REGINA RODRIGUES DE OLIVEIRA MEIOS DE VIDA E PRODUÇÃO DE ALIMENTOS: QUANDO A PAISAGEM DIVERSIFICA, O PRATO FICA COLORIDO Dissertação apresentada à Universidade Federal de Viçosa, como parte das exigências do Programa de Pós-Graduação em Extensão Rural, para obtenção do título de Magister Scientiae. VIÇOSA MINAS GERAIS - BRASIL 2013
185
Embed
REGINA RODRIGUES DE OLIVEIRA · reprovada no teste psicológico por estar acima do perfil solicitado pela EMATER-MG. ... arroz, feijão, costelinha de porco, guisado de quiabo com
This document is posted to help you gain knowledge. Please leave a comment to let me know what you think about it! Share it to your friends and learn new things together.
Transcript
REGINA RODRIGUES DE OLIVEIRA
MEIOS DE VIDA E PRODUÇÃO DE ALIMENTOS: QUANDO A PAISAGEM
DIVERSIFICA, O PRATO FICA COLORIDO
Dissertação apresentada à Universidade
Federal de Viçosa, como parte das exigências
do Programa de Pós-Graduação em Extensão
Rural, para obtenção do título de Magister
Scientiae.
VIÇOSA
MINAS GERAIS - BRASIL
2013
ii
iii
DEDICATÓRIA
Aos meus filhos, Luiza e Fabio, presentes Divino!
À Irene Maria Cardoso, mestra, conselheira, exemplo e amiga de todas as horas!
iv
AGRADECIMENTOS
Em primeiro lugar quero agradecer, à Energia Suprema a qual eu chamo de Deus e que até
aqui foi meu grande regente. De maneira muito especial agradeço às agricultoras e
agricultores da Zona da Mata mineira, especialmente aquelas e aqueles que me receberam em
suas casas, contaram suas histórias de vida, e dedicaram parte do seu tempo a ajudar a
construir este trabalho, os quais considero co-autores desta dissertação.
Um agradecimento, também, muito especial à minha orientadora, professora Maria Izabel
Vieira Botelho, a quem serei eternamente grata pelas orientações acadêmicas e pelas lições
aprendidas. Agradeço também às professoras Irene Maria Cardoso, Luciana F. Rocha
Sant´Ana e France Maria Gontijo, e aos professores Marcelo Miná Dias e Rennan Lanna
Martins Mafra pelas contribuições efetivas nas diversas etapas deste trabalho.
Da mesma forma, agradeço ao Centro de Tecnologias Alternativas da Zona da Mata – CTA-
ZM, que possibilitou meus primeiros contatos com estes agricultores, e disponibilizou os
diversos relatórios digitais e materiais impressos, parte desta pesquisa, e pelas conversas com
a equipe técnica que contribuíram para a escolha do campo de pesquisa e para a minha
formação.
Agradeço ainda, às amigas e amigos com os quais compartilhei minhas angustias pelo retorno
à atividade acadêmica após quase duas décadas fora dela, vocês foram imprescindíveis!
Agradeço à minha família, irmãos, sobrinhos, tios e primos! De maneira muito especial ao
meu pai, o agricultor familiar Braz, in memoriam, por ter me ensinado a tocar o solo com as
próprias mãos e entender os diversos significados da agricultura. À minha mãe, Antônia com
quem aprendi a respeitar os alimentos. Dentre meus queridos onze irmãos, quero agradecer de
forma especial ao Vicente, por me apresentar Viçosa e pelo carinho e cuidado ao longo de
todos estes anos. A Mariana, que de Lagamar, busca manter toda a irmandade conectada e
harmonizada. Ao meu compadre Adão, por continuar na Fazenda Boa Vista cuidando da terra
e da nossa mãe. Também de forma especial, agradeço à minha irmã Vani, minha professora
nos anos iniciais do fundamental, que partiu precocemente, quando eu elaborava a escrita
final deste trabalho.
Agradeço à Universidade Federal de Viçosa, onde me graduei em Nutrição, e que novamente
me recebeu para aprofundar meus conhecimentos.
v
Agradeço ao Arne e Irene, Cristine Muggler, Alice e Simões, Ivone e Preguinho pela acolhida
e pela amizade. A toda a família Ferreira pelo carinho e pelas inúmeras refeições
compartilhadas.
Agradeço aos amigos do CRN9 pela compreensão nos diversos momentos em que estive
ausente.
Agradeço a todos os funcionários do DER, em especial à Carminha e Romildo, pela
dedicação e profissionalismo.
Agradeço a CAPES pela bolsa de estudos que contribuiu para a minha manutenção em
Viçosa.
Agradeço ao CNPq por financiar os “Intercâmbios agroecológicos”, parte desta pesquisa.
Finalmente, agradeço a todos que ao longo da minha vida fui (re) encontrando, e que de
algum modo contribuíram para a minha formação.
iv
BIOGRAFIA
No dia treze de novembro de 1968, enquanto uma parte do Brasil vivia um tumultuado
momento de ditadura militar, em outra parte distante, onde quase ninguém compreendia o
significado desta turbulência política, na Fazenda Boa Vista, município de Lagamar, a Sr.ª
Antônia dava a luz à sua sexta cria que recebeu o nome de Regina Rodrigues de Oliveira.
Precocemente, participou das atividades do Clube 4 S, e sonhava em ser extensionista.
Em 1986, com a perspectiva de estudar na UFV, mudou-se para Viçosa. Foi morar com o
irmão. Neste ano conheceu a proposta construtivista de educação, trabalhando como
professora em uma Escola alternativa. Concluiu o ensino médio em Viçosa. Ainda neste ano,
conheceu o grupo de agricultura alternativa e esta relação continua até os dias atuais.
Durante os anos de UFV participou ativamente do movimento estudantil e dos movimentos
sociais da cidade, onde começou a sua participação nos movimentos pela Segurança
Alimentar e Nutricional. Foi candidata a vereadora pelo Partido dos Trabalhadores.
Após concluir o curso de nutrição foi trabalhar em Belo Horizonte. Em 1998 teve seu sonho
de extensionista fracassado, pois após passar em terceiro lugar na prova de conhecimentos, foi
reprovada no teste psicológico por estar acima do perfil solicitado pela EMATER-MG.
Em 1999, nasce a sua filha, Luíza.
Em 2000, em Poços de Caldas, nasce seu filho, Fabio. Em Poços de Caldas foi representante
titular do executivo municipal no Conselho Municipal de Saúde e Conselho de alimentação
Escolar; em seguida responsável pelo Programa Municipal de Alimentação Escolar, e em
2001, Coordenadora da Comissão Regional de Segurança Alimentar Sul de Minas I.
Em 2003, para viver perto de seus filhos, voltou para Belo Horizonte e foi trabalhar na
Prefeitura de Belo Horizonte (PBH), na Secretaria Municipal de Abastecimento.
Em 2008 é eleita conselheira para a primeira gestão do Conselheiro Regional de
Nutricionistas de Minas Gerais, compondo a primeira diretoria. Neste mesmo ano é demitida
da PBH, por perseguição política.
Em 2009, foi trabalhar no Centro Colaborador da Alimentação do Escolar da Universidade
Federal de Ouro Preto.
Em 2010, volta para Viçosa e trabalha na Assessoria de Movimentos Sociais da UFV.
Em 2011, inicia o mestrado no Programa de Pós-Graduação em Extensão Rural da UFV. Em
2013, conclui o mestrado e se apresenta para novas experiências.
v
ÍNDICE
Página
LISTA DE TABELAS
LISTA DE FOTOGRAFIAS
LISTA DE MAPAS E QUADROS
LISTA DE ABREVIATURAS E SIGLAS
RESUMO
ABSTRACT
3 1. INTRODUÇÃO
1.1 A Construção do Problema de Pesquisa
1.2 A Realidade Estudada: “meios de vida”, paisagens, e os manejos de agricultores em
transição agroecológica dos municípios de Acaiaca e Divino
2. METODOLOGIA
3. AGROECOLOGIA: O CAMINHO PARA “MEIOS DE VIDA” MAIS
SUSTENTÁVEIS
3.1 Introdução
3.2 Meios de vida: da teoria à prática dos agricultores agroecológicos
3.3 Diferentes trajetórias: um só destino
3.4 Estratégias alimentares e Meios de Vida
3.5 Como a Agroecologia alterou os “meios de vida” dos agricultores
4. QUANDO A PAISAGEM DIVERSIFICA, O PRATO FICA COLORIDO
4.1 Introdução
4.2 Paisagens alimentares e segurança alimentar e nutricional sustentável
4.3 Paisagens: um conceito dinâmico
4.4 Entra café, saí floresta, entra café, sai comida: a dinâmica das paisagens da Zona da
Mata mineira
4.5 A paisagem da modernização agrícola
4.6 A paisagem como lembrança
4.7 Paisagem e Produção de Alimentos Agroecológicos
4.8 Sistemas agroecológicos: bagunça ou equilíbrio ambiental?
4.9 Paisagens e políticas públicas
5. SAÚDE E AGROECOLOGIA: QUANDO O ALIMENTO VIRA COMIDA
5.1 Introdução
5.2 Agroecologia e saúde: uma construção processual
5.3 A construção da Agroecologia em Acaiaca e Divino
5.4 Produção, consumo de alimentos, saúde e agrotóxicos
vii
viii
ix
x
xii
xiv
1
1
4
9
20
20
21
27
33
38
45
45
45
47
49
51
57
63
67
76
80
80
82
83
87
92
vi
5.5 Alimento: da barriga cheia ao direito humano à alimentação adequada
5.6 Segurança alimentar e nutricional sustentável: do cultivo ao consumo
5.7 Preferência alimentar: estratégia ou construção social
5.8 Quando o alimento virou comida
5.9 Aproximações e diferenças do que se come em Acaiaca e Divino
5.10 Soberania alimentar: da semente ao prato
6. CONSIDERAÇÕES FINAIS
7. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
98
103
117
122
123
127
133
vii
LISTA DE TABELAS
Página
TABELA 01 Tamanho das propriedades pesquisadas, em hectares, nos municípios de Acaiaca
e Divino-MG, 2012..............................................................................................31
TABELA 02 Origem das compras de alimentos pelos agricultores de Divino-MG, 2012......37
TABELA 03 Gasto mensal per capita com alimentação em Acaiaca e Divino-MG, 2012 …40
TABELA 04 Alimentos vendidos para o PNAE, no período de fevereiro a Junho de 2012, em
Acaiaca e Divino-MG, e nº de famílias que comercializam esses produtos..........42
TABELA 05 Principais alimentos que integravam as paisagens alimentares, da infância, dos
entrevistados de Acaiaca e Divino-MG, 2012................................................74
TABELA 06 Alimentos que integravam as paisagens alimentares, em Acaiaca e Divino-MG,
Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior
Comitê Internacional de Planejamento da Sociedade Civil pela Soberania Alimentar
Conselho Nacional de Segurança Alimentar
Conselho Estadual de Segurança Alimentar e Nutricional do Estado de Minas Gerais
Conselho Regional de Nutricionistas da Nona Região
Cooperativa de Crédito Solidário
Comissão Pastoral da Terra
Centro de Tecnologias Alternativas da Zona da Mata
Dicloro-Difenil-Tricloroetano
Departamento de Economia Rural
Direito Humano a Alimentação Adequada
Escala Brasileira de Medida de Insegurança Alimentar
Empresa de Assistência Técnica e Extensão Rural do Estado de Minas Gerais
Organização das Nações Unidas para Agricultura e Alimentação
Federação de Órgãos para a Assistência Social Educacional
Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação
Hectare
Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis
Instituto Brasileiro do Café
Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística
Índice de Desenvolvimento Humano
Imposto Sobre Operações Financeiras
Lei Orgânica da Segurança Alimentar
Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento
Núcleo Interdisciplinar de Estudos de Gênero
Organização Mundial de Saúde
Organizações Não Governamentais
Organização das Nações Unidas
Pesquisa de Resíduos de Agrotóxicos em Alimentos
Proposta de Emenda Constitucional
Pacto Internacional dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais
xi
PNAD
PNHR
PNAE
PNAN
PNUD
SAFs
SAN
SANS
UFV
Pesquisa Nacional de Amostragem por Domicilio
Programa Nacional de Habitação Rural
Programa Nacional de Alimentação Escolar
Política Nacional de Alimentação e Nutrição
Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento
Sistemas Agroflorestais
Segurança Alimentar e Nutricional
Segurança Alimentar e Nutricional Sustentável
Universidade Federal de Viçosa
xii
RESUMO
OLIVEIRA, Regina Rodrigues de, M.Sc., Universidade Federal de Viçosa, junho de 2013.
Meios de Vida e Produção de Alimentos: quando a paisagem diversifica, o prato fica
colorido. Orientadora: Maria Izabel Vieira Botelho. Coorientadores: Luciana F. Rocha
Sant´Ana, Rennan Lanna Martins Mafra.
A segurança alimentar e nutricional sustentável tornou-se um tema importante nos debates
sobre saúde desde a década de 1990 e, passou a se destacar nas políticas públicas, a partir de
2003. No entanto, a saúde dos brasileiros continuou em risco e, de modo geral, está cada vez
mais comprometida, inclusive pelo consumo de alimentos de baixo valor nutricional e com
elevada contaminação química. Diante disso, este estudo constituiu-se de uma análise dos
Meios de Vida relacionados com as alterações no consumo alimentar promovidos pela
Agroecologia, que implica em novos desenhos de paisagens, em dois municípios da Zona da
Mata mineira, quais sejam: Acaiaca e Divino. Buscou-se, para tanto, efetuar esta análise em
uma abordagem transdisciplinar, avaliando os aspectos biológicos e da saúde, culturais,
ambientais e econômicos. O levantamento de dados inicial, a partir dos relatórios impressos e
digitais do Centro de Tecnologias Alternativas da Zona da Mata, permitiu conhecer alguns
detalhes da região em estudo e construir o roteiro da entrevista semiestruturada que foi
realizada com as 18 famílias de agricultores, partícipes desta pesquisa. As entrevistas nos dois
municípios possibilitaram uma comparação a partir da identificação de diferentes estratégias
de Meios de Vida. Os focos principais de atenção nas análises foram: os desenhos das
paisagens, os manejos adotados, o tipo e quantidade de alimentos produzidos, as práticas e
hábitos alimentares antes e após a adoção da Agroecologia. Tomando por base os dados
empíricos levantados, pode-se afirmar que a diversificação das paisagens alimentares
possibilita uma alimentação mais variada, o que favorece a segurança alimentar e nutricional,
além de reduzir os gastos com a aquisição de alimentos. Ao participar dos espaços de
construção da Agroecologia como os Intercâmbios Agroecológicos, as oficinas e cursos
promovidos pelo CTA-ZM e pelas organizações dos trabalhadores rurais da região, os Meios
de Vida dos agricultores foram se modificando e as paisagens também foram modificadas
incluindo novos elementos em grande parte, alimentos para as famílias ou para os animais.
Com a Agroecologia, algumas estratégias de Meios de Vida adotadas pelos agricultores,
relacionadas com os cultivos, tornaram-se ambientalmente menos impactantes e
economicamente mais sustentáveis, o que tem contribuído para a permanência dessas
famílias no meio rural. Pode-se afirmar, ainda, que a Agroecologia possibilitou aos
xiii
agricultores maior autonomia alimentar, além de melhorar o estado geral de saúde ao
diversificar a oferta de alimentos, estimular o consumo de alimentos saudáveis e possibilitar o
acesso a informações sobre saúde e qualidade de vida.
xiv
ABSTRACT
OLIVEIRA, Regina Rodrigues, de M.Sc., Universidade Federal de Viçosa, June 2013.
Livelihoods and Food Production: When the landscape diversifies, the dish is colorful. Advisor: Maria Izabel Vieira Botelho. Co-advisors: Luciana F. Rocha Sant´Ana and Rennan
Lanna Martins Mafra.
Sustainable food and nutrition security has become an important topic in discussions on
health since the 1990s and went on to be highlighted in public policies from 2003 on.
However, the health of Brazilians is still at risk and, in general, is increasingly compromised
by the consumption of low nutritional value foods and high chemical contamination. In this
way, this study consisted of an analysis of livelihoods and changes in food consumption
promoted by Agroecology practices from smallholders of two villages of the Zona da Mata of
Minas Gerais: Acaiaca and Divino. We attempted to perform this analysis following a
transdisciplinary approach, evaluating biological, healthy, cultural, environmental and
economic aspects. With the data from field work and reports from the Alternative
Technologies Center from Zona da Mata (CTA-ZM), it was possible to gather knowledge
about the region and build a semi-structured interview which was conducted with 18 farming
families, participants of this research. The interviews in the two areas allowed a comparison
based on the identification of different livelihood strategies. The main focus of attention in the
analysis were the outlines of the landscapes, the managements adopted, the type and amount
of food produced, eating practices and habits before and after the adoption of the Agroecology
principals. Based on the empirical data collected, it can be stated that the diversification of
food landscapes enables a more varied diet, which improves food and nutritional security,
besides reducing expenses with food purchases. At the same time, while farmers participate in
the construction of Agroecology spaces, such as Agroecological exchanges, workshops and
courses offered by CTA-ZM and organizations of rural workers in the region, the landscapes
were also modified including new elements in much of the food for families and animals.
With Agroecology, the livelihoods of smallholders have become less environmentally
impactful and economically sustainable, contributing to the permanence of the families in
rural areas. It can also be argued that the Agroecology practices allowed smallholders to have
greater food autonomy, in addition to improving the overall health status as the supply of food
was diversified, consumption of healthy foods was encouraged and access to information on
health and quality of life was provided.
1
MEIOS DE VIDA E PRODUÇÃO DE ALIMENTOS: QUANDO A PAISAGEM
DIVERSIFICA, O PRATO FICA COLORIDO
1. A Construção do Problema de Pesquisa
“...O acesso à alimentação é um direito humano em si mesmo, na medida em que a
alimentação constitui-se no próprio direito à vida. Negar este direito é antes de
mais nada, negar a primeira condição para a cidadania, que é a própria vida”1.
A Segurança Alimentar e Nutricional Sustentável (SANS), no Brasil, tornou-se um
tema importante nos debates sobre saúde desde a década de 1990 e passou a se destacar nas
políticas públicas a partir do ano de 2003, quando se inseriu na agenda política governamental
a necessidade de garantir a todos os brasileiros o direito humano a alimentação adequada
(DHAA). O debate acerca do tema ganhou novo fôlego com a promulgação da Emenda
Constitucional nº 64, de 04 de fevereiro de 2010 (PEC 64), que alterou o art. 6º da
Constituição Federal Brasileira de 1988, incluindo o direito à alimentação como direito social
fundamental.
Apesar da existência de um aparato legal para a implementação da SANS, ela
representa uma arena de disputa para onde convergem diferentes interesses e concepções do
que seria alimentação de qualidade. Nesta perspectiva, Poubel (2006) e Mendes (2009)
afirmam que mesmo havendo instâncias voltadas para solucionar, e/ou minimizar problemas
relativos à alimentação e saúde, esta permanece em risco e, de maneira geral, está cada vez
mais comprometida, inclusive pelo consumo de alimentos com baixo valor nutricional e
elevada contaminação química conforme teoriza Rigotto et. al. 2011. Vale ressaltar, que são
os alimentos saudáveis que irão, em um primeiro momento, promover a saúde. Desse modo,
Poubel (2006) entende que não há saúde sem alimentação de qualidade.
Para consumir alimentos de qualidade é preciso produzi-los com qualidade. Alguns
autores como Gazzola, 2004; Gomes, 2005; De Schutter, 2011; Rigotto et al., 2011, acreditam
que a Agroecologia apresenta os princípios necessários para a produção de alimentos com
qualidade nutricional e em quantidade suficiente. A SANS e a Agroecologia possuem
interfaces, em especial porque o alimento não deve ser entendido apenas como a matéria
capaz de transformar-se em fonte de energia, essencial às funções vitais do organismo
1 Relatório Brasileiro para a Cúpula Mundial da Alimentação, Roma, novembro 1996. In Valente, F.L.S, “Direito Humano à Alimentação: desafios e conquistas”. Cortez Editora, São Paulo, 2002. p. 137
2
humano, mas, também, como um dos principais mediadores da relação do ser humano com a
natureza (VALENTE, 2002). Mas, para além da produção de alimentos saudáveis, tanto os
princípios orientadores da Agroecologia, quanto os da SANS, ressaltam a importância da
preparação, do consumo e da distribuição dos alimentos. Nesse panorama, o interesse, tanto
da SANS, quanto da Agroecologia, é o sistema agroalimentar, que vai da produção ao
consumo e inclui concepções ideológico-culturais inseridas em determinado tempo-espaço
(PLOEG, 2008).
E para analisar as alterações ocorridas nos agrossistemas dos agricultores inseridos
nessa pesquisa, buscou-se compreender a dinâmica das paisagens associando-se as alterações
dos Meios de Vida dos agricultores em diferentes momentos: antes da Revolução Verde, com
a Revolução Verde e com os manejos agroecológicos. Neste, sentido a referência teórica
proposta por Hebinck (2007), foi de grande relevância, uma vez que possibilitou analisar
como os agricultores utilizavam os recursos que tinham disponíveis - tangíveis e intangíveis,
sociais e naturais que as pessoas utilizam para viver, considerando as possibilidades de
relacionamentos, as organizações sociais, redes e capitais disponíveis.
Considerando as observações feitas até aqui, deve-se salientar que, esta pesquisa
procurou conhecer as atuais práticas alimentares dos agricultores em transição agroecológica
dos municípios de Acaiaca e Divino-MG, visando a identificar se a agroecologia provocou
mudanças na alimentação, como isso aconteceu e se houve impactos na Soberania e na SANS.
A transição agroecológica foi entendida como um processo social que orienta relações mais
equilibradas de sustentabilidade, produtividade, estabilidade e equidade na atividade agrícola,
por meio de um processo multidimensional e complexo de ecologização gradativa das práticas
agrícolas (COSTABEBER, 1998, 2001).
A partir dessa primeira identificação, objetivou-se compreender as relações dessas
mudanças com os Meios de Vida desses agricultores e os redesenhos da paisagem ocorridos. :
Nesse panorama, discutiu-se, especificamente: i) a relação entre o consumo de alimentos
pelas famílias e a paisagem rural; ii) os motivos da exclusão de alimentos tradicionais no meio
rural; e quais alimentos foram introduzidos em sua substituição; iii) a ocorrência da
reintrodução de alimentos tradicionais em função das práticas agroecológicas e; iv) de que
forma as receitas tradicionais locais puderam contribuir para a soberania e segurança
alimentar e nutricional.
3
Como a produção do conhecimento orienta-se por determinadas concepções
ideológicas, as quais definirão o modo de ver o mundo e de interpretar os fenômenos
sociopolíticos e que não existe ciência neutra (Kosik, 1995, Alves, 2000, Rigotto et al., 2011),
a minha experiência pessoal e profissional orientou sobremaneira a construção desta
dissertação. A participação em programas e políticas públicas de segurança alimentar e
nutricional, somada à minha participação em Conselhos de Segurança Alimentar e
Nutricional, desde a década de 1990, e em movimentos sociais envolvidos na discussão sobre
formas mais sustentáveis de agricultura, desde o ano de 1986, levaram-me a identificar
questões que são problematizadas nesta dissertação.
Parafraseando Tschaarntke et. al. (2012), a maioria da população pobre contabilizada
pelo mundo, sobrevive em áreas rurais com o mínimo ou quase nada no que se refere a terras
com infraestrutura para serem cultivadas. E, não obstante a tudo isso, os mesmos autores
enfatizam que a fome e as necessidades, pelas quais passam essas famílias, está diretamente
relacionada ao tamanho das propriedades. Seguindo essa mesma linha de raciocínio, constata-
se que, no mundo, 90% dos agricultores têm propriedades menores que dois hectares. Tal
constatação, encontra respaldo no estudo do Banco Mundial, que diz que: 80% dos famintos
existentes pelo mundo, vivem em países em desenvolvimento e: 50% daquele total são
agricultores com pequenas parcelas de terras (WORLD BANK, 2007).
