Desenvolvimento capitalista, trabalho e ciganos: Uma correlação possível? 1 Jose Aclecio Dantas 2 UFPB Resumo Este trabalho trata dos resultados parciais de uma pesquisa bibliográfica de mestrado em serviço social sobre grupos ciganos, sua perspectiva do trabalho formal e seus incursos no desenvolvimento sócio metabólico do capital. Nossa analise funda-se no trabalho enquanto protoforma do ser social e se estrutura na perspectiva crítica do materialismo histórico dialético – uma teoria social marxista. Tal pesquisa foi motivada pelos resultados de dois anos de pesquisa de campo entre ciganos do estado da Paraíba. Visando suprir lacunas existentes na produção acadêmica acerca destes grupos étnicos e as formas de sua não inserção no mercado de trabalho formal. Palavras-Chave: Ciganos, Capitalismo, Trabalho. Capitalist development, Social Issues and Gypsies: A possible relationship? Abstract This work deals with the partial results of a literature search master's in social work on Roma groups, their perspective of formal work and their metabolic incurred in the development of capital partner. Our analysis is based on work while protoform of the social structure and the critical perspective of dialectical historical materialism - a Marxist social theory. This research was motivated by the results of two years of field research among the state of Paraiba Roma. Seeking to fill gaps in the academic literature about these ethnic groups and the ways of their integration into the labor market. Keywords: Roma, Capitalism, Work. 1 Trabalho apresentado na 30ª Reunião Brasileira de Antropologia, realizada entre os dias 03 e 06 de agosto de 2016, João Pessoa/PB. 2 Pedagogo, especialista em coordenação pedagógica e gestão escolar, especialista em educação em e para direitos humanos, Mestrando do programa de Pós graduação em Serviço Social da UFPB, Membro do GEC- Grupo de Estudos Culturais do Centro de Ciências Sociais, Letras e Artes – CCHLA UFPB. E- mail: [email protected]
20
Embed
Resumo - ABA - Associação Brasileira de Antropologia · 3Sergio Lessa apresenta em seu texto as ideias centrais da Ontologia do ser social de Luckacs ³Novamente nos confrontamos
This document is posted to help you gain knowledge. Please leave a comment to let me know what you think about it! Share it to your friends and learn new things together.
Transcript
Desenvolvimento capitalista, trabalho e ciganos: Uma correlação possível?1
Jose Aclecio Dantas2
UFPB
Resumo
Este trabalho trata dos resultados parciais de uma pesquisa bibliográfica de mestrado em
serviço social sobre grupos ciganos, sua perspectiva do trabalho formal e seus incursos
no desenvolvimento sócio metabólico do capital. Nossa analise funda-se no trabalho
enquanto protoforma do ser social e se estrutura na perspectiva crítica do materialismo
histórico dialético – uma teoria social marxista. Tal pesquisa foi motivada pelos
resultados de dois anos de pesquisa de campo entre ciganos do estado da Paraíba. Visando
suprir lacunas existentes na produção acadêmica acerca destes grupos étnicos e as formas
de sua não inserção no mercado de trabalho formal.
Palavras-Chave: Ciganos, Capitalismo, Trabalho.
Capitalist development, Social Issues and Gypsies: A possible relationship?
Abstract
This work deals with the partial results of a literature search master's in social work on
Roma groups, their perspective of formal work and their metabolic incurred in the
development of capital partner. Our analysis is based on work while protoform of the
social structure and the critical perspective of dialectical historical materialism - a Marxist
social theory. This research was motivated by the results of two years of field research
among the state of Paraiba Roma. Seeking to fill gaps in the academic literature about
these ethnic groups and the ways of their integration into the labor market.
Keywords: Roma, Capitalism, Work.
1 Trabalho apresentado na 30ª Reunião Brasileira de Antropologia, realizada entre os dias 03 e 06 de agosto de 2016, João Pessoa/PB. 2 Pedagogo, especialista em coordenação pedagógica e gestão escolar, especialista em educação em e para direitos humanos, Mestrando do programa de Pós graduação em Serviço Social da UFPB, Membro do GEC- Grupo de Estudos Culturais do Centro de Ciências Sociais, Letras e Artes – CCHLA UFPB. E-mail: [email protected]
2
Introdução
O presente artigo visa elucidar alguns possíveis pontos convergentes entre a
questão social nos marcos do desenvolvimento capitalista e a perspectiva cigana, desta
forma étnica, da categoria “trabalho”. De outra forma: existe alguma relação entre o
“Ethos” cigano do trabalho com a questão social numa interpretação a partir do
materialismo histórico dialético? Existe alguma interpenetração entre esses pontos
aparentemente inconciliáveis?
Precisamos indicar que nossa analise funda-se no trabalho enquanto categoria
ontológica do ser social, enquanto protoforma do ser social (Lukács, 2012; Lessa, 2007,
p.67)3 que se estrutura na perspectiva crítica do materialismo histórico dialético – uma
teoria social marxista.
O “opus” humano na base do “homo opus” moderno
“Opus artificem probat”4
A modernidade construída a partir das grandes revoluções ou como denominou
Hobsbawm (2011) a “Era das revoluções” inaugurou diversas transformações no metabolismo
social que promulgaram o futuro e as relações sociais como algo certo e positivo, como algo
necessário e natural. Não obstante a isso, correspondeu diametralmente ao surgimento da
sociabilidade burguesa e seu “modus operandi” e uma tergiversada e totalmente oposta concepção
do trabalho de suas formas precedentes.
A sociedade moderna e sua corolária forma burguesa de desenvolvimento sócio-
metabólico empregou novos e amplos significados a questão do trabalho, não apenas
resignificando seu termo mas imprimindo-lhe outro caráter de viés ideológico processual.
Um processo intencional de desconstrução da imagem negativa do trabalho enquanto
atividade ligada ao fardo, escravidão e pobreza formada durante o processo histórico dos modos
de produção antecessores; de transformação da impressão do trabalho enquanto carga exclusiva
dos despossuídos da terra, de bens, de tudo. Elevando-o ao patamar de “riqueza das nações”
(LOCKE; SMITH).
3Sergio Lessa apresenta em seu texto as ideias centrais da Ontologia do ser social de Luckacs “Novamente
nos confrontamos com o fato de que, para Lukács, o desenvolvimento do trabalho, enquanto categoria
fundante do ser social, dá origem a complexos sociais que são, concomitantemente, fundados pelo trabalho
e dele distintos.” 4 O trabalho é que faz o homem, ou a obra mostra o que cada um é.
