhar93, sobretudo, os

animais que eram indispensáveis para o transporte de mercadorias e a própria

locomoção. Muitos foram aqueles que barganharam “seu burro velho por um burro

novo”. No espaço da Barganha múltiplas dimensões da feira se concretizavam.

Dessa maneira, feirantes, freqüentadores e freqüentadoras da feira-livre de

Santo Antônio de Jesus, através de suas práticas cotidianas, iam se apropriando da

cidade, dando sentido e significado a uma topografia que surgia condicionada à

labuta do dia-a-dia. As trajetórias individuais e coletivas destes atores mostram que

de várias maneiras as vivências do cenário rural, no qual estavam inseridos até

então, se projetaram sobre o universo urbano criando uma geografia a partir das

92 Vitalina Souza Santos. Depoimento citado. 93 O processo de barganhar consistia em trocar um produto mais velho por outro mais novo e o negociante, proprietário, que ficava com o produto mais novo devia dar uma diferença em dinheiro.

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experiências desses sujeitos e das condições que a cidade da Capela oferecia.

Eram homens e mulheres que definiram suas escolhas, alimentaram expectativas e

se deslocaram em busca de novas alternativas.

O que tentei mostrar até aqui foi como se deu o processo de criação de uma

geografia da feira-livre na cidade e a possibilidade de pensá-la como um “espaço de

produção” que não começava na feira propriamente dita. As ações que os vários

sujeitos desempenhavam antes de chegar até a feira, como por exemplo o ato de

acordar 2 horas da manhã para fazer o café que quebraria o jejum de muitos que

para lá se deslocavam ou as madrugadas de sexta feira que dona Maria Plácida

adentrava fazendo bolo, biscoitos e comida para vender na feira-livre, como veremos

adiante, constituíam-se em imperativos da vida concreta para refletir esse lugar

como um espaço construído a partir do entrecruzamento de vários “espaços” e

várias temporalidades, para não falar na relação do público e o privado, pelo menos

neste momento. Para dar continuidade ao nosso itinerário, iremos acompanhar

agora a atuação de alguns feirantes na feira-livre de Santo Antônio de Jesus e

demais feiras da Bahia.

2.4 – Feirantes em Cena.

Em 28 de setembro de 1948, o prefeito Antônio M. Fraga sancionou, no

município de Santo Antônio de Jesus, a Lei nº 5 que criava outra feira na sede do

município. Dentre os artigos que compunham esta lei estavam:

Artigo 1º – Fica criada a partir de 06 de outubro, outra feira na sede municipal.

Artigo 2º – O dia designado para realização da feira a que se refere o artigo supra é a quarta feira.

Parágrafo Único – quando acontecer que seja feriado o dia supra citado, será a feira transferida para o dia imediato, cumprindo ao fiscal geral dar disso aviso aos feirantes, na quarta feira anterior, repetindo no sábado o aviso.

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Artigo 3º – O prefeito fará expedir a necessária comunicação aos habitantes da zona rural, bem assim às prefeituras de Nazaré, São Miguel, Castro Alves e Conceição do Almeida.

Artigo 4º – Revogam-se as disposições em contrário.94

O crescimento da feira-livre no município de Santo Antônio de Jesus, já no

final da década de 40, não permitia mais que ela ocorresse apenas uma vez por

semana, aos sábados, e a iniciativa do poder público em designar também a quarta-

feira, como outro dia em que haveria feira no município, significava o aumento de

arrecadação para os cofres públicos. Essa medida explicita, também, uma dinâmica

social que contribuía cada vez mais para a presença do homem do campo na cidade

e o entrelaçamento destes com os habitantes da urbe.

Um balanço feito pelo jornal O Paládio, após a realização da primeira feira de

quarta-feira na cidade, diz que foi “uma medida muito acertada da prefeitura, de

mãos dadas com a edilidade”. O jornalista dizia também que outras cidades tinham

suas feiras realizadas em três dias durante a semana, como era o caso de Jequié e

Nazaré. Segundo ele, “tanto o lavrador quanto o negociante sentem-se satisfeitos,

como as famílias e o povo que encontram viveres com fartura, na semana, mais de

uma vez. A primeira feira do meio da semana mostrou que a idéia foi bem aceita por

gregos e troianos, já que houve movimento bem regular na Praça”.95

Na Região do Recôncavo Sul, existiam, e ainda existem, várias feiras que se

destacam na Bahia e no Brasil pelas suas particularidades e especificidades

culturais, algumas delas configurando-se como poderosos centros de atração

turísticas. Exemplos emblemáticos são a Feira do Porto, na cidade de Cachoeira,

que durante a noite de 23 e a madrugada do dia 24 de Junho, quando no Nordeste

se comemora o dia de São João, moradores locais e de cidades vizinhas, como São

Félix e Muritiba, para lá se deslocam à procura de produtos juninos como Coco

verde e seco, massa para bolo, amendoim, milho verde e laranjas; e a Feira de

Caxixis, na cidade de Nazaré, que se inicia na semana que antecede o dia da

Paixão de Cristo, atraindo muitos turistas, de vários lugares do Brasil e até do

94 Jornal O Paládio. Ano 47, 08 de outubro 1948. N. 2293 – APMSAJ. 95 Ibid.

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mundo, para apreciar e comprar imagens, potes de cerâmicas e artesanatos

produzidos em Najé e Coqueiros, distritos de Maragojipe.96

Segundo o historiador Charles D’Almeida Santana, muitas destas feiras

tornaram-se “especiais” por apresentarem peculiaridades ligadas ao horário, dia ou

período em que elas ocorrem, a exemplo da “Feira Noturna” em Cachoeira e a Feira

de Caxixis em Nazaré, ou quando estão associadas à comercialização do produto

de “maior destaque” em seu universo como é o caso da feira da Banana em

Maragojipe. A feira-livre de Santo Antônio de Jesus talvez não possa ser incluída

nessa “categoria”, mas, em toda região, várias cidades baianas e até em outros

estados, ela é conhecida como a feira que vende uma das melhores farinhas de

mandioca da Bahia.

Produzida não só em Santo Antônio de Jesus, mas também em várias

cidades da Região do Recôncavo Sul, como São Miguel das Matas, Dom Macedo

Costa, Conceição do Almeida, Laje e Mutuipe, comercializada dentro do Barracão

que se localizava no meio da feira, a farinha de mandioca exercia/exerce uma

importância material e simbólica na cidade. Mas, muitos outros produtos eram

comercializados na feira-livre de Santo Antônio de Jesus.

Estabelecido na feira-livre há mais de meio século, pai de dez filhos, João

Nunes dos Santos vendia esteiras de piri e de palhas de ouricuri, sacolas, cestas de

palhas, sandálias, cintos e chapéus de couro, selas, panacuns para animais,

espingardas, pilão e pratos de madeira para machucar temperos, cachimbos,

ratoeiras, bucha vegetal, abanos, espanadores, bainhas para facão, fogareiros de

alumínio, candeeiros, cabaças para artesanatos, estilingue, cambotas, peneiras,

colheres de pau, cabo para machados, ninhos de galinha e chapéu de palha. Este

último, importante acessório do universo cultural das populações das cidades do

Recôncavo Baiano, era utilizado não apenas para se proteger do “sol quente” em

dias de trabalho árduo na roça ou na cidade; em tempos em que as moças ainda

usavam seus vestidos de chitas e sortes na cabeça sua venda intensificava,

sobretudo no mês de junho quando em toda região se inicia o louvor e os festejos a

Santo Antônio, São João e São Pedro.

96 SANTANA. Dimensão histórico-cultural (cidades do Recôncavo). Op. Cit. Cap. III: Feiras e Mercados. p. 52. Sobre os trabalhadores do barro no Recôncavo da Bahia, ver o instigante trabalho de BARRETO, Virgínia Queiroz. Viver do barro: trabalho e cotidiano de oleiros. Maragogipinho-Bahia: 1970-1998. (Dissertação de mestrado) PUC-SP. 1999.

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Vendedor de vários utensílios domésticos para o lar de pessoas que residiam

tanto na roça como na cidade, acessórios para o vestuário e instrumentos de

trabalho para homens, mulheres e até crianças, os produtos comercializados por

esse feirante, na feira-livre da cidade da Capela, vinham de várias regiões da Bahia

e do Brasil. As sacolas de palhas e alguns produtos de couro vinham de

Pernambuco, de Feira de Santana e da cidade de Caldas do Jorro, na Bahia. As

espingardas vinham de Sergipe, panacuns eram trazidos da zona rural de Minas do

Onha, na cidade de Muniz Ferreira, outros produtos que ele negociava vinham de

Nilo Peçanha, Itaperoá, Região de Valença, dentre outras localidades. Ao falar sobre

a organização do espaço na feira e os produtos que eram comercializados por

conhecidos e amigos, João Nunes dos Santos relata que

Ali em frente ao Banco do Brasil mesmo tinha uma barraca que vendia fio de porco, cabresto, cebola, essas coisas, alho, essas coisas e a feira toda era assim, eu, aonde eu trabalhava, em frente o barracão, tinha Ioiô, o pai de Clovis do posto, que comprava pele de carneiro, por isso eu tenho esse nome de João do Couro, né? E aí eu aprendi a comprar pele de carneiro, quando Ioiô saiu eu fiquei comprando. Quando Ioiô saiu do ramo aí eu fiquei comprando.97

João do Couro comprava peles de carneiro com Ioiô, e quando esse deixou

de vender, João Nunes assumiu a responsabilidade de comercializar esse produto.

Ele ampliou os seus negócios comprando também peles de carneiro com outro

negociante chamado Domingo do Carneiro e vendia tais produtos na feira-livre de

Santo Antônio de Jesus e se dirigia todas as semanas para a cidade de Feira de

Santana para fornecer pele de carneiro a um outro comerciante denominado de

major Diógenes. No ramo de peles, João do Couro não comercializava apenas peles

de carneiro, ele vendia também peles de outros animais silvestres, a exemplo de

peles de jibóia, bastante vendida na região porque seu couro era utilizado para

fabricar tambores, atabaques e outros instrumentos musicais bastante usados nas

festas que ocorriam no Recôncavo da Bahia. João do Couro só parou de

comercializar estas peles quando o IBAMA começou persegui-lo, forçando-o a abrir

mão deste negócio.

97 João Nunes dos Santos. Depoimento citado.

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Além de exemplificar uma das formas como alguns feirantes iam incorporando

outros produtos em seus ramos de negócios, o relato de João Nunes dos Santos

nos remete a pensar nas idéias de Stuart Hall quando diz que

Movimento e migração são condições de definição sócio-histórica da humanidade. Novas características temporais e espaciais, que resultam na compressão de distâncias e de escalas temporais têm efeitos sobre as identidades culturais.98

Na cidade, e também em outras localidades, ninguém conhece o feirante pelo

nome de João Nunes dos Santos, referem-se a ele como “João do Couro”. Muitas

pessoas sabem quem ele é, sua família, onde mora e, sobretudo, onde está

localizada sua barraca na feira, atualmente, através dessa identificação.

Seguindo as reflexões de Hall, é possível perceber que o feirante João Nunes

dos Santos, em sua trajetória e experiência de vida, marcada por “movimentos e

migrações”, vivenciou um processo em que novas características foram

incorporadas a seu “Eu”. A partir do estreitamento da distância tempo/espaço,

campo/cidade, João Nunes dos Santos, ao passar a vender peles de carneiro,

passou também por um processo de construção/reconstrução de identidade a partir

dessa nova prática adquirida na urbe, agora incorporada ao seu universo material e

cultural.

A prática de comprar e vender peles de carneiro não significava apenas uma

simples ação de compra e venda de mercadorias. Assim, novos elementos eram

incorporados a partir de novas circunstâncias que faziam com que o feirante João

não fosse mais ou apenas João Nunes dos Santos, mas também, sobretudo no

ambiente da feira, João do Couro. Forma como ele mais se auto-representa na vida

cotidiana.

Vendedor de peças de cerâmicas, pratos denominados de caxixis, moringas e

potes para o armazenamento de água, jarros e potes para decoração doméstica,

98 HALL, Stuart. A identidade cultural na pós-modernidade. 8. ed. Rio de Janeiro: DP&A, 2003, p. 67-69.

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miudezas para enfeites de altares de santos, miaeiros,99 abanos, candeeiros, colher

de pau, pé para filtro, pé para panelas, vassouras, espanadores e outros produtos;

pai de seis filhos e há mais de 60 anos comercializando na feira livre de Santo

Antônio de Jesus, Augusto Soares da Silva vivenciou processo semelhante ao de

João do Couro. Ele começou vendendo aipim, batata-doce, abacaxi, laranja,

banana, dentre outras frutas e verduras que ele comprava e levava para vender na

feira. Quando decidiu ampliar os seus negócios, Augusto Laranjeira, como é

denominado e reconhecido, comprava limão, lima, abacate e grandes quantidades

de laranjas com João Silva no “Campo do Governo”100 e se deslocava da cidade de

Santo Antônio de Jesus para comercializar na feira de Água de Meninos em

Salvador.

Augusto Soares da Silva colocava suas mercadorias no trem, descarregava

no Porto, depois as conduzia até o navio que as transportava até a cidade de

Salvador quando uma carroça fazia o transporte de seus produtos para o local da

Feira de Água de Meninos101. Ele transportava sua carga no início da semana,

vendia e voltava para vender na feira-livre de Santo Antônio de Jesus no final de

semana e só deixou de trabalhar em Salvador quando a feira de Água de Meninos

“foi pelos ares” com o primeiro incêndio que ocorreu numa tarde de sábado, em 5 de

setembro de 1964, e o segundo que a deixou em cinzas quatro dias após ter

ocorrido o primeiro.102

Devido à grande quantidade de laranjas que ele vendia na cidade de Santo

Antônio de Jesus e em Salvador, capital da Bahia, seu nome oficial, dado pelos seus

pais, fora paulatinamente substituído pelo nome de “Augusto Laranjeira”, marca

registrada por feirantes, comerciantes, freqüentadores e freqüentadoras das feiras

de Santo Antônio de Jesus e de Água de Meninos na Bahia. Augusto Soares da

Silva, a partir dessas experiências, adquiriu uma nova identidade localizada num

tempo e num espaço.

99 Miaeiro é o nome dado a pequenas peças feitas de cerâmica, alumínio, dentre outros artigos, ocos em seu interior com uma cavidade que permiti a entrada de moedas. Na Região é comum muitas pessoas usá-lo como se fosse uma poupança caseira. 100 Campo do Governo é uma área que fica bem afastada da área central da cidade, nos anos 50, 60, era considerada rural e de propriedade do Governo Estadual. Esse campo era administrado por Dr. Oswaldo e consistia em uma área dedicada à plantação de frutas cítricas. Hoje essa área é de propriedade do Governo Federal, onde funciona a Universidade Federal do Recôncavo Baiano. 101 Sobre a Dinâmica da Feira de Água de Meninos, ver o interessante trabalho de PAIM. Op. Cit. 102 Ibid.; p.55-57.

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Além do tempo e o espaço das feiras livres, a associação com uma das

mercadorias que ele mais vendia – a laranja – somadas as relações sociais

estabelecidas com seus clientes, que assim o denominaram, constituíram-se em

coordenadas básicas para a criação de uma nova identidade também forjada num

espaço e tempo simbólicos.103

Outro feirante, que vivenciou experiência semelhante às de João Nunes dos

Santos e Augusto Soares da Silva, foi Esmeraldo Nunes dos Santos. Entre um olhar

de felicidade e um sorriso, Esmeraldo Nunes dos Santos relembra aqueles “bons

dias” que vivera na feira tendo como referência os “poucos concorrentes” homens

que negociavam as mesmas mercadorias do ramo no qual trabalhava. Seus

concorrentes eram um moço de nome Zé Félix, João Mota e um outro rapaz

denominado de Alfredo. Eles vendiam alho, cebola, tomate, algumas frutas, azeite,

entre outros produtos. A felicidade de Esmeraldo Nunes naquele momento devia-se

ao fato de que ele muitas vezes conseguia vender mais de cem sacos de cebolas

(com vinte quilos) por semana.

Assim como João Nunes e Augusto Soares, Esmeraldo Nunes se destacava

na feira-livre por ser um feirante que comercializava grandes quantidades de

verduras, principalmente a cebola. Devido a este fato, ele ficou conhecido na feira,

na cidade e em outras localidades como Esmeraldo da Cebola.

Vender em feiras da Bahia como a de Água de Meninos em Salvador, Feira

de Santana, dentre outras, não era tarefa das mais fáceis, muitos feirantes, ao

desempenharem suas atividades, estavam envolvidos no processo de compra e

venda de mercadorias que os fazia entrar em contato com outros contextos culturais

e territoriais. As “aventuras” do dia-a-dia poderiam deixar homens e mulheres

vulneráveis às armadilhas cotidianas que essa atividade, às vezes, lhes apregoava.

O incêndio na feira de Água de Meninos deixou um rastro de muitas pessoas feridas

e sofrimento, mas Augusto Laranjeira, por trabalhar no dia de sábado na feira-livre

de Santo Antônio de Jesus, não estava lá para assistir o desespero de feirantes e

consumidores, muitos deles feridos, “que ficaram anestesiados diante do ‘mar de

103 HALL. Op. Cit. p. 71.

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chamas’ que destruiu 1172 humildes barracas das 1574 ali instaladas, naquela tarde

de sol causticante”.104

João do Couro não tivera a mesma sorte que Augusto Laranjeira, ao

relembrar um daqueles dias de suas idas e vindas em que se deslocava para

comprar mercadorias na feira e na cidade de Feira de Santana, no Sertão da Bahia,

nos conta:

A gente sofria muito naquele tempo que ainda era em cima de caminhão, o caminhão carregado, era doze, doze pessoa, quinze pessoa em cima de uma carga, o carro já carregado, aquele pau-de-arara terríve, a gente arriscando a vida, era muito terrive isso, era. Eu mesmo arrisquei de morrer umas duas veiz na ladeira de Cachoeira, que o carro faltou frei na decida, finado Deca encostou o carro no…, Deus ajudou que encostou no barranco, que o carro parou já perto da caixa d’água pra caí num despinhadeiro terrive que tem ali, foi.105

O depoimento do feirante, em que ele narra um dos momentos mais

traumáticos de sua vida, mostra a dificuldade que ele tinha para ganhar a vida

naquele tempo. A sorte e o apego ao mundo espiritual nos momentos difíceis eram

condições imprescindíveis à manutenção da vida e da história, no permanente jogo

do viver e morrer. As lembranças do momento em que ele esteve na ambivalência

da existência – entre a vida e a morte – são testemunhas de que muitos feirantes

experimentaram os azares e aventuras das estradas.

A narrativa do feirante João do Couro ainda nos serve como um poderoso

elemento para se pensar no debate entre história e memória travado por Pierre

Nora. Ao problematizar os lugares da memória a partir da “história da própria

memória” e defender que memória não é sinônimo de história, ele afirma que os

lugares de memória,

São lugares, com efeito nos três sentidos da palavra, material, simbólico e funcional, simultaneamente, somente em graus diversos. Mesmo um lugar puramente funcional, como um manual de aula, um testamento, uma associação de antigos combatentes, só entra na categoria se for um ritual. Mesmo um

104 PAIM. Op. Cit. p. 55. 105 João Nunes dos Santos. Depoimento citado.

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minuto de silêncio, que parece o exemplo extremo de uma significação simbólica, é ao mesmo tempo o recorte material de uma unidade temporal e serve, periodicamente, para uma chamada concentrada da lembrança.106

As lembranças dos momentos em que ele esteve entre a vida e a morte

mostram-nos como as experiências vivenciadas em lugares que dão sentido à sua

trajetória e história de vida são também lugares mistos, híbridos e mutantes,

intimamente enlaçados de vida e morte, de tempo e de “eternidade”, numa espiral do

coletivo e do individual, do prosaico e do sagrado, do imóvel e do móvel.107 São

cruzamentos de tempo/espaço e história que podem ser facilmente traduzidos como

lugares de memória.

A busca pela sobrevivência também colocara dona Nita108 em condições de

perigo em feiras da Bahia. Nascida e criada na Jueirana, município de Santo Antônio

de Jesus, mãe de dois filhos, dona Nita, após seu casamento, tivera que

acompanhar seu marido até a cidade de Laje, no vale do Jiquiriçá. Após sua

separação, para ganhar a vida e sustentar seus filhos, ela começou a se deslocar

para beiras de rios para “rancar língua de vaca”109 e vender na feira livre de Santo

Antônio de Jesus. Para complementar sua renda, ela solicitava que seus primos

trouxessem da cidade de Nazaré das Farinhas um peixe denominado de Espetinho,

produto que ela vendia em grandes quantidades por ser barato e de grande gosto

popular na região.

Dona Nita não se contentara em viver em Santo Antônio de Jesus, resolveu

deixar sua filha sobre a responsabilidade do pai e do avô paterno, na cidade de Laje,

aceitando o convite de uma senhora, que morava na capital e, velha conhecida de

sua tia, que tinha barraca na feira-livre. Ao se deslocar para Salvador, dona Nita fora

acompanhada de seu filho mais velho para trabalhar como auxiliar, da senhora que

a levara, numa barraca instalada na feira de Água de Meninos, onde vendia café,

lanches e refeições para feirantes e freqüentadores daquela feira.

106 NORRA, Pierre. Entre memória e história: a problemática dos lugares. Projeto História, São Paulo, n. (10) Dez. 1993. PUC-SP. p. 21-22. 107 Ibid.; p. 22. 108 As práticas sociais e experiências de dona Nita que aparecem nesse trabalho, foram relembradas e narradas por sua prima, Vitalina Santos Souza. 109 Língua de Vaca é uma folha que se encontra em beiras de rios. Seu sabor é azedo e era utilizada para fazer ensopado com carne, sobretudo carne de sertão.

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Ao final do expediente, a dona da barraca se deslocava para sua residência

enquanto a feirante Nita e seu filho dormiam em cima das barracas ali instaladas.

Após certo tempo, dona Nita passara a sofrer as ações de “homens descarados” que

a assediava e tentava conduzi-la aos caminhos da prostituição. Os conflitos de

gênero também marcavam o cotidiano em feiras da Bahia. Embora isso não

acarretasse uma exclusão da mulher no ofício de ser feirante.

Voltando a história da feirante Nita, determinada, decidiu não trabalhar mais

com a senhora que a levara para Salvador e, graças a um amigo que era fiscal da

feira, dona Nita encontrou amparo para ela e seu filho. Segundo sua prima,

O fiscal ofereceu a ela um quartinho pra viver perto da feira de Água de Meninos. Mais ela passou muita dificuldade porque não tinha nada e ela e seu filho se enrolava com os vestidos e as roupas mesmo que vestia. Ela sofreu muito.110

É difícil medir o grau de dificuldades que muitos feirantes enfrentavam em sua

labuta cotidiana, nem imaginar se o sofrimento de homens e mulheres pudesse ser

minimizado e ou diferenciado a partir das relações de gêneros. É indiscutível que a

situação de dona Nita naquele momento, na condição de mulher, mãe, com dois

filhos para criar, sem casa própria para morar e ainda ter que utilizar as roupas do

próprio vestuário, como improvisação de lençóis e cobertores, não era nada fácil.

Mas, também, não era fácil para João do Couro enfrentar as estradas após os tristes

episódios que quase o levaram à óbito. Não pretendo aqui fazer uma história do

sofrimento de feirantes, mas, mostrar as várias nuanças que envolviam o cotidiano

desses sujeitos em feiras e cidades da Bahia.

A luta cotidiana pela sobrevivência, as práticas de compra e venda de

mercadorias, o trabalhar na feira possibilitavam que homens e mulheres efetivassem

contatos com várias cidades do interior da Bahia e com a capital. Dessa maneira, é

possível pensar a feira-livre como um local privilegiado de concentração de pessoas

e mercadorias, no qual portas e janelas da cultura de uma região ou localidade se

abrem sobre outras. As experiências vivenciadas por João do Couro, Augusto

Laranjeira, dona Nita, dentre outros, exemplificam o quanto esses homens e essas

110 Vitalina Santos Souza. Depoimento citado.

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mulheres, vulneráveis ou não aos acasos, interagiam com outros contextos

territoriais e também culturais, e essa rede de sociabilidades dos feirantes, que

saíam da zona rural, com os cidadãos da cidade poderia ir muito além dos limites

fronteiriços da Região do Recôncavo Sul.

Mas, as experiências destas personagens não se configuravam como regra

geral, no sentido em que as trajetórias e histórias de outros sujeitos desta pesquisa

caminham em direção contrária. Vendedor de “cafezinho”, cuja matéria-prima ele

mesmo plantava e colhia, Josué Pereira também comprava água na mão de seu

João da Garapa e revendia na feira. Além do cafezinho e da água, ele vendia doces,

cachaça, guaraná e sucos. Ao falar sobre as viagens que fazia, seu Zezeu relembra

que poucas vezes fora à Nazaré das Farinhas e que não gostava de viajar. Quando

indagado se tinha contatos com outras cidades como Salvador, a capital da Bahia,

por exemplo, ele nos revela:

Não, não, não, não (muitos risos), nesses lugar eu nunca ia não. Nunca gostei de viajá assim não. É, hoje eu tô indo pra Ilha por que meus menino tão lá, mais eu vim pra conhecer o que é Ilha de uns tempo pra cá, porque meus menino foi, meus menino foi, mais nunca tinha ido em Ilha. Se os menino não tá lá eu acho que eu morria, morria de velho e não ia na Ilha.111

Enquanto a prática de ser feirante permitia uma mobilidade a João do Couro e

Augusto Laranjeira, o mesmo não acontecia com seu Zezeu. Muitas vezes, esta

mobilidade estava associada às escolhas dos produtos que os feirantes

comercializavam na feira. Mas, poderia também, ser fruto de outras experiências que

não permitiam outros deslocamentos.

Os “nãos” enfatizados na narrativa de Josué Pereira, associados à sua risada,

levou-me a deduzir que era incogitável, a partir de suas experiências, ele conhecer a

Ilha de Itaparica e Salvador, capital do estado, nas décadas de 50 e 60. Na

concepção desse feirante, foi o trabalho árduo e duro na roça que o levou a

transformar-se em uma pessoa que não gostasse de viajar. Não era a questão de

medo do desconhecido, mas o fato de trabalhar demais na roça desde pequeno e

111 Josué Pereira dos Santos. Depoimento citado.

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não sair para “lugar algum”, condicionou-o a ser um homem que não gostava de

viajar.

Outra feirante que apenas comercializava seus produtos na feira-livre de

Santo Antônio de Jesus, e não viajava para outras cidades, pelo menos para

comercializar, era dona Maria Plácida. Mãe de oito filhos, para ganhar o pão de cada

dia ela comprava carne na própria feira da cidade e preparava refeições para vender

a feirantes e freqüentadores. Além de vender comidas, ela também comercializava

cafezinho e aguardente preparada com folhas de erva-doce.

Márcia Regina da Silva Paim, ao falar sobre o cardápio e as bebidas que

eram servidas nas feiras de salvador ressalta que

Nas feiras-livres, algumas doses de aguardente desciam como bálsamo. Abastecido o corpo, os feirantes tinha como agüentar a lida do trabalho num local insalubre, o enfrentamento com os prepostos municipais e outros revezes do cotidiano.112

Na região do Recôncavo Sul, a aguardente pura e a aguardente preparada

com folhas de erva-doce, erva-cidreira, guiné, jiló… Eram famosas e bastante

consumidas por várias pessoas. No universo da feira-livre, feirantes e

freqüentadores consumiam doses dessas bebidas ao longo do dia de trabalho. Era

comum, aos adeptos da aguardente, consumi-la como um aperitivo obedecendo à

um ritual que se repetia três vezes ao dia.

Tomada logo pela manhã o aperitivo assumia a função de ”abrir os caminhos”

e prepará-los para mais um dia de feira, ingerida antes do almoço servia para abrir o

apetite, uma dose no final da tarde poderia servir de consolo para driblar as

frustrações de um ruim dia de feira, comemorar um dia de sábado de grandes

vendagens, como também para prepará-los para o retorno para casa. Maria Plácida

vendia bastante o produto responsável em “abrir os caminhos” de muita gente na

feira-livre.

112 PAIM. Op. Cit. p. 83.

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Entretanto, o produto mais famoso dentre as mercadorias que dona Maria

Plácida comercializava era o bolo de puba113 que ela preparava em sua casa; de tão

saboroso, sua comercialização não se restringia apenas para alimentar feirantes e

freqüentadores na feira. Em uma certa ocasião, um dos maiores consumidores do

bolo de dona Maria Plácida, Manoel Anjo, famoso na cidade por vender fato e o

melhor fígado “ferventado” da feira, encomendou grandes quantidades de bolo de

puba para abrilhantar a festa de seu casamento.

Muitas vezes, no seio da própria família, as experiências no que diz respeito à

mobilidade dos feirantes se diversificavam de acordo às exigências das

circunstâncias. Ao lembrar as histórias de dificuldades que sua família passara em

busca da sobrevivência, Vitalina Souza nos conta:

Minha mãe tinha que guentar com oito filhos, aí meu irmão mais velho começou assim negociando, comprá farinha aqui na feira, levá pra Nazaré no animal, tinha vez que ele comprava assim três carga, porque três carga era seis sacos, comprava no dia de sábado para levá no dia de sexta-feira pra Nazaré, ele ia de pé tocando o animal lá da Jueirana pra Nazaré, mas tinha vez que as coisa lá apertava, começava tirando da farinha (muitos risos).114

Enquanto Maria Plácida e sua filha Vitalina se limitavam a comercializar seus

produtos na feira-livre de Santo Antônio de Jesus, seu filho mais velho mantinha

relações comerciais de compra e venda de farinha de mandioca, tanto nas feiras-

livres de Santo Antônio de Jesus como de Nazaré das Farinhas. Mesmo

compartilhando de experiências múltiplas e variadas, esses atores sociais

construíram e vivenciaram, a partir dos “seus mundos do trabalho”, uma rede inter-

territorial ou, porque não dizer, inter-regional que os conectava uns com os outros.

Raymond Williams, analisando as representações historicamente construídas

acerca das relações entre o campo e a cidade na Inglaterra, mostra-nos que no

campo ou na cidade as experiências históricas dos sujeitos são variadas não sendo

possível emoldurá-las em categorias. Não há um modo de ser rural e um modo de

ser citadino, nem tampouco uma polaridade entre ambos. Para ele “A vida do campo e

113 Puba é um tipo de massa extraída da mandioca e utilizada para fazer bolo. O bolo de Puba é bastante consumido na região do Recôncavo Sul. 114 Vitalina Santos Souza. Depoimento citado.

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da cidade é móvel e presente: move-se ao longo do tempo, através da história de uma

família e um povo; move-se em sentimentos e idéias através de uma rede de

relacionamentos e decisões”.115

Comparando as experiências vividas por feirantes como João do Couro,

Esmeraldo Nunes, Augusto Laranjeira e o filho de Maria Plácida que viajavam com

freqüência para outras cidades, com as experiências de Josué Pereira, Vitalina

Souza e a própria Maria Plácida, que não viajavam, mas saíam da zona rural para

vender na feira-livre de Santo Antônio de Jesus, percebe-se que as reflexões de

Raymond Willians podem ser transportadas para entender essa realidade porque

eram vidas que se moviam ao longo do tempo a partir de histórias de famílias, de

idéias e tomadas de atitudes.

Vendendo seus produtos na feira de Santo Antônio de Jesus, em Água de

Meninos em Salvador, na feira-livre de Nazaré ou na feira de Feira de Santana,

esses homens e mulheres, em busca da sobrevivência e outras alternativas de vida,

levaram um pouco de si e encenaram dimensões de sua cultura em várias feiras e

cidades da Bahia.

A trajetória de vida desses feirantes, associada ao projeto de melhorar de

vida, conduziu alguns deles a vivenciarem experiências múltiplas que, em alguns

casos, tornaram-se homens e mulheres feirantes em diferentes feiras baianas. No

próximo capítulo, centrarei minha análise, especificamente, na dinâmica da própria

feira-livre de Santo Antônio de Jesus, tentando abordá-la a partir dos vários sujeitos

sociais que a protagonizavam.

115 WILLIAMS. Op. Cit. p. 19.

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3 A Feira e Seus “Outros” Protagonistas.

3.1 Fiscais, Moleques e Mendigos.

3.2 Crianças, Mulheres. Outros Papéis.

3.3 O Tabaréu e a Tabaroa na Cidade.

3.4 O Preço, o Peso, a Pechincha e o Fiado.

3.5 Em Meio ao Trabalho, o Lazer.

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3.1 Fiscais, Moleques e Mendigos.

Cada vez que falamos, criamos de novo, e o que criamos é uma função da nossa linguagem e da nossa personalidade. (John Firth)

Ainda a pouco, a feirante Vitalina Souza dizia que, quando a “coisa apertava”,

sua mãe tirava para o sustento da família a própria farinha de mandioca que seria

comercializada por um dos seus filhos na feira-livre da cidade de Nazaré das

Farinhas. A falta de condições financeiras para o sustento da casa e da prole

justificava as variadas experiências, às quais se submetiam estes homens e

mulheres em feiras da Bahia. Todavia, um dos apertos mais freqüentes na vida dos

feirantes se dava no momento do encontro entre eles e os fiscais da feira.

As relações humanas, muitas vezes, implicam em alianças e conflitos, lutas

reais e simbólicas pela dominação do espaço individual e coletivo ou do espaço

público e privado. O que pretendemos analisar neste ponto são os possíveis

conflitos enfrentados pelos feirantes no ambiente de trabalho, as estratégias

utilizadas para solucioná-los e mostrar de que forma outros atores protagonizavam o

universo da feira-livre de Santo Antônio de Jesus construindo um território uno e

multifacetado.

Uma vez trabalhando na feira, os feirantes, na labuta cotidiana, se deparavam

com as ações dos fiscais, representantes do poder público, que cobravam os

impostos àqueles que vendiam seus produtos dentro do Barracão da farinha, em

barracas ou na pedra.

Mesmo no dia que eles não vendiam nada, que o movimento na feira era

considerado fraco, consistia em uma das obrigações dos feirantes pagarem os

impostos referentes às suas “posses” na feira. Para contornar tal situação, muitos

deles se utilizavam de vários recursos e habilidades a depender da postura e da

relação estabelecida entre feirantes e fiscais. Ao relembrar o perfil psicológico dos

fiscais que atuavam na feira-livre de Santo Antônio de Jesus, Vitalina Souza diz que

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Uns era rígido, queria o dinheiro de quarque jeito, agora tinha outro, é porque esqueço o nome dele, seu Inocêncio, seu Inocêncio era uma pessoa tão…, sei lá meu Deus do céu, ele morava aí nos Expedicionário, mais era uma pessoa tão delicada, uma pessoa tão boa. Ah! eu falava “ô seu Inocêncio, eu não tenho” e aí ele dizia “não tem nada não”, chegava dava um pedaço de bolo, comia e ia embora. (muitos risos)116

Além de Inocêncio Oliveira, Pautílio Correia Caldas, fora outro feirante que

cobrava impostos e mantinha relações sociais com os feirantes. Morador do final da

Avenida Juracy Magalhães, casado, pai de cinco filhas, seu Pautílio era proprietário

de uma venda onde comercializava produtos diversos, tais como: pão, cachaça,

vinho, fumo de corda, sabão em pedra, bolacha, açúcar, café, peixe salgado,

banana. Dentre outros, esses produtos eram comercializados aos moradores da

localidade e de áreas próximas como os residentes da Rua do Calabá e do bairro

Nossa Senhora das Graças. Nos dias de feira-livre em Santo Antônio de Jesus, ele

deixava o seu estabelecimento sobre a responsabilidade de sua esposa, dona

Benzinha, e se dirigia para desempenhar a sua função de cobrador de impostos

naquela localidade. Sobre a ação de seu Pautílio como fiscal na feira, Elza Froes

recorda:

Potilho era gente boa pra gente. Chegava lá dejunto da gente, ele vinha lá a gente dizia logo hoje ó (ela faz sinal com o dedo polegar apontando para baixo, dando a entender que naquele dia as vendas não foram boas, e que não tinha dinheiro para pagar o tributo), as veze encostava, mais tinha dia que nem encostava. Quando ele encostava ele vinha com o caderninho na mão, ele levava tudo notado, ele era viu… (a depoente faz um gesto com os olhos e balança sua cabeça, que na nossa cultura pode significar uma pessoa gente boa), dava um recibozinho a gente, tirava um recibo dava a gente e levava o outro, que nem tipo no jogo, né? Mas seu Potilho trabalhou muito naquela feira ali.117

Na memória dos feirantes, seu Pautílio aparece como uma figura emblemática

por seu comportamento cordial e compreensivo perante os trabalhadores da feira.

116 Vitalina Santos Souza. Depoimento citado. 117 Elza Froes da Fonseca. Depoimento citado.

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Macionília Froes lembra que esse fiscal a tratava muito bem e quando ela e seu

esposo, Josué Pereira dos Santos, não conseguiam “fazer um dia bom na feira” que

possibilitasse obter soldo suficiente para pagar o imposto, ela “levava o caso na

graça”. A feirante revelou que às vezes, seu Pautílio chegava em sua barraca,

tomava um cafezinho e ela não cobrava. Essa atitude contribuiu com a construção

de uma firme amizade entre ambos que a permitiu ir “levando e passando a vida

assim mesmo”.

Os momentos de tensão poderiam ser resolvidos com negociação. Para

negociar, os feirantes recorriam a recursos materiais que estavam a seu alcance

naquele momento, oferecendo aos fiscais um pedaço de bolo, um cafezinho ou

utilizavam à linguagem do corpo, como um sorriso no rosto, mesmo em um dia que

não trazia boas expectativas para a venda dos produtos, ou um olhar triste e

cabisbaixo, uma boa conversa ou, ainda, um tratamento educado e cordial. Esses

artifícios poderiam solucionar naquele momento o conflito evidente entre feirantes e

fiscais no ambiente da feira.

As vezes em que o fiscal Pautílio nem encostava-se nas barracas para cobrar

os impostos consistia em um ato ou ação de ajuda mútua de sujeitos sociais que,

mesmo em posições “antagônicas”, dissolviam barreiras a partir dos revezes do dia-

a-dia. Os feirantes souberam reverter a ordem mostrando que nem sempre as leis

penetram onde querem118. Neste jogo, os fiscais também subvertiam os poderes

constituídos não aplicando as normas e regras que diziam respeito à sua função.

Talvez, essas relações complexas entre fiscais e feirantes sejam melhor

compreendidas na perspectiva de Eduardo Yázigi quando nos põe a pensar em

muitas questões concernentes ao processo de construção de uma arqueologia

urbanística das calçadas. Para ele, “Quem tem alguma familiaridade com o que acontece

no espaço público sabe que na rua ninguém age sozinho, a solidariedade é condição sine-

qua-non da sobrevivência.119

Mas nem todos os fiscais comungavam de uma “certa cordialidade” como seu

Pautílio e seu Inocêncio. Muitos aplicavam os altos da lei perante os trabalhadores

118 Essa minha afirmação é dentro da perspectiva de Thompson quando argumenta que a lei pode estabelecer os limites tolerados pelos governantes; porém, na Inglaterra do século XVIII, ela não penetra nos lares rurais, não aparece nas preces das viúvas, não decora as paredes com ícones, nem dá forma à perspectiva de vida de cada um. THOMPSON. Op. Cit. p. 19. 119 YÁZIGI, Eduardo. O mundo das calçadas. 1. ed. São Paulo: Editora Imprensa Oficial de SP, 2000, p. 194.

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da feira. Em um dos dias difíceis de labuta, uma imagem que ficou guardada na

memória do feirante Josué Pereira dos Santos, foi aquela na qual o feirante seria

interpelado por um fiscal denominado de Abílio:

O pessoal pagava, pagava, era o jeito pagá porque se não pagasse, aí, ai meu véi, tinha um fiscal que… hum, hum (o depoente neste momento faz uma expressão de que era um fiscal severo e malvado). Tempo de festa, uma procissão que tivesse, ele não deixava barraca na Feira, no mei da rua, tinha que tirá pra quando a procissão chegá botá.120

Essa fala revela que esse fiscal cumpria “fidedignamente” com suas

obrigações. Ela revela também o poder do sagrado perante o poder comercial,

poderes esses que se cruzavam no espaço da feira-livre, pois os feirantes, na

concepção desse fiscal, além de cumprir com suas obrigações, deveriam respeitar o

tempo e o espaço do sagrado, representado na figura do glorioso Santo Antônio

padroeiro da cidade. O tempo do trabalho e o tempo da festa se entrecruzavam na

feira-livre da cidade da Capela.