No Brasil, a Pesquisa Nacional de Amostragem por Domicilio - PNAD /IBGE (2004)
apontou um maior grau de insegurança alimentar entre os domicílios rurais (43,6%) quando
comparado com os urbanos (33,3%). Em 2009, a mesma PNAD mostrou que a população
rural teve uma significativa melhora em seu perfil nutricional, embora proporcionalmente, o
meio rural continue apresentando maior insegurança alimentar. Ressalta-se, ainda, que do
total de domicílios rurais pesquisados, (35,1%) apresentaram algum grau de insegurança
alimentar. No entanto, a PNAD identifica, principalmente, a pobreza como determinante desta
insegurança, não abordando, pois, outros aspectos relacionados à insegurança alimentar como:
o tamanho da propriedade, os sistemas produtivos e as práticas alimentares. Diante de tal
constatação, empreendeu-se uma busca no sentido de saber se as estratégias de Meios de Vida,
adotadas com a introdução das práticas agrícolas, provenientes dos manejos agroecológicos
que resultam em novos desenhos da paisagem, contribuíram para a redução da insegurança
alimentar e nutricional das populações rurais e de que forma isso acontecia.
4
1.2 A Realidade Estudada: Meios de Vida, paisagens, e os manejos de agricultores em
transição agroecológica dos municípios de Acaiaca e Divino-MG e suas interfaces com a
saúde
A reflexão teórica que norteou o olhar investigativo sobre a realidade dos agricultores
em transição agroecológica e suas estratégias em busca da segurança alimentar, fundamentou-
se em um percurso conceitual construído sob a égide de algumas abordagens. A primeira
delas refere-se às questões ligadas à soberania e à SANS. Em seguida, utilizou-se da
abordagem dos Meios de Vida investigando a relação dos Meios de Vida dos agricultores com
os manejos adotados. Portanto, a abordagem agroecológica foi, nesse certame, outro ponto de
grande relevância nesta reflexão. A partir disso, duas questões se evidenciaram: a
problematização da paisagem em relação aos Meios de Vida, a partir da perspectiva
agroecológica; e a correlação entre Meios de Vida agroecológicos, desenhos da paisagem e
alterações na SANS e na soberania alimentar.
Justifica-se, pois, este trabalho, pela compreensão de que a alimentação adequada é
direito fundamental do ser humano e pela constatação de que, uma parcela significativa da
população brasileira continua em situação de vulnerabilidade alimentar. Ao mesmo tempo,
verifica-se que as práticas agroecológicas na Zona da Mata mineira têm possibilitado
alternativas importantes para a segurança alimentar, conforme observado nos relatórios dos
Intercâmbios Agroecológicos2 promovidos pelo CTA-ZM. Constata-se também, que
determinadas unidades familiares de pequena extensão têm conseguido plantar, consumir e
comercializar com soberania, utilizando práticas agrícolas diferenciadas e mais sustentáveis,
buscando valorizar o conhecimento dos agricultores e suas práticas culturais (GAZOLLA,
2004; GOMES, 2005). Este trabalho justifica-se, ainda, na medida em que as reflexões
suscitadas e as conclusões obtidas poderão contribuir para a ampliação dos debates acerca da
insegurança alimentar, como também apontar alternativas que venham minimizar esses e/ou
outros eventuais problemas que possam surgir na região, bem como fazer com que as
2 Os Intercâmbios Agroecológicos são espaços de construção da Agroecologia promovidos por
projetos de extensão universitária da UFV em parceria com o CTA-ZM e Sindicatos de Trabalhadores
Rurais da região que buscam através da articulação entre agricultores/as, técnicos/as, professores/as e
estudantes, momentos de discussão e intercâmbios de saberes tendo como ponto de partida as
experiências desenvolvidas nas propriedades rurais. Nestes encontros vários problemas enfrentados
pelas famílias foram solucionados através do compartilhamento de experiências entre os próprios
agricultores.
5
experiências agroecológicas estudadas possam ser conhecidas, divulgadas e também
ampliadas.
A região em estudo, Zona da Mata mineira (Mapa 1), é considerada a segunda mais carente
do Estado. Sua população total é composta por 30,3% de pessoas carentes. O que significa
dizer que esse percentual está abaixo da média nacional que é de 32,9% (IBGE, 2010). A
região tem sido alvo de diversos impactos ambientais e sociais, principalmente a partir dos
anos de 1960, quando a agricultura convencional, orientada pelo pacote tecnológico, com alta
dependência de insumos químicos começa a ser difundida em diferentes áreas do país. Esses
insumos industrializados, além de caros para os agricultores de unidades produtivas de
pequenas extensões3, têm apresentado repercussões negativas tanto para a saúde dos
agricultores e consumidores quanto para o ambiente (SOARES, 2010).
Mapa 01: Localização dos municípios de Acaiaca e Divino na mesorregião da Zona da Mata de Minas Gerais.
3 Compreende-se por unidades familiares de pequena extensão as propriedades menores de 20 hectares,
onde a força de trabalho predominante é da própria família e a fonte de renda principal advém das atividades
agropecuárias. Estas famílias residem, geralmente, nas propriedades e, algumas vezes, são também parceiros
complementando sua renda por meio da divisão dos produtos colhidos. Em Acaiaca as propriedades visitadas
têm em media 4,7 ha e em Divino 11 há.
6
Devido ao relevo acidentado da região, este modelo agrícola aumenta as erosões do
solo e, consequentemente, diminui sobremaneira a produção. Em decorrência dos problemas
ambientais, econômicos e sociais, alguns agricultores da Zona da Mata mineira têm buscado
alternativas de produção, visando a sua permanência na terra. Eles têm adotado princípios
agroecológicos relativos ao manejo de seus agroecossistemas, o que tem se apresentado como
uma saída tanto para a SANS, na medida em que aumentam a quantidade e variedade
produzida, como também assegurado maior qualidade da produção e aumento da renda. Nessa
perspectiva, esses agricultores agroecológicos têm garantido uma produção mais sustentável
tanto ambientalmente quanto economicamente (SOUZA et al., 2010). Entretanto, nenhum
estudo na região havia sido feito no sentido de investigar a relação entre segurança alimentar e
Agroecologia, e de como os manejos agroecológicos interfeririam na SANS desses
agricultores.
Vale registrar que, em Acaiaca e Divino, existem agricultores agroecológicos ou em
transição agroecológica inseridos nas ações extensionistas do Centro de Tecnologias
Alternativas da Zona da Mata – CTA-ZM. O CTA-ZM, é uma organização não
governamental, localizada em Viçosa-MG e que, há mais de 25 anos, vem desenvolvendo
atividades, junto aos agricultores e suas organizações de representação, com ênfase nos
manejos agrícolas mais sustentáveis, considerando as dimensões social, ambiental e
econômica.
Em Acaiaca a maioria dos agricultores pesquisados possui pequenas extensões de terra
e os cultivos são voltados principalmente para o consumo da família e, a partir de 2011, além
do consumo familiar, parte da produção é destinada para a comercialização com o Programa
Nacional de Alimentação Escolar – PNAE.
A população total do município de Acaiaca é de 3.924 habitantes, dos quais 2.553
residem na área urbana e 1371 na área rural (IBGE, 2010). O município ocupa uma área total
de 102 km², representando 0.017% do estado e 0.011% da região. Portanto, o Índice de
Desenvolvimento Humano (IDH) do município é de 0,678, sendo classificado pelo Programa
das Nações Unidas para o Desenvolvimento – PNUD, como um município entre as regiões
consideradas de médio desenvolvimento humano (IDH entre 0,5 e 0,8). Por outro lado, os
dados do Censo Demográfico de 2010 mostram que 29,2% da população encontram-se entre a
linha de indigência e pobreza e 21,8% está abaixo da linda da indigência.
7
Em Acaiaca, os agricultores começaram o processo de transição agroecológica em
2000, quando a Prefeitura Municipal de Acaiaca estabeleceu um convênio com o CTA-ZM,
para a implantação de projetos ligados à Agenda 214.
Já em Divino, alguns dos agricultores entrevistados já produzem de forma
agroecológica há mais tempo. Alguns deles iniciaram sua transição agroecológica há mais de
25 anos. Embora estes agricultores tenham uma produção bastante diversificada, o café ainda
representa a principal fonte de renda de seus sistemas produtivos, ao contrário de Acaiaca,
que o café, quando presente, ocorre em pequena escala.
O município de Divino apresenta uma população total de 19.133 habitantes, dos quais
10.796 residem na área urbana e 8.337 na área rural (IBGE, 2010). A população rural está
dividida entre 29 comunidades. A área total do município é de 338 km², representando
0.058% do estado e 0.037% da região. O Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) do
município é de 0, 692 (IBGE, 2010), e, assim como Acaiaca, está classificado pelo PNUD
como um município entre as regiões consideradas de médio desenvolvimento humano. No
município de Divino, os dados do Censo Demográfico de 2010 mostraram que 27,5% da
população encontram-se entre a linha de indigência e pobreza; e 21,6% está abaixo da linda
da indigência. Contudo, é um município que possui inúmeras riquezas naturais, o que pode
favorecer inclusive ao turismo.
Para o desenvolvimento desta dissertação, utilizou-se de metodologias qualitativas
buscando analisar comparativamente os agricultores em transição agroecológica, residentes
nos municípios de Acaiaca e Divino e inseridos nas ações extensionistas do CTA-ZM.
Esta dissertação orienta-se teoricamente por três eixos principais: saúde e segurança
alimentar; Meios de Vida e paisagens diversificadas. Estes três eixos estão estruturados em
três capítulos centrais. Além disto, contém uma seção com a descrição da metodologia
utilizada e, por fim, algumas considerações finais.
O primeiro capítulo intitulado “Agroecologia: um Caminho para Meios de Vida mais
Sustentáveis”, teve como objetivo analisar em que medida os sistemas agroecológicos
interferiram na vida das doze famílias de agricultores em transição agroecológica, pesquisadas
4 No Brasil, a Agenda 21 surgiu após a Eco 92 e pode ser definida como um “instrumento de
planejamento para a construção de sociedades sustentáveis, em diferentes bases geográficas, que concilia
métodos de proteção ambiental, justiça social e eficiência econômica. [...] É um instrumento de planejamento
participativo para o desenvolvimento sustentável do país” http://www.mma.gov.br/responsabilidade-
no município de Divino-MG e nas seis famílias do município de Acaiaca-MG; e como os seus
Meios de Vida foram modificados a partir da transição agroecológica.
No segundo capítulo, denominado “Quando a Paisagem Diversifica, o Prato Fica
Colorido”, a discussão está centrada nos redesenhos das paisagens após a adoção da
Agroecologia, avaliando como estas alterações interferiram no consumo de alimentos e na
segurança alimentar e nutricional das famílias em estudo.
No terceiro capítulo, “Saúde e Agroecologia: Quando o Alimento Vira Comida”, a
discussão centra-se na questão da saúde. Neste capítulo, apresentam-se, os conceitos atuais de
Agroecologia, a definição de soberania alimentar, segurança alimentar e nutricional
sustentável, bem como as diferenças conceituais entre comida e alimento, analisando como os
agricultores e/as entrevistados compreendem estas ideias. Neste capítulo discute-se também a
relação entre agrotóxicos e riscos para a saúde.
No anexo A, o leitor poderá encontrar o questionário que norteou as entrevistas. No
Anexo B encontra-se o aceite do Comitê de Ética. Anexas, ainda, algumas receitas colhidas
durante a pesquisa, que de alguma forma foram significativas, tanto para as agricultoras como
para a pesquisadora.
9
2. METODOLOGIA
A minha experiência como nutricionista foi fundamental para a realização desta
dissertação. Sou nutricionista há dezoito anos e as recentes atividades desenvolvidas junto ao
Centro de Tecnologias Alternativas da Zona da Mata – CTA-ZM, às associações e aos
sindicatos de trabalhadores rurais de alguns municípios localizados na Zona da Mata mineira,
entre eles Acaiaca e Divino, com o propósito de contribuir para a melhoria da qualidade dos
alimentos produzidos pelas famílias dos agricultores/as me ajudaram a identificar e construir
o problema a ser investigado nesta dissertação. As diversas conversas, oficinas e cursos
promovidos em Acaiaca e Divino-MG, possibilitaram, ainda, ampliar meus conhecimentos
sobre a região e os processos desenvolvidos em torno da Agroecologia e permitiram
estabelecer uma relação de confiança entre as famílias selecionadas e pesquisadora o que
facilitou a realização da pesquisa.
Circunstancialmente, também, foram identificadas diversas questões que - dada sua
relevância - mereceram ser aprofundadas e refletidas, tanto a partir da perspectiva teórica,
quanto do levantamento de dados empíricos. Conforme ressaltado por Freire (1992) e Kuhn
(1994) a construção do conhecimento se dá com a participação de diversos atores e não de
uma forma linear onde o pesquisador se coloca em uma posição de neutralidade e
superioridade frente à realidade estudada. Valorizar a experiência, anterior vivida pelo
pesquisador, facilita a compreensão da realidade e mostra que o pesquisador não é um sujeito
cognoscente abstrato, mas um indivíduo construído historicamente e que a escolha do tema de
estudo se dá com base no contexto no qual está inserido. Nessa perspectiva, é pertinente a
observação feita por Alves (2000) ao tratar da escolha do objeto de estudo quando afirma que
essa escolha se dá com base nos valores do próprio pesquisador, pois “a escolha do objeto de
estudo e dos problemas a serem investigados é um ato anterior à pesquisa, que tem a ver com
os valores do investigador” (ALVES, 2000, p.96). Nesse sentido, com a participação, tanto
de professores-pesquisadores da UFV, quanto de técnicos do CTA e de alguns agricultores, a
presente pesquisa começou a ser desenhada a partir das definições dos procedimentos
metodológicos e do universo da pesquisa. A participação dos diferentes atores no processo de
escolha do universo a ser pesquisado contribuiu para que a amostra selecionada apresentasse
elementos que pudessem ser comparados, como por exemplo, a importância do tempo de
utilização dos manejos agroecológicos e a robustez dos sistemas.
10
A pesquisa ora apresentada, desenvolveu-se a partir de métodos qualitativos fazendo
uma análise comparativa entre agricultores/as em transição agroecológica, residentes dos
municípios de Acaiaca e Divino, inseridos nas ações extensionistas do CTA-ZM, em parceria
com as organizações dos/as agricultores/as.
A opção pela comparação deve-se ao fato de que as pesquisas comparativas
possibilitam descrever os fatos e suas reações, identificando relações entre variáveis
(GONZALES, 2008). Para esse, autor, “as estratégias comparativas são escolher os sistemas
mais semelhantes ou os sistemas mais diferentes” (GONZALES, 2008, p.6). E foi o que se
procedeu nesta pesquisa, uma vez que buscou-se comparar as experiências de agricultores em
duas etapas diferenciadas – Acaiaca, onde o processo de transição agroecológica teve seu
marco inicial em 2000 e em Divino, onde os agricultores, não necessariamente todos os
envolvidos na pesquisa, já estão no processo de transição agroecológica há mais de 20 anos. A
ideia de comparar relações, semelhanças e diferenças de distintas situações sociais é
amplamente utilizada nas ciências sociais. Conforme Barros (2007, p. 5), “o processo do
método comparativo é justamente o que permite estabelecer o estranhamento, a
diversificação, a pluralização e a singularidade daquilo que parecia empiricamente diferente
ou semelhante (...)”.
Ressalta-se que os dados apresentados nesta pesquisa, fornecem uma indicação da
dinâmica que ocorre nos dois municípios, e não a dinâmica completa do processo. Conforme
Kosik (1995), não se busca conhecer todos os fatos, mas compreender a realidade “como um
todo estruturado, dialético, no qual e do qual um fato qualquer pode vir a ser racionalmente
compreendido” (KOSIK, 1995, p. 44).
Portanto, para a escolha dos municípios considerou-se os seguintes critérios: 1)
presença de agricultores em transição agroecológica, 2) participação das mulheres no
Programa de Formação em Gênero e Agroecologia5, e, 3) Realização dos Intercâmbios
Agroecológicos no município. Após a definição dos municípios, foram realizadas reuniões
com os sindicatos e as representantes das comissões de mulheres, dos dois municípios, para a
apresentação do projeto de pesquisa, seus objetivos e sua metodologia. A partir de então,
5 Trata-se de um programa de formação desenvolvido, em 2009, pelo CTA-ZM, em parceria
com o NIEG/UFV (Núcleo Interdisciplinar de Estudos de Gênero da Universidade Federal de Viçosa)
e as Comissões Municipais de Mulheres Trabalhadoras Rurais, em alguns municípios da Zona da
Mata, dentre eles Acaiaca e Divino. Um dos temas trabalhados no curso foi a contribuição do trabalho
das mulheres para a garantia da segurança alimentar e nutricional das famílias.
11
construiu-se, conjuntamente, a agenda de atividades, mediante a concordância das famílias
partícipes.
O olhar investigativo voltou-se, em especial, para as estratégias dos agricultores em
busca da segurança alimentar e nutricional sustentável, verificando, pois, a disponibilidade de
alimentos e as práticas e hábitos alimentares. As análises e reflexões realizadas
fundamentaram-se em um percurso conceitual construído sob a égide de algumas abordagens.
A primeira refere-se às questões ligadas à soberania e à segurança alimentar e nutricional
sustentável, visto que o direito humano à alimentação adequada é um direito constitucional e
que deve ser assegurado a todos, permanentemente. A segunda refere-se à abordagem teórica
denominada Meios de Vida, procurando, assim, analisar como os Meios de Vida são
reconstruídos e ressignificados com as práticas agroecológicas. E, como a adoção da
Agroecologia pressupõe novos manejos produtivos, a terceira abordagem refere-se à análise
da paisagem, visto que a partir da agroecologia as pessoas desenvolvem novas relações com a
natureza o que leva a configuração de novos desenhos dos (agro)ecossistemas em diferentes
escalas.
A partir disso, duas questões se mostraram centrais: a compreensão de como os Meios
de Vida mais sustentáveis, baseados na Agroecologia, modificam as paisagens; e, como estes
Meios de Vida e as paisagens modificadas influenciam a soberania alimentar e a segurança
alimentar e nutricional sustentável da família.
Como parte da pesquisa, realizou-se um levantamento bibliográfico, em busca de
dados secundários que ajudassem a entender as questões explicitadas anteriormente. Durante
a etapa de pesquisa bibliográfica analisou-se diversos impressos produzidos pelo CTA-ZM,
tais como: os relatórios dos Intercâmbios Agroecológicos e os informativos “Nossa Roça” e o
“Nossa Pesquisa na Roça” que foram importantes para o delineamento da pesquisa bem como
a construção do roteiro da entrevista. Para a análise desses impressos e relatórios elegeu-se os
anos de 2010 e 2011, por apresentarem um maior número de relatórios.
Além de apresentar subsídios capazes de ampliar o conhecimento sobre as famílias em
estudo, o material possibilitou comparar os dados relativos à produção e ao consumo de
alimentos com o observado nas propriedades. Pela sua relevância no âmbito do processo de
criação da pesquisa, cabe aqui uma breve apresentação dos impressos pesquisados. Embora o
contato com o “Calendário Agroecológico” tenha ocorrido somente na pesquisa de campo,
sua descrição será feita com os demais impressos. E, por ser assim, passemos a eles:
12
“Calendário Agroecológico”
O calendário agroecológico é um impresso confeccionado em 2009 e utilizado no
Programa de Formação de Mulheres em Agroecologia do CTA-ZM, executado em parceria
com o NIEG/UFV (Núcleo Interdisciplinar de Estudos de Gênero) e as Comissões Municipais
de Mulheres Trabalhadoras Rurais (vide fotografia no Apêndice). Esse calendário teve como
objetivo inicial avaliar a importância dos “quintais” na produção de alimentos e geração de
renda, a partir do trabalho das mulheres. Com o calendário, buscou-se quantificar a produção
alimentar gerada nos quintais, mensurando a sua contribuição para a melhoria da renda e a
segurança alimentar e nutricional das famílias. Com isso objetivou-se dar visibilidade àquilo
que é produzido e quase sempre não é mensurado pelo restante do grupo doméstico, mesmo
pelas próprias mulheres, por se tratar de valores/bens que são produzidos como
prolongamento das atividades domésticas (LADEIRA, et al., 2003).
O Calendário Agroecológico possuía uma formatação em duas colunas – uma para
registrar a venda ou troca de alimentos e outra para registro das doações e consumo.
Estabeleceu-se que, diariamente, as mulheres anotariam toda a movimentação dos bens
(alimentares ou não alimentares), produzidos por elas, na propriedade, registrando a
quantidade e o destino destes. Ao final de cada mês, os produtos seriam convertidos em
valores de mercado pelas próprias mulheres. Assim, seria possível quantificar, valorar e
avaliar a real participação do trabalho das mulheres, relativos à produção destinada ao
consumo da família e a geração de renda.
“Intercâmbios Agroecológicos”
Os Intercâmbios Agroecológicos são espaços de construção coletiva do conhecimento
agroecológico, promovidos pelo CTA-ZM em parceria com organizações dos Trabalhadores
Rurais da região e com alguns projetos de pesquisa e extensão universitária da Universidade
Federal de Viçosa (UFV). Dentre os quais: (Agro) Ecologia dos Saberes na Zona da Mata
mineira; Construção de Conhecimento Agroecológico em Territórios de Identidade Rural por
meio de Intercâmbios em Redes Sociais; Construção e Qualificação da Sustentabilidade de
Agroecossistemas em Propriedades Agrícolas Familiares; Produção Animal Integrada a
Sistemas de Produção Agroecológicos e Orgânicos na Agricultura Familiar; Desenvolvimento
Rural com Base na Agroecologia: Apoio a Iniciativas Locais Organizadas para a Segurança
13
Alimentar; Geração de Renda e Qualidade Ambiental. Esses projetos têm como estratégia
metodológica reconhecer e legitimar o conhecimento dos agricultores na construção da
Agroecologia, por meio da troca de conhecimentos e experiências entre os agricultores, e, dos
agricultores com os técnicos e estagiários do CTA-ZM, bem como, com os professores e
estudantes da UFV.
Esses Intercâmbios Agroecológicos acontecem, principalmente, nas propriedades dos
agricultores, que, partindo da realidade local e da história de vida de cada família, favorecem,
sobremaneira: o diálogo e o compartilhamento de experiências, tanto no manejo dos sistemas
agroalimentares, quanto em técnicas alternativas de edificações, receitas de preparações
alimentares diversas, formas alternativas de tratamento das doenças e como manter a saúde
utilizando os recursos locais.
Vale ressaltar, que as informações obtidas nos Intercâmbios Agroecológicos são
registradas em relatórios, sendo que várias delas já foram sistematizadas e publicadas.
“Nossa Roça e Nossa Pesquisa na Roça”
O “Nossa Roça” é um informativo produzido a partir dos dados obtidos durante os
Intercâmbios Agroecológicos. Com linguagem simples e com muitas fotos, esse impresso
busca divulgar as experiências agroecológicas das famílias, principalmente na Zona da Mata
mineira (Anexo V). Uma variante do “Nossa Roça” é o “Nossa Tecnologia Social” (Anexo
X), quando uma tecnologia relevante é identificada, é feito um boletim específico para
divulgá-la. O informativo “Nossa Pesquisa na Roça” procura divulgar as pesquisas realizadas
a partir dessas experiências. Os boletins procuram valorizar tanto o conhecimento dos
agricultores quanto as diversas atividades de pesquisa e extensão desenvolvidas em parceria
com a UFV. Esses informativos fazem parte das estratégias de comunicação do CTA-ZM e
são utilizados como instrumentos de colaboração na construção do conhecimento
agroecológico. Durante a pesquisa pude contribuir diretamente na elaboração de dois desses
informativos e ainda outros informativos serão produzidos, como produto desta pesquisa, com
dados coletados especificamente com as famílias que, de algum modo, dela fizeram parte.
Instrumentos para a pesquisa de campo
14
Para a realização desta pesquisa utilizou-se uma abordagem qualiquantitativa que teve
como instrumento de coleta de dados a entrevista semiestruturada, a observação participante e
caminhadas pelas propriedades. Priorizou-se a abordagem qualitativa, pois conforme salienta
Demo (1989), a pesquisa qualitativa responde a questões muito particulares, preocupando-se
com um nível de realidade que não pode ser quantificado. Para esse autor, a pesquisa
qualitativa trabalha com um universo de significados, motivos, aspirações, crenças, valores e
atitudes que correspondem a um espaço mais profundo das relações dos processos e dos
fenômenos que não podem ser reduzidos à operacionalização de variáveis. Essa pesquisa foi
concebida e realizada em estreita relação de cooperação com os participantes6, e, por ser
assim, pode-se dizer que por alguns dias a realidade era percebida, parafraseando (BRYMAN,
1988, p. 61) “através dos olhos daqueles que estão sendo pesquisados”.