3
A sociabilidade burguesa locupletou a impositiva positividade do trabalho, como forma
de introjetar nos trabalhadores em potencial a determinação de disponibilizar sua força de trabalho
para venda como objeto de troca ocultando-lhes premeditadamente as formas, intensidades e
profundidades de seu uso.
Fazendo com que tal introjeção representa-se o pleno envolvimento não só do corpo, mas
também da mente do trabalhador. Formando não apenas o novo trabalho humano, mas o próprio
“homo opus”5 (homem trabalho), ou seja, aquele que se entrega por completo ao processo de
trabalho, no qual o trabalho (emprego, função, exercício) não é apenas uma das instâncias da vida,
mas a única importante, indispensável, e entendida como aquela que dignifica o homem.
O trabalho positivo é uma construção arquétipa da sociabilidade burguesa que se pretendia
alçar ao combate contra todas as formas de “vadiagem”, preguiça e imoralidade; é um simulacro
da positividade original do trabalho que pretendia envolver e assim o conseguiu, o pobre, o
mendigo, o ladrão, no imperativo do trabalho contínuo que contrastava com as formas de trabalho
intermitentes pouco funcionais ao novo sistema implantado pela sociedade burguesa.
Porém, tais concepções: negativa ou “positiva” do trabalho não podem ser completamente
entendidas sem os marcos precípuos da “propriedade privada” que fundou na sociabilidade
humana a exploração, a expropriação e o domínio de alguns sobre os muitos.
O processo de trabalho humano pode ser paralelamente compreendido como o
desenvolvimento do binômio Necessidade/Interesse e os embates em seu desenvolvimento
histórico social.
No reino da necessidade (primórdio humano) o homem depara-se com a natureza como
parte dela, como uma extensão direta dela; porém uma extensão que necessita potencialmente se
distanciar desta, procurando fazer uso de seus recursos como única forma disponível para a
reprodução de sua vida. Assim, a primeira atividade que permite esse salto ontológico é a
produção dos seus meios de vida.
O trabalho no reino da necessidade é a condição universal do metabolismo entre homem
e natureza, é a forma de adequar o natural a necessidade, imprimindo um valor aquilo do qual faz
uso, assim de acordo com Marx (2013, p.255): o trabalho é, antes de tudo, um processo entre o
homem e a natureza, processo este em que o homem, por sua própria ação, medeia, regula e
controla seu metabolismo com a natureza. Processo esse apresentado por Mészáros (2011 p.179)
como as mediações de primeira ordem.
Nesse metabolismo primário com a natureza, não só as formas de seu intercambio vão se
alterando progressivamente estabelecidas pelo reino da necessidade, mas também sua própria
condição total humana vai se locupletando. O homem se transforma enquanto medeia, regula e
5 O uso aqui do termo “homo opus” não refere-se ao passado hominídeo, tais como o “homo habilis, homo
erectus, ou mesmo o homo faber, etc. Mas é uma homologia terminológica do estilo de vida do homem
que predomina dentro do sistema sociometábolico do capital, o “homem trabalho” que se aliena.
4
controla seu metabolismo com a natureza, ou melhor: ao atuar, por meio desse movimento, sobre
a Natureza externa a ele e ao modificá-la, ele modifica, ao mesmo tempo, sua própria natureza
(MARX, 1996, p.297). O homem também tornou-se natureza historicamente transformada.
Nesse metabolismo primário, a satisfação de necessidades dá vazão a novas necessidades
que exigem posturas ativas frentes as novas necessidades surgidas. Como por exemplo: a
produção de meios para sua objetivação; o estabelecimento de relações com outros indivíduos e
um sistema de troca compatíveis com essas novas necessidades requeridas (ANTUNES, 2009,
p.22). Originalmente o trabalho surge como plataforma do ser social (LESSA, 2007, p.67;
LUKÁCS, 2010, p.21; Netto & Braz, 2012, p.49).
Desta forma, o processo de trabalho é definido por MARX (idem, ibidem, p.261) como:
[...] atividade orientada para um fim – a produção de valores de uso – apropriação do elemento natural para a satisfação das necessidades humanas, condição universal do metabolismo entre homem e natureza, perpétua condição natural da vida humana e, por conseguinte, independente de qualquer forma particular dessa vida, ou melhor, comum a todas as suas formas sociais.
É através deste processo de trabalho que o homem com a finalidade de criar os bens
necessários tanto para ele como para os seus consortes pôde modificar a natureza imprimindo-lhe
as formas de seu próprio metabolismo. O trabalho tornou-se condição ineliminável do
intercâmbio homem/natureza (LESSA & TONET, 2008, p.17), e uma capacidade especificamente
humana, .
O trabalho é o processo de produção da base material da sociedade pela transformação da
natureza (idem, ibidem, p. 21). Mas esse processo não se dá aleatoriamente, o homem passa
através do trabalho a se diferenciar da natureza ao passo que articula mentalmente uma finalidade
para o mesmo e utiliza meios para sua concreção;
No processo de trabalho, o metabolismo de transformação da natureza pelo homem
precisa ser mediado por objetos ou instrumentos que possibilitem, facilitem ou mesmo articulem
a concreção da ação humana sobre a natureza; objetos inicialmente naturais que se acrescentava
a seus próprios órgãos naturais com funções diversas diferentes dos naturais (Netto & Braz, 2012,
p. 42).
Os meios de trabalho são também os instrumentos diferenciadores das épocas
econômicas, pois além de fornecer as medidas do grau de desenvolvimento da força de trabalho
em determinado recorte histórico, também indicam as condições sociais nas quais os homens
objetivam seu metabolismo com a natureza (MARX, 2013, p. 257)
O processo ontológico estava fazendo-se completo, em primeiro lugar uma atividade
orientada a um fim (teleologia), em segundo lugar seu objeto (a natureza) e, em terceiro, seus
meios (naturais ou resultados de trabalhos já objetivados). O trabalho assim implica um
5
movimento indissociável realizado em dois planos: o plano subjetivo (trabalho orientado para um
fim, a teleologia, ou “prévia ideação” nas palavras de Lukács); e o plano objetivo (transformação
da natureza). Surgindo assim uma primaria distinção entre o sujeito e o objeto.
