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A esquerda que não teme dizer seu nome Vladimir Safatle
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Safatle Esquerda Nao Teme Dizer Nome

Sep 13, 2015

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Carlos Inacio

Igualdade - Soberania popular - Democracia além do Estado de Direito
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  • A esquerda

    que no teme

    dizer seu nome

    Vladimir Safatle

  • 2012 Trs Estrelas - selo editorial da Empresa Folha da Manh S.A.

    Todos os direitos reservados. Nenhuma parte desta obra pode ser reproduzida, arquivada ou transmitida de nenhuma forma ou por nenhum meio sem a permisso expressa c por escrito da Empresa Folha da Manh S.A., detentora do selo editorial Trs Estrelas.

    e d i t o r Alcino Leite Neto

    e d i t o R A - A S S iS T E N T E Rita Palmeira

    c o o r d e n a o d e p r o d u o g r a f i c a Mariana Metidieri

    p r o d u o g r f i c a ris Polachini

    c a p a Felipe Kaizer

    p r o j e t o g r f i c o d o m t o l o Mayumi Okuyama

    p r e p a r a o Paulo Nascimento Verano

    r e v i s o TulioKawata

    Dados Internacionais de Catalogaro na Publicao (c i p )(Cmara Brasileira do Livro, s p , Brasil)

    Safatle, VladimirA esquerda que no teme dizer seu nom e /Vladimir Safatle.

    So Pau lo: Trs Estrelas, 2012.

    vISBN 978-85-65339-04-9

    1. Direita e esquerda (Poltica) 2. Filosofia poltica 1. Ttulo

    12-04664 CDD-320.01

    ndice para catlogo sistemtico:

    1. Pensamento de esquerda: Filosofia poltica 320.01

    Este livro segue as regras do Acordo Ortogrfico da Lngua Portuguesa (1990}, em vigor desde ie de janeiro de 2009.

    _ J t r s^ ESTRELAS

    A l. B aro de I im eira, 4 0 1 ,6- an d ar CEP 0 12 0 2 -9 0 0 , S o Paulo, s p

    Tel.: (11) 3224-2186/2187/2197

  • Sumrio

    io Introduo

    20 Igualdade e a equao da indiferena

    38 Soberania popular ou a democracia para

    alm do Estado de Direito

    60 Do tempo das ideias

    82 Concluso

    87 Sobre o autor

  • Introduo

  • Um dos m antras preferidos dos ltim os anos diz respeito

    ao p reten so esgotam en to do p en sam en to de esquerda.

    Seus sacerdotes so de dois tipos. Os prim eiros gostariam

    de ser vistos com o os vitoriosos de um a poca term inada de

    conflito ideolgico. Eles no cansam de afirm ar que a es-

    querda nunca p assou de um arrem edo de autoritarism o

    mal-disfarado, demandas infantis de proteo, ingenuidade

    a respeito das violncias animadas pelo mal radical e incom -

    petncia gerencial.

    Durante dcadas, esses intelectuais no tinham coragem

    de dizer claramente o que pensavam. Mas, animados pelo fim

    do socialismo real, com o consequente colapso dos partidos

    com unistas no Ocidente, pelo em baralhamento sistemtico

    das polticas de sociais-dem ocratas e conservadores, pela

    parania securitria da prim eira dcada do sculo e por

    doses reforadas de fundam entalism o cristo, eles podem

    agora afirm ar todo seu conservadorism o e sua crena nas

    virtudes curativas do porrete da polcia.

    11

  • O segundo tipo composto de um squito heterclito de

    vivas da esquerda. Com um olhar entristecido, elas afirmam

    que a esquerda est sem rum o desde a queda do Muro de

    Berlim e que chegou a hora de doses amargas de realismo.

    No d mais para sonhar com Estado de Bem-Estar Social

    e coisas do tipo, nem ter explicaes angelicais a respeito

    da violncia. Falar em novas configuraes do poltico

    conversa de gente que no entendeu que a democracia par-

    lamentar , como costumava dizer um lder conservador, o

    pior governo, mas o nico possvel. As velhas agendas de

    crtica do poder, de identificao dos conflitos de classe e

    das prticas disciplinares presentes em nossas instituies

    poderiam muito bem ser trocadas por uma boa ao social

    em o n g s ecolgicas, de preferncia aquelas financiadas por

    bancos e grande corporaes.

    Vrias dessas vivas, principalmente em pases euro-

    peus, no temeram flertar com o pior do nacionalismo e do

    culto da identidade, travestindo tudo isso de luta do Ocidente

    liberal contra o Oriente islmico amedrontado pelo inelut-

    vel processo de modernizao.

    De fato, esse mantra do esgotamento do pensamento de

    esquerda encontrou no Brasil um terreno profcuo. Desde o

    governo Fernando Henrique Cardoso (1995-2002), tnhamos

    de conviver com o cinismo de intelectuais que utilizavam

    Marx para justificar o carter inevitvel da globalizao e de

    nossa insero dependente e subalterna. O nico resultado

    12

  • concreto desse cinism o foi im por um dito choque de rea-

    lidade, visando a acabar de vez com o pretenso fantasm a

    do Estado getulista, com seus tentculos ineficientes. Por

    m uito pouco , no se destri o que restava da capacidade

    estatal de construo de polticas de interveno econmica,

    capacidade cuja im portncia ficou evidente depois da crise

    mundial de 2008.

    Com o se isso no bastasse, a desconsiderao sobe-

    rana por m ovim entos sociais e por setores organizados da

    sociedade civil - parte a Federao Brasileira de Bancos

    (Febraban) - foi regra nesse perodo. S a ttulo de exem -

    plo, o lder do governo de Fernando Henrique Cardoso no

    Congresso no temia chamar aes do Movimento dos Traba-

    lhadores Rurais Sem Terra (m s t ) de terrorism o. Da m esm a

    forma, a questo social era to ausente que seu presidente do

    Banco Central no via problem as em ir televiso e sugerir

    pura e sim plesm ente a supresso do pargrafo da Consti-

    tuio Federal que obrigava o Estado a garantir a universa-

    lizao do servio pblico de sade.

    Com o governo Luiz Incio Lula da Silva (2003-2010), no

    entanto, continuam os obrigados a conviver com o bloqueio

    reiterado da reconstruo dos fundamentos gerais do cam po

    do poltico, com o se a im erso na pior poltica fosse um a

    fatalidade intransponvel. A despeito de sua capacidade de

    colocar a questo social enfim no centro do embate poltico

    e de com preender o necessrio carter indutor do Estado

    13

  • brasileiro no nosso desenvolvim ento socioeconm ico, o

    governo Lula ser lembrado, no plano poltico, por sua inca-

    pacidade de sair dos im passes de nosso presidencialism o de

    coalizo. Com o se a governabilidade justificasse a acom oda-

    o final da esquerda nacional a urna sem idem ocracia im o-

    bilista, de baixa participao popular direta e com eleies

    em que s se ganha mobilizando, de maneira espria, a fora

    financeira com seus corruptores de sempre.

    Nos dois casos, esm erou-se em utilizar um palavreado

    de esquerda para justificar business as usual. O que acaba por

    reforar nossa im presso de que o poltico na contem pora-

    neidade seria apenas a dimenso da ausncia de criatividade

    e das lim itaes de nossas aspiraes de m udana.

    Por isso, som os obrigados a ouvir compulsivamente que

    a diviso esquerda/direita no faz mais sentido. Mesmo que

    ainda encontremos posies polticas e leituras dos impasses

    da vida social contempornea radicalmente antagnicas, h

    um a clara estratgia de evitar dar a tais antagonism os seu

    verdadeiro nom e. Ela utilizada para fornecer a im presso

    de que nenhuma ruptura radical est na pauta do campo poltico

    ou, para ser mais claro, de que no h mais nada a esperar

    da poltica, a no ser discusses sobre a melhor maneira de

    administrar o modelo socioeconm ico hegemnico nas so -

    ciedades ocidentais. No se trata mais de pensar a modificao

    dos padres de partilha de poder, de distribuio de riquezas e

    de reconhecimento social. Trata-se de uma questo de gesto

    14

  • de modelos que se reconhecem com o defeituosos, mas que

    ao mesmo tempo se afirmam com o os nicos possveis.

    A funo atual da esquerda , por isso, mostrar que tal

    esvaziamento deliberado do cam po poltico feito para nos

    resignarm os ao pior, ou seja, para nos resignarm os a um

    modelo de vida social que h muito deveria ter sido ultrapas-

    sado e que evidencia sinais de profundo esgotamento. Cabe

    esquerda insistir na existncia de questes eminentemente

    polticas que devem voltar a frequentar o debate social.

    Uma maneira de iniciar a discusso identificando quais

    so as posies que podem caracterizar, hoje, o pensamento

    de esquerda. Importante insistir que a plasticidade da pol-

    tica exige que a determinao dos problemas do presente

    defina a configurao de nossa posio. Isso significa que

    o pensamento poltico deve ter uma dimenso profunda-

    mente estratgica. Ele se move de acordo com os proble-

    mas postos pela vida social. Muitas vezes, vrias correntes

    da esquerda ignoraram tal mobilidade, entrando assim em

    uma espcie de petrificao do discurso que acabou por

    afast-los da capacidade de pautar a opinio pblica.

    Essa reflexo sobre as posies que caracterizam a

    esquerda pode nos m ostrar com o a poltica , em seu fu nd a-

    mento, a deciso a respeito do que ser visto como inegocivel. Ela

    no simplesmente a arte da negociao e do consenso, mas

    a afirm ao taxativa daquilo que no estamos dispostos a

    colocar na balana. O que falta hoje esquerda mostrar o

    15

  • que, segundo seu ponto de vista, inegocivel. Por exemplo,

    quais processos e resultados so fundam entais para um a

    verdadeira coeso social que no seja submersa por clivagens

    e desigualdades.

    Este livro pretende falar, pois, do inegocivel, ou seja,

    disso que, norm alm ente, a prim eira coisa que a esquerda

    esquece quando assu m e o go vern o e com ea a ficar fas-

    cinada p o r ser recebida em casas de escroques na R iviera

    Francesa, por ser convidada para vernissages de publicitrios

    travestidos de artistas plsticos e por com ear a ler m ais so -

    bre vinh os caros do que sobre a alienao do trabalho nas

    linhas de m ontagem da Ford.

    Vale a pena insistir nesse ponto, porque o principal p ro -

    blema que acomete a esquerda atual sua dificuldade em ser

    um a esquerda popular. Isso significa duas coisas: saber expor

    problem as sociais a partir da perspectiva dos que so mais

    vulnerveis a eles e, sobretudo, ser um enunciador crvel para

    tais cam adas populares. No prim eiro caso, a esquerda deve

    saber encarnar a urgncia daqueles que sentem mais claramente

    o sofrim ento social advindo da precariedade do trabalho,

    da pauperizao e das m ltiplas form as de excluso. Mas

    difcil encarnar tal urgncia quando se com ea a v iver em

    apartam entos de 6,5 m ilhes de reais.