Entrevistas
As entrevistas foram realizadas seguindo um roteiro semiestruturado, conforme
Anexo A, o qual permitiu, por meio de uma conversa informal, captar as representações e
significados que os agricultores atribuíam à questão alimentar, à Agroecologia e à paisagem
local. Nessa perspectiva, a entrevista começou com alguns questionamentos básicos. Tais
como: o tamanho da propriedade; o tempo em que a família reside na propriedade; os
alimentos cultivados no passado e no presente; as formas de manejos desses alimentos; e
hábitos alimentares, etc. Seguindo essa mesma linha de raciocínio e, respaldada em teorias
pertinentes à pesquisa, outras perguntas foram sendo elaboradas a partir do que se evidenciou
e das respostas obtidas. Dessa maneira, os agricultores, seguindo espontaneamente a linha de
seus pensamentos e as próprias experiências, dentro do foco principal desta pesquisa, foram
contribuindo na elaboração do conteúdo da mesma (TRIVINÕS, 1987).
Durante as entrevistas, cujas investigações tiveram como foco central a busca de
informações - dados quantitativos e qualitativos - que evidenciaram as práticas de produção
de alimentos, bem como o conhecimento das famílias sobre consumo de alimentos, soberania
e segurança alimentar e nutricional sustentável, pôde-se construir o corpus principal deste
estudo (BAUER; GASKELL, 2002).
6 A adoção do termo participante e não informante, ou respondente deve-se à efetiva participação dos
agricultores na realização desta pesquisa, conforme orienta SELLTIZ et al., 1987.
15
Ressalta-se, que não houve interferência, por parte da pesquisadora nos hábitos7 e
práticas8 alimentares das famílias, uma vez que o objetivo da pesquisa foi investigar e
compreender as atuais práticas alimentares dos pesquisados. Buscou-se, apenas, observar e
registrar sobre o que era o foco desta pesquisa. E quando havia alguma solicitação, por parte
dos entrevistados, eram feitas as orientações necessárias relativas ao consumo adequado de
alimentos, segurança alimentar e orientações sobre o preparo e armazenamento adequados de
alimentos.
Com as entrevistas e a observação participante foi possível identificar:
1) Alimentos anteriormente consumidos, suas origens, modos de cultivo,
armazenamento e preparo;
2) Alimentos que os substituíram e seus modos de preparo;
3) A relação entre formas de produção, alteração na paisagem e consumo de alimentos;
4) Alimentos comercializados e sua contribuição no orçamento familiar;
5) Quantidade de alimentos produzidos e consumidos na propriedade e seu impacto no
orçamento familiar;
6) Alimentos comprados e sua repercussão nos gastos familiares com alimentação;
7) A percepção das famílias sobre Agroecologia, soberania e segurança alimentar e
nutricional;
8) As alterações na produção de alimentos decorrentes da comercialização para o
Programa Nacional de Alimentação Escolar;
9) Receitas de preparações alimentícias antigas ou novas importantes para as famílias;
10) Alimentos trocados entre vizinhos.
Em Acaiaca, as entrevistas foram realizadas no período compreendido entre os dias 01
e 10 de Julho de 2012. A amostra compreendeu 06 (seis) famílias em que, pelo menos, uma
mulher havia participado do Programa de Formação em Gênero e Agroecologia. Essa opção,
justifica-se pelo fato das mesmas trabalharem com o calendário agroecológico que seria um
dos objetos da pesquisa.
Em Divino, as entrevistas foram realizadas no período compreendido entre os dias 16
e 31 de Julho de 2012. Doze (12) famílias compuseram a amostra, das quais em seis, pelo
7 Hábito foi empregado como uma “parte integrada da totalidade cultural” que devido à sua repetição
passa a fazer parte da vida das pessoas (CONTRERAS,1992). 8 As práticas alimentares são também práticas sociais e arraigadas à cultura que interferem nas escolhas
daquilo que se come, podendo inclusive uma prática se tornar um hábito (GARCIA, 1997).
16
menos uma mulher havia participado do Programa de Formação em Gênero e Agroecologia,
pelos mesmos motivos já mencionados. As outras seis famílias, foram selecionadas
considerando a participação nos Intercâmbios Agroecológicos desenvolvidos CTA-ZM
quando estes foram implantados no município.
Nas famílias em que a seleção se deu pelo fato de alguma mulher ter participado do
Programa de Formação em Gênero e Agroecologia, tais mulheres foram as participantes
principais. Todavia, outros membros dessas famílias também foram entrevistados,
principalmente naqueles casos em que as participantes eram muito jovens e naqueles em que
outros membros das famílias estavam inseridos nos Intercâmbios Agroecológicos desde o
início. Em algumas famílias, as mulheres não tinham conhecimento da quantidade de
alimentos plantados e colhidos e solicitavam que esta pergunta fosse feita para o pai e/ou
esposo. Em outros casos, a mulher solicitava que que toda a entrevista fosse feita com os dois,
pois acreditava que era um momento importante, e deveria, portanto, ser compartilhado com o
companheiro.
Salienta-se que as famílias foram selecionadas compondo uma amostra representativa,
e não aleatória, tendo em vista a necessidade de se trabalhar em localidades nas quais as
famílias têm suas práticas agropecuárias baseadas em uma perspectiva agroecológica. Assim,
pode-se falar de seleção e não amostragem (BAUER; GASKELL, 2002).
Para a preservação das identidades dos entrevistados, os seus nomes foram
substituídos por outros que apresentavam algum significado aos nomes originais. No entanto,
as idades e a comunidade foram mantidas.
Contribuíram como participantes desta pesquisa um total de 44 pessoas, das quais 25
eram mulheres (quatro jovens9) e 19 homens (sete jovens).
Algumas famílias possuíam cadernos de anotações e, em um dos casos, arquivos
digitalizados. Tais aquivos, além do calendário, foram fontes importantes de informações
sobre os bens produzidos e comercializados. Entretanto, nem todas as famílias possuíam os
dados registrados e quantificações. Circunstancialmente, recorreu-se aos relatos dos
entrevistados, o que configurou-se como um fonte fidedigna, já que procurou-se sempre falar
diretamente com os responsáveis pelos bens produzidos e/ou comercializados.
Caminhadas pela propriedade
9 Foram considerados jovens os entrevistados entre 18 e 29 anos.
17
As caminhadas pelas propriedades possibilitaram conhecer o desenho do
agroecossistema da propriedade. Tais caminhadas, aconteceram sempre na companhia de um
dos membros das famílias, preferencialmente do(a) participante principal desta pesquisa. Com
as caminhadas, procurou-se, a partir de um olhar investigativo, observar as paisagens e
identificar as possibilidades alimentares dos agroecossistemas e verificar em que medida a
Agroecologia contribuiu para o desenho, atual, destes sistemas agroalimentares. Conforme
Garcia Filho (2003):
São as paisagens agrárias que oferecem as primeiras informações importantes para o
diagnóstico. Observando-as pode se obter mais do que por meio de documentos
existentes, informações indispensáveis sobre diversas formas de exploração e de
manejo do meio ambiente e sobre as práticas agrícolas e suas condições ecológicas
e, também, questionar sobre as razões históricas dessas diferenças (GARCIA
FILHO, 2003, p.18).
Durante a caminhada, indagou-se também sobre a forma de ocupação da terra, os
motivos que levaram à escolha dos locais das moradias e das lavouras, os problemas
ambientais, a quantidade e a qualidade da água e, etc. Nessas caminhadas, pôde-se identificar
os alimentos produzidos, aqueles que foram plantados e aqueles que nasceram
espontaneamente. Esse instrumento de coleta de informações, foi fundamental para
percebermos a relação entre o que foi consumido durante a permanência da pesquisadora nas
propriedades, os relatos sobre consumo e o que foi observado ao longo dos trechos
percorridos. Estas informações, obtidas nas caminhadas, foram sistematizadas e acrescentadas
às informações obtidas nos impressos do CTA-ZM e àquelas coletadas nas entrevistas. A
partir das, caminhadas pôde-se compreender como as mudanças no sistema de produção de
alimentos foram dando novas formas à paisagem observada.
Durante as caminhadas pelas propriedades, pôde-se fazer o registro fotográfico e
anotações das principais características da região, tais como:
- descrição da paisagem (o que se viu e o que as famílias relataram);
- relação da produção de alimentos com tipo de relevo, solos, disponibilidade de água e mão
de obra;
- as estratégias de Meios de Vida utilizadas pelos agricultores.
Observação Participante
18
Para a realização das entrevistas e caminhadas a pesquisadora hospedou-se nas casas
das famílias que fizeram parte da pesquisa, o que foi fundamental para o trabalho, pois
permitiu verificar in loco os alimentos consumidos, as formas de preparo e as estratégias para
acessar esses alimentos. Em algumas famílias um dia foi suficiente para a coleta de dados:
entrevistas, caminhadas e anotações relativas à produção, consumo e paisagem encontrada.
Em outras, a estadia durou até três dias, principalmente, em decorrência das atividades
desenvolvidas pelas agricultoras que, além de todas as atividades da casa e do quintal, tinham
compromissos com o sindicato, a associação e a comissão de mulheres.
Durante a permanência nas propriedades, pôde-se observar os hábitos, as práticas e as
estratégias10 alimentares. Muitas vezes, identificou-se diferentes formas de consumo que não
foram relatados, mas efetivamente realizados. Nesta etapa, pôde-se, ainda, observar as formas
de preparação dos alimentos, a maneira de servir e consumir, os locais e a forma de
armazenamento., A quantidade de alimentos estocados e a quantidade de alimentos
consumidos assim como a suas origens foi outro aspecto que mereceu a atenção da
pesquisadora. Para registrar os alimentos consumidos utilizou-se dos relatos dos agricultores,
dos registros nos Calendários Agroecológicos, de anotações em cadernos ou cadernetas,
registros em planilhas eletrônicas e ainda das notas de compras.
Vale ressaltar, que durante toda a pesquisa, buscou-se acompanhar as atividades
desses agricultores interferindo o mínimo em suas rotinas, e assim a pesquisadora foi para a
horta, para a lavoura, ajudou a lavar roupas, etc. Salienta-se, ainda, que esses momentos
foram importantes para perceber alguns Meios de Vida, e a maneira que esses agricultores
estabelecem suas relações sociais.
Outro instrumento de pesquisa utilizado foi o registro dos alimentos consumidos pela
família durante os dias em que a pesquisadora permaneceu nas residências. Para evitar
constrangimentos a quantidade de alimentos consumida não foi pesada, apenas registrada em
medidas caseiras. Como não foi o foco desta pesquisa a análise quantitativa do consumo de
alimentos, a análise se deu sobre a diversificação dos alimentos consumidos. Embora o tempo
de permanência nas residências tenha variado, considerou-se o consumo de alimentos
ingeridos pela família, num período de 24 horas,
Durante a permanência, da pesquisadora, nas casas dos agricultores foi solicitada a
contribuição com algumas atividades no município, como ministrar palestras sobre Saúde e
10 Estratégia foi empregada considerando as escolhas alimentares adotadas mediante as condições
econômicas e ambientais e os novos valores atribuídos à alimentação com a adoção da Agroecologia. Estratégia
é, portanto, diferente de prática e hábito, pois é pensada e refletida.
19
Educação Alimentar e Nutricional para os estudantes da Escola Família Paulo Freire no
município de Acaiaca e participação em Intercâmbios Agroecológicos, que ocorreram no
período da pesquisa, cuja discussão se deu a respeito da questão alimentar. Ainda durante a
pesquisa, participei de uma festa de casamento, um aniversário e de um velório. Vivenciar o
cotidiano das famílias condiz com a proposta da observação participante. E tal fato
possibilitou, pois, conhecer outros espaços de interação social vividos pelos agricultores.
Receitas de Preparações Alimentícias
Muitas receitas de preparações alimentícias, antigas ou novas foram coletadas durante
a pesquisa. Dezoito delas delas, tiveram suas composições nutricionais avaliadas11 a partir
da utilização do software Diet Pró rotulagem nutricional e encontram-se anexadas a esta
dissertação. A seleção para a escolha das receitas a serem avaliadas foi feita utilizando
critérios culturais e nutricionais. Quanto aos critérios culturais observou-se a importância das
receitas para as famílias, o tempo que as receitas acompanhavam as famílias e as suas
aceitações. Os critérios nutricionais observados referem-se ao valor nutricional, a facilidade
de preparo e a utilização de recursos locais.
Resolução 196/96
Esta pesquisa seguiu as determinações da Resolução 196/96 do Conselho Nacional de
Saúde (Brasil, 1996), que dispõe sobre os aspectos ético-legais dos trabalhos de investigação
científica, tendo sido aprovada pelo Comitê de Ética da Universidade Federal de Viçosa,
conforme documento (Anexo B). Todos os agricultores colaboraram, de forma voluntária, e
não houve recusa de participarem em nenhum dos casos.
11 Avaliou-se a composição química das preparações para os seguintes itens: valor calórico, proteínas, carboidratos, lipídeos, vitamina A, ferro, fibras, B 12, vitamina C, sódio, gorduras totais e gorduras trans.
20
3. AGROECOLOGIA: UM CAMINHO PARA MEIOS DE VIDA MAIS
SUSTENTÁVEIS
“O café mudou o nosso jeito de vida e roubou tudo de nós. O café você colhe uma
vez por ano. Você tira o da despesa e o resto você vende e não vê mais” (Silvano F.
de Paula, 48, São Pedro de Cima, Divino, MG.)
3.1 Introdução
Durante um dos Intercâmbios Agroecológicos, que antecedeu a esta pesquisa, no
município de Divino, um agricultor agroecológico e também liderança do movimento negro
na região, residente na Comunidade de São Pedro de Cima, fez uma longa e refletida
intervenção falando do significado dos intercâmbios em sua vida. Para esse agricultor, esses
intercâmbios foram importantes, para o povo da sua região, pois, ao mesmo tempo que
possibilitaram a valorização individual dos participantes, enalteceram também as práticas
alimentares locais. Ademais, muitas destas práticas, segundo esse agricultor, já haviam se
perdido ao longo dos anos e foram reintroduzidas, em seu meio, a partir da sua aproximação
com as ações promovidas pelos grupos ligados à Agroecologia no município. Na sua fala,
reproduzida parcialmente na epígrafe acima, ficaram marcadas outras compreensões acerca do
cultivo do café, característica da paisagem local. Foi por meio daquele intercâmbio, que
aquela fala começou a redirecionar o olhar da pesquisadora, suscitando novas perguntas.
Quais sejam: como o café roubou tudo desses agricultores? Se o café é a renda principal dos
agricultores do município de Divino, em que medida o café mudou a vida dos mesmos? E
com a Agroecologia esta compreensão do café que tudo rouba estaria se alterando? Qual seria
o papel dos sistemas agroflorestais utilizados por agricultores da região? Estes sistemas não
estariam devolvendo, pelo menos em parte, aos agricultores, o que foi “roubado” pelo café?
Novas possibilidades alimentares foram surgindo com a implantação dos sistemas
agroflorestais na perspectiva agroecológica?
E foi a partir daquele Intercâmbio Agroecológico que foi percebida a necessidade de,
durante este estudo, estabelecer um diálogo entre Agroecologia e Meios de Vida. Desta forma,
o objetivo central deste capítulo foi verificar em que medida os sistemas agroecológicos
interferiram na vida desses agricultores e se os seus Meios de Vida foram fragilizados ou
fortalecidos e, como ocorriam estas mudanças.
21
3.2 Meios de Vida: da Teoria à Prática dos Agricultores Agroecológicos
Pode-se considerar, que os primeiros debates em torno da abordagem denominada
Meios de Vida surgiram na França, sob a influência da geografia por meio da contribuição de
Vidal de la Blanche, no século XIX. Àquela época discutia-se a noção de genre de vie (tipo de
vida) que era influenciada pelas condições geográficas em que as pessoas estavam inseridas
conduzindo assim, à valorização das características físicas da paisagem (PERONDI, 2007).
No entanto, este debate fortaleceu-se com os trabalhos de Robert Chambers, em meados de
1980, e evoluiu com Chambers e Conway (1992), Scoones (1998) e Ellis (1998). Chambers e
Conway (1992) conceituaram os Meios de Vida como as capacidades, os ativos (estoques,
recursos, direitos e acessos) e as atividades que as pessoas utilizam ou têm disponível para
estabelecer suas estratégias de vida. Desde então, a expressão Meios de Vida têm sido
empregada para indicar diversos significados, embora todos envolvendo as condições
materiais e imateriais que garantem a reprodução sociocultural das pessoas (PERONDI,
2007).
A abordagem Meios de Vida tem sido utilizada como uma importante ferramenta
analítica para os estudos sobre a pobreza rural, em todo o mundo, principalmente, no
continente africano por ser efetiva para compreender e explicar como e quais estratégias as
pessoas utilizam para sobreviver em situações de risco e/ou crises ambientais, sociais ou
econômicas (PERONDI, 2007).
Em estudo sobre desenvolvimento local e Meios de Vida, Alves e Botelho (2011)
partem do conceito de livelihood proposto por Hebinck (2007), para quem Meios de Vida
integram todos os elementos tangíveis e intangíveis, social e natural, que as pessoas utilizam
para viver, considerando as possibilidades de relacionamentos, as organizações sociais, redes
e capitais disponíveis. Assim, estas autoras de acordo com o conceito elaborado por Hebinck
(2007), definem Meios de Vida como sendo:
Um conjunto variável de recursos, tais como redes sociais, trabalho, terra, capital,
conhecimento, tecnologia, mercados para adquirir e vender produtos, diferentes
mecanismos de coleta de alimentos, relações interpessoais, que são acessados e
utilizados de diferentes maneiras para gerar renda e também garantir a reprodução
sociocultural dos envolvidos (ALVES; BOTELHO, 2011. p. 8).
22
Porém, não se deve enrijecer a abordagem proposta para Meios de Vida por se tratar de
estratégias dinâmicas e, portanto, que se modificam ao longo do tempo, podendo ser
reconfiguradas em cada situação (HEBINCK, 2007).
No Brasil, ainda no início da década de 1950, Antônio Cândido buscou compreender
as estratégias de sobrevivência adotadas pelos parceiros de Rio Bonito-SP, estudando os seus
Meios de Vida. A limitação da abordagem de Antônio Cândido está na discussão de Meios de
Vida como forma de subsistência ou das estratégias utilizadas para se obter os mínimos vitais,
quando a perspectiva atual é de se discutir os máximos vitais sob a ótica do direito humano à
alimentação adequada. Mas, sua obra trouxe muitas contribuições. Destaca-se o debate sobre
as necessidades alimentares que foram abordadas em um duplo caráter: natural e social
(CÂNDIDO, 1987).
Mesmo considerando as diferenças entre duas abordagens de Meios de Vida, aquela
utilizada por Cândido e aquela proposta, principalmente, pelos autores europeus, as duas
perspectivas elaboram a reflexão a respeito da relação homem/natureza, analisadas à luz das
condições materiais e sociais, o que permite afirmar que existe uma aproximação entre as
duas possibilidades analíticas.
Ao estabelecer uma análise entre os princípios da Agroecologia e algumas definições
atuais de Meios de Vida, percebe-se que ambos tratam da diversidade, da sustentabilidade e de
resiliência. A diversidade, princípio da Agroecologia e estratégia utilizada para a garantia de
Meios de Vida, é, também, um requisito para a SANS, pois, ao diversificar a alimentação
aumentam-se as possibilidades de se alcançar as recomendações de consumo para todos os
nutrientes. Ellis (1998), define a diversificação dos Meios de Vida como:[...] o processo pelo
qual as famílias rurais constroem um diversificado portfólio de atividades e de capacidades de
apoio social para sobreviverem e melhorarem o seu padrão de vida (ELLIS, 1998, p. 4). Para
as famílias pesquisadas, a diversificação da produção consistiu em importante estratégia tanto
de renda ao aumentar o portfólio de alimentos produzidos e comercializados, como de
segurança alimentar por diversificar a alimentação com as diferentes safras.
O conceito inicial de Meios de Vida, proposto por Chambers (1983), como as
capacidades, os ativos (estoques, recursos, direitos e acessos) e as atividades que as pessoas
utilizam ou têm disponíveis para estabelecer suas estratégias de vida, foi alterado em 1992,
nos trabalhos de Chambers e Conway (1992), quando esses autores, incluíram a ideia de
sustentabilidade ao original conceito de Meios de Vida e propuseram alguns indicadores para
avaliar esta sustentabilidade (Quadro 01). Para eles, a sustentabilidade deve estar presente
23
tanto na dimensão ambiental, quanto social (CHAMBERS; CONWAY ,1992).
Nesses mesmos parâmetros, têm-se as contribuições de Scoones (1998) que
estabeleceu condicionantes para verificar se o meio de vida era sustentável ou não. Os
indicadores de Chambers e Conway (1992) e as condicionantes propostas por Scoones (1998)
aproximam-se do conceito de Agroecologia (Sevilla Guzmán, 1997; Gliessman, 2000) e dos
indicadores estabelecidos por Cabell e Oelofse (2012) para avaliar a resiliência (um princípio
da sustentabilidade) dos agroecossistemas. O Quadro 01 apresenta, resumidamente, os
indicadores de sustentabilidade dos Meios de Vida propostos por Chambers e Conway (1992) e
Scoones (1998) e dos agroecossistemas apresentada por Cabell e Oelofse (2012):
QUADRO 01- Indicadores de sustentabilidade dos Meios de Vida e dos agroecossistemas
Meios de Vida sustentáveis
Chambers e Conway (1992)
Meios de Vida sustentáveis Scoones
(1998)
Indicadores de sustentabilidade dos
agroecossistemas Cabell e Oelofse (2012)
Suporta as crises mantendo
elevadas as suas
capacidades e ativos.
Capacita e promove o bem-estar
(melhora o capital humano).
Contribuí na construção de capital
humano.
Contribuí, em rede, com
benefícios para outros
Meios de Vida, local e
global a curto e longo prazo.
Cria ocupações produtivas. Apresenta auto-organização social
(instituições).
Provê Meios de Vida
sustentáveis para a próxima
geração.
Adapta os Meios de Vida reduzindo
sua vulnerabilidade e elevando sua
resiliência, promovendo maior
resistência a uma crise.
Autorregulação ecológica.
Promove a sustentabilidade dos
recursos naturais, ou seja, equaliza
a velocidade de depredação com a
capacidade de recuperação do
sistema produtivo/extrativo.
Valoriza o capital natural local (de forma
responsável).
Reduz a pobreza. Tem razoável rentabilidade.
Estabelece conexões apropriadas.
Apresenta diversidade funcional e
diversidade de respostas.
Redundância.
Heterogeneidade espacial e temporal.
Exposição cuidadosa aos distúrbios
(limites).
Compartilha aprendizados e reflexões.
Globalmente independente e localmente
interdependente.
Honra os legados enquanto investe no
futuro.
Fonte: Elaboração própria, a partir de Chambers e Conway (1992), Scoones (1998) e Cabell e Oelofse (2012).
No Brasil, Perondi (2007), foi o primeiro autor a introduzir, no meio acadêmico, a
reflexão a respeito dos Meios de Vida sustentáveis. Para esse autor, um meio de vida (rural)
sustentável é aquele capaz de transformar uma ameaça em oportunidade, uma forma
24
dinâmica de encarar a vida com habilidade para perceber, adaptar-se e explorar as
mudanças físicas, sociais e econômicas (PERONDI, 2007, p. 28). Contudo, para esse mesmo
autor, a introdução dos Meios de Vida realmente sustentáveis faz com que esta
sustentabilidade deva ir além das questões econômicas e ambientais.
Por meio de uma das fontes utilizadas nesta pesquisa, os relatórios dos Intercâmbios
Agroecológicos, pôde-se identificar a construção de critérios para se considerar um agricultor
agroecológico, onde os indicadores sintetizados no Quadro 01 estão presentes. Tais critérios,
foram todos elencados pelos próprios agricultores e apenas sistematizados por Cardoso, I.M.