O trabalho é uma categoria indispensável para a compreensão do desenvolvimento
econômico da sociedade tal como na preensão dos modos de ser dos homens dentro de sua
sociedade.
Para objetivação de sua própria humanidade através do trabalho o homem precisa sentir
uma necessidade qualquer que o estimule a ação (desde as necessidades fisiológicas naturais,
quanto as de ordem prático social); ter o objeto a ser trabalhado (natural ou já objetivado como
trabalho morto) e conhece-lo para que nela possa intervir; dispor dos meios necessários a sua
consecução fazendo suas próprias escolhas ao avaliar se um objeto é útil ou bom para determinada
finalidade, e projetar no nível do pensamento o fim desejado para que possa ser objetivada,
enquanto resultado concreto; mas precisa também construir as relações sociais necessárias a tais
produções.
Nesta última, Portanto, o trabalho exige que o homem se comunique com outros homens,
que estabeleça interações entre “os homens, a natureza e os próprios homens”. Configurando o
caráter social da produção material dos homens. Esse processo de trabalho é auto realizador das
potencialidades humanas nas relações reciprocas de sua sociabilidade. Para Netto & Braz (2012,
p.68)
As atividades de seus membros eram comuns (a coleta, a caça, a pesca), seus
resultados eram partilhados por todos e não havia propriedade privada de
nenhum bem. Nesse comunismo primitivo, em que imperava a igualdade
resultante da carência generalizada e a distribuição praticamente equitativa do
pouco que se produzia, a diferenciação social era mínima: não mais que uma
repartição de atividades entre homens [...] e mulheres [...].
Não é demais lembrar que neste interim o homem ainda tinha o domínio e controle de
todos as fases, meios e condições de produção dos seus próprios meios de vida e satisfação de
suas necessidades individuais, mas principalmente coletivas na forma de comunidades primitivas,
o que foi alterado paulatinamente com o advento do excedente6 e da “posse.
Ao se dividir o mundo dos viventes entre dominados e dominantes, expropriados e
expropriantes, explorados e exploradores, a sociabilidade humana e o desenvolvimento sócio-
metabólico da humanidade são engendrados com a nova e degradante divisão da sociedade em
6 Com o surgimento da domesticação de animais e da agricultura em algumas sociedades mais
desenvolvidas, permitiu-se produzir mais do que era a necessidade imediata, o que estabeleceu rapidamente
a acumulação dos excedentes produtivos, que concentrados em determinadas possessões individuais
abriram a alternativa de explorar o trabalho humano alheio, dividindo a sociedade em classes.
Conforme Netto & Braz (2012, p.69)
6
classes, que além de enraizar os processos de desumanização, estabeleceram alguns dos
pressupostos mais contundentes para a fundação histórica da sociabilidade burguesa: o conflito
de classes.
O reino da necessidade e seu desenvolvimento começa a ser mexido e alterado
sistematicamente com o advento do reino do interesse individual e as formas de exploração,
expropriação e controle do homem pelo homem que ladeiam as formas dos modos de produção
pré-capitalistas e que alcançam seu potencial desenvolvimentista com a sociabilidade burguesa.
O reino do interesse individual é o reino da sociedade dividida em classes, que estabelece
a partir dessa premissa que muitos vão trabalhar enquanto poucos vão usufruir das riquezas
produzidas pelo trabalho alheio. E do qual o sistema sócio-metabólico do capital é a expressão
mais barbarizante desta relação desigual e combinada.
O desenvolvimento do movimento do capital
De certo é mister deixar claro uma relativa diferença categorial entre capital e
capitalismo na forma da possibilidade da existência real do capital sem o capitalismo,
antes já ocorrido na figura do capital comercial pré-capitalista (MARX, 1996, p.29) , mas
não concebível em seu movimento oposto, ou seja, não pode existir capitalismo sem
capital, o que não podemos inferir disto que a solução para o fim do capitalismo passaria
exclusivamente pela extinção direta e completa do capital enquanto objeto fim, pois a
dissolução do sistema sócio metabólico do capital é objetivado diretamente pelo nível dos
embates no antagonismo entre capital e trabalho, só dele podendo resultar e que envolvem
outras mediações como a questão estatal e relações internacionais, como por exemplo.
Destarte é salutar lembrar que essa afirmativa – do capital sem capitalismo – em
nada coaduna com a falácia pós moderna do capitalismo sem capital do qual o
conhecimento é um capital humano que não se pode desapropriar; uma fonte de valor e
um capital sem produção material.
O capitalismo é por excelência o sistema do desenvolvimento sociometabólico do
valor de troca, no qual a mercadoria se funda, se consolida, expande-se e a todos domina
(MÉSZÁROS, 2011, p.67). O capitalismo é o reino do capital.
Se desenvolveu no espaço e no tempo gerido por seu movimento incontrolável de
expansão do mais valor, por um desejo imanente de acumulação, centralização e expansão
que dele não pode se desvencilhar. O capital não nasceu para ficar parado, nasceu para
crescer e só pode manter um desenvolvimento relativamente estável, na perpetuação de
7
uma “mais expansão” do lucro, num movimento constante ascendente de acumulação,
expansão e centralização que tem efeitos profundos tanto nas relações sociais como na
relação homem/natureza.
No entanto o mesmo movimento de acumulação que promove sua expansão
apresenta seus efeitos colaterais, mais uma contradição. A acumulação que estimula o
crescimento (expansão) torna-se no perímetro de seu movimento o ensejo de suas crises
de reprodução no bojo da incontrolabilidade de sua produção, e não somente por isso,
mas também pela concorrência intercapitalista, com a consequente queda tendencial da
taxa de lucro, o subconsumo de massa, ou, ainda, podem ser potenciadas por algum
incidente econômico ou geopolítico (MOTA, 2009, p.3).
As crises expressam um desequilíbrio entre a produção e o consumo (Idem,
ibidem, p.2). Crises, que por sua vez, estimulam a reestruturação produtiva por via da
evolução técnica, criação de novas necessidades e a eliminação dos parques fabris mais
fracos (centralização), etc., mexendo em toda a vida social. Assim, amplas e mais
potenciadas transformações societárias são também subproduto direto do ciclo do capital.
