1 Cultura Escolar, Religião e Literatura – Percepção do discurso de formação religiosa na obra de James Joyce. Autor: Léo Antonio Perrucho Mittaraquis 1 Eixo: Educação, Cultura e Religião. RESUMO Este artigo é resultado de análise dos dados coletados mediante pesquisa em andamento com a aplicação da perspectiva conceitual do romance de formação, ou, Bildungsroman, gênero no qual se insere a obra de James Joyce: “Retrato do artista quando jovem”. Este projeto de pesquisa está vinculado ao Grupo de Estudos de História da Educação: intelectuais da educação, instituições educativas e práticas escolares do Núcleo de Pós-Graduação da Universidade Federal de Sergipe. A produção deste texto se baseou nos três primeiros capítulos de “Retrato do artista quando jovem” e levou à percepção de que, no âmbito da cultura escolar (mais precisamente, no ambiente escolar concebido por Joyce a partir de suas lembranças), o discurso institucional de formação religiosa compreende, sim, a padronização do comportamento (inculcação/erradicação de costumes); a manutenção da fé cristã e católica sem negar, contudo, o conhecimento laico. Palavras-chave: Cultura, Religião, Formação. ABSTRACT This article is the result of analysis of data collected by ongoing research in the application of conceptual perspective of the novel of formation, or, Bildungsroman, the genre which includes the work of James Joyce's "Portrait of the Artist as a Young Man". This research project is linked to the Group for the Study of History of Education: intellectual education, educational institutions and school practices of the Post-Graduate Federal University of Sergipe. The production of this text was based on the first three chapters of "Portrait of the Artist as a Young Man" and led to the perception that, within the school culture (more precisely, in the school environment designed by Joyce from their memories), the institutional discourse training includes religious, yes, the standardization of behavior (indoctrination / elimination of customs), the maintenance of Christian and Catholic faith without denying, however, lay knowledge.
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Cultura Escolar, Religião e Literatura – Percepção do discurso de formação
religiosa na obra de James Joyce.
Autor: Léo Antonio Perrucho Mittaraquis1
Eixo: Educação, Cultura e Religião.
RESUMO
Este artigo é resultado de análise dos dados coletados mediante pesquisa em andamento com a aplicação da perspectiva conceitual do romance de formação, ou, Bildungsroman, gênero no qual se insere a obra de James Joyce: “Retrato do artista quando jovem”. Este projeto de pesquisa está vinculado ao Grupo de Estudos de História da Educação: intelectuais da educação, instituições educativas e práticas escolares do Núcleo de Pós-Graduação da Universidade Federal de Sergipe. A produção deste texto se baseou nos três primeiros capítulos de “Retrato do artista quando jovem” e levou à percepção de que, no âmbito da cultura escolar (mais precisamente, no ambiente escolar concebido por Joyce a partir de suas lembranças), o discurso institucional de formação religiosa compreende, sim, a padronização do comportamento (inculcação/erradicação de costumes); a manutenção da fé cristã e católica sem negar, contudo, o conhecimento laico.
Palavras-chave: Cultura, Religião, Formação.
ABSTRACT This article is the result of analysis of data collected by ongoing research in the application of conceptual perspective of the novel of formation, or, Bildungsroman, the genre which includes the work of James Joyce's "Portrait of the Artist as a Young Man". This research project is linked to the Group for the Study of History of Education: intellectual education, educational institutions and school practices of the Post-Graduate Federal University of Sergipe. The production of this text was based on the first three chapters of "Portrait of the Artist as a Young Man" and led to the perception that, within the school culture (more precisely, in the school environment designed by Joyce from their memories), the institutional discourse training includes religious, yes, the standardization of behavior (indoctrination / elimination of customs), the maintenance of Christian and Catholic faith without denying, however, lay knowledge.
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Keywords: Culture, Religion, Education.
Este artigo foi produzido a partir dos estudos e da pesquisa que se encontra em
andamento, sob a orientação da Professora Doutora Anamaria Gonçalves Bueno de Freitas. A
pesquisa se desenvolve a partir do conceito de romance de formação, ou, Bildungsroman,
aplicado à obra de James Joyce: “Retrato do artista quando jovem”. Em ambas as obras, o
personagem Stephen Dedalus é percebido como alter ego do autor.