Nesse embate muitos Augustos, Esmeraldos, Joãos, Macionílias, Elzas,

Marias, dentre outros feirantes, usaram suas habilidades, agilidades, persistências e

insistências para solucionar os conflitos que surgiam na feira. Em momentos

oportunos, muniam-se da sagacidade ou cordialidade; poderiam sorrir, mas também

proferiam impropérios, xingamentos, palavras de baixo calão. “Múltiplas maneiras

foram encontradas para que não fossem tão importunados pelos fiscalizadores

municipais na aplicação dos autos de infração”.121

Não eram só as ações dos fiscais que muitas vezes importunavam e traziam

conflitos à vida cotidiana dos feirantes na cidade. Envolvidos no vai-e-vem da feira,

meninos e meninas de idades variadas circulavam naquele espaço, imprimindo

cores e sabores que contribuíam à construção de um cenário multifacetado, onde

trabalho, alegria, tristeza, esperteza, peraltice e malandragem se mesclavam dando

um sentido ao mesmo tempo plural e singular na dinâmica da vida social dos vários

120 Josué Pereira dos Santos. Depoimento citado. 121 PAIM. Op. Cit. p. 35.

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atores que protagonizavam o “espetáculo da vida cotidiana” naquele teatro a céu

aberto.

Em suas andanças pelo universo da feira, esses meninos e meninas, quase

sempre denominados de moleques, “andavam tudo perturbando na feira, tudo sujo,

tudo lascadinho”. Era comum eles passarem perante as barracas que vendiam

carne, sobretudo charque, conhecida como carne de sertão na região, e pedirem

alguns pequenos pedaços aos feirantes que comercializavam este produto. Uma vez

sendo agraciados com o pedido, eles pegavam a carne de sertão e, mesmo sem

lavá-la, jogava dentro do fogareiro a carvão e pediam “Ô minha tia, me dê aí um

bocadinho de farinha” para complementar o cardápio. Quando as tias não tinham

como disponibilizar a farinha, eles saíam em direção ao Barracão com a expectativa

de lá conseguir com mais facilidade.

Muitos destes meninos e meninas que estavam na faixa etária entre os seis a

quatorze anos de idade tornavam-se fregueses na arte de “roubar” e fazer peraltices

no universo da feira-livre de Santo Antônio de Jesus. Em uma certa manhã de

sábado, um dos irmãos de dona Lina, chamado Alfredo Pereira dos Santos, que

vendia farinha de mandioca na feira-livre, fora surpreendido por um menino que

aparentava ter aproximadamente 11 anos de idade. Chegando ao seu

estabelecimento, pediu-lhe um pouco de farinha de mandioca. Sem resmungar, o

proprietário deste comércio cedeu-lhe uma porção de farinha conforme fora feito o

pedido. O moleque saiu e por qualquer outro motivo que não conseguimos precisar

neste momento, resolveu retornar ao vendedor de farinha e pedir-lhes mais uma vez

outra porção do produto. Inconformado com aquela situação, o vendedor negou-lhe

o segundo pedido dizendo que não ia mais lhe dar farinha de mandioca. Insatisfeito

com a resposta e a decisão do proprietário, o moleque apanhou fezes de cavalo e

jogou dentro do saco de farinha do comerciante, saindo correndo pelo meio da feira.

O vendedor foi obrigado a jogar no lixo mais de meio saco da farinha de mandioca,

de um dos fardos que ele estava comercializando naquele dia. Esta situação o

deixara muito chateado durante todo aquele dia de sábado.122

Não se sabe o motivo pelo qual o moleque retornou à barraca de Alfredo

Pereira dos Santos para pedir-lhe mais uma porção de farinha. Especulações à

parte, talvez ele estivesse com muita fome e precisasse de mais farinha para 122 Vitalina Santos Souza. Depoimento citado.

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rechear sua refeição, tivesse que dividir o seu prato com um amigo, colega ou

familiares, ou ainda fosse um garoto que de porção em porção conseguia litros de

farinha para levar para casa. O que podemos afirmar desse episódio é que de fato,

naquela circunstância, relações de poder estavam em jogo, e quem saíra em

desvantagem naquele momento fora o vendedor da farinha de mandioca.

Não foi só Alfredo Pereira dos Santos que sofrera com as peraltices de

meninos e meninas na feira, sua mãe, Maria Plácida, vendedora de refeições, cujo

cardápio variava entre feijão, arroz, ensopado de carne, galinha caipira e cozido com

verduras, mantinha uma clientela composta de feirantes, freqüentadores,

carregadores, vendedores ambulantes e outros sujeitos sociais que completavam o

quadro dos protagonistas da feira-livre na cidade, também sofrera com as peraltices.

Um dos moleques, já bastante conhecido na feira, abusara da confiança

firmada entre ele e dona Maria Plácida e, após a compra de um prato de comida,

“desapareceu das vistas” da proprietária da barraca. O molecote sumiu da feira e

todos haviam pensado que ele estivesse morto. Mas, para a surpresa de todos, “já

um rapaizão”, o moleque, um certo dia, voltou, e se dirigiu ao estabelecimento de

dona Maria Plácida para honrar o seu débito.123

Muitos destes meninos e meninas “especializaram-se” na “arte de roubar na

feira”. Eles costumavam roubar produtos e mercadorias consideradas de “pequeno

porte” como: cachos de bananas, melancias, fogareiros, chapéus, sandálias de

couro, e principalmente, animais como perus, porcos e galinhas. Essas eram

consideradas também como uma mercadoria de valor acessível a todos, sobretudo

às camadas mais populares, e eram furtadas com grande freqüência no universo da

feira, daí esses meninos tornarem-se conhecidos como “ladrões de galinha”. Esta

prática conferia-lhes identidades que se reconstruíam/construíam no calor das

práticas sociais que se desenrolavam na labuta e nos embates do dia-a-dia.

Os “ladrões de galinha”, geralmente, roubavam os produtos e os vendiam na

própria feira livre da cidade, na “feirinha” que havia na Praça Félix Gaspar ou nas

imediações da Estação Ferroviária, onde estavam instaladas barracas que vendiam

comidas e bebidas e, ao chão, vendia-se animais como porcos, galos e galinhas.124

Outros, após o furto, se dirigiam até a estação ferroviária de Santo Antônio de Jesus

123 Idem. 124 Jornal O Paládio. Ano 49, 3 de Novembro de 1950, nº 2357. APMSAJ.

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e pegavam um trem até Nazaré das farinhas para comercializar o produto roubado

na feira-livre daquela cidade.

As aventuras destes “moleques” não acabavam aí. Em tempos em que a

cidade era assistida com a segurança de poucos policiais, entravam em cena os

soldados Firmino, considerado um homem severo e rigoroso, Armando e Balduino,

conhecido por todos na cidade por ser um negão e ter um pé grande, que iam em

busca destes “gatunos” e, uma vez pegando-os, desferiam muitos tapas, raspavam-

lhes a cabeça e os conduziam até a cadeia da cidade.

Walter Fraga Filho, ao tratar das peripécias das crianças desassistidas e

desamparadas na Bahia do século XIX, mais especificamente em Salvador e

algumas cidades do Recôncavo Baiano, afirma:

A vadiagem infanto-juvenil no século XIX, estava muito estritamente relacionada à existência de centenas de meninos e meninas que mesmo ligados às famílias, mestre de ofício ou senhores (no caso de Escravo), faziam das ruas o espaço de trabalho, de divertimentos, de peraltices de jogos e brincadeiras… […] Ao longo do período, as autoridades Baianas sempre se queixariam da grande quantidade de rapazes peraltas e moleques que se assenhoreavam das vias públicas com atitudes irreverentes e irrequietas… […] A sociedade escravista não oferecia grandes alternativas de ascensão para geração mais nova de livres e libertos, especialmente para os meninos negros.125

A literatura Baiana também se preocupou em registrar o cotidiano de meninos

e meninas nas ruas, no cais, nos bairros a beira da praia e em outros espaços da

“velha Bahia”, nas primeiras décadas do século XX.126 As peraltices desses meninos

e meninas foram também registradas por Márcia Regina da Silva Paim, estudando o

cotidiano nas feiras de Salvador entre o período de 1964-1973 detectou que,

125 FRAGA, Walter. Mendigos, moleques e vadios na Bahia do século XIX. Salvador – Bahia: Hucitec/EDUFBA. 1996, p. 111-112. 126 O escritor Jorge Amado, em sua obra Capitães de Areia. 96ª edição. Rio de Janeiro: Record, 1999, p. 3-15, retrata as peraltices destes meninos e meninas na Bahia, sobretudo os roubos que eles praticavam. Esta obra é interessante também porque o autor mostra como essas crianças são profundos conhecedores da cidade e, apesar de excluídos e marginalizados, eles exercem uma grande relação de poder naquele universo.

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Não só mulheres e homens circulavam à beira do cais, envolvidos ou não no vai-e-vem da Feira do Sete. Meninos e meninas de idades variadas, que direta ou indiretamente estavam vinculados aos feirantes, também compunham o cenário daquela feira, vez por outra, chamados de moleques ou capitães da areia”.127

Ao tratarem de contextos históricos diferenciados e enfatizarem a composição

étnico-racial afro-brasileira destes moleques em suas análises, tanto as reflexões de

Walter Fraga Filho, referentes ao século XIX, quanto às do escritor Jorge Amado,

que narra as peraltices e a presença destes meninos e meninas nas décadas iniciais

do século XX na Bahia e, ainda as reflexões de Márcia Regina da Silva, servem-nos

de inspiração para pensar o cotidiano desses moleques em feiras da cidade de

Salvador e outras existentes no interior da Bahia. Essas análises são fundamentais

para percebermos o grande conhecimento que esses meninos tinham da cidade, e o

poder que este conhecimento lhes proporcionava nas relações sociais.

As imagens descritas por estes estudiosos, principalmente pelo historiador

Walter Fraga, sobretudo quando percebe o espaço das ruas como locais de

divertimento, de peraltices, jogos, brincadeiras e também de trabalho, encontra

situação semelhante nas ruas da cidade e da feira-livre de Santo Antônio de Jesus

nas décadas de 50 e 60 do século XX.

A cidade de Santo Antônio de Jesus acostumava atrair muitas pessoas

desasssistidas, oriundas de várias localidades que engrossavam a fileira dos

mendigos, pedintes e vadios que circulavam durante o dia e a noite na urbe, e que

tinha como local privilegiado para desempenhar suas práticas o espaço da feira-livre

e suas imediações. Eram homens, mulheres e crianças, em sua maioria afro-

descendentes, que se lançavam à sorte da caridade e benevolência dos sujeitos

praticantes dessa urbe.

O feirante Augusto Laranjeira lembra que a cidade naquela época era repleta

de pedintes que perambulavam por toda a feira pedindo esmola a todos que por lá

passavam. O feirante João do Couro narra que, quando seu ramo de negócios

aumentou os lucros, ele colocou outra barraca e vendia carne de sertão comprada

no Mercado do Ouro, localizado perto do Moinho da Bahia em Salvador e peixe

127 PAIM. Op. Cit. p.31.

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salgado, principalmente Bacalhau, comprado em Feira de Santana, na feira de Água

de Meninos, na capital e no armazém de Almerindo em Santo Antônio de Jesus.

Ele enfatiza que era grande a quantidade de pessoas desassistidas naquela

cidade e relembra uma das cenas que ficara imortalizada em sua memória. Ele

lembra que fazia-se uma fila de gente em frente à sua nova barraca pedindo carne

e, às vezes, o próprio pedinte analisava aquela situação e dizia: “Seu João eu ia lhe

pedi um pedaço de carne também, mas…”128 O próprio pedinte tinha consciência

daquela realidade.

João do Couro analisa essa questão dizendo que ela era causada pelo fato

de que essas pessoas não tinham como sobreviver, não existia aposentadoria, o

povo da roça era tratado como tabaréu, um Zé ninguém, daí a única saída seria a

mendicância.129 Ele confessa que concedia um pedaço de carne às pessoas que

chegavam pedindo em sua barraca, mas, para muitos feirantes, elas eram mais uns

importunos em suas vidas.

3.2 – Crianças, Mulheres. Outros Papéis.

Não era só com divertimento, peraltices e roubos que meninos e meninas

imprimiam suas marcas indeléveis no espaço da feira-livre. Na luta pela

sobrevivência, com o objetivo de contribuir com seus pais, na manutenção da

despesa familiar, muitos deles trabalhavam como carregadores de mercadorias

como cachos de banana, cestas e sacolas, das donas de casa, repletas com os

mais variados produtos alimentícios, carregavam madeiras, sacos de carvão e

diversos produtos que também poderiam ser comprados em casas e armazéns que

comercializavam várias mercadorias no entorno da feira-livre da cidade.

Algumas destas personagens ganhavam seus “trocados” carregando os

produtos dos clientes na mão, na cabeça ou nas próprias costas. Outros recorriam à

128 Sobre a performance de mendigos, vadios e pedintes na cidade da Capela, nas décadas em questão, ver o interessante trabalho: SANTOS, Denílson Lessa dos. Nas encruzilhadas da cura: crenças, saberes e diferentes práticas curativas – Santo Antônio de Jesus – Recôncavo Sul – Bahia (1940-1980). Dissertação de Mestrado. Salvador-Ba. UFBA, 2004, p.50-56. 129 João Nunes dos Santos. Depoimento citado.

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criatividade e à improvisação, e fabricavam seu próprio carro para transportar as

compras e mercadorias daqueles que contratavam seus serviços. Para produzir

estes carros, os moleques solicitavam das casas, armazéns e outras pessoas que

vendiam latas de gás ou querosene, os caixotes nos quais estes produtos eram

embalados nas empresas para serem transportados. Quando conseguiam tais

caixotes, eles colocavam quatro rodas, amarravam uma corda na frente e o carro

estava pronto para servir de instrumento de trabalho para aqueles mais

desassistidos ganharem o pão de cada dia.

Outra saída encontrada para estes menores andarilhos, que perambulavam

pela cidade e pretendiam auxiliar seus pais na dura empreitada da sobrevivência, foi

recorrer ao ofício de vendedores ambulantes. Carregando cestas e malas, que

portavam as mais variadas mercadorias que variavam de candeeiros, panelas,

fogareiros, doces, miudezas em geral a produtos diversos, muitos meninos e

meninas saíam pela feira, pelas diversas ruas da cidade e muitos deles se dirigiam à

zona rural com o propósito de conseguir vender seus produtos.

Meninos e meninas, muitas vezes chamados de moleques e molecotes por

feirantes, freqüentadores e freqüentadoras da feira-livre, para superar as

dificuldades impostas na vida cotidiana souberam criar situações que garantissem a

sobrevivência naquele momento. Ora criando estratégias de resistência, ora

estabelecendo noções do que é ou pode ser certo ou errado, conseguiram driblar as

condições adversas, e entre as peraltices e o trabalho, a alegria e a tristeza,

construíram formas efetivas de conduzir suas vidas ao sabor das circunstâncias.

Sempre suspeitos e vigiados por aqueles que acreditavam serem eles

meninos e meninas responsáveis pelos furtos e delitos que ocorriam na feira e em

suas imediações, eles tiveram que enfrentar os múltiplos olhares de desconfiança

que pairavam sobre aquele ambiente. Muitas vezes a repressão se antecipava

cruzando o cotidiano desses meninos e meninas por meio do “rabo de olho”.

Nesse momento uma ressalva torna-se necessária nessa discussão. Não

eram apenas os moleques que eram suspeitos de roubos e enfrentavam os olhares

de desconfiança na feira-livre. Em algumas situações, os próprios feirantes eram

quem praticavam furtos ou forjavam maneiras de ludibriar seus pares para obter

vantagens. Isso ocorria porque muitos feirantes guardavam suas “coisas e

mercadorias tudo juntinho no mesmo lugar”. E na hora de retirar seus pertences,

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havia a possibilidade de um pegar “as coisas” do outro, enganados ou não. Vale a

pena reproduzir o relato de Vitalina Souza sobre a atuação de uma das Marias mais

conhecida da feira-livre de Santo Antônio de Jesus:

Aquela Maria, tinha uma Maria Roxa aqui em cima, Ave Maria! Aquela mulher, meu Deus do céu! Prá roubá panela e fugareiro (muitos risos) ô meu Deus! Ave Maria! Ela era feirante. Ela passava nas barracas olhando (a depoente encena com gestos a performance da referida feirante) hum… hum… parece que é aquele, e olhando, aí a minha mãe, que era uma pessoa assim muito( a depoente faz gesto de que era uma pessoa muito tranqüila e amigável) perguntava, “é o que comade?” ela dizia assim: “Não, foi o meu fogareiro que sumiu, pegaram meu fugareiro”, aí minha mãe dizia “eu mesmo não fui, os meu tá aqui, ói”.130

Maria Roxa era uma mulher gorda, usava umas argolas grandes de ouro na

orelha, gostava de sambar e acostumava viajar para a cidade de Bom Jesus da

Lapa para cumprir as suas obrigações religiosas. Ela de tão preta parecia africana,

ficou conhecida na feira como Maria Roxa e foi uma das primeiras mulheres na

cidade a mergulhar no ofício de feirante. Ao fazer referência à atuação dessa mulher

naquele universo, a narrativa de Vitalina Souza abre a possibilidade à uma dupla

interpretação.

Primeiro, o relato evidencia a existência de uma relação “afetiva” entre as

feirantes Maria Plácida e Maria Roxa pelo próprio tratamento de comadre que uma

se referia à outra. Todavia, é possível pensar que essa relação amistosa entre as

Marias poderia ser abalada pela desconfiança em relação ao furto de um “pequeno

utensílio”.

A segunda análise nos leva a afirmar que além de descrever e encenar a

performance de uma das mulheres “mais temidas” ou respeitadas na feira-livre da

cidade, o relato abre perspectivas para observar o quanto a memória pode

possibilitar uma sensação de presença daqueles que já não podem estar mais

presentes. Ao encenar a forma como esta mulher se apresentava na feira, eu

(entrevistador) consegui imaginar e construir “uma imagem” de como poderia ser

esta mulher denominada de Maria Roxa e sua atuação em meio àquele palco.

130 Vitalina Santos Souza. Depoimento citado.

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Dessa maneira, parece-me instigante pensar que ao falar de si mesma e das

experiências de sua família, Vitalina Souza traz à luz sombras vivas de uma

memória que enriquece a história. Mostra ainda o quanto essas pessoas mortas

estão vivas na memória, nos lugares, na história e ainda se relaciona vivazmente

com o presente.131

De fato, a atuação de Maria Roxa ficou marcada na memória de vários

feirantes e ex-feirantes. Mas, “bem comportadas” ou “mal comportadas”, a atuação

de muitas outras mulheres como dona Filó, dona Dêga e dona Joana ficaram

imortalizadas na memória individual e coletiva, como mulheres trabalhadeiras que

“invadiram” os espaços da rua e conduziram seus próprios negócios.

Quando não estavam à frente do comércio, algumas delas dividiam o papel

de “ser feirante” com seus maridos. Quando decidiu ser feirante, Josué Pereira

lembra que sua mulher ajudou-lhe muito na feira e, às vezes, eles iam juntos para

aquele local de trabalho. Em outros momentos, ele se deslocava mais cedo,

enquanto sua esposa para lá se dirigia horas mais tarde. Longe de serem meras

coadjuvantes, as mulheres tinham que usar de muitas habilidades para superar os

desafios impostos em seu cotidiano quase sempre marcado pelos desafios de

desempenhar várias funções que lhes são/foram reservadas ou atribuídas

historicamente.

Responsável pela realização das tarefas do lar, cuidar dos filhos ou ainda

estar envolvida nas atividades de semeadura, plantio e colheita de café na roça,

Macionília Froes, conhecida como dona Massú, engrossava a fileira da forte

presença feminina que naquele espaço atuava. As experiências de dona Macionília

Froes retratam o cotidiano de muitas mulheres que, certamente na esperança de

dias melhores para elas e suas famílias, usaram e abusaram da resistência e

paciência para conseguir seus propósitos.

Outra mulher que acompanhava seu esposo e o ajudava na feira foi Albertina

Paixão Silva. Mãe de seis filhos, ela costumava acompanhar seu marido e auxiliá-lo

131 O autor José Ricardo afirma que “falando de mim mesmo falo de um amigo, do que nós dois vivemos juntos, um dia. Falo de outro, de outros, outras pessoas, alguns ainda vivos, pelo que sei depois do que aconteceu. Outros mortos. Mas, em mim, na minha memória agora, alguns – vivos ou mortos, lá – estão ainda tão vivos e acessos, que é quase como se estivessem aqui”. A memória cúmplice. In: Memória Sertão: cenários, cenas, pessoas e gestos nos Sertões de João Guimarães Rosa e de Manuelzão. (Org.) Carlos Rodrigues Brandão. São Paulo: Editora Cone Sul/UNIUBE, 1998, p. 171.

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na venda dos produtos de cerâmica que ele comercializava. Quando ia para a

cidade, ela estava sempre acompanhada de sua filha caçula, Vilma da Paixão Silva,

por não se sentir segura em deixá-la em casa na companhia de seus outros cincos

irmãos mais velhos.

Vilma, que começou a vender com seus pais aos oito anos de idade e ainda

hoje trabalha com seu pai nesta mesma atividade, iniciou seu aprendizado no

mundo do trabalho vendendo caxixis. A decisão de deixar os outros filhos em casa,

se justificava pelo fato de que o feirante Augusto Laranjeira e sua esposa

perceberam que os outros filhos podiam cuidar uns dos outros, fazer as atividades

domésticas e, também, se “virar” para preparar as refeições.

Experiência semelhante à de Vilma foi vivenciada por Vitalina Souza, filha

caçula de uma família composta por oito filhos, ela ainda criança acompanhava sua

mãe nas longas caminhadas até chegar à feira livre da cidade. Uma das primeiras

experiências no mundo do trabalho na cidade consistia inicialmente em ajudar sua

mãe a lavar e limpar as carnes e descascar verduras para preparar as refeições que

ela vendia para feirantes, freqüentadores, freqüentadoras, vendedores ambulantes,

carregadores e outras categorias sociais que transitavam naquele ambiente. Além

dessa atividade, Vitalina ainda auxiliava sua mãe na lavagem das louças utilizadas

após as refeições e por fim, quando o sino da Igreja Matriz badalava indicando doze

horas, ela e seu irmão Neném assumiam a função de entregadores de refeições em

vários pontos da feira.

Já outras mulheres, a exemplo de Maria Pascoal dos Santos, esposa de

Esmeraldo da Cebola e Laura Fernandes Souza, esposa de João do Couro,

dedicavam-se aos afazeres domésticos, a cuidar dos filhos e desempenhar algumas

atividades associadas à agricultura e a criação de animais como galinhas e porcos

na roça. Apesar de não trabalharem na feira com seus respectivos maridos, elas em

alguns momentos protagonizavam aquele espaço como freqüentadoras que para lá

se dirigiam para fazer suas feiras e matarem a saudade de seus maridos. Um cheiro

no cangote poderia deixar os dias de feiras mais saborosos.

Mas, mesmo não trabalhando na feira, os acasos da vida cotidiana poderiam

reverter a ordem retirando essas mulheres dos seus lares, forçando-as a assumirem

a direção dos negócios de seus maridos. Essa experiência era vivida por Laura

Fernandes Souza nos dias que seu esposo, João do Couro, viajava para comprar

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mercadorias em outras localidades. Além disso, ela já dirigiu os negócios do seu

marido num intervalo de tempo maior quando o feirante sofreu um acidente em que

fraturou a costela e ela fora obrigada a permanecer na gerência do comércio por

mais de trinta dias consecutivos.

Famosas ou anônimas, a atuação destas mulheres no “palco principal” da

vida cotidiana, desconstrói a idéia que persiste ainda no imaginário de algumas

pessoas de que, nos anos cinqüenta e sessenta, “lugar de mulher” era em casa e na

cozinha. Elas nunca estiveram apenas dentro de seus lares, num mundo isolado,

sempre foram presenças ativas no contexto histórico das relações campo-cidade.

Nos bastidores ou no palco principal, muitas foram as Marias, as Dêgas, as Filós, as

Marcionílias, as Lauras, dentre outras, que enfrentavam, disputavam e desfrutavam

daquele cenário marcado por uma forte presença masculina. Emoldurar essas

mulheres como sujeitos presos à uma única realidade social é correr o risco de

perder de vista “o bonde da história”.

Outras protagonistas que movimentavam a feira e firmaram seu “lugar” na

memória individual ou coletiva foram as mulheres que trabalhavam em diversos

armazéns de fumo em Santo Antônio de Jesus. Era comum na cidade a imagem

destas mulheres, em sua maioria negras, que se dirigiam até aos armazéns para

pegar os fardos de fumo e transportá-los até suas casas. Chegando em suas

residências, elas se empenhavam no desenvolvimento de suas funções que

consistiam em catar o fumo, separar as folhas de primeira e segunda qualidade e

depois manocá-lo.132 Concluído o trabalho, elas retornavam aos armazéns para

entregar o produto. Aos sábados, tanto as mulheres que trabalhavam nos armazéns,

quanto aquelas que desempenhavam as atividades em suas casas, recebiam o

pagamento de seus salários. Esmeraldo Nunes dos Santos relembra que

Quando dava de quatro pra cinco horas, o pessoal recebia aquele dinheiro e tinha aquele movimento na cidade. No dia de

132 A atividade de produzir o fumo é composta de várias etapas: catar, separar as folhas de 1ª, 2ª e 3ª qualidade e por fim manocar. Esta última etapa consiste no processo de enrolar as folhas transformando o produto final em fumo. Para maiores informações ver: SILVA, Elizabete Rodrigues da. Fazer charutos: uma atividade feminina. Dissertação de Mestrado. Salvador: UFBA. 2001. Caps. I e II.

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sábado de tarde, todo mundo recebia aquele dinheiro ali e todo mundo ia pra feira fazer suas feiras.133

Investigando a atividade de fazer charutos no Recôncavo da Bahia, Elizabete

Rodrigues da Silva adentra o cotidiano das mulheres charuteiras dessa região

descortinando sua importância naquele cenário. Ao falar como as charuteiras

ganhavam a vida, ela considera que

As charuteiras, como parte significativa e integrante deste cenário, não foram, apenas, aquelas que viveram o momento da ascensão econômica da indústria fumageira, trabalhando e recebendo um salário, foram também as mulheres que trabalharam fora de casa num tempo em que eram concebidas como donas de casa e que, paradoxalmente, a maioria delas sustentaram a casa e o próprio marido, fazendo charutos nas fábricas ou fora delas. Neste sentido, é que o salário representava para elas um instrumento de poder econômico e social na informalidade dos papéis que exerciam perante a família e a sociedade.134

A presença das charuteiras era marcante no Recôncavo fumageiro, como

também no Recôncavo mandioqueiro ou da subsistência. Em Santo Antônio de

Jesus, as charuteiras, conhecidas na cidade da Capela como as “mulheres dos

armazéns”, movimentavam toda a cidade comprando nas quitandas que existiam em

pontas de ruas, nas casas de comércio do centro e, sobretudo, na feira-livre. Eram

mulheres que muitas vezes assumiam a chefia da família e aumentavam a renda da

cidade. Elas não ganhavam a vida sozinhas, porque seus salários também

ajudavam os feirantes a ganharem a vida. A profissão de charuteira conferia poder

econômico e social a várias mulheres na cidade.

Os “pequenos-homens” filhos de feirantes com presença ativa e marcante

naquele universo também povoaram a memória individual e coletiva dos sujeitos que

por lá caminhavam. Eram meninos com idade entre 8 e 12 anos, geralmente eram o

primeiro e o segundo filho, que se deslocavam de suas residências para auxiliar

seus pais a vender mercadorias na feira. Antônio Carlos Souza dos santos, 49 anos

de idade, hoje morador da cidade do Rio de Janeiro, acostumava acompanhar seu

133 Esmeraldo Nunes dos Santos. Depoimento citado. 134 SILVA. Op. Cit. p. 146-147.

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pai, João do Couro, junto ao seu irmão Carlitos Souza dos Santos para vender na

feira. Enquanto Antônio Carlos ficava comercializando os produtos na barraca da

família, Carlitos muitas vezes era o encarregado de ir buscar, em seu carro feito de

madeira, as peles, sobretudo, a pele de carneiro que seu pai comprava na mão dos

fornecedores. Nos dias que não estava na feira, ele exercia a atividade de plantar,

colher e cuidar da lavoura de seu pai num terreno que ele arrendara em áreas

afastadas da cidade.

A história do trabalho começa quando o homem buscou os meios de

satisfazer suas necessidades – a produção da vida material. Essa busca se

reproduz historicamente em toda ação humana para que o homem possa continuar

sobrevivendo.135 De fato, o trabalho surge nas memórias dos feirantes como algo

que explica e dá sentido à vida, não apenas material, mas como um “espaço” que

possibilita uma composição do ser, dando suporte à construção de uma dignidade,

integridade humana, honra, noções de ética, aprendizado e ainda, permite o

estabelecimento de laços de solidariedade, amizade e ajuda mútua, e muitas vezes,

coesão familiar.

Muitos desses feirantes não tiveram oportunidades de estudar por vários

motivos, um dentre eles era a primordialidade do trabalho ainda na roça. “O pai não

botou a gente na escola nem pra olhá, só era pra arrastá a enxada”.136 A expressão

dessa feirante, carregada de sentimentos negativos, aponta o drama social de

muitos analfabetos e um sentimento de “não pertencimento” ao universo que a

sociedade constituiu como seu único lugar – o do alfabetismo.137 Talvez essa

realidade e as representações que Macionília Froes fez de si própria constituam a

invenção de um futuro que ela criara para os seu filhos. Quando ela e seu esposo

chegaram à cidade não mediram esforços para colocar seus filhos para estudar.

Estudo e trabalho tornavam-se elementos constitutivos e basilares da invenção de

um futuro. Ao falar de como seus filhos ingressaram no mundo do trabalho, Josué

recorda:

135 OLIVEIRA, Carlos Roberto de. História do trabalho. 2. ed. São Paulo: Ática, 1991, p. 5 136 Macionília Froes dos Santos. Depoimento citado. 137 MONTENEGRO, Antônio Torres. A invenção do futuro. Projeto História. São Paulo, n.16, fev. 1998, p. 191.

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Meus meninos mesmo tudo trabaiô na barraca, no broco, cada semana levava um, cada semana levava um, cada semana levava um, até acostumaru, arrumaru trabaio e saiu foi trabaiá e por aqui tô até hoje. Graças a Deus! 138

Enquanto o estudo dos filhos aparecia como um elemento novo no universo

dos feirantes a ser transmitido pela escola oficial, o trabalho na feira desdobrava-se

em uma tradição cujos ensinamentos eram transmitidos de pai para filho. Esses

ensinamentos não consistiam apenas na arte de vender mercadorias, muitos dos

valores morais, crenças, noções de ética, cordialidade, resistência, honestidade e

respeito aos mais idosos eram ali exercitados. Não se pode ocultar que muitos

desses ensinamentos começavam ainda na infância lá na roça, mas também não

pode se desprezar que o espaço da feira tornava-se um grande laboratório de

experiência humana na inserção social dos seus filhos. Na feira-livre também se

ensinava e se aprendia noções de cidadania.

3.3 O Tabaréu e a Tabaroa na Cidade.

Vários homens e mulheres que iam da roça para a cidade comercializar na

feira, muitas vezes comprar mercadorias nos armazéns, lojas de roupas e sapatos,

acertar negócios referentes arrendamentos e vendas de posses de terras, rever

parentes e amigos, desfrutar dos encantos e desilusões da cidade ou utilizar os

serviços que eram oferecidos no entorno da feira-livre, foram denominados de

tabaréu, principalmente por aqueles que moravam na zona urbana. Chamar esses

homens e mulheres de tabaréu e tabaroas não era caso esporádico, a freqüência

com que muitas pessoas se referiam a eles dessa maneira contribuiu para a

construção de um “padrão” no qual a maioria das pessoas oriundas de localidades

rurais foram/eram incluídas na “categoria” de tabaréu como um elemento

diferenciador por aqueles que acreditavam estarem em graus mais elevados de

cultura e civilidade. Matutos, caipiras, jecas: certamente era com esses olhos que,

138 Josué Pereira dos Santos. Depoimento citado.

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em 1950, os 10 milhões de citadinos viam os outros 41 milhões de brasileiros que

moravam no campo e nos vilarejos.139

Em outra passagem deste capítulo, o feirante João do Couro ressaltou em

sua narrativa que “o povo da roça era tratado como tabaréu, um zé ninguém” (p. 92).

A identificação e a construção de um referencial de ser tabaréu, muitas vezes

endossada pela expressão “tabaréu da roça”, chamou atenção também de um jornal

local nos anos 40.

Entre os preconceitos mais generalizados, encontra-se o de que o camponês, o homem da roça, o que vive da lavoura, mais ou menos longe dos centros em que supõem-se a civilização já fez progressos, é, em regra, um homem inculto, retrogrado, possuidor das piores qualidades morais e espirituais entre as quais avultam a pusilanimidade, a rotina e até a falta de senso comum e de vergonha! Tornou-se pejorativo o vocábulo tabaréu, sinônimo de desprezível e de outros qualificativos indesejáveis. É de irritar, verem-se os pelintras das cidades, criaturas muita vez sem classificação nem profissão definida, maltratarem os pobres homens do campo com expressões pesadas. Entretanto, se se fizesse um cotejo entre os méritos do tal homem da cidade e do campo, ver-se-ia que o tabaréu é muito mais homem; é figura de maior mérito, é contribuinte de muito mais importância para a economia nacional que o tal citadino bilontra, possivelmente alcoólatra, parasita, jogador, sem família, sem moralidade, inculto, presunçoso, inútil, quando não nocivo a coletividade. O homem do campo, pode ser, e realmente é, na maioria dos casos pouco culto, pouco letrado […].140

Pela extensão da matéria, que preferimos não reproduzi-la na integra neste

momento, publicada no Jornal O Paládio, pode-se presumir o caráter generalizante

que o articulista atribui à questão. Não sei se o Jornal O Paládio, constitui-se um

referencial para se pensar o Brasil, mas parece-me que na cidade existia uma

tentativa de estigmatizar homens e mulheres oriundos de áreas rurais.

O autor desta matéria, ao denunciar o preconceito e o tratamento desprezível,

segundo ele, já generalizado, também incorre nas mesmas armadilhas quando

estigmatiza os cidadãos viventes da cidade com adjetivos exclusivamente negativos.

139 MELLO, João Manuel de; NOVAIS, Fernando A. Capitalismo tardio e sociabilidade moderna. In: SCHWARCZ, Lilia Moritz. História da vida privada: contraste da intimidade contemporânea. São Paulo: Companhia das Letras, 1998, v.4. p. 574. 140 Jornal O Paládio. Ano 44, 28 de Março de 1945, nº 2.164. APMSAJ.

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Ao tempo em que, mesmo tentando defender o homem do campo, exaltando as

suas qualidades morais, o autor, ao falar que o homem da roça é “pouco culto e

pouco letrado”, deixa transparecer suas noções de cultura e saber, baseado em

padrões elitistas e hierarquizantes, parecendo desconhecer outras formas de ser

culto e dos saberes peculiares aos homens e mulheres do campo.

Thompsom, ao analisar os costumes e a cultura no século XVIII na Inglaterra,

mostra os elementos relacionais entre a cultura plebéia e a cultura patrícia,

contribuindo no sentido de apresentar elementos intrínsecos e extrínsecos para cada

um destes setores. Mas o autor enfatiza as possibilidades de interações e distrações

próprias do termo. Dentre outras formas, o autor conceitua cultura como:

[…] Um conjunto de diferentes recursos em que há sempre troca entre o oral e o escrito, o dominante e o subordinado, a aldeia e a metrópole: É uma arena de elementos conflitivos, que apenas somente sobre uma pressão imperiosa – por exemplo, o nacionalismo, a consciência de classe ou a ortodoxia religiosa predominante – assume a forma de um sistema, e na verdade, o próprio termo cultura, com sua invocação confortável de um consenso, pode distrair nossa atenção das contradições sociais e culturais, das fraturas e oposições existentes dentro do conjunto.141

As idéias de Thompsom nos induzem a perceber que a cidade era uma arena

de conflitos, e que, ao abrir as suas portas para os diversos sujeitos sociais que para

lá se dirigiam, abria também as janelas para os diversos modos de viver dos homens

e mulheres do campo e da cidade. Campo de contradições sociais e culturais, das

fraturas e oposições como bem salientou o autor, o espaço da feira-livre na cidade

configurava-se como um espaço de trocas culturais e simbólicas que ora interagiam,

ora marcavam as diferenças de acordo com a complexidade das relações, as

múltiplas artimanhas, negociações e conflitos que eram teatralizados em cada

momento.

Longe de serem vítimas, como deixou transparecer o autor da matéria, os

tabaréus na cidade não estavam abandonados, sabiam garantir a existência da

própria vida, sabiam se amparar e, na luta cotidiana, souberam conduzir sua própria

vida. Augusto Laranjeira era freqüentemente chamado de tabaréu no universo da 141 THOMPSOM. Costumes em Comum… Op. Cit. p. 17.

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feira por aqueles que eram da cidade, mas ele não dava atenção, a saída que ele

encontrava para resistir àquelas “formas de relacionamento” era abrindo a boca e

desferindo um largo sorriso. Ele contou que “enquanto eles me chamava de tabaréu,

eu ia vendendo meus negócio”.

Outro que não se incomodava em ser chamado de tabaréu era Josué Pereira,

ele relembra que naquele tempo quase não se “conhecia ninguém de fora, só se

conhecia assim quando chegava na feira mesmo”. Para ele, tabaréu eram as

pessoas que passavam e não falavam umas com as outras por não se conhecerem,

daí o apelido de tabaréu da roça. E, às vezes, entre os próprios feirantes um

chamava o outro de tabaréu em tom de brincadeira e amizade. Mas, alguns

feirantes, como é o caso de Vitalina dos Santos e Elza Froes, se sentiam muito

incomodadas quando eram chamadas de “Tabaroas da roça”. Entre resistências

silenciosas ou explícitas, muitas vezes elas reagiram àquela forma como eram

também tratadas.

Por outro lado, no imaginário do autor da matéria do jornal ainda permanece a

idéia de que há uma dicotomia rígida entre o espaço e as relações sociais entre o

campo e cidade. Talvez ainda permanecesse na concepção do escritor, a

representação bucólica do campo como o lugar da inocência, da tranqüilidade, o

lugar da vida simples e singela, do homem limpo e puro ainda não contaminado com

os prazeres e as transgressões da cidade. Ele parece ver o campo como um lugar

da paz, livre de conflitos, o contra-ponto da urbe.

Já a cidade, ele representa como o lugar da esperteza, da malandragem, dos

vícios, do agito, das impurezas, do prazer e das transgressões. O lugar anti-bucólico

da mundanidade e da ambição. Nesta perspectiva, acredito ser mais interessante

superar qualquer visão dicotômica e simplista sobre as relações campo-cidade

partindo do princípio de que, por exemplo, a inocência e o vício podem tanto estar

na cidade quanto no campo. Portanto, as idéias de Raymod Williamns mais uma vez

nos servem de inspiração quando nos ensinam a perceber as novas conexões no

contexto de toda ordem urbana e do sistema humano que a cidade concentra e

encarna. É importante perceber como a experiência desses feirantes foi criando

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novos tipos de ordem possíveis, novos tipos de unidades humanas na experiência

transformadora da cidade.142

O estigma de tabaréu às vezes usado para identificar homens e mulheres da

roça, abre possibilidades e perspectivas de se pensar na construção e disseminação

desse estereótipo e seus efeitos na vida cotidiana daqueles que viviam na roça bem

como daqueles que viviam na cidade. Segundo Bhabha, “O estereótipo é um modo de

representação complexo, ambivalente e contraditório, ansioso na mesma proporção em que

é afirmativo”.143

Dessa forma, só é possível entender o estigma de tabaréu a partir das

relações efetivas entre homens e mulheres da roça e da urbe. O estereótipo de

tabaréu algumas vezes atribuído às pessoas oriundas de zonas rurais, afirmava e

negava signos e identidades, poderia reconhecer ou repudiar diferenças históricas e

culturais. A depender das circunstâncias, o estereótipo de tabaréu poderia

representar vantagens ou desvantagens tanto para o homem do campo como para o

homem da cidade. Pensar esses homens e mulheres apenas como tabaréus

significa simplificar uma realidade e perder de vista outras dimensões da realidade,

conforme sugere Homi Bhabha,

O estereótipo não é uma simplificação porque é uma falsa representação de uma dada realidade. É uma simplificação porque é uma forma presa, fixa, de representação que, ao negar o jogo da diferença (que a negação através do outro permite), constitui um problema para a representação do sujeito em significações de relações psíquicas e sociais.144

O homem da roça não era “apenas o tabaréu”. Engessá-los e representá-los

apenas dessa forma é tentar subjugar seus saberes, seus poderes e a

potencialidade de sua cultura. O desejo de uma “origem pura”, diferenciada,

daqueles que se destinavam a disseminar estereótipos perante aqueles homens e

mulheres oriundos de zonas rurais, na prática se esvaía nas fantasias sociais.