Mas essas profundas transformações societárias vinculadas as mudanças no mundo do
trabalho, causadas pela revolução cientifica e técnica potenciada pela “revolução
informacional e pelos avanços da microeletrônica, etc. Redesenharam também o perfil
do próprio capitalismo contemporâneo (NETTO, 2012, p.416).
Desenvolvimento e crise, são laços dialéticos do capital que se complementam e
se antagonizam diametralmente proporcionais as suas outras contradições :fartura e
escassez, liberdade e exploração, emancipação e alienação, desenvolvimento humano e
barbárie, crescimento e desigualdade. As crises servem para “racionalizar as
irracionalidades do capitalismo e levam a novas formas de poder de classe” (HARVEY,
2011, p.18).
O processo de reestruturação produtiva alavancada pela crise que se consolidou a
partir da década de 1970 decretando a falência porém não total extinção do modelo
fordista keynesiano e abertura produtiva para novos tempos alicerçados na flexibilização
da produção, do homem e do conjunto das esferas societárias (MOTA, 2009, p.14) foram
processos esses que engendraram as transformações de tal monta no mundo do trabalho
(ANTUNES, 2009) e a diametralmente proporcional mutação daqueles que concretizam
o trabalho, que converteram a estrutura social numa esfera rotativa de transformações
constantes e retroalimentadas. No qual tudo se modifica dialeticamente e tornam-se ao
mesmo tempo agente e recipiente das transformações efetuadas por seu movimento.
8
A crise do sistema sócio-metabólico do capital principalmente nos preâmbulos
dos trinta anos miseráveis7 1970 – 1990, instituíram no cerne da sociedade
transformações orgânicas (NETTO, 2012) que demudaram toda a formação social,
econômica e cultural da sociedade contemporânea, a partir das próprias transformações
incutidas nas relações de produção e meios de produção no desenvolvimento das forças
produtivas da sociedade.
Nascido enquanto opção revolucionária para o nivelamento igualitário da
sociedade de então: feudal, absolutista e estamental, do qual o vassalo estava condenado
eternamente ao trabalho servil e o agricultor ligado eternamente a terra. O sistema
sociometabólico do capital se desenvolveu no espaço e no tempo às custas da
expropriação, pilhagem, exploração, escravização, desigualdade na repartição da
produção social, barbarização da vida e principalmente do aviltamento das condições de
vida e reprodução do trabalhador e sua família promovido pela intensificação da
exploração do trabalho pelo capital, que tornou-se a motricidade da “questão social”.
A “questão social” tem suas conexões genéticas nos processos de industrialização
da sociedade burguesa, é movida pela necessidade imanente de expansão da acumulação
capitalista que gestou uma ampla classe operária urbana, tornou-se a questão do
empobrecimento da classe trabalhadora, através da escassez de postos de trabalho
disponíveis para os trabalhadores expulsos do processo produtivo, pelo desenvolvimento
técnico-científico de um maquinário que sobre o discurso da ampliação produtiva,
promovida pelo avanço tecnológico, gestou no seio da sociedade do trabalho uma
insalubridade social de reprodução da vida, forçando a inserção de todo núcleo familiar
– mulheres e crianças - no processo de produção no chão de fábrica para permitir um
mínimo de sobrevida, que não era mais possível se adquirir só com o extenso trabalho do
homem, provedor do lar.
Para Alves (2014, p.41):
A Questão Social surgiu nos primórdios do capitalismo industrial no
século XIX com a classe trabalhadora sendo alienada dos produtos de
consumo da civilização capitalista emergente. Naquela época histórica,
os trabalhadores assalariados não eram sujeitos de direitos.
7 Uma alusão aos “trintas anos perversos” (1980-2010) de Giovani Alves (2014, p.12)
9
A unívoca e indissociável “questão social” é uma categoria que tem sua
especificidade definida no âmbito do modo de produção do sistema sócio-metabólico do
capital e dos conflitos do antagonismo de classe da relação capital/trabalho.
A lei absoluta geral de acumulação capitalista se objetifica através da exploração,
expropriação e degradação do trabalho e do homem enquanto agente físico que dispende
energia mecânica em sua relação com a transformação da natureza, fetichizando-o e
alienando-o.
A pauperização – expressão latente das condições de trabalho e vida da classe-
que-vive-do-trabalho, tornou-se a “questão social” só com a organização dos
trabalhadores e sua inserção enquanto sujeito político na correlação de forças dos embates
do antagonismo entre capital e trabalho, dominantes e dominados, exploradores e
explorados, expondo as reais e concretas condições degradantes de trabalho e vida.
Negando-se a desfalecência completa e exigindo inicialmente um mínimo social para
reprodução e manutenção da vida.
Esse processo de concessão de mínimos sociais ou recuo estratégico dos níveis de
exploração, no desenvolvimento das relações sociais antagônicas no decorrer da história
moderna, se mostraram eficientes na temporária passivização dos revoltosos. O
movimento centrífugo das concessões do capital ao trabalho quando da intensificação dos
embates mostravam as reivindicações dos movimentos como ameaça a ordem
estabelecida, como exemplifica (BRESCIANI,1989, p.56) pois: “bárbara e selvagem
constitui a condição das classes pobres e viciosas: ameaça social indica o sentido da
deterioração de suas condições de vida” (grifo nosso).
A “questão social” é a questão do conflito capital/trabalho nos processos
relacionais e correlações de forças dos três componentes entrelaçados do sistema orgânico
do capital – capital, trabalho e Estado8.
Segundo Marx (apud SANTOS, 2012, p.432):
[...] a explicação para a pauperização acentuada que dá o mote para as
lutas sociais reside na relação entre capital e trabalho regida segundo a
lei geral da acumulação, em que a população de trabalhadores “livres”
é sempre superior as necessidades médias de expansão do capital.
Grosso modo, a “questão social” é resultado no movimento de reprodução do
capital dos conflitos entre capital/trabalho que de acordo com as novas conjunturas em
8 “o sistema do capital tem três pilares interligados: capital, trabalho e Estado. Nenhum deles pode ser
eliminado por conta própria” ( MESZAROS, 2015,p.29)
10
quadras históricas diferentes vão adquirindo novas expressões ou novos fluxos e contra
fluxos nos embates societários das classes que representam o trabalho e o capital.
