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Lamentando o Esquecimento da Memria:As Instalaes Fotogrficas de
Rosngela Renn
Marguerite Itamar Harrison (Smith College) 1
RESUMO
A artista brasileira Rosngela Renn cria instalaes foto-grficas
muitas vezes utilizando materiais descartados,como carteiras de
identidade com a data expirada que de-safiam o esquecimento
conveniente da nao. Obras comoCicatriz funcionam como resposta
esttica s desigualdadesda sociedade brasileira. O trabalho de Renn
cobra do ob-servador a tarefa moral e arqueolgica de relembrar
feieshumanas e, atravs da aluso metonmica, a prpria huma-nidade,
atravs das imagens desumanizadas. Suas instalaesnos reportam ao
apagamento da identidade, e da vida, acio-nando a memria do
espectador, no sentido de reter o hor-ror da ausncia, dirigindo,
assim, um olhar ativista para ofuturo.
Palavras-chave: fotografia; amnsia; social; justia.
In teaching us a new visual code,photographs alter and
enlargeour notions of what is worthlooking at and what we havea
right to observe. They area grammar and, even moreimportantly, an
ethics of seeing.Susan Sontag, On Photography
Memory implies a certain act of redemption.What is remembered
has been saved from nothingness. What is forgottenhas been
abandoned.
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38 Harrison, Marguerite Itamar.Lamentando o esquecimento da
memria: as instalaes fotogrficas de Rosngela Renn
the distinction between rememberingand forgetting is transformed
into anact of judgment, into the rendering ofjustice, whereby
recognition is closeto being remembered, and condemnationis close
to being forgotten.John Berger , About Looking 2
Como descrito pela tica do ver de Susan Sontag, as instalaes
fotogrficasprovocadoras de Rosngela Renn convocam o olhar
participativo do espectador. As reconstrues que a artista faz do
processo de lembrar ade-rem prescrio de John Berger para a realizao
de justia, atravs de seuenglobamento de uma realidade social
complexa que engaja o olho tico do es-pectador. Com o intuito de
fazer arte, Renn recupera imagens abandonadas eregistros
desprezados para buscar nada menos que um resgate coletivo da
almahumana. Em vrias de suas obras, ela nos convida auto-avaliao e
nos desafia aexaminar os eixos do poder que, de acordo com Berger,
condenam os seres hu-manos ao esquecimento. Como ser discutido ao
longo deste ensaio, a artistabrasileira comea por confrontar as
tendncias de seu prprio estado-nao comrelao ao apagamento crnico da
identidade.
Como um convite a duelo, a inteno de Renn de engajar o Brasil
numconcurso de memria est bem explicada em sua obra de 1994,
intitulada Imemorial,que desafia o smbolo-mor da confiana do Brasil
em seu futuro: a capital deBraslia. Poderia haver um smbolo melhor
das aspiraes nacionais do que aultramoderna capital nacional,
planejada a partir de plantas em forma de jato ebrotada da terra
vermelha do centro-oeste do pas? No plano original, Brasliahavia
sido projetada para expressar simetria modernista e esplendor
utpico, ele-mentos arquitetnicos proclamando o Brasil como uma
terra do futuro. Rodea-dos por piscinas de gua, vrios prdios
federais e monumentos de Braslia ofere-cem reflexos da paisagem
urbana e de seu amplo horizonte: o cu e a terra enlaa-dos numa
iluso bidimensional e otimista.
Apesar de ter sido fundada a partir de princpios socialistas, a
vasta gradeurbana de Braslia no corresponde a uma escala humana.
Alm disso, a constru-o da capital acarretou um grande custo. Este
justamente o tema de Imemorial,uma pea funerria lamentando a perda
de trabalhadores durante as obras detrinta e cinco anos atrs.
Criada para a exposio Revendo Braslia, Imemorial
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espelha, mesmo de forma sombria, a nfase da prpria cidade em
reflexo, aoremexer e reconstruir o passado de si mesma.3 Na
instalao, uma tinta preta esemi-translcida cobrindo quarenta
fotografias em preto e branco, montadas nocho para parecer tmulos,
espelha dez retratos em tons de estanho, penduradosacima
solitariamente numa parede branca. Como o artista Evandro Salles
expres-sou, as imagens escuras, horizontais, so visveis, mas por
pouco: A prata dofilme se distingue tenuemente do fundo negro. A
imagem quase retorna para oesquecimento, para a memria. Mantm
entretanto uma pulsao luminosa. Osrostos aparecem como reflexos
sobre a massa de esquecimento.4
Nas instalaes de Renn, fotografias encontradas so ferramentas
essenci-ais que a artista apropria e reconfigura para expressar
sentidos maiores, muitasvezes subterrneos. Neste caso, Imemorial
serve como um memorial comovente,exigindo que o espectador
lembre-se do esquecido. De fato, os retratos foscosmontados no cho
em molduras de ferro e presos com parafusos de metal reflexes
penumbrosas das imagens em tons pratas montadas verticalmente
naparede evocam de maneira assombrosa a escurido dos enterrados.
Alm disso,conforme veremos depois, ao sepultar cada retrato numa
obscuridade sombria deforma a resistir o anonimato inspido,
burocrtico, Imemorial desafia inexoravelmenteo regime oficial do
Brasil de esquecimento, a propenso de um pas jovem porperda de
memria.
Como artista visual, Renn ultrapassa as margens que definem os
camposda arte. Ela fotgrafa, artista de instalao, ou ativista?
Apesar de ter sido descri-ta como sendo uma fotgrafa que no
fotografa,5 e insistir ela mesma em afir-mar que aborda questes
sociais no por querer fazer um trabalho engajado,6ela , de fato,
tudo isso. Formada em arquitetura e obcecada por colecionar, Renn
uma arquivista esttica cujo trabalho em suas evocaes simples de
humanida-de e em seus retratos complexos de comportamentos
sociaisinstiga reaesticas do espectador. Como sugere de forma
astuta o crtico Adriano Pedrosa, opapel de Renn como artista
envolve o desvendamento pblico de um esqueci-mento coletivo do
indivduo.7
Nem todos os trabalhos de Renn so politizados. No entanto, em
geralsuas instalaes engajam o espectador num dilogo visual no qual
a responsabili-dade cvica surge do reconhecimento de que somos
todos seres sociais respons-veis por nossas aes individuais e
coletivas. Seus trabalhos insistem que tome-
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40 Harrison, Marguerite Itamar.Lamentando o esquecimento da
memria: as instalaes fotogrficas de Rosngela Renn
mos uma posio a favor ou contra; no permitem que sejamos
simplesmentevoyeurs passivos. Apesar de Renn ser uma artista
brasileira cujas instalaes, comoser analisado neste ensaio,
refletem suas reaes estticas como cidad, o alcanceinternacional de
sua experincia artstica tambm permite que seus trabalhos ope-rem
interculturalmente, estendendo-se alm de fronteiras nacionais, de
forma aconferir um apelo internacional sua arte. O trabalho de Renn
como ficaevidente no alcance mundial de suas exposies individuais,
realizadas em lugarescomo no Alexanderplatz de Berlim, o Museu do
Chiado em Lisboa, a Galeria dela Raza em So Francisco, o Australian
Centre for Photography em Sydney, a DeAppel Foundation em Amsterd,
e nas bienais de Johanesburgo e Veneza ricoe abrangente.