(professora da UFV) que mediou o encontro. Os critérios, elaborados pelos agricultores de
Divino-MG, também se aproximam da abordagem Meios de Vida por considerar as diferentes
formas de recursos sociais e ambientais disponíveis para os agricultores, como se pode
observar na sistematização presente no Quadro 02:
QUADRO 02 - Critérios elaborados por agricultores de Divino-MG para serem considerados
agroecológicos e Indicadores de sustentabilidade dos Meios de Vida e dos agroecossistemas
CARDOSO (2011) CHAMBERS e
CONWAY
(1992)
SCOONES
(1998)
CABELL e
OELOFSE
(2012)
Envolvimento com as organizações
(Sindicato, Associações, CTA-ZM
Redes Ocupações
produtivas
Instituições
Respeito às questões de gênero e geração Legados
Não usar veneno
Participação das famílias no construção do
conhecimento durante os intercâmbios
Capital
humano
Capital humano
Usar a diversidade com respeito
Preservação da água, do solo e da cultura
local
Sustentabilidade Resiliência Auto regulação
ecológica
Tratar o esgoto
Ter cuidado com o lixo sólido
Não usar e não consumir produtos
transgênicos
Respeitar os saberes diferentes
Ter diversidade na propriedade: árvores,
plantas, comida, fauna e flora
Capacidades e
ativos
Diversidade
funcional e de
respostas
Fonte: elaboração própria a partir dos autores citados, 2012.
A construção, descrita no Quadro 02, acima, incorpora vários princípios da
Agroecologia como a diversidade, o respeito às gerações e gênero, a sustentabilidade
ambiental dentre outros. Entretanto, para que tais princípios sejam cumpridos, em sua
totalidade, vai levar muito tempo, principalmente por considerar que alguns deles esbarram
25
em aspectos culturais fortemente arraigados na vida social. Outros princípios referem-se a
temas novos e complexos, bastante distantes da vida prática desses agricultores, como o tema
dos produtos transgênicos. Para tanto, é necessário uma maior interação entre os diversos
setores da sociedade e agricultores para que, por meio do diálogo construam, paulatinamente,
mecanismos que permitam a socialização de esclarecimentos a respeito desses temas.
Um grande desafio é construir e divulgar alternativas alimentares, ainda não
disponíveis no mercado, que possam substituir os produtos transgênicos amplamente
consumidos por parcela da população, nos dias atuais, como, por exemplo, o óleo de soja e o
fermento em pó químico. Algumas alternativas já começaram a surgir e apontam para o
retorno de práticas utilizadas no passado tais como: o uso do bicarbonato de sódio para
substituir o fermento em pó que leva em sua composição o amido de milho geneticamente
modificado. Essas alternativas para a escolha dos bens consumidos e do que é comprado
acontece de maneiras diferenciadas. Nesta pesquisa, percebeu-se que na medida em que os
agricultores aprofundavam os debates e a compreensão acerca da Agroecologia, a tendência
era de consumir alimentos produzidos localmente, muitos destes que já haviam sido
consumidos no passado e que voltaram a compor a dieta alimentar, com novos valores e
significados o que pôde ser verificado por intermédio das entrevistas, como o retorno do
lobrobo e dos ensopados de banana verde.
Verificar o conhecimento proporcionado pelos espaços de formação advindos com as
práticas agroecológicas pode ser um importante instrumento para a compreensão das
estratégias adotadas pelos agricultores para as suas novas relações com o seu meio social e
geográfico. Para alguns autores como Rigotto et al. (2011); Kosik (2002), Alves, 2000, a
produção de conhecimento se dá com base em determinadas concepções e ideologias que
definirão o modo de ver o mundo e de interpretar os fenômenos sociopolíticos. Esta forma de
construir o conhecimento, considerando a experiência dos agricultores, como nos
Intercâmbios Agroecológicos, e com metodologias científicas atualmente aceitas é o que
Santos (2010) chama de “conhecimento prudente, para uma vida descente” (SANTOS, 2010,
p. 77).
Outros estudos como os de Maluf et al. (1996); Valente (1997); Ehlers (1999); Caporal
e Costabeber (2000) e Burity et al. (2010) apontam a modernização agrícola, preconizada pela
Revolução Verde, como a principal causa para a insegurança alimentar e nutricional no meio
rural. Isto porque, esta modernização interfere diretamente na produção e consumo de
alimentos, além de provocar drásticas mudanças na paisagem rural, levando, a curto prazo, à
26
redução da diversidade alimentar e, consequentemente, à fragilização dos Meios de Vida
sustentáveis dos agricultores.
Uma das consequências da Revolução Verde é a precarização dos solos levando à
redução das quantidades produzidas com consequente precarização dos Meios de Vida. E foi
nesse momento de crise que alguns agricultores na Zona da Mata mineira buscaram novas
alternativas de produção e renda, como estratégia de permanência no campo. Estas
alternativas foram encontradas na Agroecologia. Com a adoção de novos manejos agrícolas,
mais diversificados e sustentáveis, os agricultores foram melhorando tanto os seus sistemas
como as possibilidades de renda conforme demonstrado por Souza et al. (2010). Esses
autores, compararam o cultivo de café em sistemas agroflorestais (SAFs12) e a pleno sol e,
observaram que além dos ganhos ambientais o resultado financeiro foi maior nos SAFs,
devido à diversificação dos produtos comercializados e por demandar menos insumos
externos.
Para Ferrari (2010), a Agroecologia tem uma significativa contribuição na reprodução
socioeconômica dos agricultores familiares, na medida em que se apresenta como uma
estratégia de resistência e evita o êxodo rural. Para Pollan (2007), os manejos agroecológicos
têm possibilitado o retorno para o campo. Além disso, vários estudos apontam a Agroecologia
como uma saída para a produção de alimentos e diminuição da pobreza rural (WEID, 2001,
2006; PEREIRA, 2008; DE SCHUTTER, 2010). Esse movimento de retorno ao espaço rural
foi observado em duas das seis famílias pesquisadas em Acaiaca. Neste município, observou-
se ainda, que uma moradora de origem urbana fez a opção de morar no campo em busca de
mais qualidade de vida. Em Divino, três das doze famílias pesquisadas retornaram para o
campo. Observou-se que mesmo os jovens fazem questão de continuar nas atividades rurais.
Nas famílias pesquisadas em Divino, apenas em uma delas dois filhos migraram para a cidade
em busca de trabalho. Nesse município, os jovens participam ativamente dos espaços de
construção do conhecimento agroecológico, o que favorece, de acordo com os entrevistados, o
respeito entre as gerações.
Ademais, a tentativa de valorizar o saber individual e coletivo dos agricultores que
experimentam novos manejos produtivos, possibilita a construção de um saber diferenciado
(WEID, 2001). Em Divino e Acaiaca, essa experiência tem sido vivenciada e compartilhada
12 “Sistemas agroflorestais podem ser definidos como uma forma de cultivo múltiplo onde pelo menos duas
espécies de plantas interagem biologicamente, pelo menos uma espécie é arbórea e pelo menos uma espécie é
manejada para produção agrícola ou pecuária” (SOMMARIBA, 1992, in CARDOSO et al., 2001).
27
com os demais agricultores, em vários espaços, principalmente, por meio dos Intercâmbios
Agroecológicos. Esta nova forma de manejar os agroecossistemas e de viver, em alguns
casos, foi sistematizada e difundida com os impressos do CTA-ZM e pelos projetos de
pesquisa e extensão da UFV.
3.3 Diferentes trajetórias: um só destino
Do total das dezoito famílias entrevistadas nos dois municípios, selecionou-se apenas
duas histórias, sendo uma de cada município pesquisado para representar as diferentes
possibilidades e caminhos para que as famílias iniciassem a transição agroecológica.
A Senhora Marisol, 50 anos, agricultura do município de Acaiaca, nasceu na roça, na
mesma comunidade e no mesmo lugar em que vive hoje. Aos 16 anos, saiu de casa para
trabalhar de doméstica na capital paulista. Casou-se, e foi morar em Belo Horizonte, onde
teve seus três filhos. Trabalhou também como costureira na capital mineira. Ela relata que,
quando morava na cidade, sempre ficava se perguntando: porque não podia voltar para a roça
e viver como os outros familiares que tinham ficado em Acaiaca? E assim, um dia tomou
coragem e retornou; sem trabalho e com três filhos pequenos. Na bagagem, o medo e a
lembrança dos sofrimentos vividos na cidade. De volta à Acaiaca, foi morar na casa da sua
mãe. Começou a se envolver com a igreja da sua comunidade, onde as atividades e o
aprendizado neste espaço fizeram com que ela se tornasse uma grande liderança. Aproximou-
se também do Sindicato de Trabalhadores Rurais, onde se tornou presidente. Construiu sua
casa, nas terras da mãe, onde vive com os filhos e com uma tia, aposentada. Atualmente, seus
três filhos estudam na região. O mais velho, faz gestão de meio ambiente, à distância, numa
faculdade particular de Viçosa, sendo ainda monitor na Escola Família Agrícola do
município, mesma escola em que se formou em técnico em agropecuária. A filha do meio, já
terminou o ensino médio, estava estudando com vistas a ingressar na Universidade. Aos finais
de semana faz um curso de manutenção de computadores em Belo Horizonte, o que mostra
que mesmo nas comunidades rurais há de modo geral, uma procura pelo acesso às novas
tecnologias. O filho caçula é estudante do ensino fundamental na Escola Família Agrícola do
município vizinho. Quando estão em casa todos ajudam a cuidar da horta, do quintal, da
pequena plantação de milho consorciada com feijão e mandioca, bem como de todas as
atividades necessárias para que tudo funcione bem. Atualmente, a vida da família da Marisol
está bem estabilizada, e ela realizou o seu sonho de viver na roça. Da sua horta, do quintal e
28
do roçado colhem uma diversidade de alimentos que têm contribuído para a soberania e
segurança alimentar e nutricional da família. Além de satisfazer as necessidades alimentares
da família, parte da produção é comercializada por meio do Programa Nacional de
Alimentação Escolar (PNAE), gerando renda e orgulho de serem agricultores. Aquilo que eles
não produzem, preferem comprar dos seus amigos agroecológicos, por não ter veneno. O
desafio atual dessa família é como manter os três filhos na terra após a conclusão dos cursos
universitários visto que, talvez queiram exercer a profissão escolhida e na comunidade em
que vivem não tenham oportunidade.
Em Divino, a história do Sr. Pedro e Sr.ª Hortência ilustra como a Agroecologia tem
mudado a vida dos agricultores transformando dificuldades em oportunidades. Eles se
conheceram quando a Sr.ª Hortência era ainda uma menina, se casaram bens jovens e foram
tentar a vida. O Sr. Pedro conta que teve uma infância com muitas privações financeiras. Por
não conseguir sustentar os filhos, sua mãe teve que deixá-lo com outra família, onde ele
trabalhava e tinha uma cama para dormir e alguma comida para não passar fome. O Sr. Pedro
se lembra que era alguma comida mesmo, pois carne era só para os donos da casa. Ele só
sentia o cheiro e ficava imaginando o dia que poderia ter uma casa com fartura, o que levou
muitos anos, pois só com 17 anos ele foi morar sozinho, em uma casa em terra alheia e a
fartura ainda não estava lá. Sr.ª Hortência também se lembra do passado como uma época de
muitas dificuldades. Ela conta que carne era só de vez em quando, e que, como no passado era
tão difícil hoje eles gostam muito, e mesmo sabendo que não faz muito bem para a saúde não
conseguem deixar de comer, possivelmente pelo valor simbólico e sensorial associado a este
alimento. A Sr.ª Hortência aproveitava das dificuldades para inventar comida e foi assim que
ela serviu mingau de banana verde passando por batata para os companheiros13 que estavam
trabalhando na lavoura. O mesmo aconteceu com umbigo de bananeira; para ela, isto era, até
então, algo que se dava aos animais. Mas um dia ela estava tão nervosa, sem o que ter o que
cozinhar, que pegou um umbigo e foi descascando até chegar numa parte branca igual a um
palmito então ela resolveu experimentar e gostou.
O primeiro encontro da família da Sr.ª Hortência e Sr. Pedro com a Agroecologia
aconteceu em 1982, naquela época agricultura alternativa. Ano em que já eram donos da terra
adquirida com o próprio trabalho. Sr. Pedro foi vítima de intoxicação por agrotóxico, quando
cultivava café sob a orientação do Instituto Brasileiro do Café (IBC). Perdeu um rim e quase
13 Termo local para denominar trabalhadores contratados para algum serviço eventual na propriedade, como colher café, capinar, roçar, etc..
29
morreu. Para salvar o marido Sr.ª Hortência começou a fazer o curso de medicina alternativa e
a vida deles foi tomando outro rumo até chegar à Agroecologia pelo intermédio do CTA-ZM,
a quem o Sr. Pedro fala que deve tudo, a vida e os bens adquiridos ao longo dos anos. Hoje a
família vive bem, com uma renda financeira compatível à classe média urbana; consegue
fazer pausas na rotina de trabalho e viajam para descanso. Segundo afirmam, podem comer o
que querem. Todos os bens, inclusive carros, foram adquiridos com as rendas geradas na
propriedade provenientes da venda de café, frutas, ovos, doces, acrescidos das receitas
advindas do trabalho de terapeuta alternativa da Sr.ª Hortência. A família está
comercializando para o PNAE, onde vende frutas, legumes, verduras, quitandas e doces.
Atualmente, em Divino, todos os agricultores pesquisados vivem em suas próprias
terras. Três famílias, são proprietárias de pequenas extensões, neste caso além de cultivarem
suas próprias terras, ainda plantam em outras terras, na condição de parceiros, quase sempre à
meia, ou seja, dividindo metade da colheita com o dono das terras. Em Divino, metade das
famílias adquiriram suas terras por herança, ou seja, seis das doze famílias entrevistadas.
Outros adquiriram com recursos próprios, com o auxílio do trabalho dos membros da família.
Sr.ª Helena e Sr. Augusto compraram seu pedaço de terra com os recursos adquiridos na
capital do Estado de MG, onde o Sr. Augusto trabalhava como motorista e Sr.ª Helena tinha
uma pequena cantina onde, contando com a ajuda de toda a família, vendia refeições. As
famílias da Sr.ª Luzia e a Sr.ª Valentina e Sr. Braz conseguiram adquirir suas terras com
recursos advindos do pagamento por trabalhado realizado em outras propriedades. O Alberto
e a Júlia compraram as terras com os recursos do crédito fundiário, por intermédio de uma
associação com oito amigos. Alberto relata que tudo que conseguiu na vida foi participando
dos espaços coletivos, até a sua esposa ele conheceu por meio da participação nos
movimentos sociais. A participação nos movimentos sociais e nos espaços de formação
promovidos pelo CTA-ZM e pelo Sindicato de Trabalhadores Rurais possibilitou aos
agricultores um aprendizado diferenciado e a multiplicação de capital social conforme
conceituado por Bourdieu (1980), para quem capital social é o agregado dos recursos atuais
ou potenciais, vinculados à posse de uma rede duradoura de relações familiares ou de
reconhecimento mais ou menos institucionalizados (BOURDIEU, 1980, p.02). Estas diferentes
formas de inserção social, via sindicatos de trabalhadores rurais, igreja, cursos e oficinas
oferecidos por grupos externos, também são elementos constitutivos dos Meios de Vida e são
recursos utilizados pelos agricultores.
30
Embora autores como Scoones (1998), Cabell e Oelofse (2012), tenham utilizado a
expressão capital para simbolizar o acúmulo de recursos atuais ou potenciais, outros autores
como Hebinck (2007) prefere utilizar o termo recursos, por considerar "capital" como uma
metáfora econômica que não consegue expressar, totalmente, a diversidade de recursos que as
pessoas podem ter disponíveis. Para esse autor, a noção de recursos é mais adequada,
principalmente, quando se deseja analisar os Meios de Vida e, como estes são utilizados pelos
atores sociais, refletindo todas as relações que podem ser ocultadas na expressão capital.
Ainda relacionado à questão da terra, no município de Acaiaca a forma de acessá-la,
também se deu, principalmente, por herança. Apenas a família da Sr.ª Antônia e do Sr.
Sebastião comprou suas terras por meio de recursos próprios decorrentes da venda de sua
força de trabalho, seja como empregado em outras propriedades, seja trabalhando em uma
granja de suínos na região. Ao trabalho do Sr. Sebastião somou-se a renda advinda do
comércio dos artesanatos da Sr.ª Antônia. Outra agricultora de Acaiaca, Bárbara, trabalha nas
terras de sua irmã mais velha, que comprou o sítio para que a Bárbara pudesse mudar-se de
Belo Horizonte e realizar o seu sonho de viver no campo. No caso da Bárbara, não existe a
obrigação de partilhar a produção. No entanto, ela sempre destina alguns alimentos para a
irmã, principalmente o feijão. Para que a Bárbara pudesse acessar o Programa Nacional de
Habitação Rural e construir a sua própria casa, a irmã lhe doou um pequeno terreno.
Quanto ao tamanho das propriedades, como se observa na Tabela 01, em Acaiaca elas
são menores, quando comparadas com as propriedades do município de Divino. Ressalta-se
que, em Divino, a maior propriedade (50 hectares), é decorrente de herança. Parte dos
herdeiros (cinco) preferiu não dividir as áreas destinadas às pastagens, a plantação de
mandioca, e para o canavial, dividindo, no entanto a renda oriunda destas atividades. Apenas
o cultivo do café tem área demarcada e a renda é individualizada. O café para o consumo
familiar é retirado da produção de qualquer herdeiro, geralmente do café que apresentar
melhor qualidade.
31
TABELA 01-Tamanho das propriedades pesquisadas, em hectares, nos municípios de
Acaiaca e Divino-MG, 2012.
Tamanho em Ha Nº de propriedades
em Acaiaca
Nº de propriedades
em Divino
≥ 5 4 (66,67 %) 5 (41,66 %)
5,1 – 10 0 (0 %) 4 (33,33 %)
10,1 -15 2 (33,33 %) 0 (0 %)
15,1-20 0 (0 %) 1 (8,33)
20,1 -25 0 (0 %) 1 (8,33)
25,1-49,9 0 (0 %) 0 (0 %)
50 0 (0 %) 1 (8,33)
Total 6 (100 %) 12 (100 %) Fonte: Resultados da pesquisa, 2012.
Em relação aos bens de consumo, todas as famílias utilizam energia elétrica e possuem
equipamentos domésticos, o que facilita o dia a dia, como geladeira, liquidificador, ferro de
passar roupas e eletroeletrônicos, que proporcionam lazer e informação como televisão, rádio,
e, em algumas casas, computador. Pela televisão, dentre outros programas, assistem
principalmente jornais e programas relacionados à agropecuária. Em todas as residências
existem, pelo menos um, telefone celular. Em Acaiaca uma família tem computador com
acesso à internet. No município de Divino, quatro famílias têm computador em casa e duas
delas têm acesso à internet. Mesmo famílias que não têm internet em casa, têm o hábito de
acessar este meio de comunicação, seja no sindicato, nas escolas ou em outros pontos de
acesso gratuitos.
A energia elétrica favoreceu ainda, o trabalho com as criações de animais. Em
Acaiaca, três famílias têm picadeira elétrica utilizada para o preparo da alimentação animal.
Em Divino, nas propriedades em que havia criação de bovinos, as picadeiras também estavam
presentes.
A maioria das famílias visitadas conta com fogão a gás. Em Acaiaca, apenas uma
família não tem fogão a gás, por opção. Mesmo com a possibilidade de utilizar o gás, o fogão
à lenha é a principal forma de preparar os alimentos. Em Divino, todas as famílias contavam
com as duas possibilidades de preparar os alimentos, com fogão a gás e à lenha. Em todas as
famílias, a lenha é obtida dentro da propriedade, principalmente advinda de podas das árvores.
Neste sentido, os Sistemas Agroflorestais (SAFs) têm apresentado um importante papel de
fornecimento de lenha para cozinhar, reduzindo as necessidades de acessar fontes externas de
energia para preparar os alimentos, gerando mais autonomia, pois reduz o consumo de gás de
cozinha. Preocupados com a questão da saúde, na maioria dos casos os fogões são construídos
32
visando reduzir a quantidade de fumaça. No passado, nenhum dos entrevistados, que vivia na
zona rural, tinha fogão a gás. Assim, o fogão à lenha era a única alternativa de preparar os
alimentos, o que pode justificar a preferência relatada pela comida preparada no fogão à lenha
visto que as preferências alimentares estão associadas às questões culturais (BRAGA, 2004).
Todas as famílias contam com abastecimento de água encanada, não tratada
quimicamente. Em Acaiaca, duas famílias utilizam água de um poço artesiano14 que atende
outras famílias da comunidade, o qual foi construído pelo poder público municipal. Uma
família é abastecida com água de nascente, e as demais contam com poços artesianos
construídos em suas propriedades, sendo que, em pelo menos um caso, a água é
compartilhada com mais famílias, neste caso, limitando o uso para a horta, principalmente no
período de secas. Embora o município tenha participado do “Projeto Renascentes:
recompondo matas e sustentando vidas”, desenvolvido pelo CTA-ZM em parceria com o
Sindicato de Trabalhadores Rurais de Acaiaca e com a Escola Família Agrícola Paulo Freire,
localizada no município; a água das nascentes não tem sido suficiente para o abastecimento de
todas as demandas, sendo utilizada, principalmente, para os animais e irrigação das hortas.
Como esse projeto, aconteceu recentemente, acredita-se que, em breve, a quantidade de água
aumentará, uma vez que, as nascentes foram cercadas e árvores foram plantadas em seu
entorno. No município de Divino a maioria das casas contam com água em abundância e em
sua maioria de nascentes, que são cuidadosamente preservadas.
Durante esta pesquisa, diversos impressos que tratam da questão da Agroecologia
foram encontrados em todas as casas dos agricultores. Dentre esses impressos, destacam-se
principalmente os produzidos pelo CTA-ZM e os informativos das instituições locais dos
agricultores como do Sindicato e ainda jornais locais ou outros de maior circulação no Estado.
A prática da leitura tornou-se uma importante ferramenta para a construção do conhecimento
agroecológico, pois os agricultores acessam experiências exitosas de outros municípios e
podem experimentar estas práticas em seus sistemas. A Fotografia 01 retrata um desses
momentos de leitura, compartilhado e discutido pela família.
14 Poço artesiano é um poço cavado em profundidade para captação de água do lençol freático.
33
Fotografia 01- Leitura de Jornal em Acaiaca-MG, 2012.
3.4 Estratégias alimentares e Meios de Vida
Pela carência de um conceito específico para estratégia alimentar, e considerando
que o termo tem sido utilizado em diversos artigos científicos e nos programas
governamentais sem uma definição clara, estabeleceu-se a conceituação de estratégia a partir
da teoria de habitus elaborada por Bourdieu (1983), para quem as estratégias nascem do
habitus, e é por meio desse princípio gerador que as estratégias são criadas, o que permite
aos agentes enfrentar situações muito diversas. No entanto, para esse autor, as estratégias
têm sempre um sentido prático, frente a uma dada situação.
Assim, as estratégias alimentares podem ser consideradas como as alternativas que
são elaboradas para se conseguir algum objetivo em uma dada situação. Os agricultores
inseridos no contexto da Agroecologia buscam, em princípio, estratégias alimentares
baseadas na autonomia e na soberania alimentar (PETERSEN; ALMEIDA, 2004). Neste
estudo, observou-se que os agricultores têm adotado estratégias que intencionam coincidir
com o que eles compreendem como sustentável e saudável.
Nesta pesquisa, em alguns momentos, os agricultores utilizaram a expressão hábito
para expressar as estratégias alimentares e que estavam de acordo as condições materiais e
sociais que eles viveram e vivem. Afirma-se, portanto, que a alimentação dependia,
34
diretamente, dos recursos disponíveis. Dito de outra forma, dos Meios de Vida. Para o
agricultor Salvador (43) as estratégias alimentares, no passado, estavam muito associado aos
Meios de Vida disponíveis e, ao que se produzia:
“Todo mundo tinha o hábito de engordar um porquinho; então a comida era toda
preparada com gordura de porco, no fogão à lenha. As linguiças ficavam lá na
fumaça. Fazia também muitas quitandas de polvilho. A mãe fazia polvilho com a
mandioca do quintal, esse era o meio de vida de quase todo mundo da roça” (SALVADOR, 43, Mata Cães, Acaiaca-MG).
A partir do excerto acima, pode-se observar que a comida estava diretamente
relacionada às condições materiais da família e ao que estava disponível no âmbito da
propriedade e no seu entorno imediato. Engordar o porco era mais fácil do que comprar o
óleo, e ainda havia a questão do fornecimento da carne.