Observa-se, porém, que a fonte de referência para a produção deste texto se constitui nos
três primeiros capítulos de “Retrato do artista quando jovem”, sobre os quais foi realizada leitura
analítica.
Cabe ressaltar que este projeto de pesquisa está vinculado ao Grupo de Estudos de
História da Educação: intelectuais da educação, instituições educativas e práticas escolares do
Núcleo de Pós-Graduação da Universidade Federal de Sergipe. E visa colaborar para o
desenvolvimento das atividades acadêmicas inerentes a esta linha de estudo, levando em
consideração a compreensão da mesma quanto à topologia das formas de educação: estas são
passíveis de ocorrer tanto no âmbito físico escolar, como mediante ações extraescolares que
também promovem o aprendizado.
Com efeito: ainda que a produção de um dado discurso resulte em obra de cunho literário,
artístico ou técnico-científico, e estas, mesmo na forma mais elementar, dispõem dados que,
percebidos, reunidos, analisados e interpretados, produzem conhecimento, vale dizer,
formação/educação, o objeto literário (que no status de prioridade, é o alvo de maior interesse
nesta produção acadêmica) produzido em ambiente extraescolar, é frequentemente adotado pelas
instituições educacionais: os autores e suas obras são referências qualificadas no processo de
formação humanística do aluno. Entre diversos gêneros literários, interessa aqui (e, com efeito, é
o objeto mesmo), o gênero Bildungsroman: romance de formação. Os livros escritos por Joyce se
incluem nesse gênero.
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Proveniente da junção de dois termos: bildungs e roman 2, Bildungsroman, em princípio,
pode ser compreendido como romance de construção, formação ou educação. Ou seja: o gênero
pode ser definido como um romance cujo principal tema é o desenvolvimento moral, psicológico
e intelectual do personagem principal, isto é, como romance de desenvolvimento ou da educação
pessoal. O protótipo literário do Bildungsroman, como protagonista, é, por exemplo, o herói
Wilhelm Meister, de “Os anos de aprendizagem de Wilhem Meister”, obra literária do escritor
alemão Johann Wolfgang Von Goethe, que embarca em uma jornada de aprendizado. O
Bildungsroman é um tema de estudo que tem suscitado interesse no meio acadêmico. E a
pesquisa ora em andamento, busca suporte também nesse fato, o que a legitima tecnicamente,
Obtém destaque, na produção brasileira, a pesquisa publicada pela professora de literatura
alemã da UNESP, Wilma Patrícia Maas, intitulada “O cânone mínimo – O Bildungsroman na
história da literatura”. Nesta obra a autora observa que:
As circunstâncias de origem do Bildungsroman são contemporâneas desse esforço pela atribuição de um caráter nacional à literatura de expressão alemã. Trata-se de uma forma literária de cunho eminentemente realista, com raízes fortemente vincadas nas circunstâncias históricas, culturais e literárias dos últimos trinta anos do século XVIII europeu. Compreendido pela crítica como um fenômeno “tipicamente alemão”, capaz de expressar o “espírito alemão” em seu mais alto grau, o Bildungsroman firmou-se como um conceito produtivo em quase todas as literaturas nacionais de origem europeia, tendo sido assimilado também nas literaturas mais jovens, como as americanas (MAAS, 2000, p. 13).
São estas características também detectadas em “Retrato do artista quando jovem” e
“Ulisses”. É uma produção literária de formação. As obras apresentam estas características.
Ambas as obras demonstram similaridades com “Os anos de aprendizagem de Wilhem Meister”.
Esta obra goethenana captou o interesse, sob o prisma pedagógico, de renomados teóricos da
literatura. Entre estes, Georg Luckacs.
Lukacs3, Ao produzir um ensaio sobre “Os anos de aprendizagem de Wilhem Meister”
observa, sobre o autor da obra, Goethe, a seguinte percepção pedagógica:
Ele [Goethe] atribui uma importância extraordinária à consciente orientação do desenvolvimento humano, à educação. Os complicados mecanismos da torre, das cartas de aprendizado etc, servem precisamente para sublinhar esse princípio
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consciente e educativo. Com traços muito sutis e discretos, com algumas breves cenas, Goethe dá a entender que a evolução de Wilhem Meister foi desde o princípio controlada e conduzida de uma forma determinada (LUKACS, Georg. Os anos de aprendizagem de Wilhem Meister. Anexo. In GOETHE, Joham Wolfgang von. Os anos de aprendizagem de Wilhem Meister 4. Ed. Ensaio, São Paulo, 1994, p. 601).