Carteiras de identidade e perda da identidade
Para a montagem de Imemorial, Renn recuperou pequenas
fotografias dosarquivos municipais utilizadas para as carteiras de
identidade dos trabalhadores.Ao divulgar registros federais e
re-exibir imagens burocrticas como retratos enig-mticos, a pea
anuncia vigorosamente sua inteno de relegar o
anonimatoinstitucional. Para protestar os processos de documentao
institucional que fa-vorecem registros em lugar da individualidade,
a artista primeiro ampliou as foto-grafias 3x4 dos trabalhadores.
Ela ento contrabalanou o olhar direto e frontaldos sujeitos ao
escurecer as imagens com tinta preta. Como a inteno inicial
dasfotografias era de documentao, as expresses nos rostos dos
trabalhadores sosrias, e suas roupas so mais formais.
Um nmero afixado a cada imagem como que para reforar a
posturainstitucional que converte um indivduo num rosto capaz de
ser quantificado,desconhecido. Alm disso, de acordo com a artista,
o nmero tem duas funespara validar e tambm preservar privacidade:
referencia intimamente a data dacontratao de cada trabalhador, e
registra, por outro lado, a amnsia clnica dasfatalidades
esquecidas. No por acaso que o nmero das fotografias no cho
dainstalao maior do que aquelas montadas na parede acima. A equao
assimtricaserve para provocar uma reflexo sobre a desproporo entre
as perdas e ganhosdo progresso.
Enterrados no fundo dos arquivos, estes indivduos descartados e
falecidos entre eles, um nmero pequeno de mulheres e crianas
tornam-se vtimas
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permanentes extraviadas da memria, que literal e simbolicamente
deixam de existir.Sua memria coletiva ressuscitada, no entanto,
pela ao conjunta da instalaode Renn e o olhar do espectador este
ltimo, em particular, encarregado dadifcil tarefa de resgatar dos
escombros pticos os traos faciais subterrados pelaobscuridade da
tinta escura da artista de forma a restaurar solenemente a
indivi-dualidade de cada trabalhador. Alm disso, como sugerido por
Jacapo CrivelliVisconti, o ato de refotografar e ampliar as
minsculas fotografias de identidadedos construtores mortos durante
seu trabalho nas obras de Braslia sobrepe aesta constatao formal
uma denncia de cunho social difcil de se ignorar, lan-ando uma nova
luz no sonho de modernidade do Brasil.8 Dentro de um contex-to mais
amplo, a instalao de Renn poderia tambm ser interpretada dentro
doconceito de James E. Young de contra-monumentos, os quais, como
Lisa Saltzmandescreve, insistem na ausncia, impermanncia,
participao, e contexto.9
A inteno de Renn que instalaes fotogrficas como Imemorial
sejamrespostas crticas a tradies documentrias de fotografia
impostas por institui-es. Suas peas artsticas surgem da pressuposio
de que ns, como seres so-
Sem titulo (brao com coraozinho), 199610
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42 Harrison, Marguerite Itamar.Lamentando o esquecimento da
memria: as instalaes fotogrficas de Rosngela Renn
ciais, respondemos ao nosso mundo atual, saturado de imagens,
comdessensibilizao e desapego em relao a capacidades humanas
bsicas, como,por exemplo, compaixo e compreenso. O objetivo de Renn
de engajar oespectador a reaprender como ler sinais visuais: a
medir e interpretar criticamente,por exemplo, os conflitos entre
indivduos e instituies; ou a reagir s infraesespaciais que pem
prova diariamente os limites do pblico e do privado; ou atmesmo a
desviar nosso olhar da perversidade voyeurstica e redirecion-lo
empatiae, ao fazer isso, a restaurar a visibilidade dos indivduos
que tm se tornado social-mente invisveis.
Reagindo tradio documentria, Renn extingue ainda mais das
imagensfotogrficas o sensacionalismo e drama das manchetes de
primeira pgina, as im-buindo de dignidade desguarnecida e contedo
reflexivo. Alm disso, Renn se-gue as recomendaes de John Berger
para criar usos alternativos de fotografia11ao estabelecer um
contexto destabilizado para suas fotografias encontradas, deforma a
insistir no envolvimento intelectual e emocional do espectador. As
ima-gens que seleciona e reformula comunicam-se comunalmente ao
espectador comclareza simples, denunciando a tendncia de amnsia
social, e exigindo recorda-o.
A artista no tem medo de retratar tragdia, como se suas obras de
artefossem concebidas para revelar os piores momentos do Brasil:
violncia e totalita-rismo, desprezo e perda. No lana acusaes; os
elementos trgicos escoam dostrabalhos em si em demonstraes de
luminosidade esttica: opacidade negra,luzes azuis etreas, tintas
vermelho-sangue, e cicatrizes em tons de spia. Comoque quisesse
falar: para poder nos projetar no futuro como cidados melhores
(oucomo uma nao melhor, ou como um mundo justo), temos que encarar
nossosdefeitos. E para isso temos que evocar uma memria
fotogrfica.
Revelando os defeitos fundadores
Em termos de confrontar a amnsia nacional, Renn no teme retratar
aexperincia colonial, ocorrida vrios sculos antes da construo de
Braslia, comomostra sua instalao de vdeo de 2000, Vera Cruz. Nesta,
o encontro inicial entreos colonizadores europeus e os povos
indgenas no inclui um componentepictogrfico; o nico elemento visual
do vdeo consiste em riscos numa tela embranco. A trilha sonora
resume-se a ressonncias do vento e do mar. As legendas
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do documentrio reproduzem um monlogo obviamente fictcio do ponto
devista dos colonizadores12, um aspecto que questiona a veracidade
fundadora e aomesmo tempo refora o desequilbrio marcado da
experincia colonial. Vera Cruzdocumenta a gnese de uma sociedade
desigual, cuja magnitude e complexidadeso as razes dos defeitos do
Brasil.