Muitos dos citadinos que disseminavam esses estereótipos, pareciam esquecer as

origens de seus pais, avós e bisavós.

142 WILLIAMS. Op. Cit. Caps. XIV e XV. 143 BHABHA. Op. Cit. p. 110. 144 Ibid.; p. 117.

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As histórias e as experiências desses protagonistas, descortina a riqueza de

um cotidiano fortemente embalado por diferentes modos e maneiras de viver, de agir

e de pensar. Famosos ou anônimos, feirantes, freqüentadores, freqüentadoras,

vendedores ambulantes, moleques, crianças, policiais, ladrões de galinha, dentre

outros grupos sociais, encenaram aqueles dias de feira na cidade transformando-a

num território dos encontros. Entre o labor e peraltices, truculências e aventuras,

espertezas e malandragens, punições e fugas, acasos e desafios, encontros e

desencontros, estes homens e mulheres inventaram um espaço histórico cujo

grande aprendizado era saber conduzir a própria vida.

3.4 O Preço, o Peso, a Pechincha e o Fiado.

Na cidade da Capela e também na região, muitos dos moradores tinham uma

dieta alimentar composta por frutas como laranja, abacate, jaca, melancia, banana,

caju, manga dentre outras; verduras como abóbora, jiló, batata inglesa, chuchu,

pepino, quiabo, repolho, cenoura e alimentos outros como: aipim, fruta-pão e batata-

doce. Esses produtos eram bastante vendidos em decorrência do preço que, nos

anos 50, variava entre “5 tostões a 6 tostões um cacho de banana, que era banana

prá daná” e “5 tostões de aipim que dava mais de dois quilos”.145

Entretanto, muitos produtos que eram comercializados na feira-livre de Santo

Antônio de Jesus não eram tão acessíveis à população de modo geral, sobretudo às

camadas mais populares, em decorrência da alta dos preços. Um desses produtos

era a madeira cortada e os cabos de madeira que as pessoas compravam para

construir a cumeeira de suas casas. Porém, não era apenas a madeira que estava

com o preço “pela hora da morte”. O Jornal o Paládio, de 19 de Março de 1952,

trazia a seguinte matéria para seus leitores:

145 Augusto Soares da Silva. Depoimento citado.

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Carestia da vida.

Nas feiras, aos sábados, nesta cidade, os gêneros procurados pelo povo estão pela hora da morte, isto há muitas semanas já. Não dêscem de preço. Ao contrario sobem sempre. Farinha de mandioca, alimento predileto do povo, 60 cruzeiros uma quarta, isto é, 15 litros! Dito o preço da farinha o leitor tirará ilação. Poderá julgar quanto os demais gêneros estão custando.146

Produto predileto do povo, como anunciou o jornal, a farinha de mandioca era

um dos alimentos mais vendidos na feira-livre da cidade por ser um produto que

mais freqüentemente, compunha a dieta alimentar das populações da Região do

Recôncavo Sul e de várias cidades do interior da Bahia. Talvez por este motivo,

esse produto servisse como referencial para questionar o elevado preço dos outros

produtos em determinadas ocasiões.

Outro componente importante que não podia faltar na mesa de homens e

mulheres do campo ou da cidade era a carne. Em solidariedade a sua “amiga

inseparável”, a farinha, a “carne verde” tornava-se assunto no cotidiano da cidade

em decorrência dos altos preços estabelecidos por magarefes e outras pessoas que

a comercializavam. No dia 31 de julho de 1951, o jornal O Paládio tornou público:

O Problema do bife.

A Prefeitura fez publicar em boletins a nota que aqui transcrevemos: “O Prefeito Municipal desta cidade, levando em consideração que, os preços de Cr$ 7,00 e Cr$ 9,00 estabelecido para a venda de carne verde, não lograram solucionar o problema, dado os expedientes usados pelos magarefes, resolveu estabelecer a partir de hoje o preço de Cr$ 7,50 para o corte geral. Santo Antônio de Jesus, 25 de Julho de 1951.147

Além do preço da carne estar pela “hora da morte”, pelo teor da matéria

parece que não havia uma unanimidade entre os magarefes em relação ao preço da

mercadoria. A falta de consenso entre eles repercutia no bolso dos consumidores,

obrigando o prefeito municipal, Antônio Magalhães Fraga, a tomar a medida de fixar

o preço desse produto.

146 Jornal O Paládio. Ano 51, 19 de março de 1952. Nº 2.391 – APMSAJ. 147 Jornal O Paládio. Ano 50, 31 de julho de 1951, Nº 2374 – APMSAJ.

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Dentre os magarefes que vendiam carne fresca nos açougues que estavam

localizados no entorno da feira-livre, um deles era Arthur de Abreu, dono de açougue

e também delegado da cidade, acostumava dividir seu tempo com as atividades de

cortar carne e atender as queixas sobre furtos, desordens, dentre outros delitos

cometidos na cidade. O delegado também destinava algumas horas de seu tempo

na companhia de seu filho Lourival, um “caboclo bonito”, famoso por suas

peripécias, aventuras e desventuras com várias moças da região.

Um outro magarefe conhecido na cidade era denominado de Zé Diabo. Era

um mulato claro, casado com uma mulher branca e gorda chamada Cota. Ele era

respeitado e temido no Mutum, local onde morava, e na cidade, por sua fama de

ruim e perverso. Esse magarefe, mesmo casado, mantinha uma relação amorosa

com Lurdes, filha de Zé Capenga, que alcovitava o romance de sua filha com o

açougueiro em troca da carne que ele acostumava lhe ofertar. Zé Diabo parece que

era um dos magarefes mais famoso da cidade naqueles tempos e o que lhe rendeu

também essa fama de “perverso e ruim” fora o fato de vender carne a preços

bastante altos.

Em meio ao conflito entre consumidores, magarefes e o poder público por

causa do elevado preço da carne, alternativas se abriam com a oferta de outros

gêneros alimentícios, comercializados a preços mais baixos e que poderiam

substituir a carne fresca.

A Granja São Gonçalo de propriedade do senhor Vaz Barreto, vulgo

Barretinho, em 18 de fevereiro de 1951, publicou um anúncio no Jornal o Detetive

que dizia fornecer seus produtos pelos melhores preços e ainda entregava em

domicílio. A propaganda dizia:

Galinha Rodes – Cr$ 8,00, frangos novos para cozinha – a Cr$ 6,00 e a Cr$ 7,00. Frangos de raça para (reprodução) a Cr$ 30,00. Ovos frescos a Cr$ 4,50. Ovos velhos, de Cr$ 9,00 e Cr$ 12,00 a dúzia. Pintos de um dia – Cr$ 5,00 a dúzia. Perus –Cr$ 9,00 a Cr$ 14,00.148

148 Jornal O Detetive. Santo Antônio de Jesus. 18 de fevereiro de 1951. Nº 181 ano 4. AP.

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Comparando os preços, os gêneros alimentícios, (o frango, os ovos e até o

peru) estavam com preços mais acessíveis do que a carne fresca, tornando-se

alternativas mais viáveis para o cardápio alimentar das camadas populares.

Voltando à questão da intervenção do poder público, não fora só no preço da

carne que os legisladores foram obrigados a intervir. As muitas reclamações de

fregueses e freguesas, que freqüentavam aquele universo com assiduidade,

forçavam o poder público a colocar em suas pautas assuntos como: preços de

mercadoria, pesos e modalidades de venda dos produtos a serem comercializados.

Em Ata da Câmara Municipal, do dia 16 de outubro de 1959, consta que pediu

a palavra o vereador Atanagildo Tourinho que, ao se pronunciar, divergiu sobre a

indicação do vereador Edvaldo Oliveira que pedia a proibição de vendagem por

atacado na feira antes das dez horas, votando favorável sobre a fiscalização de

pesos, balanças e medidas.149

Ao pedir a proibição de vendagem das mercadorias dos feirantes em atacado

até as dez horas, pode se supor que o vereador Edvaldo Oliveira estivesse

preocupado com o abastecimento da população local, da região e daqueles que

para lá se dirigiam em busca de seus produtos e mercadorias. Entretanto, na

condição de representante do poder legislativo na cidade, não se pode ocultar, ele

fazia parte de uma elite que compunha os estratos sociais mais abastados naquela

sociedade. Desta forma, abre-se também a possibilidade de especular: até que

ponto uma medida como esta beneficiaria os feirantes e os consumidores ou seria

uma medida que tinha o objetivo de beneficiar os donos de casas comerciais e

armazéns mais afortunados que disputavam a venda de alguns produtos com os

feirantes no concorrido “mundo dos negócios” em paralelo à feira-livre? Cabe

lembrar que, há mais de um ano, já tinha sido decretada a retirada da feira-livre do

centro da cidade.

Torna-se difícil detectar as reais intenções do vereador e seu objetivo, porém,

de qualquer maneira, pode-se imaginar o teor das relações sociais estabelecidas

entre diversos setores que dinamizavam o fazer e o viver na cidade e as diversas

configurações que o poder público ali assumia. Ao discordar de seu par, o vereador

Atanagildo Tourinho reivindicava uma postura mais firme do poder público exigindo

149 Livro Ata da Câmara Municipal de Santo Antônio de Jesus – 16/10/1959. ACMSAJ.

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que fiscalizasse pesos, balanças e medidas no universo da feira. Aqui também,

podemos imaginar que o autor da reivindicação estivesse preocupado com os

consumidores dos diversos produtos comercializados naquele ambiente. É possível

que além de reclamar da carestia dos produtos, os consumidores estivessem

desconfiados de que estavam sendo lesados, reclamando dos pesos e medidas

utilizados pelos feirantes em seus locais de trabalho.

É difícil precisar as relações destes políticos com os diversos setores e

indivíduos que “praticavam” a cidade, talvez a solicitação de que precisava fiscalizar

os instrumentos de trabalho dos feirantes, feita pelo vereador Atanagildo Tourinho,

fosse fruto das reivindicações e “perseguição” dos concorrentes dos feirantes.

Especulação a parte, se de fato os feirantes estivessem manipulando pesos,

balanças e medidas, tais práticas poderiam ser vistas como trapaças, truculências e

deslealdade perante aqueles que consumiam os produtos. Mas, perante as certezas,

durezas e incertezas da vida, os sonhos e objetivos a conquistar, essas práticas

poderiam significar resistências cotidianas e formas de sobrevivência perante às

vicissitudes impostas no dia-a-dia.

Parece que a alta dos preços perseguiu fregueses, freqüentadores e

freqüentadoras da feira-livre também na década de 60. Em decorrência da alta dos

preços de gêneros de primeira necessidade, o prefeito municipal, Antônio Olavo

Galvão, em 1963, concedeu um aumento de 100% no salário mínimo dos

funcionários municipais, justificado pela alta constante dos preços na cidade.150

Uma das saídas encontradas pelos consumidores dos produtos da feira, para

amenizar “o peso” do preço das mercadorias e solucionar as possíveis

desconfianças em relação aos pesos e medidas, era usar da arte de convencer o

feirante a conceder um desconto nas mercadorias que pretendiam comprar ou as

que já eram de certeza levar para casa com a pechincha. Essa arte consistia em

uma “encenação teatral” em que os atores – feirantes e fregueses – se utilizavam

tanto de elementos subjetivos, a exemplo da persuasão, quantos elementos

objetivos, como a falta de dinheiro e a carestia dos produtos, para ver quem saía

vencedor na disputa. O jogo do corpo e a voz eram fatores fundamentais na hora da

pechincha.

150 Portaria nº 125 de 16 de janeiro 1963. Livro de Leis, Decretos e Portarias – APMSAJ.

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Paul Zumthor mostra-nos que o tempo, lugar, circunstâncias, contexto

histórico, atores… são elementos visíveis numa operação performancial. Para ele,

Um laço funcional liga de fato à voz o gesto: como a voz, ele projeta o corpo no espaço da performance e visa a conquistá-lo, saturá-lo de seu movimento. A palavra pronunciada não existe (como o faz a palavra escrita) num contexto puramente verbal: ela participa necessariamente de um processo mais amplo, operando sobre uma situação existencial que altera de algum modo e cuja totalidade engaja os corpos dos participantes.151

O sucesso na disputa dessa representação, muitas vezes, dependia do perfil

e da personalidade dos atores envolvidos na trama, o grau e desenvoltura na

capacidade de insistir, o grau de relação e afinidade entre o comerciante e o

“pechincheiro” e até o modo como o cliente estivesse vestido poderia influir na

decisão do feirante de conceder ou não o referido desconto. Outras linguagens

entravam em cena no momento da pechincha.

Uma vez saindo vitorioso no “teatro da pechincha”, o cliente poderia receber o

desconto em moeda corrente abatido no valor do produto ou em mercadorias, como

é comum em feiras da Bahia. O pechincheiro ao comprar, por exemplo, dez litros de

amendoim, levava onze litros para casa, comprar um cento de laranjas, levava cento

e dez, comprar quilos de carne e levar algumas gramas a mais para “rechear a

panela”. O sucesso do “pechincheiro” poderia também depender do bem-estar e do

humor do feirante nos dias de feira. O bom ou mau humor dos feirantes dependia do

volume de vendas que eles realizavam naqueles dias e da ausência de vários

aborrecimentos que poderiam ocorrer-lhes desde o deslocamento de suas

residências até o local de trabalho e das situações imprevistas que o cotidiano

poderia lhes oferecer.

Augusto Laranjeira era um homem que usava sempre o bom humor para

superar as condições adversas que às vezes a sua profissão lhe trazia. Considerado

um pechincheiro nato, ele sempre conseguia descontos quando ia comprar para

revender bananas sem carbureto, limão, limas, laranjas, dentre outros produtos que

151 ZUMTHOR, Paul. A letra e a voz: A “literatura” medieval. São Paulo: Companhia das Letras, 1993, p. 243-244.

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ele comercializava em feiras da Bahia. A sua prática de pechinchar era tão sólida,

que ele ficou conhecido no meio, também, pelo nome de Augusto Pechincheiro. “O

feitiço se virou contra o feiticeiro”. Porque sua fama de pechincheiro conduzia seus

clientes a usarem também esse artifício quando se dirigiam até a sua barraca para

comprar os produtos que ele negociava. Quando as pessoas pechinchavam, ele

dizia: “eu já tenho esse apelido mesmo, (muitos risos), eu dava o desconto e o

cliente saía satisfeito (muitos risos)”. Conceder a pechincha ao cliente podia

significar aumento nas vendagens e a construção de uma clientela “cativa”.

Augusto Laranjeira dividia essa sua identidade com a de Augusto

Pechincheiro. Os “deslocamentos sofridos” na identidade pessoal de seu Augusto

Soares da Silva, leva-nos a pensar em um dos sentidos da composição da memória

defendido por Alistair Thomson quando afirma que temos a necessidade de compor

um passado com o qual possamos conviver. Ao conviver com as identidades de

Augusto Laranjeira e Augusto Pechincheiro, esse feirante vivenciava/vivencia na

prática aquilo que Thomson supõe existir: uma relação dialética entre memória e

identidade na teoria. Pois para este autor

Nossa identidade (ou “identidades”, termo mais apropriado para indicar a natureza multifacetada e contraditória da subjetividade) é a consciência do eu que, com o passar do tempo, construímos através da interação com outras pessoas e com nossa própria vivência. Construímos nossa identidade através do processo de contar histórias para nós mesmos – como histórias secretas ou fantasias – ou para outras pessoas no convívio social.152

Vitalina Souza, ao rememorar os dias em que muitos clientes de sua mãe

utilizavam-se do mecanismo da pechincha para obter vantagens, relembra que os

clientes acostumavam comprar um prato de refeição composta por feijão, arroz,

farinha e ensopado de carne e, após o pagamento, sempre solicitavam “ô moça,

bote mais um pedaçinho de carne”. Para dona Maria Plácida, que vendia refeições,

a carne cozida era o produto predileto de pechincha daqueles que a sua barraca se

dirigiam. Mesmo acostumada naquele ambiente onde a pechincha constituía-se em

uma prática corriqueira, dona Lina não gostava/gosta de pechinchar, “tem pavor a 152 THOMSON, Alistair. Recompondo a memória: questões sobre a relação entre a história oral e as memórias. Projeto História. São Paulo, n. 15, Abr.1997, p. 57.

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pechincha”, diferente de seu cônjuge, Antônio Souza, e seus filhos, que, segundo

ela, “Ave Maria! exageram na arte de pechinchar”.153

Ao narrar as histórias lembradas sobre as experiências em relação à

pechincha e ratificar que não gostava desta prática no passado e continua não

gostando hoje no presente, o relato da depoente nos conduz à afirmativa de que

“compomos nossas reminiscências para dar sentido à nossa vida passada e

presente e de certa forma, nós a compomos ou construímos utilizando as linguagens

e os significados conhecidos da nossa cultura”.154

Talvez o fato de Vitalina Souza ter pavor à prática da pechincha esteja

associado às experiências da infância, quando vivenciava a carência econômica e

social de seus familiares e era obrigada a presenciar na feira clientes pedindo

descontos na compra dos produtos que sua mãe negociava. Ela compôs sua

memória no presente ratificando uma característica identitária construída no

passado em meio ao universo cultural no qual estava inserida.

Além da pechincha, outra artimanha que envolvia feirantes e clientes no

universo da feira-livre era a prática de comprar e vender mercadorias a crédito, o tão

conhecido fiado. Apesar da maioria dos feirantes não gostarem de vender fiado,

alguns fregueses souberam construir uma relação de amizade, respeitabilidade,

afetividade e confiança que assegurava a permanência desta prática naquele

cenário. Augusto Laranjeira era um feirante que não gostava de vender fiado, ele

concedia a “poucos de sua confiança” mercadorias para serem pagas a prazo.

A feirante Elza Froes era outra que comungava com a posição de seu colega

de profissão, Augusto Laranjeira. Ela vendia fiado a algumas pessoas em uma

semana para receber o pagamento das mercadorias na semana subseqüente. Mas

ela apenas vendia às pessoas que ela conhecia e tinha confiança, àqueles que ela

não acreditava honrar assiduamente com seus compromissos, não poderia ratificar

esse procedimento. Ela acostumava calcular “de cabeça” o valor das compras dos

seus clientes, porque seu pai não a colocara numa escola para aprender a ler, então

“como é que anotava na caderneta? A gente bastava lembrar na memória”.155

153 Vitalina dos Santos Souza. Depoimento citado. 154 THOMSON. Op. Cit. p. 56. 155 Elza Froes da Fonseca. Depoimento citado.

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Às vezes, o fiado, a depender da relação estabelecida entre feirantes e seus

clientes, se configurava como uma prática até prazerosa e de fácil aceitação. A

feirante Elza Froes, quando indagada se ela não esquecia de “anotar na memória”

alguma coisa que vendia fiado a seus clientes, diz “que não esquecia não e aqueles

que comprava eles tinha consciência também porque naquele tempo tudo que

vendia recebia”. É emblemático um caso relembrado por ela

Tinha um menino de Castro Arve mesmo, ele não tinha pena de comprá e pagá não, ele gostava mesmo de compra e pagá. Tanto gostava de comê como gostava de pagá. Ele não pechinchava não. (muitos risos)156

A narrativa da feirante Elza, os risos que emergiram na sua face, associados

a gestos de prazer e felicidade, traduzem o alto grau de fidelidade que existira entre

ela e esse seu cliente natural da cidade de Castro Alves. Honestidade e lealdade

foram ferramentas utilizadas para construir relações estáveis entre feirantes e

consumidores naquele habitat; embora, algumas vezes fossem surpreendidos e

desapontados pela desonestidade e deslealdade de alguns.

Anotar o fiado na memória não era uma prática apenas de dona Elza, o não

acesso ao “saber oficial” da escola levou Esmeraldo Nunes, João do Couro, Augusto

Laranjeira, dentre outros feirantes, a adotarem também essa prática. Todavia, a

vida, no dia-a-dia, tornava esses homens e mulheres doutores de um saber que

contagiava a todos aqueles que com eles direta ou indiretamente se relacionavam.

Mesmo enfrentando os preços altos da farinha e da carne, usando a arte da

pechincha para conseguir descontos nas mercadorias, estabelecendo relações que

lhes abriam a possibilidade de comprar a crédito, muitos homens e mulheres do

campo e da cidade seguiam sua rotina retornando para seus lares com seus balaios,

suas cestas com tampas ou sem tampas, cofos, sacos de linhagem e naylon com os

produtos da sobrevivência e os utensílios necessários ao recanto do “lar doce lar”.

Essa rotina nos permite afirmar que saber entrar numa feira, aprender a

pechinchar e escolher o melhor produto também é uma arte, muitas vezes

transmitida de geração para geração.

156 Idem.

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3.5 – Em Meio ao Trabalho, o Lazer.

Em meio a um cotidiano fortemente matizado pelo trabalho, feirantes e

freqüentadores da feira-livre de Santo Antônio de Jesus quebravam a tradicional

rotina de compra e venda de mercadorias, participando, apreciando e sorrindo diante

de situações e alguns espetáculos que naquele ambiente eram encenados.

Na rua Celestino Pimenta, onde funcionava a “Barganha”, considerada a “Feira

Pesada” por vender mercadorias volumosas como carvão, madeiras e animais em

geral, era comum nos dias de feira, principalmente no dia de sábado, vendedores de

burros e cavalos levarem seus animais para serem comercializados naquele espaço.

Chegando lá, os animais eram expostos ao público e os interessados em comprá-los

escolhiam o burro ou cavalo que queriam levar para casa. Porém, antes de serem

entregues aos seus novos donos, esses animais eram adestrados pelos

“amansadores de burro brabo” que amansavam esses animais ali no mesmo local.

Estudando o cotidiano de vaqueiros, cordelistas, cantadores e animadores

que expressavam a cultura regional, dando características próprias à cidade de

Feira de Santana e aos hábitos de lazer que a população vivenciava na feira-livre

daquela cidade, Izabel Lorene Borges de Oliveira ressalta a importância dos

vaqueiros naquele cenário. Ela observa que uma das situações em que o vaqueiro

se destacava era quando o gado se desgarrava do rebanho e ia parar no meio da

feira.

Esses eram momentos marcados por um misto de pânico e divertimento,

desespero e humor, medo e lazer que contagiava a todos. Para solucionar essa

situação entrava em cena o vaqueiro que segundo ela

Era visto com respeito e admiração, considerado um artista na proeza de controlar o gado, amansar burro brabo, estando pronto a qualquer momento para controlar o gado desgarrado, proporcionando um espetáculo no meio da feira.157

157 OLIVEIRA, Izabel Lorene Borges de. Op. Cit. p. 53.

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Salvo as diferenças de contextos e personagens, a atividade de adestramento

de burros e cavalos na feira-livre de Santo Antônio de Jesus conferia a esses

homens características semelhantes às identificadas nos vaqueiros na feira-livre da

cidade de Feira de Santana na Bahia. Valentia e destreza, coragem e força eram

características que a platéia atribuía a esses artistas.

A arte de amansar burro brabo configurava-se em algo prazeroso e bonito de

se ver que atraía feirantes, freqüentadores da feira, crianças e outros grupos sociais

para assistirem àquele espetáculo. Segundo uma moradora que residia próximo a

este local, nos dias de feira ela e seus irmãos acordavam às cinco horas da manhã

para assistirem da porta e da janela de sua casa aquele show, enquanto sua mãe,

com medo dos animais brabos, ficava no fundo da casa gritando para que eles

entrassem. Para a depoente, o espetáculo alcançava o clímax quando um animal,

boi ou cavalo, “escapulia” e saía correndo pelo meio da feira. Era uma verdadeira

festa.158

Ela conta ainda que, nos anos 50 e 60, era comum vaqueiros, oriundos de

várias regiões, passarem por ruas da cidade conduzindo suas manadas. E, às

vezes, algum gado desgarrava do rebanho e ia parar na feira causando pânico,

temor, alegria e diversão. Entravam em cena os amansadores de burro brabo,

homens que se constituíram, na feira-livre, em personagens de grande consideração

e respeito por causa do espetáculo que eles proporcionavam. Eram homens que

faziam com que “o burro brabo saísse daqui igual uma criança”.

Outra forma de se divertir e ainda com grandes possibilidades de ganhar

alguns trocados, era proporcionada pelo espetáculo das rinhas de galos que eram

montadas no meio da feira-livre ou nas suas imediações. O feirante Augusto

Laranjeira sempre apostava 10 ou 20 mil réis nas brigas de galo. Para esse feirante,

o valor da aposta poderia aumentar a partir da confiança que ele adquiria em galos

de amigos ou a depender do sucesso de sua vendagem num determinado dia de

feira.

Para atrair as apostas, as personagens principais dessa forma de

entretenimento tinham que adquirir confiança dos apostadores durante a

apresentação nas rodas que se tornavam verdadeiras arenas montadas a céu

158 Depoimento de Maria Conceição da Silva. Professora aposentada. Rua Sóter Barros, nº 29, centro. Santo Antônio de Jesus, 73 anos.

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aberto. A confiança poderia ser adquirida a partir de um ritual em que o apostador,

antes de começar a disputa, dispensava um tempo fixando um atento olhar nos

animais. Esse olhar observava o zelo, o garbo, a postura que o galo se apresentava

e, também, os cuidados que o dono possuía com o animal, que incluía na lista não

deixar qualquer pessoa por as mãos. Maneca dos galos tornou-se conhecido entre

os apostadores desse jogo na feira-livre por ser considerado um bom aparador de

galos.

Clifford Geertz acredita que o homem é um animal amarrado a teias de

significados que ele mesmo teceu. Para ele, a cultura são essas teias e sua análise,

portanto, não deve ser vista como uma ciência experimental em busca de leis, mas

como uma ciência interpretativa que está sempre à procura de significados. Em seu

célebre ensaio intitulado Um Jogo Absorvente: Notas sobre a Briga de Galos

Balinesa, ele diz: “Grande parte de Bali se revela numa rinha de galos. É apenas na

aparência que os galos brigam ali. Na verdade são homens que se defrontam”.159

Neste ensaio Geertz mostra como uma briga de galo, aparentemente algo

sem grande importância, configura-se em um “ritual” cheio de significados

reveladores das múltiplas dimensões do viver da sociedade balinesa. Na feira-livre

de Santo Antônio de Jesus, não se pode afirmar que a rinha de galo se revestia em

uma forma de entretenimento onde múltiplos significados ali se apresentavam. O

que é possível revelar, é que a briga de galo assumia uma importância mais material

que simbólica, na vida de feirantes, jogadores e outros apostadores que perdiam ou

ganhavam dinheiro e também se deliciavam com o prazer e as emoções que esta

forma de entretenimento lhes proporcionava, como é o caso do feirante Augusto

Laranjeira.

O lazer, a descontração e o riso eram também garantidos no universo da feira

com um serviço de alto-falante, instalado na rua Dr. Gorgônio José de Araújo, de

propriedade do senhor Zé Garrincha. Esse serviço se estendia até à praça Padre

Mateus levando várias informações e muita música que alegrava o cotidiano de

feirantes, fregueses e demais freqüentadores daquele ambiente.

As casas comerciais da cidade colocavam diversos anúncios nesse serviço,

trazendo informações a respeito de liquidações, baixa nos preços dos produtos e as

159 GEERTZ, Clifford. A interpretação das culturas. Rio de Janeiro: Guanabara, 1981, p. 188.

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novidades no ramo de vestuário e utensílios domésticos que chegavam de estados

como São Paulo, Rio de janeiro, dentre outros. A música invadia “o chão da praça”

nas vozes dos cantores: Nelson Gonçalves, Orlando Silva, Carlos Garlhado, Silvio

Caldas, Ângela Maria, Cauby Peixoto, Emilinha Borba, Luiz Gonzaga e tantos

outros.

Mas, o que mais despertava a atenção de todos neste serviço era os

recadinhos que várias pessoas, principalmente os homens, enviavam para as moças

com as quais pretendiam paquerar ou manter um flerte, sobretudo nos períodos de

festas, como por exemplo, no período da festa do padroeiro da cidade e São João.

Nesses recadinhos, geralmente os rapazes enviavam as suas pretendentes

lembranças, ofereciam músicas e ousavam marcar possíveis encontros. A forma

utilizada para se referir às moças, às quais os recados se destinavam, era

identificando-as com alguns adereços que elas estivessem usando naquele

momento. Era comum sair “notinhas” ou “bilhetinhos” para aquela menina de laço

vermelho na cabeça.

O flerte e o namoro podiam penetrar no ambiente da feira em qualquer

momento. Em meio ao trabalho, vários feirantes, casados ou não, usavam suas

artimanhas para conquistar outros feirantes e fregueses, porque a feira-livre servia

também como um local para paquerar, conhecer moças e rapazes que vinham de

outras cidades ou até mesmo reencontrar a paquera da semana anterior. Augusto

Laranjeira lembra que ele e muitas outras pessoas saíam da feira para namorar nas

imediações, principalmente na praça Duque de Caxias, local onde atualmente está

instalada a feira da cidade. Muitas relações entre vendedores e clientes poderiam

alcançar outros graus de intimidade.

O peso de um dia de trabalho podia ainda ser amenizado com boas notícias,

ou até mesmo a própria visita de parentes e amigos que desembarcavam na cidade

trazendo informações sobre quem havia casado ou ia se casar, dos batizados, quem

havia comprado bens e imóveis, notícias de parentes e amigos que foram para a

“cidade grande”, como São Paulo, Salvador, Rio de Janeiro, etc.

Outra maneira de se descontrair, no dia-a-dia do trabalho, era ouvindo as

notícias sobre a vida privada de diversos atores sociais que, em tom de fofoca,

chegavam à feira-livre causando espanto e sutis gargalhadas. Notícias sobre a vida

alheia causavam um fascínio à parte naquele universo, atingindo seu clímax com as

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fofocas que diziam respeito às práticas de adultério e homoerotismo, dimensões

outras da vida humana fortemente reprimida naqueles tempos.

Mais um espetáculo que atraía o riso dos feirantes, como também de todos

que pela feira perambulavam, era a figura de homens e mulheres embriagados que

encenavam suas performances naquele cenário. Além de exibirem “acrobacias” e

um gingado corporal que chamava a atenção de todos, eles imprimiram, naquele

ambiente, histórias engraçadas que ficaram na memória de vários sujeitos sociais

que por lá passaram. Era comum a presença de muitos bêbados na feira-livre,

notadamente ao final da tarde.

Vendedor de fígado ferventado, requeijão e “fato”, Manoel Ângelo era um

feirante que gostava de bebericar os diversos aperitivos que eram vendidos nas

barracas na feira e nos bares da praça. Conhecido no seu ambiente de trabalho por

ser considerado o vendedor do melhor fígado da feira, era chamado por seus

fregueses de Mané Anjo, talvez por tornar mais fácil a pronúncia do seu nome.

Todavia, quando esse feirante tomava uns aperitivos a mais e sua clientela, durante

a compra e venda dos produtos, o chamava de Mané Anjo, ele acostumava adverti-

los dizendo: “êpa! meu nome é Manoel Ângelo”, exigindo a pronuncia correta do seu

verdadeiro nome.

Em várias feiras do Brasil, principalmente no Nordeste, é comum a presença

de cantadores e repentistas, pessoas especializadas na arte de improvisar versos e

criar composições instantâneas. Na memória coletiva dos feirantes, a figura de

Fausto da Viola emerge como um repentista que perambulava pelos bares, ruas,

casas comerciais e na feira da cidade vendendo alegria para muita gente.

Outro momento de alegria, no meio da feira, era assistir a apresentação

daqueles que ofereciam produtos exóticos e remédios milagrosos como Purgantes,

couro de várias cobras, óleo de peixe elétrico, de tartaruga, dentre outros produtos,

e expunha ao público a famosa cobra elétrica dentro de uma bacia com água,

tartarugas e etc. Com um fone na boca, fazendo promessa de curar diversas

doenças, e com muita criatividade, os argumentos que estes homens utilizavam para

convencer as pessoas comprarem seus produtos era motivo de riso e descontração

naquele ambiente.

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A comida, a bebida, o namoro, o riso, a chacota, a algazarra, o barulho, a

gritaria, a música e a piada davam o tom alegre da festa na feira. Os excessos

dessa festa eram protagonizados por homens e mulheres embriagados que

geralmente ao final da feira, no final da tarde, desfilavam proferindo xingamentos e

impropérios perante feirantes, fregueses e freqüentadores que na feira ainda se

encontravam, muitas vezes causando brigas e confusões. Vitalina Souza relembra

que as performances de alguns desses homens embriagados a deixava

envergonhada e muito chateada naquelas tardes de sábado, e esse foi também um

dos fatores que a levou a convencer sua mãe a deixar de vender na feira-livre. Mais

uma vez os conflitos de gênero protagonizavam naquele palco.

Um outro momento de festa na feira-livre de Santo Antônio de Jesus, era

quando as “gente perdida”, como eram representadas as prostitutas que

trabalhavam na rua do Gás, na Maria Nunes e na rua de Dentro, perambulavam pela

feira “influenciando” o povo da cidade e principalmente, o povo da roça, a se

deslocarem até os lugares que elas prestavam seus serviços. Exageradamente

maquiadas e vestidas com roupas bem extravagantes, de saltos altos, com um jeito

bem peculiar de seduzir, essas mulheres desafiavam a ordem circulando em meio a

bancas de jogos de azar, bebendo nas barracas e nos bares e se entregando nos

braços dos caipiras e citadinos. A “ordem e a desordem” estavam nos bastidores da

ordem na feira-livre em Santo Antônio de Jesus.

O barulho, a gritaria, o uso de expressões jocosas e engraçadas eram

elementos que faziam parte do cotidiano dos feirantes dando um ritmo no próprio ato

de mercadejar. Em meio à concorrência, promover a oferta dos produtos, exibir as

variedades e conseguir boas vendagens dependiam também da criatividade dos

feirantes em forjar mecanismos que pudessem atrair os clientes. Essa disputa se

acirrava em períodos de festa quando uma maior quantidade de mercadoria estava

à venda e os feirantes tinham diante de si grandes possibilidades de aumentar seus

negócios. A preocupação em fazer uma boa oferta e poder apresentar variedades de

produtos aos clientes intensificavam-se nesses períodos.

Entre uma venda e outra, clientes, feirantes e seus pares riam com as formas

engraçadas como eram apresentados os produtos aos fregueses. Propagandas

como: “Venha dona Maria pegar o melhor chuchu da Bahia” ou “quer ter o melhor

São João? venha comprar seus produtos na barraca do João”, ou ainda, a célebre

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frase de Augusto Laranjeira: ”Vem me ver freguês, vem me ver” divertiam e atraíam

muitas pessoas naqueles dias.

O que procurei mostrar ao longo deste capítulo foi a possibilidade de se

pensar a feira-livre enquanto um espaço de um fluxo contínuo de corpos, idéias,

projetos, comportamentos, atitudes, valores, sentimentos, aspirações e fantasias

que marcavam o ritmo do fazer e do viver desses indivíduos. É pensar cultura na

perspectiva de Ginzburg quando afirma: “A cultura oferece ao indivíduo um horizonte

de possibilidades latentes – uma Jaula flexível e invisível dentro da qual se exercita

a liberdade condicionada a cada um”.160

É nessa possibilidade abordada por Ginzburg que iremos seguir adiante com

o propósito de caminhar pelos horizontes da liberdade exercitada pelos feirantes no

mundo fora do trabalho.

160 GINZBURG. Op. Cit. p. 27.

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4 Religião, Lazer, Arte e Prazer.

4.1 Festas Religiosas.

4.2 (En)cantos na Cidade.

4.3 O Tamanco e a Chita.

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4.1 Festas Religiosas.

Gozemos, façamos a festa,

Todos nós em companhia

Que após ímpia carestia

Não nos dê mais sofrimento… (…)

Viva o pão e viva o trigo,

Viva a riqueza e a abundância, vamos cantar… (…) (“L” Universale alegrezza dell ‘abondantia’. Século XVI.)

Em meio a labuta do trabalho duro e árduo, tanto na roça quanto na cidade,

os feirantes forjavam maneiras de “estar bem” participando ativamente de festas e

atividades lúdicas que lhes proporcionavam prazer e possibilidade de construção de

novas redes de sociabilidades.

Durante todo o ano, o mundo do trabalho dos feirantes se imbricava com um

rico calendário festivo que muitas vezes, possibilitava o cruzamento do tempo do

trabalho com o tempo da festa tanto na zona rural como nas urbes. Em meio a

festas religiosas ou profanas, em busca de lazer, arte e prazer, eles criaram

maneiras de se divertir se relacionando com as variadas linguagens culturais que

estavam ao seu alcance.

As festas não significavam apenas um momento de descanso e diversão, elas

exprimiam uma concepção de mundo, uma forma de estar nele, bem como os

valores e normas da comunidade na qual os feirantes estavam inseridos. Ou seja, a

participação na festa não pode ser vista dissociada de seus múltiplos significados.

Minha proposta nesse capítulo é acompanhar a vida dos feirantes fora da

feira, tendo como premissa que a vida desses sujeitos e suas experiências não se

resumiam apenas ao mundo do trabalho – mesmo sabendo que em muitos

momentos o tempo do trabalho se entrecruzava ao tempo da festa. Nessa

perspectiva, será discutido as maneiras de se divertir e seus significados.

Ao estudar a presença dos santos, deuses e heróis nas ruas da Bahia, nas

primeiras décadas do século XX, Wlamyra R. de Albuquerque assinala que

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As festas públicas nos parecem um bom ângulo para tentarmos perceber esta velha Bahia em tempos republicanos, já que enquanto duravam se tornavam palco de disputa sociais e políticas, assimilações e recriações culturais, todas girando em torno das formas de apropriação do espaço urbano.161

Em Santo Antônio de Jesus, também, uma das formas de apropriação do

espaço público na cidade se dava a partir da participação nas diversas festas que

acontecia nessa urbe em vários momentos do ano. Uma das festas que mais

seduziam os feirantes a se deslocarem de suas localidades e se dirigirem em busca

de aventuras e alegrias na cidade da Capela eram as festas religiosas que rendiam

homenagem a diversos santos católicos durante todo o ano.

O ciclo de festas religiosas na cidade abria-se com a festa de São Benedito,

realizada na segunda quinzena do mês de Janeiro na Paróquia do bairro que leva o

mesmo nome desse santo, atraindo a atenção de muita gente por ser uma festa bem

animada e movimentada. A feirante Vitalina Souza recorda: Eu gostava da festa de

São Benedito, minha mãe participava muito da festa de São Benedito. E aí a minha

companheira era ela e a gente participava todo ano.162

A feirante Vitalina Souza “adorava” freqüentar a festa de São Benedito todos

os anos por causa dos atrativos que aquela festa lhe proporcionava. Nas décadas

de 50 e 60, a festa de São Benedito era movida ao som de maviosos cânticos, a

igreja e seu adro eram ornados com muitas luzes e flores em abundância, parques

de diversões eram montados com roda gigante, carrossel, dentre outros brinquedos,

e as quermesses que despertavam a atenção de moças e rapazes. No dia da festa,

a população da cidade era obrigada a acordar às 5 horas da manhã com uma salva

de 21 tiros e várias girândolas dos foguetes. Geralmente, às 10 horas era celebrada

a missa festiva que era campal e embalada por uma orquestra regida pelo maestro

Sóter Barros. À tarde, belíssima charola com a imagem de São Benedito, em

procissão, percorria vários trechos aos sons das Filarmônicas Amantes da Lyra e

Carlos Gomes e, entre o final da tarde e o início da noite, os participantes eram

161 ALBUQUERQUE, Wlamyra R. de. Santos, deuses e heróis nas ruas da Bahia: identidade cultural na primeira república. Revista Afro – Ásia, Salvador, n. 18. CEAO – UFBA. 1996, p. 107. 162 Vitalina Santos Souza. Depoimento citado.

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agraciados com várias diversões no adro da respectiva Igreja, dentre elas

destacavam-se a Marujada e a Burrinha.