Percepção semelhante é manifestada por Yves Stalloni, professor de letras modernas da
Universidade de Toulon: “Trata-se da narrativa da aprendizagem, da transformação de um
jovem”. (STALLONI: 2007, p. 106).
A aprendizagem, sob a perspectiva do Bildungsroman, e amplamente explorada, nesta
perspectiva, por James Joyce, não se limita, por isso mesmo, à absorção, pelo personagem (na
condição de aluno e homem em formação), de dados tão somente técnicos (proporcionados pelas
disciplinas ministradas pela instituição), mas, sim (e tão importante quanto) de impressões
gravadas no espírito pelas impressões cotidianas. A interpretação pessoal destas produz uma
capitalização - isto é, acumulação e reprodução pelo sujeito - de conhecimento (com os limites
impostos pela natureza mesma do processo de percepção/apreensão dos aspectos constituintes
desse conhecimento) do mundo. Institui-se, então, no sujeito uma proteção intelectual, ainda que
em grau mínimo, frente às contingências. Segundo Foucault:
Trata-se, consequentemente, de montar um mecanismo de segurança, não de inculcar um saber técnico e profissional ligado a determinado tipo de atividade. Esta formação, esta armadura se quisermos, armadura protetora em relação ao resto do mundo, a todos os acidentes ou acontecimentos que possam produzir-se, é o que os gregos chamavam de paraskheué, aproximadamente traduzido por Sêneca como instructio. A instructio é esta armadura do indivíduo em face dos acontecimentos e não a formação em função de um fim profissional determinado. (FOUCAULT: 2004, p.115).
Joyce, ciente dessa realidade, dessa forma de aquisição e utilização do conhecimento
(escolar e extraescolar), opera tanto no campo mesmo da educação, isto é, valendo-se das
possibilidades de narrativa oferecidas pela cultura escolar na obra aqui em discussão, como,
também, em campos que, em alguns aspectos, revelam certa afinidade e provável interação.
Apresenta-se, portanto, entre tantas, neste caso, pelo menos três possibilidades de discurso
(termo este de valor fulcral neste artigo), isto é, de atividade mental que, por meio de
instrumentos indutivos ou dedutivos, fundamenta o encadeamento lógico e necessário de um
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processo argumentativo, ou seja, que se realiza por meio de movimento sequencial que vai de
uma formulação conceitual a outra, segundo um encadeamento lógico e ordenado. Tratar-se-á
aqui, então, de três referências discursivas: a) cultura escolar; b) religião; c) literatura.
Evidentemente, sendo o discurso constituído por enunciados, faz-se necessário observar
que estas afirmações categóricas (ou seja, que, em princípio, não admitem dúvidas, pretendendo-
se claras, definidas), devem ser percebidas em seus respectivos contextos (escolar, religioso,
literário) concomitantemente à percepção de que, no presente estudo, estes contextos, ou
campos5, são compreendidos como inter-relacionados.
É preciso, também, apresentar as referências adotadas (que designam os campos), vale
dizer, dar relevância às características que, primeiramente, as individualizam; subsequentemente,
notar as similaridades. E, entre o singular e o comum, estender-se sobre os enunciados
constituintes de cada campo, isto é, sobre o que discursam. Apreender o que as referências são, o
que representam e o que operam, nos limites da compreensão deste estudo. Obedecer-se-á,
portanto, aqui, a sequência proposta no título.
Cultura escolar é das referências a que, sendo composta (um substantivo e um adjetivo),
se apresenta como mais complexa. Tratar do termo cultura é sempre problemático. O que, de
maneira alguma, deve ser considerado um estorvo ao processo de produção deste artigo. Ao
contrário, julga-se salutar a exigência implicada: o demorar-se na busca do significado mais
adequado ao que se põe em discussão aqui; ao mais adequado na perspectiva da história da
educação. Tanto mais tendo ciência de que o principal aporte teórico e metodológico da história
da educação é a história cultural.
Optou-se, pois, pelo seguinte significado de cultura: conjunto de padrões de
comportamento, crenças, conhecimentos, costumes que distinguem um grupo social.