No captulo final e sombrio de seu livro Brasil: Mito Fundador e
SociedadeAutoritria, a intelectual Marilena Chau define o Brasil de
500 anos independen-temente do sistema poltico em vigor como uma
sociedade autoritria, marcadahistoricamente por profundas
desigualdades. Delineando as estruturas fundado-ras da sociedade
brasileira, Chau indica de forma sucinta como tal ethos de
desi-gualdade cria e perpetua um enorme vo: para os grandes, a lei
privilgio; paraas camadas populares, represso.13 Dentro do escopo
da anlise de Chau, a tre-menda polarizao scio-econmica do Brasil
custa caro maioria da populao:a poderosa minoria restringe os
sem-poder a uma vida (curta) de serventia e sub-jugao.
As instalaes fotogrficas de Renn exploram esteticamente a
experinciabrasileira ao ressaltar de forma graciosa e artstica as
desigualdades humanas queesto no cerne da situao infeliz de seu
pas. Imemorial, por exemplo, lamenta aperda de vida especificamente
as vidas daqueles, inclusive crianas, contratadospara trabalho
braal em troca da realizao dos sonhos futursticos da nao.Outras
instalaes, como Atentado ao Poder: Via Crucis (1992) e Candelria
(1993),ambos realizados antes de Imemorial, abordam a ineficcia da
violncia como res-posta aos intransponveis desequilbrios sociais do
Brasil. Cada trabalho lana umolho crtico sem ser confrontador em
direo a qualquer soluo a curto-prazo sugerida para resolver os
problemas mais graves do pas.14
Atentado ao Poder : Via Crucis uma instalao criada para
coincidir com aConferncia das Naes Unidas para o Meio Ambiente e o
Desenvolvimento de1992, conhecida como ECO-92 enfoca a brutalidade
humana durante um pe-rodo de duas semanas quando lderes mundiais se
reuniram no Brasil para discu-tir estratgias globais para prevenir
a violncia contra o meio ambiente. A artistareproduziu e ampliou as
fotografias granuladas de jornais mostrando cadveresensangentados
esparramados nas caladas da cidade. Estas imagens cada
umacorrespondendo a uma Estao da Via Sacra, referenciando assim o
simbolismocristo que ressalta sacrifcio, traio, e brutalidade so
montadas verticalmente
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44 Harrison, Marguerite Itamar.Lamentando o esquecimento da
memria: as instalaes fotogrficas de Rosngela Renn
no cho contra a parede, numa postura remanescente, mais uma vez,
de tmulos.Feixes de luz verde-fluorescente emanam por detrs destes
retratos grotescos quem sabe reflexos difusos do mundo natural. Os
corpos mutilados, produtos demortes desnaturais e prematuras, por
inferncia se tornam parte da prpria terra.O brilho verde pulsante
contrabalana o ttulo da instalao, afixado bem ao altoda parede
branca acima, que proclama: The Earth Summit. O ttulo pretensio-so,
em ingls, refora o domnio do primeiro mundo e impe uma hierarquia
falsa,scio-econmica sobre a natureza, enquanto que os corpos
humanos, cercadospor um verde gritante, parecem inferiores e
esquecidos. Para o historiador da arteTadeu Chiarelli, as imagens
dos cadveres desmascararam a hipocrisia da solida-riedade pregada
na ECO-92.15 A crtica Alma Ruiz afirma tambm que esta ins-talao
teve como propsito zombar de um mundo incapaz de eliminar violn-cia
endmica, desigualdade, e poluio.16
Um olho que no se pode fechar
Enquanto Atentado ao Poder lana uma viso mundial sobre as
conseqnciasda irresponsabilidade ambiental e do abuso humano,
Candelria enfoca de pertouma das piores calamidades do Brasil
atual. A obra lamenta de forma pungente omassacre noturno em 1993
de meninos de rua, realizado na frente da Igreja daCandelria por
autoridades locais para limpar o centro do Rio de Janeiro.
Aocontrrio das imagens chocantes publicadas em peridicos ao redor
do mundo,na Candelria de Renn no h nenhuma representao figurativa.
H uma ausn-cia absoluta de referncias humanas, numa tentativa de
ressaltar a perda extrema(e literal) de vidas inocentes. Atravs de
um processo criativo de luto ao mesmotempo racional e palpvel a
artista deixa sua herana ao espectador: um olhoque no se pode
fechar.17
A instalao consiste em quatro painis com textos em forma de
pipas deduas asas. O nmero (4 x 2) corresponde s oito crianas que
foram mortas nanoite da chacina. Os painis duplos parecem flutuar
como anjos num esplendorazul-etreo de luz fluorescente, um aspecto
essencial da pea. Fios eltricossuspensos dos painis at o cho como
cordas de pipa nos lembram, como indi-cado por Paulo Herkenhoff, o
passatempo infantil to comum no Brasil. A umnvel metafrico, nas
palavras de Herkenhoff, como um fio-terra que manti-vesse a ligao
com a terra como um cordo umbilical18 uma escada, talvez,para as
mais recentes almas ascendentes.
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Para Alma Ruiz, a frieza da iluminao azulada de Candelria pode
simboli-zar o carter sangue-frio deste ato de limpeza de rua.19 Os
painis azul-radiantestambm podem, paradoxalmente, representar um
campo celestial que contrastafortemente com a escurido que envolve
o espectador. As linhas de pipa se tor-nam a nica ligao do
espectador inocncia infantil, um meio para escapar daviolncia
arbitrria e da cumplicidade social em relao aos assassinos.
Em Candelria, as palavras substituem o horror imediato da imagem
visual.A artista selecionou oito segmentos de seu Arquivo
Universal, uma coleo pessoalde textos curtos retirados da mdia
impressa ao longo dos anos, cada um referin-do-se de alguma forma a
uma imagem fotogrfica ou experincia. De acordo coma artista, esta
tcnica baseada em textos, livre de imagens que fora o espectadora
converter palavras em imagens mentais torna o processo de humanizao
e dere-lembrana mais imediata e humana. Tambm confere
responsabilidade pessoalpela chacina a cada espectador, pois a
projeo mental de suas conseqncias dealguma forma uma participao das
mesmas.