Como brilhantemente definida por Iamamoto e Carvalho (1983, p.77):
A questão social não é senão as expressões do processo de formação e
desenvolvimento da classe operária e de seu ingresso no cenário
político da sociedade, exigindo seu reconhecimento como classe por
parte do empresariado e do Estado. É a manifestação, no cotidiano da
vida social, da contradição entre o proletariado e a burguesia, a qual
passa a exigir outros tipos de intervenção mais além da caridade e
repressão.
Para Santos (2012b, p.133):
[...] devemos nos esforçar, como categoria, para apontar as
características e "formas de ser" de cada expressão da "questão social"
enquanto fenômeno singular e, ao mesmo tempo, universal, cujo
fundamento comum é dado pela centralidade do trabalho na
constituição da vida social.
Os embates da relação antagônica entre capital e trabalho no desenvolvimento
sócio-metabólico do capital, caracterizam a questão social no plano da universalidade, e
as diferenças históricas no nível das mediações conjunturais das esferas políticas,
culturais, econômicas e sociais da realidade concreta em determinada quadra histórica
delimitam as características particulares das múltiplas expressões da “questão social”, que
conforme Santos (2012a , p. 433):
A relação antagônica entre o capital e trabalho, por exemplo – que
compõe o nível da universalidade. Há que acrescentar a esse nível a
singularidade dos componentes dessa sociedade enquanto formação
social concreta, para que se tenha condições de dimensionar suas
particularidades enquanto mediações centrais das expressões da
“questão social”.
Desemprego, desestabilização, precarização, terceirização, são incursos das
contradições imanentes entre o trabalho e o capital, que vão se alterando, ganhando ou
perdendo poder de influência nas transformações do social de acordo com as constantes
correlações de forças.
11
Perspectiva de si e visão alheia.
É salutar na direção de uma maior compreensão epistemológica de nosso objeto
aqui estudado – a perspectiva cigana do trabalho formal – anteceder tal arcabouço com a
exposição da diferença categorial ou mesmo o hiato explicativo existente entre aquilo que
os ciganos pensam de si e a construção imagética estereotipada , rotulante, limitada e
essencialmente equivocada que o não cigano – gajão – adquire, arquiteta e reproduz
quanto ao cigano e as suas forças de reproduzir a vida.
De forma alguma querendo tecer de forma ampla e completa os nexos causais de
tal diferenciação, mas procurando clarificar inicialmente que tal monta precisa se
constituir enquanto fato precípuo, pois deste pode-se diferir interpretações
completamente diferentes, opostas e até mesmo antagônicas de tal perspectiva.
Uma coisa é o ponto de vista do cigano sobre as formas de suas objetivações
no trabalho, outra são as concepções que se construíram a esse seu respeito. Concepções
que além de suas próprias cargas históricas são estabelecidas a partir do olhar de um
observador quase sempre externo e carregado por processos culturais assimilados de
segregação estabelecidos antes mesmo do contato e conhecimento do outro, o que releva
chamar-se “pré” conceito e que por si só já é critério de diferenciação. Um rito continuo
de choque de culturas.
Nesse âmbito procuramos alocar de forma categorial as locuções exibidas dos não
ciganos daquelas apresentadas pelos próprios ciganos, procurando estabelecer os pontos
de similitudes e diferenças entre tais perspectivas e ou pontos de vistas.
Importante também discorrer sobre os limites das análises aqui pretendidas,
mesmo que em sucessivas aproximações do abstrato para com o real, o nosso ponto de
partida sempre será aquela visão de um não cigano para com uma cultura rica, diferente
e cheia de intra significados que são instrumentos de sua própria pertença. Que só eles
podem “sentir na pele”. Repetidas vezes é a história dos ciganos contada por um não
cigano, neste caso o ponto de vista do cigano analisada a partir do ponto de vista de um
não cigano.
12
Os ciganos no desenvolvimento sociometabólico do capital.
Vivemos em plena era pós-moderna, circundados por uma onda longa midiática
de informações instantâneas via ciberespaço, que ligam, conectam e convergem
simultaneamente mundos subjetivos diferentes permitindo uma interação social
atemporal e desterritorializada que amplia os sentidos e os instintos, trazendo um teor que
em sua aparência induz os indivíduos conectados a uma certeza superficialmente
inequívoca da compreensão dos eventos e fenômenos concretos.
E mesmo assim ainda há no Brasil, como em outras partes do mundo, um
imaginário popular sobre os ciganos, ilustrados pejorativamente através de personagens
míticos, caricaturados e estereotipados como o viajante, a dançarina, o festeiro, o
encantador de donzelas ou o morador de carroças, que não condiz com a total realidade
das etnias ciganas.
Tais equívocos são propriamente corolários de outros de tal monta porém menos
recentes, como os apresentados em 1854 no romance de Manuel Antônio de Almeida
(2011, p.42):
Com os emigrados de Portugal veio também para o Brasil a praga dos ciganos.
Gente ociosa e de poucos escrúpulos, ganharam eles aqui reputação bem
merecida dos mais refinados velhacos: ninguém que tivesse juízo se metia com
eles em negócio, porque tinha certeza de levar carolo. A poesia de seus
costumes e de suas crenças, de que muito se fala, deixaram-na da outra banda
do oceano; para cá só trouxeram maus hábitos, esperteza e velhacaria, e se não,
o nosso Leonardo pode dizer alguma coisa a respeito. Viviam em quase
completa ociosidade.
Trata-se de dimensões ou projeções imagéticas que tentam incutir uma displasia
étnico-cultural, que não converge com a realidade vivida pelos ciganos no mundo
contemporâneo (DANTAS e GOLDFARB, 2015).
Vale aqui ressaltar que entre os séculos XIX e início do XX no Brasil (época de
tal romance), ancorados no empreendimento colonial expropriador e do seu trabalho
compulsório que formataram uma degradação da condição e imagem do homem livre,
neste, quem não estivesse na condição de escravo ou senhor, e dessa forma não passados
pela “escola do trabalho” eram considerados também enquanto vadios, inaptos,
imprestáveis, e outros adjetivos semelhantes (KOWARICK, 1994, p.43)
Assim, o homem “branco”, “caucasiano” e conquistador transfigurado no
individuo burguês, fundado num modelo eurocentrista, vai servindo como modelo ideal
de “ser humano”, de acordo com seus valores, cultura, aparência, suas concepções e
13
ideologias, tentando “aniquilar pelo alinhamento a heterogeneidade cultural existente”
(LÉVI-STRAUSS, 1976), hierarquizando os conceitos dualistas de certo e errado, bonito
e feio, desenvolvido e atrasado, moderno e retrógrado, normal e estranho, diferente e
similar a partir de si e de seus próprios paradigmas.