    N o segundo caso, a esquerda deve m ostrar que ca -

    paz de governar sem produzir novas m odalidades de so fri-

    m ento e insegurana social. Ela deve ser capaz de detalhar

    16

  • ao extrem o suas aes e os cenrios possveis que estas en-

    gendrariam. Ela deve m ostrar estar ciente das dificuldades

    e da m elhor maneira de venc-las, isso sem ter que apelar

    para ideias vagas como: tudo se resolve por meio de vontade

    poltica . Ou seja, ela deve ser, ao m esm o tempo, capaz de

    sentir o sofrimento social e capaz de ter a inteligncia tcnica

    para resolv-lo no cotidiano.

    A G I R P A R A N O P E N S A R

    Um leitor impaciente poderia, no entanto, se perguntar por

    que perder tem po com teoria e discusso sobre princpios

    se as urgncias prticas da poltica parecem to prementes.

    Nesse sentido, valeria a pena lembr-lo dos pargrafos in i-

    ciais de Carta sobre o humanismo, em que Martin Heidegger

    confrontado com um a pergunta a respeito da relao

    entre pensam ento e prxis. M arx j dissera que a funo

    da filosofia era transform ar o m undo, e no simplesmente

    pens-lo. Heidegger faz um adendo de rara preciso: o pen-

    sam ento age quando pensa.

    Na verdade, esse agir prprio ao pensam ento talvez

    o agir m ais difcil e decisivo. N o se trata da velha crena

    de o pensam ento, no fundo, ser um subterfgio para a

    ao, um a com pensao quando no som os capazes de

    agir. Se p odem os d izer que o pensam ento age quando

    17

  • pensa, porque ele a nica atividade que tem a fora de

    modificar nossa com preenso do que , de fato, um pro-

    blema, qual o verdadeiro problema que temos diante de

    ns e que nos impulsiona a agir. o pensamento que nos

    permite compreender como h uma srie de aes que so,

    apenas, lances no interior de um jogo cujo resultado j est

    decidido de antemo.

    A sociedade capitalista contempornea procura dar aos

    sujeitos a impresso de eles terem possibilidades infinitas,

    de poderem decidir sobre tudo a todo momento. Um pouco

    como as decises de consumo, cada vez mais customizadas

    e particularizadas. No entanto, talvez seja correto dizer que

    essa ao no um verdadeiro agir, pois incapaz de mu-

    dar as possibilidades de escolha, que j foram previamente

    determinadas. Ela no produz seus prprios objetos, apenas

    seleciona objetos e alternativas que j foram previamente

    postos na mesa. Por isso, essa ao no livre.

    Quando realmente pensam os, conseguim os ir alm

    dessa reduo da liberdade a um simples livre-arbtrio que

    me faz escolher no interior de um quadro que me imposto

    sem que eu possa produzi-lo. Por isso, o pensamento, quando

    aparece, exige que toda ao no efetiva pare, a fim de que

    o verdadeiro agir se manifeste. Nessas horas, entendemos

    como, muitas vezes, agimos para no pensar, pois pensar de

    verdade significa pensar na sua radicalidade, utilizar a fora

    crtica e a fora radical do pensamento.

    18

  • Quando a fora crtica do pensamento com ea a agir,

    ento todas as respostas comeam a ser possveis, alterna-

    tivas novas comeam a aparecer na mesa. Nesses momentos,

    com o se o espectro das possibilidades aumentasse, uma

    vez que, para que novas propostas apaream, necessrio

    que saibamos, afinal de contas, quais so os verdadeiros pro-

    blemas. E talvez devamos colocar novamente esta questo

    sim ples: para um a perspectiva de esquerda, quais so os

    verdadeiros problemas?

    19

  • Igualdade e a equao da indiferena

  • Q uem ignora efetivam ente que os lo b o s andam em m atilha?

    G I L L E S D E L E U Z E

    Talvez a posio atual mais decisiva do pensamento de es-

    querda seja a defesa radical do igualitarismo. Juntamente com a

    defesa da soberania popular, a defesa radical do igualitarismo

    fornece a pulsao fundamental do pensamento de esquerda.

    Tal defesa do igualitarismo traz orientaes muito claras

    a respeito de questes centrais no campo social e econmico.

    Por igualitarismo devemos entender duas coisas. Primeiro,

    que a luta contra a desigualdade social e econmica a prin-

    cipal luta poltica. Ela submete todas as demais.

    Nossas sociedades capitalistas de mercado so socieda-

    des paradoxais por produzirem, ao mesmo tempo, aumento

    exponencial da riqueza e pauperizao de largas camadas da

    populao. Quebrar esse paradoxo tarefa da poltica.

    Por outro lado, igualitarismo refere-se tambm a uma

    ideia ligada s demandas de reconhecimento. Ela significa

    que a esquerda deve ser indiferente s diferenas. De certa

    forma, a poltica atual da esquerda s pode ser uma poltica

    da indiferena.

    21

  • Vejamos o primeiro ponto para depois explicarmos

    melhor o segundo.

    A partir do incio dos anos 1980, o impulso fornecido

    pelos modelos liberais implementados por Margareth

    Thatcher (1979-1990) e Ronald Reagan (1981-1989) levou a

    economia a um desenvolvimento exponencial nos pases

    centrais, isso enquanto ia deixando de lado as expectativas

    daquilo que ainda chamvamos nos anos 1960 de sociedade

    do Bem-Estar Social.

    Se, por um lado, o capital conheceu durante esse pe-

    rodo oportunidades mltiplas de investimento, oferecendo

    taxas de lucros em geral mais elevadas que em pocas

    anteriores,1 por outro, a flexibilizao do trabalho, o de-

    senvolvimento tecnolgico e o declnio das polticas esta-

    tais de proteo provocaram uma situao potencialmente

    explosiva. Apenas para ficar em um exemplo: enquanto

    0 Produto Interno Bruto (p i b ) norte-americano por habi-

    tante cresceu 36% entre 1973 e 1995, o salrio-hora de no

    executivos (que so a maioria dos empregados) caiu i4% .2

    No ano 2000, o salrio real de no executivos nos Estados

    Unidos retornou ao que era h cinquenta anos. Dados como

    estes demonstram que, diante dos modelos liberais, ou seja,

    sem forte interveno de polticas estatais de redistribuio,

    1 Boltanski, Luc. Le nouvel esprit du capitalisme. Paris: Gallimard, 1999, p. 19.

    2 Ver: Thurow, Lester. Lesfractures du capitalisme. Paris: Village Mondial,i97.

    22

  • nossas sociedades tendem a entrar em situao de profunda

    fratura social por desenvolverem uma tendncia radical de

    concentrao de riquezas. O problema da desigualdade s

    pode ser realmente minorado por meio da institucionali-

    zao de polticas que encontram no Estado seu agente.

    Pode-se dizer isso porque, de outra forma, elas nunca tero

    a escala e a universalidade necessrias para funcionar. O

    Estado a nica instituio que garante o estabelecimento

    de processos gerais capazes de submeter toda a extenso

    da sociedade.

    Por outro lado, ele resultado de uma rede de normas

    sociais cuja configurao sensvel presso da sociedade

    organizada. Tal presso pde, em vrios momentos da his-

    tria do sculo xx, transformar o Estado em fora capaz de

    limitar interesses de concentrao de riquezas vindos dos

    setores mais afluentes da sociedade. No h outra institui-

    o capaz de desempenhar papel semelhante. Por isso, em

    nome do combate desigualdade econmica, a esquerda

    no pode abrir mo do fortalecimento da capacidade de

    interveno do Estado.

    As crticas contra o Estado, vindas da prpria esquerda

    e animadas pelo saldo libertrio de Maio de 68, no tm res-

    posta adequada para o problema da luta contra a desigualdade

    econmica. Ela forte na denncia das estruturas disciplina-

    res do pder estatal, mas esquece que o Estado moderno no

    pode ser reduzido a um aparato disciplinar, nem mesmo, se

    23

  • quisermos retomar essa temtica marxista clssica, a um

    mero aparelho de interesse de classe. Os ltimos trinta anos

    demonstraram claramente como dinmicas de redistribui-

    o e de luta contra fraturas sociais no se realizam sem a

    fora de interveno do Estado. Hegel j havia insistido com

    preciso nesse ponto desde sua Filosofia do direito.

    Por outro lado, arautos do pensamento conservador

    procuram desqualificar a centralidade da luta contra a de-

    sigualdade, afirmando que a diversidade de talentos e de

    capacidades de engajamento deve ser respeitada. De fato,

    nenhuma pessoa sensata poderia ser contrria meritocracia

    e recompensa pelo empreendedorismo. No entanto, tais

    valores apenas encobrem o pior cinismo quando no vm

    associados luta contra a desigualdade de oportunidades e

    condies. A diversidade de talentos , muitas vezes, a capa

    que se usa para acobertar que a diversidade de riquezas um

    problema que quebra a possibilidade de desenvolvimento

    individual por mrito.

    Um exemplo do tipo de ao que uma defesa radical do

    igualitarismo pode produzir foi sugerido pelo candidato

    de uma coligao francesa de partidos de esquerda elei-

    o presidencial de 2012, Jean-Luc Mlenchon. Consiste na

    proposio de um salrio mximo, com um teto que im-

    pediria que a diferena entre o maior e o menor ganho fosse

    superior a vinte vezes. Uma lei especfica tambm limitaria

    o pagamento de bonificaes e stock-options.

    24

  • Em uma realidade social de generalizao mundial das

    situaes de desigualdade extrema, outra face daquilo que

    certos socilogos chamam de brasilizao, tais propostas

    tm a fora de trazer, para o debate poltico, a necessidade

    de institucionalizao de polticas contra a desigualdade.

    No Brasil, onde a diferena entre o maior e o menor salrio

    em um grande banco chega a mais de cem vezes, discusses

    dessa natureza so absolutamente necessrias. Elas permi-

    tem a revalorizao de atividades desqualificadas economi-

    camente e a criao da conscincia de que a desigualdade

    impe uma balcanizao social com consequncias pro-

    fundas. Discusses como esta s uma esquerda que no teme

    dizer seu nome pode apresentar.

    Note-se ainda que o argumento liberal referente des-

    motivao e quebra do empreendedorismo que aes dessa

    natureza trariam simplesmente falso. Entre os vinte pa-

    ses com maior ndice de inovao, encontramos Islndia,

    Noruega, Sucia e Dinamarca: pases cuja diferena entre

    o menor e o maior salrio em empresas, muitas vezes, no

    chega a ser de um para quatro. Ou seja, no h nenhuma

    relao direta entre diferena salarial e iniciativa profissional.

    Garantido um salrio digno, as motivaes para a iniciativa

    passam por outras dimenses.