Numa concepção generalizada, a definição acima atende às necessidades de compreensão,
pelo menos aproximada e funcional, do conceito. Particularizando-se, diante das exigências de
análise e interpretação inerentes ao objeto de estudo, expõem-se termos de extrema importância
no presente estudo: padrões, comportamento, crenças, conhecimento e costumes. Termos caros
(ainda que, por vezes, conflitantes entre si), à cultura qualificada como escolar.
No âmbito da cultura escolar, mais precisamente, no ambiente escolar concebido por
James Joyce a partir de suas próprias lembranças (eventos dados no interior de um colégio
jesuíta), o discurso de formação religiosa compreende, sim, a padronização do comportamento; a
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manutenção da fé cristã e católica; o conhecimento científico e a inculcação/erradicação de
costumes. Sendo uma instituição educacional, esta é constituída por indivíduos (agentes) que
formam e são formados. Estes por sua vez formam grupos. Um grupo composto por agentes
dotados de alto capital social e cultural: reitor, prefeitos e professores; outro composto pelos que
se submetem às normas, aos valores, às atitudes, às categorias e objetivos sociais que devem
aceitar e seguir.
No que concerne à religião (isto é, sistema específico de pensamento ou crença que
envolve uma posição filosófica, ética e metafísica), este termo, no caso aqui abordado, é o campo
mediador, ou seja, na perspectiva do discurso religioso é que se percebe e compreende cultura
escolar e literatura. Em Joyce, mais especificamente, em “Retrato do artista quando jovem” e
“Ulisses”, a educação do personagem Stephen Dedalus se dá no ambiente de uma instituição de
ensino fundamentada, em sua orientação pedagógica, sobre o pensamento cristão, católico e
jesuítico.
Em “Retrato do artista quando jovem”, Stephen é posto aos cuidados de um grupo que
detém: “O domínio erudito de um corpus de normas e conhecimentos explícitos, explícita e
deliberadamente sistematizados por especialistas pertencentes a uma instituição socialmente
incumbida de reproduzir o capital religioso por uma ação pedagógica expressa”. (BOURDIEU,
2007, p. 40).
Após os estudos das disciplinas do dia, ao cair da noite, Stephen Dedalus continua sua
formação – agora no campo religioso. O cansaço causado pelas atividades do dia se manifesta
pela necessidade de descanso, sono reparador. Mas é preciso se fazer presente no local destinado
ao culto religioso. A pedagogia catequética a educar o aluno no caminho da fé:
A sineta tocou para as orações da noite; e ele deixou o salão dos estudos, depois dos outros; desceu as escadas e se meteu pelos corredores rumo à capela. Os corredores estavam sombriamente iluminados e sombriamente iluminada estava a capela. Em breve tudo estaria imerso na treva e no sono. Dentro da capela havia um ar frio da noite e os mármores estavam com a cor que o mar tem de noite. (JOYCE, 2012, p.20).
A educação de Stephen Dedalus, submissão a normas pedagógicas tendentes ao
desenvolvimento geral do corpo e do espírito, no campo religioso exige do menino um sentido de
prontidão. Não basta a simples presença física onde ocorre o ritual. É preciso pronunciar o que
lhe cabe na sequência de enunciados (partes da prece): “O prefeito, na capela, rezava por cima da
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sua cabeça e ele sabia o responso de cor”: ‘Abre os nossos lábios, ó Senhor; E nossas bocas
anunciarão Tua glória; Vem, ó Deus, em nosso socorro; Ó Senhor, apressa-te em ajudar-nos’.
(JOYCE, 2012, p.21).
Joyce compõe cuidadosamente o ambiente propício à formação religiosa. Esta não se
reduz às leituras, a cadernos de exercícios. Exige o envolvimento e o compromisso do aluno
como agente estruturado e estruturante no campo do sagrado. Neste campo, a pedagogia
catequética não considera o acaso, o acidente, o casual, o fortuito ou o contingente. Ciente disso,
o autor descreve concomitantemente duas realidades distintas. Ainda que, aos olhos de Dedalus,
haja algo de familiar, de comum entre ambas:
Havia um cheiro de noite fria na capela. Mas era um cheiro sagrado. Não era como o cheiro dos velhos aldeões que se ajoelhavam no fundo da capela na missa de domingo. Não era aquele cheiro de poeira, de chuva, de torrão e de couro curtido. Mas eram uns santos aqueles aldeões. Por detrás dele, respiravam-lhe a nuca enquanto rezavam. (JOYCE, 2012, p. 21).