As apresentações da Marujada, da Burrinha e do Bumba-Meu-Boi ocorriam

nas festas de largo na cidade e também em festas religiosas na roça. O feirante

João do Couro não apreciava essas apresentações porque para ele “tudo aquilo era

besteira, era tudo bobagem”. O feirante Esmeraldo Nunes, apesar de ter assistido

poucas dessas apresentações, gostava da brincadeira e da diversão que esses

eventos lhe proporcionavam. Já a feirante Vitalina Souza costumava se ausentar

dessas apresentações na roça por causa da longa distância que separava o lugar

onde ela morava e o local onde ocorriam esses eventos. Enquanto ela e suas irmãs

ficavam em casa, seus irmãos, seu pai e sua mãe se deslocavam de sua residência

para apreciar essas apresentações.

Enquanto Maria Plácida ia para a festa da Burrinha e do Bumba-Meu-Boi nas

roças para vender cocada e bolacha de goma, seus filhos se divertiam cantando,

batendo palmas e correndo atrás das personagens principais dessa festa, quando

não estavam realizando apostas nos jogos de azar que se instalavam nas

imediações do lugar onde estavam ocorrendo as apresentações. Algumas vezes

eles retornavam para casa alegres pelo fato de terem ganhado nas apostas, outras

voltavam tristes e cabisbaixos porque perdiam todo o dinheiro que levaram no bolso.

Mas, o membro da família considerado o jogador nato era o esposo de Maria

Plácida, Antônio Pereira dos Santos, que se aproveitava dessas ocasiões e investia

todo o seu dinheiro em jogos de azar. Era comum sua esposa e seus filhos vê-lo

chegando em casa “todo mucho por ter perdido tudo no jogo”.163

Para Edilece Souza Couto, o Brasil herdou essas manifestações folclóricas

dos colonizadores portugueses; conhecidas por danças dramáticas, elas eram

ligadas às cerimônias religiosas.164 Essas festas se tornavam bastantes interessante

e complexa por articular elementos das três matrizes étnicas formadoras de nossa

cultura, nos auxiliando a repensar aspectos da suposta identidade brasileira.165

163 Vitalina Santos Souza. Depoimento citado. 164 COUTO, Edilece Souza. A puxada do mastro: transformações históricas da festa de São Sebastião em Olivença (Ilhéus – Bahia). Ilhéus-Ba: Editora da Universidade Livre do Mar e da Mata, 2001. p. 137. 165 Ibid.; p. 137.

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Assim como é complexo o caráter constitutivo dessas manifestações, as

maneiras de estar na festa da Burrinha, do Bumba-Meu-Boi e da Marujada e as

representações construídas pelos feirantes sobre essas apresentações nos levam a

afirmar que esses momentos revelam também um mundo social complexo, onde

várias práticas culturais ali eram encenadas. Um bom exemplo dessa dinâmica pode

ser visto na própria performance da família da feirante Maria Plácida, descrita acima.

A forma dessa família está nessa festa, nos servem ainda de um rico elemento para

se pensar no imbricamento entre o tempo da festa e o tempo do trabalho que

naquele momento se entrecruzavam.

O calendário das festas religiosas sacudiam a cidade e zonas rurais, no mês

de junho, quando em toda a região do Recôncavo Sul ocorrem os louvores e

festejos a Santo Antônio, São João e São Pedro. Os festejos em louvor a Santo

Antônio, padroeiro da cidade, iniciava-se no dia 31 de maio quando várias pessoas

se reuniam em frente à Igreja Matriz já na madrugada. A partir das 5 horas da

manhã, conduzidos pelo pároco local, os devotos saíam em caminhada percorrendo

as principais ruas da cidade: rua Espera Negro (atual rua Santo Antônio), rua Maria

Nunes, rua Velha e rua Sete de Setembro, ao som de foguetes e cantando o hino de

Santo Antônio. Esse ritual exercia a função simbólica de acordar a população e

anunciar que estava iniciando-se naquele ano os festejos ao “santo casamenteiro”.

Daí em diante, durante treze noites sucessivas, muitas pessoas lotavam a Igreja

Matriz para render homenagens ao padroeiro da cidade.

Durante o período do trezenário, cada noite a celebração era dedicada a

homenagear outras paróquias da cidade, bairros e ruas, alguns grupos sociais e até

algumas instituições. Havia a noite dos comerciantes, mas, tudo leva crer que esta

celebração era dedicada aos “homens de negócios da cidade”, excluindo os

feirantes, pelo menos oficialmente, desta homenagem litúrgica. Enquanto que uma

das noites mais esfuziante, cuja cidade “explodia” em foguetório, era a noite dos

fumageiros. 166

A festa se encerrava no dia 13 de junho com uma missa que ocorria pela

manhã, geralmente às 10 horas, e o ponto alto da festa era marcado com uma

procissão que percorria as principais ruas da cidade. As casas que se localizavam

nas ruas onde o cortejo desfilava eram enfeitadas com bandeiras, ramos verdes de 166 Maria Conceição da Silva. Depoimento citado.

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plantas e, portas e janelas eram iluminadas à vela. Todo esse percurso era

embalado por uma charola que acompanhava a imagem de Santo Antônio e outros

andores de santos que eram também cultuados na cidade como São Benedito e São

José. A imponência desse cortejo devia-se ainda às brilhantes apresentações das

Filarmônicas Amantes da Lyra e Carlos Gomes que faziam com que esses

momentos fossem marcados por muita emoção entre os fiéis.167

As festas públicas na cidade da Capela, principalmente as festas religiosas,

eram marcadas com a presença cativa das filarmônicas da cidade. As Filarmônicas

Amantes da Lyra e Carlos Gomes singularizavam o espaço da festa em meio às

pessoas que nelas estavam presentes levando alegria e emoção através de suas

performances e das músicas executadas. Essas filarmônicas exerciam uma função

social muito importante na cidade e na região.168

Além da fé no santo casamenteiro, a apresentação das filarmônicas era um

dos atrativos que seduziam a feirante Elza Froes a participar desta festividade. Ela

lembra que ia muita gente de outras cidades para a festa de Santo Antônio e que era

uma festa muito bonita porque a missa era mais demorada e “bem mais celebrada

que as de hoje”. Durante os anos 50 e início dos anos 60, a Igreja Matriz fora

conduzida pelo padre Antônio Almeida de Oliveira, seguido por Jairo Ruy Matos da

Silva, José Amaral de Oliveira, Raimundo Araújo, em 1966, e Gilberto Vaz Sampaio

que assumiu a paróquia a partir de 1967.169

As missas celebradas durante as treze noites da festa ganhavam um tom

especial com a presença de vários padres que Saíam de diversas cidades do interior

da Bahia e da capital para participar dessas celebrações. No ano de 1952, por

exemplo, quando a Paróquia festejou seu centenário, nos treze dias a festa fora

167 Sobre as festas religiosas na cidade de Santo Antônio de Jesus, os periódicos locais como O Paládio, A Voz das Palmeiras, O Detetive, dentre outros, se preocupavam em descrever essas festividades em suas matérias. 168 Sobre a importância das filarmônicas ver: SCHWEBEL, Horst Karl. Bandas, filarmônicas e mestres na Bahia. Centro de Estudos Baianos. Salvador-Ba. UFBA, 1987, p. 23. Segundo este autor, as filarmônicas eram instituições sem a qual a vida nas pequenas, médias e grandes cidades seria impensável. A filarmônica fazia parte do cotidiano do cidadão. Ela estava onipresente em todos os acontecimentos sociais, políticos e culturais, do nascimento à morte, no batizado como no casamento, na festa religiosa como no baile, embelezando e dignificando o evento, com a sua presença e a sua participação. 169 Livro de Registro de Casamentos nº 3 a 7 e Livro de Registro de Batizados nº 13 a 29 de 1948-1971. APSAJ.

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abrilhantada com a presença do bispo Dom Florêncio Vieira, domiciliado na sede de

Amargosa.170

A feirante Elza Froes acostumava marcar presença na festa do padroeiro

várias noites, e outro motivo que a influenciava a participar dessa festa era o parque

de diversões que se instalava nas imediações da Igreja Matriz e, principalmente, a

roda gigante, que era o brinquedo que ela mais apreciava. Vitalina Santos Souza

também participava da festa do padroeiro na cidade da Capela. Um dos motivos que

fazia com que ela se deslocasse da Jueirana para participar dessas comemorações,

assim como dona Elza, era o parque de diversões. Vitalina tinha muito medo de

montar nos brinquedos que os parques ofereciam, mas o seu fascínio pela roda

gigante fizera com que, certo dia, acompanhada de seu irmão e seu cunhado,

desafiasse o próprio medo e desfrutasse das emoções e dos encantos que esse

brinquedo lhe proporcionava. Ela adquiriu tanta confiança na roda gigante que não

montava em nenhum outro brinquedo, “só na roda gigante”.

Vários elementos despertavam os interesses das feirantes Elza e Vitalina

nessa festividade, mas, o ponto alto da festa para elas, outros feirantes e muitas

pessoas da região que freqüentavam a urbe, era a procissão do santo padroeiro que

encerrava essas comemorações no dia 13 de junho.

As procissões foram introduzidas no Brasil desde o governo-geral de Tomé de

Souza, quando chegaram aqui os primeiros jesuítas. Segundo Mary Del Priori, no

período colonial, a difusão das procissões, em dias de festa religiosa, colocava em

evidência a mentalidade das populações que viam no rito processional uma função

tranqüilizante e protetora. Ao lidar com a demanda pietista dos colonos que viam nas

procissões um apoio espiritual, a Igreja passa a lhes dar justificativas histórica e

teológica. Mas, para Del Priore,

A Igreja aproveita também para disciplinar e controlar as populações. Porque as procissões são simultaneamente fenômenos comunitários e hierárquicos. Elas exprimem a solidariedade de grupos sociais subordinados a uma paróquia, reforçando os laços de obediência à Igreja e aos poderes.171

170 Jornal Tribuna Santantoniense, 29/06/1952. AP. 171 DEL PRIORE, Mary. Festas e utopias no Brasil colonial. São Paulo: Brasiliense, 1994, p. 22-23.

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De fato, grande parte da comunidade rural e urbana santantoniense e da

região, se encontravam não só durante o trezenário, como também, na procissão.

Carregando os andores de São Benedito e São José, moradores de bairros

populares e mais afastados do centro da cidade, como o Andaiá e São Benedito,

encontravam-se com as camadas mais abastadas que residiam no centro.

Chegando lá os fiéis se juntavam para demonstrar sua fé e, principalmente, para

receber publicamente, as homenagens daqueles que lhe deviam graças, milagres,

ajudas providenciais e indispensáveis.

Espaços de intercâmbios e interações culturais, a procissão de Santo Antônio

exprimia dimensões do mundo espiritual do qual alguns feirantes faziam parte e

reafirmava a presença desses homens e mulheres praticando o espaço urbano

também no tempo da festa. Longe de ser um espaço isento de hierarquias, o cortejo

apresentava uma ordem que, na prática, também reproduzia hierarquias sociais.

Essas diferenças eram marcadas pelo caráter multifacetado da procissão. Os

fogos de artifício que embelezavam o cortejo e asseguravam uma estética particular

à festa, conferiam um grau de importância também aos homens responsáveis por tal

função naquele momento. À frente do cortejo, o pároco e demais eclesiásticos,

dividiam espaço com a elite local que geralmente eram os escolhidos para fazerem

parte da comissão da festa a cada ano. Junto ao andor, homens da roça ou da

cidade, ora disputavam, ora se revezavam na condução do Santo, excluindo as

mulheres dessa função. Assim como as mulheres da roça, inclusive as feirantes, não

eram escolhidas para fazerem parte da comissão da festa. Mas, mesmo diante

dessa realidade, cada um marcava seu lugar na procissão.

Das festas religiosas que ocorriam na cidade, a festa de Santo Antônio era a

que mais contava com uma presença massiva de homens e mulheres da roça. Mas,

mesmo assim, nem todos os anos os feirantes participavam da festa do padroeiro na

cidade da Capela porque moravam longe e não tinham como disponibilizar um meio

de transporte que pudesse os conduzir até o local da festa. Uma alternativa

encontrada para aqueles que desejavam homenagear o Santo e não podiam se

deslocar até a cidade, era participar das Rezas para Santo Antônio que ocorriam na

roça. Lá os participantes não contavam com as luzes dos parques de diversões, mas

as iguarias servidas e as cantorias entoadas iluminavam com cor e sabor a vida de

vários homens e mulheres da roça nas noites de 13 de junho.

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O mês de junho se configurava como um período de festa muito especial para

os feirantes. Na memória da maioria deles, a festa de São João se constituiu em

uma das comemorações mais contagiantes, mais festiva, um momento em que som,

“luz”, dança e alegria se mesclavam, tornando a noite do dia 23 e a madrugada do

dia 24 um momento mágico e encantador na roça. Esse encanto e essa magia

emergiam nos gestos, no brilho dos olhos e no “ar” de felicidade dos sujeitos sociais

dessa pesquisa. Ao relembrar as festas juninas, homens, como Esmeraldo Nunes,

através de sua performance não conseguiam ofuscar a nostalgia em relação àquelas

noites de São João. João do Couro relembra que

São João na roça era bom, era bom. Aquela festa de muito milho, toda casa tinha aquela fartura, né? De milho, amendoim, um licorzinho. Aquelas pessoa que tinha condição um queijozinho. A gente saía, dificimente as pessoa passava a noite só na casa própria. Sempre saía, um ia pra casa de um, um ia pra casa de outro. As veze amanhecia o dia assim: um visitando o outro; aquele Viva São João! e o forrozinho. Era muito gostoso, era bom.172

Esse momento levou-me a pensar na potencialidade da história oral na

perspectiva de Alessandro Portelli quando afirma que

A história oral se inicia na oralidade do narrador, mas é encaminhada (e concluída) em direção ao texto escrito do historiador. Os narradores orais estão cientes dessa distinção escrita e têm isso em mente na medida em que dão forma às suas performances; por outro lado, a tarefa do historiador “oral” é escrever de tal modo que os leitores constantemente relembrem as origens orais do texto que estão lendo. Por fim, podemos definir a história oral como o gênero de discurso no qual a palavra oral e a escrita se desenvolvem conjuntamente, de forma a cada uma falar para a outra sobre o passado.173

A performance, não só do feirante Esmeraldo Nunes, mas também de outros

sujeitos dessa pesquisa, como é o caso dos feirantes Augusto Laranjeira, João do

172 João Nunes dos Santos. Depoimento citado. 173 PORTELLI. Op. Cit. História oral como gênero. Projeto História, São Paulo, n.22, Jun. 2001, p. 13.

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Couro, Vitalina Souza, dentre outros, nos possibilitou pintar o quadro das vivências,

das práticas e significados que esses sujeitos atribuíam a essas festas.

Um componente fundamental na festa de São João era o cardápio composto

por comidas típicas que seduzia os feirantes durante esses festejos. Para agüentar

dançar a noite inteira, esses homens e mulheres se nutriam e se deliciavam com

muita canjica, bolo de milho, bolo de puba, milho cozido, milho assado na fogueira,

amendoim cozido, laranja, galinha assada, lombo de carne de porco. Para suavizar

a garganta, bebia-se muito licor de cacau, tamarindo, maracujá, jenipapo,

considerado como a bebida tradicional desses festejos, doses de aguardente Buri,

Rio Fundo, Orgia e Sururu, esta última, produzida em Santo Antônio de Jesus, na

destilaria de Hilário Bulhões, era uma concorrente no mercado local e na região da

aguardente Orgia também produzida na cidade. Ambas eram consideradas de boa

qualidade na região, e no período dos festejos juninos parecia uma procissão a

quantidade de homens e mulheres, sobretudo da roça, que se dirigiam ao Alambique

de Clomar Orrico, localizado próximo a Barganha, para comprar a aguardente

Orgia.174

Durante a noite do dia 23 de junho e também no decorrer do dia 24, quando é

comemorado o dia de São João, era comum na roça as pessoas saírem de casa em

casa, visitando parentes, amigos, vizinhos e conhecidos num verdadeiro ato de

celebração e confraternização de laços de amizade e outras formas de

sociabilidades. Essa visita consistia em um “ritual”: ao chegar em frete da casa que

seria visitada, as pessoas perguntavam: “São João passou por aí?” O proprietário ou

proprietária da casa e demais familiares respondiam: “passou”. Nesse momento,

estava concedida a permissão para que todos que estivessem envolvidos nesta

aventura, adentrassem aquela residência, saudassem os donos e familiares e em

seguida degustassem de todas iguarias oferecidas.175

A festa assumia uma estética singular quando o céu era realçado com muitos

fogos de artifícios tocados por crianças, jovens e adultos. Os foguetes ficavam a

cargo de jovens e adultos, e as crianças eram responsáveis pelos vários sons de

bombas, traques de bater e as faíscas de fogo das chuvinhas que coloriam o São

João no interior da Bahia. Mas, o elemento principal da festa, que não poderia faltar,

174 Maria Conceição da Silva. Depoimento citado. 175 Depoimentos de João Nunes dos Santos, Esmeraldo Nunes, Vitalina Souza, Elza Froes…

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era o tradicional forró pé de serra, principalmente o do cantor Luiz Gonzaga,

responsável pela vibração e alegria, e também o motivador de muitas uniões de

rapazes e moças que, contagiados com o som da sanfona, iniciavam namoros que

poderiam resultar em casamentos.

Na roça era comum encontrar bons tocadores de sanfona, violão, zabumba,

pandeiro, dentre outros instrumentos utilizados para embalar a festa de São João,

mas muitos tocadores, que residiam na cidade, durante a festa junina se

deslocavam para roça e, junto aos tocadores locais, faziam grandes apresentações.

Bernardo, Martinho Veiga, Ioiô, Manoel Twister e Daniel eram conhecidos na cidade

e em muitas áreas rurais por serem considerados bons tocadores de sanfona e

violão e por suas brilhantes participações nos festejos a São João.176

Outros tocadores que se destacaram neste período foram Francisco e

Chiquinho, domiciliados atualmente na cidade de Salvador, e Pedro que trabalhava

nas minas de Manganês que existia no Onha, atualmente município de Muniz

Ferreira. Foram homens que tiveram suas marcas registradas na memória popular

por serem bons cantadores e bons tocadores de pandeiro.177

Nos relatos dos feirantes, a festa de São Pedro, considerado o Santo protetor

das viúvas, não era tão animada e divertida como a festa de Santo Antônio e a de

São João. Todavia, no calendário das festas juninas que sacodem a Região do

Recôncavo Sul durante o mês de junho, a festa de São João aparece como uma

festividade ímpar na memória desses sujeitos. Uma das lembranças que motivam

Esmeraldo Nunes a sentir saudade daquelas noites eram as grandes possibilidades

do flerte com as moças que participavam dessa festa. Esses festejos, muitas vezes,

traziam grandes possibilidades de um futuro e promissor namoro.

A possibilidade de namoro também influenciava dona Marcionília e o feirante

João do Couro a se sentirem atraídos por essa comemoração. Outro motivo que

deixava o feirante João do Couro feliz e animado era a grande quantidade de

chapéu de palha que ele vendia no período dos festejos juninos. Este adereço era

um elemento cultural importante do figurino do homem do campo e da cidade

176 Esmeraldo Nunes dos Santos. Depoimento citado. 177 Idem.

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durante a festa de São João. Enquanto as mulheres usavam sortes178 presas ao

cabelo como símbolo de elegância, charme e de feminilidade, o chapéu de palha era

a marca identitária que compunha a elegância e a beleza do universo masculino

durante os festejos juninos.

Durante esse período intensificava-se o ritmo do trabalho entre os feirantes,

principalmente entre aqueles que comercializavam produtos indispensáveis ao

cardápio das festas juninas como milho, laranja, amendoim, dentre outros produtos

como a lenha da fogueira e o chapéu de palha comercializado por João do Couro.

Os feirantes trabalhavam mais, mas também, ganhava-se mais. Este era um

momento em que a alegria dava um novo tom às práticas de mercadejar,

proporcionando uma dinâmica em que o tempo do trabalho sincronizava-se com o

tempo da festa. A feira-livre de Santo Antônio no mês de junho ganhava uma alegria

e um charme especial.

Embriagados com as cores, os ritmos e os sabores da festa de São João,

entre um forró e outro, e em meio a muitos “Viva São João!”, muitos desses

feirantes, em frente a suas casas ou em casas de amigos e conhecidos, firmavam

novas relações de compadrio nas noites de São João. Essa relação, denominada de

compadres e comadres de fogueira, consistia em um ato em que os “novos

compadres” retiravam dois pedaços de pau acesos da fogueira e os cruzavam de

maneira que esse simbolizasse uma cruz. Para ratificar esse ato, os envolvidos

pegavam um na mão do outro e começavam a saltar por cima dos tições da

fogueira, repetindo o mesmo ato por três vezes consecutivas. Este ritual ainda

tornava-se mais interessante com as cantigas que os compadres e comadres

entoavam no momento que estavam firmando esta relação. Era comum, na região,

homens e mulheres tornarem-se compadres e comadres embalados por esses

versos:

178 Sorte é uma flor feita de papel de seda que muitas mulheres na Região do Recôncavo Sul usavam presas ao cabelo nas noites de São João como um adereço que contribuíam com o charme e a beleza do universo feminino.

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São Pedro, São Paulo

São Felipe, São Tiago

Hoje nós benze fogueira

Amanhã nós somo compade.

Juro por Deus do céu que você é meu compade

Boa noite meu compade, foi São João quem mandou.

A consagração da relação de compadres e comadres de fogueira não era

apenas uma mera brincadeira que fazia parte da festa de São João; ao contrário,

esta relação se traduzia em um firmamento cujas noções de respeito, confiabilidade,

consideração e lealdade se imbricavam e nutriam a perspectiva desses homens e

mulheres manterem laços permanentes durante toda sua vida. Os versos que eles

em tom de muita alegria entoavam nesses momentos, fortemente marcado por uma

representação de símbolos da Igreja Católica, podem nos fornecer elementos sobre

aspectos da religiosidade desses indivíduos. Uma religiosidade festiva, comunitária,

com uma dinâmica própria, constantemente recriada.

As pessoas que os feirantes escolhiam para serem seus compadres e

comadres de fogueira, segundo Esmeraldo Nunes dos santos, eram “pessoas de

consideração”. Essas pessoas de consideração eram escolhidas no seio da própria

família ou pessoas consideradas amigas, conhecidas ou de grande estima. Essas

pessoas eram também escolhidas para batizarem seus filhos, que poderiam receber

este sacramento na roça ou na cidade.

O feirante Esmeraldo Nunes batizou seus dois primeiros filhos na roça e os

demais na cidade. Sua primeira filha, Zenaide, fora batizada na zona rural,

localidade do Palma, e seu segundo filho, Valdelito, fora batizado na fazenda de

propriedade de Martins das Neves. Ele relembra que o pároco da cidade

acostumava se deslocar para as localidades do Cocão, Palma e outras áreas rurais

para realizar batizados de muitas crianças. Os batizados de crianças eram ocasiões

especiais em que compadres, comadres, familiares, vizinhos e amigos se reuniam

para celebrar esse acontecimento com uma “comida especial”.179

179 Esmeraldo Nunes dos Santos. Depoimento citado.

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Essa comida especial consistia em bolo, galinha de quintal, feijoada e,

sobretudo, o escaldado, que era servida acompanhada com refrigerante, licor e

aguardente. Nos dias de festa na roça, a comida especial não só atraía parentes e

amigos para as residências de feirantes como também poderia causar

descontentamento entre membros de uma família. Uma dessas ocasiões que

contribuiu para que Vitalina e suas irmãs ficassem bastante chateadas com seus

familiares foi que em um dia de São João ela e suas irmãs acordaram bem cedo e

se deslocaram para tomar banho no rio Nagô, localizado nas imediações de sua

residência na Jueirana, ao retornar, arrumaram-se na esperança de saborear a

comida especial que sua mãe preparava, cujo prato principal era um escaldado que

parecia está tão delicioso “chega estava amarelinho”. Para a infelicidade de Vitalina

e suas irmãs, na hora do almoço, apareceram alguns amigos e colegas de seus

irmãos e vizinhos que ali se encontravam trocando prosa com seu pai e foram

convidados para desfrutar do almoço que sua mãe, Maria Plácida, tanto se

empenhara em preparar naquele dia. Segundo Vitalina Souza, “enquanto as visitas

foi cumê o escaldado que chega tava amarelinho, ela e suas irmãs foi cumê carne

de boi frita com arroz e farofa”. Essa situação a deixou muito inconformada porque

na roça eles se alimentavam no dia-a-dia com comidas simples como: carne de boi

fresca, fato, carne de sertão, mocotó, ovos, feijão e arroz, enquanto que a comida

especial só era servida em dias de festa como São João e Natal. Ela confessara que

ficou “puta da vida” naquele São João.180

Mello Moraes Filho foi um dos primeiros historiadores memorialistas a se

dedicar ao estudo das festas e tradições populares no Brasil. Seu trabalho tornou-se

“original” por registrar as festas populares nos quatro cantos do país, ao mesmo

tempo em que às associava a uma suposta identidade nacional brasileira. Essa

suposta identidade do povo brasileiro se esfacelava quando no decorrer da análise,

o autor mostra que na prática, o exercício dessa nacionalidade ora era

compartilhada por todos, ora passível de expressar diferentes matizes sociais.

Um exemplo dessa realidade é quando o autor mostra um “casamento na

roça”, no interior do Rio de Janeiro, para dar um exemplo das diferentes identidades

culturais entre o “povo”. Os batuques dos escravos e as valsas e quadrilhas dos

convidados dos noivos realizavam-se, de início, em espaços sociais nitidamente

180 Vitalina Santos Souza. Depoimento citado.

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separados. Entretanto, mais tarde, os convidados não resistiram à tentação caindo

nos vários “requebros nacionais”.181

Pode ser que as festas populares expressem uma identidade nacional. Mas, a

meu ver, elas expressam menos uma identidade de um “povo”, que um local de

encontro, conflitos, mistura e comunhão entre todas as etnias e classes sociais. As

festas trazem consigo traços que definem as regiões, o campo, a cidade e suas

gentes. Os relatos acima mencionados, sobre a presença e o viver dos feirantes nas

festas religiosas, expressam um local de criação, de vivências, de permanência e

mudanças de tradições, espaços re-elaborados e marcados por um continuum fluxo

de idéias, pensamentos, costumes, hábitos, corpos e comportamentos que

demonstram a possibilidade de um significativo trânsito cultural entre as pessoas e

seus variados estilos e jeitos de ser e estar no mundo.

Outra festa religiosa que traduz o jeito de ser e estar no mundo era a festa em

louvor a São José, patrono da família e dos trabalhadores rurais. Realizada na

paróquia do bairro Andaiá, parece que não conseguia atrair tanto as atenções

desses feirantes como a festa de Santo Antônio e a festa de São Benedito. A

feirante Vitalina não costumava freqüentar a festa de São José porque a distância

entre essa paróquia e a localidade em que ela morava era maior em relação à

paróquia de São Benedito e porque esta última era uma festa muito animada.

Já no dia 16 de agosto, muitos destes homens e mulheres se reuniam para

louvar e celebrar São Roque considerado pela Igreja Católica protetor dos

infortúnios (doenças) que podem acometer o corpo. João do Couro gostava de

participar da festa de São Roque acompanhando a procissão, geralmente realizada

à tarde no Mingau, localidade onde morava; e à noite indo às festas em algumas

residências de amigos e conhecidos. Uma dessas residências, que ele acostumava

freqüentar no período da festa de São Roque, era a casa do Sr. Militão, onde ele se

divertia muito, dançando e degustando as iguarias oferecidas aos participantes da

festa. Às vezes, a festa se estendia por toda a noite e quando o outro dia raiava ele

e outras pessoas ali presentes tomavam café, permanecendo na casa até o meio-dia

quando era servido uma deliciosa feijoada. “O dono da casa tinha aquele prazê de

fazê aquela festinha e dá até armoço”.

181 MORAES FILHO, Mello. Festas e tradições populares no Brasil. Belo Horizonte: Itatiaia, 1979, p. 21.

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A participação em diversas festas religiosas na roça ou na cidade, expressava

dimensões dos modos de agir, sentir prazer, pensar e interagir, bem como a

dimensão espiritual de vários feirantes que atuaram nessa pesquisa. Um excelente

momento para se perceber essa dinâmica ganhava vizibilidade numa das

comemorações que mais se destacava na região do Recôncavo Sul, que era a Reza

de São Cosme, conhecida também como a Ladainha de Cosme.

Realizada geralmente nos meses de setembro e outubro, essa festa consistia,

na maioria das vezes, em um ato de pagamento de promessas do dono da casa que

estava oferecendo a ladainha aos Santos Gêmeos ou uma perpetuação de uma

tradição transmitida de geração a geração.

Os preparativos para a festa iniciavam-se logo ao amanhecer do dia, quando

a dona da casa reunia ao seu redor na cozinha, no quintal ou em alguma área

externa da casa, várias pessoas para ajudá-la a cortar o quiabo, matar e depenar as

galinhas, fazer o vatapá e o caruru, arrumar a casa e outras atividades inerentes a

esse festejo. Tudo isso ocorria já em clima de muita festa e alegria, e em meio a

conversas e algumas doses de vinho, licor ou cachaça, muitos casos eram

recontados e lembranças de rezas anteriores eram revividas. À noite, a dona da

casa recebia parentes, amigos e vizinhos e uma rezadeira à frente, perante o Altar

dos Santos, assumia o papel de sacerdotisa, entoando ladainhas e benditos em

louvor a Cosme e Damião.

Quando o “caruru era de promessa”, obrigação, devoção ou preceito,

geralmente após a conclusão da ladainha, a dona da casa preparava dois pratos de

caruru e colocava no altar de São Cosme e São Damião, depois estendia uma

toalha branca no chão da sala, colocava sete meninos sentados em forma de círculo

e servia-lhes um prato de caruru acompanhado de porções de arroz, feijão, galinha e

vatapá. A proprietária ou o proprietário da casa, poderia acrescentar ao prato outros

ingredientes como pipoca, rapadura e cana. Os carurus dessa forma, simbolizavam

a presença de elementos religiosos de matrizes africanas também ali presentes. Os

meninos com idades que variavam entre três a sete anos deviam obrigatoriamente

comer o caruru pegando diretamente com as mãos, dispensando o uso de talheres,

e de preferência deveriam ser batizados.

Quando eles começavam a comer, todas as pessoas que estavam na reza,

em meio a palmas, entoavam uma seqüência de cânticos que embalavam e

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envolviam num verdadeiro frenesi crianças, jovens e adultos que participavam do

louvor a Cosme e Damião. Uma das canções mais cantadas nesses momentos era:

Cosme e Damião vem comê seu caruru, isso é de todo ano fazê caruru pra tu. Cosme e Damião vem comê a tua galinha que isso é de todo ano rezá a tua ladainha.

Cosme e Damião, eles dois é meu, foi presente que minha avó me deu. Cosme e Damião, eles dois é meu, foi presente que minha avó me deu.

Quando eles estavam terminando de comer o caruru os participantes da festa

começavam a cantar: “Quem comeu caruru lavar a mão, todo mundo comeu só eu

não. Quem comeu caruru lavar a mão, todo mundo comeu só eu não”.

Os cânticos em louvor a Cosme e Damião revelavam uma memória que re-

atualizavam uma tradição numa crença religiosa, cultural e o culto a uma

ancestralidade. As rezas eram espaços que de certa forma aproximavam tempos,

diferentes credos religiosos, reuniam e distinguiam os sujeitos sociais. Eram festas

que se repetiam todos os anos e atraíam muitas pessoas. João do couro era um dos

feirantes que se divertia muito nas rezas de Cosme e Damião na roça. Ele relembra:

Era bom, sempre eu gostava, sempre na influência de arranjá uma namoradinha, né? Era bom, (muitos risos). É tinha a reza, tinha aquele negócio de candomblé que eu não era chegado, mais na influência de uma namoradinha ficava por ali. Não sambava, não odeio, mas também não participava dessas coisa não. (muitos risos)182

João do Couro confessou ser um homem que não gostava de caruru,

dificilmente ele comia nas festas de Cosme e Damião. Ele também não era adepto a

bebedeira, apenas consumia uma pequena dose de licor que era servido. O que

tornava essa festa divertida, para ele, era o fato de que as festas dos “Santos

Gêmeos” se revestiam em grandes possibilidades de arranjar namoradas que faziam

com que as noites na roça se tornassem mais aprazíveis.O depoimento desse

feirante é relevante também para se pensar na relação entre o sagrado e o profano

em regiões da Bahia. Estudando essa relação na Bahia, Ordep Serra defende que

182 João Nunes dos Santos. Depoimento citado.

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A idéia do profano só tem sentido numa perspectiva religiosa, ou seja, no domínio fenomenológico em que se opõe à noção do sagrado. Essa oposição liga as duas referidas categorias de forma necessária, numa estreita correlação. Aquele para quem não há nada sagrado, nada pode considerar profano. A religião é que divide o mundo nesses dois domínios.183

A festa das Rezas de Cosme muitas vezes durava toda a noite e se estendia

até a manhã do dia seguinte com sambas, batucadas, às vezes incorporações de

santos e caboclos e outros signos e emblemas que fazem parte do universo das

religiões brasileiras de matrizes africanas ou indígenas. Essa dinâmica reafirmava as

diferentes convicções religiosas dos vários sujeitos que faziam aquela festa, ao

passo que balizava fronteiras e ligava possíveis oposições entre o mundo profano e

sagrado daqueles indivíduos. Mesmo não sendo adepto do candomblé, o feirante

João do Couro prolongava suas noites no período das Ladainhas de Cosme.

A realização do caruru de Cosme e Damião estava menos associado ao

poder aquisitivo e à condição social do indivíduo, do que às convicções religiosas de

cada um. Essa crença tornava-se tão importante que a feirante Vitalina Souza fez

questão de ressaltar que na localidade da Jueirana onde morava, por exemplo, os

donos de grandes propriedades rurais, como o Sr. Ranulfo e o Sr. Adalto, não

acostumavam “fazer ladainhas” para os “Santos Gêmeos”. Diferentemente de Maria

Plácida (sua mãe) e dona Fulô, que menos afortunadas, ainda assim, ano após ano,

cumpriam suas obrigações com Cosme e Damião.

Em sua casa, Maria Plácida acostumava rezar as ladainhas, mas não ofertava

o tradicional prato de caruru aos seus convidados, ela imprimia um caráter

específico àquela festa brindando parentes, amigos e vizinhos com bolos e biscoitos,

acompanhados de café, não permitindo sambas nem batucadas em sua casa. Outra

preocupação dessa feirante era com a penetração de outros valores e práticas

sociais no universo cultural de sua prole. É emblemática a rememoração de Vitalina

sobre a reação de sua mãe quando se esforçava em participar dessas festas:

183 SERRA, Ordep. Rumores da festa: o sagrado e o profano na Bahia. Salvador-Ba: EDUFBA, 2005, p. 53.

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Minha mãe não freqüentava, não. Porque começava com o samba e daqui a pouco já tava candomblé. Aí a minha mãe via os povo dá caboclo e aí minha mãe dizia assim: “que nada começou dá caboclo, vombora, vombora, vombora”, eu era menina e ficava dizendo assim: “por quê? Por quê? Por quê?” Ela “vombora, vombora, aqui não tá dano não”. Ela botava a gente na frente e ia embora.184

Laura de Mello e Souza, num estudo sobre feitiçaria e religiosidade popular

no Brasil Colonial, em uma de suas problemáticas centrais, tenta entender a

especificidade da religião vivida pela população colonial, por ser essa eivada de

reminiscências folclóricas européias e paulatinamente colorida pelas contribuições

culturais de negros e índios. O ponto de partida da autora é seguir a pista de uma

realidade em que a vida cotidiana na colônia era pautada na convivência e

interpenetração de populações de procedências várias e credos diversos. Ela afirma

“É nessa tensão entre o multifacetado e o uno, entre o transitório e o vivido que deve

ser compreendida a religiosidade popular da colônia e inscrito o seu sincretismo”.185

Salvo as diferenças de contextos históricos, as idéias de Laura de Mello

servem para se refletir sobre os desdobramentos e as várias configurações que a

religiosidade popular assumiu no Brasil. O século XX trouxe consigo nuanças dessa

realidade, que talvez nos possibilite afirmar: só é possível entender as crenças e a

religiosidade popular, sobretudo quando se trata da maioria das populações que

habitam a Região do Recôncavo Baiano, como um credo que se desenvolve e se

concretiza dentro de um espaço multifacetado, completado com um conjunto de

práticas que dão cor e forma a um tipo determinado e bem definido de

espiritualidade e materialidade. Aqui penso a vida festiva como um lugar onde

mesclas culturais de crenças e credos diferenciados interagiam, negociavam e se

conflitavam na circunstância da festa.

As Rezas de Cosme e Damião podem ser um exemplo disso, espaços onde

não apenas o sagrado interagia com o profano, mas, também, espaços de conflitos

para aqueles que comungavam de convicções religiosas diversas. Os “por quês” de

Vitalina à sua mãe traduzem a inocência de uma menina ainda em idade juvenil; que

gostaria de saber sobre aquilo que para ela era desconhecido. Mas, os “por quês”,

184 Vitalina Santos Souza. Depoimento citado. 185 SOUZA, Laura de Melo e. O Diabo e a Terra de Santa Cruz: feitiçaria e religiosidade popular no Brasil colonial. 3. ed. São Paulo: Companhia das Letras, 1993, p. 99.

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também, problematizam a história e a vida cotidiana, por trazer implícitas questões

referentes a noções e idéias de respeito, tolerância/intolerância e de que cultura

católica pode se falar no Brasil. As festas para os “Santos Gêmeos” eram mais um

momento em que as práticas cotidianas re-elaboravam e subvertiam determinadas

ordens e fronteiras sociais.

Na labuta do dia-a-dia, limites e fronteiras eram balizados através de múltiplas

maneiras de relacionamentos. Apesar de não gostar de participar de Rezas de São

Cosme e Damião que tivesse batuque, samba e outros rituais que lembrassem ou

fizesse parte do Candomblé, Maria Plácida mantinha relações de amizade com um

pai de santo que morava próximo a sua residência na roça, o qual, ela afirmava, era

uma pessoa “gente boa” e gostava muito dele, mesmo proibindo seus filhos de

transitarem nas mediações de seu terreiro e de participarem das festas e cerimônias

que lá ocorriam. Na cidade da Capela, era comum a perseguição e repressão às

pessoas que professavam religiões de matrizes africanas.186

Os festejos aos “Santos Gêmeos-amigos”187 não se restringia apenas à zona

rural, na cidade de Santo Antônio de Jesus, praticamente em todas as ruas, muitas

casas nos meses de setembro e outubro celebravam Cosme e Damião. O grau de

importância e a amplitude desses festejos podem ser melhor compreendidos em

muitos anúncios publicados com freqüência nos meses de agosto (quando

começavam os preparativos para a festa), setembro e outubro, em jornais da década

de 50, sobretudo no Jornal O Detetive, nos quais muitos donos e donas de casas, ao

convidarem os diretores e repórteres do jornal, anunciavam a data em que

realizariam a Ladainha de Cosme e os atrativos que ofereceriam aos participantes

da festa naquela noite. Um dos vários anúncios publicados no Jornal O Detetive

dizia:

Rua Maria Nunes, n 8 – Srs. Diretores d’O Detetive, como nos anos anteriores, faço questão vossas presenças nas festas de Cosme e Damião, efetuarei dia 30, contando concurso gentis senhorinhas nos tradicionais e suaves hinos. Além das vozes excelentes e melodiosas dos jovens Manoel Jambeiro e

186 Sobre as perseguições às pessoas que professavam religiões de matrizes africanas ver o trabalho Nas Encruzilhadas da Cura… Op. Cit. 187 A expressão: “Santos Gêmeos-amigos” foi utilizada por um repórter do Jornal O Detetive em 1º de Outubro de 1950. AP. Este Jornal consistiu em uma publicação da imprensa local, impresso semanalmente.