    Na verdade, o argumento liberal apenas uma estratgia

    para no deixar evidente um clssico processo de espoliao

    de classe. No primeiro semestre de 2011, um estudo mostrou

    25

  • como o 0,1% mais bem pago no Reino Unido recebia, em 1979,

    1,3% dos salrios. Hoje, recebe 5% e em 2030 deve receber 14%/

    Costuma-se dizer que urna das maiores astcias do

    diabo nos convencer de que ele no existe. Urna das maio-

    res astucias do discurso conservador nos convencer, diante

    de dados dessa natureza, de que conflito de classe um de-

    lirio de esquerdista centenrio. Mesmo que vejamos um

    processo brutal de concentrao de renda completamente

    institucionalizado e intocado por qualquer partido que esteja

    no poder, mesmo que vejamos a tendncia de espoliao dos

    recursos de pases industrializados por camadas mais ricas

    da populao, tudo deve ser um compi dos incompetentes

    contra aqueles que bravamente venceram na vida graas ape-

    nas a seu entusiasmo e sua capacidade visionria. Por isso,

    a esquerda deve meditar um pouco sobre esta afirmao de

    Warren Buffet, um dos homens mais ricos do mundo:

    verdade que h urna guerra de classes, mas a minha classe

    que est fazendo a guerra e ganhando.

    A D E U S D IF E R E N A

    I Se a prim eira dimenso do igualitarism o diz respeito sijluta contra a desigualdade econmica, a segunda se refere

    3 Ver editorial Mais desigualdade, Folha de S.Paulo, 13/6/2011, p. 2.

    26

  • j estrutura das demandas de reconhecimento na vida social.

    Isso pode ser explicado por meio daquilo que devemos cha-

    m ar de necessidade de um a poltica da indiferena. Um a

    maneira de com preender tal necessidade partir da consta-

    tao do esgotamento da diferena com o valor m aior para a

    ao poltica.

    Durante certo tempo, embalada pelos ares libertrios de

    Maio de 68, a esquerda viu na diferena o valor suprem o

    de toda crtica social e ao poltica. Assim , os anos 1970 e

    1980 foram palco da constituio de polticas que, em alguns

    casos, visavam a construir a estrutura institucional daque-

    les que exigiam o reconhecim ento da diferena no cam po

    sexual, racial, de gnero etc. Um a poltica das defesas das

    minorias funcionou como motor importante do alargamento

    das possibilidades sociais de reconhecim ento. Essa poltica

    gerou, no seu bojo, as exigncias de tolerncia multicultural

    que pareciam anim ar o mundo, sobretudo a partir de 1989,

    com a queda do Muro de Berlim.

    Sabem os com o multiculturalismo diz respeito, in icial-

    mente, a um a lgica de ao poltica baseada no reconhe-

    cim ento institucionalizado da diversidade cultural prpria

    s sociedades multirraciais ou s sociedades com postas por

    com unidades lingusticas distintas. Isso im plica transfor-

    m ar o problem a da tolerncia diversidade cultural, ou seja,

    o problem a do reconhecim ento de identidades culturais,

    no problema poltico fundamental. Dessa forma, abriram-se

    27

  • as portas para certa secundarizao de questes m arxistas

    tradicionais vinculadas centralidade de processos de re-

    distribu io e de conflito de classe na determ in ao da

    a o p o ltica . N o lim ite, os con flitos fun d am en ta is no

    in terior do un iverso social foram com preendidos com o

    conflitos culturais.

    Por um lado, tal dinmica teve sua im portncia por dar

    m aior visibilidade a alguns dos setores mais vulnerveis da

    sociedade (com o negros, m ulheres e hom ossexuais). No

    entanto, a partir de certo m om ento, com eou a funcionar >

    de m aneira contrria quilo que prom etia, pois podem os

    atualmente dizer que essa transformao de conflitos sociais

    em conflitos culturais foi talvez um dos motores maiores de

    um a equao usada exausto pela direita mundial, em es-

    pecial na Europa. Ela consiste em aproveitar-se do fato de as

    classes pobres europeias serem compostas majoritariamente

    p o r im igrantes rabes e africanos e, assim , patrocinarem

    um a poltica brutal de estigm atizao e excluso poltica

    travestida de choque de civilizaes.

    Desse m odo, posso estigm atizar pobres aproveitando-

    -me do fato de eles serem culturalm ente diferentes, criando

    com isso situaes de profunda precarizao do trabalho,

    de contnua insegurana de trabalhadores, que so esp o -

    liados de todo e qualquer direito por serem im igrantes. Um

    clssico conflito de classe e espoliao transformou-se em choque

    civilizatrio.

    28

  • Ou seja, h uma linha reta que vai da tolerncia multi-

    cultural perpetuao racista da excluso daqueles para

    quem nossos valores nunca deram prova de incluso moder-

    nizadora. Afinal, trata-se de dizer que o nico lugar onde a

    diferena pode florescer em liberdade em nosso Ocidente

    defendido por mega-aparatos securitrios contra terroristas.

    Talvez o saldo final do multiculturalismo seja: aqueles que no

    se adaptam a nosso campo de diferenas no so diferentes, mas

    simplesmente irrepresentveis, objetos de perptua excluso.

    Este um ponto importante por nos mostrar como a

    organizao discursiva do campo social das diferenas sempre soli-

    dria excluso de elementos que no podero ser representados por

    esse campo. Elementos presentes na vida social, mas que no

    sero mais ouvidos, elementos cujas palavras sero definidas

    por ns como desprovidas de racionalidade e de possibili-

    dade de reconhecimento. A nica maneira de evitar isso no

    organizar o campo social a partir da equao das diferenas.

    A equao das diferenas, to presente nas dinmicas

    multiculturais, parte da seguinte questo: at onde podemos

    suportar uma diferena? Esta , no entanto, uma pssima

    questo. Parte-se do pressuposto de que vejo o outro primei-

    ramente a partir da sua diferena minha identidade. Como

    se minha identidade j estivesse definida e simplesmente se

    comparasse identidade do outro. Nada mais falso.

    Por isso, a boa questo talvez seja: em que condies

    a diversidade pode aparecer como a modulao de uma

    29

  • mesma universalidade em processo tenso de efetivao? Na ver-

    dade, a diversidade no foco de desestruturao social

    apenas quando ela aparece como uma oportunidade para

    que a universalidade deixe de ser meramente abstrata. Por

    universalidade abstrata entendamos a universalidade da-

    queles que falam minha lngua e conjugam meus valores da

    maneira que acho que eles devem ser interpretados.

    Um belo exemplo do que pode acontecer no interior

    dessa lgica foi dado por Tony Blair, atual consultor do JP

    Morgan e fiel escudeiro de George W. Bush. Lembrerrto-

    -nos de sua declarao a respeito do dever de integrao

    que cai sobre os ombros de todo muulmano que resolveu

    emigrar para a Gr-Bretanha, discusso sobre a integrao

    motivada pela eterna querela a respeito do porte de vus

    em lugares pblicos: Nossa tolerncia, disse Blair, parte

    do que faz, da Gr-Bretanha, Gr-Bretanha. Conforme-

    -se a isso ou no venha para c. Ns no queremos os

    hate-mongers independentemente de sua raa, religio ou

    credo.4 Conforme-se a isto ou no venha para c , de

    fato e como todos podem perceber, um exemplo muito

    ilustrativo de tolerncia.

    Por outro lado, bem provvel que essa estratgia de

    esvaziamento de conflitos sociais por meio da cultura seja

    responsvel tambm pela inacreditvel onda de nacionalismo

    4 The Guardian, 9/12/2006.

    30

  • requentado que invade a Europa. Desde a criao do Minis-

    trio da Imigrao, da Integrao, da Identidade Nacional e

    do Desenvolvimento Solidrio pelo marido de Carla Bruni

    at o recente apoio europeu declarao da independncia

    do Kosovo e o recrudescimento do separatismo na Blgica,

    vemos o mesmo tipo de regresso poltica, que consiste em

    identificar Estado, nao e povo.

    A esse respeito, lembremos que uma das maiores inven-

    es polticas da modernidade foi o imperativo de que nem

    a nao como construo imaginria, nem o Estado como

    aparato jurdico-institucional podem estar relacionados ao

    povo como identidade, pois isso significa colonizar a pol-

    tica com uma lgica que bloqueia o que h de determinao

    universal em todo e qualquer sujeito. Nao e Estado devem

    ser assim absolutamente indiferentes s diferenas, no sen-

    tido de aceit-las todas e esvaziar a afirmao da diferena

    de qualquer contedo poltico.

    O espao do poltico no deve ser marcado pela afir-

    mao da diferena, mas pela indiferena absoluta em

    relao a qualquer exigncia identitria. No limite, isso

    nos leva a criticar a existncia de um a nao e um Estado

    francs, kosovar, judeu, flamengo, ingls, brasileiro etc.

    Condio maior para discutir a possibilidade de constru-

    o de Estados ps-dentitrios, que no precisem repetir

    compulsivamente identidades ilusrias construdas pelos

    interesses polticos do dia.

    31

  • Para termos uma ideia de quo explosivo pode ser esse

    dispositivo, recordem os as consequncias possveis da

    chegada de mais um ator de peso nesse cenrio de conflito

    cultural: Joseph Ratzinger e sua igreja. Desde suas primeiras

    declaraes racistas contra a violncia inerente ao Isl, o jogo

    estava claro. Descontada a ironia em ouvir o papa, que beati-

    ficou padres que apoiaram o regim e fascista e assassino de

    Franco, criticar a violncia religiosa, no havia dvidas de

    que a operao consistia em insistir na posio central do

    cristianismo catlico para a configurao da ideia espiritual

    do Ocidente. Com isso, abriam-se as portas para o pior de

    todos os amlgamas: a constituio de um a fortaleza iden-

    titria patrocinada pela tradio judaico-crist.

    Para tanto, Ratzinger no teme sequer cometer o impro-

    prio de citar Adorno e Horkheimer em suas bulas, como

    se a crtica frankfurtiana aos processos de interverso na

    modernidade levasse diretamente s suas pregaes por abs-

    tinncia sexual fora do casamento, pela excomunho dos que

    abortam, dos que defendem famlias homossexuais e outras

    prolas do biopoder e da culpabilizao. A nica coisa que

    se pode dizer a esse respeito que, se Ratzinger se interessa

    pela Escola de Frankfurt, talvez ele pudesse com ear lendo

    Tabus sexuais e direito hoje, de Adorno, ou, quem sabe, Eros

    e civilizao, de Marcuse. Construir aliados por meio de falsos

    amlgamas um a antiga estratgia para fazer proposies

    intolerveis parecerem aceitveis.

    32

  • Contra aqueles que no veem relao alguma entre

    fortalecimento dos comunitarismos, retorno da ala mais

    reacionria do catolicismo e poltica multicultural das di-

    ferenas, valeria a pena fazer aqui algumas consideraes.