Enquanto Stephen aspira ao aroma qualificado (é sagrado) que lhe chega carregado de
simbologia litúrgica, essa ordem das cerimônias e preces de que se compõe o serviço divino,
como se encontra determinado no ritual eclesiástico, também se recorda das partículas voláteis
emanadas dos corpos dos aldeões. Cheiro que traz a materialidade do dia-a-dia profano e
condição leiga, temporal tão própria das coisas terrenas descritas. Entretanto não ocorre uma
percepção discrepante. Há, também, naqueles homens e mulheres simples, algo de santificado.
Talvez por trabalharem a terra, viverem para isso – Ora et Labora.
Todavia, no ambiente preparado, consagrado, da capela, microcosmo da Igreja, seja físico
ou simbológico, Stephen Dedalus é partícipe do imutável, do não analisável. É o âmbito do
sentir, do receber sem questionar. Sobre esses aspectos, é digna de nota a reflexão levada a efeito
por Pierre Bourdieu:
Em sua qualidade de sistema simbólico estruturado, a religião funciona como princípio de estruturação que 1) constrói a experiência (ao mesmo tempo que a expressa), termos de lógica em estado prático, condição impensada de qualquer pensamento, e em termos de problemática implícita, ou seja, de um sistema de questões indiscutíveis delimitando o campo do que merece ser discutido em oposição ao que está fora de discussão (logo, admitido sem discussão) que 2) graças ao efeito de consagração (ou de legitimação) realizado pelo simples fato da explicitação, consegue submeter o sistema de disposições em relação ao
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mundo natural e ao mundo social (disposições inculcadas pelas condições de existência) a uma mudança de natureza, em especial convertendo o ethos enquanto sistema de esquemas implícitos de ação e de apreciação em ética enquanto conjunto sistematizado e racionalizado de normas explícitas. (BOURDIEU, 2007, p. 46).
Espontaneidade e instintos são neutralizados. O olhar erótico que se compraz na estética
resultante das manifestações pulsionais é submetido à domesticação. Corpo e espírito em
uníssono produzem o discurso normalizado apropriado ao campo religioso6, onde relativo é
concepção proibida. Ajoelha-se diante do Absoluto, ante o Eterno. Seu representante na terra tem
a missão de educar também, ou principalmente, pela Palavra.
A capela, não obstante ser, caracteristicamente, um espaço menor do que uma catedral,
por exemplo, ainda é um local singular e administrado por agentes pertencentes a uma dada
comunidade religiosa. Esses agentes ocupam posição privilegiada na estrutura social. São
mantenedores desse espaço consagrado, sacralizado: a capela. Nessa perspectiva, Mircea Eliade
observa que: “Para o homem religioso, o espaço não é homogêneo: o espaço apresenta roturas,
quebras, há porções de espaço qualitativamente diferente dos outros”. (ELIADE, 2001, p. 25).
Na capela Stephen acompanha a última oração do dia. O texto roga pela visita do Senhor
ao colégio. Também solicita a purificação desse espaço e que os anjos (quais guardiães)
permaneçam no local.
As palavras calam fundo no coração de Stephen Dedalus. Ao ir para cama, reproduz algo
do discurso do prefeito. Discurso que passa a ser, nos minutos antecedentes ao sono sua oração
pessoal. Levado a comparecer repetidas vezes aos rituais, Dedalus se submete ao Mistério. Sua
formação religiosa se encontra em andamento.
A formação religiosa de Stephen Dedalus não se dá apenas no colégio Clongowes
(instituição educacional sob a administração da Companhia de Jesus). Alguns dias em casa, no
seio da família, presencia violento choque de opiniões sobre o escândalo causado pelo adultério
cometido por Charles Stewart Parnell7. O modo como seu pai e seu tio, politicamente favoráveis
a Parnell, reagiram, e a maneira como a governanta, defensora radical dos princípios da Igreja
católica se posicionou contra o líder político de renome, revelaram a Stephen discursos,
perspectivas e valores divergentes, não obstante ambos discordantes professarem a mesma
religião.
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O ambiente doméstico torna-se, pois, um médium que possibilita a manifestação (e a
canalização) do modo de ver de cada ator naquele campo. Consequentemente, sendo Dedalus tão
suscetível, sua mente absorve aspectos do acontecimento e fica-lhe patente que nem no colégio
jesuíta (salas de aula, espaço para desporto, refeitório, enfermaria) nem a capela deste são
espaços em que sejam permitidos questionamentos ou, até mesmo, compreensão diferenciada
quanto ao cânone. Esta é imediatamente censurada, anulada.