Heterogeneidade é a palavra que expressa um dos maiores valores da cultura
cigana, pois os mais variados grupos ou comunidades ciganas vivem em diferentes
territórios, com valores, crenças, costumes, renda e formas de vida nem sempre
semelhantes (DANTAS e GOLDFARB, 2013).
Os ciganos se subdividem em várias ramificações, do qual as principais são: Os
Calons, Os Roms, e os Kalderash.
Para uma apreensão ampliada da relação cigano/desenvolvimento capitalista é
salutar compreender que os ciganos são grupos étnicos, que por variadas razões
encontram-se em diferentes países forçados pela necessidade de sobrevivência e aceitação
social; hoje em dia, a grande maioria da população cigana tornou-se semi-sedentária ou
sedentária.
Assim enquanto em sua maioria os “Calons” aportaram no Brasil na segunda
metade do século XVI, através da política de degredo, que trazia levas de povos
considerados “indesejados” ao país, atendendo assim aos interesses de colonização de
Portugal (GOLDFARB, 2013), e sofrendo os influxos diretos das estratégias de expansão
do capital nos moldes da reedição de formas pré-capitalistas de exploração, expropriação
e expansão do domínio. Os “Rom” chegaram ao Brasil a partir do final do século XIX,
exatamente no período de formação da força de trabalho proletarizada industrial que
rotulava a figura nacional como "vadio", optando pelos estrangeiros e ou ex-escravos que
passaram pela escola do trabalho (KOWARICK, 1994, p.13); período pós libertação
arquitetada dos escravos e início do processo de industrialização de nosso capitalismo
tardio que contrastava com a fase imperialista do capitalismo central, e a urbanização
acelerada dos espaços sociais e dinamização dos espaços metropolitanos.
É certo que alguns traços performáticos são reconhecidos pelo senso comum como
constituintes dos grupos ciganos, que a despeito de todas as tentativas de etnocídio ou
assimilação registradas no decorrer dos séculos, permanecem vivendo enquanto grupos
étnicos distintos, isto é, um coletivo que elabora suas especificidades culturais e organiza-
se através de fronteiras interétnicas. (BARTH, 1998).
É necessário reafirmar que os ciganos são formados por uma vasta
heterogeneidade, pois são grupos que se distinguem com relação às atividades
14
econômicas, a procedência ou lugar de origem e a moradia atual, o que forma um grande
mosaico étnico.
Mesmo que não se possa perceber à primeira vista dos fatos, mas os ciganos
tornaram-se também legatários dos incursos do processo de desenvolvimento do sistema
sócio metabólico do capital sofrendo seus influxos negativos não propriamente pela
reverberação consequencial dos resultados diretos da correlação de força classista entre
capital e trabalho, mas, tendencialmente por causa do conjunto de suas especificidades
culturais que se foram moldando com o evolver generalizante das estratégias de
acumulação do capital em sua lei geral, proletarização da população livre e despossuída,
homogeneização populacional e expansão da visão de mundo do capital e seu Ethos
humano.
No entanto, quais as possibilidades reais de tais premissas seres verdadeiras
quando a consciência coletiva é introspectiva aparentemente não voltada para a
universalidade? Quando o poder de influência numérica inexiste e o fluxo e mobilidade
determinam a predominância do tipo de produção e relação econômica? Quando as
formas de reprodução da vida e os níveis de concepção da categoria trabalho divergem
da sociedade corrente? Onde formas pré-capitalista de produção ladeiam formatos tanto
flexíveis como precarizados de relações trabalhistas formais e informais ou mesmo
quando as relações sociais estabelecidas extra grupal obedecem à barreiras condicionais
historicamente determinadas pelos níveis de insucesso do passado.
Não, que essas determinações da realidade étnica sejam positivas ou negativas em
si mesmas, porém repousam sobre si significados que são dualizados em seu grau de
importância, ou seja, enquanto para uma macro sociedade delineadora, normatizante,
monolítica e rotulante fundada na ideologia social dominante da posse podem refletir uma
ausência de desenvolvimento “humano” e “social”, e que não se confunda aqui o termo
“comunidade tradicional” enquanto sociedade “atrasada”; para os ciganos são reflexos
concretos de um “Ethos” que lhes é próprio e lhes tem todo um significado endógeno; é
sua visão construída de mundo.
Que segundo Ferrari (2011, p. 731):
A aversão à ideia de submissão evidencia-se etnograficamente nas concepções
calon de trabalho. Os Calon que conheci jamais se empregam. A ideia de se
sujeitar a alguém, ainda mais um gadjo, com carga horária fixa, é
completamente alheia ao modo de vida do homem e da mulher calon. Em Santa
Fé do Sul, onde em 2001 vivia uma rede de parentes de cerca de 100 pessoas,
morando em casas, uma velha calin usava a noção de “trabalho” para definir
15
um “não calon”, em oposição à noção de “viagem”, que definia o calon. Eu
perguntava sobre a genealogia dos ciganos da cidade, procurando saber quem
havia se casado com não ciganos: “E fulano, é cigano?”, “Não. Fulano
trabalha. Ele não viaja”. O que define um calon é como ele vive: se “trabalha”,
não é calon. “Trabalhar”, nesse contexto, não tem o sentido de uma atividade
que envolve esforço físico e mental para obter um produto, significa
especificamente um “emprego assalariado”, ocupando uma posição
subordinada, submetida a um horário fixo[...] Depois de “fazer um dinheiro”,
retornam às suas casas na cidade. Isto é o que fazem os Calon.
São essas, singularidades que dadas suas importâncias no conjunto do corpo étnico
representam principalmente que os ciganos fizeram sua história em uma continua ação
recíproca com os homens e as condições no fluxo de suas similitudes e de seus
antagonismos, e isso não se deu arbitrariamente em condições escolhidas por eles, mas
em condições que tanto foram dadas como herdadas por eles (FRIEDMANN, 1979,
p.140). São reflexos de uma universalidade que mesmo inconsciente a sua compreensão
imediata estão nela incutidas e delas não se pode abstrair.
