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Indivduo e sociedadeNesta unidade
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Vamos pensar a sociedade
A vida cotidiana
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Nosso mundo ontem e hoje
Um planeta sem fronteiras
4Um dos temas a ser investigado nesta unidade o surgimento da
sociedade urbana e industrial, com a ascenso da burguesia, quando
aparecem novas formas de comportamento social, com valores pautados
na liberdade, no acmulo de bens e de riquezas, no consumo, no
individualismo e na competio. esse o contexto em que nasce a prpria
Sociologia. Ela surge juntamente com a fbrica, com a produo
mecanizada, com a urbanizao crescente, com novos atores sociais,
como a burguesia industrial e o proletariado. No por acaso, esses
so alguns dos clssicos temas sociolgicos. Em certa medida, quando
investiga esses fenmenos e as relaes sociais a eles associadas, a
Sociologia olha para si mesma.
O comeo de uma jornadaEsta unidade tem o objetivo de apresentar
a Sociologia em traos gerais, acompanhar sua formao e explicar seus
objetivos, destacando sua importncia no contexto contemporneo. O
ponto de partida, porm, data da organizao dos primeiros grupos
humanos, momento em que surge e se reproduz o conhecimento dentro
da sociedade. Durante milnios, o senso comum foi responsvel pela
massa de informaes que o indivduo recebia como herana do grupo
social. Com o tempo, parte desse cabedal de conhecimento passou a
ser questionada, em especial quando os fenmenos naturais e sociais
foram submetidos investigao cientfica, mais sistemtica e
rigorosa.
Em espaos pblicos, costuma acontecer toda sorte de interaes
sociais, desde os cuidados dos pais com os filhos, atividades de
crianas e adolescentes, namoros, conversas entre amigos, at brigas
e assaltos. Assim, podemos dizer que um parque se configura como
uma possibilidade de espao aberto investigao a respeito da
socializao no cotidiano, um dos temas desta unidade. Parque do
Ibirapuera, em So Paulo (SP), 2006.
Vocao cientficaPara possibilitar uma reflexo inicial sobre
alguns dos temas desta unidade, leia a seguinte passagem do
socilogo alemo Max Weber (1917): Primeiro, claro, a cincia
contribui para a tecnologia de controle da vida calculando os
objetos externos bem como as atividades do homem. [...] Segundo, a
cincia pode contribuir com [...] mtodos de pensamento, os
instrumentos e o treinamento para o pensamento. [...]. A cincia
hoje uma vocao organizada em disciplinas especiais a servio do
autoesclarecimento e conhecimento de fatos inter-relacionados. No o
dom da graa de videntes e profetas que cuidam de valores e revelaes
sagradas, nem participa da contemplao dos sbios e filsofos sobre o
significado do universo. [...] O destino de nossos tempos
caracterizado pela racionalizao e intelectualizao e, acima de tudo,
pelo desencantamento do mundo. [...] nas salas de aula da
universidade nenhuma outra virtude vlida a no ser a simples
integridade intelectual [...].Weber, Max. A cincia como vocao. In:
Gerth, H; Mills, W. (orgs.). Ensaios de Sociologia. Rio de Janeiro:
Zahar, 1971. p. 177-8, 180, 182-3.
Com base no texto citado: 1. Pesquise em que perodo histrico a
cincia esteve associada s revelaes sagradas. 2. Pesquise em qual
civilizao do Ocidente surgiram as explicaes dos filsofos sobre o
significado do Universo. 3. Responda: como se organiza a cincia
moderna e qual a sua contribuio para a sociedade?
Captulo
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Vamos pensar a sociedade
Neste captulo O senso comum
como ponto de partida O nascimento da cincia moderna A
Sociologia aplicada ao cotidiano Ns no mundo A formao da identidade
O mundo em nsLojas na rua dos Andradas, na cidade de Porto Alegre
(RS). Fotografia de 2008. Alm de impulsionar a economia, o consumo
coloca os indivduos em contato uns com os outros, mobilizando
valores. So esses contatos que geram o conhecimento adquirido pelo
senso comum, que examinado neste captulo.
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Um dos principais objetivos deste captulo determinar o que e
para que serve a Sociologia. Para tanto, o texto toma como ponto de
partida a forma mais comum de se conhecer e compreender um
acontecimento qualquer: vivenciando-o. O conhecimento adquirido por
meio do senso comum, herdado do grupo social e continuamente
ampliado mediante a incorporao das experincias cotidianas, resulta,
em ltima anlise, do contato permanente entre indivduos, atravs de
abordagens diretas ou indiretas. Esse contato contnuo gera um
conhecimento comum, que mescla concluses de graus variveis de
preciso baseadas na observao dos aspectos da vida natural e social.
O convvio humano possibilita a gerao de diferentes repertrios
culturais (valores, costumes e formas de conhecimento), a depender
da coletividade em questo. Tal conhecimento partilhado por todos os
integrantes do grupo social e refere-se s coisas ao seu redor, a
eles mesmos e a suas experincias e s de
Senso comum e conhecimento cientfico
todos os que os cercam e que formam a sociedade a que pertencem.
Vamos procurar entender como funciona a relao entre o indivduo e a
sociedade o conjunto de indivduos somados que se organizam em
instituies pblicas e privadas para viver coletivamente.
Distanciamento crticoPara compreender essa relao entre o
indivduo e a sociedade, o senso comum nem sempre suficiente. Coube
Sociologia tornar o senso comum objeto de estudo e, portanto, de
questionamento, o que exigiu um distanciamento crtico em relao a
ele. Foi essa a tarefa empreendida pelos pioneiros do conhecimento
sociolgico, atravs do uso de mtodos adequados investigao sistemtica
do ser humano e de como ele vive em sociedade, mtodos que sero aqui
estudados. Por meio dessa compreenso inicial, comea-se a ter acesso
ao instrumental necessrio para desvendar os outros aspectos e
estruturas que compem a sociedade e que sero vistos ao longo do
aprendizado.
1. Cite um caso em que o conhecimento tradicional, do senso
comum, foi contestado pela
investigao cientfica.2. Voc conhece algum caso no qual as
prticas associadas ao senso comum tenham sido
confirmadas e sistematizadas pela cincia?
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O senso comum como ponto de partida
O senso comum como ponto de partidaVamos imaginar que
determinada pessoa esteja em casa, preparando um delicioso bolo de
fub e aquecendo gua para fazer caf. Para saber se j est assado,
comum que algumas pessoas abram o forno com cuidado e espetem o
bolo com um garfo, retirando-o em seguida e verificando se no h
nele nenhum resduo de massa crua. O garfo estando seco, j se sabe
que o bolo est pronto. Depois de desligar o forno, hora de preparar
o caf. Mas vamos supor que, inadvertidamente, a pessoa encoste uma
das mos na chaleira quente e se queime. H pessoas que, diante de
uma situao como essa, tomam atitudes inadequadas. Por exemplo,
correm at o banheiro e colocam pequena quantidade de creme dental
no local atingido, obtendo certo alvio por ter resfriado a
queimadura. grupo social e sempre atualizada pelas experincias
cotidianas que continuam a ocorrer, chamado senso comum.
O senso comum
no cotidiano
Conhecimento compartilhadoOs procedimentos mencionados acima so
considerados uma espcie de conhecimento natural, como se, de algum
modo, o indivduo sempre soubesse o que fazer em tais situaes. No
entanto, esse conhecimento no instintivo nem surge de forma mgica,
mas apreendido pela pessoa em sua convivncia diria com outros seres
humanos parentes, amigos, colegas de trabalho e at mesmo
desconhecidos. E, ainda, nem sempre tal conhecimento exato,
preciso, rigoroso: no caso de queimaduras leves, chamadas de 1o
grau, a primeira providncia consiste em lavar o local com gua fria
e corrente. Esse conhecimento difundido entre as pessoas de modo
geral, que corresponde a uma viso de mundo compartilhada pelo
Considerar o dia de trabalho de um operrio do setor de construo
civil uma boa forma para entender como se processa o conhecimento
vindo do senso comum. Esse operrio geralmente inicia seu dia muito
cedo para poder se deslocar at o local onde a obra est sendo
erguida. Para tanto, preciso usufruir do servio de transporte
pblico, o que lhe exige certo conhecimento quanto aos itinerrios de
nibus, trens e metr, dependendo dos servios disposio. As atividades
dentro da obra tambm so as mesmas feitas em obras anteriores,
seguindo um mesmo padro de repetio, facilmente realizado pelo
operrio. Sua experincia profissional permite-lhe certo domnio das
tcnicas de construo, mesmo desconhecendo conceitos e termos tcnicos
comuns a engenheiros e arquitetos. Por sua vez, a incorporao desses
conhecimentos obtidos no cotidiano necessria para que qualquer
indivduo da sociedade possa interagir e viver socialmente. So essas
repeties no dia a dia que constituem a rotina individual.
Quebra de padroEssas rotinas continuam a repetir-se at que
alguma mudana promova uma quebra nesse padro. Quando isso acontece,
uma nova rotina logo instaurada e vem substituir a anterior.
O ato de estudar faz parte da rotina semanal de muitas crianas e
jovens de todo o mundo. A escola favorece o convvio entre iguais,
no que diz respeito faixa etria e ao momento do ciclo de vida,
desde a infncia. Mais tarde, a passagem do Ensino Fundamental para
o Ensino Mdio, e deste para o Ensino Superior, fornece
oportunidades para o estabelecimento de novas rotinas,
comportamentos, relaes e valores.
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Vamos pensar a sociedade
Realidade imediataA rotina diria faz parte do que os socilogos
Peter Berger e Thomas Luckmann autores de A construo social da
realidade (1966) chamam de realidade imediata, ou seja, a realidade
que o indivduo percebe ao seu redor e vive no momento presente,
exigindo sempre solues que garantam a sua sobrevivncia. Os dois
autores observam que qualquer ao repetida com frequncia torna-se
parte de um padro, que pode ento ser reproduzido com economia de
esforo e, por isso mesmo, apreendido por seu realizador. De fato,
sem essa rotinizao, uma pessoa teria de despender muito tempo
refletindo sobre como realizar as pequenas tarefas que lhe
possibilitariam a existncia. Contraditoriamente, se o tempo fosse
tomado exclusivamente por essas tarefas cotidianas, a pessoa no
teria condies de pensar ou refletir sobre outros assuntos e
acontecimentos mais relevantes.
Em meio multidoEsse automatismo no percebido somente nas
pequenas aes do cotidiano. O socilogo David Riesman, autor de A
multido solitria (1950), sustenta que o homem contemporneo no tende
a agir movido pela reflexo, e sim a reagir com base no que, real ou
supostamente, os outros pensam dele. Ele , mais do que nunca, um
ser social, pois s existe na multido, porm cada vez mais solitrio,
incapaz de encontrar um interlocutor para um dilogo fecundo. Resta
saber em que medida, nas ltimas dcadas, o desenvolvimento da
chamada sociedade do conhecimento contrariou essa tendncia ao
multiplicar as oportunidades de reflexo fundamentadas na
informtica.
Acender a lmpada e colocar roupas na mquina de lavar so prticas
que, ao serem apreendidas pelos indivduos, tornam-se parte da
rotina diria.