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Alvorino Vargas, que farão ouvir depois da devoção com suas modinhas, assim também se manifestarão no gozado candomblé, nossos camaradas: Ernesto, Lindo, Astério, Jesuíno, Bernardo Joãozinho e muita gente… O caruru será um sucesso e a orgia tomará o seu predileto lugar. – Aguardo as vossas pessoas e ficarei satisfeito se ouvir um improviso d’um representante da imprensa. Gracindo.188

O anúncio do jornal confirma a preocupação de Gracindo em repetir com

glamour e muita pompa a tradição de rezar as Ladainhas de Cosme e Damião. O

anúncio revela ainda a preocupação com a festa que se completaria com muita

música, batucada, candomblé e orgia. Todavia, algumas expressões que aparecem

nesse anúncio do jornal nos leva a algumas indagações. Como é que o dono da

reza de Cosme faz um convite e já prevê que nessa festa irão se manifestar, “cair no

santo” algumas pessoas convidadas e, ainda, chama de gozado candomblé? Será

que o dono da festa, e quem sabe, o caruru fosse de preceito, trataria seu convite

dessa forma? A orgia a que se refere o convite seria a cachaça ou de fato a

representação que ele fazia de sua festa?

Talvez, pelo fato desse periódico se identificar como um jornal humorístico,

literário e noticioso, o articulista dessa matéria tenha exagerado no quesito humor.

Mas, o que se pode afirmar de fato, é que a maioria dos Carurús de Cosme e

Damião na roça ou na cidade, eram festas que havia muito samba e candomblé.

Nessa perspectiva, nas festas dos santos-gêmeos dimensões do Catolicismo

Popular eram recriadas.

O glamour e a pompa que revestiam algumas dessas Rezas de Cosme e

Damião poderiam ultrapassar qualquer limite e abrir possibilidade de entendimentos

da relação direta entre fé e poder entre aqueles que rendiam homenagens aos

“Santos Gêmeos”. Em certa ocasião, um devoto desses santos, denominado

Madeira, morador da rua Maria Nunes, nº 22, festejou Cosme Damião por três dias

consecutivos. O dono da casa, além de oferecer um baile e chulas calorosas de

candomblé aos participantes, contratou uma hábil doceira da cidade do Rio de

Janeiro para confeccionar com arte e beleza um lindo bolo que ele denominara de

Cosme e Damião. Segundo o Sr. Madeira, figuras de alto valor na cidade se

188 Jornal O Detetive, nº 209. 09 de Setembro de 1951, ano 5. Arquivo Particular.

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deixaram contagiar pelo entusiasmo excessivo que marcara a sua tradicional festa

de Cosme e Damião naquele ano.189

Os festejos em louvor a Cosme e Damião atribuíam poder e respeitabilidade

aos organizadores da festa. Charles D’Almeida Santana, ao analisar a dimensão das

festas religiosas, sobretudo, as Ladainhas de Cosme e Damião entre os

trabalhadores rurais da cidade de Conceição do Almeida e Santo Antônio de Jesus,

afirma

[…] Que nos atos religiosos, era atribuída dignidade aos participantes, independentemente de suas idades, sendo que o organizador, orgulhoso, adquiria respeito. Uma religiosidade de caráter festivo, que se distanciava do sacrifício, do auto-flagelo, do pecado e da punição, aproximando-se da felicidade e do prazer, do colorido integrado ao cotidiano […].190

O cruzamento das narrativas de João do Couro e Vitalina Souza com os

anúncios publicados no Jornal O Detetive nos leva a afirmar que, tanto na roça

quanto na cidade, as Rezas de Cosme e Damião se traduziam em uma festa

frenética, contagiante, símbolo de prazer, alegria e felicidade, cujas possíveis

noções de pecado eram questionadas ou re-elaboradas naquele momento. Ali

poderia ser o espaço da contradição, mas poderia ser também o espaço da

pluralidade, da harmonia, onde o sagrado e o profano se demarcavam e se

aproximavam, se materializavam e se reafirmavam a partir das relações e práticas

sociais que naquele momento se manifestavam.

Alguns feirantes participavam também das Ladainhas de Cosme na cidade.

Naquela época, não consistia em obrigatoriedade ser convidado pelo anfitrião da

festa para poder participar, ao contrário, era uma tradição todo mundo que chegasse

em alguma casa onde estivesse sendo oferecido o caruru se integrasse à festa.

Outros feirantes tinham um motivo muito especial para gostarem deste período do

ano entre os meses de setembro e outubro.

Durante esses meses os feirantes que mercadejavam produtos que eram

utilizados para compor a festa de Cosme e Damião, como o quiabo e a galinha, por

189 Jornal O Detetive. Santo Antônio de Jesus-Ba. Nº 212. 30 de setembro de 1951, ano 5. AP. 190 SANTANA. Fartura e Ventura Camponesas. Op. Cit. p. 63.

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exemplo, tinham suas vendas intensificadas. Augusto laranjeira se sentia muito feliz

neste período, porque as Ladainhas de Cosme e Damião, que ocorriam tanto na

roça quanto na cidade, movimentavam bastante seu comércio, nesses meses ele

vendia muitos pratos de argila chamados caxixi, utilizado para colocar caruru no altar

dos “Santos Gêmeos”, muringas para depositar água e puritanas de Cosme.

Esmeraldo Nunes vendia bastante azeite no “mês de Cosme”. Mulheres e homens

da urbe e da roça para a barraca desses feirantes se dirigiam atrás desses produtos.

Esse era um outro momento onde o tempo do trabalho harmonizava-se com o tempo

da festa de Cosme e Damião.

Não só o prazer e alegria faziam parte do mundo festivo dos feirantes. O

“sacrifício”, algumas vezes, era outro componente que convivia ativamente nas

festas e celebrações religiosas que estes homens e mulheres promoviam. Durante a

Semana Santa, dona Maria Plácida acostumava sair da Jueirana a pé e se deslocar

até a Igreja Matriz para participar da Via-Sacra, e na Sexta-Feira da Paixão ela ia

para participar da procissão. Para sua filha Lina, “mãe era uma mulher que tinha

muita força de fé”.

A fé conduzia a feirante Maria Plácida a fazer sacrifícios maiores que

transcendiam os limites fronteiriços da Região do Recôncavo Sul. Ela acostumava

viajar de carro, todos os anos, para a Cidade de Candeias, localizada na Região

Metropolitana de Salvador, e chegando lá um barco a transportava em romaria para

cumprir sua devoção com Nossa Senhora das Candeias. Entretanto, sacrifício maior

dona Maria Plácida fizera em certa ocasião quando decidiu se deslocar a pé da

localidade onde morava, Jueirana, até a cidade de Milagres de Brotas. Em

companhia de uma filha e seu noivo, um vizinho e sua filha, eles saíram

predestinados a visitar Nossa Senhora de Brotas no Sertão da Bahia.191

O sacrifício despendido nesses momentos era recompensado com o “ar” de

alegria, prazer e felicidade com que ela retornava para casa. Esse sacrifício tornava-

se possível, também, pelo fato de os filhos já estarem quase todos adultos e

trabalhando. Seu filho Alfredo trabalhava nas minas de manganês no Sapé,

enquanto que Firmino trabalhava nas minas localizadas na Pedra Preta. Essa

191 Vitalina Santos Souza. Depoimento citado.

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situação deixava dona Maria Plácida se sentir segura para sair e deixar sua casa por

vários dias sobre a responsabilidade de seus filhos.192

O calendário festivo dos feirantes encerrava-se no mês de dezembro com as

festas natalinas e de final de ano. As festas natalinas aparecem na memória dos

atores dessa narrativa como um festejo simples, quando se fazia comida especial,

mas sem a animação, divertimento e as múltiplas possibilidades de “estar bem” que

outras festas poderiam lhes proporcionar. Mesmo assim, os feirantes se

preocupavam em comprar uma roupa nova para a ocasião e sair visitando várias

casas de amigos e vizinhos que montavam presépios em suas residências para

homenagear o nascimento do menino Jesus.193

O trabalho árduo na roça ou na cidade não significava a ausência de lazer e

divertimento na vida dos feirantes. Na ambivalência entre o profano e o sagrado,

entre Rezas de Cosme e Damião, festa do Padroeiro na cidade e São João na roça,

correndo atrás de Burrinhas e Bumba-Meu-Boi, sem luz elétrica ou meios de

transportes mais eficientes, esses homens e mulheres participavam ativamente de

festas e diversões, souberam aproveitar as condições e possibilidades que eram

possíveis em cada momento, imprimindo-lhe um caráter peculiar que nos permite

perceber os sentidos e usos do tempo livre; mais do que isso, souberam ainda usar

da criatividade para criar uma sincronia efetiva entre o tempo da festa e o tempo do

trabalho.

Nesses encontros de pessoas, culturas, religiões, formas de lidar com as

coisas deste e do outro mundo, uma variedade de combinações ocorreram. As

festas religiosas eram frutos dessas combinações.

4.2 (En)cantos na Cidade.

As “luzes da cidade” seduziam homens e mulheres da roça a participarem

também de outras formas de lazer, festas, diversões e entretenimentos que a urbe

192 Idem. 193 Esmeraldo Nunes dos Santos. Depoimento citado.

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oferecia. Uma das mais tradicionais festas realizada na cidade de Santo Antônio de

Jesus era a Micareta que atraía foliões de várias localidades, por causa das

batucadas, cordões e pranchas alegóricas194 que atraíam muitas senhoras e

senhores, moças e rapazes a saírem por algumas ruas da cidade cantando e

dançando ao ritmo da folia momesca. A micareta era abrilhantada também com

lança-perfume, ventarolas, confetes e serpentinas que coloriam os três dias de festa

em Santo Antônio de Jesus e, sobretudo, as Quatro Esquinas, local próximo à praça

central da cidade, que era sempre o ponto central dessa festividade.195.

Nas Quatro Esquinas, geralmente, se encontrava um serviço de alto falante

que dava banhos de trovoadas nos ouvidos de todos os participantes da festa,

anunciando mais um ano de realização da festa pagã na cidade. A rua 2 de Julho e

a Praça Félix Gaspar tornavam-se verdadeiros arco-íris noturnos ao apresentarem

extensa e magnífica rede de lâmpadas multicores incentivando assim, que os bailes

se prolongassem até a madrugada.

Os cordões de adultos saíam das diversas ruas da cidade levando muita

animação e brincadeiras até as Quatro Esquinas, enquanto que os cordões infantis,

a exemplo do Cordão Princesas Infantis, exibiam evoluções denominadas caracóis

artísticos em saracoteios e bailados encantadores. Nos dias que antecediam a festa,

havia ainda a escolha da rainha e das princesas da micareta que se exibiriam pela

cidade nos dias da folia. Toda a festa era animada ao som de belas orquestras e um

ótimo serviço de doces e gelados, complementada com variadas bebidas que davam

um sabor muito especial à folia.

No final dos anos 40 e início dos anos 50, a micareta de Santo Antônio de

Jesus fora ameaçada de cair no ostracismo em face da falta de recursos do poder

público para realizá-la. Esta situação causou profunda indignação em alguns

moradores da cidade, sobretudo moças e rapazes que, ávidos pela folia, não

pouparam esforços em se organizarem para reivindicar a realização dessa festa. Em

uma correspondência enviada ao Jornal O Detetive, em 22 de janeiro de 1950, os 194 Prancha era a denominação dada ao carro alegórico que desfilava pelas ruas da cidade exibindo em sua plataforma, moças em trajes carnavalescos que dançavam ao som das marchinhas de carnaval. Nos anos 40, 50 e 60, a Prancha era um caminhão revestido de madeira compensado e enfeitado com muitas luzes e muitos outros adereços. Anterior a este período, as pranchas alegóricas eram movidas a carros de boi. 195 Sobre as peculiaridades da festa da Micareta na cidade de Santo Antônio de Jesus, ver os jornais O Paládio, O Detetive, A Voz das Palmeiras… Esses periódicos trazem vários aspectos dessa festa na cidade.

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senhores Lino, Ernesto, Rômulo, Lauzinho, Nelson, Salvador, Avelino, Paulo e Regis

escreveram:

Exmº Sr. Diretor d’O Detetive – saudações. Nós abaixo assinados, sempre e sempre estivemos francamente ao lado dos foliões carnavalescos e continuaremos intransigentemente coesos neste modo de pensar. Não havemos de morrer, nem tampouco chorar por causa do bife, dez cruzeiros! Por conseqüência, tomamos a resolução definitiva de não deixar o carnaval em nossa cidade das Palmeiras passar no ostracismo em que se tem conservado nestes últimos anos; pelo que, vamos trabalhar para fazer fortes e decentes brincadeiras carnavalescas, contando desde já com a colaboração e indispensável propaganda d’ O Detetive.196

Apesar da carestia dos preços de alimentos, como a farinha de mandioca e a

carne que assolaram a cidade no início dos anos 50, os jornais O Detetive e o

Paládio tornavam público as reivindicações de muitos moradores e moradoras da

cidade, solicitando a realização da festa. A reivindicação dos moradores locais foi

atendida e a micareta realizada, apesar de não demonstrar a grande pompa e

vibração de anos anteriores.

A micareta realizada na cidade no ano de 1951, apesar de não corresponder

às expectativas de alguns, recebeu seus foliões com muito frevo nas Quatro

Esquinas. A cidade assistiu às apresentações dos Cordões Inocentes em Progresso,

da rua do Calabar, Garotas em Folia, da rua da Bela Vista, e o Batuque Malandros

Abandonados, da rua da Linha. Infelizmente, neste ano não saiu no primeiro dia o

Cordão do Zé Pereira, mais conhecido como Clube do Silêncio, que acostumava

romper o sono da madrugada acordando todos para a folia momesca.197

Segundo um jornal local, a pouca animação que marcara a micareta em 1951

era sintoma de um mal vindo de longe, do Rio de Janeiro, a capital do carnaval

brasileiro, onde também não houvera animação naquele ano. Na Bahia pela mesma

forma. Para o autor da matéria, era o custo de vida e a falta de trabalho as únicas

causas de toda a falta de animação, “porque ninguém se sente alegre com o bolso

196 Jornal O Detetive. Santo Antônio de Jesus. 22 de Janeiro de 1950. Nº 128, ano 3 – AP. 197 Jornal O Detetive. Santo Antônio de Jesus. 08 de Abril de 1951. Nº 188. Ano 4 – AP.

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puro e desempregado”. Para acabar de completar o quadro de desanimação, a

chuva colocara água no brinquedo dos foliões.198

Mas, nem tudo fora desânimo durante aquela micareta, no segundo dia de

folia, o domingo, todos os Cordões reuniram-se em frente à barbearia Cristal, na

Praça Padre Mateus, para receberem os seus prêmios em brindes e dinheiro

oferecidos pela Loja Brasil e outras casas comerciais que haviam nesta praça.

Houve muitos gritos, ovações e palmas. O serviço de alto falante não parou durante

toda a festa tocando discos animados e novos hits para os foliões.

À noite houve vários bailes na Sociedade dos Artistas, no Mercado Municipal,

na Sociedade Filarmônica Amantes da Lyra, no Sindicato Fumageiro e no Prédio

Escolar, todos eles, segundo a matéria do jornal, foram bailes muito animados que

se prolongaram até a “alta” madrugada.199

FIGURA 09 – 1º TRIO ELÉTRICO

FONTE: Arquivo Particular de Amarílio Monteiro Orrico. (1948)

198 Idem. 199 Idem.

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Parece que no final dos anos cinqüenta e início da década de 60, a tradicional

micareta de Santo Antônio de Jesus ganhara um novo “vigor” com a introdução do

trio elétrico na festa momesca. Em 1958, o trio elétrico Palmeiras, de propriedade do

senhor Zé Garrincha, fazia sua primeira apresentação na cidade animando foliões

de todas as idades. Em 1961, a cidade contava com a presença de mais um trio

elétrico, o trio Brasil, cujo proprietário era o senhor Diguinha.200 Embora, segundo a

memória fotográfica, já em 1948 o primeiro trio elétrico teria aparecido na cidade.

Em suas lembranças do tempo que participava da micareta em Santo Antônio

de Jesus, a feirante Elza Froes da Fonseca relembra que essa era uma festa muito

boa e que o povo brincava muito. “Era uma festa alegre, divertida e que não havia

violência como as festas de hoje”. Na narrativa de pessoas que participavam dessa

festa na urbe, um dos momentos mais marcantes na Micareta em Santo Antônio de

Jesus era o desfile das Pranchas Alegóricas que exibiam beleza e alegria,

disputando a atenção dos foliões na cidade.

No ano de 1957, a senhorita Maria Clarice Santiago Almeida e sua irmã,

Maria da Glória, ambas atrizes que se apresentavam em peças de teatro no Cine

Glória e no Cine Rex, se empenharam em se apresentar na festa da micareta e

concorrer no concurso das Pranchas Alegóricas. Para realizar esse objetivo, Maria

Clarice e sua irmã destinaram uma alta quantia de dinheiro para contratar um

homem estrangeiro, denominado de Cheik, para confeccionar o carro alegórico no

qual elas iriam desfilar. O segundo passo foi comprar os tecidos na cidade de

Salvador para costurar as roupas que ambas iriam usar nos dias da folia da

micareta.201

A roupa foi confeccionada com tecido Laquê vermelha e azul, com muito

brilho e muita Lantejoula. Elas usaram uma Calça cujo comprimento ia até o joelho e

uma blusa com muitas flores realçadas com Lantejoula. Para animar os foliões e

conquistar o júri, as duas irmãs contrataram uma Banda de jazz da cidade de

Salvador, considerada muito boa, cujos integrantes eram cegos que faziam parte do

Instituto de Cegos da Bahia, e durante os três dias de folia ficaram hospedados no

Hotel Palmeiras.

200 Depoimento Edmilson Barbosa Bittencourt. Músico. Aposentado. Praça Silvestre Evangelista nº 338, Santo Antonio de Jesus, 64 anos. 201 Depoimento Maria Clarice Santiago Almeida. Aposentada. Rua: Avenida Luiz Viana nº 596, Santo Antônio de Jesus, 69 anos.

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Essa Prancha Alegórica, denominada por elas de Pássaro Cativo, além da

presença delas e de outras moças que dançavam e exibiam suas performances e

formosuras na plataforma do carro (caminhão), exibia como destaque uma gaiola

com uma menina de seis anos de idade que, sentada dentro da gaiola, representava

os “sentimentos” de um passarinho quando está preso em seu cárcere. A música

composta para representar a temática escolhida por elas e animar a festa na cidade,

também vitoriosa naquele ano, trazia os seguintes versos:

Se eu fosse um passarinho

Escolheria meu alçapão

Eu comeria o meu alpiste

Na palminha da tua mão. (bis)202

A micareta em Santo Antônio de Jesus consistia em espaço de festa e alegria,

mas também, em espaço de protestos, contestação, espaço na qual múltiplas

dimensões do viver humano se imbricavam. As modinhas cantadas pelas Pranchas

Alegóricas faziam com que os foliões não só cantassem e dançassem, como

também refletissem sobre temas e questões que faziam parte do universo da

existência humana na contemporaneidade, desde a carestia dos preços,

desemprego, a questões mais subjetivas, como o exemplo da modinha da Prancha

Alegórica acima citada, que ao cantar a música Pássaro Cativo, metaforizava

questões referentes a dimensões de liberdade dos seres humanos e outros seres.

Talvez por serem mulheres que vivenciavam noções de liberdade fortemente

marcadas por padrões e normas ainda patriarcais, resolveram levar essa modinha

para as ruas durante a festa momesca tendo em mente aquilo que Durval Muniz de

Albuquerque Júnior diz ser o carnaval.

O carnaval é o momento de brincar com os códigos sociais, de ultrapassagem de fronteiras estabelecidas pelos costumes, valores e hábitos, momento de invenção do novo, de criação, de confusão de fronteiras, de horizontalização das relações e

202 Idem.

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questionamentos das hierarquias, momentos de brincar com as identidades e construir o diferente.203

Essas representações podiam ser vistas nas fantasias, nas danças, nos

gestos, nos nomes dos cordões e batucadas, nas modinhas e também na própria

forma de ocupar os espaços da rua naqueles dias de folia. João do Couro era um

feirante que não “pulava” a micareta, mas, às vezes, ia para a festa com sua esposa,

levar os filhos ainda pequenos para apreciar a folia, mas, logo cedo ele retornava

para casa. A participação mais efetiva dele nessa festa era como comerciante,

porque ele aproveitava para vender chapéu de palha no meio da rua durante os três

dias de festa na cidade. Nos anos 50 e 60, era comum as pessoas usarem chapéu

de palha na cabeça como um elemento a mais que compunha o figurino e as

fantasias de alguns foliões, também, na festa de Momo. As fronteiras entre a folia de

momo e a ocupação do espaço na rua eram também demarcadas com a

participação efetiva do feirante João do Couro vendendo um dos produtos mais

tradicionais do seu ramo de negócios.

A experiência em vender chapéu de palha em micareta não se restringia à

cidade da Capela, João do Couro acostumava se deslocar para a tradicional

micareta da cidade de Feira de Santana, considerada por alguns a mais antiga

micareta do Brasil. Chegando lá, juntava-se a outros vendedores residentes daquela

cidade, expondo no meio da feira, localizada na Rua Senhor dos Passos, chapéus

de palhas que, segundo ele, “fazia boas vendagens naquele tempo”.

O feirante Esmeraldo Nunes dos Santos não participava muito da festa da

micareta em Santo Antônio de Jesus, mas, nos anos que ele ia, achava muito

bonita, mas não dançava, ficava apenas olhando outros foliões realizar suas

performances. Diferentemente desse feirante, Vitalina Souza ia com freqüência à

Micareta da cidade e sentiu-se muito feliz quando completou a maior idade, porque

ia para a festa com as amigas Noêmia, residente atualmente na cidade de São

Paulo e Lina, que aproveitava a liberdade de estar sem sua mãe na festa para flertar

203 ALBUQUERQUE, Durval Muniz. Nordestino: uma invenção do falo: uma história do gênero masculino (Nordeste – 1920-1940). Alagoas: Catavento, 2003, p. 80-81. Sobre essa questão ver também Mikail Baktin quando diz que as festividades tiveram sempre um conteúdo, um sentido profundo, exprimiram sempre uma concepção de mundo. In: A cultura popular na Idade Média… p. 7.

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com o feirante Augusto Laranjeira, bastante conhecido pelas moças da roça e da

cidade por sua fama de ser um grande namorador.

Entre alguns empurrões e algumas brigas, para Vitalina Souza, um dos

momentos mais marcantes da festa era ver os Cordões, repletos de gente,

chegarem ao seu destino final, nas Quatro Esquinas, quando lá havia uma acirrada

disputa entre eles para obter o título de melhor Cordão do ano.Muita gente se

aglomerava nas Quatro Esquina, na Praça Padre Mateus e imediações para

torcerem e vibrarem por seus Cordões prediletos. Esse espetáculo era apreciado por

sujeitos mais abastados da cidade que acompanhavam toda a movimentação e o

desenrolar do concurso das sacadas de seus sobrados, e o povo, em geral ao rés

do chão da praça nos passeios e calçadas, se divertia muito e, entre um flerte e um

olhar, aproveitava para paquerar e namorar.204

FIGURA 10 – CORDÃO DE MICARETA

FONTE: Arquivo Particular de Amarílio Monteiro Orrico. (Década de 1950)

Parece-nos que, de fato, as Pranchas Alegóricas e cordões como Chiquita

Bacana, Garotas em Folia, Inocentes em Folia e a Batucada Malandros

204 Vitalina Santos Souza. Depoimento citado.

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Abandonados eram verdadeiros espetáculos a parte que faziam a alegria dos

foliões. O feirante Augusto Laranjeira desfilava em cordões e batucadas, às vezes,

no comando dos mesmos como puxador. Esses cordões corriam a cidade por

grandes distâncias a exemplo de cordões que saíam do arrabalde do Andaiá indo

até o bairro do Cajueiro e vice e versa.

O que nos chamou atenção nestes cordões, a exemplo do Bloco Chiquita

Bacana, é que para o folião se inscrever deveria se dirigir à sua sede localizada no

Palmeira Bar munido dos seguintes documentos: atestado de conduta, certidão de

Idade que provasse ser maior de 21 anos, atestado de saúde, provando não sofrer

do fígado, nem de moléstias contagiosas, atestado de independência social e

jurídica e, sendo casado, ainda o consentimento da esposa com firma reconhecida

pelo tabelião local.205

Pelo menos no Bloco Chiquita Bacana não era tão fácil o folião ingressar

devido aos pré-requisitos que a direção desta entidade exigia. Tudo leva a crer que

esses cordões se organizavam reproduzindo as distinções sociais que aquela

sociedade apresentava, com fortes elementos de divisão de classe social. O

atestado de independência social e jurídica pode ser um forte indicador que balizava

essas fronteiras.

Essas fronteiras sociais também eram demarcadas nos vários espaços onde

se realizavam os bailes durante a folia momesca, Clube como o Palmeirópolis era

freqüentado pela alta elite da cidade e de outras localidades, enquanto que as

camadas populares citadinas se divertiam nos bailes que ocorriam nas sedes das

filarmônicas. Parece que essas barreiras desestimulavam a presença de feirantes

nos bailes durante o período de realização da Micareta.

Voltando aos prazeres que esta festa podia proporcionar, Vitalina Souza não

“namorava muito” na micareta porque tinha medo de ocorrer com ela o que

acontecia com outras moças. As moças que namoravam “demais”, segundo ela;

“namorava, namorava, namorava, aconteceu, ficou lá, aí a pessoa já ficou lá

excluída”. Parece-nos que a feirante convivia com o medo de engravidar, enfrentar

“a língua do povo” e possíveis desavenças e desafetos com seus pais. Para ela,

essa situação poderia significar um possível estigma social e isso era algo que ela

205 Jornal O Detetive. Santo Antônio de Jesus. 19 de Novembro de 1950. nº 168, ano 4. A.P.

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não desejava atrair para si. A feirante também revelou que não “dançava” nas festas

de micareta.206

A experiência do não dançar aparece em alguns dos relatos dos sujeitos que

participavam da micareta na cidade. Ao que me parece, o ato do “não dançar” que

emergiu na memória destes homens e mulheres, a partir de suas narrativas, revelam

um momento fortemente marcado pelas diferenças e singularidades no dançar de

pessoas oriundas de universos culturais diferenciados. É possível que o jeito do

homem do campo, considerado “jocoso” por algumas pessoas, influenciasse numa

possível inibição. De fato os feirantes estavam mais acostumados a ouvirem e

dançarem hits de forrós e músicas mais próximas do contexto cultural ao qual

pertenciam. Os homens e mulheres da cidade da mesma forma.

Nessa perspectiva, acredito ser interessante pensar a festa da micareta

enquanto um espaço plural e singular, plural porque todos dançavam sim, mas,

dançavam cada um a sua maneira e, dançar cada um a sua maneira, significava

singularizar um espaço cujas diferenças eram presentes e marcantes. Mas, a própria

diferença abria possibilidades de criação de um jeito de ser e estar na festa, que

contribuía com a “sincronia e harmonia” que reinavam durante os dias de folia em

uma das principais micaretas existente no Recôncavo da Bahia.

Um outro grande atrativo para aqueles que participavam da Micareta em

Santo Antônio de Jesus era ver as luzes multicores que iluminavam a Praça principal

da cidade, as Quatro Esquinas, Praça Félix Gaspar e localidades próximas no

período da folia momesca. Em Salvador, a luz elétrica era um atrativo desde o final

do século 19 e a iluminação de alguns monumentos públicos tornou-se uma nova

forma de lazer, a exemplo da iluminação do monumento ao 2 de Julho, situado no

Campo Grande, que foi transformado em grande espetáculo.207

Na cidade da Capela, a energia a lenha chegara ainda nas primeiras décadas

da República, no ano de 1928, através da usina, cuja máquina fora comprada na

Alemanha pelo senhor Rosalvo. Nos anos 40 e 50, a energia era fornecida do Rio

Paraguaçu (da região de Bananeira) na cidade de Muritiba.208 Em 11 de novembro

206 Vitalina Santos Souza. Depoimento citado. 207 FONSECA, Raimundo Nonato da Silva. “Fazendo fita”: cinematógrafos, cotidiano e imaginário em Salvador, 1897-1930. Salvador-Ba: EDUFBA, 2002, p. 42. 208 Amarílio Monteiro Orrico. Ex-vereador. Aposentado. Trav Castro Alves nº 67, Santo Antônio de Jesus, 93 anos.

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de 1960 o poder executivo assina convênio com a Companhia de Eletricidade da

Bahia (COELBA)209. Em 23 de Junho de 1962 inaugurou-se a energia elétrica na

cidade fornecida pela Usina Hidrelétrica de Paulo Afonso.210

No final dos anos 20 e nos anos 30 do século passado, apenas a Praça

principal da cidade, Praça Padre Mateus, era assistida com o serviço de energia

que, pela pouca potencialidade, só fornecia eletricidade até as 10 horas da noite,

após esse horário a praça costumava a voltar à escuridão.

Tudo nos leva a deduzir que o processo de “expansão” desse serviço, no final

dos anos 40 e início da década de 50, seguiu uma ordem baseada em distinções

sociais, cujas primeiras ruas e bairros beneficiados com esse serviço foram aqueles

mais próximos do centro da cidade, como é o caso da Rua Rui Barbosa, Avenidas

Barros e Almeida e Luiz Viana, Rua dos Expedicionários e Bairro São Benedito, local

onde os moradores numa tarde de domingo fizeram uma grande festa para saudar o

prefeito Antônio Fraga pela iniciativa de ampliar a rede de iluminação pública até os

quadrantes daquele subúrbio.

Para a realização da festa, fora instalada na localidade um serviço de alto-

falante. Pessoas consideradas ilustres na sociedade santantoniense, como o artista

Adelino Costa Bitencourt, Dr. Antônio José de Araújo e a senhorinha Zilda de Castro

Araújo, no Coreto localizado no meio da referido bairro, na ocasião usaram a palavra

para exaltar a figura do prefeito pelos seus feitos.

O bairro estava ornamentado e fora oferecido à população um banquete

composto de sanduíches, licores e cerveja. Quando o prefeito proferiu seu discurso

foi ovacionado pelas pessoas que ali se encontravam e, em meio a confetes,

serpentinas e flores, ouviram o troar de várias girândolas dos foguetes. Houve várias

e atrativas diversões naquela tarde e, ao retornar para a sua residência já à noite, o

prefeito Antônio Fraga fora acompanhado por uma passeata ao som das

emocionantes partituras tocadas pelas Filarmônicas Amantes da Lyra e Carlos

Gomes.211

Ruas mais populares e mais afastadas do centro da cidade, como é o

exemplo da Rua do Calabar, só foram beneficiadas com o serviço de energia elétrica

209 Lei n. 17 de 1960. Livro de Leis, Decretos e Portarias. p. 141. APMSAJ. 210 Amarílio Monteiro Orrico. Depoimento citado. 211 Jornal O Detetive. Santo Antônio de Jesus. 16 de Abril de 1950, nº 140, ano 3. AP.

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no ano de 1963, enquanto que a expansão desse serviço nas localidades rurais só

fora posta como uma meta a ser cumprida pelo setor público nos anos 80 do século

XX. Além de uma necessidade às novas exigências que a vida urbana anunciava, a

luz elétrica proporcionava a inserção de homens e mulheres da roça em novas

formas de diversões, lazer e entretenimento que a urbe poderia lhes oferecer.

Uma dessas novas formas de entretenimento tornava-se possível porque nos

anos 50 e 60 a cidade de Santo Antônio de Jesus possuía o Cine-Teatro Glória e

Cine Rex que exibiam várias atividades culturais na cidade.

FIGURA 11 – CINE-TEATRO GLÓRIA

FONTE: Arquivo Particular de Amarílio Monteiro Orrico. (Década de 1950)

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O Cine-Teatro Glória inicialmente fora uma construção arquitetônica de

propriedade da Filarmônica Amantes da Lyra que começou a construí-lo com o

objetivo de sediar essa instituição. A construção ficou abandonada e os

protestantes, então, queriam comprá-la com o intuito em transformá-lo num templo

religioso. Sabendo desta notícia, o pároco local expressou sua insatisfação dizendo

não querer os protestantes perto de sua Igreja. O iminente conflito fora resolvido

mediante a compra dessa construção, pelo padre da cidade, que custara 4 contos

de réis. A construção por vários anos ficou novamente abandonada servindo de

abrigo e hospedagem para pessoas que vinham de várias regiões do Nordeste

fugindo da seca. Logo após, o senhor Salustiano Almeida Sampaio tornou-se

proprietário desse imóvel transformando-o em Cine-Teatro, espaço cujo nome era

uma homenagem a sua primeira esposa que se denominava Glória.212

Este teatro serviu de palco para várias apresentações na cidade. A atriz Maria

Clarice Santiago Almeida, filha de pais que moravam na zona rural, foi morar na

cidade por decisão de sua mãe que queria que ela desse continuidade aos estudos.

Uma das grandes paixões da adolescente era cantar, dançar e representar, sonhos

que ela conseguiu realizar encenando várias peças teatrais na cidade de Santo

Antônio de Jesus.

Uma das peças que ela e sua irmã – que também reunia essas características

e um grande talento para a música – encenara no Cine Rex tinha como tema central

o desaparecimento de seus pais quando ainda estavam pequenas. Ao relembrar

momentos significativos para ela e a platéia que lhe assistia, ela recorda uma parte

final do texto em que ela representava uma moça chamada Dulce e contracenava

com sua própria irmã que na peça fazia o papel também de sua irmã, denominada

de Ivete, e uma vendedora de flores que dizia assim:

Vendedora: Com licença moça, quer fazer um favor de comprar umas flores?

Dulce: Oh! Minha senhora, não é favor comprar tão belas flores, é assim essa florzinha roxa como a saudade, fica maravilhosa no cabelo.

Ivete: Mas Dulce, tu encontras todo dia o Aldo e anda sempre com saudade? Ah é! O amor é assim minha filha.

212 Amarílio Monteiro Orrico. Depoimento citado.

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Dulce: Não fala em Aldo Ivete, não fala em amor, a saudade que eu sinto é de minha mãe.

Vendedora: A mocinha não tem mãe?

Dulce: Pensou que eu tenho minha senhora? É esse o grande infortúnio da minha vida. Como se chamava seu marido?

Vendedora: Paulo Campos

Dulce e Ivete: Paulo Campos?

Vendedora: Vocês são minhas filhas Dulce e Ivete.

Dulce e Ivete: Mamãe, minha mãe.213

Ao final da peça, com o som de uma música que dizia em seus versos “Ando

triste, a noite desce…”, uma comoção geral tomou conta do público, que ao final

estava a chorar. O sucesso fora tão grande que elas apresentaram este espetáculo

também na cidade de Cruz das Almas, localizada na Região do Recôncavo Sul da

Bahia.

A atriz Maria Clarice Santiago relembra também de um musical que ela

apresentou no Cine Glória que homenageava os estados do Brasil. Ela ficou com a

responsabilidade de representar o Estado do Pará. Para essa apresentação, seu

figurino fora um vestido amarelo de babado com uma faixa amarrada ao meio. Os

versos da música encenada por ela diziam:

Da borracha preciosa indústria

Outro império mais vasto não há

Mil riquezas ocultam em meu seio

Pois eu sou o Eldorado Pará.214

Maria Clarice Santiago afirma que apesar da maioria dos freqüentadores dos

espetáculos no Cine-Teatro Glória e no Cine Rex serem pessoas oriundas da

cidade, pessoas da zona rural também freqüentavam. Dentre os sujeitos desta

pesquisa não apareceu nenhuma evidência de participação deles nos espetáculos

teatrais, parece que o teatro era uma linguagem que não os atraia, diferentemente

213 Maria Clarice Santiago Almeida. Depoimento citado. 214 Idem.

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do cinema que, entre uma incursão e outra, aparece nas experiências de lazer e

entretenimento dos feirantes.

Aproximadamente sete meses depois de estrear em Paris, na França, chega

ao Brasil, em 28 de dezembro de 1895, o cinematógrafo pelo porto do Rio de

Janeiro, o maior centro cultural do país. Dois anos depois, Salvador seria palco da

primeira sessão pública do cinematógrafo, em 04 de dezembro de 1897, realizada

no Theatro Polyteama Bahiano.215 Em Santo Antônio de Jesus, as primeiras

exibições de cinematógrafo ocorreram nos anos iniciais da década de 30 do século

passado. Esse fato contribuiu para que essa urbe, junto à cidade de Nazaré das

Farinhas, que inaugurou o cine Rio Branco em 1927, fosse uma das primeiras na

Região do Recôncavo Sul a proporcionar aos seus habitantes essa nova invenção

que iria revolucionar o “mundo do lazer” no século XX.

Era comum na imprensa local se encontrar anúncios informando aos leitores

a programação cultural das diversas apresentações e exibições que ocorreriam nos

Cines da cidade e também em outros espaços. Em 20 de maio de 1951, o Jornal O

Detetive trazia a programação do Cine-Teatro Glória:

Hoje no Cine-Glória

“O Máscara de Ferro”

Com

Louiz Wayward

Duelo! Sensação! Romance!

Tudo indica que nos anos 50 esse filme reunia ingredientes apetitosos que

estimulavam várias pessoas a saírem de suas residências e se dirigirem ao cinema.

Um filme que trazia para seus espectadores duelo, sensação e romance,

possivelmente seduzia moças e rapazes ávidos por aventuras e novidades. Os

filmes de Bang Bang causavam grande frison e expectativa na cidade.

Para atrair pessoas de todas as classes sociais, era prática comum, em Santo

Antônio de Jesus, colocarem cartazes em vários pontos estratégicos, sobretudo na

praça Padre Mateus, nas Quatro Esquinas e outras esquinas da cidade, anunciando

215 Fonseca. Op. Cit. p. 77-80.

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os filmes, peças de teatro, luta de box, dentre outros eventos que ocorreriam nos

Cines. Para aumentar o prazer dos telespectadores nestes eventos, vendia-se, em

frente a esses Cine-teatros, guloseimas, pipocas e roletes-de-cana.216

Vitalina Souza só foi uma vez ao cinema no Cine-Glória com uma amiga

chamada Glória, que reside atualmente em Salvador na Bahia. O primeiro e único

filme que ela assistiu nas telas do cinema foi Tarzan, do qual ela gostou muito, e

nessa exibição estava presente muita gente da cidade. Ela declarou que aquilo era

uma bela novidade, e o que a impedia de freqüentar mais vezes as sessões de

cinema era o fato de morar na roça e não gostar de ir para a matineé, porque o

charme do cinema estava em ir à noite; para ela não fazia sentido se deslocar da

roça para ir ao cinema à tarde.

Um balanço feito dos anúncios da imprensa local, nos primeiros anos da

década de 50, sobre as exibições de filmes na cidade, mostra que elas ocorriam

com freqüência e sempre à noite. Entre os dias 08 e 13 de Julho de 1951, O Cine-

Teatro Glória exibiu dois filmes que se iniciavam às 19:40 hs. Um era o

extraordinário filme colorido: “O Menino dos Cabelos Verdes”, estrelado por Pat

O’Brieu Rober Rijau, e o outro era “A Vênus de Fogo” com Mercedes Borba e

Fernando Fernandes, baseado no Bolero “hipócrita”, ambos custavam Cr$ 5,00 valor

do bilhete para a sala principal e Cr$ 2,00 para o puleiro.217

O horário das exibições tornava-se impróprio para Vitalina Souza porque ela

não dispunha de meios de transportes que pudessem transportá-la de sua

residência até o cinema. O feirante João do Couro também fora às sessões de

cinema poucas vezes. Ele recorda uma das passagens da sua vida quando estivera

num cinema na cidade de Feira de Santana, Sertão da Bahia:

Uma vez mesmo eu fui num cinema lá em Feira de Santana com Dedé, um amigo meu, mas aí, antes de terminar o filme, eu tava doido pra ir embora, pra ir dormir, pra ir pra pensão, no cinema eu não gostava de nada.218

216 Rolete-de-cana são pedaços de cana cortados em formas arredondadas e colocados espetados em uma tala de bambu. Na Região era comum encontrar rolete sendo vendido em todos os lugares onde havia festa. 217 Jornal O Detetive. 08-13 de Julho 1951, nº 200-201. Santo Antônio de Jesus. AP. 218 João Nunes dos Santos. Depoimento citado.

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A narrativa do feirante nos permite chegar à conclusão que a Sétima Arte era

algo que não lhe seduzia. Nesse momento, cabe indagar: por que o cinematógrafo

não conseguira seduzir o feirante João do Couro?