Os oito textos de Candelria reforam a culpabilidade da sociedade
ao evo-car a experincia humana em suas mais abrangentes formas. O
caleidoscpio tex-tual de Renn repercute numa variedade de problemas
sociais e corrupes; sualente rotatria capta imagens estticas
reveladoras: vtimas e vilos, momentosde pressgio assustador e
clemncia angustiante, comportamento abominvel, eabuso escandaloso.
Em lugar de imagens visuais das oito crianas massacradasesto
passagens destoantes como esta:
A Funai vai exigir na Justia que a empresa E. indenize a ndia
I., de15 anos, violentada e engravidada em agosto passado por
tcnicosda Empresa que faziam prospeco na reserva indgena.
Osfuncionrios da Funai ficaram revoltados com o descaso daEmpresa,
que enviou apenas uma relao, sem fotografias, dostcnicos que
trabalhavam na rea na poca para I., que surda-muda e deficiente
mental, identificar os autores do crime.20
Esta passagem juntamente com outras sete resumem apropriadamente
aperda fatdica de inocncia infantil: uma criana indgena surda-muda
que estu-prada por tcnicos levantadores; um pai que perde sua jovem
filha AIDS; meno-res que ficam presas numa roda de pornografia; uma
me que lamenta a morte deseu filho devido a negligncia hospitalar;
um empregado pedfilo da embaixada
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46 Harrison, Marguerite Itamar.Lamentando o esquecimento da
memria: as instalaes fotogrficas de Rosngela Renn
que pego chantageando jovens meninas. Estes segmentos tambm
captam mo-mentos de incongruncia social: a afluente atriz italiana
em seu carro importado ecasaco de pele que participa da luta contra
a fome aps ver fotografias de crianasmorrendo de fome na Somlia; o
casal que recebe um cupom para revelaogratuita de fotografias
depois que o laboratrio de processamento perdeu valio-sos retratos
de seu nenm de quatro meses; um retrato textual que preserva
umsegundo de alegria provocado pelo coral que canta para os meninos
de rua nafrente da Igreja da Candelria somente doze dias antes de
muitos deles seremassassinados.
Estes fragmentos textuais universalizam a tragdia ao buscar
referncias almde sua especificidade visual. A juventude transviada,
roubada, e literalmenteassassinada em todo lugar, todos os dias,
atravs dos meios mais variados e eston-teantes. Enquanto que
imagens dos meninos de rua fuzilados os congelariam emdata, local,
e contexto especficos, ao conectar suas mortes perda da infncia
aoredor do mundo, Renn aciona uma chave exponencial no banco de
memria decada espectador. Atravs de sua judiciosa falta de
visualizao, os meninos de ruado Rio se tornam a primeira imagem
numa casa de espelhos em que cada reflexosurge espantosamente
diferente, mas ao mesmo tempo essencialmente igual.
As instalaes fotogrficas de Renn comemoram esteticamente as
vidasdos que no tm voz ou nome, honrando aqueles que ocupam as
margens dasociedade. De fato, como afirma Tadeu Chiarelli, Renn
lida com a pobrezafsica, econmica, e existencial do homem
contemporneo.21 Numa entrevistacom Melissa Chiu, Renn reitera esta
ateno prestada s histrias dosperdedores, que ela percebe como mais
interessantes do que as histrias dosganhadores.22 Tambm j foi dito
que o trabalho dela representa o que quasevai para o lixo.23 Suas
prprias matrias-primas so muitas vezes fotografias des-cartadas:
itens ou relegadas ao lixo ou recuperadas de arquivos inaccessveis.
Numesprito de fundir a arte contempornea com conscincia social,
Renn exige queo espectador participe do processo de elevar a
visibilidade e valorizar aqueles queso ou se tornaram
insignificantes e descartveis, esquecidos no meio das
massasinstitucionalizadas.
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Contestando o magnetismo hegemnico
No Brasil, um pas de olho no futuro, disposto a repor a imagem
de ontemcom uma que seja de ltima gerao hoje (uma substituio que
exige a supressoperptua de seu passado histrico enquanto adere
ironicamente a uma ordemsocial arcaica, herdada do ethos
colonialista de serventia), a prtica de manter do-cumentao
institucional torna-se habitualmente antiquada, medida que
docu-mentos pblicos caem em desuso continuamente. Seu desprezo e
subseqentefutilidade formam um paradoxo burocrtico: fontes de
identificao governamentalse tornam sujeitos de perda de identidade.
Em suas obras de instalao do finaldos anos 90, Renn problematiza
este paradoxo ao retornar ao tipo de trabalhoinvestigativo que
realizou para produzir Imemorial. necessrio entender que par-te do
papel de Renn como artista de desenterrar ou utilizando a
terminologiafotogrfica expor arquivos pblicos abandonados,
literalmente mostrando as-sim uma narrativa oficial que havia sido
esquecida. Obras como Vulgo, de 1998-1999, e Cicatriz, de
1996-2003, surgiram do exame exaustivo (e preservao) daartista de
dezenas de milhares de negativos em vidro, arquivados nas colees
daPenitenciria Estadual de So Paulo no complexo de Carandiru.24
Carandiru um lugar sobrecarregado de significados, evocando a
chacinade 1992 que ocorreu na priso e que foi retratada de forma
pungente no filme deHector Babenco de 2003 sob o mesmo nome. No
entanto, os trabalhos de Rennsobre priso so derivados
intencionalmente de outras fontes histricas, mais es-pecificamente
do sistema de classificao baseado em medicina utilizado
paraclassificar prisioneiros, desenvolvido entre os anos 20 e 40
para categoriz-los deacordo com suas marcas individuais.25 Como um
meio de controle de identifica-o, conectando tticas de monitorao
com tendncias de estigmatizao, estaclassificao sistemtica incluiu o
registro de caractersticas fsicas tais como corda pele, altura, e
peso, assim como deformidades do corpo, cicatrizes e
tatuagens.Entretanto, guardadas perpetuamente como esto, em
arquivos inoperveis (e con-seqentemente desprezados), as imagens de
fato perdem suas capacidades de iden-tificao e se transformam em
meros elementos estatsticos. Os prisioneiros en-to perdem seus
nomes, seus rostos, tornando-se cativos das marcas distintasde seu
prprio esqueleto e pele, em lugar dos indivduos nicos que eram
nopassado.