Quanto a esta censura, especificamente, tratar-se-á mais adiante. Antes, faz-se necessário,
no que concerne também ao processo de educação religiosa de Stephen Dedalus, notar que o
autor, James Joyce, no intuito de abranger ao máximo o campo católico (na obra, representado
pelos jesuítas), inclui, também, os festejos de natureza religiosa, em que os alunos do colégio8
encenam peças de caráter edificante:
A noite da festa de Pentecostes tinha chegado. E Stephen, da janela do quarto de vestir, olhava para fora, para as pequenas tinas de folhagem por entre as quais linhas de lanternas chinesas estavam esticadas. Observava os visitantes descerem os degraus da casa e passarem para dentro do teatro. Atendentes em roupas de etiqueta, antigos belvederianos, vagavam em grupos pelas imediações da entrada do teatro e introduziam os visitantes com cerimônia. (JOYCE, 2012, p. 80).
O veículo cênico, no campo pedagógico, tem sido, ao longo do tempo, utilizado para
ilustrar e emprestar certa materialidade aos textos catequéticos. Os jesuítas, quando da
colonização das terras que se tornariam este país, Brasil, valeram-se do teatro na educação e
conversão dos gentios. O Belvedere, com algumas alterações (incluindo esquetes cômicos)
mantém a tradição. E na data em se comemora um evento bíblico, a instituição envolve alunos e
professores na produção e encenação de peças. A apresentação é aberta ao público.
Joyce mantém o leitor ciente de que “Retrato do artista quando jovem” narra o decurso do
aprendizado, do recebimento de instrução de Stephen Dedalus: o personagem está sendo
formado, educado. A obra contempla, pois, os requisitos que constituem o gênero literário que
dialoga diretamente com o campo pedagógico: o Bildungsroman.
Tanto assim que o escritor irlandês evita incorrer excessivamente numa generalidade
eventual. Não obstante, por exemplo, a festa ser promovida pelo corpo diretivo da instituição, é o
olhar de Dedalus quanto ao entorno que ganha proeminência. Como é possível observar na
citação acima, é a partir do que ele olha pela janela que os acontecimentos evoluem. Mais do que
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isso, Joyce, em seguida, dá a conhecer a situação de Stephen naquele momento. O quanto de
capital cultural e intelectual o agora adolescente dispõe:
Stephen, embora, em deferência à sua reputação em escrever peças, tivesse sido eleito secretário do ginásio, não tinha aparecido na primeira parte do programa; mas na peça que formava a segunda parte tinha um papel principal, dum pedagogo engraçado. Havia sido escolhido para isso devido à sua estrutura e graves maneiras, pois estava agora no fim do seu segundo ano no Belvedere e era o número dois. (JOYCE, 2012, p. 81).
Joyce define o status conquistado por Stephen Dedalus. A formação pedagógica, religiosa
e clássica proporcionada pelo Belvedere (formação esta iniciada em Conglowes) toma a forma
básica quase definitiva, sobre a qual seu capital cultural se ampliará, evoluirá: desenvolveu
habilidades; assumiu um cargo político, é o segundo numa classificação que nomeia alunos que
se destacam e, certamente, não é mais o calouro aterrorizado, frágil. A cultura escolar, a
formação religiosa e as Letras transformaram sua personalidade e seu intelecto. Cultura escolar,
religião e literatura. Campos que, em Joyce, se inter-relacionam e constituem o híbrido terreno de
ideias pelo qual o personagem transita. Sobre cultura escolar, diz-nos Julia:
Poder-se-ia descrever a cultura escolar como um conjunto de normas que definem conhecimentos a ensinar e condutas a inculcar, e um conjunto de práticas que permitem a transmissão desses conhecimentos e a incorporação desses comportamentos; normas e práticas coordenadas a finalidades que podem variar segundo as épocas (finalidades religiosas, sociopolíticas ou simplesmente de socialização). Normas e práticas não podem ser analisadas sem se levar em conta o corpo profissional dos agentes que são chamados a obedecer a essas ordens e, portanto, utilizar dispositivos pedagógicos encarregados de facilitar sua aplicação, a saber, os professores primários e demais professores. (JULIA, 2001, p. 10-11).