Como não tinham geladeira, as carnes eram armazenadas em recipientes com gordura
do porco ou salgadas e defumadas sobre o fogão à lenha. As quitandas também eram
produzidas a partir daquilo que estava disponível para as famílias como o fubá (do milho) e
polvilho (da mandioca).
Uma entrevistada que nasceu na cidade de Rio de Janeiro – RJ, e migrou para Divino
aos oito anos de idade relatou as dificuldades enfrentadas pela família, o que fez com que os
mesmos buscassem alternativas (estratégias) alimentares não convencionais:
“Quando eu era criança, quem preparava a comida era a minha mãe; comia tudo
que via na frente, a pobreza era tanta! Comia feijão miúdo, umbigo de bananeira,
almeirão do mato, banana verde para inteirar o feijão. De manhã, era fubá suado,
cuscuz. No almoço tinha um tal de comer arroz pintado, sabe o que é isso? Era o
arroz com o caldo de feijão, com uns grãos de feijão cozido no meio. Tudo era mais
difícil; tinha que socar arroz, chegava da roça e ia socar arroz para fazer a janta.
Sempre a mãe fazia mingau de couve. Eu lembro que a comida era tudo mais
natural mesmo. Pelejava muito na roça também, os filhos sempre ajudando” (Olga,
48, Vargem Grande de Baixo, Divino-MG).
No relatório do Intercâmbio Agroecológico que aconteceu no dia 04/06/2011, no
município de Acaiaca, um agricultor que já morou na cidade e retornou há poucos anos para
Acaiaca, mencionou a necessidade de aumentar a produção de alimentos, como uma
estratégia de se fortalecer os Meios de Vida, de forma sustentável, sem o uso de agrotóxicos:
“Temos que descobrir mais formas de produzir; com produção
que rende mais; porém, não concordo com a forma de produzir
jogando veneno, pois os venenos acabam com a nossa saúde. Na cidade é difícil de
35
não consumir estes produtos envenenados porque vem de terceiros, mas aqui, na
roça, não precisamos” (Palmerindo, 54, Acaiaca, MG).
Com a diversificação de alimentos proporcionada com os manejos agroecológicos, e
com a ressignificação dos alimentos produzidos localmente, alguns agricultores relataram que
atualmente, a geladeira tem ficado supérflua, pois grande parte dos alimentos é consumida
fresquinha, conforme relatado pela agricultora de Acaiaca: “é muito bom você saber que não
precisa colocar nada na geladeira, comendo só as coisas da época, e quando eu não tenho
uma verdura, os vizinhos trocam (VIOLETA, 51, Maracujá, Acaiaca-MG)”
Esse utensílio, a geladeira, todavia, continua sendo utilizado por todos os
entrevistados, em muitos casos para gelar água, conservar o feijão cozido e para armazenar
carnes, quando matam algum animal ou compram uma quantidade maior desse alimento.
Ainda que a maioria dos agricultores tenha uma produção diversificada, muitos
alimentos ainda são comprados, mostrando que estes agricultores também estão inseridos nos
sistemas especializados que organizam a vida coletiva moderna, como o atual sistema
agroalimentar. A Figura 01 mostra os principais alimentos comprados em Acaiaca e Divino.
Deve-se ressaltar, no entanto, que a Figura 01 refere-se aos alimentos que foram informados
como comprados, ou que constavam nas notas fiscais de compras ou ainda que foram
verificados in loco durante a pesquisa. Contudo, é possível que alguns alimentos
industrializados possam ser consumidos e não tenham sido informados, pois são alimentos
considerados prejudiciais à saúde, como outras guloseimas que apresentam excesso de açúcar
e os salgadinhos que contêm quantidades excessivas de sódio e gorduras. Como todos os
entrevistados já tinham algum contato prévio com a pesquisadora, e conhecendo a sua
conduta sobre o consumo, excessivo, destes produtos, podem ter deixado de informar.
Todavia, refrigerantes foram encontrados ou citados como consumidos em 60% das famílias
entrevistadas, tanto em Acaiaca como em Divino.
36
0
20
40
60
80
100
Po
rcen
tage
mDivino (%)
Acaiaca (%)
FIGURA 01- Principais Alimentos comprados por agricultores agroecológicos, na zona rural
de Acaiaca e Divino-MG, nos meses de Janeiro a Julho de 2012. Fonte: Resultados da pesquisa, 2012.
Muitos alimentos que já foram consumidos no passado recente e eram, inclusive,
considerados alimentos de festa ou preparados quando da presença de visitas como lasanha,
salpicão, strogonoff, foram excluídos ou reduzidos do cardápio, pois, como resultado da
participação nos espaços agroecológicos o consumo destes alimentos tem sido desestimulado,
por serem considerados pouco saudáveis e por depender de ingredientes externos para a sua
preparação, o que foi enfatizado por algumas agricultoras entrevistadas.
Quanto ao local de compras, todos os entrevistados de Acaiaca informaram que
adquirem o “principal” 15, em supermercados das cidades vizinhas. Essa escolha se dava em
função do preço e da disponibilidade de transporte. Além do supermercado, alguns alimentos
eram adquiridos de outros agricultores, nem sempre agroecológicos tais como: café, queijo,
banha de porco e carne. Justificavam esta compra pela facilidade e pelas relações sociais
construídas entre eles. Muitos alimentos eram trocados, principalmente entre vizinhos ou
entre os agricultores agroecológicos que comercializavam para o PNAE, que aproveitam estes
dias de entrega, para efetuarem essas trocas. Houve casos, de trocas de artesanatos por
alimentos. Três agricultoras das seis entrevistadas, em Acaiaca, são artesãs. Em Acaiaca,
apenas na propriedade do casal Antônia e Sebastião a produção de café era suficiente para a
15 Segundo os agricultores, principal é aquilo que não pode faltar como sal, arroz e óleo.
37
família e ainda sobrava para vender, tanto para as redes locais como para fazer as entregas de
porta em porta na sede do município. O café é comercializado torrado e moído.
Já em Divino, as compras foram efetuadas em diferentes locais como se pode observar
na Tabela 02. O supermercado foi o local acessado por todos os entrevistados para compra de
algum gênero alimentício. A feira foi citada apenas pelos dois entrevistados (Vitória e
Vicente) que comercializam parte da sua produção neste espaço. Eles aproveitam este
momento para comprar alimentos que não produzem, ou que a produção seja insuficiente para
o consumo da família. Como o mercado da Associação dos Agricultores Agroecológicos está
localizado na sede do Sindicato de Trabalhadores Rurais de Divino, todos os entrevistados
citaram esse espaço como local de compra, alegando facilidade e qualidade dos produtos.
Muitos dos entrevistados também utilizavam esse ponto de comercialização para a venda dos
seus bens agrícolas ou artesanatos e aproveitavam os dias de entrega dos bens produzidos para
comprar algum alimento.
TABELA 02 – Origem das compras de alimentos pelos agricultores de Divino-MG, 2012.
Local de Compra Nº de famílias que utilizam este espaço
Compra entre vizinhos (agroecológicos) 1 (8,33)
Compra entre vizinhos (produção convencional) 1 (8,33)
Supermercados, mercados 12 (100%)
Associação dos Agricultores Agroecológicos de Divino 12 (100 %)
Feira 2 (16,66)
Fonte: Resultados da pesquisa, 2012.
Durante as entrevistas, foi possível perceber certo desconforto dos entrevistados
quando se referiam aos bens comprados para a alimentação, principalmente quando essa
compra era realizada em casas comerciais, como se pode observar na fala da Bárbara: “eu
compro pouco, compro batata. Você acredita que eu tive que deixar a horta acabar porque o
pai do João (namorado) ficou doente e fui cuidar dele? Eu ia comprar e não tinha coragem,
pois eu com tanta terra... eu não moro em cima da pedra, para ter que comprar" (Bárbara,
43, Coqueiros, Acaiaca-MG).
Por meio dos relatos, percebeu-se que o ato de comprar alimentos provocava, nos
agricultores, a sensação de escassez, de carência, especialmente daqueles que tinham
limitações financeiras para adquiri-los. O comprar também reduz as possibilidades de
doações, tão importantes para as famílias estudadas. Sr.ª Gláucia, (77) agricultura residente
em Divino, lembra da fartura dos tempos de criança quando a mãe levava todos para a roça
38
para aprenderem a cultivar os alimentos, conforme se pode observar em seu depoimento, a
seguir:
“Minha mãe levava todo mundo para a roça. Lá plantava de tudo, mandioca,
batata, inhame, cana, abóbora, melancia, milho, arroz e feijão. Tinha um monjolo
para limpar arroz. Tinha fruta de toda espécie, tinha moinho d`água para fazer
fubá. Tinha muita fartura; fazia queijo e não comprava quase nada, não comprava
carne, não comprava ovo. Carne era só de porco e de frango e galinha, de casa
mesmo. Fazia muita broa de fubá e de arroz, fazia brevidade, biscoito de polvilho.
Tomava muito café com leite. Comia batata assada, outra hora frita. Fazia de tudo,
não comprava quase nada. Deixava o queijo curar numa tábua e a gente comia era
queijo! Queijo com banana! Antes a gente comia muito arroz doce, canjica, era só a
canjica, rapadura e leite. A língua (figura de linguagem utilizada para expressar o
elevado consumo) era rapadura, açúcar quase ninguém tinha. Eu acho a comida de
hoje boa, mas parece que antigamente era mais gostoso. Minha mãe fazia um tutu
de feijão com linguiça que parece que era mais gostoso, hoje em dia a gente faz,
mas parece que não é a mesmo coisa” (Gláucia, 77, Carangolinha, Divino-MG).
A fala da Dona Gláucia aponta elementos importantes para mostrar como os Meios de
Vida disponíveis como a posse da terra, a autonomia para produzir os próprios alimentos
definem a dieta alimentar. São também os recursos disponíveis que vão definir a forma de
preparar os alimentos.
Quanto à periodicidade das compras, pôde-se verificar que tinha uma estreita relação
com o local da compra. As compras feitas em supermercados ou em outros pontos de
comércio convencionais do espaço urbano ocorria mensalmente. Como alguns entrevistados
recebiam pensões ou aposentadorias estas compras eram realizadas no dia em que os
agricultores se deslocavam até à cidade para receberem seus benefícios.
Em outras famílias pesquisadas, percebeu-se que alguns alimentos que não são
produzidos também não são comprados, e, neste caso, só há o consumo de determinados bens
alimentares quando ganhados ou fora de casa. O queijo, por exemplo, a Júlia e o Alberto, do
município de Divino, relataram que nunca compraram esse alimento, embora gostem bastante.
E, segundo eles, não compram não, por falta de recursos financeiros, e sim porque não têm o
hábito de comprar esse alimento, e não acham que ele faz falta no cotidiano. Contudo, em
outras famílias, o queijo é comprado frequentemente, como observado em Acaiaca, na casa da
Marisol e Violeta, que já o adquirem de uma rede local, por meio de fornecedores que fazem
entregas semanais. Por estar facilmente disponível, via fornecedores da própria localidade,
estas agricultoras chegam a comprar em torno de dois quilos de queijo por semana.
3.5 Como a Agroecologia alterou os Meios de Vida dos agricultores
39
A necessidade de superar as diversas situações de crise ou dificuldades, enfrentadas
pelos agricultores que constituem o corpus desta pesquisa, associada à busca de mais
qualidade de vida e saúde, influenciou, sobremaneira, a construção de novas estratégias de
vida e, assim, iniciaram o processo de transição agroecológica como uma forma mais
sustentável de reprodução socioeconômica. Nesses parâmetros, estes agricultores tornaram-se
protagonistas de suas próprias histórias, não se tornando vítimas de uma situação social e
econômica desfavorável.
Durante as entrevistas, todos os agricultores relataram que a Agroecologia trouxe
mudanças qualitativas para as suas vidas, incentivando melhorias na alimentação como maior
utilização de alimentos naturais e frescos, que reduziu a incidência das doenças e que,
melhorou a renda da família, ao deixar ou reduzir a compra de insumos externos, ao mesmo
tempo em que aumentou a renda decorrente da diversificação da produção:
“É muito bom saber que você está plantando da forma certa, colher e comer
na hora. Igual a gente vende para a alimentação escolar, só as coisas da
época” (VIOLETA, 51, Acaiaca-MG).
“A gente come muitas coisas saudáveis como a serraia16, que é muito bom
para a saúde, pois limpa o sangue. Essas coisas como macarrão carregam
muito o sangue, eu evito essas coisas misturadas, refrigerantes e suco de
pacotinho, eu não tomo isso não” (MARISOL, 50, Acaiaca-MG).
“Eu falo que a saúde vem da natureza, se a gente plantar as coisas para
comer está fazendo economia, pois não precisa comprar remédio”
(HORTENCIA, 56, Divino-MG).
“Alimento é muito importante, na verdade a gente nunca viveu sem alimento,
só que hoje em dia não é só o alimento não, antes a gente comia, hoje a
gente pensa sobre o que comer. Igual a gente tem aquela moita de morango
ali, então eu fico pensando será que é bom comer uns dois, três morangos
por dia. Para mim alimento ou comida é saúde mesmo, pode pôr isso aí, eu
e a Júlia conversamos muito sobre isso” (ALBERTO, 28, Divino-MG)
Quantitativamente, pode-se perceber como a Agroecologia contribuiu para mudar a
vida dos agricultores quando se observa os recursos gastos com alimentação. Neste estudo,
percebeu-se que a diversificação da dieta dependia, principalmente, daquilo que era produzido
pelas próprias famílias, e que ao diversificar a produção, a alimentação também ficava
16 Serraia, ou serralha é o termo local para denominar a planta comestível Sonchus oleraceus L..
40
variada. A família que apresentou a menor diversificação de produção de alimentos, também
tinha o consumo menos diversificado. O desequilíbrio nesta dieta, decorrente da pouca
variedade de alimentos consumidos, elevou o gasto, apresentando, o maior gasto per capita
com alimentos para o município de Divino. Em Acaiaca, a família que apresentou o maior
gasto per capita com alimentação tinha uma produção bastante diversificada e neste, caso o
gasto com alimentação não estava associado à baixa produção de alimentos. Pode-se justificar
este gasto, pelo fato de um membro da família ter necessidade alimentar diferenciada,
decorrente de diabetes. Todavia, ainda assim, o maior gasto familiar com alimentação foi
menor quando comparado com o maior gasto entre as famílias pesquisadas em Divino. Esse
dado é muito importante, pois mostra que a produção diversificada, mesmo que para
autoconsumo, além de reduzir os gastos das famílias com alimentação tem contribuído para a
SANS das famílias.
Um dos fatores que pode ter contribuído para elevar os gastos com a alimentação no
município de Divino está relacionado à monocultura de café, que reduziu as possibilidades de
diversificação dos alimentos produzidos. Com a transição agroecológica, os alimentos voltam
a ser produzidos. Entretanto, como isso ocorre de forma processual ainda vai levar algum
tempo para que todas as famílias pesquisadas conquistem a autonomia alimentar a partir da
produção de seus sistemas.
Embora tenha efetuado o levantamento dos valores gastos em alimentação, em todas
as famílias pesquisadas, esse dado pode não ser exato, pois, em alguns domicílios, a forma de
registro, por parte dos entrevistados, nem sempre era precisa. Já em algumas famílias até os
lanches, realizados fora de casa, foram registrados.
Outro valor que interfere nos gastos com alimentação é a quantidade de visitas
recebidas. Nesta pesquisa percebeu-se que medir a segurança alimentar pelo valor declarado
para a aquisição de alimentos não é uma alternativa fidedigna, pois grande parte dos alimentos
consumidos é colhida na propriedade ou são trocados ou ganhados e não são valorados. Ao
calcular o valor mensal per capita despendido com bens alimentares (Tabela 03), objetivou-
se verificar o valor gasto com alimentação, por estas famílias e analisar se a diversidade
alimentar encontrada realmente possibilitava a redução dos gastos com a alimentação.
41
TABELA 03- Gasto mensal per capita com alimentação em Acaiaca e Divino-MG, 2012.
Gasto total em R$ Nº de famílias em Acaiaca Nº de famílias em Divino
De 20 a 30,00 1 (16,66) 1 (8,33%) De 31 a 40,00 1 (16,66) 3 (25,0 %)
De 41 a 50,00 0 (0,0%) 4 (33,33)
De 51,00 a 60,00 1 (16,66) 0 (0,0%)
De 61,00 a 70,00 2 (33,33) 3 (25,0 %)
De 100 a 200,00 1 (16,66) 0 (0,0%)
Acima de 200,00 0 (0,0%) 1 (8,33%) Obs.: Ao calcular o gasto per capita foi considerado o número total de moradores na residência.
Fonte: Resultados da pesquisa, 2012.
Em Divino, a família que apresentou o menor gasto com alimentação não tem filhos.
Possuem uma bela horta, e uma diversidade de frutas e vegetais comestíveis, tanto no quintal
como no meio da lavoura. No município de Acaiaca, a família que apresentou o menor gasto
com alimentação produz quase todos os alimentos que consome, exceto o trigo. Esta família
produz, inclusive, o arroz. No entanto, compram este alimento, eventualmente, quando está
chovendo e fica difícil para levar o arroz para limpar, na comunidade vizinha, onde existe
uma máquina para beneficiar arroz.
No município de Acaiaca, foi verificado que a principal forma de comercialização dos
bens produzidos é para a alimentação escolar. Todos os entrevistados estavam inseridos nesta
política pública. A família da Antônia e do Sebastião, além de comercializar com o PNAE
onde obtêm uma renda mensal em torno de R$ 600,00, quase um salário mínimo da época,
ainda faz entregas em domicílios, semanalmente, na sede do município. Alguns alimentos são
produzidos em maior quantidade, como por exemplo: o amendoim e o café, que são vendidos
para comerciantes do município. Em Divino, das doze famílias entrevistas, oito
comercializavam para o PNAE; uma já havia comercializado e parou pela dificuldade de
transporte; outras duas já tinham a clientela fixa e a produção era toda comercializada com
esta clientela. O Vicente vende, semanalmente, na feira do município de Divino e entrega em
restaurantes e em um sacolão (denominação local para estabelecimento onde vende frutas,
legumes e verduras), do município vizinho de Carangola-MG.
Com a introdução do Calendário Agroecológico, os registros sobre a produção de
alimentos, principalmente o que estava diretamente relacionado ao trabalho das mulheres,
passou a ser mais sistematizado. Não obstante a tudo isso, a maioria dos registros não
constava, quantitativamente, números exatos. Foi comum encontrar anotações do tipo: um
balde, uma sacola, um cacho, um punhado, ou mesmo em unidades que não permitiram
42
quantificar e valorar de forma padronizada, como por exemplo: nove unidades de jiló, uma
abóbora, uma yacon, etc. Raramente as agricultoras valoravam a produção dos produtos
consumidos e doados, relatando inclusive que “tem coisa que a gente nunca vendeu”. A
quantificação exata das vendas restringia àquelas de maior volume como o café e nas vendas
efetuadas para a Associação (em Divino), e nos dois municípios, os alimentos
comercializados para o PNAE. Além de estimular o registro das quantidades exatas dos
alimentos comercializados e seus valores de venda, o valor venal efetuado para o PNAE,
passou a ser a referência para o preço a ser comercializado nas demais vendas.
Percebeu-se ainda, que essa política pública interferiu em vários aspectos na vida dos
agricultores, ressignificando o consumo de alimentos, valorizando a produção e estimulando a
prática de registrar as receitas financeiras oriundas da produção de alimentos, o que não havia
sido conseguido mesmo com a implantação dos Calendários Agroecológicos. Vale ressaltar,
que esta política vem interferindo, inclusive, na utilização de alimentos considerados pouco
atrativos, mas muito consumidos no passado, ou mesmo desqualificados socialmente, como o
lobrobo. Com o PNAE uma família de Acaiaca passou a vender lobrobo, com isto passou
também a consumir essa verdura semanalmente, sendo que antes era consumida
eventualmente. Com a venda para o PNAE, as famílias começam a dar novo valor aos seus
produtos e os mesmos passaram a ser mais vendidos entre os vizinhos, amigos, etc.
A Tabela 04 mostra os principais alimentos comercializados para o PNAE nos dois
municípios.
TABELA 04- Alimentos vendidos para o PNAE, no período de fevereiro a Junho de 2012,
em Acaiaca e Divino-MG, e nº de famílias que comercializam esses produtos. Alimento Nº de famílias que
comercializam em Acaiaca (%)
Nº de famílias que
comercializam em Divino (%)
Batata doce 1 (16,66) 1 (8,33)
Doces caseiros 0 (0,00) 2 (16,66)
Farinha de mandioca 0 (0,00) 1 (8,33)
Feijão 2 (33,33) 1 (8,33)
Frango 2 (33,33) 0 (0,00)
Frutas 2 (33,33) 2 (16,66)
Fubá 2 (33,33) 1 (8,33)
Inhame 1 (16,66) 0 (0,00)
Legumes 5 (83,33) 3 (25,00)
Mandioca 3 (50,00) 1 (8,33)
Ovos 3 (50,00) 3 (25,00)
Quitandas 3 (50,00) 1 (8,33)
Rapadura 0 (0,00) 1 (8,33)
Verduras 5 (83,33) 4 (33,33)
Fonte: Resultados da pesquisa, 2012.
43
Além dos Calendários Agroecológicos, utilizados para o registro da produção e
consumo de alimentos, algumas famílias mantêm o registro em cadernos. No município de
Acaiaca, o Salvador (43) registra todas as entradas e saídas em um caderno, inclusive os
valores financeiros recebidos como presentes são registrados. Em Divino, na comunidade de
Carangolinha, a Sr.ª Gláucia (77) tem um caderno onde ela faz anotações há mais de trinta
anos. Nele, ela registra os nascimentos dos bezerros, dos porcos, dia que ela colocou a galinha
para chocar, principais vendas efetuadas, quantidade de rapadura produzida, etc., desta forma
a própria história vai sendo registrada e narrada em datas e números. No entanto, nem tudo
que é comercializado é registrado, talvez por considerar como pouco importante.
Ainda em Divino, uma família substituiu o caderno e está utilizando o computador
para registrar todas as receitas financeiras que entram na propriedade, sejam elas oriundas da
agropecuária, prestação de serviços, ou mesmo das diárias recebidas pelos dias que
desenvolveram atividades no Sindicato, na Cooperativa de Crédito Solidário (CRESOL) ou
CTA-ZM. Todas as compras também foram registradas, tanto de bens duráveis, como
alimentos, vestuário, presentes e até IOF. O casal tem ainda um diário eletrônico onde
registram todas as atividades realizadas no dia, sejam elas de trabalho ou de lazer.
Assim, pode-se concluir que a Agroecologia contribui para ressignificar estratégias já
conhecidas de Meios de Vida e para adotar novas estratégias apropriadas aos novos Meios de
Vida. Essas novas estratégias incluíram a diversificação das paisagens das unidades
produtivas e, como resultado da diversificação da paisagem, a maior parte desses agricultores
garantiu mais soberania e segurança alimentar e nutricional de forma sustentável. O que
permite então concluir que, a monocultura é um fator importante de insegurança alimentar.
Inclusive a monocultura do café, principal componente das paisagens agrícolas do município
de Divino.
Ao mesmo tempo que diversificam as paisagens, estes agricultores criam novas redes
sociais que fortalecem seus Meios de Vida, na medida em que passam a acessar mais
informações, trocam experiências com diferentes atores sociais, incorporam novas condutas
em relação ao ambiente em que vivem. Contudo, algumas contradições continuam presentes,
principalmente em relação ao consumo alimentar onde parte das famílias continua comprando
alimentos industrializados, muitos deles com elevados teores de sódio, gordura e açúcar. Os
alimentos transgênicos, associados como prejudiciais à saúde também foram encontrados em
todas as propriedades pesquisadas. Por meio do levantamento dos alimentos produzidos e
comercializados, percebeu-se que para as famílias com aproximadamente as mesmas
44
condições sociais, a renda foi maior naqueles domicílios com mais diversidade. Além da
diversificação agrícola, em Divino, três das doze famílias pesquisadas, diversificavam a renda
de outras formas como o atendimento com as terapias alternativas, e a venda de doces e
quitandas. Em Acaiaca a diversificação das rendas se deu principalmente pela venda de
artesanatos.