    N o podem os perder de vista que se trata, no fundo, de

    im por uma escolha forada. Ou um m odo de experin-

    cia social da diferena que se realiza na multiplicao de

    maneiras de ser coerente com os imperativos da moderni-

    dade capitalista. Ou a procura pela reconstituio social de

    vnculos identitrios substanciais patrocinada pela polcia

    e pelas estruturas disciplinares de sempre (igreja, nao,

    famlia etc.).

    Diante dessa situao, devemos lembrar que a verda-

    deira mola do poder no a imposio de uma norma de

    conduta, mas a organizao das possibilidades de escolha.

    Trata-se de operar uma reduo da escolha que transforma

    o movimento no circuito limitado de um pndulo que vai

    necessariamente de um polo a outro. E, como todo pn-

    dulo, o mover-se apenas uma forma de conservar o mesmo

    centro. Ir de um polo a outro apenas uma maneira mais

    complicada de no andar. Nossas formas hegemnicas de

    vida podem muito bem conviver ao mesmo tempo com a

    geografia mental da liberalizao e da restrio.

    33

  • A EQ U A O DA I N D I F E R E N A

    Tal contexto deixa clara a urgncia da esquerda em colocar

    novamente suas lutas sob a bandeira da igualdade radical e

    da universalidade, abandonando qualquer tipo de veleidade

    com unitarista ou de entificao da diferena.

    Voltemos estratgia de deslocar o eixo do poltico para

    um a dinmica de afirm ao das diferenas e das m inorias.

    Esta era uma form a de universalizar direitos para grupos social-

    mente m arginalizados (negros, hom ossexuais, im igrantes

    etc.). Mas note-se que a questo central aqui era a constituio

    de uma universalidade verdadeiramente existente na vida social, no

    o reconhecimento de que a sociedade com posta de grupos

    distintos m uito organizados do ponto de vista identitrio. A

    poltica descentra os sujeitos de suas identidades jixas, abrindo-os

    para um cam po produtivo de indeterminao.5 Isso significa

    que nossas sociedades devem ser com pletam ente indiferen-

    tes s diferenas, sejam elas religiosas, sexuais, de gnero,

    raa ou de nacionalidades, pois o que nos faz sujeitos polti-

    cos est para alm dessas diferenas. isso que significa no

    organizar o cam po social a partir da equao das diferenas.

    5 Sobre o conceito de experincia produtiva de indeterm inao, ver:

    Safatle, Vladim ir. Grande Hotel Abismo: por uma reconstruo da teoria do

    reconhecimento. So Paulo: Martins Fontes, no prelo; e Dunker, Christian.

    Estrutura e constituio da clnica psicanaltica. So Paulo: Annablum e, 2011.

    34

  • Note-se que a crtica sociedade multicultural aqui pro-

    posta nada tem a ver com o medo de que o cosmopolitismo

    e o relativismo cultural vo provocar uma eroso das bases

    de nossos valores ocidentais. A crtica sociedade multicul-

    tural e a sua permissividade democrtica, bem exposta por

    Jacques Rancire em um pequeno livro intitulado La haine de

    la dmocratie,6 apenas uma deriva conservadora.

    H, no entanto, uma crtica esquerdista s sociedades

    multiculturais que consiste em dizer que elas, de certa forma,

    no so suficientemente multiculturais. Elas procuram,

    apenas, atomizar a sociedade por meio de uma lgica es-

    tanque do reconhecimento das diferenas que funciona,

    basicamente, no plano cultural e ignora os planos poltico e

    econmico. Uma sociedade verdadeiramente multicultural

    uma sociedade radicalmente universalista e indiferente

    s diferenas.

    Hoje o momento de lembrar que a grande inveno

    da esquerda foi o universalismo e o internacionalismo. No

    temos nada o que fazer com nacionalismos e com delrios

    identitris que tentam nos fazer crer, por exemplo, que os

    valores ocidentais esto correndo risco toda vez que uma

    jovem muulmana vai escola com um vu na cabea.

    Melhor seria se perguntar por que tal jovem sente os ditos

    valores ocidentais como uma farsa vazia, como palavras

    6 Rancire,Jacques. Lnhaine ie ladmocratie. Paris:La Fabrique, 2005.

    35

  • sem efetividade, que servem apenas para mascarar a mar-

    ginalizao cada vez mais brutal de imigrantes pobres,

    sem direito a voto e sem representao poltica (apenas a

    ttulo de exemplo, poderia lembrar que, de 577 deputados

    da Assembleia Nacional Francesa, apenas dois tm origem

    rabe - isso em uma populao em que os descendentes de

    rabes so cerca de 10%).

    Nessas horas, a esquerda precisa se lembrar de que a

    nica maneira de esvaziar o contedo poltico da afirmao

    das diferenas aceit-las todas, pois as diferenas se voltam

    contra o Estado quando elas do vazo ao descontentamento

    de grupos sociais contra uma universalidade excludente, ou

    seja, contra uma universalidade falsa.

    36

  • Soberania popular ou a democracia para alm do Estado de Direito

  • O m edo do caos, em m sica com o

    na psicologia social, superdim ensionado.

    T H E O D O R A D O R N O

    'M as o Estado dem ocrtico excede os lim ites tradicionalm ente

    atribudos ao Estado de Direito. Experim enta direitos que ainda

    no lhe esto incorporados, o teatro de um a contestao cujo

    objeto no se reduz con servao de um pacto tacitam sfite

    estabelecido, m as que se fo rm a a partir de focos que o poder

    no pode dom inar inteiram ente.7

    Quem diz isso no um adepto da esquerda revolu-

    cionria que estaria procura do m elhor momento para

    solapar as bases do Estado de Direito. Quem o diz Claude

    Lefort, em inveno democrtica, um livro, ao contrrio, lar-

    gamente dedicado crtica das sociedades burocrticas no

    antigo Leste Europeu.

    Nessas frases esto sintetizadas algumas reflexes maiores

    sobre a relao intrincada entre Justia e Direito. Relao que

    7 Lefort, Claude. A inveno iemocricd. So Paulo; Brasiliense, 1983, p. 46.

    39

  • ultimamente tendemos a ignorar, como se tudo aquilo que acon-

    tecesse margem do Estado de Direito fosse necessariamente

    ilegal e profundamente animado por premissas antidemocrti-

    cas. Talvez tenhamos perdido a capacidade de pensar qual o sen-

    tido dessa democracia que excede os limites tradicionalmente

    atribudos ao Estado de Direito - um ponto de excesso que a

    esquerda soube mostrar, ao longo da histria contempornea,

    como motor fundamental das dinmicas do poltico.

    Talvez tenhamos perdido a capacidade de pensar a de-

    mocracia como ponto de excesso em relao ao Estado de

    Direito porque acreditamos que tudo o que se coloca fora

    do Estado de Direito s poderia ter parte com o mais claro

    totalitarismo. Quem est fora do Estado de Direito parece

    se colocar em uma posio soberana, posio daqueles que

    poderiam no se submeter lei, modific-la continuamente

    ao bel-prazer dos casusmos e circunstncias. Vemos ape-

    nas dois candidatos a ocupar tal posio: o criminoso que

    viola abertamente a lei que garante a segurana do Estado

    de Direito ou (e a as coisas comeam a se complicar) o le-

    gislador que afirma que, em situaes de exceo - como

    em caso de guerra (mas sabemos hoje como cada vez mais

    complicado distinguir estado de guerra e estado de paz), de

    crise (mas sabemos hoje como h sempre uma crise grave

    espreita) - , certos dispositivos legais podem ser suspensos.

    No entanto, possvel que exista um terceiro caso de

    excesso em relao ao Estado de Direito, um excesso muito

    40

  • bem posto por Jacques Derrida por meio da seguinte afirma-

    o, que encontramos em Fora de lei: Quero logo reservar a

    possibilidade de um a Justia, ou de um a lei, que no apenas

    exceda ou contradiga o Direito, mas que talvez no tenha

    relao com o Direito, ou mantenha com ele uma relao to

    estranha que pode tanto exigir o Direito quanto exclu-lo.8

    Pode, pois, a Justia no apenas exceder o Direito, mas m an-

    ter com ele um a relao to estranha que parea se colocar

    em lim a indiferena soberana? Gostaria de insistir que essa

    possibilidade, longe de solapar e fragilizar a democracia, ^

    o que a funda e a fortalece, um a vez que essa possibilidade

    um outro nome para aquilo que normalmente chamamos

    de soberania popular.

    E S T A D O S I L E G A I S

    Conhecem os situaes nas quais a Justia se dissocia do

    Direito. Trata-se de situaes em que nos deparam os com

    um Estado ilegal. Mesmo a tradio poltica liberal admite,

    ao m enos desde John Locke, o direito que todo cidado tem

    de se contrapor ao tirano, de lutar de todas as formas contra

    aquele que usurpa o poder e im pe um estado de terror, de

    censura, de suspenso das garantias de integridade social.

    8 Derrida., Jacques. Fcrn de lei. So Paulo: Martins Fontes, 20 07, p. 58.

    41

  • Nessas situaes, a democracia reconhece o direito v io -

    lncia, j que toda ao contra um governo ilegal uma ao legal.

    Vale a pena insistir nessa questo. Podemos dizer que um

    dos princpios maiores que constitui a tradio de moderni-

    zao poltica da qual fazemos parte afirma que o direito fun-

    damental de todo cidado o direito rebelio e resistncia.

    No creio ser necessrio aqui fazer a gnese da conscincia

    da indissociabilidade entre defesa do Estado livre e direito

    violncia contra um Estado ilegal. No que diz respeito ao Oci-

    dente, bem provvel que sua conscincia nasa da Reforma

    Protestante, com a noo de que os valores maiores presentes

    na vida social podem ser objeto de problematizao e crtica,

    o que exige a institucionalizao da liberdade.

    J em Calvino encontramos uma afirmao como:

    O s governantes de um povo devem envidar todo esforo a fim

    de que a liberdade do povo pelo qual so responsveis no des-

    vanea de m odo algum em suas m os. Mais do que isso: quando

    dela descuidarem , ou a enfraquecerem , devem ser considerados

    traidores da ptria.9

    fato que ele evita generalizar tal considerao sob a

    forma de um direito geral de resistncia. No entanto, a noo

    9 Calvino, Joo. A instituio da religio crist. So Paulo: Editora Unesp, 2009, p. 882, tomo 11.

    42

  • calvinista mostra claramente a possibilidade de uma crtica

    do poder feita em nome de exigncias de institucionalizao

    da liberdade. Essa crtica ser radicalizada por setores do

    pensamento reformado, como Thomas Mnzer e alguns

    reformadores puritanos ingleses. A partir deles, o direito de

    resistncia aparece como fundamento da vida social.