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Letra de msicaO cotidiano na msica A multiplicidade de situaes
do cotidiano e as rotinas a ele incorporadas inspirou diversas
canes da msica popular brasileira. Veja o tratamento dado ao tema
por Nando Reis. DiariamentePara calar a boca: rcino [] Para viagem
longa: jato Para difceis contas: calculadora Para o pneu na lona:
jacar Para a pantalona: nesga Para pular a onda: litoral Para lpis
ter ponta: apontador Para o par e o amazonas: ltex Para parar na
pamplona: assis Para trazer tona: homem-r [] Para o presente da
noiva: marzip [] Para o outono a folha: excluso Para embaixo da
sombra: guarda-sol Para todas as coisas: dicionrio Para que fiquem
prontas: pacincia Para dormir a fronha: madrigal Para brincar na
gangorra: dois Para fazer uma touca: bobes Para beber uma coca:
dropes Para ferver uma sopa: graus Para a luz l na roa: 220 volts
Para vigias em ronda: caf Para limpar a lousa: apagador Para o
beijo da moa: paladar Para uma voz muito rouca: hortel Para a cor
roxa: atade Para a galocha: verlon Para ser moda: melancia Para
abrir a rosa: temporada Para aumentar a vitrola: sbado Para a cama
de mola: hspede Para trancar bem a porta: cadeado [] Para quem no
acorda: balde Para a letra torta: pauta [] Para os dias de prova:
amnsia Para estourar pipoca: barulho Para quem se afoga: isopor
Para levar na escola: conduo Para os dias de folga: namorado Para o
automvel que capota: guincho Para fechar uma aposta: paraninfo Para
quem se comporta: brinde Para a mulher que aborta: repouso Para
saber a resposta: vide o verso Para escolher a compota: Jundia
[]
Reis, Nando. Diariamente. Intrprete: Marisa Monte. Mais. Rio de
Janeiro: EMI, 1990.
Os versos caracterizam o conhecimento produzido pelo senso comum
para resolver os problemas cotidianos. 1. Procure listar quais
situaes apresentadas na cano esto integradas na sua rotina e quais
utilizam elementos que no fazem parte de seu dia a dia. Em seguida,
compare a sua lista com a de seus colegas. 2. Identifique nas
caractersticas formais dos versos elementos que reforam a ideia de
rotina.
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O que o senso comum?
O que o senso comum?Deve-se entender o senso comum como o
conhecimento assimilado pelas pessoas, que produzido coletivamente
e incorporado por suas prprias experincias cotidianas. Essa foi a
primeira forma de conhecimento construda pela humanidade desde que
passou a viver em comunidades. A transmisso de conhecimentos teis
sobrevivncia dos seres humanos ao longo de milnios justifica, por
si s, sua importncia. Nesse extenso perodo, o registro dos padres
de repetio dos fenmenos naturais, por exemplo, representou o
primeiro passo para entend-los. A transmisso desse conhecimento de
gerao a gerao deu forma tradio, aos costumes passados pelos
parentes e ancestrais e que contribuem para a formao da identidade
individual e coletiva. Nossa interao no mundo parte de valores
tradicionais, que esto sempre sujeitos a reconfiguraes, a depender
do contexto. Muitas descobertas cientficas questionam ou
desautorizam ideias e costumes difundidos pelo senso comum. Por
exemplo, crenas como a de que tomar leite com manga pode causar dor
de barriga, muitas vezes infundadas e questionveis, determinam
padres de comportamento. Por outro lado, a mesma cincia reitera
muitas noes provenientes do senso comum. A mesma situao se repete
na esfera religiosa. Os dogmas pontos ou princpios de f
apresentados como incontestveis e indiscutveis predominaram, por
muito tempo, como principal forma de explicaQuadrinhos
o da realidade na sociedade ocidental, passando a ser
contestados apenas na modernidade, com o surgimento de uma viso
mais racional dos fatos. Sem pretenses de ordenar a sociedade ou de
explicar os fenmenos da natureza, a religio cada vez mais, no
Ocidente, uma questo de mbito privado: muitos cientistas so
religiosos.
Identificao do senso
comum
Se o senso comum manifesta-se em variadas formas, como
identific-lo e interpret-lo? Para responder a essa questo, pode-se
utilizar um exemplo prtico, como a ocorrncia da chuva, que pode ser
vista como a soluo para determinados problemas dos agricultores,
mas que, quando cai em excesso, leva perda da safra e, muitas
vezes, de cidades inteiras. Portanto, o senso comum subjetivo, j
que sua interpretao varia de indivduo para indivduo e de
coletividade para coletividade. Tomar um pouco de chuva no vero
algo refrescante e agradvel, mas no inverno significa sentir muito
frio e desconforto. Assim, existem caractersticas qualitativas e
heterogneas no senso comum. Tambm existe a tendncia generalizao. No
Brasil, onde a temporada de precipitaes estende-se de outubro a
abril, muita gente espera que as chuvas ocorram sempre nesse
perodo; se, porventura, no chover, pode-se procurar uma explicao
pautada no extraordinrio, ignorando a investigao cientfica e seus
mtodos.
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O cartunista Laerte brinca com o senso comum, que adquire
caractersticas religiosas ao se mascarar em dogma.
O senso comum uma verdade que deve ser aceita com base na f;
qualquer forma de dvida implica, como se pode perceber nos
quadrinhos acima, a represso aos mais curiosos e questionadores. 1.
Voc conhece algum caso de perseguio a cientistas pelo fato de suas
pesquisas contrariarem dogmas religiosos? 2. D exemplos de afirmaes
dogmticas que costumam ser feitas na esfera religiosa, na poltica e
na dos esportes. 13
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Vamos pensar a sociedade
Como se transmite o senso comumSe o senso comum existe desde que
os seres humanos passaram a se organizar coletivamente, como ele
transmitido? Para responder a essa questo, pode-se levantar algumas
situaes nas quais ele se manifesta.
A roda de amigos e colegasConforme vai crescendo, a pessoa tende
a ampliar seu convvio social ao entrar em contato com outras
pessoas, que podem ou no possuir os mesmos valores que ela. Aos
poucos, a pessoa vai se cercando de um grupo de amigos que,
geralmente, tm interesses semelhantes. Essa convivncia permitelhe
incorporar parte do conhecimento dos amigos e colegas. Assim, para
um adolescente ou um jovem, til saber deslocar-se da escola ou de
casa at um lugar onde possa divertir-se. Ele pode ainda aprender os
macetes para superar as inmeras fases dos jogos de computador,
entre outras interaes e atividades comuns a um grupo de amigos.
Nessa relao de proximidade, comum ocorrerem tanto situaes de
consenso, que fortalecem os laos dentro do grupo, quanto de
conflito, como ser visto mais adiante.
A famliaO filsofo grego Aristteles (384 a.C.-322 a.C.) j
afirmava que a famlia a clula essencial da sociedade. Ele observou
que a famlia uma sociedade cotidiana formada pela natureza e
composta de pessoas que comem [] o mesmo po e se esquentam [] com o
mesmo fogo. Embora a origem natural da famlia seja atualmente
questionada, no h dvida de que a convivncia contnua com os
familiares ou adultos (no caso daqueles que no tiveram oportunidade
de crescer junto a uma famlia), principalmente no incio da infncia,
essencial para cada ser humano. Alm disso, ao contrrio dos outros
animais, nos primeiros anos a criana depende completamente dos
adultos para a sobrevivncia.O simples ato de aprender a andar de
bicicleta costuma fazer parte do ritual da infncia e do amparo
prestado pessoa pelo grupo familiar. Desde o uso de bicicletas com
rodinhas laterais de apoio at o momento em que um adulto vai
segurando a bicicleta com a criana tentando equilibrar-se sobre
ela, nota-se um aprendizado prtico marcado por quedas, machucados e
choros, que so esquecidos no momento em que a criana consegue,
sozinha, equilibrar-se na bicicleta e sair pedalando. O resultado,
alm da incorporao de uma habilidade, o fortalecimento dos laos no
grupo familiar.
O ambiente de trabalhoUma pessoa que nunca trabalhou e vai para
o primeiro emprego, ou mesmo algum que comea num emprego novo,
costuma sentir-se deslocada naquele ambiente desconhecido. O
convvio com os colegas de trabalho que vai ajud-la a superar essa
fase inicial, permitindo que se adapte mais rapidamente rotina
profissional.
Os meios de comunicaoO desenvolvimento da tecnologia dos meios
de comunicao permite que as informaes cheguem mais rapidamente a
cada pessoa. A televiso, o rdio, o cinema e, atualmente, a internet
vm bombardeando as pessoas com informaes que so devidamente
incorporadas ou descartadas conforme a convenincia e importncia
delas na vida diria de cada um. Jornais e programas de televiso
veiculam reportagens sobre o cotidiano no campo, tradies
familiares, valores humanos. Por meio delas, as pessoas incorporam
informaes prticas que podem ajud-las em casa ou no trabalho. A
internet vem tendo um papel marcante na sociedade; atravs dos
e-mails, as pessoas so capazes de manter contatos imediatos em
tempo real; e, atravs dos sites, conseguem acessar os mais diversos
contedos.
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Mais ainda, atravs do ambiente domstico, a criana apega-se aos
costumes familiares e identifica-se com os pais ou responsveis por
ela, incorporando at mesmo as percepes que eles possuem a respeito
do mundo. So eles os responsveis pela transmisso dos primeiros
conhecimentos, como tomar banho, a importncia de cuidar da higiene
corporal, alimentar-se de forma adequada, entre outros.14
Algumas caractersticas do senso comum
Algumas caractersticas do senso comumEmbora o senso comum possa
conduzir a srios enganos no tocante ao ambiente natural e social, o
vasto leque de informaes obtidas por seu intermdio comprovou ao
longo de milnios sua importncia para a sobrevivncia da espcie
humana. Na verdade, ele permanece bastante til ainda hoje, quando a
cincia fornece um conhecimento bem mais rigoroso e abrangente sobre
a realidade. O fato que todas as pessoas, entre elas os cientistas,
usam o senso comum o tempo todo: ele essencial comunicao e inveno.
de conhecimentos vindos do contato com pais, avs ou outros parentes
ou conhecidos, ou seja, pertencentes ao rico acervo do senso
comum.
Conhea melhorDesateno civil
EscolhasEntre os principais aspectos positivos do senso comum
est o fato de que o conhecimento obtido atravs da experincia
cotidiana essencial para construir uma vida em sociedade. Mais do
que isso, a pessoa tem suas possibilidades de escolha ampliadas.
Ela pode dedicar-se a assuntos e afazeres que considera merecedores
de sua ateno, em vez de despender energia com atividades ou questes
que considera irrelevantes. A experincia cotidiana pode estimular a
pessoa a ser mais atenciosa com os outros e realizar com mais
capricho as tarefas dirias. Com isso, ela passa a aprender mais
sobre si mesma e sobre os outros, pois levada a prestar mais ateno
s demais pessoas e quilo que faz e que, por extenso, a define.
Desse modo, aperfeioa o seu convvio social e torna-se um ser humano
melhor. Essa convivncia coletiva tambm ajuda a moldar a sociedade,
contribuindo para a soluo dos problemas que costumam surgir e que
abalam o cotidiano, levando-o a ser reformulado, com a gerao de
novas rotinas.
Cena comum nas vias pblicas dos grandes centros urbanos: pessoas
que se apresentam com seus instrumentos musicais, prendendo a ateno
de alguns e sendo ignoradas por outros, conforme a maior ou menor
atrao que o evento desperte e de acordo com o tempo e interesse de
cada um. Na fotografia de 2009, msicos se apresentam em uma rua de
Santa Mnica, na Califrnia.