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48 Harrison, Marguerite Itamar.Lamentando o esquecimento da
memria: as instalaes fotogrficas de Rosngela Renn
Ao resgatar as imagens desprezadas e refotograf-las
parcialmente, dandobeleza e definio s marcas dos prisioneiros, a
artista restaura um sentido devalor aos prisioneiros annimos
apresentados em Vulgo. Em suas prprias pala-vras, Renn reitera seu
desejo de dar nomes e rostos e dignidade a essas pes-soas.26 Os
traos e cicatrizes pessoais, realados em matizes suaves pela
artista,tornam-se verdadeiras marcas de beleza que simbolizam a
qualidade nica decada indivduo. A obra como um todo transforma a
condio humana em algontimo ao aproximar o espectador de seus
sujeitos. Com a cumplicidade do espec-tador, a artista recupera,
discretamente, o valor das memrias sem valor.27
Enquanto que em Candelria cifras verbais tomaram o lugar das
imagensvisuais, Vulgo uma instalao exibida no Australian Centre for
Photography emSydney, na Lombard Freid Fine Arts Gallery em Nova
Iorque, e na Galeria CamargoVilaa em So Paulo combina o verbal e o
visual.28 Em primeiro lugar, emtermos visuais, o trabalho consiste
em anti-retratos do museu da penitenciria, ouseja, fotografias
tiradas principalmente detrs das cabeas de prisioneiros (de
dozefotografias, somente trs foram tiradas de frente). Com poucas
excees, h umaausncia total de traos faciais. Textos curtos
acompanham as fotografias, tiradosdo Arquivo Universal da artista.
Em cada passagem do Arquivo Universal, a fotogra-fia original de
onde surgiu a legenda foi removida. A qualidade e apelo universal
dos textos advm de certa variao lingstica, pois freqentemente
alternamentre portugus, ingls, espanhol, italiano e francs.
O que foi designado de Vulgo/Texto consiste em palavras brancas
sobre umfundo preto, formando uma lista vertical de apelidos e
codinomes criminais aolongo da pgina (ou tela, numa outra
montagem), dispostos de acordo com cor-respondncias visuais ou
auditivas. Esta lista evidentemente tem a funo de fugirda funo
documentria de uma lista oficial de nomes prprios, organizada
alfa-beticamente. O inventrio de Vulgo complementado por imagens
fotogrficasalternadas com passagens curtas de Arquivo Universal,
impressas solenemente embranco sobre branco. A uniformidade do
texto branco sobre um fundo brancosimula a arte de camuflar e
ocultar, e torna a tarefa de leitura ainda mais rdua.Qualquer
referncia humana nestes textos fica reduzida s letras X, Y, e Z,
au-mentando ainda mais o sentido de anonimato.
Um dos segmentos reproduzidos em Vulgo remonta a Candelria numa
cor-respondncia intertextual evocativa:
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Eram nomes tpicos brasileiros: Paulo Roberto, Marcelo,
ValderinoMiguel, Paulo Jos, Marcos Antnio, Anderson, e dois que
eramconhecidos simplesmente como Gambazinho e Z Nojento. Osnomes em
si significavam muito pouco. Mas quando uma procissode crianas
percorreu a ala central segurando os oito nomes emcima de suas
cabeas, a multido dentro da Candelria prestou maisateno. As luzes
das cmeras de televiso de repente foram ligadasnovamente. Fotgrafos
trocaram de posio rapidamente e os flashesdispararam. E quando as
crianas se viraram com suas placas defrente para os que estavam ali
de luto, a mdia desceu sobre o altarcomo se no houvesse nenhuma
barreira sagrada.29
Esta passagem trata da reao imediata da comunidade chacina
deCandelria, mas tambm documenta uma perda do espao sagrado para
reflexoe luto, transformado pelos flashes da mdia numa arena
pblica, uma mudanaexacerbada pelo uso globalizante do ingls.
Separada do retrato abstrato da trag-dia feito pela prpria artista,
e pregada sem mais nem menos sobre outras ima-gens no-relacionadas,
esta mensagem textual capaz de transmitir uma voz crti-ca de
longe-alcance e multidimensional: uma voz que questiona os direitos
deinstituies de lanar um olhar invasor sobre a vida de cidados
privados, mesmoquando estes cidados so rprobos sociais
(prisioneiros ou crianas de rua).
Como pea de instalao, Cicatriz um projeto concebido para o
Museumof Contemporary Art de Los Angeles entrelaa ainda mais
elementos visuais everbais ao alternar fotografias ntimas de
tatuagens dos prisioneiros com textosdo Arquivo Universal da
artista. Em forte semelhana com a tcnica textual
bran-co-sobre-branco utilizada por Renn em Vulgo para enfatizar
ocultao, os com-ponentes escritos de Cicatriz foram literalmente
entalhados na parede (descritoadequadamente por Alma Ruiz como
tendo sido cicatrizados30) para simular oprocesso de gravura na
pele. Uma produo em livro desta obra reproduz ostextos em pginas
que parecem pele humana, aproximando ainda mais os compo-nentes
escritos s imagens complementares de sujeitos tatuados.31
Os textos de Cicatriz partem da obsesso geral da artista para
com (o tema)de fotografia, ao permitir que a palavra escrita amplie
os parmetros do campovisual da cmera. Enquanto que as fotografias
enfocam de perto as tatuagens,amputando visualmente do corpo
integral braos, mos, ou peitos, os segmentostextuais tm o efeito
contrrio: o de magnificar o contexto social geral e, com isso,
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50 Harrison, Marguerite Itamar.Lamentando o esquecimento da
memria: as instalaes fotogrficas de Rosngela Renn
reproduzir as repercusses de nossas aes humanas numa escala
global (revelan-do-se, portanto, a significao da variedade
lingstica dos textos).
Como em Candelria, as incluses textuais de Cicatriz extraem as
implicaesmais amplas de dramas pessoais, as incorporando numa vasta
estrutura social.Vrios dos segmentos, por exemplo, tratam da esfera
abrangente de identidade edeteco, limitaes, e confinamento. Renn
afirma que os variados fragmentostextuais expem uma topografia
complexa da experincia humana, usando ametonmia de cicatrizes como
seu denominador comum.32 As tatuagens em si,entretanto, ressaltam
com simplicidade tpica e com algo de ironia, j que ostatuados
representam desvio social emoes humanas comuns: amor e fidelida-de,
liberdade, devoo religiosa.