    Essa abertura do pensamento reformado ao problema

    da resistncia alcanar o pensamento poltico. Ela ser radi-

    calizada pela tradio revolucionria francesa (que no deixar

    de ser influenciada pelos huguenotes). Assim, encontraremos o

    artigo ii da Declarao Universal dos Direitos do Homem e do

    Cidado, de 1789, em que se l: O objetivo de toda associao

    poltica a conservao dos direitos naturais e imprescritveis

    do homem. Tais direitos so: a liberdade, a segurana, a proprie-

    dade e a resistncia opresso. O prembulo da Constituio

    francesa de 1958 ainda reconhece seu vnculo a tais princpios.

    A Declarao dos Direitos do Homem e do Cidado, de

    1793, escrita sob influncia jacobina, apresenta, como direitos

    naturais e imprescritveis, a liberdade, a igualdade, a segurana e

    a propriedade. Seus trs ltimos artigos (33,34 e 35), no entanto,

    tratam claramente do direito resistncia. Depois de afirmar, no

    artigo 27, que todo indivduo que usurpe a soberania seja assas-

    sinado imediatamente pelos homens livres", a Declarao dir:

    > artigo 33: A resistncia opresso consequncia dos

    outros direitos do homem.

    43

  • ) artigo 34: H opresso contra o corpo social quando

    apenas um de seus membros oprimido. H opresso

    contra cada membro quando o corpo social oprimido.

    > artigo 35: Quando o governo viola os direitos do povo, a

    insurreio , para o povo e para cada parte do povo, o mais

    sagrado dos direitos e o mais indispensvel dos deveres.

    Ainda hoje, encontramos, no artigo 20, pargrafo 4, da

    Constituio alem, a enunciao clara do direito resis-

    tncia (Recht zum W iderstand). Da m esm a forma, tal

    enunciao est presente em vrias constituies de Estados

    norte-americanos (New Hampshire, Kentucky, Tennessee,

    Carolina do Norte, entre outros).10

    Eis um dado interessante: a prim eira Declarao dos

    Direitos Humanos colocava o direito resistncia como um

    dos seus quatro fundamentos. J a Declarao feita pelas Na-

    es Unidas em 1948 evita enunciar diretamente tal direito,

    escolhendo uma formulao tangencial em seu prembulo.

    Nele, lemos: Considerando essencial que os direitos hu-

    manos sejam protegidos pelo Estado de Direito, para que o

    10 De maneira sintomtica, isso demonstra como aqueles que procuram transformar os que participaram da luta armada contra o regime militar brasileiro em terroristas colocam-se aqum de um conceito substancial de democracia. Sobre esse ponto, remeto a: Safatle, Vladimir. Do direito ao uso da violncia contra o Estado ilegal. In: Safatle, Vladimir; Teles, Edson (orgs.). 0 que resta da ditadura: a exceo brasileira. So Paulo: Boitempo, 2010.

    44

  • homem no seja compelido, como ltimo recurso, rebelio

    contra a tirania e a opresso.. Ou seja, algo como: para que

    o direito de resistncia no seja um fato, convm respeitar

    os seguintes direitos positivos. Essa enunciao tangencial

    expe o mal-estar da poltica contempornea em relao

    assuno clara do carter de exceo da soberania popular.

    O carter de exceo fica evidente ao lembrarmos que,

    se aquele que usurpa a soberania dos homens livres deve ser

    punido, porque tal soberania precisa ser conservada como

    atributo direto do povo em qualquer de suas formas de expres-

    so. Com isso, a Revoluo Francesa abre uma das questes

    fundamentais para o pensamento poltico moderno, a saber,

    como dar forma institucional para o poder instituinte prprio

    soberania popular, pois, porque soberano, esse poder est

    na situao de exceo de se colocar ao mesmo tempo dentro

    e fora do ordenamento jurdico. Ele est dentro porque, em

    condies normais, a ele se submete. Ele est fora porque,

    como todo poder soberano, pode suspender o ordenamento

    jurdico a partir de sua vontade, ou seja, a partir da conscin-

    cia da inadequao entre a vontade popular e a configurao

    jurdica atual. Essa suspenso, que no implica destruio do

    nomos, feita por meio de uma certa violao poltica da lei.

    Antes de analisar a natureza dessa violao, lembremos

    ainda que no devemos compreender a ideia fundamental

    do direito resistncia apenas como o ncleo de defesa con-

    tra a dissoluo dos conjuntos liberais de valores (direito

    45

  • propriedade, afirmao do individualismo etc.). Essa estrat-

    gia liberal equivocada. Na verdade, no interior do direito de

    resistncia, encontramos a ideia fundamental de que o bloqueio

    da soberania popular deve ser respondido pela demonstrao sobe-

    rana da fora. Que a democracia deva, por meio dessa questo,

    confrontar-se com aquilo que Giorgio Agamben chama de o

    problema do significado jurdico de uma esfera de ao em si

    extrajurdica, ou ainda, com a existncia de uma esfera da

    ao humana que escapa totalmente ao direito,11 que ela deva

    se confrontar com uma esfera extrajurdica, mas nem por isso

    ilegal - eis algo claro. Devemos insistir aqui que, mesmo em

    situaes nas quais no estamos diante de um Estado ilegal,

    o problema da dissociao entre Justia e Direito se coloca.

    U M A S O C IED A D E QUE TEM MEDO DA PO LTICA

    Muitos gostam de dizer que, no interior da democracia, toda

    forma de violao contra o Estado de Direito inaceitvel.

    Mas e se, longe ser de um aparato monoltico, o Direito em

    sociedades democrticas for uma construo heterclita,

    em que leis de vrios matizes convivem, formando um con-

    junto profundamente instvel e inseguro? A Constituio

    de 1988, por exemplo, no teve fora para mudar vrios

    11 Agamben, Giorgio. Estado de exceo. So Paulo: Boitempo, 2004, p. 24.

    46

  • dispositivos legais criados pela Constituio totalitria de 1967.

    Ainda somos julgados por tais dispositivos. Nesse sentido,

    no seriam certas violaes do Estado de Direito condies

    para que exigncias mais amplas de justia se faam sentir?

    Foi pensando em situaes dessa natureza que Derrida

    afirmava ser o Direito objeto possvel de uma desconstruo

    que visa a expor as superestruturas que ocultam e refle-

    tem, ao mesmo tempo, os interesse econmicos e polticos

    das foras dominantes da sociedade.12 Quem pode dizer

    em s conscincia que tais foras no agiram e agem para

    criar, reformar e suspender o Direito? Quem pode dizer

    em s conscincia que o embate social de foras na deter-

    minao do Direito termina necessariamente da maneira

    mais justa? Por isso, nenhum ordenamento jurdico pode falar em

    nome do povo. Ao contrrio, o ordenamento jurdico de uma

    sociedade democrtica reconhece sua prpria fragilidade,

    sua incapacidade de sera exposio plena e permanente da

    soberania popular.

    A democracia admite, por essas razes, o carter des-

    construtvel do Direito, eela o admite pelo reconhecimento

    daquilo que poderamos chamar de legalidade da violao

    poltica. Pacifistas que sentam na frente de bases militares

    a fim de impedir que armamentos sejam deslocados (afron-

    tando assim a liberdade de circulao), ecologistas que

    12 DerridaJaxques.op. cit.

    47

  • seguem navios cheios de lixo radioativo a fim de impedir

    que ele seja despejado no mar, trabalhadores que fazem

    piquetes em frente a fbricas para criar situaes que lhes

    permitam negociar com mais fora exigncias de melhoria

    de condies de trabalho, cidados que protegem imigrantes

    sem-papis, ocupaes de prdios pblicos feitas em nome

    de novas formas de atuao estatal, trabalhadores sem-terra

    que invadem fazendas improdutivas, Antgona que enterra

    seu irmo: em todos esses casos, o Estado de Direito que-

    brado em nome de um embate em torno da justia.

    No entanto, graas a aes como essas que direitos so

    ampliados, que a noo de liberdade ganha novos matizes.

    Sem elas, com certeza nossa situao de excluso social seria

    significativamente pior. Nesses momentos, encontramos o

    ponto de excesso da democracia em relao ao Direito.

    Uma sociedade que tem medo de tais momentos, que no

    mais capaz de compreend-los, uma sociedade que pro-

    cura reduzir a poltica a um mero acordo referente s leis que

    temos e aos meios que dispomos para mud-las (como se a

    forma atual da estrutura poltica fosse a melhor possvel - se

    se leva em conta o que o sistema poltico brasileiro, pode-

    -se claramente compreender o carter absurdo da colocao).

    No fundo, essa uma sociedade que tem medo da pol-

    tica e que gostaria de substituir a poltica pela polcia. A viola-

    o poltica nada tem a ver com a tentativa de destruio

    fsica ou simblica do outro, do opositor, como vem os na

    48

  • violncia estatal contra setores descontentes da populao

    ou em golpes de Estado. Ela , antes, a fora da urgncia de

    exigncias de justia.

    claro que se faz necessrio compreender melhor o que

    devemos chamar aqui de justia. No se trata de alguma

    forma de princpio regulador posto. Certamente, a justia

    est mais ligada experincia material do bloqueio de reco-

    nhecimento e do sofrimento social em relao s imposies

    produzidas pelas condies socioeconmicas e disciplinares

    de nossas formas de vida. H de se perguntar qual a natu-

    reza do sofrimento social em questo. No prximo capitulo,

    gostaria de fornecer uma interpretao para um regime de

    sofrimento social que tem forte importncia poltica. Essa

    interpretao visa no a reduzir todas as dimenses do pro-

    blema, mas a fornecer uma dimenso muitas vezes negligen-

    ciada e incompreendida.

    De toda forma, notemos com o a suspenso da lei em

    nom e do sofrim ento social e do bloqueio de reconheci-

    mento qualitativamente distinta da suspenso da lei feita

    por prticas totalitrias. A suspenso poltica a maneira

    de dizer que o Direito se enfraquece quando no mais

    capaz de reconhecer suas prprias limitaes. E isso feito

    a partir de outra espcie de direito (as aspas so de rigor)

    cujo fundam ento, com o dizia Lefort, no tem figura,

    marcado por um excesso face a toda formulao efetivada,

    o que significa que sua form ulao contm a exigncia de

    49

  • sua reformulao. s assumindo esse excesso que a demo-

    cracia pode existir.

    Esse ponto de excesso em relao ao ordenamento jur-

    dico s conhece um limite: o limite de sua autodissoluo.

    E uma das maneiras de a soberania popular se dissolver

    por meio da estigmatizao de partes da prpria populao.

    Por exemplo, a noo de plebiscito tira sua legitimidade

    da ideia de que a soberania popular se manifesta como tota-

    lidade. Ou seja, a totalidade da sociedade, que se organiza de

    maneira igualitria, exprime sua vontade. Leis discrimina-

    trias contra grupos religiosos, raciais, nacionais ou sexuais,

    no entanto, quebram a noo de totalidade igualitria da vida

    social, inaugurando uma lgica de massacre de minorias

    pela maioria. Por isso, tais leis nunca poderiam ser objeto

    de um plebiscito.