Viver em grandes cidades leva ao contato cotidiano com
desconhecidos, contato que pode ou no ser evitado. De acordo com o
socilogo canadense Ervin Goffman, autor de A representao do Eu na
vida cotidiana (1959), quando esse contato evitado, a situao
classificada como desateno civil. Tal mecanismo utilizado de forma
consciente ou inconsciente por aqueles que notam a presena de
outros ao seu redor, mas optam por ignor-los, deixando de se
relacionar com eles. Essa atitude pode ser vista como um mecanismo
de defesa, que permite ao indivduo dar continuidade a seus
objetivos sem se dispersar. 1. Na sua opinio, as demandas das
outras pessoas podem ser uma fonte de disperso? 2. D exemplos de
situaes em que as pessoas tendem a prestar ateno nos outros, at
mesmo em desconhecidos, no cotidiano das grandes cidades. 3. Voc
conhece algum que j tenha se apresentado nas ruas, tocando um
instrumento musical? Caso voc conhea, converse com essa pessoa e
escreva um pequeno texto contando como o pblico costuma reagir. 4.
Faa um contraponto entre a anlise de Ervin Goffman, que considera a
desateno civil um mecanismo de defesa do indivduo, para no se
dispersar, e a de David Riesman, que v o homem na multido como um
ser solitrio, incapaz de estabelecer um dilogo efetivo com o
prximo.
Pequenas dificuldadesO conhecimento obtido do senso comum
especialmente til para superar aqueles momentos em que o cho parece
faltar, nos quais uma mudana relevante se coloca, como deixar a
casa dos pais para morar sozinho. Nesse instante, a pessoa passa a
depender de si mesma para organizar as rotinas do cotidiano. Pouco
a pouco, as dificuldades iniciais (limpeza da casa, organizao de
contas a pagar, compras do ms, pequenos consertos que uma residncia
sempre exige) vo sendo superadas, quase sempre atravs
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Vamos pensar a sociedade
As armadilhas do senso
comum
O senso comum, obviamente, no traz apenas benefcios. Seu uso
contnuo e a padronizao mecnica do pensamento podem nos levar a
engessar o conhecimento no momento em que se acredita que ele est
pronto e acabado. Aceitam-se muitas verdades sem nem ao menos
question-las, sem a menor preocupao com a origem delas ou mesmo com
o seu significado. Por geralmente no ser questionado, o senso comum
mostra suas limitaes, impedindo a pessoa de alcanar novas
realidades e interpretaes sobre o mundo, o que pode ser complicado,
pois leva o homem a estagnar-se em termos cientficos. Pior que
isso: incorporam-se valores que dificultam a interao social e
colocam em risco a prpria ideia de sociedade. Exemplos tpicos de
desvirtuamento do senso comum so os esteretipos. As ideias
preconcebidas, muitas vezes resultantes de falsas generalizaes ou
da falta de conhecimento real sobre determinado assunto,
podem recair sobre qualquer pessoa na sociedade. No entanto,
certas categorias de indivduos, de grupos sociais, de povos e de
instituies, como as religiosas, so alvos mais frequentes de vises
estereotipadas. Essa perspectiva limitada do ser humano produz
situaes em que um v o outro como inferior simplesmente porque esse
outro parece encaixar-se em determinado esteretipo. No momento em
que essa inferiorizao ocorre, o esteretipo alimenta o preconceito.
Uma das acepes da palavra preconceito a de atitude, sentimento ou
parecer insensatos, especialmente de natureza hostil, assumidos em
consequncia da generalizao apressada de uma experincia pessoal ou
imposta pelo meio. Os mais diferentes segmentos sociais podem ser
vtimas de preconceitos: mulheres, negros, judeus, homossexuais,
migrantes e muitos outros. por esse motivo que o senso comum
importante, mas no suficiente para uma vida equilibrada e
enriquecedora, devendo ser superado. Para que essa superao seja
possvel, preciso falar sobre a prtica cientfica, objeto de estudo
do prximo mdulo.
Conhea melhorA superao do senso comum (ou pseudocincia)Reflita
sobre a seguinte passagem, escrita pelo norte-americano Carl Sagan,
importante divulgador da cincia.
Talvez a distino mais clara entre a cincia e a pseudocincia seja
o fato de que a primeira sabe avaliar com mais perspiccia as
imperfeies e a falibilidade humanas do que a segunda (ou a revelao
infalvel). Se nos recusarmos radicalmente a reconhecer em que
pontos somos propensos a cair em erro, podemos ter quase certeza de
que o erro mesmo o engano srio, os erros profundos nos acompanhar
para sempre. Mas, se somos capazes de uma pequena autoavaliao
corajosa, quaisquer que sejam as reflexes tristes que possa
provocar, as nossas chances melhoram muito.sagan, Carl. O mundo
assombrado pelos demnios A cincia vista como uma vela no escuro. So
Paulo: Cia. das Letras, 1997. p. 37.
1. Que aproximao voc faz entre as palavras de Carl Sagan e a
imagem do quadro de Joana d'Arc ao lado? 2. Segundo Carl Sagan, que
tipo de comportamento caracteriza a viso pseudocientfica? 3. Que
aspecto essencial a prtica cientfica revela sobre cada um de
ns?Execuo de Joana dArc (1412-31) em 30 de maio de 1431, litografia
do sculo XIX, Escola Francesa, coleo particular. A herona francesa
na Guerra dos Cem Anos foi condenada fogueira por ligaes com o
demnio. Comportamentos incomuns eram vistos como fruto de possesso
demonaca, que deveria ser combatida com a priso, a tortura ou a
morte. As mulheres que se destacavam, abandonando sua posio de
submisso, eram vistas como ameaas ordem estabelecida e, por esse
motivo, punidas severamente de acordo com o senso comum do perodo,
marcado pelo predomnio dos dogmas religiosos.
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O nascimento da cincia moderna
O nascimento da cincia modernaO senso comum til para o
cotidiano, mas somente ele no suficiente para que a pessoa realize
todo o seu potencial. Por isso, preciso super-lo e ir em busca de
um conhecimento que no nos deixe ser levados pelas primeiras
impresses. Isso significa que preciso superar o senso comum
utilizando o mtodo cientfico. Maquiavel (1469-1527), pioneiro da
cincia poltica, e dos astrnomos Nicolau Coprnico (1473-1543) e
Galileu Galilei (15641642) desafiaram os dogmas e a viso de mundo
das igrejas crists para tentar desvendar os mistrios da
natureza.
Dvida sistemtica nesse perodo que a viso cientfica moderna
volta-se para o mundo, opondo-se ao senso comum reinante e que fora
induzido pelos dogmas religiosos, segundo os quais tudo ao redor do
homem seria fruto da vontade divina. A viso cientfica no admite
essa aceitao cega e, como foi destacado por Carl Sagan, sempre
duvida da realidade imediata. O uso do mtodo racional, que mais
tarde somou-se ao mtodo indutivo (pelo qual o conhecimento se
estabelece atravs da observao da repetio de um mesmo evento) no sem
questionar este ltimo , permitiu a aplicao prtica desse
conhecimento, que se traduziu no desenvolvimento tecnolgico do
sculo XIX. A exploso industrial-tecnolgica mudou os hbitos da
populao europeia, que passou, pela primeira vez em sua histria, a
concentrar-se nos centros urbanos, em vertiginoso crescimento. Foi
essa transformao espacial e comportamental o ponto de partida para
o surgimento da Sociologia.
Dogmas contestadosA tecnologia e o conforto de que as pessoas
dispem no mundo atual so acessveis apenas porque, nas geraes
anteriores, alguns se dedicaram investigao da natureza e de seus
mistrios, abandonando antigas crenas e dogmas e questionando-se
insistentemente. Compreender como os fenmenos acontecem e por que
acontecem permite saber como domin-los, ampliando o controle do
homem sobre a natureza. Se limitarmos a perspectiva histrica e
deixarmos de lado a contribuio da Grcia clssica e de outras
culturas da Antiguidade, podemos dizer que a cincia moderna, que
permite a passagem da teoria cientfica para a aplicao prtica no
cotidiano, surgiu durante o Renascimento europeu. Artistas e
pensadores do porte de Leonardo da Vinci (1452-1519), cientista e
artista, arqutipo do homem renascentista, de NicolauPerfil
Ren Descartes e o mtodo cientfico racionalVisto como o pai do
racionalismo, o francs Ren Descartes (1596-1650) negou o
conhecimento obtido do senso comum, o res extensa, em favor do
conhecimento real, o res cogito, obtido por meio da dvida
sistemtica e da utilizao da razo. O pensamento racional utiliza a
matemtica como linguagem que traduz a realidade; esta, portanto,
deve ser lgica, como a linguagem que a revela. Dessa forma, se a
matemtica confirma a possibilidade de um evento, significa que ele
certamente existe, mesmo que nunca se tenha percebido sua
existncia. Ele apenas no foi ainda identificado (ou verificado). A
defesa da razo cartesiana feita no Discurso do mtodo (1637), obra
na qual Descartes fundamenta seu pensamento, que se traduz na mxima
penso, logo existo. O ato de pensar, por traduzir-se em uma
atividade individual nica, comprova por si s a existncia do
sujeito, senhor de seu prprio pensar. 1. Verifique qual filosofia
predominava na Europa antes do cartesianismo. 2. Descartes era
filsofo e matemtico. Pesquise uma rea da Matemtica que tenha sido
desenvolvida por ele.Retrato de Ren Descartes, c. 1649, leo sobre
tela de Frans Hals, Museu do Louvre, Paris.
>
17
1
Vamos pensar a sociedade
O nascimento da SociologiaNavegue. Acesso em: 22 mar. 2010. O
site oferece um dicionrio de Sociologia com centenas de conceitos
apresentados em ordem alfabtica.
A rpida urbanizao, acompanhada pelo desenvolvimento de novas
tecnologias de comunicao (a expanso das ferrovias, o surgimento do
telgrafo e logo depois do telefone, agilizando as comunicaes) e de
novos mtodos de produo e organizao industrial, chamou a ateno de
muitos intelectuais que procuravam compreender como essas mudanas
afetavam o homem moderno. A curiosidade em relao ao comportamento,
ao modo de pensar e s concepes do homem levou ao desenvolvimento
das cincias humanas e, em particular, da Sociologia. Elas surgiram
posteriormente s cincias naturais e fsicas, cujos mtodos de
investigao cientfica encontravam-se plenamente formulados e em
aplicao durante o sculo XIX. Mas a curiosidade no pode ser
entendida como elemento suficiente para transformar o homem em
objeto de estudo e constituir uma rea da cincia; seria necessrio
determinar um mtodo de investigao cientfica que se adequasse ao
objeto de estudo, a espcie humana.
Perfil Saint-Simon, precursor do pensamento
sociolgicoPertencente alta nobreza da Frana, Claude-Henri de
Rouvroy, conde de Saint-Simon (1760-1825), renunciou a seu ttulo e
a seus privilgios aos 40 anos, pregando os ideais iluministas e a
aplicao incondicional da razo s questes humanas. Saint-Simon
identificava o uso do pensamento racional como caminho para a
descoberta do funcionamento dos mecanismos que compunham a
natureza, possibilitando saltos tecnolgicos que reduziriam as
diferenas e a explorao econmica. Isso propiciaria uma era de paz,
de riqueza e de harmonia entre os homens. Essa viso colocou-o entre
os chamados socialistas utpicos. Por outro lado, ele tambm era
obcecado pela racionalizao da produo, preocupando-se com a elevao
da produtividade fundamentada na especializao e na hierarquizao das
funes e das atividades na fbrica. Essa concepo aproximou-o dos
pensadores positivistas, tendo sido Auguste Comte, criador de tal
corrente, assistente de Saint-Simon em sua adolescncia e incio da
vida adulta. 1. Pesquise a organizao da sociedade proposta por
Saint-Simon. 2. Faa pesquisas para identificar outros socialistas
utpicos.