Como bem observa Julia, as práticas escolares não devem ser analisadas e interpretadas
sem que também se leve em conta os agentes responsáveis por tais práticas. O que, no entender
deste artigo, faz-se necessário é complementar o elenco de atores: há que também levar em
consideração os alunos, aos quais os agentes (professores de todos os níveis, coordenadores,
inspetores, diretores) endereçam as práticas pedagógicas. No âmbito da cultura escolar, na obra
de James Joyce, o personagem Stephen Dedalus sofreu os efeitos da aplicação dos valores
pedagógicos de então. Tanto mais quando os campos, educação e religião, se confundem. Foi dito
mais acima que se trataria, aqui, também, da censura à qual Dedalus é submetido ao manifestar,
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numa redação, a percepção diferenciada sobre um cânone. E este é o caso: seu professor de inglês
o acusa de heresia9. Dedalus percebe que deve se retratar e o faz.
O campo religioso é a estrutura mesma dos espaços de formação escolar de Stephen
Dedalus. E também o é fora dele em diversas situações. No âmbito familiar, por exemplo. Mas é
a sua trajetória entre as instituições educacionais jesuítas, Conglowes e Belvedere, que se revela
com maior peso na narrativa literária de Joyce. Sendo um personagem com referências
biográficas (a vida do escritor) é, pari passu, a apresentação de aspectos da formação escolar,
religiosa e intelectual do autor. É interessante notar que, não obstante as críticas, os sarcasmos, as
ironias que põe à boca do personagem, Stephen Dedalus, o escritor não menospreza o poder dos
que compõem o corpo de ensino dos colégios. Joyce reproduz o universo escolar como campo
que civiliza, normaliza, humaniza e (no que concerne às instituições educacionais de cunho
religioso), catequiza, cristianiza. Quanto a esta presença marcante da cultura escolar na formação
do indivíduo, diz-nos Carla Boto:
Institucionalmente, a acepção de escola tem como características a racionalidade, a organização, a codificação de saberes e de valores, o sistemático recurso à abstração, que muito a aproximam das imagens da cultura letrada. De fato, a categoria "civilização escolar" parece-me operatória para reconstituir alguns aspectos internos à vida nas escolas. Nesse sentido, tal conceito (civilização) considera não apenas o caráter inventivo da cultura escolar e das práticas que originalmente são produzidas no cotidiano da instituição, mas supõe também a dimensão de projeto social pressuposto na tarefa de escolarizar. (BOTO, 2011, p. 47-48).
O campo literário em Joyce, mediante seu discurso representado pelo discurso de Stephen
Dedalus, é vasto. Como larga é a formação de Dedalus. E o rigor característico do escritor se
reflete nas manifestações do personagem10. Discussões ao ar livre, por exemplo, eram movidas
por discordâncias sobre as qualidades poéticas de um Tennyson ou de um Byron. A formação via
leitura de autores consagrados, a definição das preferências por gêneros, formas e escritores, são
aspectos intimamente ligados ao processo de capitalização cultural e social de Stephen Dedalus.
E esta constituição do patrimônio de conhecimentos do personagem, e que revelam parte do
cabedal do autor, é característica inerente ao Bildungsroman.
Observe-se que este artigo foi concebido a partir do recorte literário da obra "Retrato do
artista quando jovem", de James Joyce. O que significa uma visão parcial da trajetória de
formação do personagem. A formação religiosa é, então, um dos aspectos do objeto de estudo.
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Os dados da pesquisa que se encontra em andamento permitirão que o quadro ora
apresentado evolua e, assim, se fundamente ainda mais a construção da tese de que o gênero
Bildungsroman não só apresenta a formação do personagem e, indiretamente, o capital cultural
do autor, mas, também, possibilita ao leitor o acesso a um mapa de referências a diferentes áreas
do conhecimento, estimulando a busca por mais informações (somando a isso a própria obra sob
leitura), de forma, inclusive, sistematizada, contribuindo para sua formação técnica e intelectual.
A trajetória de aprendizagem de Stephen Dedalus é um exemplo, ainda que de caráter
ficcional, desse tipo de acontecimento. Afinal, é um dos acontecimentos da vida do escritor.