As próprias transformações societárias erigidas e fomentadas pela necessidade
imanente de expansão do capital em seu desenvolvimento sócio-metabólico,
estabeleceram muito dessas condições em suas relações sociais, econômicas, culturais e
espirituais9 como ação recíproca, no qual o homem é transformado e exerce
transformação também na realidade.
Como “não é a consciência dos homens que determina o seu ser, mas, ao contrário,
é o seu ser social que determina sua consciência” (MARX, 1982, p.25) e como também
“não há nenhum fenômeno que não possa, em certas condições, transformar-se em
seu contrário”, (LENIN apud CHEPTULIN , p.328). Essas singularidades étnicas
constituem uma unidade indissolúvel em seu movimento com a universalidade, ou seja,
não é conceptível a possibilidade de existência de um movimento autônomo da
singularidade, tendo em vista a singularidade só possa existir na ligação que a conduz ao
universal (LUKÁCS, 1978, p. 6).
Desta forma, qual movimento do universal (universalidade) estabelece-se
enquanto ponto de convergência do desenvolvimento sócio-metabólico do capital e seus
influxos e algumas singularidades étnicas ciganas? Os meios de produção e reprodução
da vida e seus corolários.
Pois para Gramsci (2011, p. 34) : “quanto mais um indivíduo é obrigado a
defender a própria existência física imediata, tanto mais afirma e se coloca do
9 O termo é usado aqui não em seu sentido religioso, mas representando o plano das ideias.
16
ponto de vista de todos os complexos e mais elevados valores da civilização e da
humanidade”. Ou seja, enquanto o cigano lutava pela vida no plano da singularidade
estava diametralmente se colocando enquanto sujeito coletivo, sujeito de luta, sujeito que
reconhecia nessa sua individualidade um bem coletivo; ele lutava por uma humanidade
que não era só sua, como lutou e luta contra uma desumanização que não é partidário.
Porém, toda singularidade (aqui étnica) em seu movimento com a universalidade
(gênero) que se prioriza, precisa ser mediatizada pelas particularidades que lhes dão
sentido diretivo, ou melhor, pelo conjunto de determinações particulares que ligam umas
às outras dando-lhes sentido no processo de alcance das essências do real.
O que corresponde dizer que na citação de Florência Ferrari anteriormente
apresentada o real sentido do termo desta singularidade: “cigano não trabalha”; só pode
ser compreendida em sua totalidade quando consideramos a mediatização das
particularidades conjunturais daquela expressão: a época histórica, o desenvolvimento
das forças produtivas locais, os níveis da formação do mercado de trabalho local, a origem
do grupo, o nomadismo e o sedentarismo, entre outras.
Assim enquanto para um determinado grupo pode ser um termo axiomático
absoluto, para outros pode ter caráter relativo, como observado na comunidade cigana
Calon de Souza-PB, que tem uma relação mais aproximada (porém não pouco
problematizada pelos estereótipos e ausência de postos) com o trabalho formalizado e o
funcionalismo público, sem maiores perdas de sua psicologia étnica.
Dois pressupostos são a base de nossas argumentações, primeiro que a ação
reciproca dos ciganos com o sistema sócio metabólico do capital do qual, mesmo que em
muitos casos não tenha sido dada de forma direta na relação cigano/capital objetivada na
categoria do trabalho formal alienado, se efetivou indiretamente estabelecida na relação
entre cigano/proletários e pequena burguesia desde o suprimento de serviços básicos até
a prestação de trabalhos intermitentes, precarizados e degradantes. O movimento
reciproco desta relação atuou enquanto mediania entre a universalidade do trabalho
formal alienado e a perspectiva cigana deste trabalho formal.
O segundo pressuposto repousa no fato que mesmo não tendo consciência do grau
e nível de subsunção de suas vidas ao capital10 (TONET, 2013, p.16) , seu “Ethos” étnico,
principalmente aqueles voltados a questão da reprodução, produção da vida e suas
10 Referindo-se aos indivíduos singulares “Ao realizarem as suas ações, eles estão expressando, quer de
modo consciente ou não consciente, interesses que os ultrapassam como indivíduos e que são os interesses
das classes sociais.”
17
atividades econômicas estabeleceram vínculos funcionais ao sistema sócio metabólico do
capital tanto em menor grau ao ajudar a garantir o equilíbrio nos processos de circulação
do capital através do consumo como em garantir os níveis da mão de obra excedente
flutuante tão necessários a manutenção do valor trabalho em níveis sempre mínimos e o
paralelo controle das sublevações proletárias .
E mesmo que doravante a relação dos ciganos com o desenvolvimento do sistema
sócio metabólico do capital não pudesse ser destrinçada analiticamente pelo viés da
categoria trabalho por sua não inserção constante no mercado de trabalho formal, porque
não se pode dizer que não há um considerável nível de absorção do mercado de trabalho
e funcionalismo público para com os ciganos. Poderia ser desenvolvida pela
particularidade do trabalho informal, precarizado, ou mesmo, pela perspectiva do “não
trabalho” formal que é uma forma antagonizada e ao mesmo tempo indissociável da
categoria trabalho.
Como na dialética está estabelecida a impossibilidade de se conceber uma análise
consistente de um objeto sem o movimento dos contrários, sem a unidade na diversidade,
existe uma passagem reciproca entre a categoria trabalho e a sua negação o “não trabalho”
, ambos se explicam mutualmente e não podem existir uma sem a outra. Esses contrários
caracterizam uma única e mesma formação, uma única e mesma essência (CHEPTULIN,
1982, p.287).
Considerações finais
Desta forma compreendemos que o estudo de algumas singularidades étnicas
cigana, como sua visão de mundo diferenciada sobre as relações do trabalho formal
podem ser articuladas dentro do desenvolvimento sócio metabólico do capital com o
próprio movimento dos conflitos do antagonismo capital/trabalho nos processos
históricos da lei geral de acumulação capitalista. E que fazer uso das premissas de uma
singularidade principalmente étnica não descredencia as análises críticas que procuram ir
além das aparências dos fenômenos em direção a essência dos fatos, se as mesmas servem
de ponto de partida rumo as causas primeiras, em aproximações cada vez intensificadas
entre as abstrações e o concreto real.