Apesar de ser um aspecto unificador, as tatuagens em si, como
aponta AlmaRuiz, no so o foco primrio destas imagens.33 Ao invs
disso, a faanha admir-vel de Renn de ter alterado e contextualizado
as imagens de tal forma a comu-nicar qualidades primrias,
humansticas ao espectador. A inteno documentriadas fotografias
destilada atravs de um foco tctil sobre impresso esttica. Almdisso,
ao resgatar imagens encontradas e relan-las dentro de uma
peapluridimensional, conceitual, a artista tambm elimina a tendncia
de ampliar odrama individual de cada imagem, que freqentemente a
nfase de fotografiajornalstica. Ao invs de deixar a fotografia
exaltar o drama social com uma esp-cie de magnetismo hegemnico,
Renn faz do espectador o elo necessrio entre aarte e a condio
humana. O espectador deve assimilar e entender a pea comoum todo
isto , seu contexto conforme apresentado pela artista para
podercapturar seu sentido multifacetado. Auxiliado pela artista a
captar o escoporevolvedor da memria social, o espectador ento
persuadido a moldar a com-posio esttica numa responsabilidade
tica.34
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Cadernos de Letras da UFF Dossi: Letras e Direitos Humanos, no
33, p. 37-58, 2007 51
Sem titulo (Amrica e Cristo), 199835
Resistindo a subjacncias de abuso
O componente moral das instalaes de Renn surgem de sua
insistnciaativa para que o espectador concretize, ou talvez batize,
as obras em sua memriaeticamente carregada, para que fiquem
completas. Apesar de uma pea comoCicatriz no ter sido projetada
para retratar diretamente a chacina de Carandiru,por exemplo (como
faz o tour de force cinemtico de Babenco), o espectador convidado a
buscar correlaes conceitualmente, ao separar da obra de arte
asformas das quais ela expe tangencialmente a persistncia da
injustia e devasta-o humana manifestadas no dia-a-dia.
O espectador pode querer tambm estabelecer conexes com outras
insta-laes, como Candelria, uma rede de correspondncias produzida
com a inteno ainda que atenuada de reagir a formas sancionadas de
violncia, perpetuadaspor foras institucionais. O ttulo em si,
Cicatriz, sugere ferimento e mutilao,elementos aparentemente
incongruentes com a ressonncia visual das fotografiasem si.
Enquanto que as tatuagens, conforme representadas por Renn, podem
serconsideradas formas inextinguveis de arte, as cicatrizes
referenciadas no ttulodespontam para enfrentar as formas enraizadas
de discriminao e abuso socialexpressas pela obra de arte como um
todo. Em outras palavras, as fotografias porsi mesmas podem
representar fora humana; entretanto, em combinao com os
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52 Harrison, Marguerite Itamar.Lamentando o esquecimento da
memria: as instalaes fotogrficas de Rosngela Renn
textos e os elementos formais que juntos compem a instalao,
Cicatriz cria umespao crtico de onde o espectador pode interpretar
o papel da sociedadeinstitucionalizada na objetificao e
marginalizao destes indivduos.
Escolhi enfocar somente um aspecto das contribuies artsticas de
Renn,ou seja, onde elas intersectam mais claramente com temas
sociais, atravs de for-mas que tratam especificamente do Brasil. Se
levarmos em considerao os argu-mentos da Marilena Chau de que o
autoritarismo crnico do Brasil constri-se apartir de um quadro
hierrquico de desigualdade social, as obras discutidas atento
exploram um dilema filosfico de grande respaldo. Elas buscam formas
deinserir empatia e compaixo num processo de desumanizao habitual
que equi-para, entre outras coisas, marginalidade econmica a
excluso social. Para evitarque marginais sociais cometam atos
criminosos (realizados freqentemente poruma questo de
sobrevivncia), o Estado assume o papel onipresente ou, parautilizar
um termo fotogrfico, panptico, e punitivo de institucionalizar
mecanis-mos de controle (mesmo se os indivduos escolhidos para
realizar tais polticasso eles prprios advindos das camadas mais
baixas da ordem social). O desafiopara artistas com a sensibilidade
social de Renn o de responder esteticamentes contradies radicais
que existem entre a imagem pblica do Brasil como umpas alegre e
pacfico (a qual, paradoxalmente, encarna) e a negao do pas de
suaexplorao sancionada (inclusive subjugao, violncia, e por vezes
genocdio),ensejada pelas enormes disparidades scio-econmicas.
Atrado irresistivelmentepelo trabalho da artista, o espectador
tambm um membro privilegiado da elitecultural, que possui
necessariamente pelo menos um certo grau de alfabetizao encarregado
de lembrar estas subjacncias de abuso, resistindo a elas.
Relembrar torna-se um verbo ativo
I still remember how, in my half-conscious state, I tried to
hold fastto my powdery gray dream image,which sometimes quivered in
a slightbreath of air, and to discover what itconcealed, but it
only dissolved all themore and was overlaid with memory,surfacing
in my mindW.G. Sebald, Austerlitz36
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Cadernos de Letras da UFF Dossi: Letras e Direitos Humanos, no
33, p. 37-58, 2007 53
Gostaria de concluir esta anlise das obras de Renn com uma
discusso demais duas peas que instigam o espectador a realizar uma
misso difcil que envol-ve o ato de ver com o propsito de lembrar,
como sugerido acima por W.G.Sebald. A instalao Hipocampo (1995) o
nome dado a uma regio do crebroonde se acredita que a memria esteja
armazenada37 especialmente provocativaao insistir em forar a
assumirem indivduos privados (neste caso, espectadores) opapel de
guardies da memria pblica. Numa sala iluminada, o espectador
de-fronta-se com paredes e colunas em branco. Somente quando se
apagam as luzese o espectador cercado pela escurido que textos
pintados em verde fluores-cente surgem da obscuridade. Durante dois
minutos e meio permitido ao espec-tador formular imagens mentais
das legendas que emergem da escurido, algumasdelas circundando as
colunas, outras projetadas diagonalmente nas paredes. Deacordo com
a artista, na escurido, tudo se torna legvel.38
O processo de leitura subseqentemente torna-se mais difcil
quando ostextos comeam a dissolver-se numa luz gradual, banhada em
brancura. medidaque o brilho intensifica-se, o espectador perde ou
mantm sua noo, dependen-do de quanto esteja ancorado nas imagens
mentais que surgiram a partir dostextos. Nas palavras da crtica de
arte Regina Barros: A luz ofusca, cega e norevela nada.39 O
espectador precisa reter uma lembrana do que foi lido at queseja
mais uma vez submergido na escurido. A tarefa rdua de ver e lembrar
tor-na-se uma metfora viva e vivida de responsabilidade social,
mesmo quando de-frontada, como a instalao ressalta, com uma parede
de escurido que simbolizaa navegao atravs das adversidades da
vida.