Porém, ao invés de apenas narrar de forma plana e rasa a constituição de capital cultural,
intelectual e social do personagem, Joyce optou por construir para aquele uma realidade densa,
matizada, dinâmica, focando a cultura escolar (especificamente a cultura escolar produzida no
seio de uma instituição educacional de orientação religiosa, cristã e católica) como campo onde
essa realidade é construída principalmente. E é nesta que Stephen Dedalus é formado.
Dentre os meios de aquisição de conhecimento, está a leitura (seja dos livros didáticos,
dos clássicos ou das Sagradas Escrituras), ferramenta indispensável ao aperfeiçoamento
humanístico. Portanto, o gênero Bildungsroman é percebido, sob a ótica da história da educação,
operando como eixo condutor do processo de formação em três perspectivas: a do personagem, a
do autor e a do leitor.
O recorte realizado na obra, para a produção deste trabalho, privilegiou a formação
religiosa, muito bem explorada por Joyce, isto é, a educação, a preparação do jovem personagem
para que este esteja ciente de qual conduta manter diante do Mistério, do Insondável.
1 Graduado em Filosofia (UFS), mestre em Educação (UFS) e membro do Grupo de Estudos História da Educação: intelectuais da educação, instituições educativas e práticas escolares do Núcleo de Pós-Graduação da Universidade Federal de Sergipe (UFS). 2 Bildungsroman: novela didático-psicológica, romance didático-psicológico. Dicionários Acadêmicos. Porto, Portugal: Tipografia Bloco Gráfico Limitada, 1978, p.102. 3 Georg Lukács não hesita em qualificar Os anos de aprendizagem de Wilhem Meister como uma novela pedagógica. Ver LUKÁCS, Georg. A teoria do romance. São Paulo. Editoras 34 e Duas Cidades, Col. Espírito Crítico, 2000. 4 Publicado anteriormente em Goethe und Selne Zelt. Georg Lukacs Werke. Band 7, Luchterhand Verlag. Informação incluída no rodapé da página 593 (anexo) do livro GOETHE, Joham Wolfgang von. Os anos de aprendizagem de Wilhem Meister. Ed. Ensaio, São Paulo, 1994. 5 “Denomino campo o universo no qual estão inseridos os agentes e as instituições que produzem, reproduzem ou difundem a arte, a literatura ou ciência”. Cf. BOURDIEU, Pierre. Os usos sociais da ciência. São Paulo: UNESP, 2004, p. 20. 6 “Em função de sua posição na estrutura da distribuição do capital de autoridade propriamente religiosa, as diferentes instâncias religiosas, indivíduos e instituições, podem lançar mão do capital religioso na concorrência pelo monopólio da gestão dos bens de salvação e do exercício legítimo do poder religioso enquanto poder de modificar em bases duradouras as representações e as práticas dos leigos, inculcando-lhes um habitus religioso, princípio
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gerador de todos os pensamentos, percepções e ações, segundo as normas de uma representação religiosa do mundo natural e sobrenatural, ou seja, objetivamente ajustados aos princípios de uma visão política do mundo social”. (BOURDIEU, Pierre. A economia das trocas simbólicas. São Paulo: Perspectiva, 2004, p. 57). 7 Polêmico representante político da Irlanda no parlamento inglês. 8 Este não é mais o Colégio Conglowes, mas, sim, outro colégio jesuíta, o Belvedere, localizado em Dublin, para onde a família de Stephen Dedalus, por causa das dificuldades financeiras, se mudou. Nota do autor. 9 JOYCE, James. Retrato do artista quando jovem. Rio de Janeiro: Edições Bestibolso, 2012, p. 87. 10 "Que é que você sabe do que está aí a dizer? - Gritou Stephen - Você nunca leu uma linha de coisa nenhuma na sua vida, a não ser traduções. E Boland muito menos!". JOYCE, James. Retrato do artista quando jovem. Rio de Janeiro: Edições Bestibolso, 2012, p. 89. Referências bibliográficas BOURDIEU, Pierre. A economia das trocas simbólicas. São Paulo: Perspectiva, 2004.
BOURDIEU, Pierre. Os usos sociais da ciência. São Paulo: UNESP, 2004.
BOTO, Carlota. A racionalidade escolar como processo civilizador: moral que captura almas. In:
CARVALHO, Maria Marta Chagas de; PINTASSILGO, Joaquim (orgs.). Modelos Culturais,
saberes pedagógicos, instituições educacionais: Portugal e Brasil, histórias conectadas. São