    Um exemplo tragicamente interessante aqui foi dado pela

    Sua, ao aprovar por plebiscito uma lei que proibia a cons-

    truo de minaretes em mesquitas muulmanas. Segundo os

    helvticos, esses minaretes representavam o desejo expan-

    sionista e belicista do Isl. Cartazes associando-os a msseis

    foram espalhados pelos Alpes. Com isso, a Sua quebrava a

    ideia de que todas as religies e todos os crentes devem ter o

    mesmo tipo de tratamento pelo Estado (e, se for para falar em

    belicismo religioso, nenhuma religio passa no teste). Inaugu-

    rava-se assim uma lgica da soberania popular que se volta

    contra sua base, ou seja, contra a representao igualitria da

    50

  • sociedade. Quando tal representao desaparece, a soberania

    popular vira apenas uma mquina de destruio social.

    Feita a ressalva, devemos insistir em que a esquerda no

    pode perm itir que desaparea do horizonte de ao um a

    exigncia profunda de m odernizao poltica que vise

    reforma, no apenas das instituies, mas do processo deci-

    srio e de partilha do poder. Ela no pode ser indiferente

    queles que exigem a criatividade poltica em direo a uma

    democracia real.

    No deixa de ser dramtico ver membros de certa es-

    querda citando Tocqueville, certos de que a democracia exige

    instituies fortes: a democracia no exige um poder insti-

    tudo forte e no deve depender de instituies que sempre

    funcionaram mal. Do ponto de vista institucional, a dem o-

    cracia tem um a plasticidade natural. Ela depende, e isso

    totalmente diferente, de um poder instituinte soberano e

    sempre presente. Ou seja, depende de um aprofundamento

    da transferncia do poder para instncias de deciso popular

    que podem e devem ser convocadas de maneira contnua.

    Estam os m uito acostum ados com a ideia de que a

    democracia realiza-se naturalmente com o democracia par-

    lamentar. Isso, no entanto, falso. Uma esquerda que no

    tem medo de dizer seu nome deve falar com clareza que sua

    agenda consiste em superar a democracia parlamentar pela

    pulverizao de mecanismos de poder de participao popu-

    lar direta. Lembremos apenas que, com o desenvolvimento

    51

  • das novas mdias, cada vez mais vivel, do ponto de vista

    material, certa democracia digital que permita a imple-

    mentao constante de mecanismos de consulta popular.

    Contra ideias desse porte, costumam-se afirmar duas coi-

    sas. A primeira a acusao clssica de assemblesmo e de

    imobilismo. Uma acusao desse quilate chega a ser hilariante.

    Dado, por exemplo, que o Congresso Nacional brasileiro gasta

    at dez anos para votar certos projetos e implementar deci-

    ses, a pergunta que fica : quem mais imobilista?

    A segunda acusao, esta muito mais absurda, sem-

    pre feita pelos defensores da democracia, temerosos que

    uma democracia participativa seja, na verdade, uma forma

    de totalitarismo plebiscitrio. At citaes ao nazismo e

    ao fascismo so evocadas nesse contexto. No entanto, elas

    so totalmente ridculas, ou algum imagina que Hitler fazia

    plebiscito popular para decidir como funcionariam os campos

    de concentrao? Em uma democracia participativa, a prpria

    noo de liderana e conduo (Fhrer) contestada, j que as

    instncias de deciso passam, gradativamente, para as mos de

    um poder que no nem o Executivo, nem o Legislativo. Por

    isso, qualquer acusao de chavismo perde o sentido quando

    o assunto uma reflexo aprofundada sobre a modernizao

    poltica exigida pela superao da democracia parlamentar.

    O verdadeiro desafio dem ocrtico consiste, desse

    modo, em institucionalizar tal poder instituinte, criando uma

    dinmica plebiscitria de participao popular. Tal dinmica

    52

  • desacreditada pelo pensamento conservador, pois ele pro-

    cura vender a ideia inacreditvel de que o aumento da participa-

    o popular seria um risco democracia - como se as formas atuais

    de representao fossem tudo o que podemos esperar da vida

    democrtica. Contra essa poltica que tenta nos resignar s

    imperfeies da nossa democracia parlamentar, devemos

    dizer que a criatividade poltica em direo realizao da

    democracia apenas comeou. H muito ainda porvir.

    Como dizia Derrida, eis a razo pela qual s podemos

    falar em democracia por vir, e nunca em democracia como algo

    que se confunde com a configurao atual do nosso Estado

    de Direito. Contra os arautos do Estado democrtico de Di-

    reito, que procuram nos resignar s imperfeies atuais da

    democracia parlamentar, devemos afirmar os direitos de uma

    democracia por vir, que s poder ser alcanada se assumirmos

    a realidade da soberania popular. Estas so, pois, as duas pernas

    de toda poltica de esquerda que no teme dizer seu nome:

    igualitarismo e soberania popular. Garantidos esses dois valores,

    o resto, como diz o Evangelho, vir por si mesmo.

    P A R A I N T R O D U Z IR O N O V SSIM O D IC IO N R IO DOS

    L E G A L I S T A S DA IL E G A L ID A D E

    Vale a pena terminar este captulo discutindo uma situao

    recente a partir da qual podemos refletir sobre os usos atuais

    53

  • do Estado de Direito. Trata-se do golpe de Estado em Hon-

    duras. Foram vrias as vozes crticas deciso de dar asilo

    na embaixada brasileira ao presidente hondurenho deposto,

    Manuel Zelaya, assim como deciso de no reconhecer nem

    o governo que o sucedeu nem aquele que foi eleito depois.

    Ingerncia indevida, apoio a um rascunho de ditador,

    subveno tentativa de destruir o Estado democrtico

    de Direito foram apenas as acusaes mais leves contra a

    atuao brasileira.

    Segundo tais crticas, tudo se passou da seguinte forma:

    influenciado pelo caudilhismo populista de Hugo Chvez,

    o presidente hondurenho decidira afrontar de maneira

    deliberada a Constituio e as instituies democrticas

    de seu pas, tentando fazer passar um golpe plebiscitrio

    que permitiria sua reeleio. Contra tal atentado ao Estado

    democrtico de Direito, o Congresso Nacional, juntamente

    com as Foras Arm adas, depuseram o presidente Zelaya,

    em possando o presidente do Congresso hondurenho at

    novas eleies. Que esse novo governo tenha assassinado

    e perseguido jornalistas e opositores, fechado rdios e ca-

    nais de comunicao que apoiavam o presidente deposto,

    reprimido violentamente manifestaes, nada disso muda

    sua natureza democrtica, pois tudo vale para a defesa da

    normalidade democrtica.

    Seria interessante lembrar, no entanto, que a democracia

    reconhece claramente a possibilidade de dissociao entre

    54

  • Justia e ordenamento jurdico atual, ou seja, entre Direito

    e Justia. Ela admite que leis atuais podem ser injustas e pas-

    sveis de modificao por meio de mobilizao popular.

    N o caso de Honduras, poderam os perguntar quo

    democrtica um a lei constitucional que eleva condio

    de clusula ptrea a impossibilidade de o povo m odificar

    a maneira com o ele prprio governado. Se a vontade p o -

    pular o poder instituinte de toda Constituio democr-

    tica, tal lei equivale a dizer algo contraditrio com o ns,

    o povo, reconhecem os que ns, o povo, no poderem os

    mais decidir sobre a maneira por meio da qual ns, o povo,

    seremos governados.

    A questo relativa a Honduras diz muito a respeito da

    maneira como certos setores da vida nacional compreendem

    o que , afinal, a democracia. Digamos de modo claro: a ver-

    dadeira democracia no medida pela estabilidade de suas

    instituies e suas regras. Afinal, quantas vezes a Frana (s

    para ficar em um exemplo) mudou as regras de seu sistema

    eleitoral e de seu sistema de partilha de poder? Quantas vezes

    aquele pas modificou o funcionamento da instituio presi-

    dencial? Lembremos como mesmo a estvel Inglaterra de-

    bate hoje modificaes profundas em seu prprio sistema.

    A verdadeira dem ocracia medida, na verdade, pela

    possibilidade dada ao poder instituinte popular de manifes-

    tar-se e criar novas regrase instituies. No s em eleies

    que tal poder se manifesta. H um a plasticidade poltica

    55

  • prpria vida democrtica que s arautos do pensamento

    conservador compreendem como insegurana jurdica.

    O plebiscito simplesmente a essncia fundamental de toda

    vida democrtica, e falar em golpe plebiscitrio uma das

    maiores aberraes que se possa imaginar. O dia em que

    um plebiscito equivaler a um golpe de Estado, ento nossa

    noo de democracia estar completamente esvaziada. Ela

    perder todo seu valor.

    De toda forma, sintomtico que boa parte daqueles

    que se insurgiram contra o plebiscito hondurenho no tenha

    gritado golpe de Estado quando o governo de Fernando

    Henrique Cardoso passou, por meio de compra de votos no

    Congresso Nacional, uma emenda constitucional aprovando

    a reeleio. Eles tambm fizeram questo de no lembrar

    como muitos dos golpes militares na Amrica Latina foram

    feitos sempre a partir da mesma acusao de que o presi-

    dente estava colocando em risco a legalidade democrtica.

    Foi assim no Chile de Salvador Allende, foi assim no Brasil

    de Joo Goulart (quando o Congresso Nacional declarou

    vazio o cargo de presidente, empossando, inicialmente, o

    presidente da Cmara, Ranieri Mazzilli, que governou de

    2 a 15 de abril de 1964, antes de passar o governo quele que

    foi eleito pelo Congresso, o marechal Castello Branco).

    No se trata aqui de usar tal problema jurdico para

    apresentar uma defesa de Manuel Zelaya ou de seus patro-

    cinadores, como Hugo Chvez. Talvez seja o caso de dizer

    56

  • claramente que a alternativa chavista apenas urna deriva

    populista e bonapartista da esquerda. De fato, o conceito

    de populismo existe e no apenas um dispositivo de

    desqualificao poltica, embora muitas vezes seja usado

    apenas para isso. Populista um governo profundamente

    personalista e centralizado cuja figura do mandatrio do

    Executivo encarna o ideal de conduo e, por isso, confunde-se

    com a figura do poder;13 um governo incapaz de permitir o

    desenvolvimento de mecanismos de transferncia do poder

    em direo democracia direta, pois, nesse caso, a demo-

    cracia direta subordinada ao poder central. O populismo

    esquece que o verdadeiro lder democrtico aquele que no

    tem medo de expor sua prpria efemeridade, sua prpria

    contingncia. O lder democrtico aquele que nos ensina

    como a contingncia pode habitar o cerne do poder.