O conde de Saint-Simon, litografia, Biblioteca Nacional,
Paris.
O positivismo de Auguste Comte creditado ao francs Auguste Comte
(1798-1857) o ttulo de pai da Sociologia. Foi ele quem cunhou o
nome desse campo do conhecimento, mas, quando o fez, tinha como
objetivo destacar o papel de fsica social da Sociologia. Assim, o
socilogo devia interpretar o homem em sociedade com o mesmo
distanciamento e neutralidade das cincias exatas. Sendo uma cincia
nova, a Sociologia buscou espelhar-se nas demais cincias, cujo
mtodo de investigao era eficiente e apresentava resultados
convincentes. Segundo Comte, as leis referentes ao desenvolvimento
da espcie humana eram to rigorosas quanto a lei da gravidade. Ou
seja, o homem e a sociedade deveriam obedecer a leis semelhantes s
que regiam a natureza, mesmo porque a espcie humana faz parte dela.
Amparado por essa viso, Comte procurava aplicar o mtodo cientfico
ao estudo da sociedade europeia de sua poca. Esse procedimento
consiste na identificao e na observao do objeto de estudo, e requer
ainda a quantificao dos dados colhidos, que sero, posteriormente,
analisados atravs da comparao, numa busca de evidncias de
determinado padro ou causalidade. No final, coloca-se prova esse
padro ou causalidade, por meio de experincias que devem comprovar
os dados inicialmente colhidos.18
>
O nascimento da Sociologia
Os trs estgiosAtravs da utilizao desse mtodo, Comte chegou
formulao da Lei dos Trs Estgios, em que identificou trs momentos
especficos do esforo humano para compreender o mundo sua volta.
Tais estgios o teolgico, o metafsico e o positivo ocorreriam de
forma organizada e na mesma ordem, constituindo a evoluo do
pensamento e, automaticamente, da prpria sociedade, favorecida em
termos tecnolgicos pelas novas descobertas.
Classificao das cinciasCom base na Lei dos Trs Estgios, Comte
procurou classificar as cincias, considerando fatores como a
simplicidade e a complexidade e o momento em que elas deixariam
para trs os aspectos metafsicos para tornarem-se positivas. Segundo
ele, haveria seis grandes disciplinas cientficas: a Matemtica, a
Astronomia, a Fsica, a Qumica, a Biologia e a Sociologia. A
primeira delas, a Matemtica, teria se tornado positiva desde a
Antiguidade, quando descartou os elementos metafsicos presentes nas
concepes de Pitgoras (c. 570 a.C.-c. 496 a.C.), filsofo e
matemtico. A Astronomia realizou uma trajetria similar no sculo XVI
e no incio do sculo XVII, com os trabalhos de Nicolau Coprnico e de
Johannes Kepler (1571-1630); a Fsica ganhou positividade nos sculos
XVII e XVIII, graas a Galileu Galilei e a Isaac Newton (1643-1727);
e a Qumica no sculo XVIII, com Lavoisier (1743-1794); a Biologia
tornou-se positiva no decorrer do sculo XIX; enquanto a Sociologia
j despontou como cincia positiva. Segundo Comte, o acelerado
desenvolvimento cientfico e tecnolgico de seu tempo era fruto da
especializao cientfica. No entanto, era preciso evitar os efeitos
perniciosos da especializao exagerada, entre os quais a ateno
excessiva aos detalhes e a recusa universalidade das investigaes
especiais, to fcil e comum nos tempos antigos. Essas ideias so
desenvolvidas em sua obra Curso de Filosofia positiva, publicada em
seis volumes, de 1830 a 1842.
Por essa poca, suas preocupaes voltavam-se, cada vez mais, para
a espiritualidade. Em sua concepo, seria preciso retirar da dimenso
espiritual e religiosa do homem os elementos sobrenaturais. As
formulaes da Religio da Humanidade, baseadas no altrusmo e no na
crena em um ser divino, foram apresentadas em 1854 no ltimo volume
de sua obra Sistema de poltica positiva, publicada a partir de
1851. Muitos intelectuais at ento influenciados pelo positivismo
afastaram-se de Comte por causa do retrocesso metafsico implcito
nessa concepo religiosa. Isso, porm, no o desanimou, e certa vez
ele declarou ter seguido duas carreiras diferentes: a primeira,
apoiada nos princpios de Aristteles (referncia a suas preocupaes
filosficas), e a segunda, nos de Paulo (o apstolo de um novo
credo). A Igreja positivista difundiu-se em diversos pases. No
Brasil, o primeiro templo foi fundado em 1881.Primeiro templo da
Igreja positivista no Brasil, localizado no bairro do Catete, na
cidade do Rio de Janeiro. Fotografia de 2003. Depois da criao da
Religio da Humanidade, muitos intelectuais at ento influenciados
pelo positivismo afastaram-se de Comte, por causa do que
consideraram uma recada metafsica do pai da Sociologia.
>
Tnel do tempoDesenvolvimento dos conhecimentos humanos
a essa repartio de diversas espcies de pesquisas entre
diferentes ordens de sbios que devemos, evidentemente, o
desenvolvimento to notvel que tomou, enfim, em nossos dias, cada
classe distinta dos conhecimentos humanos [...]. Mas hoje cada uma
dessas cincias tomou separadamente extenso suficiente para que o
exame de suas relaes mtuas possa dar lugar a trabalhos contnuos, ao
mesmo tempo em que essa nova ordem de estudos tornou-se
indispensvel para prevenir a disperso das concepes humanas. Tal a
maneira pela qual concebo o destino da filosofia positiva no
sistema geral das cincias positivas propriamente ditas [...].Comte,
Auguste. Curso de filosofia positiva. In: Os pensadores. So Paulo:
Abril Cultural, 1978. p. 17-8.
Religio da HumanidadeEm 1852, Comte colocou junto s seis cincias
positivas uma stima, a Moral, que deveria estudar a psicologia do
indivduo e suas interaes sociais.
1. Segundo Comte, que organizao da cincia favoreceu a expanso do
conhecimento no sculo XIX? 2. Que papel o autor reservava Filosofia
positiva?
19
1
Vamos pensar a sociedade
Alcance e limitaes do
positivismo
A doutrina positivista exerceu forte influncia sobre os
militares brasileiros que proclamaram a Repblica, a ponto de parte
do lema da Religio da Humanidade o Amor por princpio, a Ordem por
base, o Progresso por fim estar inscrita na bandeira nacional, por
meio da expresso Ordem e Progresso. Entre os seus principais
divulgadores estava o republicano Benjamin Constant, que no apenas
era adepto das concepes filosficas de Comte, mas tambm chegou a
frequentar a Igreja positivista. O iderio comtiano tambm marcou a
vida poltica do Rio Grande do Sul. A Constituio gacha de 1891, que
permitia reeleies sucessivas do presidente (governador) do Estado,
possua inspirao positivista. Tanto Jlio de Castilhos quanto seu
sucessor, Borges de Medeiros, que controlaram a poltica do Rio
Grande do Sul durante toda
a Repblica Velha, diziam-se influenciados por Auguste Comte. A
doutrina positivista lanou igualmente razes no Mxico, onde
tornou-se uma espcie de ideologia oficiosa do regime autoritrio de
Porfrio Daz, que governou o pas de 1876 a 1880 e depois de 1884 a
1911. No entanto, essa fase de impacto poltico, no Mxico, no Brasil
e em outros pases, pertence ao passado.
Abertura de caminhosA grande limitao do positivismo encontra-se
no fato de identificar o homem como elemento natural que reage ao
meio e aos acontecimentos ao seu redor, sendo incapaz de, por
vontade prpria, buscar alternativas distintas daquelas para as
quais as condies sociais o levariam. Contraditoriamente, o esforo
metodolgico de Comte abriria espao para que outros pensadores do
sculo XIX pudessem consolidar os estudos sociolgicos, tornando-se
referncia para eles.
Conhea melhorA Lei dos Trs EstgiosAtravs do mtodo incorporado
das cincias matemticas e naturais, Auguste Comte chegou concluso de
que o esprito humano passa por uma transformao progressiva no que
diz respeito capacidade de investigao da realidade. Num primeiro
momento, no qual o domnio sobre a natureza ainda limitado, suas
explicaes recorrem a entidades e figuras divinas e espirituais,
responsveis pela criao de tudo; trata-se do estgio teolgico. Este
seria ultrapassado a partir do instante em que essas respostas
espirituais no fossem mais suficientes para explicar o mecanismo da
realidade social, abrindo caminho para o estgio metafsico, no qual
o homem passa a contemplar a realidade procurando despojar-se dos
smbolos religiosos e buscando na natureza e em si prprio as
respostas para a compreenso dessa realidade. Por fim, esse
conhecimento metafsico, contemplativo e filosfico cede espao para o
surgimento do estgio positivo, quando o homem passa a aplicar o
conhecimento pensado e teorizado no momento anterior.Imagens do
cristianismo medieval, do Renascimento artstico e cientfico e da
sociedade industrial, perodos analisados por Comte. Da esquerda
para a direita: Coroao de Filipe II Augusto da Frana, livro de
iluminuras atribudo a Jean Fouquet, Biblioteca Nacional, Paris; O
homem vitruviano, 1492, de Leonardo da Vinci, Gallerie
dellAccademia, Veneza, e Ferrovia elevada em Nova York, c. 1880,
litogravura colorida, Escola Americana, coleo particular.
1. Identifique nos perodos representados pelas imagens exemplos
do conhecimento que Auguste Comte classificou como teolgico,
metafsico e positivo. 2. Em que estgio do desenvolvimento social
surgiu a cincia moderna?
20
>
mile Durkheim
mile DurkheimApesar de ser considerado discpulo de Auguste
Comte, o francs mile Durkheim (1858-1917) no poupou crticas ao seu
antecessor ao afirmar que Comte praticava uma investigao sociolgica
despojada do verdadeiro esprito cientfico e que ainda flertava com
ideias vagas e especulativas. Essa tendncia se tornaria mais
evidente na fase final da trajetria de Comte, quando a Sociologia,
de cincia da sociedade baseada em leis racionais, fsica social,
passou a ser vista por ele como o fundamento de uma nova concepo
religiosa: a Religio da Humanidade. A metodologia desenvolvida por
Durkheim foi apresentada em um de seus livros mais importantes, As
regras do mtodo sociolgico (1895), que atribuiu Sociologia um
efetivo estatuto cientfico. Segundo ele, era necessrio ao socilogo
livrar-se de todo e qualquer tipo de preconceito e ideologia ao
analisar um acontecimento, mantendo uma neutralidade real diante do
objeto de estudo, o que poderia ser feito apenas a partir do
instante em que se desviasse a percepo dos indivduos em direo aos
fatos sociais. Nessas sociedades urbano-industriais, os indivduos,
por vezes, sentem-se perdidos, como se estivessem descolados da
estrutura, como se nunca chegassem a fazer parte dela. Essa sensao
de perda de rumo e controle Durkheim chamou de anomia uma
configurao social que resulta em indivduos com essa sensao de
desalento. Esse conceito apresentado em outra obra, intitulada O
suicdio (1897). Nesse livro, ele mostra que o ato individual e
solitrio dos suicidas sofre uma profunda influncia dos fatores
sociais, sendo, por exemplo, mais frequente entre os solteiros,
vivos e divorciados do que entre pessoas casadas e com filhos. O
suicdio por anomia, em especial, estaria associado no identificao
do indivduo com as normas da sociedade. Na verdade, a tendncia
multiplicao dos suicdios registrada em diversos pases seria um
sintoma de uma sociedade doente.