A Srie Vermelha (Militares) (2000-2003) de Renn, exibida na
Biennale deVeneza de 2003 (para a qual a artista foi uma de dois
brasileiros selecionados pararepresentar o Brasil), tambm faz
demandas rigorosas do espectador. Entretanto,neste caso exige-se do
olhar arquivstico ao espectador uma responsabilidade qua-se
arqueolgica, ou escavadora. Na instalao, montada a partir de
variados retra-tos de lbuns fotogrficos de meninos e homens
vestidos de uniforme, a artistaamplia os retratos imagens digitais
reproduzidas sobre papel fotogrfico paracapturar a rigidez da
profisso dos sujeitos, realando suas posturas
enrijecidas,disciplinadas. Uma tintura vermelho-sangue estabelece
uma distncia segura entreespectador e sujeitos, mas tambm magnifica
a ameaa potencial destes ltimos.As camadas transparentes pintadas
de vermelho comunicam desapego e realamuma qualidade de
intransigncia dos retratos que se materializa por detrs deles.
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54 Harrison, Marguerite Itamar.Lamentando o esquecimento da
memria: as instalaes fotogrficas de Rosngela Renn
Atravs de suas poses controladoras, estes homens militares
destacam-se de seuspanos-de-fundo e de seus espectadores, numa
camada protetora de impunidade.Em contraste com as fotografias da
Penitenciria, aqui Renn sublinha a oposi-o entre autoridade e
liberdade do ponto de vista do opressor, como que paraenfatizar, de
acordo com Alfons Hug, os plos extremos da existncia huma-na.40
O espectador pode colocar-se uma certa distncia e olhar para
estas ima-gens de forma desapegada, refletindo as poses impermeveis
dos sujeitos dasfotografias. Entretanto, paradoxalmente, como a
camada vermelha dificulta a lei-tura das imagens detrs dela as
tornando por vezes ilegveis ou invisveis oespectador literal e
figurativamente levado a aproximar-se mais das fotografias.O olho
encarregado de relembrar os traos dos sujeitos, de separ-los da
tintavermelha que os obscurece, como os arquelogos separam os
detritos do passadodo solo do presente.
E nesta altura o espectador precisa tomar uma deciso. possvel
resgatar ahumanidade dos detritos imundos de um mundo devastado por
guerra? O olhoemptico, compassivo consegue re-montar os traos de
uma pose militar sobreaqueles de um homem de famlia retratado num
estimado lbum de fotografia?Ou o espectador se torna, ao
concretizar estas imagens meio-escondidas, um cm-plice dos sujeitos
fotogrficos em sua sano do complexo industrial-militar quesustenta
seu poder? Eis a questo: deve-se olhar ou desviar o olhar?
Esta a questo no cerne das instalaes participatrias de Renn. O
ato deolhar torna-se carregado de responsabilidade moral; relembrar
torna-se um verboativo. Atravs da ao de uma viso destabilizadora e
de imagens fotogrficasressuscitadas o invisvel torna-se novamente
visvel ns, seus espectadores,temos que encarar nossas inaes, nosso
esquecimento, e nossa amnsia crnica,e assumir a responsabilidade de
nada menos do que construir o futuro.
ABSTRACT
Brazilian artist Rosngela Renn creates photographicinstallations
often using found materials such as outdatedinstitutional identity
cards that challenge the convenientforgetfulness of the young
Brazilian nation. Works such asCicatriz, or Scar, respond
aesthetically to the radical inequitiesof Brazilian society. Renns
works charge each viewer with
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Cadernos de Letras da UFF Dossi: Letras e Direitos Humanos, no
33, p. 37-58, 2007 55
the moral and excavational task of remembering humanfeatures,
and by metonymic implication, humanity itself, fromdehumanizing
images. Her installations recall the erasure ofidentity and indeed,
of life itself, thereby charging viewersmemories with the task of
retaining the horror of absence,and carrying an activist gaze into
the future.
Key words: photographs, social amnesia, justice.
Notas
1 Meus sinceros agradecimentos Rosngela Renn e Galeria Fortes
Vilaa pela ajuda durante aminha pesquisa; e a Marcos Gallon, da
Galeria Vermelho, em So Paulo, por sua valiosa ajudacom as imagens
includas no presente trabalho. Agradecimentos tambm Pamela Petro e
Dana Leibsohn pelo apoio editorial, assim como Elena Langdon na
traduo. Este ensaio dedicado memria de Mary Frances Diaz, amiga e
ativista incansvel pelos direitos humanos.
2 Ver Sontag, Susan, On Photography. New York: Picador, 2001; 1
ed. 1978; e John Berger, AboutLooking. New York: Pantheon Books,
1980, p. 54. O ensaio de John Berger intitulado Uses ofPhotography
(p. 48-63) dedicado a Susan Sontag.
3 A exposio Revendo Braslia neu gesehen foi organizada pelo
Projeto do Instituto Goethe deBraslia e a Fundao Athos Bulco, com a
colaborao do Ministrio de Relaes Exteriores deBonn e da Embaixada
da Repblica Federal da Alemanha em Braslia. Foi exibida na
GaleriaAthos Bulco, Teatro Nacional, Braslia entre 1-25 set. 1994.
Entre out. 1994 e mai. 1995 viajoupara So Paulo, Rio de Janeiro,
Curitiba, Porto Alegre e Belo Horizonte.
4 Salles, Evandro, Cruel Horizonte, In Revendo Braslia neu
gesehen. Braslia: Goethe-Institut e Fun-dao Athos Bulco, 1994, p.
48-51.
5 Ver Visconti, Jacopo Crivelli, Evidncias Ocultas, In Shattered
Dreams=Sonhos despedaados: BeatrizMilhazes/Rosngela Renn. So Paulo:
Fundao Beinal de So Paulo, 2003, p. 44; ver tb. Cronolo-gia, In:
Rosngela Renn: Depoimento, org. Janaina Melo. Belo Horizonte:
Circuito Atelier, 2003, p.92.
6 Depoimento autora, Rio de Janeiro em 15 de junho de 2004.
7 Ver Ruiz, Alma, Cicatriz, In Rosngela Renn: Cicatriz. Los
Angeles: The Museum of ContemporaryArt, 1996, p. 6.