    O exemplo hondurenho serve, na verdade, apenas

    para glosar uma bela expresso que Theodor Adorno uma

    vez cunhou para designar aqueles que se aferravam a leis

    13 Por isso h algo de piada de mau gosto na afirmao de que o Brasil conheceu, entre 1945 e 1964, uma repblica populista. S mesmo uma historiografia revisionista, que yisa a desqualificar o nico momento na histria brasileira em que a participao popular foi efetiva, poderia dizer algo dessa natureza. Nesse caso, nota-se como populista no usado como descrio analtica, mas como injria. Gostaria que algum explicasse, por exemplo, em queDutra e Juscelino eram populistas e em que Joo Goulart encarnava o ideal de conduo que se confunde com a figura do poder estatal.

    57

  • claramente injustas, bradando-as quando setores da vida

    nacional procuravam anul-las: legalistas da ilegalidade.

    A expresso, certamente, cabe para boa parte daqueles que

    criticam a postura da diplomacia brasileira no caso.

    Por fim, vale a pena lembrar que a noo de soberania

    popular implica processo institucionalizado de transfe-

    rncia de poderes em direo democracia direta. Ele no

    uma simples arma utilizada pelo Executivo em situaes

    de conflito de poderes. Sua melhor figura a institucio-

    nalizao de decises que s poderiam, a partir de ento,

    ser tomadas por meio da manifestao direta da soberania

    popular. Isso significa transferncia de poder tanto do Legis-

    lativo quanto do Executivo.

    Um exemplo valioso so as declaraes de guerra. Na

    poca da Guerra do Afeganisto, enquanto a maioria da popu-

    lao era contrria iniciativa, o Parlamento espanhol apro-

    vou o envio de tropas quele pas. Ou seja, naquele momento,

    o Parlamento espanhol no representava o povo - o mesmo

    povo que morreria devido s consequncias da deciso do

    Parlamento. Em situaes como esta, a deciso deveria pas-

    sar para a democracia direta.

    Outro exemplo ilustrativo so as questes ligadas a

    decises de oramento da Unio, contrao de dvidas em

    situao de grave crise (como o caso da dvida grega), que

    tambm deveriam passar para processos decisrios ligados

    democracia direta. Nesse caso, podemos pensar em uma

    58

  • maneira de politizar a economia graas recuperao da

    noo de soberania popular. A Islndia tem algo a nos ensi-

    nar sobre isso.

    Um dos primeiros pases atingidos pela crise econmica

    de 2008, a Islndia decidiu que o uso de dinheiro pblico

    para indenizar bancos seria objeto de plebiscito. O resultado

    foi o apoio macio ao calote. Mesmo sabendo dos riscos de

    tal deciso, o povo islands preferiu realizar um princpio

    bsico da soberania popular. Se a conta vai para a popu-

    lao, ela quem deve decidir o que fazer, e no um con-

    junto de tecnocratas que tero seus empregos garantidos

    nos bancos, tampouco parlamentares cujas campanhas so

    financiadas por esses bancos.

    Como disse o presidente islands, Olafur Ragnar

    Grmsson, a Islndia uma democracia, no um sistema

    financeiro. Alguns poderiam contra-argumentar que

    absurdo que decises de inegvel complexidade tcnica pas-

    sem para a democracia direta. Bem, outros diriam apenas

    que quem paga a orquestra escolhe a msica. Esta uma boa

    maneira de se perguntar: afinal, no caso de nosso Parlamento

    e de nosso Executivo, quem paga a orquestra?

    59

  • Do tempo das ideias

  • Um homem uma coisa em que se atira

    At que o ser humano emerja das runas do ser humano.

    H E I N E R M L L E R

    He knew that the price o f his intactness was incompleteness.

    S C O T T F I T Z G E R A L D

    Uma das questes mais delicadas sobre a esquerda diz res-

    peito a sua maneira de lidar com o passado recente. Alain

    Badiou compreendeu bem que poderia enunci-la de uma

    maneira sucinta: o que significou o sculo xx? Ou seja, como

    compreender as experincias de ruptura que marcaram a

    especificidade do sculo que passou? Longe de um simples

    problema histrico, tal questo expe a maneira como nos

    vinculamos aos processos de efetivao de uma ideia que,

    com certeza, ainda guarda seu contedo de verdade.

    Por exemplo, um dos mantras preferidos do pensamento

    conservador a denncia do sculo xx como a era da violn-

    cia brutal feita em nome das promessas de redeno da vida

    social. Como se houvesse uma linha necessria e inevitvel

    que iria da crtica da individualidade moderna e da reificao

    61

  • aos massacres de Pol Pot, linha que iria das lutas sindicais

    por justia social aosguags. Trata-se de impor, com isso, uma

    estratgia da resignao, que tem o propsito de nos fazer acre-

    ditar que toda ao visando ruptura com formas de vida

    que aparecem, em certos momentos, como naturalizadas s

    poder produzir catstrofes. Trata-se ainda de uma tentativa

    de desqualificar radicalmente a fora produtiva das ideias de

    renovao e seu movimento trgico.

    Sobre essa natureza trgica do movimento prprio s

    ideias de renovao, valeria a pena se perguntar se aqueles

    que desqualificam o sculo x x como era da violncia des-

    medida em nome do novo estariam dispostos a responder a

    uma questo fundamental, a saber: quantas vezes uma ideia

    precisa fracassar para poder se realizar? A efetivao de uma

    ideia nunca um processo que se realiza em linha reta. Por

    exemplo, durante sculos, o republicanismo foi conside-

    rado um retumbante fracasso. Ser republicano no sculo x i i i

    significava defender uma ideia que havia apenas produzido

    catstrofes e enfraquecimento do Estado. Hoje, dificilmente

    encontraremos algum para quem o republicanismo no seja

    um valor fundamental. Ou seja, o republicanismo precisou

    fracassar vrias vezes para encontrar seu prprio tempo,

    para forar o tempo a aproximar-se de sua realizao ideal.

    Isso apenas demonstra como, graas internalizao de seus

    fracassos, ao fato de ela ter aparecido cedo demais, a ideia

    pde efetivamente se realizar.

    62

  • No se trata aqui de ignorar os crimes e massacres que

    foram feitos em nome dos ideais de esquerda no sculo xx ,

    nem de relativiz-los, lembrando que, se for para contar cri-

    mes e massacres, a esquerda certamente no fica na frente de

    seus oponentes. As duas estratgias so equivocadas. Trata-

    -se, na verdade, de dizer que a melhor maneira de evit-los

    compreender o que deve ser conservado e reconstrudo

    no interior de nossos ideais, aquilo que neles no se reduz

    figura do crime e do massacre.

    Como nos lembra Hegel, o conceito, ao tentar deter-

    minar a efetividade, produz necessariamente o contrrio

    de sua inteno inicial. Essa inverso, no entanto, pode

    aparecer no como perda, e sim como momento tragica-

    mente necessrio para o desenvolvimento da capacidade

    do conceito em internalizar a contingncia, orientar-se e

    assegurar sua realidade. Talvez possam os dizer o mesmo

    das lutas revolucionrias que animaram o sculo x x , pois

    uma das maiores caractersticas desse sculo foi a luta pela

    abertura do que ainda no tem figura, luta pelo advento

    daquilo que no se esgota na repetio compulsiva do ho-

    mem atual e de seus modos.

    No se tratava apenas de um processo conflituoso de am-

    pliao e universalizao de direitos individuais ou de efeti-

    vao de demandas de redistribuio de riquezas. Embora

    tais aspectos sejam essenciais para compreendermos as lutas

    revolucionrias do sculo xx, perderemos uma dimenso

    6?

  • importante de seu impulso se no compreendermos tambm

    que, at o final, o sculo foi de fato o sculo do advento de

    outra humanidade, de mudana radical do que o homem.

    E nesse sentido que permaneceu fiel s extraordinrias

    rupturas mentais de seus primeiros anos.14

    Talvez seja o caso de lembrar aqui dessa crena que per-

    passa os movimentos mais relevantes no campo da poltica,

    da filosofia e da esttica do sculo x x , a saber, a crena de

    que algo como o homem novo estava ao alcance. H uma

    espcie de estranho acordo a respeito da necessidade de um

    tempo capaz de nos livrar do esgotamento da determinao

    essencial do homem. Tudo se passa como se, para alm da

    defesa de uma sociedade mais justa, livre e igualitria, pul-

    sasse, no interior da demanda revolucionria que animou

    o sculo xx , este obscuro desejo de nos livrarmos de ns mesmos,

    desejo de anular nossa prpria imagem. Talvez seja o caso

    de dizer: no h luta revolucionria sem esse desejo.

    possvel afirmar que essas lutas podem ser encon-

    tradas nas discusses prprias aos campos da esttica, da

    poltica, das clnicas da subjetividade, da filosofia. Em vrios

    momentos de nossa histria recente, elas mostraram grande

    fora para mover a histria, engajar sujeitos na capacidade

    de viver para alm do presente. No entanto, vemos hoje um

    grande esforo em apagar essa histria, isso quando no

    14 Badiou, Alain. O sculo. Aparecida: Ideias e Letras, 2007, p. 23.

    64

  • se trata de apenas criminaliz-la, como se as tentativas do

    passado em escapar das limitaes da figura atual do homem

    devessem ser compreendidas, em sua integralidade, como a

    simples descrio de processos que necessariamente se rea-

    lizariam como catstrofe. Como se no fosse mais possvel

    olhar para trs e pensar em maneiras novas de recuperar os

    momentos nos quais o tempo para e as possibilidades de

    metamorfose do humano so mltiplas.

    Assim, somos apresentados cartilha do passado, que

    cheira ao enxofre da destruio, e do futuro, que no pode

    ser muito diferente daquilo que j existe. Talvez seja o caso,

    ento, de dizer que tudo o que, brandos ou no, os defensores

    de tal cartilha conseguiro bloquear nossa capacidade de

    agi* a partir de uma humanidade por vir, acostumar-nos com

    um presente no qual ningum acredita e do qual muitos j se

    cansaram. Ou seja, elevar o medo a afeto central da poltica.

    Para responder a tal cartilha, devemos dizer que, se no

    h poltica sem o desejo de nos livrarmos de ns mesmos,

    de nos livrarmos de nossas limitaes, sem o desejo de ex-

    plorar o que ainda no tem figura, certo que a histria o

    campo no interior do qual esse desejo aprende a se orientar

    melhor. Que esse aprendizado no seja em linha reta, que

    ele se equivoque e muitas vezes se perca, isso apenas uma

    maneira de insistir em consequncias prprias a todo e qual-

    quer aprendizado. Com o aprendizado a respeito da fora de

    nossa liberdade e nossa inventividade, no seria diferente.