Diviso do trabalho socialNa viso durkheimiana, os fatos sociais
so coisas, elementos exteriores ao ser humano e que no pertencem a
ele, sendo, na verdade, plenamente independentes de sua vontade.
Mais do que isso, os fatos sociais so estabelecidos pela sociedade
e exercem grande presso e controle sobre os indivduos, forando-os a
posicionar-se dentro do todo social. O todo social, por sua vez,
manteria sua coeso a unio entre os indivduos que o compem atravs
dos nveis de solidariedade. A solidariedade seria mecnica quando
observada em sociedades tradicionais, nas quais impera o poder da
crena espiritual; e seria orgnica em sociedades industriais e
laicizadas, nas quais a fora da tradio substituda pelos laos
econmicos que unem patro e empregado. Nessas sociedades
contemporneas, a contnua diviso do trabalho promove a especializao
entre os indivduos, de modo que cada um passa a depender dos
servios do outro, mesmo no mantendo vnculos pessoais entre si. Tais
aspectos so aprofundados em outra das principais obras de Durkheim,
Da diviso do trabalho social (1893).
Trabalhadores numa fbrica de montagem de televises de tela
plana, na cidade chinesa de Chengdu. Fotografia de 2009. Para
Durkheim, a situao apresentada nessa imagem seria um exemplo da
solidariedade orgnica na diviso do trabalho e da contribuio do
indivduo ao corpo coletivo social.
Instituies sociaisOutra noo bastante presente ao longo da obra
de Durkheim a de instituio social. Ela designa procedimentos
aceitos e sancionados pela sociedade, destinados a manter a coeso
do grupo e a atender s necessidades de seus integrantes. A famlia,
a escola e a polcia estariam entre essas instituies sociais,
essencialmente conservadoras, que cumprem a funo de reforar a coeso
social.
lossrioIdeologia: o termo tem basicamente duas acepes: conjunto
de ideias que caracterizam determinada sociedade; e construo
visando mascarar consciente ou inconscientemente a realidade
social. 1. Pesquise no dicionrio outras acepes para ideologia. 2. O
termo ideologia normalmente no usado por Durkheim. Quais conceitos
poderiam substitu-lo? 21
>
1
Vamos pensar a sociedade
Tnel do tempoTragdia e farsa
Marx e SpencerSe a Sociologia nasceu e consolidou-se na Frana,
um alemo abriu novos horizontes para esse campo do conhecimento:
Karl Marx (1818-1883).
Hegel faz notar algures que todos os grandes acontecimentos e
personagens histricos se repetem por assim dizer uma segunda vez.
Esqueceu-se de acrescentar: da primeira vez como tragdia, da
segunda como farsa. Caussidire por Danton, Louis Blanc por
Robespierre, a Montanha de 1848 a 1851 pela Montanha de 1793 a
1795, o sobrinho pelo tio. [...]. Os homens fazem a sua prpria
histria, mas no a fazem arbitrariamente, nas condies escolhidas por
eles, mas sim nas condies diretamente determinadas ou herdadas do
passado. A tradio de todas as geraes mortas pesa inexoravelmente no
crebro dos vivos. E mesmo quando estes parecem ocupados em
transformar-se, a eles e as coisas, em criar algo de absolutamente
novo, precisamente nessas pocas de crise revolucionria que evocam
com inquietao os espritos do passado, que lhes tomam de emprstimo
os seus nomes, as suas palavras de ordem, os seus costumes, para
entrarem na nova cena da histria sob esse disfarce venervel e com
essas palavras emprestadas. [...].Marx, Karl. O 18 Brumrio de Lus
Bonaparte. So Paulo: Mandacaru, 1990. p. 17.
O materialismo histrico de MarxKarl Marx dedicou especial ateno
ao estudo da sociedade capitalista-industrial do sculo XIX. Ele
apontou que a fbrica era a clula dessa nova sociedade. Dessa
maneira, compreendendo o funcionamento da fbrica, seria possvel
estender a compreenso ao prprio sistema emergente. Dentro da fbrica
e da sociedade capitalista existem duas categorias centrais que se
envolvem no processo de produo: capital e trabalho. Ambos
representam tambm classes sociais antagnicas. Enquanto a burguesia
proprietria dos meios de produo (a fbrica e as ferramentas
necessrias para produzir), os operrios detm a fora de trabalho que
movimenta os meios de produo. O trabalho operrio acrescenta valor
mercadoria produzida: a mais-valia. Os confrontos entre as duas
classes tornam-se mais agudos at a revoluo. A vitria dos explorados
instauraria a ditadura do proletariado, indispensvel para se
alcanar o comunismo a sociedade sem classes.Barricada na rua
Soufflot, Paris, 25 de junho de 1848, leo sobre tela de Horace
Vernet, 1848-1849, Deutsches Historisches Museum, Berlim. O ano de
1848, das mobilizaes da chamada Primavera dos Povos, tambm o do
lanamento do Manifesto Comunista por Marx e Engels.
>
Economia e polticaOs mecanismos da produo capitalista so
expostos e analisados por Marx em diversos textos sobre Economia
Poltica. Entre eles est a sua principal obra, O Capital, cuja
publicao teve incio em 1867. No entanto, o compromisso de Marx com
a revoluo socialista manifestou-se muito antes. Em 1848 no momento
em que as mobilizaes da Primavera dos Povos eclodiam pela Europa ,
ele e seu amigo e parceiro intelectual Friedrich Engels (1820-1895)
lanaram o Manifesto Comunista. Outros textos de Marx, como O 18
Brumrio de Lus Bonaparte (1852) e A guerra civil na Frana (1871),
so considerados obras-primas de anlise poltica. Neles, o
materialismo histrico que relaciona as concepes e o estilo de
interveno poltica dos setores sociais com o lugar que ocupam na
esfera produtiva mostra todo o seu potencial.
1. Pesquise quem so as personagens e os grupos polticos
mencionados no primeiro pargrafo do texto acima. 2. Discuta com
seus colegas a ideia de que os homens fazem a sua prpria histria,
porm nas condies diretamente determinadas ou herdadas do
passado.
O organicismo de SpencerOutro pensador importante da fase
inicial da Sociologia foi o ingls Herbert Spencer (1820-1903).
Influenciado pelo darwinismo, ele viu a sociedade como um organismo
em evoluo, com a trajetria da sociedade militante, homognea e
indiferenciada, para a sociedade industrial, complexa e
diferenciada, baseada em obrigaes sociais voluntrias,
contratualmente assumidas.22
O interacionismo de Max Weber
O interacionismo de Max WeberO alemo Max Weber (1864-1920) tambm
demonstrou interesse no desenvolvimento do sistema e da sociedade
capitalistas. Mas, ao contrrio de Marx e de Durkheim, ele
acreditava que as estruturas, apesar de importantes, no eram
determinantes para a formao e para o desenvolvimento da sociedade.
Para tanto, seria necessrio voltar-se para o elemento que
originariamente d forma estrutura, o indivduo.
lossrioSuperestrutura: conceito marxista para o conjunto de
instituies que fazem parte de uma sociedade nas esferas poltica,
social, cultural e religiosa. Estas exercem influncia sobre o
comportamento dos indivduos, mas submetem-se s mudanas provenientes
da infraestrutura, que corresponde ao nvel das relaes de produo. 1.
As relaes de trabalho pertencem ao nvel da infraestrutura ou da
superestrutura? E a escola? 2. Qual o efeito das mudanas na
infraestrutura?
Aes com sentidoPara alcanar seu objetivo, Weber desenvolveu o
conceito de ao social, a ao que um indivduo exerce em relao a outro
e que imprevisvel para este ltimo at que ele a receba e interaja ou
no. So as interaes sociais que formam o alicerce de compreenso da
sociedade. Uma caracterstica da ao social ela ser uma conduta
humana dotada de sentido, isto , de uma justificativa
subjetivamente elaborada. o homem quem atribui sentido ao social:
ele quem estabelece a conexo entre o motivo da ao, a ao
propriamente dita e os efeitos que produz. A tarefa do cientista
buscar compreender os nexos que do sentido ao social.
O tipo idealUm trao caracterstico do mtodo weberiano a utilizao
do tipo ideal, uma ferramenta de pesquisa que contribui na anlise
dos fenmenos sociais. Trata-se de um mtodo terico abstrato que
desenvolve categorias a partir do estudo comparado dos fenmenos
sociais, contrapondo a identificao das semelhanas e diferenas
desses empiria.
O esprito do capitalismoEntre os livros mais conhecidos de Max
Weber est A tica protestante e o esprito do capitalismo
(1904-1905), em que ele afirma: Qualquer observao da estatstica
ocupacional de um pas de composio religiosa mista traz luz, com
notvel frequncia, [...] o fato de os lderes do mundo dos negcios e
proprietrios do capital, assim como dos nveis mais altos da mo de
obra qualificada [...], serem preponderantemente protestantes. Para
explicar essa situao, o autor mostra que certas crenas ligadas
Reforma Protestante (e em especial o calvinismo) favoreciam o
comportamento econmico racional dos devotos. A riqueza associada ao
trabalho e a uma vida frugal era um indcio do favor divino, um
sinal de que a pessoa estava entre os eleitos. Sem dvida, a salvao,
no o enriquecimento, era o objetivo; a prosperidade era antes um
efeito dos hbitos de vida valorizados pelo calvinismo. Weber
observa que nas igrejas dos huguenotes franceses,
monges-industriais (comerciantes, artesos) constituam boa parte dos
fiis, especialmente na poca das perseguies. At os espanhis sabiam
que a heresia (dos calvinistas da Holanda) promove o comrcio. Essa
perspectiva contrariava o materialismo histrico, que via o nvel das
relaes de produo como o responsvel com toda uma srie de mediaes
pela modelagem das superestruturas, at mesmo da religiosa. Em vez
disso, Weber sustentou que uma dimenso cultural, o protestantismo
e, em especial, a crena calvinista, podia ser considerada uma
semente da economia capitalista, produzindo efeitos sobre as
estruturas econmicas.
Rembrandt, O sindicato dos mercadores de tecidos, leo sobre
tela, 1662. Rijksmuseum, Amsterd. O artista retratou os burgueses
da cidade, influenciados pela tica protestante, que, segundo Weber,
favoreceu o desenvolvimento do capitalismo.
>
23
1
Vamos pensar a sociedade
A Sociologia aplicada ao cotidianoMas, afinal, para que serve
efetivamente o saber sociolgico? A melhor forma de tentar responder
atravs de um exemplo prtico. Para que esse exemplo seja
convincente, o ideal que ele se articule com os interesses
imediatos do aluno. Como voc est lendo este livro, deve estar
cursando o Ensino Mdio e, provavelmente, considera ou considerou
com uma pitada de ansiedade a perspectiva de se preparar para o
desafio do vestibular. Para todos os estudantes, a aprovao no
vestibular est diretamente ligada ao rendimento escolar. Passar
nesse tipo de exame significa uma vitria intelectual pessoal,
porque somente os que so classificados entre os aprovados, e por
isso mesmo considerados intelectualmente aptos, que podem cursar as
disciplinas universitrias. parentes que acreditaram no seu
potencial e investiram em seus estudos.