Pelo conceito cigano do trabalho formal e todos os seus interstícios e respeitado
algumas de suas diferenças intergrupais, podemos concluir que esta também é uma
18
construção humana a partir do conjunto de ações recíprocas de similitudes e antagonismos
entre a sociedade do capital, as conjunturas histórico sociais e as relações de produção e
reprodução da vida desta comunidade tradicional.
Este artigo procurou mostrar que tal relação é possível, mesmo que não tenha
explanado suficientemente o desenvolvimento das premissas e o conjunto de mediações
que permitem tal relação, pela limitação argumentativa possível em um texto de tal
natureza e o andamento das pesquisas que continuam em estágios iniciais.
Referências
ALVES, Giovanni. Trabalho e neodesenvolvimentismo: Choque de capitalismo e nova
degradação do trabalho no Brasil. Bauru: Canal 6, 2014.
ALMEIDA, Manuel Antônio de. Memórias de um sargento de milícias. Brasília:
Câmara dos Deputados, Edições Câmara, 2011.
ANTUNES. Ricardo. Os sentidos do trabalho: ensaio sobre a afirmação e negação do
trabalho. São Paulo: Boitempo, 2009.
BARTH, F. Grupos Étnicos e suas Fronteiras. In:POUTGNAT, P & FENART-STREIFF,
J.Teorias da Etnicidade. São Paulo: Difel, 1998
BRESCIANI, Maria Stella Martins. Londre e Paris do século XIX : o espetáculo da
pobreza. São Paulo: Brasiliense, 5ª ed. 1989.
CHEPTULIN, Alexandre. A dialética materialista: Categorias e Leis da Dialética.
Tradução Leda Rita Cintra Ferraz. São Paulo: Alfa-omega, 1982.
DANTAS, José Aclecio; GOLDFARB, Maria Patrícia Lopes. Mapeamento da
população cigana em juazeirinho-PB. Anais da III Semana de Antropologia do
PPGA/UFPB, 2013 [recurso eletrônico]: O Ofício do Antropólogo. João Pessoa:
Ideia Editora, 2013, pp. 63-67. ISSN: 2318 – 6399.
______. As Representações sociais dos ciganos na internet. Anais da V REA –
Reunião Equatorial d Antropologia e XIV ABANNE – Reunião de antropólogos do
norte e nordeste, 2015 [recurso eletrônico]: Direitos diferenciados, conflitos e produção
do conhecimento. Maceió: 2015.
FERRARI, Florencia .Figura e fundo no pensamento cigano contra o Estado. Revista
de antropologia, São Paulo, usp, 2011, v. 54 nº 2.
FRIEDMANN, Georges. Materialismo dialético e ação recíproca. In: THALHEIMER,
August. Introdução ao materialismo dialético. São Paulo: Ciências humanas, 1979. p.
127-152.
19
GOLDFARB, Maria Patrícia Lopes. Memória e Etnicidade entre os Ciganos Calon
em Sousa-PB. João Pessoa: Editora Universitária da UFPB, 2013. (Coleção
Humanidades).
GRAMSCI, Antonio. Cadernos do cárcere — v. 3. Maquiavel. Notas sobre o Estado e
a política. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2011.
HARVEY, David, 1935‑O enigma do capital : e as crises do capitalismo. tradução de
João Alexandre Peschanski. São Paulo, SP : Boitempo , 2011.
HOBSBAWM, Eric. J. A Era das Revoluções: 1789-1848. 25ª Edição rev. Trad. Maria Tereza Teixeira & Marcos Penchel. São Paulo: Paz e Terra, 2011.
IAMAMOTO, Marilda Vilela; CARVALHO, Raul. Relações Sociais e Serviço Social
no Brasil: esboço de uma interpretação histórico-metodológica. São Paulo, Cortez,
1983.
KOWARICK , Lúcio. Trabalho e Vadiagem: A origem do trabalho livre no Brasil.
Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1994.
LESSA, Sérgio. Para compreender a ontologia de Lukács . 3. ed. rev. e ampl. - Ijuí:
Ed. Unijuí, 2007.
LESSA, Sérgio; TONET, Ivo. Introdução à filosofia de Marx. São Paulo: Expressão
Popular, 2008
LÉVI-STRAUSS, C. “Raça e História” in: Antropologia Estrutural II. Rio de Janeiro:
Tempo Brasileiro, 1976, capítulo XVIII, pp 328-366
LUKÁCS, György. Para uma antologia do ser social I. São Paulo: Boi tempo, 2012.
______. Introdução a uma Estética Marxista: Sobre a Categoria da Particularidade.
Tradução de Carlos Nelson Coutinho e Leandro Konder. São Paulo: civilização
brasileira, 1978.
MARX, Karl. (1867). O Capital: crítica da Economia Política. Vol. I, T 1, São Paulo:
Abril Cultural, 1996 (coleção os Economistas).
______. Para a crítica da economia política. Salário, preço e lucro. O rendimento e suas
fontes. S. Paulo: Abril Cultural, col. "Os economistas", 1982.
MÉSZÁROS, István. Para além do capital: rumo a uma teoria da transição. Tradução
Paulo Cezar Castanheira, Sérgio Lessa. - 1.ed. revista. - São Paulo: Boitempo, 2011.
______. A montanha que devemos conquistar: reflexões acerca do Estado. Tradução
Maria Izabel Lagoa. São Paulo: Boitempo, 2015.
MOTA, Ana Elizabete. Crise contemporânea e as transformações na produção capitalista.
In: Curso de Especialização: direitos sociais e competências profissionais –
UNB/CEFESS/ABEPSS. Brasília, 2009.
20
NETTO, José Paulo. Crise do capital e consequências societárias. Serv. Soc. Soc., São
Paulo , n. 111, p. 413-429, Setembro, 2012 . disponível em
NETTO, José Paulo & BRAZ, Marcelo. Economia Política: uma introdução crítica. 8ª Edição. Biblioteca básica de Serviço Social; vol. 1. São Paulo: Cortez, 2012.
SANTOS, Josiane Soares. Particularidades da “questão social” no Brasil: mediações para
seu debate na “era” Lula da Silva. IN: Revista Serviço Social e Sociedade
, São Paulo, n. 111, p. 430-449, jul./set. 2012a
______. Questão social particularidades no Brasil. São Paulo: Cortez, 2012b
TONET, Ivo. Método científico: uma abordagem ontológica. São Paulo: Instituto