8 Visconti, J. C. Evidncias Ocultas, op. cit., p. 46.
9 Saltzman, Lisa, resenha de At Memorys Edge: After-Images of
the Holocaust in Contemporary Art andArchitecture, de James E.
Young (New Haven and London: Yale UP, 2000), In Bryn Mawr Review
ofComparative Literature v. 2, n. 2 (Spring 2001), s/p.
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56 Harrison, Marguerite Itamar.Lamentando o esquecimento da
memria: as instalaes fotogrficas de Rosngela Renn
10 Da srie Museu Penitencirio/Cicatriz. A partir de original do
Museu Penitencirio Paulista. Foto-grafia p&b em papel resinado,
laminada, montada em PVC Sintra. Coleo MOCA, Los Angelese coleo
particular, So Paulo.
11 Berger, J. Uses of Photography, op. cit., p. 58-60.
12 Renn, Rosngela, Vera Cruz, In Virgin Territories. Washington
DC: National Museum of Womenin the Arts, 2001, p. 97.
13 Chau, Marilena, Brasil: mito fundador e sociedade autoritria.
So Paulo: Editora Fundao PerseuAbramo, 2004, p. 90. 5 ed. 1 ed.
2000.
14 Estas instalaes foram criadas logo aps a mudana da Rosngela
Renn para o Rio de Janeiro,onde ela deparou-se pela primeira vez
com o ndice de alta violncia e criminalidade da cidade,inclusive
seqestros e assassinatos, contra os quais a sua arte demanda a reao
do espectador.Depoimento autora, Rio de Janeiro em 15 de junho de
2004.
15 Chiarelli, Tadeu, La Mirada Contaminada: Otras
Fotografias/The Contaminated Gaze: OtherPhotographies, Polister v.
2, n. 8 (Primavera 1994), p. 38.
16 Ruiz, A. Cicatriz, op. cit., 7.
17 Esta expresso vem do ensaio de John Berger intitulado
Photographs of Agony, op. cit., p. 38.
18 Herkenhoff, Paulo, Renn ou a Beleza e o Dulor do Presente, In
Rosngela Renn. So Paulo:EdUSP, 1998, p. 161.
19 Ruiz, A. Cicatriz, op. cit., p. 8.
20 Renn, Rosngela. O arquivo universal (coleo da artista). Texto
em mimeo cedido autora pelaartista.
21 Chiarelli, Tadeu, Photography in Brazil in the 1990s, In
Lapiz; Revista Internacional de Arte(Madrid, Jul.-Set: 117-123),
1997, p. 121.
22 Chiu, Melissa, Rosngela Renn Interview, In Vulgo [Alias]:
Rosngela Renn. Sydney, Australia:University of Western
Sydney-Nepean, 1999, p. 42.
23 Ver Cameron, Dan, Entre as Linhas. So Paulo: Galeria Camargo
Vilaa, 1995, p. 5; e Melo, J.,op. cit., p. 15.
24 Ruiz, A. Cicatriz, op. cit, p. 8-9.
25 De fato, para obter acesso aos arquivos (um esforo que durou
nove meses) Renn teve queprometer que de nenhuma forma
representaria a chacina. Depoimento autora, Rio de Janeiroem 15
jun. 2004.
26 Chiu, M. Rosngela Renn Interview, op. cit., p. 43.
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Cadernos de Letras da UFF Dossi: Letras e Direitos Humanos, no
33, p. 37-58, 2007 57
27 Melendi, Maria Anglica, Bibliotheca ou das possveis
estratgias da memria, In RosngelaRenn: o arquivo universal e outros
arquivos, org. Adriano Pedrosa e Maria Anglica Melendi. SoPaulo:
Cosac & Naify/CCBB, 2003, p. 33.
28 Enquanto Rosngela Renn estava visitando o Australian Centre
for Photography em Sydney lhefoi concedido acesso aos arquivos que
mantinham a documentao criminal de aborgines, am-pliando assim o
contexto da sua obra. Depoimento autora, Rio de Janeiro, 15 jun.
2004.
29 Cf. Pedrosa, A. e Melendi, M.A., op. cit, s/p. Na citao em
ingls: They were typical Braziliannames: Paulo Roberto, Marcelo,
Valderino Miguel, Paulo Jos, Marcos Antnio, Anderson, andtwo who
simply went by the nicknames of Gambazinho and Z Nojento. The names
alone meantlittle. But when a procession of children walked up the
centre aisle holding the eight names abovetheir heads, the crowd
inside Candelria became more focused. The lights for the video
cameraswere suddenly switched back on. Photographers quickly
shifted their positions and flashes flared.And when the children
turned around with their signs facing the mourners, the press
descendedupon the altar as if there were no sacred boundaries.
30 Ruiz, A. Cicatriz, op. cit., p. 9.
31 Cf. Pedrosa, A. e Melendi, M.A., op. cit., s/p.
32 Ferreira, Jos Guilherme R., Entrevista: Rosngela Renn, Cult
no. 6. So Paulo, 1998, p. 11.
33 Ruiz, A. Cicatriz, op. cit., p. 10.
34 Ver Herkenhoff, Paulo no seu ensaio Brasil/Brasis, In Arte
contempornea brasileira: texturas, dic-es, fices, estratgias, org.
Ricardo Basbaum. Rio de Janeiro: Rios Ambiciosos, 2001, p.
359-370.Herkenhoff afirma: Uma marca que atravessou geraes de
artistas brasileiros deste sculo [...]foi a tradio de tomar a arte
como uma experincia tica (p. 368).
35 Da srie Museu Penitencirio/Cicatriz. A partir de original de
Museu Penitencirio Paulista. Impres-so digital (processo ris) sobre
papel Sommerset). Coleo Daros Latin America, Zurich, e cole-o
particular, San Diego.
36 Sebald, W.G. Austerlitz. trad. Anthea Bell. New York: The
Modern Library, 2001, p. 194.
37 Barros, Regina Teixeira de, Rosngela Renn: Hipocampo,
Polister 14 (Winter 1995-1996), p.54.
38 Cf. Melo, J. , op. cit., p. 84.
39 Barros, R. T. Rosngela Renn: Hipocampo, op. cit., p. 55.
40 Hug, Alfons, Sonhos Despedaados, In Shattered Dreams=sonhos
despedaados: Beatriz Milhazes/Rosngela Renn. So Paulo: Fundao
Bienal de So Paulo, 2003, p. 19.