Rito de passagemMuitos socilogos e antroplogos identificam traos
similares entre a preparao para o vestibular ou exames semelhantes
nas sociedades urbano-industriais e a realizao das provas e dos
ritos de passagem a que se submetem adolescentes e jovens de ambos
os sexos em muitas sociedades indgenas, para a conquista do status
de adultos. Dessa perspectiva, o perodo de preparao para os exames,
durante o qual os encontros com os amigos so trocados por noites de
estudo, assume grande importncia. Em certa medida, essa fase pode
ser comparada ao tempo de recluso na casa dos homens ou seu
equivalente feminino em certos grupos nativos, durante o qual os
rapazes e as moas que em breve vo iniciar a vida adulta assimilam
conhecimentos socialmente valorizados e transmitidos pelos mais
velhos. Em outras palavras, a preparao para o estgio adulto comea
bem antes da realizao do vestibular, num rito de passagem que exige
a renncia temporria s baladas, s excurses e a outros prazeres em
geral associados condio juvenil.
Realizao pessoalSer aprovado no vestibular tambm representa
sucesso social, pois o jovem universitrio torna-se parte de uma
elite que tem acesso educao de qualidade. Esse reconhecimento
social sinnimo de status, que tambm satisfaz seu desejo de
realizao, porque muita gente depositou confiana em voc: seus
professores, amigos, pais e
Conhea melhorA presso do vestibularO vestibular no o nico
bicho-papo no caminho dos adolescentes e dos jovens: o que mostra a
bem-humorada charge do cartunista Angeli. Nela, o exame tratado
como mais uma etapa na vida do estudante, que ainda enfrentar novos
desafios e perturbaes em sua vida pessoal, como a obteno do
primeiro emprego, a consolidao de uma carreira, uma demisso
imprevista, problemas na esfera amorosa e assim por diante.
Compreender essa dimenso do vestibular essencial para que o aluno
possa resistir presso, dominar a ansiedade e triunfar sobre mais um
dos obstculos que se colocam sua frente. 1. Escreva uma dissertao
comparando duas situaes angustiantes: passar no vestibular e
conquistar o primeiro emprego. 2. Cite outras situaes que podem ser
vistas como marcos na trajetria individual.Charge de Angeli
publicada na Folha de S.Paulo em 20 de dezembro de 2001.
>
24
A Sociologia aplicada ao cotidiano
Aspectos polticos e econmicosO exame vestibular tambm leva a
outras consideraes, como a adoo das cotas para minorias tnicas e
grupos carentes. Tal poltica levanta polmicas. Segundo seus
defensores, ela visa amenizar desigualdades sociais; os crticos
dessa poltica, por outro lado, argumentam que ela reduz o acesso a
vagas por parte de outros alunos que poderiam ter desempenho
superior ao dos beneficiados pela poltica de cotas. Outra
considerao a ser feita sobre o vestibular com relao ao impacto que
ele produz nas pessoas que moram nas proximidades dos locais onde
as provas so aplicadas. Os trabalhadores responsveis pela limpeza,
por exemplo, no final das provas devem fazer um esforo extra,
recolhendo milhares de papis, de copos plsticos, de embalagens de
alimentos, de latas de refrigerante, etc. Alm disso, costuma haver
alteraes no transporte coletivo, cujas rotas e horrios so
redimensionados para atender aos estudantes. Isso implica uma
mudana, por vezes desconfortvel, da rotina da comunidade. Por fim,
a realizao das provas movimenta grande contingente de trabalhadores
responsveis por elaborar as questes, editando-as, imprimindo-as e
distribuindo-as na hora correta e ao mesmo tempo para todos os
concorrentes. Todo esse grupo que torna o vestibular possvel
remunerado, aspecto que tem certo impacto sobre as atividades
econmicas no perodo em que o exame ocorre.
Braslia, 1o de outubro de 2009: os movimentos sociais Educafro e
Articulao em Defesa das Cotas Raciais promovem ato pblico em defesa
das cotas raciais diante do Supremo Tribunal Federal.
Imaginao sociolgicaPercebe o que significa tudo isso? Quando voc
pensa no vestibular, concentra sua imaginao na necessidade de
vencer esse desafio, talvez sem se dar conta de que, na realidade,
ele envolve um nmero muito maior de pessoas e relaes sociais,
interligando-as. Eis a uma aplicao prtica do pensar sociolgico.
Wright Mills (1916-1982) chamou de imaginao sociolgica a capacidade
de passar de uma perspectiva a outra do conhecimento, conectando-as
como parte de um mesmo evento ou ocorrncia social. A imaginao
sociolgica permite abandonar a perspectiva individual e adotar uma
noo mais coletivizante do evento em si. Nas palavras do autor: A
imaginao sociolgica capacita seu possuidor a compreender o cenrio
histrico mais amplo, em termos de seu significado para a vida ntima
e para a carreira exterior de numerosos indivduos. Permite-lhe
levar em conta como os indivduos, na agitao de sua experincia
diria, adquirem frequentemente uma conscincia falsa de suas posies
sociais. Dentro dessa agitao, busca-se a estrutura da sociedade
moderna, e dentro dessa estrutura so formuladas as psicologias de
diferentes homens e mulheres. Atravs disso, a ansiedade pessoal dos
indivduos focalizada sobre fatos explcitos e a indiferena do pblico
se transforma em participao nas questes pblicas. [...].Mills, C.
Wright. A imaginao sociolgica. 6. ed. Rio de Janeiro: Zahar, 1982.
p. 11-2.
>
lossrioConscincia falsa: na concepo marxista, trata-se de uma
construo ideolgica destinada a mascarar a realidade. 1. Em que
sentido C. Wright Mills usou essa expresso? Justifique a resposta.
2. D exemplos de conscincia falsa.
De certa forma, foi isso que os pais fundadores do pensar
sociolgico fizeram ao tentar imaginar a sociedade capitalista no
apenas por sua unidade, o indivduo, mas tambm atravs da
coletividade formada pelos indivduos. Compreender a sociedade
compreender melhor o papel que o indivduo exerce nela, o que lhe
permite buscar papis diferentes de acordo com as pretenses que
porventura venha a ter. Exercer a imaginao sociolgica significa
exercer um valioso movimento de autoconhecimento, que possibilita a
cada pessoa avaliar de forma mais precisa suas qualidades e
limitaes, bem como do coletivo em que vive.
25
1
Vamos pensar a sociedade
Sociologia e aprimoramento
da cidadania
A Sociologia no , porm, um instrumento voltado apenas para o
autoconhecimento, mas tambm para a compreenso e para o
aprimoramento da sociedade. Numa organizao social na qual a maior
parte das decises de interesse da coletividade tomada por
representantes escolhidos pelos cidados por meio do voto, relevante
direcionar a imaginao e a anlise sociolgicas para esse setor.
AvaliaesNem sempre possvel monitorar a qualidade do mandato dos
representantes do povo; ainda assim, cabe registrar as promessas e,
o mais importante, o que foi efetivamente realizado por eles em
benefcio da sociedade e no de um pequeno grupo. Atravs das
realizaes prticas de um poltico eleito, possvel avaliar a
importncia
e o impacto da gesto dele junto comunidade. Por exemplo, quando
se pretende ampliar a quantidade de pistas de um aeroporto e isso
implica a remoo de famlias que residem nas proximidades do local,
preciso avaliar se essa medida vai trazer benefcios reais para a
coletividade e a forma como as famlias sero deslocadas para outras
reas, sem perder qualidade de vida. Tambm necessrio verificar se o
dinheiro investido na obra no est sendo desviado para outras
atividades ou, ainda mais grave, para o bolso de algumas pessoas e
se essa ampliao no visa favorecer basicamente grupos privados.
Acompanhamentos e avaliaes desse tipo aumentam a transparncia na
atividade poltica e contribuem para o reforo da cidadania dos
indivduos mobilizados.
Compreenso do indivduoNo momento em que o indivduo e a
comunidade permanecem mudos e incapazes de reagir a mudanas sociais
amplas, quando o socilogo deve mostrar-se mais presente, apontando
a inquietao dos grupos indefesos diante das mudanas (ou perturbaes,
como Mills preferiu chamar as situaes em que a rotina abalada por
transformaes externas, mas que afetam as pessoas internamente). Da
mesma forma, a aplicao do pensar sociolgico permite compreender
melhor os indivduos com quem a pessoa interage. Essa compreenso e a
maior interatividade auxiliam no difcil processo de entender o que
o outro pensa, reduzindo as barreiras sociais e favorecendo o
desempenho profissional, j que o instrumental sociolgico facilita o
contato entre os indivduos. Como exemplo, podemos mencionar uma
casa noturna frequentada basicamente por jovens de 18 a 25 anos.
Compreender como esse grupo age e quais as suas motivaes permite ao
proprietrio e aos funcionrios do estabelecimento lidar melhor com o
pblico, garantindo sua fidelidade. Outro exemplo: agentes sociais
que trabalham com mulheres violentadas ou com prostitutas (que
sofrem violncia diria, em meio ao descaso generalizado) precisam
compreender a realidade em que elas vivem para saber como conversar
a respeito do cotidiano delas e como atender a suas expectativas,
realizando melhor seu trabalho de integrao social. Em todos esses
casos, o pensar sociolgico uma ferramenta fundamental.
Conhea melhorA imaginao sociolgica e a realidade social
brasileiraUm pas de dimenses continentais e populao diversificada
como o Brasil um vasto laboratrio para o socilogo. Seu instrumental
til para compreender como os brasileiros das diferentes regies veem
a si mesmos e veem uns aos outros, fornecendo elementos para o
combate a atitudes estereotipadas que alimentam o preconceito.
Tambm ajuda a planejar melhor a distribuio da populao e os recursos
humanos necessrios para cada regio. Alm disso, seus estudos
evidenciam as necessidades locais, o processo de integrao da
sociedade e a construo de uma identidade com que seus componentes
possam identificar-se. 1. Com base na imagem do analista de Bag,
personagem do escritor Lus Fernando Verssimo, identifique alguns
esteretipos associados figura do gacho. 2. Monte com seus colegas
painis com imagens e textos sobre o analista de Bag. 3. Mencione
alguns esteretipos que costumam ser relacionados aos habitantes do
Rio de Janeiro, de So Paulo e da Bahia.Capa de O analista de Bag,
So Paulo: Crculo do Livro, 1986. Explorando os esteretipos
associados ao gacho, especialmente o da fronteira, Lus Fernando
Verssimo criou uma personagem inesquecvel.
>
26
A Sociologia aplicada ao cotidiano
Ns no mundoQuadrinhosA tirinha de Charles M. Schulz consta do
livro Assim a vida, Charlie Brown! Porto Alegre: L&PM,
2007.
Quem somos nsVoc j se perguntou por que voc e age, pensa, se
veste, fala, etc. desse jeito? Porque voc assim, do seu jeito. Mas
o que significa ser do seu jeito? Como voc se tornou o que hoje? O
jeito de ser de cada pessoa foi moldado desde o nascimento dela,
passando pela infncia e juventude, at chegar idade adulta. Atravs
de uma enorme quantidade de relaes individuais e coletivas, ela
absorveu informaes necessrias para essa moldagem. Por maior que
seja o esforo, uma pessoa no consegue lembrar-se com clareza do
incio de sua vida e mesmo dos primeiros anos de sua infncia, porque
nessa fase ela ainda est formando sua conscincia sobre o mundo.
medida que cresce, vai ampliando o leque de pessoas com quem tem
contato, o que a leva a novas relaes e experincias que contribuem
para sua formao individual. Constata-se assim que os seres humanos
so seres sociais. Cada indivduo depende da existncia dos outros e
tem conscincia disso, o que contribui para a manuteno dos laos que
unem a sociedade; no possvel imaginar um indivduo que viva
completamente isolado de qualquer tipo de contato com outros seres
humanos. Nem mesmo a figura de um Robinson Cruso ou da personagem
de Tom Hanks no filme Nufrago pode ser considerada como a de um ser
desprovido de contato humano, a no ser na situao especial (isolados
em uma ilha) em que se encontram. Ambos mantm prticas sociais a
despeito do isolamento temporrio, procurando conservar parte do que
se pode chamar de rotina diria. So, portanto, seres sociais. Um
indivduo completamente isolado seria aquele que jamais chegou a ter
qualquer tipo de contato fsico ou social com outros seres humanos,
como se, por exemplo, ao nascer, fosse abandonado em uma floresta.