Nesta pesquisa, percebeu-se, ainda, que quanto mais os agricultores se envolvessem
nas atividades de formação, propiciadas por suas organizações, pelo CTA-ZM e pela UFV,
seus Meios de Vida se alteravam e estes ficaram mais autônomos e ciosos dos cuidados com a
alimentação. E ao fortalecer os novos Meios de Vida, inclusive materialmente, estes deram
novos sentidos à vida. Percebeu-se que, ao adotarem os sistemas agroecológicos para
produção de alimentos, mais que uma prática, os agricultores inseridos nesta pesquisa adotou
um novo estilo de produzir alimentos de forma mais sustentável ambiental e economicamente.
Embora, atualmente, todos os agricultores possuam terra, os relatos permitem também
concluir que, a insegurança alimentar no passado, estava associada à falta de autonomia em
lidar com terra já que eram empregados e não podiam decidir como e o que plantar, assim
compreende que não basta ter acesso a terra é necessário ter a sua titularidade.
45
4- QUANDO A PAISAGEM DIVERSIFICA, O PRATO FICA COLORIDO
4.1 Introdução
“O café não é Deus; antes do café a gente plantava de tudo, plantava cana, rama
de mandioca, inhame chinês” (Silvano F. Paula, São Pedro de Cima, Divino-MG).
Este capítulo tem como objetivos: apresentar e analisar os dados encontrados durante a
pesquisa de campo realizada junto aos agricultores agroecológicos dos municípios de Acaiaca
e Divino, localizados na Zona da Mata mineira, que contribuíram para a compreensão da
paisagem local; analisar a influência da Agroecologia nos redesenhos das paisagens e no
processo de transformação dessas paisagens em paisagens alimentares e; avaliar como esses
(re)desenhos interferiram na Soberania e na Segurança Alimentar e Nutricional Sustentável
(SANS) da população em estudo.
Para a execução desta pesquisa, quatro perguntas chaves foram feitas: 1- O que
modificou na paisagem, após a introdução da perspectiva agroecológica? 2- Em que medida
as alterações provocadas na paisagem interferiram no consumo de alimentos e qual a
importância dessa interferência? 3- Qual o processo ocorrido para que acontecessem tais
interferências? E, 4- Quais paisagens estes agricultores construíram a partir das experiências
agroecológicas?
Para responder a estas questões, utilizou-se como instrumentos metodológicos a
observação participante, a entrevista semiestruturada, as caminhadas pelas propriedades e os
calendários agroecológicos. Os relatos via entrevistas, foram de grande importância para se
reconstruir, mentalmente, as paisagens do passado e analisar as mudanças ocorridas ao longo
dos anos, decorrentes, principalmente, dos manejos agrícolas adotados. Assim, pôde-se
perceber as consequências destes manejos para o ambiente e para a Segurança Alimentar e
Nutricional Sustentável (SANS) da população estudada.
4.2 Paisagens alimentares e segurança alimentar e nutricional sustentável
Compreendendo que a alimentação interfere e é definida pelas condições econômicas,
sociais e culturais, articular a discussão entre paisagens e alimentação é imprescindível para a
compreensão das práticas e hábitos alimentares de uma dada região. Segundo Cândido (1987),
a alimentação é o elo entre a família e o meio em que vivem.
46
Assim como em qualquer ambiente, as paisagens que percebemos estão sujeitas à
interação homem/natureza e às milhares de decisões, tomadas cotidianamente. Nesse sentido
tem-se: o empresário do agronegócio que escolhe retirar árvores para plantar uma
monocultura, um governante que resolve conceder incentivos fiscais a quem utiliza
agrotóxicos, um agricultor que resolve plantar árvores no meio da lavoura, e/ou uma cidadã
que resolve fazer um abaixo assinado pela preservação de uma nascente. Embora estas ações
pareçam desconectadas, elas vão interferir diretamente naquilo que Van der Ploeg (2000)
chama de paisagem natural, preservando-as ou degradando-as.
Independente das práticas agrícolas adotadas sejam aquelas baseadas no modelo da
Revolução Verde ou nos princípios da Agroecologia, as paisagens vão sendo alteradas pela
relação homem-natureza, onde os aspectos culturais, sociais, econômicos e políticos irão
mediar esta relação (SILVEIRA, 2007). Para Alves e Botelho (2011), a ação humana no
entorno, onde as pessoas vivem resulta em impactos que podem favorecer ou fragilizar a
paisagem. Em longo prazo, estudos apontam que essa fragilização da paisagem poderá levar
à desertificação dos solos e precarização da capacidade da reprodução das famílias
(CASTRO, 2001; MADELEY, 2003).
As alterações destas paisagens interferem nos hábitos alimentares, na soberania e na
Segurança Alimentar e Nutricional Sustentável - SANS (Botelho; Cardoso, 2009) e,
consequentemente, nos Meios de Vida (ALVES; BOTELHO, 2011). Mas, poucos estudos se
dedicam a analisar essas interferências. Alguns relacionam o modelo de produção de
alimentos, pobreza e degradação ambiental, utilizando, na maioria, um enfoque tecnicista
(ALTIERI, 2002).
Na Zona da Mata mineira, em alguns municípios, as paisagens apresentaram novos
desenhos a partir do trabalho do Centro de Tecnologias Alternativas da Zona da Mata – CTA-
ZM que, em parceria com alguns Sindicatos de Trabalhadores Rurais da região, dentre eles os
Sindicatos de Acaiaca e Divino, e com a Universidade Federal de Viçosa – UFV. Estas
instituições têm buscado alternativas mais sustentáveis para a produção agrícola. Dentre essas
alternativas, encontram-se os sistemas agroflorestais (SAFs) como o café consorciado com
árvores. Os SAFs permitem utilizar a área conciliando produção agrícola e preservação
ambiental, ao consorciar plantas herbáceas, arbustos e árvores com o café. Muitas destas
plantas herbáceas são alimentícias, muitas árvores são frutíferas e outras favorecem a
47
produção de café17. Isto possibilita incrementar a alimentação ao mesmo tempo em que
aumentam o rendimento dos cultivos destinados principalmente à comercialização. Além
disso, esse sistema aumenta a biodiversidade, melhora a qualidade da água e do solo e prevê
outros serviços ambientais (SOUZA et al., 2010). Esse sistema de produção apresenta-se,
portanto, como uma possibilidade de produção de alimentos, de geração de renda, e maior
proteção ambiental.
Alguns dos agricultores pesquisados, do município de Divino, já utilizavam os
sistemas agroflorestais e outras práticas agroecológicas há mais de vinte anos. Nesses casos,
seus sistemas mostravam-se mais robustos e com uma grande diversidade de árvores e
alimentos. Outros agricultores, entretanto, estavam iniciando a transição agroecológica.
4.3 Paisagem: um conceito dinâmico
Apesar da existência de algumas definições de paisagem, alguns autores, como
Dollfus (1972), prefere não conferir à paisagem um conceito definitivo, considerando
imprescindível manter a imprecisão do conceito para que o mesmo não se torne algo
cristalizado, mantendo, assim, o dinamismo necessário para perceber as paisagens conforme o
momento histórico e o lugar.
Para Maximiliano (2004), a noção de paisagem acompanha a existência humana, uma
vez que a sobrevivência dos seres humanos sempre dependeu de sua relação com o meio. Para
esta autora, paisagem não é o mesmo que espaço, mas parte dele:
“A paisagem funciona como uma medida multidimensional de análise espacial. (...)
paisagem pode ser entendida como o produto das interações entre elementos de
origem natural e humana, em um determinado espaço. Estes elementos de paisagem
organizam-se de maneira dinâmica, ao longo do tempo e do espaço”
(MAXIMILIANO, 2004, p 90).
A partir de Dollfus (1972) e Maximiliano (2004), pode-se compreender que a
paisagem é dinâmica, e que é moldada conforme a ação humana, e que a sua forma de
representação vai interferir nos Meios de Vida das pessoas. Neste sentido, a paisagem não
pode ser analisada apenas por aquilo que se vê, mas a partir das várias possibilidades de
17 O café cultivado na Zona da Mata mineira é o Coffea arabica.
48
interferência na vida e nos Meios de Vida daqueles que estão nela inseridos. Esta interação
também é enfatizada por Berque (2004), para quem,
A paisagem é plurimodal (passiva-ativa-potencial, etc.), como é plurimodal o sujeito
para o qual a paisagem existe; a paisagem e o sujeito são co-integrados em um
conjunto unitário, que se auto-produz e se auto-reproduz (e portanto, se transforma
porque há sempre interferências com o exterior) pelo jogo, jamais de soma zero,
desses diversos modos (BERQUE, 2004. p. 86).
Para Rougerie (1969) citado por Passos (2000, p. 140), uma paisagem é um todo que
percebemos por meio dos sentidos e, então, para o compreender, devemos desvendar todas as
relações causais Assim, deve-se compreender uma paisagem rural com os elementos que a
compõe: as pessoas, a casa, os animais, a lavoura, o quintal, a horta, o terreiro e todos os
recursos naturais, inclusive os seres vivos presentes nos solos. Santos (1997) define paisagem
como um processo social, subordinado à sociedade como um todo. Para este autor, as
paisagens retratam a forma mais completa de associação entre o homem e a natureza. Já para
Ab’Saber (2003), a paisagem é também uma herança, e que assim deve ser percebida do
ponto de vista histórico, geológico e geomorfológico.
As características morfológicas da paisagem, como relevo e tipos de solo, são algumas
marcas geográficas que preexistem e que irão interferir nas formas de uso humano de uma
determinada área e na sua destinação. No entanto, como já apontado anteriormente pelos
outros autores, a paisagem não deve ser compreendida apenas como a paisagem morfológica
o visível do espaço geográfico (o destaque é nosso) e sim como o espaço onde as famílias
vivem e produzem (CARNEIRO; MALUF, 2003).
As paisagens podem ser percebidas, ainda, como uma construção mental que foi
experienciada e pode ser representada, conforme enfatiza Schama (1996), para quem antes de
ser um repouso para os sentidos, a paisagem é obra da mente. Compõe-se tanto de camadas de
lembranças quanto de estratos de rochas (SCHAMA, 1996, p.17).
Outros autores como Silveira (2007) trabalham com a ideia de paisagem em uma
análise socioecológica, na qual o produto – paisagem – é um híbrido de natureza e cultura:
“cuja análise escapa dos campos tradicionalmente delineados nas ciências naturais e nas
ciências sociais” (SILVEIRA, 2007, p. 122). Nesta perspectiva, pode-se entender a paisagem
como o resultado da forma como um grupo organiza o seu mundo conceitual, abordagem esta
que se aproxima do conceito de paisagem marca utilizado por Berque (2004) onde o sujeito
49
que compõe e que altera essa paisagem, é um sujeito coletivo, influenciado e que influencia o
meio em que vive.
Apreendida assim, a paisagem pode ser vista e percebida a partir de diferentes escalas
e recortes. Nesta dissertação, o recorte a ser analisado é a paisagem alimentar, verificando as
mudanças que foram processadas com as práticas agroecológicas. Vale ressaltar também, que
muitas dessas mudanças, estão na lembrança dos agricultores e foram recuperadas por meio
das entrevistas.
4.4 Entra café, saí floresta e comida: a dinâmica das paisagens da Zona da Mata mineira
Apesar do nome, a paisagem atual da Zona da Mata mineira perdeu a sua exuberante
vegetação originária. Quase todas as suas matas foram substituídas inicialmente, pelo café, e
em seguida, pelas pastagens (VALVERDE, 1958). Além do uso de forma insustentável para
a agricultura, parte das florestas foi utilizada para a produção de carvão, para alimentar os
fogões à lenha, para a construção e em especial para a siderurgia (DEAN, 1996).
No início da expansão cafeeira na Zona da Mata mineira, década de 1810, a
disponibilidade de terras permitia o avanço de novos plantios, onde a derrubada e a queima
eram as práticas mais comuns de manejo. Em seguida, as terras enfraquecidas pela
cafeicultura eram transformadas em pastagens (RESENDE; RESENDE, 1996). Blasenhein
(1982) ressalta que os cafezais da Zona da Mata mineira atingiam produtividade máxima em
oito anos, começavam a decair por volta dos 16 anos e estavam completamente inúteis em 25
anos, o que levava a novas derrubadas de mata.
Além das queimadas, outros fatores favoreciam a degradação dos solos. Valverde
(1958) aponta a forma de cultivo dos cafezais, que eram plantados seguindo a linha de maior
declive como um fator importante para a sua erosão. Esta forma de cultivo facilitava o
trabalho de plantio e colheita dos grãos, porém, provocava o surgimento de processos erosivos
em larga escala. Como consequência, em pouco tempo, os nutrientes do solo eram
carregados, as raízes expostas pela erosão, o que resultava na improdutividade das lavouras
em curto espaço de tempo quando comparada às lavouras do Estado de São Paulo. Entretanto,
até mais do que o plantio seguindo a maior linha de declive, o que mais contribuiu para a
erosão foi a forma de manejar a vegetação espontânea, com capinas drásticas expondo
demasiadamente o solo (CARDOSO, I.M., informação pessoal).
50
Em relação à produção alimentar, ainda na década de 1870 os primeiros impactos
foram percebidos. Com a alta dos preços do café, iniciada naquela década e intensificada ao
final da década de 1880, o café passou a ocupar grande parte das áreas anteriormente
utilizadas com cultivos alimentares, extinguindo a autossuficiência regional e causando uma
alta generalizada no custo de vida. Isso ocorreu, já que se tornou mais atrativo e compensador
adquirir determinados alimentos produzidos no Sul do Brasil do que usar as terras para
produção regional destes bens (GIOVANINI; MATOS, 2004). E, paulatinamente, o cultivo
do café foi comprometendo a soberania e a segurança alimentar e nutricional da região.
No entanto, o preço do café sofria alterações, e, no final da década de 1890, mesmo
sendo a cafeicultura predominante na Zona da Mata mineira, outros cultivos eram plantados
em meio aos cafezais, com vistas a assegurar a estabilidade financeira dos cafeicultores.
Dentre as culturas cultivadas naquela época, a Zona da Mata mineira produzia o feijão, o
milho, o arroz, e a batata entre outros gêneros alimentícios, que eram produzidos para o
consumo e para o comércio (BLASENHEIN, 1982). Desse modo, até a década de 1930, a
cafeicultura movia a Zona da Mata mineira. Todavia, em decorrência de múltiplos fatores,
como por exemplo, a drástica variação do preço do café no mercado mundial, a cafeicultura
entrou em decadência não só na Zona da Mata, mas também em outras regiões do Brasil.
Frente à crise cafeeira, outras culturas como o arroz, nas regiões de várzea, a cana de açúcar e
a pecuária passaram a ser a principais atividades econômicas da região (BDMG, 2000). E
assim, as alterações na economia foram remodelando os espaços e as paisagens, e o cultivo do
café foi substituído por lavouras brancas onde se cultivava milho, arroz e outros gêneros
alimentícios e pelas pastagens para o gado leiteiro.
Estas alterações na paisagem, provocadas pela questão econômica, já foram discutidas
por outros autores, dentre eles Santos (1979), para quem o modo de produção, a formação
social e o espaço, são interdependentes. Para esse autor: “os modos de produção escrevem a
história no tempo, as formações sociais escrevem-na no espaço (SANTOS, 1979, p. 15).
E assim, àquela época, o Governo Federal, com o objetivo de recuperar o setor
cafeeiro, investiu, entre os anos de 1969/1970, no plantio de café e implantou o Plano
Nacional de Renovação e Revigoramento dos Cafezais. O Instituto Brasileiro do Café (IBC)
foi o órgão responsável por essa atividade, ditando as medidas da política de investimento por
meio de empréstimo governamental consignado à adoção do pacote preconizado pela
Revolução Verde (OLIVEIRA, 1985).
4.5 A paisagem da modernização agrícola
51
Este momento do crescimento do café na região, na década de 1970, foi vivido por
parte dos agricultores entrevistados no município de Divino. O Sr. Pedro (61) e a Sr.ª
Hortência (56), lembram com tristeza da época em que o IBC os obrigava a utilizar os
insumos de venda casada18, agrotóxicos e adubos químicos. Segundo esta agricultora, “foi por
causa dos venenos que o Pedro perdeu um rim”. O Sr. Élcio (55) relatou que com o incentivo
das monoculturas de café, eles perderam o milho e o feijão, o que afetou no consumo
alimentar da família. Sr.ª Luzia (58) relatou que as privações alimentares do passado
aconteciam pelo fato de não terem as terras e o patrão não permitir o cultivo de outras
plantas no meio do cafezal. Com os incentivos governamentais para promover a adoção de
tecnologias introduzidas pela Revolução Verde as práticas adotadas contribuíram para a
degradação ambiental (perda de biodiversidade, poluição por agrotóxicos, erosão, degradação
de recursos hídricos e outros) e o empobrecimento da dieta alimentar.
Em decorrência das práticas agrícolas pós Revolução Verde, ou da chamada
modernização da agricultura, a maioria dos agroecossistemas na região diminuíram a
produtividade (FERRARI, 1996, CARDOSO, et al., 2001). Foram estas práticas também que
levaram à redução da segurança alimentar e nutricional, no meio rural, na medida em que
alteraram sobremaneira as paisagens rurais, comprometendo o consumo de alimentos
(CASTRO, 2001).
A fotografia de uma sequência de máquinas agrícolas (Fotografia 02) tem sido
utilizada para identificar uma produção típica da agricultura “moderna”, decorrente da
Revolução Verde, onde o que se vê é apenas um solo exposto e máquinas. Por outro lado, os
sistemas agroecológicos, apresentam outras paisagens, onde a diversidade está sempre
presente, conforme Fotografia 03, em que retrata um sistema agroecológico típico na Zona da
Mata mineira, onde se pode ver a moradia da família; o terreiro de café; o cafezal com
abacateiro, bananeiras e outras árvores; o milharal; a mata nativa e as áreas de pastagem. Na
paisagem observada na Fotografia 03 não há dúvida de que há maior diversidade de
alimentos.
18 Venda casada é a imposição da venda de algum produto ou serviço, não necessariamente desejado pelo
consumidor, ao adquirir um outro produto (GUIMARÃES NETO, 2012).
52
Fotografia 02 – Sequência de máquinas agrícola utilizadas em lavoura de grande escala.
Fonte: www.google.com.br/imagens. Acesso em 12 de novembro de 2012.
Fotografia 03: Sistema agroecológico da Roseli e Samuel, Araponga - MG. Fonte: Arne Janssen. 2012.
Diversos estudos como os de Maluf et al. (1996); Valente (1997); Ehlers (1999);
Caporal e Costabeber (2000) e Burity et al. (2010) apontam a modernização agrícola,
Para que esses agricultores pudessem se inserir no mercado institucional
proporcionado pelo PNAE, diversas atividades de formação foram promovidas pelo CTA-ZM
que contribui desde a discussão dos procedimentos de gestão, articulação com os diversos
atores envolvidos (gestores públicos, nutricionistas, manipuladores de alimentos) e promoção
de cursos de boas práticas de manipulação de alimentos. Certamente, estas políticas públicas
foram positivas no fortalecimento dos Meios de Vida dos agricultores; entretanto, deve-se
ressaltar a necessidade de assistência técnica para esses agricultores, visto que, a edição de
uma política pública por si só não é capaz de mudar a realidade, construindo novas paisagens.
Seguindo essa linha de raciocínio, ao considerar que os debates sobre a SANS não se
restringem à superação da fome e que além do aporte nutricional, o direito humano à
alimentação adequada deve ser conseguido, com soberania alimentar e sustentabilidade
ambiental, social e econômica, os sistemas agroecológicos pautados em princípios éticos e
ambientais apresentam-se como uma possibilidade para a superação da insegurança alimentar,
principalmente dos agricultores, titulares de suas terras e que ampliam o consumo alimentar
por meio da diversificação das paisagens.
Na busca pela produção de alimentos de forma sustentável, os SAFs têm se
apresentando como uma alternativa viável, ao gerar benefícios múltiplos que, dentre outros,
destacam-se: melhoria da alimentação humana, diversificação na oferta de produtos para o
mercado e maior preservação da natureza. Além das lavouras de café, encontradas,
principalmente, no município de Divino, os quintais das famílias estudadas constituíam-se de
SAFs. Em todas as famílias visitadas, percebia-se uma grande variedade de árvores, muitas
delas frutíferas, consorciadas com outras plantas: comestíveis e ornamentais o que interferiu
diretamente na diversificação dos alimentos consumidos.
Em algumas famílias estas paisagens eram compostas também por animais como:
galinhas, patos, porcos, etc. Tais animais caracterizavam-se como importantes fontes de
proteínas e, em alguns casos, contribuíam para a diversificação da renda dessas famílias.
79
No caso dos dois municípios estudados, a Agroecologia articulada às políticas públicas
permitiu novos (re)desenhos das paisagens e uma redução no custo da produção, e propiciou
novos bens destinados à comercialização, quais sejam: a lenha e a madeira, produzidas e
manejadas de forma sustentável e os novos alimentos produzidos entremeio ao café. Além
disso, gerou a produção de novos alimentos que podem estar redefinindo os hábitos
alimentares. E como foi dito por uma agricultora entrevistada “produzir alimentos de forma
sustentável é preservar a própria vida” (Lérida, 27, Carangolinha, Divino-MG).
80
5. Saúde e Agroecologia: quando o alimento vira comida
5.1 Introdução
“Se o povo plantar três coisas: milho, mandioca e cana ninguém passa
fome” (Augusto, 61, Divino-MG).
Este capítulo tem como objetivo discutir aspectos da saúde e como ela é percebida e
promovida por alguns agricultores, denominados, agroecológicos ou em transição
agroecológica de dois municípios da Zona da Mata de Minas Gerais, Acaiaca e Divino e
ainda, avaliar a relação entre a Agroecologia e a saúde destes agricultores. Os dados
encontrados na pesquisa de campo foram analisados e discutidos relacionando-os aos aspectos
culturais e sociais da alimentação.
Nos dias atuais, em que a saúde está cada vez mais comprometida, inclusive pelo
consumo de alimentos de baixo valor nutricional (Poubel, 2006) e com elevada contaminação
química (Rigotto, 211), torna-se necessário um maior diálogo entre Agroecologia, soberania
alimentar e SANS. Principalmente ao considerar que a soberania alimentar e SANS dependem
da produção de alimentos de elevado valor nutricional, em quantidade suficiente e que
respeite a cultura local. Alimentos estes que irão em um primeiro momento promover a saúde,
pois não há saúde sem alimentação de qualidade (POUBEL, 2006).
A definição de saúde universalmente aceita foi construída a partir da criação da
Organização Mundial da Saúde (OMS) e da publicação de sua carta de princípios, em 7 de
abril de 1948. O texto reconhece o direito à saúde e a obrigação do Estado na sua promoção e
proteção: "Saúde é o estado do mais completo bem estar físico, mental e social e não apenas a
ausência de enfermidade" (PELICIONI, 2005; WESTPHAL, 2006). Todavia, o texto
elaborado pela OMS não discorre sobre os instrumentos para materializar esse direito.
No Brasil, o movimento pela “Reforma Sanitária” encampou os primeiros movimentos
em prol da construção do Sistema Único de Saúde (SUS). O ponto forte dessa mobilização foi
a 8ª Conferência Nacional de Saúde em 1986, e desde então os movimentos pela saúde
estimularam os debates pela segurança alimentar. Foi no contexto da 8ª Conferência Nacional
de saúde que aconteceu a I Conferência Nacional de Alimentação e Nutrição (LEÃO, 2012).
Como resultado da expressiva mobilização social pela saúde, em 1988 a Constituição
Brasileira insere a saúde como um direito. Porém, evita-se discutir a definição de saúde,
afirmando apenas em seu artigo 196 que: "A saúde é direito de todos e dever do Estado,
garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e
81
de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para a promoção,
proteção e recuperação".
Tendo isso em vista, pode-se afirmar que a promoção da saúde, passa, entre outros
fatores, obrigatoriamente, pelo dever do Estado, de garantir a soberania alimentar e SANS. E,
para que este direito se concretize, tornam-se necessárias ações, tanto do Governo como da
sociedade civil. No conjunto destas ações, deve-se pensar no sistema agroalimentar visando à
produção de alimentos saudáveis e a construção de hábitos alimentares24 que recuperem,
promovam e mantenham a saúde.
A construção de hábitos alimentares adequados deve ocorrer em estreita relação com
os aspectos culturais, pois, a SANS não se refere apenas à qualidade dos alimentos
consumidos e à possibilidade de acesso aos alimentos. A SANS deve ser vista de forma
interdisciplinar, onde cada significado que o ato de alimentar carrega, deve ser compreendido.