O historiador Raimundo Nonato da Silva Fonseca, num estudo sobre a

chegada do cinematógrafo em Salvador e sua inserção social na vida dessa

população no período compreendido entre os anos 1897-1930, mostra que o cinema

era um elemento que fazia parte do projeto modernizador que iria contribuir com a

mudança de hábitos dos baianos na esfera do lazer. Porém, ele chama atenção

Que é necessário nos remetermos a momento histórico cultural de datação pouco rigorosa. O fenômeno exige, por si só, que compreendamos a modernidade enquanto um projeto amplo, de conotações culturais, estéticas, sociais, raciais, e políticas cronologicamente imprecisas.219

O cinematógrafo chegou ao Brasil e à Bahia como um elemento que fazia

parte do projeto modernizador das cidades brasileiras iniciado ainda no século XIX e

mais intensificado nas primeiras décadas do século XX. O cinema trazia consigo

mudanças no comportamento, nos valores e nos costumes da sociedade baiana. Ir

ao cinema significava apreciar uma das formas de lazer moderna, que exigia uma

norma, uma disciplina, um jeito de portar-se, uma maneira nova de ver o mundo.

Uma das funções do cinematógrafo era civilizar a população, propiciar-lhes a

incorporação de novos hábitos e costumes que estivessem dentro de uma lógica

considerada “bons hábitos”. Era também uma forma de “civilizar” através da arte.

Talvez o ritmo do cinematógrafo fosse completamente diferente do ritmo do

feirante João do Couro que estava acostumado com outras formas de lazer e

divertimento. O lazer e o entretenimento desse feirante era vivenciado sobre uma

outra forma de interação, em ambientes que exigiam uma performance mais livre e

efetiva, outras maneiras de portar-se, outros tipos de comportamento que

possibilitavam outras formas de sociabilidades. A “escuridão” das festas na roça o

seduzia mais do que o “escurinho” do cinema.

219 FONSECA. Op. Cit. p. 22.

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O preço do ingresso que dava direito à entrada nos cinemas da cidade não

era tão acessível às condições de alguns grupos menos abastados. Alguns feirantes

que gostavam da sétima arte e às vezes não tinham dinheiro suficiente para pagar o

bilhete que dava acesso à sala principal, onde era exibido os filmes, forjaram uma

maneira que lhes permitia a entrada no cinema e a apreciação do filme que estaria

em exibição.

No Cine-Teatro Glória, existia uma parte que era denominada de Puleiro ou

Galinheiro; essa era uma parte que ficava atrás da tela e era reservada para as

pessoas de baixa renda. Geralmente o valor do bilhete, para quem estava assistindo

o filme no Puleiro ou Galinheiro, custava aproximadamente 40% do valor real de

quem freqüentava a sala principal. Os freqüentadores do puleiro eram obrigados a

se acomodarem em bancos de madeira, enquanto os que pagavam o valor real

sentavam-se em cadeiras. O feirante Augusto Laranjeira lembra com muita alegria a

experiência de assistir filmes atrás da tela, porque as imagens eram vistas ao

contrário. Para aqueles que eram alfabetizados, tinham que ler a legenda ao

contrário. Para os que não eram, como é o caso desse feirante, o desafio das

possíveis leituras que o cinematógrafo permite se ampliavam.

Não era só a exibição do filme que atraía a atenção e o interesse de várias

pessoas. Os casos e episódios que poderiam acontecer nas salas de cinema ou fora

delas traziam encantos que concorriam com a própria tela. O feirante Augusto

laranjeira lembra de um desses episódios que aconteceram no cine Glória, em que

um homem estava assistindo a um filme cuja temática tratava de índios. Em um

determinado momento do filme, o sujeito passou a cochilar e quando despertou

olhou para a tela, viu uma fogueira e começou a gritar: “Olha o incêndio, olha o

incêndio”. Todos que estavam assistindo ao filme naquele dia saíram correndo da

sala do cinema.220

É possível entender este episódio numa perspectiva das discussões do

historiador Raimundo Nonato, quando fala dos acontecimentos cotidianos ocorridos

nas salas de exibição dos cinemas soteropolitanos, quando afirma que “Uma

220 Augusto Soares da Silva. Depoimento citado.

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diversão que atraía um público tão diversificado, para um espaço físico de certa

forma pequeno, favorecia episódios de várias naturezas”.221

De fato, as salas de cinema atraíam um público bem diversificado, a cidade

de Santo Antônio de Jesus apresentava um caráter bem peculiar em relação a esta

questão, pelo fato desse público diversificado estar dividido entre aqueles que

reuniam condições de assistir aos filmes na sala especial e a população mais

empobrecida que não possuíam condições de pagar o valor real do bilhete, restando

apenas a possibilidade de freqüentarem o Puleiro ou Galinheiro do Cine-Teatro

Glória. Diferentemente, no Cine Rex, que apresentava uma belíssima arquitetura

moderna e uma ampla sala de exibição de filmes e apresentação de espetáculos

com capacidade para mais de 500 pessoas, ainda dispondo de uma linda e luxuosa

mobília de madeira que fora fabricada na cidade de Valença na Bahia, não existia o

puleiro para as camadas menos abastadas.222

Nos dias em que não eram exibidos filmes nos Cine-Teatro Glória e Cine Rex,

o público dispunha de uma programação intensa e variada que atendia a vários

gostos. O Cine-Teatro Glória e o Cine Rex, além das atrações da cidade,

apresentavam também artistas da capital do estado e até de fora do país. Uma

dessas atrações que se apresentou no Cine Rex foi o cantor Orlando Silva e um

cantor mexicano. Essas atrações faziam as senhorinhas da cidade e as moças da

roça suspirarem. O Cine-Teatro Glória apresentava lutas de box que atraíam

bastante a rapaziada, artistas como Maracacheira, humoristas e animadores da

Rádio Carioca, Marilene Oliveira, destaque da Rádio Excelsior da Bahia, e atrações

locais como o grupo musical Pepeu e Seus Pupilos.223

Muitas dessas atrações não eram assistidas por feirantes por alguns motivos

que já foram abordados anteriormente, como a falta de meios de transportes mais

eficientes que pudesse transportá-los, falta de recursos suficientes para pagar os

ingressos, dentre outros. Mas, o gosto ou preferência por determinadas formas de

lazer, diversão e entretenimento era elemento decisivo na hora da escolha das

maneiras de se divertir na cidade.

221 FONSECA. Op. Cit. p. 137. 222 Depoimento Olavo da Silva. Marceneiro. Aposentado. Av Mendes da Rocha nº 511, Bairro Jardim Brasil. São Paulo, 78 anos. 223 Maria Clarice Santiago Almeida. Depoimento citado. Jornal O Detetive, O Paládio…

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A magia do circo seduzia os feirantes a desfrutarem de uma outra forma de

lazer e diversão na cidade de Santo Antônio de Jesus. Circos como o Nerino,

Bertine, Bretanha, Vai-Quem-Quer, com atrações nacionais e internacionais,

acostumavam se apresentar exibindo palhaços, trapezistas, números musicais e

diversos animais.224 O feirante João do Couro sempre que podia freqüentava os

circos que se apresentavam na cidade de Santo Antônio de Jesus, o que mais o

encantava e o divertia eram as apresentações dos trapezistas e animais como o

Elefante, Leão, Tigre, Onça pintada e o Cavalo Pônei. As atrações do circo

divertiam-no tanto que esse feirante não se preocupava em flertar nem namorar

quando estava diante das apresentações circenses.

FIGURA 12 – CIRCO VAI-QUEM-QUER

FONTE: Arquivo Particular de Amarílio Monteiro Orrico. (Década de 1960)

224 João Nunes dos Santos, Amarílio Monteiro Orrico, Jornal o detetive, O Paládio…

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Os feirantes Esmeraldo Nunes, Josué Pereira e Elza Froes também

apreciavam as piruetas e peraltices dos artistas que se apresentavam nos circos que

se instalavam na cidade da Capela. Ao falarem de suas opções em relação às

formas de se divertir mais preferidas na cidade, um aspecto que nos chamou

bastante atenção, sobretudo no depoimento do feirante João do Couro, foi a sua

preferência pelo circo e a sua ojeriza pelo cinema. Ao que me parece, o caráter

identitário de cunho popular que caracteriza historicamente a linguagem circense

possibilitava uma identificação mais próxima com a cultura desse sujeito. A

performance do riso e as gargalhadas que o “estar no circo” possibilita, a disposição

em forma circular que permite um outro tipo de interação mais olho a olho, o

movimentar das mãos em função das palmas destinadas a homenagear os artistas e

o grande apreço pelos animais podem se constituir em elementos que lembram ou

se relacionam de uma maneira mais próxima às experiências desses indivíduos nas

festas na roça.

Outra forma de se divertir na cidade era assistir às partidas de futebol que

eram realizadas no Campo do Matadouro Municipal. Muitos times de futebol de

cidades do interior da Bahia e da capital se apresentavam na cidade. Times como o

Botafogo da cidade de Jequié, Azas da cidade de Salvador, Vasco da Gama de Bom

Jesus da Lapa, enfrentavam times locais como o Humaitá, Vasco da Gama, Bahia,

dentre outros.225.

O feirante Augusto Laranjeira apreciava os jogos de futebol, mas alguns deles

não acostumavam freqüentar o campo para assistir essas partidas. As mulheres

muito menos, não houve nenhum registro na pesquisa de que elas se dirigiram em

algum momento paro o campo com o propósito de apreciar uma peleja. João do

Couro lembra que quando era menino na roça não tinha condições de comprar uma

bola para jogar futebol, a saída encontrada por esse feirante era fazer bola de pano

ou usar maracujás no lugar da tradicional bola de plástico ou couro. Um outro motivo

que também pode explicar a sua falta de apreço pelo futebol era a falta de tempo

para brincar ou praticar esse esporte durante a infância, porque nesses momentos

estava sempre acompanhando seus pais nas atividades diárias que o universo da

roça exigia. Mas, talvez o motivo mais forte que impedira a prática e um possível

225 No jornal O Detetive nos anos 50 é comum este periódico trazer anúncios de várias partidas de futebol realizadas na cidade da Capela.

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gosto pelo futebol possa ser explicado em uma passagem de sua narrativa quando

relembra que

Eu fui criado de uma maneira que não existia, na minha juventude os pai da gente tinha aquele modo diferente, achava que o futebol era de malandro, que não podia ser um jogador, né? (muitos risos).226

Introduzido no Brasil e na Bahia pelos ingleses no final do século XIX, o

futebol, nas primeiras décadas da República, tornou-se uma paixão nacional. Em

Salvador, capital da Bahia, o futebol conquistou membros da elite local e da classe

média que praticavam esse esporte nos campos dos Mártires, da Graça e do Rio

Vermelho; enquanto que as camadas populares praticavam esse esporte em

diversas áreas públicas da cidade. Os populares que praticavam esse esporte eram

taxados de vagabundos, enquanto que os jogadores da elite e setores médios da

população eram chamados de Sportmen.227

Os articulistas locais publicavam muitos anúncios nos jornais convocando a

população para as espetaculares partidas de futebol que ocorriam na cidade de

Santo Antônio de Jesus nas décadas de 50 e 60. Entretanto, de acordo com a

narrativa do feirante João do Couro, algumas representações do futebol como um

esporte ou uma prática de malandro, difundida por alguns setores nas décadas

iniciais do século XX, ainda permanecia no imaginário de seu pai.

Algumas formas de lazer e divertimento estavam associadas à jogos de azar

que ocorriam principalmente em dias de feira, significando também uma

possibilidade de ganhar dinheiro a depender da habilidade e da sorte dos jogadores.

Era comum nos dias de quarta-feira e sábado, em meio à várias transações

comerciais que se desenrolavam na feira, encontrar pessoas jogando cartas e

dominó apostados em bares instalados na Praça Padre Mateus, nas imediações da

feira ou até mesmo rodas de jogo montadas a céu aberto no meio da própria feira.228

Os sujeitos sociais envolvidos nessa narrativa não freqüentavam nem eram

simpáticos às práticas dos jogos de azar. Essas experiências marcam alguns

226 João Nunes dos Santos. Depoimento citado. 227 FONSECA. Op. Cit. p. 56-60. 228 João Nunes dos Santos. Depoimento citado.

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momentos de suas vidas a partir da lembrança de familiares que eram adeptos a tais

formas de lazer e divertimento. O esposo de Maria Plácida, Antônio Pereira dos

Santos, e o pai da feirante Elza, Francisco Froes, eram homens acostumados às

práticas de jogos de azar. Alguns desses homens praticavam esses jogos tão

corriqueiramente que seus salários tornavam-se insuficientes para cumprir com as

despesas do lar e suas obrigações.

Segundo Vitalina Souza, seu pai se empenhara tanto em apostar em jogos de

azar que sua mãe, Maria Plácida, tivera que se desdobrar em exercer várias funções

para dar conta da criação dos filhos. Durante a semana, ela desempenhava a função

de costureira, produzindo roupas para várias pessoas da região. Quando chegava a

sexta-feira, ela tornava-se doceira se empenhando em fazer bolos, biscoitos e outras

guloseimas para vender na feira dia de sábado. Quando conseguiu juntar algum

dinheiro a mais, a feirante comprou um cavalo, o qual ela destinara a alugar para

pessoas fazerem viagens para a cidade de Nazaré das Farinhas. Vitalina confessara

que “o cavalo deu muita comida a gente”229. Essa desenvoltura fazia com que Maria

Plácida fosse vista pelos filhos como “o homem e a mulher da casa”. Essa afirmação

nos chama a atenção para o fato de que dona Maria Plácida, assim como outras

mulheres, também desempenhavam, papéis sociais que faziam parte do universo

masculino.

A prática de costurar, fazer doces e salgados, alugar cavalos e vender na

feira, funções que Maria Plácida desempenhava, mostra que várias funções e ofícios

poderiam se manifestar na vida de um único indivíduo. Entender o que era ser

feirante naquele universo implica se libertar de concepções que engessam as

experiências e vivências de trabalhadores em categorias fixas e monolíticas.

Voltando às práticas dos jogos de azar, o pai da feirante Elza Froes,

Francisco Froes, acostumava freqüentar o bar de Zelito na praça Padre Mateus e,

entre uma partida e outra, ele se dirigia à barraca da família para apanhar os

trocados faturados com as vendas das mercadorias em dias de feira. Algumas vezes

a sorte o acompanhara, em outras não. Nos dias de azar, ele perdia todo o dinheiro

no jogo de cartas e retornava para casa em condições que nem o dinheiro do pão

levava. A situação tornava-se mais agravante quando chegava o dia de quarta-feira

e ele era obrigado a tomar dinheiro emprestado com seu genro para comprar 229 Vitalina Santos Souza. Depoimento citado.

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mercadorias como o cigarro, café e outros produtos, para abastecer a barraca da

família.230

A busca por lazer e diversões poderia também acontecer em outras cidades

da Bahia, principalmente na capital. Muitos dos feirantes tomavam o trem na

Estação Ferroviária de Santo Antônio de Jesus indo até São Roque, em seguida

pegavam uma embarcação e desembarcavam na cidade de Salvador. O lazer para

muitos deles consistia em visitar parentes e amigos que moravam na capital. Os

feirantes Esmeraldo Nunes dos Santos e Elza Froes sempre iam para Salvador

visitar seus irmãos e outros parentes; apesar de nunca alimentarem sonhos de

morar nesta cidade e não freqüentarem as famosas praias da capital baiana, eles se

sentiam muito felizes quando viajavam para Salvador, porque a própria viagem de

trem já se configurava como um atrativo à parte para eles.

O feirante Augusto Laranjeira participava de muitas festas em Salvador, a

começar pela tradicional lavagem do Bomfim, realizada na segunda quinta-feira do

mês de janeiro, e a festa de Iemanjá, cujos adeptos rendem homenagem todo dia 02

de fevereiro. Essas eram festas consideradas muito boas por este vendedor, mas

uma das diversões que ele mais apreciava era caminhar na cidade observando as

fontes luminosas. Andar pelos bairros do Cabula e Nazaré era uma prática que lhe

trazia prazer naquela cidade.231

Divertir-se na cidade de Santo Antônio de Jesus ou em outros lugares

significava poderosos momentos de trocas culturais e manifestações de múltiplas

maneiras de viver, sentir, se emocionar e de rir. As luzes da cidade proporcionavam

variadas formas de lazer, diversão e entretenimento a feirantes e muitos outros

homens e mulheres tanto da roça quanto da cidade. Apesar das dificuldades

enfrentadas na vida cotidiana, e outros percalços que poderiam impedir os feirantes

de se deslocarem até os locais onde poderiam encontrar diversão e arte, como por

exemplo a indisponibilidade de um meio de transporte, esses homens e mulheres

não pouparam esforços para “curtir” as delícias, os encantos e desencantos que a

urbe oferecia.

Em Santo Antônio de Jesus, em Feira de Santana ou em Salvador, capital da

Bahia, os feirantes buscavam, em meio à labuta cotidiana, possibilidades de sorrir

230 Elza Froes da Fonseca. Depoimento citado. 231 Augusto Soares da Silva. Depoimento citado.

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seja se emocionando com as artimanhas dos palhaços do circo, seja saindo

correndo do cinema pensando que o mesmo estava pegando fogo devido a uma

fogueira que estava sendo exibida na tela. Ao som das marchinhas da micareta, ou

simplesmente apreciando as luzes multicores da cidade num simples ato de

caminhar, eles namoraram, sorriram e choraram, viveram emoções fortes nos

“quatro (En)cantos da cidade”. Apesar do aspecto lúdico presente na festa, não era

apenas um momento de diversão; a vida festiva na qual estavam imersos, poderia

perpetuar certos valores da comunidade por um lado e por outro fazer a crítica da

ordem social.232

4.3 O Tamanco e a Chita

O estudo feito pela historiadora Márcia Paim sobre as principais feiras de

Salvador, entre os anos 60 e início dos anos 70, afirma que os feirantes adequavam

suas vestimentas para um trabalho árduo, muitas vezes realizados em céu aberto,

sujeito às mudanças de temperatura. Segundo ela,

As mulheres vestiam saias, vestidos coloridos, obrigatoriamente com bolsos, para colocar o dinheiro miúdo arrecadado; as cédulas de maior valor eram guardadas entre o seio e o sutien. As mais novas já aderiam às calças compridas, mas não dispensavam os chapéus de palha ou os lenços improvisados com pedaços de panos para proteção da cabeça, exposta ao sol causticante; usavam sandálias, ou melhor, chinelos quando as condições permitiam, muitas trabalhavam descalças.233

Na feira livre de Santo Antônio de Jesus, nas décadas de 50 e 60, as

mulheres usavam para trabalhar um figurino similar às mulheres que trabalhavam

em feiras na cidade de Salvador. Elas usavam vestidos rodados que facilitava os

movimentos naquele ambiente de trabalho, com bolsos para guardar o dinheiro

232 DAVIS, Natalie Zemon. Culturas do povo: sociedade e cultura no início da França moderna. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1990, p. 87. 233 PAIM. Op. Cit. p. 127.

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arrecadado com a venda dos produtos e, às vezes, “mais curtos” para facilitar as

longas caminhadas e vencerem as lamas que poderiam surpreendê-las em dias de

chuva. Esses vestidos geralmente eram confeccionados com tecidos mais simples

como Brim, Chita, Algodão ou Murim.

Uma outra alternativa para as mulheres era o uso de saias rodadas que

pudessem causar os mesmos efeitos dos vestidos. O uso de bermudas, shorts e

calças para elas era algo quase “impossível” de ser visto naqueles anos. Algumas

mulheres usavam chapéu de palha para se proteger do sol. O chapéu era utilizado

por mulheres que tinham seus comércios instalados a céu aberto. A feirante Elza

Froes era uma das exceções porque a sua barraca era coberta com zinco e o uso

deste adereço em seu figurino podia contribuir para a sensação de aumento do calor

que ela tanto sentia naquele ambiente.

Nos pés essas feirantes usavam sandálias e tamancos, em dias de chuvas

eram obrigadas a se deslocarem descalças porque essa era uma possibilidade de

conseguir dinamizar suas caminhadas em meio à lama. Os homens usavam calças

compridas ou calças com a barra dobrada até o joelho, camisas abertas ou fechadas

a depender das condições climáticas. Em dias de verão,quando o sol poderia estar

mais quente, alguns deles trabalhavam apenas de calças, sem camisas. No figurino

masculino o uso do chapéu de palha era mais freqüente, independentemente de

seus estabelecimentos estarem instalados a céu aberto ou não. Eles geralmente

calçavam sandálias, sapatos ou a famosa bota de borracha, que se tornou um tipo

de calçado prático para os feirantes e freqüentadores da feira-livre, principalmente

durante o período de inverno.234

O figurino dos feirantes se transformava quando os mesmos se preparavam

para participar de algumas festas e comemorações tanto na roça quanto na cidade.

Ao observador atento, era possível perceber a diferença entre as roupas utilizadas

para trabalhar e as utilizadas para os dias de festa. Peter Burke ressalta que toda a

imensa área da cultura material é um objeto em potencial para análise iconológica.

Segundo este autor,

234 Esmeraldo Santos, Augusto Silva, Vitalina Souza, Elza Fonseca…

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As roupas formam um sistema simbólico, no qual o historiador pode identificar variações regionais e distinção entre dias comuns, de trabalho e festivos. E estas distinções podem vir expressas numa aguda distinção entre as roupas de trabalho e as “melhores roupas de domingo”.235

A roupa de trabalho ou as roupas de domingo e festas eram confeccionadas

por costureiras e alfaiates, cujos tecidos eram comprados em várias lojas instaladas

no centro da cidade dividindo espaço com a feira livre, ou em outras lojas de tecidos

que existiam no seu entorno.

Lojas como A Nova América, Casa Lígia e a Loja Brasil vendiam os mais

variados tipos de tecidos como Lamê, Moiré, Faconé em Seda, vários tipos de

Morim, Sedas estampadas e Sedas lisas, Bramante em cores, Algodão, Chita,

Raion, Linho nacional e estrangeiro, Anarruga Quadriculada, Cassa Bordada,

Organdy, Organza Estampada, Reps, Brins, Popeline, Rendas, Bordados, Ligas

para enfeites de vestidos, dentre outros artigos.236

Nos anos iniciais da década de 50, a carestia dos preços dos alimentos

básicos que compunham a dieta alimentar da população da Região do Recôncavo

Sul, como a farinha de mandioca e a carne fresca, estavam pela “hora da morte”

como fora abordado no capítulo anterior. A imprensa local se empenhava em fazer

uma campanha para que os preços dos produtos baixassem e a população, de

modo geral, endossava tal iniciativa, reclamando dos preços dos produtos quando

se dirigiam à feira-livre e a outros estabelecimentos comerciais responsáveis pela

comercialização de tecidos, roupas, sapatos, dentre outros artigos. Talvez esse fato

tenha contribuído para uma possível ameaça de diminuição na lucratividade desses

empresários. Era comum os donos das lojas fazerem propagandas de seus

estabelecimentos anunciando seus produtos com frases de alto impacto como:

A “Nova América” em ação, com seus preços de abafar.

Casa Lígia “Enfrentando a alta dos preços, cooperando para a economia do povo, apresenta: cada preço uma vantagem. Cada artigo uma boa compra”.

235 BURKE. Cultura popular na Idade Moderna. 2. ed. Op. Cit. p. 106. 236 Jornal O Paládio, O Detetive, … APMSAJ/AP.

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Loja Brasil: “Constantes variedades. Preços fixos, lucros mínimos e o máximo de produção”.237

A feirante Vitalina Souza relatou que os tecidos mais utilizados na época em

questão eram Gazemira, Chita, Carrapicho, Linho, um tecido chamado “Pele de

Ovo”, Tropical e “Estrada de Ferro”, que era um tecido azul utilizado para

confeccionar roupas para homens. Tudo indica que os trabalhadores da Estrada de

Ferro de Nazaré usavam uma farda confeccionada com um tecido azul que dava um

certo status aos indivíduos que faziam parte desse grupo social. É provável que, nos

anos 50 e 60, esses trabalhadores desfrutassem uma posição social confortável em

relação a outras categorias profissionais da região. Falando sobre as relações da

moda com o corpo, Castilho nos indica

Que entendida como roupa ou como uma combinação de elementos de decoração corpórea, a moda é uma linguagem que plasma ou modela o corpo humano por intermédio da apropriação do corpo biológico do sujeito. Promove nesse as conseqüentes transformações que, ao serem operadas, lhe agregam novos sentidos. A relação é então regulada pelo jogo entre o ser/parecer. Por intermédio desse, o sujeito intervém no seu próprio corpo biológico, com ações transformadoras que lhe conferem novos valores. Essa oposição ao corpo natural serve para reconstruí-lo e ressemantizá-lo por meio da ação do traje. Imprime nele característica inédita, de acordo com o programa narrativo que o mesmo protagoniza.238

Muitos homens, feirantes ou não, se apropriaram do tecido azul conhecido

como “Estrada de Ferro” utilizado para confeccionar farda dos trabalhadores da

Estrada de Ferro de Nazaré, dando novos sentidos a outros momentos de sua vida

cotidiana. A confecção e o uso de roupas com esse tecido era uma linguagem que

conferia novos valores a esses indivíduos. O feirante Augusto Laranjeira não mediu

237 Jornal O Paládio, ano 49. 10 de maio de 1950, nº 2.342; 03 de novembro de 1950, nº 2357; 16 de março de 1950, nº 2.337, respectivamente. APMSAJ. 238 CASTILHO, K. “Do corpo à moda: exercício para uma prática estética”. In: CASTILHO, K; GALVÂO, D. A moda do corpo o corpo da moda. São Paulo: Esfera, 2002, p. 70.

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esforços para entrar na moda, porque segundo ele “quem entrava dentro daquela

roupa, daquela farda, ia pra quarquer cidade” (muitos risos)239.

Alguns nomes de tecidos que emergiram na memória de alguns sujeitos

sociais dessa pesquisa não coincide com os verdadeiros nomes desses produtos,

como é o caso de Pele de Ovo e Estrada de Ferro. Acredito que a sabedoria

popular, fazia analogia das características do tecido com elementos simbólicos do

seu cotidiano que tornassem mais fácil identificá-los. Assim, a denominação de Pele

de Ovo e Estrada de Ferro aos tecidos eram formas de assimilação inventadas para

facilitar algumas circunstâncias no desenrolar da vida cotidiana.

As camadas mais abastadas da cidade geralmente usavam roupas

confeccionadas com o tecidos Moiré que, no início da década de 50, na Loja Nova

América, custava Cr$ 18,00, Sedas Estampadas Cr$ 20,00; Sedas Lisas Cr$ 25,00 e

Bramante Cr$ 30,00 o metro; enquanto as camadas mais populares recorriam ao

Lamê Cr$ 4,00; Chita Cr$ 1,50; Morim Cr$ 4,00 e Algodão Cr$ 4,00.240

Maria Plácida, além de ser feirante, acostumava costurar roupas para várias

pessoas que moravam na Jueirana e também em outras localidades rurais do

município. Considerada uma excelente costureira na região, ela se especializara em

confeccionar roupas principalmente para os homens que trabalhavam nas minas de

Manganês que existiam no Onha, no Sapé e na Pedra Preta. Sempre acompanhada

de seus filhos Vitalina e seu irmão, que mora atualmente na cidade de São Paulo,

adentravam a noite segurando um candeeiro para que pudesse costurar. As roupas

que Maria Plácida confeccionava eram em maior quantidade produzida com tecidos

de Brim, Popeline, Algodão, Carrapicho, Pele de Ovo e Estrada de Ferro.241

Os preços desses tecidos eram mais compatíveis com as condições sociais

dos feirantes, homens e mulheres da roça. Um balanço feito sobre a diferença de

preços dos tecidos de uma loja, que fizera uma promoção nos anos 50, revela que

nos tecidos considerados mais finos o percentual de desconto era entre 20% a 30%,

enquanto que os tecidos mais utilizados pelas camadas populares os descontos

variavam entre 50% a 60%.242 Certamente eles aproveitavam a diferença dos preços

para adquirir esses tecidos, mas, a depender das circunstâncias, esses homens e 239 Augusto Soares da Silva. Depoimento citado. 240 Jornal O Paládio, ano 49. 10 de maio 1950, n. 2.342. APMSAJ. 241 Vitalina Santos Souza. Depoimento citado. 242 Jornal O Paládio, ano 49. 10 de maio 1950, n. 2.342. APMSAJ.

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mulheres faziam determinados esforços para comprar também tecidos considerados

mais finos para a confecção de suas indumentárias.

Essa possibilidade poderia ocorrer em função do calendário festivo da cidade

de Santo Antônio de Jesus e das festas na roça. Geralmente era no mês de abril,

quando se realizava a micareta, no mês de junho em função da festa do padroeiro e

de São João, no mês de setembro quando se realizava as Rezas de Cosme e

Damião e no período de final de ano, que as lojas se empenhavam em comprar

tecidos e os mais variados produtos fabricados em São Paulo, Rio de Janeiro e das

principais casas da capital da Bahia para vender a preços mais baixos a seus

clientes. Essa prática caminhava em sintonia com o imaginário daquelas pessoas

oriundas de zonas rurais, sobretudo os feirantes, que mantinham o hábito de se

esforçarem em sempre fazer uma roupa nova para participarem do calendário

festivo na roça ou na cidade, potencializados pelas grandes possibilidades de

aumento nas vendagens.

O anúncio da loja, ao qual nos referimos há pouco, ainda trazia a seguinte

observação a seus clientes:

Aguarde a lista de preço do próximo mês, o mês de junho, é o mês da festa do padroeiro da nossa cidade, por este motivo é que a Nova América, desde já previne os seus fregueses que está recebendo muita seda diretamente das fábricas, para vender muito barato.243

De fato, o mês de Junho consistia em um período em que grandes esforços

eram feitos para comprar a “tão sonhada roupa nova”, principalmente para os filhos.

A festa do Padroeiro na cidade ou as homenagens que esse santo recebia na roça e

a festa de São João eram motivos suficientemente fortes para mexer com o

imaginário e o bolso daqueles que, entre a devoção e a fé, festa e lazer, entravam

na moda com o objetivo de satisfazer a matéria e o espírito.

Outras possibilidades de comprar tecidos e roupas mais baratas era

aproveitando a tradicional “Fogueira de Retalhos” da popular loja Brasil. Essa era

uma prática dessa loja que todas as quintas-feiras vendia tecidos a preços bem

243 Idem.

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acessíveis às populações de baixa renda. Retalhos de Seda e Algodão eram

vendidos, nos anos 50, a partir de Cr$ 0,20 centavos. Essa loja acostumava fazer

também uma promoção intitulada “artigos da noite”, vendendo tecidos como Seda,

Brin Carrapicho, Bramante, dentre outros a preços mais baixos.

Às vezes, não se precisava deslocar da roça para ir até a cidade de Santo

Antônio de Jesus comprar tecidos. Um exemplo disso era o vendedor já senhor, de

nome Bernardo, que morava nas imediações da feira-livre de Santo Antônio de

Jesus; ele saía pelas áreas rurais da cidade com seu grande carneiro, revendendo

tecidos. Ele colocava uma carga de tecidos no animal e despertava a atenção de

todos, inclusive dos seus clientes, badalando um sino dependurado no pescoço do

carneiro. A feirante Maria Plácida era uma de suas clientes.244

As cores dos tecidos utilizados pelos feirantes podia variar ao gosto e

perspectivas da moda de cada um, ou de acordo com concepções e representações

produzidas na vida social. A feirante Vitalina gostava de apreciar a micareta na

cidade também pelas vestimentas que as senhorinhas e rapazes usavam nos dias

da folia de Momo. As moças usavam vestidos bonitos, de cores fortes, os mais

simples eram vestidos de uma cor só, porém com vários detalhes. Devido às

representações construídas historicamente de que o negro ou afrobrasileiro não

poderia usar vestimentas de cores fortes e vibrantes, porque ficaria parecido com o

“Diabo”, Vitalina Souza e seus irmãos eram impedidos de usarem roupas de cores

vermelha ou amarela, por exemplo. Sua mãe se empenhava em combinar as cores

que ela acreditava ser compatível com a cor negra de seus filhos.245 Entretanto,

essa rigidez poderia ser quebrada com o uso dos vestidos de Chitas nas festas

juninas que, mesclando várias cores e um belo estampado, causavam um efeito

singular nos corpos das moças nas noites de São João.

As sanções, sobretudo para as mulheres, poderiam ser ampliadas no que diz

respeito às noções e padrão de ser mulher, vigentes no imaginário dos sujeitos

sociais que estavam ao seu redor. Nos anos cinqüenta e sessenta, algumas

mulheres que eram feirantes e suas filhas estavam sujeitas a serem proibidas por

pais e maridos de usarem determinados tipos de cosméticos e outros elementos que

244 Vitalina Santos Souza. Depoimento citado. 245 Idem.

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contribuíam para o “embelezamento” do universo feminino. Essa afirmação pode ser

melhor compreendida a partir de uma lembrança de Vitalina:

Uma certa vez, eu me lembro, as meninas vinha fazê compra, tinha um esmalte, Fátima, né? Aí chegaram com essa Fátima dentro de casa. Pra quê? Pai pegou e jogou fora. Ele disse “quem usava era mulhê da vida”.246

As fronteiras entre o ideal de “mulher de bem” e “mulher da vida”, além de

serem definidas por costumes, hábitos, maneiras e modos de se portar dentro do

grupo social e na sociedade de maneira mais geral, eram também definidas pelos

padrões estéticos. As maquiagens mais modernas não poderiam ser usadas por

algumas mulheres consideradas “mulheres de família” ou “mulheres de bem”. Elas

tinham que se contentar com apenas o uso do pó de arroz ou o rouge para realçar

os seus traços faciais.

Apesar das sanções quanto ao uso de determinados cosméticos, havia

liberdade no quesito referente à escolha dos calçados. Essas mulheres usavam

tamancos, sandálias e sapatos fechados parecidos com uma sapatilha. Os

tamancos eram usados no dia-a-dia em casa, no trabalho, ou poderia ser usado

também em festas a depender do tipo ou elegância do tamanco ou das condições

financeiras de cada um. Para as festas, as sandálias e os sapatos eram mais

utilizados. Para os homens não existia muita variação, usavam geralmente

sandálias, sapatos “bico fino” ou botas para trabalhar, e na hora das festas o calçado

oficial era o sapato, preferencialmente de cor preta.

Contrastando com os homens da cidade, principalmente os membros das

camadas sociais mais elevadas, que usavam nas festas um figurino composto por

calças, ternos, gravatas, chapéus de feltro e guarda-chuvas, os homens da roça

usavam calças, camisas de mangas longas ou curtas e chapéu de palha. Em

comum, eles tinham no figurino a preferência pela cor preta de seus sapatos e o uso

de chapéu, mesmo sendo este um adereço que variava de modelo, estilo e

qualidade ao sabor das possibilidades de compra ou características culturais de

246 Idem.

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cada um. O chapéu de feltro e o chapéu de palha eram fortes marcas culturais que

afirmavam e distinguiam fronteiras entre o homem da roça e o homem da rua.

Além da preocupação com a vestimenta para os dias de festa, outras medidas

eram tomadas pelos feirantes com o objetivo de embelezar os seus corpos. Eles

faziam suas barbas e cortes de cabelo, revezando-se entre profissionais que

residiam na roça e barbeiros que tinham seus estabelecimentos instalados na

cidade. Parece que, em Dezembro de 1951, os barbeiros da cidade resolveram não

contribuir mais com a campanha da “Baixa do Custo de Vida”247 deflagrada por

algumas lojas e casas comerciais que almejavam baratear o custo de vida na cidade

de Santo Antônio de Jesus, publicando um abaixo assinado em nome de Avelino

Santos, Daniel Oliveira, Benício Silva, Manoel Bomfim, José de Araújo, Silvestre

Santos e Pedro Hipólito, aumentando os preços do corte de cabelo para 4 réis;

Barba 3 réis e cabelo e barba 7 réis.248

Para aqueles feirantes que queriam mudar de visual, deixando os cabelos

mais fixos e lustrosos, o uso da famosa brilhantina fazia a cabeça deles naqueles

anos não tão rebeldes assim. Seu João do Couro afirmou que às vezes usava

brilhantina. Os risos que ele exteriorizou nesse momento, achando graça de algo

que é “ultrapassado” hoje no setor da indústria moderna de cosméticos, nos remete

a pensar na evolução pela qual estes produtos passaram ao longo dos anos e nas

mudanças na moda e gostos que ele vivenciara ao longo do tempo. A brilhantina

assumia o papel do gel nos “tempos modernos”.

Facilmente se encontrava, nas lojas de perfumaria da cidade, vários artigos

destinados ao embelezamento e higiene pessoal do corpo. Água oxigenada utilizada

para descolorir o cabelo de algumas senhorinhas da cidade, Água de Colônia,

Loções e Extratos das marcas Madeira de Oriente, Embrujo de Sevilha e Florigrana,

Óleo Helga, Brilhantina Suspiro de Granada e outras marcas, Sabonetes Gessy,

Una Jóia, dentre outras marcas, talcos Una Jóia e Gessy, Leite de Rosas e Leite de

Colônia, faziam parte do arsenal de cosméticos e produtos disponíveis, no mercado

local, ao público em geral.249

247 Sobre essa campanha ver Jornal O Detetive nos anos de 1951, sobretudo a edição nº 195 de 27 de Maio de 1951. 248 Jornal O Detetive. Santo Antônio de Jesus. 16/12/1951. nº 223 ano 5. AP. 249 Jornal O Paládio, O Detetive, ...

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A feirante Vitalina Souza reclama que o cheiro e o efeito dos cosméticos,

desodorantes e perfumes não são mais como antigamente. Ela sempre usava Leite

de Rosas e Leite de Colônia como perfume. Para ela, as fragrâncias desses

produtos, hoje, são fracas em relação à época que ela usava e chamava a atenção.

Vitalina relembra que

Tinha uma menina que quando eu namorava com o primo dela, aí ela chegou me deu um leite de rosas, aí eu usei, ela disse: “Oh! Lina tu tá com cheiro de rico (muitos risos), Olha gente pra Lina como tá cheirando a rico!”.250

A narrativa acima nos leva a pensar em representações e estereótipos que

dicotomizam o cheiro e o odor do corpo baseado em distinções raciais, sexuais e,

principalmente, sociais. Essas concepções podem ser pensadas como um dos

aspectos de modelos civilizatórios criados na Europa, ainda no século XIX, e

transportado para o Brasil no final desse século e nas primeiras décadas da

República que, dentro de um projeto modernizador tentava também modernizar os

corpos. Tudo indica também que essas representações ainda estivessem muito mais

fortes no imaginário de algumas pessoas nas décadas 50 e 70, período de grandes

mudanças no país.

O certo é que desodorantes e perfumes eram utilizados pelos feirantes como

elementos que aromatizavam o corpo em diversos momentos de sua vida cotidiana.

Quando saíam da zona rural, o uso do perfume e de desodorantes era importante

porque fazia parte do “ritual” de se “arrumar” para ir para a cidade e também como

higiene pessoal porque o cheiro e o aroma desses produtos contribuía para a

conservação de um “cheiro no corpo”, em face aos odores do suor de homens e

mulheres que, muitas vezes, tinham pela frente o desafio de vencerem longas

caminhadas até chegarem na cidade.

Outros momentos muito especiais nos quais esses produtos eram

imprescindíveis, era no período de festas na roça ou na cidade, em momentos de

lazer, diversão e entretenimento, em que muitos feirantes, homens e mulheres da

roça, já iniciavam sensações de prazer e felicidade, que iriam desfrutar nesses

250 Vitalina Santos Souza. Depoimento citado.

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momentos, ainda em suas residências tomando um banho já com sabor de festa,

vestindo a roupa nova ou ainda pouco usada, arrumando o cabelo em frente ao

espelho e, por fim, dando banhos de cheiros no corpo.

Mulheres vestidas com roupas de Chita ou Algodão, calçadas com sandálias

e tamancos, homens usando calça comprida, camisa de manga curta ou longa e

chapéus de palha, exibiam um figurino que complementava e enriquecia a estética

da diversidade humana no Recôncavo da Bahia. Com ou sem esmalte nas unhas,

usando pó de arroz no rosto e brilhantina no cabelo, os feirantes andavam também

na moda e imprimiram um estilo bem peculiar nos modos de vestir, calçar e se

“arrumar” nos determinados momentos que a vida cotidiana lhes requisitava. Estar

belo e “bem arrumado” eram práticas compatíveis a esses homens e mulheres que

transitavam livremente cruzando os espaços da roça e da cidade.

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5 A Feira: Um Museu a Céu Aberto.

5.1 Visitando uma Exposição.

5.2 Entre Porcos, Galinhas, Perus e Jumentos.

5.3 O Patrono da Feira Muda de Lugar.

5.4 A Feira se Descasa.

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5.1 Visitando uma Exposição.

Sou o espaço onde estou. (Noel Arnaud)

Não se encontra o espaço.