Suas condies de sobrevivncia como um recm-nascido seriam muito
limitadas, e sua morte seria praticamente certa. O ser humano um
dos animais mais frgeis e indefesos nos primeiros anos de vida,
necessitando de ateno e cuidados quase contnuos.
>
Na tirinha, Charles Schulz transmite a percepo adequada da
diferenciao entre o eu e os outros ou mesmo o ns. No caso, a
personagem Lucy, acometida por um resfriado, utiliza sua
perspectiva pessoal para desmerecer o problema que se alastra junto
s demais crianas, por entender que, em seu caso, foi muito pior
porque aconteceu com ela. Essa uma tpica situao em que se pode
perceber a relao do sujeito com a sociedade, tema a ser estudado
neste mdulo. 1. Procure determinar o impacto de doenas endmicas
para voc, para sua comunidade e para sua cidade. 2. Quais as
providncias que voc pode tomar para que seu cotidiano no seja
prejudicado por causa disso?
lossrioIndivduo: segundo o Dicionrio de Cincias Sociais do
MEC/FGV:
O substantivo indivduo sinnimo de pessoa ou ser humano. O
adjetivo individual denota que o substantivo por ele qualificado
singular, separado e distinguvel, como se observa na seguinte
expresso: o ser humano individual. [] Na literatura de cincias
sociais, o termo indivduo perdeu seu significado original de
indivisvel e usado como sinnimo de pessoa ou ser humano singular.
[...].Velho, Otvio Guilherme. Indivduo. In: Dicionrio de Cincias
Sociais. Rio de Janeiro: Ed. da FGV, 1986. p. 591.
27
1
Vamos pensar a sociedade
O aprendizado humanoLeiaBurke , Peter; Porter, Roy (orgs.).
Linguagem, indivduo e sociedade. So Paulo: Editora da Unesp, 1994.
A obra procura desvendar a formao do eu na sociedade a partir do
mecanismo da linguagem, mostrando como esta essencial nas relaes
sociais e na formao das identidades individuais.
Vamos imaginar a hiptese mencionada de um recm-nascido ter sido
abandonado em uma floresta e, posteriormente, ser encontrado e
acolhido por animais, como macacos ou lobos. Essa criana jamais
teria contato com outro ser humano, portanto no aprenderia a falar,
a raciocinar, a andar sobre as duas pernas, a usar as mos para
operar e produzir instrumentos. No aprenderia a ser humana, mas
incorporaria os hbitos do grupo de animais com o qual passou a
viver, fazendo parte da comunidade deles e submetendo-se s regras
de convivncia deles.
Agentes de socializaoCasos como o das meninas-lobo mostram que a
nica forma de a pessoa desenvolver sua individualidade pelo contato
com outros seres humanos. A famlia e os parentes, a escola, os
amigos, o ambiente de trabalho e os meios de comunicao de massa,
que disseminam o conhecimento adquirido atravs do senso comum, so
tambm agentes ou rgos de socializao, responsveis por transmitir a
cada indivduo o conhecimento e a cultura acumu-
lados pela sociedade, ajudando a mold-lo na produo de sua
identidade. Torna-se claro, ento, que o conhecimento obtido do
senso comum fundamental no processo de constituio da identidade
individual, mas no exclusivo. Tambm o conhecimento proveniente da
aplicao da imaginao sociolgica elemento componente da identidade
individual, interligando-a rede que compe a sociedade na qual a
pessoa tenta afirmar-se como ser independente. Cada um desses
agentes de socializao contribui com o processo de formao da
sociedade a partir do instante em que deposita no indivduo alguns
dos valores que ele deve incorporar para viver socialmente. Assim,
a famlia configura a primeira experincia de aprendizagem social.
junto aos pais e parentes que a pessoa aprende a comportar-se
diante dos outros, incorporando valores como a obedincia e o
respeito e muitas vezes copiando as atitudes dos familiares. Em
ltima instncia, vm da famlia (ou daqueles com quem se convive nos
primeiros anos de vida) os valores morais e ticos que vo moldar o
indivduo para a vida em sociedade.
Conhea melhorO caso das meninas-loboNo texto Le dveloppement
social de lenfant et de ladolescent (O desenvolvimento social da
criana e do adolescente. Bruxelas: Dessart, 1965), Berry Leymond
aborda o caso de duas meninas-lobo, encontradas na ndia em 1920,
quando viviam no meio de uma alcateia. Elas receberam os nomes de
Amala e Kamala. A primeira tinha cerca de 1 ano e meio e morreu um
ano mais tarde. Kamala, de aproximadamente 8 anos de idade, viveu
at 1929. As duas garotas nada tinham de humano e apresentavam um
comportamento semelhante ao dos lobos. Caminhavam de quatro,
apoiando-se sobre os joelhos e cotovelos para os pequenos trajetos
e sobre as mos e os ps para os trajetos mais longos. Comiam apenas
carne crua ou podre. Bebiam como os bichos, lambendo o lquido.
Passavam o dia quietas, numa sombra. noite, eram ativas e A
menina-lobo Kamala ruidosas, uivando como lobos. Jamais choravam ou
riam. alimentada por sua protetora. Em seus oito anos de vida com
os humanos, Kamala gradativamente adquiriu hbitos sociais. Precisou
de seis anos para aprender a andar e, quando morreu, tinha um
vocabulrio de cerca de cinquenta palavras. Aos poucos aprendeu a
expressar afeto. Chorou pela primeira vez por ocasio da morte de
Amala, sua irm-lobo. 1. Voc conhece algum filme cuja trama gire em
torno de meninos-lobo? Se necessrio, pesquise para encontrar a
resposta. 2. Faa pesquisas para encontrar outros casos de
descoberta de meninos-lobo.>
28
O aprendizado humano
Convivncia na escolaQuando o indivduo passa a frequentar a
escola e a entrar em contato com amigos, professores e funcionrios,
a famlia deixa de ser o nico agente de socializao diante do seu
desenvolvimento. A escola refora muitos dos valores passados pelos
pais e responsveis, incluindo a noo de autoridade, j que se
estrutura de modo hierarquizado. Ao mesmo tempo, porm, incute
valores e instrumentos de convivncia coletiva importantes, como a
escrita, o uso do raciocnio de forma lgica e o patriotismo,
permitindo ao indivduo absorver conhecimentos que o auxiliem em sua
formao social e profissional.
O grupo de amigosPor outro lado, o grupo de amigos corresponde
ao agente de socializao que permite ao indivduo reconhecer-se entre
seus iguais, podendo conversar com eles sobre assuntos que, por
motivos variados, no so tratados na famlia ou na escola. Por meio
da convivncia com os amigos o indivduo no apenas refora os laos de
coleguismo, dando os primeiros passos para a criao de uma
identidade grupal, coletiva, como tambm fortalece sua independncia
perante os pais ou responsveis e a escola.Crianas jogam futebol em
campo improvisado numa praia de Ponta Grossa (CE). Fotografia de
2001. A convivncia entre crianas de famlias com diferentes perfis
sociais e culturais contribui para que aprendam o respeito
diversidade.
A mdia e os colegas de trabalhoOutro agente de socializao, os
meios de comunicao de massa, tm importncia varivel, conforme o
contedo apresentado. Eles podem ser essenciais em sociedades
democrticas, incentivando o debate e a livre veiculao de informaes,
e tambm podem ser instrumentos eficazes para o controle de regimes
totalitrios sobre a populao. Por fim, o processo de socializao
sofre a influncia dos colegas de trabalho, que assumem papel
predominante na vida adulta dentro da atual sociedade, pois grande
parte dos indivduos passa praticamente todo o dia em seu emprego,
onde o convvio social bastante amplo, de tal modo que o cotidiano
da empresa passa a fazer parte da vida privada de cada um.
O processo de socializaoTendo esses agentes de socializao em
mente, de que modo o indivduo aprende a tornar-se um ser humano
socializvel? Para que isso seja possvel, preciso que haja uma
convivncia intensa entre ele e seus familiares no incio de sua
vida, o que lhe possibilitar incorporar uma srie de hbitos teis
para sua sobrevivncia. Dessa perspectiva, o processo de socializao
implica a repetio de atitudes, valores e regras que os adultos
vivenciam entre si e que a criana, ao fazer parte desse mundo,
passa a incorporar.Voc j ouviu falar...Como nossos pais A composio
Como nossos pais, do cearense Belchior, fornece um exemplo da
importncia da estrutura familiar na formao do indivduo e da
reproduo dos costumes e valores culturais da sociedade da qual ele
faz parte. O autor observa, entre outros aspectos, que os jovens
permanecem fiis aos antigos dolos e, sobretudo, que apesar de terem
feito muita coisa, correndo riscos, ainda vivem como os seus pais.
Vale a pena ouvir, na sala de aula, a msica de Belchior, prestando
ateno na letra. Em seguida, voc e seus colegas podem explor-la de
diversas maneiras.
1. Coloquem em debate algumas das ideias da composio. Os dolos
da juventude atual ainda so os mesmos da gerao anterior? Os jovens
correm perigo na sociedade contempornea? 2. E voc, o que tem de
parecido com seus pais? E em que voc diferente? Escreva um pequeno
texto sintetizando semelhanas e diferenas. 29
>
1
Vamos pensar a sociedade
Socializao na infnciaPara a criana, o processo de socializao
pode ocorrer basicamente de duas formas: a) por meio de sistemas
avaliadores, segundo os quais o aprendizado reforado pela prtica da
recompensa e da punio para atividades estipuladas. Algumas crianas,
por exemplo, podem aprender que antes das refeies devem lavar as
mos e que, se no o fizerem, ficaro sem a sobremesa. Atravs dessa
experincia, elas, em nova oportunidade, sabem o que significa ir
contra a autoridade familiar; b) pelos mtodos cognitivos, que
privilegiam os sistemas de identificao e de imitao das prticas do
adulto que convive com ela, ensinando-lhe limites e interiorizando
as regras de convvio social por meio de atividades ldicas: a
brincadeira torna-se parte do processo de aprendizagem social. Sem
dvida, as duas estratgias podem ser conciliadas.
possvel perceber a dimenso de institucionalizao no cotidiano do
adolescente. Durante boa parte do ano, pode ser necessrio que ele
acorde cedo para realizar suas obrigaes sociais, o que implica
preparar seu material escolar e deslocar-se para a escola, onde
cumprir seu dia de estudo. Ele precisa cumprir uma rotina composta
por aulas, produo de exerccios e interao escolar necessrias sua
formao. Embora o entusiasmo em relao aos estudos varie de pessoa
para pessoa, todos os alunos cumprem a mesma rotina durante os dias
da semana, em geral estudando em horrios parecidos. Isso significa
que o aluno faz parte de uma instituio, a escola, que essencial
para sua formao social.