Comer é um ato cultural (Laraia, 1986) e também político (BARBOSA; CAMPBELL, 2006).
Para Laraia (1986), o ato culinário é um produto cultural, todavia não existiria cultura se o
homem não tivesse acesso à alimentação.
Para Pollan (2007) comer é um ato que deve ser refletido. Ao ocupar o topo da cadeia
alimentar, industrial, o homem simplesmente come, sem refletir nas possibilidades futuras de
alimentação, sem avaliar os aspectos ambientais, nutricionais, econômicos e sociais da sua
comida cotidiana.
Bourdieu (2008) enfatiza que a comida é a linguagem que representa o universo
simbólico do grupo. No mesmo sentido, Lévi-Strauss (1979) afirma que a cozinha codifica e
expressa as transformações de natureza em cultura; a cozinha (fogo) é o elo de mediação entre
natureza e cultura, pois é onde substantivos naturais serão elaborados e transformados em
comida conforme a cultura de uma sociedade.
As dimensões culturais do comportamento alimentar foram estudadas por Freitas
(1996) que partindo da visão de Bourdieu afirma que a comida representa valores simbólicos
antigos e modernos, ressaltando características regionais e padrões socioculturais: (...) a
comida representa a manifestação da organização social, a chave simbólica dos costumes, o
registro do modo de pensar a corporalidade no mundo, em qualquer que seja a
sociedade (FREITAS, 1996, p. 2).
5.2 Agroecologia e saúde: uma construção processual
24 Hábito foi empregado como “uma parte integrada da totalidade cultural” em que os sujeitos estão
inseridos CONTRERAS, ARNÁIZ (2005).
82
“Agroecologia para mim é essa riqueza de você chegar e ter tudo, meu sonho era
tudo, tudo mesmo que eu consumo. Eu acho uma riqueza muito grande você
produzir para o consumo e ainda ter para ajudar os outros, e assim vai aumentando
essa paixão pela terra! Uma coisa também é fazer de tudo para que não joguem
veneno na terra” (Valentina, 52, Serra dos Delfinos- Divino- MG).
A agroecologia, em especial no Brasil, é concebida enquanto movimento, prática e
ciência (WEZEL et al., 2009). Enquanto movimento procura articular alternativas
sustentáveis para a transição da agricultura. Enquanto prática, a Agroecologia vem sendo
construída com a contribuição de diversas áreas do conhecimento e se propõe a superar
diversos problemas sociais e ambientais que envolvem os sistemas alimentares. Por
incorporar princípios ecológicos e sustentáveis, estudos mostram que a Agroecologia pode
permitir aos agricultores, inseridos nesta perspectiva, o acesso a alimentos e a ambientes mais
sustentáveis e saudáveis (ALTIERI, 1995, 2002; DE SCHUTTER, 2010). Enquanto disciplina
científica, a agroecologia foi concebida como a ciência que estuda os agroecossistemas.
Entretanto, o conceito de Agroecologia ampliou-se e atualmente incorpora o estudo dos
sistemas alimentares. Nesta nova conceituação, inclusive, os consumidores são considerados
parte deste sistema (WEZEL et al., 2009). O desenho de agroecossistemas sustentáveis leva
em consideração práticas agroecológicas, como o resgate e a manutenção de sementes
crioulas pelas famílias agricultoras, a conservação de recursos naturais, a diversificação da
produção, técnicas de manejo que conservem a biodiversidade, o solo e a água, a produção de
alimentos limpos e a articulação de novas redes de distribuição e consumo de alimentos
(GLIESSMAN, 2000).
A diversificação da produção possibilita uma maior oferta de alimentos para a família
e evita a homogeneização da dieta (Wandscheer; Souza, 2008), portanto, contribuindo com a
saúde através de uma alimentação nutritiva e diversificada.
Para Sevilla Guzmán (1997), a Agroecologia constitui um campo do conhecimento
que promove o manejo ecológico dos recursos naturais, incorporando uma ação social de
caráter participativo. Isso se realiza através de um enfoque holístico e uma visão sistêmica,
valorizando e estimulando a participação local e que permite a troca de conhecimento entre os
agricultores e a comunidade científica. Assim compreendida, a Agroecologia possibilita uma
abordagem sociológica dos manejos ecológicos para além da agronomia, contribuindo para o
desenvolvimento local sustentável e cumpre o papel de dar voz aos processos e às dinâmicas
sociais dos agricultores.
83
De acordo com Altieri (2002), maior autonomia tem sido alcançada por produtores
agroecológicos que diversificam sua produção e dependem menos do mercado, pois passam a
utilizar menos insumos externos na agricultura. Desta forma, a discussão sobre manejos
produtivos que garantam autonomia aos agricultores na produção de alimentos deve estar
presente nas agendas e nos debates sobre a saúde coletiva, tanto em nível governamental
como da sociedade civil. Esta autonomia também pode ser expressa na forma de soberania
alimentar, já que ao diversificar a produção, não necessita de adquirir no mercado grande
parte dos alimentos.
Em estudo produzido especialmente para a Organização das Nações Unidas (ONU),
DE SCHUTTER (2010), afirma que projetos de agricultura agroecológica em 57 países
trouxeram ganhos econômico-financeiros médios de 80% nas safras, usando métodos naturais
para enriquecer o solo e efetuar o controle biológico.
5.3 A construção da Agroecologia em Acaiaca e Divino
Durante as entrevistas, teve-se a preocupação de perguntar aos agricultores quando
eles tiveram contato pela primeira vez com a palavra Agroecologia e, em seguida, onde eles
estavam quando obtiveram esta informação. Ao responderem esta questão, vários
entrevistados, principalmente em Divino, fizeram a associação entre a Agroecologia e a
agricultura alternativa25. Pelas respostas dos agricultores, verificou-se que a transição para a
Agroecologia, se deu por processos diferenciados e em momentos distintos.
No município de Divino, a transição agroecológica se deu, principalmente, pela
articulação entre algumas entidades, tendo seu início ainda na década de 1980. Inicialmente,
os principais atores envolvidos neste processo, foram a Igreja Católica via Comunidades
Eclesiais de Base (CEB’s) por meio de ações das Pastorais de Saúde, da Terra e da Juventude
Rural e os Sindicatos de Trabalhadores Rurais da região. Em seguida, já no final da década de
1980, o CTA-ZM passa a fazer parte deste cenário e introduz o termo agricultura alternativa
que deu origem no Brasil aos movimentos agroecológicos (VILLAR et al., mimeo). Nos anos
seguintes, a Universidade Federal de Viçosa (UFV) aproxima desta articulação e diversas
atividades de pesquisa e extensão passam a ser desenvolvidas. Todavia, o CTA-ZM foi o
grande promotor e articulador da agricultura sustentável na região, hoje Agroecologia.
25 Denominação inicialmente dada ao conjunto de práticas agrícolas baseadas em princípios e conceitos
sustentáveis de produção (ALTIERI, 1989).
84
Em Acaiaca, as primeiras discussões sobre a Agroecologia iniciaram-se, mais tarde,
em 2000, quando do convênio entre a Prefeitura Municipal de Acaiaca e o CTA-ZM, para a
implantação de projetos ligados à Agenda 21. Dos relatos a seguir pode-se perceber como os
agricultores tiveram seus primeiros contatos com a Agroecologia:
“A primeira vez que ouvi falar de Agroecologia foi na Igreja, eu trabalhei contra a
intoxicação da terra por veneno26, eu ia de casa em casa, isso foi numa época que o
baysiston27 estava matando muita gente. Eu tinha um problema na perna, passei por
vários médicos, ia e voltava, ia e voltava até que um médico de Carangola
descobriu que era intoxicação por agrotóxico. Antes disso em 1979 saiu uma
campanha da fraternidade falando da água, então comecei a despertar aí, depois fui
tomando conhecimento. Eu ouvia muito a rádio Aparecida e lá também falavam
muito sobre isso. Em 1985 veio o Sindicato de Trabalhadores Rurais de Divino e
fomos tomando amor pela terra! Agora, a palavra Agroecologia mesmo a primeira
vez foi na Pastoral da Juventude Rural” (Valentina, 52, Serra dos Delfinos, Divino-
MG).
“Foi quando eu comecei a participar dos movimentos, foi em 2000, quando o PT
ganhou as eleições e contratou o CTA. Então entendi que eu era agroecológica sem
saber” (Marisol, 50, Maracujá, Acaiaca-MG).
“Deve ter uns 10 anos; eu participava desses cursos da CEB’s, eles já falavam
alguma coisa, só que de Agroecologia mesmo não, hoje até que eles falam. Daí,
para ir para o sindicato foi um pulinho. Agroecologia, mesmo, foi quando eu
comecei a envolver com o Sindicato. Foi até o Paulinho (presidente do Sindicato de
Trabalhadores Rurais de Divino), que incentivou para eu fazer um curso28; foram
quatro módulos de 15 dias a cada seis meses lá em Governador Valadares. Depois,
naturalmente, nos trabalhos do CTA. Tinha um campo de sementes e eu trabalhava
nele” (Alberto, 28, Vargem Grande de Baixo, Divino-MG).
“A palavra Agroecologia é bem recente, foi através do CTA. Antes a gente escutava
agricultura alternativa, aí eu estava nas atividades da Pastoral da Juventude
Rural” (Salvador, 43, Mata Cães, Acaiaca- MG).
“Foi quando o Pedro intoxicou com veneno e perdeu um rim, então eu fui fazer os
cursos de medicina alternativa” (Hortência, 56, Alves- Divino-MG).
“Foi em 1988, no sindicato, depois o CTA chegou. Nas primeiras vezes a gente
vinha embora vazio, não entendia nada. E foi assim muitas vezes, até entender de
verdade” (Pedro, 61, Alves- Divino-MG).
“Deve ter uns quinze a vinte anos, não era essa palavra não, mais a gente via
uns retratos de lavoura com arvore. Foi nos anos noventa. Agroecologia deve
ter uns cinco a seis anos. Foi nos movimentos, no Sindicato ou nessas reuniões
do CTA. Discutir a Agroecologia, mesmo, foi quando criamos a Associação, foi
26 A utilização do termo veneno se deu a partir de uma reflexão de que os agrotóxicos são prejudicais `a
saúde e ao ambiente. Desde então, a palavra remédio, anteriormente utilizada para designar estes agroquímicos,
foi substituída pela palavra veneno. Isso, também, demonstra uma faceta da construção da Agroecologia a partir
da articulação de diferentes atores que foi dando outros significados à relação produção de alimentos e comida. 27 O Baysiston é empregado contra fungos e insetos, durante a entressafra do café, seus princípios ativos
contêm triadimenol e disulfoton, uma mistura que há anos é proibida na Alemanha. No Brasil, o pesticida é líder
de vendas no mercado. 28 Estes cursos foram oferecidos através de uma parceria entre o Sindicato de Trabalhadores Rurais de
Divino e a Igreja Católica, via CEB’s.
85
num trabalho da Cáritas, só que o que a gente via falar de Agroecologia por
aqui e não proibia adubo não” (Élcio, 55, Vargem Grande, Divino-MG).
“Na primeira vez que eu escutei a palavra Agroecologia pensei que era alguma
indústria, mais eu não perguntei para ninguém não, pensei que era uma indústria
que fabricava alguma coisa boa. Depois de um ano eu vi um cartaz e vi que eu
estava enganada. E eu gostei muito de ficar sabendo que era produzir sem veneno
igual a gente faz aqui em casa” (Luzia, 58, Bom Jesus, Divino-MG).
“Pensei que fosse mais umas daquelas palavras técnicas que eles falam, eu nem
imaginava o que poderia ser; hoje eu acho que é tudo, o jeito da gente conviver com
a nossa família, de conviver com a natureza” (Lucina, 20, Vargem Grande de
Baixo, Divino-MG).
Mais recentemente, a partir de meados de 2008, os Intercâmbios Agroecológicos
(financiados inicialmente pelo CNPq e MDA e depois pela FAPEMIG) resultado da
articulação entre CTA-ZM em parceria com a UFV e as organizações dos trabalhadores rurais
da região, possibilitaram a participação destes agricultores em novos espaços de discussão e
troca do conhecimento, sobre a Agroecologia, o que tem se constituído como uma importante
ação de sensibilização e valorização dos princípios agroecológicos.
Esta transição agroecológica que iniciou na década de 1980 na Zona da Mata mineira
é, portanto, uma construção de articulação de diversos atores com diferentes níveis de
apropriação e muitas vezes gerando conflitos dentro das famílias. Tal fato pode ser observado
a partir do excerto abaixo:
“No início a gente se cobrava muito, pois a gente falava muito de Agroecologia e
não fazia, falava de comercialização e não fazia nada de comercialização. O
próximo passo é esse, falar de Agroecologia e consumir as coisas da Agroecologia.
Igual eu falo, tudo é um processo mesmo. Tempos atrás a gente ia na casa do
Amauri (terapeuta e agricultor agroecológico de Espera Feliz), ia numa propriedade
e voltava tudo desanimado... Também eu morava lá na casa do pai, a propriedade
era deles, o pai nunca gostou de jogar veneno mais também não abria muito. Às
vezes você tem uma ideia mais o outro não compartilha dessa ideia aí fica difícil,
também você participa de um espaço e o outro não participa. Mais eu comecei lá na
casa do pai mesmo e fui plantando bananeira, mandioca no meio da lavoura. Hoje o
pai planta, mais no começo tudo foi eu, então é um processo mesmo” (Alberto, 28,
Vargem Grande de Baixo, Divino-MG).
Do relato acima pode-se perceber as diversas contradições que estiveram e ainda estão
presentes na construção da Agroecologia, como a impossibilidade dos agricultores em
transição agroecológica consumir apenas os alimentos por eles produzidos. Em muitos casos
esses agricultores compram alimentos produzidos com o uso de muitos agrotóxicos como o
arroz, trigo e óleo de soja. Soma-se a esta contradição o consumo de alimentos transgênicos,
verificado em todas as famílias pesquisada. Outra dificuldade apontado pelos agricultores está
86
relacionada à comercialização, visto que grande parte da produção agroecológica é
comercializada junto com os alimentos produzidos de forma convencional.
Ao serem perguntados sobre o que falariam para uma pessoa que ainda não pratica a
Agroecologia encontramos respostas do tipo “não falaria nada, mostraria o meu sistema”
(Lérida (27); Alberto, (28)); e outras quase sempre relacionadas à saúde:
“Eu falo tudo sobre as doenças e conto os casos que eu sei que deu certo” (Helena,
58, Vargem Grande Trevo, Divino-MG).
“Normalmente, no caso, eu falo que as coisas natural é muito melhor, eu falo para
experimentar. E assim a gente vai orientando, mais nem tudo a gente consegue
governar” (Luzia, 58, Bom Jesus, Divino – MG).
“Eu falo bastante sobre o veneno (...). Eu falo para uns sobre árvores no meio da
lavoura29; falo que ajuda a reduzir esse calorão; eu falo da minha lavoura, tem
gente que até abusa da gente. Eu trabalho bastante é contra os venenos que faz mal
para a saúde”. (Élcio, 55, Vargem Grande, Divino-MG)
“Eu falo que a saúde vem da natureza, se a gente plantar as coisas para comer está
fazendo economia, pois não precisa comprar remédio. Conto o caso do Pedro, que
jogava veneno, pois plantamos o café pelo IBC e tinha que jogar veneno. Sempre
que o Pedro ia jogar veneno colocava a bomba nas costas e na hora de colocar o
veneno escorria e ficava encharcado numa espuma. O Pedro ficou muito doente, ia
de médico em médico até que um descobriu que o rim dele estava cheio de pedras.
Tinha que fazer cirurgia e ficava em 30 mil, no dinheiro daquela época, isso foi em
1980. Só que a gente não tinha esse dinheiro. O Pedro fez o INPS, e só três meses
depois ele podia fazer a cirurgia, teve que tirar um rim e três costelas. Foi aí que eu
fui fazer o curso de medicina alternativa, fiz e comecei a tratar dele. Os médicos
achavam que ele ia viver mais dois anos e lá vai para 32 anos, então o que a gente
faz é alertar os outros” (Hortência, 56, Alves- Divino -MG).
“A primeira coisa que ia falar é que o veneno não mata de uma hora para outra,
conforme o veneno né? Porque tem uns que mata. Ele vai matando aos poucos, as
pessoas não sentem (Júlia, 20, Vargem Grande de Baixo. Divino – MG).
“Quando eu converso com alguém sobre Agroecologia e vejo que ele está usando
veneno eu pergunto qual é o objetivo e se vale apena, eu pergunto como eles usam e
se estão tomando os devidos cuidados. O problema é que o efeito mais nocivo você
não vê na hora, se intoxicasse e caísse ali na hora, talvez tomassem mais cuidado”
(Salvador, 43, Comunidade de Mata Cães - Acaiaca - MG).
No município de Divino, um agricultor, que está no movimento para a construção da
Agroecologia há muitos anos, acredita que a produção agroecológica é o melhor para a saúde
e para a natureza. No entanto, ele aponta que um grande entrave para o fortalecimento da
29 Em Divino quando os agricultores se referiam à lavoura estavam falando do cultivo do café. No meio
do café encontrei: milho, feijão, batata doce, mandioca, banana, mamão, abacate, laranjas dentre outras frutas.
Em duas casas visitadas no meio do café tinha também horta, para o consumo e para vender.
87
Agroecologia é a falta de políticas específicas, com financiamento exclusivo, reafirmando a
necessidade de criar espaços para a comercialização de produtos agroecológicos:
“Agroecologia é bom demais para o ambiente e para a saúde; é uma alternativa
de gastar menos, mas colhe menos também. Falta apoio para a Agroecologia;
na verdade a gente tem uma boa explicação, mais apoio financeiro a gente não
tem. O produto que a gente vende é produzido de forma agroecológica e é
vendido pelo mesmo preço e vai se juntar com o café que vocês consomem com
veneno. Bom seria se a gente tivesse um lugar para que esses produtos sem
Para o Sr. Élcio, para que a Agroecologia possa ser adotada por um maior número de
agricultores e seja valorizada por toda a sociedade além de uma política específica, deve-se
alterar, também, as nossas mentes:
“Para produzir, de forma agroecológica, primeiro temos que trabalhar é a
nossa cabeça, o que a gente quer. Tem gente que coloca veneno e produz menos,
então é ilusão. Eu acho que a gente vive mais tranquilo, a gente consome os
produtos da Agroecologia com muito mais tranquilidade, a gente sabe que é
bom para a saúde. A gente usa os adubos, sei que é química mais a gente ainda
usa só no café, nas outras coisas30 não” (Élcio, 55, Vargem Grande, Divino-
MG).
E certamente todas as nossas mentes precisam ser modificadas, ressignificando o que
escolhemos para o nosso consumo alimentar e refletindo se o que comemos nos proporciona
saúde ou doença.
5.4 Produção, consumo de alimentos, saúde e agrotóxicos
“Quem planta com veneno é ele quem está perdendo, pois está esgotando a sua
própria saúde e a vida. E ele tem que pensar no próximo também. Eu espero que
tenha uma lei dessas fortes mesmo que vai punir quem produzir assim” (Marisol,
50, Maracujá, Acaiaca - MG).
A preocupação com o uso de agrotóxicos e seus danos sobre a saúde tem sido motivo
de preocupação há muitos anos. Já em 1962, Rachel Carson chamava a atenção para os riscos
do Dicloro-Difenil-Tricloroetano- DDT, agrotóxico do grupo dos organoclorados,
amplamente utilizado àquela época. Carson (1962) acreditava, que a população tinha o direito
moral de saber sobre os riscos que o DDT provocava ao meio ambiente, e, consequentemente,
30 O café tem uma importância tão grande para os agricultores de Divino que os demais alimentos
produzidos se tornaram “coisa”.
88
à vida humana. Fruto de amplos debates, políticos e acadêmicos, na década de 1970 o DDT
foi proibido na maioria dos países industrializados. No Brasil, as primeiras medidas para a
restrição do DDT iniciaram em 1971 por meio das Portarias 356/71 e 357/71 do Ministério da
Agricultura que proibiram a fabricação e comercialização do DDT para combate de
ectoparasitas em animais domésticos. Todavia, seu uso continuou sendo permitido para outros
fins da agricultura até 1985 e em campanhas de saúde pública até 1998 (D'AMATO et al.,
2002).
Atualmente, o uso abusivo de agrotóxicos no Brasil, inclusive de agrotóxicos já
proibidos em outros países, tem mobilizado setores da sociedade como movimentos sociais,
comunidade científica e alguns órgãos do Estado, o que culminou em 2011, com a criação da
Campanha Permanente Contra os Agrotóxicos e Pela Vida (www.contraosagrotoxicos.org.br),
que tem alertado para os riscos do consumo de alimentos com resíduos de agrotóxicos,
principalmente, para os efeitos em longo prazo. Na maioria das vezes, esse uso intensivo de
agrotóxicos é imposto por interesses privados e pelas políticas públicas que regulamentam a
comercialização de alimentos. Desta forma, o Estado é parte ativa neste processo, pois ao
editar as normatizações para o comércio de alimentos tem sido pouco rigoroso com os riscos
dos resíduos químicos nos alimentos.
Para agravar a situação, a fiscalização quanto ao uso de agrotóxicos é extremamente
deficitária, principalmente pela falta de recursos humanos. Em recente estudo sobre o uso de
agrotóxicos no Brasil, Pelaez (2011), contabilizou o número de profissionais que atuam na
gestão e fiscalização do uso de agrotóxico no país, encontrado apenas 77 profissionais
atuando nesta questão, sendo 28 na Agência Nacional de Vigilância Sanitária (ANVISA), 30
no Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (IBAMA) e 17
no Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento (MAPA). Por esta falta de
fiscalização e pela forma incisiva de comercialização, por parte dos fabricantes, a
preocupação com os agrotóxicos deve estar presente em toda a cadeia agroalimentar. Para
alguns agricultores, essa preocupação permeia a sua vida. Em Divino, Júlia (20), ao ser
questionada sobre o que ela pensava quando ouvia a palavra comida, ela respondeu
categoricamente: “veneno”. Assim, o veneno passa a ocupar um espaço que deveria estar
reservado ao prazer e à saúde. A expressão “veneno” utilizada pela agricultora é fruto de uma
reflexão e torna-se uma categoria política diante dos agrotóxicos (nome usado na lei de
agrotóxicos), mas que muitos insistem em chamar de “defensivos agrícolas”, por isto muitos
agricultores continuam chamando de remédio. Isto é muito perigoso, pois significa menos
89
receio em manuseá-los. A opção pelo uso da palavra veneno indica um enquadramento, que
carrega e (re)produz sentidos sobre uma coletividade. É uma construção social vinculada a
movimentos sociais, científicos, políticos, que carrega em si a bandeira da questão ambiental,
e que nesse momento, é apropriada pela fala da agricultora que faz coro a um processo social
que a transcende.
Dados da ANVISA revelam que, desde 2001, ano em que teve início a Pesquisa de
Resíduos de Agrotóxicos em Alimentos (PARA), grande parte dos alimentos consumidos pela
população brasileira, principalmente frutas, legumes e verduras, apresentam resíduos de
agrotóxicos muito acima do permitido. Esta mesma pesquisa mostra que agrotóxicos
proibidos no Brasil estão presentes nos alimentos. O que significa dizer que, parte dos
alimentos, é cultivada com a utilização de produtos que são adquiridos de forma irregular, por
comprovadamente, apresentarem riscos à saúde humana (www.anvisa.gov.br).
Na presente pesquisa observou-se uma grande preocupação em relação ao uso de
agrotóxicos. E essa preocupação, não se refere apenas aos agricultores deste estudo, pois, em
pesquisa realizada entre trabalhadores do agronegócio no Ceará, Rigotto (2011) diagnosticou
que cerca de 30% dos trabalhadores pesquisados apresentaram quadro de intoxicação aguda
por agrotóxicos, sendo que, mais da metade deles, sequer procurou assistência médica. Esta
omissão nos diagnósticos, atrelada à falta de fiscalização, faz com que o uso de agrotóxicos
continue afetando a saúde de um parcela significativa da população. Ressalta-se com isso que
além de trazer riscos ambientais e de ser moralmente problemáticos, os agrotóxicos elevam os
gastos públicos com saúde, pois a cada US$ 1 gasto na compra de agrotóxicos, US$ 1,28 é
gasto pelo Governo para tratar as intoxicações agudas provocadas pelo seu uso (SOARES,
2010). Além dos muitos casos que não procuram assistência médica, alguns chegam a ser
atendidos, porém, não prestam depoimentos corretos como nos contou a Sr.ª Valentina: “Teve
um homem que jogou um tal de impacto, ficou doente, foi para o hospital e o médico
perguntou o nome do patrão e ele falou o nome de outra pessoa que já tinha morrido para
não irem atrás do patrão, pois o patrão seria prejudicado” (Valentina, 52, Serra dos
Delfinos, Divino- MG). A fala da agricultora aponta para um complexo quadro em que, falar
a verdade colocaria em risco o próprio emprego dos trabalhadores rurais.