    65

  • O INDIVDUO NO A MEDIDA DE TODAS AS COISAS

    Notemos ainda um ponto. Talvez seja correto afirmar que no

    podemos nos livrar do desejo de nos livrarmos de ns mesmos, pois

    essa luta por um homem novo no um delrio arbitrrio

    de recomear tudo do zero sem levar em conta a violncia

    que o zero parece implicar. Na verdade, ela a realizao

    mais bem acabada de uma inquietude e desenraizamento que

    determinam, de maneira essencial, a experincia moderna

    da subjetividade. A palavra novo no interior do sintagma

    homem novo no significa algo como uma nova essncia,

    mas o movimento interno ao sujeito moderno de no se

    deixar esgotar no crculo de suas determinaes identitrias

    atualmente postas.

    Essa uma caracterstica maior do conceito de sujeito

    desde sua definio moderna. Sartre, por exemplo, no teve

    muita dificuldade em encontrar nessa impossibilidade de

    esgotamento o trao fundamental do conceito de liberdade.15

    15 Ver: Sartre, Jean-Paul. Situationsphilosophiques. Paris: Gallimard, 1990, pp. 71-2. Sartre insiste em que a liberdade moderna exige um momento de liberdade negativa que pode ser encontrada j em Descartes. Como ele mesmo dir, a respeito da transcendncia cartesiana: Reconhecemos neste poder de escapar, de se mover, de se retirar para trs, uma prefigurao da negatividade hegeliana. A dvida alcana todas as proposies que afirmam algo fora de nosso pensamento, ou seja, posso colocar todos os existentes em parnteses, estou em pleno exerccio de minha liberdade quando eu, mesmo vazio e nada, nadifico tudo o que existe, [traduo do autor]

    66

  • Nesse sentido, nada mais tradicionalmente enraizado em

    nossas formas de vida que a procura pelo homem novo.16

    Nada mais tradicional que a necessidade de uma revoluo

    social que seja, ao mesmo tempo, revoluo subjetiva.

    O pensamento liberal teme a reflexo sobre a impossi-

    bilidade de esgotar o sujeito nas determinaes identitrias

    atualmente postas, porque isso quebra sua tentativa de de-

    fender, custe o que custar, a primazia do indivduo. Uma das

    bases da teoria liberal sobre o poltico a compreenso do

    vnculo social como uma espcie de contrato entre indiv-

    duos. Nesse suposto contrato, os indivduos fundariam ins-

    tituies como o Estado mediante a garantia de que podero

    agir, em larga medida e por meio de uma negociao astuta,

    em funo de seus sistemas particulares de interesse.17 Ou

    seja, sob a form a contratualista, o vnculo social aparece

    como uma associao entre indivduos. Algo muito pr-

    xim o da maneira como o livre mercado aparecer para o

    pensamento liberal como o espao onde indivduos podem

    trabalhar na defesa de seus sistemas particulares e egostas

    de interesses.

    16 Para uma anlise sistemtica da indeterminao prpria a uma certa tradio da reflexo moderna sobre o sujeito, tomo a liberdade de remeter aos trs primeiros captulos de: SafatLe, Vladimir. Grande Hotel Abismo: por uma reconstruo da teoria io reconhecimento, op. cit.

    17 Ver, por exemplo: Lebrun, Gerard. Contrato social ou negcio de otrio?. In: A filosofia e sua histria. So Paulo: Cosac Naify, 2006, p. 226.

    67

  • Um dos traos fundamentais da esquerda, entretanto,

    est na recusa em compreender a sociedade como uma

    associao entre indivduos que entram virtualmente em

    acordo a fim de realizar, da melhor maneira possvel, seus

    interesses particulares. Para a esquerda, a consequncia fun-

    damental dessa distoro a compreenso da liberdade

    simplesmente como o nome que damos para o sistema de

    defesa dos interesses particulares dos indivduos, de suas

    propriedades privadas e de seus modos de expresso.

    Em ltima instncia, toda extenso do conceito de liber-

    dade acaba por ser pensada como modulao do direito de

    propriedade. No entanto, essa noo de liberdade talvez seja

    uma forma muito difundida de patologia social, pois, ao

    impor uma atomizao social desagregadora, nos impede

    de ver como, no interior do meu prprio interesse, pulsa

    algo mais do que a mera emulao de um sistema parti-

    cularista. Ela impede a compreenso de como o sujeito

    sempre habitado por algo que no se deixa pensar sob a

    forma do indivduo.

    O pensamento conservador procura criticar tal ideia

    ao tentar nos fazer acreditar que toda ditadura necessa-

    riamente baseada na crtica do individualismo. Como se

    nossa democracia estivesse segura l onde o individua-

    lismo impera. A prova disso seria o fato de situaes de

    anomia, famlias desagregadas e crise econm ica serem

    pretensamente o terreno frtil para ditaduras. Um pouco

    68

  • como quem diz: l onde a famlia, a prosperidade e a crena

    na lei no funcionam bem, l onde os esteios do indivduo

    entram em colapso, a voz sedutora dos discursos totalit-

    rios est espreita.

    Se realmente quisermos pensar a extenso do totalita-

    rismo, ser interessante perguntar por que personalidades

    autoritrias aparecem tambm em famlias muito bem ajus-

    tadas e slidas, em sujeitos muito bem adaptados a nossas

    sociedades e a nosso padro de prosperidade. Teramos sur-

    presas interessantes se estudssemos o perfil psicolgico

    daqueles que votam em governos que criam sistemas globais

    de fichamento e controle de populaes, rondas contra imi-

    grantes, alimentam a xenofobia e a lgica da fronteira.

    Isso explica por que no foram poucos aqueles que, no

    sculo xx, insistiram que o indivduo moderno , na verdade,

    produzido pela internalizao de profundos processos dis-

    ciplinares e repressivos. A boa questo : com o que preciso

    me conformar para poder ser reconhecido como indivduo

    dotado de interesses prprios? O que preciso perder e fazer

    calar para que tudo o que se apresenta minha experincia

    s possa ser pensado como experincia de um indivduo?

    Sofre-se muitas vezes por no ser um indivduo, ou

    seja, porno ter sua disposio as condies sociais neces-

    srias para a afirmao de um a individualidade almejada.

    No entanto, sofre-se tambm por ser apenas um indivduo.

    H um sofrimento vindo da incapacidade em pensar aquilo

    6 9

  • que, dentro de si mesmo, no se submete forma coerente

    de uma pessoa fortemente individualizada com sua iden-

    tidade compulsivamente afirmada. Esta uma das lies

    mais importantes de Sigmund Freud, com sua ideia de que o

    prprio processo de formao da individualidade, de cons-

    tituio do Eu indissocivel de experincias patolgicas de

    sofrimento.ls Nesse caso, sofre-se exatamente por ser um

    indivduo. A esquerda deve ser sensvel a tal modalidade de

    sofrimento social.

    Infelizmente, esse sofrim ento, em vez de funcionar

    como motor de desenvolvimento subjetivo, muitas vezes

    se exterioriza e se transforma em medo social compulsivo

    contra tudo o que parece colocar em xeque nossa iden-

    tidade, as crenas do nosso povo. Ele acaba por servir

    como causa de um sistema paranoico de defesa contra toda

    alteridade real.

    No por outra razo que onde h a insistncia em

    compreender a sociedade como um mero conjunto de indi-

    vduos surge sempre o outro lado da moeda: a necessidade

    de expulsar, de levantar fronteiras contra tudo o que no

    porta a minha imagem. O que nos explica por que socie-

    dades fortemente individualistas, como aquelas que encon-

    tramos nos EUA e em certos pases europeus, so sempre

    18 Freud, Sigmund. O mal-estar na civilizao. So Paulo: Penguin Companhia, 2011.

    70

  • assombradas pelo fantasma do corpo estranho que est

    prestes a invadi-las, a destruir seus costumes e hbitos arrai-

    gados. No h individualismo sem lgica social da excluso.

    Por outro lado, como todos sabemos que o atomismo de

    ser apenas um indivduo dificilmente suportvel, esse isola-

    mento tende, muitas vezes, a ser compensado com alguma

    forma de retorno a figuras de comunidades espirituais e reli-

    giosas. A vida contempornea nos demonstrou que indivi-

    dualismo e religiosidade, liberalismo e restries religiosas

    dogmticas, longe de serem antagnicos, transformaram-

    -se nos dois poios complementares e paradoxais do mesmo

    movimento pendular. Muito provavelmente, teremos de

    conviver com os resultados polticos dessa patologia social

    bipolar. Cada vez fica mais claro como o pensamento conser-

    vador se articula, em escala mundial, por meio da restrio

    da pauta do debate social apelando ora para as liberdades

    individuais, ora para nossos valores cristos.

    P A R A ALM DE U M A D IC O T O M IA

    Feita essa digresso sobre o desejo de nos livrarmos de ns

    mesmos e sobre a reao liberal-conservadora pela hips-

    tase da figura do indivduo, talvez possamos introduzir uma

    questo clssica para a esquerda. Ela concerne maneira de

    se relacionar a dois modelos de ao poltica, um que pulsa

    n

  • a partir das rupturas e outro que desloca com mais vagar as

    peas no tabuleiro poltico. Esses modelos se cristalizaram

    nas palavras reforma e revoluo. Dar conta da expe-

    rincia poltica do sculo x x , em larga medida, responder

    sobre qual destino devemos dar a essa dicotomia to usada

    no passado recente.

    possvel que tenha chegado a hora de dizer com cla-

    reza que dificilmente encontraremos uma dicotomia mais

    empobrecedora e equivocada para a reflexo poltica do que

    esta que separa reforma e revoluo, prtica reformista

    e pensamento revolucionrio. No foram poucas as vezes,

    no entanto, que essa dicotomia foi pressuposta em anlises

    de situaes poltico-sociais. No se trata aqui de retomar

    as nuances de discusso to rica, que perpassa a histria da

    esquerda desde, ao menos, a querela de Lnin contra Kautsky.

    Trata-se simplesmente de lembrar dois equvocos comple-

    mentares que ainda hoje parecem nos guiar.

    O primeiro consiste em elevar a revoluo condio

    de modelo nico de acontecimento dotado de verdade.

    O que no tiver seu potencial disruptivo e instaurador no

    vale uma luta poltica, no deve mobilizar nosso engaja-

    mento. Se revolues saem do horizonte histrico de uma

    poca, ento esse tempo ser visto necessariamente como

    um tempo morto, desprovido de acontecimentos. Ele ser

    a descrio inelutvel da mortificao da existncia. O re-

    sultado de tal elevao da revoluo a modelo nico de

    72

  • acontecimento dotado de verdade , no entanto, a incapa-

    cidade de operar distines.

    Um dos sinais da inteligncia consiste na capacidade de

    saber operar distines. Pensando em algo parecido, Pascal

    costumava dividir os homens entre aqueles que tm esprito

    de fimsse e aqueles que tm esprito de gemetra. Os primei-

    ros eram capazes de se fixar e imergir nos detalhes, encontrar

    distines sutis, mas corriam o risco de se perder em suas

    sutilezas. J os