É preciso construí-lo sempre. (Bachelarb)

Visitar uma exposição numa galeria de artes, num museu ou em qualquer

outro espaço, significa ver e entrar em contato com uma exibição pública de

produtos artísticos ou industriais, de um só ou de vários produtores ou fabricantes. O

ato de se dirigir a esses espaços, notadamente àqueles destinados a exposição de

obras de arte, muitas vezes trazem consigo representações simbólicas de que arte é

sinônimo de grandes obras. Segundo Néstor García Cancline “O que chamamos

arte não é apenas aquilo que culmina em grandes obras, mas um espaço onde a

sociedade realiza sua produção visual”.251

Partindo da concepção de Cancline, e entendendo que entre as principais

responsabilidades dos museus é “conservação” material e simbólica de seu acervo,

ouso convidar o leitor a pensar o espaço da feira-livre de Santo Antônio de Jesus

nos anos 50 e 60 do século passado, como um espaço em que seus praticantes

realizavam sua produção visual. Nesse sentido, é possível visualizar a feira da

cidade da Capela como um museu onde uma “exposição” com caráter permanente e

temporário ali se realizava.

Nesse capítulo final, procurarei mostrar como uma produção visual se

apresentava naquele ambiente; analisar algumas mudanças e transformações que

ocorreram no espaço da urbe nas décadas de 50 e 60 do século XX, os significados

e os impactos dessas mudanças na vida dos feirantes e o processo de resistência

desses sujeitos em face à retirada da feira-livre do centro da cidade.

Ao entrar em Santo Antônio de Jesus, todos os caminhos conduziam à feira-

livre desse município. Entrar na feira livre da cidade significava entrar também em

251 GARCÍA CANCLINE, Néstor. Culturas híbridas: estratégias para entrar e sair da modernidade. São Paulo: EDUSP, 2000, p. 246.

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contato com uma produção visual de artífices não só da cidade e da região como

também de vários lugares do Brasil. Trilhar um itinerário na feira não possibilitava

apenas relações de compra e venda de mercadorias, era momento também onde os

mais variados atores sociais se deparavam com as diferentes artes do fazer de

feirantes e demais sujeitos que protagonizavam aquele cenário.

Podemos iniciar esse itinerário inferindo que o processo artístico se

manifestava das mãos dos próprios feirantes, como é o caso do feirante João do

Couro, pelo fato de que várias barracas de madeiras e outros artefatos eram

confeccionadas por eles próprios, mostrando por um lado as suas múltiplas

habilidades, e por outro, aspectos de sua cultura, considerada rústica por alguns

setores.

Uma outra habilidade visível a todos que na feira adentravam era a forma

como esses vendedores arrumavam frutas, verduras e os diversos produtos que

eram ali comercializados. Apreciar a forma como Augusto Laranjeira arrumava os

produtos de cerâmica em sua barraca ou os objetos e artefatos vendidos por João

do Couro, era apreciar instalações que revelavam noções de estética desses

indivíduos.

Uma outra configuração que a feira-livre assumia era de um pequeno “Jardim

Zoológico” exibindo animais das mais variadas espécies. Na feira livre de Santo

Antônio de Jesus, principalmente no espaço chamado de Barganha, estavam em

exposição bois, cavalos, burros, porcos, perus, galinhas, patos, preás, tatus,

passarinhos, dentre outros. A compreensão da diversidade do mundo animal na

feira-livre pode ser observada no relato da feirante Vitalina Souza, quando relembra

sobre as barracas nas quais se vendiam carne.

Tinha assim aquelas barraca de carne do sol, carne de sertão, tudo assim pelo mei da rua, assim por ordem, né? Bem de um lado verdura, do lado de cá carne, carne e aqueles ossos que hoje a gente nem tem, aqueles ossão, as abelha menino, umas abelha de, tipo mosca, aquilo fazia zuummmmmmmmm.252

252 Vitalina Santos Souza. Depoimento citado.

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De fato, como bem lembra a feirante, em meio às barracas de carnes podia

se ver a diversidade das moscas e nas barracas que vendiam açúcar a performance

das abelhas. O zumbido que alguns insetos produziam aliado ao relinchar de

cavalos e outros sons emitidos por outros animais, davam uma característica

singular do mundo animal que ali se apresentava.

Naquele museu, feirantes, fregueses, vendedores ambulantes, fiscais,

freqüentadores e demais grupos sociais que para a feira da cidade da Capela se

dirigiam, podiam apreciar uma rica gastronomia que revelava as artes do cozinhar

da região do Recôncavo Sul. Feirante como dona Maria Plácida vendia pratos muito

saborosos como: o tradicional feijão com arroz, galinha caipira, escaldado de fato e

ensopado de carne de boi com mamão verde, considerado um dos pratos mais

saborosos dentre os que ela comercializava. Ela vendia também a famosa

aguardente pura e com variadas folhas, consideradas verdadeiros runs por homens

e mulheres (já abordado no capítulo II). A feirante Maria Plácida, assim como a

feirante Elza Froes, também faziam deliciosos bolos de puba, tapioca, milho, para

venderem junto à batata-doce, banana e aipim cozidos para o café da manhã.

A diversidade nas maneiras de vestir construía um caráter peculiar de uma

moda que traduzia o universo sócio-cultural das centenas de indivíduos que

perambulavam naquele ambiente. Entre o vestuário de feirantes como João do

Couro, Marcionília Froes, Augusto Laranjeira, Maria Plácida, Maria Roxa, Josué

Pereira, dentre outros trabalhadores, misturavam-se o jeito de vestir de senhores e

senhorinhas da cidade que faziam parte de grupos sociais mais abastados. “Eles

iam para a feira como se estivessem indo para uma festa, de palitó e gravata”.253

Para completar esse quadro, pessoas oriundas de Portugal, França,

Alemanha, Inglaterra, quase sempre donos de armazéns de fumo e de café, que

residiam na urbe ou por lá estavam a passeio, perambulavam também pela feira-

livre dando um efeito visual singular e plural àquele ambiente. Para entendermos

essa dinâmica, temos que partir do pressuposto de que

O vestuário deve ser considerado como elemento fundamental de qualquer cultura, tanto por apresentar-se como linguagem, como pelas características particulares que assume em

253 Amarílio Monteiro Orrico. Depoimento citado.

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determinados contextos, nos quais se evidenciam códigos culturais compartilhados por um grupo. O vestuário é, sem dúvida, importante elemento cultural do qual os grupos lançam mão na construção de fronteiras que demarcam territórios simbólicos.254

Além de expressarem as diversas culturas que se cruzavam na feira-livre, as

múltiplas maneiras de vestir, construíam e demarcavam fronteiras, afirmavam

identidades, projetavam linguagens e evidenciavam noções de estética e de moda.

Dessa forma, o espaço da feira-livre, era também uma passarela em que a

indumentária, entendendo aqui acessórios e peças de vestuário, revelavam

fronteiras de mundos diferentes, que ao se entrecruzar revelavam também as

distinções sociais presentes naquela sociedade.

Múltiplas eram as linguagens que interagiam naquele habitat. Uma das

características mais marcantes na cultura da maioria dos feirantes, e também de

muitas pessoas de zonas rurais que freqüentavam a feira-livre, era a oralidade que

expressava uma forma de ser e estar no mundo desses indivíduos. A feira era um

espaço por excelência, ritmado por esta oralidade, sotaques de homens e mulheres

da roça misturavam-se com os sotaques de citadinos e pessoas oriundas de outras

nações. Entretanto, mesmo no campo, esses homens e mulheres conviviam com a

cultura da escrita entrando em contato com almanaques, folhinhas, homilias, rádios,

etc. e na feira, além de ouvirem os recados e as notícias que eram divulgadas no

serviço de alto falante, a imprensa local, através de jornais como O Paládio, Tribuna

Santantoniense, O Detetive e a Voz das Palmeiras, circulava naquele universo. Os

diversos falares interagiam e balizavam diferentes matrizes culturais naquele palco.

O artesanato, principalmente os produtos de cerâmicas e de palhas, oriundos

de várias cidades da Bahia e de outros estados, como Sergipe, Pernambuco, dentre

outros podiam ser vistos nas barracas de Augusto Laranjeira e João do Couro.

Panos bordados eram encontrados dentro do Barracão da Farinha, construído em

1893. Nesse espaço, também conhecido como Mercado Municipal, nos dias de feira-

livre, vendia-se beiju de palha, farinha de mandioca, tapioca, rapadura, feijão, açúcar

preto, peixe, preá, carne de tatu, carne de jibóia e outros tipos de caças,

passarinhos, bonecas de pano… 254 CASTRO, Ana Lúcia de. Bumba-Meu-Boi em São Paulo: a ressignificação da tradição. Projeto História. São Paulo, n. 28, Jun. 2004. p. 186.

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Além de ser um espaço onde se encontrava uma diversidade de produtos, o

Barracão da Farinha, configurava-se em um lugar em que múltiplas atividades se

desenrolavam em sintonia com a dinâmica da feira e também da vida cotidiana na

urbe. Um exemplo dessa realidade ocorria durante a festa do padroeiro da cidade,

quando durante os dias da semana, exceto sexta-feira e sábado, esse local

transformava-se em espaço de lazer e diversão, com quermesses, jogos de preá255,

Jogos de Vispa (bingos), dentre outras atividades. Em períodos de eleição, o

Barracão da Farinha servia de palco para a realização de comícios de candidatos a

prefeitos, vereadores e deputados. Durante a folia do Micareta tornava-se um salão

onde a alegria de momo reinava. Nessa perspectiva, o Barracão da Farinha era um

espaço multifuncional que dava operacionalidade às necessidades cotidianas dos

vários sujeitos sociais oriundos da cidade e do campo ao sabor das circunstâncias.

A botânica invadia o universo da feira, na figura de um dos feirantes mais

conhecido no ramo de vender folhas, ervas e plantas medicinais em Santo Antônio

de Jesus. Apelidado de Chapéu de Couro, Antônio, era um dos responsáveis pela

venda desses produtos, considerados por muitas pessoas “produtos sagrados” por

curar diversas doenças e levar conforto espiritual àqueles que recorriam às práticas

da medicina alternativa e de “sabedoria popular”. As folhas e ervas eram bastante

vendidas também em períodos em que se comemoram ritos e festas nas

comunidades que professam religiões de matrizes africanas e na passagem de fim

de ano, quando vários sujeitos de diversas classes sociais, movidos por crenças

diversas, preparavam banhos, defumadores e outras práticas com o intuito de

purificar o corpo e a mente, para esperar o ano novo, como um ritual de

passagem.256

Circular pela feira, era também apreciar uma produção visual que se

expressava mediante a arquitetura de alguns prédios que disputavam espaço com a

feira-livre ou que estavam localizados em suas imediações. A arquitetura de prédios

como os das Filarmônicas Amantes da Lyra e Carlos Gomes e os sobrados

255 Esse jogo consiste em colocar várias casinhas feitas de madeira, papelão ou outro material qualquer, em forma circular. Essas casas devem estar numeradas e os apostadores escolhem em qual o número querem apostar. O jogo inicia-se quando o dono da banca coloca uma Preá dentro de algum espaço, fazendo movimentos que possam deixar o animal atordoado. Ao soltar o animal, este deve entrar em uma das casas numeradas, dando a vitória no jogo ao apostador que escolhera o referido número da casa na qual a Preá entrou. 256 Sobre as práticas de cura na região do Recôncavo Sul, ver o interessante trabalho de SANTOS, Denílson Lessa. Op. Cit.

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presentes ali na praça revelavam o esplendor de uma cidade com fortes tendências

a alcançar uma opulência peculiar que fizesse jus ao ideal de urbe que tanto alguns

setores almejavam.

Outras construções, como o Cine-Teatro Glória, chamavam a atenção de

vários homens, mulheres e crianças da roça e da cidade, por suas formas

arredondadas, algo considerado incrível aos olhos de muitos curiosos. O Cine Rex,

também considerado uma obra bastante moderna para aqueles tempos, atraía não

só a atenção de vários transeuntes, como também vários fazendeiros e coronéis de

toda região do Recôncavo Baiano e de outras cidades do interior da Bahia que, junto

a suas famílias, para a cidade da Capela se deslocavam a fim de apreciar a “boa

arte”, a “arte fina” que era exibida nesta localidade. Parece que a opulência do Cine

Rex contribuiu para a decadência do Cine-Teatro Glória nos anos 60. 257

O prédio do Barracão da Farinha, considerado uma “super” construção, com

uma bonita arquitetura e colunas arrojadas, pintado nas cores marrom e branco e

cercado com grades de ferro, povoava o imaginário daqueles que para a cidade da

Capela se deslocavam como um marco extremamente significante na urbe258. A

Igreja Matriz era também outro marco simbólico importante em Santo Antônio de

Jesus por abrigar a figura do glorioso Santo Antônio, padroeiro da cidade e

considerado por alguns feirantes o “patrono da feira”, por ser o santo que abençoava

e dava o caráter de sacralidade àquela feira-livre.

Além de assumir a sua vocação histórica de reunir, divulgar e oferecer de

tudo que se precisa para viver, caminhar pela feira-livre de Santo Antônio de Jesus,

além do processo de compra e venda de produtos, significava entrar em contato e

vivenciar um universo sensorial passível de aguçar os cincos sentidos que

caracterizam a experiência do corpo humano. Seguir tal itinerário era mergulhar num

ambiente onde cheiros, cores, sons, sabores e toques revelavam aspectos da

cultura de vários grupos sociais da região e demais localidades. Era sentir o prazer

de estar visitando a riqueza de uma exposição com caráter ao mesmo tempo

“temporário e permanente” num museu a céu aberto. A feira-livre era um lugar de

uma experimentação estética. É também um museu, porque é um lugar de memória.

257 Maria Conceição da Silva. Depoimento citado. 258 Idem.

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5.2 – Entre Porcos, Galinhas, Perus e Jumentos.

Na cidade de Santo Antônio de Jesus era comum, ainda nas décadas de 50 e

60, a presença de animais em várias ruas da cidade. Esses hábitos começaram a

causar descontentamento a vários setores sociais que passaram a criticar essas

práticas, solicitando a mudança nos hábitos e costumes daqueles que praticavam a

urbe. Essa realidade não poupava os esforços da imprensa local em produzir várias

matérias denunciando a sujeira e a imundície que esses animais causavam na

cidade da Capela. Em uma matéria publicada em 1950, o articulista dizia:

É Justo Que Se Faça Uma Referência

Já há alguma imundície em torno das barracas que estão levantadas nas imediações da Estação, à praça Félix Gaspar, nas quais se vende ao povo comestíveis, café, etc. Não condenamos a existência das barraquinhas porque são destinadas a servir ao povo, mas que haja pleno asseio ali, que tudo se faça numa atmosfera higiênica, numa área sanificada. No mesmo chão de onde se erguem as barracas encontra-se uma leitôa presa por uma corda, um galo velho esperando comprador, galinhas e muitas coisas mais que não são gêneros de refeição, mas elementos que concorrem para a sujeira do local, contaminado além disso por cascas de laranjas, de cana e de bananas. É de esperar que tal estado de coisas tenha um corretivo.259

Apesar de defender a sobrevivência, não condenando as barraquinhas nas

quais se vendiam gêneros alimentícios próximo à Estação Ferroviária, o articulista

parece se chocar com uma dinâmica onde o “moderno” – representado pela figura

do trem – contrastava com os velhos hábitos de criar e vender animais próximos a

lugares que comercializavam refeições, além de cascas de laranjas, canas, bananas

e os excrementos que se juntavam àquele cenário. Ao que tudo parece, o

“embelezamento da urbe” era uma das questões que se tornaram pauta do dia no

cotidiano da cidade. Vale a pena reproduzir uma outra matéria de um outro jornal

que, de forma mais detalhada, mapeia o cotidiano de algumas ruas da urbe e

descortina a composição do lar de alguns moradores.

259 Jornal O Paládio. Ano 49, 3 de Novembro de 1950, nº 2357. APMSAJ.

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É um velho e mau hábito do santantoniense ter de criar animais domésticos e deixa-los soltos na rua, seja em que rua for, encontramos soltos nas ruas perus, cachorros (Avenida Barros e Almeida), porcos e as ninhadas atrás (rua 13 de Maio), galinhas, porcos e jumentos (Praça da Matriz). Uma cidade como a nossa é possível uma casa não ter sala de visita, mas quintal e às vezes grande, é possível: e então porque deixar soltos na rua, dando péssima impressão, cachorro, porcos, perus, galinhas, jumentos e outros animais. Colabore com os poderes público no sentido de melhorarmos o aspecto de Santo Antônio de Jesus.260

Insatisfeito com as imagens que seus sentidos apreendiam das ruas

principais do município e, sobretudo, da praça principal- Praça da Matriz- as

imagens de porcos, perus, jumentos, galinhas, cachorros e cavalos perambulando

em meio aos transeuntes, expelindo excrementos pela cidade, tornava esse o “lugar

da ignorância, do atraso e da limitação”. Uma contradição para aqueles que a viam

dentro de uma concepção “clássica”, como o lugar do saber, da comunicação, da luz

e da civilidade.

A cena descrita pelo editor do jornal e antigo morador de Santo Antônio de

Jesus explicita um dos conflitos, dentre tantos outros com os quais os moradores da

cidade se deparavam. Traduz também a construção de um “ideal de cidade

civilizada” a ser seguido por todos. Entretanto, a matéria jornalística traz à luz, o

quanto dos hábitos daqueles que viviam em zonas rurais, estavam presentes no

cotidiano da cidade e o quanto aquela situação incomodava alguns setores.

A matéria do jornal descortina, ainda, a composição física do “lar doce lar” dos

moradores dessa urbe, trazendo representações do que seria uma casa ideal –

deveria ter uma sala de visita – e a casa real da maioria dos moradores, composta

por um quintal. O autor da matéria invade o espaço privado dos habitantes da

cidade, ao mesmo tempo que tenta conectá-lo e subordiná-lo aos interesses e

domínios do poder público. Para ele, melhorar o aspecto de Santo Antônio de Jesus

dependia de mudança de práticas e valores, muitas vezes oriundos do mundo da

roça. E a disciplinarização dos animais era um dos primeiros passos a ser dado,

para “melhorar o aspecto da cidade” e conduzi-la ao “desenvolvimento”, isso

dependia da introdução de novos conceitos de higiene.

260 Jornal Semanário – A Voz das Palmeiras, nº 38, 5/5/1954. Arquivo Particular de Amarílio Monteiro Orrico.

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No Brasil no final do século XIX e nas primeiras décadas do século XX,

inspirados pelos ideais de modernidade européia que implicavam em higienização,

mudanças de hábitos e práticas dos setores considerados menos “civilizados”, as

elites se empenharam em por em prática projetos que visavam mudanças e

transformações não só nos hábitos e costumes da população, como também na

organização do espaço das cidades consideradas como as grandes urbes do país.

Tudo leva a crer que, dos anos 50 a 80, as idéias da política

desenvolvimentista implantada no país, também mergulharam nesse cenário,

alterando a vida cotidiana de diversos indivíduos e introduzindo diferenças

significativas nos modos de viver em várias partes do Brasil. Sem pretender

estabelecer marcos temporais ou categorias de análises fixas em periodizações,

ouso em falar de um primeiro processo modernizador e um segundo momento

marcado pela implementação de um projeto desenvolvimentista, apenas em termos

operacionais, para citar dentre tantas mudanças e transformações que singularizam

e diferenciam esses dois contextos históricos: a extinção do sistema de transporte

ferroviário cedeu lugar ao transporte de rodagem que cortava o Brasil de ponta a

ponta; os grandes deslocamentos populacionais ocorridos entre os anos 50 a 80 do

século passado, para não falar ainda, nas mudanças no vestuário, nos artigos e

utensílio domésticos, hábitos alimentares, de higiene, etc.

Analisando as diversas mudanças e transformações que ocorreram em todo o

Brasil durante esse período, João Manuel Cardoso de Mello e Fernando Novais

observam que

Os mais velhos lembram-se muito bem, mais os mais moços podem acreditar: entre 1950 e 1979, a sensação dos brasileiros, ou de grande parte dos brasileiros, era de que faltava dar uns poucos passos para finalmente nos tornarmos uma nação moderna […] Os trinta anos que vão de 1950 a 1980 – anos de transformações assombrosas, que, pela rapidez e profundidade, dificilmente encontram paralelo neste século – não poderiam deixar de aparecer a seus protagonistas senão sob uma forma: a de uma sociedade em movimento.261

261 MELLO, João Manuel Cardoso de; NOVAIS, Fernando A. Capitalismo tardio e sociabilidade moderna. In: SCHWARCZ, Lília Moritz (org.). História da Vida Privada: Contrastes da Intimidade Contemporânea. São Paulo: Companhia das Letras, 1998. v. 4. p. 560-585.

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Tudo indica que essa sensação descrita pelos autores tenham invadido o

imaginário de alguns setores mais abastados da cidade de Santo Antônio de Jesus,

provocando a denúncia dos hábitos e costumes de muitas pessoas que vivenciavam

a urbe, dando início a uma série de mudanças e transformações que começariam a

ocorrer na cidade ainda no final da década de 40, com a construção da nova Igreja

Matriz em outra área, o decreto municipal que deslocava a feira-livre da praça Padre

Mateus para áreas mais afastadas, a demolição do Barracão da farinha, a

introdução de estradas de rodagens (BA e BR) e a extinção da Estrada de Ferro no

início dos anos 70.

As mudanças e transformações no cenário da urbe não paravam por aí. A Lei

Nº 15 de 31 de outubro de 1949262 ratificava a demolição da antiga Igreja Matriz,

anunciando que naquele logradouro iria construir um parque. A Lei Nº 20 de 27 de

julho de 1951 decretava a mudança de nome de várias ruas como a rua do Gás, a

rua das Queimadas, Rodagem do Campo, rua Velha, etc. O governo municipal

autorizava ainda a desapropriação de casas na cidade com o objetivo de fazer um

alinhamento das ruas. Na Lei sancionada em 13 de fevereiro de 1958, que falava

sobre o “Fundo de Planificação de Obras do Município”, determinava quais seriam

as obras a serem priorizadas e realizadas na cidade, num prazo de cinco anos;

dentre elas, destacava-se a construção do novo Mercado Publico na sede do

município de Santo Antônio de Jesus.263

O ano de 1969 fora marcado pela desapropriação de áreas de terras e casas

situadas nas ruas Monsenhor Antônio Oliveira e Conselheiro Ursicino Pinto de

Queiroz, para realizar a construção do novo Mercado Municipal, loteamento para

box e abrir acesso ao centro de abastecimento.264

Vale ressaltar também, que essas mudanças não ocorrem de maneira

isolada, elas se concretizam em paralelo à uma dinâmica que também está

ocorrendo em outras regiões, como é o caso da cidade de Feira de Santana, no

Sertão da Bahia, a segunda maior cidade do estado e outras áreas do país. O 262 As notas referentes a leis, atas, decretos, portarias e outros documentos que se encontram no Arquivo Público Municipal de Santo Antônio de Jesus, não constam de informações detalhadas do tipo: Maço, Prateleira, Gaveta, etc., pela ausência de infra-estrutura apropriada para armazenamento desses documentos. 263 Livro, Decretos e Portarias – 1945-1956. Livro de Leis, Decretos e Portarias – 1956-1963. Arquivo Público Municipal de Santo Antônio de Jesus. 264 Decreto nº 16 de 26/04/1969; Decreto nº 24 de 08/08/1969 e Decreto nº 27 de 02/10/1969. APMSAJ.

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processo de mudanças e transformações no espaço da urbe de Santo Antônio de

Jesus é do que trataremos a seguir.

5.3 O Patrono da Feira Muda de Lugar

No dia 2 de Junho de 1948 foi elevada a peça principal do telhado da Igreja

Matriz. A colocação da cumeeira reuniu, segundo o jornal O Detetive265, uma

pequena multidão que se agrupou no mercado municipal e em frente à nova Matriz.

Mesmo com a chuva que insistia em cair naquela manhã a “cerimônia foi

solenemente realizada” sob as músicas da Filarmônica Amantes da Lyra. Após a

realização desse ato, as pessoas ainda se reuniram para angariar novos fundos

para a construção, através da realização de um leilão improvisado com duas telhas

do novo telhado que foram leiloadas e se obteve o resultado de mil cruzeiros.

FIGURA 13 – ANTIGA IGREJA MATRIZ

FONTE: http://www.mma.com.br/mma3/media/images/saj/igreja2.jpg

265 Jornal O Detetive, 4 de Junho de 1948. Nº 46. Ano I. APSAJ.

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A sensibilização da população para concretizar o ideal de construção de uma

nova matriz contou, também, com outros meios como panfletos expedidos pela

Comissão para os “filhos da terra” que se encontrava em outras cidades. Os dois

panfletos disponíveis no arquivo da Paróquia de Santo Antônio de Jesus datam de

janeiro de 1945. Em ambos o tom é de urgência para as obras, “pois a ‘Velha

Matriz’, em que pese a estima respeitosa que lhe devotamos, é bastante

inexpressiva, mal localizada, tornando-se impossível se lhe fazer consertos que a

elevem à altura de nosso desenvolvimento”.266

Construída de adobe e taipa, localizada no meio da Praça Padre Mateus e da

feira-livre da cidade, a derrubada da secular Igreja Matriz, nos anos 50 do século

XX, concomitante à construção de um novo templo religioso, marca o início de uma

série de intervenções que começou ocorrer na urbe. Essas intervenções,

viabilizadas por vários setores sociais das camadas mais abastadas dessa cidade,

suscitaram explicações várias por parte das camadas mais populares, que

justificariam a demolição desse monumento.

Para o feirante Augusto Laranjeira, o motivo que explicaria a derrubada do

templo religioso foi o fato que “além de ser no meio da feira, era de adobe”. Para o

feirante João Nunes dos Santos, foi porque “a igreja era pequenininha, não era

como hoje, né? Que tem aquela Matriz”. Ao que me parece, apesar da importância e

respeitabilidade de que gozava a Igreja Matriz perante os feirantes, freqüentadores

da feira e todos que para a cidade se dirigiam, a sua localização no meio da feira-

livre já não mais se adequava com a realidade de uma feira em expansão e as

concepções de desenvolvimento e progresso defendidas por alguns seguimentos na

urbe.

Para a construção de uma nova Igreja Matriz na cidade, que pudesse atender

aos objetivos do poder eclesiástico, de setores da elite que freqüentavam esse

templo sagrado e também pessoas de camadas sociais menos abastadas, tornava-

se necessário empreender muitos esforços para arrecadar soldos suficientes entre

os fiéis para investimento de tal envergadura. O Jornal o Paládio, em 28 de junho de

1950, trouxe entre tantas outras notícias a seguinte matéria:

266 Folheto Avulso. Janeiro de 1945. APSAJ.

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A Nova Matriz

As contribuições pecuniárias para serem concluídas as obras da nova Matriz não têm falhado, verdade seja dita, mas é necessário mesmo que não venham a falhar, porque o templo que está em obras vai se tornar um ornamento da mais perfeita arquitetura nesta região da Bahia. Do ponto de construção em que se acha, até a conclusão, numerário vultoso é ainda necessário que exista, para não se dar um esbarro no trabalho tão bem visto e elogiado por quantos se curvam perante as coisas que o homem Deus traçou e determinou quando da sua peregrinação à face da terra.Todos os meios honestos tem o pároco da freguesia posto em prática para alcançar donativos. De fato, não tem ele sido mal sucedido, mas ninguém se esqueça que as obras estão em meio e os recursos para custeá-las devem vir a miúdo. Ontem recebemos o negociante Julio de Souza Ribeiro, de Dom Macedo Costa e ele nos entregou 50 cruzeiros para o serviço do fôrro da nova Matriz. Esse dinheiro, fizemos chegar imediatamente às mãos do digno padre Antônio Almeida Oliveira, vigário da paróquia.267

Parece que existia na cidade uma certa unanimidade em relação ao modo de

pensar que a arquitetura e a localização da velha matriz não estivessem mais

compatíveis com a dinâmica da cidade. O jornal também demonstra a necessidade

de empenho de todos, notadamente os fiéis, em somar esforços para angariar

fundos para a construção da nova moradia de Santo Antônio. Para a construção

desse novo templo, muitas campanhas foram feitas pelo pároco da Matriz, pelos

moradores da cidade e, sobretudo, pelo Jornal O Paládio que durante o final da

década de 40 e os primeiros anos da década de 50,268 em seus anúncios, apelava

pela solidariedade de todos em contribuir com doações pecuniárias para essa

empreitada.

As doações não se restringiam apenas aos feirantes e cidadãos da cidade de

Santo Antônio de Jesus, muitos foram os Joãos, as Marias, os Antônios, os Júlios,

moradores de várias cidades da Região do Recôncavo Baiano, como Nazaré,

Conceição do Almeida, Lage, Mutuipe, Dom Macedo Costa, dentre outras, que

contribuíram com o projeto de construção da nova Matriz.

267 Jornal O Paládio. Ano 49, 28 de Julho de 1950 nº 2.349. APMSAJ. 268 As edições diárias do jornal O Paládio dos anos 49, 50,51 e 52, que estão no Arquivo Público Municipal de Santo Antônio de Jesus, trazem vários anúncios pedindo a colaboração da população local e residente em outros municípios com pecúlios para a construção da nova Igreja Matriz e longas listas de agradecimento à aqueles que cediam doações.

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FIGURA 14 – IGREJA MATRIZ EM CONSTRUÇÃO

FONTE: Arquivo da Paróquia de Santo Antônio de Jesus – Bahia.

Analisando a imagem fotográfica acima, podemos afirmar que o articulista do

jornal tinha razão quando afirmava que nos anos 50 as obras ainda estavam pela

metade. Essa fotografia traz à luz um passado que revela, através de um olhar

fotográfico, um tempo e um espaço que fazem sentido. Um sentido individual que

envolve a escolha efetivamente realizada; e outro, coletivo, que remete o sujeito à

sua época. A fotografia deixa de ser uma imagem retida no tempo, para se tornar

uma mensagem que se processa através do tempo, tanto como imagem/documento

quanto como imagem monumento.269

A imagem parece querer perenizar a dificuldade para se construir uma Matriz

com tamanha suntuosidade. Para tal êxito, esforços não foram poupados. Durante

quase uma década, o pároco local, e os fiéis se empenharam em manter um caixa

que pudesse conseguir dinheiro suficiente para a construção da nova Igreja

Matriz.270 Para a construção do novo templo, o padre Monsenhor Antônio Almeida

de Oliveira, no período dos festejos em louvor ao padroeiro, junto à comissão da 269 CARDOSO, Ciro Flamarion; MAUAD, Ana Maria. História e imagem … Op. Cit. p. 406. 270 Sobre o demonstrativo do movimento da construção, ver jornal O Detetive 14 de outubro de 1951, ano 5 nº 214. Nesta matéria o jornal traz as receitas e as despesas com a construção. O caixa fora iniciado no ano de 1943 e tudo leva a crer que nesse mesmo ano começou a compra de materiais para a construção da Nova Igreja Matriz.

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festa, montava um serviço de barraquinhas com comidas e bebidas, bilhetes

sonoros, telegramas, e outras atividades lúdicas em prol das obras de construção da

Matriz. O profano agia em prol do sagrado.

Para construir o lar de Santo Antônio, ele contratou o “melhor mestre de obra

da cidade” chamado Celestino Pimenta, e Vadú Jambeiro, engenheiro e “bom

mestre de obra”. Este último, segundo o feirante Augusto Laranjeira, “ia para o

trabalho parecendo que ia para festa, só ia na roupa branca, era um preto que só

andava alinhado”.271

Uma pergunta se faz necessária neste momento: Por quê, aparentemente,

não houve reclamações quando se resolveu mudar de lugar a Igreja Matriz? Talvez

o motivo que contribuiu para que não houvesse reclamações entre os feirantes e

principalmente, os fiéis, no processo de mudança de lugar do templo sagrado, seja o

fato de que ele foi deslocado do meio da feira para um local mais estratégico.

Essa mudança, de qualquer forma, ampliava o espaço destinado à atuação

de feirantes, fregueses e demais grupos sociais que freqüentavam a feira-livre da

cidade. Mesmo mudando de lugar, em 19 de Junho de 1952, ano em que a Paróquia

completou o seu centenário, o glorioso Santo Antônio, padroeiro da cidade e patrono

da feira-livre, lá da praça ainda continuava sacralizando aquele espaço e levando

suas bênçãos a todos que por lá trabalhavam e perambulavam.

Com relação à demolição da antiga Igreja Matriz, parece-me que ela foi sendo

aos poucos abandonada pelos fiéis e pelas celebrações. Entre o final de 1951 e

início de 1952, os paramentos litúrgicos foram transferidos para a igreja Nova, onde

começaram ser realizadas as celebrações. Quanto à antiga Igreja Matriz, já em

ruínas, logo após a inauguração do novo templo, o teto da antiga Igreja desabou,

culminando com sua demolição.272

271 Augusto Soares da Silva. Depoimento citado. 272 Amarílio Monteiro Orrico. Depoimento citado.

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5.4 – A Feira se Descasa.

Além das dificuldades de sobrevivência enfrentada por vários setores das

camadas sociais mais baixas, por causa do alto preço das mercadorias, nas

décadas de 50 e 60 na cidade de Santo Antônio de Jesus, esses anos foram

também fortemente marcado por discursos que pretendiam convocar a população a

alcançar um grau de civilização e progresso que era o ideal de alguns grupos

sociais. Como pudemos observar em outras passagens desse capítulo, a imprensa

local tornava-se uma das grandes porta-vozes desses discursos, chegando até

mesmo a identificar entre os diversos sujeitos praticantes da cidade quais seriam os

responsáveis por tal empreendimento. Em uma matéria publicada em 1954, um

jornal local preocupado com o andamento da civilização e do progresso na cidade,

publicou:

…Sem querer melindrar a ninguém, a porcentagem dos nulos273 em Santo Antônio de Jesus é assustadora. Correndo-se interrogativa e cuidadosamente os olhos pela vastidão do nosso mundo não encontramos um por cento do que realmente necessita uma cidade como Santo Antônio de Jesus que a esta altura de sua história, não comporta mais uma civilização de aldeia ou vila, na carência reais de valores. (…) Somente interessa o progresso pessoal, individual, secreto, para não dá na vista. Perguntamos ao leitor qual a diferença de civilização de uma vila ou aldeia para a nossa, isto é, de Santo Antônio de Jesus? Onde estão os nossos intelectuais, os nossos jornalistas, escritores, poetas, oradores, professores, pintores, arquitetos, desenhistas, educadores, músicos; onde está nossa sociedade, nossas instituições sociais.274

O autor da matéria traz de maneira explícita sua concepção de progresso e

civilidade, colocando os vários sujeitos sociais da cidade em lugares opostos a partir

das noções de valores de cada um. A matéria revela também, de forma implícita, a

diversidade cultural e de práticas sociais dos diferentes atores que conviviam

naquele espaço. Para além das várias possibilidades de interpretações que esse

273 Para o autor da matéria os “nulos” seriam as pessoas que estavam acostumadas com hábitos, valores e costumes considerados por ele incultos e incivilizados. Em sua concepção essas pessoas representavam uma grande parcela da população da cidade. 274 Jornal A Voz das Palmeiras. Ano I, nº 30, 4 de fevereiro de 1954. Arquivo Particular de Amarílio Monteiro Orrico.

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discurso dá margem, o que mais me chamou a atenção é que o autor da matéria

lista enfaticamente quais grupos sociais seriam responsáveis em introduzir aos

demais grupos, concepções e noções de “bons hábitos” e novos valores que, por

fim, pudessem elevar a cidade de Santo Antônio de Jesus à categoria de urbe do

progresso e da civilidade. Exigências morais, higiênicas e estéticas se impunham

diante da necessidade de “ser” e “parecer moderno”.

O que o autor da matéria parece desconhecer é o fato de que pessoas dos

segmentos menos abastados também criticavam algumas práticas que contribuíam

para o “atraso” do qual fala o autor da matéria anteriormente mencionada. Porém,

não podemos afirmar se a noção de progresso e civilidade dessas pessoas

caminhava em direção àquelas pensadas pelas elites ou qual o ideal de civilização e

progresso essas pessoas carregavam consigo; talvez seja mais fácil pensar que os

produtores/consumidores da urbe não são apenas aqueles considerados “leitores

especiais da cidade”, representados por fotógrafos, poetas, romancistas, cronistas e

pintores, ou “leitores privilegiados”, aqueles com habilitações culturais, profissionais

e estéticas que os dotam de um olhar refinado.

Os “cidadãos comuns” ou “gente sem importância” também são expectadores,

produtores e consumidores da cidade e dela leitura fazem.275 Um olhar refinado,

sensível e arguto em relação à urbe tanto pode estar no indivíduo de camada social

mais elevada, como no indivíduo que faz parte de um grupo social mais baixo. Assim

como pode estar no homem da roça como no da cidade.

Nessa perspectiva, a falta de infra-estrutura na cidade da Capela era algo que

suscitava crítica de feirantes, fregueses e diversos outros atores que viviam

experiências urbanas naquele cenário. Sem saneamento básico e rede de esgoto,

as questões relacionadas à higiene, no universo da feira, era algo que incomodava

aos feirantes, àqueles que por lá passavam e outras pessoas que exerciam alguma

função diretamente ligada a esse espaço. Em suas lembranças do tempo em que

trabalhou como guarda na feira, seu João Crizóstomo Sampaio recorda que

Aquele lugá ali que tá a igreja, até lá em baixo, ali era mamoneira, era cagador, o povo marrava jegue, marrava tudo

275 PESAVENTO, Sandra Jatahy. Muito além do espaço: por uma história cultural do urbano. Revista Estudos Históricos, Rio de Janeiro, v.8, n.16, p.279-90, 1995. p. 283-284.

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ali. A igreja era lá, na frente, na frente pra lá, no mei, daí pra cá o barracão, daí pra lá a igreja, o passei dessa artura, pra o… o povo não tinha lugá pra fazê fezes, fazia ali no mei, de manhã era uma imundice desgraçada. Atrás da igreja, (muitos risos) Deus ajudô que tiraro a igreja, butaro pra lá, em cinqüenta e um eu fui, eu trabalhei na guarda, tomei conta ali um mucado de tempo. Cinqüenta e um, no ano de cinqüenta e dois, cinqüenta e três, nessa base aí.276

O feirante Josué Pereira dos Santos lembra que tinha que guardar sua

barraca entre a mamoneira e os excrementos que encontrava no ambiente da feira-

livre e reclamava que “o povo fazia porcaria em tudo quanto era canto ali”, (muitos

risos). A feirante Vitalina Souza também reclamava da ausência de uma higiene na

feira. Já a feirante Elza Froes em sua narrativa foi categórica em afirmar “que o povo

fazia imundície ali naquela feira”. Assim como o feirante Augusto Laranjeira lembra

que “a feira não era muito limpa não”.

As narrativas dos feirantes e do ex-guarda da feira expressam a insatisfação

deles e de muitas outras pessoas com a falta de uma infra-estrura e de higiene

adequadas à vivência cotidiana naquele ambiente, como também a “ausência” do

poder público para solucionar problemas que competiam à sua alçada, visto que, no

tocante à cobrança de impostos aos feirantes, este era eficiente e sempre estava

presente nos dias de feira.

Longe de anacronismos, caminhando um pouco em direção às idéias de

Mikail Bakhtin que vê nas praças públicas, nas feiras e no carnaval da Idade Média

na Europa locais eminentemente grotescos, os risos, gestos e as expressões

“cagador”, “imundície” e “porcaria”, de autoria dos depoentes acima, trazem uma

forte representação simbólica que nos remete a pensar em um conjunto de imagens

cômicas do realismo grotesco que circulavam na feira livre daquela cidade.

Para Bakhtin, no realismo grotesco tudo está em relação mútua, não existe

nada isolado. E o corpo, grande categoria da cultura popular, é um corpo aberto que

está sempre interagindo com a terra, o universo e o meio em que ele vive. O corpo é

visto em sua totalidade. Segundo esse autor,

276 João Crizóstomo Sampaio. Depoimento citado.

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O corpo começa a ser higienizado e disciplinado pela burguesia nos textos literários e nos estudos sobre o corpo. O baixo e alto material são categorias que estão sempre em dialogismo um com o outro. Eram corpos que não estavam ainda sob as imposições da disciplina moderna.277

De fato, os corpos de muitos homens e mulheres oriundos de zonas rurais ou

da cidade, não estavam ainda disciplinados dentro das noções de higiene de vários

outros homens e mulheres da urbe, era um corpo que interagia com o meio e

dialogava com outros corpos. O espaço da feira que possibilitava a obtenção dos

gêneros alimentícios que sustentavam esses corpos, reservava também um espaço

(um lugarzinho) que recebia os detritos e dejetos que esse mesmo corpo expelia.