Para alguns entrevistados de Divino, atualmente mais agricultores estão buscando a
produção agroecológica, também porque começaram a perceber os riscos à saúde, que os
agrotóxicos podem causar:
90
“Eles estão buscando a Agroecologia por que viram que as dificuldades estão
chegando, e o câncer é o que tem feito o povo mudar. Eu falo, o que começou a
modificar a minha vida foi o Sindicato e o CTA, eu acho que devo tudo a eles. Foi
como achar o caminho” (Pedro, 61, Alves- Divino-MG).
Por meio dos relatos, percebeu-se que a produção com agrotóxicos, no passado, foi
mais presente em Divino quando comparada ao município de Acaiaca, onde quase todos os
agricultores informaram que “não usavam nada”. Eles enfatizaram que quando utilizavam
algo na plantação era o esterco animal. Já em Divino, usava-se adubo químico e agrotóxico,
como se pode observar nas falas abaixo:
“Usavam veneno na lavoura, só na horta que não. Naquela época eu nem sabia que
era veneno, pois o cara que vendia o veneno falava que podia jogar na horta hoje e
amanhã ir lá e comer. Depois que eu aprendi sobre isso, não tenho boas
recordações. [...] Quando o meu pai jogava aquele veneno vinha aquele cheiro forte
parece que a cabeça da gente doía na hora, não procurava médico nem nada não,
lá nunca teve isso de procurar médico por causa de veneno não. Pensava que
veneno era sempre para melhorar, que jogava na lavoura para melhorar, para ter
mais café, mais que não fazia mal nenhum. [...]” (Júlia, 20, Vargem Grande de
Baixo, Divino-MG).
“O pai só usou veneno uma vez, bem no início, mais nem sabia que era veneno,
achou que era um produto de jogar” (Alberto, 28 Vargem Grande de Baixo).
“Usava muito veneno, e lá no meu pai usa até hoje. Usava adubo. Mesmo as terras
não sendo do pai dividia só o café, as outra plantação era de quem plantava e usava
veneno se quisesse" (Eva, 47, Vargem Grande de Baixo, Divino-MG).
Esta fala, da Sr.ª Eva, é importante para contrapor à ideia de que os meeiros usavam
agrotóxicos porque o dono da terra obrigava. Neste caso, o uso dos insumos químicos era
exigido pelos proprietários das terras, apenas para o café, às demais culturas os agricultores
eram livres para produzir como quisessem. Em Divino, o Sr. Adão (49) relatou que “na
lavoura nunca usamos veneno, só colocava veneno no milho na hora de guardar”.
Para o Vicente (35) que começou a produzir sem agrotóxicos e com consorciamento
de diferentes plantas em meio ao café, desde 1996, a preocupação com o ambiente em geral e
os cultivos sem a utilização de venenos tornou-se um compromisso:
“Eu falo que não uso veneno e que nunca vou usar, e que eu tenho um compromisso
comigo e com a natureza. Só não discuto, não bato de frente, na verdade quem usa
sabe que faz mal e vão contaminando a água, matando a terra e se matando”
(Vicente, 35, Serra dos Carolas – Divino-MG).
91
A relação entre agrotóxicos e riscos para a saúde foi enfatizada por todos os
entrevistados. Em Divino, a Paula (34) fez o seguinte relato: “meu cunhado joga veneno na
lavoura dele; ele vende este café e compra café sem veneno para beber, pois sabe que faz mal
para a saúde”. Frente a este relato outra reflexão deve ser feita a questão ética na produção de
alimentos. Esta mesma agricultora relatou que perdeu um tio por intoxicação pelo uso de
agrotóxicos.
Várias famílias relataram que com o uso da “medicina alternativa” (homeopatia,
radiestesia31, biodigital32), os gastos com remédios de farmácia reduziram. Relataram que
após adotarem e essas práticas, raramente ficavam doentes, reduzindo, inclusive, os
resfriados.
Vitória (36), agricultora em transição agroecológica, também é terapeuta alternativa.
Ela relata que quando começou a participar das discussões sobre os riscos dos agrotóxicos,
seu marido, Adil (40), tinha o hábito de usar venenos, principalmente roundup. Em
decorrência desse uso, ele sofreu uma intoxicação e nem mesmo as plantas utilizadas para chá
estavam disponíveis, pois tinham sido eliminadas por este veneno:
“O Adil usava veneno, principalmente roundup. Eu falava, e ele não acreditava,
até que um dia ele intoxicou; ficou com muita dor de cabeça, passando mal. Ele
tinha muita fé com macaé33; então ele pediu para eu pegar um macaé, só que ele
tinha jogado veneno e os macaé tinham morrido. Só que quem vendia falava que o
veneno era muito fraco, que não fazia mal” (Vitória, 36, Vargem Grande de Cima).
Ao conversar sobre quais motivos levariam uma pessoa a usar agrotóxicos, as falas
foram variadas, partindo do desconhecimento, ignorância até chegar ao puro interesse pelo
dinheiro, como se percebe nos seguintes depoimentos:
“Por que o incentivo para utilizar veneno é muito grande, tem muito incentivo por
um lado e falta de incentivo por outro. Na verdade muita gente joga veneno porque
nem sabe que é veneno, pensa que é um produto que tem que jogar, agora tem gente
que sabe também. Quem joga sem saber, que nem o pai da Júlia é por causa dos
técnicos, vendedor de veneno que eles chegam e não brincam de ser convincentes
não, eles falam que o que eles não querem para a família deles não querem para a
família dos outros. Lá na casa do meu sogro eles chegaram e falaram isso. E ele
31 Radiestesia é uma forma de diagnostico baseada no uso do pendulo. 32 Biodigital ou bi-digital é um método de tratamento e diagnóstico descoberto em Nova York em 1989
pelo médico japonês Dr. Omura. No Brasil foi inicialmente difundido pela pastoral da saúde, principalmente nas
periferias urbanas e no meio rural. Através da energia medida através de uma haste de metal é feito o diagnóstico
de doenças, indicação de medicamentos, alimentos mais indicados, etc. (OLIVEIRA, 2008). 33 Macaé é termo local utilizado para denominar a planta medicinal Leonurus sibiricus L., utilizada
popularmente para tratar várias doenças do sistema digestório
92
tava vendendo um que até está sendo proibido de usar no Brasil que é dissulfan34”
(Alberto, 28, Vargem Grande de Baixo, Divino - MG).
“Teve um home que dividiu a lavoura e numa parte ele jogou veneno, na parte que
era para a família dele não jogou, então eu fico pensando porque a família dele não
pode e os outros pode, eu acho que ele estava pensando só no dinheiro” (Júlia, 20,
Vargem Grande de Baixo, Divino - MG).
5.5 Alimento: da barriga cheia ao direito humano à alimentação adequada
“Tem três coisas que a gente tem que ter na vida: paz, saúde e ter o que comer”.
(Marisol, 50, Comunidade do Maracujá- Acaiaca - MG).
Nos últimos anos, a população brasileira tem experimentado uma forte alteração no
seu padrão econômico e nas condições de vida, afetando a saúde e o consumo de alimentos
(POCHMANN, 2010). Dados do Ministério da Saúde apontam que o número de doenças
crônicas não transmissíveis tem elevado drasticamente nos últimos anos (BRASIL, 2012). E,
apesar dos números serem alarmantes, muitos brasileiros simplesmente desconhecem a
própria condição de saúde. Até porque, a própria definição do que é saúde, torna-se difícil de
ser apreendida, uma vez que sua definição vem adquirindo significações diversas de acordo
com a época, o lugar, a classe social, ou mesmo os valores individuais, as concepções
científicas, religiosas, e filosóficas (SCLIAR, 2007).
A partir da leitura dos impressos e relatórios produzidos pelo CTA-ZM, visando o
levantamento de informações para esta pesquisa e das atividades de assessoria realizadas aos
municípios pesquisados, nos anos de 2011 e 2012, observou-se que tanto a questão da
alimentação como da comida foi fundamental para a saúde. Durante a pesquisa de campo, as
entrevistas mostraram que a maioria dos agricultores tratava a saúde como sendo a “coisa
mais importante da vida”. E é essa busca por saúde que estabelece uma forte conexão entre as
paisagens produtivas, aquilo que se produz, e as paisagens alimentares, aquilo que se
consome. Desta forma, o homem e a natureza são percebidos como um todo integrado e não
como díades opostas. Dito de outra forma, os agricultores e a natureza atuam como pares
(díades), e não como competidores, onde o homem explora a natureza até a sua exaustão ou a
natureza em resposta às agressões humanas, priva o homem de alguns recursos naturais. Os
agricultores que conseguem estabelecer essa percepção possivelmente poderão superar a visão
34 Dissulfan é um nome comercial do ingrediente ativo endossulfam. Por ser altamente tóxico a ANVISA
o incluiu no grupo de substâncias a serem avaliadas a partir de 2008. Este produto está relacionado à
genotoxicidade, toxicidade reprodutiva e do desenvolvimento, neurotoxicidade, e toxicidade endócrina, seu uso
está sendo descontinuado e será definitivamente proibido em Julho de 2013 (www.anvisa.gov.br).
93
da acumulação e da superexploração dos recursos naturais. Possivelmente serão estes
agricultores que estarão mais atentos à saúde nas escolhas alimentares. Durante as entrevistas
a associação entre alimentação e saúde pode ser percebida nas seguintes falas:
“Eu penso que o alimento é a base de tudo, se alimentou o expediente35 abre para
tudo” (Élcio, 55, Vargem Grande, Divino-MG).
“Quando eu penso em comida, penso em alimentação, alimentar-se bem, comer
bem. Eu acho que tinha de mudar a palavra, comida tinha que ser tratada como
remédio. Os médicos deviam ao invés de falar de remédio era ensinar o que comer,
toda consulta tinha que ter um nutricionista junto” (Marisol, 50, Comunidade do
Maracujá, Acaiaca - MG).
“Um alimento para o nosso corpo, coisa que vai te satisfazer. Eu acho que uma boa
alimentação pode evitar muitas doenças, aí você não fica doente” (Violeta, 51,
Comunidade do Maracujá, Acaiaca - MG).
“Alimento é importante, a pessoa sem alimentar não tem saúde” (Luzia, 58, Bom
Jesus, Divino – MG).
“Quando eu penso em alimentação, eu penso na saúde dos filhos, da gente mesmo.
Já passei muita dificuldade, mais eu gosto muito de verdura, então eu economizo
bem minha saúde” (Olga, 48, Vargem Grande de Baixo, Divino-MG).
Indagada sobre o que seria economizar na saúde, conforme visto no relato acima, a
agricultora respondeu: “tem dois sentidos, um de não ficar doente pelas comidas que faz mal e
outro de não precisar comprar remédios” (Olga, 48, Vargem Grande de Baixo, Divino-MG).
E, por associar consumo de alimentos e saúde, alguns itens da base alimentar foram
excluídos ou reduzidos da dieta, como a carne, por exemplo. No passado, este consumo foi
reduzido por privações econômicas; na atualidade, para alguns dos entrevistados a redução do
consumo de carne é resultado da nova concepção de que o elevado consumo deste alimento é
prejudicial para a saúde. Esta reflexão advém de motivos diferenciados. Para alguns dos
entrevistados, a redução do consumo de carnes foi estimulada pela adoção das terapias
alternativas como homeopatia, ervas medicinais, biodigital, etc., que, frequentemente,
preconizam a redução do consumo de carnes. Outros entrevistados reduziram este consumo
como forma de diminuir a aquisição de bens externos, e quando não produziam este consumo,
se dava eventualmente, nos momentos festivos. Em Divino, uma entrevistada, jovem, não
come nenhum tipo de carne; porém, sua opção não interferiu no hábito da família, onde o
consumo de carnes foi observado, em todas as refeições. Assim, percebeu-se que as famílias
foram se apropriando de forma diferenciada do consumo desta fonte de proteína. Em Acaiaca,
35 Expediente foi empregado no sentido de disposição, energia, para o trabalho.
94
um agricultor deixou de comer carne e banha de porco, por influência de alguns técnicos do
CTA-ZM. No entanto, ao ser perguntado por que não consome só a carne de porco, ele
respondeu que “ela faz mal para a saúde, inclusive está na bíblia”. Isso dá elementos para
entender que nem sempre os argumentos para uma escolha realizada são baseados em
questões técnicas.
No entanto, mesmo que vários agricultores tenham relatado que o consumo de carne,
em excesso, seja prejudicial à saúde, muitos deles citaram esse alimento como comida e, em
alguns casos como a preferida dentre os alimentos atuais. Como dito anteriormente, a
associação entre baixo consumo de carnes e saúde se deve, principalmente, pelas
recomendações das terapias alternativas, não sendo um princípio do movimento
agroecológico. Como a utilização das terapias alternativas foi uma prática presente apenas no
município de Divino, daí esta associação ter sido predominante neste município. Em Acaiaca
apenas uma família excluiu a carne, e neste caso apenas a de porco. Na memória alimentar, a
carne de porco foi citada como consumida por todos os agricultores.
Percebeu-se, ainda, que o valor social e cultural da carne estava presente em vários
depoimentos, e que, em alguns casos, a carne era uma comida a ser oferecida para as visitas e
componente imprescindível nas festas. Neste sentido, temos a contribuição de Woortmann
(2004) que ao analisar o valor simbólico das práticas alimentares, verificou que nas reuniões
sociais sempre um alimento de origem animal estava presente. O valor simbólico das carnes
também foi estudado por Santana (2000) e em muitos casos a carne tinha um valor sagrado,
pois além de ser consumida nas festas, era alimento de oferenda para os deuses.
Por meio de um registro de alimentos, realizado durante a pesquisa de campo, onde se
anotou todos os alimentos ingeridos pela família, num período de 24 horas, observou-se que
tanto em Acaiaca como em Divino, pelo menos um alimento de origem animal,
principalmente a gordura de porco, foi consumido em todas as famílias.
A Tabela 07 mostra que a gordura de porco foi o alimento de origem animal
consumido pelo maior número de famílias, sendo em alguns casos comprada. Essa compra,
em geral, era realizada por meio de redes locais de comercialização, essencialmente entre
vizinhos. Entre as carnes, a suína continua sendo a mais consumida. Os ovos, de galinha,
foram mais consumidos em Divino do que em Acaiaca. O leite e seus derivados foram
proporcionalmente mais consumidos em Acaiaca. Ressalta-se, todavia, que, neste município,
quatro das seis famílias pesquisadas (67%) têm vaca leiteira, e em Divino das doze famílias a
metade (50%) possui estes animais. No passado, cinco das seis famílias pesquisadas em
95
Acaiaca informaram que consumiam leite de cabras. A única família que não se referiu às
cabras como a fonte de leite quando criança foi a da Bárbara, que nasceu e viveu na cidade até
os 30 anos. Em Divino, as cabras também foram citadas por vários entrevistados. Na casa da
Sr.ª Valentina (52) todos consomem apenas o leite de cabra, pois, acham que o leite de vaca
tem um cheiro forte, contrariando exatamente o senso comum na região – leite de cabra tem
cheiro mais forte. Nessa família, as cabras sempre estiveram e continuam presentes
fornecendo leite, carne e ainda são eventualmente vendidas ou trocadas, gerando recursos
financeiros.
TABELA 07 - Alimentos de origem animal consumidos pelas famílias pesquisadas em
Acaiaca e Divino-MG, 2012.
Alimento
Nº de famílias que
consumiram em
Acaiaca
Nº de famílias que
consumiram em
Divino
Carne bovina (cozida, frita, moída) 1 2
Linguiça suína 2 1
Carne suína de lata/frita 3 5
Fígado bovino 1 -
Frango caipira36 2 2
Fricassé de frango (granja) - 1
Gordura de porco 4 9
Iogurte industrializado 1 1
Leite de cabra - 1
Leite de vaca 4 6
Mel de abelhas - 1
Murcia (embutido de miúdos de porco e toucinho) - 1
Ovo de galinha caipira (cozido/mexido, frito) 2 7
Peixe frito (cavalinha/traíra) 2 -
Queijo fresco 4 2
Requeijão corte 2 -
Torresmo 1 -
Fonte: Resultados da pesquisa, 2012.
No passado, as populações mais pobres do meio rural tinham um restrito acesso às
fontes de proteínas de origem animal. Neste contexto, conforme afirma Cândido (1987), as
caças foram importantes para a reprodução das famílias. No trabalho de campo para esta
pesquisa, os relatos também enfatizaram a importância da caça na base alimentar: “Fazia
muita sopa de galinha, pato, preá, jacu, gambá, lagarto, tatu. Até gato do mato já comi.
Tinha peixe, naquela época tinha muito peixe, hoje não tem mais, pois além do esgoto tem o
roundup” (Violeta, 51, Maracujá, Acaiaca- MG). Certamente, com a pequena criação animal
36 Caipira foi uma apropriação do termo utilizado pelos entrevistados.
96
relatada pelos agricultores, somada às dificuldades de acessar o mercado formal, as caças
foram importantes para assegurar as necessidades diárias de proteína. O consumo de caças
discutido por Cândido (1987) se dava, principalmente, pela aproximação com os animais
domésticos onde a paca substituiria o porco e os nhambus o frango ou galinha.
Quanto ao consumo de carne bovina, tanto em Acaiaca quanto em Divino, no passado,
poucos entrevistados comiam esta carne ou quando comiam, era em pequena quantidade e
eventualmente: “A gente comia arroz, feijão, angu, mingau de couve, verdura, quiabo,
abóbora, não comia carne de boi, nunca comia carne de boi. Frango comia de vez em
quando, e (comia) pouca carne de porco” (Eva, 47, Vargem Grande de Baixo, Divino-MG).
Àquela época, as carnes mais consumidas eram: a suína e a de frango caipira, além do
peixe que relataram que tinha muito e hoje quase já não se vê. Deve-se ressaltar que o
desaparecimento dos peixes, conforme citado anteriormente, é algo que todos os agricultores
mostraram-se bastante cientes, “foi devido aos venenos utilizados nas lavouras”.
Atualmente, o consumo da carne bovina continua eventual. Talvez em decorrência
dessa eventualidade, a carne tenha um valor simbólico maior. Assim, um agricultor relatou
que o churrasco é o seu prato preferido: “Hoje o que eu mais gosto? Churrasco. Só que não
tenho costume de comer, mais eu gosto” (Alberto, 28, Vargem Grande de Baixo, Divino-
MG).
Ainda, em relação às fontes de proteínas, o ovo teve uma importante contribuição,
além de entrar nas preparações, elevando seu valor nutritivo e foi a fonte de proteínas mais
consumida nas refeições de Divino. A maioria dos entrevistados relatou que no passado
criavam galinhas poedeiras. Em alguns casos, o ovo fazia parte do alimento que se levava
para a escola: “Tinha uma coisa que eu adorava! Ovo cozido, comia até de merenda na
escola” (Alberto, 28, Vargem Grande de Baixo, Divino-MG). No mesmo sentido outra
agricultora citou o ovo como alimento preferido: “Gostava de arroz, feijão e ovo frito. Hoje
continua a mesma coisa” (Valentina, 52, Serra dos Delfinos, Divino-MG). Atualmente,
principalmente incentivados pela comercialização com o PNAE, as galinhas poedeiras estão
de volta, e com isso mais ovos: para comer e para incrementar a renda.
Em Acaiaca, uma das agricultoras entrevistadas forneceu um relato onde se pode
perceber as mudanças alimentares processadas ao longo dos anos bem como a importância de
se consumir uma alimentação saudável para promover a saúde:
97
“De comida eu lembro que o lobrobo ajudava no feijão, pois a gente tinha pouco
feijão. Comia mingau de couve, eu aprendi com a vó que a couve é rasgada.
Colocava também o talo refogado. A gente comia muita fava, mingau de inhame,
feijão miúdo, mingau de banana verde. Cortava e colocava para cozinhar,
temperado com sal e comia com angu, pois não tinha arroz. Servia mingau de
banana com carne de porco, pois porco todo mundo tinha. A gente comia muita
coisa nutritiva, forte. Agora as carnes eram poucas [...]. Tinha muita coisa que não
precisava plantar, parece que a própria natureza dava, era serraia, capiçova,
samambaia. Comia muita serraia, que é muito bom para a saúde, pois limpa o
sangue. Essas coisas como macarrão carregam muito o sangue, eu evito coisas
misturadas, refrigerantes e suco de pacotinho. Estou muito grata a Deus, pois tudo
que eu tenho vontade de comer eu posso. Tenho saudade das cubus (broa de fubá,
assada na folha da bananeira), das cabritas, do sabor de antigamente. Tenho
saudade de leite de cabra com cuscuz ou fubá suado. Tem três coisas que a gente
tem que ter na vida: paz, saúde e ter o que comer. Porque é muito triste você ver um
com a mesa farta e outro sem nada. E hoje eu sei de muita gente que tem muita
coisa mais não tem uma boa alimentação. Antes eu pensava que tinha que ter
macarrão, batata, hoje eu sei que não” (Marisol, 50, Comunidade do Maracujá-
Acaiaca-MG).
Do depoimento acima pode-se perceber que mesmo com poucas condições
econômicas, a alimentação era diversificada e baseada nos bens alimentares que a família
produzia ou em plantas espontâneas comestíveis. Atualmente, a partir das ideias
agroecológicas, tanto a questão de consumir aquilo que a família produz quanto a diversidade
alimentar voltaram a fazer parte da vida dos agricultores que associam o consumo local à
saúde e à autonomia. As respostas obtidas de outros agricultores confirmam que, no passado,
a alimentação constituía-se, principalmente, dos alimentos que eles produziam. As compras
de alimentos se restringiam basicamente ao sal, e, em alguns casos, à farinha de trigo e ao
macarrão, conforme pode ser observado neste depoimento:
___________. Desenvolvimento da agricultura familiar: a experiência do CTA-ZM. In:
ÁLVARES, V. V. H.; FONTES, L. E. F.; FONTES, M. P. F. (Eds.). O solo nos grandes
domínios morfoclimáticos do Brasil e o desenvolvimento sustentado. Viçosa: SBCS/UFV,
1996. p.233-250.
FRANCO, F. S. Sistemas agroflorestais: uma contribuição para a conservação dos
recursos naturais na Zona da Mata de Minas Gerais. Tese de Doutorado. UFV. 2000.
FREIRE, P. Pedagogia da Esperança. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1992.
FREITAS, M. C. S. Educação Nutricional: aspectos socioculturais- In: Anais do XIV
Congresso Brasileiro de Nutrição- CONBRAN- Belo Horizonte. 1996. pp. 1-4.
GALEAZZI, M. A. M. (Org.) Segurança alimentar e cidadania. Campinas, SP: Mercado de
Letras, 1996.
GAZOLLA, M. Agricultura familiar, segurança alimentar e políticas públicas: uma
análise a partir da produção para autoconsumo no território do Alto Uruguai/RS. Dissertação de Mestrado. Porto Alegre: Universidade Federal do Rio Grande do Sul; 2004.
GIOVANINI, R. R.; MATOS, R. E. S. Geohistória Econômica da Zona da Mata Mineira. In:
Seminário Sobre a Economia Mineira. Diamantina. Anais. Belo Horizonte: CEDEPLAR /
UFMG, 2004.
GLIESSMAN, S. R. Agroecologia: Processos ecológicos em agricultura sustentável. 3a
Ed. Porto Alegre. Editora da UFRGS, 2008.
GOMES, J. C. C. Pluralismo epistemológico e metodológico como base para o paradigma
ecológico. Ciência & Ambiente, Santa Maria, v. 14, n. 27, p. 121-132, jul./dez., 2003.
_______________. Bases Epistemológicas da Agroecologia. IN Agroecologia: Princípios e
Técnicas para uma agricultura orgânica sustentável. AQUINO, Adriana Maria de; ASSIS,