Confronto de correntesA socializao remete mais uma vez discusso
sobre a relao entre indivduo e sociedade. Alguns socilogos defendem
que a sociedade existe independentemente do indivduo; as foras
estruturais e institucionais moldam o indivduo, que assume uma
identidade criada por essas foras externas ou seja, cada ser humano
resultado do meio ao seu redor, sem que possa interferir
decisivamente nele. Outra corrente, por sua vez, sustenta que a
existncia da sociedade condicionada pelos indivduos que a formam.
Os primeiros integram uma corrente que conta com a presena de dois
pais fundadores da Sociologia, mile Durkheim e Karl Marx; os ltimos
tm no alemo Max Weber seu representante mais conhecido.
InstitucionalizaoNesse processo de incorporao dos hbitos e dos
valores coletivos, o indivduo vai-se institucionalizando, ou seja,
ele passa a fazer parte das instituies que ajudam a moldar a
sociedade. Isso acontece quando ele pratica uma atividade que tambm
realizada por pessoas de grupos sociais distintos: por exemplo,
quando respeita as regras do trnsito ou quando cede o seu lugar a
um idoso dentro do transporte coletivo. Essa atitude individual foi
institucionalizada, pois foi dessa forma que ele a interpretou e a
praticou perante os demais agentes de socializao.
Conhea melhorConfrontos sociaisO processo de socializao no
decorre exclusivamente do relacionamento harmonioso entre indivduo
e sociedade. Tambm resulta do confronto, com o indivduo contestando
as aes da sociedade e as normas institucionalizadas. Foi o caso do
jovem chins que, em 5 de junho de 1989, deteve uma coluna de
tanques na Praa da Paz Celestial, em Pequim, em protesto contra a
represso no pas. 1. O indivduo tem direito de se rebelar contra as
instituies? Qual a sua opinio em relao a esse tema? 2. Monte um
painel com imagens e textos sobre confrontos sociais envolvendo
jovens, tanto no Brasil como em outros pases. Manifestante chins
enfrenta uma coluna detanques: o jovem transformou-se no smbolo do
massacre da Praa da Paz Celestial.
>
30
O aprendizado humano
A formao da identidadeO processo de socializao coloca as pessoas
face a face. Dentro dessa interao social, cada indivduo procura
entender melhor o outro, o que significa que cada um produz para si
uma imagem do outro. Esse o ponto de partida para a formao da
identidade. Pode-se perceber a existncia de duas perspectivas.
Conhea melhorAutoimagemA autoimagem tem mais a ver com estados
emocionais do que com caractersticas fsicas. Em sua construo,
existe a tendncia a mentir ou omitir impresses externas, como um
mecanismo de proteo. o que se pode perceber por meio da charge
abaixo. O pintor que aparece na ilustrao usa o espelho para obter a
imagem de si mesmo, e ainda assim, ao se representar, toma como
parmetro a imagem que tem de si e no a que o espelho mostra.
Identidade pessoal, ou autoidentidadeIdentidade pessoal, ou
autoidentidade, a percepo colhida atravs das interaes com os
outros, pois a pessoa julga cada um dos atos que pratica de acordo
com o sistema de regras morais e ticas que decidiu seguir,
formalizando, com isso, uma imagem de si prpria. Por meio dessa
imagem, ela interage com outros indivduos e com as instituies que
compem a sociedade, o que fortalece a identidade individual diante
do coletivo. A identidade pessoal , em suma, o que cada um pensa a
respeito de si mesmo.
Identidade social ou coletivaConforme se desenvolve, cada
indivduo assume, diante da sociedade, uma variedade de identidades
construdas socialmente. A identidade social , portanto, a imagem
que os demais membros da sociedade fazem do indivduo, criando um
conjunto de smbolos e valores positivos e negativos, associados a
preconceitos e esteretipos, que determinam como vo interagir com
ele. Individuais ou coletivas, todas essas imagens vo sendo
construdas dentro da interao social e a respeito do indivduo. Elas
adquirem o aspecto dos papis sociais que o indivduo assume ao longo
de sua existncia social. Por papel social deve-se entender a funo
que se espera que seja cumprida na sociedade em determinado momento
e que realizada com base nas perspectivas do indivduo. Mas nem
sempre o ser humano viu-se obrigado a assumir tantos papis sociais.
Essa constante troca de mscaras um fenmeno recente, tpico da
sociedade industrial contempornea. Na poca feudal, a pessoa assumia
um nico papel, determinado desde o nascimento, de acordo com sua
origem familiar. Se pertencente nobreza, ela se dedicaria ao
desenvolvimento das tcnicas de combate e administrao de suas
terras; caso pertencesse ao campesinato, trabalharia nas glebas do
senhor. Essa sociedade estamental engessava a capacidade de
autodeterminao do indivduo, que se via preso a suas obrigaes
sociais, sendo incapaz de expressar-se por temor s punies temporais
e espirituais.
Charge de Mangabeira, inspirada em obra do norte-americano
Norman Rockwell (1894-1978).
lossrioEstamental: diz-se de uma sociedade dividida em segmentos
sociais com reduzida mobilidade entre si, cada um deles composto
por indivduos com anloga funo social ou com influncia em
determinado campo de atividade. Como exemplo, temos a sociedade
feudal, que era basicamente composta por trs estamentos, ou ordens:
clero, nobreza e campesinato. 1. Pesquise se existiam escravos na
sociedade estamental da Idade Mdia. 2. Na sua opinio, os estamentos
continuam a ser a base da diviso social na sociedade industrial
contempornea? Justifique a resposta.
>
1. Tente representar a si mesmo em um desenho. Em seguida,
utilize um espelho para reproduzir sua imagem. 2. Se desenhar no
for o seu forte, faa uma lista de suas caractersticas fsicas e
compare-as com a sua imagem no espelho. 3. Muitos adolescentes
tendem a se considerar pouco atraentes, mesmo que no o sejam. Na
sua opinio, por que acontece essa autodepreciao?
31
1
Vamos pensar a sociedade
Papis sociais e expectativasA sociedade atual manifesta
caractersticas distintas da estamental. A acelerao do processo de
produo levou a uma intensa diviso tcnica do trabalho, que se
manifesta na vida pessoal e na forma como as pessoas pensam, agem e
se organizam. Essa rpida transformao exige constante mudana e
adaptao, o que leva cada indivduo a assumir os referidos papis
sociais. Os papis sociais podem criar uma sensao de linearidade na
vida, o que gera certa segurana por causa da previsibilidade do que
vai acontecer. Por exemplo, quando o indivduo termina os estudos do
Ensino Mdio, espera-se que assuma determinado papel, ou
aprofundando-se nos
estudos em uma universidade, ou posicionando-se no mercado de
trabalho para garantir sua sobrevivncia e contribuir com o
funcionamento da sociedade. Ao entrar no mercado de trabalho,
espera-se que ele constitua uma famlia e que tenha algum com quem
compartilhar sua vida e ter um filho. Isso se realizando, suas
prioridades modificam-se e ele passa a preocupar-se com o
crescimento do filho, com a segurana da famlia e com a perspectiva
da aposentadoria. So essas as expectativas de boa parte das
pessoas.
Presses sociaisPor outro lado, a grande quantidade de papis
sociais tambm gera expectativas que podem ser negativas para o
indivduo. A cobrana pelo sucesso em cada um desses papis assumidos
costuma gerar uma presso muito grande sobre ele, que s vezes no
consegue responder adequadamente e fracassa, de acordo com os
padres atuais da sociedade. O sentimento de fracasso pode resultar
na descrena do indivduo em relao a seus esforos: ele os considera
inteis diante das dificuldades, que parecem intransponveis. Diante
dessa situao, existe o risco de o indivduo ficar demasiadamente
merc das instituies sociais, perdendo o controle sobre a prpria
individualidade. A influncia do meio, da sociedade sobre a pessoa
vai ser explorada adiante, com a investigao do peso das instituies
e dos grupos sociais na formao individual.
Conhea melhorNaturalizao das relaes sociais Um dos maiores
riscos que o indivduo corre diante da sociedade a naturalizao das
instituies sociais, como se elas sempre estivessem ali. Nesses
casos, muitas vezes os indivduos identificam a existncia de algo
que est errado, mas nada fazem para modificar a situao. o que
mostra a tabela abaixo, que funciona com base na leitura da
pergunta que aparece no recorte. A maior parte da populao
identifica problemas na sociedade e em seus representantes
polticos, mas no se mobiliza para mudar a situao. Ou seja, parte-se
do pressuposto de que os abusos constituem uma prtica que sempre
existiu, desde os tempos coloniais.Escolher familiares ou pessoas
conhecidas para cargos de conana Usar caixa 2 em campanhas
eleitorais Superfaturar obras pblicas e desviar dinheiro para
campanha eleitoral do poltico Pagar despesas no autorizadas com
dinheiro pblico Superfaturar obras pblicas e desviar dinheiro para
patrimnio pessoal/familiar Aproveitar viagens ociais para lazer
prprio e de familiares
86,0% 83,6%
83,2% 82,6% 82,4% 82,3%
Mudar de partido em troca de dinheiro/emprego para 82,3%
familiares/pessoas conhecidas Trocar o voto a favor do governo por
um cargo 79,2% para familiar ou amigo Receber dinheiro de empresas
para fazer 77,8% leis que as beneciem Pergunta: Agora eu vou citar
algumas Aceitar graticaes ou comisses 77,8% situaes que ocorrem
hoje na poltica para escolher uma empresa brasileira e gostaria de
saber a sua Desviar recursos de sade e educao opnio para cada uma
delas (...) um 77,1% para outras reas comportamento de todos, de
uma maioria, Contratar, sem licitao, empresas de uma minoria ou de
nenhum dos polticos 76,1% de familiares e governantes brasileiros?
(soma das O poltico contratar 73,5% respostas para todos e uma
maioria). funcionrios fantasmas
Fonte: IBOPE, 2006.
1. Discuta com os colegas: vocs concordam com a pesquisa acima?
2. Como fazer para modificar um estado de coisas que sempre foram
assim?
A contratao de funcionrios fantasmas uma prtica que, segundo a
pesquisa, mais de 73% dos cidados atribuem aos polticos
brasileiros. Charge de Senna feita em 2009.
32
>
O aprendizado humano
O mundo em nsImagine por um momento que voc um militante pelos
direitos da populao negra na frica do Sul em meados do sculo XX.
Preso em 1962 pelo regime da minoria branca, acusado de subverso e
de organizar a luta armada para derrubar o governo, voc foi
condenado priso perptua, mas em 1990 conseguiu recuperar a
liberdade. O problema que voc permaneceu tanto tempo preso que a
nica realidade conhecida a da convivncia com outros detentos. Ao
tentar relacionar-se com outras pessoas ou mesmo ao tentar
acompanhar o ritmo acelerado da sociedade contempornea, voc no
consegue entender direito o porqu de tanta pressa. Envelhecido, voc
simplesmente no encontra lugar nesse novo mundo. Tudo o que deseja
voltar para onde se considera seguro, onde voc conhece as regras e
reconhecido por seus pares: a priso. Isso significa que, sem que
voc talvez perceba, sua vida foi institucionalizada.
Influncia institucionalEssa pequena narrativa ilustra a
influncia que as instituies e o mundo ao redor exercem sobre cada
pessoa. Ela corresponde, de forma adaptada, trajetria do lder
sul-africano Nelson Mandela, somada a um trecho do filme Um sonho
de liberdade (Direo: Frank Darabont. EUA, 1994), estrelado por Tim
Robbins e Morgan Free