Talvez, o ato de expelir excrementos atrás do templo sagrado fosse uma forma de

linguagem encontrada por esses sujeitos para criticarem/reivindicarem saneamento

básico naquela localidade.

A mudança de lugar da Igreja matriz parece que foi algo que agradou a muita

gente em Santo Antônio de Jesus no ano de 1952. Todavia, um fato curioso que nos

chamou bastante atenção é que, em setembro do ano de 1948, o prefeito Antônio M.

Fraga sancionou um decreto estabelecendo uma outra feira na cidade que se

realizaria às quartas-feiras e apenas uma década após, no ano de 1958, o então

prefeito Olavo Galvão determinou que a feira pública fosse transferida do centro

financeiro comercial da cidade.278 Apesar da lei, esta mudança ocorreu

paulatinamente.

A justificativa dada pelo poder executivo era que aquele espaço do jeito que

estava impedia o desenvolvimento do centro da urbe. A transferência da feira teria

que ser efetivada porque aquele espaço estava sendo ocupado por indivíduos com

costumes e hábitos inadequados para um centro comercial.279 Tudo nos leva a

deduzir que os interesses de proprietários de casas comerciais que se localizavam

na praça Padre Mateus, no entorno da feira-livre, associados às pressões de

pessoas que faziam parte da “elite” local, contribuíram decisivamente para essa

tomada de decisão. Segundo um ex-vereador, esse projeto teria sido realizado em

consonância com a lei federal que determinava que prédios e edifícios que 277 BAKHTIN. Op. Cit. Capítulos V e VI. 278 Essa expressão – Centro Financeiro Comercial – é de autoria do historiador Denílson Lessa dos Santos, utilizada em seu trabalho: Nas Encruzilhadas da Cura. 279 Livro de Leis e Decretos 1958. APMSAJ.

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estivessem localizados no meio de praças públicas deveriam ser transferidos de

lugar e acompanhar o alinhamento das residências.280 Oficializada pelo decreto de

1958, a urbe começava a conviver com a idéia de que a cidade da Capela passaria

por uma das maiores transformações sociais, culturais e espaciais ao longo de sua

história, que seria o afastamento da feira-livre do centro principal da cidade para

áreas mais afastadas (atualmente praça Duque de Caxias).281

Talvez Santo Antônio de Jesus tenha sido uma das primeiras cidades da

Bahia a concretizar o projeto de afastamento da feira-livre do centro da cidade para

outra área. Entretanto, esse fato não ocorre de maneira isolada na região, entre o

início dos anos 60 e os anos 70, as principais cidades da Bahia se empenharam em

deslocar suas feira-livres dos centros das cidades.

Movidos por interesses capitalistas, perseguindo ideais de civilização e

progresso, usando discursos das políticas higienistas, os setores considerados

“hegemônicos”, de várias formas, conseguiram por em prática seus projetos

desenvolvimentistas em várias urbes do Brasil e da Bahia. Essa dinâmica pode ser

observada em cidades como Salvador, capital do estado, que pretendia acabar com

as feiras que se realizavam no centro da cidade e, após um incêndio considerado

criminoso, transferiu a Feira de Água de Meninos para a enseada de São Joaquim,

em dezembro de 1964; Feira de Santana, objetivando implantar um centro industrial

no Sertão da Bahia, extinguiu sua feira-livre do centro da Princesinha do Nordeste

em 1977; e Santo Antônio de Jesus, que mesmo enfrentando a resistência dos

feirantes não conseguiu deslocar sua feira-livre logo de imediato após a publicação

do decreto em 1958, mas, ainda no final da década de 60, se via livre para

concretizar o sonho de um “centro comercial financeiro moderno”. Inaugurado em 27

de Janeiro de 1971, o Centro de Abastecimento Municipal, batizado com o nome de

Duque de Caxias, retirava o “caráter” de feira-livre da feira da cidade da Capela.282

Esse processo de mudanças se constituiu em significativas transformações

nas relações sociais, culturais e econômicas de vários indivíduos em regiões da

Bahia. Em Santo Antônio de Jesus, as mudanças no espaço da urbe interferiram

diretamente na vida e na história de diversos sujeitos sociais da cidade e da região.

280 Amarílio Monteiro Orrico. Depoimento citado. 281 A feira-livre de Santo Antônio de Jesus continua até hoje na atual praça Duque de Caxias. 282 Decreto nº 44 de 22 de Janeiro de 1971; Decreto nº 6 de 2 de Setembro de 1971. APMSAJ.

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Com ampla experiência em ser feirante, Augusto Laranjeira lembra que com a

mudança, inicialmente, não existia uma organização baseada em divisões por

boxes, quadras, ruas ou galpões, e as barracas ficavam espalhadas pelo meio da

rua. Isso prova que a preocupação das autoridades era menos com os feirantes do

que com os grupos interessados em organizar o centro financeiro comercial

Esse feirante conseguiu duas barracas, das quais uma ele utilizava para

vender seus produtos e a outra fazia de depósito. Para ele, a mudança foi boa

porque “lá na antiga feira era tudo muito apertado”. Augusto ainda tinha bons

motivos para não acreditar ter sido ruim a mudança da feira pelo fato de que ele

comercializava artigos de cerâmicas e estes produtos não enfrentavam a

concorrência já “desleal” em relação a alguns outros setores.

Josué Pereira dos Santos se diz também satisfeito com a mudança porque

ele conseguiu que sua barraca ficasse num lugar bom. Elza Froes também gostou

dessa medida pelo fato de sua barraca passar a ser coberta com telhas de amianto

ao inverso da que ela tinha na feira antiga que era coberta com zinco, porque

“melhorou a quentura”. Esmeraldo Nunes dos Santos vivenciou esse processo de

mudanças que interferiu diretamente em sua vida e, entre o hoje e o ontem

registrados em sua memória, ele faz um balanço do que ocorreu com as

reconfigurações sofridas pelo/no espaço e as condições materiais de sua vida e

seus pares ao longo do processo:

A feira é o seguinte, a feira hoje tá sendo mais pra os barão, né? Pra os donos de supermercado que tem depósito grande, né? Pra os mais pequeno de quarqué maneira hoje passa mais dificuldade, né? Naquela época era melhó pra os pequeno porque acontece o seguinte, porque não tinha tanto concorrente, né? E hoje é o seguinte, hoje justamente os grande hoje tomou conta da feira, né? Uns com depósito, outros com supermercado, né? Então dificultou mais pra as pessoas. Como é que diz? Pra as pessoas mais pequeno, que tem menos capitá, ficou mais difíce um pouco.283

O relato do feirante Esmeraldo mostra uma firme resistência perante às

mudanças e expressa o sentimento de “perda de espaço” para aqueles que ele

considera “os barão da feira”. Apesar de enfrentar a concorrência com empresários 283 Esmeraldo Nunes dos Santos. Depoimento citado.

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donos de supermercados e depósitos ao longo da história, Esmeraldo Nunes

continua resistindo com o seu boxe na feira vendendo verduras como alho, cebola,

tomate, pimentão, etc., frutas como abacaxi, pinha, banana, laranja e outros

produtos como azeite de dendê, feijão e cestos. Talvez, o fato de considerar a

mudança de local da feira uma coisa boa ou ruim esteja relacionado às

oportunidades de alguns feirantes conquistarem mais privilégios que outros na

disputa por um novo “lugar” que, a depender do tipo de mercadoria que era

comercializada pelos feirantes, influía diretamente no andamento dos negócios.

Entretanto, podemos pensar esse processo numa perspectiva de existir uma

ambivalência nos relatos, porque os feirantes que em suas narrativas hoje no

presente disseram ter ficado satisfeitos com a transferência da feira, em alguns

momentos de seus depoimentos, falaram de suas reações negativas em relação à

mudança naquele momento e das formas pelas quais as pessoas protestaram. O

próprio espaço de tempo em que os feirantes ainda permaneceram na praça

principal da cidade vivendo a feira – aproximadamente 10 anos – após a publicação

do decreto que autorizava a transferência, são indicadores suficientes do processo

de resistência daqueles homens e mulheres.

Logo no início da transferência da localização da feira-livre de Santo Antônio

de Jesus, alguns deles perderam a metade da freguesia que não sabia onde os

encontrar. João Crizóstomo, um ex-guarda da feira, relatou que teve manifestações

dos feirantes – mesmo que de forma não organizada ou coletiva – e os protesto se

justificavam porque as pessoas estavam acostumadas com a localização dos

“pontos” dos feirantes e para “fazer outro ponto” e, ainda, fazer a freguesia voltar

outra vez, tornava-se uma tarefa que consistia em re-elaborações das relações

sociais até então estabelecidas, agora deslaçadas por esse novo processo. João

Crizóstomo diz que “os que tinha consciência, saía procurando, gritando no meio da

feira, fulano! Fulano! Tá onde? Saía procurando até encontrar”.

Acostumados com os “seus pontos”, o processo de desenraizamento para os

feirantes representou a quebra e o afrouxamento de relações sociais sólidas

historicamente estabelecidas, agora deslocadas perante esta nova realidade. O

processo de procura dos clientes por seus antigos vendedores e comerciantes

possibilitava a continuidade dessas relações. O processo de desenraizamento

implicou também na separação de Santo Antônio com sua afilhada – a feira-livre.

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Sobre as bênçãos de Santo Antônio é que muitos feirantes começavam seu dia de

trabalho na feira-livre da cidade. E agora? Como ficaria a relação do padrinho com

sua afilhada?

Na visão dos feirantes, para quem tinha fé isso não era empecilho porque

poderia dar-se um jeito de arranjar um tempo se deslocando da nova feira até à

Igreja Matriz para pedir a benção ao glorioso Santo Antônio. Mas, não era apenas

isso que estava em jogo, imersos na transferência de “lugares” e dos novos limites

diante dos quais este conflito os colocara, os feirantes assistiram sólidos marcos

simbólicos se “desmancharem no ar”284. Muitos foram aqueles que reclamaram:

“prefeito ruim, de mudá o barracão de lugá e a gente ficá tudo se batendo das

coisas”.

O processo de deslocamento desses homens e mulheres implicou em

intervenções diretas na vida cotidiana destes sujeitos e novos arranjos tiveram que

ser forjados no processo de construção de novos lugares, de novas territorialidades.

Em meio a protestos e reivindicações explícitas ou surdas, os atores que

vivenciaram estas mudanças não se colocaram passivos diante daquela nova

realidade que os desafiava. Muitos feirantes decidiram continuar trabalhando na feira

e concordavam que aquela era uma decisão a ser tomada. O feirante Josué Pereira

junto a sua família decidiu ficar e acompanhar todo o processo. Ele acredita que

paulatinamente a feira-livre foi melhorando, melhorando e, assim como ocorreram

mudanças e transformações na feira, ocorreram também na sua vida, porque ele

conseguiu comprar um “bloco” e se sente um homem “realizado” com as benesses

que a feira lhe proporcionou.

Muitos também foram aqueles que decidiram não ficar na feira e partir em

busca de outras formas de sobrevivências. É exemplar a história de Vitalina Souza

que, acompanhando a sua mãe desde os dez anos de idade, após a transferência

da feira-livre, aconselhou-a que “saíssem deste negócio de barraca” e fossem

embora. Vitalina “achava chato já serem bem conhecidas na cidade (muitos risos) e

com aquele negócio de coisinha de barraca, arrasta pra lá, arrasta pra cá, pelo mei

da rua”. E o que mais contribuía para o seu descontentamento com aquele tipo de

284 Utilizo esta expressão de Marshall Berman por entender que ela se adequa nesse contexto e traduz bem as mudanças que ocorreram na cidade. In: Tudo que é Sólido Desmancha no Ar: A Aventura da Modernidade. São Paulo, Editora Companhia das Letras, 1986. Cap. V: Na Floresta dos Símbolos: Algumas Notas Sobre o Modernismo em Nova Iorque.

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trabalho era o fato de que quando se encerrava as atividades no final da tarde,

tinham que escutar palavrões e impropérios de bêbados, assíduos freqüentadores

deste universo. Ela e sua mãe aproveitaram um terreno que a família tinha na roça e

foram plantar e colher café para vender, atividade que ela considerou mais rentável.

Após a transferência da feira livre, Francisco Froes decidiu vender a sua

barraca e aconselhou sua filha Elza Froes a descansar e a não mais “trabalhar de

barraca”. Elza seguiu seus conselhos descansando durante algum tempo, mas

voltou a desempenhar o seu ofício. A feirante retornou à feira comercializando

miudezas, depois trocou esse ramo de negócios pela comercialização de roupas e,

em seguida, em função de começar a trabalhar com seu novo namorado, passou a

vender coco, manga, melão e pinha. A feirante Elza assumiu a frente desse negócio

quando seu cônjuge faleceu e depois de alguns anos resolveu “deixar a feira”.

O certo é que diante desta nova realidade um espaço de intervenção agora

emergia introduzindo a necessidade de uma nova invenção criativa dentro da

existência. Para esses feirantes novas fronteiras agora se impunham285. É difícil

afirmar quais eram os maiores interessados e quem de fato estava por trás de tais

projetos de mudanças e transformações na cidade. Nas reminiscências do ex-

guarda da feira João Crizóstomo

Todo projeto de tirar a Igreja da matriz de lugar e o Barracão da frente do comércio, foi na gestão de Fraga, reuniu Mário Sampaio, dona Guiomar França, Fraga e uns cabeçudo da cidade e tirou a Igreja e o Barracão dali.286

Os protagonistas desta história que aparecem no relato do depoente, são:

Antônio Fraga, ex-vereador e também ex-prefeito da cidade; Mário Sampaio,

proprietário da casa comercial São Luiz, atualmente uma das maiores lojas da

cidade que comercializa produtos diversos para toda a região; Guiomar França, ex-

chefa do extinto INPS (hoje INSS) uma das fundadoras da Congregação Mariana na

cidade; e os cabeçudos da cidade, isso é, alguns representantes da elite local.

285 BHABHA. Op. Cit.; p. 29. 286 João Crizóstomo dos Santos. Depoimento citado.

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Todas essas personagens comungaram junto ao poder público das decisões

que iam gradativamente transformando a configuração físico-social dos espaços na

urbe. Uma questão se apresenta nessa reflexão: Quais os interesses que estavam

em Jogo? Vamos imaginar… O terreno baldio, onde fora mais tarde instalada a nova

feira era de propriedade de Chico Coqueiro e este acabou vendendo-o a Florentino

Almeida, ex-prefeito da cidade. E ele, segundo João Crizóstomo, “malandro vivo,

vendeu ao governo e o governo fez a feira ali”.287

Alguns decretos, que estão no Arquivo Público Municipal da cidade, nos

informam que as terras desapropriadas, para ceder lugar à construção do novo

Centro de Abastecimento, eram de propriedade do senhor Gorgônio de Almeida

Araújo e suas irmãs, e algumas casas que se localizavam nas imediações, que

também foram desapropriadas, eram de propriedade dos senhores João Ribeiro dos

Santos e Arlindo Silva de Souza.288

Em meio aos processos de mudanças e transformações que ocorreram na

cidade, a compra de terrenos baldios era uma necessidade preeminente nesta

dinâmica, e envolvia aqueles mais bem aquinhoados. Esta realidade nos leva a

pensar os contornos das relações sociais e as relações estabelecidas entre o

público e o privado na cidade de Santo Antônio de Jesus. Para o ex-guarda da feira

e alguns feirantes, malícias, peripécias e negócios escusos completavam aquele

quadro de mudanças.

O decreto que determinava a transferência da feira-livre do centro da cidade

para outra área data de 1958, mas o processo de resistência dos feirantes

conseguiu prorrogar essa mudança e a conseqüente demolição do Barracão da

Farinha do meio da principal Praça da cidade. No jogo duro da disputa pela

memória, no contexto da relação entre o individual e o coletivo, é difícil precisar

entre os diversos narradores dessa pesquisa uma data “exata” em que eles

deixaram àquela praça. Mas sabemos que não é exatamente esta a função da

memória, e mais importante do que estabelecer limites ou balizas temporais rígidas,

é entender e perceber os processos e desdobramento das “coisas”. Nesse sentido,

entendendo a região do Recôncavo como laboratório de uma experiência humana,

287 Idem. 288 Decreto nº 16 de 26 de Abril de 1969; Decreto nº 24 de 8 de Agosto de 1969; Decreto nº 27 de 2 de Outubro de 1969. APMSAJ.

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as palavras de L. A. Costa Pinto nos serve de aprendizado quando diz que estudar

os variados grupos sociais que vivem/viveram nesta região só tem sentido na

perspectiva de

Analisar e compreender o significado que têm estas transformações para o homem que ali vive, e em que medida essas transformações estruturais engendram e impõem transformações conseqüente no seu nível e gênero de vida; no quadro das posições e das relações sociais que entre si se estabelecem; no conjunto de recíprocas e normas que os mantém em vida associativa; no sistema de instituições que os enquadra numa vida socialmente organizada e lhes dá a noção de pertencerem a um todo que os transcende como indivíduos, nos sistemas de valores e avaliações, pautas de conduta e alternativas de escolha que regulam o seu comportamento, as suas atitudes, os seus papéis, e que definem as suas perspectivas, modelam as suas necessidades e as formas de satisfazê-las, estabelecem constantes e definem variáveis, dão sentido ao quotidiano e a ele impõem um ritmo e uma direção.289

Entre angústias e alegrias, na intersecção do fazer e do viver, o processo de

deslocamento forçava os feirantes e freqüentadores da feira-livre de Santo Antônio

de Jesus a construírem novas formas de inserção que dessem sentido as suas

vidas. O desmonte das “velhas estruturas espaciais” na cidade, implicavam também

em um processo de intervenção e mudanças nas relações sociais solidamente

estabelecidas por laços familiares, de confiança, de amizades, de vizinhança. Por

outro lado, esta nova realidade impelia à formação de novos arranjos que pudessem

reconstruir estas relações agora (des)laçadas pelas mudanças. Forçados a

deixarem o “chão da Praça”, a mudança para o novo Centro de Abastecimento da

cidade marcava também o início de novas trajetórias na vida dos feirantes e a

tomada de novas decisões.

Acredito ser importante ressaltar o leitor neste momento da discussão que

talvez os termos civilidade, civilização, progresso e modernidade não se adequem

no contexto histórico que estou analisando, mas utilizei estes termos porque são

eles que aparecem nos jornais locais. Minha intenção foi reproduzi-los por entender

289 PINTO, L. A. Costa. Recôncavo: laboratório de uma experiência humana. In: Brandão, Maria de Azevedo (Org.). Recôncavo da Bahia: sociedade e economia em transição. Salvador: Fundação Casa de Jorge Amado, 1998. p.159-160.

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que essas concepções expressam formas de viver, sentir e pensar o urbano de

alguns grupos sociais na cidade da Capela.

Para concluir esta análise, não poderia deixar de pensar nas relações de

mudanças e permanências culturais que sobreviveram em meio a esse processo.

Talvez a palavra tradição tenha insistido em aparecer muitas vezes durante todo o

texto e só agora o narrador tenha se dado conta disso. Dessa forma, cabe

perguntarmos, como pensar a tradição nesse processo?

Termo traiçoeiro da cultura popular, por isso mesmo suscetível a debates

intermináveis, acredito ser um campo frutífero pensar a tradição na perspectiva de

Stuart Hall, quando afirma que ela é um elemento vital da cultura, mas ela tem

pouco a ver com mera persistência das velhas formas. Ela está muito mais

relacionada às formas de associação e articulação de elementos. Segundo ele,

As tradições não se fixam para sempre: certamente não em termos de uma posição universal em relação a uma única classe. As culturas, concebidas não como “formas de vida”, mas como “formas de luta” constantemente se entrecruzam. A tradição é um campo de batalha, ela não pode possuir um significado ou valor fixo e inalterado.290

Pensar a tradição dentro da cultura dos feirantes significa tentar acompanhar

a trajetória, as experiências e vivências desses indivíduos sem perder de vista as

formas de associação e articulação, as formas de luta, as encruzilhadas da

negociação e dos conflitos e as formas de resistências criadas e forjadas nas

circunstâncias e nas fronteiras que a vida cotidiana demarcava dentro das

diferenças.

É pensar na história do feirante João Nunes dos Santos que, há mais de meio

século exercendo esse ofício, enfrentou o conflito com o IBAMA, por causa das

peles de animais silvestres que ele comercializava, obrigando-o a deixar de

comercializar estas mercadorias. Enfrentou também fiscais, vivenciou o processo de

desenraizameto, mas decidiu continuar na feira, reconstruindo/construindo novas

relações sociais.

290 HALL, Stuart. Da diáspora: identidades e mediações culturais. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2003, p. 259-261.

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É pensar na história de um homem que usava chapéu de palha na cabeça,

agora usa boné para vender seus produtos. Um homem que continua vendendo na

feira em sua barraca de madeira ainda vários produtos que ele começou vender há

mais de 50 anos atrás, como é o caso do chapéu de palha, candeeiro, abanos,

estilingues, quando os homens quase não usam mais chapéu de palha nas festas

juninas, as donas de casa não precisam mais de candeeiros e abanos e as crianças

não brincam mais com estilingues.

Refletir sobre tradição só ganha sentido se percebemos que homens como

Augusto Laranjeira, já quase deficiente físico por causa da sua idade, continua

vendendo suas peças de cerâmica num modesto box na atual feira, mas ainda

expõe algumas de suas mercadorias no chão, acompanhado de sua filha Vilma que

se iniciou no mundo do trabalho auxiliando seus pais a vender produtos na antiga

feira-livre e de um dos seus netos, que entre uma brincadeira e outra, auxilia seu

avô nas vendas, mas também ouve palavras indignadas do mesmo falando que

quando tinha sua idade já trabalhava na roça manipulando facão, enxadas e foices

e, hoje, as crianças dessa idade não querem saber de nada.

Pensar tradição implica entender que a feira foi o laboratório no qual muitos

feirantes inseriram seus filhos no mundo do trabalho, mas enquanto Vilma filha do

feirante Augusto Laranjeira, e Carlitos, filho de João do couro, lá continuam

exercendo essa profissão, outros filhos de feirantes não quiseram para si dar

continuidade a esse ofício como é o caso de Vitalina Souza. Josué Pereira, ao

resolver se aposentar recentemente e sair da feira, não tendo nenhum filho que

quisesse esse ofício, alugou seu box para um sobrinho, enquanto alguns de seus

filhos são proprietários de supermercados atualmente.

Os filhos caçulas de alguns feirantes ainda ajudam seus pais, como é o caso

de Esmeraldo Nunes e João do Couro, mas eles têm outros ritmos, outros jeitos de

vender e mercadejar, outras formas de se relacionar com os fregueses. São agora

alfabetizados, alguns são estudantes universitários, usam roupas da “moda“

completamente diferentes das usadas por seus pais.

Augusto Laranjeira deixou de vender frutas, sobretudo a laranja, João Nunes

dos Santos não vende mais peles de carneiro, Esmeraldo Nunes, em face à grande

concorrência com seus pares e proprietários de supermercados, não vende mais os

mais de 100 sacos de cebola que ele acostumava vender na antiga feira-livre da

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cidade. Porém, eles continuam sendo conhecidos por todos na cidade e na região

do Recôncavo como Augusto Laranjeira, João do Couro e Esmeraldo da Cebola.

Tradição é acompanhar os passos da ex-feirante Elza Froes e perceber que

enquanto ela exerceu esse ofício ela mudava de ramo com freqüência, começou na

feira vendendo cafezinho, pão com manteiga, bata-doce, banana e aipim cozidos,

depois passou a vender miudezas e roupas, mais tarde a comercializar coco,

manga, melão e pinha. As várias mudanças no ramo de negócio, eram tentativas de

uma mulher do campo que veio enfrentar a cidade em busca da sobrevivência.

Para concluir, talvez deva informar ao leitor que, apesar de já ter saído em

matéria de um programa nacional de uma das cinco “maiores” redes de TV do

mundo – TV Globo291 – e ser o personagem central de uma composição musical de

um artista da terra292, mais uma vez, na prática da vida cotidiana, o feirante João do

Couro está enfrentando um novo conflito no início do século XXI, em face ao poder

público, por causa da nova política de urbanização vigente na cidade atualmente,

que tem como um dos objetivos centrais reordenar e reorganizar a “feira-livre”.

Nessa nova intervenção, os “planejadores da cidade” querem “enquadrar” o feirante

e seus produtos (de grande variedade e volume, como redes, esteiras, panacuns,

selas de animais e ninhos de galinha) em apenas um espaço de 4m². Mas esta é

uma outra história a ser contada.

Essas considerações me fazem acreditar ser menos movediço pensar que

tradição é algo dinâmico e percebermos e compreendermos a permanência do que

muda e a mudança do que permanece. Por outro lado, pensar a construção de uma

fisionomia urbana da cidade de Santo Antônio de Jesus só ganha sentido se a

concebermos como um mosaico que só pode ser montado com as múltiplas

experiências dos sujeitos sociais e como “algo” que se adentra por vários caminhos.

Seguir os passos e as caminhadas de feirantes oriundos de zonas rurais que iam

trabalhar na feira-livre, bem como de seus freqüentadores e freqüentadoras numa

perspectiva mais ampla, é entender que os espaços só ganham sentido e significado

com a arte do fazer e do viver da vida cotidiana de homens, mulheres e crianças,

pois o espaço é o lugar praticado.293 Através de atitudes e decisões, em busca de

291 Programa Fantástico exibido pela TV Globo em 2005. 292 Cantor e compositor é Caetano Galvão. CD A feira de Santo Antônio. Abril de 2007. Rezak Studio. 293 CERTEAU. Op. Cit. p. 202.

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sonhos e melhores condições de vida, entre encantos e desencantos, eles foram se

inserindo no universo da urbe desenhando/redesenhando a silhueta e a estética de

uma das maiores cidades do Recôncavo Baiano.

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6 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Nessa pesquisa me propus a investigar o cotidiano de homens e mulheres

que se deslocavam de várias áreas rurais, entre os anos de 1948 a 1971, com o

propósito de trabalhar como feirantes na cidade de Santo Antônio de Jesus. Nesse

período os jornais locais e alguns setores das elites, desenvolviam intensa

campanha contra hábitos e valores de alguns grupos sociais, como os feirantes, que

ocupavam o centro da cidade, acusando-os de contribuir para práticas e costumes

incivilizados.

Fazendo longas caminhadas a pé, carregando mercadorias em lombo de

animais ou na cabeça, subindo em pau-de-arara, enfrentando sol e chuva, contando

histórias, “causos” ou pilheriando, os feirantes forjaram formas para enfrentar as

múltiplas dificuldades que cruzavam seus caminhos até chegarem na cidade. De

“posse” da urbe, novas dificuldades surgiam em suas vidas, exigindo criatividade e

habilidades para superar os desafios que a cidade da Capela colocava em seus

caminhos.

Movidos pelo sonho de melhorar de vida e conseguir meios mais eficazes

para sustentar a família, alguns homens e mulheres decidiram “romper” com as

relações do mundo do trabalho, ao qual estavam submetidos na roça, e mudar seus

rumos com o objetivo final de alterar seus destinos. Para além do ato de compra e

venda de produtos e mercadorias, eles construíram relações sólidas, laços de

amizade e solidariedade, conquistaram territórios e, no ir e vir da vida cotidiana,

reconstruíram novas fronteiras dando uma outra dinâmica nas relações campo-

cidade.

Adentrando no universo urbano pelos quatro cantos da cidade da Capela,

esses homens e mulheres deram forma a uma feira-livre que vendia de tudo, frutas,

verduras, farinha de mandioca, arroz, feijão, rapadura, carne do sol, carne seca

(carne de sertão ou charque), carne fresca, animais vivos como cavalos, burros,

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porcos, galinhas, perus, preás, ervas e folhas medicinais, louças, cerâmicas,

madeira, chapéu de palha, sandálias de couro, panelas de barro, comidas, beiju…

Mas a feira não era apenas um espaço para compra e venda de produtos ou

mercadorias, a feira-livre era também um espaço no qual corriam as notícias sobre o

cotidiano das pessoas da localidade e de toda região, onde trocava-se informações

sobre parentes e amigos, encontrava-se lazer e diversão, namorava-se, acertavam-

se negócios com terras e propriedades rurais. Na feira-livre se ensinava e se

aprendia noções de caráter, moral, ética, respeito, solidariedade e cidadania. Dentre

as suas múltiplas funções, ela assumia também a função pedagógica.

Essa configuração transformava a feira-livre de Santo Antônio de Jesus em

território dos encontros, uma vitrine da cultura local e da região do Recôncavo

Baiano, que também abria brechas para se perceber dimensões da cultura nacional

e internacional.

Ser feirante não significava apenas desempenhar a função de comprar e

vender produtos, era ser pai e mãe de família, cuidar e educar os filhos,

desempenhar várias funções ao mesmo tempo, saber lidar com o lugar do público e

do privado, lidar com culturas diferenciadas, circular e trabalhar em outras feiras da

Bahia, enfrentar e superar preconceitos, driblar estereótipos, saber negociar na hora

dos conflitos, criar uma noção de tempo, porque o tempo da feira, apesar de estar

no tempo, não é o “tempo do capitalismo”. Os feirantes foram homens e mulheres

que souberam criar uma realidade possível à sobrevivência a partir das

circunstâncias.

Mergulhar na vida cotidiana dos feirantes implicou na certeza de saber que

suas experiências e vivências não se resumiam apenas ao mundo do trabalho. Entre

festas religiosas no campo ou na cidade, participando da micareta, assistir uma

partida de futebol, assistindo filmes no cinema, participando de apresentações de

Bumba-Meu-Boi, Burrinha ou Marujada, desfrutando de viagens de trem até a capital

para visitar parentes e amigos, esses homens e mulheres se divertiam, gozaram os

prazeres que o cotidiano lhes oferecia naqueles momentos, imprimiam significados

simbólicos importantes em suas vidas. Souberam dar forma ao campo e a cidade

também através da festa.

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Neste sentido, além de buscar uma compreensão físico-social da cidade, foi

imprescindível permear o âmbito das múltiplas relações sociais para uma

reconstituição histórica da vida dos feirantes, da feira-livre e da cidade, tendo o

cotidiano oferecido diversas possibilidades para o encontro dessas gerações.

Inconformado com a feira que aparece nos jornais e na mentalidade de alguns

sujeitos, como um lugar mecânico, fixo, de estruturas rigidamente estabelecidas, una

e homogênea, tentei entrar na feira de “cabeça, carne e osso”, sem pretensão de

buscar a verdade única e total, mas, buscar nas diversas narrativas, verdades que

deram e dão sentido à vida de homens e mulheres que souberam conduzir suas

histórias.

Passando pelas múltiplas transformações do tempo e das conjunturas sociais,

guardam uma memória como passos e marcas vivas de um passado que também é

presente e com ele dialoga constantemente. Os feirantes foram homens e mulheres

que elaboraram formas de resistências aliadas às necessidades daquele momento,

através de suas práticas, arranjos e improvisos, contrariavam a ordem vigente,

sobretudo daqueles que defendiam os ideais civilizadores e de progresso e queriam

modernizar a cidade a qualquer custo.

Ao longo da investigação, a garimpagem das fontes revelou uma trajetória de

aventura, onde muitas surpresas, como por exemplo, o fato de não haver uma

relação direta entre gênero/tipo de atividade desempenhada e as experiências de

alguns desses sujeitos extrapolarem os limites espaciais que o pesquisador

imaginava. As atividades e suas experiências não se resumiam apenas à feira-livre

da cidade da Capela, eram homens e mulheres desempenhando atividades

comerciais e relações sociais em outras regiões, como é o caso nas feiras de

Nazaré das Farinhas, Feira de Santana e Água de Meninos, na capital do estado,

levando-nos a pensar na idéia de que foram homens e mulheres que também

encenaram em outras feiras da Bahia.

Analfabetos, pais e mães de filhos, os feirantes aqui interpretados, foram

homens e mulheres oriundos de zonas rurais que se inseriram no universo da urbe.

Através de suas práticas culturais, foram criando uma geografia territorial e cultural

na cidade, que também contribuiu à construção de sua fisionomia urbana, sua

consolidação como um pólo regional no Recôncavo Sul Baiano e talvez tenha

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germinado a criação da representação de que goza hoje a cidade: o comércio

dinâmico e mais barato da Bahia.

Traçar um pouco o itinerário desses sujeitos nos ratificou a convicção das

múltiplas possibilidades de alargamento dessa pesquisa, que poderá implicar em

outros desdobramentos, outras abordagens. Algumas questões até aqui levantadas

podem ser mais esmiuçadas em outro trabalho, o que não foi possível realizar nesse

momento. A única certeza que tenho agora, no final desta aventura, é que outras

verdades e outras histórias da vida cotidiana clamam na escuridão, são vozes que

apelam para outros ouvidos.

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FONTES

Orais:

Augusto Soares da Silva, feirante, 90 anos. Rua Marita Amâncio s/n, Santo

Antônio de Jesus – Bahia.

Augusto Silva, aposentado, 88 anos. Rua do Calabá nº 613, Santo Antônio de

Jesus – Bahia.

Amarílio Monteiro Orrico, ex-vereador, aposentado, 93 anos. Trav. Castro Alves

nº 67, Santo Antônio de Jesus – Bahia.

Carlitos Souza dos Santos, feirante, 49 anos. Caminho 9, Casa 12, Urbis 3, Santo

Antônio de Jesus – Bahia.

Edmilson Barbosa Bittencourt, músico, aposentado, 64 anos. Praça Silvestre

Evangelista, nº 338, Santo Antônio de Jesus Bahia.

Elza Froes da Fonseca, ex-feirante, dona-de-casa, 61 anos. Rua do Calabá nº

629. Santo Antônio de Jesus – Bahia.

Esmeraldo Nunes dos Santos, feirante, Avenida Juracy Magalhães, nº 430, 66

anos. Santo Antônio de Jesus – Bahia.

João Nunes dos Santos, feirante, 75 anos. Avenida Juracy Magalhães nº 560,

Santo Antônio de Jesus – Bahia,

João Crizóstomo Sampaio, ex-guarda da feira, ex-trabalhador da indústria do

fumo, aposentado, 84 anos. Rua do Calabá nº 726, Santo Antônio de Jesus –

Bahia.

José de Souza Brito, ex-funcionário da COELBA, aposentado, 81 anos. Praça

Silvestre Evangelista nº 247, Santo Antônio de Jesus – Bahia.

Josué Pereira dos Santos, ex-feirante, aposentado, 73 anos. Rua Sóter Barros nº

101, Santo Antônio de Jesus – Bahia.

Macionília Froes dos Santos, ex-feirante, dona-de-casa, 65 anos. Rua Sóter

Barros, nº 101, Santo Antônio de Jesus – Bahia.

Maria Clarice Santiago Almeida, dona-de-casa. 69 anos. Avenida Luiz Viana, nº

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596, Santo Antônio de Jesus – Bahia.

Maria Conceição da Silva, Ex-professora, aposentada, 73 anos. Rua Sóter Barros

nº 29, Santo Antônio de Jesus – Bahia.

Olavo da Silva, marceneiro, aposentado, 78 anos. Avenida Mendes da Rocha nº

511, bairro Jardim Brasil, São Paulo – SP.

Paulo Pereira do Santos, funcionário Funerária Andrade, 36 anos, Urbis 4,

Caminho 33, casa 21, Santo Antônio de Jesus – Bahia.

Valdenor Santos Rodrigues, Matemático, ex-funcionário da COELBA,

aposentado, 64 anos. Edifício Costa Azul, Aptº. 201, Costa Azul, Salvador –

Bahia.

Vilma da Paixão Silva, feirante, 45 anos, Rua Marita Amâncio nº 483, Santo

Antônio de Jesus – Bahia.

Vitalina Santos Souza, ex-feirante, dona-de-casa, 70 anos. Rua do Calabá nº

301, Santo Antônio de Jesus – Bahia.

Escritas:

a) Jornais

JORNAL LOCAL PERÍODO

O Paládio Arquivo Público Municipal

de Santo Antônio de

Jesus

1945 a 1952

O Detetive Arquivo Particular 1950 a 1951

O Detetive Arquivo da Paróquia de

Santo Antônio de Jesus

Ano I, nº 46 - 04 junho

1948

A Voz das Palmeiras Arquivo Particular Ano I Nº 15 21/08/1953

A Voz das Palmeiras Arquivo Particular Ano I Nº 28 17/01/1954

A Voz das Palmeiras Arquivo Particular Ano I Nº 30 04/01/1954

A Voz das Palmeiras Arquivo Particular Ano I Nº 38 05/05/1954

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b) Leis, Atas e Decretos.

LEIS, ATAS E

DECRETOS

LOCAL PERÍODO

Livro de Leis e Decretos Arquivo Público Municipal Stº

Ant. de Jesus

1958

Livro Ata Arquivo Público Câmara

Municipal Stº Ant. de Jesus

1959

Livro Ata Arquivo Público Câmara

Municipal Stº Ant. de Jesus

1953

Livro Decretos e

Portarias

Arquivo Público Municipal Stº

Ant. de Jesus

1945-1956

Livro de Registro de Leis Arquivo Público Municipal Stº

Ant. de Jesus

1948-1956

Livro de Leis, Decretos e

Portarias

Arquivo Público Municipal de Stº

Ant. de Jesus

1956- 1963

Decreto n.16

Decreto n.24

Decreto n.27

Decreto n.33

Decreto n.44

Decreto n.06

Decreto n.09

Arquivo Público Municipal de Stº

Ant. de Jesus

26-04-1969

08-07-1969

02-10-1969

18-12-1969

22-01-1971

02-09-1971

02-09-1971

c) Registros Eclesiásticos.

REGISTROS ECLESIÁSTICOS LOCAL

Livro de Tombo Nº 2 Arquivo Paróquia de Santo Antônio

Folheto Avulso. Janeiro de 1945. Arquivo Paróquia

Santo Antônio

Livro de Registro de Batizado Nº 13-29. Arquivo da Paróquia de Santo Antônio

1948-1971.

Livro de Registro de Casamento Nº 3-7. Arquivo da Paróquia de Santo Antônio

1948-1971.

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d) Fotográficas.

FOTOGRAFIAS

Acervo fotográfico de particulares.

Fotografias da pesquisa de campo.

Acervo fotográfico da Filarmônica Amantes da Lyra.

Acervo fotográfico do site MMA.

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______. Costumes em comum: estudos sobre a cultura popular tradicional. São

Paulo: Companhia das Letras, 1991.

THOMSON, Alistair. Recompondo a memória: questões sobre a relação entre a

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ZUMTHOR, Paul. A letra e a voz: A “literatura” medieval. São Paulo: Companhia

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ANEXOS

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ÍNDICE DOS ANEXOS

FIGURA 01 – Mapa das Ruas de Santo Antônio de Jesus (2002)

FIGURA 02 – Feirante João Nunes dos Santos

FIGURA 03 – Barraca do Feirante João Nunes dos Santos

FIGURA 04 – Feirante Augusto Soares da Silva

FIGURA 05 – Feirante Josué Pereira dos Santos

FIGURA 06 – Feirante Vilma da Paixão Silva

FIGURA 07 – Feirante Esmeraldo Nunes dos Santos

FIGURA 08 – Feirante Carlitos Souza dos Santos

FIGURA 09 – Filarmônica Amantes da Lyra – 1965

FIGURA 10 – Cine Rex

FIGURA 11 – Equipe de Futebol Humaitá

FIGURA 12 – Rua da Mangueira

FIGURA 13 – Campo de Aviação

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FIGURA 01 – MAPA DAS RUAS DE SANTO ANTÔNIO DE JESUS (2002)

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FIGURA 02 – FEIRANTE JOÃO NUNES DOS SANTOS

FIGURA 03 – BARRACA DO FEIRANTE JOÃO NUNES DOS SANTOS

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FIGURA 04 – FEIRANTE AUGUSTO SOARES DA SILVA

FIGURA 05 – FEIRANTE JOSUÉ PEREIRA DOS SANTOS

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FIGURA 06 – FEIRANTE VILMA DA PAIXÃO SILVA

FIGURA 07 – FEIRANTE ESMERALDO NUNES DOS SANTOS

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FIGURA 08 – FEIRANTE CARLITOS SOUZA DOS SANTOS

FIGURA 09 – FILARMÔNICA AMANTES DA LYRA – 1965

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FIGURA 10 – CINE REX

FIGURA 11 – EQUIPE DE FUTEBOL HUMAITÁ

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FIGURA 12 – RUA DA MANGUEIRA

FIGURA 13 – CAMPO DE AVIAÇÃO

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